TTCS 2021.2

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO


Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Artes
Curso de Artes Visuais - Licenciatura

TRABALHOS DE CONCLUSÃO DE CURSO 2021.1

Caminhar: a prática cotidiana e o fazer poético


Letícia de Melo Andrade ....................................................... 03

Raízes de nós: o cabelo crespo como dispositivo de memórias


autobiográficas e processos de criação
Rayellen Carolina Alves Higino ..............................................................44

O caminhar cíclico da criação artística


Carolina Alexandre da Mota .................................................81

Feita de mil fios: arte e experiência


Thais Arruda dos Santos ................................................................ 119

Cabeça de vírus: uma análise pessoal sobre saúde mental durante a


pandemia através da arteterapia
Bruna Letícia Guimarães Bezerra .................................................................204

As várias vezes que me pintei por aí: uma análise sobre autorretrato
Beatriz Costa Da Silva Silvestre ..................................234

Ars Fungi: experimentos sobre estética pessoal


Maria Cabral De Melo Borges.................................................... 290

Projeto Fayga Ostrower: interfaces, desafios e possibilidades em


formação e mediação
Alexandra Jarocki Raduy ..........................................................................332

Do torto ao reto, e de volta ao torto de novo: desvelando o desenho


Contemporâneo
João Belforte ..................................................412
Piracema: existir e trafegar na ausência
Ziel dos Santos Mendes .........................................................499

Paleoarte e a sétima arte: influências da ilustração de dinossauros no


cinema
Lucas Gomes Ximenes Caminha ..................................525

A experiência de docência em artes visuais e o uso de dispositivos


tecnológicos
Julianne Caldas Muniz da Silva ................................................................... 543

Por uma estética mutualista


León Sousa Domingues ................................................565
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE ARTES
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

CAMINHAR: A PRÁTICA COTIDIANA E O FAZER POÉTICO

Letícia de Melo Andrade

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de Arte, da Universidade Federal de
Pernambuco, como requisito parcial para obtenção
do grau de Licenciada em Artes Visuais, sob
orientação da Profª. Dra. Luciana Borre.

Recife, 2021
CAMINHAR: A PRÁTICA COTIDIANA E O FAZER POÉTICO

Aprovado em: ____/____/____

Comissão examinadora:

_______________________________________________
Dra. Luciana Borre (Orientadora)

_______________________________________________
Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (Membro titular interno)

_______________________________________________
Ma. Anna Carolina Cosentino (Membro titular externo)
Agradecimentos

Que alegria é ter a oportunidade de agradecer aqueles e aquelas que fizeram parte dessa
extensa caminhada que não conhece fim. De alguma forma, essas pessoas foram atalhos,
desvios para que eu pudesse encontrar um novo trajeto, guias dentro da Zona. Sem essas
pessoas eu estaria andando em círculos.
Agradeço à Deus pelas possibilidades e coincidências desse caminho, que foram
inúmeras. Para terminar essa graduação em meio a pandemia de Covid-19 foi preciso
verdadeira intervenção divina.
Agradeço aos ouvidos de minha mãe e irmã, Gisela e Alexia, sem esses dois pares de
orelhas mágicas (que, como elas bem sabem, são impossíveis de matar) esse trabalho não
existira. Agradeço as suas vozes e mãos também, que tanto me auxiliaram. Aos olhares mais
que atentos dos meus avós, Albertina e Andrade, que curiosamente me questionavam ao passo
que tentavam entender minhas loucuras, obrigada por entenderem mesmo sem entenderem. À
toda minha família que até hoje não sabe muito bem o que eu faço e a quem eu acho tão
engraçado ter que explicar com frequência porque, às vezes, nem eu sei. Mas, sempre que
preciso de socorro, estão mais que dispostos a ajudar como podem. Obrigada vovó Carmem e
tia Alda, pelo cuidado e carinho. Me pergunto se esse interesse pelo ensinar é uma herança
sanguínea.
Sei que foram muitas as curvas que me fizeram ingressar neste curso no ano de 2017,
agradeço a esses desvios quando penso nos meus mais que queridos amigos e olho para o
caminho que traçamos até aqui. Meus companheiros nessa jornada que foi por muitas vezes
tortuosa, mas que me trouxe infinitas alegrias, espero compartilhar ainda tantas outras.
Obrigada a Carol e sua tortinha de abobrinha; Daniel, seu casaco e estórias; Graci, minha
doppelgänger de pesquisa e inseguranças; Ju por, junto a mim, construir o império do Açaí
Vida Boa na frente do CAC; Mayara por concordar com veemência; Mahavir pelo meme do
gatinho sendo mordido por um jacaré de brinquedo; Rafa pelos melhores powerpoints e Willder
pelas indicações cinematográficas, apesar de toda a desconfiança.
É imprescindível destacar como os/as docentes do curso de Artes Visuais me auxiliaram
ao longo de minha graduação. Agradeço à minha orientadora, Luciana Borre, por acreditar
sempre em mim, sempre disposta a me ouvir e me guiar de maneira tão delicada e fluida. Que
alegria tamanha foi poder participar de tantas ações e projetos mediados por ti, obrigada pelas
oportunidades; sou imensamente grata pela confiança, amizade e respeito. Agradeço também
ao professor Carlos Newton Júnior, por me aceitar como monitora quando eu sabia menos
ainda do pouco que sei hoje, pela paciência e por me dar o pontapé inicial no que seriam
processos de pesquisa e docência. Maria Betânia e Silva por mostrar em suas aulas os infinitos
caminhos que o ensino pode percorrer, com muito afeto e cuidado, fator tão importante no
curso de Licenciatura. Ana Lisboa, por estar sempre aberta e disponível, pela tamanha
generosidade. Agradeço à Bruna Rafaella Ferrer e seu interminável escopo de referências, o
período que tivemos contato foi curto porém o que tive a oportunidade de ver nesse intervalo
me acompanha e acompanhará ainda por muito tempo, que bom foi perceber essas derivas
educacionais. Também quero agradecer ao professor Eduardo Romero, um sopro de vida tão
contagiante estar em suas aulas, é muito bom ver a educação por seus olhos sempre tão ávidos
e empolgados. Obrigada por aceitar participar nessa etapa tão crucial deste trabalho que é a
defesa. Agradeço também à Carol Cosentino, sua disponibilidade e solicitude.
Esse trabalho definitivamente não seria o mesmo sem a colaboração de Walton Ribeiro,
que produziu essas fotos lindas e tão sensíveis dessa caminhada poética. Meu agradecimento à
Jéssica Tardivo, professora que me supervisionou em meu estágio e sempre me deixou livre
para caminhar, correr e pular, obrigada pelo entusiasmo e confiança.
Obrigada a todos aqueles que constroem novos trajetos a partir da caminhada.
Resumo

Esta pesquisa almeja estabelecer um diálogo entre a caminhada e os processos artístico-


educativos que dela podem ser gerados. A prática da caminhada é vista aqui não apenas de
maneira física, mas também como uma poética cotidiana capaz de produzir encontros
essenciais para minha formação como pessoa e arte-educadora. Sendo assim, apresento os
processos de criação da performance “Verbos de ligação”, realizada em 2020, em Recife/PE,
e os sentidos que criei sobre ser artista, professora e pesquisadora. Mantenho uma conversa
contínua com autores que tratam sobre a caminhada como artifício de transformação do
indivíduo e do espaço urbano (CARERI, 2013 e BRITTO; JACQUES, 2008, 2009) e com
autoras/es que abordam os processos de criação (OSTROWER, 2001; IRWIN, 2006, 2019).

Palavras-chave: Caminhada; Processos de Criação; Artes Visuais; Formação Docente.

Abstract

The present research aims to establish a dialogue between the act of walking and the
artistic/educational processes that can be generated from it. The practice of walking is seen
here not only in a physical manner, but also as a daily poetics capable of producing essential
encounters to my formation as a person and art-educator. Therefore, I introduce the processes
of creating the performance “Verbos de Ligação”, held in Recife/PE, in 2020 and the meanings
this action perpetrated on me as an artist, teacher and researcher. I maintain a continuous
dialogue with authors who see walking as an artifice for the transformation of the individual
and the urban space (CARERI, 2013 e BRITTO; JACQUES, 2008, 2009) and other authors
who address creative processes (OSTROWER, 2001; IRWIN, 2006, 2019).

Key-words: Walking; Creative Processes; Visual Arts; Teacher Training.


Sumário

Introdução 6

1. Sobre performances cotidianas 9

2. A caminhada como experiência 16

3. Verbos de ligação 22

4. Traçando caminhos poéticos-educativos 30

5. Mapas, bússolas e novos sentidos de rotação e equilíbrio 34

Referências 37
6

Introdução

Ah! Cangurus, paetês, milk-shakes!


Que beleza! Pérolas, gaitas
jujubas, aspirinas! todas essas
coisas sobre as quais sempre se fala

ainda fazem de um poema uma surpresa!


Elas estão conosco todos os dias mesmo
que em casa matas e cata falcos. São coisas
com sentido. São fortes como pedra.
(O’HARA, 1950, s/p).

Sempre tive uma relação de simbiose com a cidade, uma relação de muita inquietude e
reflexão. Quando era adolescente, depois da escola, à noitinha, eu e meus amigos íamos com
certa frequência ao calçadão da praia de Candeias. Muitas vezes apenas pelo caminhar, para
ficarmos mais um tempo perto uns dos outros, para ver o mar. Em certas ocasiões eu ia sozinha
ao calçadão, apenas pelo prazer de andar pela cidade, de imaginar a vida das pessoas. Perceber
os prédios, os transeuntes. Fascina-me olhar as janelas acesas à noite e imaginar tudo que se
passa naquele espaço, caminhar e devanear sobre as pessoas que passam por mim, o que fazem,
para onde vão. Há muito tempo questiono como a minha existência se relaciona a essas tantas
outras pessoas com as quais me deparo todos os dias na cidade.
Tenho o costume de inventar histórias, uma prática que aprendi com minha mãe.
Observamos todas as pessoas: quando sentamos para comer em algum lugar, andando de
ônibus, quando entramos numa fila de supermercado, sentadas na sala de espera de um
consultório. Então começamos a supor profissões, sobre o que conversam, em que parada essas
pessoas irão descer, as relações de parentesco aparecem entre elas: são primos, pais, cunhadas
e avós. Em seu livro O Paraíso são os outros, Valter Hugo Mãe (2018) faz uma descrição
poética que traduz perfeitamente este fascínio sobre pessoas e sobre a vida que compartilho
com minha mãe:

Aliás, sou mesmo assim, fico atenta a toda a gente. Gosto de olhar
discretamente. Confesso. Imagino a vida dos outros. Não é por cobiça. É por
vontade que dê certo. Por exemplo, vejo alguém sem cabelo e invento que há
gente que só gosta de homens carecas e então ser careca passa a ser uma
vantagem ou, pelo menos, desvantagem nenhuma (MÃE, 2018, p. 31).

Hoje, questiono-me se esse observar não faria parte de uma investigação sem fim, uma
pesquisa sem conclusão, sem objetivo geral ou específico. Faz-se então parte de um processo,
um trabalho contínuo que se mescla com o próprio ser. Eu incorporo a vida dos outros à minha,
7

o cotidiano me alimenta, teço os fios das minhas histórias pegando emprestado essas rebarbas
que as pessoas entregam-me sem perceber, formando uma enorme colcha que me acalenta com
uma maciez tamanha.
O têxtil é um material que hoje muito me contempla. Quando penso em realizar algum
trabalho físico, quando o desejo de criar um objeto se espreita, o têxtil costuma ser a
materialidade a qual recorro. Posso citar aqui várias razões para que tal fato ocorra, as
possibilidades advindas de sua diversidade de técnicas e suportes ou mesmo as relações de
memória que criei com esses materiais seriam justificativas muito fidedignas. Sinto que o têxtil
me permite ficar entre o figurativo e o abstrato. Tenho notado que esse espaço intermediário é
inevitável, até mesmo medular, em minhas investigações artísticas e de pesquisa.
Comecei a bordar, primeiramente roupas, em 2019, depois que aprendi a técnica de
ponto-cruz com minha mãe. Hoje, reflito sobre como as roupas são um artefato de memória,
de afeto, peças ativas na nossa relação com o mundo que nos cerca (STALLYBRASS, 2008).
Venho então investindo na prática têxtil em meus trabalhos, tentando cada vez mais relacionar
arte e vida. Logo vi nesta materialidade uma oportunidade de levar meu fazer artístico para
além de espaços expositivos, já que o bordado me permite ser meu próprio espaço expositivo.
Percebo que quanto mais discutimos sobre a arte como prática intrínseca a nossas
narrativas e experiências cotidianas, podemos distanciá-la de um local de privilégio ou
relacionado a um talento nato, o que por consequência aproxima a arte do público em geral,
que não está inserido nas academias. Perceber atos cotidianos, como neste caso caminhar e
bordar, como atos estéticos, parece-me possibilitar a desmistificação do fazer artístico,
propondo que repensemos o que é arte e o que é ser artista hoje.
Neste trabalho, caminhei e tramei como experiência existencial, relacionando-me de
outro modo com meu entorno. Refleti sobre a relação entre a cidade e o corpo, entre o corpo e
o têxtil, entre caminhada e processos educativos. Investigar uma corpografia urbana (BRITTO;
JACQUES, 2008), um caminhar atento, afetivo e sensível, transforma o espaço que habitamos
e nossa relação para com ele. Seja pelo simples fato de vivenciar a cidade de maneira
consciente, não alienada, modificando-a e me modificando simultaneamente, ou pelo impacto
causado no outro, no transeunte.
Para tal, realizei uma performance intitulada “Verbos de Ligação” onde utilizei um
vestido costurado e bordado por mim enquanto caminhei e utilizei o transporte público. Essa
deambulação funciona como uma performance da própria vida cotidiana (SCHECHNER,
2003). Pretendo entender o que posso aprender nestas caminhadas sobre mim, sobre minha
relação com o ambiente e sobre minha relação com a arte e a educação. Portanto, utilizei das
8

experiências dessas caminhadas no espaço urbano, pensadas como performances de “um


gênero de arte/vida, refletindo igualmente os aspectos artificiais do dia a dia e as qualidades
naturais da arte criada” (KAPROW, 2010, p. 114).
Para aprofundar os aspectos reflexivos proporcionados pelo caminhar e pelo bordar,
tracei algumas rotas: acercamento de artistas, obras e movimentos que exploram a estética do
caminhar para ampliação de meu repertório visual; discussão sobre o campo da performance
como prática cotidiana; criação de um vestido bordado com memórias pessoais; exploração da
cidade como espaço propício para manifestações artísticas por meio da performance “Verbos
de Ligação”; interpretação e reflexão de meus trajetos educativos e criativos durante a
graduação em Artes Visuais.
Investi na abordagem a/r/tográfica, visando a união das particularidades
artísticas/educativas/investigativas desta pesquisa. Debrucei-me sobre os estudos de Rita Irwin
(2006; 2019) e seus textos sobre a a/r/tografia unida a uma poética do caminhar, com a qual é
possível desenvolver uma pedagogia a partir da ideia de currere, termo que utilizado por Irwin
para descrever o currículo como um percurso fluido e imaginativo. É partindo da a/r/tografia
que vejo a possibilidade de adentrar em processos formativos não apenas no sentido acadêmico,
mas uma construção de mim mesma, já que “experiências encontradas em momentos ordinários
da vida fornecem caminhos para uma pedagogia de si mesmo, enquanto a atividade artística
fornece uma postura recursiva em direção à investigação contínua e o envolvimento com ideias
ao longo do tempo” (IRWIN, 2006, p. 75).
9

1. Sobre performances cotidianas

As inseguranças de ingressar no curso de Artes Visuais, de exibir trabalhos ou me


entender como artista visual me seguem desde meu ingresso. Pelo convívio com colegas de
classe, sei que não sou a única nesta posição. Esta insegurança surge com frequência entre os
amigos que fazem o mesmo curso, tornando-se recorrente tema de discussão. Antes de entrar
nesta graduação, tinha muito receio de não ser capaz de desenvolver poéticas suficientemente
boas a nível do ensino superior em Artes Visuais, mesmo o curso sendo de licenciatura. Já
dentro da universidade, a maioria dos componentes curriculares práticos, tais como desenho,
pintura, argila não me satisfaziam como suporte, frustrando-me.
Entendo que essa insegurança advém não apenas por pensar que meu trabalho possa
não ser bom o suficiente numa categoria estética/técnica, mas que este precisa de uma
legitimação de espaços expositivos, de publicações, de especialistas e outras instituições que
supostamente detém o poder de conceder ou não a alcunha de Artista. Quando tal denominação
é feita apenas pelo próprio sujeito criador de arte, parece um título vazio, ainda dentro do
amadorismo, mesmo estando inserido na academia.
Percebo que talvez o problema seja o retrato construído ao redor do ser artista e do fazer
artístico, que não se encaixa na ideia que hoje tenho sobre arte. Esta retoma a uma herança
moderna, com a qual ainda permanece a ideia de arte pela arte, rompimento aos movimentos
precedentes, inovação, originalidade, etc. Considero o fazer artístico uma prática cotidiana, não
exclusivista, possível de ser realizada por qualquer pessoa. Penso que todos temos a capacidade
de criar, de sermos criativos, pois “a criatividade e os processos de criação são estados e
comportamentos naturais da humanidade. São naturais, no sentido do próprio e também do
espontâneo em que todo fazer do homem torna-se um formar. A criatividade é, portanto,
inerente à condição humana” (OSTROWER, 2001, p. 53).
Neste sentido, desejo discorrer sobre a relação entre arte e vida, sobre como práticas
cotidianas podem ser atos artísticos, até os mais banais e essenciais para a existência dos seres
vivos, tal como a respiração. Allan Kaprow (1927-2006), em seu ensaio Performing Life (2010)
propõe uma peça tendo como objeto de estudo o respirar. Allan reflete sobre como essa e outras
tantas ações tão corriqueiras podem ser consideradas performances, afirmando que

Esses são pensamentos sobre a consciência de respirar. Essa consciência do


que fazemos e sentimos a cada dia, sua relação com a experiência alheia e
com a natureza à nossa volta, torna-se, de modo real, a performance da vida.
E o próprio processo de prestar atenção a essa sequência está no limiar da
performance artística (KAPROW, 2010, p. 115).
10

Esse pensamento abre um leque de possibilidades que dificulta o discernimento entre o


que é e o que não é arte. Porém, entendo que esta discussão sobre os limites da arte não seja
exclusiva da contemporaneidade, pelo contrário. Marcel Duchamp (1887-1968) e seus ready-
mades já apontavam, no início do século XX, para uma arte crítica, onde objetos sem apelo
artístico eram postos nas galerias e outros espaços expositivos, trazendo à tona a discussão
sobre qual o valor do objeto artístico fora desses espaços. Já dentro da prática de caminhada,
os dadaístas consideravam que “a frequentação e a visita aos lugares insossos são uma forma
concreta de realizar a dessacralização total da arte, a fim de alcançar a união entre arte e vida,
entre sublime e cotidiano” (CARERI, 2013, p. 74).
Experiências cotidianas são reinventadas pela arte, expostas das mais diferentes formas,
utilizando uma diversidade de suportes. Alguns artistas utilizam a própria existência como
forma de arte. On Kawara (1933-2014), por exemplo, mandou 2 cartões postais por dia por 12
anos, entre 1968 e 1979 para parentes, amigos, colecionadores, e outras tantas pessoas. Os
cartões postais tinham apenas uma mensagem: “I Got Up” e a hora em que o artista havia se
levantado, o que não indica o mesmo horário que ele acordou. Já em “I Went”, On mapeou os
lugares em que ia diariamente durante o mesmo intervalo temporal em que realizou I Got Up.
O artista marcava o local onde tinha acordado e delineava sua trajetória ao longo do dia, se On
não saísse de casa, ele simplesmente circulava o local onde teria ficado o dia inteiro.1

1
Para mais informações sobre as obras de On Kawara aqui citadas, visite:https://www.guggenheim.org/teaching-
materials/on-kawara-silence/postcards-i-got-up e https://www.guggenheim.org/audio/track/on-kawara-i-went-
1968-79.
11

On Kawara, I Went, 1977.


Tinta sobre fotocópia, 27.9 × 20.3 cm.
Fotografia de Kris McKay, Museu Guggenheim.

Esse desvio, esse questionamento sobre a legitimidade da arte transpassa para além das
artes visuais. O músico John Cage (1912-1992) propôs um aspecto relacional à música em sua
célebre obra 4 '33'', onde o artista senta em frente ao piano e não toca uma nota sequer por 4
minutos e 33 segundos. A peça repensa a relação do músico com o público quando evidencia
não a apresentação musical em si, mas os ruídos feitos pelos presentes na apresentação. Cage
valorizava os sons de todos os tipos, não apenas provenientes de instrumentos. Além de
considerar esses sons como música, o artista reflete sobre a importância do silêncio na música,
tendo seu trabalho reverberações que alcançam a contemporaneidade, inclusive influenciando
muitos artistas visuais, estando sempre em contato com o grupo Fluxus. Cage repensou o ato
de compor como um todo, realizando músicas que eram compostas pelo acaso, usando o
oráculo chinês I Ching. John trabalhou por muitos anos com seu parceiro Merce Cunningham
(1919-2009), nesses trabalhos os dois propunham que a dança e a música não precisavam estar
em consonância, como podemos observar em “How to pass, kick, fall and run”2 (1965) onde

2
A apresentação pode ser vista em: https://www.youtube.com/watch?v=mJtD8vdl4Ec.
12

Cunningham e dançarinos/as de sua Companhia se apresentaram enquanto Cage lia um texto


sobre uma viagem que os dois fizeram juntos pela Europa e outras histórias da vida dos artistas.
Por meio destes trabalhos, tento exemplificar como elementos do cotidiano podem ser
pensados como arte, ou como a arte está diretamente imbricada no cotidiano. Ou ainda,
questionar quando e por que a arte se distanciou do cotidiano? Seria a performance um campo
propício para relacionar a arte ao cotidiano? Quando e como as atitudes cotidianas são
consideradas performances?
Richard Schechner (2003) defende que tudo pode ser estudado como performance. O
autor afirma que, para que algo seja uma performance é preciso repetição, o que ele denomina
como comportamentos restaurados ou duplamente exercidos. Esses comportamentos seriam
“ações físicas ou verbais que são preparadas, ensaiadas ou que não estão sendo exercidas pela
primeira vez. Uma pessoa pode não estar consciente que está exercendo um pedaço de
comportamento restaurado” (SCHECHNER, 2003, p. 50). Para a performance artística, existe
um treinamento, assim como para a performance esportiva, a performance ritualística e a
performance do dia a dia. Esses rituais não dependem só do individual, mas da prática coletiva,
vão além do sujeito, já que seguem regras e acordos tácitos. Por isso, nossas ações diárias, que
contém essa repetição, como também um certo grau de treinamento realizado desde que
nascemos, podem ser consideradas performances.
Demonstro o valor dessa repetição por meio da performance “Identical Lunch”3 (1960)
de Alison Knowles (1933-). A artista costumava almoçar com amigos no restaurante Riss, no
bairro de Chelsea em Nova York. Em um desses almoços, seu amigo Philip Corner comentou
que Knowles sempre fazia o mesmo pedido: um sanduíche de atum em uma torrada de pão
integral com alface e manteiga, sem maionese, acompanhado de um pouco de sopa ou leitelho
(buttermilk). Nessa repetição, a artista percebeu que estava envolvida em uma performance.
Ou melhor, percebeu que poderia denominar, sentir, desenvolver aquela ação como
performance. Knowles pediu então para que amigos experimentassem o prato e fizessem
descrições de suas impressões a ela, Alison também tentou recriar o sanduíche em vários países
do mundo. De 13 de janeiro a 4 de fevereiro de 2011, às quintas e sextas, visitantes do MoMA
puderam comer o Identical Lunch com a artista no café do museu como parte da exposição
Contemporary Art from the Collection.
Então, assim como assinala Kaprow (2010) em sua performance do respirar, Schechner
(2003) também destaca que para ações cotidianas sejam consideradas performances, elas

3
Para mais informações e imagens, visite: https://www.moma.org/calendar/performance/1583.
13

precisam ser emolduradas, ter um senso de realização. Toda ação tem o potencial de ser
considerada performance, mas para tal é preciso estar consciente sobre essas ações.
Tratar qualquer objeto, obra ou produto como performance - uma pintura, um
romance, um sapato, ou qualquer outra coisa- significa investigar o que esta
coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona com
outros objetos e seres. Performances existem apenas como ações, interações
e relacionamentos (SCHECHNER, 2003, p. 29).

Importante notar que apesar de existir uma vasta gama de ações que podem ser
consideradas e estudadas como performances, isso não as faz serem julgadas automaticamente
como arte. Por exemplo: no balé e na caminhada performamos por meio de passos. Qual a
diferença entre eles? Seria a elegância dos movimentos da dança, a emoção que estes despertam
no espectador? Na contramão, penso em como nós no nosso cotidiano, supostamente não
dançante, possuímos individualmente uma maneira de andar, o jeito como o corpo se comporta
em diferentes espaços, penso em como eu reconheço os passos das pessoas que moram comigo
quando sobem as escadas, em como os dedos dançam quando manipulam as chaves e como
posso distinguir cada passo só pela audição. Para mim, os passos da chegada e da partida
também emocionam.
Porém, compreendo que o é e o que não é considerado arte foge do simples movimento
emotivo, pois essa decisão está embebida sobretudo de lugares de poder. É preciso que esta
minha leitura dos passos rotineiros seja ratificada por pessoas que detém o status necessário
para, supostamente, discernir o que pode ser contemplado como arte e o que é apenas vida. Vai
além da forma e estética: vai para quem pode narrar o outro.
A partir destas colocações, foco no trabalho de dois artistas reconhecidos que me
ajudam a visualizar a caminhada como performance do cotidiano: a sérvia Marina Abramović
(1946-) e seu então parceiro alemão Ulay (1943-2020).
Marina Abramović e Ulay nasceram no mesmo dia, 30 de novembro. Eles se
conheceram em uma festa em Amsterdam, também nesta mesma data. Os dois mantiveram
uma parceria simbiótica de vida e arte durante 12 anos, entre 1976 e 1988 realizando
memoráveis performances neste intervalo, como “Rest Energy” (1980); “Light/Dark” (1977) e
“AAA AAA” (1978). Em 1988 os dois romperam relações tanto artísticas quanto pessoais,
permanecendo anos sem contato.
Para marcar essa separação, realizaram uma performance chamada “The Great Wall
Walk”4 (1988). Nesta, ambos decidiram caminhar pela Grande Muralha da China, encontrando-

4
Um pouco mais da narrativa completa dessa performance bem como outros detalhes sobre a relação de Ulay e
14

se no meio. A performance começou a ser idealizada em 1983, originalmente com o intuito de


que Abramović e Ulay se casassem no local, porém a burocracia chinesa atrasou o projeto, e
quando os dois finalmente obtiveram permissão para a performance, o encontro aconteceria
para que se despedissem.
Marina começou sua caminhada do Mar Amarelo e Ulay do deserto de Gobi. Os dois
caminharam por quase 2.500 quilômetros, geralmente dormindo em vilas perto da Muralha. A
performance durou 3 meses. Os dois se encontraram, se abraçaram e seguiram seus caminhos
separados, encontrando-se apenas 22 anos depois na performance de Abramović no MoMa
“The Artist is Present” de 2010.

Marina Abramović e Ulay em “The Great Wall Walk", 1988.

Examinando o exposto sobre as relações de entre arte e vida, os estudos da performance e


as obras aqui mencionadas, chego a conclusão que a performance se caracteriza hoje como um
campo totalmente expandido, muitas vezes mesclando mídias e propondo ações que
transpassam o conceito que muitos tem sobre arte. Acrescento que “a discussão sobre o termo
performance e a reticência de alguns artistas em usá-lo destacam o fato de que o formato padrão
- no qual o artista performer usa seu corpo como instrumento que apresenta uma ação ao vivo
está sendo retrabalhado e ampliado” (PELED, 2012, p. 50).
Apesar da performance acolher bem uma diversa gama de ações e até práticas

Marina Abramović está disponível em: https://www.theguardian.com/travel/2020/apr/25/marina-abramovic-


ulay-walk-the-great-wall-of-china e https://www.moma.org/audio/playlist/243/3125.
15

cotidianas, a discussão sobre os limites da arte continua. Posso perceber pelo discurso de
Schechner (2003) que essas práticas rotineiras podem ser tratadas como performances, mas
quando uma performance deixa de ser interna, só do meu conhecimento, cotidiana (PELED,
2012) para ser considerada arte? Embora já tenha exemplificado aqui várias obras que são
performances bem como obras de arte que utilizam o dia a dia como poética, também utilizando
a caminhada como fonte de estudo, percebo que essas são criadas e realizadas por artistas
renomados e expostas em espaços consagrados. Então, retomo aqui a discussão de legitimidade
para refletir sobre a arte do cotidiano feita por pessoas não inseridas no cânone das artes ou no
mercado de arte. Utilizo novamente do pensamento de Allan Kaprow, que afirma ser neste
ponto que chegamos a um paradoxo:

Um artista preocupado com arte cotidiana é um artista que faz e não faz arte.
Qualquer coisa aquém do paradoxo seria simplista. A menos que a identidade
(e portanto o significado) do que o artista faz oscile entre o comum, atividade
reconhecível e a ‘ressonância’ daquela atividade num contexto humano mais
amplo, a própria atividade reduz-se a comportamento convencional. Ou se ela
é enquadrada como arte por uma galeria, reduz-se a arte convencional. [...]
Porém a vida comum performada como arte/não arte pode mudar o cotidiano
com um poder metafórico (KAPROW, 1993, p. 215, tradução minha).

O foco deste trabalho é exatamente a poética da prática cotidiana. Um poder metafórico.


Penso que aqui, o enquadramento do caminhar se dá, como na performance, por uma mudança
de sensibilidade do ser, de uma abertura para as poéticas do cotidiano e uma atenção, um estado
de vigília, uma consciência para com essas ações e a instauração de inúmeras incertezas. O
caminhar é uma atividade realizada infinitas vezes ao longo da vida, mas essa mudança de
perspectiva, o olhar diferenciado sobre nosso corpo e a cidade que este ocupa, pode nos apontar
um caminho mais claro quanto ao estudo da arte cotidiana. A relação entre arte e vida se dá
quando estamos atentos e nos interessamos em “tudo que cochicha baixinho” (GROS, 2010, p.
66 apud TERRA; DIAS, 2019, p. 347).
16

2. A caminhada como experiência criativa

Verbos de Ligação, performance, Letícia de Melo Andrade, 2020. Fotografia: Walton Ribeiro

- As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem


um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não
aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá
às nossas perguntas.
- Ou as perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder,
como Tebas na boca da Esfinge. (CALVINO, 1990, p. 44)

A vida que corre no espaço urbano me traz uma sensação de pertencimento e,


simultaneamente, de mera observadora da existência de tudo ao meu redor. Nunca soube muito
bem explicar esse sentimento, mas sei que faz parte de mim e que me comove quando ando a
pé ou de ônibus. Sinto isso de maneira tão intensa que, logo depois de descobrir o estudo
estético do caminhar, tive certeza que precisava trilhar esta temática para o Trabalho de
Conclusão do Curso.
Penso que a tradução dessas sensações em palavras é uma tarefa árdua que tento, muitas
vezes em vão, dominar. Neste caso, onde busco expressar-me num formato textual, parece-me
17

importante achar as palavras que acredito fazerem jus ao que sinto, palavras que muitas vezes
custo a encontrar. Até que, recentemente, deparei-me com o trabalho de John Koenig, que cria
palavras para sentimentos que anteriormente não pareciam ter uma designação apropriada.
Assim aprendi que sonder, integrante de seu Dicionário das Tristezas Obscuras (Dictionary of
obscure sorrows originalmente) traduz essa vivência, por significar:

a percepção que cada transeunte aleatório está vivendo uma vida tão vívida e
complexa quanto a sua - ocupada pelas suas próprias ambições, amigos,
rotinas, preocupações e loucuras herdadas - uma história épica que continua
ao seu redor de maneira invisível como um formigueiro que se espalha no
subsolo, com passagens elaboradas para milhares de outras vidas que você
nunca saberá que existiram, na qual você talvez apareça apenas uma vez,
como um figurante bebericando café em segundo plano, como um borrão de
trânsito passando na estrada, como uma janela acesa no crepúsculo
(KOENIG, 2013, s/p).

Por isso, quero discorrer aqui sobre o caminhar como poética com o intuito de desfrutar
a cidade, uma caminhada afetiva, buscando perceber que o espaço urbano faz parte de nós na
mesma medida em que fazemos parte dele. Como dois organismos vivos que trabalham em
sintonia, numa relação de mutualismo, simbiótica. Desta forma, elaboro um estudo para além
da ação do caminhar, realizando assim uma reflexão sobre as relações tecidas na cidade.
Acredito que é possível, por meio da caminhada, modificar os espaços que vivemos e nos
modificarmos igualmente. Quero debater um pouco sobre como a caminhada tem essa
potencialidade de transformação, o poder metafórico a que se refere Kaprow no ordinário.
O caminhar é uma atividade múltipla, perpassada por vários propósitos. Reflito sobre
as diversas formas de caminhar: temos o caminhar de fé, das procissões, o caminhar dos
missionários mórmons, das promessas (essas às vezes nem são feitas com os pés); o caminhar
como exercício físico; o caminhar exploratório do turista; o caminhar para ir de um lugar a
outro, mas sem pressa, numa cadência quase musical; também temos o caminhar ansioso para
encontrar alguém, cheio de expectativa, de desejo, nesse caso o caminhar se torna quase como
um flutuar; entre tantos outros caminhos e caminhadas, ir e vir, outras diversas relações criadas
por nós com o espaço em que habitamos.
Em seu livro “Walkscapes: o caminhar como prática estética”, o arquiteto italiano
Francesco Careri (2013) apresenta um panorama muito completo sobre a caminhada como
formadora primeira do espaço. O autor remonta eventos da era paleolítica, unindo arte e
arquitetura para demonstrar as diversas faces e utilidades que a caminhada teve e tem ao longo
dos séculos. Careri defende que
18

o caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma


transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do homem
num espaço não mapeado - e o variar das percepções que daí ele recebe ao
atravessá-lo - é uma forma de transformação da paisagem que, embora não
deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e,
consequentemente, o espaço em si, transformando-se em lugar. O caminhar
produz lugares. Antes do neolítico, e, assim, antes dos menires, a única
arquitetura simbólica capaz de modificar o ambiente era o caminhar, uma
ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo
tempo é leitura e escrita do território. (CARERI, 2013, p. 51)

Desde o começo do século XX, o ato de caminhar tem sido ressignificado,


primeiramente pelos dadaístas, então pelos surrealistas e situacionistas. A partir das mudanças
advindas dos processos de industrialização, o que acarretou no desenvolvimento das cidades,
artistas destes movimentos propõem ações com a ideia de esmaecer a linha que separa arte e
vida, além de afastar suas representações artísticas do objeto e aproximar-se a experiências
estéticas. A leitura que esses artistas têm do espaço e dos vínculos que criamos para com ele
muda, a cidade torna-se um local de análise física, afetuosa e política de suas banalidades.
Creio que essa leitura de arte como experiência nos ajuda a entender melhor a
caminhada como poética. Resgato aqui as palavras de Kaprow (1993) e seu “poder metafórico”,
pensando que desde o momento que identificamos em nós mesmos esse poder de transformação
a partir do cotidiano, suponho que podemos expandir o significado do que seria arte e como
podemos desfrutá-la de maneira corrente. Portanto, seguindo a temática do primeiro tópico
desta investigação, onde pude demonstrar os aspectos performáticos da caminhada, pretendo
discutir aqui como essa experiência tem potencialidades de transformação de quem pratica uma
caminhada atenta e sensível e o desenrolar dessa vivência nas mudanças espaciais dos lugares
que habitamos.
Para iniciar este debate, valho-me das palavras de Jorge Larrosa Bondía (2002) e suas
considerações sobre o estado da experiência na contemporaneidade. Larrosa nos diz que a
experiência é o que nos acontece, não é uma situação onde se é apenas expectador ou algo
compartilhável, já que a partir de um acontecimento comum as percepções geradas por cada
participante será diferente (BONDÍA, 2002). A cidade é permeada pelas narrativas que
traçamos com ela, o que a faz única para cada um de seus habitantes. Andamos em cidades
distintas, parece estarmos em diferentes planos do espaço-tempo. Larrosa deixa claro que
é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se
propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada
lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o
toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.
(BONDÍA, 2002, p. 25)
19

Pensar na experiência quando falamos da caminhada como processo criativo é


indispensável. É só a partir dela que podemos formar uma relação sensível com os lugares, a
experiência mostra-se como ação de resistência ao cotidiano alheio que costumamos repetir
todos os dias. A partir do momento em que o corpo adquire uma sensibilidade diante do seu
entorno, que a percebe e que afeta-se a partir dele, viabiliza-se as corpografias urbanas, onde
“a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no corpo daquele
que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente” (BRITTO;
JACQUES, 2009, p. 341).
Verbos de ligação afetou-me significativamente. Primeiro porque entendi que minha
formação enquanto arte-educadora estava sendo transformada pela percepção da arte como
experiência, mostrando, por exemplo, que posso driblar o ensino dos conteúdos pré-
estabelecidos nas instituições de ensino. Depois, porque minha percepção dos espaços urbanos
anunciou minhas co-responsabilidades em cada passo que dou. Ou seja, uma caminhada
poética também revela que sou parte viva dos acontecimentos que ali ocorrem, admitindo assim
que a cidade fica, involuntariamente, inscrita nos corpos de seus habitantes.

VALIE EXPORT, Encirclement da série Body Configurations, 1976.


Fotografia, 35.5 × 59.6 cm
Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA)

Tento apresentar melhor meus entendimentos por meio da obra Body Configurations
20

(1972-76) da artista austríaca VALIE EXPORT. A artista nos apresenta seu corpo como
unidade de medida, uma escala, um modelo para a arquitetura da cidade. Ela realiza uma
corpografia urbana, uma cartografia feita pelo e no corpo. Não é com facilidade que VALIE
EXPORT se contorce para entrar no padrão arquitetônico, sendo esta uma das razões pela qual
acredito que esta obra contempla as corpografias, trata-se realmente de um exercício fazer-se
presente na cidade. Segundo a própria VALIE EXPORT,

os Body Configurations são uma exploração da cidade de Viena. Eu escolhi


vários edifícios históricos para eles; existia um plano preciso para introduzir
eu mesma e meu corpo visível na cidade. Isso era um importante ponto de
partida: por um lado, a cidade me pertencia; mas por outro lado, eu também
pertencia à cidade (VALIE EXPORT, 2018, s/p)5

No texto “Caminhar, um método poético” (DIAS; TERRA, 2019) podemos atentar para
o caminhar como fomentador de ações artísticas por meio da vivência total do espaço e do
corpo, com um andar compromissado apenas na descoberta da vivência de desejos.
Compreendo que a vivência do corpo na cidade modifica os espaços também de maneira física,
naturalmente, intuitivamente (Como intuitivamente?). Exercendo nossas vontades na
caminhada por vezes deixamos rastros na cidade, os chamados caminhos do desejo, onde o
corpo exerce suas vontades e necessidades. Estes caminhos são feitos pelos transeuntes,
quando abrimos novas rotas por espaços antes não designados para a passagem, transbordando
os caminhos determinados pelas calçadas, deixando rastros. Os caminhos do desejo são a prova
tangível da insuficiência do que é imposto pelo espaço urbano às demandas pessoais da vontade
de cada um. “Esse deslocar compreendido como instrumento estético de conhecimento e
modificação física do espaço, relaciona-se à forma autônoma de se fazer arte, a própria
intervenção urbana” (DIAS; TERRA, 2019, p. 348).
Por vezes, as trajetórias que encontramos na cidade parecem tão rígidas, para além da
nossa capacidade de mudança: prédios, calçadas, pistas, tudo isso mostra-se muito inflexível.
Porém, vejo nos caminhos do desejo um símbolo de resistência dos transeuntes, pois é a partir
das necessidades daqueles que usufruem do espaço urbano cotidianamente que se forma uma
cidade. É desta forma que criamos experiências, nos inserindo neste ambiente, construindo
novas formas de ver e viver.

5
Trecho de entrevista dada pela artista austríaca VALIE EXPORT (1940-) em 2018 para a galeria francesa
Thaddaeus Ropac sobre sua série de performances/fotografias Body Configurations (1972-76), em exposição
naquele ano. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fhFNhqjmT_k. Acesso em: 20 de julho de
2021.
21

Em uma matéria sobre esses novos trajetos no jornal inglês The Guardian, deparei-me
com o entorno do nosso Congresso Nacional em Brasília sendo usado como exemplo por conta
dos seus nítidos caminhos do desejo. É interessante lembrar que a capital brasileira é uma
cidade planejada, então temos esse encontro do que se necessita estruturalmente numa cidade
e o que os corpos que a habitam também precisam diariamente.

Caminhos do desejo nos arredores do Congresso Nacional em Brasília.


Fotografia de Alamy. Fonte: The Guardian.

Caminhos do desejo são marcas de resistência, são rasgos, rugas presentes no corpo
urbano, são atalhos que planejam novas cidades. Partindo do que foi discutido neste tópico,
podemos vislumbrar novos percursos presentes nesta ação tão antiga que é o caminhar. Percebo
que
o estudo das relações entre corpo - corpo ordinário, vivido, cotidiano - e
cidade, poderia nos mostrar alguns caminhos alternativos, desvios, linhas de
fuga, micro-políticas ou ações moleculares de resistência ao processo molar
de espetacularização da cidade, da arte e do próprio corpo - na
contemporaneidade. [...] Da relação entre o corpo do cidadão e um outro
corpo urbano poderão surgir outras formas de apreensão urbano-corporal e,
consequentemente, outras formas de reflexão, de relação e de intervenção nas
artes e nas cidades contemporâneas (BRITTO, JACQUES, 2009, p. 340).
22

3. Verbos de ligação6

6
Todas as imagens apresentadas neste tópico foram produzidas por Walton Ribeiro e fazem parte da vivência
performática Verbos de Ligação realizada por mim em 2020, a não ser quando exposto o contrário.
23
24

Sagitário-algoz, homem-amor, teu nome


Que é preciso esconder do meu poema.
Te chamarás, quem sabe, Rufus, Antônio
Se outros olhos se abrirem sobre o verso.
A justiça dos homens, essa trama imprecisa
Me puniria a mim, me chamaria ilícita
Se o verso se mostrasse com teu nome.
(HILST, 2018, p. 54)

Eu tenho o mesmo nome que minha melhor amiga. As pessoas acham muito estranho
quando conversamos e trocamos Letícias pra lá e pra cá. Apesar das letras formarem o mesmo
som e terem o mesmo significado de alegria, o Letícia dela é outro para mim, não sinto que
digo meu próprio nome quando falo com ela. Tenho um amigo que adora brincar com isso,
sempre que estamos juntas ele grita “Letícia!” só pra nós duas olharmos e ele começar a rir. Às
vezes acredito que a gente sabe distinguir se estão falando comigo ou com ela pelo jeito que
dizem nosso nome.
Os nomes são palavras de muitas coincidências. Um dos sobrenomes de solteiro do meu
pai e da minha mãe é Andrade. Hoje separados, os dois continuam com os mesmos nomes de
antes de casados. Porém, um dia desses descobri que, também de ambos os lados, o Andrade é
quase falso: meu avô paterno e bisavô materno pegaram emprestado esse sobrenome de
parentes não tão diretos, os dois quiseram colocá-lo em seus filhos. Meu Andrade parece muito
distante de sua origem nas terras da Vila de Andrada, pertencentes a uma família originária da
Galícia na Espanha7, o nome se dá realmente aos desejos do meu avô e bisavô. Já minha avó
decidiu que o Mello do seu nome era melhor sem um “l”, nos fazendo Melo.
A partir dessas pequenas anedotas sobre meu nome, é fácil perceber como minha
história confunde-se a tantas outras, como minha existência conversa constantemente com a
vivência dessas outras pessoas, me compõem. Tendo em mente esses sentimentos, surgiu-me
a vontade de tecer para e com eles, mostrar visualmente, de maneira tátil, sua presença
ininterrupta. Seus nomes aparecem para mim bordados em um vestido que confeccionei ainda
em 2020, para que eu possa levar todos os que amo comigo de maneira palpável por onde
passar.

7
Sobre a origem dos Andrades e outros sobrenomes usuais brasileiros, consulte: https://super.abril.com.br/
especiais/a-origem-dos-50-sobrenomes-mais-comuns-do-brasil/#andrade.
25

Vestido de algodão costurado, bordado e estampado à mão, Letícia de Melo Andrade, 2020.

O trabalho que apresento aqui une a saudade que estava na quarentena de enunciar esses
nomes pessoalmente, do encontro, do toque, da falta que sentia (e ainda sinto) de ocupar o
espaço urbano como antes fazia. Além do trecho que abre este tópico, continuo inspirando-me
em Hilda Hilst quando ela diz, “Túlio, só de te ouvir o nome, desfaleço” (HILST, 2018, p. 46).
Queria despertar essa sensação nos transeuntes, ativar suas memórias ao lerem esses nomes,
palavras tão banais, para que imaginassem seus Alexandres, suas Brunas, Guilhermes, Rafas…
Queria fazer com isso uma rede de pessoas que se interligam por meio da minha vivência,
convidando quem estivesse no caminho para encontrar-se com as lembranças de quem se ama.
O têxtil, tão maleável, aceita que eu passe as marcas que essas pessoas me deixaram para seu
tramado, encontro brechas na confluência dos fios para que eu possa deixar ali esses poemas
de uma palavra só, verbos de ligação.
Peter Stallybrass (2008) compreende a roupa muito além de um pensamento puramente
estético: o autor investiga a relação entre o vestir e suas implicações sociais, econômicas, de
gênero, culturais e também emocionais. A roupa é vista não apenas como objeto da moda, mas
é analisada pelos seus vínculos afetivos, é explorada como produto de dimensão sensorial. Peter
discorre sobre a permanência dessas peças em nossas vidas e sua importância como artefatos
de união entre entes queridos.
26

Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe:
recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma. E quando
nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda
ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo
tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos
(STALLYBRASS, 2008, p. 10).

A roupa tem seus caminhos: são herdadas, doadas, vendidas, trocadas. Pequenos
consertos são feitos, como bainhas e remendos; as roupas transmitem as andanças nas bolinhas
de tecido que se formam entre as pernas das calças; algumas têm marcas de desodorante;
guardam manchas de encontros regados a comidas e bebidas que se derramam para ficarem na
memória dos tecidos. Vejo como esse vestido também aproxima-se da teoria do
artista/arquiteto austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000), que propunha a roupa
como uma segunda pele8. Para ele, nós possuímos cinco peles: a epiderme; as roupas; nossa
casa; nossa identidade, as relações interpessoais e a Terra.
A peça ativa minha epiderme pelo arrepio de vê-la sendo percebida pelos outros
transeuntes, é pele e roupa. Trata-se realmente de ofício de magia, um caminhar ritualístico
envolto na preciosa banalidade do cotidiano, é uma casa que sempre me recebe carinhosamente,
com suas gavetas lotadas de lembranças. Este trabalho é constante, todas as vezes que caminho
com este vestido outras trajetórias são abertas. Lembro-me de um trecho de “O Livro dos
Abraços”, de Eduardo Galeano (2020) quando este fala justamente dessa magia envolta no
contar e cantar, de reviver o que e quem adormece e/ou já não existe, mas que se faz presente
em nossas vozes e vivências. Utilizando-se de uma saia como objeto metafórico, Galeano fala
sobre essa necessidade de vestir memórias e levá-las consigo.

Marcela esteve nas neves do Norte. Em Oslo, uma noite, conheceu uma
mulher que canta e conta. Entre canção e canção, essa mulher conta boas
histórias e as conta espiando papeizinhos, como quem lê a sorte de soslaio.
Essa mulher de Oslo veste uma saia imensa, toda cheia de bolsinhos. Dos
bolsos vai tirando papeizinhos, um por um, e em cada papelzinho há uma
história de fundação e fundamento, e em cada história há gente que quer
tornar a viver por arte de bruxaria. E assim ela vai ressuscitando os esquecidos
e os mortos, e das profundidades desta saia vão brotando as andanças e os
amores do bicho humano, que vai vivendo, que dizendo vai. (GALEANO,
2020, p. 17)

No dia 21 de agosto de 2020 tive a oportunidade de caminhar pela primeira vez com
este vestido, as fotos aqui apresentadas foram produzidas neste dia. O trajeto aconteceu pela

8
Para mais informações, consulte: https://hundertwasser.com/en/applied-art/apa382_mens_five_skins_1975
27

orla de Boa Viagem, no calçadão. Considero o mar como um componente muito importante
em minha vivência de cidade, moro relativamente perto dele e rotineiramente o vejo por conta
das rotas dos ônibus que utilizo. Meu imaginário do espaço urbano é permeado pela água, pela
brisa e pela areia. Da mesma maneira que a caminhada atenta pela cidade me faz sentir
ancorada no presente, na experiência, no agora, o mar também me comove desta mesma forma.

Nesse mesmo dia, enquanto voltava de ônibus pra casa, em pé por ser Recife às 18h,
percebi que duas mulheres sentadas perto de onde eu estava ficaram olhando pra mim e para o
vestido, lendo os nomes. Isso me alegrou tremendamente, senti que tinha atingido meu
propósito, um provocamento a recorrer a memória. Não sei se os nomes que estavam ali
bordados as lembraram de alguém (torci muito para que sim) ou se apenas acharam estranho
essa menina com um vestido branco quase no pé com os nomes de um monte de gente
costurados. Em qualquer um dos casos, espero tê-las tocado. Isso tudo lembra-me muito da
música “Cais”, do Clube da Esquina, cantada por Milton Nascimento onde ele diz:

Para quem quer se soltar


Invento o cais
[...]
Invento o mar
28

Invento em mim o sonhador

Para quem quer me seguir


Eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar
(NASCIMENTO; BASTOS, 1972, s/p)

A invenção de um cais neste caso representa a criação de um lugar que possibilita a


contemplação do oceano assim como encoraja chegadas e partidas. Está entre mar e terra firme,
dá pra sentir a maresia enquanto se está com os peś atracados na margem. Quero encorajar o
transeunte a olhar mais cuidadosamente, a andar junto à memória e caminhar em conjunto.
Espero ter acertado a vez certa de me lançar.
29
30

4. Traçando caminhos poéticos-educativos

Por muito tempo pensei que a discussão sobre os aspectos estéticos da caminhada não
teria lugar em minha experiência docente no ensino básico. Dei início a esta pesquisa
negligenciando seu potencial pedagógico por não enxergar que, mesmo a caminhada não sendo
usualmente discutida de maneira prática em Artes Visuais nas escolas, isso não me impedia de
a perceber como uma potente metáfora para nossas descobertas no meio educacional. Demorei
para ver que esta caminhada já estava em curso, que eu estava percorrendo esta estrada ao
mesmo tempo que construía um trajeto, eu adquiria e trocava conhecimentos.
Isso tudo mudou quando cursei a disciplina de Estágio 1, onde fiquei responsável por
ministrar aulas no 8º ano do ensino fundamental. Na parte de regência, a professora responsável
pela turma propôs que eu trabalhasse com o livro As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino. Logo
identifiquei a oportunidade de desenvolver um projeto que andasse lado a lado a esta
investigação, pretendendo aguçar a percepção dos cotidianos e do que acontece no ambiente
urbano. Quais as cidades que cada um habitava; o que transbordava e penetrava entre esse
espaço indivíduo-urbe; onde estava a arte neste processo tão rico que é a caminhada e o
conhecer a cidade?
No livro de Calvino, o imperador Kublai Kahn pede ajuda ao comerciante Marco Polo
para que este descreva seu reino. Ao destacar este fato numa das aulas de Artes Visuais que
observei em meu estágio, um aluno apontou o suposto absurdo da situação, destacando que
pedir que um terceiro descreva seu império para que assim possa conhecê-lo “é tipo você não
saber quais os cômodos da própria casa”. A partir da contemplação desta fala, quis destacar em
minhas aulas a importância de não deixarmos que isso acontecesse também em nós, que
pudéssemos conhecer o espaço em que vivemos, o que diz respeito também a nos conhecermos
como espaço de transformação e morada.
As cidades de Calvino são descritas de maneira a imaginar sua arquitetura, sua instância
palpável, ao passo que parece também nos descrever como cidades, inserindo pensamentos
sobre nossas experiências. Em sua “A Poética do Espaço”, Gaston Bachelard (1993) discute as
várias leituras possíveis de serem feitas a partir da análise da nossa relação com os espaços que
habitamos, o que toma forma a partir do estudo de cômodos da casa; gavetas; objetos como
conchas e ninhos. O autor afirma que “nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das
‘casas’, dos ‘aposentos’, aprendemos a ‘morar’ em nós mesmos. Vemos logo que as imagens
da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como estamos nelas” (BACHELARD,
31

1993, p. 21).
O debate sobre cidades e como ocorre a fruição a partir destes locais ilumina
problemáticas importantes que referem-se também a questões sociais, políticas e culturais e
como essas particularidades modificam-se dependendo do lugar em que moramos. A
caminhada encoraja, desta forma, uma leitura do espaço de maneira poética e política. Sendo
assim, os/as estudantes começaram a destacar em aula, muito organicamente, temas como
políticas públicas para o melhoramento desses espaços e como essas ações mudam de acordo
com as áreas e o poder aquisitivo dos que nela moram; a diferença na arquitetura de bairro para
bairro; o tipo de área de lazer e programas culturais disponíveis em áreas distintas da cidade;
etc. Desta forma, podemos perceber como o estudo da caminhada pode instigar o pensamento
crítico do que nos rodeia cotidianamente.
Uma educação pautada no caminhar e no que encontramos nos trajetos é o que Rita
Irwin propõe. A autora acredita que, por meio da a/r/tografia é possível desenvolver um
currículo mais fluido, em que podemos retomar a etimologia da palavra e perceber como a
mesma advém do latim currere, que significa caminho, percurso. O currículo, neste caminho,
ultrapassa conteúdos, planejamentos e grade de horários. Entender que o currículo pode ser
refeito, reconstruído com a trajetória de professores/as e estudantes, numa construção conjunta
de sentidos e imagens. Irwin (2019) entende que “com a a/r/tografia, artistas e educadores estão
envolvidos em processos dinâmicos de ser e tornar-se, onde tudo está em movimento” (IRWIN,
2019, p. 3, tradução minha).
Partindo dessas reflexões e aglutinando-as à minha narrativa poética descrita
anteriormente, decidi propor como atividade para os/as estudantes a realização de lambe-
lambes, que poderiam ser feitos a partir de qualquer suporte artístico, para que eu pudesse
colocá-los pela cidade, fazendo uma espécie de exposição urbana em que eu teria o papel de
montagem. Desejei muito que todos/as pudessem ter tido a oportunidade de participar em todas
as etapas do projeto, sei que a experiência de levá-los para rua seria magnífica, porém por conta
dos protocolos de enfrentamento da COVID-19 e as aulas remotas, não tivemos essa
possibilidade. Mesmo não tendo contato presencial com os/as discentes, recebi obras
maravilhosas em formato de desenhos, artes digitais, colagens, memes, etc. Todas as poéticas
foram compartilhadas e debatidas em aula, assim como um catálogo com as obras,
acompanhadas de pequenos textos feitos pelos/as alunos/as sobre suas produções e o endereço
onde poderiam encontrar seus trabalhos.
Por ter deixado as escolhas do que seria exposto totalmente a critério dos/as estudantes,
pude perceber as visualidades presentes em seus cotidianos, o que eles/as julgavam ser imagens
32

relevantes para a exposição na rua e as mensagens que queriam passar com isso. Já o
entendimento dessas obras dependeria das visualidades presentes no repertório dos transeuntes,
o que é impossível de se antever. Acredito que essas variantes são relevantes de serem
analisadas e creio que a Fernando Hernández (2001, p. 52) traz esses aspectos de maneira
latente quando discorre sobre a Cultura Visual:

A arte, como parte da cultura visual, atua, sobretudo, como um mediador


cultural. [...] Isso implica que a arte, os objetos e os meios da cultura visual
contribuem para que os seres humanos construam sua relação-representação
com os objetos materiais de cada cultura. Nesse sentido, a cultura visual
contribui para que os indivíduos fixem as representações sobre si mesmos e
sobre o mundo e sobre seus modos de pensar-se.

Colagem dos trabalhos dos/as estudantes nas ruas de Recife e Jaboatão dos Guararapes.
Fotografias: Graciela Ferreira, agosto de 2021.

Passando pelas ruas onde colei os lambes, tanto andando como de bicicleta, pude ver
que praticamente todos foram retirados. Realizar atividades na rua requer um acordo tácito
entre quem produz e os transeuntes, já que diferente de outros espaços expositivos como
museus e galerias, ninguém saiu especificamente para apreciar as obras, o que para mim é
33

interessantíssimo.
É redundante falar sobre como essa vivência me despertou para horizontes ainda muito
inexplorados por mim, formando-se um caminho do desejo tendo como guia primeiro o acaso,
depois a sede por mergulhar profundo ao mesmo tempo que aprendia a nadar. Vejo como essas
experiências me modificaram, estou ladrilhando um caminho ao mesmo tempo que o trilho.
Lembro-me da cidade sonhada por Kublai Khan e como, também em minhas memórias sobre
esse espaço novo que é a prática docente e as mudanças ocorridas a partir delas, percebo que
“a cidade existe e possui um segredo muito simples: só conhece partidas e não retornos”
(CALVINO, 1990, p. 55). Não poderei retornar ao espaço em que estava antes dessa
experiência, fui permanentemente modificada.
34

5. Mapas, bússolas e novos sentidos de rotação e equilíbrio

Partindo da caminhada, almejei investigar as potencialidades do fazer criativo no


cotidiano, acreditando que esta prática pode modificar espaço e indivíduo, sempre com o desejo
de exaltar o poder das experiências e acolher as coincidências e mistérios do caminho. Desta
forma, levo em grande consideração as palavras de Fayga Ostrower (2001) quando a autora
argumenta que a criação ocorre apenas por meio da sensibilidade, numa união do ser
consciente-sensível-cultural. Percebo a necessidade de fazer o exercício constante de existir de
forma sensível, precisamos do contato com o outro e consigo, necessitamos da experiência para
criar. Fayga nos orienta sobre como, nos processos criativos, o trajeto é essencial, pois o
caminhar é formar, é modificação e autoconhecimento.

Sua orientação interior existe, mas o indivíduo não a conhece. Ela só lhe é
revelada ao longo do caminho, através do caminho que é o seu, cujo o rumo
o indivíduo também não conhece. O caminho não se compõe de pensamentos,
conceitos, teorias, nem de emoções - embora resultado de tudo isso. Engloba,
antes, uma série de experimentações e de vivências onde tudo se mistura e se
integra e onde a cada decisão e a cada passo, a cada configuração que se
delineia na mente ou no fazer, o indivíduo, ao questionar-se, se afirma e se
recolhe novamente das profundezas de seu ser. O caminho é um caminho de
crescimento. Seu caminho cada um o terá que descobrir por si. Descobrirá,
caminhando. (OSTROWER, 2001, p. 76)

Percebi o espaço urbano como local propício para as mais diversas experimentações
artísticas e educativas, repleto de pulsação. Isso me levou a questionar minha formação
acadêmica e os espaços expositivos no campo das artes visuais. Pensar que meus trabalhos só
seriam vistos pelo público em geral se fossem legitimados por espaços expográficos formais
ou pela academia sempre me frustrou. Atentei então ao fato de que, mesmo que essa
legitimação acontecesse, esses espaços ainda são ocupados por uma parcela muito reduzida e
específica de pessoas. Por perceber cada vez mais a arte como prática indissociável da própria
vida, comecei a tramar esse trabalho para que pudesse ser compartilhado independentemente
dessa validação, que realmente fizesse parte da minha existência para além desses espaços
fechados, das paredes, para além das minhas gavetas. Assim iniciei o processo de caminhar.
Acredito que apresentei as transformações que a caminhada me proporcionou e suas
potencialidades de mudança do espaço e de quem o trilha. Lembro-me bem quando li o
primeiro texto sobre como essa prática pode ser considerada um processo estético e logo
percebi como isso alinhava-se com o que eu sentia (e ainda sinto) sobre andar na cidade. Porém,
um ano de pesquisa é um tempo considerável, já não sou a mesma de quando iniciei esse
35

caminho, o que para mim foi difícil pois chegou um momento onde pensei que estava
escrevendo junto a uma pessoa que não existia mais.
Contudo, começo a pensar que é essa a beleza do caminhar, um eterno movimento, uma
transformação constante, um formar que não acaba. Falo aqui sobre novos sentidos de rotação
e equilíbrio pois acho que hoje utilizo-me de outros dispositivos para facilitar minha
localização na prática artística/educativa/investigativa. Sou um corpo fora da órbita onde antes
circulava, minha bússola interior me revela outro norte.
36
37

Referências:

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STALLYBRASS, Peter. O Casaco de Marx: roupa, memória, dor. Organização e tradução:


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1
2

RAYELLEN CAROLINA ALVES HIGINO

Raízes de nós: o cabelo crespo como dispositivo de memórias


autobiográficas e processos de criação

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciada em Artes
Visuais.

Orientadora: Profª. Drª. Maria Betânia e


Silva

Recife
2021
3

Rayellen Carolina Alves Higino

Raízes de nós: o cabelo crespo como dispositivo de memórias autobiográficas e


processos de criação

Banca Examinadora

________________________________________________________________
Profª. Drª. Maria Betânia e Silva (Orientadora)

___________________________________________________________________________
Profª. Drª. Luciana Borre Nunes (Examinadora interna)

___________________________________________________________________________
Profº. Ms. Augusto César de Holanda Santos (Examinador externo)
4

Agradecimentos

A Deus, primeiramente, pois sem Ele eu não teria forças para continuar nesta jornada sinuosa
que é a universidade pública.

À minha família, em especial minha mainha Maria Rosa, que sempre se desdobrou para que eu
e minha irmã pudéssemos estudar, que acreditou em mim enquanto artista e arte/educadora,
usando suas palavras e suas ações para me auxiliar no que fosse preciso. Espero que um dia eu
possa ter pelo menos um pouco da sua sabedoria e fé, pois sem a sua luta eu não teria sido a
primeira pessoa da nossa família a ter um curso superior.

Ao meu painho Antônio Higino por contribuir com a minha formação, por ser presente, pelos
ensinamentos e por todos os trajetos que cursamos e iremos cursar juntos.

À minha irmã Ryellen e ao meu cunhado Douglas por me acolherem sempre.

Ao meu namorado Fernando, por ser um companheiro amoroso, cuidadoso, um ótimo ouvinte
e conselheiro, que está ao meu lado em momentos felizes e tristes, te amo muito.

À minha orientadora Betânia, pela paciência, por respeitar meu tempo de pesquisa e escrita, por
ser uma inspiração, você é o significado de leveza e luz.

À professora Luciana Borre, que com o seu projeto Tramações, contribuiu para que eu me
enxergasse enquanto artista, educadora e pesquisadora e a Guto Oca que aceitou fazer parte
deste percurso de aprendizado.

Às amizades que fiz no curso, pela escuta atenta, pelos risos, choros, pelas danças, andanças e
por tantos momentos inesquecíveis. Carol, Glau, Mag, Pam, Ste, Nathê, Ali, Kécia, Thaysa,
Camila e Mônica (in memoriam).

Às pessoas que construíram essa história comigo, colaborando com as minhas pesquisas e
produções artísticas direta e indiretamente.

Aos que irão chegar, não desistam dos seus sonhos e das suas lutas.
5

RESUMO

A presente pesquisa tem como temática central memórias autobiográficas por meio da
investigação dos processos de criação com foco em meus cabelos crespos. Os objetivos desta
são: registrar narrativas pessoais e suas contribuições para meu processo criativo; revisitar
arquivos com relação aos meus cabelos crespos dos 8 aos 26 anos de idade e analisar como este
material está sendo fonte para meus trabalhos artísticos e acadêmicos. Para tanto, o percurso
metodológico contempla elementos da pesquisa autobiográfica, baseando-se em conversas com
familiares, álbuns fotográficos, manuscritos, livros e objetos pessoais. O estudo em questão
mostra como as trajetórias de vida não se desvinculam das nossas pesquisas e produções
artísticas.

Palavras-chave: Memórias autobiográficas; Processos de criação; Cabelos crespos; Artes


Visuais.

ABSTRACT

This research has as its central theme autobiographical memories through the investigation of
the creation processes with a focus on my kinky hair. The objectives of this one are: to register
personal narratives and their contributions to my creative process, revisiting archives regarding
my 8 to 26 years old kinky hair and analyzing how this material is being sourced for my artistic
and academic works. Therefore, the methodological path includes elements of autobiographical
research, based on conversation with family members, photo albums, manuscripts, books and
personal objects. The study in question shows how life trajectories are not disconnected from
our research and artistic productions.

Keywords: Autobiographical memories; Creation processes; Kinky hair; Visual Arts.


6

SUMÁRIO

Fios que nascem ..............................................................................................................7


1. Entre trancinhas, pitós, alisante e chapinha ................................................................ 9
2. Eu cortei, me libertei! ................................................................................................ 15
3. Das raízes surgiram as criações artísticas .................................................................. 21
3.1 Transitórias ........................................................................................................ 23
3.2 Nós de mim ....................................................................................................... 26
3.3 Em lágrimas ...................................................................................................... 30

4. Emaranhado de memórias e fios (in)conclusórios .................................................... 35

5. Respeitando quem chegou antes de mim e são minhas referências ......................... 36


7

Fios que nascem

As memórias iniciais para investigação desta pesquisa começaram com a modificação


da estrutura do meu cabelo ainda criança, a negação da sua textura crespa na adolescência e a
fase da transição capilar de um cabelo quimicamente tratado para o seu estado natural, onde
houve a redescoberta dos meus traços étnicos rejeitados durante muito tempo. Já na fase adulta,
os fios afetivos tornaram-se dispositivos para a compreensão dos trabalhos artísticos e
pesquisas que desenvolvo dentro e fora da universidade.
Assim, “[...] ao narrar uma experiência profunda, nós a perdemos também, naquele
momento em que ela se corporifica (e enrijece) na narrativa”. Esta afirmação feita por Ecléa
Bosi (2003, p. 35) cria uma identificação também com o estudo em foco. Há uma dificuldade
em retratar memórias tão pessoais, que ao longo do tempo vão sendo quase que apagadas.
Esta tem como objetivo geral investigar memórias autobiográficas, consistindo em
narrar e expor minhas lembranças e vivências, materializando-as através dos processos de
criação com foco em meus cabelos crespos, por isto, o uso do eu e do nós se fará presente na
narrativa tecida. Os seus objetivos específicos são: registrar narrativas pessoais e suas
contribuições para meu processo criativo; revisitar arquivos com relação aos meus cabelos
crespos dos 8 aos 26 anos de idade e analisar como este material está sendo fonte para meus
trabalhos artísticos e acadêmicos.
Para tanto, o percurso metodológico contempla elementos da pesquisa autobiográfica,
baseando-se em conversas com familiares, álbuns fotográficos, manuscritos, livros e objetos
pessoais que contribuíram para a minha construção identitária. A metodologia autobiográfica
constitui-se como uma importante ferramenta de investigação, pois evidencia a questão da
subjetividade do sujeito, sua trajetória de formação e experiências de vida. Segundo Abrahão
(2003, p. 85) "trabalhar com narrativas não é simplesmente recolher objetos ou condutas
diferentes, mas sim, participar na elaboração de uma memória que quer transmitir-se a partir da
demanda de um investigador”.
Nesta escrita os capítulos estão dispostos da seguinte forma: Entre trancinhas, pitós,
alisante e chapinha trago a discussão sobre identidade e memória, tecerei relações com o meu
cabelo na infância quando utilizava química para alisá-lo e a não-aceitação na adolescência. Em
Eu cortei, me libertei! relato as lembranças da minha transição capilar quando adulta, a
redescoberta da textura crespa, a valorização dos meus traços étnicos e da importância desses
aspectos ingressando na Universidade Federal de Pernambuco. No capítulo Das raízes
8

surgiram as criações artísticas registro e discorro sobre os processos de criação e


aprendizagem, onde utilizo os meus cabelos como matéria, ressignificando as memórias
afetivas e dolorosas através dos trabalhos artísticos.
9
10

Figura1: Fotomontagem. À esquerda (de cima para baixo): eu no meu aniversário de um ano (1996);
foto com meu pai (1997); minha irmã e eu quando crianças (sem data); foto minha com Ryellen
segurando minha afilhada Bianca (2003). Ao centro (de cima para baixo) encontram-se imagens
minhas indo à praia, na formatura do ABC e posando para o retrato (sem datas específicas. Ao lado
direito (de cima para baixo); foto com minha irmã brincando na primeira rede de pesca do nosso pai
(sem data); foto com mainha e tia Lena no meu aniversário de um ano (1996); eu criança (sem data).
Acervo pessoal.
11

Para meu cabelo crespo

Quando nasci mainha disse que você era lisinho, painho vivia o penteando. Não demorou muito
e os fios foram caindo, fiquei uma bebê careca e depois de algum tempo sua real curvatura
apareceu. Penteados foram surgindo, tranças eram feitas aos domingos para que durassem a
semana inteira, fios presos fortemente evitando ficar despenteada na rua. Ninguém sabia cuidar
de você, a não ser mainha (o que fazia eu chorar quando ela ficava doente ou se precisasse ficar
na casa de algum parente enquanto ela trabalhava). Cresci e via minhas amigas na escola com
os cabelos soltos, o jeito era te alisar, “controle dos fios rebeldes” assim prometia. Um odor,
ardiam os olhos e o couro cabeludo, nesta ação a raiz tentava resistir a tantos processos químicos
e quebrava. Peço desculpas por lhe maltratar tanto, tinha raiva por não ter os cabelos lisos que
batiam no comprimento da cintura. Eu alisava, você persistia, assim foi dos oito aos vinte anos
de idade, tendo cortes químicos, pouco crescimento capilar, sendo refém de escova e chapinha
toda a semana, mesmo assim eu não me/te aceitava.

Igarassu, abril de 2021

Ao refletirmos sobre a temática da identidade nos deparamos com Candau (2011) que
desenvolveu um estudo aprofundado sobre a relação entre esta e a memória. O autor nos ajuda
a entender que a memória é geradora de identidade, no sentido que participa de sua construção,
essa por outro lado, molda predisposições que vão levar os indivíduos a incorporar certos
aspectos particulares do passado, a fazer escolhas memoriais que dependem da representação
que se faz de sua própria identidade, construída no interior de uma lembrança.
Ao longo de sua reflexão o autor afirma não haver busca identitária sem memória e,
inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade. Nesse
raciocínio, a memória é entendida como uma reconstrução continuamente atualizada do
passado, mais do que uma reconstituição fiel dele.
Assim, revisitando as memórias, lembro que por ter cabelos crespos e volumosos, minha
mãe passava horas desembaraçando e fazendo tranças para que durassem a semana inteira, tanto
no meu cabelo como no da minha irmã. Gomes (2008, p. 184) aponta que “as tranças são as
primeiras técnicas para manipulação do cabelo, porém, nem sempre eleita pela criança negra,
hoje, mulher adulta, como o penteado preferido da infância". Chorávamos pela dor ao
desembaraçá-lo e pelo tempo que passávamos sentadas esperando que os penteados ficassem
prontos. São os acúmulos dessas dores que fazem com que a maioria das meninas negras desde
12

pequenas sejam ensinadas que o cabelo liso é o facilitador ao pentear, além do padrão aceitável
pela sociedade.
Diante dessa rememoração, as lembranças que guardamos de cada época de nossa vida,
se reproduzem sem cessar e permitem que se perpetue o sentimento de nossa identidade. Sem
lembranças o sujeito é aniquilado. A memória é de fato uma força de identidade, afirma Candau
(2011).
Lembro-me que estava na casa de tia Tonha no sítio, foi onde usaram em mim o alisante
pela primeira vez aos oito anos de idade. Meus olhos arderam, o couro cabeludo também, só
pensava que o sacrifício deixaria o meu cabelo “bonito”. Com essa transformação ganhei fios
aparentemente lisos, senti o medo da chuva, da água da praia, piscina, marcada por olhares no
espelho de não reconhecimento, fez-me achar que ser negra era uma ofensa.
Por mais que eu insistisse em alisamentos, continuava me achando feia, enquanto eu só
queria ser bonita igual às meninas e mulheres brancas que apareciam com os cabelos lisos na
televisão. Silva (2015. p. 3) retrata que “negar outros tipos de beleza que não outra senão a
branca, determina que os cabelos lisos são o referencial do máximo exigido padrão de beleza,
impondo que esta é a alternativa única, existente e plausível”.
Alisar os cabelos era uma forma de estar enquadrada na sociedade, já que parentes e
amigas faziam o mesmo procedimento. Iniciava-se um rito de passagem do cabelo crespo para
o alisado. As embalagens dos produtos continham sempre as mesmas descrições “para cabelos
rebeldes e/ou difíceis”. Seria rebeldia nascer com cabelos volumosos e crespos? Um cabelo
difícil é aquele que resiste após tantos processos químicos?
Kilomba (2019, p. 127) descreve que “essas eram formas de controle e apagamento dos
‘sinais repulsivos’ da negritude”. Por isso, deve-se questionar o que se é imposto, afinal,
cabelos afro trazem consigo a simbologia, uma mensagem política de fortalecimento de raízes
identitárias contra a opressão racial.
Se observarmos durante muito tempo as propagandas, programas televisivos e em
diversas mídias, sempre veicularam um modelo de beleza predominantemente centrado no
homem e na mulher branca, de cabelos lisos e longos. Esse estereótipo, pouco a pouco foi sendo
incorporado no inconsciente coletivo e produziu inúmeros preconceitos e rejeição à
diversidade, à diferença, à beleza da multiplicidade humana. Além de estabelecer e reforçar
continuamente a baixa autoestima em muitas pessoas que não se enquadram no modelo
valorizado pela sociedade.
Nesse sentido, reforça Candau (2011) que a memória é a identidade em ação, mas ela
pode, ao contrário, ameaçar, perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade. O jogo da
13

memória que vem fundar a identidade é necessariamente feito de lembranças e esquecimentos.


Compartilhando essas memórias, a minha tia/prima relembra como ela enxergava minha
relação com o meu cabelo na infância, e disse em entrevista realizada no ano de 2019, que “nada
e nem ninguém podia tocar que era para não assanhar, para não tirar ele do lugar. Então, você
ficava muito estressada, você queria está impecável e seu cabelo quando não estava arrumado
do jeito que você gostava que sua mãe fizesse, você ficava muito estressada” (Depoimento da
tia/prima, 2019).
Recordo-me das brincadeiras de infância, quando minha irmã e eu colocávamos lençóis
amarrados na cabeça para simular cabelos lisos e longos. Ficávamos dizendo a nossa mãe que
ela deveria ter casado com um homem de cabelo “bom”, já que o dela era cacheado e o nosso
era crespo. Refletindo sobre isso, vejo o quão cruel era. Em nossas memórias se tornam
recorrentes relatos em que nossa imagem liga-se à inferioridade e feiura. O processo de não
aceitar meu cabelo crespo na adolescência se tornou uma dependência de alisantes. Na escola
as meninas sempre estavam com os cabelos soltos, principalmente as que tinham cabelos lisos
ou ondulados. No Ensino Médio não passava três dias sem usar secador e chapinha, me sentia
feia com os cabelos presos. Gomes (2002, p. 47) diz que:

A rejeição do cabelo pode levar a uma sensação de inferioridade e de baixa autoestima


contra a qual faz-se necessária a construção de outras estratégias, diferentes daquelas
usadas durante a infância e aprendidas em família. Muitas vezes, essas experiências
acontecem ao longo da trajetória escolar. A escola pode atuar tanto na reprodução de
estereótipos sobre o negro, o corpo e o cabelo, quanto na superação dos mesmos.

Figura 2: Registros de quando eu alisava os meus cabelos na adolescência, entre os anos de 2013 e
2014. Acervo pessoal
14

Não tinha referências de mulheres negras que usavam os cabelos naturalmente


assumidos na família. Cresci vendo o cabelo cacheado da minha mãe, mas que com o tempo se
cansou por ser trabalhoso cuidá-lo, principalmente com a rotina exaustiva. Assim, minha mãe,
irmã, tias e amigas, das lembranças que tenho, poucas vezes as vi com os cabelos naturais. As
professoras que tive na educação básica, em sua maioria, eram brancas, as negras alisavam os
cabelos, sempre estavam com eles curtos ou presos. Piadas racistas constantemente eram
praticadas na educação escolar “cabelo pixaim”, “bombril”, “ruim”.
Kilomba (2019, p. 128) diz que “esse processo de ter de fabricar sinais de branquitude,
tais como cabelos alisados, e encontrar padrões brancos de beleza, a fim de evitar a humilhação
pública, é bastante violento”. Apenas quando saí do ensino médio e revisitando álbuns de
fotografias, pude entender o quanto essas situações mexeram com minha autoestima e criaram
um silenciamento dentro de mim.
15
16

Figura 3:Fotomontagem. À esquerda (de cima para baixo): foto com meu pai na minha colação de
grau em Gestão em Marketing; com minha amiga e artista Anne Souza; com minha professora Ianara.
Ao centro; foto quando cortei o meu cabelo para tirar toda a química que o alisava (dezembro de 2015;
foto com Ianara surpresa ao ver meu cabelo. À direita com minha mãe (todas as imagens foram de
2015). Acervo pessoal
17

Passei anos da minha vida querendo ser aceita socialmente, usando uma textura capilar
que não era a minha, então decidi resgatar o meu cabelo natural e abandonar os alisamentos por
meio da transição capilar 1em janeiro de 2015, eu tinha 19 anos de idade. Optei por esta etapa
na minha vida pois estava cansada de me sentir refém de procedimentos químicos, onde em
muitos momentos houve quebra capilar, minha autoestima andava fragilizada e nessas ações
inconscientemente pratiquei o que descobri anos depois serem atos de violência física e
simbólica. Fernandes e Belmiro (2021, p. 269) explicam que “a violência simbólica manifesta-
se no cansaço em relação aos processos de alisamento e na incapacidade de se conhecer por não
saber a textura natural dos cabelos. A violência física é em razão de cortes químicos, quando
os cabelos caem pelo uso de produtos alisantes.”
Por esses fatores, quando rememorava a minha história, sentia-me insegura ao cogitar
esta transformação. O medo de não me reconhecer com os cabelos crespos e curtos, das piadas
preconceituosas, de não aguentar e voltar a alisá-lo. Neste momento transitório que começava
a ser abordado pelas mulheres pretas na internet, vi em minha amiga Andressa uma inspiração,
naquele momento senti que também seria forte e aguentaria todo o processo. Por coincidência
passei pela transição capilar quando eu estava trabalhando e precisava lidar com o público, o
fator da aparência contava muito, no início minha mãe fazia pitós/ bantu knots2(inclusive eram
feitos na minha infância) para texturizar os meus fios e os deixarem com cachos. Um dos
episódios mais importantes da minha vida quando estava nesta fase, foi poder participar da
minha colação de grau em gestão em marketing e receber o diploma das mãos de Ianara, a
minha primeira professora preta que usava o seu cabelo natural. Souza (2018) aborda como a
transição capilar faz com que as mulheres negras tenham o novo olhar de si, já que por muitos
anos tiveram sua estética desvalorizada e marginalizada.

1
Processo de eliminação de toda a química que existe no cabelo para deixá-lo natural.
2
Bantu knots, ou o popular coquinhos, são pequenos coques feitos na extensão do cabelo usado em todo
continente africano
18

Figura 4: Arquivo da primeira imagem postada nas redes sociais no início da transição capilar
(2015). Acervo pessoal

Com um novo olhar sobre a autoestima, as mulheres da minha família foram tomando
coragem para assumirem seus cabelos naturais, minhas tias Lourdes e Noêmia viram em mim
uma referência. O que me faz refletir sobre o discurso que não é só o cabelo, mas toda a
construção identitária por trás destas ações. Enquanto havia resquícios de alisamento eu usava-
os soltos, mas ao longo dos onze meses de impaciência e redescobertas já não conseguia penteá-
los, embaraçavam com facilidade, viviam presos, a raiz estava começando a ficar crespa e o
resto do cabelo estava “morto”.
Por não aguentar mais a situação dos meus cabelos, eu chorava quase todos os dias. Em
18 de dezembro de 2015 tive coragem e pedi à cabeleireira para deixar o mais curto possível,
após o episódio a primeira coisa que ouvi do marido dela foi “nossa Ray, não vai dá nem uma
escovinha?”, eu disse que daquele momento em diante assumiria meus fios naturais. Percebi
que ao fazer o big chop 3 não me importei de usá-lo tão curto, vi-me renascendo. Guardo este
momento como um arquivo de resistência, ressaltando a importância de resgatar minhas raízes,
pois
os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória
espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar
celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não
são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre
focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à

3
Consiste no corte da parte alisada quimicamente do cabelo, deixando apenas os fios naturais.
19

incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância


comemorativa, a história depressa os varreria. (NORA, 1993, p. 13)

Diante disso, as lembranças, imagens e escritos que fazem parte desta pesquisa são
lugares de memória4, que há tempos os colonizadores quiseram apagar do povo preto, são
registros que fazem com que eu não esqueça da minha história. Ainda assim houveram
momentos nos quais me senti vulnerável na forma como a sociedade trata mulheres de cabelos
curtos e crespos, como se o feminino estivesse atrelado ao estereótipo das madeixas longas e
lisas. Estava começando a entender como cuidar do meu cabelo, após alguns meses do corte,
nesta construção identitária e de autoestima fui surpreendida ao saber que seria a primeira
pessoa da minha família a ingressar na universidade pública.

Figura 5: Arquivo de quando cortei o cabelo para retirar a química (2015). Acervo pessoal

Em fevereiro de 2016 entrei na Universidade Federal de Pernambuco, no curso de


Licenciatura em Artes Visuais. Escolhi as artes porque via minha amiga Anne Souza
produzindo suas obras e eu me encantava com todo o processo, decidi que faria o vestibular
para aprender as técnicas artísticas. Apesar de estar onde idealizei, os primeiros semestres foram

4
Lugar de memória é um conceito criado pelo historiador francês Pierre Nora, no final da década de 1970, que
significa lugares, no sentido mais completo do termo, como museus, monumentos, um evento, uma
personagem, um arquivo, um livro, entre outros, que se caracterizam pela função ou identidade memorialística,
ou seja, são restos que se perpetuam pelo tempo, espaços onde a memória fixou, servindo como registro onde
não há mais registro.
20

bem difíceis, tive que largar o meu emprego para me dedicar aos estudos em período integral e
não me encaixava com as disciplinas práticas, todas as produções que fiz em desenho, pintura,
gravura e argila, não faziam sentido para mim. O que me fez pensar diversas vezes em desistir
do curso. Por outro lado, tive a oportunidade de conhecer educadoras/es, artistas, amigas/os que
me auxiliaram e compartilharam de seus processos de aprendizagem, suas memórias pessoais
e suas lutas, resistindo ao sistema excludente que insistia em nos tirar do local de ensino que é
nosso por direito.
A primeira vez que pensei sobre minhas produções artísticas foi no projeto de extensão
chamado Tramações, que em 2018 trazia a temática sobre gêneros e sexualidades. De início
tive receio, iríamos expor uma obra autoral, mas até então eu achava que não tinha o “dom” da
criatividade, por não saber pintar ou desenhar de forma realista. Naquele momento só conseguia
pensar que o meu trabalho falaria sobre mim e o que ecoava na minha cabeça eram os meus
cabelos e as memórias que estavam recentes da transição capilar. A partir deste projeto comecei
a ter consciência da importância de registrar o meu processo criativo e as pesquisas no ensino
das artes, de forma que
não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram
um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino
porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar,
constatando, intervenho, intervindo educo e me educo.” (FREIRE, 1996, p. 16)

Através destas palavras poéticas de Paulo Freire, entendo que estou em constante
exercício de aprender para compartilhar e que falar dos meus percursos através das memórias e
dos meus cabelos, também se tornou uma forma de encontrar o meu lugar na arte/educação e
nas minhas produções artísticas.
21
22

O processo também faz parte da obra, o riso, o choro, o cansaço que


beira à exaustão, a dúvida, os acertos e principalmente os erros.

Igarassu, 03 de novembro de 2021

Descrever sobre processos de criação me faz rememorar as inseguranças ao ingressar


no curso de Licenciatura em Artes Visuais. Não tinha conhecimento prévio sobre as técnicas e
acabei sendo engolida pelas práticas nos ateliês, o que de certa forma, me ensinou a investir nas
experimentações artísticas. Minhas pesquisas e obras começaram a fluir quando senti que eu
tinha autonomia para produzir e desde então fui percorrendo por processos mais intimistas que
transbordassem a minha sensibilidade. Sobre esta temática, Ostrower (2001, p. 12) discorre
“como processos intuitivos, os processos de criação interligam-se intimamente com o nosso ser
sensível. Mesmo no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalmente
através da sensibilidade.”
A artista, educadora e pesquisadora Fayga Ostrower neste trecho de seu livro
“criatividade e processos de criação” nos lembra que a sensibilidade não é algo que só artistas
possuem, e sim, que qualquer ser vivo a pode ter em diferentes graus. O que me faz refletir
sobre os processos artísticos, que não é um “dom” e todas as pessoas podem produzir arte,
mesmo que esta ainda esteja apenas no inconsciente.
Durante os anos na licenciatura, utilizei das minhas vivências como exercícios de
aprendizado, escuta, ensino e produção artística. O cabelo crespo como dispositivo de memórias
autobiográficas, processos de criação e todas as narrativas que ele abarcava, sempre estavam
enraizadas nesses diálogos, me fazendo materializar minhas histórias e dores. Apesar de fazer
com que outras pessoas que passaram por situações semelhantes dialoguem sobre essas
temáticas, ainda me sinto frágil e exposta por trazer relatos tão pessoais. Partindo dessas
experiências, ressignifico as minhas intenções no fazer artístico e nas pesquisas sobre memória.

As intenções se estruturam junto com a memória. São importantes para o criar. Nem
sempre serão conscientes nem, necessariamente, precisam equacionar-se com
objetivos imediatos. Fazem-se conhecer, no curso das ações, como uma espécie de
guia aceitando ou rejeitando certas opções e sugestões contidas no ambiente. Às
vezes, descobrimos as nossas intenções só depois de realizada a ação. (OSTROWER,
2001, p. 18)

Fayga (2001) relata que cada memória guardada pode nos auxiliar nos processos de
criação. Através dos erros, dores ou qualquer outra experiência anterior, podemos recolhê-la e
usá-la como intenção criativa ou produtiva. Dito isto, cada lembrança armazenada da infância,
23

juventude e da idade adulta foram potências de aprendizado que contribuíram para o meu
entendimento sobre arte/educação e para as obras aqui apresentadas.

Transitórias

Figura 6. Fotomontagem. A imagem mostra da esquerda para a direita (de cima para baixo); Evelli,
Sibelle, Thaysa e Priscila (mulheres fotografadas para a obra Transitórias) e abaixo uma foto minha
em frente à obra exposta. Acervo pessoal
24

Transitórias5 foi um projeto fotográfico/instalação que surgiu em abril de 2018 através


de memórias pessoais e trocas de relatos, compreendendo a autoestima fragilizada das mulheres
que se encontravam com os cabelos com duas texturas diferentes, entre a química e o alisamento
e a necessidade de um meio para se expressarem diante de suas angústias.

