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Wagner Gomides

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WAGNER LUIZ TAVARES GOMIDES

TRANSITANDO NA FRONTEIRA:
A INSERÇÃO DE HOMENS NA DOCÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de Viçosa, como parte das exigências
do Programa de Pós-Graduação em Educação,
para obtenção do título de Magister Scientiae.

VIÇOSA
MINAS GERAIS - BRASIL
2014
WAGNER LUIZ TAVARES GOMIDES

TRANSITANDO NA FRONTEIRA:
A INSERÇÃO DE HOMENS NA DOCÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada à Universidade


Federal de Viçosa, como parte das
exigências do Programa de Pós-
Graduação em Educação, para obtenção
do título de Magister Scientiae.

APROVADA: 18 de julho de 2014.

_________________________ _________________________
Roberta Carvalho Romagnoli Daniela Alves de Alves

______________________________
Frederico Assis Cardoso

_______________________________________________
Eduardo Simonini Lopes
(orientador)
“Eu gosto muito da vida, mas em alguns dias parece
que ela vale mais a pena do que em outros. Não sei
dizer direito como é esse sentimento, mas é uma paz
interna tão grande, uma sensação inexplicável de
tudo-que-eu-fizer-vai-dar-certo. Uma certeza absurda
de que demora-mas-acontece. Nunca gostei de
desistir, apesar de já ter trocado meu caminho
algumas vezes. Mas essa troca de caminho, na
minha visão, é uma prova de que a gente muda o
roteiro, a viagem, a avenida e os planos pra chegar
na não desistência. Estranho pra você? Talvez eu
diga mesmo coisas estranhas e que não fazem o
menor sentido para quem lê. Talvez não. A gente não
precisa seguir um script, dá pra improvisar falas e
cenas. E foi o que fiz. Isso prova que a gente não
desiste, apenas muda a maneira de conduzir as
coisas. Hoje eu estou feliz, leve, vendo a vida de uma
outra forma. Acho que isso é o mais perto que dá
para chegar da palavra realização. Pela janela, uma
cidade linda, um céu azul, algumas nuvens claras e
outras mais pertinho do horizonte bem escuras, em
tons de rosa, bem como eu gosto. Daqui a pouco,
meu momento preferido: o entardecer. Adoro aquele
momento em que o sol vai saindo de fininho e, antes
de ir, ilumina pontos específicos: um prédio, um
carro, um lugar. Sabe quando o sol vai se
escondendo e deixa o céu completamente colorido?
Pra mim, essa visão é mais bonita do que vitrine de
joalheria. E olha que eu adoro joias. Um dia, a gente
vê um sonho finalmente ganhar forma. Capa,
páginas, diagramação, lombada. E se sente assim:
com o amor na cara” (CORRÊA, 2014, s/p).

ii
AGRADECIMENTOS

Gratidão, para mim, é uma das maiores virtudes do ser humano e, sendo
assim, não poderia deixar de agradecer a todos que contribuíram para a
consecução desse trabalho. No entanto, como não consigo listar aqui todas as
pessoas que me ajudaram, me atenho a dizer Muito Obrigado!
Assim sendo, agradeço a Deus pela oportunidade de compor o mundo,
entre tantos outros aqui existentes. Viver e conviver com tanta diversidade me
entusiasma a sempre alçar voos mais altos e enfrentar terras desconhecidas
em busca de novos conhecimentos.
Agradeço aos meus pais, Waldir e Eunice, pela oportunidade de fazer
parte desse mundo e por todo o esforço dispensado para que eu tivesse uma
educação de qualidade, dentro e fora dos espaços escolares. Obrigado
também aos meus irmãos, Eduardo e Maria Luiza, pelo amor, companheirismo
e atenção de sempre. Agradeço ao meu tio Marco por todos os conselhos
acadêmicos e por me oportunizar grandes momentos de trocas de
conhecimentos. Aproveito ainda para agradecer a todos os meus tios, tias,
primos e primas, por me colocarem sempre presentes em suas orações.
Muito obrigado a minha amada Talitha, minha namorada, mas também
minha conselheira, companheira, amiga, colega de curso e confidente, por
todas as vezes que você segurou minha mão quando eu achava que não daria
mais conta.
Obrigado também aos meus sogros, Ely e Cleusa, pelos conselhos e
orações recorrentes. E as minhas “mães”, Luzia e Célia, por sempre torcerem
por mim e se desdobrarem para que eu pudesse ter tempo para me dedicar à
minha pesquisa. Eu não teria conseguido sem vocês.
Também não poderia deixar de agradecer ao Prof. Dr. Milton Ramon, a
Luciane, à Ludoteca com toda a sua equipe e a todos que transitaram comigo
nesses diferentes cotidianos das escolas de Educação Infantil. Cotidianos
esses, fundamentais para a composição dessa pesquisa. Obrigado por me
colocarem em movimento por todo esse tempo.
Acreditando ser todo acontecimento um momento de aprendizado,
agradeço à Profa. Dra. Marisa Barletto, por ter acreditado em mim e me

iii
oportunizado o ingresso no Programa de Pós Graduação em Educação da
UFV. Muito obrigado Marisa!
Da mesma forma, entendendo que sempre há uma oportunidade de
voltar atrás e fazer um novo começo, agradeço ao meu professor, orientador e
amigo, se é que posso chamá-lo assim, Prof. Dr. Eduardo Simonini Lopes.
Obrigado por acreditar em mim, quando eu mesmo já não acreditava mais.
Você foi de uma sensibilidade incrível, que me serviu e me serve de exemplo
pra todas as situações da vida. Muitíssimo obrigado Eduardo!
Agradeço também aos professores Daniela Alves de Alves, Frederico
Assis Cardoso e Roberta Carvalho Romagnoli pela disponibilidade que tiveram
de aceitar participar da leitura e avaliação do presente trabalho de dissertação.
Gostaria de agradecer também aos professores e alunos da turma de
2012, do Programa de Pós Graduação em Educação da UFV, por me
proporcionarem ricos debates durante essa trajetória acadêmica. Além disso,
um obrigado especial a Eliane, secretária do PPGE, que em nenhum momento
me deixou desamparado diante de todos os trâmites oficiais que o mundo
acadêmico nos exige. Rainha de bateria do Morro do Pintinho, você foi
sensacional!
Feito isso, me ponho agora a agradecer a todos os meus amigos de
república, em especial ao Julierme, Gabriel, Lucas, Artur, Maicon, Henrique e
Ramon, por aguentarem todos os meus momentos de intenso estresse durante
a realização deste trabalho. Obrigado ainda aos colegas de trabalho da Escola
Estadual Caetano Marinho, em especial aos amigos Rodrigo, Paula, Dayana,
Aninha, Ana, Élida, Licínio, Frances, Itair, Flávia, Douglas, Daiane, Bebé,
Alexandre, Viviane, Guilherme, Moisés, e todos os outros que me ajudaram a
vencer mais essa etapa da minha vida.
Para finalizar, agradeço aos estudantes, professoras e coordenadoras,
coautores(as) dessa pesquisa, por aceitarem gentilmente colaborar com esse
trabalho. Tenham certeza que o relato de cada um(a) de vocês foi fundamental
para colocar em movimento novas formas de ver e viver diversos cotidianos da
Educação Infantil.

iv
Sumário

RESUMO................................................................................................. vi

ABSTRACT ........................................................................................... viii

1. Introdução ...................................................................................... 1

2. Famílias, mulheres e escolas: uma intrínseca relação .............. 3

2.1. A medicina no controle social das famílias ........................................ 5

2.2. Dos mestres-escola às moças abnegadas ........................................ 9

2.3. A criação das creches ..................................................................... 19

2.4. O curso de Pedagogia na Universidade Federal de Viçosa .......... 24

2.5. Sobre a produção de subjetividade ............................................... 30

3. Caminho metodológico .............................................................. 38

4. Entrelaçando trajetórias de vida na Pedagogia ........................ 44

4.1. Sensações .................................................................................... 50

4.2. Retomando o curso ....................................................................... 53

4.3. A experiência do não-lugar junto à Ludoteca da UFV ................... 55

4.4. O estágio na Educação Infantil ..................................................... 61

5. Considerações finais .................................................................. 73

6. Referências Bibliográficas ......................................................... 76

v
RESUMO

GOMIDES, Wagner Luiz Tavares, M.Sc., Universidade Federal de Viçosa,


Julho de 2014. Transitando na fronteira: a inserção de homens na
docência da Educação Infantil. Orientador: Eduardo Simonini Lopes.

Os olhares deste trabalho se voltam ao estudo da crise entre os processos de


subjetivação hegemônicos, que definem a Educação Infantil como um território
predominantemente feminino, e toda uma nova produção de subjetividade
docente nessa área, quando, em função das novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia, estudantes homens
começam a adentrar este ambiente educacional. Isso porque, tais diretrizes,
publicadas no ano de 2006, habilitam o pedagogo a exercer a docência na
Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Nesse sentido,
estudantes e profissionais de Pedagogia do sexo masculino são chamados a
exercer funções no magistério antes delegadas, quase que exclusivamente, às
mulheres. Nesse mote, buscando compreender o trânsito de homens e
mulheres nessa fronteira de indefinições identitárias, fizemos 10 entrevistas
com estudantes, coordenadoras e professoras participantes desse processo.
Assim, ao acompanharmos as narrativas desses entrevistados, buscamos
visualizar as trajetórias de singularização construídas por cada um. A partir
disso, observamos os conflitos que se inauguraram quando um território
historicamente feminino passou a margear intensidades desterritorializantes de
verdades já sedimentadas (como aquelas que colocam a mulher na posição de
provedora afetiva, e o homem de provedor material), quando da inserção da
figura masculina na Educação Infantil. O argumento aqui defendido e
desenvolvido é o de que as subjetividades são des/construídas em um
constante atravessamento de ideias que re/fazem os sujeitos que transitam nos

vi
cotidianos da Educação Infantil. Assim sendo, o estudo mostra que a
concepção criada pela sociedade para a docência da Educação Infantil, a qual
coloca a mulher como a mais “apta” para exercer essa função, perpassa vários
campos, não só os educacionais. Vimos também, que o homem, ao incorporar
os modos hegemônicos de masculinidade socialmente construídos, não se
sente pertencente a este ambiente. Sendo assim, ele tenta não se submeter a
mudanças de atitude, buscando se proteger em cargos mais administrativos da
escola e do que no encontro – em que se mesclam as perspectivas do cuidado
e do afeto – com crianças em uma sala de aula de Educação Infantil.

vii
ABSTRACT

Gomides, Wagner Luiz Tavares, M.Sc.,Universidade Federal de Viçosa, July


2014. Transiting the border: the inclusion of men in teaching of Early
Childhood Education. Advisor: Eduardo Simonini Lopes.

This work focuses its gaze at the study of the crisis between the hegemonic
subjectification processes, which define Early Childhood Education as a
predominantly female territory, and a whole new production of educational
subjectivity in this area, while, according to the new National Curriculum
Guidelines for undergraduate degree in Pedagogy, male students begin
entering this educational environment. This is because such guidelines,
published in 2006, enable the educator to teach in kindergarten and in the early
years of elementary school. In this sense, male students and professionals with
a degree in Pedagogy are designated to work in areas previously delegated
almost exclusively to women. Inside this theme, trying to understand the
movement of men and women in this border of indefinite identities, we
interviewed 10 students, coordinators and teachers participants of this process.
Thus, following their narratives, we sought to visualize the singularization paths
constructed by each one of the participants. From this, we observed the
conflicts that developed when a historically female territory began to show
deterritorializing intensities of already sedimented truths (such as those that
place women in the position of affective provider, and men as material
provider), as of the insertion of the masculine figure in Early Childhood
Education.The argument here defended and developed is that subjectivities are
(de)constructed in a constant crossing of ideas that (re)do the subjects that
transit in the everyday life of Early Childhood Education. Therefore, the study
shows that the image created by society for teaching in Early Childhood
Education, which places women as the “fittest” to perform this function,
permeates many fields, not only the educational. We also saw that men, by

viii
incorporating hegemonic modes of socially constructed masculinity, does not
feel belonging to this environment. So, he tries not to undergo changes in
attitude, seeking to protect themselves through more administrative positions in
the school instead of meeting - that mixes the perspectives of care and affection
- with children in a classroom for Early Childhood Education.

ix
1. Introdução

Os olhares deste trabalho se voltam ao estudo da crise entre os


processos de subjetivação hegemônicos, que definem a Educação Infantil
como um território feminino, e toda uma nova produção de subjetividade
docente nessa área quando, em função das novas Diretrizes Curriculares
Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia (Licenciatura), estudantes
do sexo masculino começam a adentrar o ambiente da Educação Infantil. Isso
porque, tais diretrizes, publicadas no ano de 2006, habilitam o pedagogo a
exercer a docência na Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino
Fundamental. Nesse sentido, estudantes e profissionais de Pedagogia, do sexo
masculino, são chamados a exercer funções no magistério antes delegadas,
quase que exclusivamente, às mulheres.

Nesse contexto, o meu interesse pela temática advém de todas as


sensações que vivenciei ao longo do curso de Pedagogia na Universidade
Federal de Viçosa, e que também se desdobram na realização de meu trabalho
de conclusão de curso (TCC), intitulado “Os desafios enfrentados pelo homem,
enquanto docente, na Educação Infantil”. Durante a realização do referido
trabalho, ao consultar as fontes bibliográficas referentes à temática estudada,
foi possível perceber que toda essa construção envolvendo a Educação Infantil
enquanto efetivo espaço de trabalho docente foi entrecortada por discursos que
produziram a educação de crianças como um espaço feminino, sendo o
trabalho do magistério uma extensão do trabalho da mulher no lar: como mãe,
cuidadora e doadora de amor. Assim, na tentativa de compreender esse lugar
de tensão – essa zona de fronteira imersa em indefinições oriundas da
presença de uma figura masculina na Educação Infantil – foram
problematizados, no presente trabalho, aspectos referentes à tensão entre
intensificações socialmente construídas a respeito do masculino e do feminino
em algumas escolas de Educação Infantil.

Diante dessas considerações iniciais, e no intuito de problematizar as


questões pensadas, foi feita uma apresentação a respeito do processo de
higienização da família brasileira, analisando como esta colaborou na criação
das creches e, mais tarde, das escolas de Educação Infantil no país.

1
Posteriormente, apresentamos as diferentes mudanças das Diretrizes
Curriculares para o curso de Pedagogia e a consequência de tais mudanças
para o curso da UFV. Dentre essas mudanças, a que fomentou a presente
investigação foi a definição de que o curso de Pedagogia habilitava seus
estudantes a atuar na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental.
Nesse sentido, o curso de Pedagogia da UFV criou, em sua matriz curricular,
um estágio obrigatório em Educação Infantil, o que exigia que todos os
discentes – fossem homens ou mulheres – fizessem trabalhos junto a crianças.

Nessa perspectiva, procuramos entender como escolas e docentes


masculinos transitam nessa linha fronteiriça, oriunda de novas práticas e ideias
que se colocam em movimento quando ocorre o encontro da figura social do
homem e da mulher nos cotidianos das escolas de Educação Infantil
pesquisadas.

Assim, para iniciar as discussões a respeito da temática pesquisada,


faremos um breve resgate histórico sobre a construção do homem e da mulher
nas relações sociais brasileiras, a fim de entender como tal construção
produziu interferências no campo da educação e, em especial, na docência na
Educação Infantil.

2
2. Famílias, mulheres e escolas: uma intrínseca relação
De acordo com Costa (2004), desde os primórdios da colonização
brasileira, Portugal se mostrou negligente com a urbanização de sua colônia
americana. Preocupado com lucros rápidos, delegou amplos poderes às
famílias dos colonos, na expectativa de que estas fizessem, entre outras
funções, o papel de povoar aquelas novas terras e protegê-las de invasões
estrangeiras. Se as famílias coloniais se comportassem dentro dos interesses
da Coroa Portuguesa, não sofreriam interferências significativas do governo. E
assim as famílias coloniais reinaram sozinhas em suas terras por cerca de três
séculos, sendo que:

Os primeiros núcleos de povoamento do Brasil foram criados pelos


senhores rurais. Essa paternidade pioneira converteu-se em
apropriação. A família colonial imprimiu as marcas de sua
ascendência nas vilas e cidades que construiu. A anatomia urbana da
Colônia mostra como a casa, ocupando todo o lote, delimitava a rua.
O privado impunha-se ao público (COSTA, 2004, p.37).

As famílias do período colonial brasileiro tinham como característica


dominante a formação: um marido, que era também o chefe (o patriarca), sua
esposa e seus filhos legítimos. A família patriarcal ainda agregava irmãos,
irmãs, tios e tias, primos, noras e genros, afilhados, filhos ilegítimos, serviçais e
escravos dentro de casa. Segundo Alves (2009), o patriarca era o responsável
por todos, sendo assim, exercia sua autoridade cuidando dos negócios e
defendendo a honra da família. Costa, ao se referir à influência do patriarca
naqueles tempos coloniais, ratifica as considerações de Alves ao afirmar que:

O pai, chefe do clã, concentrava funções militares, empresariais e


afetivas, como exigia a cultura social da Colônia. Voltado ele próprio
para a defesa da propriedade e da família, conduzia, com mão de
ferro, os projetos e anseios do grupo. Seu desejo e seu nome davam
unidade às aspirações dos indivíduos. (...) O desejo correto era o
desejo do pai; o interesse justo era o da manutenção do patrimônio
(COSTA, 2004, p.47).

Além disso, o patriarca também exercia influência na economia e na


política de uma comunidade, o que, muitas vezes, tornava a família patriarcal
um empecilho para a efetivação das vontades da Coroa Portuguesa,
principalmente quando tal vontade não se coadunava com os interesses das

3
famílias e, por conseguinte, interferia na autonomia do poder do pai. Assim,
com o poder dos chefes patriarcais, sobrepôs-se o espaço privado ao público,
sendo que “a cidade funcionava, [...] como extensão da propriedade e das
famílias rurais. Não apenas em sua ordenação econômica, arquitetônica e
demográfica, mas também na regulação jurídica, política e administrativa”
(COSTA, 2004, p.39). Desta forma, as famílias senhoriais eram as detentoras
do monopólio nas cidades, criando instrumentos capazes de influenciar no
controle da população. Para tanto, utilizaram-se estratégias de ampliação do
parentesco (cultivando – em concomitância a um processo de submissão pela
força – uma submissão pela afetividade), a fim de fomentar o sentimento de
família a uma rede de relações ampla, que defendia os interesses de seus
senhores.

Contudo, a partir do século XVIII, começou a haver entre as famílias


patriarcais brasileiras e o governo português, um aumento de choques de
interesses. Isso porque, com a descoberta do ouro no Brasil, os portugueses
perceberam que era necessário direcionar um novo olhar sobre a sociedade
brasileira, pois “as cidades ligadas à extração desse produto criavam-se ou
expandiam-se, [...] tornando-se assim, um foco permanente de contestação do
poder real” (COSTA, 2004, p.19). Essa constatação ganhava consistência em
meio a uma elite emergente formada por religiosos, comerciantes, militares,
funcionários públicos e outros que, por sua vez, se estabeleciam no convívio
com as famílias coloniais.

Além disso, os patriarcas agregavam ao seu poder econômico e político,


o auxílio da Igreja Católica, o que fortificava ainda mais o controle da família
latifundiária sobre a organização social. Para Costa (2004):

[...] a ordem teológica que justificava a organização sócio-econômica


da Colônia era a mesma onde se inscrevia a função paterna. Desta
forma, o lugar religioso que de direito cabia à família era reforçado.
Pois, o que se salienta neste texto não é tanto o fato do pai comandar
a casa, mas a aceitação implícita do modelo de organização da
família portuguesa colonizadora. O lugar e o direito do pai são
inquestionáveis, e, por conseguinte, também o são de todos os outros
membros da família (p.44).

Dessa maneira, “no Brasil Colônia, ‘família’ passou a ser sinônimo de


organização familiar ‘latifundiária’” (COSTA, 2004, p.37).

4
Contudo, diante do movimento de urbanização das cidades ligadas à
extração e comercialização do ouro, e a vinda da família real para o Brasil –
especialmente para a cidade do Rio de Janeiro – no início do século XIX, a
Coroa Portuguesa se encontrou frente a urgência de produzir modos de
controle do comportamento social, a fim de manter intacta a influência do poder
imperial sobre sua colônia americana. Porém, encontrou no poder e nos
hábitos da família patriarcal um forte opositor a seus intentos; isso porque,
muitas vezes a instituição família se apresentava mais influente que a própria
Coroa, formando parentes em vez de formar cidadãos. Nesse sentido, cada clã
familiar se restringia a orientar suas condutas, desejos e aspirações em função
de seu grupo e não necessariamente em função das vontades do rei. Diante
disso, segundo Barletto (2006), o Estado precisava se consagrar como
representante do poder, necessitando igualmente se opor a esta família
patriarcal. Assim, para cumprir seu objetivo de garantir sua influência no Brasil,
uma das perspectivas utilizadas pela Coroa Portuguesa foi a de interferir na
organização do espaço público para, depois, adentrar no privado. Uma dessas
interferências veio com o incremento da medicina social.

