5 A Argumentação Oral

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

DOI: 10.5433/2237-4876.

2023v26n1p66

Isabel Cristina Michelan de AZEVEDO*

* Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo - USP (2009). Professora Doutora Adjunta da Universidade
Federal de Sergipe - UFS. Contato: [email protected]

Resumo:
Este artigo está vinculado às pesquisas realizadas no âmbito do Mestrado Profissional em
Letras e objetiva discutir como aspectos vinculados à oralidade, identificados em dois vídeos
de divulgação científica em circulação no YouTubeBR, produzidos em torno do tema fake
news, estão articulados a outras semioses na composição de opiniões que visam à adesão de
adolescentes e jovens às ideias veiculadas em dois diferentes canais. Com base em conceitos do
campo da conversação e da linguística textual, é proposto um procedimento metodológico que
orienta a compor análises da oralidade combinadas com a complementaridade intersemiótica
de materialidades multimodais. Os resultados apontam que acompanhar a organização do
fluxo e tópico discursivo colabora com a compreensão das operações de filtragem e da
saliência, ambas associadas às características próprias de produções audiovisuais, além de
registrar o tipo de raciocínio privilegiado em cada uma. Entende-se que a identificação desses
recursos linguístico-discursivos pode servir de referência para a composição de práticas
pedagógicas voltadas à compreensão da argumentação oral.

Palavras-chave:
Oralidade. Argumentação multimodal. Opinião.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023

Recebido em: 11/01/2023


Aceito em: 21/02/2023
A Argumentação Oral em Gênero de Divulgação
Científica – Análise Intersemiótica de
Materiais Multimodais

Isabel Cristina Michelan de Azevedo

Introdução

Desde o início do século XXI, a divulgação científica tem se expandido como uma prática discursiva
cada vez mais presente na sociedade globalizada, sobretudo com a facilidade de circulação no espaço da internet.
Apesar de sempre ter sido difícil caracterizar esse gênero discursivo, uma vez que se trata de um “discurso
segundo – derivado do científico –” (GRILLO, 2008, p. 1), a crescente produção desse gênero tem provocado
distintas reflexões entre professores e profissionais de diferentes áreas.
No Brasil, por aproximadamente quarenta anos, o jornalismo científico define que a divulgação
científica “compreende a utilização de recursos, técnicas e processos para a veiculação de informações científicas
e tecnológicas ao público em geral” (BUENO, 1985, p. 1421). Nesse sentido, esse tipo de jornalismo se associa
tanto ao campo midiático – como fonte de informação para o público em geral – quanto ao campo educacional
– como se vê pelo seu uso em livros didáticos (NASCIMENTO, 2005), em aulas de ciências (FERREIRA;
QUEIROZ, 2012) e em cursos de extensão para não especialistas, sobretudo com a larga frequência desse tipo
de curso na rede social YouTube (REYES; VAZQUEZ, 2020).
Embora os textos de divulgação científica estejam recebendo particular atenção em função da mediação
que o jornalismo oferece aos assuntos acadêmicos e científicos, ainda carecem análises que possibilitem a
discussão em torno do papel da oralidade e de outros recursos semióticos na constituição desse gênero discursivo.
Assim, neste artigo, é proposta uma tentativa inicial de descrição e análise de materiais produzidos com a
finalidade de orientar adolescentes e jovens. Isso porque se torna necessária a fundamentação de professores
para que possam formar os estudantes a compreender as informações veiculadas em redes sociais.
Entende-se ainda que a descrição e interpretação de artigos de divulgação científica que circulam
livremente na internet se justifica por pelo menos três motivos, que serão inter-relacionados ao longo do texto:

a. como gênero do discurso, o artigo de divulgação científica, é “relativamente estável” (BAKHTIN,


2016); manifesta tensões entre as forças de estabilização das ideologias e as forças de transformação
da vida, que são sempre historicamente marcadas e únicas (FARACO, 2009); tem tido sua
construção composicional e seu estilo profundamente modificados em função dos variados
recursos semióticos disponíveis nos meios digitais;
b. por se reconhecer que o ensino da modalidade oral da língua precisa ser ampliado nas escolas
(DOLZ; SCHNEUWLY; HALLER, 2004) e que há falta de clareza por parte de alguns professores
de educação básica quanto às significações possíveis dos aspectos linguísticos, extralinguísticos,
paralinguísticos e cinésicos, que constituem a língua falada (GALVÃO; AZEVEDO, 2015), os
estudos relativos ao trabalho com oralidade no ensino de língua materna (FÁVERO; ANDRADE;
AQUINO, 1999; FORTE-FERREIRA; SANTOS; NORONHA, 2022; MAGALHÃES, 2006)
e as descrições e análises dos gêneros orais existentes e emergentes são necessárias a fim de
colaborar com as práticas de ensino e aprendizagem;
c. a discussão de temas polêmicos em artigo de divulgação científica incentiva os produtores a
assumirem um perfil cada vez mais opinativo, aproximando esse gênero de um artigo de opinião;

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 67


por isso, além de expor a temática em discussão, o material declara uma posição axiológica,
portanto discursiva e ideológica, em relação a eles (COSTA, 2014). Ocorre, assim, não apenas
a exposição e explicação de conceitos, como também a interpretação dos impactos sociais pelo
responsável pelo canal no YouTube ou pela discussão apresentada ao público.

Para discutir essas amplas questões em um artigo de curta extensão, optou-se por organizar este texto
em três partes, antes das considerações finais: 1. descrever, breve e sinteticamente, o gênero artigo de divulgação
científica, produzido para adolescentes e jovens, com base em exemplares disponíveis na rede social YouTubeBR;
2. demarcar os diferentes aspectos que são articulados por meio de uma complementaridade intersemiótica
(ROYCE, 2007) a fim de construir um discurso explicativo-argumentativo (GRÁCIO, 2014), bem como ilustrar
um modelo de procedimento analítico; 3. selecionar pontos que podem colaborar com o trabalho do professor
da educação básica que se dedique a ensinar a linguagem oral na escola.