...o processo de transição capilar envolve uma transformação que vai muito além do
corpo. No seu transcurso, muitas outras questões são trazidas à tona, porque questões
identitárias complexas são negociadas. As mulheres em transição deparam-se com
questões biográficas marcadas por vivências de racismo e a consequente negação de
si. (SOARES, 2018, p. 94)

Foram quatro mulheres que traziam trajetórias, texturas de cabelos e narrativas


diferentes. Evelli, Priscila, Sibelle e Thaysa contribuíram para que o projeto se tornasse
realidade, em conjunto com a participação do público, essencial para a visibilidade dessas raízes
identitárias. Junto às fotografias fixei um espelho, uma caixa de madeira e duas tesouras, para
que as pessoas visitantes da Galeria Capibaribe (UFPE) pudessem interagir cortando seus
cabelos.
Esta obra serviu como ponto de partida para trabalhos que venho desenvolvendo. O
cabelo crespo aqui, torna-se objeto artístico e de pesquisa, que enreda prematuramente
narrativas pouco exploradas no ambiente acadêmico. Neste caso, contribuindo para o meu
processo de formação e de identidade, assim como de outras pessoas.

5
O trabalho pode ser visto em: <https://drive.google.com/file/d/16-
DdxKT9PLivwIRon_tnNYshRIGC2Mqg/view>
25

Figura 7: Fotografia de Sibelle, uma das participantes da obra “Transitórias” (2018). Acervo
pessoal

Por quanto tempo escondeu-se os seus traços negros? Ao olhar fotos antigas não se
reconhece, seu documento de identidade já não revela a aparência que tem hoje. Em um texto
extraído da Revista Gazeta de Cuba– Unión de escritores y Artista de Cuba, Hooks (2005) relata
que sempre teve a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que
permaneça no mesmo lugar. Há uma identificação neste trecho, assim como muitas mulheres
negras, de que a ideia que os fios crespos e cacheados transmitem é o oposto do descrito,
simboliza a rebeldia, a liberdade de sair do lugar, tomar a forma e volume que bem entenderem.
São iniciativas emancipatórias que rompem com a baixa autoestima e a dificuldade de falar
sobre a autoaceitação.
Sampaio e Ribeiro (2015, p. 116) nos ajudam a ampliar a reflexão sobre essas histórias
ao ressaltarem que:
onde dorme o pensamento estagna-se o corpo. Não é à toa que nos debruçamos sobre
nossas memórias, sobre experiências vividas para resgatá-las, ressignificá-las, narrá-
las. Narrar uma experiência demanda refletir sobre um acontecimento, revivê-lo, e
isso tem consequências.

Vejo este trabalho como uma fonte condutora de incentivo, principalmente para
mulheres que anseiam por mudanças e sentem receio ao se depararem com texturas variadas de
seus cabelos (partes com química e outras naturais). Além do corte, que para muitas se torna
uma ação dolorosa. Recordo-me da emoção no dia da abertura da exposição Tramações, ao me
26

deparar com Evelli (uma das mulheres fotografadas em Transitórias) tendo os cabelos cortados
por uma amiga e chorando. Relato em 2019 na escrita da minha obra para o livro “Tramações
(2ª edição): sobre visualidades em queda” que as lágrimas surgiram como um alívio,
anunciando um recomeço, o olhar da mulher orgulhosa e fortalecida no espelho que estava
redescobrindo cada fio, por vezes nem lembrava como era antes de todos os processos químicos.

Figura 8: Evelli interagindo com a obra “Transitórias” (2018). Acervo pessoal

Nós de mim

Corpo-caminho-casa

Cada percurso traçado, tranças feitas num domingo de sol

Mainha fazia na infância

Corpo cansado, corpo que fala, mapeamento, cabelo crespo

Nós, desembaraço, cheio, dor nas mãos

Raízes identitárias que me movem. Resgate!

O que herdei? O que esqueci?

Minha história perdida, como recuperar?

Apaguei minha identidade


27

Alisar, alisante, queimou, quebrou

Chorar, não reconhecimento

Cortei! Me libertei!

Fios, milhares de fios

União, ligamento, cordão umbilical, trama

Entrelace, ninho, aninhar

Emaranhado de nós, nós de mim

Tempo que passa na trança, conversa boa

Calor, peso que carrego na cabeça e nas costas também

Olhos marejados de lembranças

Corda, ancorar-se

Fincar o pé no local de fala

Território quase inabitável.

Recife, 04 de dezembro de 2018

Tecer memórias afetivas na busca de significados para as minhas raízes identitárias se


tornou um dispositivo para a compreensão dos trabalhos artísticos que venho desenvolvendo na
academia. Trago o cabelo como instrumento de aprendizagem, ressaltando a relevância de
materializar histórias com cabelos crespos e os traços genéticos que há tempos muitas mulheres
negras quiseram apagar.
28

Figura 9: Fotografia da performance “Nós de Mim'' (2018). Créditos: Olga Wanderley

Segundo Lody (2004, p. 65) "os cabelos e os penteados assumem para o africano e os
afrodescendentes a importância de resgatar pela estética, memórias ancestrais, memórias
próximas, familiares e cotidianas”. Esta afirmação se concretiza a partir da performance Nós de
mim (2018), que foi realizada no Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de
Pernambuco (CAC-UFPE). Nela recito frases a partir de relatos pessoais, convidando a amiga
e artista visual Nathália Ferreira para que trance cabelos sintéticos nas raízes de uma árvore,
fazendo com que se entrelacem com os meus cabelos já trançados. Coloco o meu corpo à
disposição deste ritual, me sinto conectada com as raízes dos meus antepassados através da
natureza e das vestimentas brancas, lembro da citação da antropóloga Paola Klug (2015) que li
na revista Conti Outra “a minha avó dizia-me que quando uma mulher se sentisse triste, o
melhor que podia fazer era entrançar o seu cabelo; de modo que a dor ficasse presa no cabelo e
não pudesse atingir o resto do corpo.”
Nesta performance o papel da trançadeira se torna um ato representativo, são as mãos
da sabedoria, permitem que os cabelos afro sejam o centro do seu papel histórico. Simboliza
tudo o que foi vivido pelos nossos ancestrais. Criar penteados se torna uma forma de retomar
29

histórias e memórias pessoais e outras de significados mitológicos, unindo assim, o sagrado ao


cotidiano.

Figura 10: Registro da performance “Nós de Mim” (2018). Créditos: Olga Wanderley

Nesta ação, o penteado afro se ressignifica a partir dos estudos de arquivos


memorialísticos, o que na arte contemporânea tem importante discurso estético, político e
ideológico da negritude. Ribeiro (2017, p. 34) aponta que: “[...] a afirmação de que um dos
objetivos do feminismo negro é marcar o lugar de fala de quem as propõem, percebemos que
essa marcação se torna necessária para entendermos realidades que foram consideradas
implícitas dentro da normatização hegemônica”
Poder ocupar locais que historicamente apagaram as mulheres pretas e/ou as
objetificavam (leia-se espaços artísticos e galerias), usando das narrativas pessoais contadas
pelas mesmas é assumir o papel de sujeito na história através do local de fala. Entendo a partir
disto que os cabelos crespos e os penteados afros são os fios condutores das memórias de
resistência, empoderamento e ancestralidade.
Partindo do meu processo artístico, percebo uma narrativa vagarosa que demanda tempo
para ser produzida. Desde o início do ano de 2018 venho recolhendo os meus cabelos quando
30

os desembaraço, corto, aparo as pontas e retiro as tranças que utilizo com materiais sintéticos
ao longo do tempo. Fui instigada pelas pessoas que contribuíram deixando suas mechas na obra
Transitórias. Nora (1993, p. 9) relata que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”. Através da reflexão ando trabalhando na corporificação deste
material de forma que se entrelace com as minhas investigações.

Em lágrimas

Eu que sempre fui emotiva, nunca fui boa em engolir o choro, por isso
o materializo “em lágrimas”.
Igarassu, 09 de setembro de 2021

A obra Em lágrimas foi pensada como exercício de criação artística para lidar com as
angústias que venho sentindo novamente em relação ao meu cabelo crespo, que no cotidiano
tenta resistir aos padrões eurocêntricos socialmente aceitos e de como minha autoestima até
hoje fica fragilizada com traumas que já foram relatados nesta pesquisa. Queiroz (2019, p. 219)
através de sua escrita me relembrou como

A mulher negra lida com o racismo desde a infância na escola, tentando manter seu
cabelo sempre “arrumado” na visão de um padrão que não lhe pertence. A dor de
pentear, amarrar, fazer tranças e outros penteados, cria uma relação negativa entre a
criança negra e seu cabelo, pois além de causar dor física pelo fato de penteá-los com
força, amarrar apertado, horas sentada para fazer tranças, também há dor emocional
ao ouvir palavras que são reforços negativos sobre a sua imagem e seu cabelo.

Refletindo sobre isso, revisitei alguns relatos que tinha escrito em meu diário, este que
foi elaborado para guardar memórias das minhas histórias capilares. Lá me fiz a seguinte
pergunta: por que prendo o meu cabelo fortemente? Não tenho uma resposta, mas deve estar
atrelado ao receio que ele fique amassado em público, amarro várias vezes seguidas até ficar
como eu gosto, acabou se tornando uma luta constante com minha autoestima, poucas vezes
me sinto bonita.
Passei um bom tempo sentindo a inquietação para produzir algo com os meus cabelos
que estavam guardados. Tinha mencionado na pesquisa que fiz para o Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) 2019/2020, resultante de uma publicação na Revista
31

CLEA6 2020 (Consejo latinoamericano de educácion por el arte) que não tinha encontrado
respostas de como trabalhar na corporificação deste material de forma que se entrelaçasse com
as minhas investigações. Anotei num determinado período deste ano a ideia de produzir
lágrimas em resina cristal, nas quais teriam os meus crespos dentro, uma forma para
ressignificar a minha dor.
Pude vivenciar a primeira experiência com esta criação quando propus a feitura de vinte
lágrimas numa instalação para o XIII Salão Universitário de Arte Contemporânea (UNICO) do
SESC Santo Amaro em agosto de 2021, onde fui selecionada. Comecei pesquisando moldes em
formatos de gotas, mas nenhum se encaixava ao tamanho que eu queria, então os encomendei
com o artista e estudante do curso de Licenciatura em Artes Visuais João Henrique Laymistone
(Michael), inclusive, ele que me deu as dicas de como passar desmoldante7, lixar as peças e
outros processos que até então eu desconhecia.

Figura 11: Processos da obra “Em lágrimas” (2021), à esquerda estão os moldes em gesso e as
lágrimas sem acabamento; à direita a lágrima finalizada e polida. Acervo pessoal.

A produção de “Em lágrimas” foi desafiadora, esta artesania levou o nosso corpo ao
extremo. Digo nosso, pois minha família me auxiliou em todo o processo. O esforço ao lixar

6
O artigo pode ser lido em: <https://www.redclea.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-CLEA-
N%C2%B09.-09.11.-2020.pdf>
7
É um produto químico à base de óleos puros ou emulsões oleosas capaz de criar uma película fina entre as
fôrmas e o concreto. A utilização adequada desse material impede a aderência entre a resina e o molde,
facilitando a desforma.
32

repetidamente diferentes tipos de lixas d’água que no começo eram de numerações 320, 600 e
1200 para tirarmos todas as imperfeições das gotas. Nos testes iniciais fui aprendendo a fazer
cálculos matemáticos, numa alquimia para misturar a resina cristal com o seu catalisador, 8
tinham proporções exatas e acabei descobrindo que mexer demasiadamente faz o material
endurecer mais rápido e que mesmo lixando e deixando o mais liso possível, só se vê a nitidez
quando se faz o polimento. Para que o resultado pudesse ser melhor, sentimos a necessidade de
acrescentar mais lixas a de 400, 800 e 2000, perdi as contas da resina desperdiçada, das
inúmeras vezes que os dedos ficaram engelhados e feridos por estarem na água num prolongado
período de tempo (já que cada lágrima era feita em aproximadamente quatro ou cinco horas),
as articulações doloridas das mãos e dos braços, os feriados e madrugadas de trabalho, a força
para polir e dar brilho, o choro de exaustão e medo por não achar que faria as vinte lágrimas até
o dia de montar a exposição.
Minha família teve um papel fundamental na realização deste trabalho, principalmente
minha mãe Maria Rosa, que todos os dias me ajudava incansavelmente, fazíamos competições
de quem deixava as gotas mais brilhosas e polidas. Meu pai Antônio lixava quando podia e
fazia pequenos furos com a furadeira para que as obras ficassem suspensas e teve o dia do
mutirão onde meu namorado Fernando, minha irmã Ryellen e meu cunhado Douglas, passaram
o dia produzindo comigo. Sem estas pessoas que acreditaram no meu trabalho, minhas lágrimas
ficariam incompletas, reforçando o que Nora (1993, p. 9) diz que “a memória é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. E no final da turbulência tínhamos um total de
trinta e duas gotas.
Com o auxílio de Fábio e Artur, a instalação foi tomando forma, as lágrimas ficaram
dispostas de maneira que quem visitasse a Galeria Corbiano Lins no SESC Santo Amaro,
pudesse não só ver ao redor, como passear por entre os objetos e tateá-los. Cada lágrima se
tornou única, pelas cores e formatos que o cabelo se comportava na resina. A abertura do XIII
Salão Universitário de Arte Contemporânea (UNICO) em novembro de 2021, me trouxe a
sensação de dever cumprido e depois de quase dois anos, foi emocionante reencontrar pessoas
tão queridas e ouvi-las sobre seus sentimentos e curiosidades em relação à obra.

8
Em química, o catalisador é uma substância que aumenta a velocidade de uma reação, neste caso, fazendo com
que a resina endureça mais rápido.
33

Figura 12: Foto na obra “Em lágrimas” (2021) na abertura do XIII Salão Universitário de Arte
Contemporânea (UNICO). Créditos: Leandro Lima

Foram dias inquietantes, que como artista quase pensei em desistir da minha criação,
mas poder ver, tocar e sentir a materialidade final, chega a ser poético. Quando Ostrower (2001,
p. 72) escreve “se o caminho muitas vezes foi acompanhado de ansiedades, impaciências e de
conflitos interiores que pareciam nunca mais resolver-se, vivenciar esse momento de
determinação é viver um momento de profunda felicidade”. A inspiração nos processos de
criação se resume desta forma, em caminhos que fui sendo guiada pela minha intuição, testando,
refazendo, aprendendo com os erros e assim como a obra, compreendi que a minha autoestima
também é processual.
34

Figura 13: Fotomontagem. Detalhes da instalação “Em lágrimas” (2021) na abertura do XIII Salão
Universitário de Arte Contemporânea (UNICO). Créditos: Leandro Lima
35

Emaranhado de memórias e fios (in)conclusórios

O cabelo é um marcante indício de procedência étnica, é um dos principais elementos


biotipológicos na construção da pessoa na cultura. O negro quando assume o seu
cabelo de negro assume também o seu papel na sociedade como uma pessoa negra. E
ser negro no Brasil e no mundo, convenhamos, é ainda duro caminho trilhado por
milhares de afrodescendentes. (LODY, 2004, p.125)

O cabelo afro faz parte da estética e da identidade. As relações que eu tenho e que cada
pessoa tem com a sua madeixa são muito particulares, vão das experiências vividas desde a
nossa infância até a vida adulta, representando resistência e ancestralidade. A história destes
fios capilares foi quase apagada quando muitas de nós, mulheres pretas, decidimos ou fomos
forçadas a nos encaixarmos em um padrão de beleza eurocêntrico. Relações ligadas à feiura,
inferioridade e marginalização dos nossos corpos, contribuem significativamente para o
desenvolvimento de baixa autoestima.
Desde crianças passamos por processos químicos em que as mães, avós e tias tinham a
intenção de nos moldar em um modelo estético no qual a textura do cabelo crespo,
popularmente considerado como “ruim”, fosse transformada em liso, para se tornar enfim, um
cabelo “bom” conceituado como o ideal. No entanto, essa ação se apresenta como um ato
contraditório em um local onde a maior parte da população é afrodescendente. Percebo em mim
que complexos foram formados e incorporados, principalmente quando os meus cabelos
crespos fogem do ideário de beleza aceito socialmente.
Nesta pesquisa autobiográfica que se iniciou com memórias dolorosas, é no cabelo que
encontro a ressignificação de alguns traumas que nasceram na infância. Penso enquanto
arte/educadora, artista e pesquisadora, que essa temática pode ser trabalhada em ambientes de
ensino formais e não-formais, através da escuta, da partilha de experiências e representações de
pessoas negras sobre seus próprios corpos.
Assim, torna-se fundamental o trabalho de lapidação do olhar e de todos os sentidos,
para que possamos contribuir em um processo educativo emancipatório, que proporcione
autonomia, liberdade, crescimento individual e coletivo. Além da identificação e percepção do
próprio fio condutor de formação pessoal e identitária.
Gomes (2002) em sua pesquisa faz a seguinte provocação, seguida com uma resposta:

Mas, como captar as impressões e representações do negro sobre o próprio corpo,


articulando-as com as experiências escolares e não escolares? Esta não é uma tarefa
fácil, porém não é impossível. Um dos caminhos para a sua realização poderá ser o
desenvolvimento de uma escuta atenta, por parte dos educadores e das educadoras, ao
que os negros e as negras têm a dizer sobre as suas vivências corpóreas dentro e fora
dos muros da escola (GOMES, 2002, p. 41).
36

Sei que se trata de uma tarefa árdua que requer um trabalho em longo prazo para
desenvolvimento nos espaços escolares. No ambiente acadêmico surgem investigações a partir
da necessidade dessas abordagens em salas de aulas, onde o padrão e estética eurocêntrica ainda
predominam. A escrita de si, neste caso, torna-se uma ferramenta empoderadora para ouvir as
mulheres negras marginalizadas. Rompe paradigmas. Ferreira (2013, p. 52) nos ajuda a
entender que “a escrita de si, para as mulheres negras, é um ato insubordinado, corajoso. É um
movimento de encontros, reconhecimentos, superações”.
No decorrer deste estudo, a autoaceitação do meu cabelo vem sendo trabalhada nesse
emaranhado de memórias ancestrais. Vou desembaraçando problemáticas para ressignificá-las
em trabalhos artísticos e pesquisas. As tranças são fortemente lembradas por mim, as faço até
hoje, conectam os meus antepassados com o meu presente. Minha mãe relata que aprendeu
sozinha a trançar seus cabelos, “aprendeu na vida, no dia a dia”.
Apesar das pesquisas sobre memórias estarem sendo abordadas na universidade, penso
que atrelá-las aos processos criativos a partir dos cabelos crespos traz uma reflexão necessária
e pouco discutida, até então. Através destas acredito contribuir de maneira inspiradora para o
campo da arte/educação, pois abordo como as trajetórias de vida não se desvinculam das nossas
pesquisas e produções artísticas.

Respeitando quem chegou antes de mim e são minhas referências

ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Memória, narrativas e pesquisa autobiográfica.


Revista História da educação, v. 7, n. 14, p. 79-95, 2003.
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FERNANDES, Pablo Moreno; BELMIRO, Dalila Maria Musa. As semioses do “tornar-se”


negra em “Mulheres em Transição”. Revista ECO-Pós, v. 24, n. 1, p. 257-281, 2021.

Ferreira, Amanda Crispim. Escrevivências, as lembranças afrofemininas como um lugar


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Guimarães. Faculdade de Letras UFMG – Programa de Pós-graduação em Letras – Pós-Lit.
Belo Horizonte, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 1 ed.


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37

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estereótipos ou ressignificação cultural?. Revista Brasileira de Educação, n. 21, p. 40-51.
2002.

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edição): sobre visualidades em queda. Recife: Ed. UFPE, p. 151-153. 2019. Disponível em:
<https://drive.google.com/file/d/16-DdxKT9PLivwIRon_tnNYshRIGC2Mqg/view>. Acesso
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HIGINO, Rayellen Carolina Alves; SILVA, Maria Betânia e. Raízes Identitárias: Memórias
de Si. Brasil, Revista CLEA, v. 9, p. 82-97. 2020. Disponível em:
<https://www.redclea.org/wp-content/uploads/2020/11/Revista-CLEA-N%C2%B09.-09.11.-
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Hooks, Bell. Alisando o nosso cabelo. Coletivo Feminista Marias. Texto extraído da Revista
Gazeta de Cuba - Unión de escritores y artista de Cuba, jan-fev de 2005. Tradução do
espanhol: Lia Maria dos Santos. Disponível
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KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1 ed.


Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Klug, Paula. Palavras de avó: quando uma mulher estiver triste o melhor a fazer é trançar o
seu cabelo. Conti Outra. Tradução Rui Sá. 2015. Disponível em:
<https://www.contioutra.com/minha-avo-dizia-que-quando-uma-mulher-se-sentisse-triste-o-
melhor-que-podia-fazer-era-entrancar-o-seu-cabelo/>. Acesso em 23 setembro de 2019.

LODY, Raul Giovanni da Motta. Cabelos de Axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro:
Editora Senac Nacional. 2004.

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OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 15 ed. Petrópoles, Vozes. 2001.

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Cadernos de Gênero e Tecnologia, Curitiba, v. 12, n. 40, p. 213-229, jul./dez. 2019.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017

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documentação narrativa: redes de pesquisa e formação. Salvador: EDUFBA. p.105-125.
2015.
38

SILVA, Paula Camilla Soares; BRAGA, ÂM da S. Transição Capilar: O cabelo como


instrumento de política e libertação através da identidade e suas influências. Anais XX
Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Uberlândia, MG. Vol. 19.
2015.

SOARES, Anita Maria Pequeno. Cabelo importa: os significados do cabelo crespo/cacheado


para mulheres negras que passaram pela transição capilar. 2018. Dissertação (Mestrado
em Sociologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018

SOUZA, Natália de Lima. Ethos e negritude: cabelo e corpo como símbolos de identidade
e autoestima de mulheres afrodescendentes. 2018. Dissertação (Mestrado em Linguística) -
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2018.
1

O caminhar cíclico da criação artística


2

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO


DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

O Caminhar Cíclico da Criação Artística

Carolina Alexandre da Mota

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial para
a obtenção do título de Licenciada em
Artes Visuais pela Universidade Federal
de Pernambuco.
Orientadora: Profª. Dra. Maria Betânia e
Silva.

Recife, 2021
3

Carolina Alexandre da Mota

O Caminhar Cíclico da Criação Artística

Comissão Examinadora

___________________________________________________________
Profª Dra. Maria Betânia e Silva (UFPE) – Orientadora

____________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (UFPE) – Examinador Interno

____________________________________________________________
Profª. Dra. Carolina Mafra de Sá (UFAPE) – Examinadora Externa
4

RESUMO

Através da imersão em algumas de minhas produções artísticas, discorro


sobre meu processo criativo, que se apoia nos distintos eixos: a memória, os
lugares e os sonhos. Com uma narrativa biográfica destacando o que chamo
de caminho do meio, que consiste em falar apenas do processo que envolve
subjetividade e materialidade, descartando os resultados das obras em si. Com
uma escrita que não acontece de forma linear e fazendo uso de fotografias,
pinturas e inquietações adaptei minhas percepções que geralmente faço de
forma “despretensiosa” para uma escrita acadêmica, este percurso que está
estruturado através da metodologia cartográfica.

Palavras Chaves: processos artísticos; narrativa biográfica; memória.


5

ABSTRACT

Through immersion in some of my artistic productions, I discuss my creative


process, which is based on different axes: memory, places and dreams. With a
biographical narrative highlighting what I call the middle way, which consists
of talking only about the process that involves subjectivity and materiality,
discarding the results of the works themselves. With a writing that doesn't
happen in a linear way and making use of photographs, paintings and
concerns, I adapted my perceptions that I usually do in an “unpretentious” way
to an academic writing, this path that is structured through cartographic
methodology.

Keywords: artistic processes; biographical narrative; memory.


6

Por Carol Mota

Recife,
2021
7

Criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo


necessário.
Fayga Ostrower, 2016.
8

Percursos

O Caminho do Meio....................................................................................9

O retorno: a memória no processo criativo – ELO....................................11

O insight (relato do processo) ....................................................................15

Os espaços geram lembranças – Videoarte Reminiscência......................21

A Reminiscência..........................................................................................25

Sonhos são realidades possíveis – Pinturas em Acrílica..........................26

A pintura sem rosto....................................................................................28

Inconclusões..............................................................................................34

Referências ......................................................................................................................36

Anexos.......................................................................................................37
9

O caminho do meio

Para a construção dessa escrita me debrucei sobre algumas partes que compõem
meu processo criativo. Especificamente alicerçados entre: a memória, os lugares e os
sonhos. Em cada capítulo, o fio linear de narrar os fatos foram cortados, dando espaço
para uma lógica narrativa que é cíclica, alinhando-se dessa maneira à forma que
estruturo meus pensamentos.

A escrita é autobiográfica e a metodologia utilizada é a cartográfica. A escolha dessa


metodologia é porque segundo Barros e Kastrup (2020) a cartografia parte do
reconhecimento de que, o tempo todo estamos em processos, ou seja, não tem como
separar o objeto da pesquisa em relação às questões que o constituem, neste caso
colocar em caixas distintas o EU do Processo Criativo. Barros e Kastrup (2020, p 58)
ainda acrescentam que “quando tem início uma pesquisa cujo objetivo é a
investigação de processos de produção de subjetividade, já há, na maioria das vezes,
um processo em curso.”

Apesar de desafiador, o processo de estruturar a subjetividade, à medida em que a


escrita se adensa, o caminho vai ganhando sentido. Ainda como parte fundamental
da organização da metodologia recorri às minhas produções artísticas, algumas já
publicadas como as presentes nos capítulos 1 e 2, e as pinturas que tenho como
produção pessoal, a ideia é apresentar como cada obra se relaciona com um dos
aspectos que sustentam meu processo criativo. Focando apenas no processo de
construção entre subjetividade e materialidade, etapa que chamo de caminho do meio,
deixando de fora os resultados em si da obra finalizada. Além disso utilizo fotografias,
pinturas, rabiscos de minha autoria para narrar de maneira visual além da escrita,
agregando para quem não quiser ler o deleite de folhear as páginas (risos irônicos).

No Capítulo 1 O retorno: a memória no processo criativo, apresento a memória numa


perspectiva de afeto que surge a partir da família, este capítulo é um desdobramento
da pesquisa iniciada através do PIBIC. Nele apresento a produção da obra Elo, que
integrou a exposição virtual da 3ª edição do Tramações em 2020.

No Capítulo 2 Os espaços geram lembranças narro sobre os lugares que fotografei


com a câmera analógica. Um percurso que, apesar do registro fotográfico, fala sobre
ausência. Neste discorro brevemente sobre a construção da obra Reminiscência, um
videoarte que esteve em exposição no Ceará neste ano de 2021.
10

Por fim, no Capítulo 3 Sonhos são realidades possíveis mergulho em minha relação
com o sonho, apresentando algumas pinturas que construí a partir dessas
experiências oníricas. Mostrando como o ato de sonhar é interessante para a
produção artística.

Alguns dos autores que dialogo são Ostrower (2016), Candau (2019), Careri (2013),
Sontag (2004) e Ribeiro (2019), pois em suas perspectivas encontro relações diretas
para embasar minhas questões.

Essa escrita não tem um caráter universal, são perspectivas pessoais, ainda em
processo de construção, apesar de ter resultados e de algumas obras já estarem por
aí, narro de forma simples, apresento para reforçar o quanto é fundamental ser agente
de nossa própria história. Durante todo o nosso processo formativo desde a escola
vamos estudando a história dos outros, os processos dos outros, sei o quanto isso é
importante, porém também somos dotados de nossa narratividade que é tão relevante
quanto. Apoio-me principalmente em minhas experiências de extensão e pesquisa
vivenciadas dentro da Universidade, para reforçar esse discurso, onde o protagonismo
experienciado a partir desses programas reforçam o quanto nós, estudantes fazemos
a história e quanto o ato de narrar a si é transformador, os estágios na rede pública
de ensino nem se fala, são desafiadores e únicos. Para falar de experiência nada
melhor do o que diz Larrosa (2002, p 25) “é experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que
nos toca, ou que nos acontece, e ao passarmos nos forma e nos transforma. Somente
o sujeito da experiência está, portanto, aberto a sua própria transformação.”

Portanto, a partir de diferentes estímulos narro sobre minhas experiências artísticas,


sobre o recorte do caminho do meio.
11

Percurso I

O Retorno: A memória no processo criativo


- Elo -
12

Falar é recordar como afirma Candau (2019, p. 71) e a construção desse


capítulo se debruça sobre isso, a relação com as recordações e como essa teia de
lembranças construídas ao longo de toda a vida contribuiu na minha produção
artística.

O ato de recordar é algo que nos acompanha em toda as ações do dia: o que
comi ontem? “Quais são minhas atividades de amanhã?” “Os nomes das pessoas que
nos cercam.”.. é assim sempre. Mas, e quando as memórias são de coisas que a muito
tempo não falamos, que a muito não nos esforçamos mais para lembrar e que por ter
sido vivenciada a tantos anos atrás já está tão sobreposta por novas experiências que
o mínimo esforço escancara uma lacuna cheia de fragmentos dispersos. Halbwachs
(1990) comenta que “esquecer um período de sua vida é perder o contato com aqueles
que então nos rodeavam”, ou seja, as “brechas’ de nossa mente necessitam de apoio,
de disparadores que nos auxiliem a organizar os fatos de forma contínua, e assim
construir uma história possível de ser contata com começo, meio e fim. Esses
disparadores de recordações são os álbuns, objetos, cheiros, o diálogo com quem
compartilhou da mesma vivência.

Mas o caminho do retorno ao passado, é conflitivo, não só pelas lacunas, mas


segundo Candau:

Na relação que mantém com o passado, a memória humana é sempre


conflitiva, dividida entre um lado sombrio e outro ensolarado; é feita de
adesões e rejeições, consentimentos e negações, aberturas e
fechamentos, aceitações e renúncias, luz e sombra ou, dito mais
simplesmente, de lembranças e esquecimentos. (CANDAU, 2019, p 72)
É difícil nesse percurso de retorno quando nos deparamos com percepções que
até então interpretávamos de outro jeito, pois já não somos mais os mesmos de antes,
o mundo, a vida nos moldaram, amadurecemos, ganhamos cicatrizes, curamos
outras, apesar de encontrar doçura nas memórias de infância por exemplo, levamos
um choque entre realidades, com as novas interpretações sobre o que passou.
13

Figura 1 Infância 3x4. Detalhe para a informação que consta no verso da fotografia.
(Arquivo Pessoal)
14

Figura 2 Fotografia Polaroid tirada por minha mãe no apartamento


onde ela cresceu. (Arquivo Pessoal)
15

Elo: o insight!

Figura 3 Inventividade, mãe e filha. (Arquivo Pessoal)

A vida seguia mansa, era mais um final de semana quente. A fim de quebrar a monotonia dos
dias úteis, tivemos a oportunidade de experimentar e viver nossa inventividade. O tempo, esse
corria a nosso favor, cheio de brechas livres que aos poucos fomos preenchendo com
tentativas, recortes, cola, barbantes, linhas e nós. Ela tirou uma ideia de dentro de uma de
minhas gavetas e me instigou o pensar, me fez recordar que a muito tempo esse objeto de
formato de coração estava parado, a poeira parecia ser sua companhia de muitas horas e
isso me inquietou. Precisava fazer esse coração de matéria mista voltar a “bater”. E assim
fomos juntas criando uma teia onde ele iria ficar pendurado, a fim de se movimentar e sempre
que eu perdesse meu olhar, lembrar o que simbolicamente representava, camadas de
memória que fomos construindo juntas. Aos poucos o pulsar voltou, a cor voltou, a vida em
movimento surgiu. Eram quatro mãos, duas muito mais maduras e vividas, o outro par cheio
de vontade e euforia. E juntas demos um novo sentido para aquele coração empoeirado e
fomos atravessadas por uma memória de uma vida inteira que no exato momento que
terminamos foi o insight para a construção de Elo1. (MOTA, 2021, p.103)

1
Trecho do livro Tramações a Memória e o Têxtil (2021) onde apresento a experimentação que serviu de
inspiração para construção da obra Elo (2020) presente na exposição virtual Tramações 3ª edição.
16

Para falar sobre os caminhos que percorri para elaborar essa obra que tem a
memória como alicerce é necessário se desprender do conceito de tempo cronológico
e andarilhar por um percurso que é cíclico e dinâmico. Elo é a síntese de um caminho
que já vinha trilhando desde sempre. Na verdade, foi a partir dessa produção que
pude apresentar de forma material uma relação com a arte que sempre ocorreu em
minha vida e que encarava de forma natural. A narrativa da obra se debruça sobre
minha relação com a arte e minha mãe. Especificamente, porém parte de um processo
mais amplo e antigo que só percebi através do PIBIC, onde os dados levantados tem
um peso e uma preciosidade ímpar. No PIBIC constatei como minha mãe contribuiu
no meu processo formativo, facilitando para que eu seguisse o caminho da arte.
Percebi também como foi construída a relação dela (minha mãe) com minha avó
materna, uma mulher de papel importantíssimo em sua vida e facilitadora do seu
contato com a arte também. Na infância a arte chegou em minha vida a partir da
mediação dada por minha mãe, através de criação artesanal dos meus brinquedos,
pelo apoio dado por ela nas minhas experimentações, no ato de ver e acompanhar
ela fazer seus artesanatos até hoje. A casa é tipo uma “galeria” para suas produções,
sempre tem algum ocupando uma parede ou prateleira.

Figura 4 Detalhe do processo de bordado. (Arquivo Pessoal)


17

Em um desses períodos loucos da universidade no formato remoto em plena


pandemia, eu estava finalizando meu PIBIC quando iniciei a disciplina de Estágio 4 2.
Diante das possibilidades de campo estágio, optei por fazer junto ao Tramações 3, era
a primeira vez que iria acompanhar tão de perto o projeto que é referência sobre
assuntos relacionados a gênero, sexualidade, processos educativos e criativos. Do
Tramações eu já tinha visitado algumas exposições além de acompanhar os
artistes/estudantes que já transitaram pelo projeto.

Durante o estágio foi dada a possibilidade para nós, o grupo de estagiárias, a


oportunidade de também expor alguma produção artística a partir do tema daquela
edição: A memória e o Têxtil.

Não vou seguir o caminho de narrar minhas experiências de estágio, daí


guardem a temática da exposição. Pensando nisso na verdade, eu já tinha em mente
que o título da obra que iria desenvolver seria “Elo”, pois era um conceito que eu já
vinha pensando em trabalhar com fotografia. Sobre essas conexões que se
estabelecem no processo de produção, lembro o que comenta Fayga (2016) sobre as
associações que constituem as ideias, estruturando e dando sentido:

Espontâneas, as associações afluem em nossa mente como uma velocidade


extraordinária. São tão velozes que não se pode fazer um controle consciente
delas. Às vezes, ao querer detê-las, elas já se nos escaparam. Embora as
associações nos venham com tanta insistência que talvez possam tender para
o difuso, estabelecem-se determinadas combinações, interligando-se ideias e
sentimentos. (OSTROWER, 2016, p. 20)
Eu tinha o título, visualizava utilizar a fotografia e consequentemente
influenciada pela temática “A memória e o Têxtil” visava usar algum tipo de tecido e
linhas, mas eu ainda não tinha a obra, precisava de inspiração. Dito isso, fui ler, assistir
filme, ouvir música, fotografar, pintar, tudo feito em casa, infelizmente em plena
pandemia e com isolamento social não era possível imaginar sair na rua, visitar algum
espaço expositivo, museu ou qualquer evento cultural.

A interação com o mundo lá fora ou com qualquer evento cultural era somente
via lives, Youtube e plataformas digitais. Meus olhos já estavam saturados e bastante

2
A disciplina de estágio 4 é voltada para desenvolver ações de mediação, em espaços de arte e cultura,
tais como: galerias, museus, centro culturais e espaços expositivos.
3
Instagram link: https://www.instagram.com/tramacoes/
18

desestimulados de vislumbrar a arte apenas neste formato. Apesar de entender e ser


a favor para que de fato as coisas fossem feitas dessa maneira.

Quando surgiu o INSIGHT! Conforme foi narrado anteriormente, no início desse


capítulo tudo se alinhou, gerando sentido. Fayga comenta o seguinte, sobre essas
experiências que surgem de forma “espontânea”:

Trata-se, contudo de processos dos mais complexos estruturados


dentro do ser humano, pois no insight estruturam-se todas as
possibilidades que um indivíduo tenha de pensar e sentir, integrando-se
noções atuais com anteriores e projetando-se em conhecimentos
novos, imbuída a experiência de toda carga afetiva possível à
personalidade do indivíduo. (OSTROWER, 2016, p. 66)
Então tudo fez sentido de forma clara em minha mente, e por uma fração de
segundos passado, presente e futuro confluíram, eu sabia o que iria desenvolver!
Como diz Fayga (2016, p. 18) “evocando um ontem e projetando-o sobre o amanhã,
o homem dispõe em sua memória de um instrumental para, a tempos vários, integrar
experiências já feitas com novas experiências que pretende fazer.”
19

Figura 5 Fotos do processo. Em cima a mão de minha mãe e a minha, mostrando a proporção com o
bordado de coração. Embaixo, seguro o bordado. (Arquivo pessoal)
20

Figura 6 Na fotografia de cima, minha mãe bordando o coração. Na fotografia de baixo, bordo raízes.
(Arquivo pessoal)
21

Percurso II

Os espaços geram lembranças


- Videoarte Reminiscência -
22

A cidade é um labirinto, onde as linhas verticais e horizontais se encontram, eu


sou apenas um ponto em movimento no mapa da cidade, andando gero percurso e
sem um trajeto demarcado me ponho a descobrir o caminho à medida em que me
desloco. Tenho essa necessidade de andar, sempre me ajudou a pensar, acredito que
caminhando vamos deixando impressões, deixando(largando) para trás coisas que
não nos servem mais e captando outras boas ideias. Careri (2013, p. 27) diz que “o
caminhar transformou-se numa fórmula simbólica que tem permitido que o homem
habite o mundo. Numa percepção mais expandida não só o mundo físico, mas os das
ideias, o do diálogo consigo”.

Se antes apresentei sobre a memória voltada às relações afetivas(família) e


suas contribuições nas minhas produções artísticas, agora entro em um outro aspecto,
de característica similar, porém levemente distinto, a poética dos lugares. Capazes de
gerar impressões que ficam marcadas na nossa tela mental, os espaços influenciam
os sentidos, e geram interessantes percepções para a construção de narrativas
artísticas.

Minha “intervenção” na cidade parte da construção de imagens através da


fotografia, no início usava bastante o celular devida sua facilidade de transporte,
manuseio e qualidade da imagem. Basicamente, era o único equipamento que eu
tinha para a produção fotográfica. A dinâmica de registrar o centro de Recife começou
de forma mais crítica a partir do ano de 2017, quando cursei a disciplina de Fotografia
na universidade, onde encontrei uma vasta possibilidade dentro da área fotográfica.
Antes disso, fazia as imagens de forma mais livre, instintiva e com pouco senso
estético. Talvez envolvida pelo sentimento apresentado por Sontag (2004, p. 13) “o
resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que
podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens.”

Para além disso, a comunicação direta que a imagem produz dialoga bastante
comigo, não só pelo resultado instantâneo que o equipamento (neste caso, o celular)
produz, mas por espelhar meus sentimentos e minha visão sobre algo de forma mais
imediata, pois as fotos são uma interpretação do mundo tanto quando as pinturas e
os desenhos (SONTAG, 2004).

Sobe o centro da cidade, gosto do pulsar, do contraste da arquitetura e das


histórias, do fluxo intenso dos pedestres, das suas zonas de calmaria e do intenso
23

calor do movimento, para além disso há uma população flutuante que trabalha,
compra, “usa” e come, mas muitas vezes não se dá conta do universo ao redor
(FERRER, 2015), eu tenho essa sede, da descoberta. E é um fato, quanto mais se
caminha, mais se produz lugares. (CARERI, 2013).
24

Eu tinha em mãos uma câmera analógica, e a inexperiência de utilizar tal


equipamento. Agora, sem a instantaneidade de ver de pronto o resultado de cada
clique. A paciência deveria ser mais do que uma aliada, além da técnica. Junto com a
analógica vem uma nova distorção do tempo, no manuseio, no enquadramento e
assim, novas camadas foram adicionadas ao meu fazer imagem. A asa do filme
fotográfico me dava algumas limitações, assim como a quantidade de poses, 36. Acho
que limites não é bem a palavra, não me sentia limitada, me sentia desafiada, com um
leque específico de possibilidades. Eu tinha 36 chances de colecionar o mundo
(Sontag, p. 13)

O corpo em toda sua extensão influencia na imagem, o que sinto, penso, se


estou cansada ou irritada, tudo transparece no resultado final. Durante o tempo em
que saí, para gastar esse rolo de filme, acredito que estava tudo bem. Lembro que
quando cheguei pelo mercado de São José, alguns comerciantes de lá acharam que
eu era turista, estranharam o modelo da câmera e só de lembrar desse momento me
puxa um riso de canto. Lembro de dialogar com uma feirante e pedir sua permissão
para fazer um retrato, recordo de andar pela rua do Bom Jesus, da Dantas... e aos
poucos tudo começa a ir se apagando em minha mente, não consigo me recordar do
instante de cada imagem. Mesmo que para construção de cada foto demandasse um
esforço, não lembro. Eu pensava que não poderia esquecer tão rápido essa
experiência, mas me vem na mente apenas alguns flashs.

Olhando para cada quadradinho em sépia do rolo fotográfico, me deparo com


espaços esquecidos de minha memória. Apesar da prova, do ato feito e que só eu
poderia fazer, olho para uma memória vazia. É como disse, o corpo em toda sua
extensão influencia na imagem, seja na produção ou agora, na sua limitação em
recordar. Foi nessa relação entre imagem e ausência que surgiu o conceito para a
elaboração do videoarte Reminiscência4, pois como aponta Fayga (2016):

a criatividade se elabora em nossa capacidade de selecionar, relacionar e


integrar os dados do mundo externo e interno, de transformá-los com o
propósito de encaminhá-los para um sentido mais completo. (OSTROWER,
2016, p. 69)

4
O videoarte Reminiscência foi um dos selecionados do Efêmero Festival – CE(2021), que contou a
participação de artistas de todo o Brasil. Para saber mais, acesse: https://ifotoce.com.br/festival-
efemero .
25

Percebi um fio narrativo que precisava explanar e que apenas a imagem


estática não daria conta, porém a dinâmica do vídeo foi a melhor maneira de transmitir
o que sentia.

A Reminiscência

“Aqui a imagem e o vídeo se misturam ao meu próprio sentir.


Fotografias que apresentam ausências, devido as ações do tempo sobre a película, assim
como as lacunas de minhas memórias, sem nitidez o real se transforma em borradas
recordações. As imagens oscilam como flash, o piscar dos olhos, como a abertura do
obturador, como faíscas em minha mente. O filme fotográfico é materialidade física, a prova
de um caminho vivido.
Numa tentativa de fuga desses apagamentos, surge o restauro das imagens, a busca pelas
cores e o resgate o som das ruas. Fazendo brotar a saudade do contato com os espaços, da
deambulação pelo centro da cidade, das inspirações que só nascem desses percursos. A
imagem e o vídeo são analogias para as sensações que me atravessam5”.

Sontag (2004, p. 86) comenta que “uma foto é apenas um fragmento e, com o passar
do tempo, suas amarras se afrouxam”, de fato é um caminho inevitável, mas eu queria
adiar isso o máximo possível.

Figura 7 Fotografia de um filme analógico Kodak, 35 mm.


(Arquivo pessoal)

5
Texto que acompanha a obra Reminiscência.
26

Percurso III

Sonhos são realidades possíveis


- Pinturas em Acrílica -
27

Não sei determinar em que momento de minha vida comecei a me relacionar


com os sonhos de forma “consciente”, e que passei a interpretar seus significados.
Mas, o exercício de analisar os símbolos que surgem quando durmo é uma prática
que me acompanha tem um tempo. Já me ocorreram experiências reveladoras, assim
como sensações de medo, abandono, sonhos com perseguições, assim como vejo
paisagens indescritíveis, construo diálogos de longas horas e por aí vai. Mas é fato
que ao acordar partes do sonho vão se apagando naturalmente, Ribeiro (2019, p. 17)
comenta que “descrever os sonhos imediatamente ao despertar é uma prática que
enriquece a vida onírica”, faço isso com as impressões que se fixam por mais tempo
em minha mente.

A interpretação dos sonhos segue um caminho único, seus elementos na


maioria das vezes representam coisas e situações que nos deparamos quando
acordados, pois, a matéria dos sonhos são as memórias, ninguém sonha sem ter
vivido (RIBEIRO, 2019), ou seja, as memórias adquiridas durante todo o dia, no sono
reverberam no nosso inconsciente. Sobre isso Jung (1969) ainda acrescenta que:

Geralmente, o aspecto inconsciente de um acontecimento nos é revelado


através de sonhos, onde se manifestam não como um pensamento racional,
mas como uma imagem simbólica. (JUNG, 1969, p. 23)
Os símbolos, presentes nos sonhos, são carregados de significados, e
interpretá-los requer mergulhar em um processo profundo de pesquisa. Aqui não irei
seguir esse caminho, compartilharei minha relação com os sonhos dentro de uma
perspectiva mais pessoal.

Acredito, que o caráter positivo que vivencio em alguns sonhos me fizeram


querer guardá-los por mais tempo e para isso encontrei nas palavras, nos desenhos
e nas pinturas a possibilidade de fazer perdurar tais experiências oníricas, servindo
assim como extensões da memória (Candau, 2019).

Dentre as possibilidades a que mais gosto de usar é a pintura. O uso da técnica


com acrílica me dá a liberdade de experimentar a criação das cores a partir das
primárias: vermelho, amarelo e azul, além do uso da cor branca. Esse apego às
primárias foi algo que adquiri em umas das disciplinas na Universidade, e que se
tornou parte dos momentos de lazer e estudo de pintura. Ainda sobre a relação entre
a técnica de pintura e os sonhos, percebo que dessa maneira consigo alcançar de
forma mais prática e me aproximar das cenas que ficam registradas em minha mente,
28

a pintura me permite criar as cores e dispor os elementos na folha de papel tal como
me recordo, crio assim uma outra conexão com minha subjetividade. Tal processo, é
como criar janelas entre realidades e experimentar a leveza da fluidez.

A pintura sem rosto

Figura 8 Pintura realizada a partir de um sonho. Sem título.


Acrílica sobre papel, 2021.

Já fazia um tempo que não sonhava, e isso estava me incomodando bastante.


Como se não bastasse, não me sentia criativa, apesar da vontade de querer produzir
algo, sentia-me desestimulada a tentar. Fayga (2016) comenta que:
29

a imaginação criativa nasce do interesse, do entusiasmo de um indivíduo pelas


possibilidades maiores de certas matérias ou certas realidades. Provém de sua
capacidade de relacionar com elas. (OSTROWER, 2016, p. 39)
Indo de encontro ao que Fayga apresenta, não me sentia conectada a nenhuma
expressão artística no momento, algo me faltava. Diante desse descompasso,
continuava a deixar de lado dia após dia tal desconforto, o confrontando apenas de
canto de olho, sabia que aquilo não era bom, como uma roupa que não nos cai bem
e nos incomoda até o ponto que não dá mais para aguentar e decidimos tirar, decidi
meditar sobre isso numa tentativa de encontrar a solução. Meus pensamentos me
conduziram a refletir que provavelmente o ato de não recordar os sonhos estava me
deixando desconfortável comigo e que talvez essa situação já fosse sintoma de
questões mal resolvidas.

Sidarta Ribeiro (2019) diz que o sonho é essencial, pois:

Nos permite mergulhar profundamente nos subterrâneos da consciência.


Experimentamos no transcorrer desse estado uma colcha de retalhos
emocionais. Pequenos desafios, modestas derrotas e vitórias cotidianas geram
um panorama onírico que reverbera as coisas mais importantes da vida [...].
(RIBEIRO, 2019, p. 18)
Dormir bem e sonhar é fundamental para regular a saúde da mente e do corpo.
É relevante apresentar o que diz o autor Sidarta Ribeiro (2019) sobre os sonhos:

[...] o sonho é um simulacro da realidade feito de fragmentos de memórias. Dele


participamos normalmente como protagonistas, o que não significa que
tenhamos controle sobre a sucessão de eventos que perfazem o enredo
onírico. Por atuarmos nele sem conhecer seu roteiro e direção, muitas vezes
experimentamos surpresas e até mesmo euforia durante o sonho. Da mesma
forma, é comum que o sonho encene situações de grande frustração ou
decepção. (RIBEIRO, 2019, p.14)
Apesar de seguir uma lógica que não podemos controlar, o ato de sonhar rende
ricas possibilidades criativas, já que fora do estado de vigília podemos nos deparar
com:

[...] um personagem ou lugar [que] pode se transformar em outro com incrível


naturalidade, revelando o poder de transmutação das representações mentais.
O encadeamento entrecortado dos símbolos determina um tempo
caracterizado por lapsos, fragmentações, condensações e deslocamentos,
gerando camadas de significado múltiplas e até mesmo díspares. O arco de
possibilidades do sonho é vastíssimo, beirando o insólito, o inverossímil e o
caótico. (RIBEIRO, 2019, p. 14)
30

Desde que li o livro Mulheres que correm com Lobos escrito por Clarissa
Pinkola Estés6, encontro nele uma maneira de alinhar-me, e consigo refletir com maior
clareza sobre as questões que me atravessam, como por exemplo, recorri a sua leitura
para buscar soluções sobre os sonhos e o processo criativo que estavam a algum
tempo bloqueados. O livro apresenta os caminhos e as questões relacionadas ao
arquétipo da mulher selvagem, a autora aborda a partir da contação de histórias, de
diferentes lugares do mundo, os arquétipos voltados às questões do feminino e sua
relação com a psique, apresentando também em que implica a nossa não conexão
com a natureza instintiva da mulher selvagem. A autora comenta que:

O arquétipo da Mulher Selvagem, bem como tudo o que está por trás dele, é o
benfeitor de todas as pintoras, escritoras, escultoras, dançarinas, pensadoras,
rezadeiras, de todas as que procuram e as que encontram, pois elas todas se
dedicam a inventar [...]. Como toda arte, ela visceral, não cerebral. Ela sabe
rastrear e correr, convocar e repelir. Sabe sentir, disfarçar e amar
profundamente. É intuitiva, típica e normativa. É totalmente essencial à saúde
mental e espiritual da mulher. (ESTÉS, 2018, p. 26)
Sempre que recorro a leitura do livro da Clarissa Pinkola acabo tendo sonhos
simbólicos, com experiências transformadoras, através de uma riqueza de imagens,
sensações e sentimentos, os personagens que encontro são dotados de uma
profundidade simbólica. A indumentária dos personagens e o contexto em que estão
inseridos transmitem uma construção de imagem coesa, onde as cores, luz e sombra
também são aspectos relevantes. Ao despertar, me sinto renovada e geralmente
meditativa, construo uma leitura analítica sobre os símbolos presentes, de uma
maneira que não sei bem definir, encontro a solução para as questões que estavam
me incomodando. Sidarta Ribeiro (2019, p. 15) diz que “a interpretação de um sonho
pressupõe a compreensão profunda do contexto real e emocional do próprio
sonhador, e pode ser extremamente transformadora.

É nesse encontro com minha subjetividade que reorganizo as ideias, onde as


situações vão sendo reformuladas na direção da solução. Além disso me apego às
construções visuais para o desenvolvimento de minhas produções artísticas.

A pintura que compõe esse texto (figura 3), foi o resultado que consegui
alcançar depois de percorrer esse caminho. No sonho não tinha apenas essa figura
feminina, mas a experiência do sonho me conduziu até esse momento que pintei.

6
É intelectual de renome internacional, poetisa premiada e psicanalista junguiana (informações
contidas no livro).
31

Diante de uma tela, como uma TV antiga eu a assistia. Com um ar de pureza e


ingenuidade a mulher estava grávida, e de alguma forma sobre ela havia muitos
julgamentos de pessoas que não estavam presentes na cena, mas em mim
reverberava essa sensação. A mulher era branca de cabelos avermelhados, não
lembro de tê-la visto em algum outro sonho meu. Sozinha paria seu bebê, num gesto
que me transmitia muita força, segurança e controle sobre si, mostrando que sabia o
que de fato estava fazendo. A sensação de julgamentos que pairava sobre a
atmosfera do sonho mudou para um ar de subestimação, porém seu gesto de afeto
com seu filho, seu olhar destemido era bem mais forte do qualquer sentimento que
fosse de encontro a suas certezas. Na composição da cena a mulher estava de pé e
ao seu redor só havia terra, ela estava dentro de uma água limpa, apesar de a sua
volta ter lama.

Entendo o significado desse sonho, na época fez muito sentido para mim, foi
reconfortante depois dessa experiência construir essa pintura. Ela está inacabada,
assim como todas as outras que fiz a partir dos sonhos. Penso que faz sentido deixa-
lá assim, pois reflete a própria sensação do sonhar, os apagamentos naturais que
acompanham o despertar. A ausência de rosto é outra característica que também
utilizo nesse tipo de pintura, pois apesar de os personagens que encontro nos sonhos
possuírem a face completa, nunca consigo recordar.
32

Figura 9 Sonhei com essa cena, sem título, acrílica sobre papel, 2020.
33

Figura 10 Sem título, acrílica sobre papel, 2020.


34

Inconclusões

Separar em partes o meu processo criativo foi desafiador, mas quando idealizei
fazer essa escrita achei que seria interessante relacioná-los com algumas produções
para apresentar com maior clareza como tudo ocorre. A verdade é que nada está de
fato separado tudo se mistura e flui, pois que tudo parte de mim, de minhas questões
e percepções.

Querer apresentar de maneira separada faz com que eu entenda até onde um
estímulo se encerra e dá espaço ao outro. Sabendo que cada novo estímulo contribui
para ampliar todas as outras percepções que já carrego de experiências anteriores.

Apresentei o que chamo de ‘caminho do meio’, ou seja, o da construção da


obra, o que ocorre após o insight. Que constitui a parte do que gosto de vivenciar: a
montagem da obra, onde a imaginação se conecta com a materialidade e se alinha
de forma coesa. Bachelard (2018) apresenta a seguinte frase no livro A água e os
sonhos:

A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa
mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver “visões”.
Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências,
se as experiências vierem depois como provas de seus devaneios.
(BACHELARD, 2018, p. 18)
É isso, o prazer da imaginação do devaneio dá sentido às experiências,
percebo que minha imaginação se apoia nas memórias e em suas lacunas também,
se expande nos sonhos e nas reminiscências que ficam, na cidade e nas
interpretações que o caminhar provoca. E que isso é único, disforme, dotado de uma
lógica peculiar e carregada de sentidos.
35

É necessário abrir mão da concepção de lógica que está habituada para


mergulhar nos processos artísticos de alguém.

Que minha pequena parcela contribua para quem por aqui passar...
36

Referências

BACHELARD, G. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São


Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2018.
BONDÍA, J. Larrosa. Notas Sobre a Experiência e o Saber de Experiência. 2002.
Disponível em: <
https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf?origin=publication_detail > Acessado
em: 26/ 11/ 21.
BORRE, L. ANDRADE, L. Org. Tramações: A Memória e o Têxtil. Recife: Editora
UFPE, 2021.
CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2019.
CARERI, Francesco. Walkscape o caminhar como prática estética. São Paulo:
editora G.G, 2013.
ESTÉS, C.P. Mulheres que Correm com Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo
da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
FERRER, Bruna Rafaella. Guia Comum do Centro do Recife. Recife, 2015.
JUNG, C.G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1969.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes,
2016.
PASSOS, E. KASTRUP, V. ESCÓSSIA, L. Org. Pistas do método da Cartografia:
Pesquisa-Intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre, Ed: Sulina,2020.
RIBEIRO, Sidarta. O Oráculo da Noite: a História e a Ciência do sonho. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
37

Anexos7

Figura 11 Arte produzida pela Profª. Dra. Carolina


Mafra de Sá (UFAPE) – Examinadora Externa, 2021.

Tecendo lugares, tempos e memórias inventadas: atravessamentos a partir do encontro


com o processo criativo de Carolina A. da Mota
O lugar – Mercado Central (Belo Horizonte – MG) / Campus da UFMG
Tempo – 2021, o encontro, com o processo criativo e o trabalho de Carol Mota, tece o tempo:
o presente, o tempo da fotografia (provavelmente década de 1970/80); o tempo do encontro
com a fotografia no lixo (início de 2000).
A memória – inventada a partir do encontro com a fotografia jogada no lixo, no início dos
anos 2000, no campus da UFMG.
Sonho – revela o desejo de ter vivido o tempo e o espaço do encontro com o jovem (pai?)
que o fotógrafo registrou. Vontade de me aproximar dos acasos que geraram minha
existência.

7
Os anexos são as arguições realizadas pela Comissão Examinadora que avaliou o meu TCC. As
artes são os resultados alcançados a partir dos atravessamentos que minha escrita provocou em cada
um dos avaliadores. Conforme foi indicado optei por anexar ao meu trabalho, complementando assim
o que minha escrita propõe. Falar de processos criativos é uma porta aberta para mergulhar em nossas
próprias questões.
38

Figura 12 Arte produzida pelo Prof. Dr. Eduardo Romero Lopes Barbosa (UFPE) – Examinador Interno,
2021.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Artes
Licenciatura em Artes Visuais

Thais Arruda dos Santos

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao departamento de Artes
da Universidade Federal de
Pernambuco para obtenção de grau de
Licenciada em Artes Visuais, sob
orientação da Prof. Dra. Luciana
Borre.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dra. Luciana Borre - Orientadora

Prof.ª Dra. Renata Wilner - Examinadora Interna

Mariana Valcacio - Examinadora Externa


Sou grata aos fios
por me ensinar a ser linha,
ponto,
nó e laço.

Agradeço todas as inspirações que me servem como faíscas


e colocam minhas mãos, meu corpo e meu espírito em
movimento.
Dedico este trabalho aos meus maiores exemplos de
esforço, dedicação e amor. Honorina Arruda, Ronilson dos
Santos e Débora Arruda, também ofereço a minha teia de
amigas e amigos que contribuíram direta ou indiretamente
na construção deste caderno de artista. Um agradecimento
especial para João Victor Carvalho por todo
companheirismo que me encoraja a vida.
Este caderno de artista digital relata o processo de pesquisa e
desenvolvimento da exposição intitulada "Feita de Mil Fios - arte e experiência",
composta por sete obras de tapeçaria na técnica de tufting. O trabalho realiza
uma investigação em minha jornada acadêmica com base no conceito de
experiência singular de John Dewey (2010) e se desdobra em um projeto
cultural para a Lei Aldir Blanc PE. O caderno é dividido em cinco partes:
projeto Aldir Blanc PE 2021, fazendo a linha: arte têxtil, entre as linhas:
experiência, entrelaçar: o criar, processo criativo das peças.

arte têxtil - experiência - processo criativo - tapeçaria.

This digital artist's book reports the research and development process of the
exhibition entitled "Made of a thousand strings - art and experience", composed of
seven tapestry works using the tufting technique. The work conducts an
investigation in my academic journey based on the concept of unique experience
by John Dewey (2010) and unfolds into a cultural project for the Aldir Blanc PE
Law. The book is divided into five parts: Aldir Blanc PE 2021 project, making the
line: textile art, between the lines: experience, interweaving: creating, creative
process of the pieces.

textile art - experience - creative process - tapestry.


Experiência Singular

Um mergulho
Um salto
Escolha ousada
Mudança necessária

Quando vi o brilho nos olhos


Desde já eu sabia
A força do seu espírito
Agora em trama se abriria

A busca eterna da artista


Da guerreira, da mulher
De criar o seu caminho
Desvendar quem se é

Precisou de um instante,
já sentiu que era alí
Tapeçaria, Tufting, Tufagem
Quando vi não resisti
Uma Realidade Flutuante
Lá vem Thaes Arruda
Com outra ideia brilhante
E seguiu sua pesquisa
A primeiríssima obra, Arte têxtil e memória
ainda em modo de teste Escolheu sete momentos
Mal nasceu Desalinhar Para contar sua história
Já tava exposta no SESC
Assim surgiu
Achou pouco e inscreveu, “Feita de Mil Fios- Arte e
Num segundo edital Experiência”
Aprovada novamente Baseada em John Dewey,
Entrou pro acervo municipal Sua arte virou ciência.
O objetivo geral deste caderno de artista é
investigar o meu processo de pesquisa e o
desenvolvimento criativo das peças de tapeçarias
elaboradas para a exposição virtual “Feita de Mil
Fios - arte e experiência”. A partir disso, proponho
uma reflexão sobre momentos que ocorreram uma
experiência singular durante a graduação, utilizando
John Dewey (2010) como principal referência teórica
para compreender essas situações.
Enquanto processo criativo para a construção das
tapeçarias, produzo cartas que representam eixos
importantes no meu percurso acadêmico, na intenção de
valorizar os conhecimentos adquiridos nesta jornada
que me fazem ser quem sou agora. As tapeçarias são
intituladas com os nomes das pessoas que representam
diferentes circunstâncias, Débora Arruda, Alana Aÿnore, João Victor
Carvalho, Coletivo BoiKOT, Annaline Curado, Renato Souza e Thaes Arruda
(eu), correspondendo aspectos da ancestralidade, filosofia, afetividade,
coletividade, formação acadêmica, maturidade profissional e construção de
poética respectivamente.
Este caderno traz a etapa de desenvolvimento
conceitual e criativo das peças para a exposição
virtual. É importante mencionar que a viabilização
financeira para execução das peças e exposição virtual
se dará através da aprovação do projeto no edital da Lei
Aldir Blanc PE 2021, com exceção da primeira, Débora
Arruda, que será elaborada desde já para compor o
trabalho acadêmico.
Para chegar até a etapa de produção das tapeçarias,
organizo essa pesquisa de determinada forma: A) Projeto
Aldir Blanc- memorial descritivo que foi utilizado no
edital e contém a descrição da proposta, currículo do
proponente, equipe principal, funções da equipe e
cronograma de execução do projeto. Esse ponto traz a
reflexão de como um projeto cultural pode auxiliar uma
artista/pesquisadora a se colocar no circuito da arte.
B) Fazendo a linha: arte têxtil- relata o encontro
impactante com a tapeçaria, trazendo memórias e
registros visuais como forma de compreender o porquê da
linguagem do têxtil para a realização desse projeto.
Logo depois vem C) Entre as linhas: experiência-
onde são apresentados embasamentos teóricos, e traz John
Dewey (2010) com o conceito de “experiência singular”
como norteador da pesquisa. A quarta parte chama-se D)
Entrelaçar: o criar- que discute o processo criativo,
nesta etapa trago Fayga Ostrower (2001) como guia e
compartilho reflexões sobre a intuição, dessa forma
questiono como o processo intuitivo contribui para a
formação acadêmica em artes visuais.
Seguindo, apresento o E) Processo criativo e desenvolvimento das
tapeçarias- que traz cartas como método de criação e elaboração das
tapeçarias, junto de rascunhos, registros, fotografias, desenhos, e outras
linguagens que agregam para a produção final da obra. Por fim, são
colocadas as considerações finais do trabalho.
PROJETO ALDIR BLANC PE 2021

O primeiro momento deste caderno de artista é o projeto que foi


enviado para a inscrição do Edital de Criação, Fruição e Difusão LAB PE
2021, promovido pela SECULT-PE em outubro de 2021. Escolhi anexar o
projeto exatamente como foi submetido ao edital pois é neste formato
que se desenvolvem muitos projetos culturais. Julguei importante
compartilhar o projeto na íntegra para auxiliar outras pessoas que
busquem um modelo de projeto cultural.
DESCRIÇÃO DO PROJETO

Este projeto cultural consiste na criação e exposição virtual da série


de 07 obras inéditas de tapeçaria intitulada “Feita de Mil Fios- Arte e
Experiência”, desenvolvida pela artista, arte-educadora, produtora e
curadora Thaes Arruda, atuante na produção cultural pernambucana
desde 2016. A exposição é um desdobramento de uma pesquisa
desenvolvida no curso de Licenciatura em Artes Visuais, pela UFPE onde
a artista aplica os conceitos desenvolvidos na pesquisa neste produto
cultural e propõe um diálogo entre a academia e a sociedade no campo
da produção artística. O projeto inclui também produção audiovisual do
processo criativo das obras até o resultado final das tapeçarias no intuito
de alimentar as redes sociais da artista e promovê-la no mercado, além
da criação e lançamento do seu site oficial, que será a plataforma da
exposição virtual e posteriormente será seu mecanismo de vendas
online.
Em sua pesquisa, Thaes utiliza de John Dewey como principal
referência para estudar o impacto das relações pessoais no
desenvolvimento humano, artístico e acadêmico. A pesquisa defende a
tese da “Arte como Experiência”, conceito de arte que busca aproximar a
experiência do dia a dia com o fazer artístico, a naturalização do sublime
como experiência estética cotidiana e valorização das relações humanas
como principal fonte de experimentação da arte. Foi imersa na pesquisa
sobre novas formas de expressão visual que a artista conheceu o tufting,
ou tufagem, técnica moderna de tapeçaria que desponta no mundo
como alternativa ao grande maquinário da indústria têxtil. A tufagem é
realizada com a aplicação de linhas de lã numa base de tecido específico
com uma pistola de tufagem. Todo o processo pode ser feito por uma
única pessoa, abrindo o mercado de tapeçaria para empreendedoras de
menor porte e com estrutura reduzida.
DESCRIÇÃO DO PROJETO

Este projeto cultural consiste na criação e exposição virtual da série


composta por 05 obras inéditas de tapeçaria, intitulada “Feita de Mil
Fios- Arte e Experiência”, desenvolvida pela artista, arte-educadora,
produtora e curadora Thaes Arruda, que atua na produção cultural
pernambucana desde 2016. A exposição é um desdobramento de seu
Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Licenciatura em Artes Visuais,
pela UFPE, no qual a artista aplica os conceitos desenvolvidos na
pesquisa neste produto cultural e propõe um diálogo entre a academia e
a sociedade no campo da produção artística. O projeto inclui também
produção audiovisual desde o processo criativo das obras até o
resultado final das tapeçarias, com a intenção de alimentar as redes
sociais da artista e promovê-la no mercado, além da criação e
lançamento do seu site oficial, que será, também, a plataforma onde irá
ocorrer a exposição virtual e, posteriormente, seu mecanismo de vendas
online.
Em sua pesquisa, Thaes Arruda utiliza de John Dewey como principal
referência para estudar o impacto das relações pessoais no
desenvolvimento humano, artístico e acadêmico. A pesquisa defende a
tese da “Arte como Experiência”, conceito de arte que busca aproximar a
experiência do dia a dia com o fazer artístico, a naturalização do sublime
como experiência estética cotidiana e valorização das relações humanas
como principal fonte de experimentação da arte. Foi imersa na pesquisa
sobre novas formas de expressão visual que a artista conheceu o tufting,
ou tufagem, técnica moderna de tapeçaria que desponta no mundo
como alternativa ao grande maquinário da indústria têxtil. A tufagem é
realizada com a aplicação de linhas de lã numa base de tecido específico
por meio de uma pistola de tufagem. Todo o processo pode ser feito por
uma única pessoa, abrindo o mercado de tapeçaria para
empreendedoras de menor porte e com estrutura reduzida.
A partir desta pesquisa, utilizando os recursos do edital Criação,
Fruição e Difusão 2ª Edição LAB PE 2021, a artista irá produzir uma série
de 05 obras de tapeçaria moderna de dimensões médias de 100cm x
50cm x 2cm, intitulada de “Feita de Mil Fios- Arte e Experiência” e uma
exposição virtual homônima entre os dias 01 e 10 de abril de 2022. Cada
obra representa diferentes aspectos de sua vida: ancestralidade,
afetividade, coletividade, profissionalização e construção de poética. As
peças são homenagens a pessoas que impactaram sua jornada
enquanto artista e forjaram o ser humano que ela é, transformando em
tapeçaria memórias e experiências compartilhadas. Após a exposição
virtual, as obras físicas serão doadas para as pessoas as quais elas fazem
referência, introduzindo-as em suas rotinas diárias. O objetivo desta
ação é cristalizar o conceito de valorização das relações interpessoais na
experiência artística e realizar uma ação de marketing com a distribuição
das obras para consumidores e produtores de arte.
A exposição será realizada concomitantemente em seu Instagram
@thaesarruda e também nos Instagrans @galeriacapibaribe e
@tramacoes, ligados à coordenação do curso de Licenciatura em Artes
Visuais da UFPE, conforme cartas de anuência em anexo. A divulgação se
dará através do perfil pessoal do Instagram da proponente e nos perfis
acima citados, com garantia de aplicação das logomarcas exigidas.
A realização deste projeto cultural significa um marco no trabalho da
artista, pois garante a continuidade de sua produção artística e viabiliza
a estruturação de sua carreira com investimentos que não seriam
possíveis com recursos próprios, principalmente durante uma
pandemia.
CURRÍCULO DA PROPONENTE

Natural de Aracaju-SE, Thaes Arruda é artista, produtora, curadora e


arte-educadora. Graduanda de Artes Visuais pela UFPE, reside no bairro
da Várzea e trabalha com produção cultural em Pernambuco desde
2016. Seu trabalho se deu principalmente através do Coletivo BoiKOT e
da produtora na qual é sócia, a Runa Produções.
Na produção cultural, tem como destaque a produção artísticas das
duas edições do Festival R.U.A, realizado pela Prefeitura do Recife com
público de cerca de 20 mil pessoas no Recife Antigo, assistência de
produção na Abertura do Carnaval do Recife 2019 e em pelo menos 20
eventos independentes do Coletivo BoiKOT, onde concentrou grande
parte de sua atuação.
É idealizadora da galeria itinerante de arte-tecnologia Realidade
Flutuante (Instagram @realidadeflutuante), com 03 exposições
realizadas em Recife, Paudalho e Bonito-PE. Exposições interativas que
utilizam de recursos tecnológicos como meio da experiência artística.
Seu trabalho com arte têxtil se iniciou em 2020, quando passou a
dedicar-se integralmente à produção artística com o impedimento da
produção de eventos. Montou seu ateliê de tapeçaria em casa e desde
então produziu várias peças, com destaque para participação na
exposição virtual “Entre Nós” do curso de Artes Visuais e produção da
série “Desalinhar” que posteriormente foi aprovada no XIII Edital SESC
Único PE.
EQUIPE PRINCIPAL

João Victor Carvalho, residente no bairro da Várzea, em Recife,


trabalha com produção cultural desde 2011. Formado em Produção
Fonográfica pela AESO, é produtor executivo do Coletivo BoiKOT, onde já
coordenou a realização de mais de 50 produções, entres eles o
espetáculo oficial da Abertura do Carnaval do Recife no Marco Zero
(2019) e as três edições do Festival Visionário BoiKOT.
Sócio de Thaes Arruda na Runa Produções, Rodrigo Garcia reside no
bairro de Nova Morada, Recife e é designer gráfico, fotógrafo e diretor
de fotografia, com amplo portfólio atuando no mercado desde 2011.
Natália Correia é jornalista formada pela Unicap e trabalha com
produção audiovisual desde 2014. É especialista em edição de vídeos no
universo cultural e institucional, desenvolvendo seu trabalho através da
Runa Filmes, marca subsidiária da Runa Produções.

FUNÇÕES DA EQUIPE

Thaes Arruda: Direção Artística e Produção das Obras de Tapeçaria


João Victor Carvalho: Projeto e Produção Executiva
Rodrigo Correia: Design Gráfico e Fotografia
Natália Correia: Direção Audiovisual
CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO
EXPOSIÇÃO VIRTUAL “FEITA DE MIL FIOS- ARTE E EXPERIÊNCIA

Pré-produção (de 05 a 31 de janeiro de 2022)


Reunião da equipe principal para início da Pré-produção:
Artista e Direção - Thaes Arruda
Produção Executiva: João Victor Carvalho
Design e Fotografia: Rodrigo Garcia
Audiovisual: Natália Correia
Processo criativo das obras
Planejamento do Audiovisual
Criação do Plano de Comunicação
Definição e compra dos materiais necessários à produção das tapeçarias
Revisão e contratação de todos os serviços necessários à exposição:
Cenografia;
Aluguel de equipamentos adicionais de Iluminação;

Produção ( de 01 de fevereiro a 10 de abril de 2022)


Produção das tapeçarias
Produção audiovisual
Ensaio Fotográfico
Desenvolvimento da expografia
Execução do Plano de Comunicação
Entrega do material audiovisual final para utilização na exposição
Realização da exposição virtual “Feita de Mil Fios- Arte e Experiência” de 01 a 10
de abril de 2022.

Pós-produção (até 18 de abril de 2022)


Execução das ações de comunicação voltadas para o pós-exposição
Reunião da equipe principal para análise e feedbacks
Clipagem da mídia gerada pela exposição.
Finalização das atividades do projeto em 18 de abril de 2022

Prestação de contas (01 maio de 2022)


Organização de todos os relatórios e notas necessários para a comprovação;
Prestação de contas dos recursos recebidos e executados
Finalização do projeto;
Prestação de contas final do projeto e solicitação do Atestado de Execução junto
à Secult-PE.
Exposição Virtual
“Feita de Mil Fios - Arte e Experiência"
Minha relação com o têxtil aconteceu de forma consciente
através da necessidade de experimentar um suporte mais
expressivo, um material que me oferecesse
movimento/flexibilidade e por meio desse desejo encontrei por
acaso um lençol branco rasgado em casa. Detalhe do rasgo, algo
bem simbólico em minha caminhada. Quando fico diante de uma
tela em branco há sempre um medo e um pensamento rígido sobre
o erro, dos pingos involuntários na tela, de borrar uma linha,
de não ficar satisfeita com as cores. Também sinto medo de
intervir no trabalho e ele “piorar” e muitas vezes travo nesse
ponto e, insatisfeita pela dureza que é o processo, me
distancio de certos trabalhos.
Voltando para o encontro com o lençol, vi nele
possibilidades que não levavam em consideração o erro. Sinto
que essa necessidade dos acertos também está relacionada aos
custos dos materiais de artes, quando se tem somente uma tela
e a ideia de algo pré estabelecido as exigências são maiores,
e com um enorme pedaço de tecido velho comecei a pintar sem
peso ou exigências. A sensação foi exatamente o que estava
buscando, um misto de leveza, grandiosidade e descoberta.
Nesse momento, estava atenta para a relação da tinta no tecido
e como ela se espalhava manchando descontroladamente o lençol
branco, observando o ritmo lento da tinta e como aquilo se
comportava, feliz e animada com grandes traços de pinceladas
sem nenhuma culpa, nesse momento de maneira bastante
espontânea acontecia uma ligação com o tecido.
Foto-registro do experimento com
o tecido, arquivo pessoal.
Dezembro, 2020.
Quando trago “uma relação consciente” é por que a
convivência com a arte têxtil é algo que sempre existiu em
minha vida. Filha de artista costureira, tive o privilégio de
todas as minhas bolsas e muitas peças terem sido criadas e
produzidas por minha mãe (Honorina Arruda dos Santos) que
utiliza da técnica do crochê para se expressar, dessa forma os
rolos de linhas sempre fizeram parte do meu dia a dia.
Acessando essas memórias, lembro que um dos meus primeiros
contatos palpáveis com a arte foi pelos decalques de revistas
de moda, onde colocava a folha em branco sobre os vestidos e
começava a desenhar, todos aqueles babados e movimento do
tecido eram algo que me chamavam atenção.

Foto-registro do resultado de experimento com o tecido, arquivo pessoal.


Janeiro, 2021.
A linguagem do têxtil se apresentou de maneira muito
compreensiva e fluida para mim em um momento muito delicado de
pandemia mundial por conta do COVID-19, quando todas as
certezas se desmoronaram e o clima de medo e tristeza dominava
o ar. Foi a partir dessa relação leve que puder vivenciar a
força do tecido e expandir para outras pesquisas até encontrar
o tufting, ou tufagem, técnica moderna de tapeçaria que está
ganhando espaço na internet nos últimos anos. De acordo com a
matéria da revista Veja SP (2021) é uma surpresa que a arte
têxtil esteja em alta, um dos motivos para esse acontecimento
é graças às redes sociais, através da tapeçaria manual feita
com uma pistola elétrica, a técnica do tufting ganha espaço e
possibilita peças com formatos e texturas diferenciadas.
A tufagem manual é realizada com a aplicação de linhas de
lã numa base de tecido com uma pistola de tufagem,
possibilitando criar formas, volumes, trabalhar a cor, luz e
sombra, tudo de maneira muito única, e por meio de
compartilhamentos de vídeos desde o processo até o resultado
das tapeçarias, essa técnica ganha cada vez mais visibilidade
na internet. A divulgação só cresce entre adolescentes e
jovens nas redes sociais, contribuindo para repensar a
tapeçaria na contemporaneidade, o tufting me abriu infinitas
possibilidades no período de isolamento social.
Foto-registro com
a pistola de
tufting, arquivo
pessoal.
Abril, 2021.
A escolha do têxtil como matéria prima para esse trabalho
tem como objetivo representar uma poética que vem sendo
construída e utilizar uma linguagem expressiva tridimensional
visando a integração entre aspectos sensíveis, afetivos e
estéticos. Com a tapeçaria venho acolhendo outras formas de
relação com as artes visuais e isso tem me permitido novas
sensações, acessar memórias, falar e me expressar para o
mundo.
As artes têxteis se desdobram em inúmeras linguagens, cada
nicho com suas características, seja por meio de bordados,
costuras, tricô, crochê, macramé, tecelagem; uma gama de
possibilidades que envolve fios e fibras. A tapeçaria é uma
das manifestações do têxtil e pode ser produzida a partir de
diversas técnicas como, por exemplo, agulha mágica, esmirna,
crochê, tufting, entre outras.
Sendo uma linguagem bastante antiga, os conhecimentos da
tapeçaria vêm sendo transmitidos por gerações, acompanhando as
transformações sociais e estéticas que ocorreram com o passar
do tempo. Apesar de sua presença milenar na humanidade, em
diferentes culturas, a arte têxtil é uma área que já foi
bastante desvalorizada e por muito tempo considerada uma arte
menor, associada à decoração e tratada como utilitário. Sobre
o tema, Lorilei afirma que:

De maneira gradual, a tapeçaria foi ganhando um novo


conceito, mediante o abandono secular da condição
imposta de elemento decorativo ou utilitário e do seu
atrelamento à pintura, para tornar-se uma linguagem
independente. Não mais apenas uma superfície tecida,
mas uma forma tecida, inscrevendo, assim, sua função
no plano da estética (SECCO, 2017, p. 38).
Neste sentido, a escolha da tufagem
também está vinculada a esta busca de
desconstruir estereótipos nas artes
visuais e dar autonomia à tapeçaria,
recorrendo às novas tecnologias
disponíveis, mas sem perder o aspecto
manual e artesanal, característicos do
universo têxtil. E dentro dessa pesquisa
de desconstrução, nasceu a minha primeira
série de tapeçaria com 03 peças intitulada
de “Desalinhar”, nomenclatura que decorre
da proposta central da série: quebrar o
conceito clássico de desenho realista,
ensinado nas escolas e presente no
imaginário popular, em que o artista é
reconhecido pela sua capacidade de
reprodução fiel da realidade e visto como
um gênio de talento sobrenatural, aquele
que possui um “dom”. Utilizo os fios como
elemento potencializador dessas
provocações.

Essa investigação iniciou lá atrás com as pinturas no lençol


branco e ganhou força na tapeçaria. Esse estudo une questões do têxtil
com provocações sobre o desenho. As obras da série “Desalinhar” trazem
como elementos centrais as cores primárias (azul, amarelo e vermelho)
e formas geométricas básicas (círculo, quadrado e triângulo
equilátero), que se desdobram em diferentes elementos visuais em cada
tapeçaria. A proposta de utilizar as cores e formas “originais”,
aquelas que misturadas constituem todas as outras formas e cores da
natureza, traz a noção de que a fonte de toda arte visual está
livremente disponível, com simplicidade, onde apenas as fronteiras da
imaginação podem limitar o fazer artístico.
Foto-registro dos
primeiros
experimentos no
lençol branco.
Dezembro, 2020.
Tapeçaria 01. Série Desalinhar, Fotografia Rodrigo Garcia,
Agosto 2021.
Tapeçaria 02. Série Desalinhar, Fotografia Rodrigo Garcia,
Agosto 2021.
Tapeçaria 03.
Série Desalinhar,
Fotografia Rodrigo
Garcia, Agosto
2021.
Essa série foi aprovada no edital do ÚNICO Xlll (Salão
Universitário de Arte Contemporânea) do SESC Pernambuco no
segundo semestre de 2021, e dá ênfase ao ensino de arte, a
série questiona os materiais e técnicas vivenciado no âmbito
escolar e sugere a ampliação do repertório sensível com outras
formas expressivas. Em Desalinhar trabalhei uma estética que
transita entre o infantil e o adulto, o lúdico e o
contemplativo. São obras consumíveis por crianças, sendo na
educação infantil escolar que os conceitos trabalhados nesta
série mais se expressam, mas também por jovens e adultos, cuja
“reconstrução” da sensibilidade artística é igualmente
importante.
Com apenas alguns meses trabalhando com a tapeçaria, ser
aprovada em uma exposição coletiva foi impactante, sinto que
encontrei o têxtil em um momento de alguns amadurecimentos
profissionais e viver a experiência do ÚNICO só confirmou o
contato surpreendente que o têxtil tem proporcionado.
Foto-registro do
ateliê.
Maio, 2021.
Minha caminhada acadêmica foi marcada por acontecimentos
significativos e aqui trago o ponto em comum que deu origem a
essa pesquisa: experiência singular, situações que houve
transformações em minha forma de ser e estar no mundo, o que,
por consequência, reconfigurou minha existência. Dessa forma,
trago o conceito de experiência abarcada por John Dewey, e a
possibilidade de compreensão dessa trajetória que atravessa
aspectos como ancestralidade, afetividade, filosofia,
coletividade, espiritualidade, formação acadêmica e construção
de poética.
Filósofo americano, Dewey, foi um pesquisador que se
empenhou em compreender o conceito de experiência e seu
trabalho procura unir pensamento e ação, defendendo o caráter
amplo, unificado e orgânico da experiência, eixo importante em
sua obra. Dewey interpreta a experiência como um processo
inerente à vida e que acontece de forma contínua através das
etapas de nossa jornada, dando ênfase ao aspecto relacional,
onde afirma “Toda experiência é resultado da interação entre
uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive"
(DEWEY, 2010, p. 122).
Em sua visão há diferentes tipos de experiência, uma delas
é caracterizada como experiência mais "leve" que não alcança
sua finalidade seja por desatenção, dispersão ou outras
interrupções. Já a experiência singular é aquela que se torna
significativa e marca a caminhada da pessoa, sendo a
experiência singular o ponto de partida para compreender cada
tapeçaria nessa pesquisa. Para Dewey, (2010, p. 110), em seu
livro “Arte como experiência”, “a experiência, [...] é
singular e tem começo e fim.” Em sua perspectiva, a
experiência singular precisa ser vivenciada de forma completa,
por inteiro, com presença e pode ser notada após uma relação
racional, emocional e afetiva com objeto/mundo, sendo
vivenciada através da percepção.
A experiência é uma forma de adquirir conhecimento a partir
dos sentidos e é possível identificar uma experiência após o
desfecho de um ciclo, por exemplo, ao concluirmos uma
atividade ou quando acabamos uma obra de arte, mas a
experiência não se caracteriza como uma conclusão. É vista
como um percurso, um caminho que se modifica com o tempo, de
característica impermanente que leva em consideração o espaço
como organismo vivo que se desloca, se movimenta e que se abre
para às situações de desordem e quietude, sendo um estado
constante de equilíbrio e adaptação. Lylian Rodrigues comenta
o quão impactante é a experiência singular

Há, aí, uma potência transformadora na relação entre


pensamento e ação. Essa alteração é provocada na
percepção, que passa a ser qualificada a cada
experiência mobilizadora de intelecto, afeto e
prática. Essa experiência sensível permite
compreender nossas relações no mundo e com o mundo.
Entendendo aqui mundo como a própria vida, que
envolve o ambiente e os outros, nos localizando como
sujeitos. (RODRIGUES, 2015, p. 127).