2.1. A medicina no controle social das famílias

Dominando o universo urbano em dimensões físicas, políticas e até


mesmo espirituais (diante de seus acordos com a igreja), as famílias senhoriais
nunca foram significativamente abaladas por insurreições ou mesmo
interferências de Portugal no período de três séculos que se seguiram ao
descobrimento do Brasil. Mesmo com o crescimento urbano de cidades como o
Rio de Janeiro, – para onde a Corte Portuguesa se mudou em 1808, fugindo
das guerras napoleônicas – tal modelo de influência senhorial da família pouco
se modificou. Segundo Costa (2004), a organização patriarcal da família não
era exclusividade do Brasil rural:

Na medida em que ele [o patriarcalismo] dominava o meio urbano,


reduzia as outras camadas sociais a seu modo de ser. Na Colônia,
onde quer que se encontre uma família constituída e funcionante ela
será senhorial, mesmo sem terra, mesmo sem propriedades (p.47).

5
Especialmente com a mudança da família real para o Brasil, a
aristocracia portuguesa e a burguesia europeia passaram a minar o poder das
famílias nativas, transformando uma série de hábitos coloniais. Uma das
estratégias que conseguiu superar a resistência das famílias e modificar a
balança do poder para o lado do governo português foi a promoção da
medicina-higienista. Através da disseminação de um discurso médico que
pregava a higienização das populações, – uma vez que a relação privado-
urbano era precária, sendo a rua considerada como um terreiro da casa
familiar, onde se jogavam os mais variados dejetos – os indivíduos se
ordenariam e se organizariam, construindo novos modos de subjetivação
social. Conforme Costa (2004, p.28), “aliando os interesses da corporação
médica aos objetivos da elite agrária, a higiene incorporou a cidade e toda a
sua população, ao campo do saber médico”, tornando-a assim, o aliado mais
poderoso na efetivação do desejado controle social.

Isso porque a perspectiva higienista da medicina conseguia adentrar nas


famílias patriarcais de maneira que o Governo, mesmo se utilizando de
recursos policialescos e ou militares, não conseguia. Porém, isso não se deu
tão facilmente. Foi necessário mostrar às famílias que existia uma verdade que
estava fora delas, sendo a ciência a detentora dessa verdade.

Para efetivar esta ação, os higienistas desenvolveram e disseminaram a


ideia de que os pais erravam na proteção da família, não por incapacidade,
mas por ignorância. Assim, eles deveriam aderir às diretrizes do saber do
médico, uma vez que desejavam o que era correto e bom para seus filhos.
Dessa maneira, especialmente no período do Segundo Reinado brasileiro
(1840-1889), a medicina social se dedicou a interferir nos hábitos mais íntimos
da família burguesa urbana, procurando modificar suas rotinas físicas,
intelectuais, morais, sociais, sexuais, etc. Objetivava-se adaptar a família às
“boas normas”, ou seja, ao modelo propagado pelos discursos médico,
econômico e político vigentes. Sendo assim, a ciência e o Estado adentraram o
espaço reservado das famílias burguesas e, por meio do discurso médico-
higienista, tais famílias foram progressivamente se vendo fragilizadas em seu
papel de educar os filhos. Este sentimento de fragilidade fez com que as
famílias muitas vezes delegassem aos médicos as funções educadoras.

6
Assim, a ordem médica produziu, por meio do discurso higienista, um
novo conhecimento ordenado pelo poder e pelo Estado. Os modos de
subjetivação das relações familiares foram redefinidos, estabelecendo na
sociedade uma nova concepção de criança, de mulher, de homem, de amor, de
casamento e de família. Além disso, esse modo de subjetivação refez todo o
espaço da casa, reordenando a dimensão pública e a privada através da
higienização do espaço doméstico. Não obstante, racionalizou as condutas de
seus indivíduos, regulando seus costumes, sentimentos, identidades e suas
relações afetivas. Definiu ainda o que era saudável e o que era doentio,
ordenando a sexualidade do homem, da mulher, da criança e suas respectivas
condutas privadas e públicas. A intervenção médica na vida familiar favoreceu,
igualmente, a produção da figura do indivíduo contido, polido, bem educado,
cuja norma ideal era o comportamento disciplinado.

Em sua intervenção higienista, a medicina também suscitou nos


indivíduos o interesse por sua saúde e pelo seu corpo, alegando que a saúde e
a prosperidade da família dependeriam de sua sujeição à ordem médica e,
consequentemente, ao Estado, uma vez que era ele quem patrocinava tal
intervenção. Para tanto, desenvolveu-se uma nova moral da vida e do corpo,
diante da qual as condutas desviantes das normas da medicina e do Estado
eram consideradas como antinaturais e anormais. De acordo com Cunha
(2003, apud Barletto, 2006):

[...] essa reordenação das identidades num esquadrinhamento da


sexualidade, da afetividade e do consumo, tinha a intenção de
consolidar a concepção da intimidade e do indivíduo privado, ou
ainda, a interioridade psicológica. Tal empreendimento se realizava
através do conceito de comportamento urbano saudável (p.58) .

Utilizando-se principalmente da mulher para reordenar esses modos de


subjetivação, a medicina instituiu um novo tipo de maternagem, na qual a
mulher era responsabilizada pela higiene física e psicológica dos indivíduos.
Reafirmando a esposa como a responsável pelo cuidado da casa, dos filhos e
do espaço doméstico, a medicina modelizou a “mãe de família” a um conjunto
de posturas e expectativas físicas, sexuais, emocionais e sociais. Partindo
disso:

7
[...] as mulheres deveriam ser diligentes, ordeiras, asseadas; a elas
caberia controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e
trabalhadoras do país: àquelas que seriam as mães dos líderes
também se atribuía a tarefa de orientação dos filhos e filhas, a
manutenção de um lar afastado dos distúrbios e perturbações do
mundo exterior (LOURO, 2011, p.447).

Essa redefinição da mulher proporcionou um crescimento em seu papel


na sociedade, já que, de acordo com Costa (2004), a medicina concebia a
mulher como produtora de riquezas nacionais. Era ela a responsável por
educar os novos maridos, pais e filhos da sociedade, buscando assim,
reformular todo o meio social. Com isso, a manutenção das relações afetivas
familiares foi ratificada como sendo de responsabilidade da mulher.

Por sua vez, as necessidades econômicas, políticas e sociais –


derivadas tanto da instalação da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro quanto da
abertura dos portos pelo Príncipe Regente D. João VI – deram início a um
intenso processo de urbanização no país. Em busca de controlar os hábitos e
pensamentos de brasileiros e de imigrantes recém-chegados, foi necessário
propor, concomitante à progressiva intervenção da medicina social no universo
privado das famílias, um novo tipo e um novo lugar de educação. Uma
educação pela qual as crianças pudessem ser disciplinadas de acordo com os
valores sociais estabelecidos pelo governo e necessários para adequação aos
modos de viver e pensar mais interessantes a ele.

8
2.2. Dos mestres-escola às moças abnegadas

Movida pela necessidade de continuar a promover um maior controle


sobre os corpos e mentes da população, a corte imperial brasileira promulgou,
em 15 de Outubro de 1827, a primeira lei do ensino no Brasil que
regulamentava a criação do ensino público e gratuito no país. Decretando
ainda, em 1834, o Ato Adicional à Constituição do Império, outorgada em 1823,
o qual incitava a descentralização do recém criado sistema educacional público
brasileiro. Esta iniciativa do Estado o eximia da responsabilidade de investir e
promover uma educação pública por todo o território nacional. Isto porque, a
partir deste Ato, caberia “às províncias, regulamentar e promover a educação
pública primária e secundária em seus territórios, até então sob a
responsabilidade do governo central” (CHAMON, 2006, p.5).

No entanto, conforme Louro (2011), essas escolas conhecidas como


“escolas de primeiras letras”, também chamadas de “pedagogias”, ficaram
quase que totalmente restritas a sua menção nos decretos imperiais
supracitados, haja visto que o número de escolas destinadas ao ensino público
era insignificante quando comparado ao número de habitantes escolarizáveis,
dispersados por toda a extensão territorial do país. Além disso, nenhuma forma
de investimento era feita pelo Estado, seja em relação à capacitação de
professores, prédios e materiais escolares, métodos pedagógicos e currículo.
Desse modo, o Estado não se comprometia com as garantias mínimas que
pudessem favorecer o ensino para o povo, mostrando que a realidade
educacional da época estava muito distante de sua real necessidade. Dessa
maneira, o que realmente acontecia era a abertura dessas escolas mediante os
interesses dos governantes da época e de todo esse descaso com o ensino
público brasileiro:

O resultado foi que o ensino, sobretudo o secundário, acabou ficando


nas mãos da iniciativa privada e o ensino primário foi relegado ao
abandono, com pouquíssimas escolas sobrevivendo à custa do
sacrifício de alguns mestres-escola que, destituídos de habilitação
para o exercício de qualquer profissão rendosa, se viam na
contingência de ensinar (ROMANELLI, 1993 apud CHAMON, 2005, p.
34).

9
Conforme Chamon (2005), estas escolas de iniciativa privada eram
mantidas por congregações religiosas e também por mestres-escola, os quais,
livres de um sistema de educação, lecionavam da maneira que consideravam
mais conveniente. Assim, tinham como clientela os filhos e filhas da elite
político-econômica do país, o que acentuava o caráter classista e acadêmico
do ensino no Brasil.

Tendo o conhecimento adquirido junto à prática de ensinar, os


professores que lecionavam para esta privilegiada população se dividiam entre
professores das classes de meninos e professoras das classes de meninas
(quando estas existiam). Segundo Louro (2011), estes (as) docentes eram
pessoas de “boa moral”, honestas e saudáveis e tinham como tarefa ensinar
meninos e meninas a ler, escrever, contar e aplicar as quatro operações
básicas da Matemática; além de serem educados(as) na doutrina cristã.
Porém, com o passar do tempo incorporou-se uma diferenciação nestes
ensinamentos, pois, além das funções supracitadas, começou-se a ensinar
Geometria para os meninos e bordado e costura para as meninas.

A ideia de educação para as meninas não estava estritamente ligada à


formação acadêmica das mesmas. O acesso destas à escola buscava
contemplar a necessidade de se formar boas esposas e boas donas de casa e,
por isso, a diferenciação em um currículo que enfatizava o aprendizado de
prendas domésticas. Nesse sentido, corroborando com Louro (2011), Chamon
(2005) considerou que o trabalho docente feminino exigia das senhoras que o
exerciam, além de conhecimento do que deveriam ensinar, um legado de
atributos morais, aliados a um comportamento exemplar e virtuoso, o qual
deveria se refletir e se reproduzir dentro dessas escolas. Nesse sentido, o art.
7º do Decreto Imperial de 1827, que se dedicava exclusivamente à docência
feminina, dizia que:

Serão nomeadas mestras de meninas e admitidas a exame, na forma


do art. 3º, para cidades, vilas e lugares mais populosos, em que o
presidente em conselho, julgar necessário este estabelecimento,
aquelas senhoras, que por sua honestidade, prudência e
conhecimentos se mostrarem dignas de tal ensino, compreendendo
também o de coser e bordar (MOACYR apud CHAMON, 2005, p.31).

10
Há de se ratificar que as escolas “para meninas” atendiam a população
mais favorecida do Império brasileiro, uma vez que ensinar as “mulheres do
povo” não era prioridade para os governantes da época, pois a estas importava
saber cuidar dos filhos, do marido e da casa. Além disso, quase não existiam
mulheres dispostas a exercer o trabalho de ensinar as meninas das camadas
menos favorecidas, alegando que a saúde e a prosperidade da família
dependeriam de sua sujeição à ordem médica e, consequentemente, ao
Estado, uma vez que era ele quem patrocinava tal intervenção. Portanto, “a
educação feminina era um privilégio das filhas da elite brasileira e ocorria por
meio do ensino de canto, dança, francês e da prática de algumas habilidades
manuais” (CHAMON, 2005, p. 38).

Essa desvalorização da educação pública no Brasil, que poderia atender


as mulheres de camadas menos favorecidas, contribuiu para a constituição de
uma distinção binária das mulheres brasileiras, baseada na origem social
destas. Assim, estabeleceu-se de um lado as “senhoras” – como aquelas que
eram responsáveis por carregar um ideal de feminilidade, atrelado a algumas
normas comportamentais, como trabalhos filantrópicos e tempo livre para seus
filhos e marido - e de outro as “mulheres”, sendo estas as que tinham por
obrigação saber cozinhar, limpar, coser, lavar, passar, etc.

Reconhecendo a precariedade do sistema educacional brasileiro, seja


por parte do número ínfimo de escolas existentes ou, segundo Louro (2011),
pela falta de professores com boa formação, capazes de atender ao restante
da população, foram criadas, a partir da terceira década do séc. XIX, as
primeiras escolas normais do país. Estas escolas recebiam moças e rapazes,
que eram colocados em classes separadas – ou até em turnos separados –
objetivando formar mestres e mestras que pudessem ensinar a toda população
conforme os modelos sociais instituídos. Para Chamon (2005, p. 77),

[...] a proposta de ensino das escolas normais era extremamente


simples, e seu objetivo consistia em preparar professores para o
trabalho de ensinar na escola elementar. Com exceção da disciplina
Pedagogia e legislação de ensino, que poderiam ser consideradas
matérias pedagógicas, as outras disciplinas eram as que o professor
deveria ensinar na escola primária.

11
Entretanto, segundo Chamon (2006), o número de escolas normais
criadas para formar estes docentes era insignificante diante de todas as
pessoas escolarizáveis da época. Como o Estado já não se responsabilizava
por garantir um ensino de qualidade para o povo, também não se preocupava
em investir na construção de mais prédios, na capacitação de novos
professores e nem na aquisição de materiais pedagógicos.

Ainda que, durante grande parte do século XIX a docência de crianças


pequenas tenha ficado majoritariamente por conta de professores do sexo
masculino, de acordo com Louro (2011), o processo de industrialização pelo
qual passava o Brasil na segunda metade do século XIX ampliou as
possibilidades de emprego no mercado de trabalho para os homens, e, com
isso, contribuiu para uma maciça ocupação das escolas normais pelas
mulheres. Por sua vez,

[...] uma associação entre magistério primário e baixo prestígio


profissional foi se instalando gradativamente, a ponto de ser visto
como desonroso para o homem continuar atuando como profissional
da escola elementar (CHAMON, 2006, p.8).

Diante da perspectiva de que o homem tinha o papel de provedor


material e moral da família, função socialmente estabelecida pelos modos
hegemônicos de produção da masculinidade (derivados do predomínio por
séculos do modelo da família patriarcal no Brasil), os baixos salários pagos ao
magistério distanciaram o público masculino do mesmo. Porém, conforme
Louro (2011), esse processo de feminização do magistério não se deu tão
facilmente. Muitas disputas e discussões aconteceram no intuito de impedir
esse movimento, pois,

[...] para alguns parecia uma completa insensatez entregar às


mulheres usualmente despreparadas, portadoras de cérebros ‘pouco
desenvolvidos’ pelo seu ‘desuso’, a educação das crianças” (LOURO,
2011, p.449).

No entanto, era necessário educar a massa. Para isso, precisava-se


ampliar o sistema de instrução pública brasileiro, pois correria o risco de não
acompanhar a onda de modernização que começava a se desenvolver por todo
o mundo, na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, com a crescente
inserção das mulheres nestas escolas e a recorrente saída dos homens para
outras funções laborais, o governo brasileiro percebeu que não demoraria a

12
ficar sem professores para trabalhar com os alunos masculinos. De acordo com
Chamon (2005, p. 79),

[...] nunca tantos apelos tinham sido feitos ao papel social da mulher,
que, paradoxalmente, tinha o poder de participação limitado por ter
lhe sido negado pelos mesmos poderes instituídos, o direito de
frequentar o espaço público.

Assim, o governo imperial brasileiro permitiu que mulheres solteiras e


com idade superior a 23 anos ministrassem aulas em salas de meninos e
meninas que tivessem até 10 anos de idade. Entretanto, todo um trabalho de
vigilância era exercido sobre essas mulheres, controlando seus trajes, modos
de se portar e seu trato com as crianças. Além disso, em decorrência dessa
permissão - ocorrida em nível nacional no ano de 1879 - o governo equiparou,
pelo menos em forma de lei, o currículo e o salário dos professores e
professoras brasileiras.
Após instaurada a primeira república no Brasil, construiu-se todo um
discurso para justificar a eficiência da mulher no trato com as crianças e, ao
mesmo tempo, explicar o abandono do magistério por parte dos homens,
principalmente no que se referia à educação de crianças. Nesse sentido,
incorporou-se no tecido social um discurso que colocava a profissão docente
como um trabalho que necessitava de qualidades intrinsecamente associadas
aos modos hegemônicos de subjetivação da expressão feminina: postura de
amor, paciência, sensibilidade e cuidado. Estas ações deveriam se pautar na
afetividade e na devoção, e não nas recompensas materiais. Além disso, esse
discurso reafirmado pelos governantes republicanos enfatizava que a profissão
docente permitiria às mulheres a possibilidade de bem servir a sua pátria. Elas
fariam parte do mercado trabalho sem, contudo, deixar de lado suas funções
no ambiente doméstico, haja vista que se entendia o trabalho de educar
crianças como uma extensão da função “maternal” das mulheres.
Ao mesmo tempo que esse discurso sobre o trabalho docente se
disseminava no tecido social, iniciativas que ratificavam o mesmo eram
geradas por todo o território nacional. Tomemos como exemplo o Estado
mineiro. Minas Gerais criou no ano de 1906, através da lei nº 439, um novo
sistema de instrução pública, o qual preferenciava a admissão de professoras
para o ensino primário. Assim, em consonância com essa nova proposta,

13
instituiu-se a Escola Normal da Capital, que se destinava unicamente ao ensino
de mulheres. Toda essa reformulação se baseava em um discurso que
colocava o afeto, a pureza e a submissão como componentes inerentes ao
sexo feminino. Apresentando um trecho da lei estadual nº 439 de 16 de
dezembro de 1906, Chamon (2005, p. 99) destaca aquele que anuncia que:

A mulher melhor compreende e cultiva o caráter infantil, e a


professora competente é mais apta para a educação sem os desvios
do espírito, sem corrupções no coração e sem degradações no
caráter. Acresce que a professora com mais facilidade sujeita-se aos
reduzidos vencimentos com que o Estado pode remunerar o seu
professorado.

Indo ao encontro do que Chamon (2005) nos apresenta, um artigo da


Revista de Ensino de Belo Horizonte - MG coloca em cena a discussão das
mulheres que optaram pelo celibato e pela tarefa de ensinar. O texto nos
mostra que essas mulheres celibatárias não eram as mais indicadas para a
docência, apontando, ainda, argumentos que colocavam a mulher casada e
mãe como sendo a mais apta para isso, como indicado no trecho a seguir:

1 – Tendo a escola primária por missão mais educar do que instruir


(ao contrário das escolas secundária e superior), segue-se que o
melhor professor primário é aquele que possui mais apuradas as
qualidades de educador;

2- Ninguém melhor do que a mulher exerce esse mister na escola


primária e nas instituições pré-escolares;

3 – Entre uma professora solteira e outra casada, esta, regra geral, é


melhor educadora do que aquela, em virtude do tirocínio materno no
lar;

4 – Para que a escola seja efetivamente a “continuação do lar” é


preciso que entre ambos haja o equilíbrio de vasos comunicantes,
levando a professora para a escola as qualidades educadoras da
mãe de família;

5 – A professora-mãe é mais paciente, compreende melhor a alma da


criança, adivinha-lhes os desejos, é mais estimada pelos discípulos,
realizando assim, num ambiente de confiança, a disciplina suave na
escola;

6- A professora solteira tem uma vida “errante” no magistério,


mudando todos os anos de lugar, com grave prejuízo para a
continuidade da educação escolar. Esse “normalismo” não se dá com
a professora casada, que se fixa em determinada localidade,
preparando várias gerações de educandos, que continuam depois da
escola, a ouvir-lhes os conselhos.

14
7 – A professora solteira, no interior do Estado, longe da família, é
obrigada a viver pela casa de estranhos ou em pensões promíscuas
(CELIBATO..., 1933, p. 105-107).

Todavia, tal concepção sobre o feminino não se dava apenas em Minas


Gerais, mas ecoava por todo o país no movimento de incorporar a esfera do
doméstico e do cuidado – componentes considerados “naturais” da mulher –
como eixos principais da carreira docente, especialmente na educação de
crianças. Tal fato, por sua vez, fez ressonância à proposta já cultivada pela
medicina social de ter na mulher uma aliada no que se referia ao cuidado da
família. A tal discurso se somaram ainda elementos religiosos para construir o
magistério como uma atividade que implicava a caridade cristã, a doação, a
dedicação, o amor, a vigilância e a ênfase no cuidado. Esses elementos podem
ser ilustrados na Oração do mestre, escrita por Gabriela Mistral1:

Senhor! Tu que me ensinaste, perdoa que eu ensine e que tenha o


nome de mestre que tiveste na terra. Dá-me o amor exclusivo de
minha escola: que mesmo a ânsia da beleza não seja capaz de
roubar-me a minha ternura de todos os instantes. [...] Dá-me que eu
seja mais mãe do que as mães, para poder amar e defender, como
as mães, o que não é carne da minha carne. Dá que eu alcance fazer
de uma das minhas discípulas o verso perfeito e deixar gravada na
sua alma a minha mais penetrante melodia, que assim há de cantar,
quando meus lábios não cantarem mais (MISTRAL apud LOURO,
2011, p. 463).