1. Peculiaridades do Artigo de Divulgação Científica em Circulação no YouTube

A caracterização do artigo de divulgação científica (doravante DC), em geral, parte da versão escrita,
como é possível confirmar em diferentes trabalhos: Bueno (1985); Jacobi (1986); Berruecos (1995); Grillo
(2006), entre outros. Contudo, Jacobi, desde a segunda metade da década de 1980 já se mostrava sensível às
representações figurativas utilizadas na vulgarização científica, por isso dedicou atenção ao esforço empreendido
pelos museus e pela educação não formal. Apesar de haver estudiosos que se preocupam com a relação entre
escrita e imagem, são mais raros os trabalhos que exploram as especificidades da DC que acontece na modalidade
oral. No Brasil, são encontrados trabalhos que exploram o ensino de exposição oral, seminário ou debate, mas
o que tem sido encontrado em vídeos que circulam em redes sociais diferencia-se substancialmente desses
gêneros escolares.
Na descrição do artigo de DC, na modalidade escrita, afirma-se ser um gênero que integra três campos:
o científico – que subsidia as discussões técnicas relativas aos diferentes temas de interesse social –, o midiático
ou jornalístico – que se associam às discussões socioeconômicas culturais próprias de uma determinada época
e local – e o educacional – que divulga os conhecimentos aos estudantes da educação básica, por meio de
variados recursos (livros e manuais didáticos ou paradidáticos, jornais ou revistas especializadas etc.), tal como
descreveu Grillo (2006). Além disso, o texto de divulgação segue uma ordenação inversa ao texto científico
canônico (objetivos, procedimentos, conclusões, aplicações), pois visa a captar a atenção e o interesse do
leitor em relação ao saber científico por meio da construção de textos organizados em uma grande variedade
composicional, “adequada ao necessário diálogo que o gênero reportagem de divulgação científica deve realizar
com enunciados da esfera científica” (GRILLO; OLÍMPIO, 2006, p. 389), entre outras razões.
Desse modo, as explicações são acompanhadas de um tom interpretativo relativo ao tema e/ou aos
fatos tratados no artigo, bem como às implicações relacionadas a ele, por isso é possível identificar propósitos
indutivos ou persuasivos. Quando o assunto em questão é polêmico, identificam-se os pontos de vista em oposição
e os recursos utilizados para obter a adesão do leitor (COSTA, 2014). Tais características estão presentes em
materiais de DC construídos em múltiplas modalidades. A variedade relativa aos temas tratados, ao modo como
as ideias são discutidas, e ao estilo é frequente nos exemplares que se encontram disponíveis no YouTubeBR,
pois as novas produções discursivas são marcadas pelo hibridismo tanto na composição construcional quanto
nos padrões de pensamento, o que permite superar o binarismo e as dicotomias das antigas lógicas de mídias.
São diferentes tipos de cruzamento que inter-relacionam valores, informações e posicionamentos discursivos
que passam a coexistir e interagir na internet (MAST; COESEMANS; TEMMERMAN, 2016).
Há mais de uma década estão sendo produzidos estudos sobre o papel educativo dos vídeos encontrados
no YouTube (BERK, 2009; BURGESS; GREEN, 2009; JONES; CUTHRELL, 2011; MION; LOPES, 2021;
RESENDE, 2015; REYES; VAZQUEZ, 2020; VIZCAÍNO-VERDÚ; CONTRERAS-PULIDO, 2019, etc.).
Isso porque, desde a constituição dessa rede social em 2005, crianças e jovens passaram a ter acesso direto a
temas sociais e culturais, a variadas formas de entretenimento e a plataformas formativas, além de estabelecerem

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 68


novas formas de relacionamento e integração por meio do compartilhamento e carregamento de produções
individuais ou coletivas.
Entre os diferentes usos educacionais que se observam a partir dos vídeos encontrados no YouTube e
benefícios destacados pelos trabalhos supracitados, ressaltam-se aqui apenas cinco. É uma ferramenta eficaz de
ensino devido: (i) à concentração de atenção gerada em crianças e jovens e, consequentemente, à memorização
de informações, incentivada pela visualização de diferentes materiais; (ii) à promoção do uso de ambos os
hemisférios cerebrais (o esquerdo que processa a linguagem e o direito que processa informações não verbais),
o que promove o aumento de inteligência; (iii) à resposta emocional dos estudantes diante dos vídeos (tanto
positivos quanto negativos); (iv) à motivação para a produção de vídeos próprios acerca de distintos temas
(BERK, 2009); (v) à democratização do conhecimento científico.
Para a efetivação desse conjunto de resultados, no processo de elaboração e emprego dos vídeos
voltados à DC, entende-se que a linguagem oral merece atenção especial, visto que, para Royce (2007), as
modalidades verbais e visuais se complementam na projeção de significado. Contudo, esse autor investigou
apenas materiais impressos no estudo da complementaridade intersemiótica1, assim, é com base em Isola-
Lanzoni (2020) que será proposta uma reflexão em torno do papel da modalidade oral na composição dos
vídeos de DC destinados a adolescentes e jovens e disponíveis no YouTubeBR.
Contudo, se se quer “construir um objeto de ensino aprendizagem claramente delimitado e definido,
que confira ao oral legitimidade e pertinência em relação aos saberes de referência, às expectativas sociais” e
às necessidades e potencialidades discentes (DOLZ; SCHNEUWLY; HALLER, 2014, p. 151), colaborar com
o trabalho docente por meio da descrição, análise e interpretação dos vídeos, considerados práticas sociais de
linguagem em circulação na sociedade brasileira, é uma tarefa que convoca pesquisadores de diferentes áreas do
conhecimento. Embora isso seja reconhecido, em função dos limites deste artigo, só será possível reunir alguns
estudos produzidos em Linguística e Letras.
Dado ao vasto acesso à maioria dos vídeos encontrados no YouTubeBR, torna-se crucial selecionar
criticamente o material que se encontra disponível, para garantir credibilidade, precisão e razoabilidade no
trabalho pedagógico (JONES; CUTHRELL, 2011), particularmente quando se visa à DC, por isso a seguir são
apresentados os critérios de referência conformados para a reflexão proposta neste artigo.

2. A Complexidade da Oralidade Presente em Vídeos de Divulgação Científica


que Circulam no YouTubeBR

O Brasil é um dos principais consumidores dos vídeos encontrados no YouTubeBR2, além de ser o país
com a terceira maior média de tempo diária no uso de redes sociais (por usuários de 16 a 64 anos de idade)3.
Em relação à produção de conteúdo de DC para essa plataforma, em 2019, foi criado o selo Science Vlogs4,
como recurso para atestar a qualidade dos conteúdos de ciência na internet. Como se quer discutir o lugar
da oralidade na constituição da complementaridade intersemiótica em vídeos disponíveis para adolescentes
e jovens, a título de ilustração, foram selecionados dois vídeos, conforme os seguintes critérios: (i) tratar de
um mesmo assunto – optou-se pelas fake news, devido à relevância que o tema passou a ter na sociedade