Compreendendo a experiência como essa interação do eu com


o mundo, utilizo dos resultados dessas relações para obter
inspiração e ser fonte de energia para criar e gerar arte.
Assim, dou continuidade a um ciclo de experiências a partir
das percepções que as tapeçarias vão proporcionar.
As peças desenvolvidas nesse projeto serão entregues aos
responsáveis por tais momentos e inseridas na rotina de suas
donas e donos, dessa forma poderão interferir diretamente em
seu cotidiano e viabilizar uma experiência estética, criando
um espaço de interação com a tapeçaria, impulsionando a
percepção nesse ambiente de vivência. Fábio Wosniak e Jociele
Lampert comentam:
A experiência singular é também uma experiência
estética, tendo em vista que em ambas as experiências
há consumação, e nunca cessações - como no caso de
uma experiência intelectual. Neste sentido, a
experiência intelectual é diferente da experiência
singular/estética. A primeira tem como matéria-prima
símbolos e signos, e exige uma conclusão, um
encerramento. [...] Ao contrário, a experiência
singular/estética reside em fluxos constantes, possui
lugares de repouso, unidade, e o seu desfecho é
atingido por um movimento ordeiro e organizado. O
material vivenciado, ao mesmo tempo em que é marcado
pelas percepções, é transformado pelas experiências
anteriores. (WOSNIAK; LAMPERT, 2016, p. 11)
Portanto, a experiência singular que obtive com essas
pessoa, também pode ser vista como experiência estética, o
resultado dessa experiência são as tapeçarias, e elas dispõe
de elementos que pode atiçar conexões e motivar a produção de
novas interpretações levando em conta outras situações,
fornecendo sentimentos, representações, valores e assim
proporcionar o sentir e dessa maneira, auxiliar em
transformações que sejam significativas. Nesta pesquisa serão
sete experiências singulares compartilhadas, acompanhadas de
escritas em formas de cartas mostrando o processo de criação e
o desenvolvimento de cada peça, trago o que me afetou ao ponto
de me modificar, e por meio dessa experiência com o outro,
conto minha história.
A primeira peça se chama Débora
Arruda e ela representa o marco
zero, sendo minha irmã mais velha
ela traz ancestralidade e força.
Débora me mostrou pela experiência
que era possível entrar em uma
universidade pública e percorrer
pelo caminho da arte. Depois,
trago Alana Aÿnore como um
encontro potente que me fez
vivenciar um forte vínculo e
aprender lado a lado sobre
espiritualidade e amizade dentro
da jornada acadêmica, logo em
seguida vem João Victor Carvalho,
a terceira peça representa amor,
afeto e companheirismo, juntos
Percebendo uma maturidade no
experimentamos um nível de
campo profissional represento esse
compartilhamento que alterou
aspecto com Renato Souza,
completamente minha forma de ver e
funcionário da prefeitura que me
sentir a vida. Por influência
recebeu com peito aberto,
dele, entrei para o Coletivo
confiando em minhas ideias para
BoiKOT onde experimentei trabalhar
executar um projeto transformador
em grupo e aprender sobre grandes
na cidade de Recife, e por último
projetos e responsabilidade,
falo de mim, Thaes Arruda, pessoa
correspondendo a quarta peça desse
que precisou vivenciar todos esses
projeto. Paralelo a isso,
encontros e passar por uma
encontrei com Annaline Curado
pandemia mundial para encontrar
professora substituta da UFPE que
uma linguagem que a arrebatasse e
me mostrou o caminho florido da
desse conta de expressar essas
arte educação, e isso foi de
memórias e experiências, mudando
extrema importância, para ela vai
completamente a direção de sua
a quinta tapeçaria.
vida.
Todos esses momentos foram marcados por um conhecimento
que foram aplicados pela experiência, seja pela vivência,
imersão, profundidade, troca, compartilhamento e afeto.
Acredito e utilizo a experiência como elemento norteador e
ponto chave para a escolha das pessoas/obras desse projeto. A
partir desse contato, foi possível ser enroscada por uma
aprendizagem significativa e usufruir desse conhecimento no
cotidiano, incorporando em diversos aspectos da minha prática
diária. Assim, carrego e aplico essa maneira de relação
enquanto arte educadora, artista e pesquisadora, onde a
criação de vínculo é fundamental para que se possa ensinar-
aprender. Acredito que por meio da interação e conexão
estabelecida é possível promover uma experiência significativa
que seja capaz de modificar eu e o outro.
O contato com as obras pode provocar investigações e
conversas que caminham na direção da experiência, esse
encontro pode proporcionar reflexões que elevam a arte para
além do objeto em si, existindo uma possível troca entre a
pessoa que observa e a obra de arte. Com a exposição virtual
“Feita de Mil Fios - Arte e Tecnologia”, o debate da
experiência do sensível por meio das tecnologias digitais se
expande, visualizo a possibilidade de abrir espaço para a
capacidade de compreensão através de fluxos disposta nas redes
sociais.
Com a realização da exposição de forma virtual, a relação
com o espaço expositivo digital pode trazer novos formatos
para vivenciar e ampliar as discussões acerca da arte têxtil,
a internet vem ocupando um papel importante e cada vez maior
nas relações humanas e participa ativamente das mudanças
culturais, o papel de sensibilizar o olhar através das obras
em tapeçarias na exposição virtual contribui para repensar
conceitos e criar interações dentro do ciberespaço.
Aprender e se inspirar com o outro é uma forma de contar
minha história. Cada peça dessa mostra apresenta memórias
individuais com a intenção de evidenciar nas tapeçarias
narrativas e elementos marcantes. Através da jornada do
autoconhecimento é possível fazer essa investigação, e assim,
reconhecer e encontrar ligações com a bagagem do outro. O fio
condutor presente aqui caminha por momentos/pessoas e ganham
significados por meio da linguagem do têxtil, com intuito de
promover e criar diálogo profundo com as experiências e
aprendizagens vividas, possibilitando que as pessoas que
visualizem as tapeçarias, reconheçam e compreendam histórias e
significados.
Durante a construção desta pesquisa, a relação com a arte
têxtil vem ganhando cada vez mais consciência, tenho notado
que os fios, as fibras e os tecidos são guardiões de memórias
e tem me permitindo utilizar do processo criativo como uma
espécie de viagem do tempo, realizando um mergulho para
entender quem é a Thaes que finaliza essa jornada e como esses
encontros contribuíram para as diversas metamorfoses.
Por meio desse processo de análise, invoco elementos
visuais através do têxtil como forma de criar materialidades.
“O têxtil é um suporte privilegiado para a memória. Um lugar
que já tem uma estrutura real e conceitual preparada para
abarcar memórias. [...] recorreram ao têxtil como material
quando necessitam falar de questões de memórias sociais e
afetivas.” (MADDONNI, 2021, p. 15).
No livro “Tramações: a memória e o têxtil” Karina Maddonni
(2021) concede uma entrevista para a publicação. Na conversa
ela comenta sobre a relação do têxtil e a memória e em sua
interpretação o têxtil está vinculado ao envolvimento do
outro, a necessidade do contato e a familiaridade com esse
material torna a experiência acessível e assim, proporciona
proximidade. Ter consciência dessas características que
Maddonni relata sobre a arte têxtil é muito profundo, pois
criar e executar “Feitas de Mil Fios - arte e experiência” é
trabalhar esses conceitos na prática e notar que algumas
ideias que abordo na construção da exposição já vem no próprio
material escolhido é uma forma de potencializar as tapeçarias
e confiar na intuição.
Nesse momento, trago Fayga Ostrower artista e teórica que
tive a honra de conhecer nas andanças da graduação, após a
leitura do seu livro “Criatividade e Processos Criativos”,
pude compreender melhor sobre o potencial criativo “O criar só
pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em
um fazer humano. De fato criar e viver se interligam.”
(OSTROWER, 2001, p. 5). Ela sugere que usufruir desse
potencial é algo inerente ao ser humano, independente do campo
da atividade, o criar engloba a capacidade de compreender, e
dessa forma, de relacionar, configurar e significar. E o
processo criativo está ligado à percepção e ao ato de
observar, e nesse momento o perceber é uma oportunidade de
transformar algo em conteúdo expressivo.

A autora traz a intuição como uma das etapas fundamentais


na atividade de criar, a ação de intuir sobre os conhecimentos
e experiências impulsiona a elaboração de novas criações,
sendo o criar no âmbito da arte uma forma estruturada de
sintetizar uma gama de ideias, pensamentos, emoções e valores.

Intuindo, procura-se estabelecer relacionamentos


significativos para uma matéria e para nós. Seja qual
for a área de atuação, a criatividade se elabora na
nossa capacidade de selecionar, relacionar e integrar os
dados do mundo externo e interno de transformá-los com o
propósito de encaminhá-los para um sentido mais
completo. Dentro de nossas possibilidades procuramos
alcançar a forma mais ampla e mais precisa, a mais
expressiva. Ao transformarmos as matérias, agimos,
fazemos. São experiências existenciais- processo de
criação - que nos envolvem na globalidade, em nosso ser
sensível, no ser pensante, no ser atuante. (OSTROWER,
2001, p. 69).

A intuição tem sido fundamental em todo esse processo,


desde o momento de “abandonar” meu primeiro projeto
desenvolvido na cadeira de TCC1, a recomeçar do zero em pouco
tempo esse projeto. O primeiro passo foi escutar minhas
profundezas e os sinais espontâneos que apareciam, depois me
agarrei na coragem para lidar com as pressões dos prazos, e
por meio da intuição puder tornar minhas vontades possíveis e
alinhar o que acalenta meu coração no aqui-e-agora. Para
Ostrower
Nesse momento apreendemos- ordenamos- reestruturamos-
interpretamos a um tempo só. É um recurso de que
dispomos e que mobiliza em nós tudo o que temos em
termos afetivos, intelectuais, emocionais, conscientes,
inconscientes. Embora não sejam visíveis nem
racionalizáveis os níveis intuitivos, bem sabemos de sua
ação integradora. (OSTROWER, 2001, p. 68).

Fayga comenta que por meio da intuição estruturamos o


pensar e o sentir, integrando o passado, o presente e
projetando o futuro. É importante comentar que a criação está
ligada a processos sutis, mas também se relaciona diretamente
à pesquisa, à construção de um repertório, ao conhecimento.
Essas contribuições funcionam como faísca para esse período
de criação, onde é preciso estar atenta, a esse mergulho de
conscientização si, do outro e o do que reverberou da nossa
experiência. É importante levar em consideração o meu próprio
ritmo, minha intuição e a permissão para o erro ao passar por
essa fase de criação e produção.
E nessa etapa da pesquisa surge o manuseio
de vários materiais, com a intenção de
registrar memórias e sensações vivenciadas que
vão ser colocadas aqui na etapa de criação, com
o intuito de auxiliar no desenvolvimento das
peças, no qual serão anexadas o processo do
começo ao fim.

Penso em utilizar elementos visuais, como


recortes, anotações, desenhos, músicas,
fotografias entre outras formas de expressões,
visando resgatar e estimular a criatividade para
o processo de execução das obras. Para o
processo criativo das peças desenvolvi um método
que consiste em alguns estágios:
Consiste em um momento de silêncio, me coloco em
meditação para recordar as experiências
significativas com determinada pessoa, me
transporto a locais para reviver o espaço, com um
ritmo de respiração tranquilo, vou visualizando
as memórias, de corpo aberto para as sensações e
sentimentos. A intenção é resgatar o máximo de
elementos como cores, cheiros, texturas, emoções,
a fim de trazer significados e signos daquela
experiência.

Depois de evocar a experiência, sinto a


necessidade de colocar no papel a situação, como
forma de tirar da mente e olhar de fora toda a
cena. Antes da escrita me imagino contando esse
momento para alguém, às vezes gravo audios como
forma de perceber o momento e colocar para fora
de forma mais espontânea em outro fluxo de
raciocínio, vou escrevendo palavras chaves para
auxiliar no processo de elaboração das
tapeçarias.

Com as escritas em mãos,


tenho indicadores para a construção das peças, essa é a fase
da pesquisa visual, costumo usar a rede social chamada
Pinterest para buscar referências, crio rascunhos, desenhos
digitais, colagens entre outros processos para auxiliar na
elaboração das peças.

A hora de tufar, o último estágio dessa


metodologia. Sigo as orientações visuais
criadas e vou construindo a peça, aqui é
preciso muita atenção para ir sentindo e
percebendo como a tapeçaria está se
comportando, com o olhar bastante atento também
me permito a mudanças, é importante ser
flexível com os resultados, entendendo que o
processo é vivo.
Foto-registro do
ateliê.
Julho, 2021.
Processo
criativo
Débora Arruda
01. Escritas para Débora Arruda, minha irmã.

Para falar do agora é preciso voltar ao início, e nesse começo você já


estava lá - Abrir os primeiros caminhos - é uma responsabilidade que talvez só
irmã mais velha saiba responder, eu como caçula cresço em um território já
preparado e que já vem sendo desbravado. É um privilégio ter alguém desde o
começo da vida para aprender, a construção da sua personalidade influenciou
complemente todo meu jeito de ser, sendo impossível falar da minha jornada,
seja em qual for o aspecto sem mencionar você.
Quando invoco Débora em minhas memórias sinto uma emoção profunda,
enxergo uma riqueza de valores que cultivei através do seu jeito, fazeres, força,
verdade e conhecimento, tive o feito de beber de suas fontes e referências de
pertinho, (e quem te conhece sabe que as maiores referências são suas hahah)
tudo com muita proximidade, incentivo e carinho da sua parte. Dessa forma,
sendo três anos mais nova, nunca senti que estava abaixo ou que você
demonstrava que sabia mais, e isso talvez seja a primeira grande lição da
minha vida.
Ter espaço para colocar minhas ideias, ter um local de escuta, poder da e
ouvir conselhos... Você lembra quando a gente passava horas e horas nas
madrugadas conversando sobre a vida? Eu na parte de baixo da beliche e tu
por cima, eu com olhos fechados conversando profundamente sobre os pontos
que você trazia, foram dias, meses e anos com nosso encontro marcado.
Talvez você não saiba, mas essas conversas me trouxeram muita maturidade
sobre como perceber a vida.
Nesse processo de revisitar, vejo que a gente não poderia ter seguido
caminhos diferentes sem ser o da educação, (tu foi primeiro para desbravar
como de costume) e me mostrou que era possível que filhas de pais
assalariados, com mãe que não terminou o ensino fundamental e pai motorista,
que trabalhavam tanto que quase não sobrava tempo para o encontro de toda
família, mesmo com todos os impasses, com todos os desencontros, sem
dinheiro para lazer e arte, foi você que me mostrou que a universidade pública
é feita para nós, que a arte é feita para nós e que nós precisamos fazer a
arte e educação para pessoa com nós.
A primeira experiência singular que trago aqui é poder sentir a força de
quem caminhou antes de mim para tecer caminhos possíveis para nós. Ter
essas memórias e poder contar com uma pessoa tão incrível me emociona.
Que você receba essa tapeçaria com toda honra e celebração que visualizo
sua presença nesta terra, te amo.
Rascunho da
tapeçaria Débora Arruda
-experimento de formas
-teste de cores
-criação da composição

Projeto pronto
tapeçaria Débora Arruda
Atualmente tenho sentido
necessidade de fazer um
esboço palpável para a
execução da tapeçaria,
isso facilita saber quais
cores e a quantidade de
linha que preciso comprar,
porém sigo aberta as
espontaneidade que a
peça pode apresentar
durante sua produção.
Processo da execução da peça

Registro 01 da execução
da tufagem, novembro
2021.

Registro 02 da execução
da tufagem, novembro
2021.
Processo criativo
Alana Aÿnore
ideias
-natureza
-força, movimento, textura
-acolhimento
02. Escritas para Alana Aynore, leoa.

O ímã que fez a gente se ligar na existência uma da outra foi pelo livro
C
“ oiote” de Roberto Freire… Que intensa aproximação eu diria. Acredito que por
meio de publicações e opiniões, recebi sua mensagem no Facebook falando que
seu pai estava trabalhando na peça que fazia adaptação do livro e assim
começamos uma tímida e descontraída conversa. Amigas em redes sociais,
comecei a acompanhar a sua rotina, e lá estava as fotos de Alana, sol - praia
- mar - sorrisos e leveza. Esse mundo do ciberespaço é engraçado, a gente
nem percebe e quando notamos já estamos nos sentindo mais íntimos do outro
por compreender e se identificar com as partilhas da pessoa.
Logo, já reparava você pessoalmente nos lugares e sentia que te conhecia,
e não foi culpa do signo, mas é fácil reconhecer leoninas no rolê (rs). E assim,
fomos nos encaixando, nos encontrando por ‘acaso’ em praias, shows e
acampamentos e todo carinho que estava surgindo, foi nascendo de forma
natural e orgânica. De laço feito, nossa amizade vivia e assim, íamos nos
encontrando de forma aleatória com o dançar da vida.

Nossa construção do sensível durante a universidade está associada


diretamente com a relação da natureza, sendo o ponto chave para a gente se
conectar através das redes sociais lá atrás, e ir se intensificando em nossa
rotina, leoa é como chamo Alana e é como ela me chama. Falando em
chama é importante mencionar que você foi uma das principais pessoas que
colocou lenha na fogueira para contribuir com o meu desenvolvimento pessoal
e acreditar na minha verdade e expressão no mundo, nossas partilhas se
estendiam da delicadeza e força da natureza para a mística e o lado subjetivo
das coisas, agregando na percepção do sublime no cotidiano.
Falando em sublime, chego à minha experiência singular com você - a
forma que estudávamos as provas - lembro muito bem das cadeiras de
filosofia da arte, como elas seduziam e estimulavam a gente! Porém sempre
tive muita dificuldade com prova escrita e ficava muito nervosa para respondê-
las e se não fosse o método criado através de nossas vivências, a passagem
por essas cadeiras seria bem traumatizante.
A metodologia dos estudos envolvia a interpretação dos conceitos a partir
de desenhos, corpo, parábolas, aprendizados pessoais, tudo para ilustrar o
conhecimento e assim incorporar o conteúdo, sendo um dos assuntos de estudo
a estética, área da filosofia que se propõe investigar para além do belo ou
feio, analisa as noções da experiência que é adquirida por meio da
sensibilidade. . Sinto que
aprendi como aprender e esse foi um grande marco na minha aprendizagem,
levo essa maneira de assimilar para ensinar no campo da arte/educação e
essa compreensão foi o s“ tart” para minha expansão na busca por outras
metodologias. Sou agradecida pelo cosmo ter sintonizado a gente de maneira
tão bonita!
Processo
criativo
João Victor
03. escritas para João Victor Carvalho, meu companheiro.

Meu bem, você é um dos meus lugares favoritos na terra, sim lugar - faço
morada em você, espaço que acolhe, abraça e impulsiona. O motivo favorito
pelo qual participei do edital de mobilidade acadêmica e fiz o intercâmbio da
UFS para a UFPE, nossa relação completava um ano e meio e a vontade de
ficar juntos sem precisar de passagem comprada com idas e vindas na
rodoviárias só aumentava, visualizei a mobilidade como uma oportunidade de
aprendizagem, afinal a possibilidade de vivenciar outro território poderia acarretar
uma expansão em diversos níveis.
Com muito amor e carinho você me recebeu e desde então esteve comigo
em todos os momentos, sabe aquela coisa de ir de mãos dadas? Pois então.
Fomos conhecer o campus da UFPE ainda nas férias e sentia todo cuidado e
confiança nas palavras e gestos expressados, carregando um olhar de quem
acredita, você me incentivou e me incentiva de muitas formas, me nutre de
coragem para lidar com os jardins e escombros da vida. Nossa rotina foi se
estabelecendo entre as cadeiras que ia cursando e vivendo, tudo com muita
fome de coisa nova, foram dias e noites de muitas alegrias, cansaços, tensões,
ansiedades, empolgações e medos.
E você junto, parceiro! Participando integralmente de toda experiência, se
tem uma pessoa que viveu essa jornada comigo, essa pessoa é você e eu sou
imensamente grata por isso. Com o tempo, conseguimos a transferência externa
e meu coração não podia ficar mais feliz, era aqui que eu queria estar, era
nesses lugares que precisava habitar. Toda coragem despertada através do seu
jeito me colocou em movimento para encontrar e descobrir quem eu sou/estou,
lembra quando você perguntou V
“ ocê já trabalhou com produção cultural?” lá no
começo da nossa relação, tu és visionário! Essa é uma das suas maiores
qualidades, acreditar! Antes mesmo de permitir que fosse capaz você já bota
fé e faz isso até hoje nos mínimos detalhes e está acontecendo agora na
escrita desse projeto e na realização de todas as obras, isso não se resume a
palavras de incentivo é muito mais que isso, é ir para o corre juntos, é
disponibilizar tempo para comprar materiais, é montar o ateliê juntos, é auxiliar
na pesquisa de equipamento, é preparar a comida enquanto estou produzindo, é
se sentir vitorioso com minhas conquistas, é companheirismo e sensibilidade em
vários níveis.

Toda essa experiência me fez perceber que a vida é para ser atravessada,
com amor e coragem fui tocada por você, marcando completamente minha
existência. Suas contribuições no meu processo acadêmico são infinitas, não há
como mensurar, eu só tenho muito a te agradecer, parceiro o qual eu escolhi
viver. Dos presentes mais lindos que essa jornada pôde oferecer a sua
presença é de longe uma das coisas que eu mais gosto de ter, volto a dizer,
que faço morada em você.
Processo criativo
Annaline Curado
-elemento de poder
-peixe voador
-o brincar como
Registro da turma de forma de aprender e
metodologia das ensinar
artes visuais
04. Escritas para Annaline Curado, professora.

Meu primeiro contando com uma aula ministrada por você, explodiu minha
mente rs, quando entrei na aula de metodologia do ensino das artes visuais e
o espaço era uma sala de dança com um imenso espelho nos convidando a
olhar para si, você tocando uma flauta suave, direcionando todas a uma
respiração, com a intenção de recuperar o fôlego e nos deixar ali, presentes, foi
algo inimaginável dentro de um curso de graduação. Esse deslocamento com
uma realidade acadêmica, me proporcionou uma formosa e rica experiência em
torno da arte educação.
Entre jogos, músicas, desenhos e danças, nos gestos do outro sentia
cumplicidade e partilha, abertura que talvez nunca tivesse experimentado em
grupo, percebo minha presença e grandiosas qualidades que estão vinculadas a
mim e desvalorizada no dia a dia, nosso corpo foi um território encontrado e
objetivo de estudo para o presente. Você estava disposta a catucar todas ali,
entusiasmada a ensinar sobre perder tempo e ganhar espaço, mostrar que
brincadeira é coisa séria, nos fez questionar sobre a lógica do que se passa
dentro na sala ser mais interessante que a própria sala de aula. Sutilezas de
metodologias, que acarretou um grande repertório de métodos vividos,
favorecendo uma metamorfose completa.
Minha relação com a educação na graduação sempre foi muito distante, na
ideia de compreender pesquisadores, estudiosas, metodologias tudo no campo
teórico sem muita aproximação, seu acontecimento foi faísca que deu luz a
uma multidão, e sinto que o amor é assim, é ensinar a arte de frequentar a si
mesmo, com inquietação e delicadezas, e isso você faz com maestria.
Processo
criativo
BoiKOT
05. Escritas para BoiKOT, coletivo.
Falar da BoiKOT é falar de muitas pessoas, é escrever sobre eus.

A BoiKOT sempre desafiou ao meu melhor, tem uma expressão que surgiu
a partir das vivências e trabalhos que é o m
“ odo festival” esse - estado de
espírito - é ativado quando há um grande projeto a ser executado e ele foi
adquirido depois de alguns eventos. Graças a esse modo, me senti preparada
para lidar com situações, prazos e pressões dentro da universidade.
Utilizei o coletivo como espaço de materialização daquilo que eu vinha
aprendendo dentro da academia, sendo fundamental para o meu
desenvolvimento enquanto profissional, existindo um ganho de mão dupla
nessas esferas da minha vida, sendo a BoiKOT uma produtora que realiza
festivais de música eletrônica, muito da minha formação estética permeia por
uma poética que há nesses espaços psicodélicos e transportei essa linguagem
para o curso de artes visuais. Durante meus trabalhos cultivei segurança para
colocar minhas ideias em grupo e me posicionar em equipe, aprendi a lidar
com o outro em momentos de pique, percebi no diálogo e na escuta ativa a
melhor maneira para entender o outro e lidar com conflitos. Fui ao encontro
dos meus eus, artista, produtora, curadora entre outras, percebi a vastidão que
há aqui dentro.
Essa escrita vai para todas as pessoas que constroem o coletivo, um muito
obrigada cheio de admiração por cada um que habita essa plataforma de
transformação, agradecida pelas escutas atentas e gentis, pelo voto de
confiança que foi dado ao meu trabalho e grata por me permitir sentir na
prática que sonhos coletivos se realizam.
Aqui dentro pude experimentar emoções das quais nem sabia que existia,
uma mistura de sensações avassaladoras, cavei o meu mais íntimo, isso me
exigia muito, e eu aceitei a brincadeira, me doava por completa, me via em
cada coisa daquela atmosfera, aprendi que a vida é ritual e precisa de entrega.
Choros e raivas sinceras foram colocados para fora, risadas e amizades como
elo, processo criativo a milhão, na BoiKOT experimentei uma das minhas
maiores lições, carrego no peito essa vivência, ganhei a coragem de executar
qualquer ideia, nada é impossível quando se tem o outro contigo.
Muitos fios foram enlaçados, outros nós desatados, a trama foi bem
preparada e nessas costuras me refiz e me refaço, na BoiKOT me enrosquei e
aqui sempre estarei.
06. Escritas para Renato, motivador.

Confiança - Essa é a palavra chave, começo agradecendo a abertura e


sensibilidade por visualizar minhas potencialidades e ser um gerador de
propósitos. Quando levei minhas ideias até você, notei um misto de sensações
de euforia a receio, era a primeira vez que me colocava fora da zona de
conforto e compartilhava minha pesquisa e arte para outro, e toda a aura que
cerca sua posição na sociedade me fez tremer na base, porém firme daquilo
que estava nutrindo, levei uma proposta ousada, algo que representava o
aspecto criativo e inovador dos conceitos que estava investigando na época,
atrelando com sincronia à proposta do projeto.
A sua contribuição foi de extrema importância para uma mudança relevante
no meu fazer artístico e na maneira que enxergo as responsabilidades. No
período que trabalhamos juntos tinha trancado o curso, pois precisava de foco
e tempo integral para viver outras experiências e aplicar aquilo que já tinha
como bagagem e reconhecer novas necessidades e desafios, viver essa
experiência alinhou completamente aquilo que vinha almejando.
Te considero um fomentador de sonhos pulsante, foi bonito trabalhar com
você e perceber de perto toda entrega, dedicação e agilidade para lidar com
as situações, sem dúvida foi o projeto que mais adquiri maturidade e expansão
profissional. Muita satisfação por essa convivência Renato, é bonito olhar sua
jornada e perceber todo amor que você coloca no que faz. Siga firme em seus
sonhos e ideias mirabolantes, isso te torna único! Continue incentivando o lazer
através da celebração da vida, do diálogo e da interação por meio de eventos
e encontros, tudo isso regado de muito afeto.
Processo criativo
Thais Arruda
07 Escritas para Thaes, lembre-se.

Entre as linhas dessa jornada escrevo para lembrar de não esquecer que
sou feita de muitos fios e nesses fragmentos me amarro em memórias e
experiências que fazem minha trajetória. O fechamento de ciclos me coloca em
um estado de avaliação e alívio, e nesse momento de análise me sinto feliz e
satisfeita por quem me tornei e por tudo que construí e me dediquei. Escrevo
para lembrar de escutar minha intuição, essa voz que foi o motor desta
pesquisa concebida de forma repentina, onde abandonei todo o projeto que
iniciei na cadeira TCC1, mas essa sou eu…
Quando sou tomada por uma força impulsiva e motivadora, me esforço ao
máximo para colocar e alinhar em minha rotina para dessa forma possa fazer
acontecer. Lembre de não se culpar por seguir seu coração e fazer as coisas
com paixão, nesse caso o responsável por tal mudança foi o contato
avassalador que o têxtil provocou nos últimos meses da graduação, como iria
conseguir dar continuidade a uma pesquisa que já não fazia mais sentido?
Precisei ter coragem para iniciar do zero outro projeto, mas com a leveza de
ser verdadeira comigo mesma, lembre-se disso.
Novas trajetórias se iniciam a partir de agora, permaneça fiel a sua verdade
e a sua arte, entendi que é isso que nutre minha essência. Caminhe no ritmo
do corpo e lembre-se de perguntar aos pés o que eles acham do percurso. Se
acolha e busque amigos para conversar besteiras, recolha os elementos de
poder encontrados pelo caminho, afinal a gente nunca sabe quando vamos
precisar dessas experiências para usar como energia. Lembre-se de colocar no
mundo e imprimir sua frequência no aqui e agora porque é exatamente isso
que o mundo precisa. Volte a essas escritas toda vez que necessário, feche os
olhos, acenda uma vela, se conecte com esse momento, lembre e confie.
Há poucas certezas e muitas dúvidas, não me sinto pronta mas estou
preparada para os próximos episódios, parabéns para mim.
Nesse momento de finalização, me sinto segura para colocar
em prática tudo que foi aprendido na caminhada acadêmica. Como
forma de atuação profissional, participei dos editais
promovidos pela Lei Aldir Blanc, criada para auxiliar a classe
artística que foi profundamente afetada nesse momento de
pandemia mundial por conta do novo Coronavírus. Enxergo que a
elaboração e execução de projetos culturais como um importante
meio de atuação profissional e uma maneira de me afirmar
enquanto recém formada no circuito da arte.
Vivenciei durante a graduação cadeiras que estimulavam e
ensinavam a construir projetos culturais e isso foi
fundamental para minha formação acadêmica, pois com isso pude
criar o hábito de fazer projetos e assim estruturar de maneira
mais formal minhas pesquisas, auxiliando na visualização e na
execução da ideia. É preciso incentivar a escrita de projetos
nos cursos ligados às artes, pois é através desse meio que
muitos artistas conseguem viabilizar seus trabalhos e se
colocar em galerias e exposições. Ter experimentado dentro da
universidade um pouco do universo dos projetos me deixou mais
segura e familiarizada com essa fase que estamos vivendo com
os desdobramentos da pandemia.
O processo de revisitar e selecionar as experiências
escolhidas me levou para um lugar de emoção. Extrair das
situações comuns da vida elementos tão ricos de vitalidade e
cheios de significados me nutre e aponta um grande potencial
formativo que reside em contemplar o simples. Investigar
determinadas experiências é lidar com histórias que podem ser
evocadas e utilizadas como fonte de combustível para a
criação. Sinto que materializar essas memórias através do
têxtil fortalece essas lembranças, dessa forma contribuo para
manter a chama viva do afeto que nos toca e nos modifica
diariamente.
Visualizo a finalização deste ciclo levando em consideração
minha intuição e colocando em prática toda minha potência
criadora. Dessa maneira me sinto honesta comigo e sinto que
posso dar sequência a costura da vida, assim vou tramando,
remendando, rasgando, refazendo pontos e criando laços com
etapas e situações. Acredito que o caminho para o futuro é
também um retorno ao passado e o toque com o outro perpassa
todos os caminhos.
A jornada acadêmica é marcada por sorrisos e lágrimas. O
percurso até aqui não foi fácil nem simples, costumo falar que
é preciso estar sempre atenta às dores que atravessam nossa
caminhada. Resolvi cristalizar nas obras desta série momentos
felizes pois são eles que quero evidenciar e eternizar nas
paredes das pessoas que admiro, mas quando reflito sobre a
importância das experiências fica claro pra mim que as
dificuldades são tão edificantes quanto as conquistas.
O processo criativo utilizado para criar as tapeçarias
realizadas aqui neste caderno, exaltam a força e a
singularidade em cada experiência, procurei honrar os
encontros, fases e processos, respeitando cada episódio da
minha história. O caderno está em processo e é parte do
projeto da exposição Feita de Mil Fios - Arte e Experiência,
que segue em andamento e no aguardo do resultado final do
edital Aldir Blanc PE 2021, neste momento estou situada como
suplente no resultado parcial recém divulgado.
DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo. Martins Fontes, 2010

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis:


Vozes, 2001.

BOTELHO, Claudia. Fayga Ostrower quando a arte toca a teoria e a


teoria toca a arte. 2016. Dissertação (Mestrado em Artes) -
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016. Disponível
em:http://repositorio.ufes.br/jspui/bitstream/10/8483/1/tese_10387
_Claudia%20Botelho%20Disserta%C3%A7%C3%A3o%20completa-
%20com%20revis%C3%A3o%20da%20orientatora-%20mod%2001-10.pdf.
Acesso em 11 out. 2021.

SECCO, Lorilei. Para além das tramas: Tecendo sentidos em imagens


de tapeçarias artísticas. 2017. Dissertação (Pós graduação em
Letras) - Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, 2017.
Disponível em:
http://tede.upf.br/jspui/bitstream/tede/1194/2/2017LorileiSecco.pd
f. Acesso em 26 out. 2021.

RODRIGUES, Lylian. Relevância do audiovisual para a midiatização e


a experiência: práticas de ensino e pesquisa. Esferas. Revista
Interprogramas de Pós-graduação em Comunicação do Centro Oeste.
Ano 4, no 6, pág. 121 - 129, Janeiro a Junho de 2015. Disponível
em: file:///C:/Users/User/Downloads/5974-26658-1-PB%20(1).pdf.
Acesso em 27 out. 2021.
WOSNIAK, Fábio; LAMPERT, Jociele. Arte como experiência:
ensino/aprendizagem em Artes Visuais. Revista GEARTE, Porto
Alegre, v. 3, n. 2, p. 258-273, maio/ago. 2016. Disponível em:
http://seer.ufrgs.br/gearte. Acesso em 28 out. 2021.

MADDONNI, Karina. Imprescindibilidades Têxteis. In: BORRE,


Luciana; ANDRADE, Luana. Tramações: a memória e o têxtil. Recife,
Editora UFPE, 2021. Disponível em:
https://www.ufpe.br/documents/484600/0/Livro+Trama%C3%A7%C3%B5es+A
+mem%C3%B3ria+e+o+T%C3%AAxtil/68d11ff0-5a9e-4b73-bb09-505891
Acesso em 22 de out. 2021.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

CABEÇA DE VÍRUS: UMA ANÁLISE PESSOAL SOBRE SAÚDE MENTAL


DURANTE A PANDEMIA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA

Bruna Letícia Guimarães Bezerra

Recife, 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

CABEÇA DE VÍRUS: UMA ANÁLISE PESSOAL SOBRE SAÚDE MENTAL


DURANTE A PANDEMIA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título de
Licenciada em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Pernambuco.
Orientadora: Profª. Drª. Ana Elizabeth Lisboa
Nogueira Cavalcanti.

Bruna Letícia Guimarães Bezerra


UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

CABEÇA DE VÍRUS: UMA ANÁLISE PESSOAL SOBRE SAÚDE MENTAL


DURANTE A PANDEMIA ATRAVÉS DA ARTETERAPIA

COMISSÃO EXAMINADORA

Profª. Drª. Ana Elizabeth Lisboa Nogueira Cavalcanti (Orientadora)

Profª. Drª. Maria Betânia e Silva — UFPE

Profª. Drª. Ana Carolina Coelho Cosentino — FBAUP

Bruna Letícia Guimarães Bezerra


AGRADECIMENTOS

Gostaria de primeiramente agradecer à minha avó, Dona Mônica, que esteve


comigo durante toda a minha vida e me incentivou desde criança a ser artista.
Tenho nela a figura materna que sempre precisei, e jamais esquecerei de todas as
vezes em que, mesmo em meio às dificuldades, ela fez questão de sempre comprar
lápis de colorir, tintas, cadernos e revistinhas de pintura para a pequena Bruna que
ainda nem sonhava em encontrar na arte seu objetivo de vida. À ela, minha gratidão
e amor eternos.
À minha noiva, Laura Botechia, não tenho palavras para descrever o quanto seu
apoio, companheirismo e amor foram importantes para mim nesse período.
Agradeço sempre aos céus por ter te encontrado, e agradeço a você por fazer de
mim uma pessoa melhor todos os dias. Tenho muito orgulho da pessoa incrível que
você é, e me sinto em paz por saber que é com você que dividirei a vida. Te amo
daqui pra sempre.
Maria Cabral e Beatriz Silvestre, minhas colegas de curso, vocês são a melhor
conquista que eu poderia adquirir em todos esses anos de Licenciatura em Artes
Visuais. Obrigada por serem amigas tão presentes, pessoas tão especiais e artistas
tão talentosas. Obrigada também por me ajudarem a não desistir nem enlouquecer
com este TCC. Amo vocês demais.
Por fim, gostaria de agradecer à Ana Lisboa, minha orientadora e professora do
curso, que me incentivou com tanto gosto a falar sobre um tema tão importante para
mim, e também a todos os professores do curso de Licenciatura em Artes Visuais,
em especial Gustavo Motta e Maria Betânia, que me acompanharam durante a
formulação do TCC. Sinto orgulho em ser sua aluna, vocês serão com toda certeza
minha maior inspiração como profissional.
"Precisamos da fantasia para
sobreviver à realidade"
— Lady Gaga
Resumo

O trabalho tem como objetivo observar o impacto da pandemia da Covid-19 na


saúde mental da autora através de suas criações artísticas, utilizando como base
teórica os estudos de renomados autores diretamente ligados a saúde mental e
estudos psíquicos como Sigmund Freud, Carl Jung, Jacques Lacan e Nise da
Silveira.

Palavras-chave: Pandemia; Covid-19; Confinamento; Arteterapia; Psicanálise;


Leitura de imagens.

Abstract

The work aims to observe the impact of the Covid-19 pandemic on the author's
mental health through her artistic creations, using as a theoretical basis the studies
of renowned authors directly linked to mental health and psychic studies such as
Sigmund Freud, Carl Jung, Jacques Lacan and Nise da Silveira. Furthermore, it is a
case study, where the object of study is the author herself and her works.

Keywords: Pandemic; Covid-19; Lockdown; Art Therapy; Psychoanalysis; Image


Reading.
Sumário

Introdução …………………………………………………………….. 6
Cap. I: A Importância da Arte como Forma de Expressão …... 9
Cap. II: Arte; Sentimento ………….……...………………..….….. 12
Cabeça de Vírus; Desespero ………………………..….… 13
Quebra-Cabeça; Esperança ……………….……...………. 16
Caos; Ansiedade …………….……………….………….…. 19
Meu Eu Oculto; Insegurança ………………..……..…..…. 21
Acalento; Amor ………………...…………….…………..…. 23
Considerações Finais ………..……….……………………...……. 26
Referências Bibliográficas ……………….……………………….. 27
6

INTRODUÇÃO

Sempre ouvi de pessoas próximas que, quando criança, costumava ser extrovertida,
apesar de quieta. Tinha facilidade em fazer novos amigos, era bastante
comunicativa e adorava acompanhar meus familiares para todos os lugares.
Lembro-me que, nessa mesma época, descobri a paixão pela arte — especialmente
pelo desenho — e fui incentivada pela minha avó a trabalhar com tais vocações
artísticas.

Uma personalidade descontraída e o apego pelo mundo das artes caminharam lado
a lado durante grande parte da minha trajetória, e até pouco depois de completar 18
anos, meu foco artístico estava, no geral, no trabalho com as Fanarts¹1. Em cima
desse interesse, estudei técnicas e encontrei uma estética pessoal. Perdi e
reencontrei meu interesse pelo fazer artístico muitas vezes ao longo dos anos
devido a falta de ânimo causada pela depressão, e nem mesmo quando vivenciei
essas fases, imaginei que algo tão avassalador aconteceria à humanidade a ponto
de mudar consideravelmente a forma como enxergamos o mundo e a nós mesmos.

Tudo começou no dia 11 de março de 2020, algumas semanas após o surgimento


de um novo vírus gripal chamado Coronavírus (Sars-CoV-2), quando acabei sendo
surpreendida pela notícia de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou
estado de pandemia (Portaria Nº356, de 11 de março de 2020). Assolados com a
nova doença e com o aumento cada vez mais rápido no número de casos, fez-se
necessário aderimento ao isolamento social. Segundo levantamento da FGV
(Fundação Getúlio Vargas), 83% dos países infectados com o vírus aderiram à
medida de distanciamento. Uma porcentagem considerável da população brasileira
tratou a situação com desdém, provocando um adiamento no fim das medidas
restritivas, obrigando-nos a permanecer mais tempo em isolamento.

Fui uma das pessoas afetadas com a mudança brusca de rotina, e durante o
período de quarentena que documentei em minhas obras, aos poucos abandonei
costumes que, para mim, eram corriqueiros. A cada dia me tornava menos a criança

1
Fanart, fan-art ou ainda Fanarte é uma obra de arte baseada em um personagem, fantasia, item ou
obra notoriamente conhecida, que foi criada por fãs.
7

extrovertida e animada que fui por tanto tempo, e me tornava uma adulta introvertida
e reclusa. Meus interesses artísticos moldaram-se juntamente à personalidade, e o
que antes era apenas um simples passatempo e interesse profissional
transformou-se em prática terapêutica para mim. Apesar de meu processo situar-se
nas artes visuais, há uma forte influência da arteterapia, já que minha experiência foi
curativa e terapêutica, onde tive a oportunidade de elaborar questões profundas e
existenciais através de minhas obras. As Fanarts ainda estão presentes, mas agora,
a prioridade era encontrar um meio de fuga de toda aquela situação a qual estava
sendo submetida.

Para que se entenda melhor a relevância da arte em períodos sociais conturbados,


a professora Stephanie Batista contou em entrevista à jornalista Ana Carolina
Caldas, do jornal Brasil de Fato, do estado do Paraná, sobre a importância do
consumo e produção artística em meio ao confinamento.

A arte protege a saúde mental. Pessoas têm buscado, para


suavizar este momento, assistir a filmes, “lives” musicais,
mais leituras, visitas a museus virtuais ou mesmo praticar
culinária, entre tantas outras atividades. A arte possibilita
diversas formas de se conectar com o outro e explica a
existência do momento com um olhar mais sensibilizado.
Arte funciona como uma válvula de escape das tensões
atuais. (BATISTA, Stephanie.)

Em minhas obras, retratei tristezas, felicidades, angústias, medos e conquistas. Não


me preocupei com técnicas ou proporções, nem parti de ideias prévias a respeito do
que fazer. Apenas transpassei as emoções da maneira que as sentia,
espontaneamente.

O primeiro capítulo trará um apanhado histórico para que se entenda a importância


da arte como meio de expressão desde o início da humanidade, construindo uma
ponte para a introdução da arte na saúde mental e, por fim, sua chegada ao Brasil.
Já o segundo capítulo iniciará a análise de obras, contextualizando o cenário e a
situação onde cada trabalho foi feito, trazendo consigo ligações com estudos e
pensamentos de autores relevantes aos respectivos temas.
8

Anseio que, através de minha análise pessoal, este artigo ajude outras pessoas a
compreenderem ou até mesmo descobrirem como o período de quarentena as
afetou, também procuro dar destaque à arteterapia, que trata-se de uma área de
estudos com epistemologia própria, onde paciente e profissional partilham avanços
terapêuticos através da arte.

A metodologia cartográfica, que consiste em um mapeamento de diferentes


territórios com a intenção de moldar meu trabalho a medida em que avançou, e nas
possibilidades de se estudar objetos de natureza mais subjetivas possui uma
flexibilidade maior, sendo a mais adequada para o meu tipo de pesquisa, que será
qualitativa. A cartografia permite problematizar nossos modos de ser e agir, se
orientando por uma prática que percorre "os pontos, a linha e a rede do rizoma2,
aplicando estratégias rizomáticas de análise e ação, percorrendo e desenhando
trajetórias geopolíticas". (PRADO FILHO, Teti. p.53)

Meu objetivo com o presente trabalho é separar algumas dessas obras, dissecá-las
e compreendê-las. Quais efeitos o isolamento social teve sobre minha psique, e até
onde isso influenciou a criação artística? Para responder a pergunta terei como
base elementos da arteterapia, desfrutando dos estudos de diversos autores da
psicanálise e da psicologia analítica, como Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav
Jung (1875-1961), Jacques Lacan (1901-1981) e Nise da Silveira (1905-1999).

2
Caule que cresce horizontalmente, geralmente subterrâneo.
9

CAPÍTULO I: A IMPORTÂNCIA DA ARTE COMO FORMA DE EXPRESSÃO

"Nos alvores da humanidade a arte pouco tinha a ver com


"beleza" e nada tinha a ver com contemplação estética [...], era um
instrumento mágico, uma arma da coletividade humana em sua luta
pela sobrevivência."
(Fischer, 2014, p.45)

Pensar em arte muitas vezes nos leva diretamente à ideia de que, para algum
objeto ou ideia ser considerada artística, precisa ser algo bonito, realista ou seguir
um padrão técnico e estético específico. Como bem disse Mário Pedrosa (1949,
p.48) em seu livro Arte, necessidade vital, "a realidade é que o mundo de agora não
sabe o que é arte". Também pode-se refletir acerca do pensamento do filósofo
Nuccio Ordine (2013, p.10), quando ele afirma em seu livro A utilidade do inútil que:
"[...] É mais fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais
difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte".
Partindo do pensamento de Fischer (2014), percebemos o quanto a necessidade
estética da arte surgiu apenas com o surgimento das civilizações, pois muito antes
disso, o fazer artístico ligava-se puramente à expressão, comunicação e
sobrevivência.

Trazendo a discussão para o contexto contemporâneo, é fácil perceber como a arte


moldou-se através dos anos até se transformar no que conhecemos hoje. Suas
finalidades são diversas, sendo utilizada com propósito estético, passatempo e até
mesmo com o objetivo de melhor entendimento do subconsciente do indivíduo — e
nesse último, baseia-se a arteterapia. Duas figuras indispensáveis ao tratar-se de
arte como meio de manifestação do subconsciente são Sigmund Freud (1856-1939),
autor da psicanálise, e Carl Gustav Jung (1875-1961), fundador da psicologia
analítica e discípulo de Freud por grande parte de sua carreira, anulando sua
ligação com o mestre ao elaborar sua própria teoria e divergir algumas de suas
opiniões.

A base dos estudos acerca da arte como método terapêutico surge dos estudos
feitos por Freud e Jung, como bem lembram os estudiosos Carvalho e Andrade
10

(1995, p.39) ao recordar que Freud, observando algumas obras de arte, percebeu
que elas demonstravam manifestações inconscientes de seus autores, acreditando
que fossem uma forma de comunicação simbólica. Jung, por sua vez, julgava como
função psíquica natural a criatividade do indivíduo, e sua capacidade de cura
encontrava-se em transformar o inconsciente em imagens representativas
(SILVEIRA, 2001, p.158).

No Brasil, a arte deu seus primeiros passos na área psiquiátrica no ano de 1923,
com a ajuda do renomado psiquiatra e intelectual brasileiro Osório Thaumaturgo
César (1895-1979), que nessa época, realizou seu trabalho no Hospital de Juquerí,
localizado no estado de São Paulo, onde desenvolveu um extenso estudo sobre arte
diretamente relacionada à psicanálise. Em 1925, é criada a escola livre de artes
plásticas neste mesmo hospital, e em 1933, Osório César participou de uma
exposição de artes no Clube dos Artistas Modernos com a palestra intitulada Estudo
Comparativo Entre a Arte de Vanguarda e a Arte dos Alienados .

Poucos anos depois, em 1946, Nise Magalhães da Silveira (1905-1999), médica


psiquiatra e entusiasta dos estudos de Jung, utilizou-se da arte como recurso para
aproximar-se de seus pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, dando espaço para
um ateliê de terapia ocupacional completamente voltado para ar artes, onde os
internos tinham à disposição diversos materiais artísticos, dando-lhes a
oportunidade de criar livremente. Em seu livro Imagens do Inconsciente, Nise conta
um pouco dessa sua experiência:

(...)Aconteceu que dirigi (1946-1974) a seção de terapêutica ocupacional no


Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro. O exercício de múltiplas
atividades ocupacionais revelava, por inumeráveis indícios, que o mundo
interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e as conserva mesmo
depois de longos anos de doença, contrariando conceitos estabelecidos. E,
dentre as diversas atividades praticadas na nossa terapêutica ocupacional,
aquelas que permitiam menos difícil acesso aos enigmáticos fenômenos
internos eram desenho, pintura, modelagem, feitos livremente. (SILVEIRA,
1981, p.13).

Dessa maneira, Nise conseguiu não apenas ajudar seus pacientes a se expressar,
mas também, a se conectar com seu subconsciente e resgatar memórias perdidas,
possibilitando um melhor entendimento dos casos e suas possíveis causas. Em
11

1952, com a ajuda do renomado crítico de arte Mário Pedrosa, montou um grande
acervo com as respectivas obras e inaugurou o Museu de Imagens do Inconsciente,
que encontra-se em atividade até os dias atuais.

Tais informações nos dão contexto para entender como a arte pode ser relevante
em praticamente tudo o que o homem pensa, fala e produz. Em alguns casos —
como o de vários pacientes de Nise — acaba sendo o meio mais viável de
comunicação, ou de se fazer entender.

De maneira mais contemporânea, a arteterapia se tornou uma alternativa


interessante e inclusiva para pacientes não-verbais, ou ainda que simplesmente não
se sentem confortáveis para externar determinadas situações. A arteterapeuta
brasileira Ângela Philippini compara o processo terapêutico com o chocar de um
ovo, onde, em tempos de globalização, a arteterapia "quebrou sua casca" e "saiu do
ovo".

Desse modo, nos seguintes capítulos, busco demonstrar a importância da arte na


saúde mental através do impacto que ela teve em meu psicológico durante o
distanciamento social, e como ela acompanhou e demonstrou as transformações do
meu estado mental entre o início de 2020 a 2022.
12

CAPÍTULO II: ARTE; SENTIMENTO

Pouco menos de um mês após o decreto da OMS e já em isolamento, contraí o


vírus. Quando os primeiros sintomas surgiram, acreditei que estava apenas com
uma gripe muito forte, afinal de contas, ainda estávamos no início da pandemia e
pouco se sabia sobre a doença. Após dias de dor de cabeça, febre e náuseas,
decidi ir a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), descobrindo, assim, que
realmente havia contraído o novo vírus. Além do distanciamento obrigatório, alguns
medicamentos me foram receitados para amenizar os sintomas, mas nenhum surtiu
efeito de forma eficaz. Várias noites de insônia foram percorridas, resultando em um
agravamento de depressão e ansiedade.

Com o psicológico abalado e o temor de não saber o que viria pela frente, iniciei
minha produção artística, a fim de documentar os momentos mais intensos que
passei durante o período de 2020 a 2022. Cabe apontar que um dos conceitos de
sublimação de Freud trata do mecanismo de defesa do sujeito que acaba por
transformar um determinado desejo inconsciente em impulsos aceitos pela
sociedade. Segundo Freud (1994), essas seriam alternativas para amenizar
sentimentos como dor, angústia, frustração e conflitos mentais.

Buscando me expressar da forma mais fiel aos meus sentimentos, em todas as


obras pode-se encontrar diversos elementos diretamente ligados à vivência pessoal,
além de metáforas, que estão muito presentes nas criações mostradas neste
trabalho. Vale ressaltar que um dos métodos frequentemente utilizados por
arteterapeutas é a metáfora. Ruy de Carvalho, fundador e presidente da Sociedade
Portuguesa de Arte-Terapia3, afirma que a metáfora é um dos facilitadores utilizados
na arteterapia que ajudam na comunicação, reorganização dos conteúdos internos,
expressão emocional e o aprofundar do conhecimento interno do indivíduo. Além
disso, ajuda na forma de pensar e, também, na criatividade do sujeito (CARVALHO,
2001, p.182).

3
Em PT/BR: Arteterapia; em PT/PT: Arte-Terapia.
13

Um deslumbrante exemplo de artista que contava sua história em suas obras


através de metáforas é a mexicana Frida Kahlo. Apesar de ter vivido apenas 47
anos, Kahlo deixou diversos registros de sua trajetória em suas pinturas, contando
desde sua infância — como no quadro intitulado Meu Nascimento, de 1932 — até
pouco antes de seu falecimento — Autorretrato com o Retrato de Diego no peito e
Maria Entre as Sobrancelhas, de 1954, foi o último autorretrato feito por Frida.

A metáfora é uma ponte que liga domínios semânticos diferentes, fazendo com que
percebamos novos caminhos para a compreensão do sujeito (LAKOFF e TURNER,
1989). A utilização da palavra no conceito psicanalítico traz como bom exemplo a
Metáfora Delirante de Jacques Lacan (1901-1981), baseada nos estudos de Freud
acerca do caso de Daniel Paul Schreber (1842-1911), juiz que descobriu em suas
alucinações e delírios uma forma de organização psíquica. Freud (1996) afirma que
o delírio é uma tentativa de estabilização e de cura do sujeito. Lacan, tempos mais
tarde, reitera esse pensamento quando diz que a metáfora delirante trata-se de uma
"solução elegante" (LACAN, 1985, p.361) para ordenar o caos significante.

No âmbito pessoal, passei grande parte do período de apartamento social em um


lugar que não era benéfico à minha saúde mental, em sua maioria por precisar
conviver com alguém que não me respeitava, ou ao menos se dirigia diretamente à
mim. Não se trata apenas de estar longe dos lugares ou pessoas das quais gostava,
mas principalmente, da obrigação de estar o tempo inteiro em um lugar que, em
suma, me adoecia para além do vírus. Não se trata apenas dos sintomas causados
pela doença, mas da ansiedade e da angústia que se mantém constantemente em
meu subconsciente durante o tempo que precisei estar naquele lugar.

Essa afirmação torna-se evidente com a ordem cronológica das imagens, e em


como os desenhos representam a mudança considerável que meu psicológico
sofreu com a mudança de ambiente e situação. É desse pressuposto que parte esta
análise de obras, onde cada trabalho representará um sentimento distinto.

Cabeça de Vírus; Desespero. (2020)


14

Trabalhei em sua produção enquanto estava infectada com o vírus da Covid-19, o


que teve grande influência em sua criação. Parte do autorretrato conta sobre a
sensação de estar com o vírus e seus sintomas, enquanto a outra parte me traz o
desalento da impotência, estando completamente vulnerável e incapaz de resolver o
problema.

Em diversos momentos questionei minha sanidade e em vários outros senti-me


louca. Não conseguia dormir, nada amenizava as dores que eu sentia, sequer
poderia deixar o cômodo em que dormia sem me preocupar se iria contaminar as
pessoas que moravam comigo e estas mesmas não se preocupavam o suficiente
com a situação para tomarem os cuidados necessários.

Partindo de uma análise metafórica da obra, assim como será com as


subsequentes, a Imagem 1 retrata a sensação de desespero como uma enorme
agulha de costura fincada de uma ponta a outra da cabeça, transpassando até
mesmo as duas mãos que, enfraquecidas, tentam sustentá-la. Além de desespero,
a expressão facial do autorretrato simboliza o sentimento de frustração e loucura,
onde a impotência torna-se o maior vilão. Intitulei a criação "Cabeça de Vírus", que
posteriormente, também se tornaria o título deste trabalho. Existem diversas
explicações que justificam o nome da obra, entre elas, a constante carga física
causada pelo vírus, e principalmente mental, causada por toda a situação que me
estava sendo imposta como consequência da pandemia.
15

Imagem 1: Cabeça de Vírus (2020). Grafite e lápis sobre papel ofício de tamanho A4.
16

Passei meu aniversário acamada, sem sentir cheiro nem gosto. Chorava todas as
noites, senão de dor, de desespero. Lacan (1985) afirmou que "sem dúvida há uma
loucura necessária, que não ser louco da loucura de todo o mundo seria ser louco
de uma outra forma de loucura". Essa frase encaixa-se adequadamente no
momento que vivenciava quando construí a arte. Enxergava as pessoas que se
mostravam despreocupadas com a pandemia como loucas, apesar de todos ao meu
redor estarem enlouquecendo de alguma maneira, inclusive eu. Neste contexto
onde encontro-me como sujeito, a loucura — mesmo que temporária — se fez
necessária para que fosse transformada em arte.

Quebra-cabeça; Esperança. (2020)

Quando descobri a arte digital, não sabia ao certo por onde começar. Arrisquei um
desenho aqui e ali enquanto ainda trabalhava frequentemente com as Fanarts, mas
acabei deixando de lado tempos depois. Com a chegada da pandemia, muitos
estabelecimentos foram fechados e eu não possuía os materiais artísticos
necessários à disposição — como tintas, pincéis, entre outros — e enxerguei na arte
digital a solução para esse problema, aproveitando também para aprender a como
utilizar a ferramenta.

A professora e uma das principais divulgadoras da semiótica no Brasil, Lúcia


Santaella (1944), faz uma interessante observação acerca das mídias digitais em
seu livro Linguagens Líquidas na Era da Mobilidade.

Os efeitos multiplicadores da tecnologia sem fio vêm transformando


a cultura digital em um ecossistema expansivo de subculturas que se
misturam em micro, macro e mega comunidades. Consciente da condição
móvel da cultura e tecnologia, para Beiguelman, nestes tempos de
nomadismo sem fio, a interface é a mensagem. (SANTAELLA, 2007, p.
349-350).

Giselle Beiguelman (1962) — citada por Santaella (2007) em seu livro — é um


excelente exemplo de artista plástica com enfoque na arte digital, servindo-me
diversas vezes como inspiração. Hoje, afirmo que a arte digital tornou-se meu
17

principal meio de criação, não apenas pela praticidade, mas também pela
disponibilidade de materiais semelhantes aos que, muitas vezes, não possuo.

Em setembro de 2020, saí do ambiente que me fazia mal para morar com alguns
amigos da época, colocando um fim em algumas questões, e um grande peso que
antes afetava significativamente meu psicológico desapareceu gradativamente. O
sentimento de esperança era o que me dominava no momento em que criei a obra,
e é representado pela Imagem 2 por um quebra-cabeça levemente colorido sendo
completado aos poucos.
18

Imagem 2: Quebra-cabeça (2020). Desenho e pintura digital.


19

A ideia de criar essa pintura digital surgiu através de um sonho que tive, onde me
encontrava sozinha em meio ao nada, ouvindo uma música aleatória de fundo
enquanto uma enorme mão me carregava calmamente até uma janela onde uma
paisagem era preenchida pouco a pouco por peças de quebra-cabeça. Para Freud
(1987), os sonhos tratam-se de uma "realização disfarçada de um desejo reprimido",
o que traz sentido e contexto para a representação que fiz através da obra. Naquele
momento, meu desejo reprimido era me livrar de toda a carga emocional que
trouxera comigo junto com a mudança de ambiente.

Caos; Ansiedade. (2021)

Quando criei este trabalho, estava em negação quanto aos planos que havia feito
para o resto do ano e que acabaram desmoronando logo de início. Tive de assistir
pessoas em quem confiava me virar as costas, e me vi novamente em meio à
sensação de desespero, onde a situação exigia de mim decisões importantes em
um curto espaço de tempo, e com isso, alguns problemas psicológicos voltaram a
me atormentar.

Ainda seguindo a linha da arte digital, o próximo trabalho é uma representação do


sentimento de ansiedade, ilustrado na Imagem 3 por um autorretrato onde a
personagem encontra-se em dúvida entre a razão e a emoção. Minha razão me
implorava para seguir em frente, mas minha emoção não consegui aceitar que
pessoas importantes pra mim já não tinham a mesma consideração de antes por
mim. Cada cor presente na obra foi formada através do desenho de traço contínuo,
que consiste em finalizar toda a obra ou elementos de uma obra seguindo um único
traço até o fim, sem levantar o lápis do papel. Como a arte em questão é
inteiramente digital, utilizei apenas o meu dedo indicador como guia, permitindo que
a imagem se criasse de maneira espontânea e livre.
20

Imagem 3: Caos (2021), desenho digital.


21

Jung (1967) diz que o pensamento e o sentimento (razão e emoção) são opostos.
Para ele, isso significa que quem for do tipo pensamento terá, consequentemente, o
sentimento como função inferior. Jung acreditava que a dinâmica psíquica se baseia
no equilíbrio dos opostos, e que a função inferior precisa ser assumida para que não
haja repressão no inconsciente e acabe afetando o consciente de maneira
destrutiva. No meu caso, precisei abraçar a razão para não deixar a emoção me
impedir de superar a situação.

O conflito entre ambos os fenômenos ficam explícitos na obra, tornando-a um


completo caos, de modo a afetar até mesmo a essência serena da personagem.
Refere-se à representação do meu eu em crises de ansiedade resultantes de
situações onde preciso tomar decisões complexas, como o momento em que a criei,
e até onde isso passa do subconsciente para o consciente, afetando diretamente
meus pensamentos e vivência.

Meu Eu Oculto; Insegurança. (2021)

A baixa autoestima sempre me abala de maneira muito cruel, causando


desconforto, insegurança e, até mesmo, episódios de depressão. Para muito além
do físico, a baixa autoestima atrapalha meu desempenho em funções básicas e
cotidianas, fazendo-me sempre duvidar da minha capacidade ou do meu
merecimento quanto à conquistas.

Ilustro de maneira alegórica essas emoções na Imagem 4, intitulada "Meu Eu


Oculto", onde a parte dos sentimentos que mantenho em segredo é representada
por um cofre velho e empoeirado sendo aberto por alguém que possui a única
chave que dá acesso a esse lugar sombrio e escondido. Pode-se observar algumas
criaturas grotescas e desconhecidas saindo pela fresta que lhe foi concedida.
22

Imagem 4: Meu Eu Oculto (2021), caneta esferográfica sobre papel canson de tamanho A6.
23

Algo interessante a se destacar sobre a obra é o contexto no qual foi feita. Há um


desafio anual nas redes sociais chamado Inktober4, onde diversos artistas fazem
suas obras de acordo com o tema, que muda a cada dia da edição. Em 2021,
resolvi participar de um dos dias e fiz uma arte completamente improvisada, mas
que ainda conseguisse representar o que eu queria.

As improvisações se opõem ao aspecto geométrico do abstrato, e aparece como


tentativa de construção consistente em uma maneira de amenizar o tumulto
emocional, respondendo à sensação de insegurança (SILVEIRA, 1992).

Acalento; Amor. (2022)

Criei a última obra deste trabalho em um momento onde me sentia em paz. Passei
por diversas situações difíceis em 2020 e 2021, me perdi incontáveis outras, mas
com a chegada de 2022 finalmente senti que encontrara meu caminho. Meus
pensamentos tornaram-se menos turbulentos, as noites de sono já não são mais tão
perturbadoras e a cada dia descubro uma parte de mim que havia se perdido ou
jamais sido encontrada. Nesta época, havia me estabilizado amorosa e
financeiramente, além de estar satisfeita com o rumo que minha vida estava
tomando.

Conforme Imagem 5, o desenho — feito apenas com lápis e papel — trata-se de um


autorretrato onde o coração da personagem encontra-se acima da cabeça,
segurado com cuidado por outra pessoa, enquanto ela repousa em paz.

4
Criado em 2009 pelo ilustrador americano Jake Parker, o Inktober é um evento anual realizado
durante todo o mês de outubro, onde diversos artistas e ilustradores ao redor do mundo criam suas
obras de acordo com os temas sugeridos. A palavra vem da junção de duas palavras em inglês: Ink
(tinta) e October (outubro).
24

Imagem 5: Acalento (2022), lápis grafite sobre papel canson de tamanho A6.
25

O trabalho busca retratar através da metáfora o amor verdadeiro entre dois


semelhantes, além do cuidado para com os sentimentos do outro. A imagem pode
ser interpretada de diversas maneiras pelo observador, mas para mim, ilustra a
primeira vez que senti amor verdadeiro e recíproco.

Jung (1922), dizia que o amor surge na forma de Eros, sendo um sentimento
profundo que causa confronto com nosso próprio ego. Ele acrescenta que a partir
da experiência do amor, amadurecemos e ampliamos nossa consciência.

No âmbito pessoal, trago o pensamento de Jung como uma descrição do que a obra
gostaria de passar como mensagem. Ao vivenciar o amor romântico verdadeiro,
afirmo de forma convicta que foi um dos principais pontos de partida que me
permitiram enxergar a vida por outra ótica e recuperar aos poucos quem eu já não
era, mas gostaria de ser.
26

Considerações Finais

A maneira como a arte está diretamente ligada aos sentimentos é, sem dúvidas,
impressionante, apesar de nem todos a verem ou ou a sentirem dessa maneira. Ao
separar estas obras e analisá-las no decorrer deste trabalho, me surpreendi com a
relação autêntica de cada criação com momentos distintos da vivência com a
pandemia e os altos e baixos que experienciei durante esse período. O impacto da
pandemia em minha psique foi sem dúvidas negativa, mas tive a oportunidade de,
através da arte, buscar me entender e entender as situações ao meu redor. É
inegável que a experiência pandêmica influenciou diretamente minha forma de ver e
fazer arte, trazendo uma carga pessoal e uma profundidade muito maior ao que
transpasso em meus trabalhos.

Partir dos pensamentos e estudos de figuras renomadas e admiradas por mim para
realizar este estudo foi de grande importância, pois a arte quando utilizada de
maneira terapêutica nos permite não somente compreender o que se passa em
nosso subconsciente e consciente, mas também buscar um momento de paz em
meio a turbulência, trazendo resultados significativos à nossa saúde mental.

A pandemia da Covid-19 trouxe à humanidade um choque que jamais iremos


esquecer. Milhões de vidas perdidas em um curto espaço de tempo, mudança
brusca no modo como nos comportamos, fortalecimento da tecnologia e uso de
máscara como função indispensável e cotidiana foram algumas das surpresas e
alterações de rotina que sem dúvidas afetaram nosso psicológico, e que vai levar
um longo período para conseguirmos nos recuperar.

Ainda encontro-me em busca de quem sou, recolhendo os cacos de quem eu era


antes da pandemia e os remodelando de acordo com quem busco ser agora. Muitas
coisas mudaram no âmbito pessoal e acadêmico, mas encontro na arte o refúgio
que necessito neste momento da vida para me entender e me fazer entender para
aqueles ao meu redor.
27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Entrevista concedida a Ana Carolina Caldas. Edição 165, P. 08, Maio de 2020.
Curitiba, PR: Brasil de Fato.

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Rio de Janeiro: Periódicos Humanas. Disponível em:
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
ARTES VISUAIS – LICENCIATURA

AS VÁRIAS VEZES QUE ME PINTEI POR AÍ:


UMA ANÁLISE SOBRE AUTORRETRATO

Beatriz Costa da Silva Silvestre


UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
ARTES VISUAIS – LICENCIATURA

AS VÁRIAS VEZES QUE ME PINTEI POR AÍ:


UMA ANÁLISE SOBRE AUTORRETRATO

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciada
em Artes Visuais
Orientadora: Profª.Drª.Maria Betânia e
Silva

Beatriz Costa da Silva Silvestre


Recife, 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
ARTES VISUAIS – LICENCIATURA

AS VÁRIAS VEZES QUE ME PINTEI POR AÍ:


UMA ANÁLISE SOBRE AUTORRETRATO

Comissão Examinadora

Profa.Dra.Maria Betânia e Silva (orientadora)


Profa.Dra.Fabiana Souto Lima Vidal (UFPE)
Profa.Dra. Ana Elisabete Gouveia (UFPE)

Recife, 2022
Resumo
Este trabalho tem como objetivo apresentar e analisar os autorretratos realizados por mim, ao
longo dos anos de 2016 a 2021, com o intuito de tecer uma reflexão sobre processo criativo e
memória. Na primeira parte, debati as mudanças do autorretrato ao longo da história da arte,
com atenção especial ao final do século XIX e início do século XX. Em um segundo momento
discuto sobre o que define o autorretrato, o que envolve seu processo criativo, e também de
como a memória influencia em sua produção. Para a finalização desta pesquisa retomei os
autorretratos realizados entre 2016 e 2021, e a partir deles foi feita uma análise, pensando
principalmente sobre o processo artístico e criativo envolvido em cada um deles.

Palavras- chave
Autorretrato, processo de criação, Artes Visuais, memória

Summary
This work aims to present and analyze the self-portraits made by me, over the years from 2016 to
2021, in order to weave a reflection on the creative process and memory. In the first part, I discuss
the changes in the self-portrait throughout the history of art, with special attention to the late 19th
and early 20th centuries. And in a second moment, I discuss what defines the self-portrait, what
involves its creative process, and also how memory influences its production. To complete this
research, I present self- portraits made between 2016 and 2021, and based on them an analysis was
made, thinking mainly about the artistic and creative process involved in each of them.

Keywords
Self-portrait, creation process, Visual Arts, memory
Sumário
Introdução…………………………………………………………………….......................…….. 7

1. Autorretrato e seu contexto histórico…………………………......…………. 9


1.1. Um breve olhar sobre a Europa ……………………………...............……… 11

2. Quando me percebi estampada em diversas superfícies……. 14


2.1. Lembranças, e tudo que fiz a partir delas………………….......……… 19

3. Autorretratos que fiz, e o que vim pensar deles………………………. 20


3.1. 2016…………………………………………………..................................………………... 22
3.2. 2017……………………………………………………………..................................……... 27
3.3. 2018………………………………………………………………….................................... 32
3.4. 2019………………………………………………………………….................................... 37
3.5. 2020…………………………………………………………………................................... 42
3.6. 2021………………………………………………………………….................................... 47

4. Conclusão…………………………………..........................………….……………………. 53
5. Referências…….........................………………………………………………………….. 55
“Quase todos os pintores, num momento ou noutro, ainda que sentindo o quão inconsequente,
desnecessário ou mesmo nefasto podia ser falarem de pintura (sua ou de outros), sentiram a
necessidade de falar das suas obras e das motivações ou intenções que guiaram a sua criação.
Todos nos deixam a sensação de existir um hiato entre aquilo que revelaram e a obra de que
falaram. O próprio pintor o sente. E podemos perguntar-nos: não teria sido melhor ter ficado
calado?” (RAMOS, 2013, p. 67)
7
Introdução

Fui uma criança criativa, sempre gostei de desenhar apesar de não ter nenhum talento diferenciado dos
demais. Gostava de diferentes superfícies, mesas, paredes... E para a infelicidade da minha mãe risquei
várias com caneta esferográfica. Com o início da pré-adolescência me desliguei um pouco do desenho,
até mudar de escola, ao conviver com novas pessoas o interesse voltou, especificamente depois de
conhecer uma colega de classe que aos meus olhos desenhava incrivelmente bem; a partir desse
momento minha meta se tornou desenhar tão bem quanto ela.
O tempo foi passando, essa colega saiu da escola, mas eu não havia desistido, eu iria aprender a
desenhar. Minhas referências mudaram, aprendi técnicas diversas, usei diferentes materiais, e enfim fui
melhorando. Até esse momento era um hobby que me distraía durante as aulas que eu considerava
chatas. Tudo mudou quando passei a ter aulas de arte no ensino médio, e com apoio da professora,
passei a me interessar pelo assunto, queria aprender sobre os artistas e seus movimentos artísticos.
Assim, finalmente entendi a importância da semana de arte de 22, assunto que estudei em diversos
momentos da minha vida escolar, e quando enfim conheci Van Gogh, decretei que queria ser artista.
Com esse novo propósito em mente, passei a praticar com ainda mais seriedade. Com o auxílio dessa
mesma professora de artes, descobri que existia a graduação em Artes Visuais: o mundo parecia ter
feito sentido, era essa a minha “vocação”, ou foi isso que afirmei – e acreditei – naquele momento,
estando completamente alheia ao longo processo de aprendizagem que estava por vir. Simultaneamente,
comecei a entender quem eu era, passei por brigas, discussões e descobertas, sentia uma grande
angústia e a minha válvula de escape foi a arte. Tudo aquilo que sentia e não conseguia colocar em
palavras, eu transformava em imagens, até que desenhar se tornou tão natural para o meu corpo quanto
respirar. Aquilo fazia parte intrínseca de mim. Foi aproximadamente neste período de auto descoberta
que fiz meus primeiros autorretratos. Com eles, senti um alívio imenso. Era tão fácil fazer aquilo que
minha mão parecia se mover sozinha. Tornei-me compulsiva. Tudo era sinônimo de desenho, alguns
sentimentos já tinham formas definidas no meu imaginário e eu não deixava de desenhar um dia sequer.

Depois de uma vida inteira na escola, um intercâmbio e um ano de cursinho pré-vestibular, eu finalmente
entrei na tão sonhada universidade.
E a princípio, eu odiei.

Depois do choque inicial, eu comecei a me adaptar e entender onde me encaixava. Comecei a entender
minhas qualidades e o que poderia melhorar. Por sorte eu queria muito estar no local que estava, e usei
isso como força motriz. Aproveitei-me da disciplina adquirida por mim com tanto custo ao longo da vida
escolar, e decidi estudar. Eu seria boa, e seria na marra.
Nesse momento da vida acreditava piamente que sabia o caminho que minhas produções tomariam. No
momento que parei para analisar minhas obras vi a quantidade enorme de autorretratos que tinha em
mãos, por sempre os produzir quase que no automático, vários elementos se repetiam, mas que a
princípio eram invisíveis a mim. Depois dessa descoberta passei um longo período analisando produções
antigas, vendo o que eu buscava como referências, aquilo que me tocava, e acima de tudo, aquilo que se
repetia. Após novas crises de ansiedade e uma síndrome do impostor que se alojou no meu peito, comecei
a entender, novamente, o que me movia a produzir, pois eu tinha a ambição de fazer algo sensível, uma
obra que ao ser observada, fizesse o espectador sentir alguma coisa, qualquer coisa. Apesar das ideias
8
ambiciosas, cada vez que desenhava, pintava ou riscava o papel, me sentia menor; nada parecia bom,
mesmo com tanta insistência minha, afinal, tudo que eu sempre soube fazer foi transformar meus
sentimentos em imagens.
Com muitas tentativas e técnicas diferentes, fui tentando amadurecer meu trabalho, até chegar na
produção presente. E por mais que eu ainda erre, me frustre e quase sempre não consiga fazer
exatamente o que me proponho, acredito que alcancei maturidade o suficiente para ver o quanto eu
mudei – e também, a minha produção.
Finalmente cheguei ao momento que acabei me perguntando, por que o autorretrato sempre me cativou
tanto? Além de ser um mecanismo de defesa óbvio para mim, acredito que sempre tentei entender o seu
apelo. Afinal, como e por que o autorretrato dialoga comigo dessa forma se é algo tão íntimo e
aparentemente tão distante da minha realidade? Essa pesquisa traz, então, como questão principal
entender como se deu a presença do autorretrato na minha produção artística entre os anos de 2016 e
2021.

Para trabalhar esses questionamentos, meu objetivo geral é investigar a presença do autorretrato
durante esse período em minhas produções. E para atingi-lo tenho como objetivos específicos mapear a
minha produção artística desde as primeiras “aparições” do autorretrato, aproximadamente no início de
2016, até o ano de 2021; selecionar as obras por meio de uma curadoria1 – a atividade curatorial tem
diversas camadas a serem pensadas, trabalhadas e discutidas, porém nesta pesquisa o termo esteve
presente meramente para explicar a seleção feita por mim dentre os autorretratos produzidos no
espaço de tempo determinado; e por fim, analisar e estudar essas produções, criando debates sobre o
processo artístico e criativo.

Por esses motivos, esta pesquisa é uma análise contemporânea e interpessoal que busca relacionar
autorretrato e memória, criando uma conversação entre processo criativo e poética, tornando possível
o diálogo sobre o surgimento do “eu artista”; além de fomentar outras reflexões sobre o assunto
proposto e contribuindo tanto com o processo de formação do sujeito, e com o processo criativo, a
partir da relação entre autorretrato e memória.
Após determinar os objetivos desta pesquisa, optei por seguir a metodologia qualitativa cartográfica,
pois esta pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador não se fazendo de modo estabelecido,
nem por regras prontas. De acordo com Oliveira e Richter (2017)
No método cartográfico, não buscamos um resultado, uma
conclusão de fatos, e sim, pensamos o próprio processo de
pesquisa, em si: suas etapas, seus desvios, seus “erros’’, e tudo
que dali puder vir a se tornar potência para a pesquisa.
(OLIVEIRA e RICHTER, 2017, p. 30)
Ou seja, caracteriza-se por sua maior volatilidade e aptidão de adaptação ao processo da pesquisa
conforme os efeitos do processo de pesquisar sobre o objeto de pesquisa, o pesquisador e as
descobertas que podem vir a surgir.

1
Para maior aprofundamento sobre a questão da atividade curatorial, recomenda-se ler Mendonça Filho
(2020).
9

Autorretrato e seu
contexto histórico
10

A autorrepresentação sempre esteve presente em toda história da humanidade. Desde a pré-história,


o ser humano sente a necessidade de marcar a sua presença no mundo. Contudo, não precisamos ir tão
longe na linha do tempo para estudar o tema. Neste capítulo teremos uma contextualização do que é
autorretrato, passando por nomes como Van Gogh e Munch, fazendo uma breve reflexão sobre como
este se alterou com o passar do tempo.
De acordo com o referencial eurocêntrico – que fora veiculado em solo brasileiro durante a
colonização – a tradição do retrato existe desde a Antiguidade, porém tornou-se mais popular no
século XV, período este que é marcado pelo Renascimento, e início da Idade Moderna. A partir deste
período tornou-se comum entre a elite burguesa encomendar a artistas a produção de retrato, além
da nobreza que já detinha esse hábito; e tal tradição perdurou até a popularização da fotografia.
Contudo, por causa desse avanço tecnológico os artistas perceberam uma maior necessidade de se
reinventar, e por esse motivo ocorreu no final do século XIX uma grande movimentação artística,
modificando o rumo da história da arte ocidental.
O autorretrato, como o conhecemos, surgiu como uma derivação do retrato, – uma na qual,
justamente o artista retrata a si mesmo. Inicialmente tal linguagem também seguia estritamente uma
imagem análoga à do artista. Segundo Abreu (2011), o artista ao fazer um autorretrato reflete sobre si,
na construção de sua imagem, tornando imperativa a auto-análise. Então, desde o Renascimento aos
dias atuais inúmeros artistas pensando em autorretrato exploraram seus rostos.
No século XIX, com a popularização da fotografia, e a sua enorme adesão dentre a sociedade
européia, a pintura acabou sendo escanteada quando o objetivo era meramente retratar algo ou
alguém. Com isso os artistas começaram – e precisaram – mudar a maneira de se pensar arte. Como
consequência da revolução industrial e grandes avanços tecnológicos, tanto no que se referia à
fotografia quanto à produção das tintas, foi então possível libertar-se das amarras impostas pelas
academia de arte, visto que não havia mais sentido em manter apenas uma pintura ‘naturalista’
idealizada. Essa maior liberdade artística teve como consequência o surgimento de novos movimentos
artísticos – chamados de vanguardas. Por mais que estes movimentos tenham trazido um frescor para
as artes, com novas iconografias, o autorretrato insistia em se repetir dentre cada uma delas, o que
nos evidencia a universalidade, e particularidade do tema.
11
Um breve olhar sobre a Europa

Sabe-se que a arte nunca está isolada daquilo que acontece ao seu redor e do momento histórico em que
esta é criada, afinal o ser humano é um animal social antes de qualquer coisa. Por este motivo pode-se
afirmar que a arte é reflexo de seu tempo. Consequentemente os novos movimentos criados durante
esse período histórico refletiam aquilo que estes viviam, o que naquele momento no território Europeu era
a instabilidade. A inquietação desse período é decorrente de diversos aspectos em mudança e, assim, do
conflito entre paradigmas já estabelecidos e essas novidades. Alguns desses aspectos que podem ser
citados são o político, o econômico, o social, o filosófico e o artístico; percebe-se, dessa maneira, o
caráter generalizado de mudanças que passam a ser visíveis principalmente após as revoluções que
abrangem o continente europeu – e parte significativa de suas ex-colônias nas Américas – no ano de
1848, marcando com enorme turbulência a segunda metade do século XIX.
No campo artístico pode ser percebida essa inquietação da geração e a anunciação da modernidade que
viria com o século XX. Cada vez menos os artistas se conformam com as reproduções, com as
imposições e normas, com as regularidades e perfeições, e todas essas mudanças apresentam-se como
o estopim para a busca pela liberdade no campo das artes. A pintura talvez tenha sido uma das primeiras
a ganhar reconhecimento por seu brusco rompimento com o academicismo ainda no século XIX.
Durante esse período a humanidade também começou a vivenciar com ainda mais intensidade o
individual: os artistas também buscavam cada vez mais o reconhecimento de si – buscavam serem únicos.
Essa movimentação havia surgido desde o Iluminismo, porém com a ascensão do modelo econômico e
social capitalista, se tornou ainda mais evidente essas necessidades de individualidade e propriedade
privada.
Dentre os vários movimentos que poderiam ser citados, o Pós-Impressionismo não era de fato um
movimento. Este surgiu muito tempo após a morte daqueles pintores considerados pós-impressionistas,
decorrente de uma exposição organizada por Roger Fry (1866-1930). De acordo com Gompertz (2013),
Fry procurou um denominador comum entre os quatro artistas expostos: Seurat, Van Gogh, Cézanne e
Gauguin. Afinal, anteriormente os artistas Seurat e Van Gogh haviam sido denominados neo
impressionistas; Cézanne já havia sido, de fato, impressionista; e Gauguin tivera aderido o movimento
simbolista. Porém seus estilos pictóricos tinham se desenrolado de maneiras tão distintas que eles tinham
cada vez menos em comum.
Mesmo reconhecendo que este movimento artístico não fora em momento algum “vivo”, não podemos
negar a relevância do movimento “manufaturado”, nem dos artistas que nele foram atribuídos. Porém, ao
voltarmos para o assunto autorretrato, foi neste momento que surgiu Vincent Van Gogh.
12
Vincent Van Gogh (1853-1890), era o mais velho de seis filhos, e só começou a pintar em 1880, por uma
sugestão de seu irmão e constante correspondente, Theo. Van Gogh sentia seus sentimentos em uma
intensidade particular e por uma possível doença mental, este acabava se prejudicando em trabalhos
"tradicionais", já tendo trabalhado na empresa de arte de seu tio durante a juventude, fora professor
para meninos metodistas e quase entrou para a Escola de Teologia de Amsterdã, porém se recusou a
fazer o teste de latim.
Uma forte particularidade de Van Gogh era sua ambição como artista, este dizia que ao olharem seus
quadros ele desejava que o dissessem "este homem sente profundamente", e assim o fez. Como
consequência deste anseio, Van Gogh é frequentemente confundido por expressionista até por ter várias
similaridades com tal movimento.
Sobre autorretrato, Van Gogh apresenta uma extensa produção, em muitos casos era por falta de
dinheiro para pagar diferentes modelos; mas não pode-se negligenciar a sensibilidade dessas obras, de
acordo com Maia (2018):

Em cada autorretrato ele confirmava a necessidade contínua de exploração de


aspectos de seu ego, numa busca incessante da sua própria identidade. Sua
tela era não apenas o espelho no qual se interrogava, mas também um
laboratório, um terreno de experiências, no qual adotava técnicas em função
dos sentimentos que vivenciava. Cada vez que Vincent tentava uma nova
técnica, era no seu próprio rosto que o fazia. Seus autorretratos serviam-lhe
para aperfeiçoar dados adquiridos ou experiências pessoais, principalmente
em se tratando do olhar, na maior parte das vezes perdido no vazio e
angustiado. (MAIA, 2018, p. 22)

Van Gogh apresenta uma pintura muito própria, com uma poética individual inconfundível. Suas
distorções de cores e visão artística única nos mostra um artista e homem sensível marginalizado pela
sociedade.

Autorretrato com a Orelha Cortada. 1889


Vincent Van Gogh, Óleo sobre Tela, 60x49cm
13

Acredito ser relevante para o entendimento deste trabalho falarmos sobre o Expressionismo, que teve
grande força na Alemanha, e de acordo com Ferraz (2015) a influência do Impressionismo deu o tom ao
movimento de libertação do Romantismo nas artes plásticas. Além de que as descobertas feitas pelos
impressionistas sobre a luz e cor como forma de expressão, além da libertação da representação naturalista
do tema tratado - rejeitando a verossimilhança - contando com movimentos gestuais mais livres para o artista
trouxeram novos ares para o movimento artístico alemão. Juntamente com as referências pós-
impressionistas de Gauguin e Van Gogh, foram as influências definitivas para aqueles que se aventuravam no
novo movimento.
Como maior referência expressionista temos o pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), sendo muitas
vezes lembrado por sua obra O grito. Munch viveu uma vida de muitos infortúnios, dentre eles a morte de sua
mãe aos 5 anos de idade, e após alguns anos a irmã mais velha, Sophie, que adoeceu e pereceu devido à
tuberculose. Nos anos seguintes ainda teve que enfrentar o falecimento do pai devido a um ataque cardíaco e
vivenciar o internamento de sua outra irmã devido à esquizofrenia.
Todos esses acontecimentos acabaram por influenciar a extensão de sua obra, que refletia uma enorme
angústia e solidão que sentia. De acordo com Bortulucce (2008) Munch utilizou seus conflitos interiores como
matéria prima de sua arte, e incluiu a representação de si mesmo em muitas de suas pinturas. Um bom
exemplo disto é a obra Autorretrato com cigarro, nesta produção pode-se perceber a construção da imagem
de outsider, a figura principal nos olha iluminada pela parte inferior da pintura, e ainda assim o corpo desta
figura se mistura com o fundo de maneira brusca, na qual apenas a mão e o rosto podem ser vistos de forma
clara. O olhar se inclina de forma sutil para baixo, e mesmo que a presença do artista esteja aparentemente
próxima, a nuvem de fumaça nos afasta da cena; além da postura defensiva, à possível entrada do espectador
– nós – na cena.
Além de Van Gogh e Munch, poderia ter falado aqui
de diversos outros artistas, como Tarsila do
Amaral, Anita Malfatti, Frida Kahlo, Jenny Saville,
entre outros. Porém estes que nos aprofundamos
influenciaram de forma direta minha produção
pessoal e percepção artística, e por isso nos
detivemos neles uma maior atenção. Além disso,
pode-se perceber que por mais que estes
estivessem relativamente próximos na ‘linha do
tempo’, já se diferem em inúmeras características.
No capítulo seguinte levaremos essa discussão
além, discorrendo sobre as definições e limites
entre autorretrato e autorrepresentação.

Autorretrato com cigarro,


Edvard Munch, Óleo sobre tela
48 cm X 63 cm
14

Quando me percebi estampada em


diversas superfícies
15
"Agora que existem computadores para quase todo o tipo de procura de soluções intelectuais – volto-me
então para o meu rico nada interior. E grito: eu sinto, eu sofro, eu me alegro, eu me comovo. Só o meu
enigma me interessa. Mais que tudo, me busco no meu grande vazio."
Um sopro de vida, Clarice Lispector (2020, p. 48)

Em princípio não percebia minha produção como autorretrato, pois como não tinha conhecimento
técnico de desenho, não era capaz de fazer uma representação fidedigna de mim. Por mais que fossem
imagens muito próximas de mim, não encaixavam na descrição de autorretrato que tinha em mente, que
era ainda muito engessada a uma noção de um desenho ‘naturalista’ do retratado. Com o tempo vim a
entender que não era isso que definia e delimitava a linguagem.
Diferentes pesquisadores tratam desse assunto, como Canton (2002, p. 22), quando nos diz que “O auto-
retrato é a afirmação do artista em sua condição única de criador de sua própria imagem.”
A partir dessa afirmação pode-se perceber que atualmente a definição e ideia de autorretrato é muito
mais ampla do que um dia já foi.
A consequência imediata para a minha produção artística é que uma parte significativa dela, desde 2016,
poderia ser entendida como uma extensa série de autorretratos.
O autorretrato ganhou uma nova amplitude a partir dos movimentos artísticos modernos; e por isso, de
acordo com Hall (2005), pode-se dizer que o autorretrato não se configura apenas como uma
representação de si, mas também como uma forma de representação da própria identidade. É possível
perceber como esta linguagem artística aparece, atualmente, com o intuito de reafirmar o indivíduo
Também sendo uma forma mais ‘simples’ de expressão – afinal, o que nos é mais familiar do que nós
mesmos?
Partindo desse questionamento e da realização do que poderia ser um autorretrato – ou no mínimo, uma
autorrepresentação – desenvolvi numa produção extensa, e em muitos momentos até mesmo
compulsiva. Como primeiras referências no tema, tive Van Gogh e Munch, que conheci em sala de aula,
durante o próprio Ensino Médio. As distorções na anatomia, as cores intensas e a forte expressividade de
ambos os artistas se destacaram para mim dentre os demais: eu queria ser capaz de reproduzir, sozinha,
o sentimento que tinha ao olhar para aquelas obras – e foi até cômico, que as minhas maiores
referências artísticas naquele momento, tinham certo ‘problema’ com a compulsividade no momento da
produção.
Depois fui conhecendo novos artistas, e sempre me chamava a atenção as diversas maneiras de se
representar.
Outro nome que acabou me marcando muito naquele momento foi Anita Malfatti. Especialmente porque
teve como provação enfrentar as duras críticas feitas por Monteiro Lobato à sua exposição em 1917.
Recordo-me de me apiedar por ela, e por tanto temer a rejeição, me ver refletida em sua imagem em
diversos momentos de insegurança.
Esses artistas serviram de norte para meus trabalhos iniciais, na escolha de cores, e também na
petulância de ignorar a necessidade de um estudo sobre os fundamentos do desenho. A partir disso,
passei a explorar todas as possibilidades de autorrepresentação que conseguia conceber, porém,
naturalmente fui me voltando para o retrato, pois a face sempre me fora mais fascinante. Dessa forma,
quando Abreu (2011) afirma que o artista ao fazer um autorretrato reflete sobre si, na construção de sua
imagem, torna-se imperativa a auto-análise, tudo pareceu corroborar com minha produção.
16
À distância posso perceber que durante um longo período de tempo eu reproduzia uma imagem
idealizada de mim mesma, já que, vistos de hoje aqueles desenhos dificilmente refletem meus traços e
expressões. Contudo essa ‘idealização’ não estava sempre trabalhando em favor de um embelezamento
estético, pois em diversos momentos enfatizava ‘defeitos’ em favor de um sentimento ou sensação – o
que também era consequência de uma imagem pessoal distorcida, que dificultava o entendimento das
minhas feições. Abreu também fala sobre isso quando diz:

Através do autorretrato o artista se apresenta, se exterioriza, ele se diz presente no seu mundo, que
pode ou não, dependendo de sua poética, coincidir ou ter relação com o mundo real e concreto. O artista
materializa a sua identidade no autorretrato, revela o que imagina ser, o que deseja e pretende ser.
Portanto, a autorrepresentação envolve tomar decisões sobre como quer ser visto, cabe aqui a
pergunta: quanto existe de invenção nesse processo de elaboração de si? (ABREU, 2011, p. 1)

“Quanto existe de invenção nesse processo de elaboração de si?”

