Disser Ta Cao

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

MARCOS FELIPE ROCHA

A FÓRMULA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”: POLÊMICA E


DISCURSO

CUIABÁ-MT
2021

1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

MARCOS FELIPE ROCHA

A FÓRMULA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”: POLÊMICA E


DISCURSO

CUIABÁ-MT
2021

2
MARCOS FELIPE ROCHA

A FÓRMULA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”: POLÊMICA E DISCURSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade
Federal de Mato Grosso como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Estudos de
Linguagem na Área de Concentração de Estudos
Linguísticos.

Orientadora: Profª. Drª. Ana Carolina Vilela-Ardenghi

Cuiabá-MT
2021

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AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Ana Carolina Vilela-Ardenghi, imensamente, por me conduzir


ao longo do mestrado e por todas orientações, apontando os caminhos para que eu pudesse
desenvolver meu trabalho. Com toda certeza, seu exemplo de pesquisadora e analista do
discurso, com todo rigor científico, foram essenciais para minha formação;
Aos professores Roberto Leiser Baronas e Hélio de Oliveira, componentes da banca,
por aceitarem compor a qualificação e defesa com considerações valiosas no encaminhamento
da pesquisa;
À professora Carolina Akie Ochiai Seixas Lima, por aceitar compor a banca como
suplente;
Aos professores do PPGEL da UFMT, pela minha formação na pós-graduação;
Aos meus amigos pesquisadores e aos colegas do grupo ReDis, em especial Aline Salles
Panhan, Bruna Passanezi Budoia, Mariane Rocha Camargo Vasconcelos e Brenda Nathalie,
pelas partilhas de inquietações e cafés;
À minha família, especialmente minha mãe Ana Maria da Rocha, por serem meu
alicerce, pelos princípios e pelo diálogo.
E à CAPES, por financiar esta pesquisa.

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“Quem controla a produção das ideias dominantes
controla o mundo. E também por isso, as ideias
dominantes. É também por isso, as ideias dominantes
são sempre um produto das elites dominantes. É
necessário, para quem domina e quer continuar
dominando, se apropriar da produção de ideias para
interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo
com seus interesses.”
(Jessé de SOUZA, 2019, p. 26)

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RESUMO

Este trabalho, inscrito no quadro teórico da Análise do Discurso (AD) francesa, tem como
principal objetivo analisar discursivamente o sintagma “ideologia de gênero” fundamentado na
hipótese de ser uma fórmula discursiva por, a partir da sua dispersão nos espaços político,
midiático e institucional, atendendo as quatros propriedades constituintes de uma fórmula
discursiva na teoria de Krieg-Planque (2010): dispor de um caráter cristalizado; inscrever-se
em uma formação discursiva; ter o funcionamento como referente social e; ser dotada de um
aspecto polêmico. A relevância da pesquisa vem da atual conjuntura sociopolítica, tendo em
vista a reemergência do discurso conservador e a produção de enunciados que, a partir dessa
formação discursiva (FD), começaram a circular no espaço discursivo social. Nesse contexto,
tem-se proliferado diversos sintagmas e enunciados desenvolvidos para (re)designar tudo
aquilo que, para os conservadores, são contrários às suas pautas. Nos dados analisados, observa-
se que o sintagma “ideologia de gênero” surge, aparentemente, como uma reação aos estudos
de gênero (BUTLER, 1990-2003) impactando diretamente o funcionamento das instituições.
No Brasil, desde a divulgação dos Planos Nacionais de Educação em que se mencionava
abordagem da diversidade de gênero, tal discussão se proliferou no espaço social e houve uma
grande circulação da expressão, alargando-se até os dias atuais. Dessa forma, o levantamento
dos dados e de suas variações (por exemplo, “teoria(s) de gênero”, “questões de gênero”) foi
realizado através dos postulados de Maingueneau (2008) sobre as unidades não-tópicas
construídas pelo analista e o percurso. A coleta de dados se deu a partir de buscadores online.
Assim, partimos da proposição da autora Alice Krieg-Plaque (2010), em que se objetiva analisar
enunciados que se cristalizam no espaço político e circulam na conjuntura social. Para tanto,
objetivou-se analisar a propagação da fórmula, observando as significações produzidas em
diferentes espaços. Além disso, foi explorado o funcionamento do conservadorismo na
produção de subjetividades e na mobilização do pânico moral a partir do sintagma em estudo.
Os resultados da pesquisa apontam que a fórmula “ideologia de gênero”, além de ter seu sentido
disputado por diferentes atores sociais e instituições, funciona como um mobilizador de
repressão e marginalização dos estudos de gênero, assim, essa fórmula dispõe de uma
materializaçãõ negativa e que funciona como trunfo para os conservadores na instauração de
sua agenda hegemônica de padrões sociais de controle.

Palavras-chave: Análise do discurso; fórmula discursiva; ideologia de gênero; discurso


conservador.

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ABSTRACT

This work, inscribed in the theoretical framework of French Discourse Analysis (AD), has as
its main objective to discursively analyze the phrase "gender ideology" based on the hypothesis
of being a discursive formula by, from its dispersion in political, media and institutional, taking
into account the four constituent properties of a discursive formula in the theory of Krieg-
Planque (2010): having a crystallized character; enrolling in a discursive formation; having
functioning as a social referent and; be endowed with a controversial aspect. The relevance of
the research comes from the current sociopolitical situation, considering the re-emergence of
the conservative discourse and the production of statements that, from this discursive formation
(DF), began to circulate in the social discursive space. In this context, several phrases and
enunciations developed to (re)designate everything that, for conservatives, are contrary to their
agendas has proliferated. In the data analyzed, it is observed that the phrase “gender ideology”
appears, apparently, as a reaction to gender studies (BUTLER, 1990-2003) directly impacting
the functioning of institutions. In Brazil, since the dissemination of the National Education
Plans in which the approach to gender diversity was mentioned, such discussion has proliferated
in the social space and there has been a large circulation of expression, extending to the present
day. Thus, the survey of data and its variations (for example, "theory(s) of gender", "gender
issues") was carried out through the postulates of Maingueneau (2008) on the non-topical units
constructed by the analyst and the route. Data collection took place from online search engines.
Thus, we start from the proposition of the author Alice Krieg-Plaque (2010), in which the
objective is to analyze statements that crystallize in the political space and circulate in the social
situation. Therefore, the objective was to analyze the propagation of the formula, observing the
meanings produced in different spaces. Furthermore, the functioning of conservatism in the
production of subjectivities and in the mobilization of moral panic based on the phrase under
study was explored. The research results show that the formula “gender ideology”, in addition
to having its meaning disputed by different social actors and institutions, works as a mobilizer
of repression and marginalization of gender studies, thus, this formula has a negative
materialization and which works as an asset for conservatives in the establishment of their
hegemonic agenda of social patterns of control.
Key-words: Discourse Analysis; discursive formula; gender ideology; conservative discourse.

7
Sumário

Sumário....................................................................................................................................... 8
Introdução ................................................................................................................................... 9

Capítulo 1
Aproximações iniciais: a expressão ideologia de gênero e as escolhas teórico-metodológicas
.................................................................................................................................................. 13
1. A questão do “percurso” no trabalho do analista do discurso ....................................... 13
2. A noção de fórmula discursiva ...................................................................................... 14
3. A organização e coleta dos dados .................................................................................. 16
4. Apresentação do corpus: delineações e estruturação..................................................... 18

Capítulo 2
Ideologia de gênero: uma fórmula discursiva........................................................................... 20
1. Estatuto formulaico ....................................................................................................... 20
2. As quatro propriedades constitutivas de uma fórmula discursiva ................................. 22
2.1. O caráter cristalizado ..................................................................................................... 22
2.2. A inscrição discursiva da fórmula ................................................................................. 25
2.3. Um valor de referente social .......................................................................................... 31
2.4. A dimensão polêmica da fórmula .................................................................................. 37

Capítulo 3
“Ideologia de gênero”: aspectos da sua dimensão polêmica .................................................... 42
1. Os manifestos feministas e os estudos de gênero .......................................................... 49
2. Uma convergência: moralismos, patriarcalismo e religião .......................................... 54
2.1. A mobilização do pânico moral ..................................................................................... 59

Capítulo 4
A reemergência do discurso conservador no Brasil contemporâneo e as questões de gênero . 63
1. As condições de produção discurso reacionário (ultra)conservador no espaço social .. 64
2. Uma reorganização conservadora na sociedade contemporânea ................................... 69

Conclusão ................................................................................................................................. 80
Referências ............................................................................................................................... 83

8
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como eixo central o sintagma “ideologia de gênero” que, na
contemporaneidade, não somente no Brasil, mas também em outros países, tem estado no centro
dos debates e das políticas públicas, sendo interesse de diversos grupos e instituições, seja a
fim de provar sua existência ou para descontruir a formulação e os sentidos atribuídos ao
sintagma.
A pesquisa surge de uma inquietação pessoal a partir das discussões que cercaram o
Plano Nacional da Educação - documento que rege as diretrizes e metas para a educação, em
2014, no qual o termo “gênero” foi retirado do texto final por forte pressão da ofensiva
reacionária lideradas pelas bancadas religiosas no plenário sob o argumento de que o uso deste
valorizava a “ideologia de gênero” e, ao mesmo tempo, corroborava a deturpação das
disposições tradicionalistas de “homem” e “mulher”, atreladas aos sexo biológico, derivando
na subversão do arranjo familiar tradicional. Outro fator muito relevante na dispersão do
sintagma é polarização sociopolítica e ideológica observada nos últimos tempos,
principalmente após 2013, após as manifestações iniciadas em redes sociais e que tomaram as
ruas por todo Brasil.
Voltando ao uso da expressão, principalmente por grupos ultraconservadores, um fator
observado foi o esvaziamento do sentido dicionarizado para atribuição de uma carga semântica
negativa. Dessa forma, para ativistas e polemizadores antigênero, a “ideologia de gênero” só
existe a partir do crescimento dos estudos de gênero nas últimas décadas, assim, o arranjo
familiar heterossexual é tido como algo natural. Nesse contexto, sob diversos argumentos e
conjecturas, haveria uma aniquilação da família natural tradicional e uma ameaça à ordem
simbólica.
Ao frequentar as disciplinas de Análise do Discurso, com a Prof. Dra. Ana Carolina
Vilela-Ardenghi, e Análise de Discurso: Problemáticas e Ramificações Conceituais
Contemporâneas, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas, além das discussões no
grupo de estudos do qual faço parte, pude aproximar da epistemologia de estudo das fórmulas
discursivas, consoante a teoria proposta pela teórica francesa Alice Krieg-Planque (2010).
Conforme a teoria, é possível observar como determinadas palavras e/ou expressões
“explodem” discursivamente em uma sociedade, ganhando grande relevância no espaço
público e, logo, torna-se passagem obrigatória dos discursos.
A partir da proposição de Krieg-Planque acerca da abordagem formulaica dos
discursos, iniciamos pesquisas pela plataforma, durante o ano de 2019, com enfoque nas

9
notícias e nos artigos que eram publicados, assim, começamos a coletar e organizar esses dados
conforme as ocorrências do sintagma “ideologia de gênero”. Nesse contexto, observamos que
diferentes atores ligados à diferentes instituições faziam usos distintos da formulação, seja para
alinhamento, ou para antagonizar seus usos.
O próximo passo foi ordenar as perguntas que norteariam a pesquisa no entorno do
sintagma: como este adquire uma implicação ideológica a partir de uma determinada formação
discursiva? Quais elementos sociais corroboraram para que este dispersasse na arena pública?
Como as práticas discursivas contribuíram para a circulação do sintagma nos espaços
midiáticos, políticos e institucionais? Em quais enunciados foi possível identificar a
materialização deste?
Tendo em vista as questões iniciais, é possível observar que determinadas páginas da
internet e autores diversos colaboraram diretamente para a intensa publicização fazendo com
que a questão se proliferasse, através de diversas publicações de notícias e artigos de opinião,
observamos a sua circulação no espaço social, fazendo que com que os sujeitos discutissem a
temática, tornando-a passagem obrigatória dos discursos, assim, incorporando a expressão
formulaica em diversas situações da comunicação.
Considerando o aporte teórico da AD francesa, principalmente a noção de fórmula
(KRIEG-PLANQUE, 2010), partindo da hipótese de que “ideologia de gênero” circula no
espaço social como uma fórmula, foi feita a coleta dos dados que compõem essa pesquisa e a
análise do corpus. Assim, para a autora, uma fórmula
Empregada em usos públicos que a investem de questões sociopolíticas por vezes
contraditórias, essa sequência conhece, então, um regime discursivo que faz dela uma
fórmula: um objeto descritível nas categorias da língua e cujo destino – ao mesmo
tempo invasivo e continuamente questionado – no interior dos discursos é
determinado pelas práticas linguageiras e pelo estado das relações de opinião e de
poder em um momento dado no seio do espaço público (KRIEG-PLANQUE in
MOTTA; SALGADO, 2011, p.12).

Assim, realizamos a seleção de textos diversos em páginas de grande relevância e com


muitos acessos na web e de atores inscritos em diferentes posicionamentos discursivos. Nos
dados obtidos, fizemos um recorde de 2013 até 2021, observando desde o período de discussão
a partir do Plano Nacional de Educação e que a discussão acerca do sintagma e do seu desígnio
é recorrente até os dias atuais.
Partindo, portanto, da constituição do corpus buscamos identificar as condições de
produção dos discursos sobre “ideologia de gênero”, buscando, por meio da materialização e
das práticas de linguagem e discursivas, as disposições e variações da fórmula, a aquisição de

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sentidos nos variados contextos, sua cristalização em uma dada conjuntura e, principalmente,
seu forte aspecto polêmico.
Outro aspecto de grande relevância que observamos ao longo da pesquisa foi a
materialização da guinada conservadora no espaço discursivo. É notório que os movimentos
progressistas e minoritários alcançaram espaços e conseguiram diversas conquistas nas últimas
décadas, grupos que convergiam entre gênero, classe e raça começaram ter seus direitos
garantidos por lei e cativarem espaço na arena pública, subvertendo processos e ordenamentos
opressivos de construção social. Entretanto, principalmente no que tange questões de gênero,
grupos conservadores reacionários mobilizaram-se com valores, instituições e um sistema de
crenças calcados em marcos morais, intransigentes e autoritários, endossando a naturalização
das restrições impostas por gênero - numa concepção dual e binária, raça e classe social. Dessa
forma, o conservadorismo reacionário, observando o novo cenário político-discursivo e visando
a tomada dos padrões sociais de controle, começam produzir enunciados e fórmulas na esfera
discursiva com o ensejo de instaurar, o que defendemos aqui, como pânico moral e reconquistar
o espaço de arbitrariedades e contingências dominado pelo poder masculino (heterossexual)
institucionalizado.
Após uma breve apresentação da pesquisa e de questões que engendraram a circulação
de “ideologia de gênero”, analisamos a partir do quadro da AD francesa, considerando os
aportes de Krieg-Planque e as propriedades constitutivas de uma fórmula discursiva. Assim,
analisaremos diferentes posicionamentos no entorno do sintagma que não se anulam, mas
estimulam os usos diversos deste, alavancando sua circulação e a atribuição de sentidos,
fomentando principalmente o forte caráter polêmico de ideologia de gênero.
Tal quadro nos permitiu investigar os enunciados em que o sintagma circula e que
partem de posicionamentos distintos que não necessariamente se anulam, mas se alimentam
mutuamente, constituindo, através da circulação e da consequente atribuição de sentidos a uma
estrutura formal, sua emergência no espaço público. Em outras palavras, a coleta de dados nos
levou a perceber certos campos em que a formulação aparece de maneira mais frequente, em
que pudemos depreender as condições de emergência e de recepção dos discursos que seus
múltiplos usos mobilizam.
Portanto, para elucidar o percurso realizado na pesquisa, dividimos o trabalho em
quatro capítulos que, brevemente, apresento a seguir.
No primeiro capítulo, “Aproximações iniciais: a expressão ideologia de gênero e as
escolhas teórico-metodológicas” justificamos tanto as escolhas teórico-metodológicas que
embasaram o desenvolvimento desta pesquisa, quanto os processos de seleção e organização

11
dos dados que compõem o corpus. Neste capítulo, explicitamos, também, a coleta dos dados
partindo dos pressupostos de Maingueneau (2008) a partir da ideia de percurso.
Já no segundo capítulo, “Ideologia de gênero: uma fórmula discursiva”, explicitamos,
a partir dos usos e da materialização do sintagma, descrevendo as propriedades de tal
enunciado, demonstrando como este adquire o estatuto formulaico por dispor de quatro
características fulcrais que funcionam e dependem, portanto, numa rede de encadeamentos: 1 -
caráter cristalizado; 2 - inscrição em uma formação discursiva; 3 - funcionamento como
referente social e; 4 - dotado de um aspecto polêmico.
O capítulo 3, “Ideologia de gênero: aspectos da sua dimensão polêmica” apresenta a
característica, observando como diferentes sujeitos organizam seus discursos e mobilizam
sentidos a partir do sintagma em estudo. Acreditamos que esta seja a propriedade mais forte de
“ideologia de gênero” ao passo que funciona como um vetor de discursos antagônicos e
estimula a produção constante de enunciados heterogêneos.
Por fim, o capítulo 4, “A reemergência do discurso conservador no Brasil
contemporâneo e as questões de gênero” apresentamos uma discussão acerca da retomada do
discurso conservador no cenário contemporâneo, evidenciando as condições de produção e de
circulação do discurso conservador no espaço público a partir da circulação da fórmula
“ideologia de gênero”, por meio do discurso, e da institucionalização do pensamento
conservador moral.
Mediante as questões apresentadas acima, pudemos, portanto, apreender o
funcionamento discursivo do sintagma “ideologia de gênero” como uma fórmula discursiva,
conforme os aportes da AD francesa, ancorado em um dado momento histórico, estando no
cerne do embate entre progressistas e conservadores, tanto no cenário social, quanto político.
Nas páginas que seguem, observamos diversas ocorrências de “ideologia de gênero” que
convergem para sua configuração na esfera pública, ressaltando como atores estabelecem,
através do discurso, suas relações de poder (Krieg-Planque, 2018, p. 129).

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CAPÍTULO 1
APROXIMAÇÕES INICIAIS: A EXPRESSÃO IDEOLOGIA DE
GÊNERO E AS ESCOLHAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

“O exercício da faculdade da linguagem é guiado por um princípio de criatividade e


imprevisibilidade.”
(Alice Krieg-Planque)

1. A questão do “percurso” no trabalho do analista do discurso

O trabalho de um analista do discurso, conforme Maingueneau (2015), envolve a


tomada de decisão por certas maneiras de categorizar os tipos de unidades com as quais trabalha
e que são “construídas em função das restrições e dos objetivos da pesquisa sobre o discurso”
(MAINGUENEAU, 2015, p. 65). Segundo o autor, de modo geral, é possível dizer que os
analistas operam sobre dois grandes conjuntos: o das unidades tópicas e o das unidades não
tópicas de análise.

Tendo em vista a relevância da noção de “percurso” para a metodologia desta pesquisa,


faz-se considerável uma breve distinção entre as unidades tópicas e as unidades não-tópicas
para a análise do discurso (AD), a partir da proposta de Maingueneau (2008). Por unidades
tópicas compreende-se que elas correspondem espaços previamente delineados pelas práticas
verbais, a exemplo do discurso comunista e do discurso socialista. Já as unidades não-tópicas
são construídas pelo próprio pesquisador, sem levar em consideração as fronteiras pré-
estabelecidas, embora sejam calcadas na história e por ela justificadas. Tanto as formações
discursivas quanto os percursos são unidades não-tópicas do discurso.

Algumas expressões que têm circulado por meio do discurso em contextos diversos,
principalmente no campo político, como é o caso de “ideologia de gênero” - expressão que nos
últimos anos tem chamado atenção devido sua circulação em contextos diversos. Tais sintagmas
se inscrevem no quadro teórico-metodológico da Análise do discurso naquilo que Maingueneau
(2008) denomina como “percurso”, uma vez que, conforme Krieg-Planque (2010), uma
expressão, como “ideologia de gênero”, possibilita que o analista explore a heterogeneidade e
a circulação discursiva no espaço social. Nesse sentido, este sintagma está inserido em diversos
campos e em diferentes posicionamentos nos quais os enunciadores são, em um dado momento,
levados a posicionarem-se. Daí o fato de ser uma expressão que materializa questões sociais e

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políticas no debate público, tendo seu sentido produzido em diversos espaços e discursos, sendo
objeto de disputa e constitutivamente de polêmicas. Assim, observa-se que os “percursos”
(MAINGUENEAU, 2008b, p.18) podem incidir sobre diferentes expressões e significantes
candidatos à fórmula – que, além das pequenas frases, são unidades linguísticas propícias para
esse tipo de quadro metodológico. Nessas condições, um percurso, por se tratar de uma unidade
não-tópica do discurso, tem sua organização de uma unidade lexical, não estando diretamente
ligado a uma instituição, mas que circula por espaços diversos.

As formações discursivas, noção que possui uma dupla paternidade, foi introduzida
por Foulcault para designar um conjunto de enunciados que estariam ligados a um sistema de
regras historicamente pautadas, já Pêcheux, inserindo o conceito no campo dos estudos
discursivos, apontou a noção como reguladora dos enunciados, autorizando-os ou não. Para
Maingueneau (2008), a noção mostra-se produtiva nos estudos com corpora numerosos,
podendo conter um conjunto aberto de tipos, gêneros, campos, aparelhos. Entretanto, não há
uma restrição para as unidades não-tópicas nesse sentido. Assim, para nossa pesquisa, a noção
de percurso é relevante por se tratar de unidades não-tópicas, ou seja, não ligada diretamente à
instituições, mas por ser definido como unidades de diversas ordens (lexicais, proposicionais,
fragmentos de textos), possibilitando o atravessamento de múltiplas fronteiras. Por certo, ao
analisar percursos, desestruturam-se unidades instituídas, delineando um caminho imprevisto,
a partir das necessidades do analista e da pesquisa. Portanto, este trabalho permite ao analista
suscitar relações invisíveis relevantes às interpretações.

Uma pesquisa desenvolvida com unidades não-tópicas, especificamente com os


percursos, conforme Maingueneau (2015, p. 95), a fim de analisar uma determinada circulação,
faz com que o analista reúna materiais heterogêneos em torno de um significante de dimensão
variável (unidades lexicais, grupos de palavras, frases, fragmentos de textos, fórmulas,
pequenas frases, quando não textos). Este trabalho não diz respeito à busca do “real sentido” de
um termo ou expressão, mas de esmiuçar sua dispersão no espaço social e discursivo. Dessa
forma, o trabalho com percursos, atualmente, é facilitado por recursos disponíveis para analisar
discursos, possibilitando a exploração de corpora vastos.

2. A noção de fórmula discursiva

Acolhidas pela noção de percurso proposta por Maingueneau, as fórmulas discursivas


se inscrevem no quadro teórico da AD. Desde Faye (1972), Fiala e Ebel (1983) os estudos

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acerca das expressões formulaicas têm sido desenvolvidos. Em análises mais recentes, a autora
francófona Alice Krieg-Planque desenvolveu a noção, apontando como

Um conjunto de formulações que, pelo fato de serem empregadas em um momento e


em um espaço público dados, cristalizam questões políticas e sociais que essas
expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir. [...] o trabalho aqui proposto
permite pensar e analisar outros fenômenos de retomada e de circulação discursivos,
como as pequenas frases e slogans, por exemplo. Ele permite, ainda, compreender a
forma como diversos atores sociais (homens e mulheres, políticos, militantes de
associações, representantes sindicais, dirigentes de empresas, comunicadores,
jornalistas profissionais, intelectuais...) organizam, por meio dos discursos, as
relações de poder e de opinião. (Krieg-Planque, 2010, p. 9)

Nesse contexto, Krieg-Planque desenvolveu seus estudos acerca da fórmula


“purificação étnica” e suas variantes (“depuração étnica”, “limpeza étnica”) no momento em
que a imprensa reporta a guerra na Iugoslávia entre 1980-1994. Ainda conforme a autora, uma
fórmula não existe em si, mas faz-se necessário um conjunto de práticas linguageiras inscritas
num dado momento e um espaço público específico que originam o estatuto formulaico de um
sintagma.

A análise de uma expressão, palavra ou sintagma candidato ao estatuto formulaico está


ligada ao seu uso, tendo uma utilização particular. Assim sendo, o seu estudo se dará à história
de seus usos, apreendendo os seus contextos de uso, suas variações e particularidades. Um
sintagma ou uma palavra, por assim dizer, ganha notoriedade e consistência a partir da sua
movimentação no discurso. Vale ressaltar que haverá mudanças contínuas nos seus usos e
formas, e também momentos que esse movimento no entorno das fórmulas se acelera, cabendo
ao analista identificar.

