Dissertação Natalia Pinto Da Rocha Ribeiro
Dissertação Natalia Pinto Da Rocha Ribeiro
Dissertação Natalia Pinto Da Rocha Ribeiro
ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA
Salvador
2016
NATALIA PINTO DA ROCHA RIBEIRO
Salvador
2016
Sistema de Bibliotecas - UFBA
CDD - 793.3
CDU - 793.3
AGRADECIMENTOS
Gratidão!
Gratidão!
Gratidão!
Como não agradecer às pessoas que colaboraram tanto nesse trabalho e na minha vida durante
esse período?!
Minha família, principalmente pai (Eduardo Pirajá Ribeiro) e mãe (Aida Pinto da Rocha
Ribeiro), pelo apoio, amor, tolerância e pelos exemplos de generosidade e companheirismo.
Além de Enzo Samuel, meu sobrinho querido, que com suas necessidades e carinho me
mostrava que existia vida independente do Mestrado.
Minha família flamenca!!! Núbia, Juçara, Mari, Cacilda, Paulinha, Nadja e Jaque, amigas
queridas de tantas conversas, confidências e sapateados... Nada melhor para o stress.
Ao Núcleo Místico Estrela Guia, amigos de tantas jornadas... Agradeço ao carinho especial de
Raquel, Carlos, Ricardo, Regina, Jôs e Aline.
Aos amigos de longe e de perto que estão aqui, lá, em algum lugar...
Minha orientadora, Ludmila Pimentel, por estar sempre presente e por confiar.
Fafá Daltro, cuja colaboração no momento inicial da pesquisa mudou o rumo das coisas...
Às minhas amigas Juçara e Cecília Accioly, pelas normassss (aff) nas exigências acadêmicas
e pelos conselhos e gestos de generosidade.
Paula Moreira, cujo trabalho, tempo e escuta a mim dedicado não há como pagar.
Victor Venas pela produção do evento onde apresentei Despetala e Anderson Moreira pelas
fotos cedidas.
RESUMO
ABSTRACT
This research has its unfolding on the poetic (creative process) in the digital dance, expression
here proposed to characterize the dance interacting with the encoding technology of digital
language. The Aristotle’s (1987) and Luigi Pareyson (1997) understandings of poetics are
here guidelines to think a dance poetic, from the contributions of Laurence Louppe (2012) and
Fabiana Britto (2011), in order to identify poetic assumptions in digital dance, assuming they
can be temporary, unfinished and relative. To the study of the context of this way of doing
dance, referenced by Dorotea Bastos (2013), Gretchen Schiller (2003) and Allegra Fuller
Snyder (1964), were added the information searched on sites that allowed me to meet other
artists and their work. To dialogue with the discussion on the technologies that serve as
breeding material, we used the critical Villian Flusser (1985) and the clarification of Lev
Manovich (2001). Based on the practical observation of some artists, I introduced a reflection
about the reverberations that dance provides, as the expansion of the movement of
understanding and body dialectic translocation to a scanned body, the digital double (DIXON,
2007). This analysis refers to the development of the image in dance, bringing the visual
aspects (DOMÈCH, 2011), as an imagemtologia - term proposed by this dissertation, which
would be the logical composition of visual scenic elements.
Figura 8 – Temblor.................................................................................................... 95
Figura 9 – SZis........................................................................................................... 95
Figura 10 – Chámame.................................................................................................. 96
Figura 11 – M3X3........................................................................................................ 98
1
Fonte: Post-Modern Dance History. Disponível em: <https://youtu.be/Xkt4yUkMnnk>. Acesso em: 30 ago.
2015.
2
Fonte: Difference Between Modern Dand Contemporany Dance. 2016.
Disponível em: <https://youtu.be/0Pkm11ieJyg>. Acesso em: 12 abr. 2016.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................................................................. 17
2 CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO........................................................ 21
3 A POÉTICA E A DANÇA............................................................................ 31
3.1 A BUSCA DE PRESSUPOSTOS EM ARISTÓTELES................................. 31
3.2 A POÉTICA SOB A LUZ DA ESTÉTICA.................................................... 45
3.2.1 O conceito....................................................................................................... 45
3.2.2 De que é feita a arte? O que a poética preside?.......................................... 55
3.3 A POÉTICA PARA A DANÇA E PARA A DANÇA DIGITAL.................. 60
3.3.1 A resposta da Dança...................................................................................... 60
3.3.2 Parâmetros para a dança digital e para a dança contemporânea............. 66
REFERÊNCIAS............................................................................................ 211
APRESENTAÇÃO
Para cada estudo pode existir uma razão peculiar, este, em especial, nasceu de uma
inquietação, na verdade várias, de uma artista obsessiva com seu compromisso profissional,
cujo gosto pelo estudo e a curiosidade investigativa conduziram para o âmbito acadêmico.
Como este tópico almeja uma aproximação com o estudo, e não é propriamente a análise
argumentativa, é pedida licença ao leitor para seguir, provisoriamente, com uma escrita mais
direta e de apelo ensaístico.
Pois bem, o fato é que agora estou com 32 anos - 2015, se considerarmos que 3 + 2 são
cinco, estou novamente vivendo o número 5, como se envolta em uma elipse do tempo. Mas,
onde estaria eu quando vivia o meu primeiro 5? Quando tinha cinco anos de idade? Fazia
muitas coisas, e uma delas, era dançar balé.
Ahhh... Eu adorava! Tinha muita vergonha de dançar para os outros verem, mesmo
assim, eu adorava. Com o balé também veio a minha primeira experiência de palco. Eu era
“cheinha”, como eles chamam, nem um pouco o “tipo” de corpo do balé, mas eu dançava e
me imaginava dançando adulta. Dizia que quando ficasse grande iria dançar em Londres ou
em Paris. Nem um pouco pretensiosa...
Nessa época eu ainda enxergava, só depois fui perdendo a visão, quando já estava nos
últimos anos de balé. Comecei a apresentar problema nos olhos com sete anos, fui perdendo
gradativamente a visão, só com 10 a degeneração macular se estagnou. Aos nove anos, foi
quando eu saí do balé. No ano seguinte, comecei a fazer teatro e só muito tempo depois as
expectativas profissionais na Dança entraram novamente na minha vida. Profissional sim,
porque quando pequena, encarava o balé como o meu futuro.
Tenho lembranças muito fortes dessa época... As rosas que minha mãe me dava... O
frio na barriga antes de entrar no palco... O prazer de estar lá dançando... E os aplausos, o
frisson do público... Depois eu voltava pra casa, com um buquê nas mãos, uma sensação de
prazer no corpo e com a certeza de dever cumprido. Vixe! E eu só era uma criança!
Lembro-me até hoje de uma coreografia que participei com minhas colegas em que nós
dançávamos juntas com nossa professora. Era uma emoção indescritível quando ela dançava
perto de mim. Ela era elegante e parecia ficar enorme, como uma Deusa. Acho que foi a
última vez que dancei balé, foi uma montagem de Alice no País das Maravilhas. Minha
professora Tereza era a Rainha das Cartas e eu era uma carta de paus, com sapatilhas pretas e
tudo! Até pouco tempo ainda as guardava.
Na escola, cursando o ensino médio, tive a oportunidade de fazer teatro e desde então
continuei... Prestei vestibular para Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA),
onde passei sete anos fazendo Bacharelado em Interpretação Teatral. Esse gosto pelo palco e a
necessidade de expressão singular sempre me acompanharam desde pequena, e de alguma
forma eu sempre estive envolvida em alguma atividade criativa. Um professor e diretor, Luiz
Marfuz, falou para mim e para os colegas do elenco, frase de autor desconhecido: “O teatro
não é uma escolha, é uma condenação!" E eu acho que pode ser ainda mais. Me atrevo aqui a
uma pequena paródia: a arte não é uma escolha, é uma condenação! Estamos fadados a fazer
arte, sem essa possibilidade de transbordar o nosso impulso criativo, a nossa expressão mais
intensa, adoecemos, murchamos, ressecamos.
Neste período em que o teatro era a expressão artística pela qual eu dedicava maior
tempo e atenção, entre os 10 e 26 anos de idade, participei de várias montagens. Algumas
traziam treinamentos de música e dança, enfocados para atores. Aos 18 anos, já como atriz
profissional, compus o elenco de: Dez Maneiras de Morrer, direção de Júlio Cezar Ramalho,
e em seguida de vários outros: Só, direção de Luiz Marfuz; Ozara, direção de Alexandre
Nunes e Viva o Povo Brasileiro, direção de Meran Vargens. E o que de todos esses trabalhos
emergia era a necessidade de compreender a interpretação como um processo corporal que
acontece na organização e reorganização de todas as funções em conjunto. Talvez, e também
por causa da deficiência visual, o meu corpo ansiava por uma investigação mais apurada e
significante para mim, sobre os processos de percepção e de criação.
Se pensasse em uma cor, qual seria a cor da Dança? Se pudesse sentir seu cheiro ou sua
textura...
Quando fecho os olhos e lembro-me das minhas vivências com a dança, do momento
em que ela entrou na minha vida, tenho lembranças infantis. A dança povoava os primeiros
pensamentos de sentidos em mim quando criança... Eu queria ser bailarina e, somente isso.
Era o que eu pensava em ser quando crescesse...
Para mim, esse elemento, então, poderia ser a cor da Dança, o cheiro da Dança e
também sua textura: as rosas vermelhas que ganhava de minha mãe!
As rosas aos poucos foram se transformando. Por vezes esquecidas na memória, quando
minha vida tomou outros rumos mais teatralizados do que dançados. No entanto, o corpo
tornou-se o foco, fato que fez meu caminho retornar para a dança. Mas um lugar não é sempre
o mesmo, o rio sempre passa por aquela margem, mas são outras águas, e nem a margem será
mais a mesma. A textura aveludada talvez não pudesse ser mais tocada e sim visualizada em
imagens digitalizadas, projetadas.
O lugar da dança então era outro. A magia não mais era privilégio único das rosas, ela
transcendeu, transbordou e se abrigou em outros corpos. A magia agora está disfarçada e
entranhada em objetos tecnológicos que se misturaram com a dança que eu queria fazer. Esses
objetos estavam sempre ao meu lado, convivendo comigo e com as outras pessoas,
satisfazendo desejos e me mostrando coisas que nem sabia que eram possíveis. As nossas
vidas foram sistematizadas, digitalizadas, em programas, softwares ou por outras tecnologias
organizadas. Como não colocá-los na minha dança?