A partir dessa indagação, vi-me revisitando essas imagens que havia feito há tanto tempo. E por mais
que eu tenha mudado e amadurecido ao longo desses seis anos, poucos daqueles sentimentos realmente
me deixaram. Estes autorretratos tornaram-se um diário visual de minhas inseguranças, medos e até
mesmo dos traumas que carrego. Essas imagens carregam consigo memórias e uma reafirmação
acidental do eu, bem explicado por Ramos (2013):

Vimos como é possível o retrato afirmar, pela forma como se


derrama na continuidade da vida, a individualidade do homem. Por
conseguinte, temos que aceitar a ideia de que o retrato pode
deixar transparecer a visibilidade do passado na imagem
presente do homem. (RAMOS, 2013, p. 5)

Com isso, Ramos nos traz de volta para a fala de Hall (2005) no qual afirma que o autorretrato, na
atualidade, é antes de tudo uma reafirmação do artista como indivíduo, ele abre margem para um novo
entendimento do que pode ser um autorretrato. Afinal, quando este ‘leque’ é expandido para além de
uma representação de si, pois ao se referir à identidade, nos coloca além da imagem semelhante ao
artista.
Foi mais ou menos nesse momento de entendimento do meu processo criativo que pesquisei e estudei
sobre o trabalho de Frida Kahlo. Conhecia a persona, sabia que pintava e, provavelmente, já havia me
questionado a razão da monocelha, porém não conhecia a artista Frida Kahlo. Quando vi a extensão de
sua produção e no momento que vi seu rosto repetidas vezes em seus quadros, me senti vista. Kahlo
afirmou que pintava a si mesma porque era sozinha e porque era o assunto que melhor conhecia; nesse
momento Frida não só se afirma artista, como também se declara tema a ser trabalhado.
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Foi nesse período de inúmeros aprendizados e de grande interesse no assunto que tive consciência de que
existe um processo criativo. Por mais que a criatividade seja uma habilidade, como qualquer outra, por
muito tempo acreditei que era um dom, algo que nasce com você, e que eu – particularmente – não
carregava isso dentro de mim. Porém, fui percebendo um padrão dentre meus “picos de criatividade” – o
que, na verdade, expunha que eu tinha uma rotina criativa. O processo criativo é um procedimento
individual, que opera entre consciente e inconsciente, Jung (2011) diz que:

O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do
arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo, a formação da
imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando a cada
um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo,
lhe seria negado. (JUNG, 2011, p. 83)

Para tornar brevemente compreensível todo o meu processo criativo, desde a ideia primordial até a
obra finalizada é preciso entender o primeiro passo. Como mencionado anteriormente, o autorretrato é
uma maneira de se autoanalisar, e foi com essa intenção que eu comecei – mesmo que
inconscientemente – a produzir autorretratos. Por um gatilho externo, que não me recordo qual, resgatei
memórias há muito guardadas, nas quais colocaram em perspectiva as poucas certezas que tinha de
mim; ao ocupar o lugar de vítima, encontrei-me encurralada, no qual, o único caminho à minha frente era
um lápis e um papel. Retomei as referências artísticas que já admirava, e busquei exatamente o que
admirava nelas; era a capacidade de cada uma de ‘exorcizar seus demônios’ por meio da arte, e decidi
tentar. Em relação a essa colocação, Ostrower afirma que:

Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição. [...] toda experiência possível ao


indivíduo, também a racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos. As diversas
opções e decisões que surgem no trabalho e determinam a configuração em vias de ser criada,
não se reduzem a operações dirigidas pelo conhecimento consciente. Intuitivos, esses processos
se tornam conscientes na medida em que são expressos, isto é, na medida em que lhes damos
uma forma. Entretanto, mesmo que a sua elaboração permaneça em níveis subconscientes, os
processos criativos teriam que referir-se à consciência dos homens, pois só assim poderiam ser
indagados a respeito dos possíveis significados que existem no ato criador. Entende-se que a
própria consciência nunca é algo acabado ou definitivo. Ela vai se formando no exercício de si
mesma, num desenvolvimento dinâmico em que o homem, procurando sobreviver, e agindo, ao
transformar a natureza se transforma também. O homem não somente percebe as
transformações como sobretudo nelas se percebe. (OSTROWER, 1993, p. 10)
18
Corroborando com o que Ostrower diz, pode-se pensar nas inúmeras questões da pintura como o
próprio objeto de estudo. Jacinto (2013, p. 49) levanta justamente essa discussão ao dizer que “a
qualidade de um desenho, de uma pintura, depende em muito da quantidade e extensão de invisível que
instauram”, ou seja, da mesma forma que Ostrower afirma que parte do processo criativo é
inconsciente, Jacinto nos diz que a maior qualidade que a obra pode ter é aquilo que é invisível, e que por
isso é também – consequentemente – inconsciente. Isto que dizer que: ao estarmos inseridos no
processo criativo, irão existir coisas que fugirão do controle e consciente, e na obra finalizada, aquilo que
não é – de fato – dito tende a transparecer, ainda que se mantenha nas entrelinhas.
A partir disso, podemos perceber a amplitude do termo ‘autorretrato’, e tudo aquilo que ele abrange.
Além de ser uma produção que leva consigo muito da memória e vivências do artista. Com isso vi a
necessidade da reflexão sobre a influência da memória no processo criativo.
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Lembranças, e tudo que fiz a partir delas

Quais partes de mim eu estou disposta a mostrar? Qual é a imagem que eu quero usar para me
representar? Quais são os meus limites entre privado e público?

Esses foram questionamentos que surgiram ao longo dessa pesquisa, e também durante a produção
dos autorretratos aqui apresentados. Afinal, mesmo que ao criá-las, eu nunca tenha posto um filtro nas
obras e no imaginário que elas carregam, ao colocar em palavras sobre o que cada uma aborda, estas
ganham uma nova dimensão e um novo comprometimento com o 'público'.
No momento que decidi desenhar - e posteriormente pintar - aquilo que me afligia, acabei expondo
dentro do meu imaginário experiências - memórias - que não havia colocado sequer em palavras; na
esperança de possivelmente ressignificá-las; por isso pude perceber que o imaginário das minhas
produções sempre esteve centrado na memória, e na reflexão acerca disso. Segundo Gusdorf (1951
p.256, apud HERVOT, 2013, p. 104) a memória é “uma espécie de retrato do que somos, composto com as
características do que éramos”. Partindo desse princípio, então, as memórias não representam
acontecimentos que cruzaram nossa vida, mas também representam aquilo que somos, e o que já fomos.
Por conta disso, é necessário refletir sobre como a memória interfere direta, e indiretamente, nas
produções artísticas. Canton (2000, p. 52) fala que “a memória corporal torna-se um bem valioso e
incomensurável de riquezas afetivas que o artista desnuda e oferece ao espectador com a cumplicidade
e a intimidade de quem abre um diário”. Então a partir do momento que afirmamos que o processo
criativo é em sua parte algo inconsciente, pode-se pensar sobre como nossas memórias o afetam.

Nesse sentido Jardim (2017) discorre que em diversos momentos aquilo que foi vivido precisa ser
escavado para, então, revelar camadas mais profundas, assim dizendo que tem que ser processado
para então ser transmutado, Jardim também comenta que ao expor obras que advêm de sua vida
pessoal, aquilo que é privado se torna público. Entretanto, temos que levar em consideração que a obra
tem o poder de transcender as delimitações da experiência do artista - do particular - e ser
ressignificado pelo espectador.
A partir disso precisamos pensar sobre, como é a nossa relação com o particular vindo à público.
Porque, por mais que eu, como artista, faça uma obra baseada na memória e atribua a esta um
significado específico, o espectador pode ao observá-la ressignificar a obra a partir de suas próprias
experiências. Precisa-se ‘desapegar’ o suficiente da produção, para permitir que esta faça o seu papel
como obra. Mesmo assim, houve uma necessidade interna de parar e analisar os autorretratos
produzidos até aqui, e é isso que iremos abordar no próximo capítulo.
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Autorretratos
que fiz e o que
vim pensar
deles
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A curadoria

A partir das reflexões levantadas sobre autorretrato, processo criativo e memória, vi a necessidade de
revisitar minhas produções; desde aquelas que iniciaram tudo, em 2016, até o final do ano de 2021. Por
meio delas consegui delimitar um panorama dentro da série meus autorretratos, relativo às percepções
de autoimagem e às vivências do período que foram produzidas.
Levando tudo isso em consideração, selecionei obras dentro do recorte temporal dos anos de 2016 a
2021; 2016 pois foi o começo de minha produção artística, mesmo que inicialmente longe da academia,
além de fator determinante para o entendimento das obras atuais, até o final dessa pesquisa. Após esse
primeiro passo surgiu a dúvida: como seria feita essa curadoria? Afinal, não havia condições de inserir
todas as obras que tinha em mãos. Então, precisava selecionar quais obras ficariam, e o porquê.
Após certa reflexão cheguei à conclusão que era necessário definir um número total de imagens para
serem apresentadas, e decidi então dividir o número de obras igualmente entre os anos, a fim de
oferecer um insight de maneira equivalente por cada etapa do processo, sem criar uma hierarquia
dentre as produções e seus processos. Consultei cadernos e pastas antigas que encontrei. Como
primeira forma de eliminação, selecionava apenas aqueles trabalhos que poderiam ser considerados um
autorretrato - por mais que alguns não tivesse realmente um rosto diretamente representado. Após esse
primeiro momento as obras seguintes à serem eliminadas foram aquelas que eu não gostava do
resultado, seja por algo que veio a dar errado, por estarem distante daquilo que havia idealizado
inicialmente - tentando sempre respeitar as limitações técnicas do momento em que a obra fora
realizada. Também não limitei o meio, independente do material, papel ou finalização, se a produção
conseguisse representar de forma bem-sucedida a mensagem, esta seria selecionada.
22

2016
23
Durante o ano de 2016, a maioria das minhas produções eram relacionadas ao estresse vivido pela
conclusão do Ensino Médio. A expectativa pela nota do Enem, além da incerteza do ano que se seguiria
influenciou de forma direta naquilo que desenhava, afetando até mesmo a seleção da paleta de cores da
maioria das obras, além das composições barulhentas que conversavam com o caos que se passava em
minha própria cabeça no momento.
Além da escolha estética de trabalhar com as cores vermelho e preto, eu pensava na questão prática,
pois sofria com o péssimo hábito de desenhar em classe, e por isso era mais fácil utilizar apenas duas
cores de lápis de cor e marcadores, do que dispor de diversas cores. Recordo-me que na época tive a
pretensão e ousadia de pensar que eu estava na minha fase “preto e vermelho”, do mesmo modo que
Picasso teve sua fase azul.
Durante o ano tive inúmeras crises de ansiedade, e por um longo período de tempo tive absoluta certeza
que seria assim a minha vida inteira. Desenhar era uma válvula de escape enorme, e isso refletia
diretamente na minha produção. As texturas marcadas, as palavras, a repetição de cores; tudo isso
refletia um descompasso interno.
Apesar dos inúmeros problemas enfrentados naquele momento, foi um período de descobertas, pois foi
ali que consegui dar um primeiro passo para um possível encaminhamento no desenvolvimento de uma
poética. E esses momentos tanto serviam como válvula de escape, como uma luz no fim do túnel, a partir
desse período acreditei estar no caminho certo para num futuro distante me tornar “alguém”.
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Imagem 1
Invisível
18/07/2016
Acrílica sobre papel

Essa pintura surgiu durante algumas reflexões sobre o meu ‘valor’, a sensação que tive por muito tempo é
a de que eu seria invisível aos olhos dos outros. Também foi minha primeira experiência com tinta acrílica,
e acho que muito contribuiu para a construção da imagem, mesmo que as pinceladas marcadas nas
figuras em ocre fossem incidentais, funcionam ao criar maior textura e contraste com a figura central. É
possível vermos ‘problemas’ no trabalho – majoritariamente por falta de cuidado – e o que mais
incomoda visualmente, é a sujeira na parte branca.
Imagem 2 25
Caos
30/11/2016
Lápis de cor, caneta
nanquim e marcador
sobre papel

Esse desenho corresponde ao ápice da minha ansiedade; as palavras vinham em um turbilhão, me


desnorteando. Além de ter sido parte fundamental na ‘série’ que produzi na época em vermelho e preto.
O fundo preto completamente chapado destaca as palavras, e o formato circular que elas seguem cria
uma espiral, representativa da sensação de entrar em ‘espiral’, em que perde-se a consciência entre
inúmeros pensamentos intrusivos.
26

Imagem 3
Abraço
05/12/2016
Caneta nanquim e
marcador sobre
papel

Esse desenho surgiu a partir de uma crise de ansiedade, no qual eu me sentia extremamente sufocada. Eu
nunca decidi o que realmente era essa figura que está mais atrás, em alguns momentos era a
personificação da minha ansiedade, em outros representava aquele que me agrediu durante a infância.
Produzi uma quantidade significativa de pinturas e desenhos com essa figura, e ela constantemente
mudava de ‘significado’, porém carreguei-a comigo por bastante tempo. Os fortes contrastes entre
preto e vermelho tentavam representar o desespero daquele abraço indesejado – independente de quem
fosse.
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017
2
28
2017 foi um período de mudanças, passei um trimestre morando na Nova Zelândia com o intuito de
aprimorar minha proficiência em inglês, e por mais que tenha sido um período incrível com memórias e
experiências que levarei para a vida toda, em diversos momentos eu me senti incrivelmente sozinha. Em
decorrência do fuso horário de 16 horas, o contato com família, namorado e amigos era escasso, e em
meio a inúmeras piadas de que eu “vivia” no futuro, eu precisei aprender a lidar com a minha própria
companhia, coisa que nunca havia precisado fazer por tanto tempo. Além do amadurecimento óbvio que
todos temos quando temos que “nos virar” em outro país, eu aprendi a conviver comigo.
Também foi o período em que recebi o primeiro ‘não’ na minha vida, quando não consegui passar em
Artes Visuais pelo ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). Por mais que sempre tenha sido desesperada
e ansiosa, um pedaço de mim sempre acreditava que no final as coisas dariam certo, e nesse momento
ao não ter funcionado exatamente como eu havia planejado me desestabilizou um pouco. Apesar de
saber que poderia realizar essa prova quantas vezes eu quisesse, me estabeleceram o “limite” de que se
eu não passasse em Artes naquele ano, eu teria que fazer Pedagogia, ou qualquer outro curso “de
verdade” que eu conseguisse passar.
Como consequência, isso virou um fardo em minhas costas, eu sentia a necessidade de me provar como
aluna, vestibulanda e artista. Eu precisava defender a minha permanência no curso que eu sequer havia
entrado, e equilibrar todas as responsabilidades com a necessidade latente de produzir. Durante o ano
me tolhi do hábito de desenhar em classe, e me dediquei aos estudos como jamais havia feito em minha
vida, porém a cada momento de respiro, por menor e mais breve que fosse, eu estava debruçada sobre
meu fiel caderno de desenho. Novamente cada momento de desespero e angústia acabava transposto
para aquelas folhas, contudo, com a constante prática minhas técnicas foram se aprimorando, além de
eu estar mais confortável e aberta com experimentações. Por mais que eu ainda explorasse com
bastante frequência as figuras em preto e vermelho, eu estava extrapolando essas barreiras e tentando
ir além.
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Imagem 4
Me sentindo azul
26/07/2017
Caneta nanquim,
marcador e lápis de cor
sobre papel

A expressão “feeling blue” foi o que me inspirou para produzir esse desenho. Pela associação da cor azul
com o sentimento de tristeza, comecei a explorar com mais frequência a cor e suas tonalidades, apesar
de ainda não ter abandonado o vermelho. Nesse momento ainda tinha pouca noção de um desenho mais
técnico, e trabalhava exclusivamente com os conhecimentos adquiridos empiricamente. Além de tudo,
gostava de explorar diferentes texturas e como elas poderiam dialogar com a figura principal. Nesse
momento também já estava conseguindo trazer figuras mais expressivas, mesmo que ainda tivesse um
longo caminho a trilhar.
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Imagem 5
Alguns sentimentos ruins
19/09/2017
Caneta hidrográfica,
marcador e lápis de cor
sobre papel

Novamente me encontrava trabalhando com fundos inteiramente pretos, com nenhuma profundidade,
além de trazer as cores que já me eram conhecidas – azul e vermelho. Especificamente nesse desenho, é
possível perceber uma leve mancha arroxeada no braço do lado direito, representando o hábito que havia
desenvolvido; me beliscava constantemente para tentar me concentrar naquilo que era real e não me
perder nas crises de ansiedade, o que resultou em um hematoma roxo que perdurou por meses.
A figura estar completamente delineada de azul tinha a intenção de representar a tristeza – o quão
deprimida eu me sentia – e o vermelho, era a ansiedade, por sempre ter sido uma cor particularmente
inquietante para mim. Passei um tempo persistindo nessa paleta, e até hoje são cores recorrentes em
meus trabalhos, mas neste momento ainda faltava maturidade na forma que eram trabalhadas. Há
também uma breve tentativa de adicionar profundidade ao desenho, trabalhando com luz e sombra – na
verdade, durante todo 2017, tentei adicionar certo realismo na figura que desenhava, porém com pouco
sucesso.
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Imagem 6
Doença, insanidade e
morte
11/12/2017
Giz pastel seco, caneta
nanquim e lápis de cor
sobre papel

Doença, insanidade e morte surgiu ao ler a frase Munch que dizia “Disease, insanity and death were the
dark angels that kept watch over my cradle, and since then they have followed me throughout my life”,
para ser sincera, pouco sei sobre a veracidade de sua autoria, porém ela me marcou o suficiente para
produzir algo pensando nisso. Trabalhei com giz pastel seco, e pouco me satisfez a bagunça que fiz, mas
lembro de ter ficado orgulhosa do resultado. Naquele momento senti ter feito algo sobre um problema
real, não as ‘besteiras’ que me afligiam, e por mais que tenha me inserido no desenho, não era apenas
sobre mim.
Passei bastante tempo acreditando que não era arte os autorretratos que fazia. Por que por mais que
me fizessem bem, pouco importava para aqueles que estavam os observando, e acreditava que seu valor
estava ligado à sua ‘relevância’, e para quem importava aquilo que eu sentia?
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018
2
33
Depois de um longo período de aflição no que se referia ao futuro, eu finalmente tinha uma resposta
concreta, eu iria cursar Artes Visuais!

Eu finalmente consegui!

2018 foi um ano que eu iniciei completamente animada, mal podia me conter em mim, e por conta disso,
produzi menos. Por bastante tempo carreguei comigo o estigma do artista triste, genial e
completamente desfalcado da sociedade em que vivia; e acredito que em muitos momentos me esforcei
ativamente para ser um pouquinho assim. Por ter depositado inúmeras expectativas na faculdade,
acabei me decepcionando quando não foi exatamente aquilo que idealizava, além de perceber que o que
me ‘destacava’, e boa parte do meu senso de identidade, era característica comum dentre meus colegas
de classe. O choque foi grande, mas por ter enfrentado muitos questionamentos de terceiros se artes
realmente era o caminho, me senti obrigada a continuar.
Dentre inúmeras questões, o que mais me causava insegurança era a minha falta de conhecimento
técnico; particularmente no momento de pôr em prática aquilo que tinha em mente, e muito me frustrava
ao ter a impressão de que só eu estava passando por aquelas dificuldades. Por mais que eu já tivesse
evoluído mundos inteiro desde meu ponto inicial, o sentimento que restava era que ainda estava muito
longe de um padrão ‘aceitável’; o que não colaborou para este sentimento foi como se deu algumas
disciplinas práticas cursadas.
Após esses primeiros embates internos, fui me adaptando, e as coisas melhoraram com o passar do
ano, até que me ‘encontrei’ em pintura. Já brincava com aquarela, por mais que não tivesse nenhum
conhecimento de como se usar o material ‘corretamente’, já tinha algum aprendizado empírico, o que
acabou me auxiliando a entender o funcionamento da tinta mais rapidamente. Aos poucos fui me
entendendo com o novo ambiente que era a universidade, e entendendo quem eu era além dele, e
felizmente estava ficando cada vez mais feliz naquele ambiente.
34

Imagem 7
Sem título
13/03/2018
Lápis de cor,
marcador e caneta
nanquim sobre papel

O ano inteiro foi um grande ponto de virada no amadurecimento da minha produção, porém ainda era
possível ver os vários elementos que se repetiam. A figura preta, as cores, o desenho ainda muito preso à
linha, tudo era muito próximo àqueles desenhos iniciais. Contudo acredito ser perceptível uma nova
mudança de perspectiva na abordagem de toda a ilustração, apesar de que novamente, não havia
decidido o que a figura personificava.
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Imagem 8
Toque
19/04/2018
Aquarela, marcador,
caneta nanquim e lápis
de cor sobre papel

A partir daqui é possível ver mudanças mais significativas entre o que foi produzido antes e depois de
entrar na universidade; ganhei novas referências, aprendizados e fui muito inspirada por diversos
colegas de classe. Desse momento em diante, tive coragem de experimentar dentro daquilo que me
propunha a fazer. Ainda não havia conseguido me libertar totalmente da linha dentro da pintura, mas
estava lentamente me direcionando para conseguir.
Pode-se perceber que a paleta de cores ainda é a mesma, porém trabalhada com um pouco mais de
maturidade. Além de uma percepção um pouco melhor da anatomia do rosto, apesar dos erros
presentes, e uma construção inicial para aquilo que podemos nomear de ‘traço’ do artista. As emoções
ainda são pouco claras no rosto da figura, porém considerando o todo da imagem, podemos inferir a
mensagem que tem a intenção de passar.
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Imagem 9
Sem título
12/11/2018
Aquarela sobre papel

Essa foi uma das primeiras pinturas figurativas a fazer diretamente com aquarela. Lembro-me vividamente
de ficar nervosa com a falta do controle, até aquele momento utilizava do artifício pintura, unicamente, como
meio de colorir o desenho e não como linguagem artística propriamente. E seguia insistindo nos mesmos tons
de azul e vermelho, extremamente saturados. Por mais que tenha sido um processo estressante, foi uma
pintura que o resultado me satisfez, pois ao observá-la finalizada podia ver que havia uma expressividade
diferente – nova – de qualquer trabalho antigo.
Costumo brincar que tenho duas séries de autorretratos diferentes, os intencionais e os acidentais. Os
intencionais foram aqueles feitos conscientemente, em que eu tinha plena noção do que queria como
resultado, e assim o fiz. Os acidentais, por sua vez, surgem ao acaso, geralmente em momentos de distração,
quando me encontro produzindo apenas pelo prazer de produzir, e meu rosto insiste em emergir no papel –
normalmente por culpa da memória muscular.
Esta pintura faz parte do segundo grupo de autorretratos, aqueles que são felizes acidentes. Aqueles que
geralmente revelam algo que nem eu percebi que estava sentindo. E ao observar ela hoje, depois de todo esse
tempo, consigo notar como ela representava, com clareza, minha ansiedade.
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“Por enquanto, não posso nem mesmo ver um pincel, isto me


deixa nervoso”
Cartas a Théo, Vincent Van Gogh (2015, p. 74)

Durante o início do ano de 2019 eu acreditava que estava com um caminho bem definido dentro da minha
produção. Tinha feito grandes avanços técnicos, e tinha absoluta certeza que tinha resolvido
completamente a questão da poética.
Entretanto, comecei a ter a sensação de que não estava evoluindo na maturidade das produções. Tudo
que fazia, ainda tinha uma influência muito forte da menina insegura de 2016. E foi com essa incerteza do
caminho que estava tomando que adentrei um grande bloqueio criativo.
Tudo que tentava pintar parecia um plágio de mim mesma. Coincidiu que naquele momento estava
cursando o 4º período do curso, e mais especificamente a disciplina de Pintura 3, na qual estávamos
discutindo e investigando justamente sobre nossa poética. Então, Pintura que desde o início era minha
disciplina favorita, se tornou a mais desgastante emocionalmente naquele momento.
Apesar de tudo, foi um momento extremamente enriquecedor para meu repertório artístico. Por conta
das novas inseguranças com a repetição, me permiti explorar novos materiais, como guache e giz pastel
oleoso, que mesmo que fossem de fácil acesso anteriormente, nunca haviam despertado muito interesse
em mim, pois procurava sempre me manter na zona de conforto que a aquarela representava para mim.
Após muita incerteza, acredito que comecei a me entender com o papel em branco novamente. Mesmo
que ainda não estivesse completamente resolvida com minha produção, eu tinha a impressão de estar um
pouco mais certa do que estava fazendo. Agora tinha um rumo.
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Imagem 10
Sem título
05/06/2019
Acrílica sobre tela

Essa tela marca um novo momento na minha produção, com maior conhecimento técnico dos materiais utilizados, e
maior noção do que queria alcançar. Nesse momento dediquei-me inteiramente à pintura, pois estava conseguindo
alcançar resultados que jamais havia imaginado. No período que a tela foi feita, estava cursando a disciplina de
Pintura 2, e nela estávamos trabalhando com tinta acrílica, razão pela qual havia começado a me dedicar à técnica.
Por ter adquirido novos conhecimentos, tinha segurança para sair da zona de conforto sem tanto receio, e nessa
tela decidi explorar isso. A pele foi trabalhada utilizando as cores primárias para dar noção de luz e sombra, além de
ter dado um efeito mais ‘orgânico’ em suas manchas. Entretanto, no fundo optei por pinceladas mais ‘duras’ quase
que geométricas, criando um forte contraste entre figura e fundo. A expressão, contudo, por mais que tenha
melhorado durante todo esse percurso, ainda se encontrava ‘travada’, e em diversos momentos não conseguia
materializar toda a expressividade que queria.
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Imagem 11
Sem título
01/08/2019
Aquarela e lápis de cor
sobre papel

Estava finalmente livre da caneta nanquim para traçar contornos na hora de pintar com aquarela, porém
ainda me escorava na possibilidade de enfatizar linhas e sombras com o lápis de cor; exatamente como
aparece nessa pintura. Porém, aos poucos, vinha ganhando, cada vez mais, autonomia com o material
para me ‘fazer entender’. Nessa aquarela podemos perceber a verticalização das linhas no fundo, que
contrastam com a composição horizontal; além dessas duas ‘retas’ na pintura, pode-se ver as marcas do
lápis de cor, funcionando quase como pinceladas, nas quais apresentam formas curvas, criando outro
ponto de tensão em nossa visão.
A pintura, inicialmente, não carregava nenhum significado específico – nem buscava representar algo –
era apenas uma mudança de composição como forma de prática. Contudo, mesmo que fosse eu na
imagem de referência, jamais poderia prever a maneira que a pintura se ‘revelou’. Inconscientemente, se
tornou uma confissão sobre a apatia que sentia, e os olhos que eram uma dificuldade, pareciam revelar
algo – apesar de não saber exatamente o quê.
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Imagem 12

28/10/2019
Pastel oleoso sobre
papel

Passei a usar pastel oleoso, após a síndrome do impostor se instalar em mim. De repente, comecei a me sentir
insegura com a aquarela, e parecia que eu estava fazendo constantemente ‘mais do mesmo’. Tinha pouca experiência
e nenhum refinamento no material, o que se tornou proveitoso, pois permitia que eu experimentasse com mais
liberdade. Nessa produção, acabei voltando para a paleta que havia trabalhado tantas vezes, criando um contraste
brusco entre o vermelho e o azul – entre o quente e o frio. Como contraposição, há a figura mais à frente, que tem
cores mais suaves, linhas pouco definidas, quase desfocada. Era uma imagem nova, um material novo, uma
abordagem nova, entretanto, naquele momento não conseguia enxergar isso; sentia-me presa dentro da minha
própria cabeça, fadada a repetir os mesmos medos, inseguranças e traumas no papel.
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Em 2020 comecei com um bom ritmo de trabalho, na hora de pintar, era algo previamente pensado e
sentia estar evoluindo, até que a quarentena começou.
Agora, por novas incertezas e nova organização social, ao ficar em casa eu variava entre ler e pintar.
Como consequência de toda reflexão - e ouso dizer reformulação - da minha forma de produzir, trouxe
novos resultados para minhas produções, trabalhando com novas composições, abordagens diferentes
para os materiais que eu já utilizava.
Além da produção – novamente – compulsiva, devido ao ócio, estava caminhando entre a linha tênue de
incerteza em relação à qualidade daquilo que estava fazendo, ao mesmo tempo que era necessário para
manter a sanidade naqueles momentos de lockdown.
Apesar de tudo, foi um ano relativamente bom. Mesmo com toda a insegurança da situação, encontrei
conforto dentro do círculo familiar, e dentro de mim. Foi, principalmente, um momento de respiro do ‘eu
artista’ com o mundo exterior, eu estava tão insegura depois de tudo que me forcei a passar em 2019,
que foi proveitoso um momento sem críticas externas ao meu trabalho.
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Imagem 13
Arisca
08/03/2020
Aquarela sobre papel

Estava voltando a ter alguma confiança com a aquarela, e estava voltando a pintar. Contudo, por ter
passado um tempo sem utilizar o material, voltei a repetir alguns ‘vícios’, especialmente relacionados à
densidade da tinta, e é perceptível nessa pintura como tudo é denso e quase linear. Enquanto estava
redescobrindo o ‘caminho de volta’ para a zona de conforto artística, tentava também explorar questões
pessoais. Especificamente nessa pintura, queria tentar compreender a reação que estava tendo ao
toque, e como ele estava me machucando. Por muito tempo, procurei criar imagens para aquilo que
sentia, para conseguir justificar aquilo, e nessa pintura não foi diferente.
O toque queimava, e isso me tornava arisca. Fosse pelo medo de me machucar novamente, fosse pela
familiaridade daquilo – e como isso me assustava. De qualquer forma, é isto que essa pintura é, uma
tentativa de entender – e externar – o que se passava internamente.
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Imagem 14
Por que eu tinha que
ser tão estragada?
12/11/2020
Pastel oleoso e caneta
nanquim sobre papel

A imagem surgiu em meio a uma crise de pânico. Não lembro o que motivou, porém lembro vividamente
de ao desenhá-la, sentir um aperto no peito; tanto que inicialmente pensei em fazer uma pintura com
guache, mas não consegui me obrigar a lidar com a imagem por tanto tempo. Seu título, foi um
pensamento intrusivo que surgiu no momento e não conseguia me livrar de forma alguma.
As manchas de pastel oleoso, em contraste com a precisão da caneta nanquim, causam certa
estranheza, além das cores que consegui trazer, me remetem a hematomas e dor. O vermelho espalhado
entre as pernas acaba nos remetendo ao sangue, mas nunca soube explicar exatamente o porquê de seu
posicionamento na imagem. Por mais que toda a composição seja bastante dolorosa, é um trabalho que
me traz certo orgulho de ter feito, pois me mostrou que enfim estava conseguindo fazer algo
‘expressivo’.
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Imagem 15
Todas as vezes que me
encontrei por aí
16/07/2020
Aquarela sobre papel

Essa pintura foi meu caminho definitivo de volta para a aquarela. Compreendi onde eu queria chegar na
diluição da tinta, além da composição que me orgulho bastante até hoje. Foi importante perceber como
eu já me ‘encontrei’ muitas vezes entre os lápis e pincéis; e como isso foi relevante para a percepção de
mim mesma.
No auge da quarentena, precisei reaprender a conviver comigo mesma, e por isso nessa composição
brinquei que me encontrei – e me misturei – comigo diversas vezes, resultando em uma nova Beatriz. Não
é por acaso que os pontos de convergência são mais saturados, nem a cor utilizada, pois nem sempre foi
fácil me encontrar – confrontar – e esses momentos de autoconhecimento machucam. Não é fácil viver
dentro de um cérebro ansioso, e por isso, os embates muitas vezes violentos dentro de mim.
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Comecei o ano mergulhada em experimentações. Explorando ao máximo os materiais que tinha em
mãos, e que já tinha certa noção de sua instrumentalidade. Contudo, foi na aquarela que ganhei maior
liberdade; passei a explorar diferentes formas de se trabalhar cor, lidando especialmente com uma
menor saturação, além de brincar ainda mais com suas possibilidades de diluição.
Mesmo com o ano turbulento, especialmente pela correria dentro da faculdade para completar três
períodos em apenas um ano, consegui me dedicar semanalmente à pintura. Caminhei com uma rotina
equilibrada durante todo o ano, até o momento que machuquei meu joelho em uma aula de karatê. Passei
aproximadamente 15 dias sem conseguir ficar em outra posição além de deitada em minha cama, e mais
30 dias sem conseguir me sentar confortavelmente por longos períodos, por isso, passei todo esse
tempo sem manter uma rotina de desenho.
Foi um período bastante complicado, estava acostumada a ter uma vida ativa – e independente – quando
de repente estava precisando de ajuda para ir ao banheiro. Por ser uma pessoa jovem, tive uma
recuperação rápida, em exatos 44 dias eu estava retomando a academia, e com a promessa de que em
um mês eu deveria retornar ao karatê. Entretanto, as dores no meu joelho, as novas dificuldades
estabelecidas e a sensação de impotência me marcaram bastante.
Esse tempo ‘parada’, apesar de estressante, foi bastante produtivo para absorver novas referências, e
entender como eu iria produzir a partir daquele novo momento. Havia quebrado minha rotina contínua de
produção, e por mais que até o presente momento não tenha conseguido retomá-la como era
anteriormente, precisei compreender meu ritmo a partir das novas demandas e desafios que surgiram.
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Imagem 16
Chateação
27/09/2021
Aquarela sobre papel

Foi nessa obra que eu percebi que eu sabia pintar, consegui alcançar as cores que eu havia imaginado,
além de uma diluição aceitável. Fazia muito tempo que eu não ficava propriamente feliz com algum
trabalho, e esse foi um novo ponto de virada.
Nessa pintura eu queria simplesmente expressar minha chateação. No geral, estava em um bom lugar –
mentalmente – mas inúmeros inconvenientes facilmente me irritavam, e eu simplesmente queria colocar
para fora. Além de estudar as possibilidades de deformação do rosto, que tinha despertado certo
interesse, mas não havia desvendado como queria fazê-lo.
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Imagem 17
Sem título
24/11/2021
Pastel oleoso sobre
papel kraft

Depois de 2019, giz pastel oleoso tornou-se um material que gosto de usar para ‘rabiscar’. Normalmente
são exatamente esses os resultados: rabiscos e esboços, porém em alguns momentos a falta de
refinamento no meu trabalho com esse material é exatamente o que precisa para a obra funcionar. O
que gosto do pastel é que ele me entrega uma expressividade que me lembra os desenhos da infância.
Esse autorretrato foi um daqueles autorretratos acidentais que havia mencionado anteriormente, e é
justamente por essa coleção de acasos que ele funciona. Não há nada planejado nessa imagem, mas ela
tem a capacidade de revelar mais sobre o interior do que inúmeras palavras. Esse desenho foi feito ao
acaso, mas suas cores se misturam ao papel a criar algo diferente daquilo que já havia feito.
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Imagem 18
Me amariam mais se eu
não fosse quebrada?
13/12/2021
Aquarela e lápis de cor
sobre papel

Essa aquarela também surgiu de uma crise de ansiedade. A pergunta que dá título martelava em minha
cabeça de forma incessante, até o momento que a escrevi no papel. Depois de dias, encontrei o papel que
escrevi aquilo, e a imagem logo se formou em minha mente, de forma que eu tinha a obrigação de realizá-
la. Foi uma pintura feita com paciência ao longo de dias – algo que geralmente não acontece – e o
resultado me surpreendeu; a profundidade do rosto, as cores, a forma como o olhar foi representado,
não parecia que eu tinha capacidade de realizar aquilo. Foi como se a obra fosse expelida de mim, mesmo
com esse processo de criação mais tranquilo.
Hoje, considero como um dos meus melhores trabalhos, tecnicamente falando, e também acredito ser
uma das obras mais expressivas que consegui realizar. Infelizmente, a pergunta ainda volta em
momentos de insegurança, porém a sensação que tenho é que por esse trabalho existir, dói menos do que
poderia doer.
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A partir da reflexão feita em cima de cada obra, foi possível evidenciar a sua forte relação com a
memória, trazendo de forma prática aquilo que Gusdorf falou sobre a memória ser uma forma de
retrato do que somos. Com este estudo, pude observar meu processo criativo de certa distância, e nesse
momento foi possível assimilar a maneira como tudo está tão intimamente ligado à memória, e como
utilizo o autorretrato como uma reafirmação de mim.
Por consequência de inúmeras questões, utilizei o desenho e pintura como uma forma de desabafo, com
a finalidade de tentar compreender experiências, medos e inseguranças. Jacinto (2013, p. 59) em certo
momento falou que “O pintor é despertado pelas coisas, no impulso que o leva ao ato de pintar”, e
explicou de forma objetiva o sentimento que me movia a pintar – um impulso. A maneira que vinha
trabalhando, durante o processo criativo, reverberou em inúmeros momentos da minha vida, pois como
tudo estava interligado com memória, me permitiu encarar esses momentos sob uma nova perspectiva.
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Conclusão

No início desta pesquisa foram levantados questionamentos acerca da minha produção, mais
especificamente sobre os autorretratos, com o intuito de investigar sua presença durante o período de
2016 até 2021. Após mapear toda a minha produção, foi possível perceber como as
autorrepresentações são uma constante. E ao analisar essas obras – individualmente e coletivamente –
foi possível observar o modo que a produção de um autorretrato é em diversos momentos, empírico.
Uma das minhas principais intenções com este trabalho era, de fato, compreender o rumo que minha
produção naturalmente foi tomando, e conseguir mapear os ‘locais’ em que ocorreram uma mudança
brusca de estilo. Porém, nesta investigação, também consegui constatar como o autorretrato é, até
certo ponto, uma linguagem fácil, no sentido que é acessível – tangível – mesmo quando não temos um
aprendizado aprofundado no assunto.
Porém, para ter essa compreensão, tanto sobre o autorretrato, quanto sobre meu trabalho, foi
necessário entender, a princípio, o caminho percorrido pelo próprio autorretrato ao longo da história da
arte. Focando, em específico, no final do século XIX, no ocidente, pois devido às novas movimentações
artísticas e à popularização da fotografia, houve uma mudança brusca na maneira como se entendia e
como se produziam autorretratos.
A partir dessa nova configuração artística, foram vistos, com maior profundidade, os artistas Vincent
Van Gogh e Edvard Munch, que além de terem grande importância para o tema, nesse contexto histórico,
foram referências fundamentais em minha caminhada. Hoje em dia, Van Gogh é um dos nomes mais
conhecidos dentro da história da arte, célebre por suas obras e também por sua história trágica, além de
um autorretratista recorrente. Já Munch, ficou conhecido por sua obra ‘O grito’, que mesmo não sendo
um autorretrato, pode ser interpretada como representação de si – uma autorrepresentação.
Diante dessas referências, o capítulo seguinte apresentou, então, a discussão sobre o que é
autorretrato – e como seria possível relacionar esse limiar com minha produção artística a partir de
2016. O termo autorretrato se define como um retrato, uma imagem, que o artista faz de si mesmo,
porém é uma explicação rasa, diante de tudo que este pode ser e representar. O autorretrato, tende a
refletir interior do artista, e é em diversos momentos a afirmação deste na posição de criador de sua
própria imagem.
Ao tornar possível essa relação entre a definição de autorretrato e minhas obras, ocorreu-me a
percepção – quase que uma realização – do quão baseada na memória estava toda minha produção
artística. Utilizei como inspiração e poder criativo registros diversos da memória, como Gusdorf havia
dito, esta funciona como uma espécie de retrato do que somos, com as características do que éramos a
compondo.
Experiências, medos, traumas, inseguranças… tudo se tornava um novo motivo para me debruçar sobre
a folha em branco. Nesse sentido foi fundamental ter uma compreensão mais ampla do funcionamento
do meu processo criativo, acompanhando esse período de cerca de seis anos para a partir dele se tornar
possível a análise e reflexão acerca das produções que havia selecionado anteriormente.
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Dessa forma, ao analisar as obras escolhidas, percebi a tendência que tinha a repetir determinados
elementos. O mais evidente dentre estas ‘repetições’ foram as cores, vermelhos e azuis marcam
presença desde os primeiros momentos, e quando aos poucos fui ganhando maior domínio – e segurança
– sobre a cor, foram introduzidos novos tons arroxeados ao papel. De acordo com Freud, “a repetição
demanda o novo” (apud LACAN, 1979, p.62), e realmente foi algo que senti na prática, pois durante todo
esse processo, em diversos momentos sentia que estava me repetindo – me tornando um plágio de mim
mesma. E a partir disso, me cobrava uma mudança – uma inovação – pelo medo que tenho de estagnar.
Em diversos momentos utilizei a arte como forma de me proteger – do mundo externo, e da minha
própria cabeça – em função disso, desenvolvi um ritmo de produção frenético, até mesmo compulsivo,
que me fazia pender para as repetições dentro da minha produção. Por isso, foi tão importante ter esse
entendimento do meu processo criativo, para poder, enfim, compreender como escapar desse ciclo
vicioso sem afetar o momento de produção artística.
A partir deste ponto na pesquisa, poderíamos seguir investigando a forma como a modernidade
influencia na percepção que temos de nós como indivíduos, e de que maneira isso afeta a produção
artística na atualidade – especialmente quando pensamos em autorretrato e autorrepresentação. Ao
longo de toda a pesquisa, pude perceber como minha produção é parte integral de mim, de uma forma
que eu ainda não havia percebido anteriormente. Por sempre ter me utilizado da arte como forma de
expressão, foi interessante poder enxergar ‘de longe’ o meu crescimento e amadurecimento por meio do
desenho e da pintura ao longo desses anos. E, principalmente, a maneira como essa autopercepção se
modificou com o passar do tempo.
55
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VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo. 1 ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015.
Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Artes e Comunicação
Artes Visuais – Licenciatura

ARS FUNGI
Experimentos sobre estética pessoal

Maria Cabral de Melo Borges


ARS FUNGI
Experimentos sobre estética pessoal

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito


parcial para obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais
pela Universidade Federal de Pernambuco.
Orientador: Prof. Eduardo Romero Lopes Barbosa

Comissão examinadora

Recife 2022
Bruna Rafaella Ferrer
Eduardo Romero Lopes Barbosa
Maria Betânia e Silva

Agradecimentos
Agradeço a todos que me apoiaram e acompanharam neste projeto e no curso, em
especial:
Meu orientador Eduardo Romero que esteve do meu lado durante toda a jornada, bem
como Gustavo Motta e Maria Betânia;
Bruna Letícia e Beatriz Silvestre que torceram por mim e trabalharam comigo nos últimos
4 anos;
Minha irmã Joana e meus pais Flávia e Billy por acreditarem em mim e na minha arte;
Meus amigos por me darem suporte e serem minhas âncoras, em especial Malu.
Eu não teria conseguido sem vocês.
01
ARS FUNGI
RESUMO
O estudo trata de um experimento artístico utilizando-se do método cartográfico, sendo
este método versátil e flutuante. Assim, a pesquisa conta com o formato de um diário de
bordo que acompanha a experiência de representar o mesmo objeto (no caso,
Cogumelos) utilizando-se de técnicas e materiais diferentes para analisar como a estética
de uma artista pode se alterar/contaminar a partir das técnicas escolhidas.
O diário é composto por 15 obras (que se tornam 15 partes da pesquisa) em técnicas que
variam entre tradicionais, contemporâneas, tridimensionais, bidimensionais, e métodos
altamente específicos como tatuagem, cianotipia, resina, entre outros. Como resultados
principais do experimento estão a problematização de conceitos como: a busca por uma
estética pessoal, a hipervalorização da perfeição técnica e a acomodação e inercia do
processo criativo.

PALAVRAS-CHAVE
Estética; Técnica; Processo Criativo; Arte Experimental; Leitura de Imagens.

ABSTRACT
This study is an artistic experiment using the cartographic method, which is versatile
and fluid. The project also has a logbook format and follows the experience of
representing the same object (on the case, mushrooms) using different techniques and
materials to analyze how an artist's aesthetic can be altered by the chosen techniques.
The diary consists of 15 pieces (which became 15 chapters) in techniques ranging from
traditional, contemporary, three-dimensional, two-dimensional and highly specific
methods such as tattoo art, cyanotype, resin, among others.The main results of the
experiment are the problematization of concepts such as: the search for a personal
aesthetic, the hypervaluation of technical perfection and the accommodation and inertia
of the creative process.

KEYWORDS
Aesthetics; Techniques; Creative process; Experimental Art; Image Reading.

02
Introdução

“A imaginação criativa levantaria hipóteses sobre certas configurações viáveis à


determinada materialidade. Assim, o imaginar seria um pensar específico sobre
um fazer concreto”(OSTROWER, 1987, p.32).

Sempre tive interesse pela Arte como criação de imagens, por quaisquer
métodos, e explorar suas possibilidades. Durante minha infância, gostava de
criar, de maneira lúdica, brincadeiras sem regras e sem materiais predispostos...
Nesses momentos de recreação, criava imagens que, por um viés analítico e
teórico, seriam consideradas como “técnica mista”. No contexto da Academia,
porém, as Artes começaram a ter delineações formalizadas e algumas regras a
serem seguidas. Em meio a estas especificações, encontrei certas dificuldades
de descobrir minha estética própria, em outras palavras, de entender as
características visuais do “eu” artista.
A partir disso, decidi me debruçar sobre o questionamento: “Como a estética de
uma artista é alterada pela técnica escolhida?”, lançando assim uma
investigação, que diretamente me remete ao conceito de investigação ligado às
Artes Visuais. Segundo Anna Barros: "[...] a investigação em arte, aqui focada,
está voltada para o criar e é somente deste direcionamento que encontra sua
necessidade e fim" (BARROS, 1993, p.51). Com isso em mente, minhas criações
revelam gradativamente os resultados da minha investigação.
A partir de uma extensa busca (por publicações na ANPAP, Google Acadêmico
e no acervo da Biblioteca da UFPE) pude perceber que tal assunto não é
abordado com frequência pela comunidade acadêmica, assim como poucas
pesquisas acerca do processo criativo são encontradas, fato que vislumbrei
como motivação para o aprofundamento do tema. Além da escassez de estudos
de tal conteúdo, conforme supracitado, há também o fato de que a maioria
desses trabalhos são desatualizados e focam apenas em técnicas tradicionais, o
que corrobora ainda mais para o desenvolvimento desta pesquisa. Ademais, o
tema que adiante chamarei de “estética pessoal” é amiúde confundido com
poética (PAREYSON, 1988): enquanto que poética se trata de um tema, ou
narrativa associada com determinado artista, a estética pessoal é similar, mas
diz respeito a elementos estritamente visuais consistentemente presentes na
obra de um artista, às repetições (HOFSTAETTER, 2007).

03
Cabe também relembrar que minha escolha do tema "estética" se refere ao
contexto de estética pessoal, como supracitado, e não à estética como Filosofia
da Arte. A "técnica" neste projeto diz respeito ao uso de algum determinado
material ou subcategoria de arte, como argila, desenho ou carvão. Desse modo,
a pergunta que me proponho a investigar é “como a estética pessoal é afetada
pela técnica escolhida?”. Essa questão é similar a outro grande questionamento
na sociedade ocidental, associado à Física Quântica: Por que a luz se comporta
de formas diferentes em testes diversos? A resposta para essa pergunta surge
na interpretação de Copenhague (BOHR e HEISENBERG, 1927), na qual Niels
Bohr (1885 - 1962) propõe que a luz se mostra diferente de acordo com a
técnica escolhida para captá-la. Ou seja, diferentes técnicas geram diferentes
resultados, mesmo se tratando do mesmo objeto de estudo.
Espelhando esse dilema, decidi testar essa teoria da Física Quântica no campo
artístico com o objetivo de analisar como a escolha da técnica artística
influencia no processo criativo e no resultado da imagem. A partir desta
proposta, experimento processos criativos em diversos materiais e técnicas
(lista completa no Sumário), escolhidos com o objetivo de abranger um espectro
completo do meu nível de conforto e familiaridade com o método,
representando um mesmo objeto de estudo (Cogumelos) em diversos
procedimentos e analisar os resultados e conclusões encontradas. Assim, o
primeiro passo é realizar uma extensa pesquisa de referências visuais e guardar
estas imagens de cogumelos em uma pasta, de tal maneira que foi possível me
familiarizar com suas diversas espécies e particularidades. Em seguida, dar
inicio ao processo de produção obra por obra seguida de relatórios e finalizar
com minhas conclusões.
De início é necessário ressaltar que a escolha dos cogumelos como os objetos
de estudo é completamente arbitrária e a pesquisa teria o mesmo sentido com
qualquer outro objeto. No entanto, cogumelos são diversos o suficiente para eu
ter uma alta gama de variedades de cores, tamanhos e texturas para explorar.
Nesta pesquisa vou utilizar o método Cartográfico que me confere maior
liberdade para mudar de curso e ter descobertas durante o caminho.

04
Sumário
Introdução............................................................................................................... 03
04/10/2021 - Mycena Acicula - Acrílica .......................................................... 07
08/10/2021 - Marasmius Haematocephalus -Tatuagem.............................. 09
11/10/2021 - Lentinula Edodes pt I - Fotografia e Edição digital.............. 11
14/10/2021 - Mycena Adonis - Argila.............................................................. 13
17/10/2021 - Entoloma Hochstetteri - Tinta Spray....................................... 15
20/10/2021 - Cortinarius Hemitriccus - Carvão ............................................ 17
21/10/2021 - Coprinopsis Atramantaria - Desenho (Grafite)..................... 19
27/10/2021 - Agaricus e Abortiporus - Aquarela.......................................... 21
03/11/2021 - Stropharia Caerulea - Desenho digital.................................... 23
09/11/2021 - Russula Xerampelina - Colagem............................................... 25
20/11/2021 - Lentinula Edodes pt II - Caffenol.............................................. 27
27/11/2021 - Lentinula Edodes pt III - Cianotipia......................................... 29
06/01/2022 - Spinellus Fusiger - Pastel a Óleo.............................................. 31
30/01/2022 - Cyathus Stercoreus - Biscuit..................................................... 33
06/02/2022 - Lepista Personata - Resina........................................................ 35
Descobertas............................................................................................................ 37
Referências Bibliográficas................................................................................... 39
Referências Imagéticas........................................................................................ 40

Ilustração 4 05
Ilustração 4 06
04/10/2021
Mycena Acicula
Pintura Acrílica

A criação de imagens com tinta acrílica já me é familiar,


pois é uma técnica com a qual me sinto particularmente
confortável. Contudo, não estou nem perto de sentir que
tenho domínio sobre esse método. Meu primeiro instinto foi
me voltar para as referências de espécies e separar alguns
fungos com uma paleta de cores harmônica, voltada para o
amarelo e o roxo, uma dupla de cores complementares.

Reunidas as espécies de cogumelos


selecionadas, o próximo passo é a composição.
Nessa fase, procurei montar a imagem de forma
que os valores de peso visual fossem
equilibrados em toda a composição, balanceando
cor, quantidade, textura e tamanho. Para
trabalhar com tinta acrílica o ideal é usar pincéis
de cerdas macias e firmes, como cerdas
sintéticas. Tive cuidado de posicionar um fungo
na parte direita inferior do quadro para ocultar o
“ralo visual”, e assim prendendo o olhar do
observador por mais tempo.
O resultado é uma imagem muito familiar para
mim, afinal, o fundo preto já funciona para mim
como uma espécie de assinatura ou marca
pessoal, bem como os brilhos brancos. A paleta Figura 1
de cores não é a que costumo usar
rotineiramente, tendo em vista que utilizo, na
maior parte do tempo, tons mais frios.
Entretanto, para essa composição em especial, a 07
ênfase no laranja e alguns rosas fez mais sentido.
Mycena Acicula

Figura 1

Acrílica sobre tela, 70cm x 50 cm


Maria Cabral, 04/10/2021 07
08/10/2021
Marasmius Haematocephalus
Tatuagem

Tatuagem é uma técnica com milhares de


especificidades, a começar pelo design. Nem tudo
que fica bem executado em um papel ou em uma
tela funciona efetivamente como tatuagem, de tal
modo que é preciso ter em mente as limitações do
que as agulhas conseguem fazer quando em
comparação com técnicas tradicionais. O design,
por exemplo, fica melhor se for desenhado
vislumbrando uma área específica do corpo,
técnica esta conhecida como “encaixe”. Ou seja, a
pele é uma superfície irregular e o desenho pode
sofrer distorções à medida em que o corpo se
movimenta, de forma que o design da tatuagem
precisa levar em conta esses aspectos práticos.

É preciso entender as agulhas, afinal, cada agulha O resultado ficou muito próximo ao
é seguida por uma série de especificações como design originalmente pretendido, com
espessura, número de microagulhas, posição do algumas ressalvas como é de costume na
conjunto de microagulhas etc. Além disso existem tatuagem, já que não é possível apagar o
agulhas próprias para traçados e agulhas próprias traço. As estrelas e os brilhos são, como
para preenchimento ou sombreamento. Com tudo dito anteriormente, familiares para mim e
isso em mente na hora de fazer o esboço, e completam a composição. As cores são
adotando todos os cuidados de biossegurança parte de uma paleta que costumo usar,
necessários, a execução foi uma experiência mas confesso que na execução ficaram
completamente diferente das outras, em especial um pouco distorcidas.
porque envolve a dor. É importante explicitar que
eu já trabalhei como tatuadora antes e o processo
de realizar a tatuagem em mim mesma é algo que
já conheço e que considero uma experiência
intimista e única. Há uma batalha de foco na dor e
na execução da arte, o que adiciona uma nova
camada na experiência.
09
Marasmius Haematocephalus

Tinta sob pele, 20cm x 10 cm


Maria Cabral, 08/10/2021
11/10/2021
Lentinula Edodes
Fotografia e Edição

O início da criação da obra de arte começa desde a procura dos materiais, a ideia, e vai
através da execução até o resultado. Com isso em mente, essa obra começou quando
peguei um ônibus para o mercado de São José no Recife, para procurar algum lugar que
vendesse um cogumelo inteiro. Depois de muito esforço, encontrei Shitakes (tipo de
cogumelo comestível nativo do leste asiático) inteiros na Rua da Praia, bem como limões
desidratados que, devido à sua textura, considerei serem capazes de constituir um bom
complemento para a minha composição. Em casa, fotografei em torno de cem imagens
com diferentes composições e parti para a edição. Seguindo meu melhor instinto, resolvi
mexer em algumas prioridades das imagens, em particular a matiz.
O resultado que procurei alcançar com essa técnica foi o de criar uma atmosfera surreal,
ou “alienígena”. É de meu interesse transformar objetos naturais em uma cena irreal
apenas alterando as cores. O processo foi muito tranquilo e eu não me senti obstruída em
nenhuma parte do trabalho, diferente de algumas outras obras deste projeto. Me sinto
muito confortável no mundo da fotografia e consegui trazer outra característica forte das
minhas obras, a paleta de cores fria e a atmosfera sombria e mágica.

11
Lentinula Edodes

Fotografia e edição digital, 1600 x 738 px


Maria Cabral, 11/10/2021
14/10/2021
Mycena Adonis
Argila

Figura 2

Diferentemente das técnicas que venho utilizando até agora, a Modelagem é uma
linguagem artística em que, apesar de já ter estudado e vivenciado
anteriormente, ainda possuo relativa dificuldade, de tal maneira que o
conhecimento de minhas próprias limitações guiou meu processo criativo. Em um
primeiro momento, tentei preparar a argila, que era de péssima qualidade para
fins artísticos e, apesar de meus esforços, continuava quebradiça. Optei por
continuar mesmo assim. Em seguida, moldei meu cogumelo e levei ao forno
doméstico por três horas. Uma vez pronto, esperei esfriar e segui para a fase da
pintura. Meu plano era pintar usando tinta guache, mas, como todas as outras
etapas na criação dessa peça, não funcionou. Eu decidi usar aquarelas e focar
meu objetivo num cogumelo de tons suaves, como algo que veio de um conto de
fadas. Depois de escolher essa paleta de cores, senti falta de algo para remeter a
um cogumelo mágico, então adicionei gotas douradas. O resultado está longe de
ser uma obra de um mestre do barro, mas realmente acredito que ficou o mais
charmoso que poderia ficar, considerando os materiais que usei e minha
habilidade na modelagem. Apesar de todos os obstáculos da minha jornada com
esse cogumelo, o resultado me agradou muito; virou um objeto de conforto.

13
Mycena Adonis

6 ângulos da peça de Argila, 7 cm x 6 cm x 6 cm


Maria Cabral, 14/10/2021
17/10/2021
Entoloma Hochstetteri
Tinta Spray

Figura 3

Eu nunca havia usado tinta spray para desenhar antes e esse fato é visível.
Fiquei frustrada e refiz a imagem algumas vezes antes de decidir trocar o
conceito inicial do meu design por um outro bem mais simplificado, com foco
nas gotas de tinta que escorrem pela superfície, sendo mais uma vez
influenciada no processo criativo por uma particularidade do material.
Novamente as repetições (HOFSTAETTER, 2007) na minha obra são os
pontos brancos representando estrelas e minha grande atenção e seleção
minuciosa do ajuste cromático da imagem. O resultado me agrada mas não é
meu preferido. Isso acabou sendo uma conclusão comum às técnicas com as
quais eu tenho menos familiaridade. A partir dessa experiência descobri que o
controle que eu tenho sobre a técnica, além de influenciar nas decisões
criativas (assumo mais riscos na obra de acordo com a minha confiança no
método) é muito importante para ditar minha paciência, dedicação à obra,
assim como o meu humor durante a execução do trabalho, o que provou ser
mais um aspecto que interfere no resultado.

15
Entoloma Hochstetteri

Tinta Spray sobre Parede, 108 cm x 96 cm


Maria Cabral, 17/10/2021
20/10/2021
Cortinarius
Hemitriccus
Carvão

Essa obra tem um design que estava na minha cabeça por alguns
dias, e eu planejava fazê-lo usando lápis grafite, mas os planos
mudaram. Eu tenho aversão a trabalhar com carvão por conta do som
e da textura, que são problemas reais para minha hipersensibilidade
sensorial. Apesar disso, organicamente surgiu a oportunidade de
trabalhar com lápis fusain em tela, então resolvi me esforçar para
ignorar meus preconceitos e aproveitar que por se tratar de um lápis
e não uma barra de carvão, minha questão com a textura seria mais
amena, assim como o som - já que o risco na tela se comporta de
forma diferente comparado à um risco no papel ou na parede.
Surpreendentemente, tal escolha provou ser uma ótima descoberta,
que me fez mudar de opinião sobre o carvão, técnica que com certeza
voltarei a usar. O resultado é uma imagem muito própria do meu
trabalho pela presença dos olhos, que são elementos recorrentes em
minhas obras: mais um elemento para a minha lista de constâncias.

17
Cortinarius Hemitriccus

Carvão sobre tela, 30 cm x 25 cm


Maria Cabral, 20/10/2021
21/10/2021
Coprinopsis
Atramantaria
Desenho (Grafite)

O Desenho é a técnica com a qual eu trabalho há mais tempo, como


a maioria das pessoas. O Desenho engloba ou tangencia quase
todas as linguagens da Arte, mas aqui utilizo o “desenho” para me
referir à técnica com lápis grafite. Eu costumo desenhar com esse
material para chegar a uma imagem mais naturalista-realista, visto o
meu domínio maior com o procedimento. Novamente minha intuição
criativa me leva a representar um olho para produzir uma estética
sombria, utilizando um conceito que eu tinha rabiscado
anteriormente, e realçando a minha inspiração e admiração pelo
Surrealismo. Uni meu conceito a uma espécie que usei de refência
por pingar um tipo de tinta, e associei essas gotas a lágrimas. Após
alguma análise, concluí minha interpretação desses olhos
recorrentes como uma representação inconsciente da minha ânsia
por controle, como cita Hofstaetter sobre as repetições: “Ele é
mascarado pelo que o significa, mascarando o que significa. Ao
invés de ser representado, o repetido é significado” (2007, p. 72).

19
Figura 4
Coprinopsis Atramantaria

Grafite sobre papel, 27 cm x 20 cm


Maria Cabral, 21/10/2021
27/10/2021
Agaricus e Abortiporus
Aquarela

Aquarela é uma técnica com função terapêutica para mim. Eu me


divirto e relaxo fazendo. Sem planejar, essa experiência
específica gerou uma série de imagens em vez de uma única.
Quanto aos aspectos de composição, escolhi cogumelos e fungos
de cores mais neutras, quaternárias e beges, para ressaltar as
possibilidades aguadas da aquarela em um fundo saturado. Ao
longo da experiência decidi utilizar tons bem específicos das seis
cores que compõem as cores primárias e secundárias, mas optei
por trocar o laranja por um tom de rosa chiclete, que faz parte da
minha paleta de preferências pessoais. Também resolvi contornar
as figurar com hidrocor de nankin para criar contraste e separar
os cogumelos do fundo. Ao final eu senti que essa série poderia
continuar indefinidamente e notei que o preto surgiu no fundo de
maneira similar ao meu trabalho com tinta acrílica - mais um
fragmento para construir o mapa da minha estética pessoal.
Ademais, me chama a atenção o peso que a paleta de cores
representa no meu processo criativo. Como diria a pesquisadora
Maria Lucia Bueno: "Cada olhar resgata apenas um fragmento e
o faz por intermédio de uma combinação singular. Cada artista,
numa escolha solitária, funda sua própria linguagem no interior
de uma produção altamente fragmentada” (1999, p. 286).

21
Agaricus e Abortiporus

Aquarela sobre papel, 6 partes de aproximadamente 14,8 cm x 21 cm


Maria Cabral, 27/10/2021
03/11/2021
Stropharia Similarmente ao experimento com Fusain, a criação
Caerulea com Arte Digital foi uma grande descoberta para
mim. Eu já tinha experiências com o digital, mas
Desenho digital sempre terminava decepcionada com o resultado,
sentindo que eu poderia criar a mesma imagem com
mais qualidade usando técnicas tradicionais, o que
não foi o caso nessa obra.

Figura 5

Dei início ao processo criativo escolhendo as espécies


que queria retratar me baseando, novamente, nas cores e
formatos, e dei continuidade à composição da mesma
forma que fiz com a primeira obra deste projeto.
O resultado final traz novamente as minhas repetições
(HOFSTAETTER, 2007) de tons frios, fundo escuro,
brilhos e estrelas, e o que me remete a um ambiente
"mágico" ou "fantástico".

23
Stropharia Caerulea

Arte Digital, 1600 x 1130 px


Maria Cabral, 03/11/2021
09/11/2021
Russula Xerampelina
Colagem

A Colagem foi um pouco desafiadora


“Cada materialidade abrange, de para mim, pois no começo eu tive
início, certas possibilidades de ação e dificuldades de encontrar as imagens de
outras tantas impossibilidades. Se as cogumelos até que me voltei a antigos
vemos como limitadoras para o curso livros de Ciências. Ao reunir minhas
criador, devem ser reconhecidas imagens notei uma propensão aos
também como orientadoras, pois laranjas e amarelos, e baseada nisso,
dentro das delimitações, e através escolhi azul para complementar a paleta
delas, é que surgem sugestões para de cores no fundo. Tentei criar uma
se prosseguir um trabalho e mesmo interação divertida e harmônica entre as
para se ampliá-lo em direções novas” imagens e foi um dos projetos mais
(OSTROWER [1977]. 1987, p.32) divertidos até o momento. O resultado me
agradou muito em termos estéticos
apesar de que eu nunca escolheria essas
cores se não estivesse “limitada” a essas
imagens, o que torna cada vez mais
verdadeiras as palavras de Fayga
Ostrower. Essa obra expandiu a minha
ideia prévia do que “se encaixa na minha
estética” principalmente em termos de
paleta de cores.

25
Russula Xerampelina

Colagem, 21 cm x 30 cm
Maria Cabral, 09/11/2021
20/11/2021 O Caffenol é uma técnica alternativa
de revelação fotográfica com a qual
Lentinula Edodes
eu tinha tido apenas uma experiência
pt II no passado. Apesar da minha
inexperiência com o Caffenol fui
Caffenol
auxiliada por Eduardo Romero e
Marina Soares, e consegui um
resultado inesperado. A imagem que
escolhi para revelar foi uma fotografia
de uma composição com Shitakes,
escolhida especialmente pelos
contrastes de luz e sombra que eu
previ que conceberiam um efeito
dramático aos tons de sépia (que é a
paleta de cores própria do Caffenol).

O processo de revelação em si envolve a


preparação das soluções, seguida da
exposição do papel fotossensível que é
banhado na solução reveladora, a seguir
no Stop (solução para interromper a
fotossensibilidade do papel), e,
posteriormente, no fixador para fixar a
imagem. Depois de todos os passos na
câmara escura, o papel é lavado e
secado. As imagens dessa técnica estão
“limitadas” aos tons amarronzados que
evocam uma sensação de antiguidade e
nostalgia; esteticamente eu sempre
tendo ao uso de cores para criar a
narrativa da imagem, então não ter cores
como uma opção na minha composição
se tornou um desafio. Tive que me
concentrar na textura e contraste da
imagem. Porém, isso trouxe um
resultado lindo e que não seria possível
de ser alcançado utilizando qualquer
outro método.

27
Lentinula Edodes pt II

Revelação em Caffenol sobre papel fotossensível, 15 cm x


12 cm
Maria Cabral, 20/11/2021
Dando continuidade às minhas experiências no
27/11/2021 Laboratório de Fotografia da UFPE, a próxima
Lentinula Edodes pt III técnica experienciada foi Cianotipia, que é um
método de impressão de um fotograma em
Cianotipia papel. Para fazer a impressão é preciso acidificar
e emulsificar o papel de gramatura de 300g,
para que fique fotossensível. Em seguida, fixar
por contato a imagem desejada, que foi
impressa em transparência e em negativo no
papel já preparado. Por fim, aguardar alguns
minutos para que o Sol queime a solução
criando a imagem em tons de azul. Para dar
acabamento e fixar o papel é mergulhado em
água oxigenada e lavado com água corrrente.

A Cianotipia gera resultados muito fascinantes para mim: A simplicidade de recorrer à


monocromia e o processo de impressão que revela a imagem aos poucos quase como
mágica. Faz parte da minha natureza circular em torno de tons frios como os de ciano,
o que tem muita relação com meu enorme interesse nesta técnica. Depois de fazer
algumas experiências é fácil notar que quanto mais forte e intenso o Sol, mais rápido e
preciso ficam o processo e a imagem. Como de esperado o sol não colaborou no dia da
impressão, então sinto que gostaria que o resultado ficasse mais escuro e nítido, mas
fiquei muito feliz com todo o processo e com a obra final.

29
Lentinula Edodes pt III

Impressão em Cianotipia sobre papel de aquarela 300g, 15cm x 12 cm


Maria Cabral, 21/11/2021
06/01/2022
Spinellus Fusiger
Pastel a Óleo

Pastel Oleoso é um material cujas características


visuais (a saturação das cores, a sensação pueril
da imagem, a textura) sempre foram fascinantes.
Apenas recentemente eu tive a oportunidade de
experimentar em primeira mão a sensação de
produzir com ele. A partir dessas características
do material, meu instinto foi procurar cores
vivas, começando pelos rosas e laranjas que eu
senti que precisariam de alguma cor fria para
contrastar, então adicionei os verdes. No meio do
processo descobri que acidentalmente utilizei
uma paleta de cores que remete a melancias,
talvez pela característica única deste cogumelo
em ter os pontinhos pretos que fazem um
paralelo com as sementes da melancia. A energia
final da imagem se relaciona com os
pensamentos gerais de Jung (1875 - 1961) sobre
Figura 6
a fantasia como agente do crescimento; a
natureza fantástica emana das cores quase
radioativas e mais uma vez prova que a ideia que
eu tinha da “minha estética” quando comecei
esse experimento era, no mínimo, frágil.

31
Spinellus Fusiger

Pastel Oleoso sobre papel 200g, 29,7 cm x 21 cm


Maria Cabral, 06/01/2022
30/01/2022
Cyathus Stercoreus
Biscuit O processo da modelagem dessa peça
em massa de biscuit foi muito simples,
mas também prolongado devido ao
tamanho e o volume maciço de biscuit
envolvido. Precisou de algumas
semanas para secar completamente e
eu precisei usar algumas soluções
criativas: no início o tronco do
cogumelo ainda estava mole e não
aguentava o peso da cabeça, que teve
A verdade é que a massa de biscuit que ser apoiada em um copo nas
me ajudou a entrar em contato com a primeiras noites para manter o formato
minha zona de conforto e buscar uma desejado. Após alguns dias os pedaços
estética que é visualmente familiar: estavam mais estáveis e eu consegui
temas espaciais, estrelas, tons montar a obra e esperar que ela secasse
escuros, surrealismo como uma peça única. Em seguida,
e olhos em todo lugar. Todos esses pintei e criei uma textura a mais usando
elementos fazem parte do que tinta guache.
Ana Lisboa chama de “mitologia
pessoal” e é o tipo de estética
que espero com meu processo.

A imaginação inventa mais que coisas e


dramas; inventa vida nova, inventa mente
nova; abre olhos que têm novos tipos de
visão
BACHELARD [1942] , 1997, p. 18

33
Cyathus Stercoreus

6 ângulos da peça de Biscuit, 13 cm de altura


Maria Cabral , 30/01/2022
Não consigo pensar numa obra mais adequada para o
06/02/2022 fechamento deste projeto. Essa peça levou o maior
Lepista Personata tempo de preparação, custou mais recursos e estresse,
e teve o resultado mais original. Trabalhar com resina
Resina foi o meu maior desafio em todo o experimento, visto
que, para criar um objeto em resina, precisei antes
encontrar um objeto de plástico com o formato
desejado e usá-lo para construir um molde de silicone
usando borracha líquida. Depois desse processo,
adicionei ao molde algumas plantas desidratadas (como
Escolhi uma paleta de sempre pensando na paleta de cores), e cobri com
secundárias minimalista resina líquida. Ao desmoldar a peça notei que tinha
para ressaltar a ficado opaca, então lixei o cogumelo com lixas diversas
transparência da resina (de número 60 a 600) e usei cera para polir. Por último
passei uma camada generosa de laca chinesa (verniz de
acabamento brilhante).

molde de silicone

Todo o processo desde comprar a primeira leva de borracha durou 3 meses para se completar
e desde então apareceram muitos obstáculos: os materiais acabavam, a peça ficava fosca,
problemas na encomenda da resina, mas tudo valeu a pena no final quando eu consegui criar
essa peça única. Ao fim me sinto intimamente ligada à peça depois de ter superado muitos
obstáculos surgidos no processo.
35
Lepista Personata

6 ângulos da peça de Resina, 17 cm de diâmetro


Maria Cabral, 06/02/2022
Descobertas
Durante a jornada de condução desse experimento foram feitas muitas
descobertas, tanto acerca do meu próprio processo criativo quanto no que se refere
ao papel fundamental da materialidade que influencia toda a composição e propõe
um espectro finito de possibilidades e impossibilidades a serem concretizadas a
partir do momento que o artista escolhe uma técnica específica, o que não
necessariamente impede o artista de desconstruir essas limitações, não se atendo
às regras impostas e trazendo soluções criativas para os obstáculos que esses
métodos podem apresentar. Ao delimitar um formato para a sua obra, algumas
decisões são tomadas por consequência, como por exemplo, se um artista decide
trabalhar com pastel oleoso, automaticamente uma opção (consciente ou não) por
linhas menos nítidas foi feita em conjunto.

Devo explicitar que muitas das vezes eu dei início ao processo não sabendo aonde a
obra iria me levar. Isso ocorreu principalmente com as técnicas mais distantes da
minha prática usual. Este tipo de processo pode trazer obstáculos e problemas que
um artista com mais experiência em tal área não teria, mas a magia de criar uma
arte pela primeira vez de modo empírico é uma aventura e muitas vezes o laço
criado com a obra é muito mais forte. O poder curativo da arte é evidenciado nesses
momentos em que o artista consegue assumir com orgulho uma obra, mesmo
sabendo que aos olhos técnicistas ela está falha.
Inicialmente no experimento meu propósito era identificar e delimitar os elementos
que compõem a “minha estética". Apesar de apresentar com frequência alguns
elementos visuais às minhas obras, essa noção do que se encaixa no meu perfil
artístico é um conceito restritivo e arriscado - na medida de que é fatal para um
artista se ater a uma zona de conforto. Afinal, geralmente, essa zona é inimiga da
criatividade. A proposta de experimentar novas técnicas pode ser desafiador, mas
me obrigou a não depender de características e aspectos que eu considerava
“meus” e me norteou a caminhos que eu não cogitava atravessar, o que no final se
tornou um exercício de desconstrução do engessamento dos meus hábitos como
artista e expandiu minhas habilidades e preferências estéticas.

37
Descobertas

Outra observação interessante em termos de processo criativo é que ao longo


do experimento foi muito variável o nível de ligação que cada obra tinha com a
espécie de cogumelo que eu escolhi: algumas técnicas tiveram uma inspiração
mais direta e eu prezei pela similidade, como na Mycena Acicula (Acrílica). Em
outros momentos a proximidade da obra com a espécie de referência não me
pareceu tão necessária e eu me senti mais confortável em subverter o objeto,
como na Coprinopsis Atramantaria (Desenho). Tal efeito se relaciona com os
pensamentos de Bachelard quando ele diz: “Mas, além das imagens da forma,
tantas vezes lembradas pelos psicólogos da imaginação, há imagens da
matéria, imagens diretas da matéria.”(BACHELARD [1942], 1997, p. 2)

Cada técnica, cada materialidade evoca possibilidades e inflama o processo


criativo à sua própria maneira, e essas alterações vão se relacionar e mutar-se
de acordo com as pré-disposições de cada artista, seu nivel de familiaridade,
sua mitologia pessoal, suas repetições. Em conclusão, absolutamente qualquer
coisa pode contaminar seu processo criativo, desde seu humor, ao tipo de cerda
do seu pincel, tanto as minucias das tecnicalidades quanto os aspectos pessoais
e emocionais da sua relação com a obra e com o mundo.
Como artista, aceitar essas variantes e permitir um fluxo mais orgânico nas
minhas jornadas provou ser um método muito eficiente de evoluir e coletar
experiência, além de extrapolar minhas tendências e rotinas criativas. É muito
facil e tentador, mesmo no mundo da arte, se trancafiar numa caixa. É muito
fácil também assumir que por ser um artista você automaticamente não corre
risco de se limitar à conformidade, mas nossas caixas são diferentes, algumas
nem parecem caixas. Com isso em mente, cair na zona de conforto, trilhar um
caminho "seguro" sempre é a forma mais tentadora, e conta com o poder da
inércia forçando ainda mais a inovação, a aventura e o inesperado para fora de
nossos processos. Este experimento simbolizou uma luta ativa a favor da
criação e da imaginação e é um exercício que todo artista deveria experimentar.

38
Referências

Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos : ensaio sobre a imaginação da
matéria [1942]. Tradução Antônio de Pádua Danesi. - São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BARROS, Anna. A Investigação na produção da obra de arte. Pesquisa em
Artes Plásticas, ANPAP. 1993.
BOHR, NIELS. The quantum postulate and the recent development of atomic
theory. Nature 121. 1928.
BUENO, Maria Lúcia. Artes Plásticas no Século XX – Modernidade e
Globalização. São Paulo: Unicamp, 1999.
HOFSTAETTER, Andrea. A poética da Repetição. Arte: limites e
contaminações. Anpap. Vol. 1. anais do 15° encontro nacional da anpap,
2007
JUNG, Carl. Four archetypes. Princeton: Princeton University Press, 1973.
LISBOA, Ana. A Memória como Subsídio para uma Poética. 16° Encontro
Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas,
2007.
OSTROWER, Fayga (1977). Criatividade e processos de criação. Petrópolis,
Vozes, 1987.
PAREYSON, L. Conversaciones de estética. 7a ed. Madri: Visor, 1988.
PAREYSON, L. L’interpretazione dell’opera d’arte. In: Atti del III Congresso
Internazionale di Estetica. 1956.

39
Referências
Figuras
1. Da esquerda para direita, superior a inferior: ischnoderma resinosum; mycena
acicula; pleurotes citrino pileatus, artomyces pyxidatus; calocera cornea;
hericium americanum; clavaria zollingeri; byssonectria terrestris; ascocoryne
sarcoides. Disponíveis em <https://ultimate-mushroom.com/>
2. Mycena adonis. A. Aronsen, 2006, Canadá. Disponível em
<https://www.mycena.no/adonis.htm>
3. Entoloma hochstetteri II. Atli Arnarson, 2016, Nova Zelandia. Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/atlapix/33488694721/>
4. Black rain for little gnomes. Hannele K.. 2012 Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/hannhell/8035676562>
5. Da esquerda para direita, superior a inferior: stropharia caerulea; psathyrella
candolleana; pleurotus djamor. Disponíveis em: <https://ultimate-
mushroom.com/>
6. Spinellus fusiger. Sava Krstic. Disponível em
<https://www.mykoweb.com/CAF/species/Spinellus_fusiger.html>

40
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE ARTES
LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

ALEXANDRA JAROCKI RADUY

PROJETO FAYGA OSTROWER: INTERFACES - DESAFIOS E POSSIBILIDADES EM


FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO

RECIFE
2022
ALEXANDRA JAROCKI RADUY

PROJETO FAYGA OSTROWER: INTERFACES - DESAFIOS E POSSIBILIDADES EM


FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO

Trabalho de Conclusão apresentado ao curso de


graduação em Artes Visuais – Licenciatura, na
Universidade Federal de Pernambuco, como
requisito parcial para obtenção do título de
Licenciada em Artes Visuais.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Elizabeth Lisboa
Nogueira Cavalcanti.

RECIFE
2022
BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Profª Dra. Ana Elizabeth Lisboa Nogueira Cavalcanti (UFPE / Orientadora)

__________________________________________________________
Profª Dra. Maria Betânia e Silva (UFPE / Examinadora Interna)

__________________________________________________________
Prof ª Me. Paulidayane Cavalcanti de Lima (UFPE / Examinadora Externa)
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, primeiramente, a meus familiares. Minha mãe, Chrisleane


Jarocki Raduy, meu pai, João Raduy Jr. e meu irmão João Pedro Jarocki Raduy, por
terem acreditado em mim e me apoiado em todas as minhas escolhas, quando tomei a
decisão de iniciar esta graduação e durante todo o curso. Sem a bênção e o apoio de
vocês eu não poderia ter chegado a realizar o sonho de estudar Arte.
Agradeço também a todas as amigas e amigos que conviveram comigo durante esta
fase universitária e também me apoiaram e acolheram em diversos momentos.
Agradeço em especial a Ana Luísa Jófili, Priscilla Von Sohsten, Polly Cavalcanti,
Camila Zilar, Veridiana Luna, Äyporã, Aline Portela, Marília Braga, Risaldo Silva e
Angelik Santos.
Agradeço à Universidade Federal de Pernambuco, pela oportunidade de realizar este
curso. Agradeço às professoras e professores dos cursos de Licenciatura em Música e
em Artes Visuais, pela convivência e pelos conhecimentos transmitidos e construídos,
eu agradeço a todos, e em especial Ana Lisboa, Luciana Borre e Maria Betânia e Silva,
que estiveram mais próximas durante o fim da jornada, me apoiando com muita
compreensão em relação as minhas dificuldades. Agradeço por acreditarem em mim e
por toda a paciência e gentileza em me orientar.
Também agradeço profundamente a todos colegas com quem convivi durante a
graduação. Deixo aqui um Salve para toda a turma de 2016 e para Monica Fidelis (in
mem.), Hayanna Saldanha, Fabiana Alexandre, Sílvia Oliveira, Luciane Morais, Thaysa
Assuba, Glaucy Lopes, João Vicente Annoni, Dyana Barlavento, Diogo Todë, Joyce
Ara’í, Michael de Souza, Fabiana Francisca, Suzanne Oliveira, Michele Antônio e Jams.
Por fim, agradeço pela oportunidade ao Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, à
Galeria Capibaribe, ao Instituto de Arte Contemporânea da UFPE (e à Talles Colatino),
ao Colégio de Aplicação da UFPE (e à professora Fabiana Vidal), e à Escola de
Referência de Ensino Médio Diário de Pernambuco, instituições nas quais realizei
meus estágios. Todas as experiências vividas nestes espaços foram essenciais para
minha formação.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

1. FORMAÇÃO COMO ARTE/EDUCADORA 13


1.1 Primeira experiência: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães 13
1.2 Segunda Experiência: Monitoria em Gravura 17
1.3 Terceira Experiência: Instituto de Arte Contemporânea da UFPE (IAC) 21

2 . FAYGA OSTROWER: INTERFACES 28


2.1 Trajetória da Artista 28
2.2 Momento presente: o Instituto e o projeto 33
3.2 Mediação cultural online: uma questão 37

4. TRAJETÓRIA DO PROJETO 41
4.1 Ação: o projeto na prática 41
4.1.1 Início das atividades 42
4.1.2 Pensando a mediação 47
4.1.3 Ações de mediação empreendidas 52
4.2 - Resultados alcançados: análise e avaliação 58
4.2.1 Aprendizado e formação 59
4.2.2 Público alcançado 61
4.3 Propostas de melhorias com base nos resultados 66

CONSIDERAÇÕES FINAIS 71

REFERÊNCIAS 73

APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO 75
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Formação durante a montagem da exposição “Carimbos”............................14


Figura 2 - Visita da equipe do MAMAM ao Museu Cais do Sertão………………………15
Figura 3 - Equipe do MAMAM em visita à Usina de Arte………………………………...17
Figura 4 - Montagem do painel de lambe-lambe com gravuras………………………….19
Figura 5 - O painel concluído………………………………………………………………...20
Figura 6 - Cartaz de divulgação da Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais………22
Figura 7 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil……………23
Figura 8 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil……………24
Figura 9 - Alguns Resultados da Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais…………25
Figura 10 - Cartaz de divulgação da exposição virtual Fayga Ostrower: Interfaces…...27
Figura 11 - “Amamentando”, água-forte e ponta-seca sobre papel……………………...29
Figura 12 - “6812”, xilogravura a cores sobre papel de arroz…………………………….31
Figura 13 - Cartaz de divulgação da Live no evento Cultura Viva……………………….42
Figura 14 - Matéria publicada no Jornal do Commercio…………………………………..44
Figura 15 - Cartaz de divulgação da Live de abertura da mostra………………………..45
Figura 16 - Etapas de elaboração do cartaz para divulgação do projeto………………..46
Figura 17 - Publicação de Obra na Exposição Virtual……………………………………..51
RESUMO

Este trabalho de conclusão de curso relata os desafios e possibilidades encontrados


durante os processos de elaboração, execução e mediação na exposição virtual Fayga
Ostrower: Interfaces. A mesma foi realizada na plataforma virtual Instagram, por uma
equipe composta por professores, e alunos do curso de Licenciatura em Artes Visuais
da UFPE no período compreendido entre os meses de agosto a novembro de 2020.
Este evento teve por objetivo levar a público a coleção de obras recebida pela
Universidade em ação do Instituto Fayga Ostrower. O objetivo geral desta pesquisa foi
registrar e refletir sobre o desenvolvimento e a realização de um projeto
artístico-pedagógico em uma plataforma virtual, apresentando as ações de mediação
desenvolvidas pela equipe durante o projeto. Busco entender possíveis impactos
dessas novas condições em um projeto artístico/pedagógico realizado no formato
virtual, em virtude das ações de enfrentamento da COVID-19 (Sars-coV-2). Para tanto,
elegi como território reflexivo a metodologia do Estudo de Caso, elaborada a partir da
obra de Robert K. Yin, utilizando-a para analisar a proposta de mediação desta
exposição, avaliar os resultados alcançados, identificar seus êxitos e lacunas, e por fim
pensar possibilidades de melhoria e aprimoramento dessas ações. Também utilizo,
para pensar sobre questões de mediação, os trabalhos da Profa. Rejane Coutinho. Em
relação à virtualidade e sua presença nos espaços educativos, o diálogo crítico-teórico
se dá com os trabalhos de Cibele Barbosa e Byung-Chul Han. Este trabalho procura
mostrar que a realização desse tipo de evento no atual contexto significa não apenas a
manutenção de importantes laboratórios para arte/educadores em formação, como
também um campo de descoberta de novas formas de pensar ações educativas,
possibilitando um preparo profissional atualizado e alinhado com as ferramentas que,
em contexto de distanciamento social, possibilitam mediação entre conteúdo e público.

Palavras-chave: Exposição virtual; Formação docente; Mediação no contexto


emergencial; Fayga Ostrower;
ABSTRACT

This work reports the challenges and possibilities encountered during the elaboration,
execution and mediation processes in the virtual exhibition Fayga Ostrower: Interfaces.
This project was carried out on the virtual platform Instagram, by a team composed of
professors, and students of the Degree in Visual Arts at UFPE in the period between
August and November 2020. This event aimed to bring to the public the collection of
works received by the university in a donation action of the Fayga Ostrower Institute.
The general objective of this research was to record and reflect on the development and
realization of an artistic-pedagogical project on a virtual platform, presenting the
mediation actions developed by the team during the project. I seek to understand
possible impacts of these new conditions on an artistic/pedagogical project carried out
in the virtual format, due to the actions to face COVID-19 (Sars-coV-2). Therefore, I
chose the work of Robert K. Yin, using Methodology to analyze the mediation proposal
of this exhibition, evaluating the results achieved, identifying its successes and gaps,
and finally thinking about possibilities for improvement and enhancement of these
actions. To think about mediation issues, I bring Rejane Coutinho. Regarding virtuality
and its presence in educational spaces, the dialogue takes place with Cibele Barbosa e
Byung-Chul Han. This work seeks to show that the realization of this type of event in the
current context means not only the maintenance of important laboratories for
art/educators in training, but also a field of discovery of new ways of thinking about
educational actions, allowing an updated and aligned professional preparation to work
with tools that, in a context of social distancing, enable mediation between content and
audience.

Keywords: Virtual exhibition; Cultural Mediation; Art teacher training; Fayga Ostrower;
9
INTRODUÇÃO

Este trabalho de conclusão de curso surge a partir de um grande imprevisto, um


acaso de impacto global. O final do ano de 2019 foi marcado pelo início da crise
sanitária mundial provocada pelo vírus Sars-coV-2 (COVID-19). Sabe-se que a
pandemia tem causado impactos de diversas ordens em praticamente todos os setores
da sociedade e da vida das pessoas. A partir de março de 2020 iniciou-se o isolamento
social no Brasil, trazendo uma grande mudança de hábitos e estilo de vida. Aí, o papel
de disseminação de informações e comunicação da World Wide Web se intensificou, e
a Internet ampliou-se rapidamente como “local” ou “espaço” de realização de uma
gama de atividades e encontros, que costumavam ser presenciais até então. Este local
virtual, referido por Pierre Lévy como Ciberespaço, tem seu funcionamento e expansão
orientados por três princípios, segundo o mesmo autor: “a interconexão, a criação de
comunidades virtuais e a inteligência coletiva.". (LÉVY, 1999, p. 127) Sua constante
expansão nos possibilita diversos tipos de interação entre os usuários, em tempo real
ou não. É verdade que essas possibilidades já eram uma realidade antes da chegada
deste momento de isolamento, entretanto, sua utilização como ferramenta de estudo,
mediação e comunicação, ao longo do ano de 2020, se tornou muito mais expressiva e
até mesmo obrigatória para estudantes e professores.
O Projeto Fayga Ostrower:Interfaces aconteceu neste contexto, durante o
primeiro semestre letivo remoto (2020.1), realizado em caráter emergencial na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no período compreendido entre agosto
e novembro de 2020. O ponto de partida foi uma coleção de obras de Fayga Ostrower
recebida pela UFPE. Por ocasião de seu centenário, em 2020, o Instituto Fayga
Ostrower decidiu doar coleções de obras do acervo pessoal da artista para algumas
instituições e museus nacionais e internacionais, privilegiando instituições públicas. A
principal contrapartida das instituições contempladas tem sido a de realizar mostras e
ações educativas a partir deste acervo. Entrando neste circuito, o Instituto de Arte
Contemporânea e a Galeria Capibaribe (UFPE) realizaram este projeto, que contou
com duas ações: mostra das obras e minicurso de extensão.
10

Neste trabalho, fruto da atuação junto à exposição e posterior pesquisa, busco


relatar e refletir, do ponto de vista de uma arte/educadora em formação, sobre os
desafios e possibilidades da adaptação e da realização deste projeto virtual; identificar
os ganhos e limites da realização do evento em formato online; relatar e refletir sobre
as estratégias pedagógicas de mediação desenvolvidas, além de colaborar ativamente
para a memória e a visibilidade deste acervo, e consequentemente, sua valorização e
conservação.