Uma fórmula discursiva funciona como uma passagem obrigatória dos discursos em
um determinado espaço público, podendo ser defendida ou renegada por locutores, assim,
determinados atores sociais tendem à adotá-la e orquestrar o seu uso, enquanto outros, inscritos
em outras formações discursivas, irão refutar o do sintagma formulaico, até mesmo
ressignificando-o. Desse modo, o funcionamento das fórmulas cristaliza questões que
demarcam posicionamentos distintos:

Trata-se de mostrar a maneira como, em corpus específicos, o discurso é tanto o


instrumento quanto o lugar de relações de opinião: o discurso é aquilo por meio do
qual o s atores constroem o consenso e o conflito, o encontro e a diferença. Pelas
palavras empregadas e pelos valores que sustentam, pelos comentários que produzem
nesses usos, os locutores delineiam as posições que ocupam e aquelas que rejeitam.
(Krieg-Planque, 2018, p. 130)

Frequentemente uma fórmula, conforme Maingueneau (2015), está no centro de uma


rede. A exemplo, Oliveira (2013), em seus estudos sobre a fórmula “educação a distância”

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considerou outras expressões associadas à aquela como: “ensino a distância”, “aprendizagem a
distância”.

Portanto, a análise do percurso de uma fórmula feita por um analista do discurso não
terá a mesma metodologia de uma analista linguístico, mas ele estuda os elementos discursivos
e interdiscursivos que cercam esta. É fato que em um dado momento será relevante analisar,
por exemplo, numa análise morfológica, “ideologia de gênero” como um substantivo feminino,
uma preposição e um substantivo masculino, entretanto não se dará somente nesse jogo
puramente linguistico. Assim, no estudo das fórmulas discursivas será preciso identificar o jogo
de forças, os interesses e as estratégias que suscitaram o seu uso, tornando ao mesmo tempo
necessário e polêmico o uso do sintagma candidato à fórmula.

3. A organização e coleta dos dados

O trabalho com fórmulas, slogans e pequenas frases requer uma pesquisa grande para
a organização do corpus, daí a relevância de, nesse tipo de trabalho, operar com ferramentas
eletrônicas que operam como buscadores digitais. Existem ferramentas mais gerais, como a
plataforma Google, que já dispõem de atalhos mais sofisticados que colaboram para uma
pesquisa mais precisa, como Google Acadêmico e Google Trends, e existem ferramentas mais
específicas como DuckDuckGo e WordSmith.

Uma pesquisa com fórmulas discursiva requer um trabalho minucioso com uma
pesquisa ampla e um corpus variado. Assim, mediante as ferramentas disponíveis atualmente
para realizar o percurso deste trabalho, a exploração da dispersão do sintagma faz-se necessária
na coleta de texto de gêneros variados, abarcando, desse modo, diferentes materializações
discursivas e os diferentes picos de circulação do próprio sintagma.

Com efeito, a pesquisa entorno de “ideologia de gênero” deu-se principalmente nos


mecanismos da Plataforma Google, especificamente Google Search. Nesse contexto, foi
possível verificar, inicialmente a proeminência de “ideologia de gênero” sobre as demais
variações localizadas. Para esta formulação, foram identificadas duas milhões e seiscentos e
setenta mil ocorrências em diferentes páginas identificadas pelo Google, na sequência
observamos que “estudos de gênero” era o segundo sintagma com maior quantidade de
ocorrências, sendo cento e oitenta e duas mil ocorrências, por fim, “teorias de gênero” foi a
outra variação com um número relevante de ocorrências, sendo cento e nove mil.

16
Mediante a circulação maciça de “ideologia de gênero” podemos observar, conforme
Krieg-Planque (2010),

é a concisão que permite à fórmula circular, no sentido material do termo, é ela que
permite à sequência ser integrada a enunciados que a sustentam, a incluem, a
retomam, a reforçam, a reiteram ou a recusam. É a concisão que permite à fórmula
ser reafirmada ou recusada em bloco, torna-se parte integrante da uma argumentação.
(KRIEG-PLANQUE, 2010, P. 71).

Ou seja, a concisão permite com que o enunciado circule, sendo um elemento fulcral
para que este adquira o estatuto formulaico. Assim, essa cristalização fará com que este comece
a dispersar através das práticas discursivas, sendo portador de questões sociopolíticas,
requerendo, então, que os diferentes discursos se posicionem ao seu respeito, ocasionando em
diversas retomadas.

Retomando aos buscadores digitais, eles também são de grande relevância para
encontrar os picos de um sintagma candidato ao estatuto formulaico. Por meio da ferramenta
Google Trends é possível identificar, numa análise diacrônica, as elevações da expressão e,
assim, buscar compreender as práticas discursivas que engendraram tais enunciados. Abaixo é
possível observar as variações dos sintagmas “ideologia de gênero” (na cor azul) e “estudos de
gênero” (na cor vermelha) no período entre janeiro de 2013 até junho de 2021.

(Printscreen do Google Trends comparando dois itens simultâneos)

A partir do gráfico acima identificamos pontos de aumento da frequência da


formulação em determinados períodos, circulando com maior intensidade nas mídias, cabendo

17
uma análise de tais picos a partir dos aportes discursivos, identificando as massivas aparições
do sintagma atreladas aos modos de produção social em um dado espaço e tempo.

Com efeito, após constatada a relevância dos buscadores na pesquisa com fórmulas
discursivas e na constituição do corpus, no que tange o sintagma “ideologia de gênero”, foi
possível perceber que ele obteve uma cristalização maciça em relação aos sintagmas
concorrentes, o que produz diversos efeitos de sentidos atrelados a componentes históricos e
ideológicos. Além disso, foi possível identificar momentos de circulação massiva do sintagma:
meados de 2015, certamente atrelado ao cenário de discussão do Plano Nacional de Educação,
e outubro de 2018, período eleitoral no Brasil com grande ascensão de candidatos
conservadores com a articulação dos moralismos, crenças e valores específicos.

4. Apresentação do corpus: delineações e estruturação

Após a coleta dos dados, hipóteses foram levantadas, implicando numa análise
minuciosa do corpus para identificação de elementos que nem sempre são localizáveis na
superfície textual ou se mostram como parte do corpus. Neste trabalho, a hipótese inicial era
entorno do funcionamento formulaico do sintagma “ideologia de gênero”, fazendo-se
necessário um estudo detalhado do seu funcionamento como objeto simbólico, da sua inscrição
sociodiscursiva e dos efeitos de sentidos materializados através da linguagem.

Nesse contexto, a ideia do trabalho girava entorno do sintagma “ideologia de gênero”


e suas implicações no campo educacional. A pretensão inicial era de discutir os efeitos de
sentidos produzidos no entorno do sintagma e suas transposições na esfera pedagógica,
especificamente nos planos educacionais. Entretanto, com o levantamento e uma análise
detalhada do corpus foi possível perceber que a discussão, encabeçada pelas bancadas
evangélicas, a partir da retirada das questões de gênero do texto do Plano Nacional de Educação,
concentrou-se principalmente nas casas legislativas, atingindo o espaço público. Outro fator de
grande relevância foi a constatação da reemergência do discurso conservador e em defesa de
pautas e convenções que aparentemente eram superadas. Dessa forma, com o conservadorismo
passando a produzir e impor sentidos socialmente, há uma propagação de ideias, formas,
arbitrariedades e hierarquias, veiculadas pelas grandes mídias e nas redes sociais. Nesse
contexto, observamos a necessidade de trabalhar a estrutura conversadora no engendramento
de suas normas, valores e práticas, e principalmente de “ideologia de gênero”.

18
A opção pelo trabalho com o discurso conversador não se deu de forma aleatória, pois
para compreender a sistematização e a materialização discursiva de “ideologia de gênero”, além
de sua dispersão no espaço social, é preciso compreender os modos de produção e as instâncias
discursivas institucionais que fundamentaram o espaço público de discussão. Assim sendo,
notou-se que ao analisar um corpus diversificado, inscrito ideologicamente, narrativas foram
alçadas ao espaço público por meios de práticas institucionais, apreendendo as relações de
poder e a organização das opiniões que o discurso conservador, aos seus moldes, colocou em
circulação.

Apesar do eixo central do trabalho ser o sintagma “ideologia de gênero” no cerne do


discurso conservador, todavia o corpus apresenta também variações do sintagma, considerando
as inúmeras perspectivas e as diferentes inscrições discursivas, dado o caráter fortemente
polêmico deste. Diante da heterogeneidade discursiva sobre a questão em diferentes campos de
saber, foi feita a opção por textos que estivessem atrelados aos campos político e educacional
veiculados na mídia brasileira em geral. É importante ressaltar que o sintagma ainda circula nos
diversos espaços discursivos em todo cenário global. Além disso, outro ponto de atenção foi
que, concomitante a circulação de “ideologia de gênero”, outras formulações concorrentes
também circularam pelo discurso. Portanto, delimitamos o espaço discursivo para desenvolver
a questão, optando por mídias de grande circulação, fazendo um recorte temporal de janeiro de
2013 até junho de 2021. Tal recorte se justifica pelo período tensões e jornadas de pré-deposição
da presidenta Dilma Rouseff com grande crescimento do conversadorismo reacionário até os
dias atuais em que o sintagma ainda circula socialmente e as posições conservadoras continuam
produzindo social e discursivamente. Assim sendo, com esse espaço temporal delimitado é
possível compreender a sequência verbal “ideologia de gênero” operacionalizada como fórmula
discursiva, cristalizada e socialmente dispersa.

Dessa forma, explicitamos, aqui, em linhas gerais, o painel teórico-metodológico que


norteou a pesquisa, detalhando as ferramentas de pesquisas utilizadas e o tratamento dos dados.
Logo, a fim de apreender as relações interdiscursivas, o percurso construído permitiu, por meio
de recortes e análises, observar as institucionalidades constitutivas dos discursos por meio das
ocorrências do sintagma “ideologia de gênero” e suas variantes.

A seguir descrevemos a circulação do sintagma “ideologia de gênero” a partir das


propriedades de uma fórmula discursiva.

19
CAPÍTULO 2
IDEOLOGIA DE GÊNERO: UMA FÓRMULA DISCURSIVA

“O discurso está no centro da vida política e social.”


(Alice Krieg-Planque)

1. Estatuto formulaico

Neste capítulo apresentaremos as propriedades constitutivas da fórmula discursiva


“ideologia de gênero” e que conduzirão nossas análises com base nos pressupostos teóricos de
Alice Krieg-Planque (2010). Inicialmente, levando em consideração os diversos contextos
possíveis de se encontrar uma fórmula, a fim de exemplificar as propriedades fundamentais
percorreremos pelo corpus, elucidando a asserção da autora francesa acerca do caráter
heurístico da fórmula – passível de ser realocada e revisitada.

Na contemporaneidade, com o advento e a grande popularidade das mídias sociais, os


modos de se expressar foram ressignificados. Assim, as pequenas frases, citações, slogans e as
fórmulas, que já circulavam nos espaços pré-digital e não digital, passaram também a ter grande
difusão nas redes sociais. O Facebook e o Twitter, por exemplo, têm o mural (feed ou timeline)
como ícone principal, onde os usuários são estimulados à compartilharem textos curtos,
pequenas frases, aforismos, provérbios etc. que melhor os representam em um dado momento
e/ou sobre assuntos recorrentes em uma determinada conjuntura. Vale destacar que em algumas
redes sociais há a limitação de caracteres que incitam a produção de enunciados curtos. Mas
também é importante ressaltar a plataforma de postagem de vídeos do YouTube, pois, apesar de
não ter o intuito de disseminar enunciados curtos, publica milhares de vídeos diariamente sobre
temáticas diversas. Assim, em todos esses espaços, há uma gama de temáticas que são
abordadas de maneira breve e que circulam nas redes.

Essas novas plataformas digitais favoreceram ainda mais uma certa maneira de
circulação discursiva. Conforme Maingueneau (2013), há certos enunciados que “se pode dizer
destacados: enunciados curtos (‘citações célebres’, ‘fórmulas’, ‘sentenças’ etc), constituídos o
mais frequentemente de uma só frase, que são autônomos” (p. 226). Maingueneau (2008)
observa que “circula, na sociedade, um grande número de enunciados que podemos designar
pelo termo vago de fórmulas, ou seja, enunciados curtos”.

20
Se Maingueneau faz um uso “vago” do termo fórmula, os trabalhos de Krieg-Planque,
além de darem sustentação teórica e metodológica ao conceito de fórmula, inscrevem-no no
quadro da análise do discurso. A autora operacionaliza, assim, a noção de fórmula,
caracterizada de especificidades e primor científicos, desenvolvendo um quadro metodológico
preciso: “a noção de fórmula não é uma noção aproximativa: as propriedades que a caracterizam
[...] são precisas” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 111). Assim, só será possível para o analista
apreender o objeto por meio das propriedades fulcrais que constituem a fórmula.

As fórmulas exigem do analista, a depender dos seus objetivos de pesquisa, a


construção de um corpus heterogêneo e vasto, pois, para adquirir o estatuto formulaico, é
necessário — dentre outras coisas — que o sintagma circule por diversos campos do discurso.
Faz-se necessário, assim, que o enunciado se desprenda de sua gênese e circule por espaços
diversos, tornando-se ponto de passagem obrigatório de diversos discursos. Vale ressaltar ainda
que, desse modo, o estudo de fórmulas discursivas implica um trabalho árduo e minucioso do
analista debruçando-se sobre o percurso do sintagma ou expressão, pois, conforme Krieg-
Planque, é preciso “certa densidade temporal que permita apreender a fórmula em sua
historicidade discursiva” (2010, p. 61).

A partir de um corpus diversificado, metodologicamente, caberá ao analista aprofundar


e verificar as propriedades constitutivas da fórmula, que são quatro: ter um caráter cristalizado,
se inscrever numa dimensão discursiva, exercer a função de referente social e, por fim,
comportar um aspecto polêmico. É importante ressaltar que, conforme Krieg-Planque, a
disposição das propriedades pode ocorrer de maneira desigual, pois

uma fórmula é em si um objeto que se situa num continuum: uma sequência é mais
ou menos fórmula conforme preencha mais ou menos cada uma das quatro
propriedades que a caracterizam. [...] Para que uma sequência possa ser
caracterizada como fórmula, é preciso que ela atenda às quatro propriedades da
fórmula. Mas, de um lado, essas quatro propriedades podem estar presentes de modo
desigual; e, de outro lado, cada propriedade é mais ou menos bem preenchida. As
propriedades de que falamos só são de fato verificáveis em continua, e não
mensuráveis em termos de presença ou ausência. (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 111).

É possível, por exemplo, que algumas fórmulas tenham estrutura sintática fortemente
cristalizada no espaço social, com grande circulação nos diversos campos discursivos,
entretanto que não propiciem debates acirrados. Nesses casos, estaríamos diante de fórmulas
em que há uma “cristalização” maciça, porém, um “caráter polêmico” ameno. Então, é
fundamental explorar toda a circulação e a dispersão discursiva da estrutura (palavra, expressão,

21
slogan ou pequena frase), observando o momento e o espaço em que passa a circular
massivamente, na medida em que se torna ponto de passagem obrigatório para os discursos,
assim, podendo perceber que

a fórmula discursiva se mostra, então, como uma categoria privilegiada para


apreender os discursos nas diferentes formas de cristalização que os atores sociais
modelam e põem em circulação e captar a maneira como esses atores organizam, por
meio do discurso, as relações de poder e de opinião. (KRIEG-PLANQUE, 2018, p.
129).

Isso se dá porque a fórmula é uma sequência linguística “bem talhada e apta a chamar
atenção” (KRIEG-PLANQUE, 2018, p. 129), que, conforme Salgado, “ganha estabilidade
numa dada conjuntura, porque, a certa altura de sua circulação, acumulam-se relações
parafrásticas” (2011, p. 154). A partir de tais observações, é possível perceber que a fórmula
pode adquirir o estatuto de pequena frase, assim como “aforizações” e “destacamentos”,
fenômenos discursivos propostos na teoria de Maingueneau (2014). Daí advém o caráter
essencialmente polêmico e a brevidade do enunciado, que o torna apto para ser destacado e
chamar a atenção, pois, segundo o autor, tais polêmicas são tecidas a partir de

(...) uma mudança da dimensão das unidades concernidas: não se trata de textos
inteiros, mas de “pequenas frases”. Tal frase destacada por um jornalista, “aforizada”
(Maingueneau, 2006), é apresentada como dirigida contra tal ou qual pessoa, a quem,
por sua vez, se atribuem como resposta outras aforizações, que alimentam as reações
de outros atores do campo político-midiático. O conjunto é usualmente comentado
por meio de fórmulas performativas: “A polêmica inflama o partido X sobre...”, “X
reagiu vivamente às palavras de Y...” etc. (p. 194)

Em linhas gerais, o caráter polêmico, além de uma das propriedades básicas das
fórmulas discursivas, é um traço da relação interdiscursiva que constitui a identidade dos
discursos e, observando sua pertinência para as análises e estudos do corpus constituído em
torno da fórmula “ideologia de gênero”, passaremos a analisar, ao longo deste capítulo, esse
aspecto.

2. As quatro propriedades constitutivas de uma fórmula discursiva

2.1. O caráter cristalizado

Uma fórmula discursiva é alicerçada por uma forma significante relativamente estável.
Conforme Krieg-Planque (2010), o analista, ao trabalhar com a noção de fórmula, persegue os

22
rastros de uma forma. Com base nisso, a autora destaca o caráter cristalizado da forma que dá
sustentação à fórmula, tanto que, segundo ela, uma fórmula pode ser uma unidade lexical
simples – imigração, aborto, traição — ou uma unidade lexical complexa – maioridade penal,
reforma previdenciária, educação a distância, cultura de paz.

Entretanto, a autora francesa faz ressalvas quanto a uma abordagem exclusivamente


formalista das fórmulas, assegurando que um sintagma que possua o estatuto formulaico pode
apresentar variantes. Ou seja, é possível afirmar que, ainda que haja variações morfossintáticas,
trata-se da versão mais recorrente da fórmula, ou seja, a mais cristalizada. Com base em suas
próprias pesquisas, Krieg-Planque apresenta “purificação étnica”, “depuração étnica” e
“limpeza étnica” como unidades variantes de uma mesma fórmula: “a fórmula existe também
através de múltiplas paráfrases de que ela é a cristalização [...]. Entretanto, é preciso frisar que,
se a fórmula existe também através de suas paráfrases, ela não existe fora de uma sequência
cristalizada bem identificável que as condensa” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 67).

A materialidade linguageira que sustenta a fórmula é também concisa e é essa concisão


que favorece a sua circulação, isto é, que ela seja “integrada a enunciados que a sustentam, a
incluem, a retomam, a reforçam, a reiteram ou a recusam” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 71).

No caso de “ideologia de gênero” — que é a sequência cristalizada recorrente —, há


outras variantes, como, por exemplo, “questões de gênero” e “teoria(s) de gênero”. Mas há um
aspecto em relação a essa fórmula que merece ser destacado: “ideologia de gênero” é um
sintagma que atualmente é bastante marcado, na medida em que seu uso identifica um certo
posicionamento discursivo, a saber, o discurso conservador. Veremos mais detalhadamente
essa questão, mas, por ora, apresentamos algumas variantes que decorrem de uma recusa à
utilização de “ideologia de gênero”: “estudos de gênero”, além de “ensino sobre gênero”,
“educação sobre diversidade de gênero” ... É, afinal, crucial lembrar que “a constituição de uma
causa, à medida que ela se apresenta sob uma certa denominação, tem consequências” (KRIEG-
PLANQUE, 2018, p. 33). A seguir, alguns recortes que colocam a fórmula e suas variantes nos
seus contextos imediatos:

(1) Do ponto de vista acadêmico, a ideologia de gênero não passa de ficção. O que existe são os estudos
de gênero, que buscam discutir as causas da desigualdade política, econômica e social entre homens
e mulheres. Na visão de especialistas, associar esses estudos a ideologia é uma tática para minar a
credibilidade dessas pesquisas. “Essa expressão desqualifica gênero como um conceito e desconsidera
seu caráter analítico e científico. O raciocínio que se espera é: se gênero é ideologia, as pessoas

23
deveriam ficar longe dele”, avalia o antropólogo Bernardo Fonseca Machado, professor da UFGO e
autor do livro Diferentes, não desiguais (Companhia das Letras).1

(1) A suposta “ideologia de gênero” surgiu como uma expressão pejorativa para desqualificar os estudos
de gênero, um campo científico interdisciplinar que analisa e investiga todo o tipo de questão
relacionada ao gênero. Isso inclui, por exemplo, processos sociais e relações de poder envolvendo
homens e mulheres, além da própria construção do gênero e suas representações. “Os estudos de
gênero surgiram porque a ciência predominante pesquisava somente a história e a vida dos homens.
Assim, ela não era objetiva, mas unilateral. Esse campo se ocupa de questões, temas e pessoas que
eram frequentemente esquecidas ou omitidas. Ao ampliar a perspectiva científica, contribuiu para
aumentar a objetividade”, afirma Henning von Bargen, diretor do Instituto Gunda Werner para
Feminismo e Democracia de Gênero, ligado à Fundação Heinrich Böll.2

(2) O Papa Francisco criticou a "teoria do gênero" em um livro-entrevista publicado na Itália nesta terça-
feira (11). Essa teoria (de gênero) "quer minar a Humanidade em todos os campos e em todas as
variações educacionais possíveis", afirmou o pontífice. Ele disse que ela é imposta "de cima por certos
Estados como o único caminho cultural possível a ser seguido".3

(3) Para Fernanda, educar é um dos grandes prazeres que tem na vida. “Educar, ensinar e sugerir caminhos
é o melhor. É deixar um legado à melhor pessoa do mundo. Filho é seu exemplo, então você tem que
se desconstruir e ser melhor”, contou. Ela revela que tem educado os filhos nos preceitos corretos.
Para ela, o machismo é debatido desde sempre. “O machismo é cultural, então temos que ensinar que
algumas coisas não são normais, como azul de menino e rosa de menina. Mas ele [filhos] já estão
muito à frente, entendem questões de gênero, sem conhecer o que é isso. Se tiver que escolher entre
ser amiga e ser mãe, eu vou sempre escolher ser mãe”, contou.4

Portanto, valendo-se de uma abordagem que não seja puramente formalista, torna-se
possível localizar outras formulações que sejam concorrentes da fórmula, ou seja, “sequências
que podem ser estranhas à fórmula de um ponto de vista morfológico, mas que funcionam, em
contexto, como alternativas (eventualmente como alternativas conflituosas)” (KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 70). Nesse sentido, no âmbito da língua, as formulações concorrentes não
são sinônimas como apontariam os dicionários, mas, conforme Krieg-Planque, são sintagmas
que, inseridos no fio discursivo, funcionam de modo mais ou menos polêmicos, e mais ou
menos mutuamente exclusivos. Ademais, não seriam concorrentes na esfera linguística, mas,
inseridos no discurso, convergente do ponto de vista sociopragmático.

1
OLIVEIRA, Thais Reis. A ‘ideologia de gênero’ é mito ou realidade? Carta Capital, 22 jan. 2019. Sociedade.
Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/ideologia-genero-mito-realidade/. Acesso em: 29 abr.
2020.
2
WELLE, Deustsche. ‘Ideologia de gênero’: o combate a um campo científico. Carta Capital, 19 jan. 2019.
Diversidade. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/diversidade/ideologia-de-genero-o-combate-a-um-
campo-cientifico/. Acesso em: 29 abr. 2020.
3
PRESSE, France. ‘Papa crítica 'teoria de gênero' em uma entrevista. G1, 11 fev. 2020. Mundo. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/02/11/papa-critica-teoria-de-genero-em-uma-entrevista.ghtml. Acesso
em: 29 abr. 2020.
4
F5. Fernanda Gentil diz ter sonho de adotar, mas não descarta gravidez da mulher. Folha de São Paulo, 27 abr.
2020. Celebridades. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2020/04/fernanda-gentil-diz-ter-
sonho-de-adotar-mas-nao-descarta-gravidez-da-mulher.shtml. Acesso em: 29 abr. 2020.

