Wagner Gomides
Wagner Gomides
Wagner Gomides
TRANSITANDO NA FRONTEIRA:
A INSERÇÃO DE HOMENS NA DOCÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL
VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2014
WAGNER LUIZ TAVARES GOMIDES
TRANSITANDO NA FRONTEIRA:
A INSERÇÃO DE HOMENS NA DOCÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL
_________________________ _________________________
Roberta Carvalho Romagnoli Daniela Alves de Alves
______________________________
Frederico Assis Cardoso
_______________________________________________
Eduardo Simonini Lopes
(orientador)
“Eu gosto muito da vida, mas em alguns dias parece
que ela vale mais a pena do que em outros. Não sei
dizer direito como é esse sentimento, mas é uma paz
interna tão grande, uma sensação inexplicável de
tudo-que-eu-fizer-vai-dar-certo. Uma certeza absurda
de que demora-mas-acontece. Nunca gostei de
desistir, apesar de já ter trocado meu caminho
algumas vezes. Mas essa troca de caminho, na
minha visão, é uma prova de que a gente muda o
roteiro, a viagem, a avenida e os planos pra chegar
na não desistência. Estranho pra você? Talvez eu
diga mesmo coisas estranhas e que não fazem o
menor sentido para quem lê. Talvez não. A gente não
precisa seguir um script, dá pra improvisar falas e
cenas. E foi o que fiz. Isso prova que a gente não
desiste, apenas muda a maneira de conduzir as
coisas. Hoje eu estou feliz, leve, vendo a vida de uma
outra forma. Acho que isso é o mais perto que dá
para chegar da palavra realização. Pela janela, uma
cidade linda, um céu azul, algumas nuvens claras e
outras mais pertinho do horizonte bem escuras, em
tons de rosa, bem como eu gosto. Daqui a pouco,
meu momento preferido: o entardecer. Adoro aquele
momento em que o sol vai saindo de fininho e, antes
de ir, ilumina pontos específicos: um prédio, um
carro, um lugar. Sabe quando o sol vai se
escondendo e deixa o céu completamente colorido?
Pra mim, essa visão é mais bonita do que vitrine de
joalheria. E olha que eu adoro joias. Um dia, a gente
vê um sonho finalmente ganhar forma. Capa,
páginas, diagramação, lombada. E se sente assim:
com o amor na cara” (CORRÊA, 2014, s/p).
ii
AGRADECIMENTOS
Gratidão, para mim, é uma das maiores virtudes do ser humano e, sendo
assim, não poderia deixar de agradecer a todos que contribuíram para a
consecução desse trabalho. No entanto, como não consigo listar aqui todas as
pessoas que me ajudaram, me atenho a dizer Muito Obrigado!
Assim sendo, agradeço a Deus pela oportunidade de compor o mundo,
entre tantos outros aqui existentes. Viver e conviver com tanta diversidade me
entusiasma a sempre alçar voos mais altos e enfrentar terras desconhecidas
em busca de novos conhecimentos.
Agradeço aos meus pais, Waldir e Eunice, pela oportunidade de fazer
parte desse mundo e por todo o esforço dispensado para que eu tivesse uma
educação de qualidade, dentro e fora dos espaços escolares. Obrigado
também aos meus irmãos, Eduardo e Maria Luiza, pelo amor, companheirismo
e atenção de sempre. Agradeço ao meu tio Marco por todos os conselhos
acadêmicos e por me oportunizar grandes momentos de trocas de
conhecimentos. Aproveito ainda para agradecer a todos os meus tios, tias,
primos e primas, por me colocarem sempre presentes em suas orações.
Muito obrigado a minha amada Talitha, minha namorada, mas também
minha conselheira, companheira, amiga, colega de curso e confidente, por
todas as vezes que você segurou minha mão quando eu achava que não daria
mais conta.
Obrigado também aos meus sogros, Ely e Cleusa, pelos conselhos e
orações recorrentes. E as minhas “mães”, Luzia e Célia, por sempre torcerem
por mim e se desdobrarem para que eu pudesse ter tempo para me dedicar à
minha pesquisa. Eu não teria conseguido sem vocês.
Também não poderia deixar de agradecer ao Prof. Dr. Milton Ramon, a
Luciane, à Ludoteca com toda a sua equipe e a todos que transitaram comigo
nesses diferentes cotidianos das escolas de Educação Infantil. Cotidianos
esses, fundamentais para a composição dessa pesquisa. Obrigado por me
colocarem em movimento por todo esse tempo.
Acreditando ser todo acontecimento um momento de aprendizado,
agradeço à Profa. Dra. Marisa Barletto, por ter acreditado em mim e me
iii
oportunizado o ingresso no Programa de Pós Graduação em Educação da
UFV. Muito obrigado Marisa!
Da mesma forma, entendendo que sempre há uma oportunidade de
voltar atrás e fazer um novo começo, agradeço ao meu professor, orientador e
amigo, se é que posso chamá-lo assim, Prof. Dr. Eduardo Simonini Lopes.
Obrigado por acreditar em mim, quando eu mesmo já não acreditava mais.
Você foi de uma sensibilidade incrível, que me serviu e me serve de exemplo
pra todas as situações da vida. Muitíssimo obrigado Eduardo!
Agradeço também aos professores Daniela Alves de Alves, Frederico
Assis Cardoso e Roberta Carvalho Romagnoli pela disponibilidade que tiveram
de aceitar participar da leitura e avaliação do presente trabalho de dissertação.
Gostaria de agradecer também aos professores e alunos da turma de
2012, do Programa de Pós Graduação em Educação da UFV, por me
proporcionarem ricos debates durante essa trajetória acadêmica. Além disso,
um obrigado especial a Eliane, secretária do PPGE, que em nenhum momento
me deixou desamparado diante de todos os trâmites oficiais que o mundo
acadêmico nos exige. Rainha de bateria do Morro do Pintinho, você foi
sensacional!
