TTCS 2021.2
TTCS 2021.2
TTCS 2021.2
As várias vezes que me pintei por aí: uma análise sobre autorretrato
Beatriz Costa Da Silva Silvestre ..................................234
Recife, 2021
CAMINHAR: A PRÁTICA COTIDIANA E O FAZER POÉTICO
Comissão examinadora:
_______________________________________________
Dra. Luciana Borre (Orientadora)
_______________________________________________
Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (Membro titular interno)
_______________________________________________
Ma. Anna Carolina Cosentino (Membro titular externo)
Agradecimentos
Que alegria é ter a oportunidade de agradecer aqueles e aquelas que fizeram parte dessa
extensa caminhada que não conhece fim. De alguma forma, essas pessoas foram atalhos,
desvios para que eu pudesse encontrar um novo trajeto, guias dentro da Zona. Sem essas
pessoas eu estaria andando em círculos.
Agradeço à Deus pelas possibilidades e coincidências desse caminho, que foram
inúmeras. Para terminar essa graduação em meio a pandemia de Covid-19 foi preciso
verdadeira intervenção divina.
Agradeço aos ouvidos de minha mãe e irmã, Gisela e Alexia, sem esses dois pares de
orelhas mágicas (que, como elas bem sabem, são impossíveis de matar) esse trabalho não
existira. Agradeço as suas vozes e mãos também, que tanto me auxiliaram. Aos olhares mais
que atentos dos meus avós, Albertina e Andrade, que curiosamente me questionavam ao passo
que tentavam entender minhas loucuras, obrigada por entenderem mesmo sem entenderem. À
toda minha família que até hoje não sabe muito bem o que eu faço e a quem eu acho tão
engraçado ter que explicar com frequência porque, às vezes, nem eu sei. Mas, sempre que
preciso de socorro, estão mais que dispostos a ajudar como podem. Obrigada vovó Carmem e
tia Alda, pelo cuidado e carinho. Me pergunto se esse interesse pelo ensinar é uma herança
sanguínea.
Sei que foram muitas as curvas que me fizeram ingressar neste curso no ano de 2017,
agradeço a esses desvios quando penso nos meus mais que queridos amigos e olho para o
caminho que traçamos até aqui. Meus companheiros nessa jornada que foi por muitas vezes
tortuosa, mas que me trouxe infinitas alegrias, espero compartilhar ainda tantas outras.
Obrigada a Carol e sua tortinha de abobrinha; Daniel, seu casaco e estórias; Graci, minha
doppelgänger de pesquisa e inseguranças; Ju por, junto a mim, construir o império do Açaí
Vida Boa na frente do CAC; Mayara por concordar com veemência; Mahavir pelo meme do
gatinho sendo mordido por um jacaré de brinquedo; Rafa pelos melhores powerpoints e Willder
pelas indicações cinematográficas, apesar de toda a desconfiança.
É imprescindível destacar como os/as docentes do curso de Artes Visuais me auxiliaram
ao longo de minha graduação. Agradeço à minha orientadora, Luciana Borre, por acreditar
sempre em mim, sempre disposta a me ouvir e me guiar de maneira tão delicada e fluida. Que
alegria tamanha foi poder participar de tantas ações e projetos mediados por ti, obrigada pelas
oportunidades; sou imensamente grata pela confiança, amizade e respeito. Agradeço também
ao professor Carlos Newton Júnior, por me aceitar como monitora quando eu sabia menos
ainda do pouco que sei hoje, pela paciência e por me dar o pontapé inicial no que seriam
processos de pesquisa e docência. Maria Betânia e Silva por mostrar em suas aulas os infinitos
caminhos que o ensino pode percorrer, com muito afeto e cuidado, fator tão importante no
curso de Licenciatura. Ana Lisboa, por estar sempre aberta e disponível, pela tamanha
generosidade. Agradeço à Bruna Rafaella Ferrer e seu interminável escopo de referências, o
período que tivemos contato foi curto porém o que tive a oportunidade de ver nesse intervalo
me acompanha e acompanhará ainda por muito tempo, que bom foi perceber essas derivas
educacionais. Também quero agradecer ao professor Eduardo Romero, um sopro de vida tão
contagiante estar em suas aulas, é muito bom ver a educação por seus olhos sempre tão ávidos
e empolgados. Obrigada por aceitar participar nessa etapa tão crucial deste trabalho que é a
defesa. Agradeço também à Carol Cosentino, sua disponibilidade e solicitude.
Esse trabalho definitivamente não seria o mesmo sem a colaboração de Walton Ribeiro,
que produziu essas fotos lindas e tão sensíveis dessa caminhada poética. Meu agradecimento à
Jéssica Tardivo, professora que me supervisionou em meu estágio e sempre me deixou livre
para caminhar, correr e pular, obrigada pelo entusiasmo e confiança.
Obrigada a todos aqueles que constroem novos trajetos a partir da caminhada.
Resumo
Abstract
The present research aims to establish a dialogue between the act of walking and the
artistic/educational processes that can be generated from it. The practice of walking is seen
here not only in a physical manner, but also as a daily poetics capable of producing essential
encounters to my formation as a person and art-educator. Therefore, I introduce the processes
of creating the performance “Verbos de Ligação”, held in Recife/PE, in 2020 and the meanings
this action perpetrated on me as an artist, teacher and researcher. I maintain a continuous
dialogue with authors who see walking as an artifice for the transformation of the individual
and the urban space (CARERI, 2013 e BRITTO; JACQUES, 2008, 2009) and other authors
who address creative processes (OSTROWER, 2001; IRWIN, 2006, 2019).
Introdução 6
3. Verbos de ligação 22
Referências 37
6
Introdução
Sempre tive uma relação de simbiose com a cidade, uma relação de muita inquietude e
reflexão. Quando era adolescente, depois da escola, à noitinha, eu e meus amigos íamos com
certa frequência ao calçadão da praia de Candeias. Muitas vezes apenas pelo caminhar, para
ficarmos mais um tempo perto uns dos outros, para ver o mar. Em certas ocasiões eu ia sozinha
ao calçadão, apenas pelo prazer de andar pela cidade, de imaginar a vida das pessoas. Perceber
os prédios, os transeuntes. Fascina-me olhar as janelas acesas à noite e imaginar tudo que se
passa naquele espaço, caminhar e devanear sobre as pessoas que passam por mim, o que fazem,
para onde vão. Há muito tempo questiono como a minha existência se relaciona a essas tantas
outras pessoas com as quais me deparo todos os dias na cidade.
Tenho o costume de inventar histórias, uma prática que aprendi com minha mãe.
Observamos todas as pessoas: quando sentamos para comer em algum lugar, andando de
ônibus, quando entramos numa fila de supermercado, sentadas na sala de espera de um
consultório. Então começamos a supor profissões, sobre o que conversam, em que parada essas
pessoas irão descer, as relações de parentesco aparecem entre elas: são primos, pais, cunhadas
e avós. Em seu livro O Paraíso são os outros, Valter Hugo Mãe (2018) faz uma descrição
poética que traduz perfeitamente este fascínio sobre pessoas e sobre a vida que compartilho
com minha mãe:
Aliás, sou mesmo assim, fico atenta a toda a gente. Gosto de olhar
discretamente. Confesso. Imagino a vida dos outros. Não é por cobiça. É por
vontade que dê certo. Por exemplo, vejo alguém sem cabelo e invento que há
gente que só gosta de homens carecas e então ser careca passa a ser uma
vantagem ou, pelo menos, desvantagem nenhuma (MÃE, 2018, p. 31).
Hoje, questiono-me se esse observar não faria parte de uma investigação sem fim, uma
pesquisa sem conclusão, sem objetivo geral ou específico. Faz-se então parte de um processo,
um trabalho contínuo que se mescla com o próprio ser. Eu incorporo a vida dos outros à minha,
7
o cotidiano me alimenta, teço os fios das minhas histórias pegando emprestado essas rebarbas
que as pessoas entregam-me sem perceber, formando uma enorme colcha que me acalenta com
uma maciez tamanha.
O têxtil é um material que hoje muito me contempla. Quando penso em realizar algum
trabalho físico, quando o desejo de criar um objeto se espreita, o têxtil costuma ser a
materialidade a qual recorro. Posso citar aqui várias razões para que tal fato ocorra, as
possibilidades advindas de sua diversidade de técnicas e suportes ou mesmo as relações de
memória que criei com esses materiais seriam justificativas muito fidedignas. Sinto que o têxtil
me permite ficar entre o figurativo e o abstrato. Tenho notado que esse espaço intermediário é
inevitável, até mesmo medular, em minhas investigações artísticas e de pesquisa.
Comecei a bordar, primeiramente roupas, em 2019, depois que aprendi a técnica de
ponto-cruz com minha mãe. Hoje, reflito sobre como as roupas são um artefato de memória,
de afeto, peças ativas na nossa relação com o mundo que nos cerca (STALLYBRASS, 2008).
Venho então investindo na prática têxtil em meus trabalhos, tentando cada vez mais relacionar
arte e vida. Logo vi nesta materialidade uma oportunidade de levar meu fazer artístico para
além de espaços expositivos, já que o bordado me permite ser meu próprio espaço expositivo.
Percebo que quanto mais discutimos sobre a arte como prática intrínseca a nossas
narrativas e experiências cotidianas, podemos distanciá-la de um local de privilégio ou
relacionado a um talento nato, o que por consequência aproxima a arte do público em geral,
que não está inserido nas academias. Perceber atos cotidianos, como neste caso caminhar e
bordar, como atos estéticos, parece-me possibilitar a desmistificação do fazer artístico,
propondo que repensemos o que é arte e o que é ser artista hoje.
Neste trabalho, caminhei e tramei como experiência existencial, relacionando-me de
outro modo com meu entorno. Refleti sobre a relação entre a cidade e o corpo, entre o corpo e
o têxtil, entre caminhada e processos educativos. Investigar uma corpografia urbana (BRITTO;
JACQUES, 2008), um caminhar atento, afetivo e sensível, transforma o espaço que habitamos
e nossa relação para com ele. Seja pelo simples fato de vivenciar a cidade de maneira
consciente, não alienada, modificando-a e me modificando simultaneamente, ou pelo impacto
causado no outro, no transeunte.
Para tal, realizei uma performance intitulada “Verbos de Ligação” onde utilizei um
vestido costurado e bordado por mim enquanto caminhei e utilizei o transporte público. Essa
deambulação funciona como uma performance da própria vida cotidiana (SCHECHNER,
2003). Pretendo entender o que posso aprender nestas caminhadas sobre mim, sobre minha
relação com o ambiente e sobre minha relação com a arte e a educação. Portanto, utilizei das
8
1
Para mais informações sobre as obras de On Kawara aqui citadas, visite:https://www.guggenheim.org/teaching-
materials/on-kawara-silence/postcards-i-got-up e https://www.guggenheim.org/audio/track/on-kawara-i-went-
1968-79.
11
Esse desvio, esse questionamento sobre a legitimidade da arte transpassa para além das
artes visuais. O músico John Cage (1912-1992) propôs um aspecto relacional à música em sua
célebre obra 4 '33'', onde o artista senta em frente ao piano e não toca uma nota sequer por 4
minutos e 33 segundos. A peça repensa a relação do músico com o público quando evidencia
não a apresentação musical em si, mas os ruídos feitos pelos presentes na apresentação. Cage
valorizava os sons de todos os tipos, não apenas provenientes de instrumentos. Além de
considerar esses sons como música, o artista reflete sobre a importância do silêncio na música,
tendo seu trabalho reverberações que alcançam a contemporaneidade, inclusive influenciando
muitos artistas visuais, estando sempre em contato com o grupo Fluxus. Cage repensou o ato
de compor como um todo, realizando músicas que eram compostas pelo acaso, usando o
oráculo chinês I Ching. John trabalhou por muitos anos com seu parceiro Merce Cunningham
(1919-2009), nesses trabalhos os dois propunham que a dança e a música não precisavam estar
em consonância, como podemos observar em “How to pass, kick, fall and run”2 (1965) onde
2
A apresentação pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=mJtD8vdl4Ec.
12
3
Para mais informações e imagens, visite: https://www.moma.org/calendar/performance/1583.
13
precisam ser emolduradas, ter um senso de realização. Toda ação tem o potencial de ser
considerada performance, mas para tal é preciso estar consciente sobre essas ações.
Tratar qualquer objeto, obra ou produto como performance - uma pintura, um
romance, um sapato, ou qualquer outra coisa- significa investigar o que esta
coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com
outros objetos e seres. Performances existem apenas como ações, interações
e relacionamentos (SCHECHNER, 2003, p. 29).
Importante notar que apesar de existir uma vasta gama de ações que podem ser
consideradas e estudadas como performances, isso não as faz serem julgadas automaticamente
como arte. Por exemplo: no balé e na caminhada performamos por meio de passos. Qual a
diferença entre eles? Seria a elegância dos movimentos da dança, a emoção que estes despertam
no espectador? Na contramão, penso em como nós no nosso cotidiano, supostamente não
dançante, possuímos individualmente uma maneira de andar, o jeito como o corpo se comporta
em diferentes espaços, penso em como eu reconheço os passos das pessoas que moram comigo
quando sobem as escadas, em como os dedos dançam quando manipulam as chaves e como
posso distinguir cada passo só pela audição. Para mim, os passos da chegada e da partida
também emocionam.
Porém, compreendo que o é e o que não é considerado arte foge do simples movimento
emotivo, pois essa decisão está embebida sobretudo de lugares de poder. É preciso que esta
minha leitura dos passos rotineiros seja ratificada por pessoas que detém o status necessário
para, supostamente, discernir o que pode ser contemplado como arte e o que é apenas vida. Vai
além da forma e estética: vai para quem pode narrar o outro.
A partir destas colocações, foco no trabalho de dois artistas reconhecidos que me
ajudam a visualizar a caminhada como performance do cotidiano: a sérvia Marina Abramović
(1946-) e seu então parceiro alemão Ulay (1943-2020).
Marina Abramović e Ulay nasceram no mesmo dia, 30 de novembro. Eles se
conheceram em uma festa em Amsterdam, também nesta mesma data. Os dois mantiveram
uma parceria simbiótica de vida e arte durante 12 anos, entre 1976 e 1988 realizando
memoráveis performances neste intervalo, como “Rest Energy” (1980); “Light/Dark” (1977) e
“AAA AAA” (1978). Em 1988 os dois romperam relações tanto artísticas quanto pessoais,
permanecendo anos sem contato.
Para marcar essa separação, realizaram uma performance chamada “The Great Wall
Walk”4 (1988). Nesta, ambos decidiram caminhar pela Grande Muralha da China, encontrando-
4
Um pouco mais da narrativa completa dessa performance bem como outros detalhes sobre a relação de Ulay e
14
cotidianas, a discussão sobre os limites da arte continua. Posso perceber pelo discurso de
Schechner (2003) que essas práticas rotineiras podem ser tratadas como performances, mas
quando uma performance deixa de ser interna, só do meu conhecimento, cotidiana (PELED,
2012) para ser considerada arte? Embora já tenha exemplificado aqui várias obras que são
performances bem como obras de arte que utilizam o dia a dia como poética, também utilizando
a caminhada como fonte de estudo, percebo que essas são criadas e realizadas por artistas
renomados e expostas em espaços consagrados. Então, retomo aqui a discussão de legitimidade
para refletir sobre a arte do cotidiano feita por pessoas não inseridas no cânone das artes ou no
mercado de arte. Utilizo novamente do pensamento de Allan Kaprow, que afirma ser neste
ponto que chegamos a um paradoxo:
Um artista preocupado com arte cotidiana é um artista que faz e não faz arte.
Qualquer coisa aquém do paradoxo seria simplista. A menos que a identidade
(e portanto o significado) do que o artista faz oscile entre o comum, atividade
reconhecível e a ‘ressonância’ daquela atividade num contexto humano mais
amplo, a própria atividade reduz-se a comportamento convencional. Ou se ela
é enquadrada como arte por uma galeria, reduz-se a arte convencional. [...]
Porém a vida comum performada como arte/não arte pode mudar o cotidiano
com um poder metafórico (KAPROW, 1993, p. 215, tradução minha).
Verbos de Ligação, performance, Letícia de Melo Andrade, 2020. Fotografia: Walton Ribeiro
importante achar as palavras que acredito fazerem jus ao que sinto, palavras que muitas vezes
custo a encontrar. Até que, recentemente, deparei-me com o trabalho de John Koenig, que cria
palavras para sentimentos que anteriormente não pareciam ter uma designação apropriada.
Assim aprendi que sonder, integrante de seu Dicionário das Tristezas Obscuras (Dictionary of
obscure sorrows originalmente) traduz essa vivência, por significar:
a percepção que cada transeunte aleatório está vivendo uma vida tão vívida e
complexa quanto a sua - ocupada pelas suas próprias ambições, amigos,
rotinas, preocupações e loucuras herdadas - uma história épica que continua
ao seu redor de maneira invisível como um formigueiro que se espalha no
subsolo, com passagens elaboradas para milhares de outras vidas que você
nunca saberá que existiram, na qual você talvez apareça apenas uma vez,
como um figurante bebericando café em segundo plano, como um borrão de
trânsito passando na estrada, como uma janela acesa no crepúsculo
(KOENIG, 2013, s/p).
Por isso, quero discorrer aqui sobre o caminhar como poética com o intuito de desfrutar
a cidade, uma caminhada afetiva, buscando perceber que o espaço urbano faz parte de nós na
mesma medida em que fazemos parte dele. Como dois organismos vivos que trabalham em
sintonia, numa relação de mutualismo, simbiótica. Desta forma, elaboro um estudo para além
da ação do caminhar, realizando assim uma reflexão sobre as relações tecidas na cidade.
Acredito que é possível, por meio da caminhada, modificar os espaços que vivemos e nos
modificarmos igualmente. Quero debater um pouco sobre como a caminhada tem essa
potencialidade de transformação, o poder metafórico a que se refere Kaprow no ordinário.
O caminhar é uma atividade múltipla, perpassada por vários propósitos. Reflito sobre
as diversas formas de caminhar: temos o caminhar de fé, das procissões, o caminhar dos
missionários mórmons, das promessas (essas às vezes nem são feitas com os pés); o caminhar
como exercício físico; o caminhar exploratório do turista; o caminhar para ir de um lugar a
outro, mas sem pressa, numa cadência quase musical; também temos o caminhar ansioso para
encontrar alguém, cheio de expectativa, de desejo, nesse caso o caminhar se torna quase como
um flutuar; entre tantos outros caminhos e caminhadas, ir e vir, outras diversas relações criadas
por nós com o espaço em que habitamos.
Em seu livro “Walkscapes: o caminhar como prática estética”, o arquiteto italiano
Francesco Careri (2013) apresenta um panorama muito completo sobre a caminhada como
formadora primeira do espaço. O autor remonta eventos da era paleolítica, unindo arte e
arquitetura para demonstrar as diversas faces e utilidades que a caminhada teve e tem ao longo
dos séculos. Careri defende que
18
Tento apresentar melhor meus entendimentos por meio da obra Body Configurations
20
(1972-76) da artista austríaca VALIE EXPORT. A artista nos apresenta seu corpo como
unidade de medida, uma escala, um modelo para a arquitetura da cidade. Ela realiza uma
corpografia urbana, uma cartografia feita pelo e no corpo. Não é com facilidade que VALIE
EXPORT se contorce para entrar no padrão arquitetônico, sendo esta uma das razões pela qual
acredito que esta obra contempla as corpografias, trata-se realmente de um exercício fazer-se
presente na cidade. Segundo a própria VALIE EXPORT,
No texto “Caminhar, um método poético” (DIAS; TERRA, 2019) podemos atentar para
o caminhar como fomentador de ações artísticas por meio da vivência total do espaço e do
corpo, com um andar compromissado apenas na descoberta da vivência de desejos.
Compreendo que a vivência do corpo na cidade modifica os espaços também de maneira física,
naturalmente, intuitivamente (Como intuitivamente?). Exercendo nossas vontades na
caminhada por vezes deixamos rastros na cidade, os chamados caminhos do desejo, onde o
corpo exerce suas vontades e necessidades. Estes caminhos são feitos pelos transeuntes,
quando abrimos novas rotas por espaços antes não designados para a passagem, transbordando
os caminhos determinados pelas calçadas, deixando rastros. Os caminhos do desejo são a prova
tangível da insuficiência do que é imposto pelo espaço urbano às demandas pessoais da vontade
de cada um. “Esse deslocar compreendido como instrumento estético de conhecimento e
modificação física do espaço, relaciona-se à forma autônoma de se fazer arte, a própria
intervenção urbana” (DIAS; TERRA, 2019, p. 348).
Por vezes, as trajetórias que encontramos na cidade parecem tão rígidas, para além da
nossa capacidade de mudança: prédios, calçadas, pistas, tudo isso mostra-se muito inflexível.
Porém, vejo nos caminhos do desejo um símbolo de resistência dos transeuntes, pois é a partir
das necessidades daqueles que usufruem do espaço urbano cotidianamente que se forma uma
cidade. É desta forma que criamos experiências, nos inserindo neste ambiente, construindo
novas formas de ver e viver.
5
Trecho de entrevista dada pela artista austríaca VALIE EXPORT (1940-) em 2018 para a galeria francesa
Thaddaeus Ropac sobre sua série de performances/fotografias Body Configurations (1972-76), em exposição
naquele ano. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fhFNhqjmT_k. Acesso em: 20 de julho de
2021.
21
Em uma matéria sobre esses novos trajetos no jornal inglês The Guardian, deparei-me
com o entorno do nosso Congresso Nacional em Brasília sendo usado como exemplo por conta
dos seus nítidos caminhos do desejo. É interessante lembrar que a capital brasileira é uma
cidade planejada, então temos esse encontro do que se necessita estruturalmente numa cidade
e o que os corpos que a habitam também precisam diariamente.
Caminhos do desejo são marcas de resistência, são rasgos, rugas presentes no corpo
urbano, são atalhos que planejam novas cidades. Partindo do que foi discutido neste tópico,
podemos vislumbrar novos percursos presentes nesta ação tão antiga que é o caminhar. Percebo
que
o estudo das relações entre corpo - corpo ordinário, vivido, cotidiano - e
cidade, poderia nos mostrar alguns caminhos alternativos, desvios, linhas de
fuga, micro-políticas ou ações moleculares de resistência ao processo molar
de espetacularização da cidade, da arte e do próprio corpo - na
contemporaneidade. [...] Da relação entre o corpo do cidadão e um outro
corpo urbano poderão surgir outras formas de apreensão urbano-corporal e,
consequentemente, outras formas de reflexão, de relação e de intervenção nas
artes e nas cidades contemporâneas (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 340).
22
3. Verbos de ligação6
6
Todas as imagens apresentadas neste tópico foram produzidas por Walton Ribeiro e fazem parte da vivência
performática Verbos de Ligação realizada por mim em 2020, a não ser quando exposto o contrário.
23
24
Eu tenho o mesmo nome que minha melhor amiga. As pessoas acham muito estranho
quando conversamos e trocamos Letícias pra lá e pra cá. Apesar das letras formarem o mesmo
som e terem o mesmo significado de alegria, o Letícia dela é outro para mim, não sinto que
digo meu próprio nome quando falo com ela. Tenho um amigo que adora brincar com isso,
sempre que estamos juntas ele grita “Letícia!” só pra nós duas olharmos e ele começar a rir. Às
vezes acredito que a gente sabe distinguir se estão falando comigo ou com ela pelo jeito que
dizem nosso nome.
Os nomes são palavras de muitas coincidências. Um dos sobrenomes de solteiro do meu
pai e da minha mãe é Andrade. Hoje separados, os dois continuam com os mesmos nomes de
antes de casados. Porém, um dia desses descobri que, também de ambos os lados, o Andrade é
quase falso: meu avô paterno e bisavô materno pegaram emprestado esse sobrenome de
parentes não tão diretos, os dois quiseram colocá-lo em seus filhos. Meu Andrade parece muito
distante de sua origem nas terras da Vila de Andrada, pertencentes a uma família originária da
Galícia na Espanha7, o nome se dá realmente aos desejos do meu avô e bisavô. Já minha avó
decidiu que o Mello do seu nome era melhor sem um “l”, nos fazendo Melo.
A partir dessas pequenas anedotas sobre meu nome, é fácil perceber como minha
história confunde-se a tantas outras, como minha existência conversa constantemente com a
vivência dessas outras pessoas, me compõem. Tendo em mente esses sentimentos, surgiu-me
a vontade de tecer para e com eles, mostrar visualmente, de maneira tátil, sua presença
ininterrupta. Seus nomes aparecem para mim bordados em um vestido que confeccionei ainda
em 2020, para que eu possa levar todos os que amo comigo de maneira palpável por onde
passar.
7
Sobre a origem dos Andrades e outros sobrenomes usuais brasileiros, consulte: https://super.abril.com.br/
especiais/a-origem-dos-50-sobrenomes-mais-comuns-do-brasil/#andrade.
25
Vestido de algodão costurado, bordado e estampado à mão, Letícia de Melo Andrade, 2020.
O trabalho que apresento aqui une a saudade que estava na quarentena de enunciar esses
nomes pessoalmente, do encontro, do toque, da falta que sentia (e ainda sinto) de ocupar o
espaço urbano como antes fazia. Além do trecho que abre este tópico, continuo inspirando-me
em Hilda Hilst quando ela diz, “Túlio, só de te ouvir o nome, desfaleço” (HILST, 2018, p. 46).
Queria despertar essa sensação nos transeuntes, ativar suas memórias ao lerem esses nomes,
palavras tão banais, para que imaginassem seus Alexandres, suas Brunas, Guilhermes, Rafas…
Queria fazer com isso uma rede de pessoas que se interligam por meio da minha vivência,
convidando quem estivesse no caminho para encontrar-se com as lembranças de quem se ama.
O têxtil, tão maleável, aceita que eu passe as marcas que essas pessoas me deixaram para seu
tramado, encontro brechas na confluência dos fios para que eu possa deixar ali esses poemas
de uma palavra só, verbos de ligação.
Peter Stallybrass (2008) compreende a roupa muito além de um pensamento puramente
estético: o autor investiga a relação entre o vestir e suas implicações sociais, econômicas, de
gênero, culturais e também emocionais. A roupa é vista não apenas como objeto da moda, mas
é analisada pelos seus vínculos afetivos, é explorada como produto de dimensão sensorial. Peter
discorre sobre a permanência dessas peças em nossas vidas e sua importância como artefatos
de união entre entes queridos.
26
Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe:
recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma. E quando
nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda
ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo
tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos
(STALLYBRASS, 2008, p. 10).
A roupa tem seus caminhos: são herdadas, doadas, vendidas, trocadas. Pequenos
consertos são feitos, como bainhas e remendos; as roupas transmitem as andanças nas bolinhas
de tecido que se formam entre as pernas das calças; algumas têm marcas de desodorante;
guardam manchas de encontros regados a comidas e bebidas que se derramam para ficarem na
memória dos tecidos. Vejo como esse vestido também aproxima-se da teoria do
artista/arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), que propunha a roupa
como uma segunda pele8. Para ele, nós possuímos cinco peles: a epiderme; as roupas; nossa
casa; nossa identidade, as relações interpessoais e a Terra.
A peça ativa minha epiderme pelo arrepio de vê-la sendo percebida pelos outros
transeuntes, é pele e roupa. Trata-se realmente de ofício de magia, um caminhar ritualístico
envolto na preciosa banalidade do cotidiano, é uma casa que sempre me recebe carinhosamente,
com suas gavetas lotadas de lembranças. Este trabalho é constante, todas as vezes que caminho
com este vestido outras trajetórias são abertas. Lembro-me de um trecho de “O Livro dos
Abraços”, de Eduardo Galeano (2020) quando este fala justamente dessa magia envolta no
contar e cantar, de reviver o que e quem adormece e/ou já não existe, mas que se faz presente
em nossas vozes e vivências. Utilizando-se de uma saia como objeto metafórico, Galeano fala
sobre essa necessidade de vestir memórias e levá-las consigo.
Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma
mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas
histórias e as conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio.
Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos
bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma
história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer
tornar a viver por arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos
e os mortos, e das profundidades desta saia vão brotando as andanças e os
amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai. (GALEANO,
2020, p. 17)
No dia 21 de agosto de 2020 tive a oportunidade de caminhar pela primeira vez com
este vestido, as fotos aqui apresentadas foram produzidas neste dia. O trajeto aconteceu pela
8
Para mais informações, consulte: https://hundertwasser.com/en/applied-art/apa382_mens_five_skins_1975
27
orla de Boa Viagem, no calçadão. Considero o mar como um componente muito importante
em minha vivência de cidade, moro relativamente perto dele e rotineiramente o vejo por conta
das rotas dos ônibus que utilizo. Meu imaginário do espaço urbano é permeado pela água, pela
brisa e pela areia. Da mesma maneira que a caminhada atenta pela cidade me faz sentir
ancorada no presente, na experiência, no agora, o mar também me comove desta mesma forma.
Nesse mesmo dia, enquanto voltava de ônibus pra casa, em pé por ser Recife às 18h,
percebi que duas mulheres sentadas perto de onde eu estava ficaram olhando pra mim e para o
vestido, lendo os nomes. Isso me alegrou tremendamente, senti que tinha atingido meu
propósito, um provocamento a recorrer a memória. Não sei se os nomes que estavam ali
bordados as lembraram de alguém (torci muito para que sim) ou se apenas acharam estranho
essa menina com um vestido branco quase no pé com os nomes de um monte de gente
costurados. Em qualquer um dos casos, espero tê-las tocado. Isso tudo lembra-me muito da
música “Cais”, do Clube da Esquina, cantada por Milton Nascimento onde ele diz:
Por muito tempo pensei que a discussão sobre os aspectos estéticos da caminhada não
teria lugar em minha experiência docente no ensino básico. Dei início a esta pesquisa
negligenciando seu potencial pedagógico por não enxergar que, mesmo a caminhada não sendo
usualmente discutida de maneira prática em Artes Visuais nas escolas, isso não me impedia de
a perceber como uma potente metáfora para nossas descobertas no meio educacional. Demorei
para ver que esta caminhada já estava em curso, que eu estava percorrendo esta estrada ao
mesmo tempo que construía um trajeto, eu adquiria e trocava conhecimentos.
Isso tudo mudou quando cursei a disciplina de Estágio 1, onde fiquei responsável por
ministrar aulas no 8º ano do ensino fundamental. Na parte de regência, a professora responsável
pela turma propôs que eu trabalhasse com o livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Logo
identifiquei a oportunidade de desenvolver um projeto que andasse lado a lado a esta
investigação, pretendendo aguçar a percepção dos cotidianos e do que acontece no ambiente
urbano. Quais as cidades que cada um habitava; o que transbordava e penetrava entre esse
espaço indivíduo-urbe; onde estava a arte neste processo tão rico que é a caminhada e o
conhecer a cidade?
No livro de Calvino, o imperador Kublai Kahn pede ajuda ao comerciante Marco Polo
para que este descreva seu reino. Ao destacar este fato numa das aulas de Artes Visuais que
observei em meu estágio, um aluno apontou o suposto absurdo da situação, destacando que
pedir que um terceiro descreva seu império para que assim possa conhecê-lo “é tipo você não
saber quais os cômodos da própria casa”. A partir da contemplação desta fala, quis destacar em
minhas aulas a importância de não deixarmos que isso acontecesse também em nós, que
pudéssemos conhecer o espaço em que vivemos, o que diz respeito também a nos conhecermos
como espaço de transformação e morada.
As cidades de Calvino são descritas de maneira a imaginar sua arquitetura, sua instância
palpável, ao passo que parece também nos descrever como cidades, inserindo pensamentos
sobre nossas experiências. Em sua “A Poética do Espaço”, Gaston Bachelard (1993) discute as
várias leituras possíveis de serem feitas a partir da análise da nossa relação com os espaços que
habitamos, o que toma forma a partir do estudo de cômodos da casa; gavetas; objetos como
conchas e ninhos. O autor afirma que “nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das
‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos. Vemos logo que as imagens
da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como estamos nelas” (BACHELARD,
31
1993, p. 21).
O debate sobre cidades e como ocorre a fruição a partir destes locais ilumina
problemáticas importantes que referem-se também a questões sociais, políticas e culturais e
como essas particularidades modificam-se dependendo do lugar em que moramos. A
caminhada encoraja, desta forma, uma leitura do espaço de maneira poética e política. Sendo
assim, os/as estudantes começaram a destacar em aula, muito organicamente, temas como
políticas públicas para o melhoramento desses espaços e como essas ações mudam de acordo
com as áreas e o poder aquisitivo dos que nela moram; a diferença na arquitetura de bairro para
bairro; o tipo de área de lazer e programas culturais disponíveis em áreas distintas da cidade;
etc. Desta forma, podemos perceber como o estudo da caminhada pode instigar o pensamento
crítico do que nos rodeia cotidianamente.
Uma educação pautada no caminhar e no que encontramos nos trajetos é o que Rita
Irwin propõe. A autora acredita que, por meio da a/r/tografia é possível desenvolver um
currículo mais fluido, em que podemos retomar a etimologia da palavra e perceber como a
mesma advém do latim currere, que significa caminho, percurso. O currículo, neste caminho,
ultrapassa conteúdos, planejamentos e grade de horários. Entender que o currículo pode ser
refeito, reconstruído com a trajetória de professores/as e estudantes, numa construção conjunta
de sentidos e imagens. Irwin (2019) entende que “com a a/r/tografia, artistas e educadores estão
envolvidos em processos dinâmicos de ser e tornar-se, onde tudo está em movimento” (IRWIN,
2019, p. 3, tradução minha).
Partindo dessas reflexões e aglutinando-as à minha narrativa poética descrita
anteriormente, decidi propor como atividade para os/as estudantes a realização de lambe-
lambes, que poderiam ser feitos a partir de qualquer suporte artístico, para que eu pudesse
colocá-los pela cidade, fazendo uma espécie de exposição urbana em que eu teria o papel de
montagem. Desejei muito que todos/as pudessem ter tido a oportunidade de participar em todas
as etapas do projeto, sei que a experiência de levá-los para rua seria magnífica, porém por conta
dos protocolos de enfrentamento da COVID-19 e as aulas remotas, não tivemos essa
possibilidade. Mesmo não tendo contato presencial com os/as discentes, recebi obras
maravilhosas em formato de desenhos, artes digitais, colagens, memes, etc. Todas as poéticas
foram compartilhadas e debatidas em aula, assim como um catálogo com as obras,
acompanhadas de pequenos textos feitos pelos/as alunos/as sobre suas produções e o endereço
onde poderiam encontrar seus trabalhos.
Por ter deixado as escolhas do que seria exposto totalmente a critério dos/as estudantes,
pude perceber as visualidades presentes em seus cotidianos, o que eles/as julgavam ser imagens
32
relevantes para a exposição na rua e as mensagens que queriam passar com isso. Já o
entendimento dessas obras dependeria das visualidades presentes no repertório dos transeuntes,
o que é impossível de se antever. Acredito que essas variantes são relevantes de serem
analisadas e creio que a Fernando Hernández (2001, p. 52) traz esses aspectos de maneira
latente quando discorre sobre a Cultura Visual:
Colagem dos trabalhos dos/as estudantes nas ruas de Recife e Jaboatão dos Guararapes.
Fotografias: Graciela Ferreira, agosto de 2021.
Passando pelas ruas onde colei os lambes, tanto andando como de bicicleta, pude ver
que praticamente todos foram retirados. Realizar atividades na rua requer um acordo tácito
entre quem produz e os transeuntes, já que diferente de outros espaços expositivos como
museus e galerias, ninguém saiu especificamente para apreciar as obras, o que para mim é
33
interessantíssimo.
É redundante falar sobre como essa vivência me despertou para horizontes ainda muito
inexplorados por mim, formando-se um caminho do desejo tendo como guia primeiro o acaso,
depois a sede por mergulhar profundo ao mesmo tempo que aprendia a nadar. Vejo como essas
experiências me modificaram, estou ladrilhando um caminho ao mesmo tempo que o trilho.
Lembro-me da cidade sonhada por Kublai Khan e como, também em minhas memórias sobre
esse espaço novo que é a prática docente e as mudanças ocorridas a partir delas, percebo que
“a cidade existe e possui um segredo muito simples: só conhece partidas e não retornos”
(CALVINO, 1990, p. 55). Não poderei retornar ao espaço em que estava antes dessa
experiência, fui permanentemente modificada.
34
Sua orientação interior existe, mas o indivíduo não a conhece. Ela só lhe é
revelada ao longo do caminho, através do caminho que é o seu, cujo o rumo
o indivíduo também não conhece. O caminho não se compõe de pensamentos,
conceitos, teorias, nem de emoções - embora resultado de tudo isso. Engloba,
antes, uma série de experimentações e de vivências onde tudo se mistura e se
integra e onde a cada decisão e a cada passo, a cada configuração que se
delineia na mente ou no fazer, o indivíduo, ao questionar-se, se afirma e se
recolhe novamente das profundezas de seu ser. O caminho é um caminho de
crescimento. Seu caminho cada um o terá que descobrir por si. Descobrirá,
caminhando. (OSTROWER, 2001, p. 76)
Percebi o espaço urbano como local propício para as mais diversas experimentações
artísticas e educativas, repleto de pulsação. Isso me levou a questionar minha formação
acadêmica e os espaços expositivos no campo das artes visuais. Pensar que meus trabalhos só
seriam vistos pelo público em geral se fossem legitimados por espaços expográficos formais
ou pela academia sempre me frustrou. Atentei então ao fato de que, mesmo que essa
legitimação acontecesse, esses espaços ainda são ocupados por uma parcela muito reduzida e
específica de pessoas. Por perceber cada vez mais a arte como prática indissociável da própria
vida, comecei a tramar esse trabalho para que pudesse ser compartilhado independentemente
dessa validação, que realmente fizesse parte da minha existência para além desses espaços
fechados, das paredes, para além das minhas gavetas. Assim iniciei o processo de caminhar.
Acredito que apresentei as transformações que a caminhada me proporcionou e suas
potencialidades de mudança do espaço e de quem o trilha. Lembro-me bem quando li o
primeiro texto sobre como essa prática pode ser considerada um processo estético e logo
percebi como isso alinhava-se com o que eu sentia (e ainda sinto) sobre andar na cidade. Porém,
um ano de pesquisa é um tempo considerável, já não sou a mesma de quando iniciei esse
35
caminho, o que para mim foi difícil pois chegou um momento onde pensei que estava
escrevendo junto a uma pessoa que não existia mais.
Contudo, começo a pensar que é essa a beleza do caminhar, um eterno movimento, uma
transformação constante, um formar que não acaba. Falo aqui sobre novos sentidos de rotação
e equilíbrio pois acho que hoje utilizo-me de outros dispositivos para facilitar minha
localização na prática artística/educativa/investigativa. Sou um corpo fora da órbita onde antes
circulava, minha bússola interior me revela outro norte.
36
37
Referências:
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BASTOS, Ronaldo; NASCIMENTO, Milton. Cais. In: Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-
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Revista Brasileira de Educação, nº19, p. 20-28, 2002.
BRAMLEY, Ellie Violet. Desire paths: the illicit trails that defy the urban planners. The
Guardian, 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/cities/2018/oct/05/desire-
paths-
the-illicit-trails-that-defy-the-urban-planners. Acesso em: 11 de outubro de 2021.
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 1ª ed. [Le
città invisibili, 1972].
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G.
Gili, 1ª ed., 2013.
DIAS, Karina; TERRA, Tatiana. Caminhar: um método poético. In: SOUZA, Ivan Vale de
(org.). A Produção do Conhecimento nas Letras, Linguísticas e Artes 3. Ponta Grossa. Paraná:
Antena Editora, v. 3, p. 343-353, 2019.
GALEANO, Eduardo. O Livro dos Abraços. Porto Alegre, Rio Grande do Sul: L&PM, 2020.
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
IRWIN, Rita L. Walking to Create an Aesthetic and Spiritual Currere. Chicago, EUA: Visual
38
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KAPROW, Allan. Performing Life. São Paulo: ARS, USP, ano 7, nº14, p. 113-117, 2010.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/3088/3777. Acesso em 16 de out
de 2020.
_________. Essays on the blurring of art and life. Califórnia, EUA: University of California
Press, 1993, Editado por Jeff Kelley.
KOENIG, John. Sonder. In: The Dictionary of Obscures Sorrows. Disponível em: https://
www.dictionaryofobscuresorrows.com/post/23536922667/sonder. Acesso em: 04 de abril de
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MÃE, Valter Hugo. O Paraíso são os outros. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2018.
O’HARA, Frank. Hoje. In: Três Poemas de Frank O’Hara. Tradução de Beatriz Bastos.
Suplemento Pernambuco. Disponível em: https://suplementopernambuco.com.br/in%C3%A9
ditos/1866-tr%C3%AAs-poemas-de-frank-o-hara.html Acesso em: 14 de fevereiro de 2020.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 15ª ed., Petrópolis, Rio de Janeiro:
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PELED, Yiftah. Performance na contemporaneidade. São Paulo: ARS, USP, ano 10, nº.19, p.
49-63, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/58494. Acesso: 28 de
outubro de 2020.
Recife
2021
3
Banca Examinadora
________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Betânia e Silva (Orientadora)
___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Luciana Borre Nunes (Examinadora interna)
___________________________________________________________________________
Profº. Ms. Augusto César de Holanda Santos (Examinador externo)
4
Agradecimentos
A Deus, primeiramente, pois sem Ele eu não teria forças para continuar nesta jornada sinuosa
que é a universidade pública.
À minha família, em especial minha mainha Maria Rosa, que sempre se desdobrou para que eu
e minha irmã pudéssemos estudar, que acreditou em mim enquanto artista e arte/educadora,
usando suas palavras e suas ações para me auxiliar no que fosse preciso. Espero que um dia eu
possa ter pelo menos um pouco da sua sabedoria e fé, pois sem a sua luta eu não teria sido a
primeira pessoa da nossa família a ter um curso superior.
Ao meu painho Antônio Higino por contribuir com a minha formação, por ser presente, pelos
ensinamentos e por todos os trajetos que cursamos e iremos cursar juntos.
Ao meu namorado Fernando, por ser um companheiro amoroso, cuidadoso, um ótimo ouvinte
e conselheiro, que está ao meu lado em momentos felizes e tristes, te amo muito.
À minha orientadora Betânia, pela paciência, por respeitar meu tempo de pesquisa e escrita, por
ser uma inspiração, você é o significado de leveza e luz.
À professora Luciana Borre, que com o seu projeto Tramações, contribuiu para que eu me
enxergasse enquanto artista, educadora e pesquisadora e a Guto Oca que aceitou fazer parte
deste percurso de aprendizado.
Às amizades que fiz no curso, pela escuta atenta, pelos risos, choros, pelas danças, andanças e
por tantos momentos inesquecíveis. Carol, Glau, Mag, Pam, Ste, Nathê, Ali, Kécia, Thaysa,
Camila e Mônica (in memoriam).
Às pessoas que construíram essa história comigo, colaborando com as minhas pesquisas e
produções artísticas direta e indiretamente.
Aos que irão chegar, não desistam dos seus sonhos e das suas lutas.
5
RESUMO
A presente pesquisa tem como temática central memórias autobiográficas por meio da
investigação dos processos de criação com foco em meus cabelos crespos. Os objetivos desta
são: registrar narrativas pessoais e suas contribuições para meu processo criativo; revisitar
arquivos com relação aos meus cabelos crespos dos 8 aos 26 anos de idade e analisar como este
material está sendo fonte para meus trabalhos artísticos e acadêmicos. Para tanto, o percurso
metodológico contempla elementos da pesquisa autobiográfica, baseando-se em conversas com
familiares, álbuns fotográficos, manuscritos, livros e objetos pessoais. O estudo em questão
mostra como as trajetórias de vida não se desvinculam das nossas pesquisas e produções
artísticas.
ABSTRACT
This research has as its central theme autobiographical memories through the investigation of
the creation processes with a focus on my kinky hair. The objectives of this one are: to register
personal narratives and their contributions to my creative process, revisiting archives regarding
my 8 to 26 years old kinky hair and analyzing how this material is being sourced for my artistic
and academic works. Therefore, the methodological path includes elements of autobiographical
research, based on conversation with family members, photo albums, manuscripts, books and
personal objects. The study in question shows how life trajectories are not disconnected from
our research and artistic productions.
SUMÁRIO
Figura1: Fotomontagem. À esquerda (de cima para baixo): eu no meu aniversário de um ano (1996);
foto com meu pai (1997); minha irmã e eu quando crianças (sem data); foto minha com Ryellen
segurando minha afilhada Bianca (2003). Ao centro (de cima para baixo) encontram-se imagens
minhas indo à praia, na formatura do ABC e posando para o retrato (sem datas específicas. Ao lado
direito (de cima para baixo); foto com minha irmã brincando na primeira rede de pesca do nosso pai
(sem data); foto com mainha e tia Lena no meu aniversário de um ano (1996); eu criança (sem data).
Acervo pessoal.
11
Quando nasci mainha disse que você era lisinho, painho vivia o penteando. Não demorou muito
e os fios foram caindo, fiquei uma bebê careca e depois de algum tempo sua real curvatura
apareceu. Penteados foram surgindo, tranças eram feitas aos domingos para que durassem a
semana inteira, fios presos fortemente evitando ficar despenteada na rua. Ninguém sabia cuidar
de você, a não ser mainha (o que fazia eu chorar quando ela ficava doente ou se precisasse ficar
na casa de algum parente enquanto ela trabalhava). Cresci e via minhas amigas na escola com
os cabelos soltos, o jeito era te alisar, “controle dos fios rebeldes” assim prometia. Um odor,
ardiam os olhos e o couro cabeludo, nesta ação a raiz tentava resistir a tantos processos químicos
e quebrava. Peço desculpas por lhe maltratar tanto, tinha raiva por não ter os cabelos lisos que
batiam no comprimento da cintura. Eu alisava, você persistia, assim foi dos oito aos vinte anos
de idade, tendo cortes químicos, pouco crescimento capilar, sendo refém de escova e chapinha
toda a semana, mesmo assim eu não me/te aceitava.