1
O conceito de “complementaridade intersemiótica” é proposto por Royce (2007) com base nos princípios da Linguística Sistêmico-
Funcional, que se organiza em três tipos de metafunções (ideacional, interpessoal e composicional), porém neste trabalho não
haverá separação dos elementos em cada um dos três tipos, pois está sendo proposta uma análise global dos materiais selecionados
para discussão. Além disso, serão agregados pontos que não foram tratados ao considerar materiais multimodais impressos, como
os utilizados pelo autor.
2
Em abril de 2022, o Brasil se posicionou em quarto lugar entre os países com maior número de usuários do YouTube (totalizou 138
milhões), segundo Ask Statista (Disponível em: https://bit.ly/3GEYC1g. Acesso em: 05 jan. 2023).
3
Segundo a pesquisa da Hootsuite de 2022. Disponível em: https://kepios.com/reports. Acesso em: 05 jan. 2022.
4
O Science Vlogs Brasil (SVBR) é uma comunidade de divulgação científica que faz a curadoria de canais do YouTube para dar a eles
um selo de confiabilidade e de qualidade e ainda busca expandir a divulgação de conteúdos de ciências nas redes sociais, por meio
de youtubers parceiros, considerados “Patronos” da iniciativa, como Pirula, Sergio Sacani, André Azevedo da Fonseca e o médico
Drauzio Varela. Conferir em: https://bit.ly/3ZcDMh2 (Jornal da USP).

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 69


contemporânea principalmente durante a pandemia pelo vírus Sars-CoV-2; (ii) declarar intenção em fazer DC
no YouTubeBR (sendo que um deles pertence ao grupo de canais que integram o selo Science Vlogs); (iii) utilizar
linguagem acessível a adolescentes e jovens.
A opção por um tema polêmico está fundada no reconhecimento de que a linguagem é sempre
ambivalente e que são duas as principais operações matriciais do discurso: a “filtragem” e “saliência”, com base
nas ideias de Grize (1996). A filtragem está associada aos pontos que são escolhidos para discutir as questões,
entre tantos possíveis, enquanto a saliência diz respeito aos meios verbais e não verbais que favorecem a fixação
da atenção e, consequentemente, à memória do que está sendo tratado. Tais critérios servem tanto para a análise
dos conteúdos quanto da composição do texto multimodal. Em relação a essas operações, Grácio (2014) realça
que nesse tipo de construção sempre ocorre a perspectivação dos conteúdos conforme interesses em jogo em
cada situação comunicativa, mesmo quando venha a ocorrer por meio do uso de artefatos tecnológicos.
Desse modo, nos discursos marcados pela divergência de pontos de vista, observar tais operações
se torna relevante, embora também possam ser identificadas em produções discursivas orientadas para a
construção da objetividade do discurso científico, visto que tais operações podem ser tomadas como critérios
de relevância que estão sempre associados às relações sociais de poder. Assim, essas duas operações servirão de
referência tanto para a análise das explicações em torno do tema em questão quanto para a análise da linguagem
oral nos discursos de DC localizados no YouTubeBR.
Especificamente, na observação da oralidade, considera-se que o texto, como unidade sociocomunicativa,
está sempre integrado a um processo interacional, porém, no caso dos vídeos produzidos para o YouTube, o
texto falado não se constitui em situação face a face nem acontece de maneira incompleta ou fragmentada, pois o
planejamento dos youtubers, que visam ao público jovem, segue uma cuidadosa composição. Apesar disso, várias
características, próprias da fala, estão presentes e são significativas na interpretação dos sentidos produzidos
por cada um, como o fluxo discursivo e os fenômenos prosódicos (as pausas, os alongamentos vocálicos, os
itens funcionais, as paráfrases, a repetição de itens lexicais, destacadas devido à recorrência observada), por isso
serão integradas na análise.
Em relação à interação, na perspectiva da complementaridade intersemiótica, serão considerados os
“participantes representados, os participantes interativos e os elementos de coerência estrutural”, que abrangem
todas as características composicionais (ROYCE, 2007, p. 66, tradução nossa). São considerados participantes
representados os elementos ou as entidades que estão presentes na materialidade do vídeo; participantes interativos
os sujeitos que integram o vídeo, desde o youtuber, passando pelo designer gráfico, por exemplo, bem como o
auditório presumido5, e elementos estruturais os recursos combinados na composição do material audiovisual
que integram os participantes representados e interativos, com particular atenção para aqueles destacados
anteriormente em relação à oralidade, por serem cultural, histórica e ideologicamente marcados.
Assim, a análise dos vídeos foi organizada em duas subseções. Na primeira, será empreendida uma
análise global (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 1999), relativa à estruturação dos vídeos de DC, a fim de
descrever como o fluxo discursivo se realiza quando se quer produzir um texto oral explicativo-argumentativo em
torno de um assunto colocado em questão. Para isso, optou-se por demarcar a composição do tópico discursivo,
por ser o recurso que garante compreender o fio condutor da organização textual, bem como a organização dos
raciocínios privilegiados em cada material. Na segunda, serão destacados os recursos que permitem entender
como foram articulados a fim de promover a complementaridade intersemiótica. Nessa subseção, então, os
aspectos extralinguísticos, paralinguísticos e cinésicos serão integrados aos prosódicos e imagéticos, para que
seja possível realizar uma análise local (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO, 1999) e situada, ou seja, relativa ao
contexto de produção, às características do enunciador e aos participantes representados e interativos.

5
Segundo a Nova Retórica, o auditório, “[...] o conjunto daqueles que o orador quer influenciar sua argumentação. Cada orador
pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procura persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem
seus discursos”. Nesse sentido, o auditório presumido é uma construção, mais ou menos sistematizada, com base em características
psicológicas ou sociológicas, que visa a persuadir “efetivamente indivíduos concretos [...]” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA,
1996, p. 22).

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 70


Antes de compor cada uma das subseções, foram reunidas algumas informações relativas a cada um
dos vídeos selecionados. O vídeo 1 pertence ao Canal Nostalgia, criado por Felipe Castanhari, um youtuber que
em 2016 foi eleito pela Forbes Brasil um dos trinta jovens mais promissores do país e em 2019 entrou para o
ranking do Instituto QualiBest como um dos maiores influenciadores digitais brasileiros. O canal não se dedica
exclusivamente à DC, mas os que se dedicaram a trabalhar nesse sentido tiveram muita repercussão. Intitula-
se “A DESINFORMAÇÃO do WhatsApp e Facebook” e visa a combater a cultura do compartilhamento
rápido de notícias falsas que prejudica diferenciar fatos e notícias de boatos. Foi produzido em março de 2017
e registrou 1.843.049 visualizações até o dia 5 de janeiro de 20236. O vídeo 2 se encontra no Canal do Slow e
integra a campanha do Science Vlogs Brasil (#PandemiaSemFake) que visa a conscientizar as pessoas acerca da
importância de verificar as fontes das informações, valorizando o jornalismo, os checadores e os pesquisadores
que trabalham diariamente para prover o debate público com informações precisas e confiáveis. Intitula-se “O
BRASIL ESTÁ ISOLADO DO MUNDO!!!” e discute o isolamento do país pelo fato de produzir narrativas
falsas para estimular o uso de cloroquina, azitromicina e ivermectina como tratamento precoce contra a pandemia
pelo vírus Sars-CoV-2. Foi produzido em dezembro de 2020 e registrou 32.816 visualizações até a mesma data7.