Feito isso, me ponho agora a agradecer a todos os meus amigos de
república, em especial ao Julierme, Gabriel, Lucas, Artur, Maicon, Henrique e
Ramon, por aguentarem todos os meus momentos de intenso estresse durante
a realização deste trabalho. Obrigado ainda aos colegas de trabalho da Escola
Estadual Caetano Marinho, em especial aos amigos Rodrigo, Paula, Dayana,
Aninha, Ana, Élida, Licínio, Frances, Itair, Flávia, Douglas, Daiane, Bebé,
Alexandre, Viviane, Guilherme, Moisés, e todos os outros que me ajudaram a
vencer mais essa etapa da minha vida.
Para finalizar, agradeço aos estudantes, professoras e coordenadoras,
coautores(as) dessa pesquisa, por aceitarem gentilmente colaborar com esse
trabalho. Tenham certeza que o relato de cada um(a) de vocês foi fundamental
para colocar em movimento novas formas de ver e viver diversos cotidianos da
Educação Infantil.
iv
Sumário
RESUMO................................................................................................. vi
1. Introdução ...................................................................................... 1
v
RESUMO
vi
cotidianos da Educação Infantil. Assim sendo, o estudo mostra que a
concepção criada pela sociedade para a docência da Educação Infantil, a qual
coloca a mulher como a mais “apta” para exercer essa função, perpassa vários
campos, não só os educacionais. Vimos também, que o homem, ao incorporar
os modos hegemônicos de masculinidade socialmente construídos, não se
sente pertencente a este ambiente. Sendo assim, ele tenta não se submeter a
mudanças de atitude, buscando se proteger em cargos mais administrativos da
escola e do que no encontro – em que se mesclam as perspectivas do cuidado
e do afeto – com crianças em uma sala de aula de Educação Infantil.
vii
ABSTRACT
This work focuses its gaze at the study of the crisis between the hegemonic
subjectification processes, which define Early Childhood Education as a
predominantly female territory, and a whole new production of educational
subjectivity in this area, while, according to the new National Curriculum
Guidelines for undergraduate degree in Pedagogy, male students begin
entering this educational environment. This is because such guidelines,
published in 2006, enable the educator to teach in kindergarten and in the early
years of elementary school. In this sense, male students and professionals with
a degree in Pedagogy are designated to work in areas previously delegated
almost exclusively to women. Inside this theme, trying to understand the
movement of men and women in this border of indefinite identities, we
interviewed 10 students, coordinators and teachers participants of this process.
Thus, following their narratives, we sought to visualize the singularization paths
constructed by each one of the participants. From this, we observed the
conflicts that developed when a historically female territory began to show
deterritorializing intensities of already sedimented truths (such as those that
place women in the position of affective provider, and men as material
provider), as of the insertion of the masculine figure in Early Childhood
Education.The argument here defended and developed is that subjectivities are
(de)constructed in a constant crossing of ideas that (re)do the subjects that
transit in the everyday life of Early Childhood Education. Therefore, the study
shows that the image created by society for teaching in Early Childhood
Education, which places women as the “fittest” to perform this function,
permeates many fields, not only the educational. We also saw that men, by
viii
incorporating hegemonic modes of socially constructed masculinity, does not
feel belonging to this environment. So, he tries not to undergo changes in
attitude, seeking to protect themselves through more administrative positions in
the school instead of meeting - that mixes the perspectives of care and affection
- with children in a classroom for Early Childhood Education.
ix
1. Introdução
1
Posteriormente, apresentamos as diferentes mudanças das Diretrizes
Curriculares para o curso de Pedagogia e a consequência de tais mudanças
para o curso da UFV. Dentre essas mudanças, a que fomentou a presente
investigação foi a definição de que o curso de Pedagogia habilitava seus
estudantes a atuar na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.
Nesse sentido, o curso de Pedagogia da UFV criou, em sua matriz curricular,
um estágio obrigatório em Educação Infantil, o que exigia que todos os
discentes – fossem homens ou mulheres – fizessem trabalhos junto a crianças.
2
2. Famílias, mulheres e escolas: uma intrínseca relação
De acordo com Costa (2004), desde os primórdios da colonização
brasileira, Portugal se mostrou negligente com a urbanização de sua colônia
americana. Preocupado com lucros rápidos, delegou amplos poderes às
famílias dos colonos, na expectativa de que estas fizessem, entre outras
funções, o papel de povoar aquelas novas terras e protegê-las de invasões
estrangeiras. Se as famílias coloniais se comportassem dentro dos interesses
da Coroa Portuguesa, não sofreriam interferências significativas do governo. E
assim as famílias coloniais reinaram sozinhas em suas terras por cerca de três
séculos, sendo que:
3
famílias e, por conseguinte, interferia na autonomia do poder do pai. Assim,
com o poder dos chefes patriarcais, sobrepôs-se o espaço privado ao público,
sendo que “a cidade funcionava, [...] como extensão da propriedade e das
famílias rurais. Não apenas em sua ordenação econômica, arquitetônica e
demográfica, mas também na regulação jurídica, política e administrativa”
(COSTA, 2004, p.39). Desta forma, as famílias senhoriais eram as detentoras
do monopólio nas cidades, criando instrumentos capazes de influenciar no
controle da população. Para tanto, utilizaram-se estratégias de ampliação do
parentesco (cultivando – em concomitância a um processo de submissão pela
força – uma submissão pela afetividade), a fim de fomentar o sentimento de
família a uma rede de relações ampla, que defendia os interesses de seus
senhores.
4
Contudo, diante do movimento de urbanização das cidades ligadas à
extração e comercialização do ouro, e a vinda da família real para o Brasil –
especialmente para a cidade do Rio de Janeiro – no início do século XIX, a
Coroa Portuguesa se encontrou frente a urgência de produzir modos de
controle do comportamento social, a fim de manter intacta a influência do poder
imperial sobre sua colônia americana. Porém, encontrou no poder e nos
hábitos da família patriarcal um forte opositor a seus intentos; isso porque,
muitas vezes a instituição família se apresentava mais influente que a própria
Coroa, formando parentes em vez de formar cidadãos. Nesse sentido, cada clã
familiar se restringia a orientar suas condutas, desejos e aspirações em função
de seu grupo e não necessariamente em função das vontades do rei. Diante
disso, segundo Barletto (2006), o Estado precisava se consagrar como
representante do poder, necessitando igualmente se opor a esta família
patriarcal. Assim, para cumprir seu objetivo de garantir sua influência no Brasil,
uma das perspectivas utilizadas pela Coroa Portuguesa foi a de interferir na
organização do espaço público para, depois, adentrar no privado. Uma dessas
interferências veio com o incremento da medicina social.