Ao refletirmos sobre a temática da identidade nos deparamos com Candau (2011) que
desenvolveu um estudo aprofundado sobre a relação entre esta e a memória. O autor nos ajuda
a entender que a memória é geradora de identidade, no sentido que participa de sua construção,
essa por outro lado, molda predisposições que vão levar os indivíduos a incorporar certos
aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais que dependem da representação
que se faz de sua própria identidade, construída no interior de uma lembrança.
Ao longo de sua reflexão o autor afirma não haver busca identitária sem memória e,
inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade. Nesse
raciocínio, a memória é entendida como uma reconstrução continuamente atualizada do
passado, mais do que uma reconstituição fiel dele.
Assim, revisitando as memórias, lembro que por ter cabelos crespos e volumosos, minha
mãe passava horas desembaraçando e fazendo tranças para que durassem a semana inteira, tanto
no meu cabelo como no da minha irmã. Gomes (2008, p. 184) aponta que “as tranças são as
primeiras técnicas para manipulação do cabelo, porém, nem sempre eleita pela criança negra,
hoje, mulher adulta, como o penteado preferido da infância". Chorávamos pela dor ao
desembaraçá-lo e pelo tempo que passávamos sentadas esperando que os penteados ficassem
prontos. São os acúmulos dessas dores que fazem com que a maioria das meninas negras desde
12
pequenas sejam ensinadas que o cabelo liso é o facilitador ao pentear, além do padrão aceitável
pela sociedade.
Diante dessa rememoração, as lembranças que guardamos de cada época de nossa vida,
se reproduzem sem cessar e permitem que se perpetue o sentimento de nossa identidade. Sem
lembranças o sujeito é aniquilado. A memória é de fato uma força de identidade, afirma Candau
(2011).
Lembro-me que estava na casa de tia Tonha no sítio, foi onde usaram em mim o alisante
pela primeira vez aos oito anos de idade. Meus olhos arderam, o couro cabeludo também, só
pensava que o sacrifício deixaria o meu cabelo “bonito”. Com essa transformação ganhei fios
aparentemente lisos, senti o medo da chuva, da água da praia, piscina, marcada por olhares no
espelho de não reconhecimento, fez-me achar que ser negra era uma ofensa.
Por mais que eu insistisse em alisamentos, continuava me achando feia, enquanto eu só
queria ser bonita igual às meninas e mulheres brancas que apareciam com os cabelos lisos na
televisão. Silva (2015. p. 3) retrata que “negar outros tipos de beleza que não outra senão a
branca, determina que os cabelos lisos são o referencial do máximo exigido padrão de beleza,
impondo que esta é a alternativa única, existente e plausível”.
Alisar os cabelos era uma forma de estar enquadrada na sociedade, já que parentes e
amigas faziam o mesmo procedimento. Iniciava-se um rito de passagem do cabelo crespo para
o alisado. As embalagens dos produtos continham sempre as mesmas descrições “para cabelos
rebeldes e/ou difíceis”. Seria rebeldia nascer com cabelos volumosos e crespos? Um cabelo
difícil é aquele que resiste após tantos processos químicos?
Kilomba (2019, p. 127) descreve que “essas eram formas de controle e apagamento dos
‘sinais repulsivos’ da negritude”. Por isso, deve-se questionar o que se é imposto, afinal,
cabelos afro trazem consigo a simbologia, uma mensagem política de fortalecimento de raízes
identitárias contra a opressão racial.
Se observarmos durante muito tempo as propagandas, programas televisivos e em
diversas mídias, sempre veicularam um modelo de beleza predominantemente centrado no
homem e na mulher branca, de cabelos lisos e longos. Esse estereótipo, pouco a pouco foi sendo
incorporado no inconsciente coletivo e produziu inúmeros preconceitos e rejeição à
diversidade, à diferença, à beleza da multiplicidade humana. Além de estabelecer e reforçar
continuamente a baixa autoestima em muitas pessoas que não se enquadram no modelo
valorizado pela sociedade.
Nesse sentido, reforça Candau (2011) que a memória é a identidade em ação, mas ela
pode, ao contrário, ameaçar, perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade. O jogo da
13
Figura 2: Registros de quando eu alisava os meus cabelos na adolescência, entre os anos de 2013 e
2014. Acervo pessoal
14
Figura 3:Fotomontagem. À esquerda (de cima para baixo): foto com meu pai na minha colação de
grau em Gestão em Marketing; com minha amiga e artista Anne Souza; com minha professora Ianara.
Ao centro; foto quando cortei o meu cabelo para tirar toda a química que o alisava (dezembro de 2015;
foto com Ianara surpresa ao ver meu cabelo. À direita com minha mãe (todas as imagens foram de
2015). Acervo pessoal
17
Passei anos da minha vida querendo ser aceita socialmente, usando uma textura capilar
que não era a minha, então decidi resgatar o meu cabelo natural e abandonar os alisamentos por
meio da transição capilar 1em janeiro de 2015, eu tinha 19 anos de idade. Optei por esta etapa
na minha vida pois estava cansada de me sentir refém de procedimentos químicos, onde em
muitos momentos houve quebra capilar, minha autoestima andava fragilizada e nessas ações
inconscientemente pratiquei o que descobri anos depois serem atos de violência física e
simbólica. Fernandes e Belmiro (2021, p. 269) explicam que “a violência simbólica manifesta-
se no cansaço em relação aos processos de alisamento e na incapacidade de se conhecer por não
saber a textura natural dos cabelos. A violência física é em razão de cortes químicos, quando
os cabelos caem pelo uso de produtos alisantes.”
Por esses fatores, quando rememorava a minha história, sentia-me insegura ao cogitar
esta transformação. O medo de não me reconhecer com os cabelos crespos e curtos, das piadas
preconceituosas, de não aguentar e voltar a alisá-lo. Neste momento transitório que começava
a ser abordado pelas mulheres pretas na internet, vi em minha amiga Andressa uma inspiração,
naquele momento senti que também seria forte e aguentaria todo o processo. Por coincidência
passei pela transição capilar quando eu estava trabalhando e precisava lidar com o público, o
fator da aparência contava muito, no início minha mãe fazia pitós/ bantu knots2(inclusive eram
feitos na minha infância) para texturizar os meus fios e os deixarem com cachos. Um dos
episódios mais importantes da minha vida quando estava nesta fase, foi poder participar da
minha colação de grau em gestão em marketing e receber o diploma das mãos de Ianara, a
minha primeira professora preta que usava o seu cabelo natural. Souza (2018) aborda como a
transição capilar faz com que as mulheres negras tenham o novo olhar de si, já que por muitos
anos tiveram sua estética desvalorizada e marginalizada.
1
Processo de eliminação de toda a química que existe no cabelo para deixá-lo natural.
2
Bantu knots, ou o popular coquinhos, são pequenos coques feitos na extensão do cabelo usado em todo
continente africano
18
Figura 4: Arquivo da primeira imagem postada nas redes sociais no início da transição capilar
(2015). Acervo pessoal
Com um novo olhar sobre a autoestima, as mulheres da minha família foram tomando
coragem para assumirem seus cabelos naturais, minhas tias Lourdes e Noêmia viram em mim
uma referência. O que me faz refletir sobre o discurso que não é só o cabelo, mas toda a
construção identitária por trás destas ações. Enquanto havia resquícios de alisamento eu usava-
os soltos, mas ao longo dos onze meses de impaciência e redescobertas já não conseguia penteá-
los, embaraçavam com facilidade, viviam presos, a raiz estava começando a ficar crespa e o
resto do cabelo estava “morto”.
Por não aguentar mais a situação dos meus cabelos, eu chorava quase todos os dias. Em
18 de dezembro de 2015 tive coragem e pedi à cabeleireira para deixar o mais curto possível,
após o episódio a primeira coisa que ouvi do marido dela foi “nossa Ray, não vai dá nem uma
escovinha?”, eu disse que daquele momento em diante assumiria meus fios naturais. Percebi
que ao fazer o big chop 3 não me importei de usá-lo tão curto, vi-me renascendo. Guardo este
momento como um arquivo de resistência, ressaltando a importância de resgatar minhas raízes,
pois
os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar
celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não
são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre
focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à
3
Consiste no corte da parte alisada quimicamente do cabelo, deixando apenas os fios naturais.
19
Diante disso, as lembranças, imagens e escritos que fazem parte desta pesquisa são
lugares de memória4, que há tempos os colonizadores quiseram apagar do povo preto, são
registros que fazem com que eu não esqueça da minha história. Ainda assim houveram
momentos nos quais me senti vulnerável na forma como a sociedade trata mulheres de cabelos
curtos e crespos, como se o feminino estivesse atrelado ao estereótipo das madeixas longas e
lisas. Estava começando a entender como cuidar do meu cabelo, após alguns meses do corte,
nesta construção identitária e de autoestima fui surpreendida ao saber que seria a primeira
pessoa da minha família a ingressar na universidade pública.
Figura 5: Arquivo de quando cortei o cabelo para retirar a química (2015). Acervo pessoal
4
Lugar de memória é um conceito criado pelo historiador francês Pierre Nora, no final da década de 1970, que
significa lugares, no sentido mais completo do termo, como museus, monumentos, um evento, uma
personagem, um arquivo, um livro, entre outros, que se caracterizam pela função ou identidade memorialística,
ou seja, são restos que se perpetuam pelo tempo, espaços onde a memória fixou, servindo como registro onde
não há mais registro.
20
bem difíceis, tive que largar o meu emprego para me dedicar aos estudos em período integral e
não me encaixava com as disciplinas práticas, todas as produções que fiz em desenho, pintura,
gravura e argila, não faziam sentido para mim. O que me fez pensar diversas vezes em desistir
do curso. Por outro lado, tive a oportunidade de conhecer educadoras/es, artistas, amigas/os que
me auxiliaram e compartilharam de seus processos de aprendizagem, suas memórias pessoais
e suas lutas, resistindo ao sistema excludente que insistia em nos tirar do local de ensino que é
nosso por direito.
A primeira vez que pensei sobre minhas produções artísticas foi no projeto de extensão
chamado Tramações, que em 2018 trazia a temática sobre gêneros e sexualidades. De início
tive receio, iríamos expor uma obra autoral, mas até então eu achava que não tinha o “dom” da
criatividade, por não saber pintar ou desenhar de forma realista. Naquele momento só conseguia
pensar que o meu trabalho falaria sobre mim e o que ecoava na minha cabeça eram os meus
cabelos e as memórias que estavam recentes da transição capilar. A partir deste projeto comecei
a ter consciência da importância de registrar o meu processo criativo e as pesquisas no ensino
das artes, de forma que
não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram
um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino
porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar,
constatando, intervenho, intervindo educo e me educo.” (FREIRE, 1996, p. 16)
Através destas palavras poéticas de Paulo Freire, entendo que estou em constante
exercício de aprender para compartilhar e que falar dos meus percursos através das memórias e
dos meus cabelos, também se tornou uma forma de encontrar o meu lugar na arte/educação e
nas minhas produções artísticas.
21
22
As intenções se estruturam junto com a memória. São importantes para o criar. Nem
sempre serão conscientes nem, necessariamente, precisam equacionar-se com
objetivos imediatos. Fazem-se conhecer, no curso das ações, como uma espécie de
guia aceitando ou rejeitando certas opções e sugestões contidas no ambiente. Às
vezes, descobrimos as nossas intenções só depois de realizada a ação. (OSTROWER,
2001, p. 18)
Fayga (2001) relata que cada memória guardada pode nos auxiliar nos processos de
criação. Através dos erros, dores ou qualquer outra experiência anterior, podemos recolhê-la e
usá-la como intenção criativa ou produtiva. Dito isto, cada lembrança armazenada da infância,
23
juventude e da idade adulta foram potências de aprendizado que contribuíram para o meu
entendimento sobre arte/educação e para as obras aqui apresentadas.
Transitórias
Figura 6. Fotomontagem. A imagem mostra da esquerda para a direita (de cima para baixo); Evelli,
Sibelle, Thaysa e Priscila (mulheres fotografadas para a obra Transitórias) e abaixo uma foto minha
em frente à obra exposta. Acervo pessoal
24
...o processo de transição capilar envolve uma transformação que vai muito além do
corpo. No seu transcurso, muitas outras questões são trazidas à tona, porque questões
identitárias complexas são negociadas. As mulheres em transição deparam-se com
questões biográficas marcadas por vivências de racismo e a consequente negação de
si. (SOARES, 2018, p. 94)
5
O trabalho pode ser visto em: <https://drive.google.com/file/d/16-
DdxKT9PLivwIRon_tnNYshRIGC2Mqg/view>
25
Figura 7: Fotografia de Sibelle, uma das participantes da obra “Transitórias” (2018). Acervo
pessoal
Por quanto tempo escondeu-se os seus traços negros? Ao olhar fotos antigas não se
reconhece, seu documento de identidade já não revela a aparência que tem hoje. Em um texto
extraído da Revista Gazeta de Cuba– Unión de escritores y Artista de Cuba, Hooks (2005) relata
que sempre teve a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que
permaneça no mesmo lugar. Há uma identificação neste trecho, assim como muitas mulheres
negras, de que a ideia que os fios crespos e cacheados transmitem é o oposto do descrito,
simboliza a rebeldia, a liberdade de sair do lugar, tomar a forma e volume que bem entenderem.
São iniciativas emancipatórias que rompem com a baixa autoestima e a dificuldade de falar
sobre a autoaceitação.
Sampaio e Ribeiro (2015, p. 116) nos ajudam a ampliar a reflexão sobre essas histórias
ao ressaltarem que:
onde dorme o pensamento estagna-se o corpo. Não é à toa que nos debruçamos sobre
nossas memórias, sobre experiências vividas para resgatá-las, ressignificá-las, narrá-
las. Narrar uma experiência demanda refletir sobre um acontecimento, revivê-lo, e
isso tem consequências.
Vejo este trabalho como uma fonte condutora de incentivo, principalmente para
mulheres que anseiam por mudanças e sentem receio ao se depararem com texturas variadas de
seus cabelos (partes com química e outras naturais). Além do corte, que para muitas se torna
uma ação dolorosa. Recordo-me da emoção no dia da abertura da exposição Tramações, ao me
26
deparar com Evelli (uma das mulheres fotografadas em Transitórias) tendo os cabelos cortados
por uma amiga e chorando. Relato em 2019 na escrita da minha obra para o livro “Tramações
(2ª edição): sobre visualidades em queda” que as lágrimas surgiram como um alívio,
anunciando um recomeço, o olhar da mulher orgulhosa e fortalecida no espelho que estava
redescobrindo cada fio, por vezes nem lembrava como era antes de todos os processos químicos.
Nós de mim
Corpo-caminho-casa
Cortei! Me libertei!
Corda, ancorar-se
Segundo Lody (2004, p. 65) "os cabelos e os penteados assumem para o africano e os
afrodescendentes a importância de resgatar pela estética, memórias ancestrais, memórias
próximas, familiares e cotidianas”. Esta afirmação se concretiza a partir da performance Nós de
mim (2018), que foi realizada no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco (CAC-UFPE). Nela recito frases a partir de relatos pessoais, convidando a amiga
e artista visual Nathália Ferreira para que trance cabelos sintéticos nas raízes de uma árvore,
fazendo com que se entrelacem com os meus cabelos já trançados. Coloco o meu corpo à
disposição deste ritual, me sinto conectada com as raízes dos meus antepassados através da
natureza e das vestimentas brancas, lembro da citação da antropóloga Paola Klug (2015) que li
na revista Conti Outra “a minha avó dizia-me que quando uma mulher se sentisse triste, o
melhor que podia fazer era entrançar o seu cabelo; de modo que a dor ficasse presa no cabelo e
não pudesse atingir o resto do corpo.”
Nesta performance o papel da trançadeira se torna um ato representativo, são as mãos
da sabedoria, permitem que os cabelos afro sejam o centro do seu papel histórico. Simboliza
tudo o que foi vivido pelos nossos ancestrais. Criar penteados se torna uma forma de retomar
29
Figura 10: Registro da performance “Nós de Mim” (2018). Créditos: Olga Wanderley
os desembaraço, corto, aparo as pontas e retiro as tranças que utilizo com materiais sintéticos
ao longo do tempo. Fui instigada pelas pessoas que contribuíram deixando suas mechas na obra
Transitórias. Nora (1993, p. 9) relata que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”. Através da reflexão ando trabalhando na corporificação deste
material de forma que se entrelace com as minhas investigações.
Em lágrimas
Eu que sempre fui emotiva, nunca fui boa em engolir o choro, por isso
o materializo “em lágrimas”.
Igarassu, 09 de setembro de 2021
A obra Em lágrimas foi pensada como exercício de criação artística para lidar com as
angústias que venho sentindo novamente em relação ao meu cabelo crespo, que no cotidiano
tenta resistir aos padrões eurocêntricos socialmente aceitos e de como minha autoestima até
hoje fica fragilizada com traumas que já foram relatados nesta pesquisa. Queiroz (2019, p. 219)
através de sua escrita me relembrou como
A mulher negra lida com o racismo desde a infância na escola, tentando manter seu
cabelo sempre “arrumado” na visão de um padrão que não lhe pertence. A dor de
pentear, amarrar, fazer tranças e outros penteados, cria uma relação negativa entre a
criança negra e seu cabelo, pois além de causar dor física pelo fato de penteá-los com
força, amarrar apertado, horas sentada para fazer tranças, também há dor emocional
ao ouvir palavras que são reforços negativos sobre a sua imagem e seu cabelo.
Refletindo sobre isso, revisitei alguns relatos que tinha escrito em meu diário, este que
foi elaborado para guardar memórias das minhas histórias capilares. Lá me fiz a seguinte
pergunta: por que prendo o meu cabelo fortemente? Não tenho uma resposta, mas deve estar
atrelado ao receio que ele fique amassado em público, amarro várias vezes seguidas até ficar
como eu gosto, acabou se tornando uma luta constante com minha autoestima, poucas vezes
me sinto bonita.
Passei um bom tempo sentindo a inquietação para produzir algo com os meus cabelos
que estavam guardados. Tinha mencionado na pesquisa que fiz para o Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) 2019/2020, resultante de uma publicação na Revista
31
CLEA6 2020 (Consejo latinoamericano de educácion por el arte) que não tinha encontrado
respostas de como trabalhar na corporificação deste material de forma que se entrelaçasse com
as minhas investigações. Anotei num determinado período deste ano a ideia de produzir
lágrimas em resina cristal, nas quais teriam os meus crespos dentro, uma forma para
ressignificar a minha dor.
Pude vivenciar a primeira experiência com esta criação quando propus a feitura de vinte
lágrimas numa instalação para o XIII Salão Universitário de Arte Contemporânea (UNICO) do
SESC Santo Amaro em agosto de 2021, onde fui selecionada. Comecei pesquisando moldes em
formatos de gotas, mas nenhum se encaixava ao tamanho que eu queria, então os encomendei
com o artista e estudante do curso de Licenciatura em Artes Visuais João Henrique Laymistone
(Michael), inclusive, ele que me deu as dicas de como passar desmoldante7, lixar as peças e
outros processos que até então eu desconhecia.
Figura 11: Processos da obra “Em lágrimas” (2021), à esquerda estão os moldes em gesso e as
lágrimas sem acabamento; à direita a lágrima finalizada e polida. Acervo pessoal.
A produção de “Em lágrimas” foi desafiadora, esta artesania levou o nosso corpo ao
extremo. Digo nosso, pois minha família me auxiliou em todo o processo. O esforço ao lixar
6
O artigo pode ser lido em: <https://www.redclea.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-CLEA-
N%C2%B09.-09.11.-2020.pdf>
7
É um produto químico à base de óleos puros ou emulsões oleosas capaz de criar uma película fina entre as
fôrmas e o concreto. A utilização adequada desse material impede a aderência entre a resina e o molde,
facilitando a desforma.
32
repetidamente diferentes tipos de lixas d’água que no começo eram de numerações 320, 600 e
1200 para tirarmos todas as imperfeições das gotas. Nos testes iniciais fui aprendendo a fazer
cálculos matemáticos, numa alquimia para misturar a resina cristal com o seu catalisador, 8
tinham proporções exatas e acabei descobrindo que mexer demasiadamente faz o material
endurecer mais rápido e que mesmo lixando e deixando o mais liso possível, só se vê a nitidez
quando se faz o polimento. Para que o resultado pudesse ser melhor, sentimos a necessidade de
acrescentar mais lixas a de 400, 800 e 2000, perdi as contas da resina desperdiçada, das
inúmeras vezes que os dedos ficaram engelhados e feridos por estarem na água num prolongado
período de tempo (já que cada lágrima era feita em aproximadamente quatro ou cinco horas),
as articulações doloridas das mãos e dos braços, os feriados e madrugadas de trabalho, a força
para polir e dar brilho, o choro de exaustão e medo por não achar que faria as vinte lágrimas até
o dia de montar a exposição.
Minha família teve um papel fundamental na realização deste trabalho, principalmente
minha mãe Maria Rosa, que todos os dias me ajudava incansavelmente, fazíamos competições
de quem deixava as gotas mais brilhosas e polidas. Meu pai Antônio lixava quando podia e
fazia pequenos furos com a furadeira para que as obras ficassem suspensas e teve o dia do
mutirão onde meu namorado Fernando, minha irmã Ryellen e meu cunhado Douglas, passaram
o dia produzindo comigo. Sem estas pessoas que acreditaram no meu trabalho, minhas lágrimas
ficariam incompletas, reforçando o que Nora (1993, p. 9) diz que “a memória é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. E no final da turbulência tínhamos um total de
trinta e duas gotas.
Com o auxílio de Fábio e Artur, a instalação foi tomando forma, as lágrimas ficaram
dispostas de maneira que quem visitasse a Galeria Corbiano Lins no SESC Santo Amaro,
pudesse não só ver ao redor, como passear por entre os objetos e tateá-los. Cada lágrima se
tornou única, pelas cores e formatos que o cabelo se comportava na resina. A abertura do XIII
Salão Universitário de Arte Contemporânea (UNICO) em novembro de 2021, me trouxe a
sensação de dever cumprido e depois de quase dois anos, foi emocionante reencontrar pessoas
tão queridas e ouvi-las sobre seus sentimentos e curiosidades em relação à obra.
8
Em química, o catalisador é uma substância que aumenta a velocidade de uma reação, neste caso, fazendo com
que a resina endureça mais rápido.
33
Figura 12: Foto na obra “Em lágrimas” (2021) na abertura do XIII Salão Universitário de Arte
Contemporânea (UNICO). Créditos: Leandro Lima
Foram dias inquietantes, que como artista quase pensei em desistir da minha criação,
mas poder ver, tocar e sentir a materialidade final, chega a ser poético. Quando Ostrower (2001,
p. 72) escreve “se o caminho muitas vezes foi acompanhado de ansiedades, impaciências e de
conflitos interiores que pareciam nunca mais resolver-se, vivenciar esse momento de
determinação é viver um momento de profunda felicidade”. A inspiração nos processos de
criação se resume desta forma, em caminhos que fui sendo guiada pela minha intuição, testando,
refazendo, aprendendo com os erros e assim como a obra, compreendi que a minha autoestima
também é processual.
34
Figura 13: Fotomontagem. Detalhes da instalação “Em lágrimas” (2021) na abertura do XIII Salão
Universitário de Arte Contemporânea (UNICO). Créditos: Leandro Lima
35
O cabelo afro faz parte da estética e da identidade. As relações que eu tenho e que cada
pessoa tem com a sua madeixa são muito particulares, vão das experiências vividas desde a
nossa infância até a vida adulta, representando resistência e ancestralidade. A história destes
fios capilares foi quase apagada quando muitas de nós, mulheres pretas, decidimos ou fomos
forçadas a nos encaixarmos em um padrão de beleza eurocêntrico. Relações ligadas à feiura,
inferioridade e marginalização dos nossos corpos, contribuem significativamente para o
desenvolvimento de baixa autoestima.
Desde crianças passamos por processos químicos em que as mães, avós e tias tinham a
intenção de nos moldar em um modelo estético no qual a textura do cabelo crespo,
popularmente considerado como “ruim”, fosse transformada em liso, para se tornar enfim, um
cabelo “bom” conceituado como o ideal. No entanto, essa ação se apresenta como um ato
contraditório em um local onde a maior parte da população é afrodescendente. Percebo em mim
que complexos foram formados e incorporados, principalmente quando os meus cabelos
crespos fogem do ideário de beleza aceito socialmente.
Nesta pesquisa autobiográfica que se iniciou com memórias dolorosas, é no cabelo que
encontro a ressignificação de alguns traumas que nasceram na infância. Penso enquanto
arte/educadora, artista e pesquisadora, que essa temática pode ser trabalhada em ambientes de
ensino formais e não-formais, através da escuta, da partilha de experiências e representações de
pessoas negras sobre seus próprios corpos.
Assim, torna-se fundamental o trabalho de lapidação do olhar e de todos os sentidos,
para que possamos contribuir em um processo educativo emancipatório, que proporcione
autonomia, liberdade, crescimento individual e coletivo. Além da identificação e percepção do
próprio fio condutor de formação pessoal e identitária.
Gomes (2002) em sua pesquisa faz a seguinte provocação, seguida com uma resposta:
Sei que se trata de uma tarefa árdua que requer um trabalho em longo prazo para
desenvolvimento nos espaços escolares. No ambiente acadêmico surgem investigações a partir
da necessidade dessas abordagens em salas de aulas, onde o padrão e estética eurocêntrica ainda
predominam. A escrita de si, neste caso, torna-se uma ferramenta empoderadora para ouvir as
mulheres negras marginalizadas. Rompe paradigmas. Ferreira (2013, p. 52) nos ajuda a
entender que “a escrita de si, para as mulheres negras, é um ato insubordinado, corajoso. É um
movimento de encontros, reconhecimentos, superações”.
No decorrer deste estudo, a autoaceitação do meu cabelo vem sendo trabalhada nesse
emaranhado de memórias ancestrais. Vou desembaraçando problemáticas para ressignificá-las
em trabalhos artísticos e pesquisas. As tranças são fortemente lembradas por mim, as faço até
hoje, conectam os meus antepassados com o meu presente. Minha mãe relata que aprendeu
sozinha a trançar seus cabelos, “aprendeu na vida, no dia a dia”.
Apesar das pesquisas sobre memórias estarem sendo abordadas na universidade, penso
que atrelá-las aos processos criativos a partir dos cabelos crespos traz uma reflexão necessária
e pouco discutida, até então. Através destas acredito contribuir de maneira inspiradora para o
campo da arte/educação, pois abordo como as trajetórias de vida não se desvinculam das nossas
pesquisas e produções artísticas.
CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. 1ª ed. São Paulo: Editora Contexto, 2011.
GOMES, Nilma Lino. Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de
estereótipos ou ressignificação cultural?. Revista Brasileira de Educação, n. 21, p. 40-51.
2002.
_____. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2d. Belo
Horizonte: Editora Autêntica. 2008.
HIGINO, Rayellen Carolina Alves. Transitórias. In: BORRE, Luciana (Org.). Tramações (2ª
edição): sobre visualidades em queda. Recife: Ed. UFPE, p. 151-153. 2019. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/16-DdxKT9PLivwIRon_tnNYshRIGC2Mqg/view>. Acesso
em 20 de dezembro de 2021.
HIGINO, Rayellen Carolina Alves; SILVA, Maria Betânia e. Raízes Identitárias: Memórias
de Si. Brasil, Revista CLEA, v. 9, p. 82-97. 2020. Disponível em:
<https://www.redclea.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-CLEA-N%C2%B09.-09.11.-
2020.pdf>. Acesso em 20 de dezembro de 2021.
Hooks, Bell. Alisando o nosso cabelo. Coletivo Feminista Marias. Texto extraído da Revista
Gazeta de Cuba - Unión de escritores y artista de Cuba, jan-fev de 2005. Tradução do
espanhol: Lia Maria dos Santos. Disponível
em: <http://coletivomarias.blogspot.com/search?q=bell+hooks>. Acesso em 02 de novembro
de 2018.
Klug, Paula. Palavras de avó: quando uma mulher estiver triste o melhor a fazer é trançar o
seu cabelo. Conti Outra. Tradução Rui Sá. 2015. Disponível em:
<https://www.contioutra.com/minha-avo-dizia-que-quando-uma-mulher-se-sentisse-triste-o-
melhor-que-podia-fazer-era-entrancar-o-seu-cabelo/>. Acesso em 23 setembro de 2019.
LODY, Raul Giovanni da Motta. Cabelos de Axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro:
Editora Senac Nacional. 2004.
Nora, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto
História. São Paulo, v.10. p.7-28. 1993.
SOUZA, Natália de Lima. Ethos e negritude: cabelo e corpo como símbolos de identidade
e autoestima de mulheres afrodescendentes. 2018. Dissertação (Mestrado em Linguística) -
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
1
Recife, 2021
3
Comissão Examinadora
___________________________________________________________
Profª Dra. Maria Betânia e Silva (UFPE) – Orientadora
____________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (UFPE) – Examinador Interno
____________________________________________________________
Profª. Dra. Carolina Mafra de Sá (UFAPE) – Examinadora Externa
4
RESUMO
ABSTRACT
Recife,
2021
7
Percursos
O Caminho do Meio....................................................................................9
A Reminiscência..........................................................................................25
Inconclusões..............................................................................................34
Referências ......................................................................................................................36
Anexos.......................................................................................................37
9
O caminho do meio
Para a construção dessa escrita me debrucei sobre algumas partes que compõem
meu processo criativo. Especificamente alicerçados entre: a memória, os lugares e os
sonhos. Em cada capítulo, o fio linear de narrar os fatos foram cortados, dando espaço
para uma lógica narrativa que é cíclica, alinhando-se dessa maneira à forma que
estruturo meus pensamentos.
Por fim, no Capítulo 3 Sonhos são realidades possíveis mergulho em minha relação
com o sonho, apresentando algumas pinturas que construí a partir dessas
experiências oníricas. Mostrando como o ato de sonhar é interessante para a
produção artística.
Alguns dos autores que dialogo são Ostrower (2016), Candau (2019), Careri (2013),
Sontag (2004) e Ribeiro (2019), pois em suas perspectivas encontro relações diretas
para embasar minhas questões.
Essa escrita não tem um caráter universal, são perspectivas pessoais, ainda em
processo de construção, apesar de ter resultados e de algumas obras já estarem por
aí, narro de forma simples, apresento para reforçar o quanto é fundamental ser agente
de nossa própria história. Durante todo o nosso processo formativo desde a escola
vamos estudando a história dos outros, os processos dos outros, sei o quanto isso é
importante, porém também somos dotados de nossa narratividade que é tão relevante
quanto. Apoio-me principalmente em minhas experiências de extensão e pesquisa
vivenciadas dentro da Universidade, para reforçar esse discurso, onde o protagonismo
experienciado a partir desses programas reforçam o quanto nós, estudantes fazemos
a história e quanto o ato de narrar a si é transformador, os estágios na rede pública
de ensino nem se fala, são desafiadores e únicos. Para falar de experiência nada
melhor do o que diz Larrosa (2002, p 25) “é experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que
nos toca, ou que nos acontece, e ao passarmos nos forma e nos transforma. Somente
o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.”
Percurso I
O ato de recordar é algo que nos acompanha em toda as ações do dia: o que
comi ontem? “Quais são minhas atividades de amanhã?” “Os nomes das pessoas que
nos cercam.”.. é assim sempre. Mas, e quando as memórias são de coisas que a muito
tempo não falamos, que a muito não nos esforçamos mais para lembrar e que por ter
sido vivenciada a tantos anos atrás já está tão sobreposta por novas experiências que
o mínimo esforço escancara uma lacuna cheia de fragmentos dispersos. Halbwachs
(1990) comenta que “esquecer um período de sua vida é perder o contato com aqueles
que então nos rodeavam”, ou seja, as “brechas’ de nossa mente necessitam de apoio,
de disparadores que nos auxiliem a organizar os fatos de forma contínua, e assim
construir uma história possível de ser contata com começo, meio e fim. Esses
disparadores de recordações são os álbuns, objetos, cheiros, o diálogo com quem
compartilhou da mesma vivência.
Figura 1 Infância 3x4. Detalhe para a informação que consta no verso da fotografia.
(Arquivo Pessoal)
14
Elo: o insight!
A vida seguia mansa, era mais um final de semana quente. A fim de quebrar a monotonia dos
dias úteis, tivemos a oportunidade de experimentar e viver nossa inventividade. O tempo, esse
corria a nosso favor, cheio de brechas livres que aos poucos fomos preenchendo com
tentativas, recortes, cola, barbantes, linhas e nós. Ela tirou uma ideia de dentro de uma de
minhas gavetas e me instigou o pensar, me fez recordar que a muito tempo esse objeto de
formato de coração estava parado, a poeira parecia ser sua companhia de muitas horas e
isso me inquietou. Precisava fazer esse coração de matéria mista voltar a “bater”. E assim
fomos juntas criando uma teia onde ele iria ficar pendurado, a fim de se movimentar e sempre
que eu perdesse meu olhar, lembrar o que simbolicamente representava, camadas de
memória que fomos construindo juntas. Aos poucos o pulsar voltou, a cor voltou, a vida em
movimento surgiu. Eram quatro mãos, duas muito mais maduras e vividas, o outro par cheio
de vontade e euforia. E juntas demos um novo sentido para aquele coração empoeirado e
fomos atravessadas por uma memória de uma vida inteira que no exato momento que
terminamos foi o insight para a construção de Elo1. (MOTA, 2021, p.103)
1
Trecho do livro Tramações a Memória e o Têxtil (2021) onde apresento a experimentação que serviu de
inspiração para construção da obra Elo (2020) presente na exposição virtual Tramações 3ª edição.
16
Para falar sobre os caminhos que percorri para elaborar essa obra que tem a
memória como alicerce é necessário se desprender do conceito de tempo cronológico
e andarilhar por um percurso que é cíclico e dinâmico. Elo é a síntese de um caminho
que já vinha trilhando desde sempre. Na verdade, foi a partir dessa produção que
pude apresentar de forma material uma relação com a arte que sempre ocorreu em
minha vida e que encarava de forma natural. A narrativa da obra se debruça sobre
minha relação com a arte e minha mãe. Especificamente, porém parte de um processo
mais amplo e antigo que só percebi através do PIBIC, onde os dados levantados tem
um peso e uma preciosidade ímpar. No PIBIC constatei como minha mãe contribuiu
no meu processo formativo, facilitando para que eu seguisse o caminho da arte.
Percebi também como foi construída a relação dela (minha mãe) com minha avó
materna, uma mulher de papel importantíssimo em sua vida e facilitadora do seu
contato com a arte também. Na infância a arte chegou em minha vida a partir da
mediação dada por minha mãe, através de criação artesanal dos meus brinquedos,
pelo apoio dado por ela nas minhas experimentações, no ato de ver e acompanhar
ela fazer seus artesanatos até hoje. A casa é tipo uma “galeria” para suas produções,
sempre tem algum ocupando uma parede ou prateleira.
A interação com o mundo lá fora ou com qualquer evento cultural era somente
via lives, Youtube e plataformas digitais. Meus olhos já estavam saturados e bastante
2
A disciplina de estágio 4 é voltada para desenvolver ações de mediação, em espaços de arte e cultura,
tais como: galerias, museus, centro culturais e espaços expositivos.
3
Instagram link: https://www.instagram.com/tramacoes/
18
Figura 5 Fotos do processo. Em cima a mão de minha mãe e a minha, mostrando a proporção com o
bordado de coração. Embaixo, seguro o bordado. (Arquivo pessoal)
20
Figura 6 Na fotografia de cima, minha mãe bordando o coração. Na fotografia de baixo, bordo raízes.
(Arquivo pessoal)
21
Percurso II
Para além disso, a comunicação direta que a imagem produz dialoga bastante
comigo, não só pelo resultado instantâneo que o equipamento (neste caso, o celular)
produz, mas por espelhar meus sentimentos e minha visão sobre algo de forma mais
imediata, pois as fotos são uma interpretação do mundo tanto quando as pinturas e
os desenhos (SONTAG, 2004).
calor do movimento, para além disso há uma população flutuante que trabalha,
compra, “usa” e come, mas muitas vezes não se dá conta do universo ao redor
(FERRER, 2015), eu tenho essa sede, da descoberta. E é um fato, quanto mais se
caminha, mais se produz lugares. (CARERI, 2013).
24
4
O videoarte Reminiscência foi um dos selecionados do Efêmero Festival – CE(2021), que contou a
participação de artistas de todo o Brasil. Para saber mais, acesse: https://ifotoce.com.br/festival-
efemero .
25
A Reminiscência
Sontag (2004, p. 86) comenta que “uma foto é apenas um fragmento e, com o passar
do tempo, suas amarras se afrouxam”, de fato é um caminho inevitável, mas eu queria
adiar isso o máximo possível.
5
Texto que acompanha a obra Reminiscência.
26
Percurso III
a pintura me permite criar as cores e dispor os elementos na folha de papel tal como
me recordo, crio assim uma outra conexão com minha subjetividade. Tal processo, é
como criar janelas entre realidades e experimentar a leveza da fluidez.
Desde que li o livro Mulheres que correm com Lobos escrito por Clarissa
Pinkola Estés6, encontro nele uma maneira de alinhar-me, e consigo refletir com maior
clareza sobre as questões que me atravessam, como por exemplo, recorri a sua leitura
para buscar soluções sobre os sonhos e o processo criativo que estavam a algum
tempo bloqueados. O livro apresenta os caminhos e as questões relacionadas ao
arquétipo da mulher selvagem, a autora aborda a partir da contação de histórias, de
diferentes lugares do mundo, os arquétipos voltados às questões do feminino e sua
relação com a psique, apresentando também em que implica a nossa não conexão
com a natureza instintiva da mulher selvagem. A autora comenta que:
O arquétipo da Mulher Selvagem, bem como tudo o que está por trás dele, é o
benfeitor de todas as pintoras, escritoras, escultoras, dançarinas, pensadoras,
rezadeiras, de todas as que procuram e as que encontram, pois elas todas se
dedicam a inventar [...]. Como toda arte, ela visceral, não cerebral. Ela sabe
rastrear e correr, convocar e repelir. Sabe sentir, disfarçar e amar
profundamente. É intuitiva, típica e normativa. É totalmente essencial à saúde
mental e espiritual da mulher. (ESTÉS, 2018, p. 26)
Sempre que recorro a leitura do livro da Clarissa Pinkola acabo tendo sonhos
simbólicos, com experiências transformadoras, através de uma riqueza de imagens,
sensações e sentimentos, os personagens que encontro são dotados de uma
profundidade simbólica. A indumentária dos personagens e o contexto em que estão
inseridos transmitem uma construção de imagem coesa, onde as cores, luz e sombra
também são aspectos relevantes. Ao despertar, me sinto renovada e geralmente
meditativa, construo uma leitura analítica sobre os símbolos presentes, de uma
maneira que não sei bem definir, encontro a solução para as questões que estavam
me incomodando. Sidarta Ribeiro (2019, p. 15) diz que “a interpretação de um sonho
pressupõe a compreensão profunda do contexto real e emocional do próprio
sonhador, e pode ser extremamente transformadora.
A pintura que compõe esse texto (figura 3), foi o resultado que consegui
alcançar depois de percorrer esse caminho. No sonho não tinha apenas essa figura
feminina, mas a experiência do sonho me conduziu até esse momento que pintei.
6
É intelectual de renome internacional, poetisa premiada e psicanalista junguiana (informações
contidas no livro).
31
Entendo o significado desse sonho, na época fez muito sentido para mim, foi
reconfortante depois dessa experiência construir essa pintura. Ela está inacabada,
assim como todas as outras que fiz a partir dos sonhos. Penso que faz sentido deixa-
lá assim, pois reflete a própria sensação do sonhar, os apagamentos naturais que
acompanham o despertar. A ausência de rosto é outra característica que também
utilizo nesse tipo de pintura, pois apesar de os personagens que encontro nos sonhos
possuírem a face completa, nunca consigo recordar.
32
Figura 9 Sonhei com essa cena, sem título, acrílica sobre papel, 2020.
33
Inconclusões
Separar em partes o meu processo criativo foi desafiador, mas quando idealizei
fazer essa escrita achei que seria interessante relacioná-los com algumas produções
para apresentar com maior clareza como tudo ocorre. A verdade é que nada está de
fato separado tudo se mistura e flui, pois que tudo parte de mim, de minhas questões
e percepções.
Querer apresentar de maneira separada faz com que eu entenda até onde um
estímulo se encerra e dá espaço ao outro. Sabendo que cada novo estímulo contribui
para ampliar todas as outras percepções que já carrego de experiências anteriores.
A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa
mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver “visões”.
Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências,
se as experiências vierem depois como provas de seus devaneios.
(BACHELARD, 2018, p. 18)
É isso, o prazer da imaginação do devaneio dá sentido às experiências,
percebo que minha imaginação se apoia nas memórias e em suas lacunas também,
se expande nos sonhos e nas reminiscências que ficam, na cidade e nas
interpretações que o caminhar provoca. E que isso é único, disforme, dotado de uma
lógica peculiar e carregada de sentidos.
35
Que minha pequena parcela contribua para quem por aqui passar...
36
Referências
Anexos7
7
Os anexos são as arguições realizadas pela Comissão Examinadora que avaliou o meu TCC. As
artes são os resultados alcançados a partir dos atravessamentos que minha escrita provocou em cada
um dos avaliadores. Conforme foi indicado optei por anexar ao meu trabalho, complementando assim
o que minha escrita propõe. Falar de processos criativos é uma porta aberta para mergulhar em nossas
próprias questões.
38
Figura 12 Arte produzida pelo Prof. Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (UFPE) – Examinador Interno,
2021.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Artes
Licenciatura em Artes Visuais
This digital artist's book reports the research and development process of the
exhibition entitled "Made of a thousand strings - art and experience", composed of
seven tapestry works using the tufting technique. The work conducts an
investigation in my academic journey based on the concept of unique experience
by John Dewey (2010) and unfolds into a cultural project for the Aldir Blanc PE
Law. The book is divided into five parts: Aldir Blanc PE 2021 project, making the
line: textile art, between the lines: experience, interweaving: creating, creative
process of the pieces.
Um mergulho
Um salto
Escolha ousada
Mudança necessária
Precisou de um instante,
já sentiu que era alí
Tapeçaria, Tufting, Tufagem
Quando vi não resisti
Uma Realidade Flutuante
Lá vem Thaes Arruda
Com outra ideia brilhante
E seguiu sua pesquisa
A primeiríssima obra, Arte têxtil e memória
ainda em modo de teste Escolheu sete momentos
Mal nasceu Desalinhar Para contar sua história
Já tava exposta no SESC
Assim surgiu
Achou pouco e inscreveu, “Feita de Mil Fios- Arte e
Num segundo edital Experiência”
Aprovada novamente Baseada em John Dewey,
Entrou pro acervo municipal Sua arte virou ciência.
O objetivo geral deste caderno de artista é
investigar o meu processo de pesquisa e o
desenvolvimento criativo das peças de tapeçarias
elaboradas para a exposição virtual “Feita de Mil
Fios - arte e experiência”. A partir disso, proponho
uma reflexão sobre momentos que ocorreram uma
experiência singular durante a graduação, utilizando
John Dewey (2010) como principal referência teórica
para compreender essas situações.
Enquanto processo criativo para a construção das
tapeçarias, produzo cartas que representam eixos
importantes no meu percurso acadêmico, na intenção de
valorizar os conhecimentos adquiridos nesta jornada
que me fazem ser quem sou agora. As tapeçarias são
intituladas com os nomes das pessoas que representam
diferentes circunstâncias, Débora Arruda, Alana Aÿnore, João Victor
Carvalho, Coletivo BoiKOT, Annaline Curado, Renato Souza e Thaes Arruda
(eu), correspondendo aspectos da ancestralidade, filosofia, afetividade,
coletividade, formação acadêmica, maturidade profissional e construção de
poética respectivamente.
Este caderno traz a etapa de desenvolvimento
conceitual e criativo das peças para a exposição
virtual. É importante mencionar que a viabilização
financeira para execução das peças e exposição virtual
se dará através da aprovação do projeto no edital da Lei
Aldir Blanc PE 2021, com exceção da primeira, Débora
Arruda, que será elaborada desde já para compor o
trabalho acadêmico.
Para chegar até a etapa de produção das tapeçarias,
organizo essa pesquisa de determinada forma: A) Projeto
Aldir Blanc- memorial descritivo que foi utilizado no
edital e contém a descrição da proposta, currículo do
proponente, equipe principal, funções da equipe e
cronograma de execução do projeto. Esse ponto traz a
reflexão de como um projeto cultural pode auxiliar uma
artista/pesquisadora a se colocar no circuito da arte.
B) Fazendo a linha: arte têxtil- relata o encontro
impactante com a tapeçaria, trazendo memórias e
registros visuais como forma de compreender o porquê da
linguagem do têxtil para a realização desse projeto.
Logo depois vem C) Entre as linhas: experiência-
onde são apresentados embasamentos teóricos, e traz John
Dewey (2010) com o conceito de “experiência singular”
como norteador da pesquisa. A quarta parte chama-se D)
Entrelaçar: o criar- que discute o processo criativo,
nesta etapa trago Fayga Ostrower (2001) como guia e
compartilho reflexões sobre a intuição, dessa forma
questiono como o processo intuitivo contribui para a
formação acadêmica em artes visuais.
Seguindo, apresento o E) Processo criativo e desenvolvimento das
tapeçarias- que traz cartas como método de criação e elaboração das
tapeçarias, junto de rascunhos, registros, fotografias, desenhos, e outras
linguagens que agregam para a produção final da obra. Por fim, são
colocadas as considerações finais do trabalho.