Depois das explicações dadas, pode-se retornar ao formalismo acadêmico, com menos
ironia, mas com o devido respeito, deseja-se: uma boa leitura!
17
1 INTRODUÇÃO
A relação do ser humano com a tecnologia, ainda que antiga, se constrói e reconstrói a
todo o momento. A humanidade se descobre nessa relação, bem como aprofunda o processo
de entendimento da tecnologia que ela própria produz. Na arte, a forma de “estar no mundo”
também é inter-relacionada, em trocas mútuas com o ambiente, e agora, com a produção
artística na interação com o digital.
O corpo se relaciona com o ambiente e com tudo o que está contido nele. Dessa forma,
toda e qualquer coisa que esteja na cena se torna passível de relação com o corpo. Nesse
processo, são estabelecidas formas de contato e troca, cujos efeitos interferem na poética, no
processo de criação artística.
manifesta o modo como o corpo se organiza e reorganiza na relação com essas tecnologias em
formas de entendimento, de pontos de vista, de escolhas, de utilizações e também de gostos.
O projeto desenvolvido faz um estudo acadêmico na área de Dança, com ênfase na sua
poética, a partir da utilização de tecnologia digital, buscando seus processos e reverberações.
A poética é entendida como processo. Ela é uma forma organizacional, cujo contexto da
dança com o digital implica em relações entre o corpo e essas tecnologias na criação artística.
Nesse sentido, emergiu a problemática sobre “que é a poética em dança digital?” e, dentro
dela suscitaram dois eixos norteadores: entender os fatores que estão embutidos nos seus
processos, bem como das reverberações que as relações proporcionam para a área da Dança.
Uma das características intrínsecas a esse fenômeno da Dança, que nessa investigação
ganha a nomenclatura de dança digital, é a necessidade de criação a partir do diálogo com a
tecnologia digital como condição de existência. A dança digital não existe enquanto
modalidade de dança – com gestos definidos que permitam uma identificação dos
maneirismos de movimento – mas existe enquanto construção poética, mecanismo de
execução, e por isso haverá técnicas, pressupostos.
Na poética em dança digital, não se pretende estabelecer normas fixas permeando todas
as suas produções artísticas, muito menos inflexíveis, que só indicariam uma forma única de
existência dessa poética. A proposta é pensar em pressupostos, provisórios e variáveis, que se
tornaram fluentes nesse modo de fazer dança. Eles foram articulados a partir dos fatores que
compõem – que fazem – o contexto da dança digital, assim como das relações que se criam
entre esses mesmos fatores. Eles foram observados pelos “encontros” com os autores e,
sobretudo, com obras e artistas: esses são os que fazem a dança.
Uma das proposições obtidas, a partir dos pressupostos, é que o duplo digital, cuja
presença carrega potência de afetação com inúmeras interpretações, pode retirar do corpo
humano a exclusividade de matéria da arte da Dança. Essa possibilidade provoca tensão no
entendimento clássico dessa arte, que sempre delegou ao corpo em movimento o
acontecimento em dança. A criação com o duplo digital poderia, então, ser um estímulo à
expansão do pensamento em dança.
A outra proposição suscitada na análise é que, como a Dança é uma arte dedicada aos
olhos (ARISTÓTELES, 1987), há a necessidade de se pensar na poética de sua visualidade
cênica. O advento das tecnologias digitais no processo criativo, as quais em sua maioria são
de produção de imagens, trouxe novos elementos visuais à cena. Por essa razão, procurou-se
um entendimento que pudesse dar “conta” da lógica de pensamento da imagem, reforçando a
importância do trabalho técnico no campo visual. Com isso, esse estudo acadêmico chega à
proposição de um termo, a imagemtologia, para explicar que pode existir um pensamento
poético na produção de imagem, ou melhor, uma lógica de composição de imagem.
O debate sobre a poética na dança digital, mais do que “encerrar” uma definição
absoluta, “abre” para o entendimento de possibilidades. Assim como as tecnologias são
transitórias, e também o são os humanos, os modos de fazer dança são provisórios e gerados a
partir de contextos, de relações estabelecidas no ambiente. O entendimento dessas
particularidades favorece o respeito por essa linguagem e o reconhecimento de suas
coerências artísticas.
21
2 A CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO
A metodologia de pesquisa desta Dissertação é feita pelo que deve ser chamado de
metatrabalho, pensando na perspectiva de uma metalinguagem. A metodologia do trabalho
seria uma metalinguagem, cuja dinâmica de ação procura olhar para ele mesmo e ser genuíno,
criando um metaprocesso, metacomposição, e por isso agir em metapoética. A poética é
criação que procura olhar também para ela mesma e perceber o que há de estrutura, de modo
particular: observa o próprio tema e faz a sua estrutura, os entendimentos, contidos no tema.
“E a Palavra se fez carne (...)” Jo 1,14 (A BÍBLIA SAGRADA, 2011, p. 1311): quando o
discurso se torna ato, em atualização e virtualização.
Assim como a oralidade, a escrita é um tecer de ideias, que nem sempre obedece a um
pensamento progressivo linear. As ideias vão sendo percebidas de outra forma, ou criando
novas associações, removendo suas camadas superficiais e revelando o que há de mais
profundo. A partir do momento em que uma ideia se conecta com novas redes, há uma
reorganização em um novo formato complexo. A construção da escrita não foi manifestada
por um pensamento contínuo, quando é associado a este a representação de uma linha reta.
Para que a construção da escrita fosse uma linha, a representação deveria ter curvas, ou
aparecer entrecortada, e por alguns momentos diminuir, apresentar falhas, estarem negrito, e
em outros momentos explodir em teias ou redes neurais.
A forma como os capítulos foram organizados não condiz com a sequência de ordem da
escrita. Talvez, para entender melhor a área artística que estava sendo estudadas, as leituras
começaram pelo material referente à dança digital. Antes de ingressar como aluna regular do
Mestrado, a experiência como aluna especial da disciplina Poética Tecnológica na Dança,
pelo mesmo Programa de Pós-Graduação em Dança, suscitou várias inquietações sobre a
relação entre o humano e aparelhos tecnológicos. Os estudos sobre poética, em verdade,
haviam sido iniciados posteriormente a essa disciplina, durante a Especialização de Estudos
Contemporâneos em Dança, em 2012, havendo já uma aproximação com Aristóteles (1987) e
Pareyson (1997).
No que o autor se refere à Dança, mesmo por vezes inserindo esta em um “pacote” geral
das Belas Artes, o autor coloca que esta é feita de gestos articulados e dedicada aos olhos. A
noção geral de poética trazida por Aristóteles (1987) é o conjunto de regras, normas, as quais
orientam o fazer de uma arte, e que a imitação de um comportamento, seria prerrogativa para
a criação artística.
Já nos primeiros estudos sobre a poética, fica uma pista sobre uma característica da
Dança: esta, portanto, seria uma arte de visualidade. As outras questões dedicadas também à
Dança, a imitação e a questão do gesto vão de certa forma ser reafirmadas em pensamentos
posteriores, no entanto serão relativizados, em razão da produção de dança, principalmente na
contemporaneidade, não ter a preocupação de se chegar a uma imitação, ainda que esta esteja
em um grau mais complexo e não literal. Os gestos foram se transformando a cada período
que os artistas tinham a necessidade de transformar a sua forma de acontecimento e de
movimento.
que o dançarino é o criador da dança, é com seu corpo que ele produz o acontecimento de
dança.
Fabiana Britto (2011) foi uma autora agregada ao estudo já em fase mais avançada, cujo
encadeamento era capaz de exprimir intenções da metodologia da pesquisa e da própria lógica
de pensamento, tanto contida no tema da Dissertação, quanto na própria escrita. Isso porque
Britto (2011) propõe a observação das “coisas” de forma processual, a partir das relações que
se estabelecem entre os fatores que estão inseridos no contexto, e nas reverberações
provocadas por essas relações e ações. Seria justamente uma das intenções dessa pesquisa,
mais do que criar uma norma geral para o entendimento de poética, ou qualificar algumas
configurações artísticas determinando a sua qualidade poética, ação que seria como
desqualificar outras configurações impugnando que nelas não há uma qualidade. A intenção
dessa pesquisa sempre foi perceber o que é a poética em dança digital, como se dá esse
processo. Como poética é processo, era importante que ela fosse entendida como algo
provisório e peculiar, que vai se descobrindo, enquanto é também afeita a escolhas e ações ou
situações inesperadas.
Os conceitos não se bastam isoladamente sem o auxílio dos artistas e de suas produções,
já que a observação da experiência gera reflexões, associação, entendimentos. Talvez, trazer
as observações sobre os artistas, dentro do discurso acadêmico, seja como um empréstimo do
trabalho do filósofo dedicado à Estética, cuja investigação se predispõe a formular
especulações sobre a poética e sobre o entendimento de dança, tomando como ponto
referencial a própria prática, a experiência estética.
No entendimento do que poderia ser nominado como dança digital, foi importante o
encontro com a Tese de doutoramento de Gretchen Schiller (2003) e, posteriormente, com a
Dissertação de Dorotea Bastos (2013). Ambas desenvolvem um estudo sobre as artes: apesar
de Schiller (2003) cunhar a nomenclatura mediadance para a dança que acontece com a
tecnologia, com as mídias, é Bastos (2013) que tem a intenção de contextualizar esse termo de
forma mais detalhada, propondo o mediadance como campo expandido (KRAUSS, 1979) da
dança contemporânea.
Um dos primeiros escritos desenvolvido por uma autora de dança, que traz inferências
sobre a mistura entre a Dança e outras áreas, como o Cinema, é o artigo de Allegra Fuller
Snyder (1965), publicado pela revista Dance Magazine, nos Estados Unidos. Nesse artigo, a
autora além de trazer um termo do crítico John Martin, o choreo-cinema, propõe o dancefilm
para nominar a dança que utilizava linguagem cinematográfica.
mais do que um cocriador. A contribuição de Flusser (1985) não é trazida como objetivo de
negativizar a presença do aparato tecnológico, mas de alertar a respeito do propósito de sua
utilização em qualquer atividade artística.