5
Especialmente com a mudança da família real para o Brasil, a
aristocracia portuguesa e a burguesia europeia passaram a minar o poder das
famílias nativas, transformando uma série de hábitos coloniais. Uma das
estratégias que conseguiu superar a resistência das famílias e modificar a
balança do poder para o lado do governo português foi a promoção da
medicina-higienista. Através da disseminação de um discurso médico que
pregava a higienização das populações, – uma vez que a relação privado-
urbano era precária, sendo a rua considerada como um terreiro da casa
familiar, onde se jogavam os mais variados dejetos – os indivíduos se
ordenariam e se organizariam, construindo novos modos de subjetivação
social. Conforme Costa (2004, p.28), “aliando os interesses da corporação
médica aos objetivos da elite agrária, a higiene incorporou a cidade e toda a
sua população, ao campo do saber médico”, tornando-a assim, o aliado mais
poderoso na efetivação do desejado controle social.
6
Assim, a ordem médica produziu, por meio do discurso higienista, um
novo conhecimento ordenado pelo poder e pelo Estado. Os modos de
subjetivação das relações familiares foram redefinidos, estabelecendo na
sociedade uma nova concepção de criança, de mulher, de homem, de amor, de
casamento e de família. Além disso, esse modo de subjetivação refez todo o
espaço da casa, reordenando a dimensão pública e a privada através da
higienização do espaço doméstico. Não obstante, racionalizou as condutas de
seus indivíduos, regulando seus costumes, sentimentos, identidades e suas
relações afetivas. Definiu ainda o que era saudável e o que era doentio,
ordenando a sexualidade do homem, da mulher, da criança e suas respectivas
condutas privadas e públicas. A intervenção médica na vida familiar favoreceu,
igualmente, a produção da figura do indivíduo contido, polido, bem educado,
cuja norma ideal era o comportamento disciplinado.
7
[...] as mulheres deveriam ser diligentes, ordeiras, asseadas; a elas
caberia controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e
trabalhadoras do país: àquelas que seriam as mães dos líderes
também se atribuía a tarefa de orientação dos filhos e filhas, a
manutenção de um lar afastado dos distúrbios e perturbações do
mundo exterior (LOURO, 2011, p.447).
8
2.2. Dos mestres-escola às moças abnegadas
9
Conforme Chamon (2005), estas escolas de iniciativa privada eram
mantidas por congregações religiosas e também por mestres-escola, os quais,
livres de um sistema de educação, lecionavam da maneira que consideravam
mais conveniente. Assim, tinham como clientela os filhos e filhas da elite
político-econômica do país, o que acentuava o caráter classista e acadêmico
do ensino no Brasil.
10
Há de se ratificar que as escolas “para meninas” atendiam a população
mais favorecida do Império brasileiro, uma vez que ensinar as “mulheres do
povo” não era prioridade para os governantes da época, pois a estas importava
saber cuidar dos filhos, do marido e da casa. Além disso, quase não existiam
mulheres dispostas a exercer o trabalho de ensinar as meninas das camadas
menos favorecidas, alegando que a saúde e a prosperidade da família
dependeriam de sua sujeição à ordem médica e, consequentemente, ao
Estado, uma vez que era ele quem patrocinava tal intervenção. Portanto, “a
educação feminina era um privilégio das filhas da elite brasileira e ocorria por
meio do ensino de canto, dança, francês e da prática de algumas habilidades
manuais” (CHAMON, 2005, p. 38).
11
Entretanto, segundo Chamon (2006), o número de escolas normais
criadas para formar estes docentes era insignificante diante de todas as
pessoas escolarizáveis da época. Como o Estado já não se responsabilizava
por garantir um ensino de qualidade para o povo, também não se preocupava
em investir na construção de mais prédios, na capacitação de novos
professores e nem na aquisição de materiais pedagógicos.
12
ficar sem professores para trabalhar com os alunos masculinos. De acordo com
Chamon (2005, p. 79),
[...] nunca tantos apelos tinham sido feitos ao papel social da mulher,
que, paradoxalmente, tinha o poder de participação limitado por ter
lhe sido negado pelos mesmos poderes instituídos, o direito de
frequentar o espaço público.
13
instituiu-se a Escola Normal da Capital, que se destinava unicamente ao ensino
de mulheres. Toda essa reformulação se baseava em um discurso que
colocava o afeto, a pureza e a submissão como componentes inerentes ao
sexo feminino. Apresentando um trecho da lei estadual nº 439 de 16 de
dezembro de 1906, Chamon (2005, p. 99) destaca aquele que anuncia que:
14
7 – A professora solteira, no interior do Estado, longe da família, é
obrigada a viver pela casa de estranhos ou em pensões promíscuas
(CELIBATO..., 1933, p. 105-107).
15
Todavia, ainda que a Escola Normal atendesse sua função de formar
moças abnegadas dos benefícios materiais e capazes de conduzir a tarefa de
educar as futuras gerações dentro dos preceitos da nação, era preciso criar
instituições de ensino que abrangessem toda a sociedade, inclusive as
pessoas de camadas mais pobres e os imigrantes. Isso porque, com o
processo de modernização do país, o Estado brasileiro se viu diante da
necessidade de realizar mais investimento na educação, objetivando uma
maior escolarização do povo.
16
Diante de todo esse ideal pensado para ser a função da escola, onde a
moralização de toda a população era o principal interesse do governo, nada
melhor que o investimento social na construção de uma mulher que fosse uma
profissional dedicada, abnegada, amante de sua missão, vocacionada, zelosa
e acima de tudo, que entendesse a docência como um sacerdócio. E assim, a
mulher foi constituindo seu direito a uma função dentro do espaço público
brasileiro, ocupando quase todo o quadro docente da escola primária, além de
assumir as diretorias dos grupos escolares do país. No mais,
17
Para Gondra (2010), era claro o poder conferido à escola, pois, além de
eximir o monopólio da Igreja e da família na educação das novas gerações,
serviria também para esvaziar as prisões, pois, caso funcionasse de acordo
com os objetivos da ordem médica, fabricaria uma moralidade higiênica e
higienizadora. O discurso proferido pela pedagogia emergente daquelas novas
práticas escolares dizia, segundo Charlot (1983, p.115), que “a infância era a
idade da corrupção, representada pela maldade, perversidade, instabilidade,
desordem, impulsividade, cólera e cabia à educação lutar contra ela”.