PROJETO ALDIR BLANC PE 2021
FUNÇÕES DA EQUIPE
Projeto pronto
tapeçaria Débora Arruda
Atualmente tenho sentido
necessidade de fazer um
esboço palpável para a
execução da tapeçaria,
isso facilita saber quais
cores e a quantidade de
linha que preciso comprar,
porém sigo aberta as
espontaneidade que a
peça pode apresentar
durante sua produção.
Processo da execução da peça
Registro 01 da execução
da tufagem, novembro
2021.
Registro 02 da execução
da tufagem, novembro
2021.
Processo criativo
Alana Aÿnore
ideias
-natureza
-força, movimento, textura
-acolhimento
02. Escritas para Alana Aynore, leoa.
O ímã que fez a gente se ligar na existência uma da outra foi pelo livro
C
“ oiote” de Roberto Freire… Que intensa aproximação eu diria. Acredito que por
meio de publicações e opiniões, recebi sua mensagem no Facebook falando que
seu pai estava trabalhando na peça que fazia adaptação do livro e assim
começamos uma tímida e descontraída conversa. Amigas em redes sociais,
comecei a acompanhar a sua rotina, e lá estava as fotos de Alana, sol - praia
- mar - sorrisos e leveza. Esse mundo do ciberespaço é engraçado, a gente
nem percebe e quando notamos já estamos nos sentindo mais íntimos do outro
por compreender e se identificar com as partilhas da pessoa.
Logo, já reparava você pessoalmente nos lugares e sentia que te conhecia,
e não foi culpa do signo, mas é fácil reconhecer leoninas no rolê (rs). E assim,
fomos nos encaixando, nos encontrando por ‘acaso’ em praias, shows e
acampamentos e todo carinho que estava surgindo, foi nascendo de forma
natural e orgânica. De laço feito, nossa amizade vivia e assim, íamos nos
encontrando de forma aleatória com o dançar da vida.
Meu bem, você é um dos meus lugares favoritos na terra, sim lugar - faço
morada em você, espaço que acolhe, abraça e impulsiona. O motivo favorito
pelo qual participei do edital de mobilidade acadêmica e fiz o intercâmbio da
UFS para a UFPE, nossa relação completava um ano e meio e a vontade de
ficar juntos sem precisar de passagem comprada com idas e vindas na
rodoviárias só aumentava, visualizei a mobilidade como uma oportunidade de
aprendizagem, afinal a possibilidade de vivenciar outro território poderia acarretar
uma expansão em diversos níveis.
Com muito amor e carinho você me recebeu e desde então esteve comigo
em todos os momentos, sabe aquela coisa de ir de mãos dadas? Pois então.
Fomos conhecer o campus da UFPE ainda nas férias e sentia todo cuidado e
confiança nas palavras e gestos expressados, carregando um olhar de quem
acredita, você me incentivou e me incentiva de muitas formas, me nutre de
coragem para lidar com os jardins e escombros da vida. Nossa rotina foi se
estabelecendo entre as cadeiras que ia cursando e vivendo, tudo com muita
fome de coisa nova, foram dias e noites de muitas alegrias, cansaços, tensões,
ansiedades, empolgações e medos.
E você junto, parceiro! Participando integralmente de toda experiência, se
tem uma pessoa que viveu essa jornada comigo, essa pessoa é você e eu sou
imensamente grata por isso. Com o tempo, conseguimos a transferência externa
e meu coração não podia ficar mais feliz, era aqui que eu queria estar, era
nesses lugares que precisava habitar. Toda coragem despertada através do seu
jeito me colocou em movimento para encontrar e descobrir quem eu sou/estou,
lembra quando você perguntou V
“ ocê já trabalhou com produção cultural?” lá no
começo da nossa relação, tu és visionário! Essa é uma das suas maiores
qualidades, acreditar! Antes mesmo de permitir que fosse capaz você já bota
fé e faz isso até hoje nos mínimos detalhes e está acontecendo agora na
escrita desse projeto e na realização de todas as obras, isso não se resume a
palavras de incentivo é muito mais que isso, é ir para o corre juntos, é
disponibilizar tempo para comprar materiais, é montar o ateliê juntos, é auxiliar
na pesquisa de equipamento, é preparar a comida enquanto estou produzindo, é
se sentir vitorioso com minhas conquistas, é companheirismo e sensibilidade em
vários níveis.
Toda essa experiência me fez perceber que a vida é para ser atravessada,
com amor e coragem fui tocada por você, marcando completamente minha
existência. Suas contribuições no meu processo acadêmico são infinitas, não há
como mensurar, eu só tenho muito a te agradecer, parceiro o qual eu escolhi
viver. Dos presentes mais lindos que essa jornada pôde oferecer a sua
presença é de longe uma das coisas que eu mais gosto de ter, volto a dizer,
que faço morada em você.
Processo criativo
Annaline Curado
-elemento de poder
-peixe voador
-o brincar como
Registro da turma de forma de aprender e
metodologia das ensinar
artes visuais
04. Escritas para Annaline Curado, professora.
Meu primeiro contando com uma aula ministrada por você, explodiu minha
mente rs, quando entrei na aula de metodologia do ensino das artes visuais e
o espaço era uma sala de dança com um imenso espelho nos convidando a
olhar para si, você tocando uma flauta suave, direcionando todas a uma
respiração, com a intenção de recuperar o fôlego e nos deixar ali, presentes, foi
algo inimaginável dentro de um curso de graduação. Esse deslocamento com
uma realidade acadêmica, me proporcionou uma formosa e rica experiência em
torno da arte educação.
Entre jogos, músicas, desenhos e danças, nos gestos do outro sentia
cumplicidade e partilha, abertura que talvez nunca tivesse experimentado em
grupo, percebo minha presença e grandiosas qualidades que estão vinculadas a
mim e desvalorizada no dia a dia, nosso corpo foi um território encontrado e
objetivo de estudo para o presente. Você estava disposta a catucar todas ali,
entusiasmada a ensinar sobre perder tempo e ganhar espaço, mostrar que
brincadeira é coisa séria, nos fez questionar sobre a lógica do que se passa
dentro na sala ser mais interessante que a própria sala de aula. Sutilezas de
metodologias, que acarretou um grande repertório de métodos vividos,
favorecendo uma metamorfose completa.
Minha relação com a educação na graduação sempre foi muito distante, na
ideia de compreender pesquisadores, estudiosas, metodologias tudo no campo
teórico sem muita aproximação, seu acontecimento foi faísca que deu luz a
uma multidão, e sinto que o amor é assim, é ensinar a arte de frequentar a si
mesmo, com inquietação e delicadezas, e isso você faz com maestria.
Processo
criativo
BoiKOT
05. Escritas para BoiKOT, coletivo.
Falar da BoiKOT é falar de muitas pessoas, é escrever sobre eus.
A BoiKOT sempre desafiou ao meu melhor, tem uma expressão que surgiu
a partir das vivências e trabalhos que é o m
“ odo festival” esse - estado de
espírito - é ativado quando há um grande projeto a ser executado e ele foi
adquirido depois de alguns eventos. Graças a esse modo, me senti preparada
para lidar com situações, prazos e pressões dentro da universidade.
Utilizei o coletivo como espaço de materialização daquilo que eu vinha
aprendendo dentro da academia, sendo fundamental para o meu
desenvolvimento enquanto profissional, existindo um ganho de mão dupla
nessas esferas da minha vida, sendo a BoiKOT uma produtora que realiza
festivais de música eletrônica, muito da minha formação estética permeia por
uma poética que há nesses espaços psicodélicos e transportei essa linguagem
para o curso de artes visuais. Durante meus trabalhos cultivei segurança para
colocar minhas ideias em grupo e me posicionar em equipe, aprendi a lidar
com o outro em momentos de pique, percebi no diálogo e na escuta ativa a
melhor maneira para entender o outro e lidar com conflitos. Fui ao encontro
dos meus eus, artista, produtora, curadora entre outras, percebi a vastidão que
há aqui dentro.
Essa escrita vai para todas as pessoas que constroem o coletivo, um muito
obrigada cheio de admiração por cada um que habita essa plataforma de
transformação, agradecida pelas escutas atentas e gentis, pelo voto de
confiança que foi dado ao meu trabalho e grata por me permitir sentir na
prática que sonhos coletivos se realizam.
Aqui dentro pude experimentar emoções das quais nem sabia que existia,
uma mistura de sensações avassaladoras, cavei o meu mais íntimo, isso me
exigia muito, e eu aceitei a brincadeira, me doava por completa, me via em
cada coisa daquela atmosfera, aprendi que a vida é ritual e precisa de entrega.
Choros e raivas sinceras foram colocados para fora, risadas e amizades como
elo, processo criativo a milhão, na BoiKOT experimentei uma das minhas
maiores lições, carrego no peito essa vivência, ganhei a coragem de executar
qualquer ideia, nada é impossível quando se tem o outro contigo.
Muitos fios foram enlaçados, outros nós desatados, a trama foi bem
preparada e nessas costuras me refiz e me refaço, na BoiKOT me enrosquei e
aqui sempre estarei.
06. Escritas para Renato, motivador.
Entre as linhas dessa jornada escrevo para lembrar de não esquecer que
sou feita de muitos fios e nesses fragmentos me amarro em memórias e
experiências que fazem minha trajetória. O fechamento de ciclos me coloca em
um estado de avaliação e alívio, e nesse momento de análise me sinto feliz e
satisfeita por quem me tornei e por tudo que construí e me dediquei. Escrevo
para lembrar de escutar minha intuição, essa voz que foi o motor desta
pesquisa concebida de forma repentina, onde abandonei todo o projeto que
iniciei na cadeira TCC1, mas essa sou eu…
Quando sou tomada por uma força impulsiva e motivadora, me esforço ao
máximo para colocar e alinhar em minha rotina para dessa forma possa fazer
acontecer. Lembre de não se culpar por seguir seu coração e fazer as coisas
com paixão, nesse caso o responsável por tal mudança foi o contato
avassalador que o têxtil provocou nos últimos meses da graduação, como iria
conseguir dar continuidade a uma pesquisa que já não fazia mais sentido?
Precisei ter coragem para iniciar do zero outro projeto, mas com a leveza de
ser verdadeira comigo mesma, lembre-se disso.
Novas trajetórias se iniciam a partir de agora, permaneça fiel a sua verdade
e a sua arte, entendi que é isso que nutre minha essência. Caminhe no ritmo
do corpo e lembre-se de perguntar aos pés o que eles acham do percurso. Se
acolha e busque amigos para conversar besteiras, recolha os elementos de
poder encontrados pelo caminho, afinal a gente nunca sabe quando vamos
precisar dessas experiências para usar como energia. Lembre-se de colocar no
mundo e imprimir sua frequência no aqui e agora porque é exatamente isso
que o mundo precisa. Volte a essas escritas toda vez que necessário, feche os
olhos, acenda uma vela, se conecte com esse momento, lembre e confie.
Há poucas certezas e muitas dúvidas, não me sinto pronta mas estou
preparada para os próximos episódios, parabéns para mim.
Nesse momento de finalização, me sinto segura para colocar
em prática tudo que foi aprendido na caminhada acadêmica. Como
forma de atuação profissional, participei dos editais
promovidos pela Lei Aldir Blanc, criada para auxiliar a classe
artística que foi profundamente afetada nesse momento de
pandemia mundial por conta do novo Coronavírus. Enxergo que a
elaboração e execução de projetos culturais como um importante
meio de atuação profissional e uma maneira de me afirmar
enquanto recém formada no circuito da arte.
Vivenciei durante a graduação cadeiras que estimulavam e
ensinavam a construir projetos culturais e isso foi
fundamental para minha formação acadêmica, pois com isso pude
criar o hábito de fazer projetos e assim estruturar de maneira
mais formal minhas pesquisas, auxiliando na visualização e na
execução da ideia. É preciso incentivar a escrita de projetos
nos cursos ligados às artes, pois é através desse meio que
muitos artistas conseguem viabilizar seus trabalhos e se
colocar em galerias e exposições. Ter experimentado dentro da
universidade um pouco do universo dos projetos me deixou mais
segura e familiarizada com essa fase que estamos vivendo com
os desdobramentos da pandemia.
O processo de revisitar e selecionar as experiências
escolhidas me levou para um lugar de emoção. Extrair das
situações comuns da vida elementos tão ricos de vitalidade e
cheios de significados me nutre e aponta um grande potencial
formativo que reside em contemplar o simples. Investigar
determinadas experiências é lidar com histórias que podem ser
evocadas e utilizadas como fonte de combustível para a
criação. Sinto que materializar essas memórias através do
têxtil fortalece essas lembranças, dessa forma contribuo para
manter a chama viva do afeto que nos toca e nos modifica
diariamente.
Visualizo a finalização deste ciclo levando em consideração
minha intuição e colocando em prática toda minha potência
criadora. Dessa maneira me sinto honesta comigo e sinto que
posso dar sequência a costura da vida, assim vou tramando,
remendando, rasgando, refazendo pontos e criando laços com
etapas e situações. Acredito que o caminho para o futuro é
também um retorno ao passado e o toque com o outro perpassa
todos os caminhos.
A jornada acadêmica é marcada por sorrisos e lágrimas. O
percurso até aqui não foi fácil nem simples, costumo falar que
é preciso estar sempre atenta às dores que atravessam nossa
caminhada. Resolvi cristalizar nas obras desta série momentos
felizes pois são eles que quero evidenciar e eternizar nas
paredes das pessoas que admiro, mas quando reflito sobre a
importância das experiências fica claro pra mim que as
dificuldades são tão edificantes quanto as conquistas.
O processo criativo utilizado para criar as tapeçarias
realizadas aqui neste caderno, exaltam a força e a
singularidade em cada experiência, procurei honrar os
encontros, fases e processos, respeitando cada episódio da
minha história. O caderno está em processo e é parte do
projeto da exposição Feita de Mil Fios - Arte e Experiência,
que segue em andamento e no aguardo do resultado final do
edital Aldir Blanc PE 2021, neste momento estou situada como
suplente no resultado parcial recém divulgado.
DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo. Martins Fontes, 2010
Recife, 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
COMISSÃO EXAMINADORA
Abstract
The work aims to observe the impact of the Covid-19 pandemic on the author's
mental health through her artistic creations, using as a theoretical basis the studies
of renowned authors directly linked to mental health and psychic studies such as
Sigmund Freud, Carl Jung, Jacques Lacan and Nise da Silveira. Furthermore, it is a
case study, where the object of study is the author herself and her works.
Introdução …………………………………………………………….. 6
Cap. I: A Importância da Arte como Forma de Expressão …... 9
Cap. II: Arte; Sentimento ………….……...………………..….….. 12
Cabeça de Vírus; Desespero ………………………..….… 13
Quebra-Cabeça; Esperança ……………….……...………. 16
Caos; Ansiedade …………….……………….………….…. 19
Meu Eu Oculto; Insegurança ………………..……..…..…. 21
Acalento; Amor ………………...…………….…………..…. 23
Considerações Finais ………..……….……………………...……. 26
Referências Bibliográficas ……………….……………………….. 27
6
INTRODUÇÃO
Sempre ouvi de pessoas próximas que, quando criança, costumava ser extrovertida,
apesar de quieta. Tinha facilidade em fazer novos amigos, era bastante
comunicativa e adorava acompanhar meus familiares para todos os lugares.
Lembro-me que, nessa mesma época, descobri a paixão pela arte — especialmente
pelo desenho — e fui incentivada pela minha avó a trabalhar com tais vocações
artísticas.
Uma personalidade descontraída e o apego pelo mundo das artes caminharam lado
a lado durante grande parte da minha trajetória, e até pouco depois de completar 18
anos, meu foco artístico estava, no geral, no trabalho com as Fanarts¹1. Em cima
desse interesse, estudei técnicas e encontrei uma estética pessoal. Perdi e
reencontrei meu interesse pelo fazer artístico muitas vezes ao longo dos anos
devido a falta de ânimo causada pela depressão, e nem mesmo quando vivenciei
essas fases, imaginei que algo tão avassalador aconteceria à humanidade a ponto
de mudar consideravelmente a forma como enxergamos o mundo e a nós mesmos.
Fui uma das pessoas afetadas com a mudança brusca de rotina, e durante o
período de quarentena que documentei em minhas obras, aos poucos abandonei
costumes que, para mim, eram corriqueiros. A cada dia me tornava menos a criança
1
Fanart, fan-art ou ainda Fanarte é uma obra de arte baseada em um personagem, fantasia, item ou
obra notoriamente conhecida, que foi criada por fãs.
7
extrovertida e animada que fui por tanto tempo, e me tornava uma adulta introvertida
e reclusa. Meus interesses artísticos moldaram-se juntamente à personalidade, e o
que antes era apenas um simples passatempo e interesse profissional
transformou-se em prática terapêutica para mim. Apesar de meu processo situar-se
nas artes visuais, há uma forte influência da arteterapia, já que minha experiência foi
curativa e terapêutica, onde tive a oportunidade de elaborar questões profundas e
existenciais através de minhas obras. As Fanarts ainda estão presentes, mas agora,
a prioridade era encontrar um meio de fuga de toda aquela situação a qual estava
sendo submetida.
Anseio que, através de minha análise pessoal, este artigo ajude outras pessoas a
compreenderem ou até mesmo descobrirem como o período de quarentena as
afetou, também procuro dar destaque à arteterapia, que trata-se de uma área de
estudos com epistemologia própria, onde paciente e profissional partilham avanços
terapêuticos através da arte.
Meu objetivo com o presente trabalho é separar algumas dessas obras, dissecá-las
e compreendê-las. Quais efeitos o isolamento social teve sobre minha psique, e até
onde isso influenciou a criação artística? Para responder a pergunta terei como
base elementos da arteterapia, desfrutando dos estudos de diversos autores da
psicanálise e da psicologia analítica, como Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav
Jung (1875-1961), Jacques Lacan (1901-1981) e Nise da Silveira (1905-1999).
2
Caule que cresce horizontalmente, geralmente subterrâneo.
9
Pensar em arte muitas vezes nos leva diretamente à ideia de que, para algum
objeto ou ideia ser considerada artística, precisa ser algo bonito, realista ou seguir
um padrão técnico e estético específico. Como bem disse Mário Pedrosa (1949,
p.48) em seu livro Arte, necessidade vital, "a realidade é que o mundo de agora não
sabe o que é arte". Também pode-se refletir acerca do pensamento do filósofo
Nuccio Ordine (2013, p.10), quando ele afirma em seu livro A utilidade do inútil que:
"[...] É mais fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais
difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte".
Partindo do pensamento de Fischer (2014), percebemos o quanto a necessidade
estética da arte surgiu apenas com o surgimento das civilizações, pois muito antes
disso, o fazer artístico ligava-se puramente à expressão, comunicação e
sobrevivência.
A base dos estudos acerca da arte como método terapêutico surge dos estudos
feitos por Freud e Jung, como bem lembram os estudiosos Carvalho e Andrade
10
(1995, p.39) ao recordar que Freud, observando algumas obras de arte, percebeu
que elas demonstravam manifestações inconscientes de seus autores, acreditando
que fossem uma forma de comunicação simbólica. Jung, por sua vez, julgava como
função psíquica natural a criatividade do indivíduo, e sua capacidade de cura
encontrava-se em transformar o inconsciente em imagens representativas
(SILVEIRA, 2001, p.158).
No Brasil, a arte deu seus primeiros passos na área psiquiátrica no ano de 1923,
com a ajuda do renomado psiquiatra e intelectual brasileiro Osório Thaumaturgo
César (1895-1979), que nessa época, realizou seu trabalho no Hospital de Juquerí,
localizado no estado de São Paulo, onde desenvolveu um extenso estudo sobre arte
diretamente relacionada à psicanálise. Em 1925, é criada a escola livre de artes
plásticas neste mesmo hospital, e em 1933, Osório César participou de uma
exposição de artes no Clube dos Artistas Modernos com a palestra intitulada Estudo
Comparativo Entre a Arte de Vanguarda e a Arte dos Alienados .
Dessa maneira, Nise conseguiu não apenas ajudar seus pacientes a se expressar,
mas também, a se conectar com seu subconsciente e resgatar memórias perdidas,
possibilitando um melhor entendimento dos casos e suas possíveis causas. Em
11
1952, com a ajuda do renomado crítico de arte Mário Pedrosa, montou um grande
acervo com as respectivas obras e inaugurou o Museu de Imagens do Inconsciente,
que encontra-se em atividade até os dias atuais.
Tais informações nos dão contexto para entender como a arte pode ser relevante
em praticamente tudo o que o homem pensa, fala e produz. Em alguns casos —
como o de vários pacientes de Nise — acaba sendo o meio mais viável de
comunicação, ou de se fazer entender.
Com o psicológico abalado e o temor de não saber o que viria pela frente, iniciei
minha produção artística, a fim de documentar os momentos mais intensos que
passei durante o período de 2020 a 2022. Cabe apontar que um dos conceitos de
sublimação de Freud trata do mecanismo de defesa do sujeito que acaba por
transformar um determinado desejo inconsciente em impulsos aceitos pela
sociedade. Segundo Freud (1994), essas seriam alternativas para amenizar
sentimentos como dor, angústia, frustração e conflitos mentais.
3
Em PT/BR: Arteterapia; em PT/PT: Arte-Terapia.
13
A metáfora é uma ponte que liga domínios semânticos diferentes, fazendo com que
percebamos novos caminhos para a compreensão do sujeito (LAKOFF e TURNER,
1989). A utilização da palavra no conceito psicanalítico traz como bom exemplo a
Metáfora Delirante de Jacques Lacan (1901-1981), baseada nos estudos de Freud
acerca do caso de Daniel Paul Schreber (1842-1911), juiz que descobriu em suas
alucinações e delírios uma forma de organização psíquica. Freud (1996) afirma que
o delírio é uma tentativa de estabilização e de cura do sujeito. Lacan, tempos mais
tarde, reitera esse pensamento quando diz que a metáfora delirante trata-se de uma
"solução elegante" (LACAN, 1985, p.361) para ordenar o caos significante.
Imagem 1: Cabeça de Vírus (2020). Grafite e lápis sobre papel ofício de tamanho A4.
16
Passei meu aniversário acamada, sem sentir cheiro nem gosto. Chorava todas as
noites, senão de dor, de desespero. Lacan (1985) afirmou que "sem dúvida há uma
loucura necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco
de uma outra forma de loucura". Essa frase encaixa-se adequadamente no
momento que vivenciava quando construí a arte. Enxergava as pessoas que se
mostravam despreocupadas com a pandemia como loucas, apesar de todos ao meu
redor estarem enlouquecendo de alguma maneira, inclusive eu. Neste contexto
onde encontro-me como sujeito, a loucura — mesmo que temporária — se fez
necessária para que fosse transformada em arte.
Quando descobri a arte digital, não sabia ao certo por onde começar. Arrisquei um
desenho aqui e ali enquanto ainda trabalhava frequentemente com as Fanarts, mas
acabei deixando de lado tempos depois. Com a chegada da pandemia, muitos
estabelecimentos foram fechados e eu não possuía os materiais artísticos
necessários à disposição — como tintas, pincéis, entre outros — e enxerguei na arte
digital a solução para esse problema, aproveitando também para aprender a como
utilizar a ferramenta.
principal meio de criação, não apenas pela praticidade, mas também pela
disponibilidade de materiais semelhantes aos que, muitas vezes, não possuo.
Em setembro de 2020, saí do ambiente que me fazia mal para morar com alguns
amigos da época, colocando um fim em algumas questões, e um grande peso que
antes afetava significativamente meu psicológico desapareceu gradativamente. O
sentimento de esperança era o que me dominava no momento em que criei a obra,
e é representado pela Imagem 2 por um quebra-cabeça levemente colorido sendo
completado aos poucos.
18
A ideia de criar essa pintura digital surgiu através de um sonho que tive, onde me
encontrava sozinha em meio ao nada, ouvindo uma música aleatória de fundo
enquanto uma enorme mão me carregava calmamente até uma janela onde uma
paisagem era preenchida pouco a pouco por peças de quebra-cabeça. Para Freud
(1987), os sonhos tratam-se de uma "realização disfarçada de um desejo reprimido",
o que traz sentido e contexto para a representação que fiz através da obra. Naquele
momento, meu desejo reprimido era me livrar de toda a carga emocional que
trouxera comigo junto com a mudança de ambiente.
Quando criei este trabalho, estava em negação quanto aos planos que havia feito
para o resto do ano e que acabaram desmoronando logo de início. Tive de assistir
pessoas em quem confiava me virar as costas, e me vi novamente em meio à
sensação de desespero, onde a situação exigia de mim decisões importantes em
um curto espaço de tempo, e com isso, alguns problemas psicológicos voltaram a
me atormentar.
Jung (1967) diz que o pensamento e o sentimento (razão e emoção) são opostos.
Para ele, isso significa que quem for do tipo pensamento terá, consequentemente, o
sentimento como função inferior. Jung acreditava que a dinâmica psíquica se baseia
no equilíbrio dos opostos, e que a função inferior precisa ser assumida para que não
haja repressão no inconsciente e acabe afetando o consciente de maneira
destrutiva. No meu caso, precisei abraçar a razão para não deixar a emoção me
impedir de superar a situação.
Imagem 4: Meu Eu Oculto (2021), caneta esferográfica sobre papel canson de tamanho A6.
23
Criei a última obra deste trabalho em um momento onde me sentia em paz. Passei
por diversas situações difíceis em 2020 e 2021, me perdi incontáveis outras, mas
com a chegada de 2022 finalmente senti que encontrara meu caminho. Meus
pensamentos tornaram-se menos turbulentos, as noites de sono já não são mais tão
perturbadoras e a cada dia descubro uma parte de mim que havia se perdido ou
jamais sido encontrada. Nesta época, havia me estabilizado amorosa e
financeiramente, além de estar satisfeita com o rumo que minha vida estava
tomando.
4
Criado em 2009 pelo ilustrador americano Jake Parker, o Inktober é um evento anual realizado
durante todo o mês de outubro, onde diversos artistas e ilustradores ao redor do mundo criam suas
obras de acordo com os temas sugeridos. A palavra vem da junção de duas palavras em inglês: Ink
(tinta) e October (outubro).
24
Imagem 5: Acalento (2022), lápis grafite sobre papel canson de tamanho A6.
25
Jung (1922), dizia que o amor surge na forma de Eros, sendo um sentimento
profundo que causa confronto com nosso próprio ego. Ele acrescenta que a partir
da experiência do amor, amadurecemos e ampliamos nossa consciência.
No âmbito pessoal, trago o pensamento de Jung como uma descrição do que a obra
gostaria de passar como mensagem. Ao vivenciar o amor romântico verdadeiro,
afirmo de forma convicta que foi um dos principais pontos de partida que me
permitiram enxergar a vida por outra ótica e recuperar aos poucos quem eu já não
era, mas gostaria de ser.
26
Considerações Finais
A maneira como a arte está diretamente ligada aos sentimentos é, sem dúvidas,
impressionante, apesar de nem todos a verem ou ou a sentirem dessa maneira. Ao
separar estas obras e analisá-las no decorrer deste trabalho, me surpreendi com a
relação autêntica de cada criação com momentos distintos da vivência com a
pandemia e os altos e baixos que experienciei durante esse período. O impacto da
pandemia em minha psique foi sem dúvidas negativa, mas tive a oportunidade de,
através da arte, buscar me entender e entender as situações ao meu redor. É
inegável que a experiência pandêmica influenciou diretamente minha forma de ver e
fazer arte, trazendo uma carga pessoal e uma profundidade muito maior ao que
transpasso em meus trabalhos.
Partir dos pensamentos e estudos de figuras renomadas e admiradas por mim para
realizar este estudo foi de grande importância, pois a arte quando utilizada de
maneira terapêutica nos permite não somente compreender o que se passa em
nosso subconsciente e consciente, mas também buscar um momento de paz em
meio a turbulência, trazendo resultados significativos à nossa saúde mental.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA, S. A arte funciona como uma válvula de escape das tensões atuais.
Entrevista concedida a Ana Carolina Caldas. Edição 165, P. 08, Maio de 2020.
Curitiba, PR: Brasil de Fato.
FREUD, S. (1900). A Interpretação dos Sonhos. Ed. 2.. Rio de Janeiro: Imago.
1987.
JUNG, C.G. (1922). Sobre o Amor. Ed. 1. São Paulo: Ideias e Letras. 2005.
LAKOFF, G.; TURNER, M. (1989). More than cool reason: a field guide to poetic
metaphor. USA: The University of Chicago.
PHILIPPINI, A. (2003). Arteterapia, contribuição para uma cultura da paz. Vol 10:
Coleção de revistas de arteterapia "Imagens da Transformação". Lisboa, Portugal:
Pomar.
Comissão Examinadora
Recife, 2022
Resumo
Este trabalho tem como objetivo apresentar e analisar os autorretratos realizados por mim, ao
longo dos anos de 2016 a 2021, com o intuito de tecer uma reflexão sobre processo criativo e
memória. Na primeira parte, debati as mudanças do autorretrato ao longo da história da arte,
com atenção especial ao final do século XIX e início do século XX. Em um segundo momento
discuto sobre o que define o autorretrato, o que envolve seu processo criativo, e também de
como a memória influencia em sua produção. Para a finalização desta pesquisa retomei os
autorretratos realizados entre 2016 e 2021, e a partir deles foi feita uma análise, pensando
principalmente sobre o processo artístico e criativo envolvido em cada um deles.
Palavras- chave
Autorretrato, processo de criação, Artes Visuais, memória
Summary
This work aims to present and analyze the self-portraits made by me, over the years from 2016 to
2021, in order to weave a reflection on the creative process and memory. In the first part, I discuss
the changes in the self-portrait throughout the history of art, with special attention to the late 19th
and early 20th centuries. And in a second moment, I discuss what defines the self-portrait, what
involves its creative process, and also how memory influences its production. To complete this
research, I present self- portraits made between 2016 and 2021, and based on them an analysis was
made, thinking mainly about the artistic and creative process involved in each of them.
Keywords
Self-portrait, creation process, Visual Arts, memory
Sumário
Introdução…………………………………………………………………….......................…….. 7
4. Conclusão…………………………………..........................………….……………………. 53
5. Referências…….........................………………………………………………………….. 55
“Quase todos os pintores, num momento ou noutro, ainda que sentindo o quão inconsequente,
desnecessário ou mesmo nefasto podia ser falarem de pintura (sua ou de outros), sentiram a
necessidade de falar das suas obras e das motivações ou intenções que guiaram a sua criação.
Todos nos deixam a sensação de existir um hiato entre aquilo que revelaram e a obra de que
falaram. O próprio pintor o sente. E podemos perguntar-nos: não teria sido melhor ter ficado
calado?” (RAMOS, 2013, p. 67)
7
Introdução
Fui uma criança criativa, sempre gostei de desenhar apesar de não ter nenhum talento diferenciado dos
demais. Gostava de diferentes superfícies, mesas, paredes... E para a infelicidade da minha mãe risquei
várias com caneta esferográfica. Com o início da pré-adolescência me desliguei um pouco do desenho,
até mudar de escola, ao conviver com novas pessoas o interesse voltou, especificamente depois de
conhecer uma colega de classe que aos meus olhos desenhava incrivelmente bem; a partir desse
momento minha meta se tornou desenhar tão bem quanto ela.
O tempo foi passando, essa colega saiu da escola, mas eu não havia desistido, eu iria aprender a
desenhar. Minhas referências mudaram, aprendi técnicas diversas, usei diferentes materiais, e enfim fui
melhorando. Até esse momento era um hobby que me distraía durante as aulas que eu considerava
chatas. Tudo mudou quando passei a ter aulas de arte no ensino médio, e com apoio da professora,
passei a me interessar pelo assunto, queria aprender sobre os artistas e seus movimentos artísticos.
Assim, finalmente entendi a importância da semana de arte de 22, assunto que estudei em diversos
momentos da minha vida escolar, e quando enfim conheci Van Gogh, decretei que queria ser artista.
Com esse novo propósito em mente, passei a praticar com ainda mais seriedade. Com o auxílio dessa
mesma professora de artes, descobri que existia a graduação em Artes Visuais: o mundo parecia ter
feito sentido, era essa a minha “vocação”, ou foi isso que afirmei – e acreditei – naquele momento,
estando completamente alheia ao longo processo de aprendizagem que estava por vir. Simultaneamente,
comecei a entender quem eu era, passei por brigas, discussões e descobertas, sentia uma grande
angústia e a minha válvula de escape foi a arte. Tudo aquilo que sentia e não conseguia colocar em
palavras, eu transformava em imagens, até que desenhar se tornou tão natural para o meu corpo quanto
respirar. Aquilo fazia parte intrínseca de mim. Foi aproximadamente neste período de auto descoberta
que fiz meus primeiros autorretratos. Com eles, senti um alívio imenso. Era tão fácil fazer aquilo que
minha mão parecia se mover sozinha. Tornei-me compulsiva. Tudo era sinônimo de desenho, alguns
sentimentos já tinham formas definidas no meu imaginário e eu não deixava de desenhar um dia sequer.
Depois de uma vida inteira na escola, um intercâmbio e um ano de cursinho pré-vestibular, eu finalmente
entrei na tão sonhada universidade.
E a princípio, eu odiei.
Depois do choque inicial, eu comecei a me adaptar e entender onde me encaixava. Comecei a entender
minhas qualidades e o que poderia melhorar. Por sorte eu queria muito estar no local que estava, e usei
isso como força motriz. Aproveitei-me da disciplina adquirida por mim com tanto custo ao longo da vida
escolar, e decidi estudar. Eu seria boa, e seria na marra.
Nesse momento da vida acreditava piamente que sabia o caminho que minhas produções tomariam. No
momento que parei para analisar minhas obras vi a quantidade enorme de autorretratos que tinha em
mãos, por sempre os produzir quase que no automático, vários elementos se repetiam, mas que a
princípio eram invisíveis a mim. Depois dessa descoberta passei um longo período analisando produções
antigas, vendo o que eu buscava como referências, aquilo que me tocava, e acima de tudo, aquilo que se
repetia. Após novas crises de ansiedade e uma síndrome do impostor que se alojou no meu peito, comecei
a entender, novamente, o que me movia a produzir, pois eu tinha a ambição de fazer algo sensível, uma
obra que ao ser observada, fizesse o espectador sentir alguma coisa, qualquer coisa. Apesar das ideias
8
ambiciosas, cada vez que desenhava, pintava ou riscava o papel, me sentia menor; nada parecia bom,
mesmo com tanta insistência minha, afinal, tudo que eu sempre soube fazer foi transformar meus
sentimentos em imagens.
Com muitas tentativas e técnicas diferentes, fui tentando amadurecer meu trabalho, até chegar na
produção presente. E por mais que eu ainda erre, me frustre e quase sempre não consiga fazer
exatamente o que me proponho, acredito que alcancei maturidade o suficiente para ver o quanto eu
mudei – e também, a minha produção.
Finalmente cheguei ao momento que acabei me perguntando, por que o autorretrato sempre me cativou
tanto? Além de ser um mecanismo de defesa óbvio para mim, acredito que sempre tentei entender o seu
apelo. Afinal, como e por que o autorretrato dialoga comigo dessa forma se é algo tão íntimo e
aparentemente tão distante da minha realidade? Essa pesquisa traz, então, como questão principal
entender como se deu a presença do autorretrato na minha produção artística entre os anos de 2016 e
2021.
Para trabalhar esses questionamentos, meu objetivo geral é investigar a presença do autorretrato
durante esse período em minhas produções. E para atingi-lo tenho como objetivos específicos mapear a
minha produção artística desde as primeiras “aparições” do autorretrato, aproximadamente no início de
2016, até o ano de 2021; selecionar as obras por meio de uma curadoria1 – a atividade curatorial tem
diversas camadas a serem pensadas, trabalhadas e discutidas, porém nesta pesquisa o termo esteve
presente meramente para explicar a seleção feita por mim dentre os autorretratos produzidos no
espaço de tempo determinado; e por fim, analisar e estudar essas produções, criando debates sobre o
processo artístico e criativo.
Por esses motivos, esta pesquisa é uma análise contemporânea e interpessoal que busca relacionar
autorretrato e memória, criando uma conversação entre processo criativo e poética, tornando possível
o diálogo sobre o surgimento do “eu artista”; além de fomentar outras reflexões sobre o assunto
proposto e contribuindo tanto com o processo de formação do sujeito, e com o processo criativo, a
partir da relação entre autorretrato e memória.
Após determinar os objetivos desta pesquisa, optei por seguir a metodologia qualitativa cartográfica,
pois esta pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador não se fazendo de modo estabelecido,
nem por regras prontas. De acordo com Oliveira e Richter (2017)
No método cartográfico, não buscamos um resultado, uma
conclusão de fatos, e sim, pensamos o próprio processo de
pesquisa, em si: suas etapas, seus desvios, seus “erros’’, e tudo
que dali puder vir a se tornar potência para a pesquisa.
(OLIVEIRA e RICHTER, 2017, p. 30)
Ou seja, caracteriza-se por sua maior volatilidade e aptidão de adaptação ao processo da pesquisa
conforme os efeitos do processo de pesquisar sobre o objeto de pesquisa, o pesquisador e as
descobertas que podem vir a surgir.
1
Para maior aprofundamento sobre a questão da atividade curatorial, recomenda-se ler Mendonça Filho
(2020).
9
Autorretrato e seu
contexto histórico
10
Sabe-se que a arte nunca está isolada daquilo que acontece ao seu redor e do momento histórico em que
esta é criada, afinal o ser humano é um animal social antes de qualquer coisa. Por este motivo pode-se
afirmar que a arte é reflexo de seu tempo. Consequentemente os novos movimentos criados durante
esse período histórico refletiam aquilo que estes viviam, o que naquele momento no território Europeu era
a instabilidade. A inquietação desse período é decorrente de diversos aspectos em mudança e, assim, do
conflito entre paradigmas já estabelecidos e essas novidades. Alguns desses aspectos que podem ser
citados são o político, o econômico, o social, o filosófico e o artístico; percebe-se, dessa maneira, o
caráter generalizado de mudanças que passam a ser visíveis principalmente após as revoluções que
abrangem o continente europeu – e parte significativa de suas ex-colônias nas Américas – no ano de
1848, marcando com enorme turbulência a segunda metade do século XIX.
No campo artístico pode ser percebida essa inquietação da geração e a anunciação da modernidade que
viria com o século XX. Cada vez menos os artistas se conformam com as reproduções, com as
imposições e normas, com as regularidades e perfeições, e todas essas mudanças apresentam-se como
o estopim para a busca pela liberdade no campo das artes. A pintura talvez tenha sido uma das primeiras
a ganhar reconhecimento por seu brusco rompimento com o academicismo ainda no século XIX.
Durante esse período a humanidade também começou a vivenciar com ainda mais intensidade o
individual: os artistas também buscavam cada vez mais o reconhecimento de si – buscavam serem únicos.
Essa movimentação havia surgido desde o Iluminismo, porém com a ascensão do modelo econômico e
social capitalista, se tornou ainda mais evidente essas necessidades de individualidade e propriedade
privada.
Dentre os vários movimentos que poderiam ser citados, o Pós-Impressionismo não era de fato um
movimento. Este surgiu muito tempo após a morte daqueles pintores considerados pós-impressionistas,
decorrente de uma exposição organizada por Roger Fry (1866-1930). De acordo com Gompertz (2013),
Fry procurou um denominador comum entre os quatro artistas expostos: Seurat, Van Gogh, Cézanne e
Gauguin. Afinal, anteriormente os artistas Seurat e Van Gogh haviam sido denominados neo
impressionistas; Cézanne já havia sido, de fato, impressionista; e Gauguin tivera aderido o movimento
simbolista. Porém seus estilos pictóricos tinham se desenrolado de maneiras tão distintas que eles tinham
cada vez menos em comum.
Mesmo reconhecendo que este movimento artístico não fora em momento algum “vivo”, não podemos
negar a relevância do movimento “manufaturado”, nem dos artistas que nele foram atribuídos. Porém, ao
voltarmos para o assunto autorretrato, foi neste momento que surgiu Vincent Van Gogh.
12
Vincent Van Gogh (1853-1890), era o mais velho de seis filhos, e só começou a pintar em 1880, por uma
sugestão de seu irmão e constante correspondente, Theo. Van Gogh sentia seus sentimentos em uma
intensidade particular e por uma possível doença mental, este acabava se prejudicando em trabalhos
"tradicionais", já tendo trabalhado na empresa de arte de seu tio durante a juventude, fora professor
para meninos metodistas e quase entrou para a Escola de Teologia de Amsterdã, porém se recusou a
fazer o teste de latim.
Uma forte particularidade de Van Gogh era sua ambição como artista, este dizia que ao olharem seus
quadros ele desejava que o dissessem "este homem sente profundamente", e assim o fez. Como
consequência deste anseio, Van Gogh é frequentemente confundido por expressionista até por ter várias
similaridades com tal movimento.
Sobre autorretrato, Van Gogh apresenta uma extensa produção, em muitos casos era por falta de
dinheiro para pagar diferentes modelos; mas não pode-se negligenciar a sensibilidade dessas obras, de
acordo com Maia (2018):
Van Gogh apresenta uma pintura muito própria, com uma poética individual inconfundível. Suas
distorções de cores e visão artística única nos mostra um artista e homem sensível marginalizado pela
sociedade.
Acredito ser relevante para o entendimento deste trabalho falarmos sobre o Expressionismo, que teve
grande força na Alemanha, e de acordo com Ferraz (2015) a influência do Impressionismo deu o tom ao
movimento de libertação do Romantismo nas artes plásticas. Além de que as descobertas feitas pelos
impressionistas sobre a luz e cor como forma de expressão, além da libertação da representação naturalista
do tema tratado - rejeitando a verossimilhança - contando com movimentos gestuais mais livres para o artista
trouxeram novos ares para o movimento artístico alemão. Juntamente com as referências pós-
impressionistas de Gauguin e Van Gogh, foram as influências definitivas para aqueles que se aventuravam no
novo movimento.
Como maior referência expressionista temos o pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), sendo muitas
vezes lembrado por sua obra O grito. Munch viveu uma vida de muitos infortúnios, dentre eles a morte de sua
mãe aos 5 anos de idade, e após alguns anos a irmã mais velha, Sophie, que adoeceu e pereceu devido à
tuberculose. Nos anos seguintes ainda teve que enfrentar o falecimento do pai devido a um ataque cardíaco e
vivenciar o internamento de sua outra irmã devido à esquizofrenia.
Todos esses acontecimentos acabaram por influenciar a extensão de sua obra, que refletia uma enorme
angústia e solidão que sentia. De acordo com Bortulucce (2008) Munch utilizou seus conflitos interiores como
matéria prima de sua arte, e incluiu a representação de si mesmo em muitas de suas pinturas. Um bom
exemplo disto é a obra Autorretrato com cigarro, nesta produção pode-se perceber a construção da imagem
de outsider, a figura principal nos olha iluminada pela parte inferior da pintura, e ainda assim o corpo desta
figura se mistura com o fundo de maneira brusca, na qual apenas a mão e o rosto podem ser vistos de forma
clara. O olhar se inclina de forma sutil para baixo, e mesmo que a presença do artista esteja aparentemente
próxima, a nuvem de fumaça nos afasta da cena; além da postura defensiva, à possível entrada do espectador
– nós – na cena.
Além de Van Gogh e Munch, poderia ter falado aqui
de diversos outros artistas, como Tarsila do
Amaral, Anita Malfatti, Frida Kahlo, Jenny Saville,
entre outros. Porém estes que nos aprofundamos
influenciaram de forma direta minha produção
pessoal e percepção artística, e por isso nos
detivemos neles uma maior atenção. Além disso,
pode-se perceber que por mais que estes
estivessem relativamente próximos na ‘linha do
tempo’, já se diferem em inúmeras características.
No capítulo seguinte levaremos essa discussão
além, discorrendo sobre as definições e limites
entre autorretrato e autorrepresentação.
Em princípio não percebia minha produção como autorretrato, pois como não tinha conhecimento
técnico de desenho, não era capaz de fazer uma representação fidedigna de mim. Por mais que fossem
imagens muito próximas de mim, não encaixavam na descrição de autorretrato que tinha em mente, que
era ainda muito engessada a uma noção de um desenho ‘naturalista’ do retratado. Com o tempo vim a
entender que não era isso que definia e delimitava a linguagem.
Diferentes pesquisadores tratam desse assunto, como Canton (2002, p. 22), quando nos diz que “O auto-
retrato é a afirmação do artista em sua condição única de criador de sua própria imagem.”
A partir dessa afirmação pode-se perceber que atualmente a definição e ideia de autorretrato é muito
mais ampla do que um dia já foi.
A consequência imediata para a minha produção artística é que uma parte significativa dela, desde 2016,
poderia ser entendida como uma extensa série de autorretratos.
O autorretrato ganhou uma nova amplitude a partir dos movimentos artísticos modernos; e por isso, de
acordo com Hall (2005), pode-se dizer que o autorretrato não se configura apenas como uma
representação de si, mas também como uma forma de representação da própria identidade. É possível
perceber como esta linguagem artística aparece, atualmente, com o intuito de reafirmar o indivíduo
Também sendo uma forma mais ‘simples’ de expressão – afinal, o que nos é mais familiar do que nós
mesmos?
Partindo desse questionamento e da realização do que poderia ser um autorretrato – ou no mínimo, uma
autorrepresentação – desenvolvi numa produção extensa, e em muitos momentos até mesmo
compulsiva. Como primeiras referências no tema, tive Van Gogh e Munch, que conheci em sala de aula,
durante o próprio Ensino Médio. As distorções na anatomia, as cores intensas e a forte expressividade de
ambos os artistas se destacaram para mim dentre os demais: eu queria ser capaz de reproduzir, sozinha,
o sentimento que tinha ao olhar para aquelas obras – e foi até cômico, que as minhas maiores
referências artísticas naquele momento, tinham certo ‘problema’ com a compulsividade no momento da
produção.
Depois fui conhecendo novos artistas, e sempre me chamava a atenção as diversas maneiras de se
representar.