Para saber sobre as tecnologias que estavam, ou estão, sendo utilizadas pelos artistas de
dança, e na dança, é importante observar justamente as suas práticas. Diversos grupos e
artistas independentes disponibilizam seus trabalhos na Internet, em sites oficiais e também
no YouTube e no Vimeo, locais onde as informações foram coletadas.
essa artista fundou e continua sendo curadora do festival VideodanzaBA5, sediado em Buenos
Aires, Argentina. Esse festival reúne várias pesquisas de artistas principalmente da América
Latina, no qual começou a história de um entrelaçamento de apreciação artística e estímulo
criativo com o dançarino e coreógrafo argentino Edgardo Mercado6.
O corpo digital se torna uma reverberação que essa dança possibilita para a própria área
de conhecimento. Com isso, é construído o precedente do último capítulo, a seção 5, O
DUPLO DIGITAL COMO DIFERENCIAL POÉTICO, no qual o duplo digital é proposto
como um diferencial poético para a Dança. O duplo trouxe algumas inquietações não só
acadêmicas, mas no ponto de vista do criador: as possibilidades de sua produção e também de
como gerar na poética, construindo com o digital, conteúdo artístico. Dessa forma, havia uma
necessidade de experimentar esse contexto na prática, ou seja, dançar com o duplo digital.
Um fator já estava bastante aparente desde o início da Dissertação: o corpo digital. Ele
só ganhou força ao longo da pesquisa e demandou ênfase no seu estudo. Na maioria dos
5
Disponível em: <http://www.videodanzaba.com/home.html>. Acesso em: 12 fev. 2014.
6
Disponível em: <http://www.edgardomercado.com.ar/pages/contacto>. Acesso em: 12 fev. 2014.
7
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 14 fev. 2014.
8
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso 14 fev. 2014.
9
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 14 fev. 2014.
28
O duplo digital é uma imagem que faz parte de um conjunto, e é justamente com essa
constatação que a declaração de Aristóteles (1987), da Dança como uma arte voltada para a
visão, faz mais sentido. Isso significa que ela produz imagens, e no diálogo com as
tecnologias digitais em sua criação artística, entra no campo da visualidade técnica. Tanto
Flusser (1985) quanto Josep Domènech (2011) trabalham com a ideia de imagem técnica. Os
estudos de Domènech (2011) foram fundamentais para compreender a diferenciação entre
visual e visível, além de sua contribuição sobre os elementos da visualidade. Esse
esclarecimento possibilitou a argumentação, defendida nessa Dissertação, sobre a relevância
de uma construção da visualidade em Dança.
Com Flusser (1985), foi possível desdobrar o pensamento de que a dança digital faz
uma negociação entra a imagem técnica – produzida com as tecnologias de produção de
imagem – e a “espontânea” – gerada pelos corpos e outras estruturas do ambiente, de forma
natural. Já com Domènech (2011), sem falar do entendimento técnico sobre o visual, foi
possível estruturar os elementos visuais da cena de Dança, percebendo o duplo digital como
um desses exemplares. Dessa forma, a análise sobre Argumentos a favor de la oscuridad
(2007) adquiriu sustentação argumentativa.
Na finalização dessa seção 5, e também como um momento crucial de dar voz a quem
faz dança e aos conhecimentos que um artista pode produzir a partir de sua prática, está
colocada a análise sobre a performance em dança digital de própria autoria, produzida no
processo dessa investigação. Despetala (2014) é uma criação que busca satisfazer perguntas e
dúvidas que angustiavam em relação à poética com o duplo digital, pensando na perspectiva
de entender as etapas desse processo, conhecer as alternativas almejadas tanto por quem
planeja e quem faz a dança. Embora Despetala (2014) seja uma obra criada por uma artista
que dirige e executa o próprio trabalho, foi indispensável a ajuda e colaboração de outros – a
colega e amiga Ana Carolina Frinhani e da professora e orientadora Ludmila Pimentel – assim
como o é a construção de conhecimento presente nessa Dissertação. Independente da
articulação dos argumentos apresentar propostas assinadas por um único indivíduo, é evidente
que ela é fruto de orientação e colaboração.
31
3 A POÉTICA E A DANÇA
Os registros escritos sobre poética que são acessados com abrangência em língua
portuguesa são os de Aristóteles (1987), que viveu entre 384-322 a.C. Tais escritos podem
oferecer pressupostos que fundamentam a argumentação do presente estudo, numa tentativa
de orientar o entendimento sobre a poética na dança digital. Os outros autores que discutem a
poética, de alguma forma trazem reverberações dos pressupostos aristotélicos, que serão
questionados, tomando como parâmetro de referência o pensamento em Dança.
A base conceitual da poética está no trabalho do filósofo grego Aristóteles (1987), que
estabelece estruturas de normatização da feitura da arte. Vários outros filósofos e
comentadores de suas obras se esforçam para elucidar os argumentos aristotélicos. Como
nenhum deles inclinou-se de forma contundente sobre a conceituação da poética na Dança,
algumas reflexões primárias serão concebidas ao adotar o parâmetro das normas clássicas.
Como premissa, é válido evidenciar que “poética” é um termo usado em várias áreas
artísticas, cuja origem do emprego conceitual está na literatura. A poética era enfocada nos
gêneros literários. Posteriormente, foi reorganizada em outros campos da Arte. Cada um
desses campos assume uma compreensão de sua poética, vinculada às constituições que lhe
são próprias. As especificidades são importantes, contanto que seja buscado o conhecimento
da visão originária do conceito para entender as bases nas quais um campo artístico estabelece
seus critérios.
Aristóteles (1987) constrói a poética a partir dos gêneros literários conhecidos na Grécia
Antiga e estrutura os princípios poéticos dos gêneros lírico, épico e dramático. A poética se
configura, então, como o fazer dessas artes, como devem ser seus respectivos modos de
escrita e os critérios que parametrizam a qualidade artística. Todos esses estilos reuniam ao
mesmo tempo: textos e encenações complexas com várias artes trabalhando em conjunto.
Além da literatura, via-se a pintura nos cenários, a música, a dança e o teatro, com a
encenação e elocução dos textos.
O termo “poética” adquire conceituação com os estudos sobre a estrutura das regras de
composição de uma poesia com as quais o poeta é capaz de dirigir e aperfeiçoar o seu labor. A
32
Com o intuito de estabelecer o esteio desse tipo de arte, Aristóteles (1987) descreveu
regras fixas para orientar o artista. Ele também indica a origem da poesia, atribuindo-lhe duas
razões. A razão primeira para o surgimento da poesia é a imitação, esta compreendida
também como uma necessidade inerente do humano: a poesia surge da necessidade de imitar.
Para o autor, as poesias imitativas diferem, segundo o meio, modo e objetos de imitação. Ele
afirma que todas as artes imitam por meio da linguagem, da melodia e/ou do ritmo; elas
utilizam esses elementos em separado ou reunidos. Os dançarinos são citados como aqueles
que imitam, através do ritmo gesticulado, das ações, personalidades e experiências. Pelo que
se pode extrair desse pensamento filosófico, o meio de imitação da Dança seria o ritmo
presente no movimento corpóreo.
Nesse momento, se anuncia talvez uma base da poética da Dança, indicada pelo
entendimento clássico: o gesto, e por derivação o corpo, como um elemento estrutural de
expressão/acontecimento da Dança. Com esse raciocínio, ela é percebida ou concebida a
partir do que o corpo pode produzir de movimento e gestualidade.
exemplos temos: corpo humano, animal, céu, árvore, utensílios de uso doméstico ou de
guerra, entre outros.
Os modelos da natureza moral, “como tem mais relação com o homem, são mais
interessantes, e agradáveis; e por isso em imitar as acções humanas he que ella especialmente
se emprega; eis-aqui o seu campo assas vasto, para não dizer infinito.” (SOARES, 1883, p.
17). Neste trecho, é notória a percepção, na obra de Aristóteles (1987), da ligação entre
natureza e cultura. Melhor, não somente um vínculo, mas um pertencimento: a cultura faz
parte da natureza.
A ideia de imitação em Dança pode ser compreendida a partir de, pelo menos, duas
perspectivas. A primeira é em relação à poética aristotélica: a imitação como representação de
um "objeto". A segunda visão se atém ao comportamento imitativo de uma dança em relação
à outra, ou mesmo de uma técnica corporal.
entendimento latente de que não haveria, nas imitações mecânicas, criação e expressão:
seriam cópias fieis.
Posto tais controversas, Kunz et al. (2014) reiteram o professor e filósofo alemão,
Christoph Wulf10, dedicado ao estudo antropológico da História e da Educação, cujo foco
resvala na mimeses, emoção e gesto. Inspirado no comportamento humano, o filósofo afirma:
“mímesis não significa simples imitação no sentido de produzir cópias. Ela se refere a uma
qualidade criativa do homem que lhe permite realizar algo novo” (WULF, 2005, p. 103). Vale
lembrar que a cópia que um corpo pode produzir nunca será completamente fiel quando se
considera as peculiaridades de cada organismo e o estado permanente de reorganização de
cada organismo, um corpo não consegue copiar exatamente nem a ele mesmo porque está em
constante transformação.
A imitação como um ato humano, converge não somente com o que é individual, mas
com o social, cultural e histórico. "É nesse sentido que podemos dizer que o intérprete na
dança é um “intérprete criador”, visto que a expressividade dos gestos ultrapassa a
aprendizagem, surgindo significações e sentidos na experiência viva" (KUNZ et al., 2014, p.
854). A imitação é uma criação humana, funcionando associada às suas estruturas ao mesmo
tempo particulares e coletivas, as quais destoam em cada persona assim como podem destoar
as formas miméticas.
Em seu texto Dance as an Art of Imitation, Cohen12 discute como a Dança se comportou
em relação à mimeses tanto no discurso teórico quanto no seu gesto. Embora a autora
estabeleça um panorama das danças percebendo-as em certos aspectos contextuais, seu estudo
não poderia ser considerado como um entendimento global já que não abrange nem mesmo
todos os países, muito menos todas as danças. Esse texto, ainda que amplo, é um recorte da
questão da imitação na Dança que tomou como referências: o balé, pouco da dança de salões
e, em parte, da dança moderna.