18
família, um novo problema passou a tomar forma. Isso porque, sendo elas, até
então, as responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos, ao passarem a
ocupar funções laborais em outras instâncias, que não apenas as de cunho
familiar e do magistério, muitas criaram a necessidade de se estabelecer um
novo local de provimento para as crianças (inclusive bebês). Tornava-se
necessária a criação de espaços para acolhimento das crianças das mães
trabalhadoras, que viriam a ser as creches.
19
as responsáveis pelas altas taxas de mortalidade infantil, pois muitas vezes
não tinham hábitos higiênicos condizentes com os estabelecidos pela ordem
médica, sendo ignorantes aos procedimentos da puericultura. Além disso, por
elas morarem geralmente em cortiços circunvizinhados por adultos, que muitas
vezes eram portadores de doenças contagiosas, conviviam com possíveis
fontes de doenças. Sobre isso, Rizzo (2003, p. 31) nos diz:
20
e ao cuidado afetivo da família, para que pudessem ingressar no mercado de
trabalho. Porém, essas instituições se tornaram indispensáveis para a
manutenção da ordem higiênica da sociedade, combatendo, assim, o comércio
das criadeiras. Conforme Didonet (2001, p. 13),
21
Os donos das fábricas, por seu lado, procurando diminuir a força dos
movimentos operários, foram concedendo certos benefícios sociais e
propondo novas formas de disciplinar seus trabalhadores. Eles
buscavam o controle do comportamento dos operários, dentro e fora
da fábrica. Para tanto, vão sendo criadas vilas operárias, clubes
esportivos e também creches e escolas maternais para os filhos dos
operários. O fato dos filhos das operárias estarem sendo atendidos
em creches, escolas maternais e jardins de infância, montadas pelas
fábricas, passou a ser reconhecido por alguns empresários como
vantajoso, pois mais satisfeitas, as mães operárias produziam melhor.
23
2.4. O curso de Pedagogia na Universidade Federal de Viçosa
3 A Faculdade Nacional de Filosofia foi extinta, em 1968, pelo governo militar. Posteriormente
foi unificada, juntamente com outras faculdades, como Universidade do Brasil, depois
renomeada como Universidade Federal do Rio de Janeiro.
24
Nesse contexto de efervescência no Brasil, marcado por um intenso
debate político relacionado às questões educacionais - especialmente a
formação docente-, viu-se a necessidade de uma intensa reforma na educação,
já que havia um consenso da importância dela na construção de um Estado
Nacional moderno. Nesse sentido, toda essa discussão culminou na criação de
diversas instituições de ensino, dando origem, a partir do Decreto no. 3.211, de
quinze de dezembro de 1949 (BORGES; SABIONI, 2010), à Escola Superior de
Ciências Domésticas (ESCD) na então Universidade Rural do Estado de Minas
Gerais (UREMG4).
A UREMG foi constituída, inicialmente, pelos seguintes
estabelecimentos e órgãos: Escola Superior de Agricultura; Escola Superior de
Veterinária; Escola Superior de Ciências Domésticas; Escola de
Especialização; Serviço de Experimentação e Pesquisa e Serviço de Extensão.
Naquele contexto, a Escola Superior de Ciências Domésticas tinha por
finalidade diplomar bacharelas em Ciências Domésticas, estimular o espírito de
pesquisa e extensão e, ao mesmo tempo, preparar a mulher para a vida do lar
dando-lhe oportunidade profissional que assegurasse um padrão de vida
“compatível com sua capacidade” (BORGES; SABIONI, 2010). Ratificando tal
perspectiva, Barletto (2006) considera que um dos objetivos da ESCD era o de
“educar, recriar o universo doméstico - saneado, alimentado, eficiente, etc.- no
âmbito da academia e sob a batuta de seus agentes: mulheres do ensino
superior” (p.77).
Esse contexto produziu grande influência na dinâmica do curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa. Criado em 1971, pelo Ato nº
17/1971 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPE, o Curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa (UFV) nasceu vinculado à
Escola Superior de Ciências Domésticas (ESCD), constituída, por sua vez,
pelos Departamentos de Economia Familiar, Habitação, Puericultura, Arte e
Recreação, Educação, Psicologia, Sociologia e Nutrição e Saúde (BARLETTO,
2006). Estes departamentos atendiam predominantemente ao Curso de
4 A Universidade Federal de Viçosa foi fundada em 1926, sendo então denominada de Escola
Superior de Agricultura e Veterinária do Estado de Minas Gerais (ESAV). Tornou-se
Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG) em 1949 e, em 1969, foi
federalizada.
25
Licenciatura de Economia Doméstica. Assim, “a criação do Departamento de
Educação na ESCD se fez voltado para a formação de mulheres como
extensionistas das práticas domésticas modernas” (BARLETTO, 2006, p. 82).
Vinculado à ESCD, existia a efetiva autonomização do Departamento de
Educação, que se deu em 27 de Janeiro de 1978, pelo Decreto nº 81.260 e
após o Decreto-lei 53/66, que determinava normas de organização para as
universidades federais, tendo como uma de suas principais normas a que
"obrigava, também, à criação de uma unidade voltada para a formação de
professores para o ensino secundário e de especialistas em questões
pedagógicas - a Faculdade (ou centro ou departamento) de Educação"
(CUNHA, 2010b, p.179).
Por sua vez, naquele mesmo ano de 1978, e respondendo à nova
estrutura administrativa da UFV, a Escola Superior de Ciências Domésticas
passou à condição de Departamento de Economia Doméstica, ficando ambos –
Educação e Economia Doméstica – subordinados ao então recém-criado
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
27
Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de
Ensino Médio, na modalidade Normal, e em cursos de Educação
Profissional na área de serviços e apoio escolar, bem como em
outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos.
Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação
de professores para exercer funções de magistério na Educação
Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de
Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na
área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam
previstos conhecimentos pedagógicos (BRASIL/CNE, 2006. s/p).
E,
Assim, o perfil dos (as) estudantes licenciados (as) na UFV passou a ser
definido como sendo aquele (a) profissional formado (a), preferencialmente,
para atuar na docência dos anos iniciais do Ensino Fundamental e na
Educação Infantil. O docente, em sua proposta pedagógica e em concordância
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010),
passa a assumir “a responsabilidade de compartilhar e complementar a
educação e cuidado das crianças com as famílias” (p.17).
29
2.5. Sobre a produção de subjetividade
30
subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 40).
32
[...] nossas definições, convenções, crenças, identidades e
comportamentos sexuais não são o resultado de uma simples
evolução, como se tivessem sido causados por algum fenômeno
natural: eles têm sido modelados no interior de relações definidas de
poder (WEEKS, 2001, p.42).
33
prisioneiros. E se o que estou dizendo faz algum sentido, combater
essa política sexual dominante significaria ter como alvo tanto esta
figura de homem (o machão, em qualquer uma de suas versões),
quanto a figura de mulher (seja a noivinha ou a putinha, seja a
esposa ou a amante). A resistência aqui consistiria em embarcar nos
processos de diferenciação de todas essas figuras, pois com isso é o
próprio falocratismo que estaríamos desinvestindo (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 94).
34
de tensão, lugares inóspitos onde as definições não se oferecem de maneira
clara, e as possibilidades de crise e invenção se intensificam de maneira,
muitas vezes, incômoda. Nesse mote é que trazemos a imagem abaixo, a qual,
de certa forma, traduz um sentimento de estranhamento ao habitar uma
fronteira de subjetivação:
35
de (des)territorialização da Educação Infantil, por meio do novo regimento
desse curso, que nasce a problemática de nossa pesquisa.
É a partir dessa diferença, entendida aqui não como uma relação entre o
um e o outro, mas simplesmente como um “devir-outro” (SILVA, 2002), que um
movimento transitório em zonas fronteiriças surge. Ao promover o encontro de
estudantes “machos” da Pedagogia com as produções de subjetividade
hegemonizadas nas escolas de Educação Infantil, o novo currículo
estabelecido pelo curso de Pedagogia da UFV potencializou a possibilidade de
emergência de crises nas configurações identitárias, à medida que se faz e
36
refaz a todo o momento - mediante novas experimentações, deveres, conexões
e composições nas fronteiras entre identidades construídas e estabilizadas nas
práticas nos/dos cotidianos da Educação Infantil.
37
3. Caminho metodológico
38
permitam problematizar o sujeito estudado, mediante a emergência de novos
questionamentos e novas inquietações.
39
Diante disso, optar pela pesquisa qualitativa neste trabalho se justifica
pela intenção de analisar os processos de produção de subjetividades que
atravessam e/ou atravessaram os praticantes de escolas que contemplem a
Educação Infantil, haja vista que esse ambiente se configura num constante
processo de formação dos sujeitos, que se encontram numa ininterrupta
construção e desconstrução de saberes.
40
Portanto, narrar a vida e os modos de subjetivação dos sujeitos
pesquisados nos potencializa a contar uma história vivenciada, que tem
significado singular a quem a pratica, sendo construída e reconstruída à
medida que novos sujeitos se agenciam neste processo, criando redes de
conhecimentos que ultrapassam o sujeitonarrador. Dessa forma, ao
acompanhar as narrativas, buscamos seguir os processos de construção de
verdades e os movimentos singulares e inventivos existentes na história
daqueles que transitam na fronteira de processos de subjetivação do espaço
escolar da Educação Infantil.
41
currículo do curso em 2008, que colocou o estágio supervisionado em
Educação Infantil como sendo uma disciplina curricular obrigatória do curso.
Posteriormente, o critério que utilizamos foi a disponibilidade dos universitários
de estarem participando da pesquisa, sendo que todos eles são moradores
“nativos” da cidade de Viçosa/MG.
42
E é entremeando a narrativa dos alunos, professoras e coordenadoras
pesquisados(as) com a de meu próprio trajeto discente – colocando em cena a
exposição de minha própria experiência enquanto estudante de Pedagogia no
universo da Educação Infantil –, que pretendemos delinear o trajeto de
investigação percorrido.
43
4. Entrelaçando trajetórias de vida na Pedagogia
A ação que realizei, todavia, não foi uma atitude isolada e particular,
apesar de ter sido motivada muito mais pelo meu despreparo do que por
qualquer intenção de me tornar pedagogo. Em posterior contato com
estudantes do curso de Pedagogia da UFV (especialmente estudantes do sexo
masculino), percebi que muitos se utilizavam dessa estratégia a fim de
44
adentrarem no ensino superior. Ingressando na Universidade por meio de um
curso menos concorrido, tentavam transferência interna para o curso desejado.
[...] a Pedagogia, em si, não era o meu sonho não. O que eu queria
fazer não era Pedagogia. Eu queria fazer Psicologia, mas como não
tinha na Federal daqui e pra mim era difícil tentar me manter fora ou
em uma particular, eu comecei a ler um pouco sobre os cursos da
UFV e achei que a Pedagogia era o que mais se aproximava da
Psicologia, pelas áreas: psicopedagogia, disciplinas. Tem disciplina
7 Todos os sujeitos e instituições nominalmente citados neste trabalho, tiveram seus nomes
verdadeiros alterados para pseudônimos, a fim de preservar a privacidade dos envolvidos.
45
que envolve a Psicologia e aí foi por isso que optei pela Pedagogia,
porque era o que mais se aproximava da Psicologia.
Desse modo, numa “tática” o sujeito tem que “constantemente jogar com
os acontecimentos para os transformar em ocasiões, das quais ele possa tirar
proveito” (CERTEAU, p. 47, 1994). Assim, penso que, ao utilizarmos (eu e
alguns pedagogos entrevistados) de uma “tática”, de uma astúcia para o
acesso à UFV, conseguimos abranger nossas necessidades. No entanto,
segundo Felipe:
46
desvinculando, assim, o curso de Pedagogia da realização do processo de
pesquisa.