Outro nome que acabou me marcando muito naquele momento foi Anita Malfatti. Especialmente porque
teve como provação enfrentar as duras críticas feitas por Monteiro Lobato à sua exposição em 1917.
Recordo-me de me apiedar por ela, e por tanto temer a rejeição, me ver refletida em sua imagem em
diversos momentos de insegurança.
Esses artistas serviram de norte para meus trabalhos iniciais, na escolha de cores, e também na
petulância de ignorar a necessidade de um estudo sobre os fundamentos do desenho. A partir disso,
passei a explorar todas as possibilidades de autorrepresentação que conseguia conceber, porém,
naturalmente fui me voltando para o retrato, pois a face sempre me fora mais fascinante. Dessa forma,
quando Abreu (2011) afirma que o artista ao fazer um autorretrato reflete sobre si, na construção de sua
imagem, torna-se imperativa a auto-análise, tudo pareceu corroborar com minha produção.
16
À distância posso perceber que durante um longo período de tempo eu reproduzia uma imagem
idealizada de mim mesma, já que, vistos de hoje aqueles desenhos dificilmente refletem meus traços e
expressões. Contudo essa ‘idealização’ não estava sempre trabalhando em favor de um embelezamento
estético, pois em diversos momentos enfatizava ‘defeitos’ em favor de um sentimento ou sensação – o
que também era consequência de uma imagem pessoal distorcida, que dificultava o entendimento das
minhas feições. Abreu também fala sobre isso quando diz:
Através do autorretrato o artista se apresenta, se exterioriza, ele se diz presente no seu mundo, que
pode ou não, dependendo de sua poética, coincidir ou ter relação com o mundo real e concreto. O artista
materializa a sua identidade no autorretrato, revela o que imagina ser, o que deseja e pretende ser.
Portanto, a autorrepresentação envolve tomar decisões sobre como quer ser visto, cabe aqui a
pergunta: quanto existe de invenção nesse processo de elaboração de si? (ABREU, 2011, p. 1)
A partir dessa indagação, vi-me revisitando essas imagens que havia feito há tanto tempo. E por mais
que eu tenha mudado e amadurecido ao longo desses seis anos, poucos daqueles sentimentos realmente
me deixaram. Estes autorretratos tornaram-se um diário visual de minhas inseguranças, medos e até
mesmo dos traumas que carrego. Essas imagens carregam consigo memórias e uma reafirmação
acidental do eu, bem explicado por Ramos (2013):
Com isso, Ramos nos traz de volta para a fala de Hall (2005) no qual afirma que o autorretrato, na
atualidade, é antes de tudo uma reafirmação do artista como indivíduo, ele abre margem para um novo
entendimento do que pode ser um autorretrato. Afinal, quando este ‘leque’ é expandido para além de
uma representação de si, pois ao se referir à identidade, nos coloca além da imagem semelhante ao
artista.
Foi mais ou menos nesse momento de entendimento do meu processo criativo que pesquisei e estudei
sobre o trabalho de Frida Kahlo. Conhecia a persona, sabia que pintava e, provavelmente, já havia me
questionado a razão da monocelha, porém não conhecia a artista Frida Kahlo. Quando vi a extensão de
sua produção e no momento que vi seu rosto repetidas vezes em seus quadros, me senti vista. Kahlo
afirmou que pintava a si mesma porque era sozinha e porque era o assunto que melhor conhecia; nesse
momento Frida não só se afirma artista, como também se declara tema a ser trabalhado.
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Foi nesse período de inúmeros aprendizados e de grande interesse no assunto que tive consciência de que
existe um processo criativo. Por mais que a criatividade seja uma habilidade, como qualquer outra, por
muito tempo acreditei que era um dom, algo que nasce com você, e que eu – particularmente – não
carregava isso dentro de mim. Porém, fui percebendo um padrão dentre meus “picos de criatividade” – o
que, na verdade, expunha que eu tinha uma rotina criativa. O processo criativo é um procedimento
individual, que opera entre consciente e inconsciente, Jung (2011) diz que:
O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do
arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo, a formação da
imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando a cada
um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo,
lhe seria negado. (JUNG, 2011, p. 83)
Para tornar brevemente compreensível todo o meu processo criativo, desde a ideia primordial até a
obra finalizada é preciso entender o primeiro passo. Como mencionado anteriormente, o autorretrato é
uma maneira de se autoanalisar, e foi com essa intenção que eu comecei – mesmo que
inconscientemente – a produzir autorretratos. Por um gatilho externo, que não me recordo qual, resgatei
memórias há muito guardadas, nas quais colocaram em perspectiva as poucas certezas que tinha de
mim; ao ocupar o lugar de vítima, encontrei-me encurralada, no qual, o único caminho à minha frente era
um lápis e um papel. Retomei as referências artísticas que já admirava, e busquei exatamente o que
admirava nelas; era a capacidade de cada uma de ‘exorcizar seus demônios’ por meio da arte, e decidi
tentar. Em relação a essa colocação, Ostrower afirma que:
Quais partes de mim eu estou disposta a mostrar? Qual é a imagem que eu quero usar para me
representar? Quais são os meus limites entre privado e público?
Esses foram questionamentos que surgiram ao longo dessa pesquisa, e também durante a produção
dos autorretratos aqui apresentados. Afinal, mesmo que ao criá-las, eu nunca tenha posto um filtro nas
obras e no imaginário que elas carregam, ao colocar em palavras sobre o que cada uma aborda, estas
ganham uma nova dimensão e um novo comprometimento com o 'público'.
No momento que decidi desenhar - e posteriormente pintar - aquilo que me afligia, acabei expondo
dentro do meu imaginário experiências - memórias - que não havia colocado sequer em palavras; na
esperança de possivelmente ressignificá-las; por isso pude perceber que o imaginário das minhas
produções sempre esteve centrado na memória, e na reflexão acerca disso. Segundo Gusdorf (1951
p.256, apud HERVOT, 2013, p. 104) a memória é “uma espécie de retrato do que somos, composto com as
características do que éramos”. Partindo desse princípio, então, as memórias não representam
acontecimentos que cruzaram nossa vida, mas também representam aquilo que somos, e o que já fomos.
Por conta disso, é necessário refletir sobre como a memória interfere direta, e indiretamente, nas
produções artísticas. Canton (2000, p. 52) fala que “a memória corporal torna-se um bem valioso e
incomensurável de riquezas afetivas que o artista desnuda e oferece ao espectador com a cumplicidade
e a intimidade de quem abre um diário”. Então a partir do momento que afirmamos que o processo
criativo é em sua parte algo inconsciente, pode-se pensar sobre como nossas memórias o afetam.
Nesse sentido Jardim (2017) discorre que em diversos momentos aquilo que foi vivido precisa ser
escavado para, então, revelar camadas mais profundas, assim dizendo que tem que ser processado
para então ser transmutado, Jardim também comenta que ao expor obras que advêm de sua vida
pessoal, aquilo que é privado se torna público. Entretanto, temos que levar em consideração que a obra
tem o poder de transcender as delimitações da experiência do artista - do particular - e ser
ressignificado pelo espectador.
A partir disso precisamos pensar sobre, como é a nossa relação com o particular vindo à público.
Porque, por mais que eu, como artista, faça uma obra baseada na memória e atribua a esta um
significado específico, o espectador pode ao observá-la ressignificar a obra a partir de suas próprias
experiências. Precisa-se ‘desapegar’ o suficiente da produção, para permitir que esta faça o seu papel
como obra. Mesmo assim, houve uma necessidade interna de parar e analisar os autorretratos
produzidos até aqui, e é isso que iremos abordar no próximo capítulo.
20
Autorretratos
que fiz e o que
vim pensar
deles
21
A curadoria
A partir das reflexões levantadas sobre autorretrato, processo criativo e memória, vi a necessidade de
revisitar minhas produções; desde aquelas que iniciaram tudo, em 2016, até o final do ano de 2021. Por
meio delas consegui delimitar um panorama dentro da série meus autorretratos, relativo às percepções
de autoimagem e às vivências do período que foram produzidas.
Levando tudo isso em consideração, selecionei obras dentro do recorte temporal dos anos de 2016 a
2021; 2016 pois foi o começo de minha produção artística, mesmo que inicialmente longe da academia,
além de fator determinante para o entendimento das obras atuais, até o final dessa pesquisa. Após esse
primeiro passo surgiu a dúvida: como seria feita essa curadoria? Afinal, não havia condições de inserir
todas as obras que tinha em mãos. Então, precisava selecionar quais obras ficariam, e o porquê.
Após certa reflexão cheguei à conclusão que era necessário definir um número total de imagens para
serem apresentadas, e decidi então dividir o número de obras igualmente entre os anos, a fim de
oferecer um insight de maneira equivalente por cada etapa do processo, sem criar uma hierarquia
dentre as produções e seus processos. Consultei cadernos e pastas antigas que encontrei. Como
primeira forma de eliminação, selecionava apenas aqueles trabalhos que poderiam ser considerados um
autorretrato - por mais que alguns não tivesse realmente um rosto diretamente representado. Após esse
primeiro momento as obras seguintes à serem eliminadas foram aquelas que eu não gostava do
resultado, seja por algo que veio a dar errado, por estarem distante daquilo que havia idealizado
inicialmente - tentando sempre respeitar as limitações técnicas do momento em que a obra fora
realizada. Também não limitei o meio, independente do material, papel ou finalização, se a produção
conseguisse representar de forma bem-sucedida a mensagem, esta seria selecionada.
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2016
23
Durante o ano de 2016, a maioria das minhas produções eram relacionadas ao estresse vivido pela
conclusão do Ensino Médio. A expectativa pela nota do Enem, além da incerteza do ano que se seguiria
influenciou de forma direta naquilo que desenhava, afetando até mesmo a seleção da paleta de cores da
maioria das obras, além das composições barulhentas que conversavam com o caos que se passava em
minha própria cabeça no momento.
Além da escolha estética de trabalhar com as cores vermelho e preto, eu pensava na questão prática,
pois sofria com o péssimo hábito de desenhar em classe, e por isso era mais fácil utilizar apenas duas
cores de lápis de cor e marcadores, do que dispor de diversas cores. Recordo-me que na época tive a
pretensão e ousadia de pensar que eu estava na minha fase “preto e vermelho”, do mesmo modo que
Picasso teve sua fase azul.
Durante o ano tive inúmeras crises de ansiedade, e por um longo período de tempo tive absoluta certeza
que seria assim a minha vida inteira. Desenhar era uma válvula de escape enorme, e isso refletia
diretamente na minha produção. As texturas marcadas, as palavras, a repetição de cores; tudo isso
refletia um descompasso interno.
Apesar dos inúmeros problemas enfrentados naquele momento, foi um período de descobertas, pois foi
ali que consegui dar um primeiro passo para um possível encaminhamento no desenvolvimento de uma
poética. E esses momentos tanto serviam como válvula de escape, como uma luz no fim do túnel, a partir
desse período acreditei estar no caminho certo para num futuro distante me tornar “alguém”.
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Imagem 1
Invisível
18/07/2016
Acrílica sobre papel
Essa pintura surgiu durante algumas reflexões sobre o meu ‘valor’, a sensação que tive por muito tempo é
a de que eu seria invisível aos olhos dos outros. Também foi minha primeira experiência com tinta acrílica,
e acho que muito contribuiu para a construção da imagem, mesmo que as pinceladas marcadas nas
figuras em ocre fossem incidentais, funcionam ao criar maior textura e contraste com a figura central. É
possível vermos ‘problemas’ no trabalho – majoritariamente por falta de cuidado – e o que mais
incomoda visualmente, é a sujeira na parte branca.
Imagem 2 25
Caos
30/11/2016
Lápis de cor, caneta
nanquim e marcador
sobre papel
Imagem 3
Abraço
05/12/2016
Caneta nanquim e
marcador sobre
papel
Esse desenho surgiu a partir de uma crise de ansiedade, no qual eu me sentia extremamente sufocada. Eu
nunca decidi o que realmente era essa figura que está mais atrás, em alguns momentos era a
personificação da minha ansiedade, em outros representava aquele que me agrediu durante a infância.
Produzi uma quantidade significativa de pinturas e desenhos com essa figura, e ela constantemente
mudava de ‘significado’, porém carreguei-a comigo por bastante tempo. Os fortes contrastes entre
preto e vermelho tentavam representar o desespero daquele abraço indesejado – independente de quem
fosse.
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017
2
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2017 foi um período de mudanças, passei um trimestre morando na Nova Zelândia com o intuito de
aprimorar minha proficiência em inglês, e por mais que tenha sido um período incrível com memórias e
experiências que levarei para a vida toda, em diversos momentos eu me senti incrivelmente sozinha. Em
decorrência do fuso horário de 16 horas, o contato com família, namorado e amigos era escasso, e em
meio a inúmeras piadas de que eu “vivia” no futuro, eu precisei aprender a lidar com a minha própria
companhia, coisa que nunca havia precisado fazer por tanto tempo. Além do amadurecimento óbvio que
todos temos quando temos que “nos virar” em outro país, eu aprendi a conviver comigo.
Também foi o período em que recebi o primeiro ‘não’ na minha vida, quando não consegui passar em
Artes Visuais pelo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Por mais que sempre tenha sido desesperada
e ansiosa, um pedaço de mim sempre acreditava que no final as coisas dariam certo, e nesse momento
ao não ter funcionado exatamente como eu havia planejado me desestabilizou um pouco. Apesar de
saber que poderia realizar essa prova quantas vezes eu quisesse, me estabeleceram o “limite” de que se
eu não passasse em Artes naquele ano, eu teria que fazer Pedagogia, ou qualquer outro curso “de
verdade” que eu conseguisse passar.
Como consequência, isso virou um fardo em minhas costas, eu sentia a necessidade de me provar como
aluna, vestibulanda e artista. Eu precisava defender a minha permanência no curso que eu sequer havia
entrado, e equilibrar todas as responsabilidades com a necessidade latente de produzir. Durante o ano
me tolhi do hábito de desenhar em classe, e me dediquei aos estudos como jamais havia feito em minha
vida, porém a cada momento de respiro, por menor e mais breve que fosse, eu estava debruçada sobre
meu fiel caderno de desenho. Novamente cada momento de desespero e angústia acabava transposto
para aquelas folhas, contudo, com a constante prática minhas técnicas foram se aprimorando, além de
eu estar mais confortável e aberta com experimentações. Por mais que eu ainda explorasse com
bastante frequência as figuras em preto e vermelho, eu estava extrapolando essas barreiras e tentando
ir além.
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Imagem 4
Me sentindo azul
26/07/2017
Caneta nanquim,
marcador e lápis de cor
sobre papel
A expressão “feeling blue” foi o que me inspirou para produzir esse desenho. Pela associação da cor azul
com o sentimento de tristeza, comecei a explorar com mais frequência a cor e suas tonalidades, apesar
de ainda não ter abandonado o vermelho. Nesse momento ainda tinha pouca noção de um desenho mais
técnico, e trabalhava exclusivamente com os conhecimentos adquiridos empiricamente. Além de tudo,
gostava de explorar diferentes texturas e como elas poderiam dialogar com a figura principal. Nesse
momento também já estava conseguindo trazer figuras mais expressivas, mesmo que ainda tivesse um
longo caminho a trilhar.
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Imagem 5
Alguns sentimentos ruins
19/09/2017
Caneta hidrográfica,
marcador e lápis de cor
sobre papel
Novamente me encontrava trabalhando com fundos inteiramente pretos, com nenhuma profundidade,
além de trazer as cores que já me eram conhecidas – azul e vermelho. Especificamente nesse desenho, é
possível perceber uma leve mancha arroxeada no braço do lado direito, representando o hábito que havia
desenvolvido; me beliscava constantemente para tentar me concentrar naquilo que era real e não me
perder nas crises de ansiedade, o que resultou em um hematoma roxo que perdurou por meses.
A figura estar completamente delineada de azul tinha a intenção de representar a tristeza – o quão
deprimida eu me sentia – e o vermelho, era a ansiedade, por sempre ter sido uma cor particularmente
inquietante para mim. Passei um tempo persistindo nessa paleta, e até hoje são cores recorrentes em
meus trabalhos, mas neste momento ainda faltava maturidade na forma que eram trabalhadas. Há
também uma breve tentativa de adicionar profundidade ao desenho, trabalhando com luz e sombra – na
verdade, durante todo 2017, tentei adicionar certo realismo na figura que desenhava, porém com pouco
sucesso.
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Imagem 6
Doença, insanidade e
morte
11/12/2017
Giz pastel seco, caneta
nanquim e lápis de cor
sobre papel
Doença, insanidade e morte surgiu ao ler a frase Munch que dizia “Disease, insanity and death were the
dark angels that kept watch over my cradle, and since then they have followed me throughout my life”,
para ser sincera, pouco sei sobre a veracidade de sua autoria, porém ela me marcou o suficiente para
produzir algo pensando nisso. Trabalhei com giz pastel seco, e pouco me satisfez a bagunça que fiz, mas
lembro de ter ficado orgulhosa do resultado. Naquele momento senti ter feito algo sobre um problema
real, não as ‘besteiras’ que me afligiam, e por mais que tenha me inserido no desenho, não era apenas
sobre mim.
Passei bastante tempo acreditando que não era arte os autorretratos que fazia. Por que por mais que
me fizessem bem, pouco importava para aqueles que estavam os observando, e acreditava que seu valor
estava ligado à sua ‘relevância’, e para quem importava aquilo que eu sentia?
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Depois de um longo período de aflição no que se referia ao futuro, eu finalmente tinha uma resposta
concreta, eu iria cursar Artes Visuais!
Eu finalmente consegui!
2018 foi um ano que eu iniciei completamente animada, mal podia me conter em mim, e por conta disso,
produzi menos. Por bastante tempo carreguei comigo o estigma do artista triste, genial e
completamente desfalcado da sociedade em que vivia; e acredito que em muitos momentos me esforcei
ativamente para ser um pouquinho assim. Por ter depositado inúmeras expectativas na faculdade,
acabei me decepcionando quando não foi exatamente aquilo que idealizava, além de perceber que o que
me ‘destacava’, e boa parte do meu senso de identidade, era característica comum dentre meus colegas
de classe. O choque foi grande, mas por ter enfrentado muitos questionamentos de terceiros se artes
realmente era o caminho, me senti obrigada a continuar.
Dentre inúmeras questões, o que mais me causava insegurança era a minha falta de conhecimento
técnico; particularmente no momento de pôr em prática aquilo que tinha em mente, e muito me frustrava
ao ter a impressão de que só eu estava passando por aquelas dificuldades. Por mais que eu já tivesse
evoluído mundos inteiro desde meu ponto inicial, o sentimento que restava era que ainda estava muito
longe de um padrão ‘aceitável’; o que não colaborou para este sentimento foi como se deu algumas
disciplinas práticas cursadas.
Após esses primeiros embates internos, fui me adaptando, e as coisas melhoraram com o passar do
ano, até que me ‘encontrei’ em pintura. Já brincava com aquarela, por mais que não tivesse nenhum
conhecimento de como se usar o material ‘corretamente’, já tinha algum aprendizado empírico, o que
acabou me auxiliando a entender o funcionamento da tinta mais rapidamente. Aos poucos fui me
entendendo com o novo ambiente que era a universidade, e entendendo quem eu era além dele, e
felizmente estava ficando cada vez mais feliz naquele ambiente.
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Imagem 7
Sem título
13/03/2018
Lápis de cor,
marcador e caneta
nanquim sobre papel
O ano inteiro foi um grande ponto de virada no amadurecimento da minha produção, porém ainda era
possível ver os vários elementos que se repetiam. A figura preta, as cores, o desenho ainda muito preso à
linha, tudo era muito próximo àqueles desenhos iniciais. Contudo acredito ser perceptível uma nova
mudança de perspectiva na abordagem de toda a ilustração, apesar de que novamente, não havia
decidido o que a figura personificava.
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Imagem 8
Toque
19/04/2018
Aquarela, marcador,
caneta nanquim e lápis
de cor sobre papel
A partir daqui é possível ver mudanças mais significativas entre o que foi produzido antes e depois de
entrar na universidade; ganhei novas referências, aprendizados e fui muito inspirada por diversos
colegas de classe. Desse momento em diante, tive coragem de experimentar dentro daquilo que me
propunha a fazer. Ainda não havia conseguido me libertar totalmente da linha dentro da pintura, mas
estava lentamente me direcionando para conseguir.
Pode-se perceber que a paleta de cores ainda é a mesma, porém trabalhada com um pouco mais de
maturidade. Além de uma percepção um pouco melhor da anatomia do rosto, apesar dos erros
presentes, e uma construção inicial para aquilo que podemos nomear de ‘traço’ do artista. As emoções
ainda são pouco claras no rosto da figura, porém considerando o todo da imagem, podemos inferir a
mensagem que tem a intenção de passar.
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Imagem 9
Sem título
12/11/2018
Aquarela sobre papel
Essa foi uma das primeiras pinturas figurativas a fazer diretamente com aquarela. Lembro-me vividamente
de ficar nervosa com a falta do controle, até aquele momento utilizava do artifício pintura, unicamente, como
meio de colorir o desenho e não como linguagem artística propriamente. E seguia insistindo nos mesmos tons
de azul e vermelho, extremamente saturados. Por mais que tenha sido um processo estressante, foi uma
pintura que o resultado me satisfez, pois ao observá-la finalizada podia ver que havia uma expressividade
diferente – nova – de qualquer trabalho antigo.
Costumo brincar que tenho duas séries de autorretratos diferentes, os intencionais e os acidentais. Os
intencionais foram aqueles feitos conscientemente, em que eu tinha plena noção do que queria como
resultado, e assim o fiz. Os acidentais, por sua vez, surgem ao acaso, geralmente em momentos de distração,
quando me encontro produzindo apenas pelo prazer de produzir, e meu rosto insiste em emergir no papel –
normalmente por culpa da memória muscular.
Esta pintura faz parte do segundo grupo de autorretratos, aqueles que são felizes acidentes. Aqueles que
geralmente revelam algo que nem eu percebi que estava sentindo. E ao observar ela hoje, depois de todo esse
tempo, consigo notar como ela representava, com clareza, minha ansiedade.
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Durante o início do ano de 2019 eu acreditava que estava com um caminho bem definido dentro da minha
produção. Tinha feito grandes avanços técnicos, e tinha absoluta certeza que tinha resolvido
completamente a questão da poética.
Entretanto, comecei a ter a sensação de que não estava evoluindo na maturidade das produções. Tudo
que fazia, ainda tinha uma influência muito forte da menina insegura de 2016. E foi com essa incerteza do
caminho que estava tomando que adentrei um grande bloqueio criativo.
Tudo que tentava pintar parecia um plágio de mim mesma. Coincidiu que naquele momento estava
cursando o 4º período do curso, e mais especificamente a disciplina de Pintura 3, na qual estávamos
discutindo e investigando justamente sobre nossa poética. Então, Pintura que desde o início era minha
disciplina favorita, se tornou a mais desgastante emocionalmente naquele momento.
Apesar de tudo, foi um momento extremamente enriquecedor para meu repertório artístico. Por conta
das novas inseguranças com a repetição, me permiti explorar novos materiais, como guache e giz pastel
oleoso, que mesmo que fossem de fácil acesso anteriormente, nunca haviam despertado muito interesse
em mim, pois procurava sempre me manter na zona de conforto que a aquarela representava para mim.
Após muita incerteza, acredito que comecei a me entender com o papel em branco novamente. Mesmo
que ainda não estivesse completamente resolvida com minha produção, eu tinha a impressão de estar um
pouco mais certa do que estava fazendo. Agora tinha um rumo.
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Imagem 10
Sem título
05/06/2019
Acrílica sobre tela
Essa tela marca um novo momento na minha produção, com maior conhecimento técnico dos materiais utilizados, e
maior noção do que queria alcançar. Nesse momento dediquei-me inteiramente à pintura, pois estava conseguindo
alcançar resultados que jamais havia imaginado. No período que a tela foi feita, estava cursando a disciplina de
Pintura 2, e nela estávamos trabalhando com tinta acrílica, razão pela qual havia começado a me dedicar à técnica.
Por ter adquirido novos conhecimentos, tinha segurança para sair da zona de conforto sem tanto receio, e nessa
tela decidi explorar isso. A pele foi trabalhada utilizando as cores primárias para dar noção de luz e sombra, além de
ter dado um efeito mais ‘orgânico’ em suas manchas. Entretanto, no fundo optei por pinceladas mais ‘duras’ quase
que geométricas, criando um forte contraste entre figura e fundo. A expressão, contudo, por mais que tenha
melhorado durante todo esse percurso, ainda se encontrava ‘travada’, e em diversos momentos não conseguia
materializar toda a expressividade que queria.
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Imagem 11
Sem título
01/08/2019
Aquarela e lápis de cor
sobre papel
Estava finalmente livre da caneta nanquim para traçar contornos na hora de pintar com aquarela, porém
ainda me escorava na possibilidade de enfatizar linhas e sombras com o lápis de cor; exatamente como
aparece nessa pintura. Porém, aos poucos, vinha ganhando, cada vez mais, autonomia com o material
para me ‘fazer entender’. Nessa aquarela podemos perceber a verticalização das linhas no fundo, que
contrastam com a composição horizontal; além dessas duas ‘retas’ na pintura, pode-se ver as marcas do
lápis de cor, funcionando quase como pinceladas, nas quais apresentam formas curvas, criando outro
ponto de tensão em nossa visão.
A pintura, inicialmente, não carregava nenhum significado específico – nem buscava representar algo –
era apenas uma mudança de composição como forma de prática. Contudo, mesmo que fosse eu na
imagem de referência, jamais poderia prever a maneira que a pintura se ‘revelou’. Inconscientemente, se
tornou uma confissão sobre a apatia que sentia, e os olhos que eram uma dificuldade, pareciam revelar
algo – apesar de não saber exatamente o quê.
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Imagem 12
Só
28/10/2019
Pastel oleoso sobre
papel
Passei a usar pastel oleoso, após a síndrome do impostor se instalar em mim. De repente, comecei a me sentir
insegura com a aquarela, e parecia que eu estava fazendo constantemente ‘mais do mesmo’. Tinha pouca experiência
e nenhum refinamento no material, o que se tornou proveitoso, pois permitia que eu experimentasse com mais
liberdade. Nessa produção, acabei voltando para a paleta que havia trabalhado tantas vezes, criando um contraste
brusco entre o vermelho e o azul – entre o quente e o frio. Como contraposição, há a figura mais à frente, que tem
cores mais suaves, linhas pouco definidas, quase desfocada. Era uma imagem nova, um material novo, uma
abordagem nova, entretanto, naquele momento não conseguia enxergar isso; sentia-me presa dentro da minha
própria cabeça, fadada a repetir os mesmos medos, inseguranças e traumas no papel.
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Em 2020 comecei com um bom ritmo de trabalho, na hora de pintar, era algo previamente pensado e
sentia estar evoluindo, até que a quarentena começou.
Agora, por novas incertezas e nova organização social, ao ficar em casa eu variava entre ler e pintar.
Como consequência de toda reflexão - e ouso dizer reformulação - da minha forma de produzir, trouxe
novos resultados para minhas produções, trabalhando com novas composições, abordagens diferentes
para os materiais que eu já utilizava.
Além da produção – novamente – compulsiva, devido ao ócio, estava caminhando entre a linha tênue de
incerteza em relação à qualidade daquilo que estava fazendo, ao mesmo tempo que era necessário para
manter a sanidade naqueles momentos de lockdown.
Apesar de tudo, foi um ano relativamente bom. Mesmo com toda a insegurança da situação, encontrei
conforto dentro do círculo familiar, e dentro de mim. Foi, principalmente, um momento de respiro do ‘eu
artista’ com o mundo exterior, eu estava tão insegura depois de tudo que me forcei a passar em 2019,
que foi proveitoso um momento sem críticas externas ao meu trabalho.
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Imagem 13
Arisca
08/03/2020
Aquarela sobre papel
Estava voltando a ter alguma confiança com a aquarela, e estava voltando a pintar. Contudo, por ter
passado um tempo sem utilizar o material, voltei a repetir alguns ‘vícios’, especialmente relacionados à
densidade da tinta, e é perceptível nessa pintura como tudo é denso e quase linear. Enquanto estava
redescobrindo o ‘caminho de volta’ para a zona de conforto artística, tentava também explorar questões
pessoais. Especificamente nessa pintura, queria tentar compreender a reação que estava tendo ao
toque, e como ele estava me machucando. Por muito tempo, procurei criar imagens para aquilo que
sentia, para conseguir justificar aquilo, e nessa pintura não foi diferente.
O toque queimava, e isso me tornava arisca. Fosse pelo medo de me machucar novamente, fosse pela
familiaridade daquilo – e como isso me assustava. De qualquer forma, é isto que essa pintura é, uma
tentativa de entender – e externar – o que se passava internamente.
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Imagem 14
Por que eu tinha que
ser tão estragada?
12/11/2020
Pastel oleoso e caneta
nanquim sobre papel
A imagem surgiu em meio a uma crise de pânico. Não lembro o que motivou, porém lembro vividamente
de ao desenhá-la, sentir um aperto no peito; tanto que inicialmente pensei em fazer uma pintura com
guache, mas não consegui me obrigar a lidar com a imagem por tanto tempo. Seu título, foi um
pensamento intrusivo que surgiu no momento e não conseguia me livrar de forma alguma.
As manchas de pastel oleoso, em contraste com a precisão da caneta nanquim, causam certa
estranheza, além das cores que consegui trazer, me remetem a hematomas e dor. O vermelho espalhado
entre as pernas acaba nos remetendo ao sangue, mas nunca soube explicar exatamente o porquê de seu
posicionamento na imagem. Por mais que toda a composição seja bastante dolorosa, é um trabalho que
me traz certo orgulho de ter feito, pois me mostrou que enfim estava conseguindo fazer algo
‘expressivo’.
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Imagem 15
Todas as vezes que me
encontrei por aí
16/07/2020
Aquarela sobre papel
Essa pintura foi meu caminho definitivo de volta para a aquarela. Compreendi onde eu queria chegar na
diluição da tinta, além da composição que me orgulho bastante até hoje. Foi importante perceber como
eu já me ‘encontrei’ muitas vezes entre os lápis e pincéis; e como isso foi relevante para a percepção de
mim mesma.
No auge da quarentena, precisei reaprender a conviver comigo mesma, e por isso nessa composição
brinquei que me encontrei – e me misturei – comigo diversas vezes, resultando em uma nova Beatriz. Não
é por acaso que os pontos de convergência são mais saturados, nem a cor utilizada, pois nem sempre foi
fácil me encontrar – confrontar – e esses momentos de autoconhecimento machucam. Não é fácil viver
dentro de um cérebro ansioso, e por isso, os embates muitas vezes violentos dentro de mim.
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Comecei o ano mergulhada em experimentações. Explorando ao máximo os materiais que tinha em
mãos, e que já tinha certa noção de sua instrumentalidade. Contudo, foi na aquarela que ganhei maior
liberdade; passei a explorar diferentes formas de se trabalhar cor, lidando especialmente com uma
menor saturação, além de brincar ainda mais com suas possibilidades de diluição.
Mesmo com o ano turbulento, especialmente pela correria dentro da faculdade para completar três
períodos em apenas um ano, consegui me dedicar semanalmente à pintura. Caminhei com uma rotina
equilibrada durante todo o ano, até o momento que machuquei meu joelho em uma aula de karatê. Passei
aproximadamente 15 dias sem conseguir ficar em outra posição além de deitada em minha cama, e mais
30 dias sem conseguir me sentar confortavelmente por longos períodos, por isso, passei todo esse
tempo sem manter uma rotina de desenho.
Foi um período bastante complicado, estava acostumada a ter uma vida ativa – e independente – quando
de repente estava precisando de ajuda para ir ao banheiro. Por ser uma pessoa jovem, tive uma
recuperação rápida, em exatos 44 dias eu estava retomando a academia, e com a promessa de que em
um mês eu deveria retornar ao karatê. Entretanto, as dores no meu joelho, as novas dificuldades
estabelecidas e a sensação de impotência me marcaram bastante.
Esse tempo ‘parada’, apesar de estressante, foi bastante produtivo para absorver novas referências, e
entender como eu iria produzir a partir daquele novo momento. Havia quebrado minha rotina contínua de
produção, e por mais que até o presente momento não tenha conseguido retomá-la como era
anteriormente, precisei compreender meu ritmo a partir das novas demandas e desafios que surgiram.
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Imagem 16
Chateação
27/09/2021
Aquarela sobre papel
Foi nessa obra que eu percebi que eu sabia pintar, consegui alcançar as cores que eu havia imaginado,
além de uma diluição aceitável. Fazia muito tempo que eu não ficava propriamente feliz com algum
trabalho, e esse foi um novo ponto de virada.
Nessa pintura eu queria simplesmente expressar minha chateação. No geral, estava em um bom lugar –
mentalmente – mas inúmeros inconvenientes facilmente me irritavam, e eu simplesmente queria colocar
para fora. Além de estudar as possibilidades de deformação do rosto, que tinha despertado certo
interesse, mas não havia desvendado como queria fazê-lo.
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Imagem 17
Sem título
24/11/2021
Pastel oleoso sobre
papel kraft
Depois de 2019, giz pastel oleoso tornou-se um material que gosto de usar para ‘rabiscar’. Normalmente
são exatamente esses os resultados: rabiscos e esboços, porém em alguns momentos a falta de
refinamento no meu trabalho com esse material é exatamente o que precisa para a obra funcionar. O
que gosto do pastel é que ele me entrega uma expressividade que me lembra os desenhos da infância.
Esse autorretrato foi um daqueles autorretratos acidentais que havia mencionado anteriormente, e é
justamente por essa coleção de acasos que ele funciona. Não há nada planejado nessa imagem, mas ela
tem a capacidade de revelar mais sobre o interior do que inúmeras palavras. Esse desenho foi feito ao
acaso, mas suas cores se misturam ao papel a criar algo diferente daquilo que já havia feito.
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Imagem 18
Me amariam mais se eu
não fosse quebrada?
13/12/2021
Aquarela e lápis de cor
sobre papel
Essa aquarela também surgiu de uma crise de ansiedade. A pergunta que dá título martelava em minha
cabeça de forma incessante, até o momento que a escrevi no papel. Depois de dias, encontrei o papel que
escrevi aquilo, e a imagem logo se formou em minha mente, de forma que eu tinha a obrigação de realizá-
la. Foi uma pintura feita com paciência ao longo de dias – algo que geralmente não acontece – e o
resultado me surpreendeu; a profundidade do rosto, as cores, a forma como o olhar foi representado,
não parecia que eu tinha capacidade de realizar aquilo. Foi como se a obra fosse expelida de mim, mesmo
com esse processo de criação mais tranquilo.
Hoje, considero como um dos meus melhores trabalhos, tecnicamente falando, e também acredito ser
uma das obras mais expressivas que consegui realizar. Infelizmente, a pergunta ainda volta em
momentos de insegurança, porém a sensação que tenho é que por esse trabalho existir, dói menos do que
poderia doer.
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52
A partir da reflexão feita em cima de cada obra, foi possível evidenciar a sua forte relação com a
memória, trazendo de forma prática aquilo que Gusdorf falou sobre a memória ser uma forma de
retrato do que somos. Com este estudo, pude observar meu processo criativo de certa distância, e nesse
momento foi possível assimilar a maneira como tudo está tão intimamente ligado à memória, e como
utilizo o autorretrato como uma reafirmação de mim.
Por consequência de inúmeras questões, utilizei o desenho e pintura como uma forma de desabafo, com
a finalidade de tentar compreender experiências, medos e inseguranças. Jacinto (2013, p. 59) em certo
momento falou que “O pintor é despertado pelas coisas, no impulso que o leva ao ato de pintar”, e
explicou de forma objetiva o sentimento que me movia a pintar – um impulso. A maneira que vinha
trabalhando, durante o processo criativo, reverberou em inúmeros momentos da minha vida, pois como
tudo estava interligado com memória, me permitiu encarar esses momentos sob uma nova perspectiva.
53
Conclusão
No início desta pesquisa foram levantados questionamentos acerca da minha produção, mais
especificamente sobre os autorretratos, com o intuito de investigar sua presença durante o período de
2016 até 2021. Após mapear toda a minha produção, foi possível perceber como as
autorrepresentações são uma constante. E ao analisar essas obras – individualmente e coletivamente –
foi possível observar o modo que a produção de um autorretrato é em diversos momentos, empírico.
Uma das minhas principais intenções com este trabalho era, de fato, compreender o rumo que minha
produção naturalmente foi tomando, e conseguir mapear os ‘locais’ em que ocorreram uma mudança
brusca de estilo. Porém, nesta investigação, também consegui constatar como o autorretrato é, até
certo ponto, uma linguagem fácil, no sentido que é acessível – tangível – mesmo quando não temos um
aprendizado aprofundado no assunto.
Porém, para ter essa compreensão, tanto sobre o autorretrato, quanto sobre meu trabalho, foi
necessário entender, a princípio, o caminho percorrido pelo próprio autorretrato ao longo da história da
arte. Focando, em específico, no final do século XIX, no ocidente, pois devido às novas movimentações
artísticas e à popularização da fotografia, houve uma mudança brusca na maneira como se entendia e
como se produziam autorretratos.
A partir dessa nova configuração artística, foram vistos, com maior profundidade, os artistas Vincent
Van Gogh e Edvard Munch, que além de terem grande importância para o tema, nesse contexto histórico,
foram referências fundamentais em minha caminhada. Hoje em dia, Van Gogh é um dos nomes mais
conhecidos dentro da história da arte, célebre por suas obras e também por sua história trágica, além de
um autorretratista recorrente. Já Munch, ficou conhecido por sua obra ‘O grito’, que mesmo não sendo
um autorretrato, pode ser interpretada como representação de si – uma autorrepresentação.
Diante dessas referências, o capítulo seguinte apresentou, então, a discussão sobre o que é
autorretrato – e como seria possível relacionar esse limiar com minha produção artística a partir de
2016. O termo autorretrato se define como um retrato, uma imagem, que o artista faz de si mesmo,
porém é uma explicação rasa, diante de tudo que este pode ser e representar. O autorretrato, tende a
refletir interior do artista, e é em diversos momentos a afirmação deste na posição de criador de sua
própria imagem.
Ao tornar possível essa relação entre a definição de autorretrato e minhas obras, ocorreu-me a
percepção – quase que uma realização – do quão baseada na memória estava toda minha produção
artística. Utilizei como inspiração e poder criativo registros diversos da memória, como Gusdorf havia
dito, esta funciona como uma espécie de retrato do que somos, com as características do que éramos a
compondo.
Experiências, medos, traumas, inseguranças… tudo se tornava um novo motivo para me debruçar sobre
a folha em branco. Nesse sentido foi fundamental ter uma compreensão mais ampla do funcionamento
do meu processo criativo, acompanhando esse período de cerca de seis anos para a partir dele se tornar
possível a análise e reflexão acerca das produções que havia selecionado anteriormente.
54
Dessa forma, ao analisar as obras escolhidas, percebi a tendência que tinha a repetir determinados
elementos. O mais evidente dentre estas ‘repetições’ foram as cores, vermelhos e azuis marcam
presença desde os primeiros momentos, e quando aos poucos fui ganhando maior domínio – e segurança
– sobre a cor, foram introduzidos novos tons arroxeados ao papel. De acordo com Freud, “a repetição
demanda o novo” (apud LACAN, 1979, p.62), e realmente foi algo que senti na prática, pois durante todo
esse processo, em diversos momentos sentia que estava me repetindo – me tornando um plágio de mim
mesma. E a partir disso, me cobrava uma mudança – uma inovação – pelo medo que tenho de estagnar.
Em diversos momentos utilizei a arte como forma de me proteger – do mundo externo, e da minha
própria cabeça – em função disso, desenvolvi um ritmo de produção frenético, até mesmo compulsivo,
que me fazia pender para as repetições dentro da minha produção. Por isso, foi tão importante ter esse
entendimento do meu processo criativo, para poder, enfim, compreender como escapar desse ciclo
vicioso sem afetar o momento de produção artística.
A partir deste ponto na pesquisa, poderíamos seguir investigando a forma como a modernidade
influencia na percepção que temos de nós como indivíduos, e de que maneira isso afeta a produção
artística na atualidade – especialmente quando pensamos em autorretrato e autorrepresentação. Ao
longo de toda a pesquisa, pude perceber como minha produção é parte integral de mim, de uma forma
que eu ainda não havia percebido anteriormente. Por sempre ter me utilizado da arte como forma de
expressão, foi interessante poder enxergar ‘de longe’ o meu crescimento e amadurecimento por meio do
desenho e da pintura ao longo desses anos. E, principalmente, a maneira como essa autopercepção se
modificou com o passar do tempo.
55
Referências
ABREU, Simone Rocha de. Autorretrato: Inventando a si mesmo. [s.l.: s.n., s.d.]. Disponível em:
<http://anpap.org.br/anais/2011/pdf/chtca/simone_rocha_de_abreu.pdf>. Acesso em: 18 Out. 2021 .
BORTULUCCE, V. O artista e o seu meio social: considerações acerca da pintura auto-retrato com
cigarro de Edvard Munch. Encontro de História da Arte, Campinas, SP, n. 4, 2008, pp. 88. Acesso em: 10
mar. 2022.
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VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo. 1 ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015.
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Artes e Comunicação
Artes Visuais – Licenciatura
ARS FUNGI
Experimentos sobre estética pessoal
Comissão examinadora
Recife 2022
Bruna Rafaella Ferrer
Eduardo Romero Lopes Barbosa
Maria Betânia e Silva
Agradecimentos
Agradeço a todos que me apoiaram e acompanharam neste projeto e no curso, em
especial:
Meu orientador Eduardo Romero que esteve do meu lado durante toda a jornada, bem
como Gustavo Motta e Maria Betânia;
Bruna Letícia e Beatriz Silvestre que torceram por mim e trabalharam comigo nos últimos
4 anos;
Minha irmã Joana e meus pais Flávia e Billy por acreditarem em mim e na minha arte;
Meus amigos por me darem suporte e serem minhas âncoras, em especial Malu.
Eu não teria conseguido sem vocês.
01
ARS FUNGI
RESUMO
O estudo trata de um experimento artístico utilizando-se do método cartográfico, sendo
este método versátil e flutuante. Assim, a pesquisa conta com o formato de um diário de
bordo que acompanha a experiência de representar o mesmo objeto (no caso,
Cogumelos) utilizando-se de técnicas e materiais diferentes para analisar como a estética
de uma artista pode se alterar/contaminar a partir das técnicas escolhidas.
O diário é composto por 15 obras (que se tornam 15 partes da pesquisa) em técnicas que
variam entre tradicionais, contemporâneas, tridimensionais, bidimensionais, e métodos
altamente específicos como tatuagem, cianotipia, resina, entre outros. Como resultados
principais do experimento estão a problematização de conceitos como: a busca por uma
estética pessoal, a hipervalorização da perfeição técnica e a acomodação e inercia do
processo criativo.
PALAVRAS-CHAVE
Estética; Técnica; Processo Criativo; Arte Experimental; Leitura de Imagens.
ABSTRACT
This study is an artistic experiment using the cartographic method, which is versatile
and fluid. The project also has a logbook format and follows the experience of
representing the same object (on the case, mushrooms) using different techniques and
materials to analyze how an artist's aesthetic can be altered by the chosen techniques.
The diary consists of 15 pieces (which became 15 chapters) in techniques ranging from
traditional, contemporary, three-dimensional, two-dimensional and highly specific
methods such as tattoo art, cyanotype, resin, among others.The main results of the
experiment are the problematization of concepts such as: the search for a personal
aesthetic, the hypervaluation of technical perfection and the accommodation and inertia
of the creative process.
KEYWORDS
Aesthetics; Techniques; Creative process; Experimental Art; Image Reading.
02
Introdução
Sempre tive interesse pela Arte como criação de imagens, por quaisquer
métodos, e explorar suas possibilidades. Durante minha infância, gostava de
criar, de maneira lúdica, brincadeiras sem regras e sem materiais predispostos...
Nesses momentos de recreação, criava imagens que, por um viés analítico e
teórico, seriam consideradas como “técnica mista”. No contexto da Academia,
porém, as Artes começaram a ter delineações formalizadas e algumas regras a
serem seguidas. Em meio a estas especificações, encontrei certas dificuldades
de descobrir minha estética própria, em outras palavras, de entender as
características visuais do “eu” artista.
A partir disso, decidi me debruçar sobre o questionamento: “Como a estética de
uma artista é alterada pela técnica escolhida?”, lançando assim uma
investigação, que diretamente me remete ao conceito de investigação ligado às
Artes Visuais. Segundo Anna Barros: "[...] a investigação em arte, aqui focada,
está voltada para o criar e é somente deste direcionamento que encontra sua
necessidade e fim" (BARROS, 1993, p.51). Com isso em mente, minhas criações
revelam gradativamente os resultados da minha investigação.
A partir de uma extensa busca (por publicações na ANPAP, Google Acadêmico
e no acervo da Biblioteca da UFPE) pude perceber que tal assunto não é
abordado com frequência pela comunidade acadêmica, assim como poucas
pesquisas acerca do processo criativo são encontradas, fato que vislumbrei
como motivação para o aprofundamento do tema. Além da escassez de estudos
de tal conteúdo, conforme supracitado, há também o fato de que a maioria
desses trabalhos são desatualizados e focam apenas em técnicas tradicionais, o
que corrobora ainda mais para o desenvolvimento desta pesquisa. Ademais, o
tema que adiante chamarei de “estética pessoal” é amiúde confundido com
poética (PAREYSON, 1988): enquanto que poética se trata de um tema, ou
narrativa associada com determinado artista, a estética pessoal é similar, mas
diz respeito a elementos estritamente visuais consistentemente presentes na
obra de um artista, às repetições (HOFSTAETTER, 2007).