2.1. A composição do fluxo discursivo de dois vídeos de divulgação científica

O vídeo de DC, como o texto falado, em nível global, desenvolve-se por meio de uma atividade
interacional, mas que se organiza de modo monologal8, com planejamento prévio à produção do material e
interação estabelecida em espaços e tempos distanciados, o que difere da oralidade praticada face a face. Assim,
a produção pode ser coletiva, não apenas individual, há possibilidade de revisão tanto do roteiro quanto da
expressão verbal (por meio de recursos de edição de vídeo, isto é, o processo de criação é escondido do usuário
da plataforma, que só tem acesso à versão final) e o produtor pode antecipar as “possíveis reações” daqueles
que possam se interessar pela temática. Observa-se, então, que as condições de produção desse tipo de vídeo
se aproximam mais da caracterização que se faz da escrita do que da fala (FÁVERO; ANDRADE; AQUINO,
1999, p. 74).
Quanto ao fluxo discursivo, dado o caráter polêmico da temática, é visível a articulação entre diferentes
pontos de vista na composição de uma disputa de posições discursivas, a partir da qual se depreende um embate
entre posicionamentos que circulam na sociedade brasileira. Também se depreende, por meio do que é dito e de
outros recursos – como: entoação, pausas, gestualidade, expressão facial –, um jogo de subjetividades, ou seja,
de representações, por meio de um processo de negociação que acontece a partir das antecipações do produtor
em relação ao que é partilhado com o interlocutor na projeção construída pelo discurso (BRAIT, 2003).
No vídeo 1, Felipe Castanhari, desde a abertura do vídeo, inscreve-se em uma enunciação estabelecida
entre o “eu” (que já compartilhou notícias sem realizar uma checagem antes disso) e um “tu” (um adolescente
ou jovem, que é tratado por “você”). O “eu”, inscrito no discurso, antecipa dificuldades que podem ser vividas
pelos interlocutores, oferece exemplos de situações que podem ter acontecido, antes de explicar por que isso
é um problema social. A câmera capta a imagem do youtuber em close-up (primeiro plano), o que possibilita um
olhar direto para quem assiste ao vídeo, e o cenário de fundo, preparado com brinquedos para diferentes idades,
colabora com a familiaridade entre ambos, e por vezes o big close-up (primeiríssimo plano) auxilia a dar mais
dramaticidade ao que está sendo dito (0’35”-0’36”).
Ao longo do processo interacional, “eu” e “tu” são incluídos em “todo mundo” (a partir de 1’04”-
11:15”: “eu LEio a noTÍcia antes de compartilhAR com meus aMIgos. Eu também checo se aquela corrente
do whatsapp é verdaDEIra eu CHECO Tudo bem galera eu não estou aqui para julgar to:do mu:ndo já

6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HNCYAVcT_Is. Acesso em: 02 jan. 2023.
7
Disponível em: https://bit.ly/3Qqmnh5. Acesso em: 02 jan. 2023.
8
Segundo Charaudeau e Maingueneau (2004, p. 164, grifos dos autores), o “[...] discurso monologal (ou ‘monogerado’, isto é,
construído por um único locutor, sem intervenção direta de outrem) [geralmente é] o discurso monológico (que coloca em cena
um único enunciador) [...]”, mas também podem existir discursos monologais-dialógicos.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 71


compartilhou alguma notícia só por causa do TÍtulo”) e “a gente” (0’21”-0’32”: “sim eu sei eh difícil NÉ vemos
a notícia passando na timeli:ne a gente lê o título e dá aquela vonta:de insa:na de clicar no botão de compartilhAR
mas escuta só amigo É MUITO IMPORTANTE QUE VOCÊ RESI:STA”). Esse jogo de subjetividades é
mantido até que tem início o elenco de “dicas” (2’34”-6’55”) propostas para evitar a desinformação nas redes
sociais, quando o discurso se torna explicativo, embora seja mantida a informalidade. Ao final, é apresentada
uma solução para o problema (7’30”-7’35”) no formato de um ato de fala diretivo: “Deixar de propagar essas
merdas na internet”, manifestado no estilo recorrente em canais de youtubers famosos, que inclui “[...] o uso de
gírias, palavrões e frases curtas e fragmentadas [...]” (MENDONÇA; SALGADO, 2012, p. 33).
No vídeo 2, o youtuber compõe um discurso objetivado, ou seja, o efeito de objetividade é obtido por
meio do uso de um “nós” inclusivo, que abarca os especialistas que reúnem informações científicas que discutem
a desinformação em pleno período de vivência da pandemia pelo vírus Sars-CoV-2, bem como aqueles que
visualizam o vídeo. Além disso, definições servem para situar o assunto em questão (“infodemia”, em 0’29”)
logo no início, exemplos cotidianos servem para ilustrar situações ligadas ao problema (por exemplo, em 0’54”-
1’05”: “o::h vó o qui que se tá digitando aí? ah eu tô mandando pra todo mundo aqui que si tomar um chazi:nho
de canela e prender a respiração por 10 segundos a covid vai passAR porque eu vi seu Zé fazendo isso ontem
e funcionô”) e dados de pesquisa são reunidos ao longo do vídeo (como a criação de agência de checagem de
notícias falsas, em 1’37”), mas a expressão de tudo isso é realizada por meio de uma linguagem mais informal,
com inserção de gírias, e câmera em close-up, o que gera aproximação entre enunciador e interlocutores possíveis.
Metade do tempo total do vídeo (13’06”) discute a desinformação e a outra metade inclui uma apreciação
pessoal que associa o grande número de produção de fake news ao isolamento do Brasil em relação a outros
países, ou seja, a segunda parte pode ser considerada mais um artigo de opinião do que um de DC.
Em ambos os vídeos, aspectos cinésicos, como mímicas faciais variadas (algumas um pouco jocosas),
olhares que se alteram para acompanhar os conteúdos e movimentação das mãos são articulados para construir
dinamicidade ao texto oral. Com relação aos aspectos paralinguísticos, uma voz clara, mas modulada conforme
a ênfase que cada youtuber quer dar a certas partes do texto oral, o uso de pausas estratégicas (6’54” no vídeo
1 e 5’59” no vídeo 2) e uma prosódia acelerada que demarca vivacidade e possibilita tratar de muitos pontos
em pouco tempo, associadas ao prolongamento de vogais em palavras que são destacadas9, como em: “nem
sem::pre o título da notícia represen:::ta o que está escrito dentro de::la” no vídeo 1 (1’35”-1’40”) ou “sobre
a crise global de informação em ple::na pandemi::a” no vídeo 2 (3’40”-3’43”) e uma fala silabada, como em
“a matéria não tinha nada a ver com o título da notícia” no vídeo 1 (0’49”-0’52”) ou em “o apocalipse das
mentiras” no vídeo 2 (1’30”-1’32”), serve para aumentar a intensidade de fala.
A mobilização desses recursos também colabora com o desenvolvimento do tópico discursivo,
considerado um elemento decisivo na constituição de um texto falado, pois possibilita reconhecer “o fio
condutor da organização textual-interativa” (JUBRAN, 2006, p. 90). São duas as condições necessárias para
um tópico discursivo se estruturar: a centração e a organicidade. Na centração, observa-se “a utilização de
referentes explícitos ou inferidos, que convergem para o desenvolvimento textual” (FÁVERO; ANDRADE;
AQUINO, 1999, p. 39). Pela operação de filtragem, confirma-se que, no vídeo 1, a citação de comportamentos
cotidianos de compartilhamento de fake news serve de base para explicar o que é desinformação e propor uma
solução para esse problema por meio da exposição de dicas para evitar que isso aconteça. No vídeo 2, por sua
vez, parte-se de uma tese (a desinformação que se alastra na internet isolou o Brasil do resto do mundo, devido
à alta produção de fake news), inserem-se inúmeros exemplos retirados de variadas agências de verificação, para,
então, defender uma posição veemente de combate ao isolamento do país por esse motivo.
Nota-se que o vídeo 1 opta por uma composição mais simples, com expressões criadas pelo youtuber
(como “título Ronaldinho”, para fazer menção e títulos que visam atrair cliques dos internautas) e o uso de dicas
(a partir de 2’22”) delimita ações que podem ser praticadas por adolescentes e jovens. O vídeo 2, por sua vez,