Porém, essa nova configuração escolar trouxe também uma nova


problemática para os construtores e organizadores escolares. De acordo com
Louro (1997), mesmo sempre tendo se colocado num estado de alerta perante
a sexualidade daqueles que circulavam na instituição escolar, os organizadores
intensificaram essa vigilância à medida que mulheres começaram a lecionar
para alunos do sexo masculino. Assim sendo, conforme Souza (2008),
ratificava-se a todo o momento um ideal de boa professora. Além de
dedicadas, abnegadas, pacientes e amorosas, estas mulheres deveriam zelar
pela sua aparência física, pelo modo de se vestir, falar, andar e pelo tom de
voz utilizado durante as aulas. Segundo a referida autora, estas qualidades
determinavam ou não, o valor social e moral das docentes. Não obstante, os
trajes utilizados por elas deveriam ser, na medida do possível, assexuados.

1 Gabriela Mistral, pseudónimo de Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy


Alcayaga (1889-1957), foi uma poetisa, educadora, diplomata e feminista chilena.

15
Todavia, ainda que a Escola Normal atendesse sua função de formar
moças abnegadas dos benefícios materiais e capazes de conduzir a tarefa de
educar as futuras gerações dentro dos preceitos da nação, era preciso criar
instituições de ensino que abrangessem toda a sociedade, inclusive as
pessoas de camadas mais pobres e os imigrantes. Isso porque, com o
processo de modernização do país, o Estado brasileiro se viu diante da
necessidade de realizar mais investimento na educação, objetivando uma
maior escolarização do povo.

Nesse sentido, já no final do século XIX, foram projetados os primeiros


grupos escolares no país, pensados

[...] como um espaço escolar higiênico (saúde e aprendizagem) em


oposição ao da casa. [O espaço escolar era] organizado em classes
seriadas (racionalidade tempo e espaço) simbolizando o rompimento
com o passado imperial em direção ao mundo moderno (FARIA
FILHO (2000), apud BARLETTO, 2006, p.59).

Complementando a ideia supracitada sobre os grupos escolares, Souza


(1998) afirma que estes:

[...] eram um modelo de organização do ensino elementar mais


racionalizado e padronizado com vistas a atender um grande número
de crianças, portanto, uma escola adequada à escolarização em
massa e às necessidades da universalização da educação popular
(Souza (1998), apud CUNHA, 2010a, p.454).

Contudo, mesmo sendo uma proposta educacional moderna, que visava


atender inclusive as camadas mais pobres da sociedade brasileira, a criação
dos grupos escolares tinha como objetivo primordial a disseminação de tipos
ideais de comportamento. Sobre isso, Chamon (2005, p. 90) considera que:

A escola para o povo não se distanciou dos interesses de reprodução


dos valores sociais preconizados no seio da sociedade de classes.
Pelo contrário, ela foi sendo construída em uma tentativa de controlar
e (con)formar o cidadão, fazendo uso do reforço da autoridade, da
disciplina tradicional e da racionalização do lugar de trabalho. O som
do sino, o melhor uso do tempo, a organização da fila, a aplicação de
prêmio ou castigo, o cumprimento da tarefa do dever de casa, o culto
ao silêncio e à ordem eram habilidades que deviam ser aprendidas a
qualquer preço.

16
Diante de todo esse ideal pensado para ser a função da escola, onde a
moralização de toda a população era o principal interesse do governo, nada
melhor que o investimento social na construção de uma mulher que fosse uma
profissional dedicada, abnegada, amante de sua missão, vocacionada, zelosa
e acima de tudo, que entendesse a docência como um sacerdócio. E assim, a
mulher foi constituindo seu direito a uma função dentro do espaço público
brasileiro, ocupando quase todo o quadro docente da escola primária, além de
assumir as diretorias dos grupos escolares do país. No mais,

Se a escola pretendia alargar sua circunferência atendendo os filhos


dos cidadãos-trabalhadores, seria necessário construir uma ética do
profissional que a ocuparia. A virtude era seu mérito, e seu papel, o
de um vocacionado para uma cruzada civilizatória. Essa ética ia
sendo construída como ética do profissional do ensino elementar e ia
se configurando [...] como uma profissão feminina ainda presente no
imaginário social. Uma escola que surgiu para cumprir uma função de
classe não poderia desprezar a função moralizadora que também
nascera com ela (CHAMON, 2005, p.82).

Imbuídas dessa missão de moralizar, doutrinar e modernizar a


sociedade brasileira por intermédio da escola, essas mulheres professoras e
“missionárias” contaram com a ajuda do movimento higienista para modificar o
comportamento das famílias pobres e de imigrantes, lutando contra os hábitos
“nocivos” existentes em seus espaços domésticos. Sendo assim, “absorvendo
os preceitos originários da ordem médica, deram continuidade ao processo de
normalização das mentes e dos corpos dos educandos através de seu discurso
educacional” (CUNHA, 2010a, p. 456).

Esse discurso pedagógico, segundo Charlot (1983), concebia a


educação como sendo a causa essencial do vir-a-ser individual e social e, por
isso, era necessário que a escola estabelecesse as famílias, através de um
discurso legitimado, - tal como fora feito com o discurso médico- que os
professores também detinham o conhecimento científico necessário para levar
as crianças às normas que a sociedade requisitava. Conforme Cunha (2010a),

[...] a campanha educacional movida pelos novos educadores,


inspirados na nova ordem social, fundamentados em prescrições das
novas ciências, rezava que medidas de política sanitária não seriam
eficientes para modernizar a sociedade, caso não fossem
acompanhadas de medidas educacionais correspondentes. A
renovação educacional necessária e almejada no país devia compor-
se do trinômio saúde, moral e trabalho (p. 457).

17
Para Gondra (2010), era claro o poder conferido à escola, pois, além de
eximir o monopólio da Igreja e da família na educação das novas gerações,
serviria também para esvaziar as prisões, pois, caso funcionasse de acordo
com os objetivos da ordem médica, fabricaria uma moralidade higiênica e
higienizadora. O discurso proferido pela pedagogia emergente daquelas novas
práticas escolares dizia, segundo Charlot (1983, p.115), que “a infância era a
idade da corrupção, representada pela maldade, perversidade, instabilidade,
desordem, impulsividade, cólera e cabia à educação lutar contra ela”.

Com disso, a ação pedagógica transformou a dependência social da


criança pelos adultos em algo natural, tornando a escola um mecanismo de
regulação social do Estado. Através desse discurso, colocou a família como
incapaz de educar seus filhos e delegou todo o conhecimento ao professor e à
Pedagogia, sendo esta última a responsável por construir um novo processo de
entendimento da infância. Diante dessa “inferioridade e corruptibilidade natural”
da criança, o discurso ressaltava a necessidade de uma educação voltada para
a formação desse sujeito.

Dessa maneira, para Cunha (2010b), a escola tinha se tornado um


espaço privilegiado de disciplinamento do corpo e dos modos de pensar,
mostrando-se grande aliada à adequação dos indivíduos às normas higienistas
de saúde física, moral e mental da sociedade. Afinal, através da escola
poderiam se estabelecer padrões de alimentação e comportamento social,
como também coibir qualquer tipo de manifestação – sexual, social, afetiva,
moral, ideológica – inadequada. Enfim, a escola funcionava como uma
dimensão disciplinar a fim de controlar e igualmente fazer incorporar hábitos,
horários, medidas e tratos com o corpo, com as relações de gênero, as
autoridades, a pátria, a moral e com valores que o Estado – primeiramente o
Estado Imperial, depois o Estado Republicano – pretendia hegemonizar no
Brasil.

Entretanto, à medida que as mulheres brasileiras (especialmente as de


camadas populares) foram se inserindo no mercado de trabalho, no início do
século XX, impulsionadas pela crescente oferta de trabalho fabril e pela
necessidade de complementar a renda familiar e/ou até mesmo sustentar sua

18
família, um novo problema passou a tomar forma. Isso porque, sendo elas, até
então, as responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos, ao passarem a
ocupar funções laborais em outras instâncias, que não apenas as de cunho
familiar e do magistério, muitas criaram a necessidade de se estabelecer um
novo local de provimento para as crianças (inclusive bebês). Tornava-se
necessária a criação de espaços para acolhimento das crianças das mães
trabalhadoras, que viriam a ser as creches.

2.3. A criação das creches

Conforme Louro (1997), o intenso processo de modernização do Brasil 2


também resultou na ampliação do espaço profissional da mulher na sociedade.
Pretendendo diminuir ao máximo o custo da produção, e percebendo nas
mulheres a possibilidade de uma mão de obra bem menos valorizada, a
indústria modernizou seus instrumentos e as formas de organização do
processo produtivo, possibilitando que as mulheres também pudessem
adentrar esse setor do mercado de trabalho. Para Antunes (1999), essa
desvalorização do trabalho feminino se dava principalmente pelo fato das
mulheres serem empregadas em atividades restritas às áreas rotinizadas, que
exigiam menos qualificação.

Nesse sentido, com o nascimento da indústria moderna os hábitos e


costumes das famílias, além da estrutura social vigente, foram profundamente
alterados. Segundo Vieira (1988), diante dessa nova posição de muitas
mulheres na sociedade, – tendo agora uma crescente participação delas no
trabalho das fábricas, fundições e minas de carvão – restava às mães que
necessitavam trabalhar (geralmente as de classes operárias e cujos filhos não
tinham idade escolar) delegar a criação de seus filhos a criadeiras. Estas eram
mulheres do povo que, ao optarem por não trabalhar nas fábricas, cuidavam,
geralmente em suas próprias casas, dos filhos das mulheres trabalhadoras.
Porém, de acordo com a supracitada autora, as criadeiras eram consideradas

2 Especialmente na chamada Revolução Industrial Brasileira (1930-1945), quando o governo de


Getúlio Vargas afastou do poder do estado oligarquias tradicionais que representavam os
interesses agrário-comerciais. Getúlio Vargas adotou uma política industrializante com
substituição de mão-de-obra imigrante pela nacional.

19
as responsáveis pelas altas taxas de mortalidade infantil, pois muitas vezes
não tinham hábitos higiênicos condizentes com os estabelecidos pela ordem
médica, sendo ignorantes aos procedimentos da puericultura. Além disso, por
elas morarem geralmente em cortiços circunvizinhados por adultos, que muitas
vezes eram portadores de doenças contagiosas, conviviam com possíveis
fontes de doenças. Sobre isso, Rizzo (2003, p. 31) nos diz:

Criou-se uma nova oferta de emprego para as mulheres, mas


aumentaram os riscos de maus tratos às crianças, reunidas em maior
número, aos cuidados de uma única, pobre e despreparada mulher.
Tudo isso, aliado a pouca comida e higiene, gerou um quadro caótico
de confusão, que terminou no aumento de castigos e muita
pancadaria, a fim de tornar as crianças mais sossegadas e passivas.
Mais violência e mortalidade infantil.

Diante desse novo problema de ordem social, os governantes


perceberam a necessidade de estabelecer um local condizente com a ordem
médica estabelecida para que as mães pudessem deixar os seus filhos ao
saírem para trabalhar. Fatores como o alto índice de mortalidade infantil, a
desnutrição generalizada e o número significativo de acidentes domésticos
fizeram com que o governo brasileiro, juntamente com alguns setores da
sociedade, dentre eles os religiosos, os empresários e educadores,
começassem a pensar num espaço de cuidados da criança fora do âmbito
familiar.

Nesse sentido, o governo lançou a ideia da creche no Brasil.


Diferentemente dos países europeus, no Brasil as primeiras tentativas de
organização de creches surgiram com um caráter assistencialista, com o intuito
de combater o trabalho das criadeiras e auxiliar as mulheres que trabalhavam
fora de casa. Estabelecida em território brasileiro no final do século XIX e início
do século XX, cabia à creche exilar as crianças pobres, enfatizando seu caráter
assistencial, além de desenvolver e cultuar os bons hábitos, respeitando os
preceitos de saúde elaborados pela medicina higienista.

No entanto, a creche, inicialmente, não era bem vista pelos grupos


sociais mais conservadores, porque ela “atestava” uma desordem urbana e um
“desajustamento” moral e econômico do Estado e dos lares. Tal
desajustamento era percebido na renúncia das mulheres às tarefas domésticas

20
e ao cuidado afetivo da família, para que pudessem ingressar no mercado de
trabalho. Porém, essas instituições se tornaram indispensáveis para a
manutenção da ordem higiênica da sociedade, combatendo, assim, o comércio
das criadeiras. Conforme Didonet (2001, p. 13),

[...] enquanto para as famílias mais abastadas pagavam uma babá,


as pobres se viam na contingência de deixar os filhos sozinhos ou
colocá-los numa instituição que deles cuidasse. Para os filhos das
mulheres trabalhadoras, a creche tinha que ser de tempo integral;
para os filhos de operárias de baixa renda, tinha que ser gratuita ou
cobrar muito pouco; ou para cuidar da criança enquanto a mãe estava
trabalhando fora de casa, tinha que zelar pela saúde, ensinar hábitos
de higiene e alimentar a criança. A educação permanecia assunto de
família. Essa origem determinou a associação creche, criança pobre
e o caráter assistencial da creche.

Desse modo, segundo Vieira (1988a), na intenção de combater o alto


índice de mortalidade infantil, tanto no interior da família como nas instituições
de atendimento à infância, o Estado brasileiro associou-se às tendências
jurídico-policial, médico-higienista e religiosas, para implantar as creches no
final do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX no Brasil.
. Porém, conforme Paschoal e Machado (2009), devido a fatores como
o processo de implantação da industrialização no país, a inserção da mão-de-
obra feminina no mercado de trabalho e a chegada dos imigrantes europeus no
Brasil, os movimentos operários ganharam força. Assim, estes começaram a se
organizar no intuito de reivindicar melhores condições de trabalho. Em meio a
estas reivindicações estava a criação de instituições de educação e cuidados
para seus filhos. Sendo assim, pressionado pelo movimento operário e
amparado por um dos princípios básicos da puericultura – que é a importância
do contato mãe/filho nos primeiros meses de vida da criança – o Estado
brasileiro criou, em 1923, segundo Kuhlmann Jr. (2010), a primeira
regulamentação do trabalho feminino. Nesta, era previsto, entre as novas
diretrizes, que as indústrias deveriam facilitar a amamentação dos filhos de
mães trabalhadoras durante a jornada de trabalho delas. Para isso, foi
necessário instalar creches ou salas de amamentação próximas ao local de
trabalho dessas mulheres. Contudo, tal prática só se tornou obrigatória durante
o governo de Getúlio Vargas, em 1932, com uma nova regulamentação do
trabalho feminino. Conforme Oliveira (1992, p. 18),

21
Os donos das fábricas, por seu lado, procurando diminuir a força dos
movimentos operários, foram concedendo certos benefícios sociais e
propondo novas formas de disciplinar seus trabalhadores. Eles
buscavam o controle do comportamento dos operários, dentro e fora
da fábrica. Para tanto, vão sendo criadas vilas operárias, clubes
esportivos e também creches e escolas maternais para os filhos dos
operários. O fato dos filhos das operárias estarem sendo atendidos
em creches, escolas maternais e jardins de infância, montadas pelas
fábricas, passou a ser reconhecido por alguns empresários como
vantajoso, pois mais satisfeitas, as mães operárias produziam melhor.

As creches, então instaladas nas fábricas e subordinadas aos órgãos de


saúde pública ou de assistência social, eram também responsáveis pela
educação das mães e moralização da cultura infantil sobre os moldes da
puericultura, educando essas pequenas crianças para o controle da vida social.
Percebemos isso em Boltanski (1974), quando ele diz que o objetivo da
puericultura ia além do sentido médico, pois visava regular todos os atos da
vida, tendo como foco principal os atos das famílias de classes populares,
incluindo os que se realizavam no seio do lar. Integradas ao Departamento
Nacional da Criança, pertencente ao Ministério da Educação e da Saúde, as
creches foram atreladas às instituições da área da saúde e da assistência
social, integrando uma política de proteção à maternidade e a infância do país.
Portanto, as creches tinham o objetivo de cuidar das crianças de famílias de
classes populares, assim como ordenar estas famílias conforme as normas da
medicina higiênica.

Desse modo, a educação nas creches e escolas, voltada para a


formação da infância higienizada nas famílias, definiu o lugar do poder e da
autoridade da pedagogia como ciência, justificando, assim, o lugar do Estado
na educação dos sujeitos. Segundo o discurso científico da Psicologia e da
Pedagogia, baseado principalmente nos trabalhos do biólogo Jean Piaget, a
criança só teria condições de compreender as lógicas científicas a partir dos
sete anos de idade. Diante disso, o Estado legitimou as creches como
instituições pré-escolares, que deveriam enfatizar os bons hábitos, o cuidado, o
lúdico e o afeto. Porém, foi somente em 1988, com a nova Constituição
Federal, que as creches passaram a fazer parte do sistema nacional de ensino.
Todavia, a efetivação legal delas, enquanto modalidade educacional, só se deu
em dezembro 1996, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB), nº 9.394.
22
Contudo, durante toda a sua história, as creches foram direcionadas por
princípios assistencialistas, o que fez com que:

[...] o preconceito com relação ao trabalho manual e aos cuidados de


educação e higiene se associassem à dimensão do doméstico, fato
que resultou na desqualificação deste profissional que trabalhava
com as crianças menores e na divisão do trabalho entre professoras
e auxiliares (KUHLMANN JR., 2000, p.13).

Assim, essa desvalorização da educação de crianças pequenas,


atrelada à concepção das creches como um lugar de cuidado, sustentou e
reforçou a ideia de que as mulheres seriam as mais “aptas” para exercer essa
função, pois elas já se responsabilizavam pelo cuidado da casa e dos filhos,
além de terem no magistério uma profissão legitimada para o público feminino.
Não obstante, fatores como a falta de importância dada às questões cognitivas,
enfatizando somente o aspecto do cuidado, aliada à concepção de
maternagem no âmbito da família e da escola, também colaboraram para a
dominação feminina destas instituições. Isso ocasionou a criação de uma forte
imagem que associava o magistério na educação infantil à vocação afetiva por
crianças e não à profissão; vocação esta que se caracterizava por ser um
serviço de doação, pautado no amor e não nas recompensas materiais.

E é nesse contexto de efervescência do processo de modernização do


país, que entendia a necessidade de uma melhoria na educação para que o
Brasil pudesse acompanhar os países de 1º mundo, que foi criado o 1º curso
de Pedagogia brasileiro, sendo este, posteriormente instituído na Universidade
Federal de Viçosa.

23
2.4. O curso de Pedagogia na Universidade Federal de Viçosa

Antes de adentrarmos no debate sobre a criação do curso de Pedagogia


na Universidade Federal de Viçosa, acreditamos ser necessário situar o
surgimento deste em escala nacional. Assim, conforme Ferreira (2012), o
primeiro marco referente à criação do curso de Pedagogia no Brasil é datado
de 1939, quando o Governo Federal promulgou o decreto-lei n. 1.190, de
quatro de abril de 1939. Este dava organização, no Rio de Janeiro, à
Faculdade Nacional de Filosofia3, que passou a oferecer cursos em quatro
seções específicas de conhecimento: filosofia, ciências, letras e pedagogia.
Entre elas se distribuíam os cursos regulares de Filosofia, Matemática,
Química, Física, História Natural, Geografia, História, Ciências Sociais, Letras,
Pedagogia e Didática (VIEIRA, 2008b). Assim sendo,

[...] inicialmente, o Curso de Pedagogia formava bacharéis,


respeitando o “padrão federal” curricular num esquema chamado 3 +
1, no qual o bacharel, formado em um curso com duração de três
anos, que desejasse se licenciar completaria seus estudos com mais
um ano no Curso de Didática. Os Bacharéis em Pedagogia atuariam
em cargos técnicos de educação no Ministério da Educação e os
licenciados, ao concluírem o Curso de Didática, estariam habilitados
ao magistério no ensino secundário e normal (VIEIRA, 2008b, p.3).

Nesse sentido, ainda que o principal objetivo para a criação do curso de


Pedagogia no Brasil fosse o de formar professores e professoras para trabalhar
no ensino secundário, diretamente nas Escolas Normais, a partir da década de
1940 se observou a necessidade de ampliação dos espaços de atuação do
Pedagogo (FERREIRA, 2012). Visto que ele não tinha exclusividade para
lecionar nas Escolas Normais (dado que o Decreto Lei n. 8.530/46, Lei
Orgânica do Curso Normal, definia que todo graduado poderia exercer o
magistério no Curso Normal), era preciso ampliar o campo de atuação deste
profissional. Então:

[...] se o pedagogo pode ser mestre dos mestres da Escola Normal,


por que não ser professor primário? Uma das decorrências desse
movimento de ampliação de espaços foi a permissão ao pedagogo de
lecionar no ensino primário e no secundário (VIEIRA, 2008b, p. 5).

3 A Faculdade Nacional de Filosofia foi extinta, em 1968, pelo governo militar. Posteriormente
foi unificada, juntamente com outras faculdades, como Universidade do Brasil, depois
renomeada como Universidade Federal do Rio de Janeiro.