03
Cabe também relembrar que minha escolha do tema "estética" se refere ao
contexto de estética pessoal, como supracitado, e não à estética como Filosofia
da Arte. A "técnica" neste projeto diz respeito ao uso de algum determinado
material ou subcategoria de arte, como argila, desenho ou carvão. Desse modo,
a pergunta que me proponho a investigar é “como a estética pessoal é afetada
pela técnica escolhida?”. Essa questão é similar a outro grande questionamento
na sociedade ocidental, associado à Física Quântica: Por que a luz se comporta
de formas diferentes em testes diversos? A resposta para essa pergunta surge
na interpretação de Copenhague (BOHR e HEISENBERG, 1927), na qual Niels
Bohr (1885 - 1962) propõe que a luz se mostra diferente de acordo com a
técnica escolhida para captá-la. Ou seja, diferentes técnicas geram diferentes
resultados, mesmo se tratando do mesmo objeto de estudo.
Espelhando esse dilema, decidi testar essa teoria da Física Quântica no campo
artístico com o objetivo de analisar como a escolha da técnica artística
influencia no processo criativo e no resultado da imagem. A partir desta
proposta, experimento processos criativos em diversos materiais e técnicas
(lista completa no Sumário), escolhidos com o objetivo de abranger um espectro
completo do meu nível de conforto e familiaridade com o método,
representando um mesmo objeto de estudo (Cogumelos) em diversos
procedimentos e analisar os resultados e conclusões encontradas. Assim, o
primeiro passo é realizar uma extensa pesquisa de referências visuais e guardar
estas imagens de cogumelos em uma pasta, de tal maneira que foi possível me
familiarizar com suas diversas espécies e particularidades. Em seguida, dar
inicio ao processo de produção obra por obra seguida de relatórios e finalizar
com minhas conclusões.
De início é necessário ressaltar que a escolha dos cogumelos como os objetos
de estudo é completamente arbitrária e a pesquisa teria o mesmo sentido com
qualquer outro objeto. No entanto, cogumelos são diversos o suficiente para eu
ter uma alta gama de variedades de cores, tamanhos e texturas para explorar.
Nesta pesquisa vou utilizar o método Cartográfico que me confere maior
liberdade para mudar de curso e ter descobertas durante o caminho.
04
Sumário
Introdução............................................................................................................... 03
04/10/2021 - Mycena Acicula - Acrílica .......................................................... 07
08/10/2021 - Marasmius Haematocephalus -Tatuagem.............................. 09
11/10/2021 - Lentinula Edodes pt I - Fotografia e Edição digital.............. 11
14/10/2021 - Mycena Adonis - Argila.............................................................. 13
17/10/2021 - Entoloma Hochstetteri - Tinta Spray....................................... 15
20/10/2021 - Cortinarius Hemitriccus - Carvão ............................................ 17
21/10/2021 - Coprinopsis Atramantaria - Desenho (Grafite)..................... 19
27/10/2021 - Agaricus e Abortiporus - Aquarela.......................................... 21
03/11/2021 - Stropharia Caerulea - Desenho digital.................................... 23
09/11/2021 - Russula Xerampelina - Colagem............................................... 25
20/11/2021 - Lentinula Edodes pt II - Caffenol.............................................. 27
27/11/2021 - Lentinula Edodes pt III - Cianotipia......................................... 29
06/01/2022 - Spinellus Fusiger - Pastel a Óleo.............................................. 31
30/01/2022 - Cyathus Stercoreus - Biscuit..................................................... 33
06/02/2022 - Lepista Personata - Resina........................................................ 35
Descobertas............................................................................................................ 37
Referências Bibliográficas................................................................................... 39
Referências Imagéticas........................................................................................ 40
Ilustração 4 05
Ilustração 4 06
04/10/2021
Mycena Acicula
Pintura Acrílica
Figura 1
É preciso entender as agulhas, afinal, cada agulha O resultado ficou muito próximo ao
é seguida por uma série de especificações como design originalmente pretendido, com
espessura, número de microagulhas, posição do algumas ressalvas como é de costume na
conjunto de microagulhas etc. Além disso existem tatuagem, já que não é possível apagar o
agulhas próprias para traçados e agulhas próprias traço. As estrelas e os brilhos são, como
para preenchimento ou sombreamento. Com tudo dito anteriormente, familiares para mim e
isso em mente na hora de fazer o esboço, e completam a composição. As cores são
adotando todos os cuidados de biossegurança parte de uma paleta que costumo usar,
necessários, a execução foi uma experiência mas confesso que na execução ficaram
completamente diferente das outras, em especial um pouco distorcidas.
porque envolve a dor. É importante explicitar que
eu já trabalhei como tatuadora antes e o processo
de realizar a tatuagem em mim mesma é algo que
já conheço e que considero uma experiência
intimista e única. Há uma batalha de foco na dor e
na execução da arte, o que adiciona uma nova
camada na experiência.
09
Marasmius Haematocephalus
O início da criação da obra de arte começa desde a procura dos materiais, a ideia, e vai
através da execução até o resultado. Com isso em mente, essa obra começou quando
peguei um ônibus para o mercado de São José no Recife, para procurar algum lugar que
vendesse um cogumelo inteiro. Depois de muito esforço, encontrei Shitakes (tipo de
cogumelo comestível nativo do leste asiático) inteiros na Rua da Praia, bem como limões
desidratados que, devido à sua textura, considerei serem capazes de constituir um bom
complemento para a minha composição. Em casa, fotografei em torno de cem imagens
com diferentes composições e parti para a edição. Seguindo meu melhor instinto, resolvi
mexer em algumas prioridades das imagens, em particular a matiz.
O resultado que procurei alcançar com essa técnica foi o de criar uma atmosfera surreal,
ou “alienígena”. É de meu interesse transformar objetos naturais em uma cena irreal
apenas alterando as cores. O processo foi muito tranquilo e eu não me senti obstruída em
nenhuma parte do trabalho, diferente de algumas outras obras deste projeto. Me sinto
muito confortável no mundo da fotografia e consegui trazer outra característica forte das
minhas obras, a paleta de cores fria e a atmosfera sombria e mágica.
11
Lentinula Edodes
Figura 2
Diferentemente das técnicas que venho utilizando até agora, a Modelagem é uma
linguagem artística em que, apesar de já ter estudado e vivenciado
anteriormente, ainda possuo relativa dificuldade, de tal maneira que o
conhecimento de minhas próprias limitações guiou meu processo criativo. Em um
primeiro momento, tentei preparar a argila, que era de péssima qualidade para
fins artísticos e, apesar de meus esforços, continuava quebradiça. Optei por
continuar mesmo assim. Em seguida, moldei meu cogumelo e levei ao forno
doméstico por três horas. Uma vez pronto, esperei esfriar e segui para a fase da
pintura. Meu plano era pintar usando tinta guache, mas, como todas as outras
etapas na criação dessa peça, não funcionou. Eu decidi usar aquarelas e focar
meu objetivo num cogumelo de tons suaves, como algo que veio de um conto de
fadas. Depois de escolher essa paleta de cores, senti falta de algo para remeter a
um cogumelo mágico, então adicionei gotas douradas. O resultado está longe de
ser uma obra de um mestre do barro, mas realmente acredito que ficou o mais
charmoso que poderia ficar, considerando os materiais que usei e minha
habilidade na modelagem. Apesar de todos os obstáculos da minha jornada com
esse cogumelo, o resultado me agradou muito; virou um objeto de conforto.
13
Mycena Adonis
Figura 3
Eu nunca havia usado tinta spray para desenhar antes e esse fato é visível.
Fiquei frustrada e refiz a imagem algumas vezes antes de decidir trocar o
conceito inicial do meu design por um outro bem mais simplificado, com foco
nas gotas de tinta que escorrem pela superfície, sendo mais uma vez
influenciada no processo criativo por uma particularidade do material.
Novamente as repetições (HOFSTAETTER, 2007) na minha obra são os
pontos brancos representando estrelas e minha grande atenção e seleção
minuciosa do ajuste cromático da imagem. O resultado me agrada mas não é
meu preferido. Isso acabou sendo uma conclusão comum às técnicas com as
quais eu tenho menos familiaridade. A partir dessa experiência descobri que o
controle que eu tenho sobre a técnica, além de influenciar nas decisões
criativas (assumo mais riscos na obra de acordo com a minha confiança no
método) é muito importante para ditar minha paciência, dedicação à obra,
assim como o meu humor durante a execução do trabalho, o que provou ser
mais um aspecto que interfere no resultado.
15
Entoloma Hochstetteri
Essa obra tem um design que estava na minha cabeça por alguns
dias, e eu planejava fazê-lo usando lápis grafite, mas os planos
mudaram. Eu tenho aversão a trabalhar com carvão por conta do som
e da textura, que são problemas reais para minha hipersensibilidade
sensorial. Apesar disso, organicamente surgiu a oportunidade de
trabalhar com lápis fusain em tela, então resolvi me esforçar para
ignorar meus preconceitos e aproveitar que por se tratar de um lápis
e não uma barra de carvão, minha questão com a textura seria mais
amena, assim como o som - já que o risco na tela se comporta de
forma diferente comparado à um risco no papel ou na parede.
Surpreendentemente, tal escolha provou ser uma ótima descoberta,
que me fez mudar de opinião sobre o carvão, técnica que com certeza
voltarei a usar. O resultado é uma imagem muito própria do meu
trabalho pela presença dos olhos, que são elementos recorrentes em
minhas obras: mais um elemento para a minha lista de constâncias.
17
Cortinarius Hemitriccus
19
Figura 4
Coprinopsis Atramantaria
21
Agaricus e Abortiporus
Figura 5
23
Stropharia Caerulea
25
Russula Xerampelina
Colagem, 21 cm x 30 cm
Maria Cabral, 09/11/2021
20/11/2021 O Caffenol é uma técnica alternativa
de revelação fotográfica com a qual
Lentinula Edodes
eu tinha tido apenas uma experiência
pt II no passado. Apesar da minha
inexperiência com o Caffenol fui
Caffenol
auxiliada por Eduardo Romero e
Marina Soares, e consegui um
resultado inesperado. A imagem que
escolhi para revelar foi uma fotografia
de uma composição com Shitakes,
escolhida especialmente pelos
contrastes de luz e sombra que eu
previ que conceberiam um efeito
dramático aos tons de sépia (que é a
paleta de cores própria do Caffenol).
27
Lentinula Edodes pt II
29
Lentinula Edodes pt III
31
Spinellus Fusiger
33
Cyathus Stercoreus
molde de silicone
Todo o processo desde comprar a primeira leva de borracha durou 3 meses para se completar
e desde então apareceram muitos obstáculos: os materiais acabavam, a peça ficava fosca,
problemas na encomenda da resina, mas tudo valeu a pena no final quando eu consegui criar
essa peça única. Ao fim me sinto intimamente ligada à peça depois de ter superado muitos
obstáculos surgidos no processo.
35
Lepista Personata
Devo explicitar que muitas das vezes eu dei início ao processo não sabendo aonde a
obra iria me levar. Isso ocorreu principalmente com as técnicas mais distantes da
minha prática usual. Este tipo de processo pode trazer obstáculos e problemas que
um artista com mais experiência em tal área não teria, mas a magia de criar uma
arte pela primeira vez de modo empírico é uma aventura e muitas vezes o laço
criado com a obra é muito mais forte. O poder curativo da arte é evidenciado nesses
momentos em que o artista consegue assumir com orgulho uma obra, mesmo
sabendo que aos olhos técnicistas ela está falha.
Inicialmente no experimento meu propósito era identificar e delimitar os elementos
que compõem a “minha estética". Apesar de apresentar com frequência alguns
elementos visuais às minhas obras, essa noção do que se encaixa no meu perfil
artístico é um conceito restritivo e arriscado - na medida de que é fatal para um
artista se ater a uma zona de conforto. Afinal, geralmente, essa zona é inimiga da
criatividade. A proposta de experimentar novas técnicas pode ser desafiador, mas
me obrigou a não depender de características e aspectos que eu considerava
“meus” e me norteou a caminhos que eu não cogitava atravessar, o que no final se
tornou um exercício de desconstrução do engessamento dos meus hábitos como
artista e expandiu minhas habilidades e preferências estéticas.
37
Descobertas
38
Referências
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matéria [1942]. Tradução Antônio de Pádua Danesi. - São Paulo: Martins
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PAREYSON, L. Conversaciones de estética. 7a ed. Madri: Visor, 1988.
PAREYSON, L. L’interpretazione dell’opera d’arte. In: Atti del III Congresso
Internazionale di Estetica. 1956.
39
Referências
Figuras
1. Da esquerda para direita, superior a inferior: ischnoderma resinosum; mycena
acicula; pleurotes citrino pileatus, artomyces pyxidatus; calocera cornea;
hericium americanum; clavaria zollingeri; byssonectria terrestris; ascocoryne
sarcoides. Disponíveis em <https://ultimate-mushroom.com/>
2. Mycena adonis. A. Aronsen, 2006, Canadá. Disponível em
<https://www.mycena.no/adonis.htm>
3. Entoloma hochstetteri II. Atli Arnarson, 2016, Nova Zelandia. Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/atlapix/33488694721/>
4. Black rain for little gnomes. Hannele K.. 2012 Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/hannhell/8035676562>
5. Da esquerda para direita, superior a inferior: stropharia caerulea; psathyrella
candolleana; pleurotus djamor. Disponíveis em: <https://ultimate-
mushroom.com/>
6. Spinellus fusiger. Sava Krstic. Disponível em
<https://www.mykoweb.com/CAF/species/Spinellus_fusiger.html>
40
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE ARTES
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS
RECIFE
2022
ALEXANDRA JAROCKI RADUY
RECIFE
2022
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Profª Dra. Ana Elizabeth Lisboa Nogueira Cavalcanti (UFPE / Orientadora)
__________________________________________________________
Profª Dra. Maria Betânia e Silva (UFPE / Examinadora Interna)
__________________________________________________________
Prof ª Me. Paulidayane Cavalcanti de Lima (UFPE / Examinadora Externa)
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO 9
4. TRAJETÓRIA DO PROJETO 41
4.1 Ação: o projeto na prática 41
4.1.1 Início das atividades 42
4.1.2 Pensando a mediação 47
4.1.3 Ações de mediação empreendidas 52
4.2 - Resultados alcançados: análise e avaliação 58
4.2.1 Aprendizado e formação 59
4.2.2 Público alcançado 61
4.3 Propostas de melhorias com base nos resultados 66
CONSIDERAÇÕES FINAIS 71
REFERÊNCIAS 73
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO 75
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
This work reports the challenges and possibilities encountered during the elaboration,
execution and mediation processes in the virtual exhibition Fayga Ostrower: Interfaces.
This project was carried out on the virtual platform Instagram, by a team composed of
professors, and students of the Degree in Visual Arts at UFPE in the period between
August and November 2020. This event aimed to bring to the public the collection of
works received by the university in a donation action of the Fayga Ostrower Institute.
The general objective of this research was to record and reflect on the development and
realization of an artistic-pedagogical project on a virtual platform, presenting the
mediation actions developed by the team during the project. I seek to understand
possible impacts of these new conditions on an artistic/pedagogical project carried out
in the virtual format, due to the actions to face COVID-19 (Sars-coV-2). Therefore, I
chose the work of Robert K. Yin, using Methodology to analyze the mediation proposal
of this exhibition, evaluating the results achieved, identifying its successes and gaps,
and finally thinking about possibilities for improvement and enhancement of these
actions. To think about mediation issues, I bring Rejane Coutinho. Regarding virtuality
and its presence in educational spaces, the dialogue takes place with Cibele Barbosa e
Byung-Chul Han. This work seeks to show that the realization of this type of event in the
current context means not only the maintenance of important laboratories for
art/educators in training, but also a field of discovery of new ways of thinking about
educational actions, allowing an updated and aligned professional preparation to work
with tools that, in a context of social distancing, enable mediation between content and
audience.
Keywords: Virtual exhibition; Cultural Mediation; Art teacher training; Fayga Ostrower;
9
INTRODUÇÃO
Este estudo também visa dar uma contribuição aos estudantes que venham a,
futuramente, participar de projetos similares. Espera-se que, a partir deste relato,
outros possam colher informações úteis para seu próprio desenvolvimento. Assim, o
trabalho também busca servir pesquisadores e professores que porventura estejam
buscando pensar e analisar ações arte/educativas em contextos educativos informais
e/ou processos de formação de professores de arte, bem como com aqueles que
futuramente venham possivelmente a analisá-lo como fonte histórica. Para tanto, parto
da seguinte questão: quais os percursos, os desafios e possibilidades encontradas no
desenvolvimento da mediação nesta exposição online?
Metodologia de pesquisa
Figura 1 - Formação com a curadora Clarissa Diniz durante a montagem da exposição “Carimbos” de
José Cláudio, 2017.
Fonte: Perfil do MAMAM no Instagram (@mamamrecife).
15
Foi uma experiência bastante rica observar pela primeira vez a montagem de
exposições, como por exemplo, a mostra Carimbos, de José Cláudio, onde realizamos
uma formação ministrada pela curadora, Clarissa Diniz, durante a montagem das obras
(imagem n.01). Também realizamos visitas a outros espaços arte/educativos, como o
Museu Cais do Sertão e a Usina de Arte (imagens n. 02 e 03). Conversar com artistas
e curadores, além do contato diário com os colegas e funcionários do museu foi
bastante enriquecedor.
Foi também nesta época que conheci o trabalho de Fayga Ostrower e comecei a
ler o livro Criatividade e Processos de Criação (OSTROWER, 1987). Conhecer o
modo como Fayga enxerga a criatividade e seus processos me mostrou que minhas
impressões a respeito desses assuntos não eram inéditas, em especial aqueles que
dizem respeito à criatividade como potencialidade inerente ao ser humano. Para a
autora (1987), "Assim como o próprio viver, o criar é um processo existencial. Não
abrange apenas pensamentos nem apenas emoções." Para mim, a realização coletiva
do painel materializou sua existência, e junto com ele, a existência de um momento
presente e de sua lembrança; de uma vivência e uma conexão também emocional e
pessoal com os colegas, a professora e com o trabalho desenvolvido na disciplina.
21
Figura 7 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil, 2020.
Fonte: acervo da autora.
24
Figura 8 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil, 2020.
Fonte: acervo da autora.
25
Figura 12 - “6812”, xilogravura a cores sobre papel de arroz, 60x39,5 cm, 1968.
Fonte: Acervo do Instituto Fayga Ostrower.
32
Análise Crítica no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nos EUA e na Inglaterra,
além de atuar na pós-graduação de várias universidades brasileiras. Nesse período,
também ministrou cursos em espaços não-formais, como a Gráfica Primor, onde deu
um curso aos operários, experiência registrada em seu livro Universos da Arte, por
exemplo.
Assim, é possível compreender que a obra de Fayga não é composta apenas
por suas inúmeras gravuras, pinturas e desenhos. Fayga nos legou também seis livros
que tratam dos temas ligados à arte e a criatividade de maneira bastante profunda e
minuciosa, além de inúmeros artigos. Seus escritos são importantíssimos para a
formação de professores, estudantes e artistas e, a nosso ver, do interesse de qualquer
pessoa que possua abertura ao sensível.
Mediação cultural é uma atividade que vem sendo exercida em diversos contextos,
desde museus, a bibliotecas dentre diversos tipos de espaços culturais. Neste trabalho,
procuro focar na mediação como processo arte/educativo, que ocorre em museus,
galerias e exposições. Existem muitos debates acerca do papel da mediação e do
mediador, não havendo espaço suficiente para citá-los neste trabalho. Pretendo fazer
aqui um breve panorama para contextualizar o leitor.
O termo mediação é derivado do latim, onde encontramos as palavras mediator,
“mediador”, mediari, “intervir, colocar-se entre duas partes”, e medius, “meio”.1
Sabendo disso, podemos ter a impressão inicial de que o mediador atua como uma
“ponte” entre a exposição e seus conteúdos e o público. Este não é um pensamento
errôneo. Entretanto, o trabalho realizado pelo mediador vai muito além da simples
transmissão estática de informações: ele opera o acesso à cultura. (COUTINHO, 2009)
Estando no “meio”, o mediador tem o papel ativo de procurar entender as necessidades
de seu público - através do diálogo - e entender qual a melhor maneira de aproximá-lo
da mostra e suas discussões, conduzi-lo a reflexões e novas maneiras de olhar e ver. É
essencial que o que está sendo transmitido, debatido, faça sentido para ambas as
partes envolvidas nesse processo.
Se tratando de exposições virtuais, como é o caso do projeto Fayga Ostrower:
Interfaces, as dinâmicas de mediação se modificam - não em seu fundamento - mas
são atravessadas pela distância física entre mediador e público, e intermediadas pelos
dispositivos digitais. O diálogo não acontece mais de maneira direta, e há lacunas tanto
temporais quanto informacionais, a depender da ferramenta escolhida para a ação de
mediação virtual. Mas, é plenamente possível estabelecer debates e provocar reflexões
no público através dessas ferramentas. A seguir, busco colocar alguns pontos com os
quais me encontrei durante reflexões a respeito do contexto dos ambientes virtuais e
como eles podem influenciar a atividade de mediação.
1
Fonte: site Origem da palavra. Disponível em:<https://origemdapalavra.com.br/palavras/mediacao/>
37
Diante disso, foi necessário refletir até que ponto e para que indivíduos o nosso
conteúdo era de interesse. Como tudo o que é disponibilizado hoje na rede, a ideia do
projeto atingiria uma parcela interessada no assunto o suficiente para parar e empregar
seu tempo e sua atenção naquele conteúdo. Por outro lado, é importante destacar que
estas ações em âmbito virtual possibilitaram o registro ampliado de conhecimentos e a
disponibilização em rede de todo o material, não se restringindo apenas ao período de
tempo ativo da exposição ou aos muros da universidade e aos residentes da cidade. A
39
2
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. Brasília: São Paulo, 1987.
40
sobre a importância desse processo. Além disso, também incluímos na mostra alguns
recortes de detalhes em alta qualidade de cada obra, evidenciando suas formas, cores
e texturas mais particulares, procurando aproximar o usuário o máximo possível das
obras, já que ele não poderia vê-las pessoalmente e observá-las de perto.
41
4. TRAJETÓRIA DO PROJETO
possibilidades de expressão que ela oferece e quais foram os impactos de seu advento
no desenvolvimento social da humanidade. Além disso, a professora orientadora deste
trabalho também faria parte da equipe, então, tudo pareceu muito propício para que
este fosse o projeto ideal para mim e para meu TCC.
Além disso, também foi realizada a transmissão de dois vídeos ao vivo (lives),
sendo o primeiro uma edição do Projeto Cultura Viva: UFPE na sua casa - Projeto da
pró-reitoria de Extensão e Cultura da UFPE, lançado com o objetivo de divulgar ações
de ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Arte e Cultura (figura 12). Participei desta
Live em parceria com a colega Mariana Penha, e as professoras Luciana Borre e Ana
Lisboa. Nesta transmissão falamos um pouco sobre quem foi Fayga, A proposta do
projeto e a mostra que estava para ser lançada em breve. Fayga Ostrower: Interfaces
também foi divulgado na imprensa local, a exemplo da seguinte matéria, publicada no
Jornal do Commercio (figura 13). A segunda Live representou o evento de abertura da
exposição, e contou com a participação de Noni Ostrower, filha de Fayga Ostrower
(figura 14). Mais adiante escrevo sobre o que foi apresentado nesta transmissão.
16 de setembro de 2020
Pude perceber o quanto é difícil, para mim, trabalhar em grupo sem que haja alguém para
mediar e distribuir as tarefas. Acabou que discutimos o que queríamos fazer, cada uma
colocou suas sugestões e opiniões, e cada uma, menos eu, apresentou exemplos de
cartazes. Me senti desestimulada e um pouco perdida. Agora percebo: apenas não estava
compreendendo bem a dinâmica que o grupo desenvolveu organicamente. Não sei como
minhas iniciativas iniciais foram recebidas/percebidas pelas outras integrantes do grupo,
mas, foi possível notar que não fui compreendida como eu esperava. Não pude perceber se,
além disso, há outras falhas de comunicação entre nós. Fica evidente para mim agora, de
forma prática, a falta e as lacunas deixadas pela ausência de um encontro presencial, senti
isso não apenas em relação ao projeto da identidade visual, mas também em outras tarefas
em grupo.
Desde o início das reuniões, foi pedido aos estagiários que procurassem
elaborar sugestões de atividades de mediação para a exposição, algo que seria nossa
principal responsabilidade caso a mostra estivesse acontecendo de forma presencial.
Em minhas anotações comecei com o seguinte parágrafo - acredito que ele representa
uma mistura das falas da professora coordenadora do projeto e de meus pensamentos
no momento. O escrevi durante a reunião, para que norteasse minha posterior reflexão
em busca de sugestões:
23 de setembro de 2020
48
[É necessário] Pensar não somente em entregar conteúdo, mas estimular que o público
interaja. Promover uma atividade como um concurso, chamada, proposta ou um desafio
artístico. Pensar em outros estímulos sensoriais que possam dialogar com as obras (música,
poesia, filmes, textos, outros artistas), visando interações mais rápidas e de pessoas não
dispostas a parar sua rotina para realizar uma atividade mais aprofundada, como um
desenho, por exemplo. Lembrar que é interessante buscar no público aquilo que ele gostaria
de ver. Elaborar enquetes e perguntas para estimular uma interação. Exemplos: O que essa
obra te faz sentir? O que essas cores/formas te trazem (percepção)?
Diante deste campo minado que é o campo das práticas artísticas temos
que ser cautelosos, e como agentes mediadores neste contexto cabe então nos
perguntar: para quem fazemos a mediação? Qual o foco prioritário deste
trabalho? Se pensamos no público é preciso buscar identificar e situar quem é
este público. (COUTINHO, 2009. pp. 3739-3740)
Assim como Coutinho (2009), este trecho de minhas anotações sugere que
pensemos cuidadosamente no público que irá receber as publicações e que - neste
caso, sendo o público de uma rede social - se não houver um estímulo que desperte
seu interesse visual de imediato, provavelmente irá sair da mostra. O trecho também
procura pensar em um público mais engajado, aquele que já se interessa por arte de
forma mais aprofundada e que estaria disposto, por exemplo, a realizar um desenho
como atividade sugerida. A seguir as duas propostas de mediação que elaborei:
Atividade 1
Público: artistas e estudantes de arte
Atividade: orientar produções que serão compartilhados pelos participantes com uma
hashtag pensada para representar esta ação particular de mediação.
Metodologia: Seria sugerido, a cada bloco de obras, um “desafio” diferente. Desafio esse
que não representa uma competição, mas sim uma vivência criativa, lúdica, artistica,
produtora de bem-estar que a pessoa pode escolher fazer consigo. Em cada desafio, seria
49
orientado um tipo diferente de produção que dialogasse com as obras. Por exemplo:
releitura, desenho, fotografia, poema ou frase, um story que a pessoa faça no perfil dela com
a obra e a interação, dentre outros. A inclusão do story como opção aqui, se dá pelo fato do
que ele se apresenta como uma ferramenta com amplas possibilidades de criação, e não
necessita materiais externos, além de ser uma das principais ferramentas de contato e
interações rápidas e em tempo (quase) real no Instagram. Paralelamente, montar uma
galeria virtual para expor os trabalhos postados, contribuindo também para a visibilidade
desses artistas que se interessaram em produzir e interagir com a exposição, formando uma
via de mão dupla. Imagino que, para estes aspirantes ou interessados em arte, o estímulo e
reconhecimento na rede social podem contribuir para um maior desenvolvimento e
aprofundamento dessa atividade, enquanto a participação dele colabora para que toda a sua
rede de contatos possa ficar sabendo da existência do projeto, tornando-se potenciais
visitantes.
16 de setembro de 2020
50
Nunca pensei que precisaria pensar uma exposição e um curso de arte como se pensa um
produto visual a ser consumido em uma rede social digital. Me intriga estarmos construindo
uma exposição virtual de arte, onde as peças expostas são gravuras - analógicas, com todos
os seus pormenores visuais, como coloração e texturas, apenas visíveis de forma presencial.
Onde, provavelmente, sua autora não imaginou que elas seriam colocadas desta forma um
dia. Sinto aí ainda algo a desvendar, penso que esse paradoxo está me mostrando algo que
eu ainda preciso compreender, me causa curiosidade. É também cômico como eu, que gosto
do analógico, nunca desejei trabalhar em uma plataforma digital, criando e desenvolvendo
projetos virtuais, agora sou empurrada exatamente para onde não queria ir. Isto porque
sempre temi a defasagem, as perdas na transposição do material para o virtual. Agora,
temporariamente - assim esperamos - o virtual é a nossa única opção para seguir adiante
estudando, trabalhando e produzindo. Diante disso resolvi abrir-me para esta experiência e
para o que é possível; para ver e pensar estratégias para dar continuidade às atividades.
16 de setembro de 2020
Me pergunto como poderemos com uma exposição de gravuras abstratas chamar a atenção
de pessoas interessadas em arte, não uma arte como é a encontrada abundância no
Instagram, geralmente figurativa/ilustrativa. Como capturar a atenção deste espectador
habituado a consumir imagens em massa e convidá-lo a observar, refletir, abrir-se para
apreciar um tipo de trabalho abstrato? Aqueles que têm um interesse genuíno irão escolher
acessar e participar. Porém acredito que seja essencial trabalhar em prol de despertar o
51
interesse daqueles que não conhecem a artista e seu trabalho. No instagram, estaremos
"competindo" com um mar de postagens criadas de maneira a seduzir instantaneamente o
olhar, e da mesma forma que esta sedução é rápida, também é rápido o desinteresse, o
passar para próxima imagem. Estamos em uma plataforma que, ao mesmo tempo possibilita
trocas e encontros, mas também está estruturada para criar desatenção, para viciar, nos
deixar online e distraídos o máximo de tempo possível.
Como não houve tempo para pensar estratégias tão específicas, a solução
encontrada foi a de nos concentrarmos no público já interessado, e que o minicurso
seria a principal atividade de mediação da exposição - nele depositamos nossos
maiores esforços. Ademais, não deixamos o espaço da exposição sem informações
relevantes e diversificadas por não ter conseguido organizar um plano de interação em
tempo real na plataforma. Procuramos mediar da forma que estava a nosso alcance -
trabalhamos para transmitir e registrar um resumo das diversas informações sobre a
mostra no instagram: nas postagens e em contexto com as obras, publicamos textos
sobre cada uma das técnicas trabalhadas por Fayga, fatos e curiosidades sobre a
artista e sua trajetória, além de trechos de seus escritos. Assim, além de trazer o
básico - a ficha técnica da obra postada - também temos diferentes e diversificadas
informações sendo apresentadas com cada uma delas, enriquecendo a experiência do
espectador.
52
3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cm1RIFQ9UVY>
54
Márcia GoulArt Vinhas Fernandes: Temos um Grupo de Arte que está estudando a Fayga, para o
Desafio de criar um trabalho a partir deste estudo.
Conceicao Guimaraes: Fico feliz que tenham matrizes nesse acervo e é fantástica a possibilidade de
se ter acesso a esse material para análise e detalhamento das obras.
Andréa Marinho: Sem dúvida, a memória deve ser disseminada e ela é também dinâmica. Por isso ela
é constantemente reconstruída!!!
Ediel M.: Em que aspectos o pensamento/arte de Fayga pode contribuir para a sociedade
contemporânea? Se ela estivesse viva como ela se posicionaria/criaria?
É notório que o conteúdo transmitido foi proveitoso para o público da Live, que
expressou sua gratidão e interesse através destes comentários. Os encontros/aulas
subsequentes estiveram disponíveis apenas para aqueles que optaram por se
inscrever para a atividade do mini-curso, pois, desta maneira, foi possível aprofundar o
debate e permitir uma participação mais ampla dos inscritos, que, na plataforma
Google Meet tiveram a oportunidade de interagir conversando com as professoras e
mediadoras (estagiárias), além de também serem vistos através das câmeras, e não
apenas escrever breves comentários como na transmissão pública. Foram emitidos
certificados para aqueles que compareceram a 75% das aulas e participaram da
atividade de avaliação, que consistiu em elaborar um arquivo em PDF contendo as
imagens das anotações realizadas durante o curso ou um resumo crítico-reflexivo do
livro Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower.
Em duplas, em parceria com cada uma das professoras participantes do projeto,
as estagiárias ministraram cada uma das aulas. Ao todo foram ministradas quatro
aulas, que aconteceram nos dias 19/10 e 16/11. Os objetivos principais do minicurso
foram: ler o livro Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower, conhecer
o contexto histórico e artístico de Fayga Ostrower e conhecer os processos de criação
em gravura e serigrafia da artista, interpretando imagens e ampliando repertório visual.
As aulas ministradas obedeceram ao seguinte cronograma:
55
forma, influenciado pela forma como se deram as aulas anteriores. No caso, o lapso de
participação ativa dos estudantes foi menor do que o esperado pelos professores do
minicurso, e este fato impactou nosso planejamento da aula final.
Quanto a essa questão, muito se discute atualmente, tanto em reportagens
quanto em artigos acadêmicos e pesquisas recentes: é notável que tanto os estudantes
quanto os professores - desde o ensino básico até o superior - neste período de
implantação do Ensino Remoto Emergencial, encontraram diversos obstáculos ao
aprendizado. Não pela falta de qualidade das ferramentas do ensino remoto, mas em
grande parte devido à maneira brusca como ocorreu essa mudança, o que
impossibilitou qualquer preparo ou formação para lidar com esta nova forma de mediar
o conhecimento, que tem todas as suas particularidades, como apontam Dolabella et
al. (2021):
Além da falta de preparo para lidar com uma nova maneira de mediar o
conhecimento, os estudantes também não estavam preparados para lidar com esta
nova maneira de participação, e os problemas de falta de foco, de participação ativa e
de dispersão também foram observados constantemente pelos professores tanto do
ensino básico quanto do superior. Pois,
já que esse novo método requer maturidade, envolvimento e uma nova dinâmica
de estudos mais independente, que os alunos não estão acostumados.
(DOLABELLA ET AL., 2021, p.5)
Sumário:
Perguntas:
Participante 1: Professor.
Participante 2: Comunicação Social - Jornalismo/Licenciatura em Dança.
Participante 3: Designer/Artes Visuais.
Participante 4: Artes.
Participante 5: Licenciada em Letras e mestra em Educação. Atuo como educadora
priorizando o diálogo entre arte, educação e cultura.
Participante 6: Arte-educação e artista.
63
Autora: Você se sentiu confortável para participar ativamente das aulas, debatendo,
realizando perguntas ou respondendo às questões colocadas pelos ministrantes? Por quê?
Participante 1: Sim.
Participante 2: Muito. Esse formato online me deixa muito confortável para interagir, pois me
expresso melhor através da comunicação escrita.
Participante 3: Sim, mas minha internet é bem lenta então só fiquei no chat
64
Participante 4: Sim.
Participante 5: Sim, acho que vocês foram bem receptivos em todas as abordagens.
Participante 6: Infelizmente não. Por falta de vivências anteriores e por conta de estar
coincidentemente envolvida em outra realidade (consulta médica) que demandou estar num
ambiente inapropriado num dos encontros.
Participante 7: -Sim. Pois o espaço era livre, nos inspirando aos questionamentos.
Participante 8: -Não muito, por limites pessoais. A minha leitura foi demorada e nem sempre
estava concluída para participar do debate, assim tive um pouco de insegurança.
De acordo com as respostas, podemos notar que boa parte dos participantes
não se sentiu inibido ou desconfortável em participar ativamente da proposta.
Entretanto, para as duas pessoas que sentiram dificuldade neste ponto, os fatores
sinalizados como causadores de insegurança não tem a ver com timidez ou
dificuldades pessoais em interagir, mas estão ligados a fatores externos, como
demandas pessoais de saúde ou tempo disponível para realização das leituras.
Minha suposição de que nosso projeto atingiria em maior número o público já
informado e apreciador do trabalho de Fayga, também se confirmou através do
formulário, onde praticamente todos já conheciam e se interessavam pelo trabalho de
Fayga de alguma maneira. Entretanto, os participantes do questionário afirmaram
também a aquisição de novos conhecimentos e informações através das atividades da
exposição e do minicurso, como pode-se notar a partir das respostas às perguntas a
seguir, que detalham o como certos participantes conheciam, inicialmente, uma face de
Fayga Ostrower, vindo a descobrir e as interfaces através da participação no projeto.
Falas como “conhecia apenas o livro citado, mas não a obra de Fayga enquanto artista
plástica.” e “...eu via as ilustrações ou pintura em tecido, mas não sabia quem estava
ali” mostram que o projeto foi efetivo em organizar e apresentar um pouco de cada uma
das instâncias da vida da artista. Nas respostas apresentadas a seguir é notória a
contribuição para a formação dos participantes:
Participante 2: Conheci através do minicurso. Vou começar a trabalhar num artigo e terei a
experiência sensorial como abordagem. A obra que tivemos como leitura norteadora no
curso muito irá contribuir para a fundamentação das minhas ideias. Além disso, amei a
versatilidade dos escritos de Fayga, que se expandem para outras áreas além da arte
visual.
Participante 3: Já conhecia. No curso tive mais informações sobre as referências e
trabalhos iniciais da sua carreira que não conhecia. Acredito que o amor que Fayga tinha
pela criação e as Artes é algo inspirador.
Participante 4: Sim. Ajudou no trabalho. Compromisso e determinação.
Participante 5: Conhecia apenas o livro citado, mas não a obra de Fayga enquanto artista
plástica. Foi ótimo acompanhar a exposição no Instagram e os demais materiais
disponibilizados pelo minicurso (a live de abertura e os vídeos, por exemplo). Além de
ampliar o conhecimento sobre a obra de Fayga, foi importante ouvir pontos de vista
diferentes e também consolidar outros que são confluentes com o meu trabalho. Sem
dúvida, devo fazer a terceira leitura do livro depois do encerramento de hoje.
Participante 6: Muito importante a exposição virtual com a análise das técnicas por ela
utilizadas. Acredito que os questionamentos trazidos pelas professoras ampliam nosso olhar
crítico em busca da coerência na teorização de exemplos específicos, como no caso da
obra e vida de Bispo do Rosário.
Participante 7: Sim. Sua trajetória na gravura é algo sublime. Mas a interpretação da sua
arte pelos ministrantes do curso e as curiosidades trazidas por sua filha foram incríveis.
Criticar é inerente. Todos podem desenvolver processos criativos. Talvez o que mais me
impactou nas reflexões sobre a obra de Fayga: saber que ela nos convidava à crítica.
Participante 8: O curso trouxe de fato quem é Fayga, eu via as ilustrações ou pintura em
tecido, mas não sabia quem estava ali. Fiquei surpresa com a sua trajetória de vida e
crescimento profissional, principalmente no contexto histórico de repressão. A sua
contribuição é riquíssima na representação da mulher no fazer artístico. [um novo
conhecimento foi] certamente a questão da intuição no fazer artístico. Vou trabalhar com
mais suavidade no ensino das Artes, sempre frisei nas minhas aulas que o artista deve
saber o momento de parar, mas nunca parei para refletir com os estudantes.
Autora: O que você achou da forma como as obras foram apresentadas na exposição?
Participante 1: Gostei.
Participante 2: Muito Acessível. Estou ansiosa para vê-las expostas na Biblioteca Central.
Participante 3: Para mim o processo no YouTube fica mais acessível do que no Google
Meeting.
Participante 4: Gostei. No entanto, a conexão é um fator complicador e pode atrapalhar.
Participante 5: Gostei da qualidade das fotografias e perspectiva de trazer detalhes ao lado
da obra integral para dar a ideia de dimensão.
Participante 6: Gostei, pois além da técnica, foi abordada uma integração com as obras e
informações históricas e acadêmicas das quais não tinha conhecimento.
Autora: Do seu ponto de vista, que sugestões daria para o aprimoramento das aulas do
minicurso? Sinta-se à vontade para outros comentários ou sugestões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após toda a vivência que tive durante a graduação, desde meu primeiro estágio
até o presente momento, prevalece a sensação de que sou e sempre serei uma
aprendiz. Confesso que iniciei a Licenciatura desejando estar em um Bacharelado, mas
o concluo com a certeza de que trilhei o caminho certo. A oportunidade de conhecer e
vivenciar os assuntos relacionados à arte-educação mudou e ampliou minha visão, e
me trouxe ao momento presente, onde vejo este caminho se abrir à minha frente.
Descobrir o livro Criatividade e Processos de Criação de Fayga Ostrower também foi
algo precioso que aconteceu durante o curso; participar deste projeto me permitiu
descobrir seu trabalho artístico.
Após toda a trajetória de realização do projeto Fayga Ostrower: Interfaces,
desde o início do estágio até agora, onde exercitei o estudo de caso, descrevendo,
avaliando e buscando aprimoramentos, posso entender com um pouco mais de clareza
as possibilidades que conseguimos aproveitar e as limitações que enfrentamos em
nosso percurso: já entendemos que as ferramentas virtuais apresentam suas
limitações, mas também uma gama de possibilidades. Entretanto, concluo que minhas
principais dificuldades de atuação neste projeto não estavam ligadas a esses fatores de
forma direta. Ou seja, houveram desafios a enfrentar especificamente pelas diferenças
entre trabalhar de forma presencial e virtual, principalmente, por uma falta de preparo
para esta transição, ocorrida de forma repentina e abrupta.
Concluo também que a realização desse tipo de evento no atual contexto de
isolamento - e também de agora em diante - significa não apenas a manutenção de
importantes laboratórios para arte/educadores em formação em frente à paralisação
das atividades presenciais das instituições de ensino provocada pelo contexto
pandêmico, como também um campo de descoberta de novas formas de pensar ações
educativas, possibilitando um preparo profissional atualizado e alinhado com as
ferramentas que, em um contexto de distanciamento, possibilitam mediação entre
conteúdo e público. Em Fayga Ostrower: Interfaces pude entender a urgência da
inclusão do estudo das ferramentas de comunicação e difusão de conteúdo e
72
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense,
1987.
DOLABELLA, Ana Clara, et. al. Desafios do Ensino Remoto Emergencial. Universidade
Federal de Minas Gerais, Departamento de Engenharia Química, 2021. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/download/18143/1125614
020>. Acesso em março de 2021.
IBRAM. Caderno da Política Nacional de Educação Museal. Brasília, DF: IBRAM, 2018.
Brasília: IBRAM, 2018.
74
YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2.ed. Porto Alegre: Bookman,
2001.
75
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO
Prezado participante,
1- PROFESSOR
2 - Comunicação Social - Jornalismo/Licenciatura em Dança
3 - Designer / Artes Visuais
4 - Artes
5 - Licenciada em Letras e mestra em Educação, atuo como educadora priorizando o diálogo
entre - Arte, educação e cultura.
6 - Arte educação e artista
7 - Professora de arte
8 - Pedagogia/mestre em educação/ atualmente atuo nos anos iniciais como docente.
1 - SIM
2 - Não. Participaria novamente e recomendaria.
3 - sim
3 - sim.sim.
4 - Sim, recomendaria também.
5 - Ainda não nessa plataforma totalmente on line. Sim gostaria de participar e indico.
6 - Não havia participado de um evento desse online. Faria sem dúvida novamente e
recomendaria pra amigos e alunos.
7 - Com certeza. Espero realmente que outros aconteçam e alcancem os meus colegas de
trabalho, a leitura do texto trouxe muitas ideias para trabalhar com criatividade na educação.
6 - Muito importante a exposição virtual com a análise das técnicas por ela utilizadas. Acredito
que os questionamentos trazidos pelas professoras ampliam nosso olhar crítico em busca da
coerência na teorização de exemplos específicos, como no caso da obra e vida de Bispo do
Rosário.
7 - Sim. Sua trajetória na gravura é algo sublime. Mas a interpretação da sua arte pelos
ministrantes do curso e as curiosidades trazidas por sua filha foram incríveis. Criticar é
inerente. Todos podem desenvolver processos criativos. Talvez o que mais me impactou nas
reflexões sobre a obra de Fayga: saber que ela nos convidava à crítica.
8 - O curso trouxe de fato quem é Fayga, eu via as ilustrações ou pintura em tecido, mas não
sabia quem estava ali. Fiquei surpresa com a sua trajetória de vida e crescimento profissional,
principalmente no contexto histórico de repressão. A sua contribuição é riquíssima na
representação da mulher no fazer artístico. [um novo conhecimento foi] certamente a questão
da intuição no fazer artístico. Vou trabalhar com mais suavidade no ensino das Artes, sempre
frisei nas minhas aulas que o artista deve saber o momento de parar, mas nunca parei para
refletir com os estudantes.
1 - SIM
2 - Sim. Muito acessível. Estou ansiosa para vê-la expostas na Biblioteca Central.
3 - Para mim o processo no Youtube fica mais acessível do que no meet. Sim. NSim.o entanto
a conexão é um fator complicador e pode atrapalhar.
4 - A qualidade das fotografias e perspectiva de trazer detalhes lado a lado da obra integral
para dá ideia de dimensão
5 - Sim. Pois além da técnica foi aborada uma integração com as obras e informações
históricas e acadêmicas das quais não tinha conhecimento.
79
1 - SIM
2 - Muito. Esse formato online me deixa muito confortável para interagir, pois me expresso
melhor através da comunicação escrita.
3 - sim, mas minha internet é bem lenta então só fiquei no chat
4 - Sim.
5 - Sim, acho que vocês foram bem receptivos em todas as abordagens.
6 - Infelizmente não. Por falta de vivências anteriores e por conta de estar coincidentemente
envolvida em outra realidade (consulta médica) que demandou estar num ambiente
inapropriado num dos encontros.
7 - Sim. Pois o espaço era livre, nos inspirando aos questionamentos
8 - Não muito, por limites pessoais. A minha leitura foi demorada e nem sempre estava
concluída para participar do debate, assim tive um pouco de insegurança.
Do seu ponto de vista, que sugestões daria para o aprimoramento das aulas do
minicurso?
8 respostas
1 - TUDO OTIMO
2 - Talvez a familiaridade de alguns docentes do minicurso com a plataforma. Às vezes os
participantes interagiam pelo chat e não pelo microfone, e os professores nem viam.