9
Está sendo utilizada a marcação de prolongamento de vogais proposta pelo Projeto de Estudo da Norma Linguística Urbana Culta,
conhecido como Projeto NURC, realizado em cinco capitais brasileiras na década de 1990.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 72


exige de quem o assiste à postagem no canal o entendimento da discussão central (a infodemia é um outro tipo
de pandemia que cresceu muito a partir de 2020) e das informações secundárias que auxiliam a compreender a
natureza do problema, bem como os meios disponíveis para combatê-lo. Cada tipo de encaminhamento orienta
a construção distinta de segmentos textuais com “estatuto de tópico”. Na centração, analisam-se três traços:
“concernência”, “relevância” e “pontualização” (JUBRAN, 2006, p. 91-92), que podem guiar a compreensão de
textos orais, como consta no Quadro 1.

Quadro 1 - Desenvolvimento do tópico discursivo.

Vídeo 1 - Canal Nostalgia Vídeo 2 - Canal do Slow

Imagine isso rolando o tempo todo com notícia de Justificando bastante o isolamento do Brasil nesse
política ou economia ou notícias de seu time, isso é assunto em relação ao resto do mundo, na minha
muito perigoso, galera, porque de repente o boato e o opinião, imagine só se o povo compreendesse como
exagero começam a ganhar mais peso do que os fatos... a sua saúde foi pisoteada por puro interesse político...

Explicação: ao final do vídeo (6’57”-7’10”), em um Explicação: ao final do vídeo (10’15”-10’29”), para


esforço de síntese, Castanhari usa o isso para sintetizar marcar a posição defendida, ao usar a expressão “nesse
vários termos ligados a um mesmo campo conceitual assunto”, Estêvão Slow anaforicamente recupera
(nada a ver, mentira, nada de verdade, desinformação, tudo o que foi discutido, garantindo concernência; ao
notícia falsa), o que colabora com a concernência colocar o Brasil frente ao “resto do mundo”, marca a
e relevância, por meio do processo anafórico de relevância da discussão em âmbito internacional em
recuperação de ideias, e pontualização, visto que plena pandemia pelo vírus Sars-CoV-2 e pontualiza
prepara o internauta para a explicitação do ponto de explicitamente se tratar de um ponto do vista pessoal
vista do youtuber. (“na minha opinião”).
Fonte: elaboração própria.

Em ambos os trechos reunidos no Quadro 1 prevalece o raciocínio por abdução, que é fundamental
para a pesquisa científica, visto que, em função de seu caráter conjectural, permite propor alternativas decorrentes
de um conjunto de fenômenos diversos, dispersos e concomitantes. A tese defendida explicitamente em cada
canal é apresentada como uma razão verossímil e razoável para todos os fenômenos que são considerados.
Entende-se, assim, que a abdução é construída com base em inferências que se apresentam como as melhores
explicações possíveis para o conjunto de situações sociais selecionadas (ANGENOT, 2015) e é construída
principalmente a partir da combinação de recursos linguístico-discursivos. “Em decorrência disso, afirma-se
que uma argumentação não persuade por si mesma, mas que ela conduz o destinatário a se persuadir ele
mesmo” (GRIZE, 2020, p. 260).
A análise de cada recorte indicou que a concernência e a relevância são traços imprescindíveis para
precisar a centração tópica, o que colabora diretamente com a argumentação em relação ao assunto em questão
e com a pontualização em relação ao tratamento do tema. Estabelecer um ponto focal é um processo que é
reforçado pela operação de saliência, que passará a ser analisada em associação com a complementaridade
semiótica.

2.2. O papel da complementaridade intersemiótica na compreensão do texto oral

No âmbito local, em função dos limites deste trabalho, a interação verbo-imagética será avaliada a
fim de demarcar a organicidade do texto oral, caracterizar os participantes e a articulação entre os elementos
composicionais. São distintos os participantes representados nos vídeos: por se expressar em primeira
pessoa do singular, Felipe Castanhari assume uma voz individual, mas que inclui outros jovens que praticam
o compartilhamento de informações sem confirmação prévia de veracidade. Colocar-se como alguém que já
fez isso pode promover a identificação do internauta que interage com o material selecionado para o vídeo 1.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 73