Este estudo também visa dar uma contribuição aos estudantes que venham a,
futuramente, participar de projetos similares. Espera-se que, a partir deste relato,
outros possam colher informações úteis para seu próprio desenvolvimento. Assim, o
trabalho também busca servir pesquisadores e professores que porventura estejam
buscando pensar e analisar ações arte/educativas em contextos educativos informais
e/ou processos de formação de professores de arte, bem como com aqueles que
futuramente venham possivelmente a analisá-lo como fonte histórica. Para tanto, parto
da seguinte questão: quais os percursos, os desafios e possibilidades encontradas no
desenvolvimento da mediação nesta exposição online?

O trabalho estará estruturado de forma a, no primeiro e segundo capítulos,


contextualizar o leitor. No Capítulo 1 (Formação como arte/educadora), relato
brevemente minha trajetória de vivências como mediadora durante a graduação, e
trago alguns registros das atividades desenvolvidas. No Capítulo 2, (Fayga Ostrower:
Interfaces) trago algumas informações a respeito de Fayga e sua trajetória e detalhes a
respeito da proposta do projeto. No terceiro capítulo, (Mediação cultural e o contexto
virtual), a intenção é introduzir o conceito de mediação cultural e refletir sobre os
desafios encontrados durante o presente projeto no tocante à sua realização em meio
virtual. No quarto capítulo (Trajetória do projeto), a partir da metodologia do estudo de
caso, relato minha jornada pessoal durante o estágio, com enfoque em pormenores da
proposta de mediação; como se deu o processo de desenvolvimento e de trabalho,
refletindo sobre os processos de exposição e mediação das obras; e proponho, por fim,
ações de melhoria com base na análise dos resultados.
11

Metodologia de pesquisa

Para organizar esta análise das ações empreendidas, apoio-me na metodologia


do Estudo de Caso, de acordo com as sistematização feita por Yin: “O estudo de caso
é uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu
contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto
não estão claramente definidos.” (YIN, 2001. P. 32) Segundo o autor, esta metodologia
engloba a lógica do projeto; as técnicas de coleta de dados e as abordagens
específicas da análise dos dados, visando compreender o evento estudado e ao
mesmo tempo desenvolver reflexões a respeito do fenômeno observado.
Para além de apenas descrever fatos ou situações, o Estudo de Caso busca
construir conhecimento acerca do fato em estudo. As etapas do estudo se estruturam
da seguinte maneira: descrever como a ação foi desenvolvida; avaliar os resultados
alcançados e, por fim, refletir e planejar melhorias com base nestes resultados. Dentre
as ações desenvolvidas pelos educadores em formação, considero que a ação de
mediação da exposição seja a mais importante, pois se trata do ponto de contato mais
próximo entre a exposição e o público.

“Um território potente e de tensões que abrange estranhamentos,


surpresas, choque, indignação, afinidades, gostos, resistências, aberturas,
diálogos, trocas, percepções ampliadas, empatia, alteridade. Assim,
considerando o ser humano como um ser histórico e social inserido em sua
cultura, a mediação é compreendida como interação e diálogo que valoriza e
dá voz ao outro, ampliando horizontes que levam em conta a singularidade dos
sujeitos em processos educativos na escola ou fora dela. Podemos
denominá-la como “mediação cultural”. (MARTINS In IBRAM, p.85)

Portanto, elegi as ações de formação das estagiárias e de mediação para minha


investigação mais detalhada. Os dados utilizados na apresentação deste relato são
oriundos tanto do projeto quanto de minha trajetória formativa durante sua realização.
Dentre os dados do projeto se encontram gravações das transmissões ao vivo
12

(disponíveis online), arquivos de elaboração da identidade visual e da expografia e


documentos coletivos: projeto de estágio, folha de frequência, catálogo da exposição,
cronograma etc. Dentre meus próprios documentos se encontram meu diário de bordo,
anotações durante as aulas de Estágio e reuniões, planejamentos de atividades e
exercícios realizados durante as leituras dirigidas. Além disso, também conto com um
questionário respondido pelos alunos do minicurso e os dados de interação do público
com a exposição, que se encontra online na plataforma Instagram.
13

1. FORMAÇÃO COMO ARTE/EDUCADORA

Em minha vivência como estudante, a graduação na Licenciatura em Artes


Visuais foi permeada por experiências em espaços expositivos e educativos, que
culminaram na participação no projeto Fayga Ostrower: Interfaces, vivida durante o
último estágio curricular. Faço aqui um breve relato destas experiências anteriores,
onde e como elas se deram, com alguns exemplos práticos, com enfoque nas
experiências em mediação. Busco assim contextualizar o leitor, cartografando o
caminho de práticas como mediadora/educadora que percorri até o momento da
realização do projeto sobre o qual este trabalho versa.

1.1 Primeira experiência: Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães

Em 2017, durante o 3º período do curso de Licenciatura em Artes Visuais, iniciei


minha primeira experiência profissional na área de Artes Visuais, estagiando no Museu
de Arte Moderna Aloísio Magalhães (MAMAM). Procurei o estágio por acreditar nas
possibilidades de aprendizado e aprimoramento oferecidas por tal vivência, entendendo
o estágio como uma ação de articulação entre a teoria e prática, e como o principal
meio para que o estudante e futuro educador entre em contato com o ambiente
educativo, suas dinâmicas de funcionamento e organização. (BORSSOI, 2008) Assim,
iniciei minha trajetória como arte/educadora em formação, na companhia dos colegas
estagiários e com a orientação das coordenadoras do espaço, tendo minha primeira
vivência como mediadora com pouco conhecimento teórico a respeito da função, pois
este assunto somente seria abordado no curso em períodos futuros.
O MAMAM está localizado na Rua da Aurora, no bairro da Boa Vista, centro do
Recife. Ocupa um prédio histórico da cidade, um casarão do século XIX. É um museu
que possui um acervo de obras com foco na arte moderna e contemporânea. As
exposições são temporárias/itinerantes, exigindo dos mediadores constante estudo e
atualizações a respeito de todos os detalhes da proposta vigente no espaço. Durante o
tempo de expediente, além de recepcionar e dialogar com o público, foi possível
14

observar em detalhe as obras expostas e debater tanto sobre as ações de mediação


como também sobre a exposição, as obras, seus conteúdos etc.

Figura 1 - Formação com a curadora Clarissa Diniz durante a montagem da exposição “Carimbos” de
José Cláudio, 2017.
Fonte: Perfil do MAMAM no Instagram (@mamamrecife).
15

Foi uma experiência bastante rica observar pela primeira vez a montagem de
exposições, como por exemplo, a mostra Carimbos, de José Cláudio, onde realizamos
uma formação ministrada pela curadora, Clarissa Diniz, durante a montagem das obras
(imagem n.01). Também realizamos visitas a outros espaços arte/educativos, como o
Museu Cais do Sertão e a Usina de Arte (imagens n. 02 e 03). Conversar com artistas
e curadores, além do contato diário com os colegas e funcionários do museu foi
bastante enriquecedor.

Figura 2 - Visita da equipe do MAMAM ao Museu Cais do Sertão, 2017.


Fonte: Perfil do MAMAM no Instagram (@mamamrecife).

Nas reuniões semanais de formação, éramos estimulados a pensar e elaborar


formas de mediar as obras, trazendo a proposta curatorial para a mediação em paralelo
com a abertura ao diálogo e o estímulo ao público em desenvolver e compartilhar suas
próprias reflexões a respeito do que estava sendo apresentado na mostra, atuando em
consonância com o que apresenta Rejane Coutinho (2010):
16

[...] o educador que atua como mediador na “democratização do acesso


aos bens culturais patrimoniais” precisa compreender os mecanismos que se
interpõem às suas ações e aos seus discursos. Ao reproduzir o discurso
institucional, seja o discurso da própria instituição ou daqueles que os
representam, como por exemplo o discurso do curador ou do historiador, o
mediador estará anulando suas próprias intenções educacionais de
transformação social. (COUTINHO, 2010. p.2423)

Em resumo, considero que minha primeira experiência como mediadora e


arte/educadora em formação foi permeada por diversos estímulos que um estudante
deve receber para seu desenvolvimento e aprendizados, como por exemplo, estar em
contato com profissionais que já atuam na área e o estímulo ao debate e à pesquisa.
Portanto considero um privilégio poder ter tido essas experiências em um espaço
dinâmico e em constante atualização e estudo.
17

Figura 3 - Equipe do MAMAM em visita à Usina de Arte, 2017.


Fonte: Perfil do MAMAM no Instagram (@mamamrecife).

1.2 Segunda Experiência: Monitoria em Gravura

Após o término do primeiro estágio, iniciei as atividades como monitora nas


disciplinas de gravura A e B da UFPE, onde permaneci durante três semestres. Na
monitoria, as principais atividades consistiram em auxiliar os estudantes na preparação,
no uso e manutenção das ferramentas e materiais e orientar quanto aos procedimentos
das técnicas de produção de gravura, junto com a professora Ana Lisboa. Apesar de
não ser uma vivência de mediação em um espaço expositivo, a monitoria me trouxe
uma experiência de construção do conhecimento apenas possível diante da prática no
18

atelier presencialmente com outros estudantes, em especial aqueles que estavam


tendo seu primeiro contato com a Gravura.
A vivência mais emblemática deste período foi o trabalho de conclusão da
disciplina de Gravura A em 2018, que consistiu na montagem de um grande painel em
lambe-lambe, utilizando as gravuras produzidas pelos estudantes (imagens n.04 e
n.05). O painel onde foi montado o lambe, mede aproximadamente 22 x 2 metros, se
localiza em local de destaque no Centro de Artes e Comunicação da UFPE e
periodicamente recebe diferentes intervenções. A montagem foi feita de forma coletiva,
tornando-se um momento colaborativo, lúdico e de muita satisfação e estreitamento
dos vínculos de amizade e coleguismo. Curiosamente, na fase da montagem
aconteceu a mediação destes trabalhos para o público do centro, que transitava pelo
local, e parava tanto para observar quanto para fazer perguntas a respeito do que
estava acontecendo. A ação foi registrada em fotografias pela estudante Graciela
Ferreira (figuras 04 e 05):
19

Figura 4 - Montagem do painel de lambe-lambe, 2018


Fotografia: Graciela Ferreira
20

Figura 5 - O painel concluído, 2018


Fotografia: Graciela Ferreira

Foi também nesta época que conheci o trabalho de Fayga Ostrower e comecei a
ler o livro Criatividade e Processos de Criação (OSTROWER, 1987). Conhecer o
modo como Fayga enxerga a criatividade e seus processos me mostrou que minhas
impressões a respeito desses assuntos não eram inéditas, em especial aqueles que
dizem respeito à criatividade como potencialidade inerente ao ser humano. Para a
autora (1987), "Assim como o próprio viver, o criar é um processo existencial. Não
abrange apenas pensamentos nem apenas emoções." Para mim, a realização coletiva
do painel materializou sua existência, e junto com ele, a existência de um momento
presente e de sua lembrança; de uma vivência e uma conexão também emocional e
pessoal com os colegas, a professora e com o trabalho desenvolvido na disciplina.
21

1.3 Terceira Experiência: Instituto de Arte Contemporânea da UFPE (IAC)

Após o fim da monitoria, iniciei as atividades como mediadora bolsista de


extensão no Instituto de Arte Contemporânea da UFPE (IAC), localizado no Centro
Cultural Benfica, anexo do Departamento de Artes. Neste espaço, as atividades
desenvolvidas são as de mediação cultural e elaboração de projetos envolvendo
atividades e oficinas para o público. De março de 2020 até meados dos primeiros
meses de 2022, as atividades do IAC aconteceram apenas online, em forma
principalmente da elaboração de exposições virtuais. Este trabalho envolve Pesquisas,
elaboração de textos e propostas de mediação virtual. Durante o período de atividades
remotas, participei das seguintes mostras virtuais: Quarentenart: cultura em casa
(IAC), Fayga Ostrower - Interfaces (IAC), Tramações III (Galeria Capibaribe/IAC),
Diversidade UFPE (IAC), Dentro fora, fora dentro (Cristina Machado/IAC). Todas as
mostras estão online e podem ser acessadas no perfil @iacbenfica, no Instagram.

Nos meses em que permaneci realizando as atividades presenciais no IAC, além


de mediar sobre uma exposição, elaborei e ministrei junto à colega Glaucyellen Lopes
e ao coordenador do Instituto, Talles Colatino (que posteriormente atuou na equipe de
Fayga OStrower: Interfaces), uma oficina de pintura com pigmentos naturais. O contato
com as crianças e jovens e sua vontade de explorar as substâncias e criar e
experimentar cores foi bastante instrutivo. Mas, elaborar e executar a oficina também
exigiu um trabalho em coletivo, que nos conduziu a elaborar um planejamento
detalhado. Além da elaboração de um projeto, realizamos pesquisas e testes práticos
com os materiais e pigmentos escolhidos, para entender melhor como eles funcionam e
como conduziríamos a atividade, tanto para as crianças quanto para os jovens e
adultos.
22

Figura 6 - Cartaz de divulgação da Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais, 2020.


Fonte: Perfil do IAC no Instagram (@iacbenfica).
23

Figura 7 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil, 2020.
Fonte: acervo da autora.
24

Figura 8 - Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais com a turma intanfil, 2020.
Fonte: acervo da autora.
25

A oficina foi estruturada de maneira a transmitir aos participantes alguns


conhecimentos teóricos básicos, orientações sobre como produzir uma paleta de cores
e depois um momento de criação e experimentação com as tintas produzidas.
Supervisionamos o trabalho respondendo dúvidas e dando alguns direcionamentos.
Incentivando o desapego de resultados perfeitos, focando no experimentar e conhecer,
no momento presente.

Figura 9 - Resultados da Oficina de Pintura com Pigmentos Naturais, 2020.


Fonte: acervo da autora.

Em paralelo a estas atividades extracurriculares, vivi as experiências proporcionadas


pelos estágios curriculares, que, ao todo, são quatro, cada um com um semestre de
duração. Os dois primeiros compreendem vivências em espaços educativos formais,
26

nos ensinos fundamental e médio, respectivamente. Os dois últimos em espaços


educativos não-formais e expositivos. Cada estágio é dividido entre períodos de
observação e de atividades práticas.
Na disciplina AR 688 - Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais 3, cujo
objetivo é uma experiência em espaço educativo não-formal, realizei o trabalho como
estagiária no Projeto Fayga Ostrower: Interfaces (figura 9). Laboratório sobre o qual
escrevo no presente trabalho, e também o último a ser realizado em um componente
curricular obrigatório para minha formação. O primeiro e maior desafio de participar
deste projeto como estagiária foi o impacto da mudança de modalidade do ensino e da
aplicação do projeto. Eu, como estudante e como mediadora, não estava preparada
para essa mudança. A experiência de estudar e trabalhar online foi uma novidade a
qual foi preciso adaptar-se para dar continuidade aos estudos. Hoje, quase um ano
após esta experiência, é possível perceber-me mais familiarizada com as ferramentas
online, e até mesmo com perspectivas mais amplas sobre seu uso e sua importância.
27

Figura 10 - Cartaz de divulgação da exposição virtual Fayga Ostrower: Interfaces, 2020.


Fonte: acervo da autora.

Participar de todas estas atividades foi fundamental em minha formação. Eu


poderia ler uma infinidade de artigos sobre museus e ações educativas, mas, jamais
teria real dimensão de como se dão os processos de preparação e implementação
destas práticas se não pudesse estar presente nestes locais, participando ativamente
da rotina diária destes espaços. Toda esta carga contribuiu de maneira significativa
para minha participação em Fayga Ostrower: Interfaces, pois este projeto trouxe
desafios inéditos para mim em relação à mediação, e o conhecimento que pude
construir nas experiências anteriores foi o ponto de apoio para pensar minha atuação
no projeto.
28

2 . FAYGA OSTROWER: INTERFACES

2.1 Trajetória da Artista

Fayga Perla Krakowski nasceu na cidade de Łódź, na Polônia, no ano de 1920.


Cresceu em Wuppertal, cidade alemã, com seus pais e três irmãos. Com a iminência
da Segunda Guerra Mundial, deixaram o país clandestinamente, vivendo um ano na
Bélgica antes de embarcar definitivamente para o Brasil, um dos poucos destinos
possíveis para os refugiados do conflito. Chegou ao Brasil junto com sua família em
1934, aos 13 anos de idade. Durante a longa viagem, Fayga começou a desenhar, e
registrou tanto ambientes do navio como retratos dos tripulantes. No Rio de Janeiro,
cresceu, se naturalizou brasileira e realizou sua formação artística. Aos 24 anos
trabalhava como secretária-executiva em um escritório, e nesta época, inscreveu-se na
Associação de Belas Artes, onde frequentava as sessões de desenho da entidade,
onde conheceu Heinz Ostrower, com quem veio a casar-se em 1941. Em 1947, deixou
seu emprego para realizar o curso de Artes Gráficas oferecido pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV). O curso foi dirigido pelo pintor, ilustrador, gravador, cenógrafo e crítico
de arte Tomás Santa Rosa (1909-1956). Nele, a artista teve aulas com o gravador
austríaco Axl Leskoschek (1889-1975), com a professora de história da arte Anna Levy
e com o pintor Carlos Oswald (1882-1971).
No início, por cerca de uma década (1940) sua obra tem um caráter figurativo.
Fayga retratou paisagens e lugares e - buscando uma abordagem crítica - várias
cenas do povo brasileiro, em seus costumes e condições de vida carentes nas
favelas, sendo recorrentes as representações de meninas, mulheres e suas
vivências e ofícios, como na gravura “Amamentando” (figura 10). Mais tarde,
questiona-se a respeito da expressividade de seu trabalho e passa a refletir e
buscar novas formas de criar: “Percebi que em certas situações humanas, de
grande sofrimento, guerra, bomba atômica, campo de concentração, fome, qualquer
comentário artístico que queira dar dimensões estéticas ao fato torna-se sem
sentido.” (OSTROWER, 1983a)
29

Figura 11 - “Amamentando”, água-forte e ponta-seca sobre papel, 13x12,5 cm, 1947.


Fonte: Acervo do Instituto Fayga Ostrower.

Foi nesse momento que Fayga conheceu a obra de Cézanne (1839-1906).


Sobre ele, Fayga afirmou: “Sua visão de espaço e a problemática da forma que
levanta foram uma revelação tão grande para mim, que tudo o que até então
30

imaginava se transformou” (OSTROWER, 1983a). A partir de então, sua obra


começou a se modificar, rumo à abstração e ao interesse em litogravura e serigrafia
(Figura 11) - mudança esta que foi gradual, e fortemente rechaçada pelos críticos
de arte da época. Mas, com essa produção, teve muito reconhecimento, participou
de bienais, exposições e recebeu diversos prêmios, como a condecoração Ordem
do Rio Branco, em 1972; o Prêmio do Mérito Cultural pelo Presidente da República
do Brasil, em 1998 e o Grande Prêmio de Artes Plásticas do Ministério da Cultura,
em 1999. (ALMEIDA, 2006)
31

Figura 12 - “6812”, xilogravura a cores sobre papel de arroz, 60x39,5 cm, 1968.
Fonte: Acervo do Instituto Fayga Ostrower.
32

Durante sua trajetória, Fayga trouxe diversas contribuições significativas para os


campos da arte e da educação, em especial no Brasil, onde viveu a maior parte de sua
vida. Atuava de forma tornar o conhecimento artístico acessível para mais pessoas,
sem distinção de classe social - e não apenas sob a forma de aquisição de obras, mas
sim como formação pessoal, no sentido do desenvolvimento da capacidade de
interpretar e entender as linguagens artísticas e expressar-se através delas; como
parte do desenvolvimento das potencialidades criativas inerentes ao ser humano.
A importância de Fayga como artista se dá principalmente no campo da gravura,
apesar de ela também ter produzido diversas obras em outros suportes. Isto porque a
gravura não apenas representa sua produção mais abundante, mas também se
conecta com sua preocupação em levar a arte além. Especialmente em sua época, a
característica de reprodutibilidade das técnicas da gravura, que permitem a produção
de diversas “cópias originais” de uma obra, tornou estes trabalhos, de certa forma, mais
acessíveis do que as obras produzidas sobre um suporte não-reprodutível, como
apontado por Walter Benjamin (1892 - 1940) em seu texto A Obra de Arte na Era de
sua Reprodutibilidade Técnica (1936), onde discute este assunto e seus diversos
desdobramentos. Isto se manifesta claramente na possibilidade de as obras de Fayga
integrarem hoje os diversos acervos brasileiros contemplados, que podem contar com
cópias originais de uma mesma obra.
Segundo sua filha, Noni Ostrower, Fayga trabalhou a vida toda incansavelmente
para se expressar como artista mas também para distribuir tudo o que sabia e conhecia
para outras pessoas. Assim, viajou por diversos estados do Brasil, dando aulas,
palestras e fazendo exposições. Ela conta que Fayga sempre retornava de suas
viagens muito empolgada, “alimentada”, não somente pelas experiências vividas, mas
também impressionada com tudo que estava sendo feito por todo o Brasil em matéria
de arte sem qualquer tipo de divulgação. Fayga lamentava este “anonimato”,
entretanto, o que ela presenciou fortalecia sua certeza de que realmente a arte era algo
fundamental na vida das pessoas e não apenas enfeite ou objeto de luxo. (Noni
Ostrower, 2020, live de abertura da Exposição Fayga Ostrower: Interfaces)
Como professora, a artista ministrou cursos não somente em instituições
especializadas, Entre os anos de 1954 e 1970, lecionou na disciplina de Composição e
33

Análise Crítica no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nos EUA e na Inglaterra,
além de atuar na pós-graduação de várias universidades brasileiras. Nesse período,
também ministrou cursos em espaços não-formais, como a Gráfica Primor, onde deu
um curso aos operários, experiência registrada em seu livro Universos da Arte, por
exemplo.
Assim, é possível compreender que a obra de Fayga não é composta apenas
por suas inúmeras gravuras, pinturas e desenhos. Fayga nos legou também seis livros
que tratam dos temas ligados à arte e a criatividade de maneira bastante profunda e
minuciosa, além de inúmeros artigos. Seus escritos são importantíssimos para a
formação de professores, estudantes e artistas e, a nosso ver, do interesse de qualquer
pessoa que possua abertura ao sensível.

2.2 Momento presente: o Instituto e o projeto

Fundado em 2002, o Instituto Fayga Ostrower visa a preservação e a exposição


permanente da obra de Fayga. Para tanto, foi criado um museu destinado a abrigar a
coleção. Servindo de laboratório para a formação de estagiários, o instituto também
realizou o trabalho de catalogação de todo o acervo, que além das obras de arte inclui
documentos, escritos, fotografias, filmes e objetos pertencentes à artista. Também são
parte das atividades do instituto a realização de projetos, seminários e exposições com
o objetivo de preservar, divulgar e desenvolver as ideias, as concepções e o espírito da
obra e da vida de Fayga como artista plástica, escritora e educadora.
O Instituto criou em 2018 o programa de doação de obras, voltado a museus
brasileiros. O acervo foi recebido pela UFPE como parte das ações desse programa.
Doações a diversas instituições integram estas ações, pensadas e direcionadas de
acordo com as ideias de Fayga. Nas palavras de sua filha, para Fayga a arte é um
patrimônio da humanidade. De acordo com esta ideia foram feitas estas diversas
doações a instituições e museus, das quais uma contemplou a UFPE.
A chegada destas obras representa uma imensa colaboração não apenas para o
acervo que a universidade já possui, mas também configura-se como um material de
34

estudo para os professores e alunos de Artes Visuais e também de outros cursos,


como Museologia, por exemplo, chamando nossa atenção não apenas para as obras
recebidas, mas também para todo o legado artístico e intelectual da artista.
Este presente possibilitará aos estudantes e professores especial contribuição em sua
formação, reflexão e aprendizado. Além da elaboração de textos sobre Fayga e suas
ideias, a presença destas obras já incita a realização desta exposição, além das
diversas ações pensadas para levar até o público de interesse todas estas
informações. Assim, observamos como este intento de Fayga continua sendo semeado
por sua filha.
Fayga Ostrower: Interfaces é um projeto de ensino, pesquisa e extensão. Seu
início se deu em 2019, quando começou o acordo para o recebimento de quarenta
gravuras, doadas por Anna Leonor Ostrower e Carl Robert Ostrower, herdeiros da
artista. Em fevereiro de 2020 as obras foram recebidas pelo Departamento de Artes da
UFPE e acomodadas no Memorial Denis Bernardes, localizado na Biblioteca Central.
Nesta ocasião foram recebidas 40 (quarenta) gravuras, 5 (cinco) matrizes, cartazes de
divulgação e publicações diversas.

Desde então, o grupo docente dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em


Artes Visuais elaborou propostas para a democratização do acesso a este patrimônio
artístico-cultural, que culminaram no projeto Fayga Ostrower: Interfaces. O título do
projeto foi elaborado em conjunto pela equipe, e busca representar nosso intento de ir
além de apenas exibir as obras da artista. Queríamos revelar ao público as outras
faces de Fayga, que, indissociáveis de sua obra, se fazem presentes ao pensar sua
trajetória: mulher, mãe, escritora, educadora. Como já explanado anteriormente, diante
das ações de enfrentamento à pandemia, todos os objetivos, metas e atividades
previstas foram repensadas e readequadas, para que o projeto fosse apresentado em
caráter estritamente virtual, garantindo assim sua realização no período do centenário
de Fayga.
Com o objetivo de ampliar e democratizar o acesso ao patrimônio
artístico-cultural, o projeto aconteceu em três etapas, sendo elas a qualificação e
formação pedagógica de um grupo de oito estudantes de Graduação em Artes Visuais
35

da UFPE para questões relacionadas aos processos de criação em Artes Visuais e às


práticas artístico-pedagógicas em campos educativos; a exposição virtual das obras
doadas de Fayga Ostrower, por meio da rede social Instagram, e a proposição de um
curso de extensão virtual para 50 participantes oriundos da comunidade acadêmica da
UFPE, que ocorreu de forma simultânea com a exposição.
36

3. MEDIAÇÃO CULTURAL E O CONTEXTO VIRTUAL

3.1 O debate sobre a mediação cultural

Mediação cultural é uma atividade que vem sendo exercida em diversos contextos,
desde museus, a bibliotecas dentre diversos tipos de espaços culturais. Neste trabalho,
procuro focar na mediação como processo arte/educativo, que ocorre em museus,
galerias e exposições. Existem muitos debates acerca do papel da mediação e do
mediador, não havendo espaço suficiente para citá-los neste trabalho. Pretendo fazer
aqui um breve panorama para contextualizar o leitor.
O termo mediação é derivado do latim, onde encontramos as palavras mediator,
“mediador”, mediari, “intervir, colocar-se entre duas partes”, e medius, “meio”.1
Sabendo disso, podemos ter a impressão inicial de que o mediador atua como uma
“ponte” entre a exposição e seus conteúdos e o público. Este não é um pensamento
errôneo. Entretanto, o trabalho realizado pelo mediador vai muito além da simples
transmissão estática de informações: ele opera o acesso à cultura. (COUTINHO, 2009)
Estando no “meio”, o mediador tem o papel ativo de procurar entender as necessidades
de seu público - através do diálogo - e entender qual a melhor maneira de aproximá-lo
da mostra e suas discussões, conduzi-lo a reflexões e novas maneiras de olhar e ver. É
essencial que o que está sendo transmitido, debatido, faça sentido para ambas as
partes envolvidas nesse processo.
Se tratando de exposições virtuais, como é o caso do projeto Fayga Ostrower:
Interfaces, as dinâmicas de mediação se modificam - não em seu fundamento - mas
são atravessadas pela distância física entre mediador e público, e intermediadas pelos
dispositivos digitais. O diálogo não acontece mais de maneira direta, e há lacunas tanto
temporais quanto informacionais, a depender da ferramenta escolhida para a ação de
mediação virtual. Mas, é plenamente possível estabelecer debates e provocar reflexões
no público através dessas ferramentas. A seguir, busco colocar alguns pontos com os
quais me encontrei durante reflexões a respeito do contexto dos ambientes virtuais e
como eles podem influenciar a atividade de mediação.

1
Fonte: site Origem da palavra. Disponível em:<https://origemdapalavra.com.br/palavras/mediacao/>
37

3.2 Mediação cultural online: uma questão

As possibilidades didáticas de utilização das ferramentas virtuais no


ensino-aprendizagem já é um assunto recorrente. Neste momento de isolamento
social, os encontros online são, praticamente, a única maneira de interagir com colegas
e professores. Transmissões ao vivo de variados tipos se tornaram não apenas comuns
mas talvez até excessivas, bem como um aumento cada vez maior do número de
pessoas conectadas à web - por cada vez mais tempo. É bastante fácil, para aqueles
incluídos digitalmente, imaginar que praticamente todas as pessoas possuem acesso à
tecnologia. Se por um lado a internet é uma poderosa ferramenta de comunicação de
distribuição de informações, por outro, há uma parcela da população que não possui
acesso a este meio. Se para uns a internet democratiza e dissemina, para outros,
limita.
É verdade que essa realidade apresenta pontos significativos de exclusão, por
outro lado, também é possível dizer que a disponibilização de exposições virtuais e/ou
catálogos, portfólios e eventos também contribuem para a expansão dos
conhecimentos no campo artístico. Assim como Fayga Ostrower em sua trajetória
arte-educativa, penso em estratégias para disseminação e compartilhamento de
práticas, ações, técnicas e reflexões oriundas das Artes Visuais: fomentando a
democratização do conhecimento artístico neste momento em que vivemos, permeado
pelo distanciamento social e impossibilidade de visitação a espaços expositivos ou
artístico-pedagógicos. Por este motivo, entendo que as exposições e suas respectivas
mediações virtuais também podem ser estratégia ou ferramenta para tornar tais
conhecimentos populares e acessíveis. Entendendo que há presença de contradições
e consonâncias nas práticas de mediação cultural, busco caminhar com as ideias de
Rejane Coutinho:

[...], formar um educador pesquisador não pressupõe apenas realizar


pesquisas sobre arte e sobre formas de ensinar arte no processo de formação.
Pressupõe interrogar pressupostos e paradigmas, pressupõe provocar
deslocamentos na pessoa que se forma, pressupõe enfrentar as conflituosas
referências culturais pessoais, revelando as várias camadas que nos
38

conformam. Em suma, é preciso encorajar os educadores a duvidar de suas


próprias certezas e das verdades institucionalizadas e/ou naturalizadas pelo
próprio campo da arte e do ensino de arte.(COUTINHO, 2010. p. 2422)

O principal ponto que se apresentou em minhas reflexões a respeito da


mediação cultural em contexto virtual é o de que a velocidade de consumo dos
conteúdos online segue sempre aumentando. E chamo atenção para o termo “consumo
de conteúdo”: hoje, para além dos recursos vitais e dos bens materiais em geral, a
virtualidade e seus produtos também se caracterizam como passíveis de serem
consumidos pela audiência. Neste cenário, chamar a atenção do espectador online
torna-se cada vez mais difícil conforme o tempo passa, algo que, lógica e infelizmente,
colabora fortemente para que conteúdos mais longos e aprofundados - ou mesmo que
não tenham um intuito de entretenimento rápido - não sejam de interesse de grande
parte da população, como aponta Barbosa:

Com o advento da internet no final do século XX, e a eclosão


das redes sociais e smartphones no século XXI, os modelos de
validação social e de consumo receberam novos contornos. Com a
ajuda de inteligência artificial, algoritmos passaram a mapear
preferências, opiniões e gostos através de dados oferecidos por nós
mesmos, de “mão beijada”, nas redes sociais. (BARBOSA, 2022)

Diante disso, foi necessário refletir até que ponto e para que indivíduos o nosso
conteúdo era de interesse. Como tudo o que é disponibilizado hoje na rede, a ideia do
projeto atingiria uma parcela interessada no assunto o suficiente para parar e empregar
seu tempo e sua atenção naquele conteúdo. Por outro lado, é importante destacar que
estas ações em âmbito virtual possibilitaram o registro ampliado de conhecimentos e a
disponibilização em rede de todo o material, não se restringindo apenas ao período de
tempo ativo da exposição ou aos muros da universidade e aos residentes da cidade. A
39

mediação em tempo real ocorreu apenas durante o período da exposição, entretanto,


pessoas de qualquer localidade podem acessar a mostra, assim como seu catálogo, a
qualquer momento; assim, tempo e espaço são transpostos.
Portanto, atingir um público além daquele já ativamente interessado pelo
trabalho de Fayga foi um dos desafios do projeto. Dados os limites e possibilidades da
plataforma escolhida para hospedar a exposição - cujo objetivo principal é o
compartilhamento de imagens, com pouco espaço para textos -, foi acordado que a
principal ferramenta de mediação seria o minicurso online, realizado em uma
plataforma de videoconferência. Desta forma, os mediadores puderam estar em
contato direto com estas pessoas, dialogando em tempo real.
Com a expansão constante da internet e das tecnologias digitais, em especial
das imagens digitalizadas - sejam de obras de arte ou não - o valor cultural e até
monetário atribuído às obras visuais modificou-se drasticamente. Com a digitalização e
a facilidade de acesso, perde-se a “aura”2 de unicidade da obra (Benjamin, 1987,
p.168). Antes, era mais importante que estes objetos existissem do que que fossem
vistos. Seu valor devia-se à sua existência e em parte residia no fato de que poucos
poderiam acessá-la, o que demonstra uma “negatividade do apartar (secret, secretus),
delimitação, reclusão é constitutiva para o valor cultural” (Han, 2017, p.27). Atualmente,
segundo Han (2017) em diálogo com Benjamin (1963), vivemos em uma “sociedade
positiva”, o que significa que “as coisas, agora transformadas em mercadorias, têm de
ser expostas para “ser”, seu valor cultural desaparece em favor de seu valor
expositivo”.
Logo, mais um desafio que se apresentou foi o de pensar como o público atual,
que recebe imagens desta forma, poderia ir além e refletir a respeito da importância
das criações de Fayga, em especial as gravuras - com sua revolucionária possibilidade
de reprodução analógica - produzidas em um tempo onde as imagens não eram
digitalizadas e facilmente acessíveis como agora, e as obras de arte tampouco. Por
esse motivo, foi incluído no programa do minicurso, conteúdo sobre as técnicas de
gravura utilizadas por Fayga, visando aprofundar a compreensão dos participantes

2
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. Brasília: São Paulo, 1987.
40

sobre a importância desse processo. Além disso, também incluímos na mostra alguns
recortes de detalhes em alta qualidade de cada obra, evidenciando suas formas, cores
e texturas mais particulares, procurando aproximar o usuário o máximo possível das
obras, já que ele não poderia vê-las pessoalmente e observá-las de perto.
41

4. TRAJETÓRIA DO PROJETO

Neste capítulo, parto da metodologia de pesquisa apresentada por Yin (2001),


em sua estratégia descritiva, onde a intervenção a ser estudada - neste caso, o projeto
Fayga Ostrower: Interfaces - e o contexto em que ocorreu são descritos em detalhes.
Mas, para além de apenas descrever a situação, o método também orienta a busca
pelos conhecimentos proporcionados por esta experiência, além de comprovar ou
contrastar relações evidenciadas no caso a partir de suas etapas de execução.
Portanto, descrevo a seguir as etapas da realização do projeto, desde as primeiras
reuniões da equipe até as ações de mediação. Começo pela descrição dos processos
e desenvolvimento do projeto, a partir do meu ponto de vista, com trechos de meu
diário de bordo. Depois descrevo os resultados alcançados, realizando também uma
avaliação destes resultados e, por fim, uma reflexão a respeito de possíveis caminhos
e soluções para os desafios encontrados no percurso, incluindo os dados obtidos a
partir de minha documentação pessoal do processo e da colaboração de colegas -
estagiárias e professoras - e participantes do minicurso oferecido pelo projeto.

4.1 Ação: o projeto na prática

Minha participação nas ações do projeto teve início na disciplina AR 688 -


Estágio Curricular em Ensino das Artes Visuais 3, que começou no dia 26 de agosto de
2020. Nesta primeira aula, a professora Luciana Borre Nunes apresentou alguns
projetos arte-educativos que seriam desenvolvidos durante o semestre, e poderíamos
escolher aquele que desejássemos, de acordo com o número de vagas para
estagiários disponíveis em cada um. Optei pelo projeto sobre Fayga Ostrower, que
naquele momento ainda não tinha o título “Interfaces” definido.
Minha escolha se deu por alguns motivos pessoais. Além de admirar o trabalho
da artista, não apenas sua produção artística, mas também literária, sinto uma
afinidade com a Gravura, e apesar de não ser uma gravurista eu mesma - apenas uma
estudante - a gravura me fascinou desde que consegui entender do que ela trata, as
42

possibilidades de expressão que ela oferece e quais foram os impactos de seu advento
no desenvolvimento social da humanidade. Além disso, a professora orientadora deste
trabalho também faria parte da equipe, então, tudo pareceu muito propício para que
este fosse o projeto ideal para mim e para meu TCC.

4.1.1 Início das atividades

A partir do dia 31 de agosto a equipe do projeto passou a reunir-se


quinzenalmente para trabalhar na proposta, além disso, também tínhamos encontros
semanais com a professora Luciana Borre, que, além de coordenadora do projeto
Fayga Ostrower: Interfaces, também atuou como docente na disciplina de Estágio.
Logo, estávamos em contato e estudo constante. Nas reuniões com a equipe todos os
detalhes do projeto foram decididos coletivamente: o título, como se daria a elaboração
do catálogo, onde e como a exposição iria acontecer, além da divisão da equipe em
grupos menores para a execução das tarefas.

Figura 13 - Cartaz de divulgação da Live no projeto Cultura Viva, 2020.


Fonte: Perfil no Instagram da PROEXC-UFPE (@extensãoecultura.ufpe).
43

Era necessário realizar pesquisas para a redação dos textos e elaboração de


uma identidade visual para a exposição, além de pensar o catálogo. Uma parte da
equipe visitou o memorial e fotografou as obras em alta qualidade para que
pudéssemos trabalhar com essas imagens. Depois, com o andamento da produção,
novas tarefas surgiram, como responder e-mails e possíveis contatos de pessoas
interessadas em inscrever-se para o minicurso e também a organização e publicação
das obras. Para tanto, os estagiários foram escolhendo de forma orgânica sua
participação nessas tarefas.
44

Figura 14 - Matéria publicada no Jornal do Commercio, 2020.


Fonte:Jornal do Commercio.
45

Além disso, também foi realizada a transmissão de dois vídeos ao vivo (lives),
sendo o primeiro uma edição do Projeto Cultura Viva: UFPE na sua casa - Projeto da
pró-reitoria de Extensão e Cultura da UFPE, lançado com o objetivo de divulgar ações
de ensino, pesquisa e extensão nas áreas de Arte e Cultura (figura 12). Participei desta
Live em parceria com a colega Mariana Penha, e as professoras Luciana Borre e Ana
Lisboa. Nesta transmissão falamos um pouco sobre quem foi Fayga, A proposta do
projeto e a mostra que estava para ser lançada em breve. Fayga Ostrower: Interfaces
também foi divulgado na imprensa local, a exemplo da seguinte matéria, publicada no
Jornal do Commercio (figura 13). A segunda Live representou o evento de abertura da
exposição, e contou com a participação de Noni Ostrower, filha de Fayga Ostrower
(figura 14). Mais adiante escrevo sobre o que foi apresentado nesta transmissão.

Figura 15 - Cartaz de divulgação da Live de abertura da mostra, 2020.


Fonte: Perfil no Instagram do IAC-UFPE (@iacbenfica)
46

Voltando ao acontecia no estágio, nas aulas da disciplina de Estágio 3,


realizamos a leitura dirigida de dos livros Cibercultura, de Pierre Levy (1997) e de
Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower (1987). Além de
realizarmos tais leituras - pertinentes ao projeto - a professora constantemente nos
remetia questões a respeito de seus conteúdos, nos estimulando a escrever e refletir
de forma aprofundada sobre os assuntos abordados pelos autores. Além disso, era
possível dialogar com os colegas participantes de outros projetos, o que enriqueceria a
experiência como estagiária. Durante estes encontros também foram orientadas as
atividades pertinentes ao estágio, como registro da frequência e realização do relatório
final.

Figura 16 - Etapas de elaboração do cartaz para divulgação do projeto, 2020.


Fonte: acervo da autora.

Na divisão da equipe do projeto Fayga (como me referi a ele durante este


período inicial), me enquadrei na turma de identidade visual e mídia social. Ou seja,
juntamente com outras colegas que também escolheram realizar este trabalho, fiquei
responsável, junto com mais três colegas, pela elaboração dos cartazes de divulgação
da exposição e de uma identidade visual para a postagem das obras, bem como da
elaboração dos textos descritivos e realização do upload das obras e textos para a
plataforma no tempo devido. A seguir registros de algumas imagens propostas pelas
47

estagiárias da equipe para o cartaz, ainda em processo de elaboração (figura 15).


Nosso principal consenso foi que - ao contrário de boa parte dos cartazes elaborados
para outras mostras de obras de fayga encontrados em nossas pesquisas -
utilizaríamos imagens de obras presentes na exposição para compor a imagem.
Logo no início percebi que poderia haver uma melhor distribuição das tarefas, e
também a dificuldade de construir coletivamente à distância, mas apenas segui em
frente, procurando me adequar à dinâmica que foi se construindo coletivamente.
Registrei essa inquietação, que mais tarde se confirmaria como pertinente, em meu
diário de bordo:

16 de setembro de 2020

Pude perceber o quanto é difícil, para mim, trabalhar em grupo sem que haja alguém para
mediar e distribuir as tarefas. Acabou que discutimos o que queríamos fazer, cada uma
colocou suas sugestões e opiniões, e cada uma, menos eu, apresentou exemplos de
cartazes. Me senti desestimulada e um pouco perdida. Agora percebo: apenas não estava
compreendendo bem a dinâmica que o grupo desenvolveu organicamente. Não sei como
minhas iniciativas iniciais foram recebidas/percebidas pelas outras integrantes do grupo,
mas, foi possível notar que não fui compreendida como eu esperava. Não pude perceber se,
além disso, há outras falhas de comunicação entre nós. Fica evidente para mim agora, de
forma prática, a falta e as lacunas deixadas pela ausência de um encontro presencial, senti
isso não apenas em relação ao projeto da identidade visual, mas também em outras tarefas
em grupo.

4.1.2 Pensando a mediação

Desde o início das reuniões, foi pedido aos estagiários que procurassem
elaborar sugestões de atividades de mediação para a exposição, algo que seria nossa
principal responsabilidade caso a mostra estivesse acontecendo de forma presencial.
Em minhas anotações comecei com o seguinte parágrafo - acredito que ele representa
uma mistura das falas da professora coordenadora do projeto e de meus pensamentos
no momento. O escrevi durante a reunião, para que norteasse minha posterior reflexão
em busca de sugestões:

23 de setembro de 2020
48

[É necessário] Pensar não somente em entregar conteúdo, mas estimular que o público
interaja. Promover uma atividade como um concurso, chamada, proposta ou um desafio
artístico. Pensar em outros estímulos sensoriais que possam dialogar com as obras (música,
poesia, filmes, textos, outros artistas), visando interações mais rápidas e de pessoas não
dispostas a parar sua rotina para realizar uma atividade mais aprofundada, como um
desenho, por exemplo. Lembrar que é interessante buscar no público aquilo que ele gostaria
de ver. Elaborar enquetes e perguntas para estimular uma interação. Exemplos: O que essa
obra te faz sentir? O que essas cores/formas te trazem (percepção)?

Como se nota, este parágrafo apresenta uma imensa quantidade de possibilidades em


mediação, especialmente em diálogo com as ferramentas da plataforma.

Diante deste campo minado que é o campo das práticas artísticas temos
que ser cautelosos, e como agentes mediadores neste contexto cabe então nos
perguntar: para quem fazemos a mediação? Qual o foco prioritário deste
trabalho? Se pensamos no público é preciso buscar identificar e situar quem é
este público. (COUTINHO, 2009. pp. 3739-3740)

Assim como Coutinho (2009), este trecho de minhas anotações sugere que
pensemos cuidadosamente no público que irá receber as publicações e que - neste
caso, sendo o público de uma rede social - se não houver um estímulo que desperte
seu interesse visual de imediato, provavelmente irá sair da mostra. O trecho também
procura pensar em um público mais engajado, aquele que já se interessa por arte de
forma mais aprofundada e que estaria disposto, por exemplo, a realizar um desenho
como atividade sugerida. A seguir as duas propostas de mediação que elaborei:

Atividade 1
Público: artistas e estudantes de arte
Atividade: orientar produções que serão compartilhados pelos participantes com uma
hashtag pensada para representar esta ação particular de mediação.
Metodologia: Seria sugerido, a cada bloco de obras, um “desafio” diferente. Desafio esse
que não representa uma competição, mas sim uma vivência criativa, lúdica, artistica,
produtora de bem-estar que a pessoa pode escolher fazer consigo. Em cada desafio, seria
49

orientado um tipo diferente de produção que dialogasse com as obras. Por exemplo:
releitura, desenho, fotografia, poema ou frase, um story que a pessoa faça no perfil dela com
a obra e a interação, dentre outros. A inclusão do story como opção aqui, se dá pelo fato do
que ele se apresenta como uma ferramenta com amplas possibilidades de criação, e não
necessita materiais externos, além de ser uma das principais ferramentas de contato e
interações rápidas e em tempo (quase) real no Instagram. Paralelamente, montar uma
galeria virtual para expor os trabalhos postados, contribuindo também para a visibilidade
desses artistas que se interessaram em produzir e interagir com a exposição, formando uma
via de mão dupla. Imagino que, para estes aspirantes ou interessados em arte, o estímulo e
reconhecimento na rede social podem contribuir para um maior desenvolvimento e
aprofundamento dessa atividade, enquanto a participação dele colabora para que toda a sua
rede de contatos possa ficar sabendo da existência do projeto, tornando-se potenciais
visitantes.

A Segunda proposta, seria a de uma visitação guiada pelas obras. Uma


transmissão ao vivo onde um ou mais mediadores apresentaria cada obra, interagindo
com o público ao vivo, respondendo perguntas e também promovendo debates sobre
as obras, informando e ao mesmo tempo colaborando para uma participação ativa do
público. Eu não escrevi de maneira detalhada como se daria esta ação pelo motivo de
que, quando apresentei a ideia, fui informada de que seria muito dispendioso manusear
as obras desta forma, já que não estão expostas, e sim armazenadas no acervo, além
da dificuldade de acesso ao local e reunião de uma equipe por conta das restrições do
isolamento social. Logo, esta ideia não foi desenvolvida.
Como é possível notar, além de pensar a mediação (publicações e apresentação
de uma aula online no minicurso), nós, estagiárias, elaboramos a expografia, a
identidade visual, parte do catálogo… Ou seja, diversas tarefas simultâneas, que foram
possíveis de serem realizadas apenas por estarem sendo conduzidas de forma virtual,
pois, caso a mostra ocorresse de maneira presencial, outros profissionais cuidariam
dessas etapas. Mas, apesar da profusão de tarefas, obtivemos novas experiências.
Não entramos no projeto apenas como mediadoras, mas também trabalhamos
ativamente em sua produção geral. Além disso, outro desafio pessoal encontrado,
provavelmente o maior, foram as reflexões relativas ao virtual x analógico, como
registrei em meu diário de bordo mais uma vez:

16 de setembro de 2020
50

Nunca pensei que precisaria pensar uma exposição e um curso de arte como se pensa um
produto visual a ser consumido em uma rede social digital. Me intriga estarmos construindo
uma exposição virtual de arte, onde as peças expostas são gravuras - analógicas, com todos
os seus pormenores visuais, como coloração e texturas, apenas visíveis de forma presencial.
Onde, provavelmente, sua autora não imaginou que elas seriam colocadas desta forma um
dia. Sinto aí ainda algo a desvendar, penso que esse paradoxo está me mostrando algo que
eu ainda preciso compreender, me causa curiosidade. É também cômico como eu, que gosto
do analógico, nunca desejei trabalhar em uma plataforma digital, criando e desenvolvendo
projetos virtuais, agora sou empurrada exatamente para onde não queria ir. Isto porque
sempre temi a defasagem, as perdas na transposição do material para o virtual. Agora,
temporariamente - assim esperamos - o virtual é a nossa única opção para seguir adiante
estudando, trabalhando e produzindo. Diante disso resolvi abrir-me para esta experiência e
para o que é possível; para ver e pensar estratégias para dar continuidade às atividades.

Com o início deste primeiro semestre de aulas remotas, surgiu a necessidade de


passar mais tempo em frente às telas, do celular, e principalmente do computador,
diariamente, não apenas para assistir às aulas, mas também para pesquisas e leituras,
tanto do estágio quanto das outras disciplinas cursadas simultaneamente. Devido à
carga de trabalho em produzir, e das dificuldades surgidas deste processo de
adaptação ao uso excessivo das tecnologias (que não apenas eu estava enfrentando,
mas que no meu caso se manifestou como crises de enxaqueca, dores nos olhos e um
cansaço mental com maior dificuldade de manter o foco por longos períodos de tempo),
a questão da mediação diária e ativa dentro da mídia social acabou ficando para a
última hora e não houve tempo de colocar em prática todas as ideias que os
mediadores haviam sugerido. Muitas eram as questões em relação à mediação - tanto
pela nossa inexperiência com o virtual - como também pelo tipo de plataforma
escolhida para a mostra. Sobre isso, mais uma vez registrei em diário algumas
inquietações:

16 de setembro de 2020
Me pergunto como poderemos com uma exposição de gravuras abstratas chamar a atenção
de pessoas interessadas em arte, não uma arte como é a encontrada abundância no
Instagram, geralmente figurativa/ilustrativa. Como capturar a atenção deste espectador
habituado a consumir imagens em massa e convidá-lo a observar, refletir, abrir-se para
apreciar um tipo de trabalho abstrato? Aqueles que têm um interesse genuíno irão escolher
acessar e participar. Porém acredito que seja essencial trabalhar em prol de despertar o
51

interesse daqueles que não conhecem a artista e seu trabalho. No instagram, estaremos
"competindo" com um mar de postagens criadas de maneira a seduzir instantaneamente o
olhar, e da mesma forma que esta sedução é rápida, também é rápido o desinteresse, o
passar para próxima imagem. Estamos em uma plataforma que, ao mesmo tempo possibilita
trocas e encontros, mas também está estruturada para criar desatenção, para viciar, nos
deixar online e distraídos o máximo de tempo possível.

Como não houve tempo para pensar estratégias tão específicas, a solução
encontrada foi a de nos concentrarmos no público já interessado, e que o minicurso
seria a principal atividade de mediação da exposição - nele depositamos nossos
maiores esforços. Ademais, não deixamos o espaço da exposição sem informações
relevantes e diversificadas por não ter conseguido organizar um plano de interação em
tempo real na plataforma. Procuramos mediar da forma que estava a nosso alcance -
trabalhamos para transmitir e registrar um resumo das diversas informações sobre a
mostra no instagram: nas postagens e em contexto com as obras, publicamos textos
sobre cada uma das técnicas trabalhadas por Fayga, fatos e curiosidades sobre a
artista e sua trajetória, além de trechos de seus escritos. Assim, além de trazer o
básico - a ficha técnica da obra postada - também temos diferentes e diversificadas
informações sendo apresentadas com cada uma delas, enriquecendo a experiência do
espectador.
52

Figura 17 - Publicação de Obra na Exposição Virtual, 2020.


Fonte: perfil do IAC-UFPE no Instagram (@iacbenfica).

Na figura 16, temos um exemplo de obra publicada, acompanhada de texto mediador e


emoldurada em branco com design minimalista desenvolvido pela equipe de identidade
visual, pensado para interferir visualmente da menor forma possível na obra, e ao
mesmo tempo, identificar as publicações da mostra.

4.1.3 Ações de mediação empreendidas

Por fim, ao todo, conseguimos empreender duas ações de mediação, uma


atemporal e uma efêmera. Primeiramente, a difusão de informações adicionais em
conjunto com a publicação das obras - que ficará disponível por todo o tempo em que a
exposição estiver online. E em segundo o minicurso de extensão, que aconteceu
durante o lançamento da exposição, colocando o público em contato direto com os
mediadores, possibilitando debates e explicações mais aprofundadas, em tempo real,
porém sem registro ou gravações (exceto pela primeira aula, que se encontra
disponível no youtube, já que foi transmitida publicamente pela plataforma como
abertura da exposição).
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O minicurso funcionou da seguinte forma. Disponibilizamos 50 vagas para


inscrição, que foram preenchidas em apenas três dias de divulgação. A live de abertura
com Noni Ostrower contou como primeiro encontro, e foi transmitido de forma pública
na internet, no dia 19 de outubro de 2020, através da plataforma de vídeos YouTube3.
O conteúdo desta live foi uma introdução ao projeto. Talles Colatino mediou a conversa
entre os participantes. Primeiramente foi falado sobre como se deu o desenvolvimento
do projeto desde o início de sua organização. Depois de cada um dos integrantes da
equipe de coordenadores falar um pouco sobre sua vivência, Noni Ostrower falou sobre
trajetória do Instituto Fayga Ostrower e as atividades que lá são desenvolvidas. Citou a
futura publicação de livros inéditos da autora e lembranças de sua vida ao lado da
mãe. Por fim, foram respondidas perguntas enviadas pelo público. A seguir, alguns
comentários enviados pela audiência durante a Live - também acessíveis no link que
hospeda o vídeo.

Mozí Neri: Viva a universidade pública!


Mozí Neri: o legado de Fayga é precioso!
Camilla Quirino: Que grande presente ao departamento
Maria De Jesus De Britto Leite: Que tesouro para a UFPE!
Joana Mariz: A UFPE e a comunidade ganhou (ganhamos) muito com essa doação do Instituto Fayga
Ostrower.
Mozí Neri: [Pra Noni] Gostaria de saber se há obras esgotadas e previsão de republicação ou mesmo
de originais que nunca foram publicados
Katlyn Amorim: Uma pergunta sobre o curso: Já que a primeira turma já se esgotaram as vagas, vocês
pensam em uma segunda turma? Estou amando a conversa!
Joana Mariz: Eu gostaria de saber como foi para Fayga a mudança do Expressionismo para a arte
abstrata. Sei que no início ela recebeu muitas críticas.
Ediel M.: Conhecemos a Fayga artista e pesquisadora. Gostaria de ouvir mais sobre a Fayga mulher,
política, mãe, amiga…
Conceicao Guimaraes: Gostaria de saber se na doação de obras da artista recebida pela Ufpe se há
alguma matriz de gravura? E se sim, se há algum projeto de restauro dessas matriz

3
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cm1RIFQ9UVY>
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Márcia GoulArt Vinhas Fernandes: Temos um Grupo de Arte que está estudando a Fayga, para o
Desafio de criar um trabalho a partir deste estudo.
Conceicao Guimaraes: Fico feliz que tenham matrizes nesse acervo e é fantástica a possibilidade de
se ter acesso a esse material para análise e detalhamento das obras.
Andréa Marinho: Sem dúvida, a memória deve ser disseminada e ela é também dinâmica. Por isso ela
é constantemente reconstruída!!!
Ediel M.: Em que aspectos o pensamento/arte de Fayga pode contribuir para a sociedade
contemporânea? Se ela estivesse viva como ela se posicionaria/criaria?

É notório que o conteúdo transmitido foi proveitoso para o público da Live, que
expressou sua gratidão e interesse através destes comentários. Os encontros/aulas
subsequentes estiveram disponíveis apenas para aqueles que optaram por se
inscrever para a atividade do mini-curso, pois, desta maneira, foi possível aprofundar o
debate e permitir uma participação mais ampla dos inscritos, que, na plataforma
Google Meet tiveram a oportunidade de interagir conversando com as professoras e
mediadoras (estagiárias), além de também serem vistos através das câmeras, e não
apenas escrever breves comentários como na transmissão pública. Foram emitidos
certificados para aqueles que compareceram a 75% das aulas e participaram da
atividade de avaliação, que consistiu em elaborar um arquivo em PDF contendo as
imagens das anotações realizadas durante o curso ou um resumo crítico-reflexivo do
livro Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower.
Em duplas, em parceria com cada uma das professoras participantes do projeto,
as estagiárias ministraram cada uma das aulas. Ao todo foram ministradas quatro
aulas, que aconteceram nos dias 19/10 e 16/11. Os objetivos principais do minicurso
foram: ler o livro Criatividade e Processos de Criação, de Fayga Ostrower, conhecer
o contexto histórico e artístico de Fayga Ostrower e conhecer os processos de criação
em gravura e serigrafia da artista, interpretando imagens e ampliando repertório visual.
As aulas ministradas obedeceram ao seguinte cronograma:
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19/10/2020, 14h, Canal do youtube “Extensão e Cultura UFPE”


● Abertura da Exposição Virtual “Fayga Ostrower: interfaces” e início do
minicurso, com Luciana Borre, Ana Lisboa, Wilson Chiarelli, Talles Colatino e Noni
Ostrower.
● Após o evento, iniciar a leitura do livro Criatividade e Processos de Criação,
de Fayga Ostrower, até a página 100.
● Realizar anotações acerca da leitura.

26/10/2020, 14h, Google Meeting


● Ser consciente-sensível-cultural, Contextos histórico-culturais de Fayga
Ostrower, com Wilson Chiarelli, Daniel Nogueira e Thaes Arruda.
● Continuar a leitura do livro até a página 150.
● Realizar anotações acerca da leitura.

09/11/2020, 14h, Google Meeting


● Interpretações das obras de Fayga Ostrower, com Luciana Borre, Rafaela
Elizabeth e Mariana Penha
● Continuação da leitura do livro.

16/11/2020, 14h, Google Meeting


● Processos intuitivos e imagens referenciais, com Ana Lisboa, Alexandra
Jarocki e Leticia Andrade.
● Finalizar a leitura do livro e realizar anotações acerca da leitura

Cada um desses trios de professora e estagiárias elaborou e ministrou sua aula


de acordo com este cronograma, buscando contemplar os principais assuntos tratados
no livro Criatividade e Processos de Criação. Trabalhei na última aula, em parceria
com a colega Letícia de Melo Andrade e a professora Ana Lisboa. A aula que
elaboramos abordou principalmente os assuntos do Capítulo 3 - Caminhos Intuitivos e
Inspiração.
Sobre o conteúdo e como decidimos abordá-lo nas aulas, eu apenas posso
versar a respeito da aula da qual participei como mediadora ativa. Então relatarei de
forma mais detalhada apenas como se deu a estruturação da última aula. Eu, a
professora Ana Lisboa e a colega Letícia de M. Andrade nos reunimos semanalmente
para elaboração de um plano de aula. Nossa primeira ação foi iniciar uma leitura
minuciosa com um fichamento detalhado do capítulo 3. Sugeri utilizar a estrutura de
plano de aula apresentada por José Carlos Libâneo, a qual eu tenho maior
familiaridade, chegando a estruturá-lo de maneira inicial, mas não foi muito efetiva, pois
o planejamento acabou acontecendo de forma mais orgânica, e acabou sendo, de certa
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forma, influenciado pela forma como se deram as aulas anteriores. No caso, o lapso de
participação ativa dos estudantes foi menor do que o esperado pelos professores do
minicurso, e este fato impactou nosso planejamento da aula final.
Quanto a essa questão, muito se discute atualmente, tanto em reportagens
quanto em artigos acadêmicos e pesquisas recentes: é notável que tanto os estudantes
quanto os professores - desde o ensino básico até o superior - neste período de
implantação do Ensino Remoto Emergencial, encontraram diversos obstáculos ao
aprendizado. Não pela falta de qualidade das ferramentas do ensino remoto, mas em
grande parte devido à maneira brusca como ocorreu essa mudança, o que
impossibilitou qualquer preparo ou formação para lidar com esta nova forma de mediar
o conhecimento, que tem todas as suas particularidades, como apontam Dolabella et
al. (2021):

Como o coronavírus interrompeu abruptamente as aulas presenciais,


não existiu um período de adaptação, preparo nem das aulas e/ou dos
professores para as novas ferramentas. Dessa forma, como o ERE pressupõe
uma linguagem particular, não habitual aos professores, entende-se que não foi
ofertada uma educação de qualidade como no sistema presencial. (DOLABELLA
ET AL., 2021, p.5)

Além da falta de preparo para lidar com uma nova maneira de mediar o
conhecimento, os estudantes também não estavam preparados para lidar com esta
nova maneira de participação, e os problemas de falta de foco, de participação ativa e
de dispersão também foram observados constantemente pelos professores tanto do
ensino básico quanto do superior. Pois,

Sabe-se que o aprendizado não é apenas a transmissão de


conhecimentos. Este processo também envolve as conexões criadas entre aluno
e professor, tal qual a interação desses com o ambiente de aprendizado. Assim,
a perda do contato aluno-professor ocasiona uma perda de qualidade do ensino,
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já que esse novo método requer maturidade, envolvimento e uma nova dinâmica
de estudos mais independente, que os alunos não estão acostumados.
(DOLABELLA ET AL., 2021, p.5)

Em nossa quinta e última reunião de planejamento, no dia 4 de novembro, a


professora Luciana Borre participou e trouxe estas questões. Em busca de estimular os
participantes, além do planejamento já desenvolvido, que envolvia uma série de
perguntas pedagógicas sobre os principais conceitos apresentados por Fayga no
capítulo 3, decidimos modificar a forma como estas perguntas seriam colocadas,
criando um jogo, onde todas as mediadoras do projeto participaram ativamente no
momento da aula. Por fim o planejamento da aula foi registrado em tópicos, e ficou da
seguinte maneira:

Sumário:

● Início da aula: vídeo de Fayga Ostrower falando sobre processo de criação (9


minutos)
● Uma breve biografia da autora.
● Um resumo geral do livro Criatividade e Processos de Criação
● Apresentação de Imagens de algumas obras de Fayga (acervo UFPE); falar sobre
gravura e explicar a técnica da água-forte.
● Relatar o processo criativo da aula (bastidores).
● Roda de conversa - Jogo de perguntas pedagógicas sobre os Capítulos (I, II e III);

Perguntas:

a- O que significa ser um ser consciente-sensível-cultural? (Letícia)


b- Qual o papel da intuição no processo educativo? (Leticia)
c- Qual a diferença entre invenção e criação dentro do processo criativo? (Thais)
d- Como Fayga entende a inspiração? (Alexandra)
e- Qual a visão de Fayga sobre a arte conceitual? (Alexandra)
f- Como Fayga define a palavra forma? (Joana)
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g- Como é apresentado o conceito de equilíbrio? (Joana)


h- O que seria padrão referencial básico? (Rafaela)
i- O que é ser espontâneo? (Rafaela)
j- O que Fayga fala sobre expressão infantil e o mundo da arte? (Thais e Luciana)
k- Qual a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de criação? (Luciana)

Com este jogo de perguntas, nossa principal intenção foi a de estimular a


participação ativa dos inscritos, gerando diálogo. Conduzimos a dinâmica da seguinte
forma: as perguntas foram colocadas pelas mediadoras principais, direcionadas aos
participantes e - a depender da necessidade - complementadas por respostas trazidas
pelas estagiárias. É possível observar o nome de cada estagiária ao final das
perguntas pelas quais ficou responsável. Cada estagiária estudou de forma
aprofundada a resposta para as perguntas escolhidas, para apresentá-las em diálogo
com o público. Neste momento de diálogo, diferente do momento de apresentação de
informações, onde o público recebe o conteúdo de forma passiva, supomos que,
devido ao diálogo empreendido entre as mediadoras, o público se sentiria mais à
vontade para dialogar também.
E assim, encerramos o minicurso e também a publicação de obras na exposição
virtual. Ao final da aula, me apresentei aos participantes, explicando minha proposta
para este trabalho, pedindo sua colaboração no preenchimento de um questionário a
respeito de sua experiência com a exposição e o minicurso, que apresento a seguir,
como parte dos dados de resultados alcançados.

4.2 - Resultados alcançados: análise e avaliação

A partir de agora, listo os ganhos e aprendizados que obtivemos a partir da


participação neste projeto, pontos positivos, e também, os desafios e perdas: pontos
negativos. Listo os resultados alcançados em termos de aprendizado e formação como
estagiária e em seguida em relação ao público que atendeu às atividades de mediação.
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4.2.1 Aprendizado e formação

Como relatado anteriormente, não entramos no projeto apenas como


mediadoras, mas também trabalhamos ativamente em sua produção geral. Com a
profusão de tarefas simultâneas, nós estagiárias obtivemos novas experiências, para
além de pensar apenas a mediação, como ocorreria em uma mostra presencial. Logo,
tivemos a oportunidade de conhecer e pensar as diversas ações e ferramentas
necessárias para a produção e execução de um projeto de exposição com atividade
educativa online.
A equipe de design e identidade visual contou com quatro pessoas, dentre seis
estagiários participantes. Os desafios, para mim, começaram aqui, pois, apesar de não
serem tantas pessoas, este era um trabalho que, ao meu ver, não necessitaria de mais
do que duas pessoas para realizá-lo. Cheguei a esta conclusão nos primeiros dias de
trabalho, por fatos como, por exemplo, era necessário que todas aprovassem o que
estava sendo feito, demoramos semanas para apresentar a versão final do cartaz da
exposição - nossa primeira tarefa - e ainda havia muito mais por fazer. Entendo que a
coordenadora do projeto deixou os estagiários livres para escolherem as tarefas com
que tivessem mais afinidade.
Entretanto, senti falta de uma divisão de tarefas mais minuciosa. Creio que isso
se deu por conta da intensidade da experiência inédita de trabalhar em uma exposição
online, onde estava nebulosa a nossa percepção de o que seria necessário ser feito
num projeto como esse. Em associação a estes novos conhecimentos sobre as
ferramentas virtuais - alinhados com nosso momento presente de necessidade de
distanciamento - também passamos a entender que o cuidado com a saúde física e
mental está relacionado ao uso responsável da tecnologia.
É preciso prestar atenção em como, por exemplo, está a postura da coluna ao
sentar-se em frente ao computador, qual a melhor maneira de sentar, a altura
adequada da cadeira e da mesa. Todos esses pequenos fatores ganham muita
relevância quando se passa várias horas do dia lendo, escrevendo, assistindo aulas,
além do uso do equipamento nos momentos de lazer e realização de trabalhos para
outras disciplinas, ou externos e pessoais.
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Com a necessidade de trabalhar remotamente, ganhamos experiência na


utilização das ferramentas para difusão de conteúdo e mediação online e entendimento
sobre dinâmicas de trabalho em grupo remoto. Como, por exemplo, necessidade de
planejamento prévio e minucioso das ações; distribuição de tarefas pensada em
pormenores; comunicação objetiva, com confirmações de compreensão e tolerância
com problemas estruturais que ocasionalmente atrapalham a comunicação online
(problemas no dispositivo ou na conexão durante reuniões), além do conhecimento
sobre como operar de forma mais profissional as plataformas de publicação de
imagens, transmissão de vídeos e ambiente de reunião virtual (também utilizado para
as aulas do minicurso).
Esta necessidade representou contato com fazeres e ferramentas que não estão
previstos na grade curricular do curso de Licenciatura em Artes Visuais, como
ferramentas de design e edição de imagens digitais e de transmissão de vídeos ao
vivo, agregando mais conhecimento, para além da formação prevista no cronograma
de disciplinas obrigatórias do curso.
A partir deste trabalho prático, entendemos que a mediação online deve ser
pensada de forma diferente da mediação presencial - apesar de esta ser a sua base
em nossa formação prévia - pois a virtualidade tem suas possibilidades e limitações,
que são diferentes das do ambiente presencial. A falta de contato presencial impede
um diálogo mais aprofundado. Se o mediador não pode ver o rosto e expressões do
público - e vice-versa - em um diálogo em tempo real, perde-se a “conexão” entre
mediador e público e também um possível diálogo entre os próprios participantes. O
diálogo foi possível através do minicurso, mas, as pessoas, em geral, demonstraram
certa timidez em ligar suas câmeras e falar ao microfone, desfavorecendo a
possibilidade de diálogo que se apresentou.
O contato pessoal entre mediador e público também possibilitaria a troca de
informações sobre uma obra de arte vista in loco, com pormenores que somente
podem ser vistos pessoalmente, como, por exemplo, a textura do papel e da pintura, as
cores e também as dimensões do trabalho: a percepção é completamente diferente de
quando apenas se observa uma imagem da obra em uma tela, mesmo que em alta
qualidade.
61

Por outro lado, passamos a entender que, virtualmente, é possível manter a


mostra aberta por tempo indeterminado, possibilitando visitas a qualquer momento e de
praticamente qualquer local que possua acesso à Internet e ao Instagram. O que
representa uma ruptura do espaço/tempo: a possibilidade de alcance a um público
muito mais amplo, impossível em uma mostra presencial.
Apesar das limitações do digital, através das Lives e da participação nas aulas
ministradas no minicurso, as estagiárias puderam exercitar a comunicação com o
público, a transmissão de informações com clareza e objetividade e o diálogo com os
estudantes - competências necessárias à formação de qualquer educador. A leitura, a
escrita e o pensamento crítico/reflexivo também foram exercidos através da
participação nas atividades relacionadas à leitura dirigida dos livros propostos na
disciplina de Estágio 3. Posteriormente, o produto destas práticas veio a se tornar um
material integrante do catálogo desta exposição e também de nosso relatório de
estágio, produzido de forma coletiva por cada um dos grupos de estágios em seus
respectivos projetos.

4.2.2 Público alcançado

Ao todo, conseguimos empreender duas ações de mediação, uma atemporal e


uma efêmera. Primeiramente, a difusão de informações em formato de textos
acompanhando a publicação das obras, contextualizando as imagens - que ficará
disponível por todo o tempo em que a exposição estiver no ar. E em segundo, o
minicurso de extensão, que aconteceu durante o lançamento da exposição, colocando
o público em contato direto com os professores coordenadores do projeto e os
mediadores, possibilitando debates e explicações mais aprofundadas, em tempo real,
porém sem registro ou gravações.

Um fato observável em diversos cursos e atividades online oferecidas ao público


- que possuem duração maior do que apenas um encontro - é a evasão de
participantes ao longo dos dias de aula. Com isso, o público vai se tornando cada vez
62

menor, restando apenas aqueles mais interessados ou que tiveram tempo de


dedicar-se ao curso completo, como apontam os dados apresentados por José
Laguardia e Margareth Portela (2009):

No Brasil, o índice de evasão nos cursos a distância oscila entre 1% e 68% e é


dependente do tipo de curso e do nível de interação entre os participantes [...],
sendo maiores nos cursos de extensão (26,1%) e nos cursos exclusivamente
online (27%). (LAGUARDIA e PORTELA, 2009. p.352)

Isto já era algo com que contávamos ao organizar o minicurso. Inicialmente


foram oferecidas cinquenta vagas, preenchidas com inscrições após apenas três dias
de divulgação. No último dia de aula, apresentei minha proposta para o presente
trabalho, pedindo a colaboração dos participantes em responder um questionário. Dos
participantes presentes, oito pessoas se dispuseram a redigir respostas, gerando
alguns dados para a análise empreendida nesta sessão.
Iniciei o questionário buscando entender quem eram estes participantes, a partir
de sua idade e área de atuação profissional e quais os motivos que os levaram a se
inscrever no minicurso. Os participantes tinham idades entre 26 e 57 anos de idade na
época de oferta do curso, que aconteceu no segundo semestre do ano de 2020, e
todos atuavam profissionalmente em áreas pedagógicas das ciências humanas,
predominantemente na área de Artes, além de já conhecerem anteriormente algo sobre
Fayga Ostrower, como se nota nas respostas a seguir:

Autora: Qual sua área de formação e/ou atuação profissional?

Participante 1: Professor.
Participante 2: Comunicação Social - Jornalismo/Licenciatura em Dança.
Participante 3: Designer/Artes Visuais.
Participante 4: Artes.
Participante 5: Licenciada em Letras e mestra em Educação. Atuo como educadora
priorizando o diálogo entre arte, educação e cultura.
Participante 6: Arte-educação e artista.
63

Participante 7: Professora de Arte.


Participante 8: Pedagogia - Mestre em educação. Atualmente atuo nos anos iniciais como
docente.

Autora: O que te levou a se interessar em participar do Minicurso?

Participante 1: Conhecer e discutir a obra de Fayga.


Participante 2: Repertório enquanto professora em formação de uma área também artística
(Dança).
Participante 3: Fayga. Gosto bastante da artista e pesquiso sobre mulheres artistas.
Participante 4: Adquirir conhecimento sobre o trabalho de Fayga
Participante 5: Há alguns anos, li o livro proposto pelo minicurso e quis voltar a ele com um
olhar mais renovado.
Participante 6: Interesse para continuar a pesquisa sobre criatividade.
Participante 7: Conhecimento mais aprofundado na trajetória da artista.
Participante 8: Conhecia o trabalho de Fayga, suas ilustrações, na literatura brasileira. E
algumas obras marcaram a minha adolescência, então achei muito interessante a chamada
do curso.

Como já dito anteriormente, o minicurso contou com quatro aulas, sendo a


primeira uma transmissão pública realizada na plataforma YouTube e as três aulas
sequenciais através da plataforma Zoom, onde apenas pessoas inscritas obtiveram
acesso. Apesar de parecer limitante restringir as aulas a um grupo, na verdade isto
possibilitou que estes participantes interagissem entre si e com a equipe de
professores e mediadores de maneira mais profunda. Na transmissão pública, os
espectadores apenas podem enviar mensagens de texto curtas no chat - enquanto nas
aulas fechadas é possível ser ouvido ao falar no microfone e ser visto através da
câmera, empreendendo um diálogo necessário ao aprofundamento de reflexões, troca
de informações, respostas a perguntas com réplicas etc. A respeito destas questões,
propus a seguinte pergunta no questionário:

Autora: Você se sentiu confortável para participar ativamente das aulas, debatendo,
realizando perguntas ou respondendo às questões colocadas pelos ministrantes? Por quê?

Participante 1: Sim.
Participante 2: Muito. Esse formato online me deixa muito confortável para interagir, pois me
expresso melhor através da comunicação escrita.
Participante 3: Sim, mas minha internet é bem lenta então só fiquei no chat
64

Participante 4: Sim.
Participante 5: Sim, acho que vocês foram bem receptivos em todas as abordagens.
Participante 6: Infelizmente não. Por falta de vivências anteriores e por conta de estar
coincidentemente envolvida em outra realidade (consulta médica) que demandou estar num
ambiente inapropriado num dos encontros.
Participante 7: -Sim. Pois o espaço era livre, nos inspirando aos questionamentos.
Participante 8: -Não muito, por limites pessoais. A minha leitura foi demorada e nem sempre
estava concluída para participar do debate, assim tive um pouco de insegurança.

De acordo com as respostas, podemos notar que boa parte dos participantes
não se sentiu inibido ou desconfortável em participar ativamente da proposta.
Entretanto, para as duas pessoas que sentiram dificuldade neste ponto, os fatores
sinalizados como causadores de insegurança não tem a ver com timidez ou
dificuldades pessoais em interagir, mas estão ligados a fatores externos, como
demandas pessoais de saúde ou tempo disponível para realização das leituras.
Minha suposição de que nosso projeto atingiria em maior número o público já
informado e apreciador do trabalho de Fayga, também se confirmou através do
formulário, onde praticamente todos já conheciam e se interessavam pelo trabalho de
Fayga de alguma maneira. Entretanto, os participantes do questionário afirmaram
também a aquisição de novos conhecimentos e informações através das atividades da
exposição e do minicurso, como pode-se notar a partir das respostas às perguntas a
seguir, que detalham o como certos participantes conheciam, inicialmente, uma face de
Fayga Ostrower, vindo a descobrir e as interfaces através da participação no projeto.
Falas como “conhecia apenas o livro citado, mas não a obra de Fayga enquanto artista
plástica.” e “...eu via as ilustrações ou pintura em tecido, mas não sabia quem estava
ali” mostram que o projeto foi efetivo em organizar e apresentar um pouco de cada uma
das instâncias da vida da artista. Nas respostas apresentadas a seguir é notória a
contribuição para a formação dos participantes:

Autora: Você já conhecia o trabalho de Fayga Ostrower? Se sim, houveram novas


informações sobre Fayga ou sobre sua abordagem sobre os processos criativos que você
descobriu a partir da exposição e/ou do minicurso?

Participante 1: Sim. Conheci outros trabalhos através da exposição.


65

Participante 2: Conheci através do minicurso. Vou começar a trabalhar num artigo e terei a
experiência sensorial como abordagem. A obra que tivemos como leitura norteadora no
curso muito irá contribuir para a fundamentação das minhas ideias. Além disso, amei a
versatilidade dos escritos de Fayga, que se expandem para outras áreas além da arte
visual.
Participante 3: Já conhecia. No curso tive mais informações sobre as referências e
trabalhos iniciais da sua carreira que não conhecia. Acredito que o amor que Fayga tinha
pela criação e as Artes é algo inspirador.
Participante 4: Sim. Ajudou no trabalho. Compromisso e determinação.
Participante 5: Conhecia apenas o livro citado, mas não a obra de Fayga enquanto artista
plástica. Foi ótimo acompanhar a exposição no Instagram e os demais materiais
disponibilizados pelo minicurso (a live de abertura e os vídeos, por exemplo). Além de
ampliar o conhecimento sobre a obra de Fayga, foi importante ouvir pontos de vista
diferentes e também consolidar outros que são confluentes com o meu trabalho. Sem
dúvida, devo fazer a terceira leitura do livro depois do encerramento de hoje.
Participante 6: Muito importante a exposição virtual com a análise das técnicas por ela
utilizadas. Acredito que os questionamentos trazidos pelas professoras ampliam nosso olhar
crítico em busca da coerência na teorização de exemplos específicos, como no caso da
obra e vida de Bispo do Rosário.
Participante 7: Sim. Sua trajetória na gravura é algo sublime. Mas a interpretação da sua
arte pelos ministrantes do curso e as curiosidades trazidas por sua filha foram incríveis.
Criticar é inerente. Todos podem desenvolver processos criativos. Talvez o que mais me
impactou nas reflexões sobre a obra de Fayga: saber que ela nos convidava à crítica.
Participante 8: O curso trouxe de fato quem é Fayga, eu via as ilustrações ou pintura em
tecido, mas não sabia quem estava ali. Fiquei surpresa com a sua trajetória de vida e
crescimento profissional, principalmente no contexto histórico de repressão. A sua
contribuição é riquíssima na representação da mulher no fazer artístico. [um novo
conhecimento foi] certamente a questão da intuição no fazer artístico. Vou trabalhar com
mais suavidade no ensino das Artes, sempre frisei nas minhas aulas que o artista deve
saber o momento de parar, mas nunca parei para refletir com os estudantes.

Não sabemos ao certo o quanto nossa mostra alcançou novos espectadores, já


que não submeti perguntas públicas ao público em geral. Entretanto, temos certeza
que aqueles que desejavam aprofundar-se nos assuntos da obra de Fayga Ostrower
encontraram uma oportunidade para tal. Portanto, considero que a ação de mediação
representada pelo minicurso cumpriu seu objetivo de proporcionar um aprofundamento
nos conteúdos sobre Fayga, suas obras e as técnicas de Gravura, gerando debates e
novos conhecimentos aos participantes. Além disso, os participantes também
apontaram a exposição virtual e os textos informativos publicados em conjunto com as
imagens das obras como importantes, como na seguinte fala do participante 6 na
66

resposta às perguntas anteriores: “Muito importante a exposição virtual com a análise


das técnicas por ela utilizadas.” Mas, também perguntei especificamente a respeito da
forma como as obras foram expostas (a esta pergunta, apenas cinco dos oito
participantes do formulário responderam):

Autora: O que você achou da forma como as obras foram apresentadas na exposição?

Participante 1: Gostei.
Participante 2: Muito Acessível. Estou ansiosa para vê-las expostas na Biblioteca Central.
Participante 3: Para mim o processo no YouTube fica mais acessível do que no Google
Meeting.
Participante 4: Gostei. No entanto, a conexão é um fator complicador e pode atrapalhar.
Participante 5: Gostei da qualidade das fotografias e perspectiva de trazer detalhes ao lado
da obra integral para dar a ideia de dimensão.
Participante 6: Gostei, pois além da técnica, foi abordada uma integração com as obras e
informações históricas e acadêmicas das quais não tinha conhecimento.

Mesmo que todos os participantes não tenham respondido à pergunta, e alguns


ainda tenham citado sua experiência com o minicurso ao invés da mostra das obras no
Instagram (provavelmente eu deveria ter deixado isto especificado na pergunta),
nota-se que as informações publicadas junto às imagens das obras foram relevantes,
além dos recortes de imagens ampliadas dos detalhes das mesmas.

4.3 Propostas de melhorias com base nos resultados

A maneira abrupta como o Ensino presencial foi interrompido e o Ensino Remoto


Emergencial implantado em 2020 - aliada ao cenário geral de pandemia e isolamento
social que estávamos enfrentando - sem a oferta de qualquer tipo de amparo, preparo
ou capacitação aos professores e estudantes para lidar com as diversas novas
demandas representou, a meu ver, a raiz de todo desafio que encontrei durante minha
trajetória no Projeto Fayga Ostrower: Interfaces. E esses impactos estiveram presentes
em todo o setor educacional e vão além de apenas afetar o ensino-aprendizagem:
perpassam questões de saúde mental, como já constatado pelas autoras Dolabella et
al. (2021):
67

[...] é importante analisar o efeito do cenário exposto na saúde mental de


tais sujeitos, pois eles tiveram que lidar não somente com os problemas
relacionados diretamente ao coronavírus, como as práticas do isolamento social
e o elevado número de infectados e mortos – mas, também, com a nova rotina
imposta pelo ensino adotado. Este exige organização, comprometimento e
produtividade para o acompanhamento das aulas e realização de trabalhos e
provas, tal qual para o planejamento de tais atividades. (DOLABELLA ET AL.,
2021. p.3)

Portanto, constato que uma proposta para essas dificuldades não se


apresentem futuramente, seria a de que os cursos de licenciatura pensassem a
possibilidade de ofertar disciplinas que capacitem, basicamente, todo futuro educador a
trabalhar com as ferramentas de ensino à distância. Mas, com a preocupação em
também manter uma atualização constante a respeito das plataformas mais populares
de difusão de informação de acordo com as necessidades que se apresentem.
Em nosso projeto, por exemplo, utilizei pela primeira vez a Ferramenta Google
Meet, que possibilita ministrar aulas online, mas, nossa mostra pública aconteceu
dentro do Instagram: uma rede social, e não uma plataforma de ensino à distância. Foi
notória a minha inexperiência em pensar, organizar e agir em estratégias neste
ambiente virtual, apesar de já ser uma usuária da plataforma, e o mesmo foi relatado
por outras colegas estagiárias. Constatamos que ser usuárias desta mídia não
proporcionou conhecimentos e/ou experiência em utilizá-la de forma profissional.
Acredito que, em um caso como o nosso - de atuação em uma plataforma
específica, escolhida não por suas características e especificidades, mas sim por ser o
“local” de maior concentração da atenção do público geral no momento - um breve
período de pesquisa e formação específica oferecido às estagiárias de projetos
similares, incluída na carga horária obrigatória do estágio, pode ser útil para evitar os
percalços, e facilitar, inclusive, o planejamento da maneira como serão organizadas e
68

distribuídas as diversas atividades e ações a serem pensadas e realizadas no ambiente


virtual eleito.
Em nosso caso, a partir do momento de início das publicações (abertura da
exposição), penso que poderia ter sido feita uma divisão da equipe de identidade visual
em duas, pois a partir de então, toda a etapa de preparação das imagens e elementos
de design já estava concluída. Neste caso, uma parte da equipe cuidaria da
organização do cronograma de publicações, dos textos e dos uploads das publicações.
A outra trabalharia ativamente na mediação em tempo real através das ferramentas da
plataforma, buscando elaborar formas de interagir diariamente com o público. Estas
equipes - juntamente com a que ficou responsável pela comunicação e inscrições -
poderiam, inclusive, elaborar um cronograma para revezar estas funções, de forma
rotativa, possibilitando a vivência de todas as atividades por todas as estagiárias. Creio
que, chegar a um planejamento como este teria sido mais propício caso o projeto fosse
presencial ou com a possibilidade deste preparo prévio em relação às plataformas nas
quais estávamos atuando.
Quanto aos termos de alcance do público, acredito que a proposta já
apresentada da introdução de conteúdos relativos ao Ensino à Distância em disciplinas
e formações específicas nos cursos de licenciatura contemplariam também um melhor
alcance ao público das informações e ações educativas ligadas às mostras artísticas
virtuais em que estes estudantes estivessem atuando. Pois, desta maneira, os
mediadores estarão mais capacitados para comunicar-se com o público, e conseguir
desenvolver e aprofundar os debates e reflexões propostos por tais projetos com
consistência e alcance.
Além disso, trago mais uma vez as respostas colocadas pelos participantes em meu
questionário. Por fim, perguntei que sugestões eles dariam para o aprimoramento das
aulas do minicurso, no intuito de entender se, do ponto de vista dos participantes,
nosso trabalho foi efetivo em seus objetivos e de que maneiras poderíamos pensar
melhorias e soluções para certas lacunas, que podem ser implementadas em ações
futuras.
69

Autora: Do seu ponto de vista, que sugestões daria para o aprimoramento das aulas do
minicurso? Sinta-se à vontade para outros comentários ou sugestões.

Participante 1: Tudo ótimo.


Participante 2: Talvez a familiaridade de alguns docentes com a plataforma. Às vezes os
participantes interagiam pelo chat, e não pelo microfone, e os professores não viram.
Gostaria de comentar sobre a sugestão de atividade final. Foi muito convidativa para a leitura
da obra. Me instigou ainda mais a ler. Estou muito satisfeita. Parabéns pela organização.
Participante 3: O material das aulas, as apresentações fossem compartilhadas e que as
aulas fossem gravadas e disponibilizadas para assistir com mais calma. Parabéns pelo curso
e que seja o primeiro de vários!
Participante 4: Ouvir as mensagens intuitivas e tentar alcançar.
Participante 5: Poderiam ser 4 ou 5 encontros de 2h, pois é um tema imprescindível a todos
nós e em todas as áreas do conhecimento. Que tal outro minicurso abordando “Universos da
Arte”? A fala da Luciana nesse campo da arte-educação seria muito importante. Por fim
obrigada e parabéns à todas e todos!
Participante 6: Podermos ter algum encontro presencial. Ainda gostaria de ter sugestões
bibliográficas de outros teóricos que seguiram ou até fizeram contestação de suas
teorias…pois em alguns momentos dá a sensação de se reportarem a um universo bem
próprio.
Participante 7: Alguns testes nas apresentações dos slides antes das aulas.
Participante 8: Gostei do formato e do direcionamento da professora Luciana.