3 - O material das aulas as apresentações fossem compartilhadas e que as aulas fossem
gravadas e disponibilizadas para assistir com mais calma
4 - Ouvir as mensagens intuitivas e tentar alcançar.
5 - Poderiam ser 4 ou 5 encontros de 2h, pois é um tema imprescindível a todos nós e em
todas as áreas do conhecimento.
6 - Podermos ter algum encontro presencial.
7 - Alguns testes nas apresentações dos slides antes das aulas.
80
1 - NÃO
2 - Gostaria de comentar sobre a sugestão de atividade final. Foi muito convidativa para a
leitura da obra. Me instigou ainda mais a ler. Estou muito satisfeita. Parabéns pela organização!
3 - Parabéns pelo curso e que seja o primeiro de vários.
4 - Não
5 - Sim! Que tal outro minicurso abordando "Universos da arte"? A fala da Luciana nesse
campo da arte-educação seria muito importante. Por fim, obrigada e parabéns a todas e todos!
6 - Ainda gostaria de ter sugestões bibliográficas de outros teóricos sobre criatividade que
seguiram ou até fizeram contestação a suas teorias...Pois em alguns momentos dá uma
sensação de se reportarem a um universo bem próprio.
DO TORTO AO RETO, E DE
VOLTA AO TORTO DE NOVO:
DESVELANDO O DESENHO
CONTEMPORÂNEO
JOÃO BELFORTE
DO TORTO AO RETO, E DE
VOLTA AO TORTO DENOVO:
DESVELANDO O DESENHO
CONTEMPORÂNEO
JOÃO BELFORTE
Comissão Examinadora
Recife, 2021.2
Aprovado em: 06/05/2022
Resumo
Este trabalho busca mapear e organizar reflexões sobre o desenho
a partir de um recorte especifico da pratica dessa técnica na
história da arte, assim como registrar alguns de seus
desdobramentos e novas formas e funções após o século XX e na
contemporaneidade. Utilizando a cartografia como método de
pesquisa, o corpo do trabalho é complementado por reflexões
baseadas na minha poética artística e no exercício da docência em
Artes Visuais. Como resultado o trabalho de pesquisa estruturou e
elaborou reflexivamente as informações encontradas a respeito
das propriedades e atribuições da prática do desenho,
apresentando novos significados e importância de sua existência.
Palavras-chave: Desenho; História da Arte; Artes Visuais.
Abstract
This work seeks to map and organize reflections on drawing from a
specific point of view of the practice of this technique in the history
of art, as well as to record some of its developments and new
forms and functions after the 20th century and in in
contemporaneity. Using the cartography research method, I also
complement the body of work with reflections based on my artistic
poetics and the exercise of Art teaching. As a result, the research
work structured and reflexively elaborated the information found
about the properties and attributions of the practice of drawing,
presenting new meanings and importance of its existence.
Keywords: Drawing; Art History; Visual arts
5
SUMÁRIO
9 UM PONTO DE PARTIDA
13 LINHAS NO CÉREBRO, DESENHO NA CABEÇA
23 OS PRIMEIROS TRAÇOS
27 FALAR O DESENHO
31 PECADOS VISUAIS
35 OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
39 TÉCNICA, PARA APRENDER E PRENDER
34 AS MÁQUINAS E O MODERNO
50 DESENHAR PRA QUE?
55 DA LINHA AO TRAÇO
62 POR TRÁS DA TELA
65 FEIO (PRA QUEM?)
69 TRAÇAR O PERCURSO
73 FIM DA LINHA
75 REFERÊNCIAS
76 REFERÊNCIAS TÉCNICAS DAS IMAGENS
77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
7
UM PONTO DE PARTIDA
Durante os vários momentos ao longo do curso de Artes Visuais em
que me peguei divagando sobre qual poderia ser a possível temática
do meu trabalho de conclusão de curso o mesmo sempre acontecia:
pensava mais com as mãos sobre o papel do que com a cabeça. Esse
hábito me acompanha já há alguns anos, ao me deparar com uma
situação onde preciso decidir como algo irá tomar forma. Ou seja,
quando me encontro em um processo de planejamento de algo que
ainda não existe, naturalmente acabo preenchendo folhas e mais
folhas com linhas, traços, riscos e uma quantidade generosa de
rabiscos. Em suma, desenho.
Partindo desse pensamento, percebi mais uma vez que já havia diante
de mim um tema a ser desvelado. O Desenho depois do modernismo
nas artes, desenhos que nascem de lugares de experimentação, que
surgem da curiosidade e da vontade do fazer e não da obrigatoriedade
do acertar, ou finalmente: O Desenho além da técnica.
10
Sendo as principais referências Simone Peixoto (1979 -) e sua
contextualização do Desenho ao longo da História da Arte,
documentada no livro Pensar o Desenho: Linguagem, História e
Prática (2013) e a pesquisadora Edith Derdyk (1955 -) com seu livro
Formas de Pensar o Desenho que uso como base na minha pesquisa
sobre Desenho na Infância, assim como outros escritores e
pesquisadores referentes à História da Arte, como Vilanova Artigas
(1915 – 1985), Juliette Aristides(1971 -), Teel Sale (s/d) e Claudia Betti
(1924 -).
11
LINHAS NO CÉREBRO,
DESENHO NA CABEÇA
Minha relação com o desenho aconteceu ainda cedo, além dos dias de
experimentação com lápis em superfícies brancas durante os primeiros
anos do ensino infantil, sentia também um encantamento enorme
observando ilustrações em publicações impressas. Meus livros
favoritos eram os que tinham mapas, ou capas que agarravam os
olhos antes do cérebro. A sessão de tirinhas do jornal era minha folha
favorita do bloco cinza e monótono que meu pai lia todos os dias pela
manhã. Entrar em uma banca de revistas era para mim o equivalente a
uma loja de doces com as prateleiras recheadas de cores e formatos
brilhantes. Tive o privilégio de poder passar muitas tardes da minha
infância em um lugar chamado gibiteca, a extensão da biblioteca
pública que ficava no centro da minha cidade natal. Ali, naquele
espaço de abrigo de gibis e revistas, passei horas lendo coisas
construídas a partir de desenhos criativos, indo de MAD ate turma da
mônica, pude conhecer e ter acesso ao trabalho de diversos
cartunistas que tiveram grande impacto no meu senso de humor e
percepção social do mundo como Laerte, Angeli, Fernando Gonsales,
Galvão Bertazzi, entre muitos outros. Todo esse contato com uma
variação enorme de histórias e desenhos me influenciou de maneira
significativa ao longo dos anos seguintes, percebia no desenho além
de um grande prazer, também uma forma de interpretação do mundo
divertida e despreocupada.
13
durante os intervalos comerciais da MTV, sempre muito variadas e
com desenhos inesperados, divagava em frente a tela maravilhado
pensando como um único logo podia assumir tantas formas diferentes
sem perder sua caracterização original. O mesmo acontecia, e
acontece até hoje, ao assistir uma cidade inteira com diversos
moradores diferentes ser retratada através do desenho em Os
Simpsons. O encanto de ver como o desenho estava presente nessas
mídias e como possuía formas criativas e diferentes me acompanhou
durante toda a minha vida.
14
nhava para ter o que fazer nos recreios que passava sozinho, para me
manter acordado nas aulas que não conseguia entender quase nada
de matematica e quimica, para tentar assimilar os conteúdos e
principalmente para afirmar coisas para mim mesmo. O desenho
passou a ser uma forma de auto comunicação onde eu desenhava o
que via no mundo real como eu via na minha cabeça, foi um meio que
encontrei para me expressar e encontrar algum sentido no turbilhão de
sensações que são os anos escolares do ensino fundamental e do
ensino médio.
A influência visual dos diferentes artistas que consumi anos antes se
fez presente nos personagens que comecei a inventar e na forma
como meu traço surgiu e evoluiu quase que sem esforço algum. Nunca
tive dificuldade de “traduzir” algo para o papel, sempre foi um meio fácil
e rápido de registro, tão fácil e natural que permaneceu na minha vida
pós escola. Criei o hábito de colecionar e preencher cadernos sem
pauta, nas folhas colocava tudo que não cabia dentro de mim, os
lugares que ia, as coisas que via, os objetos, as pessoas, as
sensações, as piadas, as epifanias, os projetos, e tudo mais entre
todas essas coisas.
15
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2016
acervo pessoal
S/T, caneta nanquim, lápis e giz pastel em papel, 21cm x 29,7cm, 2015
acervo pessoal
16
S/T, caneta esferográfica em papel, 21cm x 29,7cm, 2017
acervo pessoal
17
S/T, marcador permanente em papel, 21cm x 29,7cm, 2017
acervo pessoal
19
veem, passamos a questionar a aparência do alvo a ser desenhado,
reparamos sua forma e seus detalhes a fim de capturar o que faz
aquele objeto ser ele... é quando sentimos a satisfação da
representação, que por sua vez significa muito mais que só uma
visualidade, é também uma marca que presentifica um momento, um
estado, a nossa presença no mundo. Dessa maneira, o Desenho
possibilita uma expressão sincera, que parte dos sentidos do nosso
corpo e sacia a necessidade da existência humana desde os traços
rupestres feitos nas cavernas até o presente.
20
Um desenho nunca é simplesmente a cópia da realidade,
mas antes de tudo, é um olhar do desenhista sobre um
objeto ou sobre os elementos da realidade, [...] está por
toda parte, e é tão importante quanto qualquer projeto,
porque assim como o texto ou como o verbo permite
expressarmos nossas ideias por meio de palavras, o
desenho possibilita que nos expressemos por meio de
imagens. Desse modo, o texto e a imagem não substituem
um ao outro, pois ambos são necessários (Peixoto, 2013,
p.15-16).
21
OS PRIMEIROS TRAÇOS
É a partir do período Paleolítico (cerca de 2.5 milhões a.C.) que a
presença dos primeiros seres humanos começa a ser sentida na Terra.
A humanidade surge e com ela, a necessidade e o desejo de descobrir
e dominar as coisas que aqui já estavam presentes. Assim, envolto
nesses desejos, começam a aparecer no cotidiano da humanidade pré-
histórica as primeiras práticas de expressão e Arte, como nos diz
Faure:
Ao regressar da caça apanha um pedaço de pau para
dar-lhe a aparência de um animal, um pedaço de argila
para o amassar em estatueta, um osso chato para nele
gravar uma silhueta (1990, p.33).
23
Nesse sentido, o Desenho surge como forma de suprir a necessidade
de produção, seja ela de ferramentas ou de outros objetos diversos
que atendessem as vontades humanas. O Desenho é o meio essencial
para o desenvolvimento das primeiras criações humanas. Porém, a
humanidade também passa a desenvolver um pensamento estético em
relação às suas criações, começa a ornamentá-las para que se tornem
mais agradáveis aos olhos e tragam sensações de completude. O
mesmo acontece com suas produções artísticas que começam a
ganhar uma elaboração mais cuidadosa e com maior valor sentimental.
24
Não se sabe o que significavam. Embora tivessem
sentido para os seres humanos daquele período, não
são necessariamente os mesmos que podemos atribuir
hipoteticamente a eles hoje em dia. Supõe-se que o
caráter simbólico imperava e que tais imagens
possuíam sentido mágico, místico e ritualístico
(Camargo, 2021, p. 7).
25
FALAR O DESENHO
27
O desenho e a escrita têm uma origem comum, ambos
surgiram da necessidade de registrar a linguagem por
meio de signos, e assim transmitir uma mensagem. Nos
primórdios da civilização, os logogramas eram
desenhos esquemáticos utilizados para representar as
palavras. Formam a base de sistemas de escrita como
o hieróglifo, o cuneiforme e os glifos maias. A
semelhança do desenho com o objeto a que se refere,
tão evidente nos pictogramas, mostra uma proximidade
entre as palavras e as coisas representadas. O
pictograma é uma linguagem de símbolos independente
dos sons, o que garante sua eficiência na comunicação
visual (2007, p. 07).
29
PECADOS VISUAIS
Estabelecida a linguagem escrita e falada, a humanidade chega então
à Idade Média (Séculos V e XV), período que é marcado pela escalada
Cristã, um fator religioso que muda drasticamente o curso da História e
os caminhos da Arte.
A Arte foi condicionada à religião cristã. Grande parte das pessoas não
sabiam ler e escrever e, como uma ferramenta de controle, a Igreja
encontra na potência da linguagem visual um meio de educar as
pessoas sobre os ensinamentos de Cristo. Nas imagens elaboradas
para decorar as igrejas era possível entender a grandiosidade divina
bem como temer a sua força.
31
Visualmente falando, é perceptível que a Igreja não adaptou somente
os ideais políticos e a arquitetura dos povos egípcios e gregos, foi
também readaptado o fazer artístico, e com ele, o desenho da figura
humana, como é fundamentado por Hodge:
Derivada de elementos da arte grega, romana e egípcia,
ela exprime uma forte sensação de ordem. Não existem
nus nem imagens narrativas, uma vez que essa arte foi
criada para falar aos espectadores sobre Deus, os
santos e as Escrituras. Juntamente com o cristianismo,
a arte bizantina se difundiu para outros lugares, como
Ravena, Veneza, Sicília, Grécia e Rússia. Os principais
exemplos remanescentes são afrescos e mosaicos que
adornavam as grandes igrejas abobadadas construídas
para expressar a onipresença de Deus, mas há também
pinturas em painéis de madeira com encáustica,
pequenas inscrições em relevo e manuscritos com
iluminuras. Predominavam os ícones planos e
estilizados de figuras sacras, cujos artistas
permaneciam anônimos. O que importava era a
veneração a Deus, não aos indivíduos (2018, p. 14).
33
OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
Com a chegada do século XV as convicções humanas começam a
mudar no Ocidente, mais especificamente na Itália, onde, encabeçado
por artistas e filósofos, era iniciado o período da história entendido
como Renascimento (XIV ao XVI). Pode-se afirmar que, “Em oposição
à Idade Média, o Renascimento reabilitou o humano. As noções sobre
o homem surgiram de todas as fontes imagináveis, descobertas pelos
que pintavam e esculpiam” (Artigas, 1968, p. 25). Nesse sentido, a
Arte, apoiada ao pensamento científico, passa a repensar definições
estabelecidas e, em contrapartida, provar novas teses sobre o Homem
e suas propriedades.
35
dos planos do homem. Através do traço, os desejos humanos
ganharam forma no mundo físico.
36
A partir do legado de Da Vinci, os artistas renascentistas se dedicaram
a ilustrarem a figura humana com minuciosos detalhes, que agora não
eram apenas da forma anatômica do corpo, mas também de tudo que
estava em contato ao seu redor e tudo que havia por dentro e por fora,
dos ossos até as unhas e linhas de expressão da pele.
37
TÉCNICA,
PARA APRENDER E PRENDER
Com o surgimento dessa nova concepção de artista inventor ou do
inventor artista, novos conhecimentos envolvendo o pensamento visual
começaram a ser testados e desenvolvidos. Aristides afirma:
Sobre esses saberes Peixoto (2013) cita que, houve uma dedicação
em estudar e entender a luz, o volume e a profundidade. Todas essas
propriedades visuais são buscadas por meio da exploração da técnica
do Desenho, onde se pôde descobrir qual a potencialidade do traço,
das linhas e das manchas e o que elas poderiam oferecer para o
artista e seu trabalho. Ainda, nesse momento de descobertas, surge a
inovadora aprimoração da Perspectiva, que começou a ser estudada
no século XIV por Giotto di Bondone (s/d – 1337) e toma uma nova
proporção ao ser popularizada e formalizada por Filippo Bruneleschi
(1377 – 1446) no século XV, sendo muito utilizada na Pintura para dar
profundidade às composições.
39
Todos esses recursos visuais só foram possíveis de serem
sistematizados e utilizados em virtude do exercício técnico, que não se
resume ao desenho anatômico ou da figura humana, mas que serve
como meio eficaz de obter um resultado específico capaz de evocar
em superfícies estáticas os fenômenos visuais que os olhos percebem
no mundo real. No Renascimento, segundo Artigas (1968), foram
lançadas as bases para as técnicas modernas de como se fazer Arte,
onde, desse momento em diante, a teoria (princípios conceituais de
como aplicar a técnica) passa a ser tão importante quanto a prática,
tanto para o Desenho quanto para outras linguagens artísticas em
geral.
40
Nesse momento, com discorre a autora, o Desenho começa a ser
ensinado nas escolas de Belas Artes europeias seguindo uma
retomada à estrutura formal do classicismo grego; era esperado que a
arte produzida pelos estudantes incorporasse ideais greco-romanos de
razão e ordem. Assim, sendo o componente básico fundamental, antes
do contato com qualquer outra expressão artística, era preciso
entender e aprender a desenhar segundo as técnicas renascentistas e
os padrões de organização greco-romanos.
41
A primeira institucionalização sistemática do ensino de
Arte foi a Missão Francesa, e um dos poucos modelos
com atualidade no país de origem no momento de sua
importação para o Brasil. Quase sempre os modelos
estrangeiros foram tomados de empréstimo numa forma
já enfraquecida e desgastada. No caso da Missão
Francesa, o neoclássico que ela trouxe era a moda na
França dos inícios do século XIX (2015, p. 34-35).
42
AS MÁQUINAS E O MODERNO
Enquanto as técnicas avançavam nas Academias de Arte, fora delas
surgiam novos estilos de vida, de trabalhos e meios de produção.
Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, o mundo
atravessou um processo de industrialização que refletia diretamente a
instauração do Capitalismo na sociedade. Logo a lógica de consumo
e produção se popularizou enfraquecendo os processos de criação
artesanal, dando lugar as recém inventadas máquinas a vapor,
capazes de produzir mais em menos tempo. A modernidade chega
ao mundo camuflada no trabalho automático. Sobre a Arte nesse
período nota-se:
45
A oposição irredutível, entre a arte e a indústria
nascente, explica-se pelo ideário dessas correntes, as
quais acreditavam no caráter inspirado da
contemplação estética. E afirmavam: se a máquina
substitui o homem no trabalho, também o substitui na
criação artística. A criação é humana, enquanto é
criação do indivíduo que a realiza. O artista que faz não
maneja a quantidade, porém a qualidade. Ora, a
máquina é uma força de reproduzir coisas idênticas
para os fins mais imediatos e primários (1968, p. 27-28).
Nesse contexto, a máquina estava encarregada do registro perfeito e
infinito. Logo, a Humanidade estava liberta para ir além do que via,
podia explorar seus sentimentos, as sensações que sentia, os desejos
e expressões particulares, as ideias que cruzavam sua cabeça e que
permeavam pelo seu tempo de vida. Podia dar destaque aquilo que
sentia e que sempre esteve contido na Arte. Assim, nasce a Arte
Moderna, expandindo a concepção do que é Arte e suas
possibilidades, invertendo os ideais de completude e questionando o
que era Belo e exato. Surgem desenhos fluidos e longe de
preocupações técnicas, a maestria tecnicista dá lugar à originalidade
como elemento condutor; o artista pode dar a direção que quiser em
suas linhas, basta seguir suas ideias.
46
suais passam a explorar as qualidades gráficas e expressivas que
podem ser obtidas quando esses materiais são usados para além de
seus encargos.
Hoje, como linguagem, ainda que muitas pessoas não estejam cientes
disso e ainda que haja uma complexificação da técnica, o Desenho é
acessível para todos. Pois enquanto sujeitos, usamos a linguagem para
nos comunicarmos e expressarmos nossas inquietações. Sendo assim,
desenhar nada mais é do que uma extensão dessas ações, uma prática
natural à vida humana, capaz de lhe dar clareza e sentido.
47
DESENHAR PRA QUÊ?
Uma imagem vale mais que mil palavras, mas apenas se o espectador
souber lê-la. No mundo moderno e veloz do século XXI as letras vêm
perdendo o espaço de ser o principal artifício da comunicação humana:
a chegada e disseminação da Internet em lares por todo o planeta fez
com que trocássemos horas de leitura por segundos fragmentados de
observação de imagens. São milhões e milhões de jpgs, pngs, gifs,
selfies, stories, memes, emojis, figurinhas, thumbnails e fotos
amadoras sendo compartilhadas e consumidas todos os dias.
Esse fenômeno fez com que a cultura visual se tornasse ainda mais
forte e inevitável na vida humana, tornando a imagem não apenas um
complemento de um texto escrito, mas uma peça autônoma com
significado próprio e sustentado apenas por seus elementos visuais.
Porém, ainda assim, as mil palavras não ditas que cabem em cada um
dos inúmeros formatos de imagem agora existentes, ainda só podem
ser compreendidas por aqueles que as sabem ler, ou seja, quem é
capaz de compreender a natureza e a estrutura da comunicação
visual. O meio mais funcional para adquirir esse conhecimento é o
Desenho, que abarca em sua totalidade os aspectos que estão por trás
da criação imagética, o pensamento de composição e de organização
visual.
50
mo capturar as sensações que aprendemos, mas que não
exatamente enxergamos.
51
Assim como a escrita, o Desenho tornou-se uma ferramenta para
expressar uma ideia completa além do mundo físico, é uma ferramenta
que permite ao indivíduo visualizar e interagir com os atributos
invisíveis que estão dentro de si e nas nuances da vida moderna.
52
DA LINHA AO TRAÇO
Além de átomos e elementos químicos, a vida humana é
essencialmente composta por linhas. Estejam elas nos movimentos
que o corpo faz, nos caminhos que percorremos de um espaço a outro,
nos corredores da cidade ou até em lugares mais óbvios como nos fios
elétricos dos postes, nas linhas que coexistem na vivência prática do
ser humano. Ingold (2015) aponta um olhar filosófico sobre as linhas
ao refletir sobre as primeiras formas de organismos vivos na Terra,
seres unicelulares com formato disforme que vagavam pelas águas
dos oceanos. O autor constata que, anos depois, ao desenvolverem
flagelos em extensão ao corpo, passaram a ser bolha e linha e assim,
entrar em contato uns com os outros e com o ambiente ao redor,
resultando na evolução até a vida terrestre.
55
seções, cruzamentos, cantos, nós, conexões e mais outras formas e
encaixes que nos acompanham de forma velada diariamente.
56
A garatuja não é simplesmente uma atividade sensório-
motora, descomprometida e ininteligível. Atrás dessa
aparente ‘inutilidade’ contida no ato de rabiscar estão
latentes segredos existenciais, confidências emotivas,
necessidades de comunicação (Derdyk, 2020, p. 63).
57
POR TRÁS DA TELA
Houve muitas coisas que perderam o encanto com a popularização da
Internet, mas o Desenho, em contrapartida, ganhou um amplo espaço
de exposição e ressignificação atrás das telas. Com a disseminação do
acesso à Internet nos domicílios brasileiros ao longo dos anos 2000, a
facilidade de acesso a informações e o compartilhamento de
experiências com outras pessoas ficou cada vez maior. De receitas
culinárias até teorias da conspiração é possível se encontrar de tudo
em fóruns e blogs específicos sobre tópicos diversos – inclusive sobre
Arte. Pela primeira vez na história era possível entrar em contato com
milhares de imagens de obras de arte icônicas de diferentes períodos
sem precisar ir ao museu ou ter em mãos um catálogo impresso.
Outro fator importante realçado pelas redes sociais foi o destaque dado
aos perfis pessoais. Um perfil na Internet, em tese, serve como uma
61
apresentação sintética da personalidade real do indivíduo, suas
preferências e gostos são visualmente traduzidos para integrar
a construção de sua imagem virtual. Esse fenômeno, quando
transposto para o artista, faz do perfil um espaço de exposição
de suas ideias e de existência social para seu trabalho – algo
como uma galeria de exposições pessoal, livre para ser
preenchida da forma como achar melhor, sem a necessidade
de uma avaliação curatorial.
62
Assim como ocorre a materialização de sensações através da
simplificação da forma, como no caso dos memes, traduzindo
sentimentos humanos universais em representações criativas e envolta
de várias camadas de interpretação visual.
63
FEIO (PRA QUEM?)
É inevitável que a busca pelo Belo sempre acabe por desvelar também
o Feio. Ao longo da história a Beleza passou por diferentes definições.
Umberto Eco (2004) discorre sobre como houveram contradições entre
diferentes épocas e culturas a respeito do que é o Belo, mas que na
maior parte dos casos ele está sempre associado àquilo que é
agradável aos seres humanos. Valores gregos e renascentistas foram
responsáveis por fundamentar esse ideal, por meio de representações
que valorizavam a harmonia através da proporção, a ordem e a
simetria, definindo dessa forma que o contrário desses elementos é o
Feio.
65
sua complexidade e assim falhar na tentativa de transpor uma ideia
para o papel.
66
plural da Arte Contemporânea e subverte os entendimentos de
conceitos já pré-estabelecidos, criando novas vias de expressão e do
fazer artístico.
67
TRAÇAR O PERCURSO
É comum ouvir que tudo é válido na Arte. De quadros compostos por
um frenesi de manchas até Performances onde nada de imediato
parece acontecer, o modernismo trouxe para a mesa novas propostas
e movimentos corajosos, e de fato, qualquer suporte, material ou
criação passou a ser válida com a sustentação dos palanques
conceituais. Contudo, não se pode tirar as mãos do volante quando se
quer chegar a um lugar dirigindo um carro, assim como, o artista deve
saber como utilizar suas ferramentas para potencializar o resultado de
suas obras e não se perder no caminho para criá-las.
69
Mesmo com o crescimento da prática do desenho, esses elementos
ainda não são manejados com o cuidado e o esclarecimento que
deveriam ter. O estudo da técnica e dos fundamentos da linguagem
visual, sofre em grande parte dos casos uma complicação que parece
anular a importância dessas propriedades. Não por acaso, cresceu-se
a ideia de que a liberdade deve ser o principal recurso para uma
pessoa interessada em começar a desenhar.
A técnica, vista como uma vilã por mim por muitos anos, vem de um
70
longo período de determinações rígidas, até culminar no ensino
técnico, envolvendo cálculos exatos e uma prática mecanicista.
Entendê-la como uma corporatura infeliz, que sufoca a ação do
desenho é uma tendência atrativa, pois para dominá-la requer
tempo e dedicação, aparenta ser mais fácil ignorá-la ou usá-la
apenas em situações coniventes. Porém, ao compreendê-la por
uma ótica mais ampla na faculdade, pude perceber que sua maior
atribuição não é a de inibição criativa, mas a de articulação dessa
força artística. A técnica fornece, como uma ponte, caminhos para
que haja um direcionamento do desenho, para que possa haver
sentido e coerência nos resultados obtidos no papel, ainda que não
haja intenção de relação ou fidelidade com o que vemos no mundo
real.
71
FIM DA LINHA
O Desenho é o mais antigo método de expressão humana, e ainda
assim, segue sendo até hoje uma das linguagens mais diversificadas e
mutáveis da Arte. Após séculos de relativa desvalorização em relação
a Pintura e a Escultura, quando cumpria somente o papel de projetar
base e rascunho, somente nas últimas centenas de anos passou a
ganhar centralidade e ser estudado como uma linguagem própria. As
mudanças ocorridas no fazer artístico a partir do século XX trouxeram
uma ampla gama de novos significados e funções práticas para o
Desenho, que não mais se prende somente a técnica e a
representação, mas que agora flutua sobre diferentes caminhos visuais
de fragmentação e não exatidão.
73
Passo a visualizar minha produção como algo além do desenho como
forma de preencher o tempo como antes fazia, enxergo agora suas
nuances e variedades frutos de um fazer artístico contemplado pela
formação acadêmica, mas que também é atingido pelas minhas
vivencias e particularidades. Entendo agora como posso equilibrar a
técnica aos meus interesses e ao que quero expressar, assim como
entendo também o que torna o desenho essencial a minha vida, como
meio de comunicação e presentificação, e como pode também
significar mais para outras pessoas em outros contextos e lugares.
74
REFERÊNCIAS
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<https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/45665>. Acesso em: 8 dez. 2021.
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2015.
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<https://gustavotdiaz.com/2019/03/19/desenhar-e-preciso/>. Acesso em: 01 fev. 2022.
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Disponível em: <https://acrasias.wordpress.com/2014/12/13/receituario-de-obviedades-livre-e-pobre-
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Panda Educação, 2020.
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<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/paralelo/article/view/13292.>. Acesso em: 5 nov. 2021
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TILLEY, Annabel. The Inexorable Rise of Drawing, Garageland issue 6, 2007.
TRACEY. Drawing Now: Between the Lines of Contemporary Art. NY, EUA: I.B.Tauris, 2007.
75
REFERÊNCIAS TÉCNICAS
DAS IMAGENS
SUMÁRIO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2017
UM PONTO DE PARTIDA
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
LINHAS NO CÉREBRO, DESENHO NA CABEÇA
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2021
OS PRIMEIROS TRAÇOS
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
FALAR O DESENHO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
PECADOS VISUAIS
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
TÉCNICA, PARA APRENDER E PRENDER
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
AS MÁQUINAS E O MODERNO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
DESENHAR PRA QUE?
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
DA LINHA AO TRAÇO
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
POR TRÁS DA TELA
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
FEIO (PRA QUEM?)
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
TRAÇAR O PERCURSO
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
FIM DA LINHA
S/T, carvão em papel, 21cm x 29,7cm, 2021
Todas as imagens vindas de acervo pessoal
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AGRADECIMENTOS
Obrigado as professoras Bruna Rafaella e Constança Lucas e
ao professor Sergio Bonilha por me fazerem repensar e
redescobrir o desenho em suas aulas. Agradeço ao meu
orientador Eduardo Romero pelas conversas e direcionamentos
ao longo do processo de pesquisa e escrita. Obrigado a
professora Maria Betânia pelo empurrão no inicio dessa
jornada, e ao professor Gustavo Motta por ajudar a amarrar as
pontas no final. E, por fim, o agradecimento especial aos meus
pais, por serem fontes de inspiração inesgotáveis e por nunca
terem deixado faltar lápis e papel em casa.
77
RECIFE 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS – LICENCIATURA
RECIFE-PE
2022
2
RESUMO:
Este trabalho de conclusão de curso relata experiências sobre poéticas
performativas como estratégias de autoafirmação das identidades e
representatividades indígenas ao ocupar os espaços museológicos na
contemporaneidade. Tem como objetivo expressar e produzir reflexões sobre os
processos de territorialidade dos corpos indígenas ao adentrarem nas
instituições de arte, tensionando e questionando a ausência de obras de autoria
indígena nos acervos e abordagens sobre as etnicidades indígenas a partir de
uma perspectiva decolonial. Para a revisão teórica, buscou-se autores que
abordam a temática indígena no campo da Arte, Arte Educação, Mediação
Cultural em espaços museais, textos sobre presença indígena nas Instituições
de ensino superior, nos espaços museais, relatos e entrevistas sobre exposições
de arte indígena, textos e entrevistas de pensadores e artistas indígenas como
forma de aprofundar as reflexões e diálogos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO __________________________________________ 4
Cap.1 BOA CICA ________________________________________ 6
Cap. 2 SUBINDO O RIO ___________________________________ 9
Cap.3 EU TAMBÉM SOU CORRENTEZA _____________________ 15
3.1 Todos Falam de mim, ninguém me representa! ______________ 18
Cap. 4 Desova __________________________________________ 21
REFERÊNCIAS _________________________________________ 25
4
INTRODUÇÃO
Inicio este texto, ou melhor dizendo este diálogo, pedindo licença aos
meus ancestrais e às forças da natureza. Esta escrita foi impulsionada pela
vontade de retomar. Retomar territórios físicos e subjetivos, retomar
epstemologias e ciências originárias, retomar o acesso e acionamento memórias
ancestrais presentes no espaço-tempo.
Contudo, os processos de retomadas por meio da escrita é algo novo para
nós povos indígenas, é uma ação subversiva. Parafraseando Davi Kopenawa
(2015), já que aprendemos a fala e a escrita do não indígena aqui estou,
desenhando minhas palavras em peles de imagens, pois também desejo que
minhas palavras se dividam e se espalhem, como fumaça para bem longe e
possam ser lidas e ouvidas.
Ao refletir sobre minhas experiências ao longo desses anos em que
estou cursando Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE, me perguntei por várias vezes, por que saí da minha
comunidade? O que estou fazendo nesse espaço/lugar?
Algumas vezes a resposta veio logo após, positiva por sinal; já em outros
momentos estas nunca chegaram. Talvez, por ser uma pergunta mais complexa
do que parece, principalmente quando levamos em consideração questões que
envolvem políticas públicas, questão de classe, preconceito e racismo.
Entrei na universidade em 2015 em consequência das políticas públicas
vigentes, refiro-me a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, lei de cotas sociais
e raciais, sendo assim, faço parte do crescente aumento no índice da entrada de
indígenas e negros nas universidades do Brasil, contudo, quase sempre
tangenciei os índices de desistências por estar em um espaço/lugar que não foi
pensado e construído para indígenas.
Ao intitular este trabalho de piracema, vocábulo da língua tupi que significa
“subida do peixe” onde os peixes nadam contra a corrente para a cabeceira dos
rios para se reproduzirem (SANTOS, 2019) crio metáforas a partir da minha
trajetória na academia e, consequentemente nos espaços por onde passei
(museus, galerias e escolas).
Vejo que relacionar minha trajetória com piracema, fenômeno que garante
a reprodução, manutenção e sobrevivência de muitas espécies de peixes, é
5
Imagem 2: Eu e meus irmãos, Zitiel, Zilma, Ziquiel e Zaqueu (da esquerda para a direita) com o
Bispo Dom Valério (2007). Foto: Arquivo Pessoal.
liso” – feito por um dos docentes em meio a alguns colegas, que pela primeira
vez questionei sobre minha identidade a partir de meu fenótipo. “Apesar do
discurso politicamente correto da inclusão e da aceitação das cotas, a
representação que o docente faz do cotista indígena é estereotipada, folclórica,
e sua postura com relação ao mesmo ainda é de rejeição” (SALVIANO, 2011, p.
65).
Ser questionado sobre quem eu era despertou em mim a necessidade de
ampliar/ deslocar a priori o olhar daqueles que estavam em minha volta sobre o
que é ser indígena, levando em consideração a diversidade étnica e cultural dos
mais de 305 povos que existem em nosso território diante do contexto
sociopolítico de genocídio, etnocídio e miscigenação no qual fomos submetidos
desde a colonização.
Imerso nessas inquietações, lembrei da obra de Arissana Pataxó, a
escultura de cerâmica “Mikay”, 2009. Um facão com 60 centímetros de
comprimento onde em sua lâmina está escrito “O que é ser índio para você?”
Imagem 4: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.
Imagem 5: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.
Imagem 6: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.
Cap. 4 Desova
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Luiz Sávio de; SILVA, Hélio Leite da. Indios do Nordeste: etnia,
política e história. Disponível em: < encurtador.com.br/rGR17>. Acesso em 25
de fevereiro de 2022.
Introdução
Paleoarte. Um termo pouco utilizado, que trata de uma categoria artística silenciosamente
presente, que se embrenha de maneiras sutis nas nossas vidas. A palavra se refere a
representações artísticas de plantas e animais extintos, indo desde ilustrações bidimensionais a
esculturas, frequentemente de caráter científico, devido à pesquisa necessária para realizar a
imagem dos organismos em questão, e foi criada pelo artista Mark Hallett, num artigo intitulado
The Scientific Approach of the Art of Bringing Dinosaurs Back to Life (A Abordagem Científica
da Arte de Trazer Dinossauros de volta à Vida, tradução livre), em 1987. Com a precisão de
fóssil para ilustração sendo uma parte vital do processo paleoartístico, as obras acabam por
facilitar a visualização do organismo representado no seu devido artigo. Ainda que o público
geral não pense tanto sobre o assunto, a paleoarte influencia inúmeras e variadas obras, sendo
elas do meio visual ou não, desde a literatura ao cinema.
Meu próprio interesse pelas problemáticas da paleoarte começou mais cedo do que seria capaz
de lembrar com exatidão. Minha primeira exposição ao mundo paleontológico se deu por meio
de uma revista sobre dinossauros barata, vinda de uma banca de jornal. O pavio foi aceso desde
então, com um fascínio sem fim pela pré-história que me levou a todo tipo de paleoartista, desde
os nacionais, como Camila Alli Chair (1989 -), aos estrangeiros, como Gabriel Ugueto (1984 -
). Este trabalho nasceu por conta desses artistas. Ou melhor: nasceu da insatisfação sincera, de
minha parte, ante ao fato de que seus trabalhos não têm o reconhecimento que deveriam ter.
Falemos um pouco de Camila, por exemplo. Uma artista de São Paulo, ela possui uma paixão
considerável por répteis, sendo eles atuais ou extintos, o que a levou a uma carreira de ilustrá-
los de todas as formas possíveis. Tendo tido três lagartos e uma ave de estimação, uma das suas
maiores especialidades é desenhar os mínimos detalhes nas escamas e penas dos animais que
representa. Além disso, ela possui um olho para cores vibrantes, assim como todo tipo de
estrutura especulativa que não se preserva em fósseis, fazendo com que cada uma das suas
ilustrações seja uma experiência única de se presenciar. Ela também trabalha com animação, e
está, no momento em que este trabalho está sendo escrito, tentando levar ao ar seu projeto
pessoal, chamado de Escola da Insanidade.
Figura 1: Ilustração de um Giganotosaurus por Camila Alli Chair, demonstrando seu método frequente de desenhar cada
escama. Originalmente publicado em 2021, e retirado de deviantart.com/freakyraptor/art/The-King-of-the-Predators-
874357851.
Já Gabriel Ugueto é um artista uruguaio, cujo trabalho muito mais envolve o aspecto
fotorrealista e a dedicação a fazer com que suas ilustrações tenham o ar mais natural possível,
levando em conta os prováveis hábitos dos animais representados, assim como o ambiente em
que viviam. Ainda que o rigor anatômico seja particularmente importante na paleoarte, Ugueto
se destaca demonstrando não apenas bastante conhecimento da anatomia dos animais
envolvidos, como também atenção para a naturalidade de cada um, ilustrando cada animal não
como uma planilha anatômica, mas como um ser real, que vive e respira.
Figura 2: Ilustração de um Aurornis e um Eosinopteryx, duas aves primitivas e, portanto, dinossauros a seu próprio jeito. O
estilo naturalista de Gabriel Ugueto se estende das cores simples, porém chamativas, aos maneirismos dos animais.
Originalmente publicado no site Earth Archives em 2018, retirado de eartharchives.org/articles/feather-explosion/index.html.
Como é possível perceber, mesmo com ambos os artistas tratando de temas semelhantes, ambos
possuem um estilo único, quase imediatamente reconhecível. Mesmo diante do rigor científico
necessário para a produção de paleoarte de qualidade, o valor artístico dessas obras ainda é de
grande importância, com cada artista trazendo sua visão e expressões únicas do mundo pré-
histórico. A singularidade de cada obra é, na verdade, também importante para a comunidade
científica.
Umas das principais verdades que precisam ser aceitas no que diz respeito à paleontologia – e
qualquer ciência, sejamos sinceros – é a de que jamais saberemos de tudo. Fósseis trazem
bastante evidência sobre a anatomia de organismos extintos, talvez mais do que o público geral
esteja ciente, mas mesmo assim, é impossível saber de todos os detalhes, como as cores,
comportamento, ou tecidos moles. É aí que a paleoarte realmente brilha: é somente pela
ingenuidade artística, pela criatividade necessária para especular o que fósseis jamais nos dirão,
que podemos realmente visualizar a pré-história e seus habitantes.
Parte disso vem também da observação do mundo natural atual, visto que diversos animais
possuem estruturas que jamais reconheceríamos por meio apenas do esqueleto. De vez em
quando, fósseis excepcionalmente preservados nos contam mais sobre a aparência em vida de
animais extintos, mas na maior parte das vezes, é preciso observar os ossos, e adivinhar.
Ter um olho apurado para o que sabemos, somado à capacidade de especular razoavelmente
sobre o que não sabemos, é o que faz da paleoarte o que ela é: mutável, e incerta, mas ousada,
na sua capacidade de imaginar um mundo que já se foi.
Figura 3: Ilustração de um Lambeosaurus adulto com filhote, por Júlio Lacerda (2020). Retirado de
paleoart.tumblr.com/post/630798356032208896/a-young-lambeosaurus-gets-separated-from-the-herd.
Agora que falamos um pouco de como chegamos aqui, e alguns dos conceitos básicos da
paleoarte, falaremos da sua história, e de como as coisas mudaram desde sua concepção até
hoje.
História e conceitos
A paleoarte tem sua origem formal no século XIX, décadas após as primeiras descrições formais
de fósseis circa 1976 (WITTON, 2018). Ainda que seja possível argumentar que mitológicas
da Antiguidade, como dragões e grifos, tenham sido inspiradas por fósseis, é mais razoável
assumir que as primeiras paleoartes reconhecidas como tal são realmente mais modernas, por
intencionalmente tentar reconstruir a aparência de animais extintos.
Em seus primórdios, na década de 1830, a paleoarte possuía um caráter restritivo, sendo vista
como algo de pouco valor científico. Com poucos fósseis à disposição, os artistas podiam
apenas especular sobre a aparência em vida dos seres representados. Sendo assim, tanto no
âmbito científico como no artístico, a maior parte dos primeiros trabalhos paleoartísticos
permanece sem ser publicado. Notavelmente, as ilustrações de Richard Owen (1804 – 1892), o
homem que criou o termo dinossauro, foram algumas das primeiras a cogitar a possibilidade de
colocar pele por cima dos ossos de animais extintos, mas evitaram publicação até mesmo depois
que a paleontologia se tornou mais popular.
Figura 4: Duria Antiquor, a more ancient Dorset (Um Dorset mais antigo, tradução livre), considerado por muitos como a
primeira obra rigorosa de paleoarte a ser publicada, ainda que restrita aos círculos científicos. A ilustração em questão
demonstra como se imaginava a costa da Inglaterra durante o início do período jurássico, influenciada pelas descobertas da
paleontóloga amadora Mary Anning (1799 – 1847). Obra por Henry De La Beche, e circulada pela comunidade científica sem
parar em museu algum. Originalmente publicada em 1830, retirada de en.wikipedia.org/wiki/Duria_Antiquor.
Em 1854, diversas estátuas em tamanho natural, representando uma grande diversidade de
animais extintos foram expostas no Crystal Palace Park, em Londres, de animais antigos como
o Dycinodon (final do permiano, de 253 a 251 milhões de anos atrás) até mamíferos mais
familiares, como o cervo gigante Megaloceros (metade do pleistoceno à metade do holoceno,
45 a 7 mil anos atrás), incluindo também os três dinossauros não-aves formalmente descritos
na época: Megalosaurus (metade do jurássico, cerca de 166 milhões de anos atrás), Iguanodon
(início do cretáceo, de 126 a 122 milhões de anos atrás) e Hylaeosaurus (início do cretáceo, de
140 a 136 milhões de anos atrás). Ainda que não possam ser consideradas cientificamente
corretas, principalmente vistas de hoje, as estátuas representavam bem o principal objetivo da
paleoarte, mostrando os dinossauros e outras criaturas igualmente antigas como animais, e não
como monstros – uma tradição raramente seguida por obras subsequentes –, com intenso rigor
anatômico, e uma dose saudável de especulação, dados os recursos da época. Cada estátua foi
esculpida por Benjamin Waterhouse Hawkins (1807 – 1894), sob a curadoria de Richard Owen
(1804 – 1892), o homem que criou o termo dinossauro. Essas estátuas foram a primeira
exposição da paleoarte ao público geral, além da esfera científica, e provaram ser populares por
algum tempo, porém se tornaram obsoletas diante de novas descobertas. Hoje em dia,
permanecem como um monumento aos avanços da paleontologia: nós realmente chegamos
longe, desde o dia em que considerávamos dinossauros como meros lagartos gigantes.
Figura 5: estátuas de Iguanodon expostas no Crystal Palace Park, Londres. Refletindo as ideias vitorianas sobre a aparência
de fauna pré-histórica, os modelos permanecem belos, porém não representam o que pensamos sobre os animais atualmente.
Esculpidas por Benjamin Waterhouse Hawkins, e expostas até hoje no Crystal Palace Park. Foto retirada de
cpdinosaurs.org/visit/statue-details/iguanodon.
Figura 6: Ilustração de um Iguanodon, representando o quanto sabemos sobre o animal hoje em dia. O que antes foi
considerado um chifre, agora é tido como um espinho no polegar. Imagem por John Conway, retirada e originalmente
postada em johnconway.art/iguanodon-bernissartensis.
Figura 7: Ilustração representando Brontosaurus com hábitos semiaquáticos, uma proposta comum no começo do século XX,
porém não tão plausível atualmente, por Charles R. Knight (1898, ,originalmente exposto no Museu Americano de História
Natural, AMNH) Retirado de charlesrknight.com.
Figura 8: Tomada do filme Fantasia, mostrando Brontosaurus numa lagoa. Da anatomia aos hábitos, a influência de Knight é
notável.
Foi somente durante a década de 1970 que o ramo novamente se tornou popular, com a assim
chamada “renascença dos dinossauros”: novos avanços no estudo de animais extintos deram a
cada espécie um dinamismo que não era presente nos grandes répteis vagarosos de outrora.
Com a descoberta de que dinossauros provavelmente possuíam sangue quente, vindo de
observações anatômicas de animais claramente ágeis como o Deinonychus (início do cretáceo,
de 115 a 108 milhões de anos atrás). Artistas como Robert Bakker (1945 -), Mark Hallett (1965
-) e Gregory S. Paul (1954 -), foram vitais na mudança da percepção do público sobre
dinossauros – o grupo de animais extintos que, de forma bastante explicável, são a faceta mais
carismática da paleoarte, devido a certa familiaridade, devido aos seus parentes vivos,
misturada com o mistério inerente às adivinhações vindas do fato de que, além das aves, não
existem dinossauros vivos para servir de referência. Em lugar nenhum essa mudança se fez tão
evidente como no filme Jurassic Park, de Steven Spielberg (1946 -), inspirado em grande parte
nos trabalhos de Gregory S. Paul, assim como no livro de mesmo nome escrito por Michael
Crichton (1942 – 2008), no qual o longa se baseia. Com essa nova visão sobre a fauna pré-
histórica, o público passou a cultivar um interesse renovado pelo assunto, e a paleoarte
finalmente se tornou mainstream.