24
Nesse contexto de efervescência no Brasil, marcado por um intenso
debate político relacionado às questões educacionais - especialmente a
formação docente-, viu-se a necessidade de uma intensa reforma na educação,
já que havia um consenso da importância dela na construção de um Estado
Nacional moderno. Nesse sentido, toda essa discussão culminou na criação de
diversas instituições de ensino, dando origem, a partir do Decreto no. 3.211, de
quinze de dezembro de 1949 (BORGES; SABIONI, 2010), à Escola Superior de
Ciências Domésticas (ESCD) na então Universidade Rural do Estado de Minas
Gerais (UREMG4).
A UREMG foi constituída, inicialmente, pelos seguintes
estabelecimentos e órgãos: Escola Superior de Agricultura; Escola Superior de
Veterinária; Escola Superior de Ciências Domésticas; Escola de
Especialização; Serviço de Experimentação e Pesquisa e Serviço de Extensão.
Naquele contexto, a Escola Superior de Ciências Domésticas tinha por
finalidade diplomar bacharelas em Ciências Domésticas, estimular o espírito de
pesquisa e extensão e, ao mesmo tempo, preparar a mulher para a vida do lar
dando-lhe oportunidade profissional que assegurasse um padrão de vida
“compatível com sua capacidade” (BORGES; SABIONI, 2010). Ratificando tal
perspectiva, Barletto (2006) considera que um dos objetivos da ESCD era o de
“educar, recriar o universo doméstico - saneado, alimentado, eficiente, etc.- no
âmbito da academia e sob a batuta de seus agentes: mulheres do ensino
superior” (p.77).
Esse contexto produziu grande influência na dinâmica do curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa. Criado em 1971, pelo Ato nº
17/1971 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão – CEPE, o Curso de
Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa (UFV) nasceu vinculado à
Escola Superior de Ciências Domésticas (ESCD), constituída, por sua vez,
pelos Departamentos de Economia Familiar, Habitação, Puericultura, Arte e
Recreação, Educação, Psicologia, Sociologia e Nutrição e Saúde (BARLETTO,
2006). Estes departamentos atendiam predominantemente ao Curso de

4 A Universidade Federal de Viçosa foi fundada em 1926, sendo então denominada de Escola
Superior de Agricultura e Veterinária do Estado de Minas Gerais (ESAV). Tornou-se
Universidade Rural do Estado de Minas Gerais (UREMG) em 1949 e, em 1969, foi
federalizada.

25
Licenciatura de Economia Doméstica. Assim, “a criação do Departamento de
Educação na ESCD se fez voltado para a formação de mulheres como
extensionistas das práticas domésticas modernas” (BARLETTO, 2006, p. 82).
Vinculado à ESCD, existia a efetiva autonomização do Departamento de
Educação, que se deu em 27 de Janeiro de 1978, pelo Decreto nº 81.260 e
após o Decreto-lei 53/66, que determinava normas de organização para as
universidades federais, tendo como uma de suas principais normas a que
"obrigava, também, à criação de uma unidade voltada para a formação de
professores para o ensino secundário e de especialistas em questões
pedagógicas - a Faculdade (ou centro ou departamento) de Educação"
(CUNHA, 2010b, p.179).
Por sua vez, naquele mesmo ano de 1978, e respondendo à nova
estrutura administrativa da UFV, a Escola Superior de Ciências Domésticas
passou à condição de Departamento de Economia Doméstica, ficando ambos –
Educação e Economia Doméstica – subordinados ao então recém-criado
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Com várias mudanças em sua grade curricular ao longo do tempo, o


curso de Pedagogia da UFV habilitou profissionais especialmente para as
áreas de Magistério, Administração Escolar e Supervisão Escolar. No entanto,
a partir da Lei de Diretrizes e Bases para Educação (LDB), nº 9.394, de
dezembro de 1996 (que redefiniu a formação desses profissionais do
magistério), o curso de Pedagogia tomou uma nova dinâmica, movida
principalmente pelo art. 64 da nova LDB, que sustenta que

[...] a formação dos profissionais de Educação para Administração,


Planejamento, Inspeção, Supervisão e Orientação Educacional para a
educação básica será feita em cursos de graduação em Pedagogia
ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino,
garantida nessa formação a base comum nacional (BRASIL/LDB
9.394, 1996, s/p).

Nesse sentido, o curso de Pedagogia na UFV passou a qualificar o


licenciado para que pudesse atuar no ensino das matérias pedagógicas do
Ensino Médio, em organizações educacionais e agências culturais de
educação permanente e de preparação de recursos humanos para o trabalho,
e também na Administração e Supervisão Escolar - fosse ela no ensino de
Primeiro ou Segundo Grau, tanto público quanto particular. Esse tipo de
26
formação foi oferecido até o ano de 1999, pois, a partir da Portaria SESu/MEC
nº 146, de março de 1998, que situou a docência como sendo a base da
formação do pedagogo, o curso da UFV teve que ser reformulado a fim de se
adaptar a tais diretrizes.
Conforme Aquino (2011), diante de toda essa reformulação que
priorizava a docência, a partir do ano 2000, o licenciado em Pedagogia passou
a estar habilitado para atuar na docência da Educação Infantil, nos anos iniciais
do Ensino Fundamental e na docência em disciplinas de formação pedagógica
do nível médio. Além disso, podia desempenhar sua profissão na organização
de sistemas, unidades, projetos e experiências escolares e não escolares, na
produção e difusão do conhecimento científico e tecnológico.
Em 2004, porém, ocorreu outra mudança no perfil do licenciado em
Pedagogia da UFV. Apesar de continuar habilitado para trabalhar na
Administração, Supervisão, em experiências educativas não escolares e áreas
emergentes do campo educacional, sua atuação no Magistério das Matérias
Pedagógicas ficou restrita ao Ensino Médio. Não obstante, as habilitações para
o Magistério dos anos iniciais do Ensino Fundamental e na Educação Infantil
foram extintas do currículo desta licenciatura, impedindo os alunos de atuarem
na docência destas áreas educacionais (AQUINO, 2011).
Essa formação persistiu no curso de Pedagogia da UFV até o ano de
2008, quando, com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Curso de Pedagogia, em 2006, - por meio do Conselho Nacional de Educação -
, o Departamento de Educação da UFV viu-se obrigado a reestruturar esse
curso, uma vez que, segundo as novas diretrizes:

[...] as instituições de educação superior que mantêm cursos


autorizados como Normal Superior e que pretenderem a
transformação em curso de Pedagogia e as instituições que já
oferecem cursos de Pedagogia deverão elaborar novo projeto
pedagógico, obedecendo ao contido nesta Resolução (BRASIL/CNE,
2006, ART. 11º).

Sendo assim, o curso de Pedagogia da UFV passou a adotar a


concepção da docência indicada no parecer do Conselho Nacional de
Educação, estabelecendo que:

Art. 2º As Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia aplicam-


se à formação inicial para o exercício da docência na Educação

27
Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de
Ensino Médio, na modalidade Normal, e em cursos de Educação
Profissional na área de serviços e apoio escolar, bem como em
outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos.
Art. 4º O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação
de professores para exercer funções de magistério na Educação
Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de
Ensino Médio, na modalidade Normal, de Educação Profissional na
área de serviços e apoio escolar e em outras áreas nas quais sejam
previstos conhecimentos pedagógicos (BRASIL/CNE, 2006. s/p).

Dessa maneira, a licenciatura em Pedagogia na UFV optou por enfatizar


a formação de profissionais para atuar na docência da Educação Infantil e dos
anos iniciais do Ensino Fundamental, enfocando também a pesquisa e a
gestão. A opção pela docência se ratifica no projeto político pedagógico do
curso, no qual o licenciado se forma para:

Compreender a sala de aula, a instituição escolar e, como


consequência, reinventar a prática pedagógica no contexto do
trabalho coletivo, sem esquecer-se da ênfase à inclusão, à
diversidade, à cultura, ao ensino, à pesquisa e à atividade de gestão
educacional (DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO (DPE, 2008, p. 5).

E,

Fica evidenciada a opção política do DPE [Departamento de


Educação] em favor da docência, gestão e da pesquisa,
oportunizando a análise e o aprofundamento na dinâmica da
formação pedagógica de questões relativas às práticas de gestão do
cotidiano escolar, com abordagem de temas ligados à formação
docente e constituição do sujeito professor, e de questões relativas ás
políticas sociais de inclusão e sua relação com a educação e com a
escola (DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO (DPE, 2008, p. 8).

Dessa forma, ainda na perspectiva de atender o Art. 7 das DCN, os


cursos de Licenciatura em Pedagogia passaram a ter a carga horária de no
mínimo de 3.450 horas de trabalho acadêmico (de um mínimo regimental de
3.200 horas), das quais se espera que haja no mínimo “300 horas dedicadas
ao Estágio Supervisionado prioritariamente em Educação Infantil e nos anos
iniciais do Ensino Fundamental [...]” (BRASIL/CNE, 2006, ART. 7º, INCISO II).
Contudo, mesmo não destinando todo esse tempo a um Estágio
Supervisionado na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, o
curso de Pedagogia da UFV, à medida que assumiu o referido estágio como
uma disciplina obrigatória do curso, favoreceu que os seus discentes
obrigatoriamente se inserissem na Educação Infantil e, consequentemente, se
envolvessem com crianças de 0 a 5 anos. Ao fazer isso, o curso de Pedagogia
28
da UFV contemplou as exigências das Diretrizes Curriculares Nacionais que,
em seu Art. 5º, informa:

[...] o egresso do curso de Pedagogia deverá estar apto a


compreender, cuidar e educar crianças de zero a cinco anos, de
forma a contribuir, para o seu desenvolvimento nas dimensões, entre
outras, física, psicológica, intelectual, social (BRASIL/CNE, 2006,
ART. 5º, INCISO II).

Assim, o perfil dos (as) estudantes licenciados (as) na UFV passou a ser
definido como sendo aquele (a) profissional formado (a), preferencialmente,
para atuar na docência dos anos iniciais do Ensino Fundamental e na
Educação Infantil. O docente, em sua proposta pedagógica e em concordância
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010),
passa a assumir “a responsabilidade de compartilhar e complementar a
educação e cuidado das crianças com as famílias” (p.17).

29
2.5. Sobre a produção de subjetividade

Analisando as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de


licenciatura em Pedagogia, podemos observar que, desde a criação dessa
licenciatura, diferentes modos de produção do perfil profissional do(a)
pedagogo(a) foram construídos. No mesmo movimento, diversos currículos
foram produzidos com o intuito de orientar a atuação/intervenção desse
profissional no meio social. Nesse sentido, ao apresentarmos o atual projeto
político pedagógico do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa,
percebemos que as várias mudanças ocorridas em sua configuração, ao longo
da trajetória do curso, aconteceram em função das transformações nas
diretrizes educacionais do país. Tais mudanças são indicativas de diferentes
produções de subjetividade a se configurar nos processos educacionais.

Por produção de subjetividade entendemos todo um processo de


produção de modos de existência, de fabricação de maneiras de pensar e de
agir na construção de uma realidade social, corporal, mnemônica, simbólica,
econômica, tecnológica, afetiva, desejante, sexual, etc, de uma sociedade
(GUATTARI; ROLNIK, 2005).

Assim sendo, de acordo com Guattari e Rolnik (2005), a produção de


subjetividade pode ser vivenciada e assumida pelos indivíduos de duas
maneiras: numa relação de alienação e opressão, na qual um indivíduo se
submete à subjetividade hegemônica, tal como a recebe; e numa relação de
criação e expressão, na qual o indivíduo produz processos de singularização, à
medida que se apropria dos componentes dessa subjetividade que circula no
tecido social. Há de se destacar que, ao abordar o conceito de subjetividade,
não nos referimos a uma essência interior e individual atribuída a um sujeito
particular, sendo que, para estes autores:

(...) os indivíduos são resultado de uma produção de massa. O


indivíduo é serializado, registrado, modelado. (...) A subjetividade não
é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa
é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos
agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente
fabricada e modelada no registro do social. (...) Parece oportuno partir
de uma definição ampla da subjetividade, para, em seguida,
considerar como casos particulares os modos de individuação da

30
subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 40).

Entrecortando a todo o momento instâncias individuais como as sociais,


econômicas, da mídia e outras tantas, os processos de subjetivação criam,
recriam e ou rigidificam formas de ser, habitar o mundo e conceber uma
realidade. Assim, são processos que não se remetem à constituição de um
estado de pureza, pois se fazem em meio a agenciamentos, misturas,
hibridações, que se atualizam das mais diferentes maneiras na produção social
de grupos e indivíduos. Nesse sentido, para Romagnoli (2012), a subjetividade
se torna uma multiplicidade de forças impessoais, não percebidas sem um
olhar microscópico. Assim sendo, acredita a autora que

[...] os processos de subjetivação, as produções de subjetividade se


engendram em meio a conexões entre formas dominantes, práticas
instituídas, normas sociais, papéis de gênero, relações de poder,
movimentos coletivos e forças invisíveis e moleculares que nascem
“entre” esses agenciamentos (ROMAGNOLI, 2012, p. 54).

Assim, temos que os processos de subjetivação dizem respeito a


dinâmicas complexas que não se reduzem ao indivíduo, apesar deles poderem
ser neutralizados e capturados em processos de individuação. Coincidindo com
um processo de criação de identidades, os de individuação, por exemplo,
favorecem a construção de relações dicotômicas entre homens e mulheres.
Dessa forma, eles normatizam, para cada sexo, um comportamento afetivo,
corporal, social e sexual, construindo indivíduos que buscam, a todo o
momento, a inserção dentro de uma produção hegemônica de subjetividade, na
qual se encontram inscritos homens, mulheres, homossexuais, crianças, etc.
Deste modo, entendemos que as concepções sobre estes indivíduos não são
essências, mas emergem de produções de subjetividade que delimitam a estes
sujeitos territórios identitários, dentro dos quais se tentam estabilizar condutas,
regras, modos de viver, agir e pensar.

Consideramos assim, que a própria expressão feminina ou masculina e


as maneiras de organização das hierarquias e dos poderes no lar não se
reduzem exclusivamente a determinantes biológicos ou genéticos, mas se
agenciam à produção de valores, sensibilidades, sexualidades. Mais do que
ficar só no nível da genitalidade, as expressões masculinas e femininas
31
dialogam com toda uma produção de subjetividade envolvendo a mulher, o
homem, o corpo, a família, as instituições, a economia, a política, a cultura e os
afetos. Desta maneira, percebemos que a subjetividade da expressão feminina
(tanto no lar, na escola e em outras instituições) normatiza comportamentos e
constrói o espaço doméstico enquanto um local da mulher devotada ao afeto,
ao amor, ao cuidado e à maternagem.

É nesse mesmo movimento de produção de subjetividades femininas e


masculinas que são construídos os ambientes da Educação Infantil. Enquanto
territórios identitários, eles se configuram em continuidade às atividades do lar:
lugar de afeto, atenção e cuidado para com as crianças. Assim, sendo a
expressão feminina a responsável pelo cuidado da casa e dos filhos, ninguém
melhor do que ela para desempenhar esta função neste espaço educacional.

Nesse mote, da mesma forma que há uma produção de subjetividade


que cria toda uma invenção da dimensão do feminino (sustentada na
afetividade, na fragilidade, na maternidade, no cuidado das crianças e do lar),
as dimensões da masculinidade são também produzidas em modos de
subjetivação, que relacionam o masculino às instâncias de agressividade,
violência, domínio, mando, controle. Contudo, esse modelo dominante fomenta
o papel do homem como um cuidador-protetor-provedor material da família,
tendo a função de cuidador afetivo diminuída, uma vez que esse elemento já
diz respeito aos modos de subjetivação feminina do lar, da mulher e da relação
com os filhos.

Corroborando com o pensamento supra referenciado, Connel (1995) vai


ainda mais longe. Conforme ele, historicamente essas funções sociais
atribuídas ao ser masculino moldaram o seu comportamento, levando-o a opor-
se não apenas ao feminino, mas a todas as figuras que articulam
representações de feminilidade, fraqueza, impotência, subordinação e
passividade. Assim, espera-se que o homem sempre mostre ser forte, capaz e
corajoso, além de assumir posturas competitivas em sua afirmação territorial.
Weeks (2001), por sua vez, considera que a sociedade atribui grande
significado ao corpo e à sexualidade, afirmando que o corpo biológico é o local
da sexualidade, e que esta é mais do que simplesmente o corpo. O referido
autor afirma que:

32
[...] nossas definições, convenções, crenças, identidades e
comportamentos sexuais não são o resultado de uma simples
evolução, como se tivessem sido causados por algum fenômeno
natural: eles têm sido modelados no interior de relações definidas de
poder (WEEKS, 2001, p.42).

E é para essa naturalização de comportamentos esperados de homens


e mulheres, mantida por práticas discursivas que alimentam modelos de
subjetividades para ambos, que Sena (2004) nos chama atenção. Segundo ele:

Homens e mulheres estão mergulhados de tal forma em relações de


poder, que, seus assujeitamentos são tomados muitas vezes como
“naturais”: são naturalizadas a força masculina e a correlata fraqueza
feminina, a maternidade feminina e a exacerbada sexualidade
masculina, a racionalidade do homem e a emotividade da mulher.
São naturalizadas a violência masculina e a passividade feminina,
bem como a circulação em espaços públicos pelos homens, em
oposição aos espaços domésticos destinados às mulheres (SENA,
2004 apud ROMAGNOLI, 2012, p. 52).

Sendo assim, são as relações de poder, fabricadas em processos de


subjetivação dominantes, que estiveram e ainda estão preocupadas em vigiar,
controlar, modelar, corrigir e construir, de forma explícita ou sutil, modelos de
subjetivação masculina e feminina. Tais modelos sustentam territórios
identitários em que as ações e atitudes ficam bem definidas, apresentando-se
como verdades incontestáveis. Dessa maneira, apropriando-nos das reflexões
de Guattari e Rolnik (2005), apreendemos que a produção de subjetividade
constitui matéria-prima de toda e qualquer produção, inclusive das dicotomias e
diferenças que fundamentam as relações de gênero. Sabemos também, ainda
conforme os autores supracitados, que a produção de modelos hegemônicos
de subjetividade busca hegemonizar diferenças nas expressões masculinas e
femininas, reduzindo tais expressões à figura identitária e individualizada do
homem e da mulher. Por isso, pensamos que qualquer mudança
revolucionária, relativa aos modos de subjetivação existentes, exigiria a criação
de novas sensibilidades. Nesse sentido, concordamos com Guattari e Rolnik
quando eles propõem que:

(...) a questão não está em avaliar quem teria mais liberdade, o


homem ou a mulher, mas circunscrever e problematizar o modelo que
permeia, ainda na atualidade, tanto a figura de homem quanto a de
mulher; refiro-me ao falocratismo, de cuja lógica são ambos

33
prisioneiros. E se o que estou dizendo faz algum sentido, combater
essa política sexual dominante significaria ter como alvo tanto esta
figura de homem (o machão, em qualquer uma de suas versões),
quanto a figura de mulher (seja a noivinha ou a putinha, seja a
esposa ou a amante). A resistência aqui consistiria em embarcar nos
processos de diferenciação de todas essas figuras, pois com isso é o
próprio falocratismo que estaríamos desinvestindo (GUATTARI;
ROLNIK, 2005, p. 94).

Assim sendo, entendemos que esse movimento de produção de


subjetividades femininas e masculinas não estaria necessariamente restrito ao
corpo sexuado a representar um homem masculino e uma mulher feminina,
haja vista que é possível haver mulheres que transitam em registros de
subjetivação masculinos, e homens que transitam nos registros femininos.
Portanto, para Deleuze e Guattari (1997b), o estabelecimento desses territórios
identitários diz respeito à tentativa de estatização dos indivíduos dentro de uma
identidade (seja ela social, sexual, religiosa, etc.). Segundo os autores, eles
seriam, antes de tudo, um movimento que, em sua repetição, configura uma
constância, um refrão, e, por sua vez, inaugura uma ordem que oferece
estabilidade a um indivíduo e/ou grupos. Assim, temos que o território é:

[...] relativo tanto a um espaço vivido quanto a um sistema percebido


no seio da qual o sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo
de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o
conjunto de projetos e de representações nos quais vai desembocar,
pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos,
cognitivos (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.388).

Haesbaert (2010), apoiando-se nas concepções de Deleuze e Guattari,


considera que, em nossos cotidianos, comumente passamos de um território
para outro num movimento contínuo de desterritorialização, no qual o indivíduo
abandona um local e passa para outro sem destruir o antigo. Dessa forma, o
território é “muito mais do que uma coisa ou um objeto, o território é um ato,
uma ação, uma relação, um movimento (territorialização e desterritorialização),
um ritmo, um movimento que se repete e sobre o qual se exerce um controle”
(HAESBAERT, 2010, p. 127). Assim, como ressalta o referido autor, todo o
processo de territorialização carrega consigo um movimento de
desterritorialização, que se constituiria por uma possibilidade de fuga a esse
movimento, desconstruindo-o e constituindo um novo território. Contudo, entre
dois territórios identitários estabelecidos há também zonas de fronteira, pontos

34
de tensão, lugares inóspitos onde as definições não se oferecem de maneira
clara, e as possibilidades de crise e invenção se intensificam de maneira,
muitas vezes, incômoda. Nesse mote é que trazemos a imagem abaixo, a qual,
de certa forma, traduz um sentimento de estranhamento ao habitar uma
fronteira de subjetivação:

Figura 1 - Pai no Shopping (arte de Monica Imbrunito).

Um pai que queira cuidar de seu filho em um shopping center, por


exemplo, encontrará dificuldades nessa tarefa, pois se deparará com territórios
identitários pré-definidos para homens e mulheres. A presença de fraldários
dentro do banheiro feminino ratifica este território como sendo o de cuidado
“natural” das crianças. Na imagem, porém, o pai se encontra em uma fronteira,
em uma indefinição, transitando em uma linha de singularidade.

Este foi o caso no qual me encontrei enquanto estudante do curso de


Pedagogia da UFV: imerso em uma sensação de estranhamento por transitar
em outros modos de existir – em outros territórios de subjetivação – que não
eram restritos nem a minha experiência masculina e muito menos aos modos
de composição hegemonicamente estabelecidos sobre os territórios do
feminino. Diante da minha inserção no curso de Pedagogia e da possibilidade

35
de (des)territorialização da Educação Infantil, por meio do novo regimento
desse curso, que nasce a problemática de nossa pesquisa.