Assim como Felipe, Raul, de uma maneira diferenciada, também
demonstrou que foi afetado pelo curso de Pedagogia quando disse que:
47
com certa ironia, dava ritmo às perguntas que me faziam: “Mas Pedagogia não
é para cuidar de criança? Você quer mesmo ser professor de criança? Isso é
coisa de mulher, não é não? Mas você acha que vai ganhar dinheiro com
isso?”.
Dessa maneira, meus irmãos falavam que eu iria ser a “Tia Wagner”,
indicando, nessa brincadeira, uma significação coletiva muito mais ampla: a de
que a Pedagogia está ligada às mulheres ou, se exercida por homens, estes
seriam feminizados, com tendência a serem vistos como homossexuais.
Estando a Pedagogia significada em códigos de subjetivação femininos e tendo
a sociedade uma visão fortemente binária das construções de gênero, muitos
só conseguem conceber os homens na Pedagogia enquanto sujeitos
feminizados e/ou homossexuais. Foi o que aconteceu também com Raul
quando, ao saberem que ele iria cursar Pedagogia, “o pessoal falava: ah, curso
para mulherzinha”. E Davi complementa essas observações, dizendo que:
[...] tem aquela coisa do homem que faz Pedagogia ter aquela fama
de ser veado. Comigo, diretamente comigo, ninguém chegou a me
atacar dessa forma não, mas com meu irmão falavam. Quando
ficavam sabendo, falavam com o meu irmão: “Ah, seu irmão está
fazendo Pedagogia, curso de mulher”.
48
vão ao encontro dos argumentos apresentados pela profa. Gisele. Economista
doméstica e pedagoga, e atuante na docência da Educação Infantil há mais de
20 anos, ela apresenta que “antigamente, as professoras eram as tias, eram as
nossas tias. A gente tinha uma parentada sem fim; era tia para todo lado e
eram as mulheres que iam para essa área”. Ela complementa seus argumentos
dizendo que o sentimento da docência é “uma coisa assim que nasce na gente,
é uma coisa que a gente não manda, [...] criado aquilo na gente, uma coisinha
assim, eu gosto”.
[...] ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa
especificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é viver uma
relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão,
enquanto não se é tia por profissão (FREIRE, 1979, p. 9).
49
Nesse sentido, apropriada dessa visão sobre a docência com crianças
como sendo algo tanto feminino quanto economicamente mais precário em
termos de remuneração, minha mãe, além de me fazer as mesmas perguntas
sobre a condição feminina da Pedagogia, ainda acrescentava: “Mas como você
acha que vai ganhar dinheiro com isso?” Ela sempre questionava a minha
escolha, pois dizia que lhe falavam que Pedagogia era o mesmo que
Magistério, e que, na época dela, quem fazia esse curso eram as mulheres. Tal
concepção é, de certa forma, retomada na fala da professora Gisele quando
ela explica sua inserção no Magistério dizendo que:
4.1. Sensações
Ao entrar na sala no meu primeiro dia de aula, no ano de 2007, fui logo
surpreendido, afinal, por mais que as pessoas já tivessem me dito que a
Pedagogia era um curso predominantemente feminino, não imaginava que
fossem tantas mulheres. Essa sensação que tive une com a que Marco – aluno
do 7º período do curso de Pedagogia na UFV – sentiu ao transitar naquele
ambiente pela primeira vez. Segundo ele:
[...] na minha primeira aula eu fiquei com medo, porque eu sabia que
era um curso predominantemente de mulheres; mas você saber e
você ver é uma coisa completamente diferente. No primeiro dia de
aula, quando eu botei o pé na sala, e vi uma turma de 55 mulheres,
eu dei um passo para trás. Não é uma coisa que eu digo
brincando, foi literal. Eu cheguei na porta da sala e voltei, porque na
hora, assim, eu me assustei com a turma. E mulher né, todo mundo
conversando, algumas pessoas se conheciam, então eu fiquei um
pouco assustado na hora.
50
No entanto, o que para mim e para Marco foi motivo de susto, tornava
para Felipe o ambiente mais agradável. Segundo ele, a sensação que teve ao
entrar na sala primeira vez
51
Ao contrário do constrangimento no trote, na sala de aula éramos muito
bem aceitos. As meninas formavam seus grupos e os homens transitavam em
todos eles. Apesar de sermos “os diferentes”, procurávamos nos misturar com
o restante da turma sem fazer esta distinção. Talvez, por não termos que tocá-
las como no trote, essa diferenciação biológica de sexos era relegada a um
segundo plano, uma vez que, nas aulas, a questão de gênero não surgia como
relevante, estando o foco mais direcionado ao aprendizado dos conteúdos das
disciplinas.
52
atreladas às obrigações do trabalho, resolvi trancar minha matrícula em Julho
de 2008.
53
aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. No desenvolver das
atividades, fui sempre bem recebido na escola que acolheu o projeto. Porém,
nas vezes em que a aluna bolsista não podia me acompanhar nas tarefas, só
me deixavam trabalhar com as crianças acompanhado de uma mulher. Diziam
que sozinho eu não daria conta de olhar todas as crianças. O fato de alguém
me acompanhar nas aulas até então me incomodava, mas não era problema
pra mim. Afinal, eu precisava me engajar na Pedagogia.
54
solicitado, fui completamente ignorado no que se referia a ser reconhecido no
papel de alguém que teria competência de compartilhar questões sobre a
intimidade escolar das crianças. Acredito que a predominância de mulheres na
docência infantil, mais uma vez influenciou nessa atitude, pois o fato de não
conceberem um homem enquanto professor nessa modalidade de ensino fez
com que eu passasse despercebido durante toda a conversa.
8
Ludoteca Universitária: Espaço de Inclusão Social e Valorização do Lúdico. Projeto de
Extensão, coordenado pelo Prof. Milton Ramon Pires de Oliveira e pela Técnica Luciane Isabel
Ramos Martins. Este projeto está vinculado à Divisão de Extensão da Universidade Federal de
Viçosa e tem sua sede situada na casa 1 da Vila Gianetti.