24
Por meio dos buscadores digitais, foi possível identificar que a cristalização se deu, de
modo mais significativo, no sintagma “ideologia de gênero” (duas milhões e seiscentos e
setenta mil ocorrências no Google em abril de 2020). Vale destacar que, a partir do controle de
dados e do comportamento do usuário, diferentes sujeitos que se inscrevem e transitam por
outros discursos podem, ocasionalmente, encontrar dados diferentes. Na sequência, com maior
número de ocorrências foram identificados os sintagmas: estudos de gênero (sendo cento e
oitenta e duas mil ocorrências) e teoria(s) de gênero (com cento e nove mil resultados). Vale
reiterar, contudo, que esses sintagmas marcam, no mais das vezes, posicionamentos discursivos
distintos, ou seja, os grupos têm “preferência” por um ou outro sintagma.

Com efeito, a partir destas três formulações com maior proeminência (“ideologia de
gênero”, “teoria(s) de gênero” e “estudos de gênero”), é possível reiterar a ideia de que um
número de formulações mais ou menos limitado funcionam, em determinados contextos, como
alternativas para as fórmulas, podendo parecer estranho do ponto de vista morfológico, mas que
funcionaem como alternativas, muitas das vezes conflituosas.

Portanto, o caráter cristalizado de uma fórmula discursiva, mesmo que tenha destacado
um sintagma em um determinado contexto, conforme Krieg-Planque (2018), que houve uma
adesão geral ou uma acomodação, assim “a análise da cristalização de uma expressão se dá
conforme sua estrutura lexical (unidade simples ou composta), a categoria sintática de cada
constituinte e a morfologia própria de cada unidade” (p. 131).

A materialidade linguageira sobre a qual se assenta uma fórmula (incluídas aí todas as


variantes) implica ainda assumir uma posição radical em relação à língua e à posição do
analista. Krieg-Planque (2010) ressalta a importância de um dos pressupostos de base da AD
nesse sentido, aquele segundo o qual “o que é dito se diz no modo como é dito” (p. 79). Ou
seja, implica, por parte do analista, “levar a sério cada lexema, considerando-o como um corpo
singular irredutível, considerando que esse corpo se parece com outros corpos que fazem pensar
nele” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 80).

2.2. A inscrição discursiva da fórmula

Ao afirmar que a noção de fórmula não é uma noção linguística, embora seja um
sintagma que tenha uma materialidade estável e linguisticamente descritível, Krieg-Planque
endossa a ideia que ela é, primordialmente, discursiva: “a fórmula não existe sem os usos que

25
a tornam uma fórmula” (2010, p. 81). Desse modo, são os diversos usos na esfera linguageira,
inscritos socio-historicamente, que lhe atribuem o estatuto formulaico.

De fato, a dimensão discursiva de uma fórmula está relacionada a sua circulação na


sociedade num dado período. Essa circulação se dá por meio discursos e acontecimentos que
norteiam o seu uso, não sendo produto exclusivo de uma operação linguística, “mas de práticas
linguageiras e de relações de poder e de opinião que se observam na discursividade” (KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 43).

É, portanto, um uso particular e não necessariamente uma expressão “nova” que o


analista deve buscar ao estudar fórmulas. Krieg-Planque (2010, p. 21), citando o trabalho de
Rey, observa que “no movimento perpétuo dos usos, nas mudanças contínuas dos sentidos e
das formas das palavras, há momentos em que, digamos, o movimento se acelera”.

No caso de “ideologia de gênero”, os usos apontam para uma forte inscrição do


sintagma no campo político, mas não é apenas aí que ele se encontra - ou não seria uma fórmula;
ele extravasa essas fronteiras e contribui para enquadrar o debate público num dado período.
Nessa circulação, encontramos, de modo bastante genérico e até mesmo um tanto simplificador,
um grupo que reconhece o sintagma e o utiliza e outro que o refuta. No polo dos apoiadores,
percebem-se que os representantes das igrejas católica e evangélica (em suas múltiplas
denominações), por meio do discurso religioso, amparados pelo patriarcado e o padrão
heterossexual instituído pela bíblia, esforçam-se para usar as questões biológicas para amparar
sua argumentação:

(4) Em nossas escolas se difunde a ideologia do gênero. A “tendência de apagar as diferenças entre
homem e mulher, consideradas como simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural”
(Homem e Mulher os Criou, Congregação para a Educação Católica, 2019, 1). Essa ideologia “nega
a diferença e a reciprocidade natural do homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferença de
sexo, e esvazia a base antropológica da família” (Ibid., 2). [...] Essa diversidade, a
complementaridade dos dois sexos, “responde ao desígnio de Deus, segundo a vocação a que cada um
é chamado” (Ibid. 4). Em nossas escolas, especialmente governamentais, governos de esquerda
pretenderam em suas orientações “demonstrar que identidade sexual deriva mais de uma
construção social do que de um dado natural ou biológico” (Ibid., 8). Em consequência, “nas
relações interpessoais, aquilo que conta seria somente o afeto entre os indivíduos, prescindindo
da diferença sexual e da procriação, consideradas como irrelevantes para a construção da
família” (Ibid., 9). Daí que, procura-se justificar a separação entre gênero e sexo. Até mesmo, a
priorizar-se o gênero em relação ao sexo. 5.

5
FALCÃO, José Freire. A ideologia de gênero. Correio Braziliense, Brasília, 9 set. 2019. Opinião. Disponível
em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/opiniao/2019/09/07/internas_opiniao,781278/artigo-a-
ideologia-do-genero.shtml. Acesso em: 05 jan. 2020.

26
(5) Ideologia de gênero é uma “ideologia” que atende a interesses políticos e sexuais de determinados
grupos, que ensina, nas escolas, para crianças, adolescentes e adultos, que o gênero (o sexo da
pessoa) é algo construído pela sociedade e pela cultura, as quais eles acusam de patriarcal,
machista e preconceituosa. Ou seja, ninguém nasce homem ou mulher, mas pode escolher o que
quer ser. Pois comportamentos e definições do ser homem ou mulher não são coisas dadas pela
natureza e pela biologia, mas pela cultura e pela sociedade, segundo a ideologia de gênero6.

Conforme Krieg-Planque, as fórmulas materializam embates políticos e questões


sociais. Nesse sentido, inscrevem-se como objetos de disputa, ou seja, “são objeto de debates
porque estão carregadas de questões: nesse sentido, elas têm um caráter histórico” (2010, p.
101). Esse caráter histórico é observado nas retomadas dos padrões estabelecidos.

No primeiro excerto, “ideologia de gênero” surge num artigo de opinião de Dom José
Freire Falcão, com base em um documento emitido pelo Vaticano – autoridade central para a
Igreja Católica. O trecho apresenta a fórmula como objeto de “apagamento das diferenças entre
homens e mulheres” — que é desígnio divino, “esvazia a base familiar” e estabelece “a divisão
entre sexo e gênero”. Já o segundo fragmento foi extraído do portal da Canção Nova, escrito
pela teóloga Arlene Denise Bacarji e representa, ainda, o discurso religioso – católico. Este traz
a “ideologia de gênero” como uma artimanha “política e de determinados grupos sexuais” e
que “acusam a sociedade de patriarcal, machista e preconceituosa”. A esse respeito, vale citar
Fossey (2011), que observa que

os textos católicos concentram-se em disseminar os valores cristãos, reiterando a


importância do matrimônio, da castidade, da abstinência sexual, da fidelidade e do
respeito à vida em todas suas formas. Além disso, buscam também alertar os fiéis
sobre quão complicada pode ser a inserção, nas escolas fundamentais e médias, de um
projeto pedagógico que inclua a educação sexual, pois, segundo a Igreja, a orientação
sexual dos filhos é um direito inalienável dos pais. (p. 101).

De acordo com Fossey, a igreja católica reitera os valores cristãos, reforçando suas
agendas, relegando, assim, o papel de promover os debates de sexualidade e gênero às famílias.
Assim, esse discurso nega o posicionamento progressista, o seu Outro, estabelecendo-o como
desmantelador das instituições religiosas e familiar. Daí o sentido de a fórmula ser reivindicada
por aqueles que aderem a esse discurso, como aponta Krieg-Planque, as fórmulas dispõem de
um significante partilhado, entretanto o seu significado é disputado.

6
BACARJI, Arlene Denise. Verdades e Mentiras – A ideologia de gênero. Canção Nova, São Paulo. Atualidade.
Disponível em: https://formacao.cancaonova.com/atualidade/ideologiadegenero/a-ideologia-de-genero/. Acesso
em: 05 jan. 2020.

27
Diante deste cenário, as fórmulas figuram e tornam-se objetos de debates não somente
no discurso religioso, mas participam dos interesses políticos e das pesquisas científicas,
evidenciando sua dimensão discursiva.

(6) Ideologia de gênero é violência contra a criança. Não é diversidade sexual, não são os
homossexuais, as lésbicas e os travestis. É além disso. Escolheram o Brasil como laboratório dessa
teoria, mas estamos mandando um recado que acabou a brincadeira, nossas crianças não são cobaias.7

(7) Durante a conversa, Bolsonaro e Weintraub também falaram sobre a chamada “ideologia de gênero”.
“Uma parte do eleitorado simpatizou comigo na pré-campanha e na campanha, tendo em vista a
educação. Não vi discussão sobre ideologia de gênero. Isso, no meu entender, não é para ser discutido
lá [no MEC]. O pai quer que o filho seja homem e que a filha seja mulher. Coisa óbvia, né?”,
disse Bolsonaro. Weintraub seguiu a mesma linha: “Quem educa é a família. A escola ensina. A
gente ensina a ler, a escrever, ensina o ofício. A gente espera que a família eduque as crianças.”8

(8) A Associação Nacional de Juristas Evangélicos pediu ao Supremo para participar do julgamento que
vai definir se municípios podem ou não vetar a ideologia de gênero nas escolas. [...] “Inserir
componentes curriculares ou simplesmente ideologias contrárias ao que a criança recebe em casa
pelos seus pais constitui um abuso e uma ilegalidade”, escreveu a entidade. E vai além: “A maior
parte da sociedade brasileira rejeita a ingerência estatal no que diz respeito ao ensino de preceitos
que envolvam a moral e religião das famílias, e a ingerência também não se revela uma medida
proporcional ao fim prosseguido, visto que o propósito de inserir as teorias de gênero no ensino
básico é o de promover um distanciamento dos pais em relação aos filhos.”9

(9) O presidente Jair Bolsonaro (PSL) marcou presença na Marcha Para Jesus, neste sábado 10, em
Brasília, e afirmou, em discurso num trio elétrico, que “ideologia de gênero é coisa do capeta”. O
presidente também defendeu o que chama de “família tradicional” e disse que as leis servem para a
proteção das “maiorias”. “Vocês têm na primeira vez da história do Brasil um presidente que está
honrando o que prometeu durante a campanha. Um presidente que acredita e valoriza a família.
Um presidente que vai respeitar a inocência das crianças nas salas de aula. Não existe essa
conversinha de ideologia de gênero. Isso é coisa do capeta”, discursou. “Nós temos um presidente
que, além da família e a questão da educação, tem amor ao próximo. Não discriminamos ninguém.
Não temos preconceito. E deixo bem claro. As leis existem para proteger as maiorias.” Em seguida,
o presidente fez críticas a leis que possam ferir princípios da “maioria”. “O que a minoria faz, por
livre e espontânea vontade, sem prejudicar a maioria, vá ser feliz. Nós não podemos admitir leis que

7
PARAIZO, Lucas. "Ideologia de gênero é violência contra a criança", diz Damares Alves durante evento em SC.
Diário Catarinense, Florianópolis, 29 ago. 2019. Política. Disponível em:
https://www.nsctotal.com.br/noticias/ideologia-de-genero-e-violencia-contra-a-crianca-diz-damares-alves-
durante-evento-em-sc. Acesso em: 24 abr. 2020.
8
Weintraub: “Sai o kit gay e entra a leitura em família”. O Antagonista, 07 jan. 2019. Brasil. Disponível em:
https://www.oantagonista.com/brasil/weintraub-sai-o-kit-gay-e-entra-a-leitura-em-familia/?desk. Acesso em: 25
abr. 2020.
9
Advogados evangélicos vão ao STF contra ideologia de gênero. O Antagonista, 09 set. 2019. Brasil. Disponível
em: https://www.oantagonista.com/brasil/advogados-evangelicos-vao-ao-stf-contra-ideologia-de-genero/?desk.
Acesso em: 25 abr. 2020.

28
nos tolham, que firam os nossos princípios. Nós queremos leis para que nos façam viver em paz e
harmonia, e possam fazer o Brasil crescer.”10

A partir preceitos morais que constituem heteronorma, é possível destacar que há um


grande rechaço aos movimentos progressistas de luta pela igualdade e diversidade de gênero, o
que, para cristãos, fundamentalistas e conservadores seria a propagação da “ideologia de
gênero”. Destaca-se, primeiramente, a adjetivação negativa observada nos quatro excertos
acima, de modo a fazer aderir, no caso do discurso político, o apelo de um determinado público:
“violência contra crianças”, “coisa do capeta”, “ideologias contrárias”, “um abuso e uma
ilegalidade”, “leis que talham e firam os princípios” etc. Do mesmo modo, há uma ênfase em
consequências negativas, no sentido de que a promoção da diversidade de gênero engrenaria
um desmonte de valores e princípios intrínsecos ao ser humano a partir de fatores biológicos e
que estão “partilhados socialmente”.

Contrários inclusive ao uso dessa denominação (“ideologia de gênero”), existem


grupos que muitas vezes a ressignificam ou fazem uso de outras expressões, como, aliás já
apontamos em alguns pontos anteriormente. Assim, estes afirmam haver uma ideologia de
gênero dominante que é heterossexual e patriarcal, fundamentada em preconceitos e negação
da diversidade de gênero:

(10) Mal começamos a entender a diversidade sexual humana, vozes medievais emergiram das catacumbas
para inventar a tal ideologia de gênero. Como nunca vi esse termo mencionado em artigos científicos
nem nos livros de psicologia ou de qualquer ramo da biologia, fico confuso. Suponho que se refira a
algum conjunto de ideias reunidas por gente imoral, para convencer crianças e adolescentes a adotar
comportamentos homossexuais. Será que devo a heterossexualidade à inexistência dessa malfadada
ideologia, nos meus tempos escolares? Caso existisse, eu estaria casado com homem? Embora
disfarcem, o que esses moralistas de botequim defendem é a repressão do comportamento
homossexual que, sei lá por que tormentos psicológicos, lhes causam tamanho horror11. (Grifamos).

(11) Ideologia de gênero não existe. Não existe em dois sentidos, ao menos. Um mais espalhado em
círculos progressistas, outro menos. Por um lado, a ideologia de gênero não existe no sentido médico-
científico. “Até a quinta semana de gestação, o embrião é assexuado”, lembrou com precisão o médico
Dráuzio Varella nesta Folha. Tampouco a ideologia de gênero existe no sentido mais comumente
empregado em círculos conservadores: como uma suposta ideologia praticada sistematicamente pela

10
“Ideologia de gênero é coisa do capeta”, diz Bolsonaro a evangélicos. Carta Capital, Florianópolis, 10 ago.
2019. Política. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/ideologia-de-genero-e-coisa-do-capeta-
diz-bolsonaro-a-evangelicos/. Acesso em: 24 abr. 2020.
11
VARELLA, Dráuzio. Ideologia de gênero. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 set. 2019. Opinião. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2019/09/ideologia-de-genero.shtml. Acesso em: 05
jan. 2020.

29
esquerda como forma de desmantelar os papéis de gêneros que fundamentam as famílias. Reconhecer
o uso por conservadores de ideologia de gênero como paranoia é reivindicar que ela se fundamenta
em medo _ medo da mudança, como aponta a cientista social Esther Solano em suas pesquisas12.
(Grifamos).

Do exposto acima, fica evidente um processo de refutação do significante ‘ideologia


de gênero’ — em (7) o uso de “a tal” e em (8) a negação peremptória. Por mais que haja uma
relação polêmica quanto ao significado, aqueles que não são partidários desta fórmula
questionam sua procedência e seu uso: seja pelo desconhecimento de sua proveniência nas
ciências e na medicina, ou por instrumento de controle e repressão da diversidade sexual e de
gênero na sociedade. O medo e as questões ideológicas que constituem os indivíduos são os
principais fatores que estes acreditam fundamentar os argumentos do seu Outro.

Mediante a circulação de uma fórmula discursiva em um dado momento histórico, é


possível perceber como, de modo representativo, esta passa a atingir e compor as relações entre
diferentes locutores (de classes e posicionamentos distintos). Nesse sentido, o sintagma irá
percorrer diferentes campos discursivos, como no caso do sintagma em análise, que transita,
por exemplo pelos campos político, religioso, educacional, midiático e publicitário, através de
diferentes mecanismos, como anúncios, artigos, palestras, etc. Ademais, reforçando a ideia das
mídias como agentes da circulação das fórmulas, Krieg-Planque (2010, p. 116) reitera que “a
fórmula precisa ser posta em circulação no espaço público por meio uma publicização que é
assegurada, em boa medida, pela imprensa, pelo rádio e pela televisão generalistas”.

Portanto, mediante sua intensa circulação, a fórmula não pode se prender apenas à
“ordem” de sua gênese, mas deve percorrer um espaço mais amplo, , definido por Maingueneau
(2008) como o universo discursivo, ou seja, um

“conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura


dada. Esse universo discursivo representa necessariamente um conjunto finito [...] um
conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se
reciprocamente em uma região” (p. 33-34).

Um grande marco da exposição, debate e circulação de “ideologia de gênero” foi na


elaboração do Plano Nacional da Educação em 2014, partindo da Conferência Nacional de
Educação – CONAE para espaços diversos. Naquela circunstância estava em debate um trecho
que defendia a discussão da diversidade sexual, da orientação sexual e de identidades de gênero.
Desse modo, emergiu (em sessões, debates e audiências) a fórmula “ideologia de gênero”, com

12
AMPARO, Thiago. Ideologia de gênero como paranoia. Folha de São Paulo, São Paulo, 21 out. 2019. Colunas
e blogs. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2019/10/ideologia-de-genero-
como-paranoia.shtml. Acesso em: 05 jan. 2020.

30
diversas manifestações favoráveis ou não oriundas de campos distintos com o posicionamento
de diferentes locutores:

(12) As expressões “gênero” ou “orientação sexual” referem‑se a uma ideologia que procura encobrir
o fato de que os seres humanos se dividem em dois sexos. Segundo essa corrente ideológica, as
diferenças entre homem e mulher, além das evidentes implicações anatômicas, não correspondem a
uma natureza fixa, mas são resultado de uma construção social. Seguem o célebre aforismo de Simone
de Beauvoir: “Não se nasce mulher, fazem‑na mulher (sic)”. Assim, sob o vocábulo “gênero”, é
apresentada uma nova filosofia da sexualidade.13

(13) Na educação, a ideologia de gênero traz diversos inconvenientes. Nas crianças e nos adolescentes, ela
gera confusão no processo de formação de sua identidade pessoal; pode despertar uma
“sexualização” precoce e promíscua, na medida em que a ideologia de gênero propugna por uma
diversidade de experiências sexuais em vista da formação do próprio gênero. Além disso, essa
ideologia poderia abrir um caminho perigoso para a legitimação da pedofilia, uma vez que a
orientação pedófila também poderia ser considerada um tipo de gênero. É sabido que a banalização
da sexualidade humana leva ao aumento dos índices de violência sexual.14

Portanto, é possível observar, como uma fórmula é essencialmente constituída em uma


arena pública pelos seus usos heterogêneos (diversos locutores, gêneros...). Nesse sentido, ela
está cerceada por uma temporalidade e por diferentes atores sociais: “uma fórmula não existe
por si mesma, mas na relação com os atores que a mobilizam e os acontecimentos que a
favorecem” (Krieg-Planque, 2018, p. 132). Por outro lado, a imersão da fórmula no espaço
público irá constituir seu percurso pelo universo discursivo, levando-nos a apreender como os
limites dos discursos possuem uma natureza fluida, que jamais são fechados em si mesmos.
Logo, o discurso apresenta-se como fio de divisão e agrupamentos alicerçados no espaço
público.

2.3. Um valor de referente social

Dizer que uma fórmula discursiva tem o valor de referente social é dizer que ela
significa algo para todos sujeitos em um dado momento sociohistórico, mas não
necessariamente todos lhe atribuirão o mesmo significado devido a sua dimensão polêmica,
como veremos mais adiante:

13
RIFAN, Fernando Arêas. A ideologia de gênero. CNBB. Artigo. Disponível em:
http://www.cnbb.org.br/outros/dom-fernando-areas-rifan/16673-a-ideologia-de-genero. Acesso em: 28 abr. 2020.
14
SCHERER, Odilo Pedro. Educação e questão de gênero. O Estado de São Paulo. São Paulo. 13 jun. 2015.
Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,educacao‑e‑‑questao‑de‑genero,1705540.
Acesso em: 27 abr. 2020.

31
uma dada sequência material se torna, num dado momento, numa certa comunidade,
uma passagem obrigatória dos discursos. [...] Ela é, necessariamente, um signo
conhecido de todos num dado período, e todos são chamados a assumir alguma
posição em relação ao que está condensado no material linguístico cristalizado,
sintetizador de usos, de retomadas. (SALGADO, 2011, p. 155).

Isto significa que a fórmula circula no espaço social e pelos diversos discursos, ou seja,
as pessoas falam dela, assim, conforme Krieg-Planque (2010), os seus usos são carregados de
significações anteriores e diversificadas, e até contraditórias, marcando um posicionamento e
tornando-se um objeto partilhado de debates:

Consideremos o óbvio: para que esse signo evoque alguma coisa para todos, é
necessário que ele seja conhecido por todos. A “notoriedade” do signo, para falar
como os profissionais de marketing, é, assim, uma condição necessária para a
existência “formulaica” desse signo (ou “palavra”, ou “sequência”). Os critérios que
permitem dizer que um signo é notório são numerosos, e nenhum deles sozinho dá
uma resposta definitiva. (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 92).

O funcionamento de uma fórmula como referente social faz com que notemos
exemplos em contextos diversos para assim compreender sua dispersão e sua disseminação,
observando diferentes gêneros textuais produzidos por locutores de posicionamentos
discursivos variados.

32
(Disponível em: http://profwladimir.blogspot.com/2017/06/boneco-do-genero.html. Acesso em 30 jun. 2021)

(Disponível em: https://profscontraoesp.org/2018/10/19/nao-existe-ideologia-de-genero/. Acesso em 30 jun.


2021)

33
(Disponível em: http://www.josepedriali.com.br/2020/07/ideologia-de-genero-sofre-derrotas-em.html. Acesso
em 30 jun. 2021

Desse ponto de vista, é possível certificar o caráter notório da fórmula “ideologia de


gênero” mediante as (res)significações, muitas vezes contraditórias, possíveis de serem
identificadas no espaço social. Uma gama de anúncios, favoráveis ou não, foram veiculados
nas diversas mídias – redes sociais, televisão, rádio, outdoors, panfletos, formulários, revistas,
cartazes etc. Tratam-se de anúncios ligados, principalmente, aos momentos de pico da fórmula
no espaço público brasileiro, ou seja, no(s) período(s) em que o sintagma ganhou notoriedade:
junho/2015 (a partir da discussão dos Planos Nacionais de Educação) e outubro/2018 (tendo
em vista a guinada conservadora engendrada pelas eleições de 2018). Com efeito, o crescimento
da fórmula, como já dito, deu-se mediante as orientações acerca das discussões sobre
diversidade de gênero no espaço escolar, desse modo, foi um fator motivador na proliferação e
a multiplicação das ocorrências da fórmula.

Levando em consideração os grandes veículos de informação no cenário brasileiro, é


possível observar sua grande contribuição na circulação de “ideologia de gênero” e suas
variantes. Além das páginas ligadas diretamente ao meio educacional como os portais Escola
Educação e Brasil Escola, e das revistas já conhecidas Nova Escola e Ensino Superior, foi
possível identificar uma grande notoriedade do tema em mídias religiosas, como o portal da
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos no Brasil. Por outro lado, é preciso destacar a
presença dos debates que envolvem a temática nos veículos de notícias tradicionais como as
revistas Veja, Isto é, Superinteressante, Galileu, Época, Exame, além dos jornais e portais de
notícias convencionais de grande circulação Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Correio
Braziliense, O Globo. Vale ressaltar a proeminência com que esse debate alcançou os
programas de TV, principalmente jornalísticos.