A autora afirma que no século XVI começam a revirar teorias de arte como imitação em
relação à técnica de dança, contudo "eles defendiam apenas a parte menor da afirmação de
Aristóteles – que o dançarino imita o que os homens fazem e sofrem" (COHEN, 1982, p. 16
(tradução nossa))14. O mais próximo que chegou da imitação do personagem, tomando como
base os balés já do século XX, foi na representação de classes generalizadas de homens que se
distinguiam por um traço exclusivo, como desejo de poder ou prazer na intriga.
Como ainda no século XVII não havia uma codificação do movimento de Dança
razoável para a imitação de personagens, a resposta dos artistas dessa época foi o alicerce em
estereótipos. "Menestrier recomendava trajes adequados, além da ajuda convencional de
12
Disponível em: <http://www.ballet.utah.edu/ballet3110/Cohen_Selma_Dance_As_An_Art_Of_Imitation.pdf>.
Acesso em: 15 set. 2015.
13
by the rhythms of his attitudes, may represent men's characters, as well as what they do and suffer (COHEN,
1982, p. 15).
14
they advocated only the lesser part of Aristotle's claim – that the dancer imitates what men do and suffer
(COHEN, 1982, p. 16).
36
versos falados, para definir a intenção" (COHEN, 1982, p. 16, (tradução nossa))15, além de ser
dogmático na coreografia dos movimentos em referência aos seus respectivos significados.
Esse artista pensava no balé como uma composição de várias partes, inclusive com a música,
indicando que o coreógrafo deveria escolher os itens mais agradáveis para construir a dança
mais bela. Uma de suas características poéticas foi a presença de falas na dança, já que o
vocabulário de movimento era limitado.
Por volta de 1700, o balé estava com a preocupação do virtuosismo, almejando uma
exibição brilhante em termos técnicos, quase acrobáticos. Alguns artistas, porém,
questionavam essa tendência que poderia comprometer a sua capacidade expressiva. Noverre
(COHEN, 1982) queria que a ação da dança fosse satisfatória para a expressão. Esse artista
observava o balé em termos de indivíduos, sem o auxílio de falas e tipos de caráter
recomendados, mas baseado em histórias derivadas dos clássicos e, especialmente, da tragédia
grega. Dentro disso, o artista ainda se preocupava com as técnicas de dança disponíveis para a
imitação.
O exagero com a técnica levou ao balé uma fragilidade expressiva. Por vezes no século
XVIII, a quantidade de piruetas executadas era mais significante do que o seu sentido na cena.
Uma questão estava posta: o movimento do corpo como um recurso razoável de
expressividade.
15
Menestrier recommended appropriate costumes, in addition to the conventional aid of spoken verses, to define
the intention (COHEN, 1982, p.16).
16
at remendous advance over the practical manuals of the 1700's. Blasis described a greater diversity of body
positions, and, with him, the pirouette was found to have a multiplicity of possible forms (COHEN, 1982, p. 17,
18).
37
Nessa altura, a "beleza" vinculada ao agradável como defendiam para o balé já não era a
única possibilidade. O balé não havia sido eliminado, nem o foi, em parte novos
entendimentos se agregaram e nesse processo continuaram a conceber movimentos para a
representação na Dança. Contudo, aqueles que se dedicavam às danças – denominadas de
"moderna" – pretendiam um distanciamento completo do balé pesquisando novos gestos.
Esse texto utilizado como base para arguição com os pressupostos aristotélicos fora
publicado em 1953 e revisado para nova publicação em 1982. Uma das ressalvas da autora é
que na dança que ocorria no Oriente, não comentada no respectivo estudo, haveria também
um tipo de codificação do movimento, como no balé, limitador do potencial expressivo. O
grande fluxo de artistas e informações, desde a última década do século XX até hoje,
fatalmente reconfigurou o isolamento das ocorrências de dança, permitindo maior diálogo
entre as codificações e pensamentos criativos do Oriente e do Ocidente.
17
It is obvious that the mood of the movement will be different each time. The expression of movement depends
therefore on several factors-space, location, including shape, and dynamic content, including effort (COHEN,
1982, p. 20).
38
Na Dança, o artista imita ao construir suas ideias utilizando o corpo. Um ato de não
pretender o recurso da pantomima, nem obrigatoriamente tomar como objeto as emoções
humanas. As investigações de movimento do corpo permitem descobrir a sua forma de
corporalizar dentro de dança, o seu "imitar".
O alvo da abordagem criativa da Dança na poética contemporânea cada vez mais tem o
tema do corpo. A preocupação de alguns autores em enfatizar o "avanço" da imitação "pura",
talvez seja em atingir níveis de imitação com um distanciamento maior do objeto
representado, ou seja, não só elementos do cotidiano, da natureza de forma geral, mas de
passos e gestos de Dança.
Depois de tentar responder, ou pelo menos elucidar tais problemáticas, alguns aspectos
da imitação serão colocados. Um deles é que a imitação varia em graus de complexidade, já
no entendimento clássico. O primeiro grau estaria com a imitação simples. Esta seria copiar
ou retratar os objetos como em suas existências na natureza, mantendo-lhes todas as
características, sem conexões ou transcendências. Este tipo de imitação, pura, pode satisfazer
pela reprodução dos objetos ausentes, pela comparação entre a obra e o modelo e pela verdade
da representação, que permite a busca dos aspectos de conformidade entre o modelo e a cópia.
Ainda na perspectiva clássica elucidada por Soares (1883), acredita-se que a imitação
simples era apenas uma cópia cuja imagem não amplia as necessidades e desejos humanos,
nem os seus conhecimentos. A alma devotaria sua satisfação a objetos perfeitos, maravilhosos
ou grandiosos. Com uma contundência sutil, Soares (1883) sustenta o seu argumento quando
afirma que a curiosidade e o gosto pela novidade são inatos ao homem.
O outro tipo de imitação discutido por Soares (1883) é a ficção. Esta pretende imitar a
natureza não como ela é, imitação simples, mas como ela deveria, ou poderia ser. O autor
entende que na ficção o artista deve, em uso de sua imaginação, selecionar os objetos da
mesma espécie ou similares e extrair o que há de mais belo neles. O processo posterior seria
39
O aumento, como terceira licença, indica que o artista aumente o tamanho dos objetos
em relação ao natural. Já na transformação, há uma transferência de qualidades de um objeto
para outro de classe distinta. Essas qualidades podem ser aspectos sensíveis, espirituais ou
morais, ou mesmo movimento, corpo e figura, ação e alma.
No caso das licenças poéticas aclaradas por Soares (1883), todas elas podem e são
utilizadas na Dança. Da abstração à transformação, as condutas operativas que as integram
são elementos poéticos da Dança. O que emerge como diferencial é que elas, além de não
acharem-se como obrigatoriedade, são executadas a partir de outras necessidades e
entendimentos. Alguns deles são a não busca pela perfeição do objeto, e por vezes, a própria
41
não busca pelo objeto, o conceito de beleza, a revelação dos aspectos defeituosos e a
necessidade de imitação.
Aristóteles apregoa a imitação como uma das causas da poesia, pois acredita que “o
imitar é congênito no homem”. Este seria o mais imitador dos seres viventes, ele tanto
aprende as primeiras noções por meio desse ato, quanto se deleita com o imitado. “Sinal disto
é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas
daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de]
animais ferozes e [de] cadáveres.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 247).
Pintura é imagem, Dança é também imagem, assim como Poesia é imagem, mas não
só imagem. Este último período, como um expurgo delirante, informa que as estruturas físicas
que também marcam o acontecimento dessas artes afetam o aspecto de suas visualidades. A
Pintura, a Dança e a Poesia compõem imagens para serem vistas, tanto pelo aspecto
concreto/físico da tela de pintura, dos corpos que dançam, da escrita de um poema nas páginas
de um livro, quanto pelas imagens internas geradas a partir do contato com esses mesmo
elementos. A Poesia recitada é o que se escuta, a organização de seus fonemas, e como todas
as outras artes, é o que provoca de sensações e pensamentos.
43
“Ver é delírio”... “Ver é delírio”... “Ver é delírio”... O que vejo é mesmo aquilo que
vejo? Talvez, fosse mais adequado entender como um “pode vir a ser”. A visão não implica
exclusivamente o uso de células do olho e do cérebro referentes a uma função
mecânica/biológica. A visão também envolve pensamento, associação com objetos
conhecidos e crenças.
Para os filósofos da poética clássica, as artes transmitem suas ideias através de dois
órgãos: os olhos e os ouvidos. A Pintura, Arquitetura, Escultura e a Dança comunicam aos
olhos e a Música e a Poesia recitada aos ouvidos.
A Dança está ligada aos olhos porque se utiliza de imagens para seu acontecimento. As
criações dessas imagens são o fim de sua ação. A Dança, diferentemente da Poesia, não se
vale do discurso da palavra. Ela usa o movimento do corpo e as ações, mesmo que em
algumas montagens de dança faça-se uso da palavra ou da locução.
Os objetos da imitação podem ser: “coisas quais eram ou quais são, quais outros dizem
que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser” (ARISTÓTELES, 1987, p. 280). O autor
indica que esses objetos, que inspiram a imitação, são apresentados ao público em um
trabalho artístico através de palavras estrangeiras, metáforas ou outros tipos de alterações que
são compreensíveis no fazer de um poeta. O que merece pontuação desde já é que “aquilo que
o objeto deveria ser”, podendo variar, assim, como a “noção de perfeição”. O que parece
pertencer ao pensamento clássico, de acordo com os argumentos desses pensadores, é que
existe realmente um “ideal” para cada objeto. Ainda que isso não se apresente na “realidade”,
o tal “ideal” perfeito existe em latência. Talvez, poder-se-ia dizer que as funções, as quais
esse objeto pode receber, condizem com as inúmeras possibilidades de gosto.
44
O que pode servir mais à construção da poética, dentro dessa investigação, é refletir
sobre a segunda hipótese que os autores apresentam, no caso, em respeito à necessidade de
ritmo e harmonia. Esse aspecto influi diretamente sobre o processo de criação, ou seja, incide
nas escolhas e no pensamento que orienta o artista para compor o trabalho.