O Mundo Perdido e Jurassic Park são algumas das obras de maior influência no que diz respeito
à visão do público geral sobre dinossauros, e outros animais semelhantes. Por isso, talvez, elas
sejam justamente as que mereçam uma análise a fundo agora.
Comparações cinematográficas
Diante do que é proposto, é necessário se perguntar: de que forma a paleoarte influencia a mídia
popular, em particular o cinema? Por que a escolha, justamente, das obras O Mundo Perdido,
Jurassic Park e Jurassic World? Se antigamente a paleoarte era tão fortemente associada à
produção de filmes como esses, por que ela é agora prontamente ignorada pelos poucos estúdios
que arriscam a representar nas telas reconstituições artísticas de animais extintos?
Essas três perguntas levam a uma outra: de que modo, especificamente, o cinema influencia a
forma como as pessoas veem o mundo, e por que a paleoarte é tão importante, nesse contexto?
De que forma, afinal, a paleoarte influencia O Mundo Perdido, Jurassic Park e Jurassic World?
Para chegar às conclusões necessárias, é preciso fazer uma pesquisa extensiva. A paleoarte
como um todo tem suas origens no século XIX, e, conhecendo a sua história, é possível
reconhecer os contextos – cuja distância é de quase sete décadas – em que O Mundo Perdido
(1925), Jurassic Park (1993) e Jurassic World (2015) foram criados. Diante disso, será feita
uma busca sobre a história da paleoarte até esses dois momentos, e o estado exato em que ela
se encontrava na imagem pública em ambos os casos.
O objetivo geral é investigar a influência da paleoarte nos filmes O Mundo Perdido, de 1925,
e Jurassic Park, de 1993.
Objetivos mais específicos incluem ler os dois livros que influenciaram a produção dos
filmes; analisar como são retratadas artisticamente a fauna e a flora nos livros; assistir os dois
filmes, e analisar como são retratadas artisticamente a fauna e a flora, numa comparação.
O livro O Mundo Perdido, de Sir Arthur Conan Doyle, famoso por suas obras protagonizadas
pelo detetive Sherlock Holmes, foi escrito em 1912. O livro surgiu meros vinte anos após a
infame “Guerra dos Ossos”, iniciada pelos paleontólogos estadunidenses Othniel Charles
Marsh (1831 – 1899) e Edward Drinker Cope (1840 – 1897). O evento em si diz respeito à
rivalidade ferrenha entre os dois paleontólogos, numa competição para descobrir mais fósseis
do que o oponente. Centenas de espécies de animais pré-históricos foram descobertas nessa
época, incluindo espécimes que se tornaram famosos como o Stegosaurus (final do jurássico,
de 155 a 145 milhões de anos atrás) e o Brontosaurus (final do jurássico, de 156 a 146 milhões
de anos atrás). Portanto, não foi exatamente surpreendente que Doyle tenha se utilizado de
alguns dos animais descobertos pelos dois paleontólogos, até mesmo incluindo dois
personagens com uma rivalidade semelhante: o feroz professor Challenger, e seu oponente,
professor Summerlee.
O filme de 1925, baseado no livro, toma diversas liberdades frente à obra original – entre elas
a escolha de dinossauros retratados. Enquanto no livro aparecem apenas três espécies, mais
alguns répteis e mamíferos não relacionados, o filme traz cerca de nove, retirando
completamente o foco do romance nos nativos do mundo perdido em favor do espetáculo das
criaturas de stop-motion. Destas, oito são quase inteiramente baseadas no trabalho de Charles
Knight, tendo sido modeladas e animadas pelo especialista em efeitos especiais Willis O’Brien
(1886 – 1962), que, mais tarde, viria a trabalhar em King Kong de modo semelhante.
Ao longo do filme, os dinossauros são retratados como feras pouco inteligentes e desastradas,
porém extremamente ferozes. Tal visão era comum em 1925, quando o conhecimento sobre
dinossauros e répteis em geral era consideravelmente mais limitado do que hoje em dia. Parte
disso vinha de uma falta de interesse cujas causas são legítimas: a Grande Depressão assolava
os Estados Unidos, que, poucas décadas antes, eram pioneiros nas descobertas paleontológicas.
Ao longo da maior parte do século XX, até pelo menos a década de 1970, o estudo de animais
extintos era visto como algo não prioritário, em grande medida por sua natureza especulativa –
e, como vimos, também por circunstâncias históricas específicas.
Figura 9: Ilustração representando um Allosaurus se alimentando, por Charles R. Knight (1904, originalmente exposto no
Museu Americano de História Natural, AMNH) Retirado de charlesrknight.com.
Figura 10: Tomada do filme O Mundo Perdido. O design do Allosaurus é notavelmente semelhante ao da obra de Knight.
O livro de Crichton, por sua vez, foi publicado em 1990, após uma série de manuscritos
abandonados envolvendo um garoto que criava um pterossauro em laboratório (GOULD,
1997). Crichton era um amigo próximo do diretor Steven Spielberg, que correu para adquirir
os direitos da história, de modo a transformá-la num filme, lançado em 1993.
O longa segue a história do livro, porém de forma relativamente simplificada, com um foco
maior sendo posto no fato de que os dinossauros deviam parecer realistas. Na década de 1990,
a assim chamada Renascença dos Dinossauros estava a todo vapor, mas o grande público ainda
não havia visto grande mudança na representação dos répteis vagarosos e burros de décadas
passadas. Spielberg tentou seu melhor para corrigir isso: consultou intensamente a obra de
Gregory S. Paul, especificamente seu livro Predatory Dinosaurs of the World (PAUL, 1988), e
contratou um paleontólogo profissional, Jack Horner, para garantir que suas representações
fossem fiéis ao que se pensava sobre dinossauros na época.
Figura 11: Ilustração de um grupo de Tyrannosaurus caçando Triceratops, por Gregory S. Paul (1988, originalmente publicada
no livro Predatory Dinosaurs of the World – tradução livre, Dinossauros Predatórios do Mundo). Retirada de
chasmosaurs.blogspot.com/2016/06/vintage-dinosaur-art-predatory.html.
Figura 12: Tomada do filme Jurassic Park, 1993. Paul foi uma grande influência no design dos animais do longa, ainda que
certas proporções tenham sido propositalmente alteradas.
Nos dias atuais, porém, desde 2014, digamos, essa correlação entre arte e mídia parece não ter
o efeito que um dia já teve. Mesmo diante de paleoartistas extremamente fluentes no assunto,
como Mark P. Witton, John Conway, e o brasileiro Júlio Lacerda (1983 -), no âmbito da
produção audiovisual de massa, filmes e seriados se recusam a seguir o ritmo das novas
descobertas. Assim, as obras audiovisuais mais populares, como a ainda gigantesca franquia
Jurassic World, inaugurada em 2015 (como derivado nostálgico da franquia Jurassic Park dos
anos 1990), permanecem estagnadas e inflexíveis nas suas representações de animais extintos.
De fato, suas criaturas computadorizadas frequentemente possuem designs retrógrados, e
exibem comportamentos carregados de estereótipos que já deviam, há muito tempo, terem sido
retirados da visão do público, a bem do interesse científico.
O sucesso estrondoso de Jurassic Park em 1993 foi, talvez, a maior força responsável pela
mudança de paradigma no modo como o público enxerga esses grandes animais. Como
argumentado anteriormente, ao longo dos últimos anos, essa mesma visão se estagnou. A falta
de outra produção focada em precisão científica levou a uma resistência do público quanto a
novas visões paleontológicas, renovando, portanto, a falta de interesse popular na
paleontologia, de forma semelhante ao que houve na década de 1920.
Em 2015, o filme Jurassic World, dirigido por Colin Trevorrow (1976 -) foi lançado. Ele
continua a saga do primeiro filme – cujas sequências, Jurassic Park: The Lost World, 1997, e
Jurassic Park III, 2001, haviam sido descontinuadas catorze anos antes. Com uma pausa tão
grande entre a franquia original e seu revival, Jurassic World teria sido a oportunidade perfeita
para apresentar novos conceitos científicos às massas, como o primeiro filme havia feito.
Porém, infelizmente, esse não foi o caso. Os designs das criaturas permaneceram os mesmos –
e alguns deles chegaram até mesmo a regredir, sendo mais semelhantes a representações
anteriores à década de 1970. Tal descaso continua e se aprofunda a cada filme subsequente:
dinossauros e pterossauros voltam a ser representados como animais ferozes e estúpidos,
sempre em busca de uma nova refeição. A falta de inovação calcada em pesquisas
paleontológicas sérias leva a uma falta de interesse científico do público, o que, por sua vez,
resulta em severa falta de fundos para área paleontológica, e, portanto, na perda de espécimes
extremamente importantes.
Figura 13: Ilustração de um Velociraptor perseguindo mamíferos do gênero Zalambdalestes, por Mark P. Witton (2020,
retirado de e originalmente publicado em markwitton-com.blogspot.com/2020/03/realistic-raptors-pop-culture.html).
Figura 14: Tomada do filme Jurassic World, 2015. Os animais retratados são, teoricamente, Velociraptor, mas em nada se
assemelham ao que foi descoberto sobre a espécie na época do lançamento.
Basta fazer uma breve análise de comentários em redes sociais para perceber que a opinião
pública geral é de que filmes são meras obras de ficção e que eles não afetam quem os vê de
forma significativa, ou de que seu impacto social é mínimo diante da rotina diária. Mas é apenas
necessário ver outros longas metragens por Spielberg, para perceber que isso não é verdade.
Assim como Jurassic Park mudou a percepção pública em relação a dinossauros, nos anos
1990, dezoito anos antes, Tubarão, também dirigido por Spielberg, havia sido responsável por
uma mudança significativa na percepção geral no que diz respeito aos tubarões – gerando, de
fato, uma onda de pânico que persiste até hoje. Atualmente, uma quantidade considerável de
espécies de tubarão conhecidas está ameaçadas de extinção, em grande medida devido ao medo
causado pelo filme, que retrata o tubarão do título como um monstro assassino e voraz.
Tubarões são, na verdade, uma parte muito importante do ecossistema marinho, e foi necessário
apenas um filme para que essa corrente delicada fosse severamente danificada.
Também é importante que haja novas visões científicas, atualizadas, no cinema por mais um
motivo. Com Jurassic World sendo apenas um dentre diversos exemplos, é notável como
cientistas são, frequentemente, retratados como os vilões de histórias similares. A ignorância
científica do público tem consequências drásticas, pois a vilificação dos pesquisadores fictícios
acaba sendo transposta para os cientistas reais. Com isso, a resistência a eixos importantíssimos
da sociedade, como vacinas, se torna algo, infelizmente, bastante comum.
Assim sendo, é importante que existam obras que reflitam os valores científicos atuais.
Bibliografia
CRICHTON, Michael, Jurassic Park. 2. Ed. Estados Unidos: Ballantine Books, 1991. 400 p.
DOYLE, Arthur Conan, O Mundo Perdido. 1. Ed. Reino Unido: Hodder & Stoutghton, 1912.
352 p.
FERRETI, F., et al., Decline of coastal apex shark populations over the past half century.
Communications Biology, 2018.
GOULD, Stephen Jay, Dinossauro no palheiro: reflexões sobre história natural. 1. Ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. 546 p.
VERNE, Jules, A Journey to the Center of the Earth.. 3. Ed. França: Pierre-Jules Hetzel, 1871.
180 p.
WHITE, Steve, Dinosaur Art – The World’s Greatest Paleoart. 1. Ed. Reino Unido: Titan
Books, 2012. 188 p.
WITTON, Mark Paul, The Palaeoartist’s Handbook. 1. Ed. Wiltshire: Crowood, 2018. 224 p.
Filmografia
THE LOST WORLD. Direção: Harry O. Hoyt. Produção de First National Pictures. Estados
Unidos: First National Pictures, 1925.
The Shark in Jaws Did Nothing Wrong – An Ecological Video Essay. 1 vídeo (37 min).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CqykkfT8NlM
Resumo:
O uso de dispositivos tecnológicos por educadores/as de artes visuais em instituições de
ensino formal, tais como: computadores/notebooks, projetores, celulares e caixas de som, é
o principal foco desta investigação para conclusão do curso de Graduação em Artes Visuais
- Licenciatura, da Universidade Federal de Pernambuco. É uma pesquisa narrativa que tem
os seguintes objetivos: 1) discutir a relação entre arte e tecnologia, entendendo a docência
em artes visuais por meio das experiências vividas no campo profissional e; 2) refletir sobre
minhas práticas docentes durante os estágios curriculares obrigatórios. Como compreendo o
uso de dispositivos tecnológicos em minhas experiências como professora de Artes Visuais?
Como o desenvolvimento deste assunto contribui para o campo da formação docente?
Abstract:
The use of technological devices by visual arts educators in formal educational institutions,
such as computers/laptops, projectors, mobile phones and speakers, is the main focus of this
investigation for the conclusion of the Undergraduate Course in Visual Arts - Bachelor's
Degree, from the Federal University of Pernambuco. It is an autobiographical research that
has the following objectives: 1) to discuss the relationship between art and technology,
understanding teaching in visual arts through experiences in the professional field and; 2) to
reflect on my teaching practices during mandatory curricular internships. How do I
understand the use of technological devices in my experiences as a Visual Arts teacher?
How does the development of this subject contribute to the field of teacher training?
1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Artes Visuais -
Licenciatura - da Universidade Federal de Pernambuco, em 2021. Foi defendido dia 21/12/2021
perante banca composta pela Profª Drª Luciana Borre (orientadora), Profº Augusto Barros e Profª Drª
Maria Betânia e Silva.
1
INTRODUÇÃO
Em 1831 o físico e pintor francês Louis Daguerre descobriu que com uma
câmara escura a imagem poderia ser capturada e reproduzida2. A máquina
fotográfica ficou inicialmente conhecida como “daguerreótipo” em homenagem ao
criador. Já em 1832, Joseph Plateau descobriu os princípios de recomposição do
movimento a partir de uma série de imagens, passou então a desenvolver um
método para decompor o movimento. Com os avanços de pesquisas sobre as
fotografias em 1895 foi possível o surgimento dos filmes.
No início dos anos 2000, quando pequena, a fotografia ganhou destaque em
minha trajetória quando era apenas eu e minha mãe. Ela não podia estar presente
como gostaria em boa parte da minha infância/adolescência devido ao trabalho. Em
meus aniversários, sempre que podia ela deixava um bolinho pronto com um bilhete
carinhoso me desejando felicidades e que, em breve, estaríamos juntas. Ela
organizava com os familiares e vizinhos para cantar o parabéns e sempre exigia
uma foto com câmeras analógicas e rolos de filmes que demandavam um tempo
para ver o resultado dos momentos e para compartilhar.
O telefone foi derivado de um acidente na noite de 2 de junho de 1875, pelo
imigrante escocês que morava nos Estados Unidos e professor Alexander Graham
Bell, fazendo experiências com um telégrafo harmônico quando seu ajudante
Thomas Watson puxou a corda do transmissor e emitiu um som diferente. Apenas
em 1876 foi feita a primeira transmissão elétrica da mensagem completa pelo
aparelho recém inventado. “Doutor Watson, preciso do senhor aqui imediatamente”,
foi a primeira mensagem pelo equipamento. Com o aprofundamento das pesquisas
e experimentos a partir de 1920 foi possível transmitir a voz entre grandes
distâncias.
Em 2009 minha mãe viajou a trabalho para Campinas - São Paulo, na
expectativa de ficar um ano fora para um treinamento de trabalho e voltar depois.
Eu, com 11 anos, fiquei sob responsabilidade de meu tio e sua família. Os contatos
com minha mãe ficaram limitados a ligações interestaduais que na época custavam
2
As informações sobre todos estes avanços tecnológicos foram encontradas no site
do museu da computação de São Paulo.
Diga X: uma breve história da fotografia. Universidade Tuiuti do Paraná. Disponível
em: https://www.tuiuti.edu.br/blog-tuiuti/diga-x-uma-breve-historia-da-fotografia
Acesso em: 20 de novembro de 2021.
2
muito caro, mas era o momento que tínhamos para conversar e ficar, na medida do
possível, perto uma da outra.
Houve a primeira transmissão televisionada apenas em 1935 da Torre Eiffel,
e no ano de 1939 nos Estados Unidos. Em 1945, a BBC Inglaterra inaugurou a
televisão, produzindo-a em massa. Ao final dos anos 40 a TV já estava disponível no
âmbito comercial. O vídeo surgiu em 1956, revolucionando a indústria midiática e
tornando possível a gravação de programas de televisão.
Na copa de 2006 tivemos condições de ter uma televisão e assistimos aos
jogos, uma situação em que era raro juntar os familiares e curtir um momento de
alegria com chuva de pipocas nas vitórias. Minha mãe e eu estávamos juntas, em
cumplicidade.
O primeiro computador digital eletrônico de grande escala foi construído em
1945, chamado de ENIAC, funcionou por dez anos, focado em computar trajetórias
táticas para auxiliar na Segunda Guerra mundial. Um dos primeiros computadores
pessoais foram lançados há cerca de 26 anos após o Kenbak-1 em 1971, foi um
fracasso comercial e levou a empresa à falência.
Pouco depois a Marinha Brasileira solicitou um computador buscando o
avanço tecnológico das suas fragatas e abriu concorrência pública (concurso). Uma
turma da Universidade de São Paulo (USP) chamado "Cisne Branco” que logo teve
disputa com turma da Universidade de Campinas (Unicamp), com o
desenvolvimento do projeto chamado “Patinho Feio”. Essa situação se tornou um
marco fundamental para o país com o primeiro computador projetado e construído
no Brasil.
Ainda criança tive acesso ao computador e isso era um dos passatempos que
mais gostava, adorava jogar os joguinhos que vinham instalados e, principalmente,
desenhar, pintar no Paint, salvar e trocar o fundo de tela do computador. Mas havia
muitas dificuldades, pois o acesso à internet ainda não era muito facilitado e exigia
um modem e discagem, trâmites que preferia evitar.
Posteriormente, na pré-adolescência precisei me mudar para o estado de São
Paulo para ficar com minha mãe. Não tive muito sucesso com amizades, mas
mantinha contatos via redes sociais no computador, tais como MSN, Orkut entre
outros com os amigos que estavam em Recife. Foram três anos difíceis para uma
pré-adolescente negra, nordestina, menina e LGBTQIA+. De volta a Recife, já na
adolescência, iniciei o ensino médio e, com o tempo, desenhar se tornou um meio
3
de ter retornos financeiros, como desenhar em cadernos e vender, desenhar
camisas de terceiro ano para a formatura e etc.
As informações sobre todos estes avanços tecnológicos são facilmente
encontradas no site do museu da computação de São Paulo, no artigo “Diga X: uma
breve história da fotografia” disponível no site da Universidade Tuiuti do Paraná e
entre outros sites com informações da área. Além disso, as nossas relações com
estes artefatos podem ser relatadas no dia a dia por qualquer sujeito consumidor.
Para mim, é fascinante, pois a influência de cada um desses dispositivos me fez
criar um vínculo onde, de certa forma, me auxiliou a interagir com a arte e me
proporcionou encontrar a ferramenta de criação com a qual me identifico. Mas,
agora que estou prestes a concluir a Graduação em Artes Visuais, busco relacionar
meu fascínio aos dispositivos tecnológicos às práticas profissionais que tenho
exercido e com as quais ainda trabalharei. Diante disso, pergunto: como
compreendo o uso de dispositivos tecnológicos em minhas experiências como
professora de Artes Visuais? Como o desenvolvimento deste assunto contribui para
o campo da formação docente?
O uso de dispositivos tecnológicos por educadoras/es de artes visuais em
instituições de ensino formal e não formal, tais como: computadores/notebooks,
projetores, celulares e caixas de som, é o principal foco desta investigação para
conclusão do curso de Graduação em Artes Visuais - Licenciatura, da Universidade
Federal de Pernambuco. É uma pesquisa autobiográfica que tem os seguintes
objetivos: 1) discutir a relação entre arte e tecnologia, entendendo a docência em
artes visuais por meio das experiências vividas no campo profissional e; 2) refletir
sobre minhas práticas docentes durante os estágios curriculares obrigatórios, na
educação formal e não formal.
4
curiosidade para explorar ferramentas tecnológicas para a abordagem pedagógica,
tendo em vista que a utilização de equipamentos eletrônicos não é, pessoalmente,
uma novidade. Surgiu o desejo de atrelar as habilidades existentes com ações
pedagógicas.
Ao preparar o plano da primeira aula para turma de 6° ano do Ensino
Fundamental no Colégio de Aplicação - UFPE (CAP), com base no período de
observação, efetuei uma ação pedagógica com o uso de cartolinas, canetas e giz de
cera sob orientação da professora titular. Porém, senti que existia algo que não
estava encaixado, foi uma situação com a qual não me identifiquei. Imagino que esta
não identificação estava atrelada ao fato de que tenho propriedade com o uso de
ferramentas tecnológicas que poderiam contribuir muito mais com aquela ação.
Essa situação instigou meu interesse pela experimentação de metodologias
de ensino com a leitura do pedagogo e filósofo, John Dewey, em seu livro intitulado
“A arte como experiência” (2010), e me chamou atenção de que “a experiência
ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais
está envolvida no próprio processo de viver" (DEWEY, 2010, p. 109).
Contudo, como se trata de uma proposta de experiência um tanto quanto
sensorial, fez-se necessário abordar a descrição dada por Dewey sobre sentido e o
seu entorno:
O “sentido” abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o
sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, junto ao sensual.
Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o sentido
em si - ou seja, o significado das coisas presentes na experiência
imediata” (DEWEY, 2010, p. 88).
7
11).
3
As causas da evasão e abandono escolar. Gesta. Disponível em:
http://gesta.org.br/tema/engajamento-escolar/#fatores. Acesso em 21 de setembro de 2021.
4
Quase 40% dos alunos de escolas públicas não têm computador ou tablet em casa, aponta
estudo. G1, 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/09/quase-40percent-dos-alunos-de-escolas-publicas-
nao-tem-computador-ou-tablet-em-casa-aponta-estudo.ghtml
> Acesso em 21 de setembro de 2021.
8
Figura 1: Infográfico mostra o que os professores pensam sobre a ausência de formação
para uso do computador e da internet nas aulas — Foto: Infografia: G1
9
Figura 2: Infográfico mostra disponibilidade de computador no domicílio, em porcentagem,
segundo a pesquisa TIC Educação. — Foto: Infografia/G1
5
Quase 40% dos alunos de escolas públicas não têm computador ou tablet em casa, aponta
estudo. G1, 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/09/quase-40percent-dos-alunos-de-escolas-publicas-
nao-tem-computador-ou-tablet-em-casa-aponta-estudo.ghtml
> Acesso em 21 de setembro de 2021.
10
móveis e auxílio financeiro para compra de dispositivos. Diante de todos os dados
apresentados, é possível prever os próximos desafios da educação. É muito
provável que encontremos em uma mesma sala de aula dois principais perfis de
alunos/as: os que não se adaptaram pela falta de equipamento e os que tiveram
acesso proporcionando a continuidade da formação educacional.
Todas essas informações impactaram os próximos estágios que eu
desenvolveria. Durante a formação na graduação em Artes Visuais foram exploradas
formas de lidar com vários tipos de dificuldades para lecionar. No entanto, a situação
pandêmica deixou todos as/os licenciandas/os com inúmeras dúvidas e anseios.
Diante disso, o próximo subitem deste artigo tratará sobre minhas
experiências nos estágios curriculares obrigatórios não formais em meio a ações de
enfrentamento a pandemia COVID 19. Além disso, aprofundarei os relatos e
reflexões acerca dos estágios curriculares obrigatórios na educação formal.
11
2015) da Disney como recurso didático junto a um cabo auxiliar, de uso pessoal, e
do datashow disponibilizado pelo colégio para desenvolver as dinâmicas em sala de
aula, iniciando o primeiro momento da aula prática. Dentre as dinâmicas
trabalhamos uma breve oficina de animação flip (usando retalho de papel e um
lápis) filmando o resultado dos desenhos e passando na tela para os estudantes.
Sendo assim, foi possível explorar o que tínhamos em mãos, com o objetivo de
ampliar e transformar a sala de aula em um estúdio de criação.
Com a aproximação do fim do semestre as aulas ficaram mais flexíveis e
pude conversar com os/as alunos/as para escolher o assunto de interesse para uma
aula "livre". Isso possibilitou a vivência do desenho de modelo vivo com colegas
posando e uma playlist colaborativa. Na hora do compartilhamento dos desenhos e
dúvidas dos/as alunos/as sobre como seria usado o modelo vivo por um artista de
“verdade”, usei o celular e o aplicativo Google Arte & Culture, selecionando a opção
da exposição em realidade aumentada. Fizemos uma breve visita a obras famosas
se movendo pela sala com o cabo do celular ligado ao projetor.
Foi possível fazer uma aula "mágica", trazendo materiais extras e sendo
possível ampliar trabalhos feitos na hora apenas abrindo a câmera do celular e
transmitindo a tela pelo datashow.
12
Figura 3: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 1. Arquivo pessoal.
13
Figura 4: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 1. Arquivo pessoal.
14
O segundo estágio no EREM Silva Jardim foi completamente diferente do que
no CAp, Colégio de Aplicação. Começando pela faixa de idade, pois eram apenas
alunos/as do ensino médio. O ambiente escolar, no geral, muito acolhedor com
muitas amostras e expressões artísticas espalhadas de várias maneiras no colégio,
grupos de danças e desenhos dos discentes nas paredes são os que mais se
destacaram visualmente. Com as observações foi possível perceber que políticas de
inclusão para pessoas LGBTQIA+ foram implementadas em banheiros, expressões
artísticas, pronomes neutros, entre outros meios cabíveis a escola.
Em sala, ficou visível o déficit dos estudantes diante dos conteúdos
abordados na disciplina de Artes e a notável forma como os estudantes tomavam
conta da aula. Em um dos momentos de observação presenciei muita dispersão. Em
outro momento, tivemos a apresentação de trabalhos dos/as alunos/as sobre gênero
de filmes onde tínhamos em sala o material de apresentação (projetor e caixa de
som bluetooth) o qual foi usado para ver o material. Neste dia, antes da finalização
da explicação da professora, os/as alunos/as tomaram posse do equipamento e
colocaram suas músicas, ignorando totalmente a finalização da aula. Por sua vez, a
professora não fez nada e nos comunicou que era sempre assim, pois ela não sabia
mexer nos equipamentos.
Ao iniciar a primeira semana de regência o grupo de alunos/as de todas as
nossas turmas aumentaram. Descobrimos que todos os estudantes estavam indo à
aula com interesse nas nossas dinâmicas (o que nos fez pensar que antes apenas
uma parcela não frequentava as aulas). Com o andamento dos encontros, nos
deparamos com algo que estava fora do nosso alcance: alunos/as/as que invadiam
a sala para questionar sexualidade, pedir número de telefone, apresentar interesses
amorosos, chegaram ao ponto de encontrar redes sociais e convidar para sair. Uma
situação caótica e intimidante que foi solucionada apenas com um tempo após uma
chamada nas turmas para uma conversa séria sobre o quanto isso era incômodo.
Tal transtorno limitou a exploração do uso das tecnologias nas aulas de Artes
Visuais.
No fim do ano, com a turma do 3º ano do ensino médio e a chegada do
Exame Nacional do Ensino Médio, a professora regente nos solicitou uma atividade
de revisão. Com isto em mente desenvolvi um Quiz, jogo de perguntas e respostas,
sobre história da arte com o foco em desenvolver uma atividade lúdica de revisão
para uma turma já cansada de frequentar a escola e ansiosa com o ENEM. Os/As
15
alunos/as teriam como ferramentas qualquer tipo de consulta (incluindo celulares) e
em grupo de até 5 pessoas. Esta turma tinha um perfil de agitação (brincadeiras,
som alto, dançar etc.) e fiquei com receio de que a maioria não aderisse à dinâmica.
Com a sala separada em grupo de cadeiras, apresentação de perguntas
prontas no quadro com auxílio do projetor e assim demos início à revisão. No geral,
o feedback que estávamos tendo das turmas era positivo. À medida em que as aulas
iam passando, tínhamos cada vez mais certeza de uma coisa, não íamos atingir o
interesse de todos, mas fizemos o possível para ajudar.
16
Os estágios 3 e 4 foram realizados na educação não formal, especificamente
no Grupo Risco! Vale destacar que o período de realização das ações aconteceu
concomitante às medidas de enfrentamento à pandemia COVID-19, estes estágios
foram realizados de maneira remota.
O Grupo RISCO! surgiu como um grupo de estudos na Faculdade AESO em
2013, onde Bruna Ferrer estudou e co-criou o projeto, formado por diversos agentes
culturais (principalmente desenhistas e artistas do corpo) é um projeto independente
de cunho artístico focado na prática criativa de modelo vivo. É um trabalho que tem
como essência a experimentação do modelo e suas possibilidades, ultrapassando a
tradição acadêmica trazendo a interlocução entre múltiplas linguagens (audiovisual,
corporal, musical, editoriais, gráficas etc).
Minhas atribuições nesses estágios foram: para o estágio 3 fiquei responsável
por organizar, divulgar e mediar as sessões de modelo-vídeo, para o estágio 4 tive o
desafio de organizar e mediar uma exposição guiada pelo site do Risco! para turmas
de escolas públicas de Pernambuco.
Fazer o estágio no Risco! foi interessante, o projeto em si tem base sólida
para atuar no virtual, mas não se compara a experiência presencial, pois existia toda
a estrutura para o projeto acontecer por meio de plataformas de vídeo chamada.
O estágio 3, com foco em realizar as mediações das sessões, entrava em
contato com uma lista já existente de possíveis modelos-vivos, fazia o teste de
câmeras, a playlist, realizava a mediação explicando como seria a sessão. No ponto
de vista técnico nada muito trabalhoso, mas isso produzia um resultado fantástico. A
troca de experiência de cada desenhista ocorre mediante a exploração do corpo
alheio via vídeo chamada. Assim como o pensamento do escritor John Dewey
(2010) também acredito que nós aprendemos quando compartilhamos experiências
em conjunto.
17
Figura 6: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 3. Arquivo pessoal.
18
produzidos com o diretor Leonardo Lacca. A sessão foi realizada com apenas uma
pose, porém com duas câmeras e inúmeros ângulos para aqueles que estavam
apenas desenhando. Sem ver os bastidores da ação em loco não poderíamos
imaginar como seria o resultado.
A live de lançamento da animação contou com alguns dos mais de 80
desenhistas, a equipe da produção e convidados. A experiência de assistir a
produção pronta foi inesquecível, pois a forma como os idealizadores do projeto
expandiram a essência do Grupo Risco! para uma produção cinematográfica em
meio a um tempo de caos.
No Estágio 4 nosso público da exposição virtual, localizada no site do Risco!,
foram turmas escolares de Pernambuco. Tivemos apoio de representantes da Rede
Estadual de Professores. Entramos como convidados nas aulas para desenvolver a
mediação, as quais foram feitas via Google Meet. As professoras estavam sempre
muito animadas e os/as alunos/as tímidos, sendo desafiante proporcionar interação.
Confesso que na minha primeira mediação gerei uma expectativa alta e uma
ansiedade se alastrou por mim. Por isso, não foi tão boa como deveria ter sido, mas
foi ótimo para aprender como organizar o tempo, material da exposição e entender
na prática como fazer a interação e cativar os/as alunos/as.
Alguns pontos precisam ser mencionados, pois o que estamos vivendo agora
durante a pandemia não foi opcional, muito menos premeditado. Diante disso, ficou
evidente o quanto temos déficit na área de tecnologia na educação, conexão à
internet muitas vezes falhas dos/as alunos/as e professoras que por várias vezes
saíam e voltavam, instabilidade de conexão gerando travamentos de áudio e vídeo,
déficit de equipamentos, entre outros. Fazer a mediação virtual foi uma experiência
nova que tem seu potencial, mas não diminui a importância da experiência
presencial. O formato online nos deu a oportunidade de ocupar espaços que
presencialmente não teríamos tanta facilidade, como por exemplo, uma das turmas
que ficava localizada no interior do estado.
Particularmente tenho interesse nessa mescla da educação artista com
dispositivos eletrônicos e o que podemos fazer com isso. Também me interessa o
planejamento das atividades e pensar soluções palpáveis para trabalhar em
condições difíceis. Trabalhar nesse estágio com o desafio de apresentar o Grupo
Risco! para pessoas que não estão no meio artístico ou que sequer ouviram falar
sobre modelo vivo performático e experimental, foi animador.
19
Os resultados trocados entre todas as equipes foi uma experiência incrível
entre os estagiários. Fiquei muito feliz que apesar dos pesares ainda conseguimos
resistir e mesmo com o tempo corrido e vários percalços conseguimos concluir com
louvor o estágio.
Algumas coisas que extrapolaram o controle foi que, por mais que estávamos
interagindo e a conversa estava bem engajada com os/as alunos/as, o nosso
principal canal de conversar foi pelo chat de forma escrita e por microfone. Ao
questionar sobre o uso da câmera, uma aluna se prontificou em dizer que não se
sentia confortável para aparecer, o que foi acolhido no chat e por voz por outros/as
alunos/as.
De modo geral foi gratificante participar desse “projeto piloto” mesmo que com
poucos desenhos sendo compartilhados levo em consideração que foram os
primeiros contatos dos/as alunos/as com uma experiência de desenho com modelo
vivo, música ambiente e sem “regras” de desenho a ser seguida.
A busca por referências no meio tecnológico dedicado à educação que estão
sendo desenvolvidas atualmente, como as formas criativas da didática da LEGO
House, a Apple Education, o Google Education, o Microsof Education entre muitos
outros meios. Com o domínio daquilo que temos em mãos abre uma gama de
possibilidades. E ainda, instigar a curiosidade, a imaginação, a inspiração. Foram
os pilares do método que busco aplicar na minha forma de lecionar. Com tudo isso,
20
concordo com Ana Mae (2006, p. 110) que:
A tecnologia vem sendo comemorada como a grande revolução de
nosso tempo, contudo tem sido estudada quase somente como
princípio operacional. O que parece interessar é principalmente como
funciona a máquina, gerando uma relação de consumo em que o
indivíduo é dominado pela dinâmica instrumental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estágios proporcionaram o meu reconhecimento e identificação como
arte-educadora. Foram nestas oportunidades que vislumbrei meu potencial no
campo das tecnologias como recursos pedagógicos para as aulas de Artes Visuais.
Também percebi isso em uma de minhas experiências recentes em meio à
pandemia, quando participei de entrevistas de empregos em três instituições de
ensino. No ato da entrevista foi solicitado o domínio de tecnologias digitais
educativas e equipamentos como um diferencial para a contratação. Como já
apresentado anteriormente, existe um déficit desse conhecimento voltado para
formação de professores, de modo geral.
Para aqueles que estão em formação atualmente e estarão no mercado de
trabalho a tempo de sofrer com o efeito dominó da pandemia e a inserção de
tecnologias, penso que as palavras de Ana Mae (2006, p. 109) serão pertinentes:
“temos ainda um longo percurso para fazer as tecnologias contemporâneas
trabalharem mais eficientemente em favor da educação”.
REFERÊNCIAS:
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34,
1999.
21
OLIVEIRA, Erika Patricia Teixeira. Arte.com: reflexões sobre o ensino de artes
visuais e a utilização das tecnologias contemporâneas. Monografia (Licenciatura
em Arte e Educação) – Programa Especial de Formação Pedagógica de Docentes
em Arte e Educação, Faculdade Integrada da Grande Fortaleza, Fortaleza, 2013.
22
Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado à
Coordenação do Curso de
Licenciatura em Artes Visuais
do Departamento de Artes da
Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE, como
requisito parcial para
obtenção do título de
Licenciado em Artes Visuais.
Orientador: Prof. Eduardo
Romero Lopes Barbosa
Resumo
Este livro de artista serve de apoio teórico para o curta-metragem “ Por uma estética Mutualista”, que será apresentado como meu
Trabalho de conclusão de curso. Apresentam-se aqui, os processos vivenciados na criação do projeto de capoeira Palmares Resiste e
da PDU Crew e seus desdobramentos na ocupação do centro de artes e comunicação (CAC), onde se atrelou a capoeira/Graffiti a arte
relacional como processo de pesquisa artográfico. Este trabalho, pesquisa como a arte relacional, dentro do grupo palmares
resiste e da PDU Creew contribuiu na ampliação da consciência e "instiga" necessária para lutar com seus corpos contra o sistema
vigente em suas múltiplas formas, tendo no fazer artístico uma relação vital entre arte e política.
Filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pglt8CAIvYM
Palavras chave: Arte Relacional, Capoeira, Graffiti, política
Resumen
Este libro de artista sirve de soporte teórico al cortometraje “Por una estética mutualista. Se presentan aquí, los procesos
vivenciados en la creación del proyecto de capoeira Palmares Resiste, y PDU Crew y su relaccion con la ocupación del centro de
artes y comunicación (CAC), donde se ató la capoeira / Graffiti el arte relacional, como proceso de investigación artográfico. Este
trabajo, investiga como el arte relacional, dentro del grupo palmares resiste y de la PDU Creew, contribuyó para la amplificación
de la conciencia y "instiga" necesaria para luchar con sus cuerpos contra el sistema vigente en sus múltiples formas, teniendo en el
hacer artístico una relación vital entre arte y política. Pelícola disponible en este sítio: https://www.youtube.com/watch?
v=Pglt8CAIvYM
Palabras Clave: Arte Relacional, Capoeira, Graffiti, Política
SUMÁRIO
Módulo 1 Caminhada
1.1 pesquisa
1.2 Docência
1.3 arte relacional
1.5 Por uma estética
Mutualista
Módulo 2- Palmares resiste
2.1 Projeto no CAC
2.2 Projeto palmares Resiste
na comunidade da Brasilit
2.3 Metodologia artográica
2.4 Considerações finais
Módulo 3- Memórias de uma
ocupaçao
3.1 Arte Relacional e
Graffiti
3.2 Ataque à fachada
3.3 Arte política de
ataquea propriedade privada
3.4 Memórias de uma ocupação
3.5 Graffiti e as ocupações
4 Conclusão
Pesquisa
Em meus primeiros anos na Academia, achava muito difícil conciliar meu fazer artístico com meu fazer acadêmico, principalmente me adequar às regras tradicionais da ABNT para falar sobre Arte
Relacional, foco de minhas pesquisas. Foi em uma aula de profa. Luciana Borre que conheci a metodologia de pesquisa conhecida como A/r/tografia.
A a/r/tografia é uma forma de ABER sistematizada por Rita Irwin em 2004. É uma pesquisa baseada nas artes que tem como influencia os fundamentos filosóficos do pensamento de Aristóteles, que sao eles:
saber (teoria), fazer (práxis) e poética (poesis) “(Irwin, 2004: 27). Ela traz estes elementos para o campo da pesquisa educacional (ver Dewey, 1934) e expande a pesquisa baseada em artes (ver Eisner, 1979,
1991, Barone & Eisner, 1997) para considerar a metodologia da a/r/tografia para artistas, pesquisadores e professores como uma pesquisa viva. Sobre a nomeclatura, A/R/t/ significam, Artist,
(artista),Researcher (PESQUISADOR),Teacher (PROFESSOR), já a palavra Grafia significa : ESCRITA/REPRESENTAÇÃO .
Dias ( 2013) discursa sobre a inadequação, distanciamento e deslocamento entre a escrita acadêmica e a produção artística, que provocam dificuldades e conflitos entre o corpo discente e docente e
comprometem a qualidade das pesquisas. Também nos alerta sobre a emergência de metodologias e pedagogias que buscam aproximação entre fazer artístico e acadêmico, para desenvolver novas formas de
conhecimento e diminuir os atuais conflitos curriculares.
Ao me deparar com os pensamentos de Belidson Dias, a A/r/tografia me pareceu a melhor opção como pesquisador para registrar o meu acúmulo de conhecimento na área das Artes Visuais.
Sempre me senti dividido, e meu trabalho artístico sempre esteve desvinculado com meu trabalho acadêmico, eram produções totalmente diferentes.
Através do livro de Belidson Dias e Irwin “Pesquisa Educacional Baseada Em Arte: A/r/tografia”(2013), fiquei entusiasmado com as possibilidades de pensar o ser artista/professor/pesquisador.
Parece epifania, pois tudo se relaciona na sua cabeça e você consegue conectar todos os pontos, as teias, como um mapa mental, agora tudo está conectado, foi dado nome aos bois, entendido como um fazer
unificado, onde a Arte não se separa da Vida , e o professor não se separa do artista, que também não se separa do pesquisador.
Deixo como desafio futuro, poder abordar a questão da performance/artista/ pesquisador, pois no campo da Arte Relacional , a Arte se relaciona com a vida e tudo vira uma performance.
Nardim (2014) afirma que o acrônimo A/R/T, fundamenta essa abordagem e propõe como exercício inicial a substituição da letra A, que corresponde ao Artista (visual), pela letra P, de Performer, que
resulta em P/R/T ou, em português, PPP – que, por sua vez, propõe a Pppgrafia. Neste sentido, qual será a natureza do performer-pesquisador-professor, o que é preciso para que ele emerja e como poderá
ele operar?
Para que a práticas dos Performers/pesquisadores/ professores possam aproximar-se da A/r/tografia, assumindo assim como ela, seu espaço na academia contemporânea, talvez caiba elaborar formas de
escrita condizentes com sua matéria, “[...] uma escrita performativa como uma estratégia de representação poética, que tem uma vez mais transformado aquilo que entendemos e desenvolvemos como
performance” (PINEAU, 2010, p. 90).
Docência
No meu caminho de formação enquanto, artista, professor e pesquisador, encontrei certas linhas de raciocínio que me guiam, são para mim princípios, ou seja, o que serve de base
para alguma causa, raiz ou razão.
Me encontro, no que diz respeito ao campo da docência, alinhado com as idéias de Paulo Freire em relação a Educação Libertadora.
“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.” (FREIRE,
1983b, p. 104).
A pedagogia construtivista de Paulo Freire mudou a forma de pensar o ensino no Brasil em todas as áreas do conhecimento, e na Arte não poderia ser diferente, inclusive, a meu ver,
é nela que se encontra sua maior potencialidade. Podemos começar falando de Ana Mae Barbosa, que foi aluna de Freire e foi fortemente influenciada por ele, inclusive no
desenvolvimento da famosa Abordagem Triangular, que consiste no aprendizado de três pilares: Leitura de imagens, fazer artístico e contextualizaçao (histórica,antropológica,
psicológica, social). Nesta obra em questão, o foco é apresentar a potência da educação como práxis no campo da Arte Revolucionária.
Em sua obra Pedagogia da Esperança, Paulo Freire (1997), discursa que a Educação tem que estar aliada à transformação social, pois a aprendizagem está diretamente relacionada à
práxis, pois o indivíduo oprimido ter consciência de sua opressão não o liberta, ele precisa se engajar na luta política e intervir na realidade para tentar mudá-la. Outro fator
importante abordado em sua obra Pedagogia do Oprimido (1981), é pensar que a Educação não se faz somente na escola e que as diversas relações dos seres humanos entre si e o meio
também são processos educativos.
Neste sentido, muitos artistas da pós-modernidade tratam a performance de rua como um processo educativo no qual o performer educa o público e se educa ao mesmo tempo, num
instante onde corpos estão se educando no mesmo espaço. André Mesquita discorre sobre sobre a educação do corpo quando participa de uma ação direta no livro A batalha do
Vivo: “A única estratégia para confrontar a polícia e ocupar um espaço é o próprio corpo. E aí você descobre que seu corpo pode fazer muito mais do que você imagina. Fazer uma
ação direta nada mais é do que dar corpo ao sentimento e isso tem uma transformação brutal, é por isso que o corpo já não é mais aquele” (2016, p. 65).
arte relacional
No que diz respeito ao campo da Arte, direciono minhas práticas ao campo da Arte Relacional engajada.
O que chamamos de arte relacional, é uma corrente artística que começa nos anos 90 e se caracteriza por dar uma maior importância às relações que se estabelecem entre e com os sujeitos a quem se dirige a
dinâmica artística que ao objeto artístico em si. O Termo " Relacional " surge por causa do livro lançado pelo curador Nicolas Bourriaud em 1998, A estética Relacional (Esthétique relationnelle) , onde
ele sistematizou praticas artística similarres que vinham acontecentdo na década de 90.
É uma arte conceitual, onde o grande objeto de estudo são as relações pessoais construídas a partir da produção artística. O objeto final ou os objetos usados durante a obra não são de grande
importância, o valor da obra está no processo.
“Nas exposições internacionais, vemos uma quantidade crescente de estandes que oferecem vários serviços, obras que propõem ao observador um contrato específico, modelos de socialidade mais ou menos
concretos. A "participação" do espectador, teorizada pelos happenings e pelas performances Fluxus, tornou-se uma constante na prática artística.[...] esses elementos apenas corroboram uma evolução que
ultrapassa largamente o domínio exclusivo da arte: é no conjunto dos vetores de comunicação que o grau de interatividade é ampliado. Por outro lado, o surgimento de novas técnicas, como a internet e a
multimídia, indica um desejo coletivo de criar novos espaços de convívio e de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural: assim, à "sociedade do espetáculo" se seguiria a sociedade dos
figurantes, na qual cada um encontraria, em canais de comunicação mais ou menos truncados, a ilusão de uma democracia interativa…"( BOURRIAUD, 1998 , pg.12)
Para mim é muito importante pesquisar que tipo de encontros estamos proporcionando, pois as relações pessoais geralmente criadas pela nossa sociedade são políticas, estéticas e pré-fabricadas, como
afirma Guy Debord (1931 - 1994) em A Sociedade do Espetáculo (1967). Prefiro criar experiencias relacionais que sirvam como macro e micro políticas ao mesmo tempo, já que são indissociáveis uma da outra.