As respostas são bastante variadas, mas, é observável a presença da


percepção de que poderia haver um certo preparo em relação ao uso das plataformas,
confirmando minha proposta. Vemos isto nas seguintes frases sobre pontos que
poderiam ser aprimorados: “talvez a familiaridade de alguns docentes com a
plataforma.” e “alguns testes nas apresentações dos slides antes da aula”.
Outra questão apontada foi a possibilidade de realizar gravações das aulas para
que pudessem ser assistidas novamente, possibilitando detalhar mais o estudo.
Concordo com esta fala, inclusive por entender que estas gravações também podem
constituir documento (também histórico) que venha a fornecer dados para futuras
pesquisas, como o presente trabalho, por exemplo. Ou ainda, podem servir como
material útil ao aprimoramento da atuação dos docentes e estagiários que ministraram
a atividade - algo que eu mesma gostaria de poder fazer no momento.
Apesar desta última pergunta ter sido direcionada à sugestões para
aprimoramento de futuras atividades, boa parte das respostas trouxe elogios,
agradecimentos e mesmo pedidos da realização de mais atividades semelhantes,
70

inclusive de forma presencial. Este feedback positivo me trouxe muita motivação,


especialmente em relação à realização do presente trabalho, algo que, em muitos
momentos pareceu ser impossível para mim. Eu também espero, em breve, ter a honra
de apreciar presencialmente as obras de Fayga Ostrower que hoje se encontram no
acervo da UFPE.
71

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após toda a vivência que tive durante a graduação, desde meu primeiro estágio
até o presente momento, prevalece a sensação de que sou e sempre serei uma
aprendiz. Confesso que iniciei a Licenciatura desejando estar em um Bacharelado, mas
o concluo com a certeza de que trilhei o caminho certo. A oportunidade de conhecer e
vivenciar os assuntos relacionados à arte-educação mudou e ampliou minha visão, e
me trouxe ao momento presente, onde vejo este caminho se abrir à minha frente.
Descobrir o livro Criatividade e Processos de Criação de Fayga Ostrower também foi
algo precioso que aconteceu durante o curso; participar deste projeto me permitiu
descobrir seu trabalho artístico.
Após toda a trajetória de realização do projeto Fayga Ostrower: Interfaces,
desde o início do estágio até agora, onde exercitei o estudo de caso, descrevendo,
avaliando e buscando aprimoramentos, posso entender com um pouco mais de clareza
as possibilidades que conseguimos aproveitar e as limitações que enfrentamos em
nosso percurso: já entendemos que as ferramentas virtuais apresentam suas
limitações, mas também uma gama de possibilidades. Entretanto, concluo que minhas
principais dificuldades de atuação neste projeto não estavam ligadas a esses fatores de
forma direta. Ou seja, houveram desafios a enfrentar especificamente pelas diferenças
entre trabalhar de forma presencial e virtual, principalmente, por uma falta de preparo
para esta transição, ocorrida de forma repentina e abrupta.
Concluo também que a realização desse tipo de evento no atual contexto de
isolamento - e também de agora em diante - significa não apenas a manutenção de
importantes laboratórios para arte/educadores em formação em frente à paralisação
das atividades presenciais das instituições de ensino provocada pelo contexto
pandêmico, como também um campo de descoberta de novas formas de pensar ações
educativas, possibilitando um preparo profissional atualizado e alinhado com as
ferramentas que, em um contexto de distanciamento, possibilitam mediação entre
conteúdo e público. Em Fayga Ostrower: Interfaces pude entender a urgência da
inclusão do estudo das ferramentas de comunicação e difusão de conteúdo e
72

conhecimento virtuais como parte do currículo dos arte/educadores em formação, para


melhor informar e dialogar com o público.
Ou seja, penso que a inserção do mundo virtual pode ser algo a vir a ser
considerado pela Universidade no campo de formação profissional das
Licenciaturas.Não sendo de importância apenas a inclusão de conteúdo sobre sua
operação, mas também reflexões críticas a respeito das mudanças de paradigma e
pensamento provocadas pela - cada vez mais intensa - presença dessas tecnologias
em nossas vidas e como isto também influencia a maneira como a sociedade percebe,
recebe e valoriza - ou não - as Artes e seus conhecimentos.
Por fim, pude chegar a vivenciar, mais uma vez e em um novo âmbito, o
aprendizado contido na frase que muitas vezes ouvi a professora Ana Lisboa dizer em
momentos de dificuldade ou falta de recursos para nossos trabalhos no atelier: “é
preciso fazer o que se pode e como se pode”. Eu entendo que isso quer dizer que, na
prática, é preciso não se deixar paralisar pela frustração de nossas expectativas, e agir
de acordo com os recursos que estão a nosso alcance naquele momento, mesmo que
não sejam os ideais. Um planejamento nem sempre é executado exatamente como foi
idealizado, pois há desafios e situações que se apresentam somente no momento de
realização. Esperar as condições ideais para agir pode significar um não-agir. E,
escolhendo não agir, não obteremos experiências, resultados, informações sobre o que
funciona e o que não funciona. Ou seja, conhecimento.
73

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Carla. Fayga Ostrower, uma vida aberta à sensibilidade e ao intelecto.


História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13, (suplemento), p. 269-89, outubro 2006.

BARBOSA, Cibele. Metaverso, games e o capitalismo emocional. ImageH, 2022.


Disponível em: <www.imageh.wixsite.com/site>. Acesso em: 17 de fevereiro de 2022.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense,
1987.

BENJAMIN, Walter. Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit.


Frankfurt a. M. 1963.

BORSSOI, Berenice Lurdes. O estágio na formação docente: da teoria à prática,


ação-reflexão. Simpósio Nacional de Educação, v. 20, 2008.

COUTINHO, Rejane Galvão. Considerações sobre a Cultura da Pesquisa e a


Formação de Educadores Mediadores. Anais do 19 encontro da ANPAP. Cachoeira,
2010. Disponível em:
<http://www.anpap.org.br/anais/2010/pdf/ceav/rejane_galvao_coutinho.pdf> Acesso
em: 12 de dezembro de 2021

_______________________. Questões sobre a formação de mediadores culturais.


Anais do 19 encontro da ANPAP. Salvador, 2009. Disponível em:
<http://anpap.org.br/anais/2009/pdf/ceav/rejane_galvao_coutinho.pdf> Acesso em 10
de fevereiro de 2022

DOLABELLA, Ana Clara, et. al. Desafios do Ensino Remoto Emergencial. Universidade
Federal de Minas Gerais, Departamento de Engenharia Química, 2021. Disponível em:
<http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/download/18143/1125614
020>. Acesso em março de 2021.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. 3ª reimpressão. Petrópolis: Vozes,


2017.

IBRAM. Caderno da Política Nacional de Educação Museal. Brasília, DF: IBRAM, 2018.
Brasília: IBRAM, 2018.
74

LAGUARDIA, José; PORTELA, Margareth. Evasão na Educação à Distância. In:


Revista ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.11, n.1, p.349-379, dez. 2009.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 1999.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1987.

________________. Meu caminho é a gravura. In: Museu Nacional de Belas Artes.


Catálogo da “Exposição Retrospectiva de Fayga Ostrower: obra gráfica 1944-1983”.
Rio de Janeiro, 1983a.

________________. Universos da Arte. 19ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Campus,


1983b.

YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2.ed. Porto Alegre: Bookman,
2001.
75

APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO

Questionário de pesquisa acadêmica em Artes

Prezado participante,

O seguinte formulário visa contribuir para a pesquisa do trabalho de conclusão de curso


da Licenciatura em Artes Visuais desenvolvida por Alexandra Jarocki. O feedback dos
participantes que optarem por responder esse formulário constituirá dados importantes
para entender melhor de que forma conhecimento foi construído/mediado durante este
projeto. Suas respostas serão anônimas, sua identidade estará preservada, para que
suas respostas possam ser o mais fiel possível às suas reais impressões. Ao
preencher e enviar este formulário você concorda com a utilização de suas respostas
como dados para esta pesquisa. Sua colaboração é extremamente significativa. Desde
já, agradeço.
76

Qual sua área de formação e/ou atuação profissional?


8 respostas

1- PROFESSOR
2 - Comunicação Social - Jornalismo/Licenciatura em Dança
3 - Designer / Artes Visuais
4 - Artes
5 - Licenciada em Letras e mestra em Educação, atuo como educadora priorizando o diálogo
entre - Arte, educação e cultura.
6 - Arte educação e artista
7 - Professora de arte
8 - Pedagogia/mestre em educação/ atualmente atuo nos anos iniciais como docente.

O que te levou a se interessar em participar do Minicurso?


8 respostas

1 - CONHECER/DISCUTIR A OBRA DE FAYGA


2 - Repertório enquanto professora em formação de uma área também artística (Dança).
3 - Fayga gosto bastante da artista e pesquiso sobre mulheres artistas
4 - Adquirir conhecimento sobre o trabalho de Fayga.
5 - Há alguns anos, li o livro proposto pelo minicurso e quis voltar a ele com um olhar mais
renovado.
6 - Interesse para continuar pesquisa sobre criatividade
7 - Conhecimento mais aprofundado na trajetória da artista
8 - Conhecia o trabalho de Fayga, suas ilustrações, na literatura brasileira. E algumas obras
marcaram a minha adolescência, então achei muito interessante a chamada do curso.

Você já havia participado de um evento como este antes? Participaria


novamente ou recomendaria para amigos?
8 respostas
77

1 - SIM
2 - Não. Participaria novamente e recomendaria.
3 - sim
3 - sim.sim.
4 - Sim, recomendaria também.
5 - Ainda não nessa plataforma totalmente on line. Sim gostaria de participar e indico.
6 - Não havia participado de um evento desse online. Faria sem dúvida novamente e
recomendaria pra amigos e alunos.
7 - Com certeza. Espero realmente que outros aconteçam e alcancem os meus colegas de
trabalho, a leitura do texto trouxe muitas ideias para trabalhar com criatividade na educação.

Você já conhecia o trabalho de Fayga Ostrower? Se sim, houveram novas


informações sobre Fayga ou sobre sua abordagem sobre os processos criativos
que você descobriu a partir da exposição e/ou do minicurso?
8 respostas

1 - Sim. Conheci outros trabalhos através da exposição.


2 - Conheci através do minicurso. Vou começar a trabalhar num artigo e terei a experiência
sensorial como abordagem. A obra que tivemos como leitura norteadora no curso muito irá
contribuir para a fundamentação das minhas ideias. Além disso, amei a versatilidade dos
escritos de Fayga, que se expandem para outras áreas além da arte visual.
3 - Já conhecia. No curso tive mais informações sobre as referências e trabalhos iniciais da sua
carreira que não conhecia. Acredito que o amor que Fayga tinha pela criação e as Artes é algo
inspirador.
4 - Sim. Ajudou no trabalho. Compromisso e determinação.
5 - Conhecia apenas o livro citado, mas não a obra de Fayga enquanto artista plástica. Foi
ótimo acompanhar a exposição no Instagram e os demais materiais disponibilizados pelo
minicurso (a live de abertura e os vídeos, por exemplo). Além de ampliar o conhecimento sobre
a obra de Fayga, foi importante ouvir pontos de vista diferentes e também consolidar outros
que são confluentes com o meu trabalho. Sem dúvida, devo fazer a terceira leitura do livro
depois do encerramento de hoje.
78

6 - Muito importante a exposição virtual com a análise das técnicas por ela utilizadas. Acredito
que os questionamentos trazidos pelas professoras ampliam nosso olhar crítico em busca da
coerência na teorização de exemplos específicos, como no caso da obra e vida de Bispo do
Rosário.
7 - Sim. Sua trajetória na gravura é algo sublime. Mas a interpretação da sua arte pelos
ministrantes do curso e as curiosidades trazidas por sua filha foram incríveis. Criticar é
inerente. Todos podem desenvolver processos criativos. Talvez o que mais me impactou nas
reflexões sobre a obra de Fayga: saber que ela nos convidava à crítica.
8 - O curso trouxe de fato quem é Fayga, eu via as ilustrações ou pintura em tecido, mas não
sabia quem estava ali. Fiquei surpresa com a sua trajetória de vida e crescimento profissional,
principalmente no contexto histórico de repressão. A sua contribuição é riquíssima na
representação da mulher no fazer artístico. [um novo conhecimento foi] certamente a questão
da intuição no fazer artístico. Vou trabalhar com mais suavidade no ensino das Artes, sempre
frisei nas minhas aulas que o artista deve saber o momento de parar, mas nunca parei para
refletir com os estudantes.

Você gostou da forma como as obras foram apresentadas na exposição? Por


que?
5 respostas

1 - SIM
2 - Sim. Muito acessível. Estou ansiosa para vê-la expostas na Biblioteca Central.
3 - Para mim o processo no Youtube fica mais acessível do que no meet. Sim. NSim.o entanto
a conexão é um fator complicador e pode atrapalhar.
4 - A qualidade das fotografias e perspectiva de trazer detalhes lado a lado da obra integral
para dá ideia de dimensão
5 - Sim. Pois além da técnica foi aborada uma integração com as obras e informações
históricas e acadêmicas das quais não tinha conhecimento.
79

Você se sentiu confortável para participar ativamente das aulas, debatendo,


realizando perguntas ou respondendo às questões colocadas pelos
ministrantes? Por quê?
8 respostas

1 - SIM
2 - Muito. Esse formato online me deixa muito confortável para interagir, pois me expresso
melhor através da comunicação escrita.
3 - sim, mas minha internet é bem lenta então só fiquei no chat
4 - Sim.
5 - Sim, acho que vocês foram bem receptivos em todas as abordagens.
6 - Infelizmente não. Por falta de vivências anteriores e por conta de estar coincidentemente
envolvida em outra realidade (consulta médica) que demandou estar num ambiente
inapropriado num dos encontros.
7 - Sim. Pois o espaço era livre, nos inspirando aos questionamentos
8 - Não muito, por limites pessoais. A minha leitura foi demorada e nem sempre estava
concluída para participar do debate, assim tive um pouco de insegurança.

Do seu ponto de vista, que sugestões daria para o aprimoramento das aulas do
minicurso?
8 respostas

1 - TUDO OTIMO
2 - Talvez a familiaridade de alguns docentes do minicurso com a plataforma. Às vezes os
participantes interagiam pelo chat e não pelo microfone, e os professores nem viam.
3 - O material das aulas as apresentações fossem compartilhadas e que as aulas fossem
gravadas e disponibilizadas para assistir com mais calma
4 - Ouvir as mensagens intuitivas e tentar alcançar.
5 - Poderiam ser 4 ou 5 encontros de 2h, pois é um tema imprescindível a todos nós e em
todas as áreas do conhecimento.
6 - Podermos ter algum encontro presencial.
7 - Alguns testes nas apresentações dos slides antes das aulas.
80

8 - Gostei do formato, da proposta e do direcionamento da professora Luciana.

Você tem outros comentários ou sugestões?


6 respostas

1 - NÃO
2 - Gostaria de comentar sobre a sugestão de atividade final. Foi muito convidativa para a
leitura da obra. Me instigou ainda mais a ler. Estou muito satisfeita. Parabéns pela organização!
3 - Parabéns pelo curso e que seja o primeiro de vários.
4 - Não
5 - Sim! Que tal outro minicurso abordando "Universos da arte"? A fala da Luciana nesse
campo da arte-educação seria muito importante. Por fim, obrigada e parabéns a todas e todos!
6 - Ainda gostaria de ter sugestões bibliográficas de outros teóricos sobre criatividade que
seguiram ou até fizeram contestação a suas teorias...Pois em alguns momentos dá uma
sensação de se reportarem a um universo bem próprio.
DO TORTO AO RETO, E DE
VOLTA AO TORTO DE NOVO:
DESVELANDO O DESENHO
CONTEMPORÂNEO

JOÃO BELFORTE
DO TORTO AO RETO, E DE
VOLTA AO TORTO DENOVO:
DESVELANDO O DESENHO
CONTEMPORÂNEO

JOÃO BELFORTE

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial
para obtenção do título de Licenciado
em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Pernambuco.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Romero


Recife 2021.2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE
PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E
COMUNICAÇÃO
ARTES VISUAIS – LICENCIATURA

DO TORTO AO RETO, E DE VOLTA


AO TORTO DENOVO: DESVELANDO
O DESENHO CONTEMPORÂNEO

Comissão Examinadora

Prof. Dr. Eduardo Romero


(Orientador)

Profa.Dra. Maria Betânia e Silva


(Examinadora Interna/UFPE)

Profa.Dra. Bruna Rafaella Ferrer


(Examinadora Externa/UFPE)

Recife, 2021.2
Aprovado em: 06/05/2022
Resumo
Este trabalho busca mapear e organizar reflexões sobre o desenho
a partir de um recorte especifico da pratica dessa técnica na
história da arte, assim como registrar alguns de seus
desdobramentos e novas formas e funções após o século XX e na
contemporaneidade. Utilizando a cartografia como método de
pesquisa, o corpo do trabalho é complementado por reflexões
baseadas na minha poética artística e no exercício da docência em
Artes Visuais. Como resultado o trabalho de pesquisa estruturou e
elaborou reflexivamente as informações encontradas a respeito
das propriedades e atribuições da prática do desenho,
apresentando novos significados e importância de sua existência.
Palavras-chave: Desenho; História da Arte; Artes Visuais.

Abstract
This work seeks to map and organize reflections on drawing from a
specific point of view of the practice of this technique in the history
of art, as well as to record some of its developments and new
forms and functions after the 20th century and in in
contemporaneity. Using the cartography research method, I also
complement the body of work with reflections based on my artistic
poetics and the exercise of Art teaching. As a result, the research
work structured and reflexively elaborated the information found
about the properties and attributions of the practice of drawing,
presenting new meanings and importance of its existence.
Keywords: Drawing; Art History; Visual arts

5
SUMÁRIO
9 UM PONTO DE PARTIDA
13 LINHAS NO CÉREBRO, DESENHO NA CABEÇA
23 OS PRIMEIROS TRAÇOS
27 FALAR O DESENHO
31 PECADOS VISUAIS
35 OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
39 TÉCNICA, PARA APRENDER E PRENDER
34 AS MÁQUINAS E O MODERNO
50 DESENHAR PRA QUE?
55 DA LINHA AO TRAÇO
62 POR TRÁS DA TELA
65 FEIO (PRA QUEM?)
69 TRAÇAR O PERCURSO
73 FIM DA LINHA
75 REFERÊNCIAS
76 REFERÊNCIAS TÉCNICAS DAS IMAGENS
77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

7
UM PONTO DE PARTIDA
Durante os vários momentos ao longo do curso de Artes Visuais em
que me peguei divagando sobre qual poderia ser a possível temática
do meu trabalho de conclusão de curso o mesmo sempre acontecia:
pensava mais com as mãos sobre o papel do que com a cabeça. Esse
hábito me acompanha já há alguns anos, ao me deparar com uma
situação onde preciso decidir como algo irá tomar forma. Ou seja,
quando me encontro em um processo de planejamento de algo que
ainda não existe, naturalmente acabo preenchendo folhas e mais
folhas com linhas, traços, riscos e uma quantidade generosa de
rabiscos. Em suma, desenho.

Logo, ao chegar no momento da decisão sobre o objeto de pesquisa


do Trabalho de Conclusão de Curso, me dei conta de que já tinha em
mãos um tema que me acompanhou ao longo de toda a minha jornada
de graduação. O desenho é um hábito que pratico quase diariamente,
seja em momentos de tempo livre ou até mesmo durante as aulas
como forma de ajudar a assimilar o conteúdo que está sendo
ministrado: é sempre uma ação que se faz presente e inevitavelmente
presentifica minha vivência enquanto artista e professor em formação.

Eu havia pensado, então, que a minha prática do Desenho seria o


caminho mais provável a ser seguido, mas assim que esse
pensamento foi definido como o norte da minha possível pesquisa,
percebi que essa é uma linguagem artística plural e cheia de nuances.
O Desenho atravessa séculos de existência. Desde o Paleolítico, com
os primeiros traços nas cavernas, até os adornos para postagens no
Instagram nos dias atuais, ele se faz presente na vida humana das
mais variadas maneiras.

Contudo, ainda era preciso afunilar esse objeto de pesquisa. Era


preciso que eu encontrasse um galho nessa enorme árvore que é a
prática do Desenho. A princípio, pensei logo em discorrer sobre dese-
9
nhos feios[1], ou aqueles desenhos que tomam forma sem a intenção
de retratar as coisas como elas são... feitos sem regras de anatomia ou
composição, um interesse pessoal meu e que permeia meu trabalho
artístico e poética pessoal. Entretanto, percebi que esse recorte seria
paradoxal, uma vez que meu interesse por esse tipo de representação
surge da beleza que encontro nas imperfeições de seus traços, logo
um desenho feio só é feio para quem assim o reconhece, e não para
todos que o veem.

Partindo desse pensamento, percebi mais uma vez que já havia diante
de mim um tema a ser desvelado. O Desenho depois do modernismo
nas artes, desenhos que nascem de lugares de experimentação, que
surgem da curiosidade e da vontade do fazer e não da obrigatoriedade
do acertar, ou finalmente: O Desenho além da técnica.

Ao me dar conta dessa possibilidade me encontrei cercado por


indagações sobre o Desenho na contemporaneidade e naturalmente, a
vontade de encontrar respostas. Então tive a certeza de que encontrei
meu tema. Nesse momento minha pesquisa assumiu um caráter de
busca e mapeamento, procurando criar um panorama do Desenho
como forma de expressão, através da observação de sua presença ao
longo da História da Arte, suas questões estéticas e suas formas na
contemporaneidade. Sendo assim, o objetivo geral do trabalho é:
refletir sobre a prática do Desenho a partir da sua história e de minha
poética artística. Enquanto os objetivos específicos são: pesquisar a
prática do Desenho na História da Arte; entender o Desenho na Arte
Contemporânea; e discorrer sobre o Desenho como poética artística.

Para isso utilizei como material de pesquisa livros e publicações


recentes desenvolvidas sobre questões do desenho contemporâneo.

[1] O estilo denominado Grotesco, prática que surge no início do Renascimento


Europeu (Séculos XIV à XVI).

10
Sendo as principais referências Simone Peixoto (1979 -) e sua
contextualização do Desenho ao longo da História da Arte,
documentada no livro Pensar o Desenho: Linguagem, História e
Prática (2013) e a pesquisadora Edith Derdyk (1955 -) com seu livro
Formas de Pensar o Desenho que uso como base na minha pesquisa
sobre Desenho na Infância, assim como outros escritores e
pesquisadores referentes à História da Arte, como Vilanova Artigas
(1915 – 1985), Juliette Aristides(1971 -), Teel Sale (s/d) e Claudia Betti
(1924 -).

Atualmente existe uma grande variedade de trabalhos que tratam do


Desenho no meio da pesquisa acadêmica e de publicações sobre
Arte. São observadas propriedades diversas que vão desde a sua
prática até a metodologia para o seu ensino, assim como é possível
encontrar pesquisas voltadas para produções pessoais e seu
desenrolar visto sobre as poéticas dos artistas. Dessa maneira, grande
parte dos trabalhos recentes sobre Desenho focam em questões
específicas e restritas de sua prática ou teoria para um maior
aprofundamento. Entretanto, por meio da cartografia, minha pesquisa
pretende, a partir de minha produção de desenhos e experiência como
arte educador em formação, contextualizar e refletir sobre a linguagem
do Desenho na História e na contemporaneidade, observando o tema
por uma perspectiva ampla e abrangente, buscando apresentar
nuances, desdobramentos e formas possíveis de pensar o desenho.

11
LINHAS NO CÉREBRO,
DESENHO NA CABEÇA
Minha relação com o desenho aconteceu ainda cedo, além dos dias de
experimentação com lápis em superfícies brancas durante os primeiros
anos do ensino infantil, sentia também um encantamento enorme
observando ilustrações em publicações impressas. Meus livros
favoritos eram os que tinham mapas, ou capas que agarravam os
olhos antes do cérebro. A sessão de tirinhas do jornal era minha folha
favorita do bloco cinza e monótono que meu pai lia todos os dias pela
manhã. Entrar em uma banca de revistas era para mim o equivalente a
uma loja de doces com as prateleiras recheadas de cores e formatos
brilhantes. Tive o privilégio de poder passar muitas tardes da minha
infância em um lugar chamado gibiteca, a extensão da biblioteca
pública que ficava no centro da minha cidade natal. Ali, naquele
espaço de abrigo de gibis e revistas, passei horas lendo coisas
construídas a partir de desenhos criativos, indo de MAD ate turma da
mônica, pude conhecer e ter acesso ao trabalho de diversos
cartunistas que tiveram grande impacto no meu senso de humor e
percepção social do mundo como Laerte, Angeli, Fernando Gonsales,
Galvão Bertazzi, entre muitos outros. Todo esse contato com uma
variação enorme de histórias e desenhos me influenciou de maneira
significativa ao longo dos anos seguintes, percebia no desenho além
de um grande prazer, também uma forma de interpretação do mundo
divertida e despreocupada.

Durante minha adolescência reservava o tempo livre à televisão, que


estava sempre sintonizada na MTV ou exibindo algum episódio de Os
Simpsons. Duas coisas que também fascinavam meus olhos com
visuais inventivos. Me lembro vividamente das vinhetas que passavam

13
durante os intervalos comerciais da MTV, sempre muito variadas e
com desenhos inesperados, divagava em frente a tela maravilhado
pensando como um único logo podia assumir tantas formas diferentes
sem perder sua caracterização original. O mesmo acontecia, e
acontece até hoje, ao assistir uma cidade inteira com diversos
moradores diferentes ser retratada através do desenho em Os
Simpsons. O encanto de ver como o desenho estava presente nessas
mídias e como possuía formas criativas e diferentes me acompanhou
durante toda a minha vida.

S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022


acervo pessoal

Até culminar em algum momento incerto entre o fim da minha infância


e início da adolescência, onde eu mesmo passei a desenhar. Como
uma forma de preencher meus momentos de ócio comecei a quase
que naturalmente rabiscar folhas de caderno e mesas na escola, sem
pretensão alguma de atingir um objetivo ou de alcançar uma
representação “bonita” eu soltava minha mão pela superfície sentindo
o prazer de estar riscando e guiando o lápis para os lados. Esses
momentos aconteciam principalmente durante o período escolar, dese-

14
nhava para ter o que fazer nos recreios que passava sozinho, para me
manter acordado nas aulas que não conseguia entender quase nada
de matematica e quimica, para tentar assimilar os conteúdos e
principalmente para afirmar coisas para mim mesmo. O desenho
passou a ser uma forma de auto comunicação onde eu desenhava o
que via no mundo real como eu via na minha cabeça, foi um meio que
encontrei para me expressar e encontrar algum sentido no turbilhão de
sensações que são os anos escolares do ensino fundamental e do
ensino médio.
A influência visual dos diferentes artistas que consumi anos antes se
fez presente nos personagens que comecei a inventar e na forma
como meu traço surgiu e evoluiu quase que sem esforço algum. Nunca
tive dificuldade de “traduzir” algo para o papel, sempre foi um meio fácil
e rápido de registro, tão fácil e natural que permaneceu na minha vida
pós escola. Criei o hábito de colecionar e preencher cadernos sem
pauta, nas folhas colocava tudo que não cabia dentro de mim, os
lugares que ia, as coisas que via, os objetos, as pessoas, as
sensações, as piadas, as epifanias, os projetos, e tudo mais entre
todas essas coisas.

Entrei então na faculdade, e durante os cinco anos em que passei no


curso de Artes Visuais fui muito feliz por ter tido as disciplinas de
desenho 1 ao 4, e a disciplina optativa de laboratório de desenho. Feliz
pois durante essas aulas meu conhecimento sobre o que eu, até então,
achava que era desenho foi expandido para muito além. Não só pelos
momentos de prática onde pude pela primeira vez realizar desenho de
modelo vivo, natureza morta e observação em campo mas também por
ter recebido o conhecimento conceitual do desenho, por ter tido
momentos de reflexão sobre o que é desenho e como podemos pensá-
lo tanto nas artes como no cotidiano, nas pequenas coisas em que ele
se faz presente.

15
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2016
acervo pessoal

S/T, caneta nanquim, lápis e giz pastel em papel, 21cm x 29,7cm, 2015
acervo pessoal

16
S/T, caneta esferográfica em papel, 21cm x 29,7cm, 2017
acervo pessoal

S/T, marcador permanente em papel, 21cm x 29,7cm, 2017


acervo pessoal

17
S/T, marcador permanente em papel, 21cm x 29,7cm, 2017
acervo pessoal

S/T, marcador permanente em papel, 21cm x 29,7cm, 2018


acervo pessoal
18
Assim como qualquer outra ação humana, o ato de desenhar carrega
consigo significados culturais que foram sendo construídos e moldados
pela Humanidade ao longo de sua história. O Desenho atravessa o
tempo de maneiras variadas, como algo sem formato exato para ser
especificado para além do suporte, flutua pelas formas e frestas de
feitos históricos ao redor do mundo. Mas, se observarmos com atenção
as nossas origens enquanto civilização, podemos perceber que o
Desenho se faz presente em tudo que um dia já existiu (o projeto de
uma pirâmide, os formatos das frutas, os cortes para as roupas feitas
para a realeza, um mapa para gravar as rotas marítimas ao redor da
Terra), e que, além disso, a história humana só pode ser recordada
hoje por que foi desenhada de diversas formas.

Desenhar, como apontam Sale e Betti, é universalmente “[...] capaz de


evocar memórias, chamar por sentimentos ou iluminar impulsos da
vida — sejam na morte, no amor, poder, jogos, interesses intelectuais,
trabalho e nos nossos sonhos e emoções” (2008, p.4, tradução nossa).
Ou seja, desenhar é um ato que parte de vivências junto às intenções
que definimos segundo nossas vontades, mas que são ultrapassadas
quando os realizamos, pois inevitavelmente ao desenharmos trazemos
para a superfície particularidades que habitam o inconsciente.
Expressar sentimentos por meios visuais pode ser uma oportunidade
de catarse e reorganização emocional para pessoas de todas as
idades em qualquer cultura. Nesse sentido, a ação de desenhar possui
uma conexão direta e indissociável com os sentimentos humanos. Um
desenho é capaz de falar muito mais do que outras formas de mídia ou
de comunicação.

Culturalmente, desenhar é também uma forma de observar o mundo e


marcá-lo com o que nós enxergamos naquilo que ele nos mostra. Ao
nos prepararmos para desenhar, em qualquer lugar que seja, entramos
em um estado de concentração que altera a prioridade do que os olhos

19
veem, passamos a questionar a aparência do alvo a ser desenhado,
reparamos sua forma e seus detalhes a fim de capturar o que faz
aquele objeto ser ele... é quando sentimos a satisfação da
representação, que por sua vez significa muito mais que só uma
visualidade, é também uma marca que presentifica um momento, um
estado, a nossa presença no mundo. Dessa maneira, o Desenho
possibilita uma expressão sincera, que parte dos sentidos do nosso
corpo e sacia a necessidade da existência humana desde os traços
rupestres feitos nas cavernas até o presente.

Entretanto, de acordo com Peixoto (2013, p. 11), também é comum a


ideia de que quem desenha esteja ligada ao artista. Para grande parte
das pessoas o Desenho é uma ação que requer talento ou uma
espécie de super habilidade para que seja realizado de maneira
precisa e correta. Comumente é esperado da pessoa que desenha que
seja capaz de capturar com exatidão e beleza o que vemos com os
olhos, e quando isso não acontece, a tendência é a decepção e o
desanimo com o resultado expresso no papel. E quando não ao artista,
o Desenho é lembrado por ser coisa de criança, taxado dessa maneira
na infância, como sinônimo de brincadeira, de entretenimento, longe de
reconhecer sua importância para o desenvolvimento cognitivo do
Sujeito. Durante a infância, a prática do Desenho é livre, não é imposta
regras ou métodos, temos a liberdade de podermos fazer o que
quisermos com o lápis e a folha de papel, sem sermos julgado... a
liberdade de desenhar apenas por prazer.

Contudo, o Desenho está presente no cotidiano humano, mesmo


quando não nos damos conta disso. Peixoto nos diz que:

20
Um desenho nunca é simplesmente a cópia da realidade,
mas antes de tudo, é um olhar do desenhista sobre um
objeto ou sobre os elementos da realidade, [...] está por
toda parte, e é tão importante quanto qualquer projeto,
porque assim como o texto ou como o verbo permite
expressarmos nossas ideias por meio de palavras, o
desenho possibilita que nos expressemos por meio de
imagens. Desse modo, o texto e a imagem não substituem
um ao outro, pois ambos são necessários (Peixoto, 2013,
p.15-16).

Nesse sentido, podemos pensar que o Desenho é o meio que


possibilita a precisão das medidas de projetos de engenharia e
Arquitetura, as silhuetas e cortes para a costura de roupas, os pedaços
de madeira a serem cortados na marcenaria, a gênesis dos objetos e
projetos gráficos no Design e muitas outras funções para muitas outras
profissões. De forma geral, o Desenho é também entendido
culturalmente como forma de organização, quando nos deparamos
com algo que ainda não está claro ou que precisa de uma forma para
passar a existir, naturalmente nos voltamos para o Desenho. Ainda que
muitas pessoas não coloquem de fato traços no papel, a lógica do
Desenho acontece diariamente em nossas cabeças. Quando
pensamos na forma de organizar a louça no escorredor, ou qual
caminho é o melhor para se seguir depois de descer do ônibus, ou
ainda, como cortar um pedaço de bolo para que sobre para mais tarde,
todas essas pequenas coisas envolvem inevitavelmente o pensamento
do Desenho.

Saber desenhar não necessariamente torna uma pessoa artista, mas


desenhar possibilita um pensamento claro e expressivo que pode ser
usado em diferentes momentos da vida de um sujeito.

21
OS PRIMEIROS TRAÇOS
É a partir do período Paleolítico (cerca de 2.5 milhões a.C.) que a
presença dos primeiros seres humanos começa a ser sentida na Terra.
A humanidade surge e com ela, a necessidade e o desejo de descobrir
e dominar as coisas que aqui já estavam presentes. Assim, envolto
nesses desejos, começam a aparecer no cotidiano da humanidade pré-
histórica as primeiras práticas de expressão e Arte, como nos diz
Faure:
Ao regressar da caça apanha um pedaço de pau para
dar-lhe a aparência de um animal, um pedaço de argila
para o amassar em estatueta, um osso chato para nele
gravar uma silhueta (1990, p.33).

Dessa maneira, começam a surgir marcas em superfícies, onde a mão


humana desenvolve a capacidade de criar através de gestos
espontâneos e linhas fluidas, a humanidade então aprende a
desenhar.

Ainda segundo Faure (1990), nota-se que a relação da humanidade


pré-histórica com o fazer artístico é variada e sem hierarquia de
métodos. A modelagem se junta a gravação em entalhe que dá espaço
à pintura, e que ainda partilha da escultura os fazeres, ainda não
compreendidos em sua plenitude, que se juntam e se cruzam em
momentos de criação, na tentativa de reproduzir aquilo que foi visto e
vivenciado ao longo dos dias de caça e exploração, como por exemplo,
a criação de ferramentas que os ajudem a superar obstáculos no
próximo dia a ser vivido. Contudo, a humanidade pré-histórica precisa
aprender a desenhar, para conseguir realizar suas ideias em diversos
suportes, pensar sua forma, como assemelhar, como transpor o
pensamento para o material/suporte.

23
Nesse sentido, o Desenho surge como forma de suprir a necessidade
de produção, seja ela de ferramentas ou de outros objetos diversos
que atendessem as vontades humanas. O Desenho é o meio essencial
para o desenvolvimento das primeiras criações humanas. Porém, a
humanidade também passa a desenvolver um pensamento estético em
relação às suas criações, começa a ornamentá-las para que se tornem
mais agradáveis aos olhos e tragam sensações de completude. O
mesmo acontece com suas produções artísticas que começam a
ganhar uma elaboração mais cuidadosa e com maior valor sentimental.

Torna-se comum então, com a evolução para o período Neolítico (10


mil a 5 mil anos a.C.), o Desenho e o registro na pedra, paredes e
murais. Para Peixoto (2013), a produção nesse momento se torna
pictórica, a preocupação de representar animais de forma próxima a
realidade se torna notável em registros a partir de 10.000 a.C. Os
desenhos pela primeira vez eram feitos com a preocupação de volume
para que pudessem representar o tamanho e a força dos animais como
eram vistos no mundo real.

No período Neolítico a vida humana passa a ser mais estável, a


moradia se torna fixa e surgem hábitos como a caça, o cultivo de
alimentos, a colheita e a domesticação de animais. A própria
humanidade se torna sedentária. Os novos hábitos naturalmente são
refletidos nos registros visuais feitos na época. Nas paredes das
cavernas começam a surgir cenas do cotidiano, com pessoas
realizando tarefas diárias e acontecimentos triviais e/ou importantes.

É importante notar que, ainda nessa época, surgem também outras


formas de pensar as figuras e os símbolos através do Desenho, por
meio de representações abstratas, como explica Camargo:

24
Não se sabe o que significavam. Embora tivessem
sentido para os seres humanos daquele período, não
são necessariamente os mesmos que podemos atribuir
hipoteticamente a eles hoje em dia. Supõe-se que o
caráter simbólico imperava e que tais imagens
possuíam sentido mágico, místico e ritualístico
(Camargo, 2021, p. 7).

Desenhar passa a ser também uma forma de externar sensações e


emoções que certamente ainda não eram entendidas de maneira clara,
o homem buscou então representá-las para poder alertar os demais ou
para tentar buscar o entendimento daquilo que sentia. Também
assume um caráter de místico, pois as imagens e símbolos passam a
carregar significados espirituais. Se hoje olhamos as pinturas feitas
pelos nossos antepassados, podemos apenas deduzir o que vemos,
mas para este contexto, ali está uma fonte de poderes e afetos
misterioso, capazes de elevar suas experiências de vida.

Para atingir essas funções o Desenho sutilmente começa a possuir um


aspecto visual mais sintético e gráfico, de maneira que pudesse se
apropriar de forma sucinta, uma ideia ou sensação que o seu autor
desejava passar. Pode-se dizer que o Desenho começa a caminhar
para se parecer com o que entendemos hoje por Desenho, em seu
sentido gráfico, e então, começou a evoluir para além de traços.

25
FALAR O DESENHO

Outro aspecto comum em virtude do desenvolvimento da humanidade


foi a comunicação. Somos seres sociais e dependemos do contato e
da troca de informações para vivermos de forma harmônica uns com
os outros. Para que houvesse organização e garantia de sobrevivência
durante os períodos Paleolítico e Neolítico, a humanidade, sem
dúvidas, precisou se comunicar de alguma forma com seus
semelhantes. Para Artigas:

O grafismo paleolítico, a origem do desenho, nossa


linguagem, certamente nasceu antes da linguagem oral.
Foi a linguagem de uma técnica humilíssima e também
a linguagem dos primeiros planos da natureza humana
rudimentar (1968, p. 25).

Desse modo, de maneira muito primitiva, o ato de desenhar foi um


dos primeiros meios de se comunicar. Mesmo quando essa
concepção ainda não existia com clareza ou ainda não haviam
palavras para serem escritas ou ditas em voz alta, naturalmente,
representar as coisas como se enxergava parecia ser o método
mais adequado para transmitir informações. Um sujeito ao
desenhar, ainda que sem se dar conta, passava para as outros o
que havia de aprendizado acumulado dentro de si através de suas
vivências.

Por esse motivo, em conjunto ao desenvolvimento das percepções


cognitivas da humanidade, o Desenho se desenvolve cada vez mais
em direção ao grafismo, até culminar na origem da escrita como
mostra Cadôr:

27
O desenho e a escrita têm uma origem comum, ambos
surgiram da necessidade de registrar a linguagem por
meio de signos, e assim transmitir uma mensagem. Nos
primórdios da civilização, os logogramas eram
desenhos esquemáticos utilizados para representar as
palavras. Formam a base de sistemas de escrita como
o hieróglifo, o cuneiforme e os glifos maias. A
semelhança do desenho com o objeto a que se refere,
tão evidente nos pictogramas, mostra uma proximidade
entre as palavras e as coisas representadas. O
pictograma é uma linguagem de símbolos independente
dos sons, o que garante sua eficiência na comunicação
visual (2007, p. 07).

Para que pudesse haver uma organização e entendimento mútuo da


linguagem escrita nas primeiras civilizações, o Desenho possibilita ao
homem a criação de signos. Se o Desenho antes já podia possibilitar a
expressão e o registro, a partir desse momento, pode também
significar. Pictogramas (desenhos simplificados semelhantes às
representações pictóricas) surgem como a sintetização da fala; um
único desenho específico quando visto passa a ser entendido como um
aviso, uma indicação ou um sinal. Logo mais, em seguida, através da
junção de linhas em direções esquematizadas, dá-se origem aos
logogramas, desenhos que representam palavras, surgindo assim a
linguagem escrita dos ideogramas. Cadôr complementa:­

A associação de dois ou mais pictogramas para


representar um conceito, um substantivo abstrato, foi o
primeiro passo em direção a um sistema de escrita
conhecido como ideograma, utilizado na China e
também no Egito (2007, p. 07).

É correto afirmar que nesse momento se espalha pelo mundo não


apenas uma língua, mas várias linguagens que possibilitam à
humanidade meios de tentar organizar as propriedades da vida e
elaborar concepções sobre as coisas que nela existem, incluindo a ar-
28
te. Dessa forma, de acordo com Peixoto (2013), o Desenho, ainda sem
definição própria, passa a ser entendido como meio de projeto e
comunicação visual, principalmente no Egito antigo (cerca de 3100
anos a.C.), onde serve como base fundamental para a criação de
diversas invenções e construções arquitetônicas e que mais tarde, as
civilizações ocidentais replicariam esse uso, porém, não é mais uma
linguagem independente e prioritária.

Na Grécia antiga, durante o período Clássico (V e IV a.C.), surgem


pessoas que dedicam a vida para explorar o fazer pictórico/escultórico
na representação do mundo e dos acontecimentos ao redor. Técnicas
artísticas são melhor desenvolvidas nesse momento, a Escultura passa
a ter um acabamento mais limpo e com detalhes primorosos, enquanto
a Pintura, em vasos e murais, já mostra um pensamento anatômico
mais elaborado e cuidadoso. Como não existem registros físicos dos
desenhos feitos nessa época, é deduzido que tais avanços só foram
possíveis devido ao seu uso prévio, como forma de esquematizar o
que seria feito e como seria a forma definitiva nos suportes. No papel
era onde se pensava a figura humana, com proporções rigorosas,
dando atenção às medidas e as relações de tamanho entre o rosto e
as partes do corpo, que ainda era desenhado somente de perfil (com
exceção do tronco) tanto pelos egípcios quanto pelos gregos.

É importante ressaltar que outros povos e civilizações de diferentes


continentes – como na África e na América do Sul – também possuem
grafismos históricos de grande valor, tanto artístico quanto
antropológico. Contudo, o recorte espacial para esse trabalho se
contém as regiões citadas nos materiais de pesquisa, sendo a grande
maioria países da Europa Ocidental.

29
PECADOS VISUAIS
Estabelecida a linguagem escrita e falada, a humanidade chega então
à Idade Média (Séculos V e XV), período que é marcado pela escalada
Cristã, um fator religioso que muda drasticamente o curso da História e
os caminhos da Arte.

[...] a Igreja Ortodoxa baseava-se na união da


autoridade espiritual e secular, na pessoa do imperador.
Dessa forma, era dependente do Estado, exigindo uma
dupla submissão por parte dos fiéis, mas
compartilhando as vicissitudes do poder político.
Reconhecemos esse modelo como a adaptação cristã
de uma herança muito antiga, a divindade do poder real
no Egito e na Mesopotâmia; se os imperadores
bizantinos, ao contrário de seus predecessores pagãos,
não mais podiam aspirar ao status de deuses,
mantinham então um papel único e igualmente elevado
ao colocarem-se à frente não só da Igreja, mas também
do Estado (H.W, 1996, p. 88).

No trecho do livro de Horst W. Janson (1913-1982) pode-se notar que


o Cristianismo se torna presente e influente na sociedade não apenas
nas igrejas, mas também no Estado, interferindo diretamente na vida
cotidiana e na configuração das cidades e dos seus espaços. A figura
central a ser respeitada é Deus, e seus representantes na Terra
deviam ser obedecidos para que a ordem fosse mantida. Sendo assim,
qualquer tipo de representação visual que se distanciasse da imagem
pura de Cristo estava condenada.

A Arte foi condicionada à religião cristã. Grande parte das pessoas não
sabiam ler e escrever e, como uma ferramenta de controle, a Igreja
encontra na potência da linguagem visual um meio de educar as
pessoas sobre os ensinamentos de Cristo. Nas imagens elaboradas
para decorar as igrejas era possível entender a grandiosidade divina
bem como temer a sua força.
31
Visualmente falando, é perceptível que a Igreja não adaptou somente
os ideais políticos e a arquitetura dos povos egípcios e gregos, foi
também readaptado o fazer artístico, e com ele, o desenho da figura
humana, como é fundamentado por Hodge:
Derivada de elementos da arte grega, romana e egípcia,
ela exprime uma forte sensação de ordem. Não existem
nus nem imagens narrativas, uma vez que essa arte foi
criada para falar aos espectadores sobre Deus, os
santos e as Escrituras. Juntamente com o cristianismo,
a arte bizantina se difundiu para outros lugares, como
Ravena, Veneza, Sicília, Grécia e Rússia. Os principais
exemplos remanescentes são afrescos e mosaicos que
adornavam as grandes igrejas abobadadas construídas
para expressar a onipresença de Deus, mas há também
pinturas em painéis de madeira com encáustica,
pequenas inscrições em relevo e manuscritos com
iluminuras. Predominavam os ícones planos e
estilizados de figuras sacras, cujos artistas
permaneciam anônimos. O que importava era a
veneração a Deus, não aos indivíduos (2018, p. 14).

Para o Cristianismo, em relação a Deus o Homem era menor e inferior,


assim devia ser representado de maneira que ficasse claro em
afrescos e mosaicos, sua pequenez diante de seu Criador. Se no
período Clássico grego a exploração do corpo humano era destacada
devido a busca pelas formas para representá-lo, na Idade Média essa
busca tem seu objetivo mudado; a representação de figuras humanas
é pensada para se diferenciar das imagens pagãs. Anjos, santos e
personagens bíblicos surgem com proporções menos exatas e com
traços mais estilizados, procurando na simplificação, uma maneira de
mostrar a limitação do Homem.

Percebe-se então, como aponta Peixoto (2013), que ocorre uma


limpeza e padronização em massa do Desenho conforme o
Cristianismo se alastra pelo globo. As culturas de diferentes lugares do
32
mundo ocidental passam a temer Deus e seus ideais, e as pessoas
responsáveis pela criação imagética se veem obrigadas a produzirem
obras que não se aproximam das representações pagãs das
civilizações antigas, mas que sejam aprovados pela Igreja e mostrem a
soberania de Deus.

Ainda nessa época, o Desenho é responsável pelo projeto e forma de


obras monumentais, construções com detalhes grandiosos e
imponentes, que provaram que a capacidade estética do homem
poderia ultrapassar limites de escala. Contudo, sua prática é estreitada
a representação segundo um ideal e o registro é limitado a apenas um
tema, diluindo sua força expressiva e visual.

33
OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
Com a chegada do século XV as convicções humanas começam a
mudar no Ocidente, mais especificamente na Itália, onde, encabeçado
por artistas e filósofos, era iniciado o período da história entendido
como Renascimento (XIV ao XVI). Pode-se afirmar que, “Em oposição
à Idade Média, o Renascimento reabilitou o humano. As noções sobre
o homem surgiram de todas as fontes imagináveis, descobertas pelos
que pintavam e esculpiam” (Artigas, 1968, p. 25). Nesse sentido, a
Arte, apoiada ao pensamento científico, passa a repensar definições
estabelecidas e, em contrapartida, provar novas teses sobre o Homem
e suas propriedades.

Nesse período é quando, o Desenho é pensado seriamente como


projeto e para além de rascunho. Ocorre uma valorização e a
construção da concepção que temos até hoje sobre o ato de desenhar
e suas técnicas. Ademais, esse ato finalmente ganha um nome pelo
qual pode ser chamado e estudado, ainda nas palavras de Artigas:

No Renascimento o desenho ganha cidadania. E se de


um lado é risco, traçado, mediação para expressão de
um plano a realizar, linguagem de uma técnica
construtiva, de outro lado é desígnio, intenção,
propósito, projeto humano no sentido de proposta do
espírito. Um espírito que cria objetos novos e os
introduz na vida real (1968, p. 26)
De acordo com o autor, a palavra Desenho se origina do termo italiano
Disegno que engloba em seu significado o desejo de fazer, a intenção
de criar, a vontade humana de dar origem a algo. Ou seja, desenhar
passa a ser entendido como uma ação criadora, o primeiro passo para
dar origem a invenções que ainda não existiam. E, no oposto
complementar da vontade, também se desenvolve como técnica
prática da construção, pois possibilitou a esquematização elaborada

35
dos planos do homem. Através do traço, os desejos humanos
ganharam forma no mundo físico.

Para que essa transformação do entendimento do Desenho ocorresse


é importante notar de que forma se deu a sua distinção de outras
técnicas artísticas. O principal fator foi, segundo Ralph Mayer (1895 –
1979), a invenção da tinta a óleo que ocorreu no século XIV, que se
popularizou durante o Renascimento, ao longo do século XV. O
surgimento dessa técnica/material proporcionou um grande avanço
para a prática da Pintura, que encontrou nas telas de linho um suporte
mais prático de ser usado e transportado, assim como possibilitou uma
gama viva de novas cores e novas formas de pensar efeitos visuais
como a opacidade e transparência (1999).

Em virtude desse avanço, acontece a dissociação entre Pintura e


Desenho, as duas técnicas passam a seguir caminhos diferentes e se
tornam linguagens artísticas distintas. Segundo Artigas, "[...] o desenho
se impôs. Passou a ser linguagem da técnica e da arte – como
interpretação da natureza e como desígnio humano, como intenção ou
arte no sentido platônico” (1968, p. 26). Dessa maneira percebe-se
que, o Desenho, a partir desse momento passou a percorrer duas vias,
tanto a do fazer técnico enquanto invenção, quanto o da própria Arte,
como expressão artística.

Porém, uma função não anula a outra. Leonardo da Vinci (1452 –


1519) talvez seja o melhor exemplo que comprove isso ao coexistir em
seu trabalho arte e técnica.

Para ele a criatividade, em todos os setores, tinha valor


humano. Somente se exprimiam em categorias
diferentes. Importante era distingui-las para conhecê-las
e, conhecendo-as, valorizá-las com propriedade
(Artigas, 1968, p. 26).

36
A partir do legado de Da Vinci, os artistas renascentistas se dedicaram
a ilustrarem a figura humana com minuciosos detalhes, que agora não
eram apenas da forma anatômica do corpo, mas também de tudo que
estava em contato ao seu redor e tudo que havia por dentro e por fora,
dos ossos até as unhas e linhas de expressão da pele.

37
TÉCNICA,
PARA APRENDER E PRENDER
Com o surgimento dessa nova concepção de artista inventor ou do
inventor artista, novos conhecimentos envolvendo o pensamento visual
começaram a ser testados e desenvolvidos. Aristides afirma:

O auxílio de figuras importantes como reis e os papas


permitiram que os artistas ganhassem acesso à classe
instruída, onde a criatividade e a individualidade eram
valorizadas [...] Este novo conceito de artista como um
indivíduo criativo e engenhoso que busca uma
ocupação digna naturalmente levou a novas técnicas de
treinamento (2006, p.6. Tradução nossa).

Sem dúvidas, como a autora aponta, o avanço da prática artística fez


com que acontecesse uma expansão sobre o que era sabido até
então, os artistas renascentistas mudaram o ideal de representação
sobre o qual estava a Arte e em guildas, com o ambiente e materiais
próprios para o estudo, desenvolveram saberes teóricos elaborados
sobre aquilo que estavam fazendo, onde a prática tinha uma dimensão
maior e mais organizada para que pudesse ser explicada e,
consequentemente, ensinada.

Sobre esses saberes Peixoto (2013) cita que, houve uma dedicação
em estudar e entender a luz, o volume e a profundidade. Todas essas
propriedades visuais são buscadas por meio da exploração da técnica
do Desenho, onde se pôde descobrir qual a potencialidade do traço,
das linhas e das manchas e o que elas poderiam oferecer para o
artista e seu trabalho. Ainda, nesse momento de descobertas, surge a
inovadora aprimoração da Perspectiva, que começou a ser estudada
no século XIV por Giotto di Bondone (s/d – 1337) e toma uma nova
proporção ao ser popularizada e formalizada por Filippo Bruneleschi
(1377 – 1446) no século XV, sendo muito utilizada na Pintura para dar
profundidade às composições.
39
Todos esses recursos visuais só foram possíveis de serem
sistematizados e utilizados em virtude do exercício técnico, que não se
resume ao desenho anatômico ou da figura humana, mas que serve
como meio eficaz de obter um resultado específico capaz de evocar
em superfícies estáticas os fenômenos visuais que os olhos percebem
no mundo real. No Renascimento, segundo Artigas (1968), foram
lançadas as bases para as técnicas modernas de como se fazer Arte,
onde, desse momento em diante, a teoria (princípios conceituais de
como aplicar a técnica) passa a ser tão importante quanto a prática,
tanto para o Desenho quanto para outras linguagens artísticas em
geral.

Ao passo que, de acordo com Aristides (2006), da metade do século


XVI até o século XVII o método de aprendizagem nas guildas foi
vagarosamente sendo realocado em locais específicos para o estudo e
prática da Arte Surgia o que hoje são as Academias de Arte. Nas
academias nasce o conceito das Belas Artes, que, diferente dos
métodos livres dos ofícios nas guildas, era entendido como um modelo
de arte ensinado a partir de um denso componente teórico que era
aprendido oralmente pelos alunos. Nas palavras de Aristides:

Essas academias atraíram alunos de diversas áreas


geográficas e os educavam em um estilo de arte
unificado. A primeira escola nacional foi a Acadêmica
Francesa Royale de Peinture et de Sculpture. Foi
fundada em 1648 e no final do século XVIII e se
transformou no que hoje chama-se Ecole des Beaux-
Arts. Esta instituição estabeleceu um alto padrão para
artistas e ostentava um curso prescritivo de estudo de
princípios artísticos em que os alunos aprendiam
desenho, expressão, anatomia, proporção, chiaroscuro,
composição e cor (2006, p.6. Tradução nossa).

40
Nesse momento, com discorre a autora, o Desenho começa a ser
ensinado nas escolas de Belas Artes europeias seguindo uma
retomada à estrutura formal do classicismo grego; era esperado que a
arte produzida pelos estudantes incorporasse ideais greco-romanos de
razão e ordem. Assim, sendo o componente básico fundamental, antes
do contato com qualquer outra expressão artística, era preciso
entender e aprender a desenhar segundo as técnicas renascentistas e
os padrões de organização greco-romanos.

Em consequência da popularização dessa educação voltada mais aos


ideais teóricos/técnicos e menos ao fazer criativo, o fim do século XVIII
e grande parte do século XIX é marcado pelo Academicismo (Peixoto,
2013). Os artistas em formação se voltaram para os grandes mestres
do Renascimento, e o Desenho continua a ser estudado com
veemência, porém, agora de um modo mais rigoroso e com pouca
liberdade para experimentações, onde havia uma intenção de se atingir
um ideal de beleza perfeita e harmônica. Em virtude dessa
mentalidade, surgem padrões de produção que permitiam pouca
fluidez para a prática do Desenho, que acabaram enrijecendo as linhas
e formas, onde o artista para ser considerado competente se estiver
disposto a praticar horas de desenho acadêmico e padronizar seu
trabalho aos níveis de representação exigidos.

Se por um lado a elaboração e oficialização do ensino da técnica do


Desenho serviu como forma de valorizar essa prática, descobrir novas
possibilidades visuais e, proporcionar criação de obras de arte
importantes, por outro, trouxe uma mecanização do seu fazer. O
Desenho passou a tomar formas demasiadamente específicas, a
técnica o sufocou e aos poucos foi sendo limitado a quem podia
aprender a fazê-lo. Situação que foi exportada para diferentes lugares
e ainda é presente nos dias atuais e no ensino do Desenho em
diferentes locais, principalmente no ensino de artes nas escolas. No
Brasil, Barbosa aponta que:

41
A primeira institucionalização sistemática do ensino de
Arte foi a Missão Francesa, e um dos poucos modelos
com atualidade no país de origem no momento de sua
importação para o Brasil. Quase sempre os modelos
estrangeiros foram tomados de empréstimo numa forma
já enfraquecida e desgastada. No caso da Missão
Francesa, o neoclássico que ela trouxe era a moda na
França dos inícios do século XIX (2015, p. 34-35).

Dessa forma, entende-se que a técnica é um recurso enraizado ao


Desenho que pode tanto potencializa-lo quanto reduzir sua pluralidade
a ideais pré-estabelecidas. Em relação às técnicas do Desenho, para
usá-las tanto na prática quanto na teoria, deve-se ter em mente que
elas não são regras e que não devem ser apresentadas como
verdades absolutas para qualquer pessoa interessada em desenhar.

42
AS MÁQUINAS E O MODERNO
Enquanto as técnicas avançavam nas Academias de Arte, fora delas
surgiam novos estilos de vida, de trabalhos e meios de produção.
Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, o mundo
atravessou um processo de industrialização que refletia diretamente a
instauração do Capitalismo na sociedade. Logo a lógica de consumo
e produção se popularizou enfraquecendo os processos de criação
artesanal, dando lugar as recém inventadas máquinas a vapor,
capazes de produzir mais em menos tempo. A modernidade chega
ao mundo camuflada no trabalho automático. Sobre a Arte nesse
período nota-se:

Essa situação gera certas proposições, tais como o


engajamento progressivo no circuito do consumo de
massa, o resvalar do status de obra de arte em direção
ao de 'produto' e, paralelamente, a transformação (ou o
'travestimento') do produto industrial em produto
estético. Tudo que é produzido deve ser consumido,
para ser renovado e consumido novamente. É essa
onipresença do consumo que rege a arte moderna, por
excesso ou por falta, por adesão ou por recusa.
Importa, pois, desenhar em grandes traços o regime de
consumo geral para posicionar em seguida os atores do
campo específico da arte: artistas, intermediários e
público (Cauquelin, 2005, p. 27-28).

De maneira geral, tudo que se relaciona ao fazer/produzir, incluindo a


Arte, passa por um processo de sofisticação e validação comercial
para que haja uma atração visual visando o desejo de consumo e
funcionalidade. Surge daí o desenho industrial.

As nações que ingressavam na era da indústria moderna organizaram


exposições de seus produtos. A França, a Inglaterra e países europeus
44
[...] reconheceram, desde logo, indispensável melhorar, aperfeiçoar,
reconsiderar a forma dos novos objetos (Artigas, 1968, p.28). Para a
elaboração de produtos com designs agradáveis e funcionais, as
indústrias se inclinam fortemente sobre o Desenho, altamente
tecnicista, para que houvesse um planejamento eficaz e que resultasse
nas melhores opções para os consumidores.

Contudo, ocorre uma mudança radical em meio a esse novo sistema


operacional. Impulsionado pelas novas máquinas e invenções
automáticas, Louis Jacques Mandé Daguerre (1787 – 1851),
desenvolve em 1840 o Daguerreótipo, um dos primeiros artefatos
capazes de registrar imagens através do que hoje chamamos de
Fotografia (Peixoto, 2013). E, anos depois, em 1888 é criado e lançado
no mercado pela Eastman Kodak o rolo de filme negativo, fazendo com
que a Fotografia começasse a se tornar popular. Com isso se torna
possível que se capturasse momentos da vida cotidiana de forma
prática e rápida, sem o auxílio de um artista ou técnicas de Pintura e
Desenho.

Consequentemente, como complementa Peixoto “[...] se a fotografia é


um meio mecânico de captura de imagens, o papel documental é muito
melhor aplicado por ela do que pelo mais exímio desenhista ou pintor”
(2013, p.48), assim, esse novo aparelho de registro traz uma grande
discussão sobre o valor da Arte e a sua função, uma vez que antes da
Fotografia, a Pintura, a Gravura e o Desenho eram os únicos meios de
se registrar algo visualmente. Muitos artistas e críticos da época
afirmaram que este seria o fim da Pintura e até mesmo do
entendimento do que é Arte, pois se esperava que a máquina
substituiria o Homem.

Porém, ainda haviam vias para se pensar o fazer humano como


Artigas ressalta:

45
A oposição irredutível, entre a arte e a indústria
nascente, explica-se pelo ideário dessas correntes, as
quais acreditavam no caráter inspirado da
contemplação estética. E afirmavam: se a máquina
substitui o homem no trabalho, também o substitui na
criação artística. A criação é humana, enquanto é
criação do indivíduo que a realiza. O artista que faz não
maneja a quantidade, porém a qualidade. Ora, a
máquina é uma força de reproduzir coisas idênticas
para os fins mais imediatos e primários (1968, p. 27-28).
Nesse contexto, a máquina estava encarregada do registro perfeito e
infinito. Logo, a Humanidade estava liberta para ir além do que via,
podia explorar seus sentimentos, as sensações que sentia, os desejos
e expressões particulares, as ideias que cruzavam sua cabeça e que
permeavam pelo seu tempo de vida. Podia dar destaque aquilo que
sentia e que sempre esteve contido na Arte. Assim, nasce a Arte
Moderna, expandindo a concepção do que é Arte e suas
possibilidades, invertendo os ideais de completude e questionando o
que era Belo e exato. Surgem desenhos fluidos e longe de
preocupações técnicas, a maestria tecnicista dá lugar à originalidade
como elemento condutor; o artista pode dar a direção que quiser em
suas linhas, basta seguir suas ideias.

Por consequência, essa expansão extrapola os limites conceituais e


abrange também os materiais e suportes, que passam a ser mais
variados e usados para além dos fins tradicionais. "Esse despojamento
no uso dos materiais e no desenvolvimento técnico [...] se atém sobre
trabalhos que antes não poderiam ser considerados obras, dentre eles,
o desenho, o esboço" (Peixoto, 2013, p. 52).

Agora, esse despojamento é entendido como obra e não apenas como


estudos. Materiais como lápis, carvão e pastéis coloridos serviam
como ferramentas de esboço rápido em situações onde não se era
possível pintar direto na tela. Com a liberdade modernista, artistas vi-

46
suais passam a explorar as qualidades gráficas e expressivas que
podem ser obtidas quando esses materiais são usados para além de
seus encargos.

Assim, o desenho passa a dividir espaço com a pintura


e com outras técnicas, não apenas nas paredes dos
museus e galerias, mas também dentro da própria obra.
E mais importante que isso, passa a ser entendido
como uma linguagem autônoma e tão importante e
expressiva quanto qualquer outra (Peixoto, 2013, p. 53).

Como apontado por Simone Peixoto, a ideia de Arte é resignificada no


início do século XX, e o Desenho é parte desse processo, quando
começa a se tornar aquilo que é hoje, uma linguagem visual volátil e
abrangente, capaz de se sustentar sozinho, mas que também dá suporte
a outras técnicas artísticas e projetos da vida humana, estando sempre
presente nas infinitas formas de representação e criação.

Hoje, como linguagem, ainda que muitas pessoas não estejam cientes
disso e ainda que haja uma complexificação da técnica, o Desenho é
acessível para todos. Pois enquanto sujeitos, usamos a linguagem para
nos comunicarmos e expressarmos nossas inquietações. Sendo assim,
desenhar nada mais é do que uma extensão dessas ações, uma prática
natural à vida humana, capaz de lhe dar clareza e sentido.

47
DESENHAR PRA QUÊ?
Uma imagem vale mais que mil palavras, mas apenas se o espectador
souber lê-la. No mundo moderno e veloz do século XXI as letras vêm
perdendo o espaço de ser o principal artifício da comunicação humana:
a chegada e disseminação da Internet em lares por todo o planeta fez
com que trocássemos horas de leitura por segundos fragmentados de
observação de imagens. São milhões e milhões de jpgs, pngs, gifs,
selfies, stories, memes, emojis, figurinhas, thumbnails e fotos
amadoras sendo compartilhadas e consumidas todos os dias.

Esse fenômeno fez com que a cultura visual se tornasse ainda mais
forte e inevitável na vida humana, tornando a imagem não apenas um
complemento de um texto escrito, mas uma peça autônoma com
significado próprio e sustentado apenas por seus elementos visuais.
Porém, ainda assim, as mil palavras não ditas que cabem em cada um
dos inúmeros formatos de imagem agora existentes, ainda só podem
ser compreendidas por aqueles que as sabem ler, ou seja, quem é
capaz de compreender a natureza e a estrutura da comunicação
visual. O meio mais funcional para adquirir esse conhecimento é o
Desenho, que abarca em sua totalidade os aspectos que estão por trás
da criação imagética, o pensamento de composição e de organização
visual.

Foi a partir do século XX que as imagens, em acúmulo desmedido,


passaram a ser inevitáveis e inseparáveis da vida humana. Com o
firmamento do Capitalismo como sistema vigente em grande parte do
mundo, seu principal braço imagético – a Publicidade – surgiu com o
poder de convencer pelos olhos. Se, desde a segunda metade do
século XIX, o Desenho havia sido liberto da função de representação
realista, passou então a ser estudado a partir de outros vieses – dentre
os quais, o da subjetividade. Para que imagens possam provocar
determinadas sensações é preciso pensar antes como construí-las, co-

50
mo capturar as sensações que aprendemos, mas que não
exatamente enxergamos.

Um exemplo desse tipo de construção imagética são as logomarcas


de empresas. Popularizadas no Brasil durante o crescimento no setor
industrial do país na década de 1950 (incluindo o envolvimento de
diversos artistas ligados ao movimento da arte concreta) e sendo
determinantes até hoje, logomarcas são a sintetização visual de um
negócio; englobam, numa única imagem, o serviço que é oferecido
junto às sensações que o cliente procura. Capturar essas
propriedades intersubjetivas e amarrá-las de forma coesa é uma
tarefa que requer um pensamento estrutural minucioso e criativo,
capaz de ser atingido com maior êxito através do desenho, que
permite explorar a subjetividade sem o desprendimento visual ou vice-
versa.

Nesse sentido, criamos relações com as imagens que nos cercam,


não apenas com as peças publicitárias que nos atraem com cores e
formas vibrantes, mas também com as imagens mais triviais que
passam pelo nosso cotidiano. Reagimos com atração ou repulsa aos
mais diversos estímulos visuais pois somos suscetíveis à
sensibilidade visual. As coisas nos afetam com desenhos e reagimos
com outros desenhos de volta todos os dias. Sobre o papel do
desenho nesse quesito Gustavot Diaz afirma que:

Em síntese, Desenho é registro e articulação


experiencial, e estratégia de mediação afetiva. Mais do
que representar objetos e ideias por meio de uma
técnica, o Desenho é capaz de efetuar o registro
profundo da experiência ao propor diálogos
intersubjetivos, bem como conectar o sujeito à esfera do
sensível promovendo sua intervenção no corpo social
pela forma simbólica (Diaz, 2019, p.1)..

51
Assim como a escrita, o Desenho tornou-se uma ferramenta para
expressar uma ideia completa além do mundo físico, é uma ferramenta
que permite ao indivíduo visualizar e interagir com os atributos
invisíveis que estão dentro de si e nas nuances da vida moderna.

Esse é o motivo por que continuamos a desenhar mesmo depois de


séculos de avanço tecnológico e em um mundo cada vez mais
automatizado. O Desenho, semelhante à Poesia, envolve uma ação
que parte do subjetivo, da vontade humana de procurar respostas para
as perguntas infinitas que nos acompanham em nossa vivência no
mundo. Do artista até o engenheiro, a natureza interdisciplinar do
Desenho permite que possamos moldar o tangível e descobrir o
intangível nas entrelinhas das ideias e dos projetos.

52
DA LINHA AO TRAÇO
Além de átomos e elementos químicos, a vida humana é
essencialmente composta por linhas. Estejam elas nos movimentos
que o corpo faz, nos caminhos que percorremos de um espaço a outro,
nos corredores da cidade ou até em lugares mais óbvios como nos fios
elétricos dos postes, nas linhas que coexistem na vivência prática do
ser humano. Ingold (2015) aponta um olhar filosófico sobre as linhas
ao refletir sobre as primeiras formas de organismos vivos na Terra,
seres unicelulares com formato disforme que vagavam pelas águas
dos oceanos. O autor constata que, anos depois, ao desenvolverem
flagelos em extensão ao corpo, passaram a ser bolha e linha e assim,
entrar em contato uns com os outros e com o ambiente ao redor,
resultando na evolução até a vida terrestre.

Partindo do pensamento de Ingold, percebesse que as linhas possuem


outras propriedades além da estruturação da forma de objetos e
construções. Uma linha é também um meio de contato, de afluência
para nós seres humanos. Tanto fisicamente como mentalmente,
planejamos e demonstramos o que queremos através de ações que
envolvem o percurso linear. Ao nos locomovermos, nos comunicarmos
ou realizarmos uma interação com o espaço ao redor, traçamos linhas
imaginárias, algumas mais longas e sinuosas, outras mais rápidas e
sucintas, elas refletem nossas intenções, interesses e vontades.

Quando colocadas sobre uma superfície, as linhas são organizadas e


permitem a visualização das idiossincrasias que nos trespassam. Elas
proporcionam ao desenho a captura da essência de diversos lados que
compõem a nossa existência enquanto seres sociais e com infinitas
particularidades. “Desenho é também uma dança no espaço, um
percurso assumido ao entrar numa sala cheia de gente, forma de
explorar uma espaço novo” (Derdyk, 2020 p. 60). Ao espalharmos um
punhado de linhas pelo papel podemos visualizar curvas, pontas, inter-

55
seções, cruzamentos, cantos, nós, conexões e mais outras formas e
encaixes que nos acompanham de forma velada diariamente.

O contato humano com as linhas se faz presente logo no primeiro


período da vida; na infância. Derdyk (2020) nos diz sobre o desenho
infantil que “[...] constitui para a criança uma atividade total,
englobando o conjunto de suas potencialidades e necessidades” (p.
63). Assim, o Desenho não apenas é uma atividade expressiva, como
também reflete diretamente o desenvolvimento emocional, psíquico,
físico e cognitivo que ocorrem nessa fase de formação. As linhas
desenhadas são a primeira forma visual da criança externar suas
descobertas e os primeiros sentimentos que sente, ainda segundo
Derdyk (2020), a fidelidade que possuem com seu sistema nervoso
confere um tom de veracidade a todos os seus gestos, fazendo das
linhas um elemento forte e expressivo.

Ao ter consciência de que ocorre um registro no papel ao tocá-lo com


a ponta de um lápis ou outro material em uma superfície aderente
como areia e paredes, a criança passa a explorar essa possibilidade
de maneira vigorosa. “A criança rabisca pelo prazer de rabiscar, de
gesticular, de se afirmar” (Derdyk, 2020 p. 69). Ver a linha surgindo e
acompanhar o seu percurso é uma ação mágica, que se intensifica
com os movimentos corporais, gestos e a excitação motora das
mãos. Nasce nessa fase o grafismo particular de cada pessoa, com
uma essência orgânica e ritmada guiada pelo magnetismo hipnótico
das linhas.

Surgem assim as garatujas, desenhos que se parecem com um


emaranhado selvagem de linhas entrelaçadas e sobrepostas umas
sobre as outras. A forma como a criança canaliza a maneira pela qual
sente existir acontece nesse fluxo intenso e desorganizado de linhas,
semelhante ao fluxo da própria vida que não possui uma linearidade
separada das ações, mas muitas ao mesmo tempo.

56
A garatuja não é simplesmente uma atividade sensório-
motora, descomprometida e ininteligível. Atrás dessa
aparente ‘inutilidade’ contida no ato de rabiscar estão
latentes segredos existenciais, confidências emotivas,
necessidades de comunicação (Derdyk, 2020, p. 63).

Para a criança as linhas traduzem não apenas seus movimentos e


pensamentos como também suas sensações diante das experiências
que vive, sejam elas mais perceptíveis como o frio e o calor ou mais
subjetivas como o medo e a solidão, elas contêm em si muito mais do
que apenas formas.

O condicionamento de termos cada vez mais acesso a obras de arte


somente em tamanhos pequenos e reduzidos – em computadores e
dispositivos móveis, e feitas por meios cada vez mais mecânicos, nos
distancia gradativamente do valor singular de detalhes feitos a mão,
perdemos o fascínio das linhas quando feitas com o mesmo
entusiasmo infantil. Contudo, essa qualidade particular do “feito a mão”
ainda guarda em si a essência da expressão humana, do fazer
orgânico com imprecisões e instinto. As mesmas linhas que nos
conectam às pessoas e aos lugares, quando feitas e manipuladas
pelas mãos capturam nossas identidades e qualidades enquanto seres
em constante movimento.

57
POR TRÁS DA TELA
Houve muitas coisas que perderam o encanto com a popularização da
Internet, mas o Desenho, em contrapartida, ganhou um amplo espaço
de exposição e ressignificação atrás das telas. Com a disseminação do
acesso à Internet nos domicílios brasileiros ao longo dos anos 2000, a
facilidade de acesso a informações e o compartilhamento de
experiências com outras pessoas ficou cada vez maior. De receitas
culinárias até teorias da conspiração é possível se encontrar de tudo
em fóruns e blogs específicos sobre tópicos diversos – inclusive sobre
Arte. Pela primeira vez na história era possível entrar em contato com
milhares de imagens de obras de arte icônicas de diferentes períodos
sem precisar ir ao museu ou ter em mãos um catálogo impresso.

Ainda que com problemas de distribuição e sendo majoritariamente


acessada pela parcela mais afortunada da sociedade, a Internet trouxe
consigo um aspecto democrático para a vida das pessoas. Conteúdos
que antes eram de difícil alcance tanto por fatores como valor quanto
distância, agora podiam ser encontrados e explorados através da tela
de um computador. Não por acaso, surgiram também sites voltados ao
compartilhamento de criações visuais, onde usuários podiam carregar
imagens de desenhos, pinturas ou fotografias e hospedá-las em perfis
próprios, podendo ser exibidos para qualquer pessoa em qualquer
lugar do mundo. Apareceram também os primeiros vídeos tutoriais
que, numa escala de alcance antes inimaginável, ensinam técnicas e
dicas para a prática do desenho, adicionando um novo ângulo ao seu
estudo – que nesse momento pôde começar a ser feito também a partir
da observação do virtual, do que a tela mostrava e não mais apenas do
real.

Nesses espaços, o Desenho parece ter ganhado mais destaque por


sua natureza diversificada e de não exatidão – encaixando-se no
universo virtual sem a necessidade de estar completo, ou em um
suporte determinado, ou ainda com um intuito claro. A Internet não exi-
60
ge uma demanda para que algo exista e seja visto nela, e um desenho
não precisa de muito além dele mesmo para existir. Dessa forma a
junção dos dois parece completar uma relação harmônica.

Na década seguinte, durante os anos 2010, a experiência de


navegação virtual se tornou mais carregada e centralizada. A chegada
de smartphones e o estabelecimento de redes sociais como as
principais vias de compartilhamento virtual fez com que a exploração
ficasse mais maçante, mas não menos diversificada. Plataformas como
Instagram e Tumblr tornaram mais prática a função de carregamento
de imagens e postagens relacionadas ao visual, podendo serem feitas
de forma rápida e instantânea e praticamente a qualquer momento. E o
mesmo passou a valer para as buscas, que agora se dão em meio a
uma diversidade infinita de temas, uma vez que as redes sociais
concentram todo seu conteúdo em um único espaço. Tal mudança
potencializou um fluxo maior de criações, gerando ainda mais imagens
e engajando ainda mais pessoas além daquelas interessadas em
Desenho ou Arte.

Essa ação de descobrimento e troca de uma grande quantidade de


trabalhos e técnicas de diferentes lugares, feitos por diferentes
pessoas, gerou um impacto mútuo nos usuários da Internet. Aos
poucos passou a surgir no Desenho, mais do que nunca, uma mistura
de influências e estéticas como nunca antes visto. Dos cartoons
clássicos dos anos 1940, passando pelos quadrinhos de heróis, o
exagero dos mangás até pedaços remodelados do realismo
renascentista, estilos e traços foram mesclados de inúmeras formas. A
Internet permitiu a aproximação de diferentes ângulos estéticos, e
espontaneamente, a volatilidade visual do Desenho possibilitou a
ligação entre esses ângulos, revelando novos lados a serem vistos.

Outro fator importante realçado pelas redes sociais foi o destaque dado
aos perfis pessoais. Um perfil na Internet, em tese, serve como uma

61
apresentação sintética da personalidade real do indivíduo, suas
preferências e gostos são visualmente traduzidos para integrar
a construção de sua imagem virtual. Esse fenômeno, quando
transposto para o artista, faz do perfil um espaço de exposição
de suas ideias e de existência social para seu trabalho – algo
como uma galeria de exposições pessoal, livre para ser
preenchida da forma como achar melhor, sem a necessidade
de uma avaliação curatorial.

Essa liberdade de exposição e apresentação pessoal concedida


pelas redes sociais acarretou na elaboração e procura de perfis
singulares, formas de mostrar a individualidade de cada um no
plano virtual. Nesse fluxo criativo, a Internet ajudou a
popularizar a ideia de que um desenho não precisa ser perfeito.

O Desenho encontrou alternativas estéticas estimulantes, uma


que vez que não há uma cobrança por um trabalho limpo e
legível, desenhos particularmente irregulares e sem intenção de
beleza ganharam mais espaço e validação, assim como perfis
compostos por desenhos propositalmente feios e com pouco ou
nenhum compromisso de agradar as expectativas do
espectador como os perfis do instagram @desenhocoisinhas e
@malfeitona, se tornaram populares e apreciados.

É válido observar também a forma como o desenho integra as


principais vias de comunicação virtual na internet. Estando
presentes principalmente em memes, posts relacionados a
estados de humor e nos próprios emojis –que nada mais são do
que rostos e objetos desenhados–, desenhos ocupam um lugar
meio-termo entre ilustração e expressão.

62
Assim como ocorre a materialização de sensações através da
simplificação da forma, como no caso dos memes, traduzindo
sentimentos humanos universais em representações criativas e envolta
de várias camadas de interpretação visual.

63
FEIO (PRA QUEM?)
É inevitável que a busca pelo Belo sempre acabe por desvelar também
o Feio. Ao longo da história a Beleza passou por diferentes definições.
Umberto Eco (2004) discorre sobre como houveram contradições entre
diferentes épocas e culturas a respeito do que é o Belo, mas que na
maior parte dos casos ele está sempre associado àquilo que é
agradável aos seres humanos. Valores gregos e renascentistas foram
responsáveis por fundamentar esse ideal, por meio de representações
que valorizavam a harmonia através da proporção, a ordem e a
simetria, definindo dessa forma que o contrário desses elementos é o
Feio.

Contudo, Eco (2007) constata também que representações do Feio –


ou entendidas como feias ao longo dos séculos – poderiam ser
visualmente mais ricas e instigantes do que aquelas consideradas
artisticamente agradáveis. O Feio foi um caminho de fuga das regras
restritas de representação da figura humana, permitindo uma soltura
da imaginação ao serem criados monstros e seres fantásticos, com
membros a mais ou a menos ou ainda em lugares inesperados. Do
mesmo modo, o Feio admite e leva em consideração outros
sentimentos humanos além da alegria e do amor, como a raiva e o
medo, e situações de terror ou desconhecimento diante do mundo.

O desenho contemporâneo herda dessa história de cânones visuais


algumas particularidades. Popularmente, em virtude do passado das
civilizações greco-romanas – fortemente guiado pela busca de padrões
físicos e arquitetônicos perfeitos em suas medidas e formas, um
desenho é considerado bonito quando consegue seguir e aplicar
minuciosamente técnicas de harmonização e ilusão da realidade. O
medo que muitas pessoas sentem ao se depararem com uma situação
que envolve desenhar tem origem na busca por esse ideal de beleza
mimética, que pode não ser atingido nas primeiras tentativas devido à

65
sua complexidade e assim falhar na tentativa de transpor uma ideia
para o papel.

Desenhar, entretanto, não é e não precisa ser um exercício de cópia


fiel, mas sim de tradução criativa. Em diversas experiências em sala de
aula pude constatar que desenhos considerados feios na maior parte
dos casos são vistos assim pois seus autores não conseguem enxergar
o potencial estilístico de suas traduções. Existe um medo de se
aventurar pela não exatidão, de buscar resultados que não sejam
instantaneamente reconhecíveis e semelhantes ao que já estamos
acostumados a ver. Para que um desenho seja bom ele não
necessariamente precisa ser simétrico, proporcional e ordenado, um
desenho feio ainda sustenta uma visualidade expressiva que não anula
a materialização do alvo desenhado.

O Desenho, mais do que outras linguagens artísticas, possui elementos


gráficos distintos e maleáveis. Muitas vezes o não uso desses
elementos de forma reta e angular é interpretado como falta de primor,
ordinariamente chamado de “mal feito”, em alguns casos a harmonia
no Desenho é entendida como o rigor e retitude das linhas, há uma
valorização da exatidão mecânica. Enquanto linhas tortas e traços
retorcidos são desconsiderados por suas formas deformadas, contudo,
percebo através do meu trabalho de exploração pelo feio que esses
elementos não deixam de possuírem grande valor gráfico. Desenhar
pelo viés inexato das formas é uma alternativa para libertar a
criatividade e descobrir novas formas de enxergar as coisas, o feio
também pode encontrar a harmonia por meio da não obviedade.

“Desenhos feios” ganharam notoriedade nas últimas décadas, quando


passaram a ser entendidos como uma estética própria dentro da
linguagem do Desenho. Eles existem com maior destaque na Internet,
mas também encontram espaço em publicações independentes e na
tatuagem, onde se originou o estilo ignorant style. Essa existência
criativa não valoriza apenas o elemento estético, pois afirma o caráter

66
plural da Arte Contemporânea e subverte os entendimentos de
conceitos já pré-estabelecidos, criando novas vias de expressão e do
fazer artístico.

67
TRAÇAR O PERCURSO
É comum ouvir que tudo é válido na Arte. De quadros compostos por
um frenesi de manchas até Performances onde nada de imediato
parece acontecer, o modernismo trouxe para a mesa novas propostas
e movimentos corajosos, e de fato, qualquer suporte, material ou
criação passou a ser válida com a sustentação dos palanques
conceituais. Contudo, não se pode tirar as mãos do volante quando se
quer chegar a um lugar dirigindo um carro, assim como, o artista deve
saber como utilizar suas ferramentas para potencializar o resultado de
suas obras e não se perder no caminho para criá-las.

O fácil acesso às condições precisas para desenhar, faz com que


muitas vezes o contato com o Desenho seja espontâneo. Um simples
papel e uma mão munida de um lápis já é suficiente para que aconteça
o ato, e é apenas natural que as linhas saiam através de gestos
simples e movimentos instintivos, inerentes a anatomia do ser humano.
Sendo assim, qualquer pessoa pode desenhar. Como já dito antes, a
Internet e a abrangência de estéticas imperfeitas impulsionaram a
democracia do Desenho (e da arte em geral), que se tornou uma
linguagem artística versátil com meios fáceis de aprender e fazer.

Dessa forma, se tornou comum o desenho sem mediação. A ausência


de um professor nos processos de aprendizagem, em qualquer que
seja o nicho de conhecimento, pode gerar tanto experiências
gratificantes quanto disformes. No caso do Desenho, vivido por mim na
adolescência, a falta de uma pessoa para mediar as experiências de
ensino gerou oportunidades de haver uma soltura maior do meu traço
e do entendimento não rígido da representação, com certeza houve um
desenvolvimento único do entendimento do processo de desenhar.
Contudo, não houve momentos de esclarecimento técnico e de
construção visual, dois componentes importantes para a estruturação
do desenho.

69
Mesmo com o crescimento da prática do desenho, esses elementos
ainda não são manejados com o cuidado e o esclarecimento que
deveriam ter. O estudo da técnica e dos fundamentos da linguagem
visual, sofre em grande parte dos casos uma complicação que parece
anular a importância dessas propriedades. Não por acaso, cresceu-se
a ideia de que a liberdade deve ser o principal recurso para uma
pessoa interessada em começar a desenhar.

Sem dúvidas a liberdade de criação e imaginação é um fator de grande


importância no fazer artístico, porém, a falta de direção não
proporciona nenhuma vantagem a experiência de um indivíduo, toda
experimentação deve ter antes de mais nada uma razão. Gustavot
Diaz complementa:

A “expressão artística”, propriamente dita é um


ordenamento de forças. Não é um rabiscar à toa, alheio,
em vão, achando que isso por si só expressa algo –
isso sim nos mantém saturados, produz mais saturação.
A verdade óbvia de que a arte está ligada ao sentido
quer dizer que arte é fazer sentido: dar sentido ao que
fica desconexo e ininteligível – àquilo que está no
mundo, mas ainda não está “presente”, ainda não
pertence ao mundo humano, ao mundo humanizado
pela linguagem – para que se torne compreensível
(Diaz, 2014, p.1).

Somente depois de entrar na faculdade e ter acesso a aulas práticas


de desenho foi que pude ter uma noção maior sobre as propriedades
que compõem o fazer artístico do Desenho. Entender como usar os
aspectos formais da técnica e dos fundamentos visuais foi de grande
importância para a solidificação do meu trabalho, que passou a ser
mais legível no sentido criacional, deixando transparecer dentro do que
eu já sabia uma organização mais apurada e compreensível.

A técnica, vista como uma vilã por mim por muitos anos, vem de um

70
longo período de determinações rígidas, até culminar no ensino
técnico, envolvendo cálculos exatos e uma prática mecanicista.
Entendê-la como uma corporatura infeliz, que sufoca a ação do
desenho é uma tendência atrativa, pois para dominá-la requer
tempo e dedicação, aparenta ser mais fácil ignorá-la ou usá-la
apenas em situações coniventes. Porém, ao compreendê-la por
uma ótica mais ampla na faculdade, pude perceber que sua maior
atribuição não é a de inibição criativa, mas a de articulação dessa
força artística. A técnica fornece, como uma ponte, caminhos para
que haja um direcionamento do desenho, para que possa haver
sentido e coerência nos resultados obtidos no papel, ainda que não
haja intenção de relação ou fidelidade com o que vemos no mundo
real.

Há uma dicotomia no desenho entre técnica e liberdade, quando


deve existir uma completude entre as duas coisas. Pouco adianta
ter a ponte, mas ficar estacionado nela, assim como rodar em
círculos apenas leva alguém a lugar nenhum. Nesse sentido, a
verdadeira democratização do desenho ainda não ocorreu da
melhor maneira possível. Fornecer os meios pode possibilitar o
fazer, mas não garante o entendimento a respeito de algo. É preciso
que haja uma reorganização do ensino da técnica, que este aspecto
do desenho possa ser ensinado em escolas e espaços de pratica do
desenho sem as restrições criativas que o desenho naturalmente
fornece, e que ao invés disso possa possibilitar uma potencialização
a liberdade artística conquistada ao longo dos séculos e um meio de
focalizar a expressão artística sem que haja a perda de seu
significado no processo.

71
FIM DA LINHA
O Desenho é o mais antigo método de expressão humana, e ainda
assim, segue sendo até hoje uma das linguagens mais diversificadas e
mutáveis da Arte. Após séculos de relativa desvalorização em relação
a Pintura e a Escultura, quando cumpria somente o papel de projetar
base e rascunho, somente nas últimas centenas de anos passou a
ganhar centralidade e ser estudado como uma linguagem própria. As
mudanças ocorridas no fazer artístico a partir do século XX trouxeram
uma ampla gama de novos significados e funções práticas para o
Desenho, que não mais se prende somente a técnica e a
representação, mas que agora flutua sobre diferentes caminhos visuais
de fragmentação e não exatidão.

Essas novas noções do que pode ser o Desenho e o que o constitui


revelam também novas perspectivas para a Arte Moderna e para o
artista. Seu valor visual é tão importante quanto o de uma pintura em
um quadro emoldurado, e seus elementos característicos
proporcionam criações únicas que somente as linhas conseguem
capturar. Além das Artes, o Desenho é também fundamental para a
sociedade, auxiliando na visualização das diferentes direções e
caminhos possíveis para o caminhar, usar, comunicar e pensar do ser
humano.

Os capítulos apresentados aqui servem como um breve apanhado da


história do Desenho e suas propriedades contemporâneas, na tentativa
de amarrar brevemente os galhos de uma árvore tão grande. Meu
olhar e interesse para essa pesquisa surgiu naturalmente como um
complemento a minha própria produção, e que agora, em seu fim, me
fez rever por novos ângulos conceitos já conhecidos e ver novos
sentidos na visualidade do mundo ao meu redor e na forma como os
carrego para os meus desenhos.