A Dança, como toda e qualquer área artística, possui poética. Outros parâmetros a
sustentam e, por isso, a poética em Dança pode ser compreendida de uma maneira diversa da
qual fora postulada na antiguidade clássica e observada a partir de outras bases estruturais.
Sendo assim, cabe considerar quais são esses entendimentos, e como eles se configuram, ou o
que eles denotam, quando transpostos para a Dança. Como é o fazer da Dança? Quais são as
regras do fazer de Dança? Seria melhor pensar em regras ou pressupostos?
45
O filósofo coloca a Dança como uma arte que se serve da imitação. No entanto, será que
hoje, tendo a Dança (algumas modalidades ou configurações) uma estruturação de
composição por pensamento contemporâneo de não narrativas ou narrativas não lineares, essa
dança ainda se serve da imitação?
3.2.1 O conceito
A poética, assim como a crítica, é objeto da Estética, ou seja, faz parte da experiência
estética. Como o próprio autor argumenta, a poética e a crítica estão ligadas à experiência
artística, e ambas podem ser entendidas também como uma reflexão. Todavia, é a Estética que
possui o status de filosofia, e a arte, no que concerne as suas crítica e poética, é o objeto de
reflexão especulativa da Estética. A poética como condução operativa refere-se à obra no seu
processo de construção, e a crítica, como avaliação, refere-se à obra feita.
46
Pareyson (1997, p. 11) afirma que a obra necessita, para o seu nascimento e
manutenção, tanto da poética quanto da crítica, “porque nem o artista consegue produzir arte
sem uma poética declarada ou implícita, nem o leitor consegue avaliar a obra sem um método
de leitura mais ou menos consciente”. Nem a poética precisa ser manifesta em preceitos ou
normas, nem a crítica em um método declarado. Isso em nada diminuiria o valor dessas ações,
ou mesmo o valor da própria obra.
Pela própria condição existencial da obra, ela irá exigir um modo operacional para ser
criada e mesmo a observação que permite o seu reconhecimento. Seguindo a reflexão do
autor, poder-se-ia entender que a obra é uma intenção construída e lançada no mundo e no
mesmo instante em que concretiza um acabamento no seu fazer, clama enquanto objeto
inacabado pela contribuição e finalização do observador em sua leitura.
48
A obra anuncia de certa forma a sua poética. A intenção artística aliada às condições de
materiais, de espaços de criação, de tecnologias e mesmo às reflexões que emergem no
trabalho artístico, conduz a escolhas e operações próprias. Liberdade e restrição se conectam
em um jogo de interesses e necessidades. O fazer da obra, em sua estrutura de procedimentos,
é sempre um estar a se descobrir. A poética é um sentido universal enquanto a metafísica do
seu conceito, mas é construída no pensamento das singularidades.
O estudo da poética em Pareyson (1997), no qual aparece uma definição clara sobre a
poética, pode trazer mais contribuições para a reflexão em Dança.
Nesse sentido, a poética possui um caráter material, que indica as ações na forma de
organizar o trabalho artístico, e um caráter sensível, no que se refere às particularidades de
pensamentos, crenças e sentimentos. Como resultado, tem-se a organização de uma
“identidade” poética para cada obra que imprime a confluência de alguns aspectos do artista.
Ela é uma ação, mesmo sendo uma atividade mecânica, em que é ao mesmo tempo
pensamento e sentimento.
Pareyson (1997) adverte que não cabe à Estética estabelecer critérios aos críticos, nem
leis aos artistas. Ele se debruça sobre o estudo da estrutura da experiência de arte, ou seja, de
49
que forma o artista conduz sua própria atividade orientadas por normas declaradas ou não, e
qual o trabalho do crítico para eleger e organizar um modo de leitura e avaliação. Os
elementos a serem estudados não são determinados pela Estética. Ao contrário, eles são
sugeridos pela experiência artística.
51
A poética opera por leis que se constroem nas relações entre o artista, a obra e o
ambiente, considerando os diversos aspectos que constituem cada um desses elementos. Ela
não se organiza por normas a ela impostas, ela se auto-organiza nas demandas que emergem
em sua existência. A poética é um modo operacional criativo flexível e intransferível; posta a
possibilidade da existência de poéticas similares, mas não idênticas, em razão das inerências
artísticas em cada poética.
Outro aspecto importante para esclarecer sobre a Estética, como ela é definida por
Pareyson (1997), é em correspondência à sua característica generalista. Em verdade, a
Estética não é uma teoria de arte, a qual determina suas regras e técnicas, limites e
especificidades. Isso seria uma técnica teórica de arte que atua em caráter particular a cada
tipo de arte, na qual promove contribuições técnicas. Estas “são indispensáveis para a arte,
porque entram na elaboração e definição da “matéria” de cada arte particular e são
indispensáveis também à estética, como objeto de reflexão, âmbito de trabalho, ocasião de
prova, mas não são estética.” (PAREYSON, 1997, p. 16).
Em sua argumentação, o autor afirma que não existe uma Estética para a Dança, outra
Estética para a Música, outra para o Teatro... O que existe é uma Estética para todas as artes,
que pode recorrer às particularidades de cada uma delas, encontrar e estudar os seus
mecanismos e, através da associação desses casos específicos, conceituar sobre a luz de uma
unidade de arte. A Estética não está vinculada ao gosto pessoal. Estabelecer essa relação seria
transpor as poéticas no âmbito da Estética. Esta se encontra na conjugação singular da palavra
(sem o “s”), e a poética no plural. O quanto haja de artistas e obras, em cada um pode haver
uma poética, portanto, temos várias poéticas.
Com inspiração nessa estrutura de pensamento relacional exposto por Pareyson (1997),
foi possível elaborar um quadro comparativo (Figura 2) no intuito de organizar essas ideias
em imagens. Os balões da esquerda correspondem às características da poética e os balões do
lado direito contêm as características da Estética.
52
Poética Estética
Particular Geral
Histórico Universal
Operativo
Especulativo
Normativo
Programa Teoria
de arte filosófica
de arte
Gosto Filosofia
Plural: Singular:
Poéticas Estética
A relação que o autor percebe entre elas é de dependência mútua, assim como entre a
Estética e a crítica, ou entre a História e a teoria. São os historiadores, críticos, teóricos e
artistas que a guarnecem com as respectivas experiências sob as quais a Estética irá se
debruçar e fornecer reflexões que possam ser aferidas na própria experiência artística. Esses
profissionais e áreas são “centros conscientes de experiência estética, encontram-se nas
melhores condições para dar um contributo ao pensamento estético, sendo o seu um
testemunho direto e vivo.” (PAREYSON, 1997, p. 4).
A experiência Estética é entendida pelo autor como toda experiência que tenha relação
com a arte e com o belo, seja a de um leitor, de um artista, ou mesmo que usufrua da beleza.
A historicidade e a particularidade da experiência estética alimentam a renovação da própria
Estética, podendo combinar fatores históricos e gerais, conferindo-lhe abertura e
multiplicidade.
Cada estilo artístico, que muitas vezes reunidos em coletividades geram artes
específicas em determinados períodos históricos, é tradução em produto artístico de ideologia
e gosto pessoal. A pretensão de valorar esses estilos não seria reputar o próprio gosto?
Caberia então, na dança, qualificar um estilo tomando como referência o gosto pessoal? A
dança contemporânea seria mais válida do que as outras formas de dança?
O gosto faz parte da poética. Ele orienta a intenção e as escolhas do artista. Isso
significa que o gosto pode gerir os critérios de qualificação de uma arte que estão no âmbito
geral, não na esfera do particular.
55
A Estética denomina de “matéria de arte” àquilo que tem caráter físico e torna o
trabalho artístico perceptível aos sentidos. De acordo com a Estética, é esta matéria que leva à
especificidade da arte: “a arte propriamente dita tem necessidade de uma matéria como esteio
de sua especificação.” (PAREYSON, 1997, p. 149). Nesse sentido, percebendo a matéria
coma uma base para a especificidade, o argumento alude que ela, a matéria, pode orientar a
própria arte. E ainda, parece que a matéria pode ser devidamente estipulada ou prevista,
destinada para um campo específico. Será mesmo a matéria imbuída de determinar a arte?
A matéria de arte é, então, compreendida como algo que possui uma carga espiritual –
no sentido mais amplo da palavra – e uma forma, seja esta determinada pela natureza na sua
condição de existência ou pela ação humana que pode ser engendrada inclusive no decorrer de
uma relação artística. Toda matéria tem uma constituição e sempre há algo nela inviolável,
que não assenta manipulação, compondo-se como um limite à ação humana. Com este
entendimento, o autor deixa implícita uma postura de passividade relativa da matéria, e as
relações que se estabelecem entre ela e o artista denuncia um diálogo e não uma imposição de
ações. Nem o artista é agente absoluto, muito menos a matéria é completamente passiva.
O fator, “matéria da arte, os materiais físicos de que se servem os artistas, vistos na sua
constituição natural, no seu uso comum e na sua destinação artística” (PAREYSON, 1997, p.
159) é ainda analisado pelo propósito que lhe é atribuído. A constituição da matéria, seja ela
sua característica biológica, química, física, entre outras, interfere no seu uso e na relação que
é inaugurada com o artista. E é nessa relação que o criador investe o seu desejo por meio de
um labor técnico para criar um trabalho de arte, deslocando a matéria do seu uso comum.
O corpo, e por isso também a dança, é composto por vários tipos de substâncias que
estão ligadas aos aspectos biológicos, psicológicos, culturais, sociais... Cada corpo possui
características próprias e mesmo que as substâncias sejam as mesmas de outros corpos, a
57
combinação, associação e ação são únicas. A matéria da dança demonstra ser variável pelo
prisma da sua constituição.
Uma questão a ser refletida é a compreensão da matéria como algo variável também na
sua especificidade. Isso pode ser evidenciado sob a observação de que um trabalho de Dança
nem sempre pressupõe o corpo (físico/humano), ou somente ele, como matéria. Talvez, o foco
do artista esteja mais voltado para fazer dança, ou seja, como colocar a dança ou o
pensamento de Dança em um trabalho artístico. E se o artista decide assumir outras
possibilidades de fazer dança, o mesmo permite que a prerrogativa da matéria do seu trabalho
venha a ser algo além do corpo.