Isso porque, no momento em que as Diretrizes Curriculares Nacionais


para o curso de Pedagogia definiram o papel do pedagogo – sendo ele
responsável pela Educação Infantil-, elas colocaram em tensão toda uma
produção de subjetividade que restringia o cuidado das crianças na escola à
figura da mulher (produzida nas tramas sociais como sendo um depósito de
amor, atenção, maternagem, carinho e assexualidade). Essa tensão se
sustentou no fato de que o curso de Pedagogia da UFV, mesmo imerso em
processos de subjetivação de feminilidades, não recebe apenas matrículas de
mulheres, mas também de homens. Diante dessas novas Diretrizes, esses
homens também passaram a vivenciar os cotidianos das escolas de educação
infantil, território existencial hegemonicamente feminino de educação/cuidado
das crianças.

Assim, quando coloca o estágio na Educação Infantil como disciplina


obrigatória do curso, e automaticamente insere futuros docentes masculinos
neste ambiente, o curso de Pedagogia intensifica potencialmente uma crise de
legitimidade nos territórios identitários masculinos e femininos, que ditaram os
direcionamentos de gênero e de currículo para a prática da educação ao longo
da história. Nesse sentido, a entrada de homens em salas de aula da
Educação Infantil possibilita o surgimento de estranhamentos no cenário
escolar, pois não se enquadrava nos registros hegemônicos de subjetivação
masculina e feminina. Estes movimentos seriam “estranhos” exatamente pelo
fato de não se fixarem em territórios pré-definidos e se acelerarem na fronteira
entre as identidades de gênero, causando possíveis incômodos tanto a homens
quanto a mulheres.

É a partir dessa diferença, entendida aqui não como uma relação entre o
um e o outro, mas simplesmente como um “devir-outro” (SILVA, 2002), que um
movimento transitório em zonas fronteiriças surge. Ao promover o encontro de
estudantes “machos” da Pedagogia com as produções de subjetividade
hegemonizadas nas escolas de Educação Infantil, o novo currículo
estabelecido pelo curso de Pedagogia da UFV potencializou a possibilidade de
emergência de crises nas configurações identitárias, à medida que se faz e

36
refaz a todo o momento - mediante novas experimentações, deveres, conexões
e composições nas fronteiras entre identidades construídas e estabilizadas nas
práticas nos/dos cotidianos da Educação Infantil.

Entendemos, assim, que a possibilidade de transitar nessa zona


fronteiriça propicia a esses praticantes do cotidiano da Educação Infantil o
desempenho de múltiplos papéis dentro do contexto educativo, podendo
transgredir, interligar, lançar pontes, reinterpretar, reconfigurar e redefinir esses
territórios identitários. No entanto, compreendemos também que:

[...] se para uns, a fronteira proporciona essa reconfiguração de


identidades enriquecedora, para outros pode ter um significado
puramente distópico, funcionando como espaço intransponível ou
inabitável de exclusão e de violência coerciva” (BALIBAR, 1997 apud
RIBEIRO, 2005, p. 484).

Diante desse quadro, algumas indagações permearam a consecução


desta pesquisa, a saber: como os alunos masculinos do curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Viçosa têm transitado nessa zona de fronteiras
identitárias nas escolas de Educação Infantil? Que novos modos de
subjetivação podem vir a surgir nessa fronteira? É possível a reinvenção dos
modos de lidar com a dimensão do masculino e do feminino nestas escolas?

37
3. Caminho metodológico

Na tentativa de tentar responder algumas dessas questões, buscamos


elucidar as experiências singulares dos entrevistados, acompanhando os
diferentes processos de subjetivação que ganhavam consistência no modo
como eles se relacionavam/praticavam os cotidianos de diferentes escolas de
Educação Infantil. Além disso, observamos como os estudantes e profissionais
entrevistados transitavam em possíveis zonas de fronteira que, enquanto
dimensões de indefinição identitária, abriam-se potencialmente a novos
questionamentos de seus espaços afetivos, sexuais e sociais, mais do que a
conclusões seguras.

Buscando colocar em cena a singularidade da experiência de cada


um(a) dos(as) entrevistados(as), optamos pela pesquisa qualitativa. Essa
opção justifica-se por acreditarmos que através desse modo de pesquisa
possamos evidenciar as diferentes realidades construídas na dinâmica das
relações e, consequentemente, acompanhar diferentes processos de
subjetivação que delas se derivam. Nesse mote, torna-se necessário explicar o
que entendemos por pesquisa qualitativa, haja vista que existem várias
concepções e utilizações deste conceito. Nas palavras de Rey (2002),

[...] a pesquisa qualitativa se debruça sobre o conhecimento de um


objeto complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados
simultaneamente em diferentes processos constitutivos do todo, os
quais mudam em face do contexto em que se expressa o sujeito
concreto. A história e o contexto que caracterizam o desenvolvimento
do sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e
plasticidade do fenômeno subjetivo (REY, 2002, p. 51).

Nesse sentido, temos que a epistemologia qualitativa, para Rey (2002),


se apoiaria em três princípios que conduzem a importantes consequências
metodológicas:

1) O primeiro princípio consiste no fato de o conhecimento se constituir


enquanto uma produção construtivo-interpretativa. Ou seja, o conhecimento
não se limita a combinar os fatos empíricos, e sim a um movimento de
significar e res-significar as relações estudadas. Nesse sentido, uma análise
qualitativa não tem o objetivo de limitar o estudo a uma suposta verdade
essencial às relações, mas sim constituir possibilidades de interpretação que

38
permitam problematizar o sujeito estudado, mediante a emergência de novos
questionamentos e novas inquietações.

2) O segundo princípio considera que os processos de produção de


conhecimento possuem um caráter interativo. Ou seja, o conhecimento é
construído junto aos participantes da pesquisa, de forma que pesquisador e
pesquisado se sintam parte da pesquisa. Assim, o autor considera esse
processo de interação entre ambos como fator essencial para a qualidade do
conhecimento produzido na pesquisa. No entanto, Rey chama atenção para a
necessidade de o pesquisador se atentar aos imprevistos que podem surgir
durante essas trocas relacionais, sendo elas formais ou não. Além disso,
mostra que o pesquisador deve estar atento às informações significativas que
podem surgir nestes diálogos, mas ressalta que para essa imersão de
informações é necessário que o pesquisador esteja aberto a aceitar os cursos
que os diálogos podem tomar, entendendo que estes imprevistos rumos
também podem contribuir para o entendimento dos processos estudados.
Assim sendo, essa “produção de conhecimentos resulta de uma complexa
combinação de processos de produção teórica e empírica que convergem no
pesquisador, que, como sujeito da pesquisa, não segue de forma rígida e linear
nenhuma das duas vias” (REY, 2002, p.65). E complementa dizendo que “o
curso da pesquisa qualitativa pressupõe o estudo de casos não como via de
obtenção de informação complementar, mas como momento essencial da
produção de conhecimento” (p.71). Afirmação, essa, corroborada pelo terceiro
princípio.

3) O terceiro princípio diz respeito ao entendimento da singularidade


como sendo um nível legítimo de produção do conhecimento. Os movimentos
singulares de um sujeito ou de uma coletividade não podem ser desprezados,
uma vez que, além de serem uma possibilidade de fuga às subjetividades
dominantes, fazem parte de uma dinâmica complexa que envolve a produção
de subjetividades e, consequentemente, a produção de diferentes modos de
existir. Desse modo, para este autor, “o conhecimento científico, a partir desse
ponto qualitativo, não se legitima pela quantidade de sujeitos a serem
estudados, mas pela qualidade de sua expressão” (p.35).

39
Diante disso, optar pela pesquisa qualitativa neste trabalho se justifica
pela intenção de analisar os processos de produção de subjetividades que
atravessam e/ou atravessaram os praticantes de escolas que contemplem a
Educação Infantil, haja vista que esse ambiente se configura num constante
processo de formação dos sujeitos, que se encontram numa ininterrupta
construção e desconstrução de saberes.

Assim sendo, ao optarmos pela utilização da pesquisa qualitativa, nos


propomos a considerar os sujeitos a serem pesquisados em seus movimentos
singulares, para, assim, seguirmos as trajetórias de subjetivação dos mesmos.
Desse modo, entendemos que a utilização de uma perspectiva dialógica como
premissa para a realização de entrevistas se tornou extremamente importante
para abordarmos as produções de sentido de mundo desses sujeitos, uma vez
que o sentido que conferimos a esse diálogo:

[...] desloca o centro da atenção dos pesquisadores, dos instrumentos


para os processos interativo-construtivos que se constituem
dinamicamente no curso da pesquisa. O curso da pesquisa, as
estratégias empregadas e os instrumentos não constituem definições
rígidas a priori, mas são definidos pelo curso da informação e pelas
necessidades que surgem progressivamente (REY, 2002, p. 57-58).

Dessa forma, ao valorizar a entrevista enquanto favorecedora de


diálogos, buscamos trazer à pesquisa as narrativas dos sujeitos entrevistados,
na intenção de que, a partir das histórias e trajetórias de mundos, possamos
acompanhar as configurações dos processos de subjetivação dos indivíduos
pesquisados, compreendendo como esses colaboram para a constituição do
ambiente da Educação Infantil.

Percebendo as narrativas como uma possibilidade de preservação da


história do meio social e de sua complexidade, acreditamos que trabalhar com
elas nos possibilita:

[...] fazer emergir realidades epistemológicas e expressivas


diferenciadas a partir do estudo dos universos caóticos encontrados
nas práticas sociais, nas situações da vida cotidiana, nas narrativas
românticas, imagéticas, musicais, etc., dos quais emergem realidades
“auto-organizadas”, tecidas a partir das possibilidades de intervenção
dos sujeitos sobre as prescrições normativas e sobre o mundo social
concreto, o mundo da vida habermasiano (OLIVEIRA; GERALDI,
2001, p.24).

40
Portanto, narrar a vida e os modos de subjetivação dos sujeitos
pesquisados nos potencializa a contar uma história vivenciada, que tem
significado singular a quem a pratica, sendo construída e reconstruída à
medida que novos sujeitos se agenciam neste processo, criando redes de
conhecimentos que ultrapassam o sujeitonarrador. Dessa forma, ao
acompanhar as narrativas, buscamos seguir os processos de construção de
verdades e os movimentos singulares e inventivos existentes na história
daqueles que transitam na fronteira de processos de subjetivação do espaço
escolar da Educação Infantil.

Dessa maneira, optar pela narrativa não é contrapor os estudos


científicos, mas abordá-los de outra forma, entendendo que eles não são
verdades absolutas e sim construções sociais que definem – ainda que
temporariamente – verdades sobre a vida. Logo, assim como Certeau (1994),
acreditamos que validar os processos de narração nos possibilita restituir a
importância científica que eles têm. Contudo, para isso, a ideia de narratividade
precisa estar além de uma ideia de descrição, ou da produção de uma
realidade fictícia.

No entanto, para que fosse possível seguir os processos de subjetivação


que transversalizam o curso de Pedagogia da Universidade Federal de Viçosa
e, consequentemente, o cotidiano e os sujeitos praticantes da Educação Infantil
de algumas escolas da cidade, entrevistamos dez pessoas para esta pesquisa.
Destas, quatro são alunos do sexo masculino do curso de Pedagogia da UFV -
sendo que três já eram egressos do Estágio Supervisionado em Educação
Infantil, e um deles estava realizando o mesmo. Além disso, visitamos as
escolas de Educação Infantil que receberam os alunos entrevistados para este
trabalho, onde também entrevistamos as professoras regentes que os
acompanharam no período do estágio, e as respectivas coordenadoras das
instituições que acolheram os alunos. Destaco aqui, que não conseguimos
contato com uma das professoras e uma das coordenadoras que orientaram o
estágio de um dos entrevistados.

A opção por esses quatro estudantes se deu, primeiramente, pelo fato


de todos eles terem se inserido na Pedagogia da UFV após a mudança feita no

41
currículo do curso em 2008, que colocou o estágio supervisionado em
Educação Infantil como sendo uma disciplina curricular obrigatória do curso.
Posteriormente, o critério que utilizamos foi a disponibilidade dos universitários
de estarem participando da pesquisa, sendo que todos eles são moradores
“nativos” da cidade de Viçosa/MG.

Cabe ressaltar aqui, que, baseados em Rey (2002), todas as entrevistas


foram feitas sem um questionário estruturado ou semiestruturado, pois era
preciso fazer fluir as narrativas dos sujeitos, e entendemos que tal questionário
poderia despotencializar nossas conversas. Não obstante, no intuito de
deixarmos todos os entrevistados à vontade, permitimos que eles escolhessem
o local das entrevistas, sendo realizadas em uma sala do Departamento de
Educação da UFV e nas próprias escolas dos participantes da pesquisa.

Feito isso, na tentativa de demonstrar a relação dos estudantes com


suas respectivas professoras, coordenadoras e instituições durante a
realização do estágio, tentamos, a partir do quadro que se segue, entrelaçar
todos estes sujeitos. Na intenção de preservar os integrantes desta pesquisa,
nomes fictícios foram criados para os estudantes, professoras e coordenadoras
aqui entrevistados. Além disso, para também preservar as instituições que
aceitaram colaborar com este trabalho, o nome delas foi ocultado.

ESTUDANTE ESCOLA PROFESSORA/COORDENADORA

ESCOLA X Professora Marta e Coordenadora


MARCO
(particular) Mariana
ESCOLA E Professora Gisele e Coordenadora
DAVI
(particular) Júlia
ESCOLA P Professora Miriam e Coordenadora
WAGNER (pesquisador)
(particular) Hélia
e RAUL
ESCOLA Y _____________________
FELIPE
(particular)

42
E é entremeando a narrativa dos alunos, professoras e coordenadoras
pesquisados(as) com a de meu próprio trajeto discente – colocando em cena a
exposição de minha própria experiência enquanto estudante de Pedagogia no
universo da Educação Infantil –, que pretendemos delinear o trajeto de
investigação percorrido.

43
4. Entrelaçando trajetórias de vida na Pedagogia

Minha história na Pedagogia começou há oito anos. Após tentar outros


dois vestibulares, ambos na Universidade Federal de Viçosa para o curso de
Letras, resolvi que não iria mais prestar tal exame. Porém, envolvido pelas
exigências de meus familiares, tentei mais uma vez.

Como não tinha me preparado, procurei um curso que exigisse, na prova


discursiva, matérias que eu considerava ter maior domínio: no caso, História e
Português. Além disso, precisava de um curso que possuísse um número
reduzido de candidatos por vaga e que exigisse um nível de pontuação baixo
para aprovação, a fim de contemplar o meu despreparo para o exame. Nesse
sentido, depois de analisar o histórico de notas dos vestibulares anteriores ao
de 2006, optei por prestar vestibular para Pedagogia na Universidade Federal
de Viçosa

Coincidentemente ou não, o curso de Pedagogia da UFV tinha, na


época, uma das menores exigências (em nota) no processo seletivo. Sendo
criado com o intuito de formar professoras que já estavam em exercício,
historicamente o curso vinha tendo a maioria de suas vagas preenchidas pelo
público feminino5. Contudo, naquele momento não pensei na Pedagogia como
sendo um curso prioritariamente feminino; na verdade, nem mesmo pensava
em me manter no curso de Pedagogia, sendo este apenas um meio de
passagem para atingir um curso mais “qualificado”, via transferência interna na
universidade. O meu objetivo principal era o de ser aluno do campus da UFV, e
se para isso eu tivesse que escolher um curso mais “fácil6” de passar, assim
seria feito.

A ação que realizei, todavia, não foi uma atitude isolada e particular,
apesar de ter sido motivada muito mais pelo meu despreparo do que por
qualquer intenção de me tornar pedagogo. Em posterior contato com
estudantes do curso de Pedagogia da UFV (especialmente estudantes do sexo
masculino), percebi que muitos se utilizavam dessa estratégia a fim de

5 Informação constatada no histórico de vestibulares da UFV, presente no site da instituição.


Disponível em: http://www.ped.ufv.br/
6 O curso é considerado aqui como sendo “mais fácil” por ser menos concorrido no processo

seletivo e por exigir uma menor nota de corte para aprovação.

44
adentrarem no ensino superior. Ingressando na Universidade por meio de um
curso menos concorrido, tentavam transferência interna para o curso desejado.

Essa tática de inserção na UFV, também foi exemplificada na fala de


Felipe7, um jovem de 26 anos, recém-formado no curso de Pedagogia da UFV,
que afirmou:

[...] eu ingressei aqui, enquanto estudante, na verdade por meio de


uma estratégia, vamos assim dizer. Eu sempre quis ingressar na
Universidade [...]; eu tentei vestibular duas vezes para Geografia, [...]
mas não fui bem sucedido. No primeiro vestibular eu fiquei na lista de
espera, distante, sem qualquer expectativa de ser chamado e no
segundo [vestibular], nem na lista de espera eu fiquei. E aí, como eu
queria com alguma urgência, vamos dizer assim, garantir o meu
ingresso aqui, eu optei por um curso que, baseado na média que eu
vinha alcançando, eu teria mais chances de ingresso.

Além de Felipe, temos que Raul, profissional de 29 anos, formado em


Pedagogia pela UFV em 2011, ao ser perguntado sobre a escolha pelo curso
também torna evidente a perspectiva de utilização da Pedagogia como uma
porta de acesso à universidade federal, que, uma vez ultrapassada, poderia
proporcionar uma mudança futura de curso. Segundo Raul, a Pedagogia:

[...] a princípio não foi a minha ideia. Na verdade a minha ideia


principal era tentar passar no vestibular e depois tentar mudar de
curso. Uma vez dentro da UFV, eu tentaria mudar de curso. [...] Eu
tinha esse conceito, ou pré-conceito, de que o curso de Pedagogia,
na tentativa do vestibular, era mais fácil e aí as minhas chances de
passar talvez fossem maiores.

Quando nos encontramos com Davi, estudante do 7º período de


Pedagogia na UFV, nos deparamos com a mesma ideia, pois quando
perguntado sobre sua opção pelo curso, ele foi enfático ao dizer que a
Pedagogia “não era o seu sonho”, e sua opção veio em decorrência da
situação em que se encontrava:

[...] a Pedagogia, em si, não era o meu sonho não. O que eu queria
fazer não era Pedagogia. Eu queria fazer Psicologia, mas como não
tinha na Federal daqui e pra mim era difícil tentar me manter fora ou
em uma particular, eu comecei a ler um pouco sobre os cursos da
UFV e achei que a Pedagogia era o que mais se aproximava da
Psicologia, pelas áreas: psicopedagogia, disciplinas. Tem disciplina

7 Todos os sujeitos e instituições nominalmente citados neste trabalho, tiveram seus nomes
verdadeiros alterados para pseudônimos, a fim de preservar a privacidade dos envolvidos.

45
que envolve a Psicologia e aí foi por isso que optei pela Pedagogia,
porque era o que mais se aproximava da Psicologia.

Percebemos, diante das falas de Felipe, Davi, e Raul, que os


entrevistados, assim como eu, pensaram em se utilizar do curso de Pedagogia
como uma “porta dos fundos” para entrar na Universidade, uma vez que
poderiam, posteriormente, alcançar o curso que realmente desejavam.
Entendemos, portanto, que os estudantes aqui apresentados se utilizaram de
movimentos de astúcia para ingressar na UFV, colocando em ação uma tática
(CERTEAU,1994) por meio da qual não buscavam enfrentar o sistema, mas
usar das possibilidades que garantissem a inserção na Universidade Federal
de Viçosa. Nesse sentido, para Certeau, a tática é um movimento de

[...] captar no voo as possibilidade oferecidas por um instante. Tem


que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão
abrindo na vigilância do poder proprietário. Ai vai caçar, cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia
(CERTEAU, 1994 p. 100).

Desse modo, numa “tática” o sujeito tem que “constantemente jogar com
os acontecimentos para os transformar em ocasiões, das quais ele possa tirar
proveito” (CERTEAU, p. 47, 1994). Assim, penso que, ao utilizarmos (eu e
alguns pedagogos entrevistados) de uma “tática”, de uma astúcia para o
acesso à UFV, conseguimos abranger nossas necessidades. No entanto,
segundo Felipe:

[...] a Pedagogia, que de início foi uma jogada estratégica, como eu


disse e repito, pra ingresso, acabou que deu muito certo porque eu fui
bastante feliz, foi uma escolha feliz. [...] Eu não fiquei somente preso
àquilo que o curso oferece enquanto proposta curricular e eu me
envolvi com pesquisa, trabalhei por dezoito meses em um projeto
coordenado por uma professora aqui do departamento [Departamento
de Educação] e isso foi sem dúvida uma escola paralela àquilo que o
curso me oferecia. Cursei Pedagogia e junto com isso eu tive também
uma experiência de pesquisador. Eu tive contato com outras leituras,
eu tive contato com outras experiências que a academia proporciona.

É interessante se pensar, neste momento, a ideia que Felipe faz da


pesquisa na qual trabalhou. Apesar de estar totalmente entrelaçada com o
universo universitário e ter sido potencializada e possibilitada pelo fato de ele
estar inserido no curso de Pedagogia, ele trata suas experiência de pesquisa
universitária como sendo algo à parte do curso – uma “escola paralela” –

46
desvinculando, assim, o curso de Pedagogia da realização do processo de
pesquisa.
Assim como Felipe, Raul, de uma maneira diferenciada, também
demonstrou que foi afetado pelo curso de Pedagogia quando disse que:

[...] não consegui mudar de curso porque eu gostei muito do curso de


Pedagogia. [...] o curso era bem sério e tratava de assuntos que eram
do meu interesse, porque o curso que eu queria também envolvia a
área de educação. Eu fiquei surpreso com o curso, tanto é que eu
não me arrependi da decisão de ter continuado no curso, como
também não me deu a menor vontade de mudar. Assim, nesse um
ano que eu tinha pra poder mudar ou não, em nenhum momento ficou
muito forte pra mim, ah, eu quero mudar de curso[...] Só
simplesmente continuei no curso e decidi que ia levando, ia tentando,
ia dar o meu máximo para poder estar vendo todo o possível do
curso.