34
(Disponível em: https://revistasenso.com.br/zrs-edicao-12/editorial-12a-edicao-ideologia-religiao-diversidade-
sexual-e-de-genero/. Acesso em 30 abr. 2020)

Por sua vez, além das diversas publicações nas mídias variadas, há um aspecto
linguístico particular nessas: a estrutura “X” dois pontos “Y” (X: Y). Esta é corriqueira na
circulação das fórmulas discursivas, principalmente no que tange aos veículos midiáticos de
disseminação da informação. Mediante seu caráter de referente social, evocando algo para os
locutores em uma dada conjuntura, conforme Krieg-Planque (2010), ela remete ao mundo.
Sendo assim, a estrutura X: Y, muito recorrente na imprensa, principalmente nas mídias
impressas, dispõe de um aspecto particular de remissão do mundo, pois, a partir dela,
subentende-se algo presumidamente conhecido:

A parte da esquerda (“X”) desse tipo de manchete, conforme escreve Mouillaud, é um


“enunciado referencial”: ela é seu pressuposto, remete a um mundo supostamente
conhecido pelo leitor. Esse mundo pode ser tanto geográfico quanto nacional. A parte
da direita (“Y”) constitui o “enunciado informacional” da manchete: ela é o posto do
enunciado, o novo, o presumidamente desconhecido. É ela que, de certo ponto de
vista, justifica a publicação do artigo: o enunciado informacional “pertence ao mesmo

35
gênero que o artigo do qual ele representa um modelo reduzido”. O enunciado
referencial “X” mobiliza um suposto saber do leitor. Seu “estatuto é o das
pressuposições”, em que “o que é pressuposto é a presença de certa ‘unidade cultural’
no entorno do jornal”. As manchetes de jornal em “X: Y” são, assim, como um bloco
de recibo, no qual se escreve o que há de novo, a cada dia, na parte destacável, que
retoma de certo modo a parte fixa, supostamente conhecida pelo leitor. (KRIEG-
PLANQUE, 2010, p. 98-99).

Seguem alguns exemplos da estrutura “X: Y” localizados no corpus da pesquisa:

(14) Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação


brasileiros15

(15) Ideologia de gênero: entenda o assunto e o que está por trás16

(16) Ideologia de gênero: uma violação à liberdade de escolha17

(17) Ideologia de gênero: o preço do suicídio social18

(18) Ideologia de gênero: é ingenuidade desprezar seu poder de estrago19

(19) Ideologia de gênero: um prejuízo para as crianças20

Em todos esses recortes extraídos do corpus, a parte “Y” tem um funcionamento de


reformulação, sendo a parte “X” um enunciado referencial numa dada conjuntura no cenário
brasileiro. Assim, a parte “Y”, conforme Oliveira (2013, p. 69), funciona como “uma espécie
de reformulação parafrástica” de ideologia de gênero, “uma das formas com que o termo é
retomado ao longo do mesmo texto”.

15
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação
brasileiros. Scielo, Educ. Soc. vol.38 no.138 Campinas jan./mar. 2017. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302017000100009&lng=pt&tlng=pt. Acesso
em: 01 mai. 2020.
16
BERTHO, Helena. Ideologia de gênero: entenda o assunto e o que está por trás. Azmina, 23 out. 2018. Política.
Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/ideologia-de-genero-entenda-o-assunto/. Acesso em: 01 fev.
2020.
17
MORETTI, Alison Henrique. Ideologia de gênero: uma violação à liberdade de escolha. Jornal Noroeste.
Colunas. Disponível em: http://www.jornalnoroeste.com/pagina/colunas/ideologia-de-genero-uma-violacao-a-
liberdade-de-escolha. Acesso em: 25 abr. 2020.
18
ALVES, Pedro Henrique. "Ideologia de gênero: o preço do suicídio social". Gazeta do Povo. Ideias. Disponível
em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/ideologia-de-genero-o-preco-do-suicidio-social-ideias/. Acesso em:
01 mai. 2020.
19
CONSTANTINO, Rodrigo. Ideologia de gênero: é ingenuidade desprezar seu poder de estrago. Gazeta do Povo.
Colunas. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/rodrigo-constantino/artigos/ideologia-de-genero-e-
ingenuidade-desprezar-seu-poder-de-estrago/. Acesso em: 01 mai. 2020.
20
PÉREZ, Javier Fiz. Ideologia de gênero: um prejuízo para as crianças. Aleteia. 1 mar. 2018. Em foco. Disponível
em: https://pt.aleteia.org/2018/03/01/ideologia-de-genero-um-prejuizo-para-as-criancas/. Acesso em: 01 mai.
2020.

36
2.4. A dimensão polêmica da fórmula

A propósito do caráter polêmico constitutivo da fórmula discursiva, Krieg-Planque


baseia-se em outros teóricos:

Fiala e Ebel sustentam uma concepção contextual do sentido, e insistem: se há um


significante comum em circulação (lado coroa da “moeda”, para retomar a metáfora
de Courtine), o significado, o lado cara, está em perpétua redefinição, pelo próprio
fato de sua circulação. Nem todos inscrevem a mesma coisa no lado cara da fórmula,
e é exatamente por essa razão que ela é uma questão central nos debates. [...] A
fórmula é constitutivamente polêmica. É porque se põe como dominante que ela não
é aceita por todos, é porque se impõe que ela faz tanto barulho. (2010, p. 56)

Desse modo, podemos asseverar que a fórmula, em seu funcionamento polêmico,


abriga embates sociopolíticos, havendo dissenso em sua atribuição a partir de diferentes valores
e subjetividades; assim, o seu “lado cara” estará sempre em discussão, pois, segundo Krieg-
Planque (2010), ela “põe em jogo a existência das pessoas” e tudo aquilo que é inerente a elas.
Ainda acerca da dimensão polêmica da fórmula, conforme Baronas e Gibin (2011, p. 118), a
fórmula discursiva “além de mobilizar os indivíduos para que se manifestem, digam alguma
coisa a seu respeito, coloca em discussão a própria subjetividade desses indivíduos. Ou seja,
ela insta os sujeitos a dizer sobre os limites de suas subjetividades”.

Assim, se a fórmula circula por diversos campos discursivos, se chama os sujeitos a se


posicionarem sobre ela, é precisamente o seu movimento e as disputas que existirão no seu
entorno que cabe ao analista descrever. Daí se dá a dimensão polêmica das fórmulas – nem
todos os indivíduos que a utilizam têm a mesma inscrição sociopolítica, logo, em um dado
momento, divergirão quanto ao seu uso.

Notamos que, em boa medida, “ideologia de gênero” tem um caráter polêmico forte,
tendo em vista que muitos irão divergir e até reivindicar/declinar no seu uso, como já
mencionamos anteriormente. Vejamos:

(20) Ideologia de gênero é violência contra a criança. Não é diversidade sexual, não estou falando
dos homossexuais, das lésbicas ou das travestis. Escolheram o Brasil como laboratório dessa
teoria (teoria queer) mas estamos mandando um recado que acabou a brincadeira, nossas crianças
não são cobaias. Aos que tem (sic) dúvidas do que falo, estudem um pouco sobre o que é a teoria
queer. Ela se distância (sic) da comunidade LGBT, tornando-se até mesmo, (sic) um antagonista,
contra a comunidade lgbt e da comunidade conservadora, ela quer ferir a todos! (Disponível em:
https://www.facebook.com/dradamaresalves/posts/1137091939831820. Acesso em: 23 jan. 2020.
Grifos nossos)

37
Voltemos à materialidade textual. O enunciado inicial em que apresentação da locutora
na publicação demonstra um modo de constituição de poder por meio dos implícitos: mãe,
educadora, advogada, pastora (e ministra). As designações usadas pela enunciadora para se
apresentar/definir na publicação têm uma dimensão implícita. Assim, além de ministra, ela se
apresenta como mãe, mobilizando um imaginário de carinho, cuidado e afeto que é socialmente
partilhado, amplamente distribuído em uma sociedade como a nossa. Para o campo religioso,
principalmente cristão, que valida a família (heterossexual), ela designa-se pastora,
pressupondo que dispõe de autoridade para orientações e postulados espirituais. Além disso,
para garantir o caráter científico, identifica-se como educadora e advogada, estando apta às
questões jurídicas e de formação de pessoas.

Nesse sentido, vale ressaltar que, além de mãe, educadora, advogada e pastora,
Damares Alves é ministra da família, mulher e direitos humanos, no governo de extrema-direita
e ultraconservador do presidente Jair Bolsonaro. Portanto, a partir de seu posicionamento como
ator social num dado momento histórico, Damares tem sua produção discursiva ancorada em
sua filiação religiosa e as agendas do governo que representa.

No geral, sobre a fórmula “ideologia de gênero”, observa-se que, inicialmente, há a


designação de um opositor que origina a fórmula: as teorias queer, assim, Damares assegura as
teorias como um processo de “violência contra a criança” e, ainda pondera, que “ela quer ferir
a todos”. Ao condenar as teorias queer como o inimigo que quer fazer as crianças brasileiras de
cobaias, a locutora deixa claro seu posicionamento contrário, desse modo, relega os estudos
como “ideologia de gênero”.

38
(21) A ideia de que existiria uma ideologia de gênero foi gestada no âmbito da Igreja Católica durante
a década de 1990, em reação ao uso do conceito de gênero em conferências internacionais de
mulheres. [...] Afirmou-se, então, a existência de uma espécie de doutrina cujo objetivo seria
orientar crianças em relação à sua sexualidade e ensiná-las a não se identificarem como meninas
ou meninos. Apesar de inverídica, a ideia provocou pânico. Instalado o medo, parte da população
relacionou o conceito a uma imposição que desvirtuaria crianças. Tais reações – incluindo as do
próprio presidente eleito e de autoridades do governo – persistem e têm sido recebidas pela
comunidade científica com perplexidade e preocupação, sobretudo por estarem pautando políticas
públicas21.

(22) Não se trata de negar as diferenças sexuais e corporais entre homens e mulheres, mas de compreendê-
las não como naturais e determinadas, mas como relações sociais e de poder, que produziram
hierarquias e dominação. [...] A expressão “ideologia de gênero”, que tanto tem sido empregada nos
dias de hoje para criticar os Estudos de Gênero, não é uma categoria acadêmica ou um objeto de
pesquisa. [...] Trata-se, ainda, de respeitar as diferenças sexuais e enxergar sujeitos históricos que
têm sido apagados das narrativas históricas: gays, lésbicas, trans, intersexuais e bissexuais.
Significa compreender que o “mundo privado” também é político e que, portanto, o direito à
cidadania deve efetivamente ser de todas, todos e todes22.

A circulação da fórmula “ideologia de gênero” pôde ser verificada, além da publicação


da ministra Damares Alves, em Sérgio Carrara e Isadora Lins França, colunistas da Revista
Carta Capital e especialistas em antropologia social concentrando nos estudos de gênero, e em
Georgiane Garabely Heil Vázquez, professora adjunta do departamento de história da
Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG.

Sobre o excerto de Carrara & França, observamos que foi traçado o conceito a partir
dos apontamentos da igreja católica nos anos de 1990, mesmo os autores discordando desses
apontamentos e os considerando “inverídicos”. Assim, ao cunhar a “ideologia de gênero”, os
católicos a caracterizaram como uma “doutrina” que visava orientar as crianças quanto à sua
sexualidade, “ensinando-as” a não se identificarem conforme o sexo biológico – menino ou
menina, assim, instaurando essa “doutrina” em políticas públicas.

Também nessa linha de refutar os apontamentos católicos vem o pensamento de


Vázquez, pois, conforme a autora, a “ideologia de gênero” não tem cientificidade, pois não foi
gestada no âmbito acadêmico, e que, acima de tudo, os estudos de gênero pautam-se no respeito

21
CARRARA, Sérgio; FRANÇA, Isadora Lins. Ideologia de gênero: entenda o assunto e o que está por trás. Carta
Capital, 11 out. 2019. Política. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/diversidade/genero-uma-visao-
que-vai-alem-das-polemicas-das-redes-sociais/. Acesso em: 02 mai. 2020.
22
VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil. Gênero não é ideologia: explicando os Estudos de Gênero. Café História,
27 nov. 2017. Artigo. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/explicando-estudos-de-genero/. Acesso
em: 01 mai. 2020.

39
às diferenças sexuais e ao processo de desvelar os sujeitos que são historicamente apagados nas
narrativas sociais, dotando-os de politicidade.

Quanto à dimensão polêmica da fórmula “ideologia de gênero”, observamos sua força


mediante a aceitação e/ou refutação dos atores sociais, que fizeram emergir diversas atribuições
para este sintagma: “Uma nova revolução cultural e social”, “uma doutrina com o objetivo de
ensinar as crianças a não se identificarem como meninas ou meninos”, “violência contra a
criança”, “inverídica”, “não é uma categoria acadêmica ou objeto de pesquisa”, “um antagonista
contra a comunidade LGBT e da comunidade conservadora”. Assim, considerando esse conflito
típico das polêmicas, conforme Maingueneau (2008), “não há uma dissociação entre o fato de
enunciar em conformidade com as regras de sua própria formação discursiva e de ‘não
compreender’ o sentido dos enunciados do Outro; são duas facetas do mesmo fenômeno” (p.
99). Assim, o processo de incompatibilidade radical que funda a relação polêmica é
denominado pelo autor francófono como interincompreensão regrada. Então, a partir dessa
proposição, um dos efeitos da polêmica será a produção dos simulacros discursivos.

Portanto, todas essas apreciações são exemplificadoras da dimensão polêmica e


extremamente variada da fórmula discursiva, pois são diversas as formas que atores/locutores
sociais respondem, tanto para aceitarem quanto para refutarem ‘ideologia de gênero’. Desse
modo, é por haver posicionamentos e enunciados divergentes, conflitantes ou concorrentes a
respeito da fórmula, que há uma validação da sua dimensão polêmica. Nesse contexto,
conforme Krieg-Planque (2010), “como em outros semelhantes, o denominador comum, que é
a unidade lexical, torna possível o debate, enquanto a diversidade de significações atribuídas a
essa unidade torna possível e mesmo facilita a polêmica” (p. 26). Assim, para a autora, a
dimensão polêmica e o funcionamento como referente social da fórmula discursiva são
propriedades indissociáveis: ao passo que ela se impõe como dominante que não é aceita por
todos locutores. “É porque há um denominador comum, um território partilhado, que há
polêmica” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100). O alarde causado pela fórmula é oriundo da sua
imposição como dominante.

Assim, além de condensar polêmicas variadas tanto na esfera política, quanto nos
meios sociais e ideológicos, a fórmula se constitui como objeto de descrição de tais polêmicas,
por colocar em jogo o ideológico dos locutores:

A fórmula é portadora de questões sociopolíticas. Entendemos com isso que ela põe
em jogo algo grave. “Grave” não necessariamente num sentido dramático, mas no
sentido de que ela põe em jogo a existência das pessoas: a fórmula põe em jogos os

40
modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisões do regime político do
qual os indivíduos dependem, seus direitos, seus deveres, as relações de igualdade ou
de desigualdade entre cidadãos, a solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas
fazem da nação de que se sentem membros. (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 100).

No geral, sobre a fórmula “ideologia de gênero”, inicialmente, no post da ministra há


a designação do opositor dá origem à fórmula: as teorias queer, assim, Damares classifica as
teorias como um processo de “violência contra a criança” e, ainda pondera, que “ela quer ferir
a todos”. Ao condenar as teorias queer como o inimigo que quer fazer as crianças brasileiras de
cobaias, Damares deixa claro seu posicionamento contrário, desse modo, relega os estudos
como “ideologia de gênero”.

41
CAPÍTULO 3
“Ideologia de gênero”: aspectos da sua dimensão polêmica

“Os discursos são uma matéria constitutiva do real.”


(Alice Krieg-Planque)

Conforme apresentado no capítulo precedente, a noção de fórmula implica considerar


que uma determinada materialidade significante cristalizada circula no espaço público em um
dado momento histórico impondo o debate, o que suscita necessariamente o surgimento de
polêmicas. É importante destacar que essa dimensão polêmica de uma fórmula discursiva não
é algo vago ou abstrato, mas está profundamente relacionado com seus usos: “não é porque ela
é um adjetivo ou uma nominalização de ação etc., que ela é polêmica, mas porque ela é tomada
nas práticas linguageiras” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 105).

Krieg-Planque (2010) compreende que a polêmica “se manifesta particularmente nos


tropeços dos enunciadores de algumas das questões que a fórmula oculta” (p. 105). Para a
autora, a polêmica pode se apresentar de três maneiras: i) em relação à adequação da fórmula
ao que ela designa; ii) na denúncia a quem faz o uso falho dessa designação; e iii) a substituição
da designação falha por uma que seja adequada.

No caso de “ideologia de gênero”, é preciso apontar que a polêmica se dá em diversos


níveis, sendo um deles, precisamente, em torno da designação. Observemos o excerto abaixo:

(24) A assim chamada “teoria” (“enfoque”, “olhar” etc.) de “gênero” é, na realidade, uma ideologia.
Provavelmente a ideologia mais radical da história, já que, se fosse imposta, destruiria o ser
humano em seu núcleo mais íntimo e simultaneamente acabaria com a sociedade. Além disso, é
a mais sutil porque não procura se impor pela força das armas – como, por exemplo, o marxismo e o
nazismo —, mas utilizando a propaganda para mudar as mentes e os corações dos homens, sem
aparentemente derramamento de sangue. [...] A estratégia possui três etapas: a) A primeira consiste
em utilizar uma palavra da linguagem comum, mudando-lhe o conteúdo de forma sub-reptícia; b)
depois a opinião pública é bombardeada através dos meios de educação formais (a escola) e os
informais (os meios de comunicação de massa). Aqui é utilizado o velho vocábulo, voltando-se,
porém, progressivamente ao novo significado; e c) as pessoas finalmente aceitam o termo antigo com
o novo conteúdo. (SCALA, 2015, p. 15, grifos nossos).

Scala apresenta possíveis designações que são, segundo ele, enganosas: teoria,
enfoque, olhar. Na sequência, ele aponta como se deveria nomear “adequadamente”, “como
verdadeiramente é”, a questão do gênero: uma ideologia. E a concepção de ideologia com a
qual opera nesse contexto tem um sentido negativo. Nos dados do corpus é possível ver uma
relação parafrástica com “doutrinação”.

42
Entendemos, contudo, que é possível descrever a polêmica em torno das fórmulas
mobilizando, alternativa ou conjuntamente, outros quadros teóricos, como, por exemplo, a
partir de Maingueneau (2008) e Amossy (2017).

Amossy, por exemplo, faz uma apologia da polêmica, argumentando que

a polêmica pública proporciona um meio de lutar por uma causa e de protestar contra
o que é percebido como intolerável, de realizar reagrupamentos identitários,
provocando trocas mais ou menos diretas com o adversário, e de gerenciar os
desacordos, bastante profundos, sem lhes permitir degenerar em manifestações sociais
e em violência fratricida. (AMOSSY, 2017, p. 217).

Na perspectiva de Amossy, a polêmica não é uma mera discussão, pois parte,


primeiramente, de um conflito em torno de uma tese ou assunto de interesse público,
comportando pretensões mais ou menos relevantes em uma dada conjuntura. Além disso, a
polêmica enquanto modalidade argumentativa se qualifica, para a autora, mediante três traços
definidores: a dicotomização – choque de opiniões antagônicas; a polarização – a designação
de campos que se opõem/inimigos; e, por fim, a desqualificação do adversário – a subversão
do outro.

Por diferentes ângulos, os debates feministas e das teorias queer que enfocam as
concepções e as relações familiares cresceram na sociedade contemporânea. Nesse sentido,
principalmente, a exploração de gênero e as violências intrafamiliares que cercam contextos
que, sobretudo, são compostos por mulheres e crianças estão no cerne das discussões. O
principal intuito destes debates é questionar toda a produção discursiva ancorada em
determinados arranjos familiares que hierarquizam os gêneros. Entretanto, políticas públicas e
leis reforçam exclusões sociais, ratificam a norma heterossexual, promovendo o acesso desigual
a direitos e recursos, além da exclusão da pluralidade de arranjos familiares e de formas de
organização social. Nesse sentido, o filósofo Edson Teles (2018) assevera que

Certos regimes de produção de subjetividades binárias e antagônicas, aliados às


condições históricas de dominação, implicam fortalecimento e incremento de
estratégias e tecnologias de controle social. Diante de uma sociedade racista,
patriarcal e etnocida, estruturada para favorecer os proprietários e as velhas e novas
oligarquias, experimentam-se modos de anular ou de destruir qualquer prática de
resistência. (TELES, 2018, p. 66).

Desse modo, conforme a reflexão do autor, tais estruturas sociais e discursivas são
desenvolvidas no intuito de fomentar uma sociedade de controle, normatizando padrões,
crenças e perspectivas morais. Assim, grupos minoritários que militam por legitimidade social,
através de práticas de sobrevivência, e também pelo cumprimento das leis de proteção destes,

43
são rechaçados como opositores à ordem social e “democrática”. Dentre esses grupos,
destacam-se mulheres, LGBTQIA+, indígenas, negros e pobres. Destarte, movimentos
conservadores juntamente com políticas públicas marginalizam socialmente tudo que, a partir
das suas categorias semânticas, é anômalo e/ou deslegitimado, ao passo que, essas
subjetividades representam formas distintas de lidar com a sociedade patriarcal que reforça as
diferenças.

Nesse sentido, teóricos conservadores, a partir de postulados da igreja católica nas


últimas décadas (JUNQUEIRA, 2018), unificaram-se com intuito de barrar o avanço das
políticas e pautas progressistas, principalmente aquelas que cercam as comunidades
LGBTQIA+. Assim, além de buscarem o fortalecimento e a legitimação de determinadas visões
de mundo, instauram inimigos sociais a serem combatidos. No que tange aos estudos e
discussões de gênero, as feministas e os ativistas LGBTQIA+, além dos políticos de esquerda,
são publicamente acusados de subverterem a ordem social e moral, para que, desse modo,
amparada em termos biológicos, instaure-se uma concepção familiar restrita, que regula corpos
e afetos, e, principalmente, atende as demandas de mercado. Nesse contexto, desenvolve-se o
sintagma “ideologia de gênero” no intento de desmistificar os estudos de gênero que, para os
conservadores, atentam contra a ordem moral da sociedade. Para o teórico conservador Jorge
Scala (2015),

A assim chamada “teoria” (“enfoque”, “olhar” etc.) de “gênero” é, na realidade, uma


ideologia. Provavelmente a ideologia mais radical da história, já que, se fosse
imposta, destruiria o ser humano em seu núcleo mais íntimo e simultaneamente
acabaria com a sociedade. Além disso, é a mais sutil porque não procura se impor
pela força das armas – como, por exemplo, o marxismo e o nazismo -, mas utilizando
a propaganda para mudar as mentes e os corações dos homens, sem aparentemente
derramamento de sangue. [...] A estratégia possui três etapas: a) A primeira consiste
em utilizar uma palavra da linguagem comum, mudando-lhe o conteúdo de forma sub-
reptícia; b) depois a opinião pública é bombardeada através dos meios de educação
formais (a escola) e os informais (os meios de comunicação de massa). Aqui é
utilizado o velho vocábulo, voltando-se, porém, progressivamente ao novo
significado; e c) as pessoas finalmente aceitam o termo antigo com o novo conteúdo.
(SCALA, 2015, p. 15, grifos nossos).

A partir do excerto acima é possível observar como o autor classifica os estudos de


gênero/queer a partir da nomenclatura “ideologia de gênero”. Precipuamente, ele descreve
“ideologia” apoiado em uma manifestação negativa, diferente da concepção dos estudos
discursivos que a consideram “uma relação imaginária dos indivíduos com sua existência, que
se caracteriza materialmente em aparelhos e práticas” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2004, p. 267) e também da concepção bakhtiniana que a postula como “todo o conjunto dos

44
reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem
e se expressa por meio das palavras [...] ou outras formas sígnicas” (BAKHTIN/
VOLOCHINOV, [1929]2009). Na sequência, o autor, de forma análoga, relaciona a “ideologia
de gênero” aos movimentos nazista e marxista, enfatizando que esta se faz mais radical que os
anteriores que, em ocasiões, dispunham de um caráter radical e atroz.

Ainda no excerto acima, Scala deixa implícita a concepção de família como unidade
elementar e “natural”: o “núcleo mais íntimo” do ser humano que seria destruído é a família,
mais especificamente, o arranjo familiar heterossexual de base cristã. Tem-se, então, a
instauração do pânico moral, por meio da retórica antigênero, ao passo que os ideólogos
ultraconservadores e extremistas disseminam o caráter falsário e antinatural da “ideologia de
gênero”; assim, tencionam reforçar os valores constituídos coletivamente e por meio do
discurso que naturalizam a família patriarcal, a autoridade masculina e paterna, além do
posicionamento social da mulher.