Gilles Deleuze (1925 - 1995) salienta que apesar de serem conceitos distintos macropolítica e micropolítica pertencem ao mesmo conjunto, ou seja, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo
macropolítica e micropolítica (1996).
Segundo Guy Debord (1967) o espetáculo não é um acúmulo de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizadas por imagens.
"O espetáculo é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente [...] ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e no seu corolário - o consumo."
Debord nos lembra que os projetos de espaços relacionais e a construção das cidades modernas, são um grande acúmulo de espetáculos, criados para transformar os cidadãos em platéia, passiva e nunca
palco. Estes espetáculos são criados para vender mercadorias e proporcionar um tipo de lazer fabricado, direcionado, onde a finalidade das relações sociais nestes espaços é vender. A base da estética que
o sistema impõe e vende é o American Dream. Debord faz um aprofundamento na ideia de fetichismo da mercadoria de Karl Marx (1818 - 1883), trazendo este conceito para a sociedade atual.
É muito importante lembrar que os movimentos políticos de extrema direita também criam espetáculos à parte do sistema. Criam espaços relacionais micro e macro políticos para espalhar o
fascismo através da Arte. Criam-se eventos (principalmente na Internet) onde a qualidade das relações pessoais fazem fluir ideias reacionários nos participantes
O Neoliberalismo cooptou grande parte dos pensadores da pós-modernidade, visando dar liberdades no campo das opressões para amenizar a luta de classes, incentivando a descrença na
macropolítica e dando pequenas liberdades no campo micropolítico.
Segundo Freire:
“A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade
social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim
do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o
educando a esta realidade que não pode ser mudada. O que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto
aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente” ( FREIRE, 1998, pg. 11).
Uma coisa que aprendi nos anos de militância é que espaços de poder não ficam vazios, sempre alguém os ocupa. Incentivando artistas a se preocuparem somente com as micro políticas e
questões de opressão e descredibilizando a organização político partidária, o neoliberalismo abre espaço para a extrema direita ocupar cada vez mais este espaço
Através da Internet, a extrema direita cria o personagem Jair Bolsonaro, lhe atribuiu estética e, este por sua vez, vive de criar espetáculos e divulgá los massivamente pelas redes sociais,
desde fazer posição de marinheiro com os militares, fazer arminhas na mão junto com uma criança no colo, motociatas, saltar de barco e nadar até a praia. Estes espetáculos criam
interações sociais relacionais e despertam o efeito manada nos participantes. Muito parecido com atos performáticos de Benito Mussolini (1883 - 1945). Tudo é construído ao mesmo tempo,
macro e micro, e a macro política sempre subjuga a micro, não importa quanto avanço se teve na esfera micro, a macro pode fazer tudo retroceder, desaparecer. E ai nos veremos então em um
estado totalitário fascista/nazista, Bau Haus que os diga.
“O conceito de Estado totalitário só vale para uma escala macro política, para uma segmentaridade dura e para um modo especial de totalização e centralização. Mas o fascismo é
inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacionalsocialista” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 84).
Como artista meus trabalhos de arte relacional devem ajudar a desenvolver maior consciência social e ajudar a despertar este corpo que está parado em estado de morto-
vivo, enchendo-o de vida através de um vírus capaz de produzir um apocalipse Zumbi ao contrário.
O grupo Contrafilé chamou de apocalipse ao contrário, o efeito viral que as ocupações secundaristas tiveram em 2016, quando os corpos que estavam parados, como mortos-
vivos ou como gado, se encheram de vida e esperança para criar uma insurreição das crianças. A batalha do vivo! Eles se basearam em uma revista em quadrinhos feita pelo
Centro de Controle e Prevenção de Doenças Norte-Americano, sobre estar preparados para um apocalipse Zumbi, para criar esta estética do apocalipse Zumbi ao contrário.
Segundo eles:
“Em 2012 o Center for Disease Control norte-americano distribuiu para variar um pouco, uma história em quadrinhos, seu título: Preparedness 101: Zombie Apocalypse. A ideia é
simples: a população deve estar pronta para qualquer eventualidade, uma catástrofe nuclear ou natural, uma avaria generalizada do sistema ou uma insurreição. O documento
terminava assim: se vocês estão preparados para um apocalipse Zumbi, é porque estão prontos para qualquer situação de emergência. A figura do zumbi provem da cultura
haitiana e no cinema norte-americano, as massas revoltadas de zumbis servem cronicamente de alegoria à ameaça de uma insurreiçao generalizada do proletariado negro.
Portanto, até mesmo para isso tem que se estar preparado.(Contrafilé, 2016, pg.59)
A iconografia que relaciona o zumbi ao proletariado negro é racista, pois tras o preconceito com a cultura vudu , e outras de matriz africana., muito semehante ao que fazem
quando relacionam praticas africanas com satanismo e genealizam todos os praticantes numa figura construida no imagináriopopular, que seria o" Macumbeiro"( termo
perjorativo e racista).
Suely Rolnik complementa dizendo que “o corpo antes das ocupações parecia mesmo um morto-vivo, só seguindo o que mandam, e de repente o corpo acorda, tá vivo e toma vida
em mãos , aí você passa a ter a sensação que seu corpo existe, de que o espaço é teu e isso mexe com muita coisa na história do Brasil, mexe com uma tradição parada”.( ROLINK,
2016, pg.57)
Neste trabalho de conclusão de curso, apresento a estética que irei chamar de mutualista, termo que nasce da Biologia, que serve para descrever bem as relações que foram
criadas dentro do projeto Palmares resiste e da PDU Crew.
Neste Trabalho pretendo apresentar como a arte relacional dentro do grupo palmares resiste e da PDU Crew contribuiu na ampliação da consciência e da "instiga" necessária
para lutar com seus corpos contra o sistema vigente em suas múltiplas formas, tendo no fazer artístico uma relação vital entre Arte e Política.
Trago como referência para esta pesquisa alguns conceitos trabalhados no livro A Batalha do Vivo, onde o grupo Contrafilé mostra como os jovens secundaristas de São
Paulo desenvolveram a instiga para participar das ocupações e como consequência disso, ampliaram a consciência política,
Analisando a obra, penso que a instiga que se desperta nos participantes é causada por dois motivos: a contaminação viral do apocalipse Zumbi ao contrário e da ideia de que a
tribo acaba com o medo.
1 - Apocalipse Zumbi
O apocalipse Zumbi é similar à disseminação de um vírus. No mundo da Internet várias ações, videos, imagen, se tornam “virais” e as vezes estas ações podem ser subversivas, como
é o caso das ocupações secundaristas que viralizaram e deram início a um grande levante da Educação contra o
governo de Michel Temer, que chegou até as Universidades. Ficou viral o ato de ocupar e isso certamente foi um fator que criou a instiga necessária.
O livro A Batalha do Vivo(2016) traz a ideia de que você perde o medo de enfrentar o sistema quando você está em grupo, (a Tribo acaba com o medo). Você ganha
força e coragem quando vê o grupo se insurgindo, e a partir disso a instiga de continuar lutando tende a crescer. O grupo te faz sentir vivo, pois depois de
experienciar ações diretas, se descobre capaz de coisas que ele nem sabia antes que podia fazer, e isso tem uma mudança brusca neste corpo que se sentia morto
e agora ganha vida. Segundo Suely Rolnik (2016) quem não prefere estar vivo? Na hora que vê um, dois,três, você tem força para ir.
Como complemento, penso que o campo da Arte Popular também traz um conceito fundamental para esta pesquisa, que é a noção de pertencimento.
É muito importante destacar a ideia de pertencimento, a um grupo ou causa, pois o ser humano normalmente busca pertencer a algo.
Baumeister e Leary (1995) definem o conceito de Pertencimento como uma motivação que os seres humanos têm para procurar e manter laços sociais profundos e
positivos. Dessa maneira, eles se referem não só à necessidade de estar inserido em um grupo, mas à qualidade dos laços estabelecidos com outros indivíduos.
Quando se está inserido em um grupo cultural que usa da cultura como forma de luta e resistência, a ideia de contribuir com sua arte, junto com o coletivo como
forma de protesto é um meio de gerar a instiga e despertar a consciência política dos participantes, o Artivismo!
Quando um grupo cultural propõe gerar relações pessoais engajadas através da politização da arte, ele ajuda a despertar a consciência política nos
participantes, que se utilizam dela como um grito contra o Sistema.
Se pensarmos as diferentes tribos sociais que existem dentro da UFPE, os ataques pós-golpe foram tão duros que forçaram as tribos a se juntar
para continuar sobrevivendo ali. Assim como em outras espécies, cada pessoa de uma tribo tem suas habilidades individuais, características
distintas e poder econômicos distintos, e a partir do momento que se juntam, se forma um sistema de entidade mútua. Geralmente, espécies
diferentes se juntam na natureza porque suas habilidades distintas os fortalecem perante os desafios de viver na selva.
Por uma Estética Mutualista.
ECOLOGIA
Associação entre dois seres vivos, na qual ambos são beneficiados, resultando freq. em dependência mútua.
JURÍDICO (TERMO)
Sistema que se baseia na entidade mútua, na contribuição de todos para benefício individual de cada um dos contribuintes
A violência brutal a qual os corpos estão submetidos desde muito cedo, desde antes de nascerem, corpos sempre suspeitos, mal vistos, anormais, errados, aquilo que carregam de
força, sua potência de produzir sentido, de trazer o novo, o nascente, a vida afinal... se torna invisível, é ocultada por essa voz hegemônica e normativa que blinda os corpos de se
perceberem eles mesmos consciência, puro pensamento e vida, outra vida …. Aquilo que parecia suspeito foi nomeado, entendido. Não era mais um corpo dócil, indiferente e
desencarnado que ditava o movimento. Corpos sensíveis, afetivos em pé criam um novo chão para pisar.
( Coletivo Contra- Filé, 2016, pg.51)
Na natureza vários seres vivos se associam por dependência mútua. Nós estudantes da Universidade Federal de Pernambuco nos vemos na mesma situação. Nesta selva de pedra
brutalista, somos espreitados e atacados a todo momento pelos governos reacionários que vieram após o golpe, ameaçando nossa permanência na Universidade, com ataques
brutais à Educação e ao Funcionalismo Público.
É duro viver na Natureza. É melhor se associar para tentar sobreviver, do que enfrentar as dificuldades sozinhos. O ecossistema da UFPE é dividido entre a selva de pedra e o
cercadinho, dois lados não tão distantes da mesma moeda.
Nesta selva de pedra, estes corpos precarizados, diferentes, se unem para sobreviver. Todos em unidade contra os ataques dos ratos, dos porcos e do vampirão.
Do outro lado da cerca, onde as associações entre seres vivos se dá através do comportamento de manada, o gado só observa distante, pensando estar alheio aos acontecimentos
da selva, pois está no cercadinho bem cuidado e alimentado, porém quando começou a ver o preço do capim meio que sentiu o cercadinho se fechando.
Na selva de Pedra, encontrei bichos de mangue, se aventurando em novos ecossistemas, tentando sair da lama.
Lá eu vi caranguejos, guaiamuns e siris de mangue criarem coletivos, usando a Arte como espaço de compartilhar as dificuldades e dores da vida. Lá eu vi no balanço e no remelexo
o tal do siri derrubar caranguejo.
ARTE RELACIONAL ATRAVÉS DA CAPOEIRA
“ Cabe ao artista a tarefa de “devolver concretude ao que se furta à nossa vida”. (Bourriaud, 2009, p.31)
Com 500 anos de história de escravidão, o índio e o negro nunca foram vistos de forma diferente pela classe dominante. Mesmo com o fim da escravidão oficial, eles nunca tiveram
direito a nenhuma indenização do estado e foram largados a própria sorte sem condições de ter educação e empregos dignos, sendo forçados a viver nas zonas periféricas das
cidades, nascendo assim as primeiras favelas.
O governo brasileiro tendo como meta pós escravidão embranquecer o país, trouxe imigrantes da Europa para trabalhar de forma assalariada, nos mesmos empregos que os
negros exerciam como escravos, deixando milhares de negros desempregados, sendo forçados a viver na marginalidade *. A sociedade brasileira é fruto destas mazelas e o
problema do racismo ainda é muito grande. Todo camburão da polícia tem um pouco de navio negreiro. A população ainda é escravizada, só que por um novo tipo de sistema. Muitas
das pessoas nascidas nas comunidades não conhecem seu passado histórico e estão fadadas a repeti-lo.
Num mundo cada vez mais globalizado e dominado pela lógica capitalista, que transforma o modo de viver em um produto, as culturas que pregam a libertação dessa escravidão são
cada vez mais engolidas pela cultura da industrialização do pensamento.
A história da Humanidade é a história da luta de classes, e por este motivo criei o projeto Palmares Resiste, que tem sedes na comunidade da Brasilit e no Centro de Artes e
Comunicação - CAC/UFPE.
. A Arte tem o poder de transformar a vida das pessoas, como transformou a minha. Graças a meu mestre de capoeira José Eduardo e meus pais (também capoeiras), pude perceber
que a Arte sempre trouxe força aos nossos antepassados para prosseguir na luta. Se Clara Nunes cantou que o povo desta terra, quando pode cantar canta de dor, espero que
nossos cantos de agora possam reacender a chama de esperança de um mundo novo, através da Arte e da solidariedade.,
A Arte e a Revolução sempre fizeram parte da minha trajetória de vida, ora mais próxima, ora mais distante uma da outra. A Arte por si só não me diz nada. Não faz mais sentido
para mim uma arte individual, ou uma arte só minha. Assim como a Revolução, só faz sentido se for feita em coletivo. A descoberta da Arte Relacional voltada para a mudança
social, mudou minhas perspectivas sobre as possibilidades da Revolução e da Arte andarem de mãos dadas. Acredito que hoje elas já estão se beijando.
A nossa sociedade precisa urgentemente de uma completa refundação estética e econômica, em vista que os modelos vigentes estão favorecendo uma minoria de pessoas e matando a
maioria. Arte relacional é educação, e como diz meu camarada barbudo, a educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo. É importante conscientizar a sociedade que os
princípios moralistas das Igrejas em geral é uma parede velha caindo aos pedaços e que o tal do neoliberalismo está transformando o modo de viver e as afetividades entre
pessoas em um produto. Acredito que a arte relacional pode quebrar paradigmas estéticos e políticos, visando relações mais humanas como dizia o mal interpretado menino do
Novo Evangelho.
O presente trabalho é importante para a Academia, no que diz respeito as mais recentes discussões sobre arte relacional e política nos dois encontros da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes
Plásticas - AMPAP (25° e 26° encontros), onde somente 03 trabalhos abordam diretamente a Arte Relacional e militância política, e somente 01 que se reivindique Arte Relacional atrelada à causa. O
artigo A Revolução Artística do Morrinho: Invenções, Memória e Fabulações Urgentes de uma Terra Relacional de Alexandre Guimarães, trabalha com a Arte Relacional diretamente ligada à militância na
favela Pereira da Silva, na zona sul do Rio de Janeiro. Ele contribui com a perspectiva de que a grande obra de arte está nas relações sociais com os moradores da comunidade visando a transformação
social do indivíduo, principalmente para não acabar na mão do tráfico que é o ponto forte dentro desta comunidade.
No que se diz respeito aos outros 02 trabalhos que discutem diretamente a Política na Arte Contemporânea, o trabalho Ações Artísticas Micropolíticas na Sociedade Moderna, de Guilhermina Pereira da
Silva, o foco é a Arte de Gênero, mas que foge à minha linha de pesquisa, e no que se diz respeito a ações políticas, vejo um pessimismo em relação a macropolítica e uma caracterização muito pobre e
limitada sobre o modelo econômico socialista, onde J. Stalin (1878 – 1953) se torna sua referência neste modelo, ele que foi incansavelmente usado como propaganda norte-americana contra a ideologia de
K. Marx.
Já no artigo de Ana Reis, sobre as ocupações e o ato em Brasília contra a PEC 55, é de extrema importância na construção da minha pesquisa, uma vez que discuto a importância que a Arte Relacional teve
dentro da ocupação do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE. Reis traz uma perspectiva sobre a ocupação através do campo da Performance, e quanto a mim, através da Arte Relacional. Sua visão
sobre a militância através da Arte é de extrema lucidez e acaba sendo geralmente ligado aos princípios que defendo através do Artivismo Relacional
O projeto teve início em 2015, dentro do Centro de Artes e Comunicação – CAC/UFPE como atividade de extensão do Diretório Acadêmico de
Artes Visuais e terminou no final de 2017. O projeto envolveu alunos de diversos Centros e um homem da comunidade, que é uma pessoa de necessidades especiais.
Projeto Palmares Resiste no CAC/UFPE, 2015.
Os alunos tiveram aulas
práticas de Capoeira e
aulas relacionando a
Capoeira com outras
artes, por exemplo, com a
produção dos seus
próprios uniformes a
partir da técnica de
stencil. As experiências de
produção fortaleceram as
relações entre os alunos,e
melhorou o trabalho em
Produção dos Uniformes com Stencil, 2015.
equipe.
A produção de stencil é uma forma de relacionar o aluno com a ideia de grupo, unidade, onde todos carregam o mesmo símbolo
e que esta ação micropolítica cria imediatamente uma resposta macropolítica, onde este símbolo do grupo reverbera
reivindicações de mais grupos de pessoas com quem não temos relações, e viram desejos comum entre diversos grupos de
micropolíticas. Principalmente porquê nosso grupo explicita o símbolo do comunismo em seu uniforme. É importante salientar
que apesar de serem conceitos distintos macropolítica e micropolítica pertencem ao mesmo conjunto, ou seja, tudo é político,
mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica (DELEUZE, GUATTARI. 1996, p. 83)
Através das aulas teóricas se trabalhou o papel do capoeira e do negro na sociedade, a escravidão moderna, os aparelhos
ideológicos do estado, o esvaziamento da cultura de resistência, o racismo, a arte educação, o papel de militância do
educador, a necessidade de continuar lutando para se libertar, entre outros assuntos não menos importantes. Foi
apresentada a proposta de trabalhar a arte educação através das músicas, que tem grande força dentro da capoeira na hora
de educar. A música entra na cabeça muito mais fácil do que textos e sermões. De fato, historicamente os mestres se valem das
músicas para passar seus ensinamentos. Foi pedido aos alunos que escrevessem suas próprias músicas que reflitam o aprendido
nas aulas teóricas e que fosse levado ao grupo para ser tocado por todos os integrantes. Abaixo, uma música de capoeira
composta pelo aluno Theo Rabay Coutinho.
“ Eu estava no Estelita,
com minha barraquinha,
sonhando que o choque viria chocar na calada da
noite.
Fui preparar uma sopa, mas tava sem tempero,
e a polícia veio me ajudar e jogou, pimenta no
meu rosto inteiro.
( Refrão)
Me diga Polícia me diga, de que lado você luta ?
Me diga Polícia me diga, de que lado você luta?
Você luta pelo pobre?
HaHaHa!
Você luta é pelo rico
Oiaia
Camara...”
“ As cantigas de capoeira fornecem valiosos elementos, para o estudo da vida brasileira, em suas várias
manifestações, os quais podem ser examinados sob o ponto de vista linguístico, folclórico, etnográfico e
sócio-histórico” (Waldeloir Rego, Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico,1968, p. 126).
Observei que as músicas criadas geraram muito impacto sobre os praticantes pois muitos na hora da roda sabiam
cantar as músicas dos outros sem ao menos ter tentado decorar, somente compreendendo as mensagens, e tocada
repetidas várias vezes ajuda a fixar na cabeça. Também foi observado que depois dos treinos ou em outros
momentos de interação fora do projeto, os alunos cantarolavam as músicas, o que mostra a fixação da ideia na
cabeça.
O projeto proporcionou também aos alunos a interação com os vários mestres da Várzea, onde aconteceram rodas
de capoeira unificada com estes mestres e rodas de debate. Os alunos foram levados até as academias dos mestres e
também receberam os mestres na sede do projeto no CAC/UFPE.
RODA DE CAPOEIRA COM OS MESTRES JUNIOR E JORGE NO CAC/UFPE, 2017.
No que compete o grande objetivo do projeto que é
propor as relações humanas com a grande obra de arte
neste projeto relacional, a roda de capoeira no
CAC/UFPE com os mestres Júnior e Jorge nos mostrou
como as relações com as pessoas criam teias de amizades.
Depois de visitar as academias dos mestres, fui criado
grandes laços de amizade entre os grupos deles e o
projeto, tanto que agora são feitos vários projetos em
parceria com os mestres. No Dia da Consciência Negra
(2017) foi realizado no CAC/UFPE uma roda com 4 grupos
de capoeira pelo projeto Palmares Resiste onde também
se debateu sobre a consciência negra com os mestres
antes da roda.
Roda de Capoeira no CAC/UFPE, 2017
Projeto Palmares
Resiste na Comunidade
da Brasilit
Metodologia Artográfica
Através da metodologia Artográfica, o projeto pesquisa sobre os impactos que vivenciar uma cultura de resistência negra gera na vida dos alunos, que através dela serão instigados a buscar uma
identidade, baseada nas suas raízes e na busca de um novo ideal emancipador. A Capoeira por proporcionar brincadeiras em roda é um ótimo espaço de educação e integração social que proporciona no
fazer artístico trabalhar com temas recorrentes a sua realidade de periferia através das letras das músicas e da mística que o ritual proporciona, que é indescritível pois se trata de sentir a
ancestralidade. A criação artística fica pela produção do ritual e dos elementos que compõem ele, como a confecção dos instrumentos e das roupas (Abadá). A parte da docência é feita pelos debates
sobre história e filosofia da Capoeira que acontecem antes da roda e pela parte musical, já que as letras das músicas da Capoeira são utilizadas pelos mestres para ensinarem os mais jovens. A
metodologia Artográfica neste projeto tem como proposta pensar o ensino e à pesquisa em Arte, como eixos de uma proposta de formação, tendo na Arte seu campo de discussão e conhecimento, e que se
pode propor um campo de observação para os comportamentos dos fenômenos sociais e psicológicos, ou seja, através da fusão da criação artística com a aprendizagem, pesquisa e as ciências humanas.
Nesse sentido Dias (2010, p.07), confirma essa discussão quando diz que: Na A/r/tografia saber, fazer e realizar se fundem. Eles se fundem e se dispersam criando uma linguagem mestiça híbrida. Linguagem
das fronteiras da auto-etnografia e de gêneros. O Artógrafo, o praticante da Artografia, integra estes múltiplos e flexíveis papéis nas suas vidas profissionais.
Irwin (2008), concebe a pesquisa em Arte e o seu ensino como atividades que fazem parte de um mesmo tear que se entrelaçam numa trama de similaridades e diferenças.
Hernandez (2008), acredita no equilíbrio entre o paradigma e a imaginação como sendo uma relação essencial para um ego saudável, na construção de uma identidade ponderada da pesquisa.
Essa metodologia pretende ser um estudo sociológico e psicológico com os participantes que desenvolvem afetos durante o processo, assim como repulsas, e a grande aposta está no poder que
socialização e a integração social podem causar na vida deles como fonte de força para continuar lutando contra as adversidades de seu dia a dia, visando construir um futuro melhor.
Em meio a tantos retrocessos, se faz necessário caminhar sem medo pelas incertezas e tentar modificar o micro e o macro. A Arte ainda pode ajudar a construir um mundo melhor longe das amarras da
opressão e da segregação.
“Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo." Para quem é trabalhador nesse país, lutar nunca foi opção, sempre foi a única esperança." (Karen Santos, Câmara Municipal de Porto Alegre, 20 de
novembro, 2017)
Módulo 3
Memórias de uma
Ocupação
ARTE RELACIONAL E GRAFFITE
“Uma parede em branco é um desperdício de ideias”.
Paulo Leminski
Muito já se sabe sobre o papel transgressor do Grafite e da Pichação, principalmente por se tratar de uma arte de rua originária das camadas mais idesfavorecidas de nossa
sociedade, que buscam se expressar através da Street Art. Porém, qual é a relação que podemos fazer entre Grafite/Pichação e a Arte Contemporânea, como um meio eficaz de
denúncia para se pensar a revolução socialista? Qual é o papel do grafiteiro e do pichador nesta luta de classes, travada dentro das cidades através do campo das Artes? Neste
tópico chamado Grafite e Revolução, abordaremos Essas manifestações como o que há de mais contemporâneo na Arte, fazendo um paralelo com a Arte Política da década de 1960 -
1970 e a Arte Relacional a partir da década de 1990.
Para se pensar o Grafite como uma Arte Revolucionária podemos pensar o motivo de sua prática e de sua criação como uma reivindicação de direito à cidade. Segundo Menezes e
Gregori:
O reclame por detrás do pixo e do graffiti – deste último quando realizado sem autorização dos proprietários - é o direito ao acesso à cidade, o direito a condições de
sobrevivência. É o grito da periferia (MENEZES e GREGORI, Letramentos de Reexistência e direito à cidade, 2016, p. 13).
Para entendermos quais foram as motivações para o surgimento do Graffiti, podemos pensar, hora... o Grafite só existe porque existe um muro ou uma parede! Não se pode pensar que
no Bronx/EUA, a galera começou o movimento do Grafite pixando no chão. Podemos pensar nessa relação Grafite muro em duas formas distintas: a primeira é o ataque a propriedade
privada e a segunda, um ataque a fachada. O Grafite está para contestar aquele muro que na realidade tem uma função muito simples, que é a de separar, de proteger um espaço,
separar o arroz e o feijão. Demarcar este espaço que segrega, exclui e privatiza, e aí entramos no conceito de direito à cidade porque o muro, para sua função primordial é
proteger a propriedade privada.
Porém, quando o grafiteiro pinta um muro, ele está atacando a propriedade privada porém, ele não está atacando de forma concreta a derrubar o muro com um martelo ou com a
marreta, ele ataca a fachada, ou seja ,ele rouba a fachada para si, faz a reforma agrária/urbana que não pode fazer na prática derrubando a parede expropriado a fachada. A
fachada é muito importante para o proprietário, pois é ela que expõe a sua posição política . Todo muro ou parede, seja alto, baixo, branco ou colorido, tem uma posição política
expressa nele, e quando se rouba a fachada você está utilizando aquele espaço como sua área de propaganda. Não podemos esquecer que a fachada também é uma propaganda. Neste
ponto, voltamos a falar sobre o direito à cidade, pois quem tem fachada tem direito a propaganda e também tem direito a cidade, podemos pensar que só quem tem espaço para fazer
propaganda são as pessoas que têm dinheiro, que tem poder aquisitivo e consequentemente quem tem propriedades. Segundo Tiburi:
“[...] ser atingido na fachada – seja a imagem pessoal, seja a imagem do muro branco – é ser atingido num direito. A fachada é narcísica como um rosto, como a imagem que alguém tem
de si. O representante original da ideologia do muro branco (e seus apêndices: esposa e filhos) que se irrita quando é atingido na fachada” (2013, p.42).
O Ataque a Fachada
Se pegarmos São Paulo ou as grandes cidades brasileiras como essa, podemos observar que ela é constituída basicamente de estruturas de formas geométricas
quadradas ou retangulares, geralmente da cor cinza ou branco, onde a poluição visual feita pelos anúncios é o que toma espaço nas fachadas e quem anda
pelas cidades são bombardeados a todo instante por esses diversos anúncios ,que através de mensagem subliminar induzem as pessoas a consumirem .
Geralmente os grafiteiros e pichadores não moram no centro ou nas grandes áreas da cidade, sendo reservado a eles o direito de viver nas partes periféricas.
Segundo o conceito de Gentrificação(Karl Marx 1867), essas pessoas de periferia quando estão transitando nesses espaços são coagidas e quase expulsas,
tanto pelas pessoas que as olham, com um olhar diferente muitas vezes racista, quanto pelas autoridades que patrulham estas áreas, que geralmente abordam
esses sujeitos específicos. O conceito de Gentrificação pega emprestado da Biologia o funcionamento dos anticorpos de um sistema que quando um corpo
estranho aparece os glóbulos brancos e as demais estruturas trabalham para expulsar esses corpos estranhos.
Como estes seres periféricos não têm direito a ter seu espaço de propaganda e de anúncio na cidade, eles tomam para si a fachada alheia. Utilizam desses
espaços como forma de protesto, um grito que não poderia ser ouvido de outra forma, eles utilizam estes espaços como local de denúncia, onde todos que
andam pela cidade podem ver essas mensagens. É uma forma de democratizar o direito à propaganda, a voz. Ora, as grandes empresas e corporações não nos
pagam para sermos bombardeados por inúmeras propagandas gratuitas e subliminares todos os dias quando andamos pela cidade. Desta maneira, o grafiteiro e
o pichador utilizam das Artes Visuais através da estética do Grafite e do pixo também como uma forma de divulgar sua arte, e aos olhos dos donos da cidade,
não são bem-vindos tanto pela afronta, quanto pela questão estética que foge ao padrão da estética do capital.
“De um lado, há a postura ideológica do pixador e do grafiteiro, que configura uma postura anárquica, que clama pelo direito à cidade, pelo direito a voz, e
que, ao revirar, remexer e tentar redefinir aquilo que é aceito esteticamente no âmbito urbano tem como resposta a revolta e ódio da sociedade capitalista
[...]É justamente por este fato que culturalmente a sociedade aceita a “poluição” visual urbana que advém das inúmeras propagandas, a exemplo dos letreiros
luminosos, dos outdoors, das placas e fachadas. É a lei do capitalismo” (MENEZES e GREGORI, Letramentos de Reexistência e Direito à Cidade, 2016, p.2)
Arte Política de Ataque a Propriedade Privada
O grande problema dessas intervenções artísticas vem muito de qual classe social elas pertencem, ou seja, quais são as pessoas que a praticam. Na década de 1960 e 1970, com
o avanço da modernidade no campo das Artes, muitos movimentos de arte política se utilizaram dos corpos, seja pela Performance ou Happenings para contestar o modelo de
produção capitalista em um tempo onde a produção artística foi muito politizada. A partir da década de 1990, através da proposta de Estética Relacional de Nicolas
Bourriaud, a pós-modernidade se utilizou de micropolíticas como forma de mudança possível para libertação de corpos presos ao sistema do Capital. Quando coloco o
Grafite e o Pixo como uma Arte Política contemporânea que ataca mais diretamente que as outras o capital, vem pelo fato de atacar o eixo central desse sistema: o muro ,ou
seja ,a demarcação da propriedade privada. Enquanto os movimentos que se originaram na década de 60 70 e 90 se preocuparam com questões que muitas vezes centravam
temas de opressões como racismo, machismo e homofobia, por sua força junto aos protestos ocorridos na época, fizeram o sistema a aceitar aberturas para falar dessas
questões, que hoje sao aceitas pelo Sistema . No que se diz respeito a Economia, ainda não demos sequer um passo para avançar na questão da propriedade privada. O ataque ao
muro é tão perigoso pois é um ataque pacífico, que que não vem como geralmente acontece nos protestos destruindo ou vandalizando os símbolos do Capital, pois a pintura
não deteriora ou inutiliza um muro que ainda mantêm o seu papel de proteger e delimitar um local. Por isso é tão perigoso e por isso as autoridades tiveram que criar leis e
medidas para colocar este ato no nível de vandalismo, pois não se trata de um vandalismo físico, mas sim, um vandalismo moral.
“[...] indo na vértice contrária à proteção constitucional, tem-se a previsão advinda com Lei 9.605/98, alterada pela Lei 12.408/11. Na primeira, conhecida por ser a Lei dos
Crimes Ambientais, segundo a previsão do artigo 163, o picho era punido como dano ao patrimônio, caracterizado pela lesão, destruição ou deterioração da coisa alheia.
(BRASIL, 1998) Contudo, tal tipificação penal necessita de uma análise pormenorizada e atenta, tendo em vista principalmente que os grafismos urbanos não inutilizam o
muro/parede, e os mesmos, após a intervenção gráfica, seguem assumindo o mesmo papel de sempre: proteger ou delimitar um local, um limite. Já na alteração do diploma legal
que se deu em 2011, tem-se a previsão do artigo 65, que tipifica como crime ambiental a prática do picho e do grafite, que são considerados crimes contra o ordenamento
urbano e patrimônio cultural. (BRASIL, 2011)
Esse tipo de atividade que tomou conta rapidamente de todas as cidades do país, causam um grande efeito no público, pois muitas vezes são trabalhos que carregam a estética
do caos, criam um aspecto na sociedade de repulsa com aquele espaço. Geralmente os grupos de Grafite denominados Creew, se organizam para sair pela cidade como forma de
militância para difundir suas crenças e suas raivas, o que faz o ataque ser em grande escala. Segundo Arce: “[...] as sociedades aumentaram seu assombro pela grande
quantidade de palavras de ordem e grafites que povoam as paredes, residências, edifícios ou pontes. Os locais mais inacessíveis foram atingidos pelo bombardeio das latas de
spray e pelas inscrições, nas quais os jovens avalizam sua lealdades e suas adscrições grupais. (ARCE, 1999, p. 122)
Memórias de uma Ocupação
Não se pode apagar dos corações de quem lutou, tudo que foi apagado do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE,
onde as paredes tinham vida e refletiam a luta cotidiana contra a PEC da Morte e os demais ataques vindos de Brasília.
Resistimos com nossos corpos, com nossa arte. Tenttamos fazer revolução e a fizemos através da Arte, do Artivismo! A
luta, assim como a Arte, era relacional e relacionou nosso Centro com nossas lutas. Propomos uma nova arquitetura
para o prédio que tivesse composteiras, banheiros mistos e paredes vivas nas quais refletissem o momento que vivíamos.
Que o CAC fosse um ser vivo também! Pois escola não é prédio e sim força, tudo que pulsa vida é escola!” as paredes que
eram cinzas se tornaram quadros em branco, onde escrevemos a nossa história e pintamos nossos sonhos. Assim como
propõe Carlos Vidal, “[...] uma refundação da linguagem estética que ultrapasse a fatalidade do triunfo da
industrialização do pensamento” (1997).
As marcas de nossa resistência eram tão poderosas que soariam como heresia num mundo pós-ocupação, precisavam
ser apagadas a qualquer custo. A estética do Centro pouco importava, até árvores receberam uma tarja cinza em sua
estrutura... melhor uma mancha cinza disforme do que uma palavra que inspire resistência, pois o CAC é brutal, é
brutalista, construído no auge do regime mais brutal do Brasil e que ainda hoje é brutal com a Arte (CAC é arquitetura
brutalista).
Em meio a tantos problemas, encontramos a força e a coragem de lutar pelo Outro e assim nos fortalecemos, como
pessoas, como militantes, como artistas e como família. Por mais duro que tenha sido o fim, a semente foi plantada! As
relações humanas e os aprendizados nos tornaram mais fortes para as próximas lutas e ampliamos nossos ciclos de
amizades para toda a vida! Um dia nós venceremos pois, segundo G. Deleuze (1999), a Arte é tudo aquilo que resiste.
Graffiti e as Ocupações
Inspirados pelo movimento de ocupações de escolas secundaristas de São Paulo que se inicia em 2015 , e que fez um dos governos mais autoritários do Brasil a recuar, os estudantes
universitários em 2016 ocuparam as Universidades em todo o Brasil contra a PEC 55 e as medidas unilaterais do governo Michel Temer. Foi nesse cenário caótico que surgiu a
ocupação do prédio do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE.
O Centro de Artes e Comunicação - CAC tem uma forte relação com o pixo, e é um espaço que sempre permeou a discussão sobre as paredes cinzas, onde na visão de muitos, teriam que
ser preenchidas por pinturas, muralismos ou graffitis. A direção do Centro por sua vez, se basea no discurso que o prédio é tombado .
Por mais que a Instituição tentasse, sempre apareciam pinturas nas paredes e por mais que se gastasse para pintar de cinza. Quando cheguei na Instituição, conheci pessoas do
movimento do Graffiti, que já participavam desta contestação. Foi então que, com mais 03 grafiteiros do Centro que decidimos criar uma Creew de Graffiti dentro da instituição.
Nascia neste momento a PDU Creew.
Quando a ocupação do CAC aconteceu, os membros da PDU se engajaram no movimento, pois era a grande cartada de resistência contra a PEC da Morte, proposta pelo presidente
golpista, o vampirão Michel Temer. No ano da ocupação, a PDU comemorava 02 anos de existência e já contava com mais de 10 membros. Contando com pessoas experientes em
movimento estudantil, a Creew tomou papel de destaque nas ações promovidas pelos ocupantes do Centro, e ao final do Ocupe já tinha praticamente dobrado o número de
integrantes, além de iniciar mais uma dezena no movimento HiP-Hop, seja no graffiti ,no campo dos MCs ou no break. O processo de ocupação também gerou incríveis obras de arte de
graffitis no Centro, que ao fim da ocupação, foram brutalmente apagadas por uma postura ditatorial da Reitoria junto à direção do CAC.
No início da ocupação, era de se perceber que muitos ali estavam participando de sua primeira ocupação, e não entendiam o ritmo e o comprometimento que era necessário ter num
evento daquela magnitude. Como não poderia deixar de ser, a Arte foi o elemento fundamental para a vida daquele Ocupe, afinal era uma ocupação de artistas!!! Ali se reuniram vários
profissionais no campo das Artes, e agora era a hora de fazer a graduação no campo da militância. Muitos ali nunca tinham participado de nenhuma ação direta e o primeiro
fechamento da BR 101 foi sem dúvida a prova de fogo…
André Mesquita discorre sobre sobre a educação do corpo quando participa de uma ação direta no livro A batalha do vivo (2016): “ A única estratégia para confrontar a polícia e
ocupar um espaço é o próprio corpo. E aí você descobre que seu corpo pode fazer muito mais do que você imagina. Fazer uma ação direta nada mais é do que dar corpo ao sentimento e
isso tem uma transformação brutal, é por isso que o corpo já não é mais aquele”.
Nós da PDU Crew propomos a realização de grandes obras coletivas de graffiti como forma de integrar e iniciar no universo do Graffiti nos diversos ocupantes ali presentes, como
forma de resistência viva, marcada nas paredes do CAC.
Painéis coletivos 1 e 2 - CAC., 2016
O segundo painel, realizado logo acima do primeiro, foi feito somente
pelos integrantes da PDU como forma de demarcação de espaço, sendo um
painel de dimensões faraônicas com os dizeres: PDU Creew Resiste. Já que a
estrutura do prédio é imponente, vamos demarcar nosso espaço à altura
da estrutura. Um detalhe importante é que as letras estão pegando fogo,
que simula a situação vivida por todos naquele momento.
O terceiro painel e mais importante, foi o painel intitulado A Favela, e foi
feito em homenagem aos três meninos mortos no Ibura pela polícia de
forma arbitrária e racista.
A Favela, CAC ,2016
A favela foi uma obra de arte relacional que fez muito sucesso na ocupação . A ideia era convidar, enquanto a gente pintava, as pessoas que estavam presentes no espaço para também intervir na obra ,colocar sua
casinha na favela , seu pixo ou o que quisessem integrar ali . A partir daí muitas pessoas participaram , principalmente as que eram de realidade de Periferia, que fizeram questão de colocar seu barraco na favela do CAC. ,
eram pessoas advindas de cotas, beneficiada por bolsas e que sonhavam em completar os seus estudos para mostrar que a universidade também é espaço para favelado .
Eu me lembro que uma das imagens mais marcantes para mim, foi no primeiro dia de aula pós-ocupação, onde a parede tinha sido pintada de cinza e pude observar quatro pessoas olhando para aquela parede e chorando,
pois significava que não era só a favela da parede que estava sendo retirado do CAC, já que o objetivo do governo era retirar os favelados de dentro dela. Parecia que a favela não poderia ter espaço dentro do Centro
de Artes, nem que fosse na parede como representação, era preciso apagar as recordações de que um dia esse espaço não foi ocupado somente por brancos da Elite.
“Mesmo onde a separação dos grupos sociais não aparece de imediato com uma evidência berrante, surgem, ao exame, uma pressão nesse sentido e indícios de segregação. O caso-limite, o último resultado é o gueto.
Observemos que há vários guetos: os dos judeus e os dos negros, mas também os dos intelectuais e operários. A seu modo, os bairros residenciais são guetos; as pessoas de alta posição, devido às rendas ou ao poder, vêm a
se isolar em guetos da riqueza (LEFEBVRE, 2001, p.98.
As ocupações, por mais que não tenham conseguido barrar a PEC 55, deixaram a semente de luta e resistência, e marcou profundamente as pessoas que ali estavam envolvidas, ora marcando sua forma de fazer arte, ora sua
forma de fazer política, ou ampliou e tornou mais fortes os laços de amizades entre os envolvidos, laços que vão se estender para a vida ou para a próxima ocupação, rsrsrsrs, pois a semente foi plantada!
Como objeto de estudo neste caso, a Arte Relacional, foi pensada em propor as relações humanas como a grande obra de arte. As relações construídas foram a grande conquista da PDU dentro desse movimento. Podemos
dizer que dentro dessa ocupação foi criado um grande rizoma que agora permeia por várias direções e que será o grande trunfo para as lutas de resistência que virão no governo de Jair Bolsonaro. Por mais que pareça
que estamos perdendo a batalha, o futuro pode reservar uma grande reviravolta, resultado das imensas conexões que as pessoas que participaram de todas as ocupações vão multiplicar para outras pessoas indignadas
com o futuro. Estes corpos são propícios a resistir e quem sabe até ocupar. O rizoma, por não ser linear, se estende em uma rede de conexões que mesmo quebradas podem se reconectar em forma de resistência num futuro
próximo em que aqueles que hoje foram enganados, se engajem na luta por um futuro melhor e mais justo.
“O rizoma não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam. Como um mapa que se espalha em todas as direções, se abre e se fecha, pulsa,
constrói e desconstrói. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades, cria seu ambiente. Se trata de ciência? Isso importa? São apenas agenciamentos, linhas movendo-se em várias direções, escapando
pelos cantos, o desejo segue direções, se esparrama, faz e desfaz alianças. Chame do que quiser então: “riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I).
Como o objetivo desta pesquisa é mostrar como a Arte Relacional contribuiu na ampliação da instiga para as pessoas se rebelarem contra o sistema vigente e ,consequentemente a ampliar sua consciência política,
busquei entrevistar pessoas que participaram da ocupação do CAC, para saber como este episódio influenciou na sua vida e na sua arte pós-ocupação, pois o objetivo final era formar pessoas resistentes e lutadoras. As
entrevistas estao no curta metragem deste TCC, onde os participantes relatam suas experiencias dentro dos projetos aqui apresentados e da ocupaçao.
Deixo aqui o Link para assistir ao Filme " Por Uma estética Mutualista : https://www.youtube.com/watch?v=Pglt8CAIvYM
Obs: Os nomes das pessoas não serão divulgados, com a intenção de proteger a identidade dos ocupantes, estes sendo identificados somente pelo nome de um animal dentro da selva de pedra que é o CAC
Conclusão
Para concluir, temos que observar que tanto o projeto de capoeira Palmares Resiste, quanto o trabalho da PDU dentro da ocupação do Centro de Artes e Comunicação -
CAC/UFPE, mostram que a Arte Relacional, independente de qual for o suporte, seja capoeira ou graffiti, tem o poder de mudar a vida das pessoas, pois ela embaralha a Arte
com a Vida, trabalhando os anseios dos corpos que são dilacerados por uma sociedade doente, pois a Arte Relacional pode ser uma forma de tratamento coletivo, onde
buscamos a força no Outro, onde se constroem afetos e faz com que ninguém queira soltar a mão de ninguém, onde o aprendizado coletivo cria rizomas que, mesmo tendo raízes
quebradas, em algum momento, cria novas relações, e, portanto, outras formas de rizoma. Mais do que tirar força ou instiga para continuar lutando pela Arte, é tirar essa
força do Outro.
“Cada vez que há ruptura no rizoma as linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas estas linhas de fuga são parte do rizoma: as linhas não param de remeter umas às
outras. Traça-se uma linha de fuga quando se faz uma ruptura, mas nela podem encontrar-se com elementos que reordenam o conjunto e reconstituem o sujeito. "Como é
possível que os movimentos de 5 desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos
outros?" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18).
Penso que o grande papel desenvolvido nestes processos foi ajudar os integrantes a repensarem como viver suas vidas, desde pequenas ações, a atitudes com o mundo e com o
Outro. Pensemos assim: E se sua vida fosse uma obra de arte? Como algumas biografias que vemos nos filmes? Será que devemos continuar a viver conforme o Sistema nos
ensina? Ou seja, nascer, estudar para ter um emprego, arranjar um parceiro/a, se casar, ter filhos e trabalhar até se aposentar e deixar herança? O que fazemos com nossas
vidas para sermos senhores de nosso próprio destino? Sacrifícios são necessários? Me lembro de quando Bourriaud (2009) nos lembra que a vida pode “[..] ser lida como uma
história dos sucessivos campos relacionais externos, que mudam de acordo com as práticas determinadas por sua própria evolução interna [...] o que costuma chamar
‘realidade’ é uma montagem. Mas a montagem em que vivemos será a única possível?” (2009, p. 83).
Ainda existe a extrema necessidade da pós-modernidade de voltar a lutar pela macropolítica, pois micro e macro andam de mãos dadas. Vamos resgatar o ímpeto das décadas de
1960 e 1970 para que em um futuro não tão distante possamos sorrir e dizer que a luta de nossos antepassados não foi em vão! Temos a responsabilidade de cuidar do nosso
futuro pois, segundo meu mestre de capoeira, mestre Jorge Ferreira, “Um dia seremos ancestrais de alguém”. Amaral fala que, “[...} enquanto a arte não reencontrar sua função
social, prosseguirá a serviço das classes dominantes, ou seja, daqueles que detêm o poder econômico e, portanto, político” (2003, p. 3). Devemos sempre cuidar do Outro,
mesmo que esse Outro ainda não tenha nascido, pois ele é resultado do rizoma construído agora e que se nossa geração não for capaz de mudar o mundo talvez a próxima seja,
pois a luta não acaba e ninguém solta a mão de ninguém!
“ A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” (MARX, 1848, p.1).
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