Estêvão Slow, por outro lado, inicia o vídeo com um gráfico encontrado em um relatório produzido por quatro
cientistas e, na sequência, anuncia a campanha ao qual o vídeo 2 está associado (#PandemiaSemFake – uma
campanha do Science Vlogs Brasil com apoio do Instituto Vero e Rede Internacional de Checagem de Fatos
(IFCN) via Shuttleworth Foundation). Ou seja, as vozes institucionais estão em primeiro plano e o youtuber
é apenas um representante delas. Ambos apoiam as falas em imagens que reforçam o que está sendo dito e
dão organicidade à materialidade multimodal, mas no caso do vídeo 1 são recuperadas situações cotidianas
vividas ou inventadas; enquanto no vídeo 2 são elencados exemplos retirados de diferentes sites acadêmicos e
de instituições ou trabalhos de pesquisa.
Os participantes interativos são nomeados diferentemente, no caso do vídeo 1, encontram-se os
nomes das pessoas que participaram da produção juntamente com Castanhari10, além do internauta nomeado
por “você”; no caso do vídeo 2, o uso da primeira pessoa do plural inclui uma grande quantidade de pessoas
que integra os canais associados ao selo Science Vlogs Brasil11 e todos aqueles que integram a sociedade
brasileira/internacional e estão interessados em informações científicas acerca da difusão de fake news. As ideias
dos especialistas são incluídas em várias partes do vídeo, e há até uma explicação detalhada de um gráfico
de dispersão (em: 4’26”-5’10”). Além disso, ocorre a inclusão de vozes sociais, que poderiam ser ditas por
diferentes pessoas ou criadas para ilustrar a posição defendida. Nos trechos marcados por essa voz alheia, em
circulação em sociedade ou inventada, há a utilização de uma coloração cinza para diferenciar da voz principal
do youtuber (como em: 3’00”-3’06”). Apesar dessas diferenças, o uso de um mesmo tipo de ângulo (primeiro
plano) indica haver o esforço para ser produzido um contato direto com aqueles que se interessem pelos vídeos
e ser estabelecida uma relação horizontal de poder com os adolescentes e jovens.
Quanto aos elementos que colaboram com a coerência estrutural da organização tópica e intersemiótica,
nota-se que os recursos são similares no plano visual: recortes de postagens são inseridos ao lado da imagem
dos youtubers enquanto estão desenvolvendo o texto oral (como em: 0’52”-0’57” e 9’23”-9’36” no vídeo 2);
retiram o locutor para incluir uma imagem e deixar a narração em off (como em: 0’:23-0’:28” no vídeo 1, e
0’27”-0’35” no vídeo 2). As diferenças estão restritas a colocar por escrito ideias que foram expressas oralmente,
com ou sem um fundo de suporte, em letras bem grandes e coloridas, um recurso recorrente apenas no vídeo
1 (como em: 0’42”-0’45”, 0’49”-0’5’”, 1’03”-1’06” etc.) e a manipular um gatinho diante da câmera, quando se
quis marcar um ponto particularmente importante no vídeo 2 (6’07”-6’20”).
Tais recursos reforçam a operação de saliência, porque marca bem os pontos mais relevantes da
discussão e contribuem para a fixação das ideias na memória, visto que funcionam como um tipo de realce
racional e emocional proposta pelo enunciador para o assunto em questão, pelo estreitamento focal produzido
(GRIZE, 1996). Segundo este autor, geralmente são utilizados quatro movimentos nesse processo: (i) no ponto
de partida há a descrição do que está em discussão; (ii) em seguida, ocorrem desnivelamentos sucessivos a fim
de delimitar o campo que está sendo circunscrito; (iii) são organizadas respostas para as questões apresentadas;
(iv) há um fechamento pontual da discussão, em função dos elementos recolhidos no material. Os dois vídeos
seguem, com variações de exemplos e recursos semióticos, um roteiro que acompanha exatamente essa
sequência.
Ademais, esses recursos estão a serviço da organicidade tópica. Nota-se que o movimento tópico
pode ser caracterizado da seguinte maneira: no vídeo 1, são reunidos exemplos que servem para confirmar
como o compartilhamento (sem checagem) ocorre continuamente tanto no Facebook quanto no WhatsApp,
para persuadir o internauta a deixar de propagar notícias falsas na internet (nomeadas de “merdas”); no vídeo
2, o movimento segue um outro processo: entidades são citadas diretamente como voz de autoridade para

10
Ficha Técnica: Roteiro - Rob Gordon e Felipe Castanhari Montagem e Edição - Nando Almeida Artes - Rick Ordonez Pesquisa -
Leonardo Produtora - http://tucanomotion.com.br
11
Estamos juntos na luta pela informação de qualidade na internet, principalmente em momentos que podemos salvar vidas. Por isso,
queremos conscientizar a todos sobre a importância de verificar as fontes das informações, valorizando a divulgação científica, o
jornalismo, os checadores e pesquisadores que trabalham diariamente para alimentar o debate público com informações precisas
e confiáveis.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 74


provar quantas notícias falsas circulam pelo mundo e o lugar distintivo do Brasil nesse contexto, o que irá
reforçar o isolamento do país, incentivado sobretudo pelas ações do presidente da República, que defendeu
abertamente a utilização de um conjunto de medicação sem confirmação científica de eficiência, durante o
combate à pandemia. Em ambos os vídeos, alguns recursos se fazem presentes: a comparação entre dados e
fatos, as repetições da tese defendida e as paráfrases de ideias apresentadas desde o início dos vídeos, e nesse
processo a prosódia, por meio da entoação, é um mecanismo eficaz na explicitação, ênfase e reforço de ideias.
A modulação entonacional típica12 é utilizada frequentemente (como em: 1’27”-1’32” no vídeo 1 e 7’18”-7’28
no vídeo 2, entre outros), para que as ideias sejam reafirmadas.

3. Implicações dos Procedimentos Analíticos no Ensino da Compreensão


da Linguagem Oral na Educação Básica

Se a compreensão da interação verbal face a face é uma atividade exigente, tal como o projeto NURC
demarcou na pesquisa acadêmica brasileira ao longo de anos, a articulação entre a oralidade e variados recursos
semióticos torna essa tarefa ainda mais complexa tanto para professores quanto para estudantes do ensino
fundamental e médio, sobretudo quando se trata de materiais que visam a defender uma tese diante de um
auditório presumido. Ao tomar o que tem sido estudado há mais de vinte anos, percebe-se que atentar para
o contexto de cada material, o que inclui tanto o reconhecimento das condições de produção e circulação
dos vídeos do YouTubeBR quanto a identificação dos participantes; para o reconhecimento das crenças e dos
conhecimentos em disputa no/pelo discurso; para os aspectos constitutivos da oralidade; para a composição
multimodal de uma produção audiovisual é prioritário quando se quer organizar atividades de compreensão de
textos orais.
Como, segundo Marcuschi (1998, p. 23), “[...] a compreensão é um processo de sinalização múltipla
[...]”, uma vez que requer a existência de referentes comuns, o interesse construído em função de objetivos
previamente definidos e atenção concentrada, entre outras capacidades, cabe às atividades de ensino-
aprendizagem identificar meios para haver “engajamento suficiente para o desenvolvimento de atividades
cognitivamente sintonizadas e interativamente coordenadas”. Particularmente, no caso do trabalho com textos
multimodais de DC, que tenham na linguagem verbal um apoio preponderante, as exigências são ampliadas,
pois também será preciso entender como o jogo entre perspectivas é articulado na construção de explicações
e argumentações.
Por aceitar também que a construção de conhecimentos em sala de aula se realiza interativamente em
uma “rede de relações com espaços cognitivos sobrepostos e interconectados” socialmente (MARCUSCHI,
1998, p. 27), assume-se que as ações docentes e discentes que ocorrem dentro da escola precisam considerar
as práticas de leitura/compreensão situadas na realidade social. Em relação ao que foi discutido anteriormente,
sabe-se que diariamente os estudantes são expostos aos vídeos que circulam no YouTubeBR, mas ainda há
carência de trabalhos que possam subsidiar o trabalho docente quanto à compreensão da oralidade, tal como
a pesquisa de Galvão e Azevedo identificou em 2015. Assim, além de propor um procedimento exploratório
aplicado à análise de dois vídeos de DC, para finalizar este artigo, são indicados cinco pontos que podem
orientar a composição de atividades de compreensão de textos orais e multimodais.