Acerca da construção social da família, Biroli (2018a) reitera que, a partir de uma
perspectiva heteronormativa, a produção social de gênero e as dimensões das relações de poder
são vivenciadas de formas distintas por diferentes gêneros. Assim sendo, embora existam
arranjos familiares e de gênero diversos, muitos são desvalorizados e não reconhecidos
institucionalmente, materializando um padrão tradicional de normas de gênero. Nesse contexto,
a autora pondera que

A família toma forma em instituições, normas, valores e práticas cotidianas. Sua


realidade não é da ordem do espontâneo, mas, sim, dos processos sociais, da interação
entre o institucional, o simbólico e o material. Ganha sentidos em contextos históricos
específicos e modifica-se no tempo e em diferentes ambientes culturais, mas
corresponde a uma pluralidade de arranjos em um mesmo local e tempo. Sua definição
legal, no entanto, estabelece fronteiras entre diferentes formas de organização da vida
cotidiana e de vivência das relações afetivas, conjugais, de parentalidade e de
coabitação. (BIROLI, 2018a, p. 91).

Conforme Biroli, os arranjos familiares são reconhecidos institucionalmente,


transpondo em valores, práticas e normas sociais que irão influir diretamente na produção de
sentidos. Assim sendo, os discursos que endossam a existência de uma “ideologia de gênero”
estão condicionados às discursivizações e práticas institucionais. Para Krieg-Planque (2018),
“a existência de instituições supõe uma linguagem que permite a formação, a expressão, a
transmissão e a transformação de crenças e atitudes por meio das quais são criadas e
organizadas as formas e as estruturas sociais que conformam as instituições” (p. 37). Nesse
sentido, a linguagem, e também o discurso, são fulcrais às instituições, pois os sentidos se

45
constituem a partir de relações parafrásticas possíveis a partir dos discursos em questão.
Destarte, a partir da retomada conservadora na sociedade contemporânea, houve uma
atualização do discurso das instituições governamentais e religiosas que endossam concepções
familiares hétero(sexista)s que valorizam as concepções cristãs.

Em sua crítica sobre o que chama de “elite do atraso”, o sociólogo Jessé de Souza
(2019) defende que a distinção social entre os seres sociais é elemento crucial, visto que os
mecanismos que distinguem os indivíduos legitimam o acesso privilegiado seja aos bens
materiais ou ideias. Ou seja, ao passo que há uma guinada conservadora com agendas
específicas baseada na moral e em valores cristãos, por parte das instituições, as práticas serão
voltadas ao posicionamento e identificação em defesa de uma ordem fundamentada nos fatores
biológicos e religiosos. A produção do discurso (neo)conservador abarcará questões morais,
sexuais e políticas em convergência com a ordem sexual “natural” como princípios não
negociáveis. Portanto, formas desiguais de inclusão na esfera institucional e pública são
observadas, no intuito de reiterar e normatizar uma concepção de arranjo familiar heterossexual.
Dessa forma, o teórico defende que,

no mundo ocidental moderno, não existem duzentas formas, como quer o liberalismo
vulgar, para produzir distinção social considerada legítima. A forma é única, apesar
de invisível em um mundo onde se percebe apenas a ação do dinheiro e do poder.
Ela tem a ver com a dominação de certa visão da moralidade e da virtude como o
predomínio da noção de espírito sobre a noção de corpo. Essa forma muito singular
de se perceber a moralidade e a virtude não caiu do céu. Ela está associada à história
do cristianismo e ao fato de essa tradição ter incorporado a noção platônica de
virtude, que defende o controle das paixões do corpo pelo espírito, ao caminho de
salvação exigido daí em diante de todo cristão. (SOUZA, 2019, p. 158 grifos nossos).

Doravante a crítica de Souza (2019), pode-se observar que o processo conservador que
engendra o sintagma “ideologia de gênero” é oriundo de uma concepção cristã que incide na
normatização heterossexual concebendo um sistema de crenças e políticas morais. Assim
sendo, a marginalização de grupos sociais subalternizados, classificados como ameaça ao
arranjo familiar tradicional, tem como propósito a ação econômica e de poder. Com efeito, a
produção discursiva destes grupos ultraconservadores, a partir de concepções tradicionalistas,
apresentará uma retórica antigênero que hierarquiza as diferenças sociais. Portanto, os
ordenamentos pautados em dispositivos morais e religiosos tendem a apresentarem-se como
interpretações dominantes, intransigentes e autoritárias, atacando, assim, diretamente teóricos,
políticos, ativistas, militantes e até os currículos escolares e a liberdade docente.

46
Mediante o cenário conservador que se estabeleceu não somente na sociedade
brasileira, grupos ultraconservadores antigênero, a partir da construção de sentidos por meio
dos discursos, começaram a produzir atos que ilustraram sua visão tradicional como forma de
intervenção na arena pública, no intento de engessar padrões morais e familiares. Nesse
contexto, podem-se citar os ataques à exposição sobre diversidade sexual ocorrida em Porto
Alegre em 201723, que ocasionaram seu encerramento, ou até mesmo o episódio de repúdio à
performance “La bete” no MAM (Museu de Arte Moderna) em São Paulo24 no mesmo ano.

Além dos eventos já mencionados, outro episódio de grande notoriedade mediante os


atos dos polemizadores antigênero ocorreu em novembro de 2017. Na ocasião, a professora da
Universidade Berkeley, na Califórnia, Judith Butler foi convidada para palestrar em um evento
em São Paulo cujo o tema era “Os fins da democracia”. Entretanto, por ser uma precursora na
teoria de gênero, grupos conservadores inflamaram uma manifestação nas redes sociais e foram
até o local no dia da palestra manifestarem seu descontentamento com a presença da cientista.
Entre os ataques, pôde-se observar que houve acusações de que a palestra da autora fosse uma
ameaça à família, à moral e até à nação, ao passo que na ocasião Butler esteve no Brasil para
discutir o crescente populismo, o autoritarismo e os ataques à democracia25. Encabeçada por
líderes religiosos e políticos, uma das formas de ataque dos reacionários foi por meio da
circulação de uma petição nas redes sociais junto a hashtag #ForaButler:

(25) Judith Butler não é bem-vinda ao Brasil! Nossa nação negou a ideologia de gênero no Plano Nacional
de Educação e nos Planos Municipais de Educação de quase todos os municípios.
Não queremos uma ideologia que mascara um objetivo político marxista. Seus livros querem nos
fazer crer que a identidade é variável e fruto da cultura. A ciência e, acima de tudo, a realidade nos
mostram o contrário.
Sua presença em nosso país num simpósio comunista, pago com o dinheiro de uma fundação
internacional, não é desejada pela esmagadora maioria da população nacional. Zelamos pelas nossas
crianças e pelo futuro do nosso Brasil. #ForaButler. (grifos nossos) 26

23
MENDONÇA, Heloisa. Queermuseu: O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo. El País,
São Paulo, 13 set. 2017. Cultura. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html. Acesso em: 25 set. 2020.
24
Redação RBA. Conservadores atacam MAM com tese de que artistas corrompem crianças. Rede Brasil Atual,
São Paulo, 29 set. 2017. Cidadania. Disponível em:
https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/09/conservadores-atacam-mam-com-tese-de-que-artistas-
corrompem-criancas/. Acesso em: 25 set. 2020.
25
MENDONÇA, Heloisa. Queermuseu: O dia em que a intolerância pegou uma exposição para Cristo. El País,
São Paulo, 13 set. 2017. Cultura. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/11/politica/1505164425_555164.html. Acesso em: 25 set. 2020.
26
BUTLER, Judith. Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 21 nov. 2017. Ilustríssima. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-fantasma-do-genero-
e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml. Acesso em: 25 set. 2020.

47
Em geral, ao analisar a petição contra Butler, é possível identificar posicionamentos,
pois, conforme Krieg-Planque (2010), uma fórmula discursiva condensa questões políticas e
sociais. Assim, o texto, em boa medida, é marcado por um tom rude e certifica que a objeção
se faz a partir da “ideologia de gênero”. De fato, no início já se apresenta Butler e o sintagma
como correspondentes e reitera a ideia de negação da diversidade de gênero nos Planos da
Educação nas diversas esferas nacionais. Na sequência, vale observar a recusa ao “marxismo
cultural”, instituído por movimentos conservadores como um inimigo comum que subverte a
ordem e a moral, pois os estudos de Butler, para estes indivíduos, seriam objetos velados da
teoria marxista. Por fim, é possível inferir, a partir da assertiva “zelamos pelas nossas crianças
e pelo futuro do Brasil”, que estes designam a autora como uma ameaça à toda nação.
Nesse contexto, para Biroli (2018b), “a reação conservadora atual se funda numa
noção pouco sofisticada de objetividade para questionar o caráter do conhecimento produzido,
a autonomia do campo científico e a responsabilidade coletiva envolvida nos processos
educacionais” (p. 86). Desse modo, a partir de práticas culturais e discursivas, sentidos de
desabono são atribuídos ao sintagma, e aos cientistas envolvidos nos estudos de gênero,
colocando em xeque o campo científico e o objetos de estudos deste, ao passo que, a partir de
atos de campanhas contra o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”, como aquelas
encabeçadas pelo Movimento Escola Sem Partido (MESP)27, os diversos atores conservadores
potencializam seus posicionamentos político-ideológicos, atribuindo sentidos aos seus
discursos.
O doutor em educação Fernando Penna (2018) afirma que um dos intuitos dos
movimentos como o MESP é defender que apenas a família e os desígnios religiosos podem
“educar” os alunos, cabendo, assim, aos professores o papel de transmitir conteúdos e,
atendendo as demandas do capital, qualificar educandos para o mercado de trabalho. A questão
colocada aqui, conforme Penna (2018), a partir dos entraves colocados à discussão de gênero
no espaço educação e a disseminação da formulação “ideologia de gênero” no universo
discursivo brasileiro contemporâneo, é que os educadores estão sendo censurados de debates
temas e a escola tendo sua dimensão educacional censurada por, além de preceitos morais,
retóricas políticas:

Houve grandes avanços na produção de materiais didáticos que discutem questões de


gênero e esta temática tornou-se o foco do maior ataque do discurso reacionário. Mas

27
LEAL, Bruno. Escola “sem” Partido é tema de entrevista de Caetano Veloso com o historiador Fernando Penna.
Café História, Brasília, 18 nov. 2018. Notícia. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/caetano-
entrevista-penna/. Acesso em: 28 set. 2020.

48
por que o gênero? Porque é uma agenda que movimentos como o Escola sem
Partido usam para explorar politicamente o desconhecimento de uma parcela
significativa da população sobre o cotidiano das escolas e sobre as próprias
discussões de gênero e sexualidade. Hoje sabemos que ninguém escolhe a sua
orientação sexual (por isso não se usa mais o termo “opção”), mas o discurso
reacionário quer fazer acreditar que a escola tem como objetivo transformar os
jovens em gays e lésbicas, a fim de destruir a “família tradicional” e ensinar
“pedofilia”. Por isso usam o termo “ideologia de gênero” – uma poderosa ferramenta
política para manipular o pânico moral em troca de ganhos eleitorais. A tentativa de
censurar a discussão de gênero nas escolas é uma estratégia transnacional. Nas
eleições de 2018, os membros da bancada cristã (católicos e evangélicos) já
declararam que não negociaram a pauta contra a “ideologia de gênero”. (PENNA,
2018, p. 112, grifos nossos).

Pode-se, com isso, apontar que a situação de produção dos discursos conservadores e
reacionários está presente no entorno do sintagma “ideologia de gênero” e, a partir deste, produz
efeitos de sentido, corroborando, direta e indiretamente, para a sua dispersão. Há de se
considerar que afeta de modo direto no campo educacional, pois as posições político-
ideológicas estão em confronto social e discursivo. Para Krieg-Planque (2018), cabe ao analista
do discurso observar o fato de que “discursos distintos, ainda que lancem mão de uma mesma
palavra, selecionam dela diferentes traços de significação” (p. 105). Portanto, nesse contexto,
passamos aqui a analisar a emergência dos estudos que recobrem a performatividade de gênero
no espaço social e como, com base nessas perspectivas, discursos reacionários e conservadores
despontam para contrapor a produção científica e as conquistas progressistas na esfera
contemporânea, engendrando, então, a fórmula “ideologia de gênero”.

1. Os manifestos feministas e os estudos de gênero

Os estudos queer ou de gênero, em suas diversas manifestações e atividades, têm o


objetivo de investigar a normatização e, especialmente, os processos de construção e estilização
não voluntária das identidades no espaço social (Borba, 2014). Dessa forma, tais estudos
tendem a investigar quais os mecanismos, inclusive discursivos, corroboram para a manutenção
dos binarismos e da matriz de inteligibilidade de gênero. Conforme Cameron (2010), as pessoas
são capazes de interpretar umas às outras, especialmente os homens ao observarem outros
homens, não pelas preferências ou práticas sexuais, mas por uma estilização repetida dos
corpos, “o que está sendo avaliado de modo específico é uma aparência e uma forma de vestir
e de falar que denotam uma masculinidade insuficiente” (CAMERON, 2010, p. 137). O que é
determinado socialmente como homossexual, opondo-se ao heterossexual, está diretamente
ligado à não adequação de padrões generalizantes determinados. Existem construções

49
convencionais que convencionam e normatizam os modos de reproduzir gênero, e as leituras
das performances de gênero perpassam esses modos e cristalizam-se na esfera social.
Entretanto, vale ressaltar que essas construções estão sempre em constante processo de
reformulação.

Partindo, portanto, da intersecção das teorias queer com os estudos de linguagem,


Rodrigo Borba (2014) postula que essa vertente se deu mediante uma “dinâmica de
classificação, de construção e manutenção de binarismos” (BORBA, 2014, p. 444), tendo em
vista que as questões de gênero, sexualidade e identidade são moldadas por instituições e
enquadramentos discursivos. Ou seja, as críticas que constituem o aporte epistemológico das
teorias queer buscam a compreensão e a desconstrução dos fatores que embasam a manutenção
do que foi denominado por Butler ([1990]2003) como matriz de inteligibilidade de gênero.
As reflexões acerca da matriz permitem compreender que ela é moldada por preceitos
essencialmente heterossexuais e, para Butler, “as pessoas só se tornam inteligíveis ao adquirir
seu gênero em conformidade com padrões reconhecíveis” (BUTLER, 2003, p. 37). Desse
modo, existem parâmetros que irão nortear os posicionamentos dos indivíduos na sociedade,
hierarquizando indivíduos, tanto em comportamentos, quanto discursivamente.
Consequentemente, as questões de gênero tomaram grande relevância nos debates
contemporâneos e, por problematizarem aspectos que rompem a matriz de inteligibilidade,
questionam o viés patriarcal e normativo que embasam a produção dos discursos e mobilizam
sentidos nas diversas esferas. Para Luis Felipe Miguel,

a noção de que os papéis estereotipados de meninas e meninos, mulheres e homens,


são naturais e obrigatórios leva, como consequência necessária, a reforçar as barreiras
que isolam mulheres de determinados espaços sociais, a estigmatizar determinados
comportamentos, a marcar como desviantes aqueles que não seguem a regra.
(MIGUEL, 2016, p. 615).

Nesse contexto, para o autor, a distinção de gêneros, consoante a ideia da “estilização


repetida do corpo” (Butler, [1990] 2003), engendra comportamentos e posturas consideradas
como aceitáveis dentro da sociedade contemporânea, rotulando, assim, como desviantes e
violadores da moral aqueles que não seguem as regras socialmente impostas. Para o autor, a

50
recorrência desses discursos alimenta a cultura do estupro e as agressões a LGBTQIA+,
acarretando nos altos números de feminicídios28 e assassinatos motivados por homofobia29.

Considerando os avanços dos estudos de gênero, a politização da sexualidade e as


conquistas dos movimentos feministas e LGBTQIA+ no espaço social contemporâneo, o pânico
moral foi instaurado coletivamente na sociedade brasileira, suscitando essa ascensão como
fomentadora da subversão da moral e da destruição da família tradicional. Assim sendo, os
trabalhos dos estudiosos de gênero, conforme Biroli (2018b), interpelam toda a produção
científica e questionam a heteronormatividade que norteou a produção do conhecimento até a
atualidade. Dessarte, embora haja uma amplitude dos estudos de gênero atualmente,

a ideia norteadora de que papéis e identidades sexuais definem-se em contextos


sociais específicos e não são expressões da natureza ou de desígnios transcendentais
é compartilhada por ampla produção que vem se acumulando pelo menos desde
meados do século XX. Trata-se de produção posicionada, uma vez que adere a valores
como o da igual dignidade independentemente do sexo biológico e das opções
sexuais, da diversidade humana como princípio fundamental para a definição dos
direitos, da relevância dos corpos sexuados como questões políticas. (BIROLI, 2018b,
p. 85).

Os sentidos devem ser constituídos, portanto, a partir de definições nos diversos


contextos sociais, a despeito de qualquer fator biológico e/ou orientação sexual. Assim, a partir
dos conhecimentos produzidos e da prática política de movimentos sociais e de resistência,
diversos atores políticos começaram a se mobilizar, numa agenda liberal progressista, para
atender a demandas de indivíduos que até então eram despercebidos ou apagados pelo Estado.
Além do mais, a construção das políticas alternativas de gênero, a partir dos diversos estudos
desenvolvidos, indagou a perspectiva religiosa, moral e do direito que, até então, havia
embasado as políticas públicas:

As agendas feministas e LGBT foram promovidas a partir de espaços e dinâmicas que


existiram apesar da baixa permeabilidade do sistema político à participação das
mulheres e à agenda dos direitos sexuais e reprodutivos (Biroli, 2018: capítulo 5). O
“apesar” indica que a ação política tem se dado contínua e sistematicamente e que tem
tido efeitos. A partir do Executivo e do Judiciário, foram construídas políticas e
normas que incorporam parcialmente os valores da autonomia das mulheres e da
diversidade sexual. (BIROLI, 2018b, p. 88).

28
VELASCO, Clara; CAESAR, Gabriela; REIS, Thiago. Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil
tem alta no número de feminicídios em 2019. G1, São Paulo, 05 mar. 2020. Monitor da Violência. Disponível em:
https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-
mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml. Acesso em: 28 set. 2020.
29
Universa. Brasil registra 329 mortes de pessoas LGBT+ em 2019, uma a cada 26 horas. Uol, São Paulo, 23 abr.
2020. Diversidade. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/04/23/brasil-registra-
329-mortes-de-lgbt-em-2019-diz-pesquisa.htm. Acesso em: 28 set. 2020.

51
Os movimentos que emergiram nos últimos anos em prol da diversidade de gênero
provocaram diversos avanços de pautas que concernem direitos das mulheres e dos
LGBTQIA+, além de outras minorias. Contudo, houve uma reação a esta guinada das pautas
progressistas encabeçada por reacionários conservadores, em sua grande maioria ligados a
atores e preceitos religiosos, desdobrando-se em diversas esferas internacionais até chegar ao
Brasil e ganhar força no cenário político-ideológico. Para Junqueira (2018), a partir do
movimento reacionário caracterizado pelo ativismo, que inicialmente dispõe de um cunho
religioso, que se estabelece o sintagma “ideologia de gênero”, desenvolvendo-se como “um
artefato retórico e persuasivo em torno do qual reorganizar seu discurso e desencadear novas
estratégias de mobilização política e intervenção na arena pública” (JUNQUEIRA, 2018, p.
451). Para o autor, o desencadeamento de uma retórica antigênero é oriundo da mobilização
dos ideais ultraconservadores da Santa Sé juntamente com a articulação de líderes religiosos e
políticos, tendo como objetivo, principalmente, a mobilização de uma ordem moral com bases
em arbitrariedades religiosas e restauração de uma visão de mundo tradicionalista numa
perspectiva masculina, heterossexual e patriarcal.

Entre os objetivos dessas ofensivas adquirem centralidade os de entravar o


reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos (Sheill, 2008), de obstruir
a adoção da perspectiva de equidade de gênero, e de fortalecer ou relegitimar visões
de mundo, valores, instituições e sistemas de crenças pautados em marcos morais,
religiosos, intransigentes e autoritários. (JUNQUEIRA, 2018, p. 451).

Pode-se compreender, então, que a partir de um cenário político-discursivo de


conservadorismo, estes movimentos reacionários, de forma direta, institucionalizam normas,
valores e práticas de regulação social, engendrando, assim, um funcionamento discursivo
embasado pelas disposições tradicionalistas. O processo de renaturalização da ordem social,
sexual e moral tradicional vai desde intervenções e posicionamentos nas diversas pautas
progressistas que tiveram seu progresso na esfera contemporânea, restaurando o estatuto moral,
discursivo e institucional das instituições religiosas, em sua grande maioria, cristãs. A retomada
dos preceitos biológicos que determinam as produções de gênero, as arbitrariedades que
reiteram e internalizam as normas de gênero, a acentuação de diferenças e a institucionalização
de concepções de gênero e de família a partir do sexo biológico são o mote discursivo dos
grupos reacionários conservadores.

Desde então, diversas lideranças têm emergido na esfera política-ideológica no intento


de estabelecer inimigos comuns que ameaçam a família tradicional, a moral, a ordem simbólica
e a sociedade, e, portanto, devem ser combatidos. Nessa perspectiva, o discurso dos

52
reacionários antigênero espalham-se pelo universo discursivo (MAINGUENEAU, 2008)
circulando nos variados campos, desde aqueles que aderem ao mesmo posicionamento e
constituem seus discursos a partir de alianças entre os que aderem o mesmo posicionamento
social, até aqueles que, por sua FD (formação discursiva), produzem discursos divergentes.
Assim, o movimento feminista e os teóricos de gênero são instituídos pelo Mesmo (movimentos
antigênero) como o seu Outro (seus opositores, que não aderem ao mesmo discurso), ou seja, a
partir das categorias que definem e regem o posicionamento dos conservadores, numa relação
interdiscursiva, feministas e a cientistas queer tornam-se posicionamentos concorrentes.

Então, constrói-se uma esfera na qual existem princípios não negociáveis e tudo aquilo
que os excede é tido como uma visão deturpada de uma suposta verdade humana universal
alicerçada na natureza. A partir de condutas e preceitos inflexíveis, teóricos conservadores
discorrem acerca dos crescimentos das pautas progressistas que abrangem classes, raça e,
principalmente, gênero. As profundas transformações sociais são tidas como subversivas da
ordem social, segundo as disposições tradicionalistas. Acerca destas controvérsias morais que
atentam contra o arranjo familiar tradicional, Jorge Scala (2015), professor e advogado
argentino, escreve um livro — do qual, aliás, já foi apresentado um dos recortes de corpus desta
pesquisa — que supostamente desconstruiria a “ideologia de gênero”, que para o autor,
representa “o neototalistarismo e a morte da família”. Segundo o autor,

A ideologia de gênero foi concebida pelo movimento feminista radical, cuja visão
de mundo é a de que o homem teria dominado a mulher ao relegá-la à vida doméstica
e privada, reservando para si a exclusividade da vida pública, profissional e política.
Para se obter igualdade dos sexos, não teria sido suficiente dar direitos políticos e
civis às mulheres – primeiro e segundo feminismo —, mas seria necessário algo mais
radical: disputar o poder político em igualdade de condições com os homens, para
o qual a mulher deveria ser incorporada ao mundo do trabalho e à vida pública em
igualdade absoluta com o homem. Ora, este objetivo não pode ser conseguido mágica
ou instantaneamente. Implica numa luta contra o homem e, portanto, é necessário
elaborar uma estratégia para ser aplicada adequadamente, um instrumento
eficaz de luta. Esse instrumento é a ideologia de gênero. (SCALA, 2015, p. 64, grifos
nossos).

Para Scala (2015), portanto, a origem da “ideologia de gênero” está no feminismo


radical que, com o intuito de obter igualdade entre os sexos biológicos – homem e mulher, não
se contentou com os direitos políticos e civis conquistados pelas mulheres, e foram disputar o
poder político com os homens, sendo esta, então, uma estratégia eficaz nesse embate. O
primeiro ponto que chama a atenção é a colocação do posicionamento da mulher como inferior
ao homem, convergindo diretamente com as estruturas arbitrárias de divisão do mundo social
e de gênero, na qual um arranjo familiar patriarcal tem sua autoridade centrada na figura

53
masculina e na domesticidade das mulheres (JUNQUEIRA, 2018, p. 455). Na sequência é
possível observar que para o autor, o espaço político é de domínio masculino e para as
feministas radicais conquistá-lo — supostamente esse seria o objetivo do movimento, faz-se
necessário “um instrumento eficaz”. Nesse sentido, ainda conforme o teórico, a “ideologia de
gênero” compreende a sociedade a partir do apagamento das distinções entre homens e
mulheres ancoradas em aspectos genéticos, visando à igualdade entre gêneros, logo,
transformando socialmente as estruturas que regulam os papéis de homem e mulher desde a
Antiguidade. Assim sendo, os argumentos e conjecturas do estudioso conservador evidencia
um disputa e manutenção do poder político e social e que, portanto, as normas coletivas e de
gênero devem estar alinhadas com a dominação masculina.