55
trabalhos braçais, pois sempre me colocavam para fazê-los, dizendo que era
coisa de homem - circunstância essa que ratificava a dimensão do masculino
como sendo da ordem do controle e da força, tal como eu havia vivenciado no
meu estágio anterior.
Por sua vez, nos trabalhos com as escolas, minha presença em meio às
mulheres trazia questionamentos sobre minha masculinidade enquanto
pedagogo. Certa vez, ao chegar em uma escola, duas professoras me
perguntaram se eu era professor de Educação Física. Quando eu disse que
não, que eu fazia Pedagogia, todas se espantaram em meio a afirmações
como: “olha, um homem na Pedagogia, que interessante, na minha época não
tinha isso”; ou: “desculpe-me, mas é que você tem uma aparência de professor
de Educação Física, e homem na Pedagogia eu não imaginaria”.
56
estranhamento, onde eu me sentia transitando numa fronteira entre uma
territorialidade masculina e um território construtor de (e construído em) uma
feminilidade que parecia ter dificuldade de acolher minha presença. Nesse
sentido, para Louro (2008) essa fronteira é
57
Nesse sentido, apresentamos algumas passagens e falas que
denunciam a urgência classificatória e identitária exercida por algumas
professoras, durante meu estágio na Ludoteca. Entendemos que tais
passagens são ilustrativas, na tentativa de “enquadrar” a minha presença
masculina na escola dentro dos modos de demarcação identitária, fosse como
hetero ou homossexual. Assim sendo, certa vez uma professora chegou até a
mim e disse: “se eu não estivesse conversado com você, iria sair daqui jurando
que você era gay. Primeiro por você ter chegado aqui com a Ludoteca e depois
pelo seu jeito com as crianças: desenvolto e muito cuidadoso. Difícil ver
homem assim!”.
Por sua vez, aquela professora apresentou uma dificuldade não apenas
dela, mas também da escola, de transitar nessa linha fronteiriça que surge
entre o masculino e o feminino à medida que um homem (seja adulto ou
criança) começa, por exemplo, a brincar de boneca, ou uma mulher passa a
mexer com “coisas de menino”. Contudo, temos que os processos de
58
subjetivação masculinos e femininos não necessariamente estão fixados na
figura biológica do homem e da mulher, pois se a condição de macho e fêmea
é uma definição biológica, as dimensões do masculino e do feminino são
produções sociais. Por sua vez, se geralmente a produção do masculino
encontra corpos de homens, e a produção do feminino se congratula com
corpos de mulheres, eu passava por situações constrangedoras quando
atravessava as fronteiras dos papeis de gênero e tinha meu corpo de homem
atravessado por modos de subjetivação femininos.
59
sabendo que há momentos que a produção de espaços masculinos se
encontra com corpos de mulheres e vice-versa.
60
4.4. O estágio na Educação Infantil
Esta mesma recomendação foi dada a Raul, que também havia feito o
estágio na Escola P, dirigida pela coordenadora Hélia. Raul foi o estudante
masculino que, de acordo com ela, “deu certo” naquela escola. Nas palavras
dele: “a gente ia com eles(as) [as crianças] até o banheiro e os(as) deixava por
conta. Aí se precisassem de alguma coisa, eles(as) avisavam e a gente ia lá.
Assim, a recomendação das professoras lá era a de que eu as chamasse”. E
se Raul “deu certo” na Escola P, talvez muito do mérito disso se devesse aos
61
modos já definidos por ele, e como ele via o lugar do homem e da mulher não
apenas na escola, mas na própria Pedagogia. Segundo Raul:
Pedagogia, se você for ver, tem todo um..., não sei... eu levo muito
para o cuidado né. E Pedagogia envolve o quê? Crianças; o público
infantil em geral. Ai se você for ver, questão infantil, criança, cuidar de
crianças, tem algo mais a ver com o lado materno. Então, eu acho
que seria mais voltado à mulher por essa, eu não sei, talvez uma
facilidade, talvez por ser mais fácil para a mulher ter esse contato
com a criança, do cuidado com a criança em si.
62
[...] Quando eu chego em casa à noitinha
Quero uma mulher só minha
Mas pra quem deu luz não tem mais jeito
Porque um filho quer seu peito.
O outro já reclama a sua mão
E o outro quer o amor que ela tiver
Quatro homens dependentes e carentes
Da força da mulher [...] (CARLOS, 1981).
Deste modo, ao estabelecer o ambiente doméstico como sendo o da
mulher e responsabilizando-a pelo aconchego e segurança afetiva da família, a
fala da coordenadora Hélia ratificou a hegemonia do cuidado feminino no
ambiente da Educação Infantil, tornando-se uma expressão inata às
professoras e à própria educação. Esta concepção também pode ser vista na
fala de Mariana, coordenadora, há mais de 20 anos, de outra instituição de
Educação Infantil, denominada aqui de Escola X. Para ela:
63
Se ele fosse capaz de trocar fralda, de cuidar de nenê e tudo, sim,
por que não? Não existe o pai? A figura do pai é tão importante[...].
Por que não trabalhar no berçário? Existe a figura do pai, tanto que
eu faço questão de comemorar o dia do pai. Porque para mim a figura
do pai é tão importante quanto a figura da mãe. Você já percebeu que
eu não faço diferença de quem é mais importante. Se é pai, se é
homem, se é mulher. Eu, se eu tivesse um berçário e eu tivesse um
homem preparado para isso seria... não existe enfermeiro também?
Sem problema nenhum.
[...] cada sala tem uma pessoa que ajuda; um ajudante com essa
questão. Se é um homem que está na sala, tem uma mulher
ajudando sempre. Sempre tem uma mulher que ajuda na sala. Como
tudo aqui é mulher, não tem nenhum homem não. Pra ir ao banheiro,
né, porque a preocupação maior é o banheiro, então tem as outras
pessoas. Mesmo assim, tem as pessoas que limpam a escola e estão
sempre no banheiro, que às vezes um homem sozinho, né? Tem
gente por lá, sempre!