73
Passo a visualizar minha produção como algo além do desenho como
forma de preencher o tempo como antes fazia, enxergo agora suas
nuances e variedades frutos de um fazer artístico contemplado pela
formação acadêmica, mas que também é atingido pelas minhas
vivencias e particularidades. Entendo agora como posso equilibrar a
técnica aos meus interesses e ao que quero expressar, assim como
entendo também o que torna o desenho essencial a minha vida, como
meio de comunicação e presentificação, e como pode também
significar mais para outras pessoas em outros contextos e lugares.

Uma vez que o Desenho permite uma enorme pluralidade de caminhos


visuais e significados, ainda é preciso que haja mais pesquisas e
publicações sobre o tema, que ainda parece tão fresco e pouco
explorado. Não apenas isso, como também o desenvolvimento de
novas práticas de ensino e do fazer espontâneo, que sejam capazes
de unir a técnica a criatividade, e a criatividade a expressão, e
potencializar ainda mais uma linguagem predominantemente artística,
mas que pode servir a todos como uma ferramenta multifuncional.

74
REFERÊNCIAS
ARISTIDES, Juliette. Classical Drawing Atelier. NY, EUA: Watson-Guptill Publications, 2006.
ARTIGAS, V. Arte e Arquitetura - O Desenho. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, [S. l.], n. 3, p.
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<https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/45665>. Acesso em: 8 dez. 2021.
BARBOSA, Ana Mae. Redesenhando o Desenho: educadores, política e história. São Paulo: Cortez,
2015.
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Campinas, Instituto de Artes, Campinas, SP. Disponível em:
<http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/284652>. Acesso em: 11 dez. 2021.
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CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea uma introdução. São Paulo: Martins Fontes 2005.
DIAZ, Gustavot. Desenhar é Preciso?. Porto Alegre, 19/03/2019. Disponível em:
<https://gustavotdiaz.com/2019/03/19/desenhar-e-preciso/>. Acesso em: 01 fev. 2022.
DIAZ, Gustavot, Receituário de obviedades: livre (e pobre) expressão. Porto Alegre, 13/12/2014.
Disponível em: <https://acrasias.wordpress.com/2014/12/13/receituario-de-obviedades-livre-e-pobre-
expressao/>. Acesso em: 01 fev. 2022.
DERDYK, Edith. Formas de pensar o desenho: Desenvolvimento do grafismo infantil. São Paulo:
Panda Educação, 2020.
DERDYK, Edith. O desenho da figura humana. São Paulo: Scipione, 1990.
DERDYK, Edith. Disegno.Desenho.Desígnio. São Paulo: Senac, 2010.
ECO, Umberto. História da Feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.
FAURE, Elie, A Arte Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
HODGE, Susie; Breve história da Arte. São Paulo: Gustavo Gili, 2018.
INGOLD, Tim. The Life of Lines. NY, EUA: Routledge, 2015
JANSON, H.W.; JANSON, Anthony F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PEIXOTO, Simone. Pensar O Desenho: Linguagem, História e Prática. Paraná: Unicentro, 2013.
RICHTER Indira, OLIVEIRA Andréia. Cartografia como metodologia: Uma experiência de pesquisa em
artes visuais. Paralelo 31. 2018; 1(8). Disponível em:
<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/paralelo/article/view/13292.>. Acesso em: 5 nov. 2021
SALE, Teel; BETTI, Clauida. Drawing A Contemporary Approach. CA, EUA: Thomson 2008.
TILLEY, Annabel. The Inexorable Rise of Drawing, Garageland issue 6, 2007.
TRACEY. Drawing Now: Between the Lines of Contemporary Art. NY, EUA: I.B.Tauris, 2007.

75
REFERÊNCIAS TÉCNICAS
DAS IMAGENS
SUMÁRIO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2017
UM PONTO DE PARTIDA
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
LINHAS NO CÉREBRO, DESENHO NA CABEÇA
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2021
OS PRIMEIROS TRAÇOS
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
FALAR O DESENHO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
PECADOS VISUAIS
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
OS DESÍGNIOS (DISEGNO)
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
TÉCNICA, PARA APRENDER E PRENDER
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
AS MÁQUINAS E O MODERNO
S/T, caneta nanquim em papel, 148 x 210 mm, 2022
DESENHAR PRA QUE?
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
DA LINHA AO TRAÇO
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
POR TRÁS DA TELA
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
FEIO (PRA QUEM?)
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
TRAÇAR O PERCURSO
S/T, caneta nanquim em papel, 21cm x 29,7cm, 2022
FIM DA LINHA
S/T, carvão em papel, 21cm x 29,7cm, 2021
Todas as imagens vindas de acervo pessoal

76
AGRADECIMENTOS
Obrigado as professoras Bruna Rafaella e Constança Lucas e
ao professor Sergio Bonilha por me fazerem repensar e
redescobrir o desenho em suas aulas. Agradeço ao meu
orientador Eduardo Romero pelas conversas e direcionamentos
ao longo do processo de pesquisa e escrita. Obrigado a
professora Maria Betânia pelo empurrão no inicio dessa
jornada, e ao professor Gustavo Motta por ajudar a amarrar as
pontas no final. E, por fim, o agradecimento especial aos meus
pais, por serem fontes de inspiração inesgotáveis e por nunca
terem deixado faltar lápis e papel em casa.

77
RECIFE 2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS – LICENCIATURA

PIRACEMA: EXISTIR E TRAFEGAR NA AUSÊNCIA

Ziel dos Santos Mendes

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Coordenação do Curso de
Artes Visuais da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciado em Artes
Visuais.
Orientação: Profa. Dra. Renata Wilner.

RECIFE-PE
2022
2

RESUMO:
Este trabalho de conclusão de curso relata experiências sobre poéticas
performativas como estratégias de autoafirmação das identidades e
representatividades indígenas ao ocupar os espaços museológicos na
contemporaneidade. Tem como objetivo expressar e produzir reflexões sobre os
processos de territorialidade dos corpos indígenas ao adentrarem nas
instituições de arte, tensionando e questionando a ausência de obras de autoria
indígena nos acervos e abordagens sobre as etnicidades indígenas a partir de
uma perspectiva decolonial. Para a revisão teórica, buscou-se autores que
abordam a temática indígena no campo da Arte, Arte Educação, Mediação
Cultural em espaços museais, textos sobre presença indígena nas Instituições
de ensino superior, nos espaços museais, relatos e entrevistas sobre exposições
de arte indígena, textos e entrevistas de pensadores e artistas indígenas como
forma de aprofundar as reflexões e diálogos.

PALAVRAS CHAVES: Arte indígena; Performance; Museus; Arte Educação;


Decolonialidade.
3

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO __________________________________________ 4
Cap.1 BOA CICA ________________________________________ 6
Cap. 2 SUBINDO O RIO ___________________________________ 9
Cap.3 EU TAMBÉM SOU CORRENTEZA _____________________ 15
3.1 Todos Falam de mim, ninguém me representa! ______________ 18
Cap. 4 Desova __________________________________________ 21
REFERÊNCIAS _________________________________________ 25
4

INTRODUÇÃO

Inicio este texto, ou melhor dizendo este diálogo, pedindo licença aos
meus ancestrais e às forças da natureza. Esta escrita foi impulsionada pela
vontade de retomar. Retomar territórios físicos e subjetivos, retomar
epstemologias e ciências originárias, retomar o acesso e acionamento memórias
ancestrais presentes no espaço-tempo.
Contudo, os processos de retomadas por meio da escrita é algo novo para
nós povos indígenas, é uma ação subversiva. Parafraseando Davi Kopenawa
(2015), já que aprendemos a fala e a escrita do não indígena aqui estou,
desenhando minhas palavras em peles de imagens, pois também desejo que
minhas palavras se dividam e se espalhem, como fumaça para bem longe e
possam ser lidas e ouvidas.
Ao refletir sobre minhas experiências ao longo desses anos em que
estou cursando Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE, me perguntei por várias vezes, por que saí da minha
comunidade? O que estou fazendo nesse espaço/lugar?
Algumas vezes a resposta veio logo após, positiva por sinal; já em outros
momentos estas nunca chegaram. Talvez, por ser uma pergunta mais complexa
do que parece, principalmente quando levamos em consideração questões que
envolvem políticas públicas, questão de classe, preconceito e racismo.
Entrei na universidade em 2015 em consequência das políticas públicas
vigentes, refiro-me a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, lei de cotas sociais
e raciais, sendo assim, faço parte do crescente aumento no índice da entrada de
indígenas e negros nas universidades do Brasil, contudo, quase sempre
tangenciei os índices de desistências por estar em um espaço/lugar que não foi
pensado e construído para indígenas.
Ao intitular este trabalho de piracema, vocábulo da língua tupi que significa
“subida do peixe” onde os peixes nadam contra a corrente para a cabeceira dos
rios para se reproduzirem (SANTOS, 2019) crio metáforas a partir da minha
trajetória na academia e, consequentemente nos espaços por onde passei
(museus, galerias e escolas).
Vejo que relacionar minha trajetória com piracema, fenômeno que garante
a reprodução, manutenção e sobrevivência de muitas espécies de peixes, é
5

interessante pois me faz refletir sobre os obstáculos encontrados nos lugares


que ora os ocupei, ora fui ocupado por eles, esses preenchidos de violências,
ausências, apagamentos e de compreensões sobre a diversidade de culturas,
etnias e identidades indígenas em nossa sociedade.
No entanto, é importante ressaltar a potência desse “nadar-transitar”.
Estar na academia foi de suma importância para ampliar meu olhar e criticidade
sobre tudo o que me cerca, afeta e me atravessa, construir laços e compartilhar
saberes, me fez de alguma forma “respirar” melhor, assim como os peixes
quando se encontram em piracema.
Me fez compreender os alicerces nos quais estão firmados os espaços
legitimadores e difusores de conhecimento e em contrapartida fazer com que
nossas vozes e pensamentos ecoem nesses espaços é de alguma forma
provocar fissuras, apodrecimento das raízes coloniais. Proporcionar a quebra
dos discursos hegemônicos, construir e difundir outras narrativas sobre nós
indígenas e nos tornarmos protagonistas e autores de nossas próprias histórias.
Indaguei e me questionei sobre qual seria o formato dessa nossa
conversa, porque almejo que esses pensares aqui externados atravessem os
muros institucionais, que sejam acessíveis aos “iguais a mim”. Que possam ser
ecoados nas comunidades indígenas, assentamentos quilombolas, ciganos e
aos demais povos e grupos tradicionais que existem e resistem na sociedade
brasileira.
É a partir dessa perspectiva, que essa escrita seja extensão de mim, e
nesse meu eu, expresse de onde venho e o que carrego, que a construção deste
trabalho se dá por meio de uma abordagem autoetnográfica, principalmente pela
compressão do seu caráter contra hegemônico, onde o “eu” é crucial na
produção do conhecimento. Sendo assim, meu ponto de partida é uma síntese
da história do meu povo, os Karapotós, por considerar que falar sobre minha
etnia é falar sobre mim.
Em seguida, relato minha trajetória ao ingressar no curso de Licenciatura
em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco e experiências no
campo museal a partir da abordagem da performance “Entre o fogo e a
penumbra” no Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães e “Todos Falam de
mim. Ninguém me representa!” Instituto Ricardo Brennand durante os estágios
realizados nas respectivas instituições.
6

Desta forma, essa escrita/diálogo pretende resultar em ensaio de caráter


crítico-reflexivos sobre a inserção e processos de territorialidade dos corpos,
expressividades e visualidades indígenas no campo museológico e das poéticas
visuais na contemporaneidade, a partir das minhas experiências estéticas e
poéticas durante a minha inserção nesses espaços, sobretudo o que me afetou
e atravessou como sujeito indígena, artista e arte/educador.

Cap.1 BOA CICA

Imagem 1: Rio Boa Cica (2020). Foto: Arquivo Pessoal.

O ponto inicial consiste em contar um pouco da história dos Karapotós e


referenciando um dos nossos parentes ancestrais, o rio Boa Cica. Foi em suas
margens que germinamos, que nossas ramas antigas se espalharam e as pontas
de ramas lutaram para retomar nosso território. É nele que se encontram
memórias de nossos antepassados, onde as acessamos ao bebermos sua água
e nos alimentarmos com seus peixes.
Boa Cica é extensão de outro parente ancestral, o grande Opará,
conhecido como rio São Francisco. Nós karapotós somos partes desses dois
7

rios, assim como de outros povos indígenas do estado de Alagoas e


Pernambuco, por exemplo, para os Kariris-Xocós de Porto Real do Colégio – AL.
Quando eu era curumim, nos tempos de cheia de Boa Cica, minha mãe
me colocava na cabeça e o atravessava para visitar nossa bisavó Dindinha.
Muitas das vezes revisito essas memórias. Foi nele que aprendi a pescar e a
nadar.
Acredito ser importante, antes de seguir adiante com a história do meu
povo, ressaltar que é por meio da oralidade que acessamos, aprendemos e
transmitimos nossa história, nossa cultura e tradição de geração em geração.
A história Karapotó é sempre polifônica. São muitas as vozes e nunca
uma delas suprime as demais. Lurdes (Almeida et al, 1998, p.67) conversa:

A história dos Karapotós é uma história. Uma história


bonita e interessante. Já é de descendentes, bisavós,
tataravós, de pai, de mãe...vai passando de geração em
geração. Cada um vai contando. Meu avô me contava
assim, assim, assim... meu bisavô me contava assim,
assim, assim... meu pai me contava assim, assim, assim...
e cada um vai contando.

É por meio da contação de nossa história, desde os troncos velhos até as


pontas de rama, que acessamos a nossa memória e nos mantemos vivos,
aprendemos os cantos, as danças, a fazer as artes e a ler e compreender o
mundo. Por meio dessa forma de manutenção e atualização de nossa cultura ao
longo dos tempos, resistimos ao espistemicídio sobre nós povos indígenas, algo
que, inclusive, explica os pouquíssimos documentos, textos e demais fontes
escritas sobre a historiografia do meu povo. Isso me faz lembra um trecho do
livro de Davi Kopenawa:

Eu não tenho velhos livros como eles, nos quais estão


desenhadas as histórias dos meus antepassados. As
palavras dos xapiri estão gravadas no meu pensamento,
no mais fundo de mim. São as palavras de Omama. São
muitos antigas, mas os xamãs as renovam o tempo todo.
... Mais tarde elas entraram nas mentes dos meus filhos e
genros, e depois, na dos filhos e genros deles. Então será
a vez deles de fazê-las novas. Isso vai continuar pelos
tempos afora, para sempre. Desta forma, elas jamais
desaparecerão. Ficarão para sempre no nosso
8

pensamento. ... Não poderão ser destruídas pela água ou


pelo fogo... (KOPENAWA, p.65)

Diante disso, a partir da história contada pelos anciões do meu povo e


relacionado com alguns dados encontrados em relatórios e em estudos
antropológicos (ALMEIDA, 2008; MARQUEZ, 2008), somos originários da região
do Baixo São Francisco, localizada no agreste alagoano. Assim como os demais
povos indígenas brasileiros, somos personagens ora protagonistas, ora
antagonistas, de um enredo que vem sendo construído há mais de cinco séculos,
marcado pela cultura da dominação/apropriação, opressão e do medo versus
cultura da resistência.
Fomos alvos de todas as estratégias de colonização e da chamada
“formação cívica nacional” entre os Séculos XVI e XVIII (catequização,
dizimação, miscigenação e apropriação de nossas terras). Diante disso, fomos
dispersos nas imediações passando a negar nossa identidade para
sobrevivermos frente aos poderosos da época. (NHENETY, 2014).
Por meio de constantes lutas por nossos direitos, após a proclamação da
República, conseguimos a reapropriação de parte de nossas terras (território no
Rio Boa Cica, localizado em São Sebastião, município do agreste alagoano) e
construímos nossa comunidade, chamada Karapotó Plaki-ô.
Contudo, trazemos conosco os impactos da colonização, diminuição de
falantes da nossa língua (Tupi), a divisão da comunidade em duas (Karapotó
Plakiô e Karapotó Terra Nova) e uma forte miscigenação. Tal fato, segundo
Jorge Luís Gonzaga Vieira (2010), é comum, levando em consideração que no
processo de territorialização, cada povo reconstrói a sua identidade étnica,
considerando as relações interétnicas e do entorno.
Apesar de tal conjuntura, por meio de práticas de autoafirmação, meus
ancestrais preservaram nossa tradição, crenças, valores, identidade étnica e
conhecimentos, o que chamamos de “ciência do índio”.
Nasci na comunidade Karapotó Terra Nova, imerso a essas práticas
tradicionais, como por exemplo, o ritual toré; porém atrelado a valores, crenças,
língua e cultura impostas pelo colonizador. Não falante do Tupi, língua originária
do meu povo, sou batizado e catequizado pela igreja católica, assim como os
meus sete irmãos e demais parentes, avós, pais, tios e primos.
9

Imagem 2: Eu e meus irmãos, Zitiel, Zilma, Ziquiel e Zaqueu (da esquerda para a direita) com o
Bispo Dom Valério (2007). Foto: Arquivo Pessoal.

Cap. 2 SUBINDO O RIO

Passei minha infância e adolescência vivendo em minha comunidade.


Minha formação sob a perspectiva da escolarização se deu através da educação
pública (ensino fundamental e médio), no entanto, não frequentei escola
indígena, pois minha comunidade Karapotó Terra Nova não tem. E sem
perspectivas futuras de ter escola indígena, consequentemente não tive uma
educação escolar que atendesse as especificidades da minha cultura e as
relações interculturais entre meu povo e a sociedade, o que fere os direitos
constitucionais estabelecidos na constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB).
Tendo uma formação que sinaliza a fragilidade na implementação de
políticas públicas que contemplem e respeite as especificidades encontradas na
diversidade étnica e cultural das populações indígenas da sociedade brasileira,
decido em 2014, quando cursava o meu último ano do ensino médio no Instituto
Federal de Alagoas – Campus Arapiraca, fazer graduação em Artes Visuais
tendo como referência, inspiração e motivação Judivan Lopes, o qual foi meu
10

professor de Artes e coordenador de grupos de pesquisas e extensão em Artes


pelo Instituto Federal no qual eu fiz parte.
Fiz o Enem e por meio das cotas raciais, políticas afirmativas
estabelecidas pela Lei No 12.711, de 29 de agosto de 2012, entro em 2015 na
Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, para cursar Licenciatura em Artes
Visuais. É importante falar que Judivan foi crucial para a minha vinda a Recife e
permanência no curso. Ele foi quem me orientou com as questões burocráticas
da matrícula e me auxiliou bastante no início do curso. Sem o apoio dele, com
certeza teria desistido ainda no primeiro semestre.
A minha entrada na Universidade contribuiu para a ampliação dos índices
da entrada de indígenas nas universidades brasileiras, já que “desde 2010, o
número de estudantes universitários que se autodeclararam indígenas aumentou
512%.” (SIMÕES, 2018).
Contudo, o território no qual meu corpo-espírito se encontrava ocupando,
a universidade, se configurava quase que totalmente como um território de
ausências. Ausências de outros parentes indígenas, ausência de abordagens
na grande maioria das disciplinas obrigatórias do curso como, por exemplo
História da Arte 1,2,3 e 4 e História da Arte brasileira A e B. Ausências que
refletiam nas poucas referências na biblioteca do CAC sobre os povos, culturas
e manifestações artísticas indígenas, especialmente sobre os povos indígenas
no Nordeste. Talvez, tenha sido, em 2015, um dos poucos indígenas a adentrar
na UFPE, campus Recife, o primeiro oriundo de contexto de aldeamento a
ocupar o Centro de Artes e Comunicações da UFPE – CAC e também o curso
de Artes Visuais. As ausências sinalizavam isso.
Estar diante deste contexto e fatos me fez entrar em um estado-processo
de apagamento, meu corpo-espírito começou a se tornar invisível, me vi
translúcido. Diante disso, durante o primeiro semestre não falei sobre a minha
identidade étnica. Confesso, que nesse momento inicial não refletia muito sobre
tudo que que me atravessava, sobre as estruturas que me envolviam, tinha como
principal objetivo apenas me sair bem com as disciplinas, estas por sinal
eurocêntricas.
No início do segundo semestre cheguei a falar sobre minha identidade
étnica para alguns professores e colegas. Lembro-me que foi após um
comentário – “mas você não parece com um índio, tem barba, o cabelo não é
11

liso” – feito por um dos docentes em meio a alguns colegas, que pela primeira
vez questionei sobre minha identidade a partir de meu fenótipo. “Apesar do
discurso politicamente correto da inclusão e da aceitação das cotas, a
representação que o docente faz do cotista indígena é estereotipada, folclórica,
e sua postura com relação ao mesmo ainda é de rejeição” (SALVIANO, 2011, p.
65).
Ser questionado sobre quem eu era despertou em mim a necessidade de
ampliar/ deslocar a priori o olhar daqueles que estavam em minha volta sobre o
que é ser indígena, levando em consideração a diversidade étnica e cultural dos
mais de 305 povos que existem em nosso território diante do contexto
sociopolítico de genocídio, etnocídio e miscigenação no qual fomos submetidos
desde a colonização.
Imerso nessas inquietações, lembrei da obra de Arissana Pataxó, a
escultura de cerâmica “Mikay”, 2009. Um facão com 60 centímetros de
comprimento onde em sua lâmina está escrito “O que é ser índio para você?”

Imagem 3: “Mikay”, (2009). Fonte: https://revistadesvio.com/2019/04/01/4109/

Arissana Pataxó é graduada em Artes Plásticas pela Escola de Belas


Artes – UFBA e Mestre em Estudos Étnicos e Africanos – UFBA. “Mikay” foi
exposta pela primeira vez em uma exposição no final de sua graduação. Muitas
provocações e tensionamentos podem ser evocados por esse trabalho,
principalmente sobre as identidades indígenas.
Com o passar do tempo, fui percebendo que as ausências, a falta da
presença e de conhecimento atrelado a compreensão na qual prevalece
estereótipos, folclorização e a hegemonia de uma narrativa que inviabiliza as
12

diferenças entre nós indígenas, transbordava os muros “invisíveis” da


universidade. Tal percepção se ampliou quando estagiei no Museu de Arte
Moderna Aluísio Magalhães – MAMAM, em 2016 a 2017 e no Instituto Ricardo
Brennand, em 2017 a 2018.
O MAMAM foi criado em 24 de julho de 1997, data na qual foi concedido
o estatuto de Museu à antiga Galeria Metropolitana de Arte Aloisio Magalhães,
homenageando o artista plástico, designer e ativista cultural pernambucano.
Instalado em um antigo casarão do século XIX, na rua da Aurora, no centro de
Recife.
Em sua reserva técnica, o MAMAM conta com um acervo de mais de
1.000 trabalhos, de diversas técnicas, que abrangem um período histórico
compreendido entre 1920 e 2016. Deste acervo, fazem parte obras fundamentais
para a compreensão da arte moderna e contemporânea brasileira, de
renomados artistas, dentre os quais se destacam Tomie Ohtake, João Câmara
(com a série “Cenas da Vida Brasileira”), Fédora do Rego Monteiro, Gil Vicente,
Aloisio Magalhães, Abelardo da Hora, Tarsila do Amaral, Juliana Notari,
Marienne Peretti, Tereza Costa Rêgo, Gilvan Samico e Paulo Bruscky.
Já o Instituto Ricardo Brennand é um espaço cultural construído em 2001
que salvaguarda um valioso acervo artístico e histórico originário da coleção
particular do industrial pernambucano Ricardo Coimbra de Almeida Brennand.
Está Localizado no Bairro da Várzea.
Foi inaugurado em 2002 com o conjunto de obras produzidas pelo pintor
holandês Albert Eckhout, de quando sua presença junto à comitiva de Maurício
de Nassau em Pernambuco no século XVII, preservadas no Museu Nacional de
Copenhagen, na Dinamarca. Vinte e quatro trabalhos do pintor fizeram parte da
mostra.
O seu acervo abriga a maior coleção do mundo das produções do artista
holandês Frans Post, que esteve no Brasil no século XVII, primeiro pintor das
Américas e da paisagem brasileira, e as obras que constituem uma de suas
exposições permanentes “Oitocentos Brasileiros” que exibe a produção artística
principalmente dos viajantes que chegaram ao Brasil após a abertura dos portos
em 1808 e os artistas da tradição da Academia Imperial, desde o Neoclássico
até o Imressionismo. É composta de óleos, estampas e desenhos onde estão
representados nomes fundamentais na documentação iconográfica brasileira,
13

como Antonio Parreiras, Benedito Calixto, Emill Bauch, Friedrich Hagedorn,


Jean-Baptiste Debret, Moritz Rugendas, Telles Junior, dentre outros.
Estagiar no MAMAM e no IRB foram as minhas primeiras oportunidades
de adentrar e estabelecer relações de ensino-aprendizagem dentro de
instituições museais, como arte educador no campo da mediação cultural. Sem
sombras de dúvidas, a experiência de ocupar esses espaços ampliou muito o
meu conhecimento e o impacto que os museus tem na sociedade, contudo, me
fez perceber que esses também refletem e muitas das vezes reproduzem
discursos e práticas coloniais.
Mesmo com as especificidades de cada instituição, ambas se
configuravam como um território de ausências. Tanto o acervo do MAMAM
quanto do Instituto Ricardo Brennand não havia obras de artistas indígenas.
Durante minha permanência também não houve exposições de artistas
indígenas ou sobre arte indígena.
A experiência no meu transitar em ambas instituições me fez
compreender o quanto é sintomático não ocuparmos esses espaços em paralelo
com a reverberação e manutenção de uma história única escrita pelo outro, o
não indígena, resultando em muitas das vezes discursos equivocados,
genéricos, de teor etnocêntrico que ora coloca nós indígenas como exóticos,
selvagens, outra como inocentes e domesticáveis. Estar nesses espaços
possibilitou o despertar de uma consciência crítica em meio à realidade na qual
fomos e somos colocados, representados ou excluídos.
Diante disso, fui levado a pensar, durante o estágio no MAMAM e no
Instituto Ricardo Brennand, em estratégias para expressar minhas inquietações
e possibilitar, através da expressividade cultural do meu povo, a difusão de
outras narrativas sobre nós indígenas, especialmente os que habitam o Nordeste
brasileiro.
Mas quais seriam as estratégias? Quais seriam os caminhos possíveis
para promover agências para a ampliação do conhecimento e desconstrução
dos estereótipos nas instituições hegemônicas que meu corpo-espírito estava
ocupando? Como a minha presença poderia proporcionar possibilidade desses
espaços refletirem sobre suas práticas? O que poderia ser feito para que de
alguma forma pudessem promover ações e reflexões sobre a etnicidade
14

indígena a partir de uma perspectiva presente, contemporânea? Encontrava-me


em contracorrente, em piracema.
As repostas para essas perguntas foram acessadas quando eu percebi
que também era correnteza, que eu também era rio. Após essa autoconsciência
assumi a potência do meu corpo-espírito e comecei a tecer narrativas de
resistência, autoafirmação e demarcação nos espaços museais que adentrei, o
MAMAM, a priori, e posteriormente no Instituto Ricardo Brenannd.
Assim como falam os anciões do meu povo, “não se faz um toré com meia
maraca”, é importante falar que essa autoconsciência é resultado o meu estar
nesses espaços, das relações coletivas que foram sendo construídas ao longo
do tempo. A Ampliação da minha criticidade e do olhar sobre mim mesmo foi
resultado de diálogos e reflexões partilhadas com alguns professores do curso
como, por exemplo, Renata Wilner, professora da disciplina de Arte e
Diversidade Étnico-Cultural, Vitória Amaral, Maria Betânia e Annaline Piccolo
que sempre foram sensíveis as questões identitárias e culturais na prática
Docente, assim como a partilha com alguns colegas de curso como Amanda de
Souza, Caetano Costa e equipe dos educativos, em especial Rebeka Monita,
Nathália Vieira, Maia José, Ruth Gabino, Patrícia Pereira e o artista Marcelo
Silveira.
Foram estas pessoas, dentre muitas outras, que me apresentaram
teóricos e práticas artísticas decoloniais, ampliaram meu repertório sobre a arte,
pensadores e artistas indígenas. Foi Rebeca, que ocupava o cargo de
Coordenadora do Educativo do MAMAM, que me motivou a práticas poéticas por
meio da linguagem performática. Mesmo diante das estruturas, limitações e
problemáticas presentes nestes territórios, que me despertavam a sensação de
estar nadando contracorrente, fui percebendo que estava em cardume, afinal,
piracema é um fenômeno coletivo, que era possível coletivamente tensionar e
abrir frestas nas estruturas, mesmo que se configurassem como anunciação.
Por meio da corporeidade, ações performativas, construí narrativas que
atravessam a minha existência e do meu povo acerca da nossa identidade por
meio da autorrepresentação confrontando os apagamentos históricos, discursos
hegemônicos e acervos museais onde geralmente o lugar que nos cabem é a
representação pelo outro, um recorte temporal atrelado ao passado, quando não
somente a ausência.
15

A seguir, continuarei revisitando memórias do meu transitar/nadar e


descreverei a performance “Entre o fogo e a penumbra”, realizada durante o meu
estágio no MAMAM, e “Todos Falam de mim. Ninguém me representa” que
realizei durante o estágio no Instituto Ricardo Brennand, como forma de
apresentar um pouco sobre as práticas que desenvolvi a partir da intersecção
entre expressividade e saberes tradicionais karapotó, museu, acervo
museológico e performance como mediação cultural.

Cap.3 EU TAMBÉM SOU CORRENTEZA

Tinha intitulado anteriormente este capítulo de “Nadando contra a


correnteza”, mas ao revisitar minhas memórias sobre os momentos e ações que
irei descrever abaixo, percebi que já não fazia muito sentido, pois as mesmas só
foram possíveis de serem desenvolvidas e executadas quando me percebi rio.
No início de 2017, o MAMAM estava com a exposição “Campo de Jogar
e Outros Campos Minados” do artista pernambucano Marcio Almeida. Ela era
composta por um conjunto de trabalhos que resumia a trajetória do artista e
estabeleciam diálogos e reflexões sobre processos migratórios, violências,
relações de poder sobre o trabalho, territórios, dentre outros recortes de teor
sociopolítico. Algo bastante peculiar foi a imersão do educativo nesta exposição,
tivemos a oportunidade da escrita coletiva de seu texto curatorial.
Estar diante dessa exposição, naquele momento, me atravessou por tudo
o que ela evocava e de alguma forma era possível estabelecer relações com
minhas inquietações sobre a minha presença no museu, diante do apagamento
institucional que se reverberava na falta de obras indígenas em seu acervo.
Após algumas reflexões, pensei na possibilidade de realizar uma
performance tendo como suporte duas instalações que estavam no primeiro
piso. Algo que também me inspirou foi a leitura do livro “A chama de uma vela”,
de Gaston Bachelard (1884 - 1962). Diante das duas instalações e leitura do
livro, construí uma narrativa de autoafirmação e demarcação daquele espaço a
partir da ação de sonhar, do criar e projetar imagens que pudessem iluminar
aquele espaço e me fazer visível.
Entrei em contato com Marcio Almeida, apresentei a proposta e lhe pedi
permissão para realizar a performance. Para a minha surpresa, ele autorizou a
16

utilização das instalações para a realização da performance. Posteriormente,


dialoguei com a direção e coordenação do educativo e a proposta também foi
aceita.
O trabalho se intitulou “Entre o fogo e a penumbra” e teve como público
alvo os funcionários do museu, toda a equipe do educativo, bibliotecária,
secretária, assistentes administrativos, etc. Teve como objetivos promover
reflexões e diálogos sobre o meu estar naquele espaço, me tornar visível
enquanto indígena perante os meus colegas de trabalho, problematizar a falta
de obras de artistas indígenas no acervo e ações que abordassem os povos
originários.
A ação ocorreu no período da tarde. Além das instalações, levei uma
paisagem sonora para compor a ação, com cantos tradicionais do meu povo. Ao
chegar, me pintei e vesti minha indumentária, seria a primeira vez que muitos
dos meus colegas iriam me ver vestido tradicionalmente. Após me preparar, saí
pelas portas do fundo do museu e dei a volta para entrar pela porta da frente.

Imagem 4: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.

Durante o percurso, percebia as pessoas nas ruas e as que estavam


dentro dos carros me olhando com estranhamento. Ao adentrar, subi as escadas
até o primeiro piso, onde estavam o público e a instalação onde a ação iria
acorrer. Ao adentrar na sala, segui até a instalação, uma série de marmitas
contendo carvão. Fiquei alguns instantes parado em frente e começo a percorrer
por dentro.
17

Imagem 5: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.

Se antes havia marmitas com carvão, agora se encontrava eu fazendo


parte da composição. Estava eu entre as marmitas, entre o carvão.
Após atravessar aquele campo, vou até a outra instalação. Acendi uma
vela e começo a comer o carvão de uma das marmitas. Em meio à paisagem
sonora, minha sombra era projetada nas paredes do museu, atravessando a
rede que se encontrava atrás. Após comer o carvão, apaguei a vela com um
sopro, levanto-me e sigo em direção ao público. Me aproximei e olhei fixamente
nos olhos de cada um!
18

Imagem 6: Registros da performance “Entre o Fogo e a Penumbra” (2017). Foto: Victor Hugo
Borges.

3.1 Todos Falam de mim, ninguém me representa!

Após um ano estagiando no MAMAM, tive a oportunidade de estagiar no


Instituto Ricardo Brennand, onde atuei por um ano como arte/educador
realizando ações artísticas pedagógicas e mediação cultural.
Ao adentrar naquele espaço, fiquei impressionado e desafiado diante da
sua dimensão e quantidade de obras do seu acervo, onde parte compõe suas
exposições permanentes “Frans Post e o Brasil Holandês na Coleção de Ricardo
Brennand” e “Oitocentos Brasileiros”, expostas em sua pinacoteca, além das
coleções de armas brancas expostas no Castelo São João.
Algo que me chamou atenção foi que ao contrário do acervo do MAMAM,
que era marcado pela falta de obras de artistas indígenas ou obras que
abordassem a história dos povos originários, no Instituto eu me deparei nas
exposições da pinacoteca com algumas pinturas que retratavam povos
indígenas, a partir de uma conjuntura contextual do século XVII, com trabalhos
holandeses incluindo as pinturas de Frans Post, e do século XIX, com as
gravuras do Artista Alemão Moritz Rugendas. Contudo, se tinha sido marcado
pelo incômodo da ausência da experiência anterior, o incômodo agora era pelas
representações e narrativas que aquelas obras projetavam, imagens e discursos
construídas a partir de uma perspectiva, olhar e subjetividade colonial.
Com o passar dos dias, realizei algumas visitas à reserva técnica e
conheci melhor o acervo. Constatei que realmente havia a falta de obras de
artistas indígenas. Diante disso, me coloquei em um processo de pensar
abordagens que pudessem promover outras narrativas sobre nós. Ações que
fizessem ecoar naquele espaço discursos que possibilitassem outros olhares e
reflexões sobre a nossa história, nossos corpos e cosmovisões.
19

Utilizar a mediação cultural como ferramenta que estabelecesse olhares


sensíveis e provocações foi um ponto importante, inicialmente. Entretanto, sentia
que algo a mais era preciso. Daí pensei em um confronto entre imagens.
Mas qual ou quais imagens poderiam se sobrepor daquelas que ocupava
o instituto Ricardo Brennand? As mesmas que frequentemente ilustram os livros
didáticos, ou melhor, que ocupam hegemonicamente o imaginário da sociedade.
Indígenas a partir de um recorte temporal do passado atrelado ao primitivismo,
romantismo e ao exótico.
Motivado pelo acreditar da potência desse confronto é que construo uma
narrativa imagética performativa com o título “Todos falam de mim, ninguém me
representa!”. Onde, por meio da autorrepresentação, o meu próprio corpo-
espírito se tornou imagem e projetou outras narrativas sobre as etnicidades
indígenas, tensionando as representações originárias no acervo do Instituto.
Uma imagem viva, ocupando produzida e agindo no presente em consonância
com o tempo circular.
Apresentei a proposta para Ruth Gabino, coordenadora do educativo, e
logo em seguida ela propôs que eu realizasse a ação dentro do “Peça a Peça”,
que consiste em um projeto elaborado pelo Educativo que resulta na abordagem
de uma das obras presentes no acervo do Instituto, a partir da proposição de
uma temática pelos educadores e seleção feita pelo público.
Três peças são curadas pelo Educativo levando em consideração o tema
proposto e colocadas para a seleção. A mais votada é a trabalhada. A ação
consiste na leitura da obra, por meio da “Abordagem Triangular” de Ana Mae
Barbosa, uma palestra ou diálogo sobre o tema e uma apresentação ou prática
artística relacionada a temática e a obra.
Após a conversa com Ruth, elaborei o projeto da 107º edição do Peça a
Peça. Sob o tema “Rugendas: hipermetropia do olhar pictórico na representação
identitária dos ameríndios no século XIX”, abordei a obra selecionada, uma das
gravuras do artista alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), integrante da
equipe de expedição científica do Barão de Langsdorff no Brasil entre 1822 e
1829. A performance “Todos falam de mim, ninguém me representa!” foi
apresentada no evento interseccionando leitura da obra, mediação cultural e
prática artística.
20

A performance se iniciou com a projeção de uma paisagem sonora dentro


da pinacoteca que era composta por sobreposições de sons de instrumentos e
de rituais originários, falas de curadores, antropólogos e museólogos sobre arte
e identidade indígena.
Em seguida, adentrei no espaço vestido com minha indumentária, pintado
tradicionalmente e tocando minha maraca. Tinha em minha boca uma mordaça
feita com um tecido estampado com representações étnicas de povos indígenas
do século XIX, produzidas por Rugendas. Percorri a exposição “Frans Post e o
Brasil Holandês na coleção do Instituto Ricardo Brennand” e fui ao encontro das
gravuras que se encontravam na exposição “Oitocentos Brasileiro”.

Imagem 7: Registros da performance “Todos falam de mim, ninguém me representa!” (2017).


Foto: Juliabe Balbino.

Diante das gravuras de Rugendas, remetendo a um gesto


(re)antropofágico, comecei a “comer” uma cópia da gravura abordada, como um
ato político de retomar e reescrever a história, criticando aquelas representações
e o próprio acervo do Instituto. O que elas ao ocuparem aquele espaço
projetavam sobre os meus antepassados? O que elas e o Instituto diziam sobre
mim e dos meus contemporâneos?
21

Imagem 8: Registros da performance “Todos falam de mim, ninguém me representa!” (2017).


Foto: Juliabe Balbino.

Após a apresentação da performance, seguiu-se um debate com o público


e uma oficina de criação de autorretratos, por meio da técnica de modelagem
em argila, como processo de descoberta e reconhecimento da identidade.
Para alimentar a discussão, recorri à apropriação ideológica da imagem
do indígena na literatura e na arte no movimento do Romantismo, como
consolidação do imaginário de uma identidade nacional, composta de uma
representação idealizada e materializada a partir da ótica eurocêntrica.
Essas representações pictóricas iconográficas dos povos indígenas
oriundas desses olhares romantizados, distanciados muitas das vezes da
realidade factual, as denominei “hipermetropia do olhar pictórico”.

Cap. 4 Desova

Todos os obstáculos enfrentados durante a Piracema têm um propósito,


talvez um dos mais importante, a manutenção e perpetuação da vida. Ao refletir
e descrever um pouco sobre a história do meu povo e minha trajetória, encontro
possibilidades de estabelecer comparações com o fenômeno, pois sinto que meu
transitar/nadar proporciona, de alguma forma, a manutenção e perpetuação da
minha existência, a preparação dos territórios que irão ser ocupados pelos iguais
a mim.
A escolha de abordar o conceito de Ausência foi uma forma de apresentá-
lo como um “fenômeno cultural” imposto aos sujeitos subalternizados pelas
estruturas e instituições hegemônicas, como um dos fatores a que garantem a
práxis do que Quijano conceitualiza como colonialidade do ser e do saber.
Importante falar que a solução das problemáticas geradas pela “Ausência”
não é a “Presença”, mas sim como as relações sociais e políticas do “Estar” ou
“Se fazer presente” são estabelecidas para não cairmos em armadilhas.
Parafraseando Jaider Esbell (2020), é necessário estratégias para a
elaboração de armadilhas para armadilhas, estas geradas a partir reflexões
sobre sistemas de poder, conceitos coloniais, práticas mescladas de valores e
22

referências, identidade e autoconsciência. A questão do território e


territorialidade.
Os pensamentos de Jaider sempre fizeram parte nas minhas reflexões
sobre a minha poética e meu estar na Universidade, sobre a minha presença
assim como de outros jovens indígenas ao adentrarem no campo da arte. Do
papel desempenhado por nós diante de um território no qual a nossa presença
e mudanças de perspectivas eram recentes, indo de encontro com o pensamento
de Silva (2010) ao refletir sobre o campo das artes em meio a novas realidades
após a inserção de públicos “antes” excluídos das faculdades e principalmente
das universidades:

Ressaltamos o alargamento do termo arte, utilizado e concebido


como produção artística da humanidade a partir das diferenças
culturais. Nesse sentindo, o conceito da arte em questão ampliou
as fronteiras da produção artística para além do recorte da
cultura ocidental, branca, dominante e machista, coibindo dessa
forma as abordagens etnocêntricas desestabilizando os
conceitos e preconceitos. (SILVA, 2010, p.03)

Ao revistar as memórias aqui descritas, muitas das vezes pensei sobre a


efetividade dos impactos epistêmicos, políticos e sociais nas estruturas sólidas
e sistêmicas gerados pelo meu adentrar junto com outros segmentos da
sociedade na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Campus Recife.
Poderia citar, como exemplificação, este próprio trabalho, a forma com ele
foi escrito, o que abordou e apresentou, sua autoria e referências, quais os
espaços físicos e subjetivos onde ele tem como objetivo penetrar. Talvez, ele
assim como de tantos outros parentes indígenas, da juventude oriunda dos
demais povos tradicionais e das periferias reflitam um momento histórico que as
faculdades e universidades brasileiras se configuram de fato como extensão da
sociedade, um território polifônico e multicultural.
Algo importante a ser citado também é o fortalecimento e criação de
grupos de estudos, pesquisa e extensão sobre questões indentitárias, étnico-
raciais e abordagens decoloniais relacionadas à produção do conhecimento e do
fazer artístico. É interessante que esses grupos apresentam posturas éticas e
23

sensíveis de alguns docentes compromissados com a importância de seus


papeis e da academia diante desse novo cenário.
Dentre esses posso citar o Grupo de Estudos e Pesquisas da
Universidade Federal De Pernambuco em Autobiografias, Racismos e
Antirracismos na Educação, - GEPAR, coordenado pela Profa. Dra. Auxiliadora
Martin do Centro de Educação – CE da UFPE, e o Projeto de Pesquisa Ciência
e Arte Indígena no Nordeste da Universidade Federal de Pernambuco – CAIN,
coordenad pela Profa. Dra. Renata Wilner do Centro de Artes e Comunicações
– CAC da UFPE
Integrar o GEPAR e o CAIN durante a graduação me proporcionou não
somente a ampliação do olhar sobre tudo ao meu redor e o que me afeta.
Possibilitou meu transitar/nadar por mundos que nem ao menos sabia que
existiam. Conhecer pensadores, pesquisadores e artistas indígenas, africanos e
afrodescendentes.
Foram de suma importância para minha aprendizagem, decodificação e
reestruturação dos códigos hegemônicos, na ação de restabelecer e
ressiginificar a minha própria existência, as relações de aprendizagem, produção
e partilha de saberes entre eu, professores e colegas de curso, da mesma forma
que nos museus que estagiei, onde me debrucei e promovi tensões sobre suas
práticas e acervos.
Mesmo em Piracema, meu adentrar na Universidade Federal de
Pernambuco e cursar Licenciatura em Artes Visuais, colaborou no processo de
autoconsciência da potência do meu corpo-espírito como instrumento
contracolonial que resultou em ações performáticas que me tornaram lâmina,
assim como a obra “Mikay” de Arissana Pataxó, capaz de penetrar as imagens
estereotipadas que constituem o imaginário do que é ser indígena para a
sociedade brasileira, diante da pouca compreensão que tem sobre si mesma.
Em consonância com Ana Mae Barbosa:

A Arte, como uma linguagem aguçadora dos sentidos transmite


significados que não podem ser transmitidos através de nenhum
outro tipo de linguagem, tais como a discursiva e a científica.
Dentre as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria-prima,
tornam possível a visualização de quem somos, onde estamos
24

e como sentimos. Relembrando Fanon, eu diria que a arte


capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em
seu meio ambiente nem estrangeiro no seu próprio país. Ela
supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no
lugar ao qual pertence, reforçando e ampliando seus lugares no
mundo. (BARBOSA, 2009, p.01)

Este trabalho resulta de muitas experiências, encontros e reencontros e é


importante que seja entendido como extensão da oralidade. A maior parte de
tudo o que é apresentado nesse trabalho é resultado de partilhas com outros
parentes. Desta forma, não poderia deixar de citar o nome de Karkará Tunga
Tarairú, Juma Pariri, Olinda Yawar Wanderley, Graciela Guarani, Alexandre
Pankararu, Déba Viana Tacana, Juruna Xukuru Karaxuwanassu, Valquíria
Kyalonan Karaxuwanassu, Juliana Xukuru, Arissana Pataxó, e todos que
compõe a Associação de Indígenas em Contexto Urbano Karaxuwanassu -
ASSICUKA.
Repouso meus pensares sobre essa escrita negando sua conclusão, mas
evidenciando o desejo de continuar ampliando meu conhecimento no campo da
Arte/Educação e das poéticas visuais atrelados às questões identitárias, étnico-
raciais e ciências tradicionais originárias. Expressar a vontade de seguir
elaborando estratégias para que o meu corpo-espírito coletivo continue a
transitar/nadar, apresentando e evocando possibilidades de sermos autores das
nossas histórias, proporcionando a projeção de narrativas e paisagens outras,
concordando com Jaider Esbell:

É preciso aprender a técnica, estar com tudo certinho para fazer


os feitiços. Não é uma questão de receita, essa coisa pronta que
bem caracteriza a “modernidade”. A técnica eu acho que soa
mais como uma coisa de caminhada, muita observação e
seguidas tentativas até aprimorar ao ponto de fazer outros
sabores. (ESBELL, 2020).
25

REFERÊNCIAS

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política e história. Disponível em: < encurtador.com.br/rGR17>. Acesso em 25
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BARBOSA, Ana Mae. Processo civilizatório e reconstrução social através


da arte. Disponível em: < http://www.uel.br/grupo-
estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais12/artigos/pdfs/mesas
_redondas/MR_Barbosa.pdf >. Acesso em 15 de maio de 2022.

ESBELL, Jaider. Jaider Esbell, 2020, A Arte Indígena Contemporânea como


armadilha para armadilhas. Disponível em: <
http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/09/a-arte-indigena-contemporanea-
como-armadilha-para-armadilhas/>. Acesso em 20 de abril de 2022.

ESBELL, Jaider. Jaider Esbell, 2020, Dá pra aprender com a colonização


escravista?. Disponível em: < http://www.jaideresbell.com.br/site/2020/07/19/da-
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KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um


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NHENETY. História dos Karapotós. Disponível em: <


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MARQUEZ, Juracy. Cultura e etnicidade dos povos indígenas do São


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https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/10835/1/tese_Juracy%20Marques1.pdf>.
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26

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SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Orgs).
Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, pp.84-130, 2010.

SALVIANO, D. C. M. A representação do docente e do acadêmico indígena,


com relação às cotas indígenas, no curso de direto da Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS – unidade universitária de
Dourados. 2011. 91 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2011.

SANTOS, Vanessa Sardinha dos. "O que é piracema?"; Brasil Escola.


Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/biologia/o-que-e-
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SILVA, Maria Cristina da Rosa Fonseca da. Formação inclusiva do professor


de arte: desafios propostos pela lei 10639/2003 - 11645/2008. Disponível em:
< http://aaesc.udesc.br/confaeb/Anais/maria_cristina.pdf>. Acesso em 16 de
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SIMÕES, Rodrigo. Participação indígena no Ensino Superior aumenta mais


de 500% em seis anos; mulheres são a maioria. Disponível em: <
https://querobolsa.com.br/revista/participacao-indigena-no-ensino-superior-
aumenta-mais-de-500-em-seis-anos-mulheres-sao-a-maioria>: Acesso em 20
de abril de 2022.
SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Artes
Curso de Artes Visuais - Licenciatura

PALEOARTE E A SÉTIMA ARTE: INFLUÊNCIAS DA ILUSTRAÇÃO DE


DINOSSAUROS NO CINEMA

Lucas Gomes Ximenes Caminha

Introdução

Paleoarte. Um termo pouco utilizado, que trata de uma categoria artística silenciosamente
presente, que se embrenha de maneiras sutis nas nossas vidas. A palavra se refere a
representações artísticas de plantas e animais extintos, indo desde ilustrações bidimensionais a
esculturas, frequentemente de caráter científico, devido à pesquisa necessária para realizar a
imagem dos organismos em questão, e foi criada pelo artista Mark Hallett, num artigo intitulado
The Scientific Approach of the Art of Bringing Dinosaurs Back to Life (A Abordagem Científica
da Arte de Trazer Dinossauros de volta à Vida, tradução livre), em 1987. Com a precisão de
fóssil para ilustração sendo uma parte vital do processo paleoartístico, as obras acabam por
facilitar a visualização do organismo representado no seu devido artigo. Ainda que o público
geral não pense tanto sobre o assunto, a paleoarte influencia inúmeras e variadas obras, sendo
elas do meio visual ou não, desde a literatura ao cinema.

Meu próprio interesse pelas problemáticas da paleoarte começou mais cedo do que seria capaz
de lembrar com exatidão. Minha primeira exposição ao mundo paleontológico se deu por meio
de uma revista sobre dinossauros barata, vinda de uma banca de jornal. O pavio foi aceso desde
então, com um fascínio sem fim pela pré-história que me levou a todo tipo de paleoartista, desde
os nacionais, como Camila Alli Chair (1989 -), aos estrangeiros, como Gabriel Ugueto (1984 -
). Este trabalho nasceu por conta desses artistas. Ou melhor: nasceu da insatisfação sincera, de
minha parte, ante ao fato de que seus trabalhos não têm o reconhecimento que deveriam ter.
Falemos um pouco de Camila, por exemplo. Uma artista de São Paulo, ela possui uma paixão
considerável por répteis, sendo eles atuais ou extintos, o que a levou a uma carreira de ilustrá-
los de todas as formas possíveis. Tendo tido três lagartos e uma ave de estimação, uma das suas
maiores especialidades é desenhar os mínimos detalhes nas escamas e penas dos animais que
representa. Além disso, ela possui um olho para cores vibrantes, assim como todo tipo de
estrutura especulativa que não se preserva em fósseis, fazendo com que cada uma das suas
ilustrações seja uma experiência única de se presenciar. Ela também trabalha com animação, e
está, no momento em que este trabalho está sendo escrito, tentando levar ao ar seu projeto
pessoal, chamado de Escola da Insanidade.

Figura 1: Ilustração de um Giganotosaurus por Camila Alli Chair, demonstrando seu método frequente de desenhar cada
escama. Originalmente publicado em 2021, e retirado de deviantart.com/freakyraptor/art/The-King-of-the-Predators-
874357851.

Já Gabriel Ugueto é um artista uruguaio, cujo trabalho muito mais envolve o aspecto
fotorrealista e a dedicação a fazer com que suas ilustrações tenham o ar mais natural possível,
levando em conta os prováveis hábitos dos animais representados, assim como o ambiente em
que viviam. Ainda que o rigor anatômico seja particularmente importante na paleoarte, Ugueto
se destaca demonstrando não apenas bastante conhecimento da anatomia dos animais
envolvidos, como também atenção para a naturalidade de cada um, ilustrando cada animal não
como uma planilha anatômica, mas como um ser real, que vive e respira.
Figura 2: Ilustração de um Aurornis e um Eosinopteryx, duas aves primitivas e, portanto, dinossauros a seu próprio jeito. O
estilo naturalista de Gabriel Ugueto se estende das cores simples, porém chamativas, aos maneirismos dos animais.
Originalmente publicado no site Earth Archives em 2018, retirado de eartharchives.org/articles/feather-explosion/index.html.

Como é possível perceber, mesmo com ambos os artistas tratando de temas semelhantes, ambos
possuem um estilo único, quase imediatamente reconhecível. Mesmo diante do rigor científico
necessário para a produção de paleoarte de qualidade, o valor artístico dessas obras ainda é de
grande importância, com cada artista trazendo sua visão e expressões únicas do mundo pré-
histórico. A singularidade de cada obra é, na verdade, também importante para a comunidade
científica.

Umas das principais verdades que precisam ser aceitas no que diz respeito à paleontologia – e
qualquer ciência, sejamos sinceros – é a de que jamais saberemos de tudo. Fósseis trazem
bastante evidência sobre a anatomia de organismos extintos, talvez mais do que o público geral
esteja ciente, mas mesmo assim, é impossível saber de todos os detalhes, como as cores,
comportamento, ou tecidos moles. É aí que a paleoarte realmente brilha: é somente pela
ingenuidade artística, pela criatividade necessária para especular o que fósseis jamais nos dirão,
que podemos realmente visualizar a pré-história e seus habitantes.
Parte disso vem também da observação do mundo natural atual, visto que diversos animais
possuem estruturas que jamais reconheceríamos por meio apenas do esqueleto. De vez em
quando, fósseis excepcionalmente preservados nos contam mais sobre a aparência em vida de
animais extintos, mas na maior parte das vezes, é preciso observar os ossos, e adivinhar.

Ter um olho apurado para o que sabemos, somado à capacidade de especular razoavelmente
sobre o que não sabemos, é o que faz da paleoarte o que ela é: mutável, e incerta, mas ousada,
na sua capacidade de imaginar um mundo que já se foi.

Figura 3: Ilustração de um Lambeosaurus adulto com filhote, por Júlio Lacerda (2020). Retirado de
paleoart.tumblr.com/post/630798356032208896/a-young-lambeosaurus-gets-separated-from-the-herd.

Agora que falamos um pouco de como chegamos aqui, e alguns dos conceitos básicos da
paleoarte, falaremos da sua história, e de como as coisas mudaram desde sua concepção até
hoje.

História e conceitos
A paleoarte tem sua origem formal no século XIX, décadas após as primeiras descrições formais
de fósseis circa 1976 (WITTON, 2018). Ainda que seja possível argumentar que mitológicas
da Antiguidade, como dragões e grifos, tenham sido inspiradas por fósseis, é mais razoável
assumir que as primeiras paleoartes reconhecidas como tal são realmente mais modernas, por
intencionalmente tentar reconstruir a aparência de animais extintos.

Em seus primórdios, na década de 1830, a paleoarte possuía um caráter restritivo, sendo vista
como algo de pouco valor científico. Com poucos fósseis à disposição, os artistas podiam
apenas especular sobre a aparência em vida dos seres representados. Sendo assim, tanto no
âmbito científico como no artístico, a maior parte dos primeiros trabalhos paleoartísticos
permanece sem ser publicado. Notavelmente, as ilustrações de Richard Owen (1804 – 1892), o
homem que criou o termo dinossauro, foram algumas das primeiras a cogitar a possibilidade de
colocar pele por cima dos ossos de animais extintos, mas evitaram publicação até mesmo depois
que a paleontologia se tornou mais popular.

Figura 4: Duria Antiquor, a more ancient Dorset (Um Dorset mais antigo, tradução livre), considerado por muitos como a
primeira obra rigorosa de paleoarte a ser publicada, ainda que restrita aos círculos científicos. A ilustração em questão
demonstra como se imaginava a costa da Inglaterra durante o início do período jurássico, influenciada pelas descobertas da
paleontóloga amadora Mary Anning (1799 – 1847). Obra por Henry De La Beche, e circulada pela comunidade científica sem
parar em museu algum. Originalmente publicada em 1830, retirada de en.wikipedia.org/wiki/Duria_Antiquor.
Em 1854, diversas estátuas em tamanho natural, representando uma grande diversidade de
animais extintos foram expostas no Crystal Palace Park, em Londres, de animais antigos como
o Dycinodon (final do permiano, de 253 a 251 milhões de anos atrás) até mamíferos mais
familiares, como o cervo gigante Megaloceros (metade do pleistoceno à metade do holoceno,
45 a 7 mil anos atrás), incluindo também os três dinossauros não-aves formalmente descritos
na época: Megalosaurus (metade do jurássico, cerca de 166 milhões de anos atrás), Iguanodon
(início do cretáceo, de 126 a 122 milhões de anos atrás) e Hylaeosaurus (início do cretáceo, de
140 a 136 milhões de anos atrás). Ainda que não possam ser consideradas cientificamente
corretas, principalmente vistas de hoje, as estátuas representavam bem o principal objetivo da
paleoarte, mostrando os dinossauros e outras criaturas igualmente antigas como animais, e não
como monstros – uma tradição raramente seguida por obras subsequentes –, com intenso rigor
anatômico, e uma dose saudável de especulação, dados os recursos da época. Cada estátua foi
esculpida por Benjamin Waterhouse Hawkins (1807 – 1894), sob a curadoria de Richard Owen
(1804 – 1892), o homem que criou o termo dinossauro. Essas estátuas foram a primeira
exposição da paleoarte ao público geral, além da esfera científica, e provaram ser populares por
algum tempo, porém se tornaram obsoletas diante de novas descobertas. Hoje em dia,
permanecem como um monumento aos avanços da paleontologia: nós realmente chegamos
longe, desde o dia em que considerávamos dinossauros como meros lagartos gigantes.

Figura 5: estátuas de Iguanodon expostas no Crystal Palace Park, Londres. Refletindo as ideias vitorianas sobre a aparência
de fauna pré-histórica, os modelos permanecem belos, porém não representam o que pensamos sobre os animais atualmente.
Esculpidas por Benjamin Waterhouse Hawkins, e expostas até hoje no Crystal Palace Park. Foto retirada de
cpdinosaurs.org/visit/statue-details/iguanodon.
Figura 6: Ilustração de um Iguanodon, representando o quanto sabemos sobre o animal hoje em dia. O que antes foi
considerado um chifre, agora é tido como um espinho no polegar. Imagem por John Conway, retirada e originalmente
postada em johnconway.art/iguanodon-bernissartensis.

Depois disso, o primeiro exemplo de animais pré-históricos sendo representados na mídia


popular se encontra na obra Viagem ao Centro da Terra, publicada em 1864 pelo francês Jules
Verne (1828 – 1905). Na trama, os protagonistas, ao atravessarem um grande oceano
subterrâneo, acabam encontrando um Plesiosaurus (início do jurássico, de 199 a 175 milhões
de anos atrás) e um Ichthyosaurus (final do triássico ao início do jurássico, de 205 a 182 milhões
de anos atrás), dois grandes répteis marinhos, que travam uma batalha até a morte diante dos
personagens humanos. Aqui, já podemos ver que o apelo geral desses animais se dá muito mais
no aspecto da ação e violência, do que qualquer outra faceta da sua ecologia.

Ao longo das décadas subsequentes, a paleoarte foi ganhando importância na educação do


público em geral, não especializado, sobre a paleontologia, à medida que mais e mais fósseis
iam sendo descobertos ao redor do mundo. Sem dúvida, alguns dos artistas de maior influência
nos primórdios dessa expansão de importância foram o norte-americano Charles R. Knight
(1874 – 1953), o tcheco Zdenek Burian (1905 – 1981) e o russo-austríaco Rudolph F. Zallinger
(1919 – 1995). Seus trabalhos eram frequentemente comissionados por museus no começo do
século XX , e permanecem populares até hoje, ainda que sejam cientificamente obsoletas. De
fato, as pinturas desses artistas, Knight em particular, foram extremamente influentes na
produção de diversos filmes da época, como O Mundo Perdido, dirigido por Harry O. Hoyt
(1885 – 1961) e lançado em 1925, baseado na obra de Sir Arthur Conan Doyle (1859 – 1930);
King Kong, de 1933, dirigido por Merian C. Cooper (1893 – 1973); e, mais tarde, o terceiro
filme dos estúdios Disney, Fantasia, de 1940 que, em um dos seus diversos segmentos
musicais, contém um trecho que retrata a fauna da era mesozoica (c. 250-65 milhões de anos
atrás). Os designs da grande maioria das espécies apresentadas foram diretamente baseados nas
obras de Charles Knight.

Figura 7: Ilustração representando Brontosaurus com hábitos semiaquáticos, uma proposta comum no começo do século XX,
porém não tão plausível atualmente, por Charles R. Knight (1898, ,originalmente exposto no Museu Americano de História
Natural, AMNH) Retirado de charlesrknight.com.
Figura 8: Tomada do filme Fantasia, mostrando Brontosaurus numa lagoa. Da anatomia aos hábitos, a influência de Knight é
notável.

A paleoarte permaneceu estagnada durante a Segunda Guerra Mundial. Para além da


concentração de recursos materiais na indústria bélica, que explica a estagnação, é possível falar
de um verdadeiro retrocesso no âmbito da paleontologia (e, por extensão, da paleoarte), visto
que muitos fósseis de espécimes importantíssimos foram bombardeados nos museus em que
estavam abrigados.

Foi somente durante a década de 1970 que o ramo novamente se tornou popular, com a assim
chamada “renascença dos dinossauros”: novos avanços no estudo de animais extintos deram a
cada espécie um dinamismo que não era presente nos grandes répteis vagarosos de outrora.
Com a descoberta de que dinossauros provavelmente possuíam sangue quente, vindo de
observações anatômicas de animais claramente ágeis como o Deinonychus (início do cretáceo,
de 115 a 108 milhões de anos atrás). Artistas como Robert Bakker (1945 -), Mark Hallett (1965
-) e Gregory S. Paul (1954 -), foram vitais na mudança da percepção do público sobre
dinossauros – o grupo de animais extintos que, de forma bastante explicável, são a faceta mais
carismática da paleoarte, devido a certa familiaridade, devido aos seus parentes vivos,
misturada com o mistério inerente às adivinhações vindas do fato de que, além das aves, não
existem dinossauros vivos para servir de referência. Em lugar nenhum essa mudança se fez tão
evidente como no filme Jurassic Park, de Steven Spielberg (1946 -), inspirado em grande parte
nos trabalhos de Gregory S. Paul, assim como no livro de mesmo nome escrito por Michael
Crichton (1942 – 2008), no qual o longa se baseia. Com essa nova visão sobre a fauna pré-
histórica, o público passou a cultivar um interesse renovado pelo assunto, e a paleoarte
finalmente se tornou mainstream.

O Mundo Perdido e Jurassic Park são algumas das obras de maior influência no que diz respeito
à visão do público geral sobre dinossauros, e outros animais semelhantes. Por isso, talvez, elas
sejam justamente as que mereçam uma análise a fundo agora.
Comparações cinematográficas

Diante do que é proposto, é necessário se perguntar: de que forma a paleoarte influencia a mídia
popular, em particular o cinema? Por que a escolha, justamente, das obras O Mundo Perdido,
Jurassic Park e Jurassic World? Se antigamente a paleoarte era tão fortemente associada à
produção de filmes como esses, por que ela é agora prontamente ignorada pelos poucos estúdios
que arriscam a representar nas telas reconstituições artísticas de animais extintos?

Essas três perguntas levam a uma outra: de que modo, especificamente, o cinema influencia a
forma como as pessoas veem o mundo, e por que a paleoarte é tão importante, nesse contexto?
De que forma, afinal, a paleoarte influencia O Mundo Perdido, Jurassic Park e Jurassic World?

Para chegar às conclusões necessárias, é preciso fazer uma pesquisa extensiva. A paleoarte
como um todo tem suas origens no século XIX, e, conhecendo a sua história, é possível
reconhecer os contextos – cuja distância é de quase sete décadas – em que O Mundo Perdido
(1925), Jurassic Park (1993) e Jurassic World (2015) foram criados. Diante disso, será feita
uma busca sobre a história da paleoarte até esses dois momentos, e o estado exato em que ela
se encontrava na imagem pública em ambos os casos.

O objetivo geral é investigar a influência da paleoarte nos filmes O Mundo Perdido, de 1925,
e Jurassic Park, de 1993.

Objetivos mais específicos incluem ler os dois livros que influenciaram a produção dos
filmes; analisar como são retratadas artisticamente a fauna e a flora nos livros; assistir os dois
filmes, e analisar como são retratadas artisticamente a fauna e a flora, numa comparação.

O livro O Mundo Perdido, de Sir Arthur Conan Doyle, famoso por suas obras protagonizadas
pelo detetive Sherlock Holmes, foi escrito em 1912. O livro surgiu meros vinte anos após a
infame “Guerra dos Ossos”, iniciada pelos paleontólogos estadunidenses Othniel Charles
Marsh (1831 – 1899) e Edward Drinker Cope (1840 – 1897). O evento em si diz respeito à
rivalidade ferrenha entre os dois paleontólogos, numa competição para descobrir mais fósseis
do que o oponente. Centenas de espécies de animais pré-históricos foram descobertas nessa
época, incluindo espécimes que se tornaram famosos como o Stegosaurus (final do jurássico,
de 155 a 145 milhões de anos atrás) e o Brontosaurus (final do jurássico, de 156 a 146 milhões
de anos atrás). Portanto, não foi exatamente surpreendente que Doyle tenha se utilizado de
alguns dos animais descobertos pelos dois paleontólogos, até mesmo incluindo dois
personagens com uma rivalidade semelhante: o feroz professor Challenger, e seu oponente,
professor Summerlee.

O filme de 1925, baseado no livro, toma diversas liberdades frente à obra original – entre elas
a escolha de dinossauros retratados. Enquanto no livro aparecem apenas três espécies, mais
alguns répteis e mamíferos não relacionados, o filme traz cerca de nove, retirando
completamente o foco do romance nos nativos do mundo perdido em favor do espetáculo das
criaturas de stop-motion. Destas, oito são quase inteiramente baseadas no trabalho de Charles
Knight, tendo sido modeladas e animadas pelo especialista em efeitos especiais Willis O’Brien
(1886 – 1962), que, mais tarde, viria a trabalhar em King Kong de modo semelhante.

Ao longo do filme, os dinossauros são retratados como feras pouco inteligentes e desastradas,
porém extremamente ferozes. Tal visão era comum em 1925, quando o conhecimento sobre
dinossauros e répteis em geral era consideravelmente mais limitado do que hoje em dia. Parte
disso vinha de uma falta de interesse cujas causas são legítimas: a Grande Depressão assolava
os Estados Unidos, que, poucas décadas antes, eram pioneiros nas descobertas paleontológicas.
Ao longo da maior parte do século XX, até pelo menos a década de 1970, o estudo de animais
extintos era visto como algo não prioritário, em grande medida por sua natureza especulativa –
e, como vimos, também por circunstâncias históricas específicas.

Figura 9: Ilustração representando um Allosaurus se alimentando, por Charles R. Knight (1904, originalmente exposto no
Museu Americano de História Natural, AMNH) Retirado de charlesrknight.com.
Figura 10: Tomada do filme O Mundo Perdido. O design do Allosaurus é notavelmente semelhante ao da obra de Knight.

O livro de Crichton, por sua vez, foi publicado em 1990, após uma série de manuscritos
abandonados envolvendo um garoto que criava um pterossauro em laboratório (GOULD,
1997). Crichton era um amigo próximo do diretor Steven Spielberg, que correu para adquirir
os direitos da história, de modo a transformá-la num filme, lançado em 1993.

O longa segue a história do livro, porém de forma relativamente simplificada, com um foco
maior sendo posto no fato de que os dinossauros deviam parecer realistas. Na década de 1990,
a assim chamada Renascença dos Dinossauros estava a todo vapor, mas o grande público ainda
não havia visto grande mudança na representação dos répteis vagarosos e burros de décadas
passadas. Spielberg tentou seu melhor para corrigir isso: consultou intensamente a obra de
Gregory S. Paul, especificamente seu livro Predatory Dinosaurs of the World (PAUL, 1988), e
contratou um paleontólogo profissional, Jack Horner, para garantir que suas representações
fossem fiéis ao que se pensava sobre dinossauros na época.
Figura 11: Ilustração de um grupo de Tyrannosaurus caçando Triceratops, por Gregory S. Paul (1988, originalmente publicada
no livro Predatory Dinosaurs of the World – tradução livre, Dinossauros Predatórios do Mundo). Retirada de
chasmosaurs.blogspot.com/2016/06/vintage-dinosaur-art-predatory.html.

Figura 12: Tomada do filme Jurassic Park, 1993. Paul foi uma grande influência no design dos animais do longa, ainda que
certas proporções tenham sido propositalmente alteradas.
Nos dias atuais, porém, desde 2014, digamos, essa correlação entre arte e mídia parece não ter
o efeito que um dia já teve. Mesmo diante de paleoartistas extremamente fluentes no assunto,
como Mark P. Witton, John Conway, e o brasileiro Júlio Lacerda (1983 -), no âmbito da
produção audiovisual de massa, filmes e seriados se recusam a seguir o ritmo das novas
descobertas. Assim, as obras audiovisuais mais populares, como a ainda gigantesca franquia
Jurassic World, inaugurada em 2015 (como derivado nostálgico da franquia Jurassic Park dos
anos 1990), permanecem estagnadas e inflexíveis nas suas representações de animais extintos.
De fato, suas criaturas computadorizadas frequentemente possuem designs retrógrados, e
exibem comportamentos carregados de estereótipos que já deviam, há muito tempo, terem sido
retirados da visão do público, a bem do interesse científico.

O sucesso estrondoso de Jurassic Park em 1993 foi, talvez, a maior força responsável pela
mudança de paradigma no modo como o público enxerga esses grandes animais. Como
argumentado anteriormente, ao longo dos últimos anos, essa mesma visão se estagnou. A falta
de outra produção focada em precisão científica levou a uma resistência do público quanto a
novas visões paleontológicas, renovando, portanto, a falta de interesse popular na
paleontologia, de forma semelhante ao que houve na década de 1920.

Em 2015, o filme Jurassic World, dirigido por Colin Trevorrow (1976 -) foi lançado. Ele
continua a saga do primeiro filme – cujas sequências, Jurassic Park: The Lost World, 1997, e
Jurassic Park III, 2001, haviam sido descontinuadas catorze anos antes. Com uma pausa tão
grande entre a franquia original e seu revival, Jurassic World teria sido a oportunidade perfeita
para apresentar novos conceitos científicos às massas, como o primeiro filme havia feito.
Porém, infelizmente, esse não foi o caso. Os designs das criaturas permaneceram os mesmos –
e alguns deles chegaram até mesmo a regredir, sendo mais semelhantes a representações
anteriores à década de 1970. Tal descaso continua e se aprofunda a cada filme subsequente:
dinossauros e pterossauros voltam a ser representados como animais ferozes e estúpidos,
sempre em busca de uma nova refeição. A falta de inovação calcada em pesquisas
paleontológicas sérias leva a uma falta de interesse científico do público, o que, por sua vez,
resulta em severa falta de fundos para área paleontológica, e, portanto, na perda de espécimes
extremamente importantes.
Figura 13: Ilustração de um Velociraptor perseguindo mamíferos do gênero Zalambdalestes, por Mark P. Witton (2020,
retirado de e originalmente publicado em markwitton-com.blogspot.com/2020/03/realistic-raptors-pop-culture.html).

Figura 14: Tomada do filme Jurassic World, 2015. Os animais retratados são, teoricamente, Velociraptor, mas em nada se
assemelham ao que foi descoberto sobre a espécie na época do lançamento.

Basta fazer uma breve análise de comentários em redes sociais para perceber que a opinião
pública geral é de que filmes são meras obras de ficção e que eles não afetam quem os vê de
forma significativa, ou de que seu impacto social é mínimo diante da rotina diária. Mas é apenas
necessário ver outros longas metragens por Spielberg, para perceber que isso não é verdade.

Assim como Jurassic Park mudou a percepção pública em relação a dinossauros, nos anos
1990, dezoito anos antes, Tubarão, também dirigido por Spielberg, havia sido responsável por
uma mudança significativa na percepção geral no que diz respeito aos tubarões – gerando, de
fato, uma onda de pânico que persiste até hoje. Atualmente, uma quantidade considerável de
espécies de tubarão conhecidas está ameaçadas de extinção, em grande medida devido ao medo
causado pelo filme, que retrata o tubarão do título como um monstro assassino e voraz.
Tubarões são, na verdade, uma parte muito importante do ecossistema marinho, e foi necessário
apenas um filme para que essa corrente delicada fosse severamente danificada.

Também é importante que haja novas visões científicas, atualizadas, no cinema por mais um
motivo. Com Jurassic World sendo apenas um dentre diversos exemplos, é notável como
cientistas são, frequentemente, retratados como os vilões de histórias similares. A ignorância
científica do público tem consequências drásticas, pois a vilificação dos pesquisadores fictícios
acaba sendo transposta para os cientistas reais. Com isso, a resistência a eixos importantíssimos
da sociedade, como vacinas, se torna algo, infelizmente, bastante comum.

Assim sendo, é importante que existam obras que reflitam os valores científicos atuais.
Bibliografia

CRICHTON, Michael, Jurassic Park. 2. Ed. Estados Unidos: Ballantine Books, 1991. 400 p.

DOYLE, Arthur Conan, O Mundo Perdido. 1. Ed. Reino Unido: Hodder & Stoutghton, 1912.
352 p.

FERRETI, F., et al., Decline of coastal apex shark populations over the past half century.
Communications Biology, 2018.

GOULD, Stephen Jay, Dinossauro no palheiro: reflexões sobre história natural. 1. Ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. 546 p.

VERNE, Jules, A Journey to the Center of the Earth.. 3. Ed. França: Pierre-Jules Hetzel, 1871.
180 p.

WHITE, Steve, Dinosaur Art – The World’s Greatest Paleoart. 1. Ed. Reino Unido: Titan
Books, 2012. 188 p.

WITTON, Mark Paul, The Palaeoartist’s Handbook. 1. Ed. Wiltshire: Crowood, 2018. 224 p.

Filmografia

JURASSIC PARK. Direção: Steven Spielberg. Produção de Amblin Entertainment. Estados


Unidos: Universal Pictures, 1993.

JURASSIC WORLD. Direção: Colin Trevorrow. Produção de Amblin Entertainment e


Legendary Pictures. Estados Unidos: Universal Pictures, 2015.

THE LOST WORLD. Direção: Harry O. Hoyt. Produção de First National Pictures. Estados
Unidos: First National Pictures, 1925.

The Shark in Jaws Did Nothing Wrong – An Ecological Video Essay. 1 vídeo (37 min).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CqykkfT8NlM

TUBARÃO. Direção: Steven Spielberg. Produção de Zanuck Company e Universal Pictures.


Estados Unidos: Universal Pictures, 1975.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
Centro de Artes e Comunicação
Departamento de Artes
Graduação em Artes Visuais - Licenciatura

A EXPERIÊNCIA DE DOCÊNCIA EM ARTES VISUAIS E O USO DE


DISPOSITIVOS TECNOLÓGICOS 1

Julianne Caldas Muniz da Silva

Resumo:
O uso de dispositivos tecnológicos por educadores/as de artes visuais em instituições de
ensino formal, tais como: computadores/notebooks, projetores, celulares e caixas de som, é
o principal foco desta investigação para conclusão do curso de Graduação em Artes Visuais
- Licenciatura, da Universidade Federal de Pernambuco. É uma pesquisa narrativa que tem
os seguintes objetivos: 1) discutir a relação entre arte e tecnologia, entendendo a docência
em artes visuais por meio das experiências vividas no campo profissional e; 2) refletir sobre
minhas práticas docentes durante os estágios curriculares obrigatórios. Como compreendo o
uso de dispositivos tecnológicos em minhas experiências como professora de Artes Visuais?
Como o desenvolvimento deste assunto contribui para o campo da formação docente?

Palavras-chave: Dispositivos Tecnológicos; Artes Visuais; Docência; Estágios Curriculares.

Abstract:
The use of technological devices by visual arts educators in formal educational institutions,
such as computers/laptops, projectors, mobile phones and speakers, is the main focus of this
investigation for the conclusion of the Undergraduate Course in Visual Arts - Bachelor's
Degree, from the Federal University of Pernambuco. It is an autobiographical research that
has the following objectives: 1) to discuss the relationship between art and technology,
understanding teaching in visual arts through experiences in the professional field and; 2) to
reflect on my teaching practices during mandatory curricular internships. How do I
understand the use of technological devices in my experiences as a Visual Arts teacher?
How does the development of this subject contribute to the field of teacher training?

Keywords: Technological Devices; Visual Arts; Teaching; Curriculum Internships.

1
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Artes Visuais -
Licenciatura - da Universidade Federal de Pernambuco, em 2021. Foi defendido dia 21/12/2021
perante banca composta pela Profª Drª Luciana Borre (orientadora), Profº Augusto Barros e Profª Drª
Maria Betânia e Silva.
1
INTRODUÇÃO
Em 1831 o físico e pintor francês Louis Daguerre descobriu que com uma
câmara escura a imagem poderia ser capturada e reproduzida2. A máquina
fotográfica ficou inicialmente conhecida como “daguerreótipo” em homenagem ao
criador. Já em 1832, Joseph Plateau descobriu os princípios de recomposição do
movimento a partir de uma série de imagens, passou então a desenvolver um
método para decompor o movimento. Com os avanços de pesquisas sobre as
fotografias em 1895 foi possível o surgimento dos filmes.
No início dos anos 2000, quando pequena, a fotografia ganhou destaque em
minha trajetória quando era apenas eu e minha mãe. Ela não podia estar presente
como gostaria em boa parte da minha infância/adolescência devido ao trabalho. Em
meus aniversários, sempre que podia ela deixava um bolinho pronto com um bilhete
carinhoso me desejando felicidades e que, em breve, estaríamos juntas. Ela
organizava com os familiares e vizinhos para cantar o parabéns e sempre exigia
uma foto com câmeras analógicas e rolos de filmes que demandavam um tempo
para ver o resultado dos momentos e para compartilhar.
O telefone foi derivado de um acidente na noite de 2 de junho de 1875, pelo
imigrante escocês que morava nos Estados Unidos e professor Alexander Graham
Bell, fazendo experiências com um telégrafo harmônico quando seu ajudante
Thomas Watson puxou a corda do transmissor e emitiu um som diferente. Apenas
em 1876 foi feita a primeira transmissão elétrica da mensagem completa pelo
aparelho recém inventado. “Doutor Watson, preciso do senhor aqui imediatamente”,
foi a primeira mensagem pelo equipamento. Com o aprofundamento das pesquisas
e experimentos a partir de 1920 foi possível transmitir a voz entre grandes
distâncias.
Em 2009 minha mãe viajou a trabalho para Campinas - São Paulo, na
expectativa de ficar um ano fora para um treinamento de trabalho e voltar depois.
Eu, com 11 anos, fiquei sob responsabilidade de meu tio e sua família. Os contatos
com minha mãe ficaram limitados a ligações interestaduais que na época custavam

2
As informações sobre todos estes avanços tecnológicos foram encontradas no site
do museu da computação de São Paulo.
Diga X: uma breve história da fotografia. Universidade Tuiuti do Paraná. Disponível
em: https://www.tuiuti.edu.br/blog-tuiuti/diga-x-uma-breve-historia-da-fotografia
Acesso em: 20 de novembro de 2021.
2
muito caro, mas era o momento que tínhamos para conversar e ficar, na medida do
possível, perto uma da outra.
Houve a primeira transmissão televisionada apenas em 1935 da Torre Eiffel,
e no ano de 1939 nos Estados Unidos. Em 1945, a BBC Inglaterra inaugurou a
televisão, produzindo-a em massa. Ao final dos anos 40 a TV já estava disponível no
âmbito comercial. O vídeo surgiu em 1956, revolucionando a indústria midiática e
tornando possível a gravação de programas de televisão.
Na copa de 2006 tivemos condições de ter uma televisão e assistimos aos
jogos, uma situação em que era raro juntar os familiares e curtir um momento de
alegria com chuva de pipocas nas vitórias. Minha mãe e eu estávamos juntas, em
cumplicidade.
O primeiro computador digital eletrônico de grande escala foi construído em
1945, chamado de ENIAC, funcionou por dez anos, focado em computar trajetórias
táticas para auxiliar na Segunda Guerra mundial. Um dos primeiros computadores
pessoais foram lançados há cerca de 26 anos após o Kenbak-1 em 1971, foi um
fracasso comercial e levou a empresa à falência.
Pouco depois a Marinha Brasileira solicitou um computador buscando o
avanço tecnológico das suas fragatas e abriu concorrência pública (concurso). Uma
turma da Universidade de São Paulo (USP) chamado "Cisne Branco” que logo teve
disputa com turma da Universidade de Campinas (Unicamp), com o
desenvolvimento do projeto chamado “Patinho Feio”. Essa situação se tornou um
marco fundamental para o país com o primeiro computador projetado e construído
no Brasil.
Ainda criança tive acesso ao computador e isso era um dos passatempos que
mais gostava, adorava jogar os joguinhos que vinham instalados e, principalmente,
desenhar, pintar no Paint, salvar e trocar o fundo de tela do computador. Mas havia
muitas dificuldades, pois o acesso à internet ainda não era muito facilitado e exigia
um modem e discagem, trâmites que preferia evitar.
Posteriormente, na pré-adolescência precisei me mudar para o estado de São
Paulo para ficar com minha mãe. Não tive muito sucesso com amizades, mas
mantinha contatos via redes sociais no computador, tais como MSN, Orkut entre
outros com os amigos que estavam em Recife. Foram três anos difíceis para uma
pré-adolescente negra, nordestina, menina e LGBTQIA+. De volta a Recife, já na
adolescência, iniciei o ensino médio e, com o tempo, desenhar se tornou um meio
3
de ter retornos financeiros, como desenhar em cadernos e vender, desenhar
camisas de terceiro ano para a formatura e etc.
As informações sobre todos estes avanços tecnológicos são facilmente
encontradas no site do museu da computação de São Paulo, no artigo “Diga X: uma
breve história da fotografia” disponível no site da Universidade Tuiuti do Paraná e
entre outros sites com informações da área. Além disso, as nossas relações com
estes artefatos podem ser relatadas no dia a dia por qualquer sujeito consumidor.
Para mim, é fascinante, pois a influência de cada um desses dispositivos me fez
criar um vínculo onde, de certa forma, me auxiliou a interagir com a arte e me
proporcionou encontrar a ferramenta de criação com a qual me identifico. Mas,
agora que estou prestes a concluir a Graduação em Artes Visuais, busco relacionar
meu fascínio aos dispositivos tecnológicos às práticas profissionais que tenho
exercido e com as quais ainda trabalharei. Diante disso, pergunto: como
compreendo o uso de dispositivos tecnológicos em minhas experiências como
professora de Artes Visuais? Como o desenvolvimento deste assunto contribui para
o campo da formação docente?
O uso de dispositivos tecnológicos por educadoras/es de artes visuais em
instituições de ensino formal e não formal, tais como: computadores/notebooks,
projetores, celulares e caixas de som, é o principal foco desta investigação para
conclusão do curso de Graduação em Artes Visuais - Licenciatura, da Universidade
Federal de Pernambuco. É uma pesquisa autobiográfica que tem os seguintes
objetivos: 1) discutir a relação entre arte e tecnologia, entendendo a docência em
artes visuais por meio das experiências vividas no campo profissional e; 2) refletir
sobre minhas práticas docentes durante os estágios curriculares obrigatórios, na
educação formal e não formal.

1. ARTE, DOCÊNCIA E TECNOLOGIA

Ao cursar os estágios curriculares obrigatórios da graduação, em instituições


de ensino público de nível fundamental e médio, encontrei uma realidade a qual não
estava preparada para lidar: crianças e adolescentes possuindo acessos a
dispositivos de tecnologia (tablets, celulares, caixas de som, etc). Isso contrariava
minhas expectativas porque sempre escutava que as/os estudantes de escolas
públicas estavam em situação de exclusão digital. Isso trouxe um sentimento de

4
curiosidade para explorar ferramentas tecnológicas para a abordagem pedagógica,
tendo em vista que a utilização de equipamentos eletrônicos não é, pessoalmente,
uma novidade. Surgiu o desejo de atrelar as habilidades existentes com ações
pedagógicas.
Ao preparar o plano da primeira aula para turma de 6° ano do Ensino
Fundamental no Colégio de Aplicação - UFPE (CAP), com base no período de
observação, efetuei uma ação pedagógica com o uso de cartolinas, canetas e giz de
cera sob orientação da professora titular. Porém, senti que existia algo que não
estava encaixado, foi uma situação com a qual não me identifiquei. Imagino que esta
não identificação estava atrelada ao fato de que tenho propriedade com o uso de
ferramentas tecnológicas que poderiam contribuir muito mais com aquela ação.
Essa situação instigou meu interesse pela experimentação de metodologias
de ensino com a leitura do pedagogo e filósofo, John Dewey, em seu livro intitulado
“A arte como experiência” (2010), e me chamou atenção de que “a experiência
ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais
está envolvida no próprio processo de viver" (DEWEY, 2010, p. 109).
Contudo, como se trata de uma proposta de experiência um tanto quanto
sensorial, fez-se necessário abordar a descrição dada por Dewey sobre sentido e o
seu entorno:
O “sentido” abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o
sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, junto ao sensual.
Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o sentido
em si - ou seja, o significado das coisas presentes na experiência
imediata” (DEWEY, 2010, p. 88).