Diante disso, pode-se observar que os movimentos feministas e os estudos de gênero,


por meio das questões de gênero e de sexualidade, vão na direção da desconstrução do padrão
hegemônico que se instaurou no corpo social, estabelecendo diálogos, buscando direitos
individuais e coletivos, e, de forma democrática, ocupando espaços monopolizados. Isso é um
fator de bastante incômodo para atores conservadores que, por sua vez, adotando uma postura
persecutória, designam seu repúdio por meio do sintagma “ideologia de gênero”. Para estes, o
que está em jogo é uma estrutura de poder e dominação do corpo social.

2. Uma convergência: moralismos, patriarcalismo e religião

A relevância crescente do discurso conservador e sua dispersão no espaço social


mobilizaram sentidos e produziram novos discursos. Tal produção discursiva ressalta a
visibilidade adquirida pela defesa de determinadas agendas e o ataque às pautas progressistas
que despontaram na contemporaneidade, sendo, então, a gênese de um discurso conservador e
reacionário. No Brasil, a convergência entre a defesa da moral tradicional, do arranjo centrado
no patriarcalismo e de lideranças religiosas deu-se a partir de discussões que cercavam o campo
educacional e circulavam por toda sociedade.

A radicalização do discurso ultraconservador atrelada ao fundamentalismo religioso


ergueu-se em prol da moral e da ordem tradicional. É possível observar em dados do corpus a
direita política liderando movimentos na defesa de determinadas pautas, dessa forma, questões
que apresentavam debates avançados como o consumo de drogas, a liberdade sexual e os
direitos reprodutivos voltam a ganhar enfrentamentos30. Para Motta e Possenti (2008), o

30
VILARDAGA, Vicente. Retrocesso dos costumes. Istoé, São Paulo, 20 dez. 2019. Perspectiva 2020. Disponível
em: https://istoe.com.br/retro-cesso-dos-costumes/. Acesso em: 30 set. 2020.

54
discurso de direita é norteado pela premissa de que a pessoas nascem naturalmente desiguais e,
acima de tudo, devem preservar a ordem, assim, os semas fulcrais seriam os de /diferença/ e
/ordem/, sendo /natural/ um sema secundário que também alicerça esse discurso. Desde então,
desenvolve-se uma fusão entre lideranças políticas fazendo o uso do senso de oportunidade e
reacionários conservadores tendo a ênfase na agenda moral a fim de conquistar o corpo social.

As circunstâncias que condicionaram a produção partiram de tentativas em conter os


debates que visavam à redução das desigualdades sociais e de gênero, surgindo, nesse contexto,
expressões candidatas à fórmulas como “ditadura comunista gay” e “kit gay”, além de uma
série de fake news divulgadas e circuladas em redes sociais no intento de atacar opositores e
suas agendas. A partir de então, diversos grupos e teóricos sofreram ataques por conta de sua
atuação na defesa da autonomia das mulheres e da diversidade sexual31.

A oposição aos direitos de mulheres e LGBTI tem se estabelecido, grosso modo, por
meio das alianças entre políticos conservadores, notavelmente deputados católicos e
evangélicos em partidos de centro-direita e de direita. A constituição de alianças
contrárias a esses direitos tem sido bem-sucedida ao barrar todos os projetos de leis
diretamente relacionados aos direitos LGBTI apresentados no Congresso até hoje.
(BULGARELLI, 2018, p. 98).

Conforme o autor, a fusão política de determinados partidos com líderes religiosos


acarretou no retrocesso da permeabilidade estatal dos direitos das mulheres e LGBTIs, pois, a
partir da defesa de suas crenças e valores religiosos, aquilo que foi considerado como desviante
começou a ser barrado pela seletividade destes. Para Biroli (2018b), todo esse processo “não se
trata de uma grande conspiração, mas de movimentos que convergem e definem novos padrões
para a seletividade das democracias existentes” (p. 90). Assim, a partir de tomada política de
líderes conservadores, o intuito do Estado passa a ser a manutenção das famílias funcionais,
reforçando as disposições tradicionais de gênero para atendimento da racionalidade econômica
e da moralidade religiosa, desassistindo determinados indivíduos e deslegitimando alternativas
coletivas.

Em janeiro de 2019, primeiro mês do mandato do presidente brasileiro Jair Bolsonaro,


ao assinar e publicar a medida provisória no Diário Oficial da União sobre promoção dos
direitos humanos, a população LGBTQIA+, que até então compunha as diretrizes dos Direitos

31
MOYSÉS, Adriana. Manifestação de bolsonaristas em Recife se refere a mulheres de esquerda como “cadelas”.
Istoé, Paris, 24 set. 2018. Bolsonaro / Eleições 2018. Disponível em: https://www.rfi.fr/br/brasil/20180924-
manifestacao-de-bolsonaristas-em-recife-se-refere-mulheres-de-esquerda-como-cadelas. Acesso em: 30 set. 2020.

55
Humanos, foi excluída do texto promulgado32. A publicação da medida gerou grande revolta e
diversas manifestações. Nesse contexto, conforme o já citado antropólogo Bulgarelli (2018), a
existência de uma agenda anti-LGBTQIA+ faz com que haja uma intensa disputa no que tange
aos projetos que tencionam o combate a homofobia e garantem os diretos de gays, lésbicas,
transexuais, entre outros. Desse modo, a partir da aliança estabelecida entre políticos e
conservadores reacionários, os atores que compõem este cenário político-ideológico, além de
posicionarem-se anti-LGBTQIA+ e antifeministas, promovem torções de conceitos, como
gênero, e compartilham informações inverídicas, como o “kit gay”, no intento de alastrar o
medo à subversão da ordem moral. Nesse sentido,

segundo os atores envolvidos nas mobilizações antigênero, esses grupos “radicais”,


por meio de discursos envolventes sobre a promoção da igualdade e o questionamento
dos estereótipos, promoveriam a disseminação e imposição ideológica de um termo
novo, perigoso e impreciso: o gender/gênero. Seu intuito seria extinguir a “diferença
sexual natural” entre homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, difundindo-
se a crença enganosa de que tais diferenças seriam meros produtos de processos
opressivos de construção social e que poderiam constituir simples escolha do
indivíduo. Para o Vaticano e seus aliados, seria preciso interromper esses
manipuladores, pois tal agenda político-ideológica, ao subverter a ordem natural da
sexualidade, comportaria uma autêntica ameaça à “família natural”, ao bem-estar das
crianças, à sobrevivência da sociedade e da civilização. (JUNQUEIRA, 2018, p. 453).

Consoante a Burgarelli (2018), Rodrigo Junqueira aponta que os conservadores,


principalmente os líderes políticos e religiosos, propagam a ameaça que a “ideologia de gênero”
representa aos conceitos de “moral”, “família” e “valores cristãos”. Pois, a partir da imposição
“ideológica”, haveria extinção dos sexos ancorados nos fatores biológicos. Portanto, os teóricos
dessa agenda progressista devem ser combatidos por representarem um risco à sobrevivência
dos indivíduos e à civilização mundial. Assim sendo, a partir do seu posicionamento discursivo
e social, conservadores e reacionários, por meio do sintagma “ideologia de gênero”, passam a
exprimir “gênero” como um mal a ser combatido, defendendo, assim, a ordem universal
alicerçada na natureza e na construção binária dos corpos.

As tensões morais começam a ganhar espaço na arena discursiva, a produção dos


discursos conservadores passa a ser norteada para um combate do que se considera um mal
comum – a “ideologia de gênero”. De um lado, tem-se atores conservadores e religiosos, que a
partir de valores ideológicos e cristãos em oposição a uma agenda progressista, desenvolvem

32
Diário de Pernambuco. MP assinada por Bolsonaro retira população LGBT das diretrizes dos Direitos Humanos.
Diário de Pernanmbuco, Recife, 02 jan. 2019. Política. Disponível em:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/politica/2019/01/mp-assinada-por-bolsonaro-retira-populacao-
lgbt-das-diretrizes-dos-dir.html. Acesso em: 30 set. 2020.

56
suas práticas discursivas no sentido de defesa da “família” e da “vida”. Entretanto, de outro
lado, os teóricos da desconstrução do gender/gênero intentam desmistificar o sintagma
“ideologia de gênero” para evidenciar a face dos seus estudos. Para Bulgarelli (2018), toda a
tensão e polêmica criada na disputa do sentido por discursos concorrentes dispõe de idealismo
político:

São os temas morais, nos quais estão incluídos os debates sobre gênero e sexualidade,
que ganham especial destaque ao se tornarem fonte de intensa disputa. O caráter
apelativo destas tensões em torno das moralidades – ou, antes, de perspectivas
moralizantes – tem estimulado o surgimento de candidatos que ganham notoriedade
por posicionamentos não apenas anti-LGBTI e antifeminista. Trata-se, a bem dizer,
de uma agenda que disputa estes direitos de modo a promover torções significativas
em conceitos como o de gênero, a fim de que ele opere como um mobilizador do
medo (BULGARELLI, 2018, p. 99-100, grifos nossos).

Nesse contexto, ressalta-se a projeção da candidatura do presidenciável Jair Bolsonaro


(PSL) em 2018. O candidato popularizou-se por posicionamentos conservadores, em defesa do
nacionalismo e do militarismo. Críticas às pautas progressistas e aos movimentos de esquerda
compunham o repertório de Bolsonaro. Durante esse período, foi possível observar, em diversas
ocasiões, o candidato atestando sua defesa ao movimento de ditadura militar e aos mecanismos
de repressão e tortura utilizados nesse período33, principalmente, contra os movimentos
feministas, LGBTQIA+ e negro.

Além dos ataques constantes à esquerda e ao comunismo, ancorados em fatores


ideológicos e religiosos, Bolsonaro tinha como agenda o combate ao que ele chamava
marxismo ideológico, à ditadura gay e à ideologia de gênero. Para tanto, recursos discursivos e
modalizadores de campanha foram mobilizados no intento de, além de provocar o pânico moral,
atrelar o candidato de oposição às pautas rechaçadas. E, portanto, deu-se a instauração de um
debate social e disputa por valores em toda a esfera social.

Nesse contexto, o linguista José Luiz Fiorin (2019) pondera que, a partir da campanha
e da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, o Estado adquire o estatuto de “agente da estratégia
nacional, encarregado de voltar aos valores reais da nação brasileira, que são valores
conservadores. O governo, por encarnar esses valores, tem legitimidade para estabelecer uma
luta contra tudo o que pode desvirtuá-los” (p. 372). Isso foi transposto no slogan da campanha:

33
Da redação. Bolsonaro afirma que torturador Brilhante Ustra é um “herói nacional”. Veja, 08 ago. 2019. Política.
Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-um-heroi-
nacional/. Acesso em: 01 dez. 2020.

57
“Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.” Assim, entre moralismos tradicionais e preceitos
religiosos, os ideais do Estado e do governo se unem, tornando-se intercambiáveis.

No cenário de guinada conservadora na sociedade brasileira, para Fiorin (2019), o


discurso do presidente eleito e dos seus seguidores, de modo simplista, “estabelece uma luta
entre o bem e o mal, estabelece inimigos internos, que são os que não comungam dos valores
conservadores que caracterizam a nação brasileira”. Em 2019, durante um evento na cidade do
Rio de Janeiro, Bolsonaro afirmou:

(26) “A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria,
daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm
ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia e a liberdade. E isso, democracia e
liberdade, só existe quando as suas respectivas Forças Armadas assim o quer (sic)” (grifos nossos).34

Para eles, ancorados em uma política permeada por valores religiosos, existem
princípios que não são negociáveis e aqueles que se opõem às pautas são considerados inimigos
internos. No ato de “restaurar e reerguer nossa pátria libertando-a [...] da submissão
ideológica”35 há um intuito de submeter os governados a uma conduta específica e assumida
como correta, a um padrão único ancorado nos marcos morais e religiosos. E, a partir dos
pronunciamentos do presidente e de uma mobilização política, ressalta-se que a nação deixa de
ser um espaço de desenvolvimento social, evidenciando sua face ideológica, pautada em um
determinado conjunto de disposições tradicionalistas.

Com efeito, o embate social e discursivo entre atores progressistas e ativistas religiosos
e conservadores ganhou notoriedade na arena pública nos últimos anos. De um lado, os grupos
minoritários observam o declínio de suas conquistas que provocaram profundas transformações
nos papéis sociais nas últimas décadas. Em contrapartida, grupos religiosos e políticos buscam
a institucionalização da perspectiva patriarcal e cristã sustentada por noções religiosas,
disposições metafísicas e biológicas, além das arbitrariedades tradicionalistas.

Nessa disputa entre pautas e agendas, o sintagma “ideologia de gênero” surge como
uma artimanha engenhosa na Igreja Católica e começa a circular massivamente entre políticos
como um mal a ser combatido. Inicialmente, conforme a Santa Sé, a expressão é uma ameaça

34
Da redação. Bolsonaro: Democracia e liberdade só existem quando Forças Armadas querem. Exame, 07 mar.
2019. Brasil. Disponível em: https://exame.com/brasil/bolsonaro-democracia-e-liberdade-so-existem-quando-
forcas-armadas-querem/. Acesso em: 01 dez. 2020.
35
SIQUEIRA, Carol; SILVEIRA, Wilson. Bolsonaro: Ao tomar posse, Bolsonaro pede apoio ao Congresso para
“restaurar e reerguer” o Brasil. Agência Câmara de Notícias, 01 jan. 2019. Política e Administração Pública.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/550448-ao-tomar-posse-bolsonaro-pede-apoio-ao-congresso-
para-restaurar-e-reerguer-o-brasil/. Acesso em: 01 dez. 2020.

58
única que subverte os arranjos familiares, estes que, além de uma designação divina e da ordem
natural, são considerados fulcrais à reprodução social. Para Miguel (2016), de forma articulada,
“a Igreja reforça sua centralidade política na medida em que busca despolitizar determinadas
questões, invocando-as para a esfera em que sua autoridade seria mais legítima, que é a esfera
da moral” (p. 597). O cenário estabelecido, portanto, opõe o discurso religioso e político de
direito e os movimentos ativistas feminista e LGBTQIA+, implicando em uma discussão moral
e de valores tradicionais.

2.1.A mobilização do pânico moral

A ampla circulação do sintagma “ideologia de gênero”, além de intentar a


renaturalização da ordem social e da moral tradicional, desmoraliza os estudos acadêmicos de
gênero, atribuindo-lhes o caráter de destruidor das convenções familiares heterossexuais-cristãs
e dos papéis tradicionais de gênero. Os movimentos antigênero, por meio de um discurso
conservador, buscam reiterar os valores tradicionais socialmente estabelecidos. Seus
argumentos e conjecturas são disseminados em toda esfera social e discursiva, principalmente
nos espaços educacionais, instaurando uma espécie de “pânico moral”36. Dessa forma, o
processo de alimentação deste amedrontamento retrocede nas pautas progressistas que
descontroem as normas de gênero centradas na dominação masculina e, também, provoca uma
demonização dos teóricos da teoria de gender.

Os conflitos que cercam as disputas morais no espaço social atingem diretamente o


âmbito educacional, uma vez que há diferentes interpretações e apropriações do processo de
laicização do Estado democrático. Nesse contexto, os ativistas conservadores antigênero,
principalmente calcados na política e na religião, disseminam a distorção dos estudos queer e,
assim, por meio de diversas mobilizações em todo Brasil e no exterior, produzem o pânico
moral. Portanto, as reações conservadoras buscam deslegitimar um campo científico amparadas
em fatores biológicos e, de forma ideológica, coletivamente definidos.

Tais postulações dos atores conservadores suscitam formulações que funcionam como
norteadores na construção e atuação de tais grupos. Assim, a fórmula discursiva “ideologia de
gênero” tem seu funcionamento ligado à percepção e classificação dos estudos queer e/ou de

36
Redação. Damares apoia decisão de retirar estudos de gênero de escolas de SC. Carta Capital, 30 ago. 2019.
Educação. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/educacao/damares-apoia-decisao-de-retirar-estudos-
de-genero-de-escolas-de-sc/. Acesso em: 03 dez. 2020.

59
gênero, além de exercer um forte desempenho na mobilização política (JUNQUEIRA, 2018, p.
459). Para Biroli (2018b), então, a disseminação do pânico moral é oriunda de um processo de
“desdemocratização” a fim de reduzir as ações estatais sob as demandas que não são de
interesse mercadológico. As famílias funcionais de núcleo patriarcal são, além de uma ordem
simbólica e biologicamente natural, satisfatórias e benéficas ao contexto macroeconômico.
Portanto, o debate público e estatal tem se direcionado de forma seletiva e, logo, ancorado sua
ação política na retórica antigênero, sustentado por uma visão de mundo tradicionalista e
comercial:

Inseguranças pessoais podem derivar da falta de proteção objetiva e de garantias ou


de medos que remetem a processos acelerados de mudança nas redes tradicionais de
suporte e nos papéis convencionais de gênero. Mais uma vez, “ordem moral” e
segurança podem ser apresentadas como algo a ser garantido por “famílias
funcionais” que atuem como gestoras de individualidades cada vez mais pautadas pela
racionalidade econômica, enquanto vínculos sociais se enfraquecem e alternativas
coletivas são deslegitimadas. (BIROLI, 2018b, p. 89-90)

Em termos discursivos, a partir dos postulados de Biroli (2018b), pode-se observar


que a produção discursiva, principalmente dos atores políticos conservadores, é enviesada por
um ideal de “desdemocratização” e funcionalidade econômica. A intervenção na arena pública
e discursiva por meio da disposição do pânico moral como uma ameaça à família se dá num
processo ideológico que define novos padrões seletivos das democracias. Assim, o pânico
estabelecido norteia e legitima determinadas ações políticas de repressão e militarização face
aos imbróglios sociais.

O cientista social Fernando Penna (2018) afirma que a criação da formulação


“ideologia de gênero”, por conseguinte a disseminação do pânico moral, surgem como “uma
poderosa ferramenta política para manipular o pânico moral em troca de ganhos eleitorais. A
tentativa de censurar a discussão de gênero nas escolas é uma estratégia transnacional” (p. 112).
Para o autor, a ideia de propagar que, a partir do ensino sobre a diversidade de gênero no âmbito
escolar, os educadores estariam ensinando “pedofilia” e atentando contra a “família
tradicional”, transformando, dessa forma, os estudantes em gays e lésbicas. Para o Movimento
Escola Sem Partido, por exemplo, a função de educar estaria estrita à família e à religião,
cabendo às escolas apenas a função de qualificar os alunos para o mercado de trabalho.

A partir da ideia da denúncia da “ideologia de gênero”, em sua defesa da educação


formal alicerçada na educação “moral”, o teórico reacionário Jorge Scala (2015) pondera:

Não se trata de instruir a juventude mediante a incorporação de conhecimentos de


matemática, geografia, química, literatura etc.. Procura-se diretamente, aqui,

60
uniformizar as pautas morais da sociedade. Utilizam-se, para isso, certas matérias de
conteúdo ideológico, que incluem programas e bibliografia cuidadosamente
preparados e a “capacitação” docente para a transmissão fiel do conteúdo ideológico
almejado. (SCALA, 2015, p. 40)

Ainda no campo educacional e de formação de pessoas, para teóricos antigênero, a


existência de uma agenda ideológica faz com que, de maneira refletida, a teoria adentre a arena
pública e permeie todos os campos. Conforme os apontamentos do autor, no intento de
promover o pânico moral, a “ideologia de gênero” provocaria, em cadeia, uma série de efeitos
prejudiciais à sociedade, como, por exemplo, o controle da natalidade e promoção da indústria
do sexo.

O advento do pânico moral provocou reações em toda esfera social. Estudiosos das
questões de gênero e sexualidade buscaram defenderem-se das acusações e designações que
circulavam por meio do discurso. Os defensores da família “tradicional” e da ordem moral, em
contrapartida, criminalizavam pesquisadores e profissionais ligados à educação, questionando
a legitimidade dos estudos desenvolvidos acerca das performances de gênero e negando as
abordagens plurais, reivindicando formas institucionalizadas de normas de gênero.

Nessa perspectiva, o pesquisador Luis Felipe Miguel (2016) reitera que, no cenário
político, o discurso conservador que se instaurou com a propagação da fórmula “ideologia de
gênero”, assim disseminando o pânico moral, postulou em favor de uma educação que de forma
expressão não faça juízo de valor, criando uma percepção de um ensino neutro. Porém,
conforme o autor, ao se negar ao estudante o conhecimento de conflitos de interesses e
processos sócio-históricos, diretamente, cumpre-se uma postura conservadora:

Os dois pilares são, portanto, a soberania da família, que se sobrepõe ao direito do


estudante de obter elementos para produzir de forma autônoma sua visão de mundo,
e uma ideia de “neutralidade”, mais presente aqui do que nos outros projetos,
certamente por estar mais colado na visão original do Escola Sem Partido. [...] Por
não assumir expressamente juízos de valor, tal ensino pode parecer neutro. Porém, ao
negar ao aluno as condições de situar os processos históricos e de compreender os
interesses em conflito, cumpre um inegável papel conservador. (MIGUEL, 2016, p.
608).

Enfim, para Miguel (2016), de fato, as intervenções e posicionamentos que envolvem


questões morais, sexuais e políticas são tampouco neutras, pois, além de reforçar e naturalizar,
de uma perspectiva masculina e heterossexual, a ordem vigente, suprime contradições da
concepção dual e binária de gênero. Na esfera educacional, todo o processo de disseminação
do pânico moral criminaliza a docência, ao passo que os educadores passam a serem vistos com
certa desconfiança, como um possível agente “ideológico”.

61
Quanto à possibilidade de um diálogo acadêmico, pautado na ciência e democrático,
para Junqueira (2018, p. 462), reacionários antigênero tratam a questão como pauta inegociável,
além de descontextualizarem e fazer uma distorção caricatural de todo e qualquer estudo de
gênero e afins. Assim, os adversários da família tradicional, que se opõem à verdade humana e
às posições da doutrina cristã, devem, então, ser ridicularizados e estigmatizados.

62
CAPÍTULO 4
A REEMERGÊNCIA DO DISCURSO CONSERVADOR NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO E AS QUESTÕES DE GÊNERO

“Certas instituições existem principalmente pelo fato de produzirem discurso.”


(Alice Krieg-Planque)

Recentemente, é possível encontrar trabalhos acadêmicos de diversos campos (ciência


política, ciências sociais, linguística, etc.)37 que apontam para um crescimento da circulação de
discursos conservadores. As matérias que encontramos na imprensa brasileira também nos dão
a dimensão da presença desse discurso no contexto político do Brasil contemporâneo38. A
própria eleição de Jair Bolsonaro é frequentemente assumida como resultante de uma
combinação entre um sentimento antipetista e de apelo à chamada “pauta de costumes”, que,
em linhas gerais, fundamenta-se no que se identifica como conservadorismo. Leite (2019)
afirma que, nos últimos anos, principalmente as discussões que abarcam as questões de
sexualidade e gênero na esfera social, têm mobilizado diversos atores e políticas públicas,
opondo racionalidades, moralidades e ideologias. Assim, da perspectiva que aqui assumimos,
é como discursos que compreendemos o posicionamento político conservador e seu Outro
(MAINGUENEAU, 2008), o posicionamento progressista.