1. Circunscrever os aspectos contextuais que se referem à produção e circulação do discurso de DC.


Como os estudantes são usuários frequentes dessa rede social, o levantamento dos aspectos contextuais
precisa contar as informações que o grupo consegue identificar diretamente na descrição dos vídeos e em
outros meios de informação. Agregar estratégias de busca de informações à descrição de cada vídeo também
é uma maneira produtiva para ampliar o letramento informacional e digital (AZEVEDO; GASQUE, 2017).

12
“[...] modulação entonacional típica: entonação ascendente, sugerindo começo de frase, na abertura de um tópico e entonação
descendente, na maioria das vezes com inflexão conclusa, no fecho” (JUBRAN, 2006, p. 110).

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 75


2. Elaborar uma visão global do fluxo discurso, considerando os participantes representados/
interativos e a construção de raciocínios em artigos de DC.
A observação do fluxo discursivo requer compreender como as operações de filtragem e saliência
orientam as escolhas linguísticas, imagéticas, sonoras etc. Organizar grupos de trabalho pode ampliar
as percepções a partir do que é identificado na materialidade discursiva e dos conhecimentos prévios dos
estudantes, posto que cada um pode recuperar aspectos distintos. Em relação aos participantes representados,
a colaboração do professor pode ser necessária, visto que as marcas enunciativas podem não ser facilmente
percebidas pelos discentes.

3. Observar como a centração do tópico discursivo colabora com a compreensão de posicionamentos


diante de um assunto colocado em questão na DC.
O desenvolvimento da escuta ativa, ou seja, de uma escuta que considere o que é dito, os implícitos e
as articulações entre as partes que compõem o texto oral é favorecida pela troca de ideias entre os estudantes
em relação às posições discursivas identificadas em diferentes segmentos do material audiovisual.

4. Mapear os recursos linguísticos e semióticos que colaboram com a organicidade do tópico discursivo
a fim de depreender a orientação argumentativa.
Esse tipo de identificação frequentemente é realizado no âmbito acadêmico, assim, para realizar
atividades favoráveis a este ponto, tende a ser necessário um planejamento coordenado com atividades
específicas que promovam a construção de inferências, sobretudo as socioculturais, bem como a organização
de esquemas que facilitem a percepção das relações entre os diferentes recursos multimodais.

5. Analisar como a complementaridade intersemiótica orienta a produção de efeitos de sentido no/


pelo discurso de DC e a argumentação oral.
Além de motivar a comparação entre diferentes materiais orais e multimodais produzidos em sociedade
a fim de que se observe a coerência entre a composição do discurso e o uso de variados recursos semióticos,
com particular atenção para o impacto da prosódia na exposição de ideias, principalmente em torno de temas
polêmicos, podem ser organizados diálogos em torno de pontos específicos que direcionem a atenção para
certos usos da linguagem.

Embora seja uma lista curta, esses pontos perpassam o conjunto de aspectos analisados e demarcam
aqueles que colaboram diretamente com o ensino-aprendizagem da descrição e interpretação de artigos de
divulgação científica que circulam livremente na internet. Em função dos limites deste texto, os conceitos
sinalizados merecem ser ampliados e incluir os detalhes que se encontram disponíveis nos textos referenciados.
Agregado a isso, intentou-se explicitar que os artigos de DC constroem uma objetividade que se
associa a opiniões (avaliações axiológicas) justificadas tanto em situações vivenciadas em sociedade quanto em
estudos e pesquisas que aprofundam as discussões apresentadas, o que amplia o entendimento da composição
de um gênero discursivo em circulação e a contínua alteração por que passa na sociedade contemporânea.
Por fim, é importante marcar que o estudo relativo aos tipos de raciocínio, rapidamente mencionado
neste trabalho, é um campo que pode ser ampliado a fim de subsidiar muitas atividades de compreensão.

Considerações Finais

Neste artigo, o gênero artigo de divulgação científica foi escolhido na versão em vídeo e em circulação
no YouTubeBR, para que fosse possível compor um procedimento metodológico e analítico que favorecesse a
análise da oralidade combinada com a complementaridade intersemiótica. Ao longo da análise de dois vídeos
de divulgação científica, foram circunscritas duas operações que balizam a construção desse tipo de discurso: a
filtragem e a saliência, que auxiliam a compreender como os elementos linguísticos e não verbais constitutivos

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 76


da oralidade são associados a recursos semióticos em produções audiovisuais que são utilizadas para discutir
um tema polêmico.
O conjunto de conceitos reunidos neste trabalho não é exaustivo, pode e deve ser incrementado, mas
já se apresenta como um guia orientador de práticas pedagógicas que podem ser empreendidas desde o ensino
fundamental, por professores que tenham a oralidade e a argumentação oral como campos de interesse.