Isso significa que a dança pode ser vista também fora do corpo. Sendo assim, poder-se-
ia considerar um trabalho onde há construção de dança, mas não há a presença do corpo,
como dança? Em caso de resposta negativa, seria uma indicação de que o corpo é realmente a
primordial matéria da dança. Há uma resistência desse corpo-artista/pesquisador em acordar
com afirmações absolutas e definitivas, pois, defender o corpo como matéria obrigatória
conota admitir o caráter inexorável de visibilidade desse corpo. Se este não é visível e
palpável, não há dança.
Aqui temos a observância de uma afirmação enfática, que, quando tomada por absoluto,
pode sugerir a necessidade de uma mudança na compreensão da matéria mais do que
extinguir a prerrogativa de uma matéria para determinada arte. Se a Dança construiu novas
formas de pensar e fazer a própria dança, consequentemente pode permitir a existência de
novas matérias para sua arte.
Poder-se-ia pensar que a criação de um artista se faria unicamente por sua originalidade,
mas uma boa execução de qualquer atividade já denuncia um conhecimento mínimo de
alguma técnica. Por outro lado, pode-se entender que utilizar uma técnica não significa estar
preso a ela e sim poder aplicá-la quando a julgar necessária para a construção do que se
almeja com o trabalho artístico, do mesmo modo que aprender uma técnica de arte e saber
executá-la com presteza não transforma um executor em artista.
O autor continua a discussão e apresenta a sua definição para técnica: “não consiste
absolutamente na prática do uso comum de uma certa matéria de arte, mas é precisamente
técnica de arte, isto é, conhecimento da destinação artística de uma matéria e prática de sua
manipulação artística” (PAREYSON, 1997, p. 170).
A técnica é importante para saber possibilidades de lidar com a matéria que auxilia o
artista no processo criativo e por isso não significa que ele deva abandonar qualquer técnica
em razão de sua potência inovadora ou original. No processo criativo, na poética, o uso de
59
técnicas pode ser até inconsciente ou não explícito, mas demonstra conhecimento/habilidade
oriundo de trabalho e exercício, institucionalizado ou não, que foram construídos em conexão
com técnicas e conhecimentos de outros artistas que de alguma forma permanecem no mundo.
O que é a originalidade senão um novo início que não consegue romper com algo já
existente?! Assim emerge a indicação deste autor, para acrescentar que a imitação é, por sua
vez, uma possibilidade de potência primária para a originalidade, pois o aprendizado pode
iniciar-se pela imitação, da obra ou da técnica observada na prática de um artista, agregando
transformações no fazer. A imitação também já é uma forma de criação. E ao considerar, que
cada corpo no mundo é único, a imitação enquanto cópia simples e perfeitamente igual parece
impossível.
Cabe observar que a matéria já foi utilizada por outros artistas em épocas diferentes, ela
recebeu outros entendimentos e significados, por isso carrega técnicas e conhecimentos no
decurso de sua história. A cada novo trabalho, entram em negociação os decursos do artista e
também os da matéria. Nesse processo, é impossível determinar previamente o que permanece
(mesmo transformado) e o que será negligenciado ou deslocado. Isso será desvendado na
relação entre os vários fatores do ambiente, inclusive, o artista e a matéria.
A matéria de uma arte declara algo sobre ela. O processo de criação com essa matéria
reclama a utilização de técnicas, sejam elas mais ou menos formais. No bojo deste processo,
são reveladas as demandas e a orientação peculiar do trabalho em execução. A matéria está
inscrita em um contexto de técnicas e artistas que a utilizaram no decorrer da história e cada
60
novo trabalho, do qual ela é parte da construção, carrega de alguma forma todos esses
conhecimentos anteriores. Em se tratando de Dança, Pareyson (1997) coloca o corpo como
matéria dessa arte.
Como aponta o próprio filósofo, a Dança, na Grécia nesta época, é uma arte imitativa
que possui relação íntima com o Teatro, enquanto este acontecia pela fala, a Dança pelo gesto
articulado. Esta orientação é um pressuposto daquela época e dos artistas que trabalhavam
com esse formato. Os escritos de Aristóteles (1987) e de outros filósofos, quais sejam eles,
não garante que esta seja a realidade da dança feita em outros locais, países ou povos, e
mesmo em outros períodos.
escalas de tempo, salvo em condições modelares, não há como identificar seu começo ou seu
fim” (BRITTO, 2011b, p. 185).
A dança como processo significa perceber que ela não está isolada, ou que ela não
“nasce” do nada, sem referência com outras coisas – danças que já existem ou já existiram –,
com os contextos, sociais, políticos, biológicos, geológicos e históricos, com as outras artes,
com a cultura, com as particularidades de cada corpo que participa dessa dança.
“A dança não é um mero reflexo da realidade que lhe é exterior, mas é, sobretudo, um
processo de construção de formas e de sentidos através da acção do corpo” (LOUPPE, 2012,
p. 07). A Dança não se dedica a representações literais, ao contrário, a cada momento que ela
traz ou faz referência a algum aspecto do ambiente (do mundo), ainda que pareça uma
imitação simples, é, sobretudo, um ato cognitivo, impregnado de interpretação, que torna
visível pensamentos gerados na relação com este mesmo ambiente e com outros em todo o
processo de sua vida.
O fato é que a dança na contemporaneidade, em sua maioria, não tem como objetivo, ou
como ação poética, a imitação simples como compreendida no pensamento clássico. Ela pode
ser ou não utilizada como recurso, mas não é obrigatória. Uma dança pode pretender muitas
coisas, compor pensamentos, questões, mas o que a diferencia é a lógica de construção do seu
trabalho artístico.
música não é mais um recurso indispensável para a dança, ela se torna mais um elemento,
cuja presença nem sempre é determinante de ritmo do movimento. A ação do corpo pode ser
voltada para a música e em muitos trabalhos artísticos não o é. A dança se liberta da música.
Seus passos ou movimentos não precisam segui-la, dialogar com sua melodia e, como
vulgarmente se fala, “entrar no ritmo da música”.
A compreensão de Dança sobre uma música foi alterada, porque também a própria área
de Música se transformou e elaborou novas concepções de sua arte. As novas formas
insurgentes não conotam a aniquilação das formas antigas. Ambas coexistem, e mesmo uma
velha forma se modifica no processo do tempo, reorganizando, abdicando ou mantendo
estruturas.
O corpo outorgado como matéria da Dança recebe também a compreensão, por alguns
artistas, que todos os seus aspectos atuam em conjunto e no momento em que ele faz dança, é
pensamento e ininterruptamente está em estado de interação com o ambiente. Outro aspecto a
ser comentado é sobre a matéria da arte (PAREYSON, 1997, p. 157), ou melhor, a matéria da
dança que angariou novos conhecimentos e novas possibilidades poéticas, porque
amalgamaram tecnologias, pensamentos, formas, concepções no fazer de sua arte.
63
Celso Favaretto (1996) argumenta que a Estética, quando ela surge no século XVIII,
pretende ser uma doutrina do belo, no entanto, hoje não é possível mais a Estética, nem no
sentido do belo nem no de legislar a Arte. A Estética tenta estipular critérios, juízos, que
posteriormente serão chamados de gosto, em geral juízos para o belo e para a Arte. Para o
pesquisador, na antiguidade clássica, os filósofos falavam do belo no sentido transcendental e
Aristóteles (1987), ele próprio, falava de belo no sentido da produção, de fabricação, se
preocupava com o bem fazer.
Favaretto (1996) afirma que o valor estético do belo não faz muito sentido porque a
observação ou contemplação da natureza é diferente da mesma em uma obra de arte. E ela
própria, nas construções modernas e contemporâneas, não está preocupada com retratar algo,
mas anunciar. Apesar da noção de belo sofrer transformações e possuir outros entendimentos
na Arte, na sociedade de modo geral, o belo ideal, o sentido antigo também platônico, ainda
64
A Dança passa por transformações também no aspecto do belo, ele estava e ainda pode
se abrigar na questão de executar os movimentos com perfeição, ao que estiver estipulado
como perfeição de uma técnica específica, ou na própria conjuntura configurativa de um
trabalho, nos corpos, no figurino, no cenário, iluminação e coreografia. Como a Dança adotou
outras possibilidades de belo, do grotesco, da imperfeição clássica, da adequação da técnica
ao corpo que a está fazendo; a beleza está em correspondência à proposição de cada trabalho e
no contexto que ele se inscreveu, a partir também dos valores que ele defende.
18
Diálogos Cruzados. Disponível em:
<https://youtu.be/bAeWI4xHpw4?list=PLKmsXyLVVmi3oK4sDBDOXZj5r-SM1Bqyc>. Acesso em: 20 mar.
2015.
65
Isso não significa que cada um deles, artista, público e crítico, precise validar todo e
qualquer trabalho de dança, mas, pelo menos, ao crítico e ao artista, cabe perceber os critérios
de orientação dessa arte. Poder-se-ia entender, por exemplo, que a Dança não prescinde mais
da imitação, nem necessita de um “modelo” de inspiração do qual se extrai informações para
a composição do trabalho artístico.
A Dança pode se valer de qualquer inspiração para a concepção poética, cujo sentido
artístico não almeja retratar o motivo dessa inspiração, mas colocá-lo em disposição para a
ideia de composição do trabalho. O movimento já é uma forma de acontecimento da dança, o
que vai sustentá-lo no patamar de arte em Dança é a conjuntura estabelecida para este
movimento: quais são as relações que ele cria no ambiente, de que forma e onde ele está
sendo executado, e se há um espaço constituído como artístico, ou pelo público ou pelo
artista.
66
Nem toda dança que existe no período atual é uma dança contemporânea, esta é mais
uma modalidade com prerrogativas singulares. A dança contemporânea, com essa
nomenclatura, não é simplesmente uma dança que é feita no período histórico atual, na
“contemporaneidade”. Ela carrega um estilo ou modalidade de dança de difícil definição,
talvez por ser um formato que está em constante reorganização. A dança digital pode estar
dentro da lógica da dança contemporânea, sem perda de sua característica inerente, ser um
processo resultante da interação de dança com uma tecnologia digital.