Neste capítulo, traçaremos um panorama a fim de compreender esse momento na


sociedade brasileira e sua relação com as questões de gênero, que interferem diretamente na
compreensão da fórmula discursiva que aqui analisamos, já que falar em “ideologia de gênero”

37
SEPULVEDA, José Antônio; SEPULVEDA, Denize. O pensamento conservador e sua relação com práticas
discriminatórias na educação: A importância da laicidade. Revista Teias, v. 17, n. 47, p. 141-154, out.-dez. 2016.
38
A título de exemplo, podemos citar: CAETANO, Guilherme; BATISTA, Henrique Gomes. Evento conservador
tem venda de kits antifeminismo, livros sobre monarquia e camisetas de bolsonaro. Época, São Paulo, 11 out.
2019. Brasil. Disponível em https://epoca.globo.com/brasil/evento-conservador-tem-venda-de-kits-
antifeminismo-livros-sobre-monarquia-camisetas-de-bolsonaro-24012879. Acesso em: 10 dez. 2020; MARTINS,
Helena. Mais conservador, Congresso eleito pode limitar avanços em direitos humanos. Agência Brasil, Brasília,
09 out. 2014. Política. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-10/mais-conservador-
congresso-eleito-pode-limitar-avancos-em-direitos-humanos. Acesso em: 10 dez. 2020; Estadão conteúdo. Na
ONU, Bolsonaro faz apelo contra ‘cristofobia’: ‘País é cristão e conservador’. Isto é, São Paulo, 20 set. 2020.
Política. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/na-onu-bolsonaro-faz-apelo-contra-cristofobia-pais-e-
cristao-e-conservador/. Acesso em: 10 dez. 2020; Estadão conteúdo. Conservadores da América Latina se unem
para 'impedir a volta da esquerda'. Estado de Minas, Belo Horizonte, 10 dez. 2018. Política. Disponível em
https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/12/10/interna_politica,1011935/conservadores-da-america-
latina-se-unem-para-impedir-a-volta-da-esque.shtml. Acesso em: 10 dez. 2020.

63
implica, necessariamente, compreender esse movimento dos discursos. Aquilo que chamamos
aqui de uma “reemergência” do discurso conservador diz respeito a esse crescimento na
circulação do discurso conservador que, como intentamos demonstrar, apresenta-se de forma
autoritária e mantém pautas inegociáveis, como as questões de gênero e diversidade.

1. As condições de produção discurso reacionário (ultra)conservador no espaço


social

Assumindo o quadro de uma semântica global (MAINGUENEAU, 2008), diremos


que, no interior do campo político, o espaço discursivo constituído pelos posicionamentos
conservador e progressista permite apreendê-los em uma “simetria”, na medida em que as
semânticas desses discursos se implicam mutuamente. Embora não seja propriamente objetivo
desta pesquisa uma análise minuciosa desses posicionamentos, explicitando a sua semântica, é
dessa relação que partimos aqui para apresentar a conjuntura em que emerge a fórmula que
analisamos.

A partir dos pressupostos das ciências políticas, Bobbio, Matteuci e Pasquino (1995)
definem o conservadorismo como “ideias e atitudes que visam à manutenção do sistema político
existente e dos seus modos de funcionamento, apresentando-se como contraparte das forças
inovadoras” (p. 242). Para os autores, o conservadorismo surge como uma negação, mais ou
menos clara e/ou enfática, do progressismo, assim, os ideais conservadores existem como forma
de reação (e por isso se diz comumente que são reacionários) ao posicionamento progressista.
Nesse sentido, os autores postulam que

o Conservadorismo surge só como resposta necessária às teorias que, a partir do


século XVIII, se distanciaram da visão antropológica tradicional, para reivindicar para
o homem a possibilidade, não só de melhorar o próprio conhecimento e seu domínio
sobre a natureza, como também de alcançar, por meio de ambos, uma
autocompreensão cada vez maior e, consequentemente, a felicidade. O resultado a que
tendiam estas teorias era o de fazer da história humana um processo aberto e
ascendente, baseado numa antropologia revolucionária, onde o indivíduo fosse núcleo
ativo, capaz de se tornar melhor tornando-se cada vez mais racional. Isto implicava o
rompimento com a tradição, o que provocou fendas na consciência europeia, quer a
nível cultural, quer a nível político. (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 1995, p.
243).

Nesse período, o discurso conservador era em defesa da “natureza humana”, alegando


não ser esta modificável pela prática, tendo já aí suas raízes fixadas no campo religioso, por
meio da ideia de uma “vontade divina”. Logo, tanto o conhecimento quanto a ação política não
poderiam ser totalmente permissivos e/ou progressistas.

64
Os movimentos conservadores cresceram e tomaram maiores proporções no espaço
social após o século XVIII com as revoluções liberais, principalmente na França e nos EUA. O
mote era, acima de tudo, a defesa das instituições e valores assumidos como tradicionais. Assim
Silvio Luiz de Almeida discorre sobre o tema:

A ideia central era “conservar” valores e instituições – como a monarquia e a religião


cristã – considerados como pilares fundamentais da civilização e da cultura ocidentais.
No século XIX, o surgimento da sociedade industrial daria à ideologia conservadora
um tom de oposição ao racionalismo e ao cientificismo, bem como ao fim da vida
tradicional e hierarquizada, ameaçada pelas reivindicações por democracia. Pode-se
observar também na versão contemporânea do conservadorismo uma defesa das
elites, consideradas por muitos como mais aptas ao exercício do governo.
(ALMEIDA, 2018, p. 27-28).

Por meio das reações aos movimentos progressistas, o conservadorismo instaura-se


com um discurso de resistências às mudanças, mesmo que elas não tenham ainda se
concretizado e estejam em tramitação, refutando qualquer possibilidade que extrapole o tido
como “familiar” e “habitual”. O discurso conservador se constitui, assim, de traços de uma
cultura dominante com a política e a economia centrada nas elites. Dessa forma, as elites
conservadoras, além de defenderem os arranjos familiares tradicionais (heterossexuais,
monogâmicos, cristãos) e as instituições convencionais, buscam meios de propagar suas
convicções morais, o que é possível perceber desde as ilustrações e textos, por exemplo, em
livros didáticos escolares, atravessando a produção artística, até as práticas e manifestações
mais usuais e cotidianas, como veremos adiante.

Os preceitos conservadores, que se tornam socialmente partilhados, começam a ser


engendrados e reproduzidos por meio das elites que buscam dominar toda a conjuntura.
Conforme Van Dijk (2015), tais discursos são produtos individuais e/ou coletivos de membros
de uma comunidade e, assim, são legitimados por suas lideranças. Desse modo, em todo o
cenário global, as lideranças conservadoras retornam a ocupar espaços e cristalizar-se,
participando efetivamente dos diversos debates parlamentares, do noticiário, da literatura e dos
manuais escolares, além das legislações e dos processos burocráticos que constituem a vida
social.

Na medida em que a elite conservadora começa a ser composta pela classe dominante
altamente patriarcal e patrimonialista, ela começa a se proliferar nos plenários e busca instaurar
seus lugares de dominação social e poder. Entre moralidades e contraposição às agendas
progressistas, alianças são estabelecidas entre políticos conservadores e religiosos em defesa
de seus preceitos. Biroli a esse respeito conclui que

65
atores políticos conservadores têm recorrido a uma suposta defesa da família na
construção de suas identidades políticas. Isso não significa que procurem de fato
tornar mais sólidos os laços familiares existentes. Trata-se de reações a
transformações profundas nos papéis sociais, na conjugalidade, na sexualidade.
Atuam para restringir a pluralidade dos arranjos familiares e pelo retorno a padrões
sociais de controle que foram, em muitos sentidos, superados no cotidiano das pessoas
e nos marcos legais adotados no ciclo democrático iniciado com a Constituição de
1988 e consolidados em vários aspectos no Código Civil de 2002, bem como em
decisões posteriores da justiça brasileira e em compromissos internacionais assumidos
pelo país. (BIROLI, 2018a, p. 16).

Conforme Biroli (2018a), tais reações pretendem, portanto, a retomada do controle das
mulheres e repressão a subjetividades em processo de transformação. Assim sendo, forças
conservadoras convergem no intuito de barrar determinadas discussões, principalmente nos
espaços escolares e de formação de pessoas, e sobretudo no espaço público real e virtual, no
sentido de reforçar vicissitudes que regulam os comportamentos das mulheres e performances
de gênero em espaços sociais, estigmatizando outros comportamentos a fim de ressaltar como
divergentes aqueles que, mais ou menos, não seguem determinados padrões hegemônicos e
reguladores.

É aí que o movimento reacionário vislumbra que as pautas progressistas e regras de


igualdade se traduzem em ameaça às hierarquias instituídas num enquadramento masculino,
heterossexual e cristão, conforme apontado por Luis Filipe Miguel (2016):

Mesmo diante de algo tão básico, como a preservação da integridade física, a criança
aparece com seus direitos suspensos diante dos pais. A família é apresentada como
uma entidade cujos direitos suplantam as garantias individuais de seus integrantes. É
uma visão que está entranhada no senso comum e que foi, em parte, vencida no que
concerne à violência contra a mulher, mas que mal começou a ser disputada no que
diz respeito aos filhos. Diante de um mundo em que os “valores estão invertidos”,
como martela o discurso do fundamentalismo religioso, torna-se necessário garantir
que a entidade familiar será protegida de influências externas e poderá moldar as
crianças da forma que melhor lhe convir (sic). (MIGUEL, 2016, p. 616-617).

Ainda segundo o autor, o movimento conservador dota a família de uma autoridade


inquestionável ao passo que almeja o silenciamento das discussões, pautas e agendas
progressistas. Desse modo, muitos imbróglios que se dão nas relações familiares heterossexuais
são neutralizados. Assim, torna-se comum observar discursos que priorizam a instituição
familiar restrita e suas moralidades, questionando veementemente o que denominam ser uma
“inversão dos valores”. Nesse sentido, criam-se inimigos comuns a serem combatidos:
“ideologia de gênero”, feminismos, “doutrinação ideológica”, “marxismo cultural”, direitos
humanos para todos, aborto, etc.

66
Recentemente, o Brasil assistiu a uma reemergência desse discurso que, na verdade,
nunca saiu efetivamente de cena, mas hoje ocupa importantes espaços de poder, seja na política
propriamente dita, mas também na mídia e no campo religioso. As ações políticas e midiáticas
confluem na promoção de vozes e instituições abertamente conservadoras e também
corroboram para a eleição de indivíduos que até então eram excêntricos e sem muita
representatividade no debate público. Com o ganho de visibilidade nos espaços públicos, além
da atuação massiva nas redes, um discurso ultraconservador fortaleceu-se em toda esfera
pública brasileira. Desse modo, sobretudo grande parte dos atores religiosos, em sua grande
maioria cristãos, instauraram um discurso unívoco no intuito de desconstruir as pautas
progressistas que contradizem preceitos morais e religiosos, assim, ancorados principalmente
em fatores biológicos, questionam agendas liberais e construtos científicos.

O antagonismo desenvolvido pela reação conservadora concorre no sentido de


caricaturar e deslegitimar o campo científico e posicionamentos políticos e sociais. Tal
dissensão leva atores e instituições a fortalecerem seus discursos em prol das famílias e da
moral, além dos fortes traços antifeminista e homofóbico. Assim, o discurso conservador
desenvolve-se como um discurso intolerante e, de acordo com Barros (2015),

é, sobretudo, um discurso de sanção aos sujeitos considerados maus cumpridores de


certos contratos sociais: de branqueamento, de pureza da língua, de
heterossexualidade e outros. [...] Os discursos intolerantes são fortemente passionais,
[...] seus sujeitos são sempre sujeitos apaixonados e [...] predominam, nesses
discursos, dois tipos de paixões: as paixões malevolentes (antipatia, ódio, raiva,
xenofobia etc.) ou de querer fazer mal ao sujeito que não cumpriu os acordos sociais
mencionados anteriormente. [...] Em síntese, o discurso intolerante considera o
“diferente” aquele que rompe pactos e acordos sociais, por não ser humano, por ser
contrário à natureza por ser doente e sem ética ou estética, e que, por isso mesmo, é
temido, odiado, sancionado negativamente e punido. (BARROS, 2015, p. 63-65).

Ainda conforme a autora, muitas reações ecoam socialmente como meios de exclusão
e até segregação, assim como ocorrem nas relações de raça, etnia, classes sociais, e
principalmente, nas questões de gênero e sexualidade. Portanto, mediante a retomada
conservadora na sociedade contemporânea, nota-se o crescimento de diversos grupos “em
defesa das crianças e da família”, “pela moral e bons costumes”, “contra a ideologia de gênero
e o marxismo ideológico”, entre outros39.

39
A título de exemplo: Por G1. Brasil assina declaração internacional contra o aborto e a favor do papel da família.
G1, São Paulo, 23 out. 2020. Mundo. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/23/brasil-
assina-declaracao-internacional-contra-o-aborto-e-a-favor-do-papel-da-familia.ghtml. Acesso em: 01 dez. 2020;
PACHECO, Ronilso. Grupos pró-vida e pró-família são grupos de ódio que usam Bíblia como álibi. Uol, Rio de
Janeiro, 18 ago. 2020. Colunas. Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/ronilso-

67
Um dos atores conservadores que ganhou grande expressividade no contexto brasileiro
recente é o ex-deputado e atual presidente Jair Bolsonaro. Em diversos momentos, mesmo antes
de sua eleição à presidência do Brasil, ele já defendia as instituições e valores tradicionais,
como o militarismo e a heteronormatividade, e foi assim, isto é, na defesa dessas agendas, como
argumentam Carvalho (2020), Fiorin (2019) e Piovezani (2019), por exemplo, que abarcou
eleitores e alcançou o cargo exercido atualmente. Nesse sentido, muitos dos seus discursos
endossavam padrões hegemônicos, arranjos familiares, determinadas instituições e práticas
morais. Em discurso durante uma cerimônia na cidade do Rio de Janeiro, o político afirmou
que

(27) “O ideal de servir à Pátria não tem preço. O governo brasileiro está mudando, todos podem sentir.
Hoje temos um governo que valoriza a família, honra os militares, respeita o povo e adora a
Deus”, declarou Bolsonaro. “O Brasil está mudando. Está mudando para melhor. E essa garotada,
esses jovens, que hoje se espalham pelos quatro cantos do nosso país, levarão a esses lugares os
nossos valores, e os nossos sentimentos de patriotismo”, acrescentou o presidente40 (grifos nossos).

Tem-se nesse pronunciamento a materialização do discurso conservador, em defesa da


família — que, vale lembrar, segue um padrão heteronormativo e patriarcal —, das instituições
nacionais (ali representada pelas forças armadas) e religiosas (essencialmente cristãs). Ainda
complementa que a nação “honra os militares, respeita o povo e adora a Deus”, contrapondo
a dimensão da laicidade do Estado democrático, ou seja, sua desassociação de qualquer grupo
religioso. Na sequência do pronunciamento, ele enfatiza que os jovens transmitirão os “nossos”
valores por todo Brasil. Nesse contexto, há uma inscrição ideológica fortemente marcada dos
valores enfatizados pelo presidente e por seus apoiadores, como se houvesse uma univocidade
de valores compartilhados por todos os indivíduos, que, além de engessar padrões, invalidam e
censuram os movimentos sociais e minoritários que, conforme Barros (2015), rompem com os
pactos sociais destes.

Para a sociedade, a hierarquia moral pode parecer imperceptível, entretanto, os efeitos


do processo de hierarquização moral imposto socialmente são visíveis e vivenciados por todos
os indivíduos, como atesta, em consonância com o pensamento de Barros (2015), Jessé Souza
(2019):

pacheco/2020/08/18/grupos-pro-vida-aborto.htm. Acesso em: 10 dez. 2020; PINHO, Márcio; SANTIAGO,


Tatiana. Nova versão da Marcha da Família percorre ruas do Centro de SP. G1, São Paulo, 22 mar. 2014. Notícia.
Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/03/manifestantes-se-reunem-para-nova-versao-da-
marcha-da-familia-em-sp.html. Acesso em: 01 dez. 2020.
40
CHAGAS, Thiago. Bolsonaro diz que seu governo adora a Deus, valoriza a família e respeita o povo. Gospel
Mais, Brasília, 9 dez. 2019. Brasil. Disponível em https://noticias.gospelmais.com.br/bolsonaro-governo-adora-
deus-familia-povo-127541.html. Acesso em: 01 jul. 2020.

68
A separação não só entre povos e países, mas também entre as classes sociais, entre
gêneros e entre as “raças” é construída e passa a ter extraordinária eficácia prática
precisamente por seu conteúdo aparentemente óbvio e irrefletido. Afinal, as classes
superiores são as do espírito, do conhecimento valorizado, enquanto as classes
trabalhadoras são do corpo, do trabalho braçal e muscular que as aproxima dos
animais. O homem é percebido como espírito, em oposição às mulheres, definidas
como afeto. Daí a divisão sexual do trabalho, que as relega ao trabalho invisibilizado
e desvalorizado na casa e no cuidado dos filhos. Nós nunca refletimos acerca dessas
hierarquias, assim como não refletimos sobre o ato de respirar. É isto que as faz tão
poderosas: elas se tornam naturalizadas. Esquecemos que tudo que foi criado por seres
humanos também pode ser refeito por nós. (SOUZA, 2019, p. 22-23).

Em outros termos, o intuito do conservadorismo vai além da ordem tradicional e da


ideologia familista, estes indivíduos pretendem hierarquizar o mundo, de modo que seus meios
se dão de modo mais ou menos claro, porém, seus reflexos são visíveis. Assim, tais hierarquias
são sustentadas e naturalizadas por esse discurso. Ademais, os atores conservadores
arregimentam seus discursos a fim de agredir seus opositores moral e intelectualmente, o que é
primordial para obter o apoio das camadas populares (JUNQUEIRA, 2018, p. 459).

2. Uma reorganização conservadora na sociedade contemporânea

Em meio a questionamentos e embates sobre as construções históricas e restrições


impostas por gênero, raça e classe social, ao longo do século XX e meados do século XXI, a
articulação das posições progressistas pluralizou em toda conjuntura social, assim, além de
alcançar esferas públicas e legislativas, colocou em xeque agendas hegemônicas naturalizadas.
Entretanto, não tardou para que as democracias contemporâneas despertassem reações
conservadoras em prol de uma concepção familiar amparada por dogmas cristãos, ancorada
principalmente nos aspectos biológicos, como vimos anteriormente a respeito do surgimento
do movimento conservador (vide BOBBIO et al, 1995).

Atualmente, a recusa de uma sociedade efetivamente plural é permeada por estruturas


de controle e privilégios. Nesse sentido, muitas ações são promovidas com o intuito de barrarem
as referências a gênero de diferentes espaços, especialmente nos espaços educacionais.
Conforme Biroli (2018a),

O que está em jogo é uma estrutura de privilégios de que se beneficiam homens


brancos, adultos, dos estratos de maior renda da sociedade. Para as demais
pessoas, faz pouco sentido defender uma definição de família que as exclui e pode
comprometer sua integridade física e psíquica, além de impor às mulheres a condição
de cidadãs menores, porque subordinadas, na lei ou na prática, à autoridade masculina.
(BIROLI, 2018a, p. 131, grifos nossos).

69
Conforme a autora, há uma construção histórica e social que regula as relações de
gênero sustentada, principalmente, em desigualdade e concentração de poder. Desse modo,
regulam-se os papéis e das relações de gênero na sociedade, ao passo que a norma heterossexual
estabelece o arranjo familiar corrente como um fator fulcral na concepção das relações de
classe, perpassando o capital cultural, a esfera educacional e as redes de relações sociais.

Donald Trump. Boris Johnson e Theresa May. Jair Bolsonaro. Andrzej Duda,
Benjamin Netanyahu e Viktor Orbán. Em todo o mundo, o conservadorismo ressurgiu,
principalmente na América Latina, como reação à chamada Onda Rosa, ou seja, países nos
quais partidos de esquerda estiveram à frente de seus governos e, assim, puderam trabalhar na
implementação das agendas progressistas. Entretanto, em todo o cenário global, as políticas
liberais provocaram reações conservadoras nas últimas décadas, dessa forma, as populações
descontentes se movimentaram e voltaram-se para partidos excêntricos e líderes políticos com
forte apelo ao conservadorismo que as representassem na esfera política.

Com o avanço das políticas progressistas e como forma de implementação das


democracias modernas, as sociedades adquiriram maior complexidade de crenças e valores,
possibilitando que os indivíduos pudessem atuar como agentes racionais, determinando seus
preceitos em normas e instituições, sem coerções de cor, classe e gênero. Na
contemporaneidade, as agendas com um viés liberal para as questões minoritárias e sociais
pautaram-se na autonomia e na liberdade individual, desde a desconstrução de arbitrariedades
meritocráticas, até o alicerce de instituições com potencial de neutralizar contingências
impostas por relações de controle e poder. Nesse contexto, com o desígnio de “igual liberdade”,
o liberalismo igualitário desenvolveu a ideia do Estado de bem-estar social — Welfare State,
que seria um regime no qual o Estado controlaria os meios de produção, concomitantemente
mantendo as propriedades privadas e impossibilitando que uma pequena parcela da sociedade
mantivesse o controle social e, de forma indireta, o monopólio político.

Com efeito, a implementação do Estado de bem-estar social provocou reações,


questionando a capacidade do Estado em promover as ações que corroborassem para liberdade
de escolha individual. Dessarte, as elites tradicionais e reguladoras do poder, a partir de
retomada conservadora, mediante reações neoliberais, retomaram uma dinâmica de mercado
que beneficia quem já possui recursos a fim de regular o espaço social e os termos em que isso
se dá. Esse sistema, além de reforçar meritocracias daqueles que dispõem privilégios, posiciona
normas e recursos públicos em favor destes e resulta na exploração do trabalho, decorrendo em
formas desiguais de inclusão em toda esfera pública. Portanto, esse processo suscita a ideologia

70
familista que delega responsabilidades a núcleos privados, corrobora para divisão convencional
de tarefas e sexual do trabalho, afiançando autoridade à figura paterna e, de modo
institucionalizado, a desigualdade entre os diversos arranjos familiares.

Pode-se compreender que surge um aglomerado com pautas ideológicas diversificadas


que converge ideais reacionários, conservadores e do libertarianismo. Os principais motes
desses grupos são, além do rompimento com as emergentes agendas liberais implementadas ao
longo dos anos anteriores, os ataques ao Estado - este que tem por função certificar os direitos
civis e os direitos humanos aos sujeitos que divergem das normas morais e perspectivas
heterossexuais que regulam corpos e afetos. Nesse contexto, muitas das conquistas dos
movimentos sociais, principalmente do século XX, são colocadas em xeque, como a Declaração
Internacional dos Direitos Humanos, os direitos das mulheres, direitos trabalhistas, entre outros.
Conforme Carapanã (2018), a “essas ideias somam-se outras que remetem à apologia do
eugenismo e da segregação racial que fazem com que a nova direita flerte, de maneira
consciente ou inconsciente, com construtos que remetem ao nazismo e ao fascismo” (p. 34).
Isso não implica que todos os indivíduos compactuarão com essas ideias, entretanto, elas
circularão por esses espaços, sem oposição ou questionamento, amparadas pelo pretexto da
liberdade de expressão.

Consoante Safatle (2010), em reflexão sobre o período ditatorial brasileiro,

No cerne de todo totalitarismo, haverá sempre a operação sistemática de retirar o


nome daquele que a mim se opõe, de transformá‑ lo em um inominável cuja voz, cuja
demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referência alguma. Este
inominável pode, inclusive, receber, não um nome, mas uma espécie de “designação
impronunciável” que visa isolá‑ lo em um isolamento sem retorno. “Subversivo”,
“terrorista”. (SAFATLE, 2010, p. 238).

Nota-se que as elites conservadoras e antidemocráticas agem de forma orquestrada


com atitudes que flertam com movimentos totalitaristas, como foi a ditadura militar no Brasil.
Conforme o filósofo brasileiro, os regimes totalitários buscam silenciar seus opositores,
relegados até como terroristas, assim, hierarquizam-se os indivíduos e o poder público se omite
no combate às violências que ofendem minorias. De forma análoga, as reações conservadoras
recebem como recado que determinadas práticas são validadas.

A cada dia é possível observar a retomada e o fortalecimento dos discursos


conservadores e totalitaristas em camadas reacionárias e conservadoras da sociedade. A título
de ilustração, seguem abaixo dois cartazes que foram fotografados durante manifestações
populares que intentavam a deposição da Presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff.

71
Em seguida, a foto de dois candidatos ao cargo de deputado federal pelo PSL (Partido Social
Liberal) durante a campanha em 2018 em ato que destruíram uma placa em homenagem a ex-
vereadora Marielle Franco.

(Disponível em: https://www.sensacionalista.com.br/2015/08/16/dez-cartazes-das-manifestacoes-anti-governo-


em-que-voce-nao-vai-acreditar/. Acesso em 30 jun. 2020)

(Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/candidatos-do-psl-destroem-homenagem-a-marielle/. Acesso


em 30 jun. 2020)

O assassinato da vereadora da cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL Marielle Franco e


o processo de deposição da Presidenta Dilma Rousseff foram dois fatos que marcaram os
movimentos democráticos, dentre eles o feminismo, e estremeceram as conquistas destes. As
reações conservadoras, a partir dos atos totalitaristas, buscam o silenciamento dos seus
opositores. Nas primeiras imagens, nota-se que as senhoras que ostentam os cartazes endossam
os mecanismos de tortura (DOI-CODI) usados para repressão dos inimigos internos ou até a
morte coletiva destes em 1964, ano que se deu o golpe militar no Brasil.