Referências

ANGENOT, Marc. O discurso social e as retóricas da incompreensão: consensos e conflitos na arte de (não) persuadir.
Organização de Carlos Piovezani. São Carlos: EdUFSCar, 2015.
AZEVEDO, Isabel C. M.; GASQUE, Kelley C. G. D. Contribuições dos letramentos digital e informacional
na sociedade contemporânea. Transinformação, Campinas, SP, v. 29, n. 2, ago. 2017.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra.
São Paulo: Editora 34, 2016.
BERK, Ronald A. Multimedia teaching with video clips: TV, movies, YouTube, and mtvU in the college
classroom. International Journal of Technology in Teaching and Learning, Boston, v. 5, n. 1, p. 1-21, 2009.
BERRUECOS, María de Lourdes. La producción discursiva de la ciencia. Argumentos. Estudios Críticos de La
Sociedad, Ciudad de México, v. 23, p. 93-108, 1995.
BRAIT, Beth. O processo interacional. In: PRETTI, Dino F. (org.). Análise de textos orais. São Paulo:
Humanitas Publicações, 2003. p. 215-244.
BUENO, Wilson C. Jornalismo científico: conceito e funções. Ciência e Cultura, São Paulo, SP, v. 37, n. 9,
p. 1420-1427, 1985.
BURGESS, Jean; GREEN, Joshua. YouTube e a revolução digital: como o maior fenômeno da cultura
participativa transformou a mídia e a sociedade. São Paulo: Aleph, 2009.
CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Tradução de Fabiana
Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.
COSTA, Sérgio R. Dicionário de gêneros textuais. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard; HALLER, Sylvie. O oral como texto: como construir um
objeto de ensino. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e
organização de Roxane Rojo e Glais Sales Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004. p. 149-185.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola
Editorial, 2009.
FÁVERO, Leonor Lopes; ANDRADE, Maria Lúcia C. V. O.; AQUINO, Zilda Gaspar O. Oralidade e escrita:
perspectivas para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 1999.
FERREIRA, Luciana N. A.; QUEIROZ, Salete L. Textos de divulgação científica no ensino de ciências: uma
revisão. Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, Florianópolis, SC, v. 5, n. 1, p. 3-31, 2012.
FORTE-FERREIRA, Elaine C.; SANTOS, Rosângela I. A.; NORONHA, Leilane A. Formação docente e
o ensino da oralidade: entre concepções e práticas em sala de aula. Interfaces, v. 13, n. 2, p. 82-99, 2022. DOI:
10.5935/2179-0027.20220026.
GALVÃO, Marise A. M.; AZEVEDO, Josilete A. M. A oralidade em sala de aula de língua portuguesa: o que
dizem os professores do ensino básico. Filologia e Linguística Portuguesa, São Paulo, v. 17, n. 1, p. 247-272, 2015.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 77


GRÁCIO, Rui Alexandre. Retórica e objetividade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e
Argumentação, Ilhéus, n. 6, p. 171-184, jun. 2014.
GRILLO, Sheila V. C. Divulgação científica na esfera midiática. Revista Intercâmbio, São Paulo, SP, v. 15, 2006.
ISSN 1806-275x.
GRILLO, Sheila V. C. Gêneros primários e gêneros secundários no círculo de Bakhtin: implicações para a
divulgação científica. Alfa, São Paulo, v. 52, n. 1, p. 57-79, 2008.
GRILLO, Sheila V. C.; OLÍMPIO, Ariadne M. Gêneros do discurso e ensino. Filologia e Linguística Portuguesa,
São Paulo, SP, n. 8, p. 379-390, 2006.
GRIZE, Jean-Blaise. Logique naturelle et communications. Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
GRIZE, Jean-Blaise. O ponto de vista da lógica natural. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em
Discurso e Argumentação, Ilhéus, v. 20, n. 3, 2020.
ISOLA-LANZONI, Gabriel. Coesão verbo-imagética: um estudo sistêmico-funcional sobre multimodalidade
em mídias digitais. 2020. 200 f. Dissertação (Mestrado em Filologia em Língua Portuguesa) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, SP, São Paulo, 2020.
JACOBI, Daniel. Diffusion et vulgarisation: itinéraires du texte scientifique. Paris: Les Belles Lettres, 1986.
(Annales Littéraires de l’Universite de Franche-Comté, v. 324).
JONES, Troy; CUTHRELL, Kristen. YouTube: educational potentials and pitfalls. Computers in the Schools,
London, v. 28, n. 1, p. 75-85, 2011.
JUBRAN, Clélia C. A. S. Tópico discursivo. In: JUBRAN, Cléria C. A. S; KOCH, Ingedore G. V. (org.).
Gramática do português culto falado no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p. 89-132.
MAGALHÃES, Tânia G. Oralidade na sala de aula: alguém “fala” sobre isso? Instrumento - Revista de Estudo e
Pesquisa em Educação, Juiz de Fora, MG, n. 7/8, p. 65-81, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atividades de compreensão na interação verbal. In: PRETTI, D. (org.). Estudos
de língua falada: variações e confrontos. São Paulo: Humanitas Publicações, 1998. p. 15-45.
MAST, Jelle; COESEMANS, Roel; TEMMERMAN, Martina. Hybridity and the news: Blending genres and
interaction patterns in new forms of journalism. Journalism, Thousand Oaks, v. 18, n. 1, p. 3-10, 2016.
MENDONÇA, Carlos Magno C.; SALGADO, Tiago Barcelos P. Felipe Neto em performance no YouTube:
uma responsabilidade mútua entre performer e audiências. Comunicação Midiática, Bauru, SP, v. 7, n. 3, p. 31-50,
set. / dez. 2012.
MION, Mirian R. B.; LOPES, Daniel de Queiroz. YouTube e educação: uma revisão da pesquisa brasileira no
período de 2014 a 2021. Renote - Revista Novas Tecnologias na Educação, Porto Alegre, RS, v. 19, n. 2, p. 526-535,
2021.
NASCIMENTO, Tatiana G. O discurso da divulgação científica no livro didático de ciências: características,
adaptações e funções de um texto sobre clonagem. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Belo
Horizonte, MG, v. 5, n. 2, p. 15-28, 2005.
PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de
Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
RESENDE, Ana Rubélia Mendes de Lima. Uso Educacional de Ferramentas de Autoria na Web. Lavras: UFLA,
2015.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 78


REYES, Rafael D. M.; VAZQUEZ, Manuel B. La comunicación de la ciencia en YouTube España,
¿divulgación, Difusión, comunicación o sólo polémica? Revista Prisma Social, Madrid, v. 31, p. 410-422, 2020.
Comunicación del conocimiento científico en la era de la postverdad. Retos y Oportunidades.
ROYCE, Terry D. Intersemiotic complementarity: a framework for multimodal discourse analysis.
In: ROYCE, Terry D.; BOWCHER, Wendy (org.). New directions in the analysis of multimodal discourse. New York:
LEA, 2007. p. 63-109.
VIZCAÍNO-VERDÚ, Arantxa; CONTRERAS-PULIDO, Paloma. Del aula a la escuela en línea universal:
dimensiones temáticas en canales de YouTube. Hamut’ay. Revista Cuatrimestral de Divulgación Científica,
Juliaca, Peru, v. 6, n. 3, p. 12-25, 2019.

Signum: Estudos da Linguagem, Londrina, v. 26, n. 1, p. 66-79, abr. 2023 79

Você também pode gostar