Nos relatos acima, o conceito de tática de Certeau (1994) opera mais


uma vez, pois, ao buscarem alternativas que iam além da grade curricular da
Pedagogia na UFV, os estudantes colocavam em constante movimento a
opção pelo referido curso, buscando, nas brechas que ele deixava, alternativas
que sustentariam a escolha pela Educação. Assim sendo, aproveitando
oportunidades que o curso oferecia, vemos que aqueles estudantes
entrevistados criaram, assim como eu, novos territórios de subjetivação para
apoiarem a opção universitária que fizeram.

Contudo, quando retomo minha própria experiência no curso de


Pedagogia, tenho que minha inicial presença ali foi uma aventura incerta e
angustiante. Porém, em um primeiro momento, quando recebi a notícia de que
tinha sido aprovado no vestibular, fiquei estarrecido. Estarrecido porque
finalmente iria estudar na tão estimada Universidade Federal de Viçosa, que,
durante toda minha vida, foi-me apresentada como sendo um lugar de
conhecimento qualificado, e onde eu pensava que tinha que chegar caso
quisesse me “tornar alguém na vida”.

Em Ponte Nova (cidade onde nasci) e em toda sua região, a UFV


sempre foi considerada uma referência de ensino e pesquisa, principalmente
nas áreas de ciências agrárias. Sendo assim, todos me cumprimentavam pela
aprovação nesse tão disputado vestibular. Porém, quando eu dizia que eu iria
cursar Pedagogia, a comemoração esfriava. Um tom de surpresa, misturado

47
com certa ironia, dava ritmo às perguntas que me faziam: “Mas Pedagogia não
é para cuidar de criança? Você quer mesmo ser professor de criança? Isso é
coisa de mulher, não é não? Mas você acha que vai ganhar dinheiro com
isso?”.

Percebia com isso que a Universidade Federal de Viçosa era valorizada


e prestigiada, especialmente quando o sujeito se inseria em cursos socialmente
marcados como masculinos, como as engenharias (fossem estas construídas
tanto nas áreas de exatas quanto agrárias). Contudo, cursos como Economia
Doméstica e Pedagogia – que possuíam um forte histórico de inserção do
público feminino, assim como também um foco significativo na área da
educação –, tendiam a ser considerados como sendo de menor valor
profissional. E essa desvalorização aumentava pelo fato de eu, como homem,
ter passado para um curso tradicionalmente feminino.

Dessa maneira, meus irmãos falavam que eu iria ser a “Tia Wagner”,
indicando, nessa brincadeira, uma significação coletiva muito mais ampla: a de
que a Pedagogia está ligada às mulheres ou, se exercida por homens, estes
seriam feminizados, com tendência a serem vistos como homossexuais.
Estando a Pedagogia significada em códigos de subjetivação femininos e tendo
a sociedade uma visão fortemente binária das construções de gênero, muitos
só conseguem conceber os homens na Pedagogia enquanto sujeitos
feminizados e/ou homossexuais. Foi o que aconteceu também com Raul
quando, ao saberem que ele iria cursar Pedagogia, “o pessoal falava: ah, curso
para mulherzinha”. E Davi complementa essas observações, dizendo que:

[...] tem aquela coisa do homem que faz Pedagogia ter aquela fama
de ser veado. Comigo, diretamente comigo, ninguém chegou a me
atacar dessa forma não, mas com meu irmão falavam. Quando
ficavam sabendo, falavam com o meu irmão: “Ah, seu irmão está
fazendo Pedagogia, curso de mulher”.

A associação aqui apresentada, entre fazer Pedagogia e a condição de


mulher ou de homossexual, traz à tona, mais uma vez, um processo de
subjetivação dominante que coloca à docência de crianças como sendo
território exclusivamente habitado por indivíduos dotados de características
femininas. Dessa maneira, essas considerações feitas por Raul e Davi fazem

48
vão ao encontro dos argumentos apresentados pela profa. Gisele. Economista
doméstica e pedagoga, e atuante na docência da Educação Infantil há mais de
20 anos, ela apresenta que “antigamente, as professoras eram as tias, eram as
nossas tias. A gente tinha uma parentada sem fim; era tia para todo lado e
eram as mulheres que iam para essa área”. Ela complementa seus argumentos
dizendo que o sentimento da docência é “uma coisa assim que nasce na gente,
é uma coisa que a gente não manda, [...] criado aquilo na gente, uma coisinha
assim, eu gosto”.

Novamente podemos utilizar da fala da professora Gisele para trazer à


tona os processos de subjetivação da feminilidade hegemônica que acabam
por se reproduzir e naturalizar em discursos como o da professora citada. Com
isso, ao se naturalizar a mulher como sendo aquela que possui um chamado
interior à educação de crianças, inserindo tal chamado ao pacote de
sentimentos inatos ao “ser mulher”, a professora restringe à docência ao
feminino.

Nesse sentido, acreditando que o magistério vai além dessa


possibilidade de estender o ambiente doméstico à sala de aula, e que a
transformação da professora em tia – um parente postiço dos alunos – traz
consigo a ideia do doméstico, do cuidado e da vocação para dentro do
ambiente educacional, Freire (1979) sustenta que, mais do que mero cuidado
afetivo ou “chamado”, um dom:

[...] ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa
especificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é viver uma
relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão,
enquanto não se é tia por profissão (FREIRE, 1979, p. 9).

Desse modo, Freire (1979) problematiza a redução do trabalho docente


da mulher a uma condição afetiva e familiar, uma vez que em seu
entendimento, a condição de “tia” - remetendo ao doméstico - desqualifica o
papel profissional da professora. Por sua vez, essa compreensão justifica uma
remuneração mais baixa, já que o trabalho da mulher na educação é mais visto
como vocação afetiva do que como um projeto de independência profissional e
econômica.

49
Nesse sentido, apropriada dessa visão sobre a docência com crianças
como sendo algo tanto feminino quanto economicamente mais precário em
termos de remuneração, minha mãe, além de me fazer as mesmas perguntas
sobre a condição feminina da Pedagogia, ainda acrescentava: “Mas como você
acha que vai ganhar dinheiro com isso?” Ela sempre questionava a minha
escolha, pois dizia que lhe falavam que Pedagogia era o mesmo que
Magistério, e que, na época dela, quem fazia esse curso eram as mulheres. Tal
concepção é, de certa forma, retomada na fala da professora Gisele quando
ela explica sua inserção no Magistério dizendo que:

Eu já tenho um longo caminho nessa atividade de educação, que eu


sou de [...] e lá tem a Escola Normal, aquela antiga Escola Normal
que formava os professores de 1º ao 4º ano e lá eu me formei. As
opções eram: fazia o Normal ou não fazia nada.

No entanto, mesmo nunca tendo estudado em uma Escola Normal, feito


o curso de Magistério, não sendo mulher e tendo que lidar com todas as
brincadeiras derivadas de minha escolha no vestibular, fiz minha matrícula na
Universidade Federal de Viçosa e iniciei o curso de Pedagogia.

4.1. Sensações

Ao entrar na sala no meu primeiro dia de aula, no ano de 2007, fui logo
surpreendido, afinal, por mais que as pessoas já tivessem me dito que a
Pedagogia era um curso predominantemente feminino, não imaginava que
fossem tantas mulheres. Essa sensação que tive une com a que Marco – aluno
do 7º período do curso de Pedagogia na UFV – sentiu ao transitar naquele
ambiente pela primeira vez. Segundo ele:

[...] na minha primeira aula eu fiquei com medo, porque eu sabia que
era um curso predominantemente de mulheres; mas você saber e
você ver é uma coisa completamente diferente. No primeiro dia de
aula, quando eu botei o pé na sala, e vi uma turma de 55 mulheres,
eu dei um passo para trás. Não é uma coisa que eu digo
brincando, foi literal. Eu cheguei na porta da sala e voltei, porque na
hora, assim, eu me assustei com a turma. E mulher né, todo mundo
conversando, algumas pessoas se conheciam, então eu fiquei um
pouco assustado na hora.

50
No entanto, o que para mim e para Marco foi motivo de susto, tornava
para Felipe o ambiente mais agradável. Segundo ele, a sensação que teve ao
entrar na sala primeira vez

Foi dentro do que eu esperava, porque quando eu vi na lista de


classificados, que éramos apenas três rapazes, então eu sabia que
esse meu curso eu viveria ali rodeado de mulheres. O que não é
ruim, muito pelo contrário; você tem uma presença muito mais
agradável, uma atmosfera muito mais interessante, muito mais
gostosa do que você ter uma sala cheia de homens, não é?

Ao analisarmos a fala de Marco e Felipe, conseguimos captar no


discurso de ambos, elementos que constituem a naturalização de um ideal
feminino. Assim, quando Marco fala “E mulher né, todo mundo falando” coloca
em movimento uma concepção hegemonizada de que há uma conduta
“tagarela” nata à condição de ser mulher. Do mesmo modo, ao considerar um
espaço habitado predominantemente por mulheres como sendo “mais
agradável”, ou “mais interessante” e “mais gostoso”, Felipe também reitera
nesse discurso, uma perspectiva que subjetiva a mulher numa condição
sexuada (ser “gostosa”), mostrando assim todo o seu viés predatório e sua
“macheza” ratificada em um modelo hegemônico de masculinidade. Ou seja, os
estudantes sentiram a necessidade de se demarcarem como homens “machos”
naquele espaço.

Apesar do grande número de mulheres, a minha turma de Pedagogia da


UFV possuía nove homens em meio a 51 alunas matriculadas. Assim, quando
os professores entravam na turma pela primeira vez, estranhavam a
quantidade de homens. Diziam: “quantos homens nessa turma” ou: “essa turma
tem bastante homem, hein!”. Porém, a presença desses nove homens não
evitou o constrangimento na experiência do trote. Em uma das brincadeiras,
denominada de elefantinho, tínhamos que andar com as mãos dadas,
passando-as por debaixo das pernas uns dos outros. Dos nove, somente
quatro homens foram ao trote, e as meninas ficavam constrangidas em deixar
que passássemos a mão por debaixo de suas pernas. Então, incomodado
também com a situação, achei que o melhor era deixar a brincadeira. Foi a
primeira vez que eu me senti diferente no curso.

51
Ao contrário do constrangimento no trote, na sala de aula éramos muito
bem aceitos. As meninas formavam seus grupos e os homens transitavam em
todos eles. Apesar de sermos “os diferentes”, procurávamos nos misturar com
o restante da turma sem fazer esta distinção. Talvez, por não termos que tocá-
las como no trote, essa diferenciação biológica de sexos era relegada a um
segundo plano, uma vez que, nas aulas, a questão de gênero não surgia como
relevante, estando o foco mais direcionado ao aprendizado dos conteúdos das
disciplinas.

Dessa maneira, fomos incorporados a variadas conversas e situações,


e, pelo menos em nossa percepção, não parecia que nossas colegas de sala
ficavam constrangidas com a nossa presença ao ter que tomar qualquer atitude
ou falar sobre algum assunto. Não nos víamos presos, portanto, as
delimitações de uma identidade masculina, e nem elas assim o faziam. Éramos
todos colegas cujas competências e expressões não ficavam limitadas a
derivas sexuais e de gênero. Da mesma forma, podemos ver tal questão no
relato de Felipe quando ele diz que:

Eu tinha boa convivência, principalmente em trabalhos. É difícil você


imaginar que você vai cursar uma graduação inteira e você não vai
ter que se relacionar com os seus colegas, com as suas colegas de
curso. Então, o meu trânsito, eu não tinha aquilo que costumam dizer:
panelinha né, que acontece as vezes em ambiente de trabalho, é, em
escola, em colégio e até mesmo dentro da universidade.

Contudo, apesar de uma convivência boa em sala, durante muito tempo


tive vergonha de falar com pessoas de fora do meu curso que eu cursava
Pedagogia, pois sempre quando o fazia, o assunto acabava e/ou enfrentava
diversos e recorrentes comentários preconceituosos. Sendo assim, sempre que
eu precisava me apresentar a alguém, dizia que cursava Direito, Educação
Física, Geografia, enfim, tudo menos Pedagogia. Eu escondia isso o quanto
fosse possível a fim de me poupar a dar maiores explicações.

E foi assim que, durante um ano e meio, simultaneamente cursei


Pedagogia e trabalhei numa empresa em Ponte Nova/MG, o que me obrigava a
vir à Viçosa - o curso de Pedagogia é noturno - e voltar todos os dias para
minha cidade natal. No entanto, ao vivenciar todas estas situações no curso,

52
atreladas às obrigações do trabalho, resolvi trancar minha matrícula em Julho
de 2008.

4.2. Retomando o curso

Percebendo a necessidade e a importância de um curso superior –


principalmente em uma Universidade Federal – e crendo na possibilidade de
me engajar em oportunidades que uma instituição como a UFV oferece, resolvi,
no início do ano de 2009, largar o meu emprego na cidade de Ponte Nova e me
mudar para Viçosa para retomar o curso de Pedagogia.

Porém, eu ainda não tinha ideia do que a Pedagogia significava em


minha vida e muito menos o que eu iria fazer com ela. A única certeza que eu
tinha era a de que eu não queria “ser professor de criança”. No entanto, a
necessidade de criar um território que sustentasse a minha opção de
abandonar o meu emprego e vir para Viçosa estudar fez com que eu
resolvesse assumir, de forma explícita e a todos, que eu cursava Pedagogia.
Assumindo que o meu curso era tão importante quanto outro qualquer, decidi,
literalmente, vestir a camisa do curso.

Assim, em meus movimentos cotidianos pela Universidade e fora dela,


passei a ostentar a camisa da minha turma de Pedagogia, que, até então, eu
só utilizava para dormir. Era uma camiseta lilás com branco que trazia a
seguinte inscrição: “UFV - Pedagogia 2007”. Tal postura me rendeu
“enfrentamentos” quando, nesse processo de constituição do meu território
acadêmico, resolvi ir com aquela camisa à academia onde me exercitava. Lá
fui abordado por um conhecido que me perguntou: “de que menina você
roubou essa camiseta?” E eu disse: “de nenhuma, ela é minha mesmo, eu faço
Pedagogia”. Porém, ele ficou incrédulo diante da minha resposta; afinal, um
homem cursando Pedagogia era inconcebível para ele e/ou para a maioria das
pessoas que me viam com a camisa. Eu me sentia obrigado a mostrar minha
carteirinha de estudante para comprovar tal fato.

Concomitante ao enfrentamento de preconceitos, passei a participar de


atividades extraclasse ligadas ao curso e entrei como voluntário em um projeto
de musicalização para crianças com deficiência física e com dificuldade de

53
aprendizagem nos anos iniciais do Ensino Fundamental. No desenvolver das
atividades, fui sempre bem recebido na escola que acolheu o projeto. Porém,
nas vezes em que a aluna bolsista não podia me acompanhar nas tarefas, só
me deixavam trabalhar com as crianças acompanhado de uma mulher. Diziam
que sozinho eu não daria conta de olhar todas as crianças. O fato de alguém
me acompanhar nas aulas até então me incomodava, mas não era problema
pra mim. Afinal, eu precisava me engajar na Pedagogia.

Assim, continuei com o projeto até o seu encerramento, quando foi


realizada uma apresentação das crianças na praça da igreja de Santa Rita de
Cássia/Viçosa. Neste dia, andamos com todas elas para lá, tanto as que
participavam do projeto quanto as que não, enfim, toda a escola. Naquele
caminhar as professoras me diziam: “Ainda bem que tem você aqui; assim as
crianças respeitam mais”; ou: “Wagner, chame a atenção dessas crianças aí,
porque você fala mais alto”. Eu me considerava valorizado e reconhecido em
meu papel de pedagogo naqueles momentos, possivelmente por me
reconhecer e ter sido reconhecido num território hegemônico de subjetivação
masculina, onde a força, o controle e a autoridade traziam consigo a afirmação
da minha masculinidade.

Dessa maneira, se durante as atividades na escola eu precisava estar


acompanhado por alguém para me ajudar-vigiar, naquele instante da
apresentação pública das crianças as professoras me situavam em um lugar de
virilidade; qualidade intrínseca à subjetividade masculina hegemônica. Ao me
colocarem no posto de controlador da situação, aquelas professoras
reatualizaram em mim tanto a figura do “patriarca” – aqui representado na
imagem do professor homem, que controla e coordena os demais – quanto
ratificaram que meu papel junto àquelas crianças não envolvia prioritariamente
uma atitude de cuidado pelo afeto e/ou pelo trato íntimo, mas o cuidado pela
proteção máscula e autoritária da “prole”.

Porém, ao final da apresentação das crianças, pais e mães, na


necessidade de conversar e saber como estava o desenvolvimento de seus
filhos, dirigiram-se exclusivamente à minha companheira de projeto. Mesmo
permanecendo ao lado dela, por todo o tempo da conversa e do projeto, os
pais em momento algum se dirigiram a mim. Se para o controle eu fora

54
solicitado, fui completamente ignorado no que se referia a ser reconhecido no
papel de alguém que teria competência de compartilhar questões sobre a
intimidade escolar das crianças. Acredito que a predominância de mulheres na
docência infantil, mais uma vez influenciou nessa atitude, pois o fato de não
conceberem um homem enquanto professor nessa modalidade de ensino fez
com que eu passasse despercebido durante toda a conversa.

Com o fim do projeto na escola e necessitando continuar a minha


retomada do curso de Pedagogia, conheci a Ludoteca da UFV.

4.3. A experiência do não-lugar junto à Ludoteca da UFV

Em Agosto de 2009 tive a possibilidade de me inserir em um projeto de


extensão, financiado pela Pró Reitoria de Extensão e Cultura da UFV.
Denominado de “Ludoteca Universitária: espaço de inclusão social e
valorização do lúdico8”, este projeto trabalhava o lúdico com crianças da
Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, provenientes de
escolas públicas de Viçosa e região. Para tanto, recebia as escolas em sua
sede, situada na casa 1 da Vila Gianetti9, campus UFV, e visitava as unidades
educacionais da rede de ensino de Viçosa e região, por meio das atividades da
Ludoteca Itinerante.

Eu era o único homem numa equipe de dezesseis pessoas, constituída


por mim e mais quinze alunas dos cursos de Pedagogia, Economia Doméstica
e Educação Infantil. Contudo, minha presença não parecia intimidar as
estudantes. Novamente deslizando numa fronteira entre as identidades
masculinas e femininas, eu passava despercebido nas rodas de conversa, pois,
quando eu estava por perto, as meninas conversavam normalmente entre elas,
mesmo partilhando de intimidades que normalmente não seriam ditas diante de
um homem. Todavia, a diferença entre mim e elas se evidenciava na hora dos

8
Ludoteca Universitária: Espaço de Inclusão Social e Valorização do Lúdico. Projeto de
Extensão, coordenado pelo Prof. Milton Ramon Pires de Oliveira e pela Técnica Luciane Isabel
Ramos Martins. Este projeto está vinculado à Divisão de Extensão da Universidade Federal de
Viçosa e tem sua sede situada na casa 1 da Vila Gianetti.

9Conjunto de casas construídas na década de 1950, dentro do campus universitário de Viçosa,


para abrigar os professores da instituição. Décadas mais tarde, as casas passaram a ser
utilizadas para acolher núcleos de pesquisa, de extensão, museus e diferentes grupos ligados
à universidade.

55
trabalhos braçais, pois sempre me colocavam para fazê-los, dizendo que era
coisa de homem - circunstância essa que ratificava a dimensão do masculino
como sendo da ordem do controle e da força, tal como eu havia vivenciado no
meu estágio anterior.

A respeito desse papel social do masculino, Connel (1995) considera


que, historicamente, o comportamento do homem foi modelado, fazendo-lhe
reprimir seus sentimentos e levando a opor-se não apenas ao feminino, mas,
sobretudo, a todas as figuras que articulam representações consideradas
derivativas da expressão feminina como a fraqueza, a impotência, a
subordinação e a passividade. Portanto, de um homem, enquanto atualização
de uma produção de masculinidade, espera-se que venha a se mostrar sempre
forte, capaz e corajoso. Talvez por isso, nos momentos em que eu encarnava
as intensidades do modelo de masculinidade hegemônica, eu sempre me senti
importante e necessário para o funcionamento da Ludoteca. Assim, na maioria
das vezes em que era convocado para tarefas mais braçais e de controle, tinha
minha masculinidade ovacionada em diversos comentários de minhas colegas:
“Viu?! Por isso que é importante ter um homem aqui!” ou, “Não sei como
iríamos fazer se não tivesse um homem aqui”!

Por sua vez, nos trabalhos com as escolas, minha presença em meio às
mulheres trazia questionamentos sobre minha masculinidade enquanto
pedagogo. Certa vez, ao chegar em uma escola, duas professoras me
perguntaram se eu era professor de Educação Física. Quando eu disse que
não, que eu fazia Pedagogia, todas se espantaram em meio a afirmações
como: “olha, um homem na Pedagogia, que interessante, na minha época não
tinha isso”; ou: “desculpe-me, mas é que você tem uma aparência de professor
de Educação Física, e homem na Pedagogia eu não imaginaria”.