72
Tendo em vista o contexto em que os exemplos se inscrevem, observa-se que as
alianças conservadoras, além de expressar sua inquietação com as agendas progressistas e os
moralismos, legitimam a sociedade capitalista e desigual; assim, muitos conflitos estão
justamente ligados ao controle do poder institucional. Para tanto, atores e instituições
conservadores designam esferas liberais, socialistas e até mesmo comunistas como “de
esquerda”, desse modo, indica-se um inimigo comum, mesmo que em sua constituição e defesa
de pautas eles sejam diferentes. De acordo com Almeida (2018),

para os neoconservadores, a ruptura com as bases que permitiram a consolidação da


sociedade ocidental fez com que fossem apagadas as diferenças naturais existentes
entre os indivíduos. Diferenças de classe, entre os sexos e até mesmo as raciais sempre
fizeram parte da ordem social; abandonar essas diferenças em prol de uma ilusória
“sociedade sem classes” levaria a uma degradação cultural sem precedentes. A prova
disso estaria, segundo o pensamento neoconservador, na “infestação” de hippies,
sindicalistas, estudantes, comunistas, negros e feministas, grupos que ganharam força
em razão da permissividade e do assistencialismo estatal. Assim, a pauta
neoconservadora é basicamente a de restauração da autoridade da lei, do
restabelecimento da ordem e da implantação de um Estado mínimo que não embarace
a liberdade individual e a livre iniciativa. (ALMEIDA, 2018, p. 28).

Em virtude das reações conservadoras, para os grupos minoritários, defender


democraticamente o Estado de direito torna-se um meio de resguardar a vida de seus
componentes, certificar a própria vivência e, sobretudo, posicionar-se nos embates
institucionais na desconstrução hegemônica e defesa dos valores universais. Embora os
conservadores reforcem a ideia da “liberdade individual”, seus discursos são ancorados na
defesa do arranjo familiar heterossexual, intolerância com as minorias opositoras e o
individualismo, essencialmente nas questões econômicas capitalistas e de regulação do poder.
Desse modo, a retórica será sempre em transformar mulheres, homossexuais, negros,
mulçumanos, venezuelanos, socialistas, comunistas, liberais e todas minorias em inimigos do
Estado e das instituições hegemônicas, assim, invocar os mecanismos de repressão do Estado.
Assim, há a construção de um nós versus eles.

O que pode explicar as reações conservadoras é a perda de privilégios, de supremacia


e as formas institucionalizadas de poder. Biroli (2018b) afirma que

A reação conservadora tem elementos transnacionais, não apenas porque a Igreja


Católica tem capitaneado a ofensiva contra a agenda da igualdade de gênero e da
diversidade sexual, mas também porque a insegurança decorrente da fragilização dos
sistemas conhecidos de proteção parece abrir oportunidades para que, mais uma vez,
se convoque “a família” contra o fantasma da subversão moral. (BIROLI, 2018b, p.
87)

73
A reação às agendas progressistas evidencia a fragilidade das instituições religiosas e
familiares. Os movimentos feministas e LGBTQIA+ têm se posicionado no intento de
desconstruir os fantasmas morais e desigualdades institucionalizadas. Todavia, a convergência
dos grupos conservadores sociais, nacionalistas étnicos e capitalistas ganhou amplitude e
notoriedade por conta da identificação popular, logo, opuseram-se às democracias liberais
progressistas. Portanto, esses grupos, de forma mais ou menos orquestrada, buscam a
manutenção e a certificação de sua soberania cultural (educação, família e religião) e capitalista,
por meio da acumulação de capital. Dessa maneira, a produção de um inimigo comum é
primordial para legitimação dos aparelhos de repressão do Estado em nome da ordem, da moral,
da familismo e da paz.

No Brasil, a reação neoconservadora está atrelada aos movimentos ocorridos em junho


de 2013 que culminaram na deposição da presidenta Dilma Rousseff. Inicialmente, nas cidades
de São Paulo e do Rio de Janeiro, os movimentos tinham como pauta o passe livre estudantil e
a redução da tarifa, logo após a inquietação tomou maior proporção, indo desde a agenda inicial
até manifestações com teor democrático e político. Enquanto, de um lado, havia pessoas se
manifestando contra a Copa do Mundo e exigindo mais recursos para as áreas da Educação,
Saúde, Segurança, etc., em contrapartida, havia muitos manifestantes com pautas genéricas,
como a corrupção, PT, as agendas liberais do governo, Lula e Dilma. Assim, de forma mais ou
menos intencional, atores e partidos políticos, além da esfera midiática, agiram de modo a
fortalecer as manifestações e estabelecer uma reação conservadora. Em seu processo final, estes
movimentos obtiveram uma nova configuração, as camadas populares indignadas já não se
incluíam e os grupos eram compostos pela classe média alta que se denominavam “cidadãos de
bem” e estariam ali no combate ao “perigo comunista”.

Todo o processo reacionário acarretou a retomada do poder por grupos de direita


conservadora que fortaleceram normas, valores e práticas de organização das instituições
sociais e discursivas a partir do uso massivo de Fake News que, principalmente, agrediram seus
opositores4142. Evidenciando o processo reacionário às políticas liberais dos anos anteriores, em
2018, foi eleito para a presidência do Brasil um capitão aposentado do exército brasileiro tendo

41
BENITES, Afonso. A máquina de ‘fake news’ nos grupos a favor de Bolsonaro no WhatsApp. El Pais. Brasília.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/26/politica/1537997311_859341.html. Acesso em: 29 jun.
2021.
42
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Carta Capital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/grupos-evangelicos-e-olavistas-ajudam-
em-fake-news-de-bolsonaro-sobre-esquerda-e-pedofilia/. Acesso em: 29 jun. 2021.

74
como vice um general. Assim, a luta contra a “corrupção” começa a tomar corpo, ocasionando
o desmonte das políticas sociais conquistadas ao longo dos últimos anos. Com isso, é possível
depreender que os grupos de manifestantes compostos pelas elites almejavam a retomada dos
padrões sociais de controle e poder, desse modo, é comum observar os discursos que fazem
apelo à moral, ao arranjo familiar tradicional, aos bons costumes, aos preceitos religiosos, de
modo geral, ao “cidadão de bem” (FIGUEIRA, 2019).

A designação “cidadão de bem” é tendenciosa, ao passo que, se existem cidadãos que


são de bem, logo, por contraste, existem seus opositores que são “do mal”. Mediante essa
premissa, os grupos conservadores tecem sua argumentação em defesa das pautas tradicionais,
embasadas, essencialmente, pelo fundamentalismo religioso. A convergência de políticos
conservadores que de forma veemente defendem a “agenda moral” e líderes religiosos de
grande expressividade foi um passo importante para que os grupos reacionários
(re)conquistassem uma parte considerável de seus apoiadores.

(Disponível em: https://noticias.uol.com.br/album/2013/06/05/manifestacao-evangelica-reune-


multidao-em-frente-ao-congresso.htm?foto=5. Acesso em 01 jul. 2020)

A imagem acima foi feita em uma manifestação, ocorrida em 2013 em um gramado


próximo ao Congresso Nacional em Brasília (DF), conduzida por líderes religiosos e alguns
atores políticos conservadores. Na imagem, além das bandeiras nacionais, observa-se a
presença de cinco cartazes. Três deles trazem como pauta a família, referida como um projeto
de Deus ou como um arranjo a partir de termos biogenéticos. Nota-se que ao retratar a família,
existe a imagem de dois casais homoafetivos que foram anuladas com um “x” na cor vermelha
no sentido de eliminação ou proibição. Os outros dois cartazes apresentam pautas diferentes,
sendo um contrário ao aborto, e o outro declara apoio a líderes políticos religiosos (Silas
Malafaia, Marco Feliciano). Portanto, a convergência de pautas conservadoras diversas e

75
religiosas, e diretamente contrárias às agendas progressistas, em aliança com emissoras de
televisão e o poder político, tem crescido de forma exponencial, assim, “constitui-se em um
risco à democracia, aos direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana” (VIEIRA,
2018, p. 91).

O crescimento dos movimentos fundamentalistas se deu a partir da década de 1990.


Nesse período, diversas igrejas cristãs começaram a investir em candidaturas de alguns líderes
e pastores, que logo foram eleitos e passaram constituir uma “bancada evangélica” nos espaços
políticos, esta que logo pôde contar com a simpatia dos integrantes mais conservadores da Igreja
Católica. Dessa forma, de acordo com o cientista político Luis Felipe Miguel (2018), o
fundamentalismo religioso

se define pela percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer
possibilidade de debate. Ativos na oposição ao direito ao aborto, a compreensões
inclusivas da entidade familiar e a políticas de combate à homofobia, entre outros
temas, os parlamentares fundamentalistas se aliam a diferentes forças conservadoras
no Congresso, numa ação conjunta que fortalece a todos. Fora do Congresso, pastores
com atuação política e forte presença nas redes sociais, como Silas Malafaia, dão voz
à sua pauta. A menção a Malafaia é útil para indicar que o fundamentalismo não
significa necessariamente fanatismo. É um discurso utilizado de acordo com o
senso de oportunidade de seus líderes: contribui para manter o rebanho
disciplinado, imuniza-o diante de discursos contraditórios e fornece aos chefes
um capital importante, isto é, uma base popular, com o qual eles negociam.
(MIGUEL, 2018, p. 21, grifo nosso).

O primeiro aspecto interessante a analisar é a anulação de qualquer possibilidade de


discussão: como foi observado na imagem acima, com os sentidos atribuídos ao sexo biológico,
a noção de família é engendrada pela norma heterossexual e legitimada pelo divino, logo,
qualquer um que viole a família “cristã” não é digno de legitimidade. Como menciona o autor,
a oposição constituída pelo grupo fundamentalista, além de fortalecer seus atores no cenário
sociopolítico, impõe diversos obstáculos, além dos já existentes, aos movimentos progressistas
em geral e suas conquistas. Com o princípio da verdade absoluta e inquestionável, de modo
produtivo, a convergência reacionária fundamentalista tem barrado diversos projetos no
Congresso Nacional até hoje, principalmente aqueles que concernem questões de gênero e
diretos minoritários.

Em seguida, é importante observar que o movimento fundamentalista dispõe de uma


perspectiva heteronormativa, que valoriza a concepção patriarcal familiar e reproduz o
machismo na esfera social, desse modo, engessando padrões valorizados e aceitáveis, a partir
de um sistema de crença e perspectivas morais específicas. No intento de reproduzir

76
moralidades e disseminar o pânico moral, este movimento inviabiliza o convívio entre
indivíduos diferentes, o que seria próprio das democracias contemporâneas. Para Vieira (2018),
tal atitude, além de diretamente disseminar a intolerância, estimula extremismos. De acordo
com o autor,

O fundamentalismo religioso cristão trabalha com o conceito de verdade absoluta,


inquestionável, eterna, imutável e para além da história. Essa verdade a respeito
de Deus se expressa na Bíblia Sagrada. A partir da formulação “está escrito”, constrói-
se uma visão de mundo, um modelo comportamental e uma forma de lidar com a
sociedade. [...] Em nome do “está escrito” ou do isolamento dos textos de seus
contextos, atrocidades já foram cometidas ao longo da história: mulheres nas
fogueiras da Inquisição; cruzadas sanguinárias em perspectiva de conquista;
genocídio de povos indígenas; escravidão do povo negro; construção de ambientes
asfixiantes para populações LGBT e tantas outras realidades insensíveis à vida e à
dignidade humana. [...] Daí se extrai uma doutrina percebida como a vontade de
Deus, a partir da qual o mundo deve ser pensado e a intervenção na sociedade deve
ser feita. É preciso notar que, dentro dessa perspectiva, a doutrina não é passível de
questionamento, pois é tida como a expressão da vontade de Deus. Questioná-la seria
questionar o próprio Deus. (VIEIRA, 2018, p. 92, grifos nossos).

Conforme postulado, os movimentos fundamentalistas se estabelecem como verdade


única e inquestionável, dessa maneira, tal abordagem leva os sujeitos a produzirem discursos
extremistas e praticar diversas barbáries em nome de preceitos religiosos. Um fato que
exemplifica a atuação de líderes conservadores fundamentalistas foi a tramitação da PDC
(Projeto de Decreto Administrativo) 234/11, conhecido também como PL da “cura gay”. O
projeto permitiria que psicólogos oferecessem tratamentos, por meio de terapias clínicas e
religiosas de reorientação sexual, que eliminaria homossexualidade do indivíduo que assim
passaria a ser heterossexual. A bancada evangélica que apresentou o projeto alegava que a
homossexualidade era causadora de diversos transtornos psicológicos aos indivíduos e que a
proposta de “cura” tinha fundamentação científica, entretanto não foi comprovado43. Embora
esse projeto, com base em uma doutrina religiosa e que despreza a laicidade do Estado, tenha
sido um fato de grande repercussão e que em seguida foi arquivado44, a partir de uma retomada
conservadora, diversas outras ações têm sido tomadas em sentido de dotar o Estado de uma
moral religiosa e de heteronorma patriarcal. Nesse contexto, vale ressaltar que, em julho de
2020, o governo brasileiro optou por abster-se em uma votação pelos direitos das mulheres e
meninas na ONU, aproximando de países chamados de ultraconservadores e retrógrados nas

43
Na Câmara, projeto de “cura gay” segue tramitando. Carta Capital, São Paulo, 19 set. 2017. Política. Disponível
em: https://www.cartacapital.com.br/politica/na-camara-projeto-de-cura-gay-segue-tramitando/. Acesso em: 22
jul. 2020.
44
TRIBOLI, Pierre. Câmara arquiva projeto sobre tratamento da homossexualidade. Câmara Notícias, Brasília,
02 jul. 2013. Direitos Humanos. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/408434-camara-arquiva-
projeto-sobre-tratamento-da-homossexualidade/. Acesso em: 22 jul. 2020.

77
políticas das mulheres e da população LGBTQIA+, como Egito, Líbia, Paquistão, Iraque e
Afeganistão45.

Na perspectiva reacionária conservadora, o arranjo familiar tradicional seria ameaçado


diretamente pela “politização da sexualidade e [...] conquistas dos movimentos feministas e
LGBTQIA+, que andariam de mãos dadas na subversão da ordem moral” (BIROLI, 2018b, p.
85). Assim sendo, os atores desta vertente contestam as transformações profundas dos papéis
sociais de gênero, tanto de homens quanto de mulheres, as alterações nos padrões conjugais,
tendo em vista da pluralidade de arranjos familiares, e, por fim, a ordem moral e social que
permeia a sociedade. Então, principalmente as políticas de igualdade de gênero e a defesa pela
promoção do debate de gênero nas escolas têm sofrido ataques constantes nas casas legislativas
brasileiras, tanto na esfera nacional quanto nas estaduais e municipais.

Os movimentos conservadores e/ou reacionários, como já sugerido pelos termos,


visam a conservação dos seus processos de construção social e a modificação do sistema que
mexeu diretamente com a estrutura destes. Para Jessé Souza (2019), “a demonização da política
e do Estado e as estigmatização das classes populares constituem o alfa e o ômega do
conservadorismo da sociedade brasileira, cevado midiaticamente todos os dias desde então” (p.
144). Enfim, a condenação moral e a marginalização das políticas liberais por atores políticos
em convergência com a ação midiática foram cruciais no processo reacionário, constituindo,
desta maneira, uma nova direita, que, apesar de suas contradições, consegue se consolidar no
cenário político nacional, em consonância com os interesses de outros grupos:

Para os neoconservadores, a crise econômica que atingiu o capitalismo no final dos


anos 1960 era antes de tudo uma crise moral, ocasionada pelo abandono dos valores
tradicionais que governam a sociedade desde os primórdios da civilização, feito em
nome de um igualitarismo artificialmente criado pela intervenção estatal. A crise,
conforme esta leitura de mundo, não era do Welfare State; para os novos
conservadores o intervencionismo característico do Welfare State era o principal
motivo da crise (ALMEIDA, 2018, p. 28).

O movimento reacionário conservador, portanto, surge como resposta à crise


econômica. Os discursos dos atores têm sido de que o abandono ao sistema de crenças e
perspectivas morais tradicionais ocasionaram o declínio financeiro. Assim, o processo de
dissolução das convenções morais e familistas afetariam diretamente o capitalismo. Partindo

45
MANEO, Adriano. Brasil se abstém em votação na ONU contra discriminação de mulheres e meninas. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 2020. Diplomacia Brasileira. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/07/brasil-se-abstem-em-votacao-na-onu-contra-discriminacao-de-
mulheres-e-meninas.shtml. Acesso em: 22 jul. 2020.

78
da frase célebre de Rui Barbosa que “a família é a célula mater da sociedade”, uma vez que
esse arranjo familiar tradicional é rompido por políticas pela pluralidade e diversidade social,
toda construção é colocada em xeque. Assim, observa-se que a reação conservadora se dá a
partir do momento que houve uma recessão econômica e, para tanto, fez-se necessário
regulação e intervenção ideológica, retomando configurações sociais superadas de caráter
autoritário e coercitivo.

É dentro desse cenário que diversos projetos têm avançado nas casas legislativas
brasileiras. O fazer político e o fundamentalismo religioso têm convergido em prol de valores
individuais, rompendo com o ciclo democrático e o Estado laico e de direito. Para tanto, a
agenda conservadora tem dado origem a movimentos (Escola sem partido, Movimento Brasil
Livre, família Bolsonaro, entre outros) e possibilitado a emergência de atores que compartilham
interesses e arrebanham seguidores/eleitores a cada dia. Por conseguinte, as estruturas
opressoras de gênero, classe social e raça são retroalimentadas de modo que formas de
violência, por não compor o cerne das discussões e pautas, são viabilizadas.

79
CONCLUSÃO
“Os discursos não são fechados em si mesmos.”
(Alice Krieg-Planque)

Esta pesquisa reconhece que o sintagma “ideologia de gênero” dispõe das quatros
propriedades de uma fórmula discursiva. Quanto ao seu caráter cristalizado que pode ser uma
unidade simples ou complexa, observa-se o sintagma é caracterizado como uma unidade
complexa que se cristalizou nos últimos anos devido a tensão entre os campos educional e
político, como foi identificada sua ocorrência em contextos diversos como, por exemplo, leis,
notícias, artigos, cartilhas, etc. É importante ressaltar que, apesar de possuir uma forte
cristalização, existem variantes, principalmente por parte dos sujeitos que negam o uso da
fórmula e seu desígnio, como foi observado no corpus, sendo sua variação mais recorrente
“estudos de gênero”. Em relação a sua dimensão discursiva, identificamos que, com a ascensão
política e social de uma ala conservadora que atribuiu a formulação aos estudos de gênero, o
sintagma ganhou expressividade no espaço público, a partir da publicação dos Planos Nacionais
de Educação, dessa forma, fazendo com que seus usos, ancorados em uma determinada
temporalidade e atralados a atores sociais específicos, endossassem sua circulação na esfera
discursiva. Constatamos, também, que “Ideologia de gênero” dispõe do funcionamento de
referente social, tornando-se passagem obrigatória dos discursos em um determinado espaço
público, podendo ser defendida ou negada pelos locutores em discursos que não se anulam,
nota-se indícios desse acontecimento pela adesão da fórmula “ideologia de gênero” como
slogan de campanha nas eleições de 2018 no Brasil, extrapolando o contexto em que surgiu.
Fortemente marcado, o caráter polêmico é a propriedade mais forte desta formulação, assim,
sua circulação se dá de forma que diferentes sujeitos, inscritos em formações discursivas
distintas lhe conferem diferentes sentidos, assegurando uma disputado pelo sentido de
“ideologia de gênero”, logo, legitimado por diversos posicionamentos favoráveis e rechaçado
por opositores que negam a existência deste.

Nesse contexto, a partir da análise das quatros propriedades constitutivas de uma


fórmula discursiva e que conferem o estatuto formulaico à uma “palavra”, é possível reconhecer
que em “ideologia de gênero” todas as propriedades são bem definidas, ressaltando o forte
caráter polêmico no entorno da fórmula e disputa constante pelo seu sentido. Em uma dado
momento torna-se conhecida por todo e tem uma circulação massiva, mesmo havendo
divergências quanto ao seu significado e significante. Há uma disputa constante pelo sintagma

80
e suas variações, e também pelo sentido, por aquilo que ele designa, observado por meio dos
enunciados que o empregam e seus deslocamentos. Dessa forma, há uma instabilidade do
sentidos, e por vezes do próprio sintagma, pois, em determinados contextos e na relação
interdiscursiva, há mudanças de sentido, conforme o seu uso. Logo, o que é “ideologia de
gênero” para os reacionários conservadores não tem o mesmo sentido para os sujeitos
progressistas, pois, conforme Krieg-Planque (2018), “ainda que lancem mão de uma mesma
palavra, selecionam dela diferentes traços de significação” (p. 105).

De toda forma, o interesse pelo estudo de “ideologia de gênero” vem pela inquietação
de observar os efeitos de sentido produzido, considerando os contextos de uso, pricipalmente
no campo educacional. Por meio da circulação do sintagma, foi possível observar diversos
ataques aos currículos escolares e à liberdade docente. A entrada no corpus a partir da noção de
fórmula discursiva possibilitou assimilar os modos de produção social com a reemergência do
conservadorismo na contemporaneidade. A partir da pesquisa com este sintagma e analisando
discursivamente conforme os aportes da AD de orientação francesa, foi possível indentificar as
mudanças de sentido conforme seus usos, evidenciando questões sociopolíticas em seus
contextos de uso.

Pudemos perceber que o conservadorismo que alicerça a circulação de “ideologia de


gênero” faz o apelo a manutenção da moral, valendo-se da instauração do pânico para
mobilização da ideia de existência de grupos que pretendem acabar com a instituição familiar
oriunda do casamento heterossexual e com a distinção entre homem e mulher. Conforme Jessé
de Souza (2019), o que há na sociedade brasileira é uma conduta imoral e mesquinha, pois ao
passo demonstra indignação com determinadas questões como, por exemplo, as de gênero, por
outro lado adotam uma postura superficial e desumana no trato com a grande maioria pobre da
população. Assim,

O moralismo estreito para inglês ver e o ódio secular às classes populares parece-me
a mais brasileira de todas as nossas singularidades sociais. Como os preconceitos são
sociais, e não individuais como somos inclinados a pensar, todas as classes superiores
no Brasil partilham dessa visão. [...] Mais uma vez, as ideias, valores, os preconceitos
são todos sociais, e não existe nada de individual neles. Mesmo quem critica os
preconceitos os tem dentro de si, como qualquer outra pessoa criada no ambiente
social (SOUZA, 2019, p. 181).

Nesse contexto, cabe ressaltar que o corpus reunidos nesta pesquisa estava ligado às
questões educacionais, entretanto, numa perspectiva não restritiva, foi possível observar a
reemergência do discurso conservador, principalmente no cenário brasileiro, estando atrelada a
retomada da (extrema) direita brasileira, após governos progressistas. As direitas, portanto,

81
principalmente após o processo que desencadeou na deposição da presidenta Dilma Roussef,
notaram que havia um cenário propício para a radicalização do seu discurso. Uma fusão entre
religião e política resultou no fundamentalismo político-religioso que, além de anular qualquer
possibilidade de debate, buscaram a instauração de uma agenda moral com pautas como as
concepções inclusivas e diferentes arranjos de família, aborto, combate à homofobia e ao
racismo, entre outros. Com grande força nas redes sociais, o novo conservadorismo, liderado
por figurões políticos e líderes religiosos espetaculosos, ganha notoriedade e instauram lutas
diversas contra a “ideologia de gênero”, o “marxismo ideológico”, a “ditadura comunista gay”,
entre outros. Assim, quando a nova direita conservadora assume a presidência, aqueles que
comungam com valores diferentes destes são transformados em inimigos do Estado.

Dessa maneira, é possível afirmar que o estudo da fórmula discursiva “ideologia de


gênero” engendrada por um movimento conservador trouxe uma percepção da organização
discursiva de determinadas instituições e atores sociais, principalmente no que tange o contexto
educacional. Com o estudo do sintagma, do seu contexto e dispersão foi possível perceber como
a produção de enunciados tem se dado para atender demandas estratégicas de controle social
diante de uma sociedade machista e patriarcal com estruturas para favorecerem determinados
grupos hegemônicos em detrimentos de outros, particularmente os aqueles minoritários. Grupos
estes que acumulam saberes históricos e revoltas sociais e que, assim, constroem suas
subjetividades por meio das práticas de resistência.

82
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