19 maio 2020

O Dilema do Porco Espinho – de Leandro Karnal



A solidão tem sido minha companheira há algum tempo. Não a clássica da ausência de pessoas, mas a moderna, tecnológica, por vezes clichê das retóricas das mídias sociais onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, sem ninguém. Falo da materialização da descoberta de estar só, característica inata a todos nós, agora chamada de solitude. Assim, a consciência de tal estado costuma ser dolorosa, sobretudo porque caminho na contra mão do pensamento coletivo do qual precisamos nos agregar. Porém, a minha tomada de posição frente a isso veio à revelia dos ruídos da interação constante, em meio a patologização da minha mente, em outras palavras, depressão. Hoje, embora esteja em contínuo tratamento analítico, a sensação de ser unitário ainda é um incômodo, menor que antes, mas latente, depreciativo, maculando meu íntimo em solavanco com minha pressa em pertencer ao mundo. Curiosamente, todavia, O Dilema do Porco Espinho, de Leandro Karnal, conseguiu acalentar a belicosa barreira que nutria em ler sobre isso, permitindo-me um olhar sobre tal discussão dantes impercebível.

Estruturalmente, o livro é pequeno, de título curioso, até um tanto comercialesco, e revestido de uma diagramação que não torna a capa atrativa. Talvez o maior chamamento da obra se limite, no primeiro olhar, ao seu autor, professor consagrado e mais recentemente figura cativa nos diversos vídeos viralizados na rede. A linguagem, contudo, está longe do pedantismo academicista. Qualquer pessoa de nível medíocre de leitura, assim como eu, é capaz de compreender o que está escrito ali. Muito provavelmente, essa tenha sido a intenção do autor: escrever (ser) inteligível no discurso para levar a maior quantidade de pessoas as suas percepções sobre solidão. Isto porque, antes de tudo, O Dilema do Porco Espinho se mostra perceptível a gama pouco problematizada das solidões. É, para tanto, pretensioso ao compila-las, mas nem por tal audácia se mostra prepotente. Trata-se da fecunda necessidade de Karnal de provar que há diversas formas de solidão interessantes, benéficas, transcendentais, tristes, reveladoras, porém, todas humanas em sua essência e passíveis de serem sentidas e vividas por cada um de nós.

Sobre esse ponto, foi o que mais me tocou, a certeza de que havia positividade em certas manifestações da solitude, as quais não costumam ser apresentadas a nós. A tradicional, do isolamento que nos aparta do mundo, seja por decisão própria ou por determinação legal, sempre me assustou. Contudo, entre ambas, fui vitimado pela primeira em uma sociedade onde grande parcela vive o mesmo dilema. Nesse lugar sombrio dentro de nós mesmos, passamos a acreditar que a nossa dor é insuportável demais, sempre maior do que podemos aguentar. A solidão se apresenta como um martírio, uma penitência aplicada muitas vezes pela depressão que se ocupa de nós quando somos vulnerabilizados pela vida. Karnal, mesmo não intencionalmente, desconstrói essa alcova da qual estamos aprisionados para dizer que é possível sair dela, se entendermos as razões que nos levaram até lá. Claro, o livro não tem viés psicanalítico nem se pretende a isso. Entretanto, as pluralizar a solidão, o autor ressignifica o egoísmo nutrido em horas de fragilidade em que cremos que somos os únicos sofríveis desse dilema, quando na verdade há milhares de pessoas com o mesmo problema, em searas diferentes e lidando com eles diferenciadamente.

No entanto, é evidente que há faces da solidão que merecem acompanhamento médico, sobretudo quanto dão indícios claros de autocídios futuros. Nesses casos, não sei se O Dilema do Porco Espinho seja um livro resolutivo, pois não há nele uma preocupação em esmiuçar as razões da depressão em detalhes o suficiente para que as suas manifestações diversas toquem o interlocutor. Karnal, de fato, faz um compilado interessantes, traz exemplos, comparações, associa ideias e chega a problematizar pontos nevrálgicos de cada uma delas, mas não o suficiente para livrar alguém da sedução e tirar a própria vida. É uma obra de dimensão cosmopolita e, por isso, centrada nas frustrações advindas das aglomerações nas grandes sociedades onde todos se conectam sem firmar laços firmes de relacionamento. O livro talvez seja frágil nesse aspecto porque não há fortalecimento possível na fluidez da pós-modernidade, a não ser aquela que se enrijece dentro de nós a partir da tomada de consciência de que não estamos sozinhos nessa, tão pouco a nossa solidão é única ou especial.