Fabiana Britto (2011b, p. 188) propõe a definição de dança contemporânea como “um
modo de composição não-programático, cujas regras não são estabelecidas previamente ao
processo criativo”. Tal entendimento sugere um processo auto-organizativo no qual os artistas
se desprendem da intenção de um controle absoluto com a imposição de uma poética no início
do trabalho, porque “a dança contemporânea é, na sua essência, a que recusa seguir um
modelo exterior ao que é elaborado a partir da individualização de um corpo e de um gesto”19
(LOUPPE, 2012, p. 11). As estruturas que compõem o processo criativo e os conhecimentos
produzidos corroboram para a formação dessa singularidade corpórea, na qual a construção da
dança se materializa, a partir da condição do próprio corpo. Este princípio que confere às
particularidades de cada corpo a responsabilidade de acontecimento da dança fomenta valores
como: “a autenticidade pessoal, o respeito pelo corpo do outro, o princípio da não-arrogância,
a exigência de uma solução justa, e não somente espectacular, a transparência e o respeito por
diligências e processos empreendidos” (LOUPPE, 2012, p. 45).
19
Embora a palavra "essência" não seja adequada às discussões atuais de Dança, o argumenta inscrito na citação
permanece profícuo para esta investigação.
67
Britto (2011b, p. 186) afirma que o “recente entendimento da dança como ação
cognitiva do corpo” é um atributo presente na dança contemporânea. Tal situação não pode
ser seguramente observada nas outras danças, pois adotar essa prerrogativa impede a crença
em criar uma coreografia homogênia para todos os corpos como se todos pudessem dançar da
mesma forma, e este ato não produzisse associações e entendimentos peculiares a cada corpo.
Louppe (2012, p. 21) acredita que a ruptura da dança contemporânea é instaurar o corpo
em movimento como “sujeito, objeto e ferramenta do seu próprio saber, e é a partir dela que
uma outra percepção e uma outra consciência do mundo poderão emergir”. A nova concepção
de corpo e de corpo em movimento trazida pela dança contemporânea pode ter aberto
precedentes para outras compreensões que expandiram a definição de Dança.
O desafio aqui é também pensar essa dança enquanto processo, tanto na questão de seu
“produto” artístico quanto percebê-la dentro de um contexto que é construído na relação
humana, dos artistas com a tecnologia, do ser humano com as informações e com outros
humanos novamente, um ciclo que não se fecha e não tem início ou fim. Um processo
enquanto forma de poética, de algo que se constrói no fazer, e aceitar que a programação
prévia pode ser um ponto de partida diferenciado do ponto de chegada, porque, no processo, a
dança se transforma e se reorganiza nas esferas corpóreas e nos outros componentes do
ambiente.
Dizer qual dança digital está sendo construída com a lógica de composição da dança
contemporânea é outro prisma, que dependerá das especificidades e do comportamento de
cada trabalho de dança. Ao mesmo tempo em que a dança digital pode estar dentro da dança
contemporânea, pode também ser uma parte dela, uma forma dela existir; a dança digital, ou
algumas de seus trabalhos também podem, ao contrário, estar fora desse espectro de
composição.
Pensar em processo é ainda refletir como a dança lida com as tecnologias que utiliza em
sua criação, seja ela uma sapatilha de ponta, um cabo de vassoura, um computador... A
tecnologia pode servir como um simples adereço, figurativo, ou pode ter o seu uso distorcido,
rearranjado, colocando o mesmo objeto de outras formas, servindo para outros propósitos que
não os usuais. Daí, uma aproximação com o que Pareyson (1997) coloca como o uso da
matéria de arte.
69
Adotar esse ponto de vista é entender que no processo criativo há sempre algo que
escapa ao controle de um dogma pré-estabelecido. Por essa razão, se considera que os
acontecimentos, as operações cognitivas, emocionais, orgânicas, sociais que ocorrerem no
decorrer desse processo transmutam não só as pessoas, artistas, como também o trabalho que
está sendo desenvolvido. O programa gerenciador de cada trabalho é específico e provisório,
sujeito a várias modificações. As regras que regem a Arte, e por isso também a Dança, são
sempre negociáveis e se estruturam dentro de cada obra, de cada acontecimento artístico.
Ainda que impostas, haverá naturalmente algum grau de afetação.
Com este fato, é possível anunciar outra contribuição deste estudo sobre a poética em
dança digital: a abrangência da matéria da arte. O corpo não é mais a matéria exclusiva da
Dança. Nos desdobramentos que ela experimentou e as novas construções que ela atingiu,
tornaram-se evidentes outras matérias para a Dança. A matéria de uma dança pode ser
qualquer objeto, organismo, forma, no qual se incida um olhar de dança, uma concepção de
criação específica dessa área.
Nas configurações de dança digital, a presença do corpo humano é dispensável. Ela por
vezes utiliza esse corpo como inspiração para a criação de outros “corpos”, ou elabora o
pensamento de criação em Dança usufruindo de outras matérias. Como existe na interação
com a tecnologia digital, este tipo de dança postula outros “objetos” ou matérias de arte que
somente tornam-se possíveis na sua poética, eles seriam: os corpos digitais.
As novas matérias que são assentadas com a dança digital estão longe de serem
surgimentos aleatórios, derivados do nada. Os corpos digitais, por exemplo, tem como uma
das causas o tipo de tecnologia empregada nas suas formações. Essas formas corpóreas são as
imagens do corpo humano digitalizadas.
Com isso, o dançarino dispõe agora de algo suplementar e exterior a sua própria
matéria: a projeção. A matéria da dança não é tão somente o corpo que dança, ou que
promove o movimento, e o corpo em movimento não é mais somente a sua poética ou o
suporte dela. Instaurou-se com a dança digital uma forma diversa de compreender a matéria e
70
a própria dança. Esse apoio exclusivo no corpo humano não sustenta mais o entendimento de
Dança.
Ao admitir que a Arte seja feita por estruturas orgânicas, ainda melhor, concordar que a
Dança é feita com o corpo, estando ele visível ou não em sua mostra/acontecimento, ele
participando do processo de criação, é reconhecer que a Dança tem algo pulsante, vivo, em
constante transformação. A vitalidade da dança, também em seu sentido orgânico, não
permite ser completamente manipulada, programada e restrita. Isso seria a ingenuidade de
acreditar em um controle absoluto.
Assim como cada corpo é único e produz algo autêntico, as tecnologias têm suas
singularidades de estruturas e de funcionamentos, e produzem resultados específicos. O
contato para a criação artística com cada aparelho requer um estudo e um conhecimento
vinculados àquela máquina. Há um encontro entre o que o artista consegue manipular e o que
o equipamento promove de ação.
A dança digital pode ser compreendida também não como uma sequência de passos,
mas como uma composição de imagens, movimentos, ambiências, sons ou silêncio, luzes ou
escuridão, produzindo uma poética na interação com equipamentos digitais. Essas tecnologias
reforçam o potencial configurativo de imagem da dança, pois os tipos de aparelhos
desenvolvidos que entraram nas escolhas de negociação artística, se dedicam a geração de
imagens.
passa a ser uma distensão do ser humano porque satisfazem necessidades quase como órgãos
exteriores ao corpo.
Essas são algumas das possibilidades funcionais que estas tecnologias da Comunicação
e do Áudio Visual e materiais da arte possuem. Outras necessidades podem e lhes são
atribuídas, assim como outros instrumentos são confeccionados, porque o homem é um ser
criativo e inacabado (FERREIRA, 2005). A própria inquietação artística e necessidade
inventiva são o que também concede a utilização dessas tecnologias na Arte e na Dança. A
Dança é uma experiência da inventividade humana. Como tal, ela está afeita a todas as
possibilidades que os seus artistas desejam realizar. Dentro disso, a Dança é também uma
experiência visual.
Nas relações proporcionadas pela dança digital, entre artistas, público e tecnologias,
existe um ambiente de afetação mútua e por isso, percebe-se um processo coevolutivo apoiado
no entendimento de que “todas as coisas existentes são correlatas em alguma medida porque
partilham as mesmas condições de existência e, assim, afetam-se e definem-se mutuamente.”
(BRITTO, 2011b, p. 186).
Com essa perspectiva, não interessa somente trazer a questão da produção da imagem e
da utilização dos aparatos tecnológicos como elementos compositivos da dança digital. A
compreensão de dança ultrapassa a sua exibição nos espaços ou a sua organização de
movimentos e imagens, coreografias, dramaturgias. Além de todos esses fatores, esta
compreensão abrange “tudo aquilo o que se refere ou deriva delas, como produção de
conhecimento, ação pública e/ou aplicação prática. Importa entender como esses campos se
engendram para compor um ambiente e como tudo isso se articula no tempo modificando-se
mutuamente” (BRITTO, 2011b, p. 186).
Os pressupostos que são possíveis na poética da dança digital não pretendem ser um
fim, muito menos um modelo a ser seguido, são parâmetros provisórios obtidos a partir de
uma reflexão associativa que não tem a mínima intenção de angariar verdades para esta arte.
Os princípios poéticos funcionam mais como uma tentativa de entendimento dos processos e
fatores da dança digital que abrem possibilidades de existência para a própria Dança, sem a
ilusão de poder chegar a uma conclusão geral e completa.
Talvez, a única lei que pode existir seria a lei criada por cada organismo em seu
funcionamento, ou em cada matéria, em cada contexto e por isso em cada trabalho artístico.
Essa “lei” ou até “leis” se constroem no próprio processo, nas associações desenvolvidas entre
pessoas, ambientes, contextos. A essa lei interna, que sempre é construída na relação
interno/externo como um fluxo e não como separação, que é considerada interna na estrutura
de um trabalho, se justifica as escolhas, as ações, os conhecimentos produzidos e o estilo
artístico assumido.
Esse contexto pressupõe uma nova disposição em criar e assistir dança. Cada trabalho
pode se comprometer em abordar mensagens, conceitos, estórias, formas, imagens,
73
movimentos, gestos, ou seja, qualquer uma dessas alternativas. Dessa forma, o acontecimento
em dança sempre será uma construção cognitiva que envolve vários fatores.