Numa situação mais cômica, em outra escola uma supervisora me


confundiu com um encanador, perguntando: “É você quem veio consertar a pia
do banheiro”? Eu disse que “não; vim com a Ludoteca”. E ela retrucou: “Mas
você é homem”! E eu disse, “o que é que tem?” Ao que ela me respondeu que
“homem na Pedagogia, estranho né”! Irritei-me, pois me senti como sendo um
contínuo intruso em um espaço profissional que parecia que não me pertencia.
Ser um homem na Pedagogia se anunciava, em alguns momentos, como um

56
estranhamento, onde eu me sentia transitando numa fronteira entre uma
territorialidade masculina e um território construtor de (e construído em) uma
feminilidade que parecia ter dificuldade de acolher minha presença. Nesse
sentido, para Louro (2008) essa fronteira é

Lugar de relação, região de encontro, cruzamento e confronto. Ela


separa e, ao mesmo tempo, põe em contato cultura e grupos. Zona
de policiamento e também zona de transgressão e subversão. O
ilícito circula ao lado da fronteira. Ali os enfrentamentos costumam ser
constantes, não apenas e tão somente através da luta ou do conflito
cruento, mas também sob a forma da crítica, do contraste, da
paródia. Quem subverte e desafia a fronteira apela, por vezes, para o
exagero e para a ironia, a fim de tornar evidente a arbitrariedade das
divisões, dos limites e das separações (LOURO, 2008, p. 20).

Dessa forma, temos que alguns espaços educativos – especialmente as


escolas de Educação Infantil – produzidos em (e produtores de) um tipo de
feminilidade docente, que se sustenta na delicadeza, no afeto e na fragilidade,
se sentem incomodados ao terem que se deparar com uma diferença “entre”
esse território de feminilidade, edificada na fragilidade e afetividade, e os
modos de subjetivação do homem a construir um território de força e virilidade.
Mais do que isso, ao lidar com o estranhamento de um homem a transitar
nessa fronteira de subjetivação entre o masculino e o feminino, muitas escolas
acabam sendo obrigadas a problematizar os próprios processos identitários
que inventam os valores de masculinidade e feminilidade, naturalizados nas
mais diferentes práticas sociais. Dessa maneira,

[...] o grande desafio não é assumir que as posições de gênero e


sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas
apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as
fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda
mais complicado – que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é
exatamente a fronteira (LOURO, 2008, p. 28).

O incômodo com os homens que transitam indefinidos em uma fronteira


de subjetivação gera a necessidade de muitos profissionais o classificarem
como tendo orientação homossexual. Por estarem ali, trabalhando com
crianças, “os homens que não mostram sinais redundantes de virilidade são
associados às mulheres e/ou a seus equivalentes simbólicos: os
homossexuais” (WELZER-LANG, 2001, p. 7).

57
Nesse sentido, apresentamos algumas passagens e falas que
denunciam a urgência classificatória e identitária exercida por algumas
professoras, durante meu estágio na Ludoteca. Entendemos que tais
passagens são ilustrativas, na tentativa de “enquadrar” a minha presença
masculina na escola dentro dos modos de demarcação identitária, fosse como
hetero ou homossexual. Assim sendo, certa vez uma professora chegou até a
mim e disse: “se eu não estivesse conversado com você, iria sair daqui jurando
que você era gay. Primeiro por você ter chegado aqui com a Ludoteca e depois
pelo seu jeito com as crianças: desenvolto e muito cuidadoso. Difícil ver
homem assim!”.

Em outra oportunidade, uma professora chegou até uma componente da


equipe da Ludoteca e disse: “que desperdício um homem desses ser gay!”. E
quando a minha colega retrucou: “não, ele não é gay não”, a professora ainda
insistiu: “como não? Olha lá como ele brinca de boneca e de corda com as
crianças. Eu nunca vi homem nenhum fazendo isso não”. Mesmo com a colega
da Ludoteca tendo negado a minha suposta homossexualidade, a professora
chegou até a mim inquirindo-me: “quando te veem trabalhando com a
Ludoteca, não falam que você é gay?”. Respondi que “falam e falam muito, só
que eu não ligo, afinal, não preciso provar nada para ninguém”. Ela, ainda não
satisfeita, insistiu dizendo que “você nem pode ficar nervoso com isso, afinal é
estranho mesmo um homem desse tamanho brincando de boneca”. Nessa
hora, senti raiva, pois me senti novamente ocupando um “não-lugar”, uma
indefinição territorial numa zona de fronteira quando questionado em minha
masculinidade e igualmente proibido de compor diferentes possibilidades de
expressão junto a sensibilidades creditadas apenas às mulheres. Nesse
momento, eu parecia estar sendo aprisionado às grades de uma única forma
hegemônica de subjetivação masculina, de onde nada poderia ou deveria
escapar.

Por sua vez, aquela professora apresentou uma dificuldade não apenas
dela, mas também da escola, de transitar nessa linha fronteiriça que surge
entre o masculino e o feminino à medida que um homem (seja adulto ou
criança) começa, por exemplo, a brincar de boneca, ou uma mulher passa a
mexer com “coisas de menino”. Contudo, temos que os processos de

58
subjetivação masculinos e femininos não necessariamente estão fixados na
figura biológica do homem e da mulher, pois se a condição de macho e fêmea
é uma definição biológica, as dimensões do masculino e do feminino são
produções sociais. Por sua vez, se geralmente a produção do masculino
encontra corpos de homens, e a produção do feminino se congratula com
corpos de mulheres, eu passava por situações constrangedoras quando
atravessava as fronteiras dos papeis de gênero e tinha meu corpo de homem
atravessado por modos de subjetivação femininos.

Por outro lado, vivenciei-me estranhando a experiência de uma mulher


que, como eu, transitava em uma zona de fronteira de subjetivação de gênero.
Isso porque, sempre que íamos às escolas de Viçosa pelo projeto da Ludoteca,
tínhamos a assistência de motoristas da UFV: todos eles homens. Em um dia,
porém, quando nos preparávamos para visitar uma escola na cidade de
Cajuri/MG, quem nos mandou o transporte foi a prefeitura de lá. Quando a van
chegou, fomos surpreendidos pela presença de uma mulher no volante. Logo
surgiram diversos comentários como: “será que ela sabe dirigir mesmo essa
van?”, “Ai gente, eu estou com medo de viajar com essa mulher!”, “Wagner,
você vai na frente com ela, porque qualquer coisa você puxa o freio de mão!”.
Afinal, enquanto motorista da prefeitura, ela era uma mulher deslizando em um
território dos registros de subjetivação masculinos e produzindo incômodos em
mim e nas mulheres presentes, como ocorrera no meu trânsito pelas escolas
de Educação Infantil até então.

Ao iniciarmos a viagem, sentado ao lado da motorista como haviam me


sugerido, passei a conversar com a mesma. Já no início da conversa, tive a
minha primeira surpresa, pois quando perguntei seu nome, ela me disse o seu
sobrenome, fazendo da mesma forma com que os homens faziam. Talvez,
para ser aceita entre os demais motoristas, ela tenha adotado essa tática.
Outro ponto interessante é que, durante a nossa conversa, ela também me
disse: “você é um cara de sorte, trabalhando com toda essa mulherada!”.
Confesso que cheguei a pensar que ela fosse homossexual, afinal os
motoristas homens da UFV sempre faziam o mesmo comentário. No entanto,
quando me disse que era casada e que tinha filhos, mudei de ideia, talvez por
ter conseguido territorializá-la junto ao casamento e à maternidade, mesmo

59
sabendo que há momentos que a produção de espaços masculinos se
encontra com corpos de mulheres e vice-versa.

Desse modo, o estranhamento com a motorista mulher, assim como


acontecia no meu trânsito entre as escolas de Educação Infantil, surgiu na
necessidade de fixar machos e fêmeas dentro desses territórios hegemônicos
de subjetivação masculinos e femininos. No entanto, há mulheres que
transitam em registros masculinos de subjetivação e homens que transitam em
registros femininos, e é neste momento, na relação “entre” o professor homem
na Educação infantil e a mulher motorista, que novos sentidos, significados e
territórios existenciais podem ser construídos, a partir da problematização
dessas experiências de estranhamento.

Assim, o incômodo causado pela presença de uma mulher transitando


num território de sensibilidades qualificadas como masculinas, pode também
ser visto no efeito que minha presença de homem-pedagogo produzia em
todas as visitas que fiz com a equipe da Ludoteca às escolas de Viçosa e da
região. Da mesma maneira, quando essas escolas visitavam a sede da
Ludoteca, principalmente quando se tratava de escolas de Educação Infantil, o
estranhamento era evidente no olhar de muitas professoras. Era um
estranhamento que transbordava de maneira explícita, principalmente quando
eu transitava, sem pudores, na fronteira entre territórios masculinos-femininos
e, brincando com bonecas, trazia meninos para a dimensão afetiva e doméstica
do feminino. Um exemplo disso foi quando, na Ludoteca, eu brincava de
boneca com as meninas e um menino se aproximou e pegou uma boneca para
brincar também. Na mesma hora, a professora que acompanhava o grupo
disse à criança: “você virou mulherzinha agora? Brincando de boneca”. Ele
ficou tão intimidado que eu precisei intervir, dizendo: “se é assim, professora,
quer dizer então que eu também sou mulherzinha?”.

Foram muitas as experiências vivenciadas no projeto da Ludoteca, que,


em sua maioria, antecederam aquelas que tive quando no estágio curricular em
Educação Infantil.

60
4.4. O estágio na Educação Infantil

A partir das novas diretrizes curriculares nacionais para o curso de


Licenciatura em Pedagogia, publicadas no ano de 2006, o estágio
supervisionado na Educação Infantil se tornou obrigatório. Assim, atendendo a
Diretriz Nacional, o curso de Pedagogia da UFV favoreceu que os discentes
(tanto homens quanto mulheres) se inserissem no ambiente da Educação
Infantil e, consequentemente, se envolvessem com crianças de 0 a 5 anos.

Desse modo, em abril de 2010, procurei uma escola particular (chamada


aqui de “Escola P”) de Viçosa para realizar meu estágio. Na primeira conversa
que tive com a coordenadora Hélia, ela me disse que já estava com todas as
vagas preenchidas para estagiários(as) e que, infelizmente, não poderia me
aceitar. Porém, insisti e disse que já tinha experiência por já trabalhar com
crianças na Ludoteca da UFV. Desse modo, diante de tais argumentos, ela
marcou outro dia para conversarmos.

Chegando à escola no dia marcado, fui muito bem recebido pela


coordenadora, que após nossa conversa e acerto do estágio, me mostrou
todas as dependências da instituição, a sala de aula e a professora com quem
eu iria realizar o estágio. Porém, ao me passar a rotina institucional, ela foi bem
clara a respeito do seu posicionamento perante a minha permanência na
escola ao dizer: “eu te aceitei aqui por você já trabalhar com crianças na
Ludoteca, e porque já tivemos outra experiência com um homem, que deu
certo. Porém, gostaria de pedir que não entrasse no banheiro das crianças,
pois os pais têm acesso livre à escola e podem te ver lá e não gostar”. Ela não
queria, em suas próprias palavras, que o estudante corresse “o risco,
justamente, de ser mal interpretado no momento em que [...] estivesse até
lavando as mãos de uma menina lá, ajudando, e chegar um pai”.

Esta mesma recomendação foi dada a Raul, que também havia feito o
estágio na Escola P, dirigida pela coordenadora Hélia. Raul foi o estudante
masculino que, de acordo com ela, “deu certo” naquela escola. Nas palavras
dele: “a gente ia com eles(as) [as crianças] até o banheiro e os(as) deixava por
conta. Aí se precisassem de alguma coisa, eles(as) avisavam e a gente ia lá.
Assim, a recomendação das professoras lá era a de que eu as chamasse”. E
se Raul “deu certo” na Escola P, talvez muito do mérito disso se devesse aos
61
modos já definidos por ele, e como ele via o lugar do homem e da mulher não
apenas na escola, mas na própria Pedagogia. Segundo Raul:

Pedagogia, se você for ver, tem todo um..., não sei... eu levo muito
para o cuidado né. E Pedagogia envolve o quê? Crianças; o público
infantil em geral. Ai se você for ver, questão infantil, criança, cuidar de
crianças, tem algo mais a ver com o lado materno. Então, eu acho
que seria mais voltado à mulher por essa, eu não sei, talvez uma
facilidade, talvez por ser mais fácil para a mulher ter esse contato
com a criança, do cuidado com a criança em si.

Ao defender a naturalização do espaço, do cuidado como sendo algo


feminino, Raul reatualizou essa concepção hegemônica sustentadora de
territórios bem definidos e universalizantes de papeis para homens e mulheres,
que definem locais afetivos e posturas sociais. Não obstante, ao colocar o
cuidado de crianças pequenas como um afazer mais fácil à mulher, ligando-o à
maternidade, Raul reafirmou o discurso médico-higienista do século XVIII que
concebia as mulheres como as protetoras afetivas da prole, responsabilizadas
pela higiene física e psicológica dos filhos e pelo cuidado da casa e do espaço
doméstico.

Nesse mote, quando a maternagem surge nos argumentos de Raul


como algo inato a todas as mulheres (e consequentemente à educação), é
essa maternagem que dá amparo ao comentário da coordenadora Hélia,
quando ela diz que:

[...] se eu estivesse entre a escolha de um homem e de uma mulher


pra ficar com crianças de um ou dois anos, eu escolheria a mulher.
[...]Do berçário até os três anos é uma fase que a criança ainda é
dependente de alguém muito, vamos dizer assim, emocionalmente.
Então eu vejo essa questão pelo lado do cuidar. [...] Vem o papel
social mesmo, da mulher, da mãe, da cuidadora, isto está incutido.
Isso é fato, é realidade, é verdade, é essencial para o ser
humano. Não adianta, todos querem uma mãe. É diferente o
tratamento. Socialmente, culturalmente, você vê, assim, a
escolha de uma criança nas situações mais difíceis: ela pode
amar o pai, mas na hora que ela tem uma dor de barriga, ela grita
o quê? Mãe.

A fala da coordenadora Hélia, em sua necessidade de reafirmar a função


da mulher enquanto cuidadora, tendo seu papel maternal estabelecido na
sociedade, fez-me lembrar de uma canção de Erasmo Carlos, onde ele anuncia
que:

62
[...] Quando eu chego em casa à noitinha
Quero uma mulher só minha
Mas pra quem deu luz não tem mais jeito
Porque um filho quer seu peito.
O outro já reclama a sua mão
E o outro quer o amor que ela tiver
Quatro homens dependentes e carentes
Da força da mulher [...] (CARLOS, 1981).
Deste modo, ao estabelecer o ambiente doméstico como sendo o da
mulher e responsabilizando-a pelo aconchego e segurança afetiva da família, a
fala da coordenadora Hélia ratificou a hegemonia do cuidado feminino no
ambiente da Educação Infantil, tornando-se uma expressão inata às
professoras e à própria educação. Esta concepção também pode ser vista na
fala de Mariana, coordenadora, há mais de 20 anos, de outra instituição de
Educação Infantil, denominada aqui de Escola X. Para ela:

Eu acho que no Maternal I, os bebezinhos, ainda... eu não sei..., todo


homem tem um olhar diferenciado da mulher nessa questão de
sensibilidade. Eu acho que os bebezinhos ainda ficam... eu não sei se
o homem consegue enxergar se está com febre, se está com fome,
essas coisas delicadinhas, sabe.

A partir dessa fala se percebe a construção de um território de


subjetivação feminina que distancia o homem do cuidado de crianças
pequenas. Território este, construído e se hegemonizado em um discurso
médico higienista que sustenta que mulheres

[...] deveriam ser diligentes, ordeiras, asseadas; a elas caberia


controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e
trabalhadoras do país: àquelas que seriam as mães dos líderes
também se atribuía a tarefa de orientação dos filhos e filhas, a
manutenção de um lar afastado dos distúrbios e perturbações do
mundo exterior (LOURO, 2011, p.447).

Contudo, no momento da inserção do masculino nesse ambiente


desenhado pelos entrevistados como seguramente feminino, há a criação de
uma zona de tensão entre os envolvidos nessa situação. O que faz com que as
tensões que emergem forcem igualmente a porta das estabilidades. Dessa
maneira, essas tensões podem também produzir outros modos de pensar e de
organizar a escola. Nesse sentido, temos que a professora Júlia, que coordena
há quase 20 anos a escola E., sustentou que contrataria um homem para
assumir uma sala de Educação Infantil e também um berçário. Para Júlia:

63
Se ele fosse capaz de trocar fralda, de cuidar de nenê e tudo, sim,
por que não? Não existe o pai? A figura do pai é tão importante[...].
Por que não trabalhar no berçário? Existe a figura do pai, tanto que
eu faço questão de comemorar o dia do pai. Porque para mim a figura
do pai é tão importante quanto a figura da mãe. Você já percebeu que
eu não faço diferença de quem é mais importante. Se é pai, se é
homem, se é mulher. Eu, se eu tivesse um berçário e eu tivesse um
homem preparado para isso seria... não existe enfermeiro também?
Sem problema nenhum.

No entanto, ainda que Júlia conceba a presença do homem neste


ambiente educacional, ela a associa à figura paterna, e assim, ratifica a
concepção hegemônica da Educação Infantil como uma extensão do espaço
doméstico. Todavia, para Gisele (professora da escola E, e que trabalha sob a
coordenação da profa. Júlia), apesar da possível aceitação da escola diante de
um homem assumindo os cuidados de uma turma de berçário, o banheiro
surge como um lugar de estranhamento da figura masculina, tal como surgiu
como incômodo na escola da coordenadora Hélia. Segundo Gisele:

[...] cada sala tem uma pessoa que ajuda; um ajudante com essa
questão. Se é um homem que está na sala, tem uma mulher
ajudando sempre. Sempre tem uma mulher que ajuda na sala. Como
tudo aqui é mulher, não tem nenhum homem não. Pra ir ao banheiro,
né, porque a preocupação maior é o banheiro, então tem as outras
pessoas. Mesmo assim, tem as pessoas que limpam a escola e estão
sempre no banheiro, que às vezes um homem sozinho, né? Tem
gente por lá, sempre!

Questionada a respeito do trânsito de professores homens nos


banheiros da escola em que trabalha, a coordenadora Mariana, da denominada
“Escola X”, respondeu que a proibição da presença de professores homens no
banheiro junto às crianças:

[...] não tem nada a ver. Eu acho até interessante o professor estar
acompanhando, se a criança solicita, lógico, a presença do adulto, o
que é muito raro [...]. Não tem essa questão de mulher, de homem,
até porque eles estão construindo a identidade, eles estão
descobrindo... até essa questão da interação é muito importante.

No entanto, mesmo não sendo consenso entre os entrevistados, o lugar


do banheiro acabou se tornando um território habitado pela expressão
feminina, pois ele representa, principalmente em se tratando da Educação
Infantil, o lugar do cuidado. Contudo, um lugar que se apresenta não apenas

64
pelo cuidado afetivo, mas pelo cuidado íntimo e de mobilização da sexualidade.
E, talvez por isso, exista uma maior dificuldade do homem em transitar nesse
espaço, haja vista que os modos hegemônicos de conceber a masculinidade o
colocam na dimensão da força, da virilidade e também da violência e da
agressividade. Assim, o homem na escola corre o risco de ser concebido como
um predador sexual e, consequentemente, um pedófilo em potencial. Dessa
maneira, sua presença no banheiro das crianças acaba por se tornar uma
ameaça a elas e à escola.
Portanto, o trânsito no banheiro se ergue como um campo de tensão,
que coloca em confronto o afetivo e a pureza do feminino, a agressividade e a
sexualidade do masculino. Este fato é ilustrado na fala de Marco que, mesmo
fazendo seu estágio na escola coordenada por Mariana - a qual não vê
problemas nesse trânsito masculino no banheiro - sustenta que:

[...] não sei se é por um excesso de zelo meu, mas se a criança me


perguntava onde era o banheiro, eu evitava de levá-la até dentro do
banheiro. Eu chegava até na porta e falava: olha, o banheiro é aqui
[...]Porque eu não sei o que eles podem pensar. Eu não sei o que a
criança pode falar. Eu posso ser mal interpretado.

Dessa maneira, começam a surgir alternativas para lidar com essa


novidade, sendo uma delas exemplificada na fala da coordenadora Júlia
quando ela discorre sobre a presença do estagiário Davi no banheiro da Escola
E:

Ele tomava conta das crianças no pátio, ele levava as crianças ao


banheiro, respeitando as crianças, sabendo que não podia pôr a mão
nas crianças. Leva ao banheiro, mas não precisa tocar na criança pra
ir ao banheiro. Mas ele tomava conta, para ver se estavam fazendo
direitinho, se estavam usando o vaso direito, se estavam bebendo
água, como se fosse uma professora, sem problema nenhum.

Mesmo que a presença de Davi fosse tolerada no banheiro, o simples


fato dele necessitar ser autorizado a transitar neste espaço e de ser proibido de
tocar nas crianças evidencia o medo do abuso sexual perante o masculino
naquele ambiente. Por sua vez, essa mesma autorização de trânsito no
banheiro e proibição do toque não eram abordados com as estagiárias, pois se
tratava de um território “natural” a elas.