Na verdade, fazemos parte do grande porco-espinho que provavelmente foi o motivador para que Leandro Karnal tenha se dedicado a esse assunto, a vida na internet. Contraditoriamente, é lá onde estamos com todos e, ao mesmo tempo, ilhados em nós mesmos, verdadeiros náufragos no ciberespaço, onde todos embarcam em naus alheias para sobreviver, mas acabam submergindo que percebem que ninguém é capaz de suportar tamanha responsabilidade. Não à toa, as mídias sociais deflagrem tantos casos de dependência, principalmente após a popularização dos celulares e sua adesão imediata pela juventude. O primeiro ganhou formas de interação distintas e cada vez mais desumanas: não se liga mais, se “twitta-se”, “zapei-se”, “instagrameia-se”, em uma comunicação entremeada de elementos, nem sempre humanos, que funcionam no momento da execução, mas são deteriorados tempos depois. Daí as constantes atualizações dessas plataformas, porque seus criados sabem que estão contribuindo para a solidão de seus usuários, porém, na lógica capitalista, adoecer consumidores é o mínimo prejuízo diante das cifras vultuosas advindas dos milhares de acessos por minuto.

Fora desse cenário frágil de interação humana, a vida na margem do mundo real se deteriora ainda mais, pois muitas pessoas passam a depender da tecnologia para se sentirem vivas, incluídas, pertencentes a universos dos quais a existência fora da rede não foi possível. Assim, sentenciados duplamente, pelas dores existenciais e pela perda de referenciais, os indivíduos sós passam a tratar a solidão apenas como algo negativo, degenerando suas faculdades mentais precocemente. Em contrapartida, todo o enriquecimento, elevação, maturidade e encontro consigo mesmo, oportunizado por momentos preciosos de solidão, são ignorados quando colocamos qualquer solidão no lado ruim da vida. Em O Dilema do Porco Espinho vemos grandes exemplos de figuras importantes da história da humanidade fazendo a diferença para si e o outrem a partir do momento em que tomou consciência de que seu estado de solitude, inevitável e por isso comum a todos, pode ser transformador. O problema é a visão conservadora cristã da família comercial de margarina limitado ao clássico binômio bíblico Adão e Eva, como se tal complementação fosse suficiente para preencher o vazio de ser só em um mundo onde o outro é apenas instante.

Portanto, O Dilema do Porco Espinho é um livro interessante, de leitura leve sobre um tema muito complexo e de muitas camadas para serem analisadas. Porém, na celeridade da vida moderna, é uma obra eficiente, pois cumpre o seu papel de expor a pluralidade das solidões, seus ganhos, suas perdas e como cada uma delas tem nesses potenciais a chave para uma vida menos dolorosa. Para alguém como eu em processo analítico me reencontrando comigo mesmo na casa dos 30 anos foi um achado esse livro, a oportunidade de me tirar do limbo do qual vagava e me direciona para o caminho que me for mais conveniente. A você, ele pode ter outros significados, porém, acredito que abrirá uma fenda por onde alguma luz entrará na escuridão muitas vezes auto imposta a nós pela solidão. Antes de tudo, não há um caráter milagroso na obra, nem poderia diante do perfil de seu autor. Então, não vá ler esse livro achando que haverá algum recurso mirabolante para lidarmos com nossos temores. Nossos fantasmas, apesar de similares, são muito particulares de cada um de nós e precisam ser vencidos pela nossa força de vontade e, em alguns casos, pela intervenção de algum profissional. Fora isso, O Dilema do Porco Espinho, se não te fizer entender em que solidão estás, fará você compreender a sua solitude, respeitá-la, assumi-la ou extirpá-la da sua vida. Seja qual for a decisão, tenha ciência de que será a melhor para você.

2 comentários:

  1. O dilema do porco espinho me fez refletir muito sobre a minha vida e ver que a solidão se faz necessária e que eu preciso ter ciência de que as vezes a solidão e importante para o nosso amadurecimento próprio,reconhecendo o que de fato é importante pra mim.

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  2. Há uma romantizacao sobre casamento homoafetivo mas será que convivermos, diariamente, com uma pessoa: o cotidiano vale a pena? Me lembro que quando mudei de apartamento e precisei de eletricista, a colega que indicou elogiou a beleza e até disse que era gostoso, pensei será que ele chegou nela? Quando fomos no apartamento que eu estava saindo para trazer o final da mudança, ele me desejou de transarmos lá e comentou que mexe com a imaginação dele a sexualidade de homens "solteirões" sem o cotidiano conjugal dos maridos em especial do dia a dia de casal!

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