[...] não tem nada a ver. Eu acho até interessante o professor estar
acompanhando, se a criança solicita, lógico, a presença do adulto, o
que é muito raro [...]. Não tem essa questão de mulher, de homem,
até porque eles estão construindo a identidade, eles estão
descobrindo... até essa questão da interação é muito importante.
64
pelo cuidado afetivo, mas pelo cuidado íntimo e de mobilização da sexualidade.
E, talvez por isso, exista uma maior dificuldade do homem em transitar nesse
espaço, haja vista que os modos hegemônicos de conceber a masculinidade o
colocam na dimensão da força, da virilidade e também da violência e da
agressividade. Assim, o homem na escola corre o risco de ser concebido como
um predador sexual e, consequentemente, um pedófilo em potencial. Dessa
maneira, sua presença no banheiro das crianças acaba por se tornar uma
ameaça a elas e à escola.
Portanto, o trânsito no banheiro se ergue como um campo de tensão,
que coloca em confronto o afetivo e a pureza do feminino, a agressividade e a
sexualidade do masculino. Este fato é ilustrado na fala de Marco que, mesmo
fazendo seu estágio na escola coordenada por Mariana - a qual não vê
problemas nesse trânsito masculino no banheiro - sustenta que:
65
Temos, portanto, que mais importante nessa pesquisa não foi nos
nutrirmos em qualquer vã pretensão de estabelecer verdades ou roteiros de
conduta, mas perceber como as concepções de educação, que ganham vida
nos cotidianos de escolas de Educação Infantil, conversam com as produções
sociais de masculinidade e feminilidade. Assim, ao reatualizarem e
naturalizarem os territórios identitários, oriundos de modos de subjetivação
hegemônicos, as escolas muitas vezes transformaram o banheiro em um
campo de incômodo e de estranhamento, pois se apresentava como um ponto
de encontro do cuidado e o afeto com o território da sexualidade, da violência e
da agressão. Dessa maneira, as escolas ratificaram ainda o lugar das mulheres
castas, das professoras castas, que não ameaçam por não serem sexuadas.
Enquanto isso, a masculinidade, entendida como predatória, agressiva, sexual,
ativa e pouco sensível, incomoda e é assumida na escola como sendo
propriedade natural dos homens.
66
[...] de repente eu não tenha condições; eu não me sinta em
condições de desempenhar um bom papel na Educação Infantil, mas
eu me sinto perfeitamente em condições de trabalhar num campo
mais técnico, num campo que não seja exatamente lidando com o
ensinar propriamente dito, mas que esteja em torno disso também.
Como eu disse, o campo do pedagogo, ele é bastante privilegiado em
minha opinião, porque você não se restringe apenas à sala de aula,
ao ensinar, ao dar aulas, embora essa seja a função primeira do
pedagogo, do educador: o ensinar, o dar aula. Mas, no entanto, existe
uma demanda que a gente não pode esquecer dela, que a demanda
da área extra sala também né, que é o coordenador pedagógico.
67
presença de muitas famílias - uma das crianças se sentou em meu colo para
assistir a uma apresentação de mágica. Para mim, aquela era uma situação
normal, pois havia diversas crianças sentadas no colo das professoras. Porém,
a coordenadora Hélia veio até a mim e pediu para que eu tirasse a criança do
colo, pois os pais poderiam não gostar. Segundo ela,
68
São poucos momentos dessa figura[masculina] na escola. Porque a
maioria são as cuidadoras, todas colaboradoras, todas são do sexo
feminino. Então elas (as crianças) gostam muito [da figura do homem]
e até procuram muito contato físico. Que eu acho que é assim, tipo
assim, é o papel do pai, que também trabalha muito fora. E nós
tivemos também os estagiários, que eu tive que dar até algumas
orientações aos estagiários. Por quê? Nós vivemos numa sociedade,
onde as questões de abuso sexual acontecem.
69
Para a referida coordenadora, a proibição dos pais tem a ver com o
medo que eles possuem quanto as (in)definições da sexualidade infantil.
Receio da indefinição identitária que as crianças possam adentrar quando na
fronteira entre papeis sexualmente definidos pela sociedade. Diante disso,
surge a necessidade de estabelecermos coisas de meninos e meninas, e
oferecermos a tais elementos um caráter imutável, a-histórico e binário de
maneiras de existir (LOURO, 2008). Assim sendo, nas palavras de Butler
(1993) apud (LOURO, 2008, p.15), “essa lógica implica que esse “dado” sexo
vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo; [...]
inaugurando um processo de masculinização e feminização com o qual o
sujeito se compromete”.
70
Música. Porque o professor de Educação Física, ele vai apenas um
dia, ele está ali, é igual ao de Música, ele está ali pra dar as
atividades de Música e vai embora. Vamos dizer assim, a parte de
educação, eu vou falar assim, moral, social, fica por conta de uma
professora.
[...] você lembra que você participou com a gente e eles guardavam
seu nome, já guardavam a fisionomia, porque quando você volta
algumas crianças ainda se lembram de você. E brincar na área
externa, você lembra? Como era legal, eles adoravam, você corria
71
(risos). Você corria com eles e ia embora todo suado, participava
mesmo, suava a camisa, brincava, participava o tempo inteiro.
72
masculinidade. Nesse sentido, remeto-me ao argumento de Rolnik e Guattari,
quando postularam que:
5. Considerações finais
Por sua vez, narrar acontecimentos junto aos sujeitos que compõem os
diversos cotidianos da Educação Infantil possibilitou a problematização da
diferença pela presença do masculino neste ambiente. Transitando os
estudantes homens da Pedagogia numa linha fronteiriça entre registros
masculinos e femininos movimentaram-se as concepções de todos (inclusive
dos estudantes entrevistados) que ali praticavam os cotidianos das escolas
pesquisadas. Ainda que tentassem enquadrar essa novidade nos registros
74
hegemônicos de significação dos espaços cristalizados para o masculino e o
feminino na nossa sociedade, eram obrigados a se abrir ao estranhamento de
pensar, ainda que de maneira precária, para a possibilidade de uma nova
composição das lógicas masculinas e femininas no trato com crianças
pequenas.
75
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79