Desse modo, um processo criativo intenso e imersivo de métodos para atingir


os objetivos foi estabelecido. Buscando analisar cada aula como única percebi que
algo em comum mostrou ter um potencial de ferramenta educativa para além do uso
cotidiano: dispositivos eletrônicos encontrados com certa "facilidade" nas instituições
de ensino. Projetor, celular, caixa de som, notebook/tablets, entre outros, são
encontrados por profissionais da educação e podem ser ferramentas de trabalho.
Lembrei que o Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo) prevê a
instalação de equipamentos tecnológicos nas escolas públicas. Então, busquei no
site do Ministério da Educação o objetivo de tal Programa que seria levar às escolas
computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais. No entanto, o Estado
deve prever a estrutura adequada para receber os laboratórios e capacitar os
5
educadores para uso das máquinas e tecnologias. Também conheci no mesmo site
que o Programa Banda Larga nas Escolas fornece o acesso à internet.
Diante dessas informações e dos meus anseios como educadora, pergunto:
como o conhecimento adquirido sobre as ferramentas digitais como ilustração digital,
animação e a atuação como design gráfico poderiam ser úteis para propósitos
educativos?
Nessa primeira experiência docente no CAP (Colégio de Aplicação - UFPE) a
professora/supervisora do estágio forneceu liberdade criativa na minha abordagem
de ensino. Diante do acesso aos equipamentos disponíveis decidi trabalhar com
animação frame-a-frame, realidade aumentada e desenho de modelo vivo com
playlist colaborativa e uma caixinha de som bluetooth. Ao finalizar o estágio e
encontrar alunos/as casualmente pelo campus universitário, comentários positivos e
desejo de continuidade foram tecidos sobre as aulas.
Realizei o segundo estágio no ensino médio, na Escola de Referência Silva
Jardim. No EREM a dinâmica era outra, completamente oposta ao CAP. A diferença
social, a precariedade dos materiais didáticos, a infraestrutura e os equipamentos
sucateados eram evidentes. Mesmo assim, os dispositivos tecnológicos estavam lá.
As quatro turmas que fizeram parte da vivência de estágio tinham um número
considerável de alunos/as que possuíam dispositivos, acesso à internet e habilidade
com os equipamentos da escola. Ainda assim, uma pequena porcentagem dos
estudantes não tinha acesso a algum dispositivo.
Os objetos de estudo da exploração estavam presentes nas salas de aula,
trazendo uma nova ideia a ser explorada: e se apenas o professor possuísse o
dispositivo? Com estes desafios foi preciso pensar em formas mais simples e
possíveis de aplicar metodologias de ensino com o apoio das tecnologias. Ocorreu a
possibilidade de criar um espaço de desenho vivo com música ao fundo, jogo de
perguntas e respostas com sala dividida em grupo para dinâmica com o uso de
celulares e pensamento coletivo. Entretanto, a exploração precisou ser limitada em
pouquíssimas oportunidades devido aos imprevistos que, em breve, serão
abordados.
Por mais curto que tenham sido os períodos de estágios presenciais e testes
amadores com tecnologia em sala de aula, foi o suficiente para gerar o interesse em
aprofundar a pesquisa. O que me levou ao encontro de dois artigos interessantes:
Arte e tecnologia: Como tecnologias digitais podem auxiliar o arte-educador, por
6
Patricia Souza (artigo produzido para o Curso de Mestrado Profissional da Escola de
Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais em 2008) e o Arte.com:
reflexões sobre o ensino de artes visuais e a utilização das tecnologias
contemporâneas, por Erika Oliveira (monografia produzida para a finalização do
curso de Licenciatura em Arte e Educação, em 2013).
Patricia Souza, com o artigo intitulado “Arte e tecnologia” (2018) traz a
reflexão sobre tecnologias digitais em sala de aula, com relação à cibercultura, de
Pierre Lévy. A pesquisa desta autora aborda a realidade de jovens e o estudo de
caso da ação pedagógica de uso de celulares e softwares/aplicativos de edição de
imagem com releituras de grandes obras da história da arte, trazendo autorretratos
como fotos, com base na abordagem triangular no ensino da Educação de Jovens
Adultos (EJA). Já a monografia de Erika Oliveira traz um levantamento bibliográfico
sobre o uso de computadores e internet no contexto escolar, observando a
integração das tecnologias contemporâneas favoráveis ao crescimento da reflexão
artística, democrática e potencializações de Softwares, conjunto de componentes
lógicos de um computador ou sistema de processamento de dados.
O tom de ambas as pesquisas é referente à visão pessoal sobre a
problemática social da sala de aula, isolando as vivências em um estudo de caso e
buscando entender influências das tecnologias existentes na educação e em como
expandir a experiência em sala de aula com foco utilizando os dispositivos. Ao
conhecer essas investigações, alimentei o desejo da evolução de uma pesquisa de
nível pessoal para o coletivo.
No entanto, quando pensei em aprimorar minhas ações como arte-educadora,
surgiu a necessidade de cursar as disciplinas subsequentes de estágio em ambiente
virtual, devido a pandemia do COVID-19. As tecnologias de comunicação se
tornaram destaques para a realização de estudos remotos emergenciais,
contribuindo para o já crescente uso da internet nas relações humanas. Pierre Levy
(1999) em seu livro Cibercultura, diz que:

Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço resulta de um


movimento internacional de jovens ávidos para experimentar,
coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as
mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos
vivenciando a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe
apenas a nós explicar as potencialidades mais positivas deste espaço
nos planos econômico, político, cultural e humano” (LEVY, 1999, p.

7
11).

Mesmo com a passagem datada é válida a reflexão sobre o movimento


retratado em 1999 e que em vinte e dois anos depois aconteceria gradualmente.
Houve uma “migração forçada” devido à situação de emergência. Com a gravidade
dos acontecimentos recentes, o crescimento da evasão escolar se potencializou.
Os principais motivos para a evasão escolar de acordo com a Galeria de
estudos e Avaliação de iniciativas Públicas3, GESTA, são: a dificuldade de acesso a
instituições de ensino; falta de supervisão e trabalho infantil, com o avanço da
pandemia novos motivos agravaram os índicies, com: défict de inclusão digital,
dificuldade de acesso à internet, falta de motivação e incentivo para estudar.
Em contrapartida, com as diversas campanhas de “fique em casa” fomos
bombardeados com conteúdos que se popularizaram para interações nas redes
sociais (lives, ligações de vídeo, jogos cooperativos entre outros) as quais são
exploradas por Lévy (1999), trazem a reflexão de que a cibercultura coloca o
indivíduo diante de um mar de conhecimento, onde é preciso escolher, selecionar e
filtrar as informações para organizá-las em grupos e comunidades onde seja
possível trocar ideias, compartilhar interesses e criar uma inteligência coletiva.
Com a nova conjuntura e o estabelecimento do ensino remoto dentro do mar
de informações ficamos a um click do desinteresse. Tudo isso, contribui ainda mais
para reflexão da importância de conhecimentos tecnológicos dentro da formação de
professores de artes visuais.
Em levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), divulgado pelo
portal de notícias G14, mostra que cerca de 89% dos docentes da rede pública não
tinham experiência anterior para aulas remotas, sendo 21% classificando como difícil
ou muito difícil lidar com tecnologias. Estes dados foram coletados em junho de
2020, com 15.657 professores do Brasil do ensino infantil, fundamental e EJA.

3
As causas da evasão e abandono escolar. Gesta. Disponível em:
http://gesta.org.br/tema/engajamento-escolar/#fatores. Acesso em 21 de setembro de 2021.
4
Quase 40% dos alunos de escolas públicas não têm computador ou tablet em casa, aponta
estudo. G1, 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/09/quase-40percent-dos-alunos-de-escolas-publicas-
nao-tem-computador-ou-tablet-em-casa-aponta-estudo.ghtml
> Acesso em 21 de setembro de 2021.

8
Figura 1: Infográfico mostra o que os professores pensam sobre a ausência de formação
para uso do computador e da internet nas aulas — Foto: Infografia: G1

Outros dados da pesquisa realizada pelo TIC Educação 2019, chamam


atenção como: o percentual de conectividade na internet sendo 21% dos/as
alunos/as de escolas públicas acessando apenas pelo celular; 79% é a soma dos
docentes que disseram que a falta de cursos específicos para o uso de internet e
computador nas aulas agrava a dificuldade ainda mais o trabalho. Ilustrado no
gráfico abaixo:

9
Figura 2: Infográfico mostra disponibilidade de computador no domicílio, em porcentagem,
segundo a pesquisa TIC Educação. — Foto: Infografia/G1

Mudando a perspectiva dos dados educacionais envolvendo professor e


alunos/as para dados da consultoria IDC5, exemplificam em porcentagem a
influência do home office e ensino remoto no mercado brasileiro: no primeiro
trimestre de 2021 houve um crescimento de 20% na procura de computadores,
tendo vendas expressivas na área corporativa sendo no total 1.772.417 de máquinas
vendidas unindo dados de vendas da varejista, o que representa o crescimento de
19,7% em comparação ao mesmo período de 2020. Estes dados instigam inúmeras
reflexões no campo educacional que passa a ter fortes investimentos de uma
vertente que visa somente o lucro.
Globalmente este setor cresceu 55,2%, com 84 milhões de unidades. Os
números impressionam e ainda faltam dados sobre a alta de compras de novos
dispositivos móveis, os quais foram o foco da Prefeitura do Recife como forma de
amenizar a evasão e abandono dos/as alunos/as da escola. A Universidade Federal
de Pernambuco também abriu editais de inclusão digital com planos de dados

5
Quase 40% dos alunos de escolas públicas não têm computador ou tablet em casa, aponta
estudo. G1, 2020. Disponível em:
<https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/09/quase-40percent-dos-alunos-de-escolas-publicas-
nao-tem-computador-ou-tablet-em-casa-aponta-estudo.ghtml
> Acesso em 21 de setembro de 2021.

10
móveis e auxílio financeiro para compra de dispositivos. Diante de todos os dados
apresentados, é possível prever os próximos desafios da educação. É muito
provável que encontremos em uma mesma sala de aula dois principais perfis de
alunos/as: os que não se adaptaram pela falta de equipamento e os que tiveram
acesso proporcionando a continuidade da formação educacional.
Todas essas informações impactaram os próximos estágios que eu
desenvolveria. Durante a formação na graduação em Artes Visuais foram exploradas
formas de lidar com vários tipos de dificuldades para lecionar. No entanto, a situação
pandêmica deixou todos as/os licenciandas/os com inúmeras dúvidas e anseios.
Diante disso, o próximo subitem deste artigo tratará sobre minhas
experiências nos estágios curriculares obrigatórios não formais em meio a ações de
enfrentamento a pandemia COVID 19. Além disso, aprofundarei os relatos e
reflexões acerca dos estágios curriculares obrigatórios na educação formal.

2. TECNOLOGIAS E ARTES VISUAIS NAS SALAS DE AULA: EXPERIÊNCIAS


NOS ESTÁGIOS CURRICULARES
Apresento o relato das atividades desenvolvidas durante os quatro estágios
curriculares obrigatórios. Sobre eles, trato do uso das tecnologias como estratégia
para o desenvolvimento das ações pedagógicas. O primeiro estágio foi realizado no
Colégio de Aplicação UFPE, o segundo no EREM Silva Jardim e o terceiro e quarto
no Grupo Risco!
O primeiro estágio despertou a responsabilidade de entrar em sala de aula
com o papel de ser professora. Até então, a teoria e a prática se limitavam a uma
imaginação e criação de expectativas diante de tudo que vi e estudei no curso de
Artes Visuais.
Na sala/laboratório do Colégio de Aplicação existia uma gama de recursos
visuais, além de quadro branco e uma vasta quantidade de materiais artísticos à
disposição, claramente um ambiente escolar fora da realidade das demais escolas
públicas. A turma de 30 alunos/as era dividida em dois grupos na aula de artes,
onde 15 ficavam na aula de música e outros 15 na aula de artes visuais, e assim
revezavam.
Ao trabalhar o assunto “Arte abstrata x Arte Figurativa”, utilizei elementos da
cultura visual para tratar do tema. Usei um GIF do filme animado "Divertidamente"(

11
2015) da Disney como recurso didático junto a um cabo auxiliar, de uso pessoal, e
do datashow disponibilizado pelo colégio para desenvolver as dinâmicas em sala de
aula, iniciando o primeiro momento da aula prática. Dentre as dinâmicas
trabalhamos uma breve oficina de animação flip (usando retalho de papel e um
lápis) filmando o resultado dos desenhos e passando na tela para os estudantes.
Sendo assim, foi possível explorar o que tínhamos em mãos, com o objetivo de
ampliar e transformar a sala de aula em um estúdio de criação.
Com a aproximação do fim do semestre as aulas ficaram mais flexíveis e
pude conversar com os/as alunos/as para escolher o assunto de interesse para uma
aula "livre". Isso possibilitou a vivência do desenho de modelo vivo com colegas
posando e uma playlist colaborativa. Na hora do compartilhamento dos desenhos e
dúvidas dos/as alunos/as sobre como seria usado o modelo vivo por um artista de
“verdade”, usei o celular e o aplicativo Google Arte & Culture, selecionando a opção
da exposição em realidade aumentada. Fizemos uma breve visita a obras famosas
se movendo pela sala com o cabo do celular ligado ao projetor.
Foi possível fazer uma aula "mágica", trazendo materiais extras e sendo
possível ampliar trabalhos feitos na hora apenas abrindo a câmera do celular e
transmitindo a tela pelo datashow.

12
Figura 3: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 1. Arquivo pessoal.

13
Figura 4: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 1. Arquivo pessoal.

14
O segundo estágio no EREM Silva Jardim foi completamente diferente do que
no CAp, Colégio de Aplicação. Começando pela faixa de idade, pois eram apenas
alunos/as do ensino médio. O ambiente escolar, no geral, muito acolhedor com
muitas amostras e expressões artísticas espalhadas de várias maneiras no colégio,
grupos de danças e desenhos dos discentes nas paredes são os que mais se
destacaram visualmente. Com as observações foi possível perceber que políticas de
inclusão para pessoas LGBTQIA+ foram implementadas em banheiros, expressões
artísticas, pronomes neutros, entre outros meios cabíveis a escola.
Em sala, ficou visível o déficit dos estudantes diante dos conteúdos
abordados na disciplina de Artes e a notável forma como os estudantes tomavam
conta da aula. Em um dos momentos de observação presenciei muita dispersão. Em
outro momento, tivemos a apresentação de trabalhos dos/as alunos/as sobre gênero
de filmes onde tínhamos em sala o material de apresentação (projetor e caixa de
som bluetooth) o qual foi usado para ver o material. Neste dia, antes da finalização
da explicação da professora, os/as alunos/as tomaram posse do equipamento e
colocaram suas músicas, ignorando totalmente a finalização da aula. Por sua vez, a
professora não fez nada e nos comunicou que era sempre assim, pois ela não sabia
mexer nos equipamentos.
Ao iniciar a primeira semana de regência o grupo de alunos/as de todas as
nossas turmas aumentaram. Descobrimos que todos os estudantes estavam indo à
aula com interesse nas nossas dinâmicas (o que nos fez pensar que antes apenas
uma parcela não frequentava as aulas). Com o andamento dos encontros, nos
deparamos com algo que estava fora do nosso alcance: alunos/as/as que invadiam
a sala para questionar sexualidade, pedir número de telefone, apresentar interesses
amorosos, chegaram ao ponto de encontrar redes sociais e convidar para sair. Uma
situação caótica e intimidante que foi solucionada apenas com um tempo após uma
chamada nas turmas para uma conversa séria sobre o quanto isso era incômodo.
Tal transtorno limitou a exploração do uso das tecnologias nas aulas de Artes
Visuais.
No fim do ano, com a turma do 3º ano do ensino médio e a chegada do
Exame Nacional do Ensino Médio, a professora regente nos solicitou uma atividade
de revisão. Com isto em mente desenvolvi um Quiz, jogo de perguntas e respostas,
sobre história da arte com o foco em desenvolver uma atividade lúdica de revisão
para uma turma já cansada de frequentar a escola e ansiosa com o ENEM. Os/As
15
alunos/as teriam como ferramentas qualquer tipo de consulta (incluindo celulares) e
em grupo de até 5 pessoas. Esta turma tinha um perfil de agitação (brincadeiras,
som alto, dançar etc.) e fiquei com receio de que a maioria não aderisse à dinâmica.
Com a sala separada em grupo de cadeiras, apresentação de perguntas
prontas no quadro com auxílio do projetor e assim demos início à revisão. No geral,
o feedback que estávamos tendo das turmas era positivo. À medida em que as aulas
iam passando, tínhamos cada vez mais certeza de uma coisa, não íamos atingir o
interesse de todos, mas fizemos o possível para ajudar.

Figura 4: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 2. Arquivo pessoal.

Figura 5: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 2. Arquivo pessoal.

16
Os estágios 3 e 4 foram realizados na educação não formal, especificamente
no Grupo Risco! Vale destacar que o período de realização das ações aconteceu
concomitante às medidas de enfrentamento à pandemia COVID-19, estes estágios
foram realizados de maneira remota.
O Grupo RISCO! surgiu como um grupo de estudos na Faculdade AESO em
2013, onde Bruna Ferrer estudou e co-criou o projeto, formado por diversos agentes
culturais (principalmente desenhistas e artistas do corpo) é um projeto independente
de cunho artístico focado na prática criativa de modelo vivo. É um trabalho que tem
como essência a experimentação do modelo e suas possibilidades, ultrapassando a
tradição acadêmica trazendo a interlocução entre múltiplas linguagens (audiovisual,
corporal, musical, editoriais, gráficas etc).
Minhas atribuições nesses estágios foram: para o estágio 3 fiquei responsável
por organizar, divulgar e mediar as sessões de modelo-vídeo, para o estágio 4 tive o
desafio de organizar e mediar uma exposição guiada pelo site do Risco! para turmas
de escolas públicas de Pernambuco.
Fazer o estágio no Risco! foi interessante, o projeto em si tem base sólida
para atuar no virtual, mas não se compara a experiência presencial, pois existia toda
a estrutura para o projeto acontecer por meio de plataformas de vídeo chamada.
O estágio 3, com foco em realizar as mediações das sessões, entrava em
contato com uma lista já existente de possíveis modelos-vivos, fazia o teste de
câmeras, a playlist, realizava a mediação explicando como seria a sessão. No ponto
de vista técnico nada muito trabalhoso, mas isso produzia um resultado fantástico. A
troca de experiência de cada desenhista ocorre mediante a exploração do corpo
alheio via vídeo chamada. Assim como o pensamento do escritor John Dewey
(2010) também acredito que nós aprendemos quando compartilhamos experiências
em conjunto.

17
Figura 6: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 3. Arquivo pessoal.

Figura 7: Imagem de divulgação do projeto.


Algo que vale ressaltar é o fato de que estar no ambiente virtual possibilitou a
exploração de efeitos visuais digitais produzidos pela poética da performance do
modelo e a ampliação do número de participantes, sendo possível a conexão de
pessoas de qualquer parte do mundo.
Contudo, a vivência mais marcante deste estágio foi participar da produção
do primeiro curta animado do Grupo Risco!. Fiquei responsável pela gravação da
sessão juntamente com a produtora Bruna Rafaela e o tratamento dos desenhos

18
produzidos com o diretor Leonardo Lacca. A sessão foi realizada com apenas uma
pose, porém com duas câmeras e inúmeros ângulos para aqueles que estavam
apenas desenhando. Sem ver os bastidores da ação em loco não poderíamos
imaginar como seria o resultado.
A live de lançamento da animação contou com alguns dos mais de 80
desenhistas, a equipe da produção e convidados. A experiência de assistir a
produção pronta foi inesquecível, pois a forma como os idealizadores do projeto
expandiram a essência do Grupo Risco! para uma produção cinematográfica em
meio a um tempo de caos.
No Estágio 4 nosso público da exposição virtual, localizada no site do Risco!,
foram turmas escolares de Pernambuco. Tivemos apoio de representantes da Rede
Estadual de Professores. Entramos como convidados nas aulas para desenvolver a
mediação, as quais foram feitas via Google Meet. As professoras estavam sempre
muito animadas e os/as alunos/as tímidos, sendo desafiante proporcionar interação.
Confesso que na minha primeira mediação gerei uma expectativa alta e uma
ansiedade se alastrou por mim. Por isso, não foi tão boa como deveria ter sido, mas
foi ótimo para aprender como organizar o tempo, material da exposição e entender
na prática como fazer a interação e cativar os/as alunos/as.
Alguns pontos precisam ser mencionados, pois o que estamos vivendo agora
durante a pandemia não foi opcional, muito menos premeditado. Diante disso, ficou
evidente o quanto temos déficit na área de tecnologia na educação, conexão à
internet muitas vezes falhas dos/as alunos/as e professoras que por várias vezes
saíam e voltavam, instabilidade de conexão gerando travamentos de áudio e vídeo,
déficit de equipamentos, entre outros. Fazer a mediação virtual foi uma experiência
nova que tem seu potencial, mas não diminui a importância da experiência
presencial. O formato online nos deu a oportunidade de ocupar espaços que
presencialmente não teríamos tanta facilidade, como por exemplo, uma das turmas
que ficava localizada no interior do estado.
Particularmente tenho interesse nessa mescla da educação artista com
dispositivos eletrônicos e o que podemos fazer com isso. Também me interessa o
planejamento das atividades e pensar soluções palpáveis para trabalhar em
condições difíceis. Trabalhar nesse estágio com o desafio de apresentar o Grupo
Risco! para pessoas que não estão no meio artístico ou que sequer ouviram falar
sobre modelo vivo performático e experimental, foi animador.
19
Os resultados trocados entre todas as equipes foi uma experiência incrível
entre os estagiários. Fiquei muito feliz que apesar dos pesares ainda conseguimos
resistir e mesmo com o tempo corrido e vários percalços conseguimos concluir com
louvor o estágio.
Algumas coisas que extrapolaram o controle foi que, por mais que estávamos
interagindo e a conversa estava bem engajada com os/as alunos/as, o nosso
principal canal de conversar foi pelo chat de forma escrita e por microfone. Ao
questionar sobre o uso da câmera, uma aluna se prontificou em dizer que não se
sentia confortável para aparecer, o que foi acolhido no chat e por voz por outros/as
alunos/as.

Figura 8: Imagens produzidas durante minhas aulas no estágio 4. Arquivo pessoal.

De modo geral foi gratificante participar desse “projeto piloto” mesmo que com
poucos desenhos sendo compartilhados levo em consideração que foram os
primeiros contatos dos/as alunos/as com uma experiência de desenho com modelo
vivo, música ambiente e sem “regras” de desenho a ser seguida.
A busca por referências no meio tecnológico dedicado à educação que estão
sendo desenvolvidas atualmente, como as formas criativas da didática da LEGO
House, a Apple Education, o Google Education, o Microsof Education entre muitos
outros meios. Com o domínio daquilo que temos em mãos abre uma gama de
possibilidades. E ainda, instigar a curiosidade, a imaginação, a inspiração. Foram
os pilares do método que busco aplicar na minha forma de lecionar. Com tudo isso,

20
concordo com Ana Mae (2006, p. 110) que:
A tecnologia vem sendo comemorada como a grande revolução de
nosso tempo, contudo tem sido estudada quase somente como
princípio operacional. O que parece interessar é principalmente como
funciona a máquina, gerando uma relação de consumo em que o
indivíduo é dominado pela dinâmica instrumental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estágios proporcionaram o meu reconhecimento e identificação como
arte-educadora. Foram nestas oportunidades que vislumbrei meu potencial no
campo das tecnologias como recursos pedagógicos para as aulas de Artes Visuais.
Também percebi isso em uma de minhas experiências recentes em meio à
pandemia, quando participei de entrevistas de empregos em três instituições de
ensino. No ato da entrevista foi solicitado o domínio de tecnologias digitais
educativas e equipamentos como um diferencial para a contratação. Como já
apresentado anteriormente, existe um déficit desse conhecimento voltado para
formação de professores, de modo geral.
Para aqueles que estão em formação atualmente e estarão no mercado de
trabalho a tempo de sofrer com o efeito dominó da pandemia e a inserção de
tecnologias, penso que as palavras de Ana Mae (2006, p. 109) serão pertinentes:
“temos ainda um longo percurso para fazer as tecnologias contemporâneas
trabalharem mais eficientemente em favor da educação”.

REFERÊNCIAS:

BARBOSA, Ana Mae. Dilemas da arte/educação como mediação cultural e namoro


com as tecnologias contemporâneas. In: BARBOSA, Ana Mae (Org.)
Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo:
Cortez Editora, 2006.

DEWEY, John. A arte como experiência. São Paulo: Martins, 2010.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34,
1999.

SOUZA, Patrícia. Arte e Tecnologia: Como tecnologias digitais podem auxiliar o


arte-educador. Mestrado Profissional da Escola de Belas Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais, 2018.

21
OLIVEIRA, Erika Patricia Teixeira. Arte.com: reflexões sobre o ensino de artes
visuais e a utilização das tecnologias contemporâneas. Monografia (Licenciatura
em Arte e Educação) – Programa Especial de Formação Pedagógica de Docentes
em Arte e Educação, Faculdade Integrada da Grande Fortaleza, Fortaleza, 2013.

22
Trabalho de Conclusão de
Curso apresentado à
Coordenação do Curso de
Licenciatura em Artes Visuais
do Departamento de Artes da
Universidade Federal de
Pernambuco - UFPE, como
requisito parcial para
obtenção do título de
Licenciado em Artes Visuais.
Orientador: Prof. Eduardo
Romero Lopes Barbosa
Resumo

Este livro de artista serve de apoio teórico para o curta-metragem “ Por uma estética Mutualista”, que será apresentado como meu
Trabalho de conclusão de curso. Apresentam-se aqui, os processos vivenciados na criação do projeto de capoeira Palmares Resiste e
da PDU Crew e seus desdobramentos na ocupação do centro de artes e comunicação (CAC), onde se atrelou a capoeira/Graffiti a arte
relacional como processo de pesquisa artográfico. Este trabalho, pesquisa como a arte relacional, dentro do grupo palmares
resiste e da PDU Creew contribuiu na ampliação da consciência e "instiga" necessária para lutar com seus corpos contra o sistema
vigente em suas múltiplas formas, tendo no fazer artístico uma relação vital entre arte e política.
Filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Pglt8CAIvYM
Palavras chave: Arte Relacional, Capoeira, Graffiti, política

Resumen

Este libro de artista sirve de soporte teórico al cortometraje “Por una estética mutualista. Se presentan aquí, los procesos
vivenciados en la creación del proyecto de capoeira Palmares Resiste, y PDU Crew y su relaccion con la ocupación del centro de
artes y comunicación (CAC), donde se ató la capoeira / Graffiti el arte relacional, como proceso de investigación artográfico. Este
trabajo, investiga como el arte relacional, dentro del grupo palmares resiste y de la PDU Creew, contribuyó para la amplificación
de la conciencia y "instiga" necesaria para luchar con sus cuerpos contra el sistema vigente en sus múltiples formas, teniendo en el
hacer artístico una relación vital entre arte y política. Pelícola disponible en este sítio: https://www.youtube.com/watch?
v=Pglt8CAIvYM
Palabras Clave: Arte Relacional, Capoeira, Graffiti, Política
SUMÁRIO

Módulo 1 Caminhada
1.1 pesquisa
1.2 Docência
1.3 arte relacional
1.5 Por uma estética
Mutualista
Módulo 2- Palmares resiste
2.1 Projeto no CAC
2.2 Projeto palmares Resiste
na comunidade da Brasilit
2.3 Metodologia artográica
2.4 Considerações finais
Módulo 3- Memórias de uma
ocupaçao
3.1 Arte Relacional e
Graffiti
3.2 Ataque à fachada
3.3 Arte política de
ataquea propriedade privada
3.4 Memórias de uma ocupação
3.5 Graffiti e as ocupações
4 Conclusão
Pesquisa

Em meus primeiros anos na Academia, achava muito difícil conciliar meu fazer artístico com meu fazer acadêmico, principalmente me adequar às regras tradicionais da ABNT para falar sobre Arte
Relacional, foco de minhas pesquisas. Foi em uma aula de profa. Luciana Borre que conheci a metodologia de pesquisa conhecida como A/r/tografia.

A a/r/tografia é uma forma de ABER sistematizada por Rita Irwin em 2004. É uma pesquisa baseada nas artes que tem como influencia os fundamentos filosóficos do pensamento de Aristóteles, que sao eles:
saber (teoria), fazer (práxis) e poética (poesis) “(Irwin, 2004: 27). Ela traz estes elementos para o campo da pesquisa educacional (ver Dewey, 1934) e expande a pesquisa baseada em artes (ver Eisner, 1979,
1991, Barone & Eisner, 1997) para considerar a metodologia da a/r/tografia para artistas, pesquisadores e professores como uma pesquisa viva. Sobre a nomeclatura, A/R/t/ significam, Artist,
(artista),Researcher (PESQUISADOR),Teacher (PROFESSOR), já a palavra Grafia significa : ESCRITA/REPRESENTAÇÃO .

Dias ( 2013) discursa sobre a inadequação, distanciamento e deslocamento entre a escrita acadêmica e a produção artística, que provocam dificuldades e conflitos entre o corpo discente e docente e
comprometem a qualidade das pesquisas. Também nos alerta sobre a emergência de metodologias e pedagogias que buscam aproximação entre fazer artístico e acadêmico, para desenvolver novas formas de
conhecimento e diminuir os atuais conflitos curriculares.

Ao me deparar com os pensamentos de Belidson Dias, a A/r/tografia me pareceu a melhor opção como pesquisador para registrar o meu acúmulo de conhecimento na área das Artes Visuais.

Sempre me senti dividido, e meu trabalho artístico sempre esteve desvinculado com meu trabalho acadêmico, eram produções totalmente diferentes.
Através do livro de Belidson Dias e Irwin “Pesquisa Educacional Baseada Em Arte: A/r/tografia”(2013), fiquei entusiasmado com as possibilidades de pensar o ser artista/professor/pesquisador.

Parece epifania, pois tudo se relaciona na sua cabeça e você consegue conectar todos os pontos, as teias, como um mapa mental, agora tudo está conectado, foi dado nome aos bois, entendido como um fazer
unificado, onde a Arte não se separa da Vida , e o professor não se separa do artista, que também não se separa do pesquisador.

Deixo como desafio futuro, poder abordar a questão da performance/artista/ pesquisador, pois no campo da Arte Relacional , a Arte se relaciona com a vida e tudo vira uma performance.

Nardim (2014) afirma que o acrônimo A/R/T, fundamenta essa abordagem e propõe como exercício inicial a substituição da letra A, que corresponde ao Artista (visual), pela letra P, de Performer, que
resulta em P/R/T ou, em português, PPP – que, por sua vez, propõe a Pppgrafia. Neste sentido, qual será a natureza do performer-pesquisador-professor, o que é preciso para que ele emerja e como poderá
ele operar?

Para que a práticas dos Performers/pesquisadores/ professores possam aproximar-se da A/r/tografia, assumindo assim como ela, seu espaço na academia contemporânea, talvez caiba elaborar formas de
escrita condizentes com sua matéria, “[...] uma escrita performativa como uma estratégia de representação poética, que tem uma vez mais transformado aquilo que entendemos e desenvolvemos como
performance” (PINEAU, 2010, p. 90).
Docência

No meu caminho de formação enquanto, artista, professor e pesquisador, encontrei certas linhas de raciocínio que me guiam, são para mim princípios, ou seja, o que serve de base
para alguma causa, raiz ou razão.

Me encontro, no que diz respeito ao campo da docência, alinhado com as idéias de Paulo Freire em relação a Educação Libertadora.

“A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.” (FREIRE,
1983b, p. 104).

A pedagogia construtivista de Paulo Freire mudou a forma de pensar o ensino no Brasil em todas as áreas do conhecimento, e na Arte não poderia ser diferente, inclusive, a meu ver,
é nela que se encontra sua maior potencialidade. Podemos começar falando de Ana Mae Barbosa, que foi aluna de Freire e foi fortemente influenciada por ele, inclusive no
desenvolvimento da famosa Abordagem Triangular, que consiste no aprendizado de três pilares: Leitura de imagens, fazer artístico e contextualizaçao (histórica,antropológica,
psicológica, social). Nesta obra em questão, o foco é apresentar a potência da educação como práxis no campo da Arte Revolucionária.

Em sua obra Pedagogia da Esperança, Paulo Freire (1997), discursa que a Educação tem que estar aliada à transformação social, pois a aprendizagem está diretamente relacionada à
práxis, pois o indivíduo oprimido ter consciência de sua opressão não o liberta, ele precisa se engajar na luta política e intervir na realidade para tentar mudá-la. Outro fator
importante abordado em sua obra Pedagogia do Oprimido (1981), é pensar que a Educação não se faz somente na escola e que as diversas relações dos seres humanos entre si e o meio
também são processos educativos.

Neste sentido, muitos artistas da pós-modernidade tratam a performance de rua como um processo educativo no qual o performer educa o público e se educa ao mesmo tempo, num
instante onde corpos estão se educando no mesmo espaço. André Mesquita discorre sobre sobre a educação do corpo quando participa de uma ação direta no livro A batalha do
Vivo: “A única estratégia para confrontar a polícia e ocupar um espaço é o próprio corpo. E aí você descobre que seu corpo pode fazer muito mais do que você imagina. Fazer uma
ação direta nada mais é do que dar corpo ao sentimento e isso tem uma transformação brutal, é por isso que o corpo já não é mais aquele” (2016, p. 65).
arte relacional

No que diz respeito ao campo da Arte, direciono minhas práticas ao campo da Arte Relacional engajada.

O que chamamos de arte relacional, é uma corrente artística que começa nos anos 90 e se caracteriza por dar uma maior importância às relações que se estabelecem entre e com os sujeitos a quem se dirige a
dinâmica artística que ao objeto artístico em si. O Termo " Relacional " surge por causa do livro lançado pelo curador Nicolas Bourriaud em 1998, A estética Relacional (Esthétique relationnelle) , onde
ele sistematizou praticas artística similarres que vinham acontecentdo na década de 90.

É uma arte conceitual, onde o grande objeto de estudo são as relações pessoais construídas a partir da produção artística. O objeto final ou os objetos usados durante a obra não são de grande
importância, o valor da obra está no processo.

“Nas exposições internacionais, vemos uma quantidade crescente de estandes que oferecem vários serviços, obras que propõem ao observador um contrato específico, modelos de socialidade mais ou menos
concretos. A "participação" do espectador, teorizada pelos happenings e pelas performances Fluxus, tornou-se uma constante na prática artística.[...] esses elementos apenas corroboram uma evolução que
ultrapassa largamente o domínio exclusivo da arte: é no conjunto dos vetores de comunicação que o grau de interatividade é ampliado. Por outro lado, o surgimento de novas técnicas, como a internet e a
multimídia, indica um desejo coletivo de criar novos espaços de convívio e de inaugurar novos tipos de contato com o objeto cultural: assim, à "sociedade do espetáculo" se seguiria a sociedade dos
figurantes, na qual cada um encontraria, em canais de comunicação mais ou menos truncados, a ilusão de uma democracia interativa…"( BOURRIAUD, 1998 , pg.12)

Para mim é muito importante pesquisar que tipo de encontros estamos proporcionando, pois as relações pessoais geralmente criadas pela nossa sociedade são políticas, estéticas e pré-fabricadas, como
afirma Guy Debord (1931 - 1994) em A Sociedade do Espetáculo (1967). Prefiro criar experiencias relacionais que sirvam como macro e micro políticas ao mesmo tempo, já que são indissociáveis uma da outra.
Gilles Deleuze (1925 - 1995) salienta que apesar de serem conceitos distintos macropolítica e micropolítica pertencem ao mesmo conjunto, ou seja, tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo
macropolítica e micropolítica (1996).

Segundo Guy Debord (1967) o espetáculo não é um acúmulo de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizadas por imagens.

"O espetáculo é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente [...] ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e no seu corolário - o consumo."

Debord nos lembra que os projetos de espaços relacionais e a construção das cidades modernas, são um grande acúmulo de espetáculos, criados para transformar os cidadãos em platéia, passiva e nunca
palco. Estes espetáculos são criados para vender mercadorias e proporcionar um tipo de lazer fabricado, direcionado, onde a finalidade das relações sociais nestes espaços é vender. A base da estética que
o sistema impõe e vende é o American Dream. Debord faz um aprofundamento na ideia de fetichismo da mercadoria de Karl Marx (1818 - 1883), trazendo este conceito para a sociedade atual.
É muito importante lembrar que os movimentos políticos de extrema direita também criam espetáculos à parte do sistema. Criam espaços relacionais micro e macro políticos para espalhar o
fascismo através da Arte. Criam-se eventos (principalmente na Internet) onde a qualidade das relações pessoais fazem fluir ideias reacionários nos participantes

O Neoliberalismo cooptou grande parte dos pensadores da pós-modernidade, visando dar liberdades no campo das opressões para amenizar a luta de classes, incentivando a descrença na
macropolítica e dando pequenas liberdades no campo micropolítico.

Segundo Freire:

“A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade
social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim
do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o
educando a esta realidade que não pode ser mudada. O que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto
aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente” ( FREIRE, 1998, pg. 11).

Uma coisa que aprendi nos anos de militância é que espaços de poder não ficam vazios, sempre alguém os ocupa. Incentivando artistas a se preocuparem somente com as micro políticas e
questões de opressão e descredibilizando a organização político partidária, o neoliberalismo abre espaço para a extrema direita ocupar cada vez mais este espaço

Através da Internet, a extrema direita cria o personagem Jair Bolsonaro, lhe atribuiu estética e, este por sua vez, vive de criar espetáculos e divulgá los massivamente pelas redes sociais,
desde fazer posição de marinheiro com os militares, fazer arminhas na mão junto com uma criança no colo, motociatas, saltar de barco e nadar até a praia. Estes espetáculos criam
interações sociais relacionais e despertam o efeito manada nos participantes. Muito parecido com atos performáticos de Benito Mussolini (1883 - 1945). Tudo é construído ao mesmo tempo,
macro e micro, e a macro política sempre subjuga a micro, não importa quanto avanço se teve na esfera micro, a macro pode fazer tudo retroceder, desaparecer. E ai nos veremos então em um
estado totalitário fascista/nazista, Bau Haus que os diga.

Deleuze e Guattari nos alerta sobre este fenômeno:

“O conceito de Estado totalitário só vale para uma escala macro política, para uma segmentaridade dura e para um modo especial de totalização e centralização. Mas o fascismo é
inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado nacionalsocialista” (DELEUZE, GUATTARI, 1996, p. 84).
Como artista meus trabalhos de arte relacional devem ajudar a desenvolver maior consciência social e ajudar a despertar este corpo que está parado em estado de morto-
vivo, enchendo-o de vida através de um vírus capaz de produzir um apocalipse Zumbi ao contrário.
O grupo Contrafilé chamou de apocalipse ao contrário, o efeito viral que as ocupações secundaristas tiveram em 2016, quando os corpos que estavam parados, como mortos-
vivos ou como gado, se encheram de vida e esperança para criar uma insurreição das crianças. A batalha do vivo! Eles se basearam em uma revista em quadrinhos feita pelo
Centro de Controle e Prevenção de Doenças Norte-Americano, sobre estar preparados para um apocalipse Zumbi, para criar esta estética do apocalipse Zumbi ao contrário.
Segundo eles:
“Em 2012 o Center for Disease Control norte-americano distribuiu para variar um pouco, uma história em quadrinhos, seu título: Preparedness 101: Zombie Apocalypse. A ideia é
simples: a população deve estar pronta para qualquer eventualidade, uma catástrofe nuclear ou natural, uma avaria generalizada do sistema ou uma insurreição. O documento
terminava assim: se vocês estão preparados para um apocalipse Zumbi, é porque estão prontos para qualquer situação de emergência. A figura do zumbi provem da cultura
haitiana e no cinema norte-americano, as massas revoltadas de zumbis servem cronicamente de alegoria à ameaça de uma insurreiçao generalizada do proletariado negro.
Portanto, até mesmo para isso tem que se estar preparado.(Contrafilé, 2016, pg.59)
A iconografia que relaciona o zumbi ao proletariado negro é racista, pois tras o preconceito com a cultura vudu , e outras de matriz africana., muito semehante ao que fazem
quando relacionam praticas africanas com satanismo e genealizam todos os praticantes numa figura construida no imagináriopopular, que seria o" Macumbeiro"( termo
perjorativo e racista).
Suely Rolnik complementa dizendo que “o corpo antes das ocupações parecia mesmo um morto-vivo, só seguindo o que mandam, e de repente o corpo acorda, tá vivo e toma vida
em mãos , aí você passa a ter a sensação que seu corpo existe, de que o espaço é teu e isso mexe com muita coisa na história do Brasil, mexe com uma tradição parada”.( ROLINK,
2016, pg.57)
Neste trabalho de conclusão de curso, apresento a estética que irei chamar de mutualista, termo que nasce da Biologia, que serve para descrever bem as relações que foram
criadas dentro do projeto Palmares resiste e da PDU Crew.
Neste Trabalho pretendo apresentar como a arte relacional dentro do grupo palmares resiste e da PDU Crew contribuiu na ampliação da consciência e da "instiga" necessária
para lutar com seus corpos contra o sistema vigente em suas múltiplas formas, tendo no fazer artístico uma relação vital entre Arte e Política.
Trago como referência para esta pesquisa alguns conceitos trabalhados no livro A Batalha do Vivo, onde o grupo Contrafilé mostra como os jovens secundaristas de São
Paulo desenvolveram a instiga para participar das ocupações e como consequência disso, ampliaram a consciência política,

Analisando a obra, penso que a instiga que se desperta nos participantes é causada por dois motivos: a contaminação viral do apocalipse Zumbi ao contrário e da ideia de que a
tribo acaba com o medo.
1 - Apocalipse Zumbi
O apocalipse Zumbi é similar à disseminação de um vírus. No mundo da Internet várias ações, videos, imagen, se tornam “virais” e as vezes estas ações podem ser subversivas, como
é o caso das ocupações secundaristas que viralizaram e deram início a um grande levante da Educação contra o
governo de Michel Temer, que chegou até as Universidades. Ficou viral o ato de ocupar e isso certamente foi um fator que criou a instiga necessária.

2- A Tribo acaba com o Medo


A Cultura Popular gera tribos, segundo o conceito do sociólogo francês Michel Maffesoli (1985), podemos pensar nas tribos urbanas como forma de classificar
grupos de pessoas que se unem com base em interesses em comum, hábitos, ideias similares, maneiras de se vestir ou mesmo gosto musical semelhante.

O livro A Batalha do Vivo(2016) traz a ideia de que você perde o medo de enfrentar o sistema quando você está em grupo, (a Tribo acaba com o medo). Você ganha
força e coragem quando vê o grupo se insurgindo, e a partir disso a instiga de continuar lutando tende a crescer. O grupo te faz sentir vivo, pois depois de
experienciar ações diretas, se descobre capaz de coisas que ele nem sabia antes que podia fazer, e isso tem uma mudança brusca neste corpo que se sentia morto
e agora ganha vida. Segundo Suely Rolnik (2016) quem não prefere estar vivo? Na hora que vê um, dois,três, você tem força para ir.
Como complemento, penso que o campo da Arte Popular também traz um conceito fundamental para esta pesquisa, que é a noção de pertencimento.
É muito importante destacar a ideia de pertencimento, a um grupo ou causa, pois o ser humano normalmente busca pertencer a algo.
Baumeister e Leary (1995) definem o conceito de Pertencimento como uma motivação que os seres humanos têm para procurar e manter laços sociais profundos e
positivos. Dessa maneira, eles se referem não só à necessidade de estar inserido em um grupo, mas à qualidade dos laços estabelecidos com outros indivíduos.
Quando se está inserido em um grupo cultural que usa da cultura como forma de luta e resistência, a ideia de contribuir com sua arte, junto com o coletivo como
forma de protesto é um meio de gerar a instiga e despertar a consciência política dos participantes, o Artivismo!
Quando um grupo cultural propõe gerar relações pessoais engajadas através da politização da arte, ele ajuda a despertar a consciência política nos
participantes, que se utilizam dela como um grito contra o Sistema.
Se pensarmos as diferentes tribos sociais que existem dentro da UFPE, os ataques pós-golpe foram tão duros que forçaram as tribos a se juntar
para continuar sobrevivendo ali. Assim como em outras espécies, cada pessoa de uma tribo tem suas habilidades individuais, características
distintas e poder econômicos distintos, e a partir do momento que se juntam, se forma um sistema de entidade mútua. Geralmente, espécies
diferentes se juntam na natureza porque suas habilidades distintas os fortalecem perante os desafios de viver na selva.
Por uma Estética Mutualista.

ECOLOGIA
Associação entre dois seres vivos, na qual ambos são beneficiados, resultando freq. em dependência mútua.

JURÍDICO (TERMO)

Sistema que se baseia na entidade mútua, na contribuição de todos para benefício individual de cada um dos contribuintes

A violência brutal a qual os corpos estão submetidos desde muito cedo, desde antes de nascerem, corpos sempre suspeitos, mal vistos, anormais, errados, aquilo que carregam de
força, sua potência de produzir sentido, de trazer o novo, o nascente, a vida afinal... se torna invisível, é ocultada por essa voz hegemônica e normativa que blinda os corpos de se
perceberem eles mesmos consciência, puro pensamento e vida, outra vida …. Aquilo que parecia suspeito foi nomeado, entendido. Não era mais um corpo dócil, indiferente e
desencarnado que ditava o movimento. Corpos sensíveis, afetivos em pé criam um novo chão para pisar.
( Coletivo Contra- Filé, 2016, pg.51)
Na natureza vários seres vivos se associam por dependência mútua. Nós estudantes da Universidade Federal de Pernambuco nos vemos na mesma situação. Nesta selva de pedra
brutalista, somos espreitados e atacados a todo momento pelos governos reacionários que vieram após o golpe, ameaçando nossa permanência na Universidade, com ataques
brutais à Educação e ao Funcionalismo Público.
É duro viver na Natureza. É melhor se associar para tentar sobreviver, do que enfrentar as dificuldades sozinhos. O ecossistema da UFPE é dividido entre a selva de pedra e o
cercadinho, dois lados não tão distantes da mesma moeda.
Nesta selva de pedra, estes corpos precarizados, diferentes, se unem para sobreviver. Todos em unidade contra os ataques dos ratos, dos porcos e do vampirão.
Do outro lado da cerca, onde as associações entre seres vivos se dá através do comportamento de manada, o gado só observa distante, pensando estar alheio aos acontecimentos
da selva, pois está no cercadinho bem cuidado e alimentado, porém quando começou a ver o preço do capim meio que sentiu o cercadinho se fechando.
Na selva de Pedra, encontrei bichos de mangue, se aventurando em novos ecossistemas, tentando sair da lama.
Lá eu vi caranguejos, guaiamuns e siris de mangue criarem coletivos, usando a Arte como espaço de compartilhar as dificuldades e dores da vida. Lá eu vi no balanço e no remelexo
o tal do siri derrubar caranguejo.
ARTE RELACIONAL ATRAVÉS DA CAPOEIRA

“ Cabe ao artista a tarefa de “devolver concretude ao que se furta à nossa vida”. (Bourriaud, 2009, p.31)

Com 500 anos de história de escravidão, o índio e o negro nunca foram vistos de forma diferente pela classe dominante. Mesmo com o fim da escravidão oficial, eles nunca tiveram
direito a nenhuma indenização do estado e foram largados a própria sorte sem condições de ter educação e empregos dignos, sendo forçados a viver nas zonas periféricas das
cidades, nascendo assim as primeiras favelas.
O governo brasileiro tendo como meta pós escravidão embranquecer o país, trouxe imigrantes da Europa para trabalhar de forma assalariada, nos mesmos empregos que os
negros exerciam como escravos, deixando milhares de negros desempregados, sendo forçados a viver na marginalidade *. A sociedade brasileira é fruto destas mazelas e o
problema do racismo ainda é muito grande. Todo camburão da polícia tem um pouco de navio negreiro. A população ainda é escravizada, só que por um novo tipo de sistema. Muitas
das pessoas nascidas nas comunidades não conhecem seu passado histórico e estão fadadas a repeti-lo.
Num mundo cada vez mais globalizado e dominado pela lógica capitalista, que transforma o modo de viver em um produto, as culturas que pregam a libertação dessa escravidão são
cada vez mais engolidas pela cultura da industrialização do pensamento.
A história da Humanidade é a história da luta de classes, e por este motivo criei o projeto Palmares Resiste, que tem sedes na comunidade da Brasilit e no Centro de Artes e
Comunicação - CAC/UFPE.
. A Arte tem o poder de transformar a vida das pessoas, como transformou a minha. Graças a meu mestre de capoeira José Eduardo e meus pais (também capoeiras), pude perceber
que a Arte sempre trouxe força aos nossos antepassados para prosseguir na luta. Se Clara Nunes cantou que o povo desta terra, quando pode cantar canta de dor, espero que
nossos cantos de agora possam reacender a chama de esperança de um mundo novo, através da Arte e da solidariedade.,
A Arte e a Revolução sempre fizeram parte da minha trajetória de vida, ora mais próxima, ora mais distante uma da outra. A Arte por si só não me diz nada. Não faz mais sentido
para mim uma arte individual, ou uma arte só minha. Assim como a Revolução, só faz sentido se for feita em coletivo. A descoberta da Arte Relacional voltada para a mudança
social, mudou minhas perspectivas sobre as possibilidades da Revolução e da Arte andarem de mãos dadas. Acredito que hoje elas já estão se beijando.
A nossa sociedade precisa urgentemente de uma completa refundação estética e econômica, em vista que os modelos vigentes estão favorecendo uma minoria de pessoas e matando a
maioria. Arte relacional é educação, e como diz meu camarada barbudo, a educação muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo. É importante conscientizar a sociedade que os
princípios moralistas das Igrejas em geral é uma parede velha caindo aos pedaços e que o tal do neoliberalismo está transformando o modo de viver e as afetividades entre
pessoas em um produto. Acredito que a arte relacional pode quebrar paradigmas estéticos e políticos, visando relações mais humanas como dizia o mal interpretado menino do
Novo Evangelho.
O presente trabalho é importante para a Academia, no que diz respeito as mais recentes discussões sobre arte relacional e política nos dois encontros da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes
Plásticas - AMPAP (25° e 26° encontros), onde somente 03 trabalhos abordam diretamente a Arte Relacional e militância política, e somente 01 que se reivindique Arte Relacional atrelada à causa. O
artigo A Revolução Artística do Morrinho: Invenções, Memória e Fabulações Urgentes de uma Terra Relacional de Alexandre Guimarães, trabalha com a Arte Relacional diretamente ligada à militância na
favela Pereira da Silva, na zona sul do Rio de Janeiro. Ele contribui com a perspectiva de que a grande obra de arte está nas relações sociais com os moradores da comunidade visando a transformação
social do indivíduo, principalmente para não acabar na mão do tráfico que é o ponto forte dentro desta comunidade.
No que se diz respeito aos outros 02 trabalhos que discutem diretamente a Política na Arte Contemporânea, o trabalho Ações Artísticas Micropolíticas na Sociedade Moderna, de Guilhermina Pereira da
Silva, o foco é a Arte de Gênero, mas que foge à minha linha de pesquisa, e no que se diz respeito a ações políticas, vejo um pessimismo em relação a macropolítica e uma caracterização muito pobre e
limitada sobre o modelo econômico socialista, onde J. Stalin (1878 – 1953) se torna sua referência neste modelo, ele que foi incansavelmente usado como propaganda norte-americana contra a ideologia de
K. Marx.
Já no artigo de Ana Reis, sobre as ocupações e o ato em Brasília contra a PEC 55, é de extrema importância na construção da minha pesquisa, uma vez que discuto a importância que a Arte Relacional teve
dentro da ocupação do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE. Reis traz uma perspectiva sobre a ocupação através do campo da Performance, e quanto a mim, através da Arte Relacional. Sua visão
sobre a militância através da Arte é de extrema lucidez e acaba sendo geralmente ligado aos princípios que defendo através do Artivismo Relacional

Projeto Palmares Resiste


Palmares Resiste foi um projeto que teve como objetivo trabalhar com alunos de diversas faixas etárias, através do desenvolvimento da metodologia Artográfica, os conceitos de Arte Relacional ou
contextual. O projeto pretende através do rito da Capoeira propor as relações humanas como uma obra de arte, tendo no fazer artístico uma relação vital entre Arte e Política. Trabalhou dentro da UFPE
e do bairro da Brasilit, os conhecimentos e práticas da Capoeira, interagindo com a realidade destas comunidades. Os alunos tiveram como práticas artísticas visuais a confecção de todos os instrumentos
da capoeira com material reciclável, a produção do seu abadá completo a partir do processo de stencil ou serigrafia e produções de suporte livre, proporcionando a estética visual do projeto. As aulas
foram práticas e teóricas.
O projeto propôs a manter vivo a tradição da cultura de resistência negra da Capoeira, que nasceu com o sonho de liberdade da escravidão, que se mantém até hoje na nossa sociedade, através da
escravidão assalariada, que agora atinge muito mais pessoas de diversas origens, porém a grande maioria ainda é de pessoas negras vivendo em tal estado. Quem se conecta com a ancestralidade tem
capacidade de moldar um futuro melhor através da cultura, educação e luta. Para Madalena Zaccara"
, “O trabalho da arte, nas suas novas formas, ultrapassa a antiga produção de objetos destinados a serem vistos e consumidos e investe em novos horizontes que funcionam ora como mapas que orientam seu
movimento, ora como motor de um desejo de caminhar novamente em busca de um ideal. A liberdade conceitual, imaginativa e perceptiva das práticas artísticas que envolvem a política pode abrigar um sonho
para além das servidões e uma promessa de reconciliação com o humano em sua expressão maior. Sua proposta encontra-se para além das múltiplas grades com as quais o capital burocratiza e regula a arte
incidindo em sua produção” (ZACCARA,2016,pg.79).
Com aulas teóricas e práticas ajudou a difundir a história e filosofia da capoeira que se conecta diretamente com a realidade dos jovens das comunidades da Várzea e Brasilit que são os herdeiros desta
história que vem se perdendo a cada dia pelo pensamento neoliberal e o consumismo que vem sendo implantado na cultura das periferias. O projeto propôs despertar o senso crítico e a criação artística
como ferramentas poderosas na transformação da realidade através de experiências com Música, Dança e Artes Visuais Integradas. A proposta final foi proporcionar a interação do indivíduo com sua
comunidade a partir dos fundamentos filosóficos da Capoeira, que ele deverá difundir através de diversos suportes para dentro de sua comunidade como forma de Arte/Educação.
O projeto dentro do CAC teve a participação de cerca de 12 alunos, com encontros semanais em dois dias da semana(terça e quinta), que durou cerca de 02 anos( de 2015 a 2017). Já o projeto na comunidade
da Brasilit durou apenas 06 meses ( de fevereiro a agosto de 2017)
Conteúdo:
Foram trabalhados 11 tópicos durante o projeto que são:
1 História da Origem da Capoeira
Aula sobre as origens da Capoeira
2 Pensamentos Filosóficos
Aula sobre os fundamentos filosóficos da Capoeira
3 História de Palmares
Aula sobre a origem do Quilombo dos Palmares
4 Musicalidades da Capoeira
Aula sobre a teoria musical da Capoeira
5 Confecção de Materiais
Confecção dos instrumentos e abadás
6 Movimentos Básicos de Capoeira
Aula de golpes de Capoeira
7 Compreensão do rito da Capoeira
Aula sobre o conceito de rito aplicado na Capoeira
8 Rodas Treino
Rodas durante os treinos de movimentos
9 Rodas de Intercâmbio
Rodas com diversos grupos de capoeira da região
RELATÓRIO DE ATIVIDADES REALIZADAS NO PALMARES RESISTE
Apresentação do Projeto e Exercício de Roda de Conhecimento
Foi apresentado a relação da Arte Relacional e Capoeira e todo o projeto de atividades para os participantes. Depois foi feito um exercício de reconhecimento do outro, que
consistia em ficar de frente ao colega ao lado e em silêncio observar o outro e tentar adivinhar 5 coisas em relação ao outro somente a julgar pelo olhar.
Diário ou Caderno de Artista
Na relação da Arte e Vida, estes cadernos foram relatos livres sobre pensamentos a respeito da Capoeira e da relação com sua vida, a serem entregue ou não ao final do estágio.
Serviu como suporte para as outras atividades do estágio. Nenhum aluno quis devolver o caderno, e ele não foi escrito ou houve intervenção, limitou-se a somente fazer os exercícios
propostos nele. Não foi muito eficaz. Porém foram escritos relatos bonitos neles.
Árvore Escola e a Batalha do Vivo
Foi apresentado o conceito de Árvore Escola e Resistência através de um trecho do livro A Batalha do Vivo. Livro sobre as ocupações secundaristas em São Paulo em 2015. A atividade
terminou com uma roda de debate sobre a Árvore Escola e a ancestralidade negra através do Baobá, Árvore Escola mais antiga e presente na cultura africana que chegou ao Brasil.
Foi proposto como atividade extraclasse, a utilização dos cadernos de artista/diário para escrever alguma história que aquela pessoa teria vivido em baixo de uma árvore.
Produção da Camisa em Stencil
Técnica de Stencil para substituir a serigrafia, para a produção do próprio uniforme da capoeira. Foi trabalhada somente as camisetas, evitando colocar a logo no calção.
Instrumentos Recicláveis
Foram fabricados todos os instrumentos de capoeira recicláveis e pintados também. São eles 03 Berimbaus, 01 Atabaque, 01 Pandeiro, 01 Reco-Reco e 01 Agogô.
Carta para um Amigo
Foi proposto que se fizesse uma carta a algum amigo de capoeiragem que esta pessoa tenha, e que não o vê há muito tempo. Pouco eficaz, as pessoas não se sentiram confortáveis em
compartilhar em roda, porém foram belas cartas.
Performance: Roda da Capoeira Reciclável
Roda de capoeira realizada com os uniformes e instrumentos produzidos em sala criando a performance.

Projeto no Centro de Artes e Comunicação – CAC/UFPE

O projeto teve início em 2015, dentro do Centro de Artes e Comunicação – CAC/UFPE como atividade de extensão do Diretório Acadêmico de
Artes Visuais e terminou no final de 2017. O projeto envolveu alunos de diversos Centros e um homem da comunidade, que é uma pessoa de necessidades especiais.
Projeto Palmares Resiste no CAC/UFPE, 2015.
Os alunos tiveram aulas
práticas de Capoeira e
aulas relacionando a
Capoeira com outras
artes, por exemplo, com a
produção dos seus
próprios uniformes a
partir da técnica de
stencil. As experiências de
produção fortaleceram as
relações entre os alunos,e
melhorou o trabalho em
Produção dos Uniformes com Stencil, 2015.
equipe.
A produção de stencil é uma forma de relacionar o aluno com a ideia de grupo, unidade, onde todos carregam o mesmo símbolo
e que esta ação micropolítica cria imediatamente uma resposta macropolítica, onde este símbolo do grupo reverbera
reivindicações de mais grupos de pessoas com quem não temos relações, e viram desejos comum entre diversos grupos de
micropolíticas. Principalmente porquê nosso grupo explicita o símbolo do comunismo em seu uniforme. É importante salientar
que apesar de serem conceitos distintos macropolítica e micropolítica pertencem ao mesmo conjunto, ou seja, tudo é político,
mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica (DELEUZE, GUATTARI. 1996, p. 83)

Através das aulas teóricas se trabalhou o papel do capoeira e do negro na sociedade, a escravidão moderna, os aparelhos
ideológicos do estado, o esvaziamento da cultura de resistência, o racismo, a arte educação, o papel de militância do
educador, a necessidade de continuar lutando para se libertar, entre outros assuntos não menos importantes. Foi
apresentada a proposta de trabalhar a arte educação através das músicas, que tem grande força dentro da capoeira na hora
de educar. A música entra na cabeça muito mais fácil do que textos e sermões. De fato, historicamente os mestres se valem das
músicas para passar seus ensinamentos. Foi pedido aos alunos que escrevessem suas próprias músicas que reflitam o aprendido
nas aulas teóricas e que fosse levado ao grupo para ser tocado por todos os integrantes. Abaixo, uma música de capoeira
composta pelo aluno Theo Rabay Coutinho.
“ Eu estava no Estelita,
com minha barraquinha,
sonhando que o choque viria chocar na calada da
noite.
Fui preparar uma sopa, mas tava sem tempero,
e a polícia veio me ajudar e jogou, pimenta no
meu rosto inteiro.
( Refrão)
Me diga Polícia me diga, de que lado você luta ?
Me diga Polícia me diga, de que lado você luta?
Você luta pelo pobre?
HaHaHa!
Você luta é pelo rico
Oiaia
Camara...”
“ As cantigas de capoeira fornecem valiosos elementos, para o estudo da vida brasileira, em suas várias
manifestações, os quais podem ser examinados sob o ponto de vista linguístico, folclórico, etnográfico e
sócio-histórico” (Waldeloir Rego, Capoeira Angola: Ensaio Sócio-Etnográfico,1968, p. 126).
Observei que as músicas criadas geraram muito impacto sobre os praticantes pois muitos na hora da roda sabiam
cantar as músicas dos outros sem ao menos ter tentado decorar, somente compreendendo as mensagens, e tocada
repetidas várias vezes ajuda a fixar na cabeça. Também foi observado que depois dos treinos ou em outros
momentos de interação fora do projeto, os alunos cantarolavam as músicas, o que mostra a fixação da ideia na
cabeça.
O projeto proporcionou também aos alunos a interação com os vários mestres da Várzea, onde aconteceram rodas
de capoeira unificada com estes mestres e rodas de debate. Os alunos foram levados até as academias dos mestres e
também receberam os mestres na sede do projeto no CAC/UFPE.
RODA DE CAPOEIRA COM OS MESTRES JUNIOR E JORGE NO CAC/UFPE, 2017.
No que compete o grande objetivo do projeto que é
propor as relações humanas com a grande obra de arte
neste projeto relacional, a roda de capoeira no
CAC/UFPE com os mestres Júnior e Jorge nos mostrou
como as relações com as pessoas criam teias de amizades.
Depois de visitar as academias dos mestres, fui criado
grandes laços de amizade entre os grupos deles e o
projeto, tanto que agora são feitos vários projetos em
parceria com os mestres. No Dia da Consciência Negra
(2017) foi realizado no CAC/UFPE uma roda com 4 grupos
de capoeira pelo projeto Palmares Resiste onde também
se debateu sobre a consciência negra com os mestres
antes da roda.
Roda de Capoeira no CAC/UFPE, 2017
Projeto Palmares
Resiste na Comunidade
da Brasilit

Estete projeto tinha como


objetivo se inserir nas
comunidades, onde se encontra a
maior parte do povo que é
escravizado pelo capital, e por
este motivo, a Comunidade da
Brasilit parecia o lugar perfeito,
pois era onde eu morava

Projeto na Comunidade da Brasilit, 2017


É muito importante trabalhar com estas pessoas a consciência de classe, pois os jovens de comunidades carentes são
frutos deste passado e, podendo compreender suas origens e a luta de resistência da cultura negra, podem contribuir
para o avanço da educação como forma de emancipação. Assim como diz Mestre Cobra na música Apartheid: “Se isso que é
a liberdade foi a maneira de dizer, ah eu agora sou escravo de um novo tipo de poder câmara! ” O projeto é realizado na
frente da minha casa no bairro da Brasilit, e agrega crianças e jovens da comunidade.
Os alunos também aprenderam a reciclar, ultilizando materiais recicláveis para a produçao de instrumentos de
capoeira e stencil para as camisas do grupo. Reciclar é reinventar, e como os instrumentos são muito caros, impedem a
acessibilidade dos mais carentes a compra e dos mesmos. Os instrumentos recicláveis são ótimos para aprender a tocar,
pois são mais leves e fáceis de consertar e muito mais acessíveis.
A relação com o reciclável é fundamental na formatação do ambiente criado, principalmente onde a produção do lixo
da comunidade consigue ser reutilizado de forma sustentável, isso me lembra a produção do Morrinho, na favela do
Pereira, no Rio de Janeiro. Onde o reciclar para construir uma maquete, faz os moradores se conectarem mais com sua
história e observar que o passado se faz presente de uma forma mais sustentável. "Em todos seus trânsitos e hibridações,
envolvendo as noções de Tradição e Modernidade, Centro e Periferia, abrangendo os domínios de Local e Global, o
Morrinho,parece ser um bom exemplo da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud." (GUIMARÃES, 2016).
Camisa e
Instrumentos
Recicláveis, 2017.
A reciclagem pode ser de diversos tipos, e neste projeto a reciclagem também é política e social , pois temos que reciclar também o modo de se viver e de como lutar para organizar nossa sociedade.
Talvez essa seja a reciclagem mais importante e mais e das mais emergenciais, pois é esse povo que nasce criado dentro do lixo é quem está morrendo todos os dias nos guetos de pobreza, que são a
margem da sociedade dita organizada. Segundo Juarez de Freitas (2012, p.56) existem cinco tipos de reciclagem : ambiental, econômica, social, ética e jurídico-política.

Metodologia Artográfica

Através da metodologia Artográfica, o projeto pesquisa sobre os impactos que vivenciar uma cultura de resistência negra gera na vida dos alunos, que através dela serão instigados a buscar uma
identidade, baseada nas suas raízes e na busca de um novo ideal emancipador. A Capoeira por proporcionar brincadeiras em roda é um ótimo espaço de educação e integração social que proporciona no
fazer artístico trabalhar com temas recorrentes a sua realidade de periferia através das letras das músicas e da mística que o ritual proporciona, que é indescritível pois se trata de sentir a
ancestralidade. A criação artística fica pela produção do ritual e dos elementos que compõem ele, como a confecção dos instrumentos e das roupas (Abadá). A parte da docência é feita pelos debates
sobre história e filosofia da Capoeira que acontecem antes da roda e pela parte musical, já que as letras das músicas da Capoeira são utilizadas pelos mestres para ensinarem os mais jovens. A
metodologia Artográfica neste projeto tem como proposta pensar o ensino e à pesquisa em Arte, como eixos de uma proposta de formação, tendo na Arte seu campo de discussão e conhecimento, e que se
pode propor um campo de observação para os comportamentos dos fenômenos sociais e psicológicos, ou seja, através da fusão da criação artística com a aprendizagem, pesquisa e as ciências humanas.
Nesse sentido Dias (2010, p.07), confirma essa discussão quando diz que: Na A/r/tografia saber, fazer e realizar se fundem. Eles se fundem e se dispersam criando uma linguagem mestiça híbrida. Linguagem
das fronteiras da auto-etnografia e de gêneros. O Artógrafo, o praticante da Artografia, integra estes múltiplos e flexíveis papéis nas suas vidas profissionais.
Irwin (2008), concebe a pesquisa em Arte e o seu ensino como atividades que fazem parte de um mesmo tear que se entrelaçam numa trama de similaridades e diferenças.

Hernandez (2008), acredita no equilíbrio entre o paradigma e a imaginação como sendo uma relação essencial para um ego saudável, na construção de uma identidade ponderada da pesquisa.
Essa metodologia pretende ser um estudo sociológico e psicológico com os participantes que desenvolvem afetos durante o processo, assim como repulsas, e a grande aposta está no poder que
socialização e a integração social podem causar na vida deles como fonte de força para continuar lutando contra as adversidades de seu dia a dia, visando construir um futuro melhor.
Em meio a tantos retrocessos, se faz necessário caminhar sem medo pelas incertezas e tentar modificar o micro e o macro. A Arte ainda pode ajudar a construir um mundo melhor longe das amarras da
opressão e da segregação.
“Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo." Para quem é trabalhador nesse país, lutar nunca foi opção, sempre foi a única esperança." (Karen Santos, Câmara Municipal de Porto Alegre, 20 de
novembro, 2017)
Módulo 3
Memórias de uma
Ocupação
ARTE RELACIONAL E GRAFFITE
“Uma parede em branco é um desperdício de ideias”.
Paulo Leminski

Muito já se sabe sobre o papel transgressor do Grafite e da Pichação, principalmente por se tratar de uma arte de rua originária das camadas mais idesfavorecidas de nossa
sociedade, que buscam se expressar através da Street Art. Porém, qual é a relação que podemos fazer entre Grafite/Pichação e a Arte Contemporânea, como um meio eficaz de
denúncia para se pensar a revolução socialista? Qual é o papel do grafiteiro e do pichador nesta luta de classes, travada dentro das cidades através do campo das Artes? Neste
tópico chamado Grafite e Revolução, abordaremos Essas manifestações como o que há de mais contemporâneo na Arte, fazendo um paralelo com a Arte Política da década de 1960 -
1970 e a Arte Relacional a partir da década de 1990.
Para se pensar o Grafite como uma Arte Revolucionária podemos pensar o motivo de sua prática e de sua criação como uma reivindicação de direito à cidade. Segundo Menezes e
Gregori:
O reclame por detrás do pixo e do graffiti – deste último quando realizado sem autorização dos proprietários - é o direito ao acesso à cidade, o direito a condições de
sobrevivência. É o grito da periferia (MENEZES e GREGORI, Letramentos de Reexistência e direito à cidade, 2016, p. 13).
Para entendermos quais foram as motivações para o surgimento do Graffiti, podemos pensar, hora... o Grafite só existe porque existe um muro ou uma parede! Não se pode pensar que
no Bronx/EUA, a galera começou o movimento do Grafite pixando no chão. Podemos pensar nessa relação Grafite muro em duas formas distintas: a primeira é o ataque a propriedade
privada e a segunda, um ataque a fachada. O Grafite está para contestar aquele muro que na realidade tem uma função muito simples, que é a de separar, de proteger um espaço,
separar o arroz e o feijão. Demarcar este espaço que segrega, exclui e privatiza, e aí entramos no conceito de direito à cidade porque o muro, para sua função primordial é
proteger a propriedade privada.
Porém, quando o grafiteiro pinta um muro, ele está atacando a propriedade privada porém, ele não está atacando de forma concreta a derrubar o muro com um martelo ou com a
marreta, ele ataca a fachada, ou seja ,ele rouba a fachada para si, faz a reforma agrária/urbana que não pode fazer na prática derrubando a parede expropriado a fachada. A
fachada é muito importante para o proprietário, pois é ela que expõe a sua posição política . Todo muro ou parede, seja alto, baixo, branco ou colorido, tem uma posição política
expressa nele, e quando se rouba a fachada você está utilizando aquele espaço como sua área de propaganda. Não podemos esquecer que a fachada também é uma propaganda. Neste
ponto, voltamos a falar sobre o direito à cidade, pois quem tem fachada tem direito a propaganda e também tem direito a cidade, podemos pensar que só quem tem espaço para fazer
propaganda são as pessoas que têm dinheiro, que tem poder aquisitivo e consequentemente quem tem propriedades. Segundo Tiburi:
“[...] ser atingido na fachada – seja a imagem pessoal, seja a imagem do muro branco – é ser atingido num direito. A fachada é narcísica como um rosto, como a imagem que alguém tem
de si. O representante original da ideologia do muro branco (e seus apêndices: esposa e filhos) que se irrita quando é atingido na fachada” (2013, p.42).
O Ataque a Fachada
Se pegarmos São Paulo ou as grandes cidades brasileiras como essa, podemos observar que ela é constituída basicamente de estruturas de formas geométricas
quadradas ou retangulares, geralmente da cor cinza ou branco, onde a poluição visual feita pelos anúncios é o que toma espaço nas fachadas e quem anda
pelas cidades são bombardeados a todo instante por esses diversos anúncios ,que através de mensagem subliminar induzem as pessoas a consumirem .
Geralmente os grafiteiros e pichadores não moram no centro ou nas grandes áreas da cidade, sendo reservado a eles o direito de viver nas partes periféricas.
Segundo o conceito de Gentrificação(Karl Marx 1867), essas pessoas de periferia quando estão transitando nesses espaços são coagidas e quase expulsas,
tanto pelas pessoas que as olham, com um olhar diferente muitas vezes racista, quanto pelas autoridades que patrulham estas áreas, que geralmente abordam
esses sujeitos específicos. O conceito de Gentrificação pega emprestado da Biologia o funcionamento dos anticorpos de um sistema que quando um corpo
estranho aparece os glóbulos brancos e as demais estruturas trabalham para expulsar esses corpos estranhos.

Como estes seres periféricos não têm direito a ter seu espaço de propaganda e de anúncio na cidade, eles tomam para si a fachada alheia. Utilizam desses
espaços como forma de protesto, um grito que não poderia ser ouvido de outra forma, eles utilizam estes espaços como local de denúncia, onde todos que
andam pela cidade podem ver essas mensagens. É uma forma de democratizar o direito à propaganda, a voz. Ora, as grandes empresas e corporações não nos
pagam para sermos bombardeados por inúmeras propagandas gratuitas e subliminares todos os dias quando andamos pela cidade. Desta maneira, o grafiteiro e
o pichador utilizam das Artes Visuais através da estética do Grafite e do pixo também como uma forma de divulgar sua arte, e aos olhos dos donos da cidade,
não são bem-vindos tanto pela afronta, quanto pela questão estética que foge ao padrão da estética do capital.

“De um lado, há a postura ideológica do pixador e do grafiteiro, que configura uma postura anárquica, que clama pelo direito à cidade, pelo direito a voz, e
que, ao revirar, remexer e tentar redefinir aquilo que é aceito esteticamente no âmbito urbano tem como resposta a revolta e ódio da sociedade capitalista
[...]É justamente por este fato que culturalmente a sociedade aceita a “poluição” visual urbana que advém das inúmeras propagandas, a exemplo dos letreiros
luminosos, dos outdoors, das placas e fachadas. É a lei do capitalismo” (MENEZES e GREGORI, Letramentos de Reexistência e Direito à Cidade, 2016, p.2)
Arte Política de Ataque a Propriedade Privada

O grande problema dessas intervenções artísticas vem muito de qual classe social elas pertencem, ou seja, quais são as pessoas que a praticam. Na década de 1960 e 1970, com
o avanço da modernidade no campo das Artes, muitos movimentos de arte política se utilizaram dos corpos, seja pela Performance ou Happenings para contestar o modelo de
produção capitalista em um tempo onde a produção artística foi muito politizada. A partir da década de 1990, através da proposta de Estética Relacional de Nicolas
Bourriaud, a pós-modernidade se utilizou de micropolíticas como forma de mudança possível para libertação de corpos presos ao sistema do Capital. Quando coloco o
Grafite e o Pixo como uma Arte Política contemporânea que ataca mais diretamente que as outras o capital, vem pelo fato de atacar o eixo central desse sistema: o muro ,ou
seja ,a demarcação da propriedade privada. Enquanto os movimentos que se originaram na década de 60 70 e 90 se preocuparam com questões que muitas vezes centravam
temas de opressões como racismo, machismo e homofobia, por sua força junto aos protestos ocorridos na época, fizeram o sistema a aceitar aberturas para falar dessas
questões, que hoje sao aceitas pelo Sistema . No que se diz respeito a Economia, ainda não demos sequer um passo para avançar na questão da propriedade privada. O ataque ao
muro é tão perigoso pois é um ataque pacífico, que que não vem como geralmente acontece nos protestos destruindo ou vandalizando os símbolos do Capital, pois a pintura
não deteriora ou inutiliza um muro que ainda mantêm o seu papel de proteger e delimitar um local. Por isso é tão perigoso e por isso as autoridades tiveram que criar leis e
medidas para colocar este ato no nível de vandalismo, pois não se trata de um vandalismo físico, mas sim, um vandalismo moral.
“[...] indo na vértice contrária à proteção constitucional, tem-se a previsão advinda com Lei 9.605/98, alterada pela Lei 12.408/11. Na primeira, conhecida por ser a Lei dos
Crimes Ambientais, segundo a previsão do artigo 163, o picho era punido como dano ao patrimônio, caracterizado pela lesão, destruição ou deterioração da coisa alheia.
(BRASIL, 1998) Contudo, tal tipificação penal necessita de uma análise pormenorizada e atenta, tendo em vista principalmente que os grafismos urbanos não inutilizam o
muro/parede, e os mesmos, após a intervenção gráfica, seguem assumindo o mesmo papel de sempre: proteger ou delimitar um local, um limite. Já na alteração do diploma legal
que se deu em 2011, tem-se a previsão do artigo 65, que tipifica como crime ambiental a prática do picho e do grafite, que são considerados crimes contra o ordenamento
urbano e patrimônio cultural. (BRASIL, 2011)
Esse tipo de atividade que tomou conta rapidamente de todas as cidades do país, causam um grande efeito no público, pois muitas vezes são trabalhos que carregam a estética
do caos, criam um aspecto na sociedade de repulsa com aquele espaço. Geralmente os grupos de Grafite denominados Creew, se organizam para sair pela cidade como forma de
militância para difundir suas crenças e suas raivas, o que faz o ataque ser em grande escala. Segundo Arce: “[...] as sociedades aumentaram seu assombro pela grande
quantidade de palavras de ordem e grafites que povoam as paredes, residências, edifícios ou pontes. Os locais mais inacessíveis foram atingidos pelo bombardeio das latas de
spray e pelas inscrições, nas quais os jovens avalizam sua lealdades e suas adscrições grupais. (ARCE, 1999, p. 122)
Memórias de uma Ocupação
Não se pode apagar dos corações de quem lutou, tudo que foi apagado do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE,
onde as paredes tinham vida e refletiam a luta cotidiana contra a PEC da Morte e os demais ataques vindos de Brasília.
Resistimos com nossos corpos, com nossa arte. Tenttamos fazer revolução e a fizemos através da Arte, do Artivismo! A
luta, assim como a Arte, era relacional e relacionou nosso Centro com nossas lutas. Propomos uma nova arquitetura
para o prédio que tivesse composteiras, banheiros mistos e paredes vivas nas quais refletissem o momento que vivíamos.
Que o CAC fosse um ser vivo também! Pois escola não é prédio e sim força, tudo que pulsa vida é escola!” as paredes que
eram cinzas se tornaram quadros em branco, onde escrevemos a nossa história e pintamos nossos sonhos. Assim como
propõe Carlos Vidal, “[...] uma refundação da linguagem estética que ultrapasse a fatalidade do triunfo da
industrialização do pensamento” (1997).
As marcas de nossa resistência eram tão poderosas que soariam como heresia num mundo pós-ocupação, precisavam
ser apagadas a qualquer custo. A estética do Centro pouco importava, até árvores receberam uma tarja cinza em sua
estrutura... melhor uma mancha cinza disforme do que uma palavra que inspire resistência, pois o CAC é brutal, é
brutalista, construído no auge do regime mais brutal do Brasil e que ainda hoje é brutal com a Arte (CAC é arquitetura
brutalista).
Em meio a tantos problemas, encontramos a força e a coragem de lutar pelo Outro e assim nos fortalecemos, como
pessoas, como militantes, como artistas e como família. Por mais duro que tenha sido o fim, a semente foi plantada! As
relações humanas e os aprendizados nos tornaram mais fortes para as próximas lutas e ampliamos nossos ciclos de
amizades para toda a vida! Um dia nós venceremos pois, segundo G. Deleuze (1999), a Arte é tudo aquilo que resiste.
Graffiti e as Ocupações

Inspirados pelo movimento de ocupações de escolas secundaristas de São Paulo que se inicia em 2015 , e que fez um dos governos mais autoritários do Brasil a recuar, os estudantes
universitários em 2016 ocuparam as Universidades em todo o Brasil contra a PEC 55 e as medidas unilaterais do governo Michel Temer. Foi nesse cenário caótico que surgiu a
ocupação do prédio do Centro de Artes e Comunicação - CAC/UFPE.
O Centro de Artes e Comunicação - CAC tem uma forte relação com o pixo, e é um espaço que sempre permeou a discussão sobre as paredes cinzas, onde na visão de muitos, teriam que
ser preenchidas por pinturas, muralismos ou graffitis. A direção do Centro por sua vez, se basea no discurso que o prédio é tombado .
Por mais que a Instituição tentasse, sempre apareciam pinturas nas paredes e por mais que se gastasse para pintar de cinza. Quando cheguei na Instituição, conheci pessoas do
movimento do Graffiti, que já participavam desta contestação. Foi então que, com mais 03 grafiteiros do Centro que decidimos criar uma Creew de Graffiti dentro da instituição.
Nascia neste momento a PDU Creew.
Quando a ocupação do CAC aconteceu, os membros da PDU se engajaram no movimento, pois era a grande cartada de resistência contra a PEC da Morte, proposta pelo presidente
golpista, o vampirão Michel Temer. No ano da ocupação, a PDU comemorava 02 anos de existência e já contava com mais de 10 membros. Contando com pessoas experientes em
movimento estudantil, a Creew tomou papel de destaque nas ações promovidas pelos ocupantes do Centro, e ao final do Ocupe já tinha praticamente dobrado o número de
integrantes, além de iniciar mais uma dezena no movimento HiP-Hop, seja no graffiti ,no campo dos MCs ou no break. O processo de ocupação também gerou incríveis obras de arte de
graffitis no Centro, que ao fim da ocupação, foram brutalmente apagadas por uma postura ditatorial da Reitoria junto à direção do CAC.
No início da ocupação, era de se perceber que muitos ali estavam participando de sua primeira ocupação, e não entendiam o ritmo e o comprometimento que era necessário ter num
evento daquela magnitude. Como não poderia deixar de ser, a Arte foi o elemento fundamental para a vida daquele Ocupe, afinal era uma ocupação de artistas!!! Ali se reuniram vários
profissionais no campo das Artes, e agora era a hora de fazer a graduação no campo da militância. Muitos ali nunca tinham participado de nenhuma ação direta e o primeiro
fechamento da BR 101 foi sem dúvida a prova de fogo…
André Mesquita discorre sobre sobre a educação do corpo quando participa de uma ação direta no livro A batalha do vivo (2016): “ A única estratégia para confrontar a polícia e
ocupar um espaço é o próprio corpo. E aí você descobre que seu corpo pode fazer muito mais do que você imagina. Fazer uma ação direta nada mais é do que dar corpo ao sentimento e
isso tem uma transformação brutal, é por isso que o corpo já não é mais aquele”.
Nós da PDU Crew propomos a realização de grandes obras coletivas de graffiti como forma de integrar e iniciar no universo do Graffiti nos diversos ocupantes ali presentes, como
forma de resistência viva, marcada nas paredes do CAC.
Painéis coletivos 1 e 2 - CAC., 2016
O segundo painel, realizado logo acima do primeiro, foi feito somente
pelos integrantes da PDU como forma de demarcação de espaço, sendo um
painel de dimensões faraônicas com os dizeres: PDU Creew Resiste. Já que a
estrutura do prédio é imponente, vamos demarcar nosso espaço à altura
da estrutura. Um detalhe importante é que as letras estão pegando fogo,
que simula a situação vivida por todos naquele momento.
O terceiro painel e mais importante, foi o painel intitulado A Favela, e foi
feito em homenagem aos três meninos mortos no Ibura pela polícia de
forma arbitrária e racista.
A Favela, CAC ,2016
A favela foi uma obra de arte relacional que fez muito sucesso na ocupação . A ideia era convidar, enquanto a gente pintava, as pessoas que estavam presentes no espaço para também intervir na obra ,colocar sua
casinha na favela , seu pixo ou o que quisessem integrar ali . A partir daí muitas pessoas participaram , principalmente as que eram de realidade de Periferia, que fizeram questão de colocar seu barraco na favela do CAC. ,
eram pessoas advindas de cotas, beneficiada por bolsas e que sonhavam em completar os seus estudos para mostrar que a universidade também é espaço para favelado .

Eu me lembro que uma das imagens mais marcantes para mim, foi no primeiro dia de aula pós-ocupação, onde a parede tinha sido pintada de cinza e pude observar quatro pessoas olhando para aquela parede e chorando,
pois significava que não era só a favela da parede que estava sendo retirado do CAC, já que o objetivo do governo era retirar os favelados de dentro dela. Parecia que a favela não poderia ter espaço dentro do Centro
de Artes, nem que fosse na parede como representação, era preciso apagar as recordações de que um dia esse espaço não foi ocupado somente por brancos da Elite.
“Mesmo onde a separação dos grupos sociais não aparece de imediato com uma evidência berrante, surgem, ao exame, uma pressão nesse sentido e indícios de segregação. O caso-limite, o último resultado é o gueto.
Observemos que há vários guetos: os dos judeus e os dos negros, mas também os dos intelectuais e operários. A seu modo, os bairros residenciais são guetos; as pessoas de alta posição, devido às rendas ou ao poder, vêm a
se isolar em guetos da riqueza (LEFEBVRE, 2001, p.98.

As ocupações, por mais que não tenham conseguido barrar a PEC 55, deixaram a semente de luta e resistência, e marcou profundamente as pessoas que ali estavam envolvidas, ora marcando sua forma de fazer arte, ora sua
forma de fazer política, ou ampliou e tornou mais fortes os laços de amizades entre os envolvidos, laços que vão se estender para a vida ou para a próxima ocupação, rsrsrsrs, pois a semente foi plantada!

Como objeto de estudo neste caso, a Arte Relacional, foi pensada em propor as relações humanas como a grande obra de arte. As relações construídas foram a grande conquista da PDU dentro desse movimento. Podemos
dizer que dentro dessa ocupação foi criado um grande rizoma que agora permeia por várias direções e que será o grande trunfo para as lutas de resistência que virão no governo de Jair Bolsonaro. Por mais que pareça
que estamos perdendo a batalha, o futuro pode reservar uma grande reviravolta, resultado das imensas conexões que as pessoas que participaram de todas as ocupações vão multiplicar para outras pessoas indignadas
com o futuro. Estes corpos são propícios a resistir e quem sabe até ocupar. O rizoma, por não ser linear, se estende em uma rede de conexões que mesmo quebradas podem se reconectar em forma de resistência num futuro
próximo em que aqueles que hoje foram enganados, se engajem na luta por um futuro melhor e mais justo.
“O rizoma não se fecha sobre si, é aberto para experimentações, é sempre ultrapassado por outras linhas de intensidade que o atravessam. Como um mapa que se espalha em todas as direções, se abre e se fecha, pulsa,
constrói e desconstrói. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades, cria seu ambiente. Se trata de ciência? Isso importa? São apenas agenciamentos, linhas movendo-se em várias direções, escapando
pelos cantos, o desejo segue direções, se esparrama, faz e desfaz alianças. Chame do que quiser então: “riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I).

Como o objetivo desta pesquisa é mostrar como a Arte Relacional contribuiu na ampliação da instiga para as pessoas se rebelarem contra o sistema vigente e ,consequentemente a ampliar sua consciência política,
busquei entrevistar pessoas que participaram da ocupação do CAC, para saber como este episódio influenciou na sua vida e na sua arte pós-ocupação, pois o objetivo final era formar pessoas resistentes e lutadoras. As
entrevistas estao no curta metragem deste TCC, onde os participantes relatam suas experiencias dentro dos projetos aqui apresentados e da ocupaçao.
Deixo aqui o Link para assistir ao Filme " Por Uma estética Mutualista : https://www.youtube.com/watch?v=Pglt8CAIvYM

Obs: Os nomes das pessoas não serão divulgados, com a intenção de proteger a identidade dos ocupantes, estes sendo identificados somente pelo nome de um animal dentro da selva de pedra que é o CAC
Conclusão
Para concluir, temos que observar que tanto o projeto de capoeira Palmares Resiste, quanto o trabalho da PDU dentro da ocupação do Centro de Artes e Comunicação -
CAC/UFPE, mostram que a Arte Relacional, independente de qual for o suporte, seja capoeira ou graffiti, tem o poder de mudar a vida das pessoas, pois ela embaralha a Arte
com a Vida, trabalhando os anseios dos corpos que são dilacerados por uma sociedade doente, pois a Arte Relacional pode ser uma forma de tratamento coletivo, onde
buscamos a força no Outro, onde se constroem afetos e faz com que ninguém queira soltar a mão de ninguém, onde o aprendizado coletivo cria rizomas que, mesmo tendo raízes
quebradas, em algum momento, cria novas relações, e, portanto, outras formas de rizoma. Mais do que tirar força ou instiga para continuar lutando pela Arte, é tirar essa
força do Outro.

“Cada vez que há ruptura no rizoma as linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas estas linhas de fuga são parte do rizoma: as linhas não param de remeter umas às
outras. Traça-se uma linha de fuga quando se faz uma ruptura, mas nela podem encontrar-se com elementos que reordenam o conjunto e reconstituem o sujeito. "Como é
possível que os movimentos de 5 desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação, presos uns aos
outros?" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18).

Penso que o grande papel desenvolvido nestes processos foi ajudar os integrantes a repensarem como viver suas vidas, desde pequenas ações, a atitudes com o mundo e com o
Outro. Pensemos assim: E se sua vida fosse uma obra de arte? Como algumas biografias que vemos nos filmes? Será que devemos continuar a viver conforme o Sistema nos
ensina? Ou seja, nascer, estudar para ter um emprego, arranjar um parceiro/a, se casar, ter filhos e trabalhar até se aposentar e deixar herança? O que fazemos com nossas
vidas para sermos senhores de nosso próprio destino? Sacrifícios são necessários? Me lembro de quando Bourriaud (2009) nos lembra que a vida pode “[..] ser lida como uma
história dos sucessivos campos relacionais externos, que mudam de acordo com as práticas determinadas por sua própria evolução interna [...] o que costuma chamar
‘realidade’ é uma montagem. Mas a montagem em que vivemos será a única possível?” (2009, p. 83).

Ainda existe a extrema necessidade da pós-modernidade de voltar a lutar pela macropolítica, pois micro e macro andam de mãos dadas. Vamos resgatar o ímpeto das décadas de
1960 e 1970 para que em um futuro não tão distante possamos sorrir e dizer que a luta de nossos antepassados não foi em vão! Temos a responsabilidade de cuidar do nosso
futuro pois, segundo meu mestre de capoeira, mestre Jorge Ferreira, “Um dia seremos ancestrais de alguém”. Amaral fala que, “[...} enquanto a arte não reencontrar sua função
social, prosseguirá a serviço das classes dominantes, ou seja, daqueles que detêm o poder econômico e, portanto, político” (2003, p. 3). Devemos sempre cuidar do Outro,
mesmo que esse Outro ainda não tenha nascido, pois ele é resultado do rizoma construído agora e que se nossa geração não for capaz de mudar o mundo talvez a próxima seja,
pois a luta não acaba e ninguém solta a mão de ninguém!
“ A burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” (MARX, 1848, p.1).
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