65
Temos, portanto, que mais importante nessa pesquisa não foi nos
nutrirmos em qualquer vã pretensão de estabelecer verdades ou roteiros de
conduta, mas perceber como as concepções de educação, que ganham vida
nos cotidianos de escolas de Educação Infantil, conversam com as produções
sociais de masculinidade e feminilidade. Assim, ao reatualizarem e
naturalizarem os territórios identitários, oriundos de modos de subjetivação
hegemônicos, as escolas muitas vezes transformaram o banheiro em um
campo de incômodo e de estranhamento, pois se apresentava como um ponto
de encontro do cuidado e o afeto com o território da sexualidade, da violência e
da agressão. Dessa maneira, as escolas ratificaram ainda o lugar das mulheres
castas, das professoras castas, que não ameaçam por não serem sexuadas.
Enquanto isso, a masculinidade, entendida como predatória, agressiva, sexual,
ativa e pouco sensível, incomoda e é assumida na escola como sendo
propriedade natural dos homens.

Por sua vez, a prática de conceber a expressão masculina enquanto


ativa sexualmente, não só obstrui o contato físico do homem com as crianças
na Educação Infantil, como também dita as ações e os espaços que ele pode
ou não exercer/ocupar nesse ambiente. O que faz com que, fugindo dos pontos
de tensão que remontam às dimensões do cuidado, os homens tendem a ficar
mais confortáveis e estabilizados no território de controle e de maior
“racionalidade” da escola, que é o espaço mais “gerencial”. Isso pode ser visto
na fala de Felipe, quando, a respeito de sua participação na escola, diz que:
“eu me vejo contribuindo melhor, com melhor desempenho, mais êxito, naquilo
que eu costumo chamar da área mais técnica do ensino que seria a
coordenação, a supervisão, a orientação educacional, a parte mais técnica,
mais burocrática”.

A busca por esse lugar da figura masculina, enquanto coordenador do


trabalho, reafirma tanto o modo de subjetivação hegemônico da mulher como
uma figura prenhe em afeto e cuidado, quanto o modo hegemônico de
composição do homem e da masculinidade, formadores de um ser racional,
responsável pelas funções mais executivas e financeiras. Felipe ratifica tais
posicionamentos quando afirma que:

66
[...] de repente eu não tenha condições; eu não me sinta em
condições de desempenhar um bom papel na Educação Infantil, mas
eu me sinto perfeitamente em condições de trabalhar num campo
mais técnico, num campo que não seja exatamente lidando com o
ensinar propriamente dito, mas que esteja em torno disso também.
Como eu disse, o campo do pedagogo, ele é bastante privilegiado em
minha opinião, porque você não se restringe apenas à sala de aula,
ao ensinar, ao dar aulas, embora essa seja a função primeira do
pedagogo, do educador: o ensinar, o dar aula. Mas, no entanto, existe
uma demanda que a gente não pode esquecer dela, que a demanda
da área extra sala também né, que é o coordenador pedagógico.

Nesse sentido, quando Felipe se territorializa em campos como a


coordenação e a supervisão, assume para si um lugar de segurança identitária
na Educação Infantil, pois ratifica o lugar de poder, de condução e controle da
figura masculina perante as demais. Dessa mesma maneira, temos na fala de
Marco esse movimento de situar o homem no papel de condutor mais do que
de cuidador. Segundo ele:

Eu senti, e não sei exatamente se é por eu ser homem, ou por causa


da minha aparência – eu pareço ser mais velho – que em algumas
escolas algumas professoras me trataram mais como um
coordenador do que como um aluno. Coisas que elas precisavam
perguntar, de como seria o trabalho; como seria a atividade; elas
vinham falar comigo.

Estes relatos nos possibilitam dizer que, se por um lado, a inserção da


figura masculina nas dimensões do cuidado e do afeto, no ambiente da
Educação Infantil, estranha verdades estabelecidas na comunidade escolar, -
pois atingem alunos, professores, funcionários e famílias - por outro, força a
escola a se proteger dessa desterritorialização, afirmando lugares que
garantam a estabilidade de espaços identitários para homens e mulheres:
homens na coordenação e supervisão; mulheres no cuidado e no afeto.
Contudo, por mais que a ânsia identitária tome a cena principal da escola,
classificando e definindo os locais de seguro trânsito para homens, mulheres e
crianças, há sempre o risco de um movimento imprevisto escapar e produzir
insuspeitos incômodos. São incômodos que se estabelecem não em focos
identitários, mas em momentos de indeterminação que denunciam zonas de
fronteira de subjetivação.

Sendo assim, durante meu estágio em Educação Infantil na “Escola P”,


em uma festa preparada para o Dia das Mães na escola - que contou com a

67
presença de muitas famílias - uma das crianças se sentou em meu colo para
assistir a uma apresentação de mágica. Para mim, aquela era uma situação
normal, pois havia diversas crianças sentadas no colo das professoras. Porém,
a coordenadora Hélia veio até a mim e pediu para que eu tirasse a criança do
colo, pois os pais poderiam não gostar. Segundo ela,

[...] as crianças gostam, elas sentem necessidade, elas procuram


para abraçar. Quando eu chamei a sua atenção [no que se refere à
criança sentada no colo], não foi... não porque... não que não possa
pegar no colo e tudo. Foi o fato da característica de sentar no colo, de
estar ali, que é diferente”.

Eis que emerge uma situação na fronteira entre o cuidado afetivo e a


suspeita de molestação sexual. Quando homens, mulheres e crianças têm que
transitar nessa fronteira criada a partir da inserção da figura masculina nesse
ambiente escolar, eles colocam em questão a dificuldade tanto de romper com
o já estabelecido e naturalizado, quanto o incômodo inventivo que é o de lidar
com uma expressão nova de masculinidade, atravessada em intensidades
femininas. Ao falar dessas transgressões nas fronteiras de subjetivação, Louro
afirma que:

Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou de


sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo,
embaralham e confundem os sinais considerados “próprios” de cada
um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes e
desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios [...] esses
sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades.
Acabam por ser punidos de alguma forma, ou, na melhor das
hipóteses, tornam-se alvo de correção (LOURO, 2008, p.87).

Contudo, frente às proibições referentes ao contato físico com as


crianças durante meu estágio, eu não conseguia entender o por quê daquela
atitude da escola, uma vez que o professor de Educação Física beijava,
abraçava, pegava as crianças no colo e, em momento algum, era repreendido.
As professoras diziam que ele era ótimo, pois era muito carinhoso com as
crianças. Em entrevista com Hélia, coordenadora da instituição onde fiz o
estágio, ela me disse sobre esse contato físico do professor de Educação
Física com as crianças:

68
São poucos momentos dessa figura[masculina] na escola. Porque a
maioria são as cuidadoras, todas colaboradoras, todas são do sexo
feminino. Então elas (as crianças) gostam muito [da figura do homem]
e até procuram muito contato físico. Que eu acho que é assim, tipo
assim, é o papel do pai, que também trabalha muito fora. E nós
tivemos também os estagiários, que eu tive que dar até algumas
orientações aos estagiários. Por quê? Nós vivemos numa sociedade,
onde as questões de abuso sexual acontecem.

No entanto, mesmo a escola inserida nessa lógica de entendimento do


masculino, como sendo aquele que trabalha fora de casa (responsável pelo
sustento da família), acoplado ainda a uma expressão agressiva sexualmente,
em outra ocasião (Festa da Páscoa), depois de encarecidos pedidos da escola
para que eu me vestisse de coelho e brincasse com as crianças, foi-me
autorizado beijá-las, abraçá-las, sentá-las no meu colo diante dos pais, entrar
no banheiro, enfim, eu pude tudo, enquanto Coelho da Páscoa. Neste dia, os
pais também compareceram à escola e eu tive total acesso a todas as suas
dependências.

Possivelmente, a permissão concedida pela escola para que eu


transitasse por todos os registros afetivos se derivou da minha entrada em um
devir-coelho, onde eu não mais estava em um regime de subjetivação
masculino ou feminino, mas potencializado em uma figura fantástica e, assim,
não enquadrado em nenhuma identidade sexual ou de gênero. Com isso, o
temor escolar diante do meu contato com o corpo das crianças cessou, a partir
do momento que eu deixei de ser o “professor Wagner” e passei a existir como
um aconchegante Coelho da Páscoa.

Entretanto, passado aquele evento, a dificuldade de transitar


cotidianamente nessa fronteira continuou a edificar incômodos e medos não
apenas em mim, como também na escola. Medos como aqueles denunciados
na fala da coordenadora Hélia quando apresentou seu temor de os pais verem
seus filhos homens brincando com bonecas. Segundo ela, “alguns pais pedem
para dar instruções para as crianças não brincarem com bonecas (...) e às
vezes questionam: ih, que é isso, tá brincando de boneca? Ou então não falam
nada, mas a fisionomia demonstra uma certa insatisfação, decepção de ver o
filho pegando não em um carrinho, mas em uma boneca”.

69
Para a referida coordenadora, a proibição dos pais tem a ver com o
medo que eles possuem quanto as (in)definições da sexualidade infantil.
Receio da indefinição identitária que as crianças possam adentrar quando na
fronteira entre papeis sexualmente definidos pela sociedade. Diante disso,
surge a necessidade de estabelecermos coisas de meninos e meninas, e
oferecermos a tais elementos um caráter imutável, a-histórico e binário de
maneiras de existir (LOURO, 2008). Assim sendo, nas palavras de Butler
(1993) apud (LOURO, 2008, p.15), “essa lógica implica que esse “dado” sexo
vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo; [...]
inaugurando um processo de masculinização e feminização com o qual o
sujeito se compromete”.

Sendo assim, seguindo a fala da coordenadora Hélia, é diante dessa


preocupação de criar corpos estranhos, que não se enquadram nos modelos
hegemônicos de masculinidade e feminilidade, que se processa o impedimento
dos meninos de brincar com bonecas. E vai além, pois considera que essa
proibição de brincar com bonecas e praticar o cuidado na infância contribui com
que muitos meninos “encontrem dificuldades, depois de casados, de botar um
filho no colo, de trocar uma fralda, porque tem essa questão da sexualidade”.

A fala dessa entrevistada coloca em cena, mais uma vez, os processos


de subjetivação hegemônicos da sexualidade, pois quando o pai proíbe seu
filho homem de brincar com boneca, relaciona automaticamente a questão do
cuidado afetivo como sendo um atributo da expressão feminina e, assim,
reproduz esses territórios binários de papeis pré-definidos a homens e
mulheres. Por sua vez, a proibição de brincar com boneca nos coloca numa
correlação direta com a presença do homem na Educação Infantil, já que, se
um menino que brinca com bonecas movimenta expressões afetivas que lhe
são socialmente proibidas, um homem cuidando de crianças também questiona
a legitimidade dos regimes de masculinidade estabelecidos.

Nesse sentido, ao discorrer sobre o homem neste ambiente educacional,


a coordenadora Hélia diz que:

Eu acho que se [um professor homem] estivesse no berçário, eles [os


pais] iriam me jogar pela janela. Mas, eu acho, assim, que de outras
formas eles entram, como professor de Artes, como professor de

70
Música. Porque o professor de Educação Física, ele vai apenas um
dia, ele está ali, é igual ao de Música, ele está ali pra dar as
atividades de Música e vai embora. Vamos dizer assim, a parte de
educação, eu vou falar assim, moral, social, fica por conta de uma
professora.

Diante dos argumentos de Hélia é impossível não nos remetermos a um


trecho da Lei Estadual (Minas Gerais) de nº 439, datada de 16 de dezembro de
1906, citada por Chamon (2005), e já anteriormente explicitada nesta
dissertação, a qual destaca que:

[...] a mulher melhor compreende e cultiva o caráter infantil, e a


professora competente é mais apta para a educação sem os desvios
do espírito, sem corrupções no coração e sem degradações no
caráter (p. 99).

Assim sendo, ao delegar à mulher essa educação moral, a


coordenadora Hélia reitera o discurso já proferido há 100 anos, mostrando o
poder que esses discursos hegemônicos têm de se ressignificarem e
enraizarem nas práticas sociais.

Contudo, os diferentes mundos, que constituem as diferentes escolas de


Educação Infantil, possibilitam também múltiplas experiências, as quais, não
necessariamente, convergem com a minha. Fato este, explicitado na fala de
Marta - professora da Escola X – quando, ao discorrer sobre o contato do
estagiário Marco com as crianças, afirmou que “as meninas, os meninos, todos
iam para o colo dele, brincavam junto com ele, puxavam ele para ir fazer uma
brincadeira. Então, assim, naturalmente”.

A abertura das crianças diante da novidade, aqui exemplificada pela


presença da figura masculina no ambiente da Educação Infantil, mostra-nos
como estas estão abertas à experimentação. Afinal, mesmo que no início do
meu estágio elas tenham ficado receosas com minha presença, conseguiram
transpor a barreira do diferente, trazendo-me para o mundo que elas
compunham no convívio. Nesse sentido, a professora Miriam, que era a
regente da sala onde fiz o estágio, comentou, referindo-se ao meu contato com
as crianças na escola, que:

[...] você lembra que você participou com a gente e eles guardavam
seu nome, já guardavam a fisionomia, porque quando você volta
algumas crianças ainda se lembram de você. E brincar na área
externa, você lembra? Como era legal, eles adoravam, você corria

71
(risos). Você corria com eles e ia embora todo suado, participava
mesmo, suava a camisa, brincava, participava o tempo inteiro.

Essa receptividade das crianças também foi ressaltada pelos


entrevistados, sendo aqui exemplificada na fala de Raul, quando afirma que:

[...] as crianças se identificaram muito comigo. Não sei se por conta


delas estarem acostumadas só com professoras mulheres. Ai quando
me viram lá, parece que todo mundo achou aquilo diferente e
gostaram da novidade. Então, assim, eu me dei super bem com elas
e as crianças também se deram super bem comigo.

Porém, um sentimento de estranhamento mediante à inserção de


homens no contato com crianças pequenas também é relatado pelos discentes
entrevistados para este trabalho. Diante da experiência vivida no estágio em
Educação Infantil, disseram que “a surpresa foi maior dos funcionários, [quando
viram] um estagiário homem (DAVI)”. “O pai de um aluno chegou aqui e
estranhou que eu estava com as crianças e queria saber se eu era o pai de
uma criança ali (RAUL)”. “Os pais, eu já vi que alguns me olharam meio torto
enquanto eu estava lá” (MARCO).

Além destes, há também o estranhamento das crianças ao se


depararem com essa nova figura na escola. Conforme Felipe relatou:

De início elas sentem um estranhamento né, podemos dizer. Porque


elas são acostumadas com a presença da mulher, principalmente
nessa faixa etária, nessa modalidade de ensino, e aí eu percebo
assim que quando elas veem que é um homem, um homem na nossa
creche né, talvez cause aquele espanto.

Problematizando tais acontecimentos em minha trajetória acadêmica,


juntamente com as falas dos sujeitos entrevistados, percebi que me situava,
naquela escola e em todas as outras referenciadas, em uma zona de fronteira
entre diferentes territórios de subjetivação. Eu não estava nem completamente
envolvido nos modos de subjetivação hegemônicos da masculinidade (pois
fazia um curso que, entre outras possibilidades, se dedicava à educação, ao
cuidado e ao acompanhar crianças), nem nos modos de subjetivação da
feminilidade, porque, enquanto homem, eu era significado pelas professoras
das escolas com as quais convivi dentro dos modelos hegemônicos de

72
masculinidade. Nesse sentido, remeto-me ao argumento de Rolnik e Guattari,
quando postularam que:

Se eu não posso me integrar na iniciação de certa posição sexual


dominante, se eu não posso semiotizar a minha singularidade – que
talvez não seja nem homem, nem mulher, nem planta, nem animal,
nem nada disso –, então tudo bem, serei mulher. Entretanto, não é
isso que vai me permitir singularizar. Posso muito bem desmunhecar,
carregar graciosamente uma sacolinha no braço, me maquiar:
imitarei, de maneira mais forçada possível, os pseudo-traços de
singularidade da mulher. É assim mesmo, um processo diferencial –
nesse campo, nunca há singularidades absolutas, senão é a morte.
Sempre estamos metidos em processos diferenciais de
singularização: a questão está exatamente em não se deixar
capturar, em não cair nesses modos de qualificação e de
estruturação que bloqueiam o processo (GUATTARI; ROLNIK, 2005,
p. 80-81).

Dessa maneira, problematizando o que foi apresentado até o momento e


no intento de evitar que os processos inventivos sejam bloqueados, não
buscamos encontrar respostas prontas. Entendemos que os diferentes mundos
que compõem os cotidianos na Educação Infantil estão submetidos a um
constante devir, a promover encontros, misturas, diferenças e também
ansiedades perante o inclassificável e não submetido às definições identitárias.
Diante disso, terminamos esse relato com a abertura a seguinte questão: até
que ponto, docentes masculinos, femininos, coordenação, pais e crianças,
estão dispostos a transitar nessa fronteira de subjetivação?

5. Considerações finais

Um trabalho de pesquisa é sempre uma aventura incerta. As questões


que nele nascem não são necessariamente respondidas de forma plena após
percorrermos o trajeto de investigação. Isso porque outras questões emergem
no meio do caminho e produzem novas trilhas de pensamento que, se
seguidas, nos levam a diferentes problemáticas e questões. Portanto, posso
dizer que no caminhar desta pesquisa, as dúvidas e incertezas foram
constantes companheiras. E foram dúvidas e incertezas que, inclusive, se
remetiam à forma como me decidi a narrar os trajetos desta investigação.
Colocar minha própria história na Educação Infantil para conversar com as
histórias de outros estudantes, coordenadoras e professoras, me fez correr o
risco de ficar em uma posição exageradamente confessional. Contudo, como
73
trazer à pesquisa os incômodos que me atravessaram a carne sem me
posicionar, narrar meus incômodos, frustrações e conquistas? Assim,
aventurei-me a narrar a minha trajetória e também a dos sujeitos entrevistados,
intercalando todas as histórias com referenciais teóricos que potencializavam a
apresentação de diferentes experiências de vida. Deste modo, a minha
pretensão foi mais do que contar histórias de sujeitos praticantes de escolas de
Educação Infantil. O objetivo foi mostrar que estes sujeitos estão imersos em
processos de subjetivação que, além de inventar suas referências de verdade e
sexualidade, inventam também práticas escolares de concepções de infância,
de masculino, feminino e educação. Nesse mote, colocar em cena experiências
como a minha e a de todos os sujeitos aqui entrevistados, tem por ambição
fazer perceber novas composições de mundo na docência da Educação Infantil
que não só as hegemonizadas nas naturalizações sobre o papel do homem e
da mulher na educação. Porém, nesse mesmo movimento foi possível perceber
o quanto o poder desses discursos sobre o masculino e o feminino, que vêm se
construindo desde o período colonial, – naturalizando maneiras de ser macho e
fêmea, e lugares específicos para o trânsito destes – tem sido reeditado nos
dias atuais. Isso se evidencia quando acompanhamos relatos como os dos
estudantes Raul e Felipe sobre suas inserções na Educação Infantil. O primeiro
acredita ser a mulher mais apta para exercer o trabalho com crianças
pequenas, e o segundo crê que o homem tem mais aptidão para um trabalho
de supervisão ou coordenação de uma escola. Temos reeditados processos de
subjetivação que inventam concepções de masculino e feminino remontando a
todo o trabalho iniciado pelos governantes brasileiros no século XIX, que situa
o homem como administrador do lar e a mulher como cuidadora afetiva da
prole.

Por sua vez, narrar acontecimentos junto aos sujeitos que compõem os
diversos cotidianos da Educação Infantil possibilitou a problematização da
diferença pela presença do masculino neste ambiente. Transitando os
estudantes homens da Pedagogia numa linha fronteiriça entre registros
masculinos e femininos movimentaram-se as concepções de todos (inclusive
dos estudantes entrevistados) que ali praticavam os cotidianos das escolas
pesquisadas. Ainda que tentassem enquadrar essa novidade nos registros

74
hegemônicos de significação dos espaços cristalizados para o masculino e o
feminino na nossa sociedade, eram obrigados a se abrir ao estranhamento de
pensar, ainda que de maneira precária, para a possibilidade de uma nova
composição das lógicas masculinas e femininas no trato com crianças
pequenas.

Portanto, na construção desta pesquisa foi notado que a concepção


criada pela sociedade para a docência da Educação Infantil, a qual coloca a
mulher como a mais “apta” para exercer esta função, perpassa campos além
do educacional Vimos também que o homem, ao incorporar os modos
hegemônicos de masculinidade socialmente construídos, ainda não se sente
pertencente a este ambiente. Sendo assim, ele tenta não se submeter a
mudanças de atitude, buscando se proteger em cargos mais administrativos da
escola, evitando o encontro – a se mesclarem cuidado e afeto – com crianças
em uma sala de aula de Educação Infantil.

Diante disso, consideramos que ainda são muitos os desafios


enfrentados pelo docente homem na Educação Infantil. Se esses desafios se
encontram localizados na dificuldade da escola problematizar a naturalização
da mulher como personagem social destinado ao trato com crianças, localizam-
se também na própria dificuldade do homem de se permeabilizar as
intensidades qualificadas como femininas.

Desde o início, esta pesquisa nunca se preocupou em encontrar


verdades absolutas e inquestionáveis, mas sim construir questões que nos
façam pensar na potência desses mundos que transitam numa fronteira de
subjetivação. Fronteira esta na qual as realidades não dizem respeito a estados
de garantida estabilidade, mas a movimentos que problematizam o
naturalizado e nos convidam a pensar em possibilidades enunciadoras na
educação, na Educação Infantil e em nossas próprias práticas como
professores. Afinal, somos desafiados cotidianamente a questionar os mundos
de sentido que construímos juntos nas escolas.

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