Uma dança que é construída com uma tecnologia digital exige compreensão de suas
especificidades. Para tanto, é conveniente eleger uma nomenclatura que envolva o seu
contexto. Longe de aprisionar a reflexão sobre a Dança em uma simples categorização, busca-
se com o estudo a respeito do termo “dança digital” um entendimento comum que possibilite
o compartilhamento de inquietações. A necessidade desse termo surgiu porque, já há algum
tempo, nebulosas dúvidas dessa arte e de como nomeá-la pairavam sobre as “cabeças” na
universidade.
A autora afirma que mediadance é uma dança que pode acontecer em diferentes
espaços, com ou sem corpos humanos, com o vídeo integrado em performances e espetáculos,
ou em vídeo, mas com algum tipo de tecnologia, ainda que esta não seja digital, a exemplo
das eletrônicas analógicas. Vídeo, jogo eletrônico, software, corpos, são possibilidades de
componentes da dança cujo desenvolvimento acontece nessa relação com esses tipos de
tecnologias.
Sendo assim, o termo aqui adotado, dança digital, seria uma tradução não literal,
contudo mais apropriada para nossa língua, do termo de Schiller (2003)? De certa forma não,
se for verificado pela tradução. Na palavra mediadance, temos media que significa mídia, os
meios de comunicação que funcionam como suportes e/ou elementos poéticos para essa arte,
e dance, a dança, ou seja, a dança que acontece em um media, uma composição que conecta
dois ou mais campos de conhecimento como Dança, Comunicação, Computação e Cinema.
Em sua Tese, essa pesquisadora não teve o objetivo de um desvendamento maior desse termo,
o que aqui se pretende delinear.
Já no termo que é proposto neste estudo, tem-se “dança” e “digital”, pois o foco dessa
terminologia não está somente no suporte de comunicação ou na mídia, mas no tipo de
tecnologia que é utilizada nesta dança e o efeito que ela produz. A investigação se desenvolve
a respeito da ênfase em uma dança que acontece com a tecnologia digital.
20
Mediadance é um termo proposto por Gretchen Elizabeth Schiller (2003) em seu doutoramento em Filosofia,
Ciência, Tecnologia e Pesquisa em Arte, focado na área de dança e tecnologia.
80
Dance Magazine. E neste artigo, ela faz uma categorização de dança, não de modo geral, mas
uma dança que se enlaça com a tecnologia de imagens em movimento. Nesse período, o vídeo
com aparelhos analógicos era uma tecnologia “emergente” com a qual os artistas buscavam
experimentar. Snyder (1965) mostra três categorias para os resultados dessa relação entre
dança e filme, que são elas: o choreo-cinema (nomenclatura cunhada pelo crítico John Martin
(SNYDER, 1965)), o registro de dança e a dança adaptada (quando se deseja documentar a
dança).
Meshes of the Afternoon (1943) foi a primeira e mais conhecida obra de Maya Deren
(BASTOS, 2013), que se tornou um trabalho de referência para o estudo entre corpo e
câmera. Porém, foi em A Study of Choreography for Camera (1945) que a cineasta atingiu
uma composição técnica mais elaborada para coreografar a dança no cinema. Neste trabalho,
é perceptível um enquadramento da câmera, a edição e a composição de movimento, voltados
para a construção dessa dança nele apresentada. Bastos (2013) traz vários detalhes sobre a
interseção entre dança e cinema, relatando toda a parte histórica, descrevendo artistas e
experimentos respectivos, em um quase jogo de esquemas e enquadramentos.
O choreo-cinema, como Snyder (1965) relata, denota que o cinema e a coreografia estão
juntos em sua condição inata, como “algo que não poderia existir sem a fusão das duas artes”
(SNYDER, 1965, p. 34 (tradução nossa))21. A autora considera que realmente o choreo-
cinema pode acabar com qualquer limitação da dança para o palco, e apresenta possibilidades
novas tanto para o meio cinematográfico quanto para a gravação de dança.
Quando comenta sobre o registro de dança, descreve uma categoria que possui um
caráter metódico para que possa ser visualizado e estudado por um profissional da dança, e,
21
something which could not exist without a fusion of two arts. (SNYDER, 1965, p. 34).
82
quem sabe algum dia, o próprio criador querer revisitar, remontando e criando sob aquilo que
já foi e, por causa de um registro, ainda pode vir a ser.
Com a terceira categorização, Snyder (1965) define que dança adaptada é linguagem
cinematográfica, mas não para dar forma ou modelar, antes sim para expressar. Isso seria uma
tentativa de gravar a experiência de ver a dança em cena acontecendo. A autora acreditava
que o cinema, sendo sensível, podia minimizar a diferença entre a dança nos palcos e a
imagem da dança na tela, mesmo em uma transposição de três (dança) para duas (cinema)
dimensões.
Snyder (1965) foi uma das primeiras autoras a tratar desse assunto, porque já em sua
época começou-se a curiosidade de relacionar o vídeo e outras artes, “o vídeo começava a
surgir no mercado e ainda se tratava de um processo eletromagnético e não digital”
(BASTOS, 2013, p. 79). Os conceitos ainda seguiram novos fluxos sem a pretensão de uma
definição acabada ou fechada. Em escrito posterior, a americana traz uma nova nomenclatura
que pudesse compreender as novas possibilidades em Dança.
Como lembra Bastos (2013), quando Snyder (1965) deixa o seu próprio conceito sem
uma definição que limita os tipos de tecnologias, evidentemente considera que várias
tecnologias deveriam surgir e interagir com a arte, sem que a própria autora pudesse mensurar
quais seriam elas no momento em que trouxe a conceituação.
mudanças sugerem uma relação de manipulação sempre a se descobrir entre o artista e seu
objeto, considerando que ambos são sempre pessoais, históricos e culturais. Ao mesmo
tempo, se organizam maneiras de apreciação e sentidos para as obras.
Algumas décadas atrás, a produção em dança digital, a partir dos escritos analisados, é
uma poética construída com tecnologias de imagens, cujo resultado angariado na sua
configuração proporciona uma dança forçosamente visualizada, mas com uma composição de
imagens diversa das criadas em outras danças. Admitindo suas características pessoais, sociais
e históricas, compreende-se que a satisfação dos artistas em relação a uma dança não será a
mesma para qualquer outra. Ainda, as composições emergentes na poética entre artista e
objeto, dadas sempre em relação, subscrevem descobertas e estruturas sedentas de reflexão.
Um dos outros teóricos, que nomina este tipo de dança, a qual se diferencia criando uma
nova experiência estética, em virtude da sua relação com a tecnologia, é Douglas
Rosenberg22, artista, diretor e pesquisador, que organizou nos Estados Unidos o Dance for the
Camera Symposium, UW–Madison, Madison, em 2000, e também foi editor fundador do
International Journal of Screendance. Este autor trabalha nas áreas de Vídeo, Performance,
Dança e Instalação. Rosenberg (2012) publica um livro sobre screendance, considerando para
isso a dança que dialoga com a tecnologia das imagens em movimento, como o cinema e o
vídeo.
22
Disponível em: <http://www.dvpg.net/about.html>. Acesso em: 15 jan. 2014.
84
mais separá-las. O híbrido é mais do que a soma das duas partes agrupadas, porque depois de
unidas em uma formação, não se consegue mais uma separação.
Na década de 90, Douglas Rosenberg23 cria um grupo de arte denominado: DVPG (The
Dziga Vertov Performance Group), com o objetivo de elaborar desafiadoras obras de arte que
envolvessem Dança, Performance, Artes Visuais e mídia, almejavam ainda criar trabalhos que
misturassem texto, vídeos e imagens projetadas, preocupando-se em apresentar forma e
conteúdo. Na figura 5, tem-se um deles, Screening The Body (2003), como primeiro exemplo.
23
Disponível em: <http://www.dvpg.net/about.html>. Acesso em: 15 jan. 2014.
85
Essas matérias da dança digital produzem outros materiais, os outros tipos de corpos
definidos a partir do suporte e da tecnologia utilizada para a sua aparição. Os aparelhos
utilizados na criação artística, no contexto das proposições de Pimentel (2000) e de Schiller
(2003) são tanto de tecnologias eletromagnéticas, quanto de tecnologias digitais. Os nomes
que ambas as autoras propõe são como formas de traduzir o contexto que essa dança vivencia.
Essa tradução conota uma construção linguística de um termo que demonstra pensamentos
peculiares sobre o seu sentido.
Bastos (2013), enfim, coloca a mediadance de Schiller (2003) como uma expansão do
campo da própria Dança, na qual, em contato com as novas tecnologias, se reorganiza em
inúmeras possibilidades. Na contribuição do conceito de campo expandido, “essa atuação
ampliada da dança aparece como uma possibilidade de estar presente em novos territórios,
promovendo uma abertura do campo da dança a partir da diminuição de fronteiras”
(BASTOS, 2013, p. 158).
estar dispostos como adereços cênicos, longe disso, eles estão em interação poética cujos
resultados os tornam indispensáveis para a configuração estética.
Várias tecnologias foram desenvolvidas depois do artigo de Snyder (1967) e ainda o são
até hoje. Apesar do mediadance conseguir abranger muitas configurações, Allegra F. Snyder
(1967), precocemente, já apontava outras possibilidades quando falava da interface entre
dança e cinema e do que mais poderia surgir desta relação. Schiller (2003), como fez um
estudo posterior, pôde incluir as tecnologias do por vir, como alguns softwares que
transformam as relações e criações artísticas. Aqui tem-se um aprofundamento da sua
argumentação:
24
Ludmila Martinez Pimentel, Professora, Doutora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, trouxe
esse entendimento em artigo publicado em colaboração com os componentes do Elétrico – Grupo de Pesquisa
em Ciberdança, do qual é líder.
25
Because movement-based interactive art is multifaceted, it could be seen as belonging to the field of dance and
technology, interactive arts or cinedance. In this thesis these are collectively termed
“mediadance.”Mediadance is one of many art forms that integrates computer-based technologies. As such, it
is part of a general development in technologically- mediated systems, which include interactive-art, CD-ROM
based interactive art, virtual reality, netart, telematics, and technologically-mediated performance and video
gaming. (SCHILLER, 2003, p.12)
88
Neste estudo, foram expostos alguns exemplos daquelas danças que se integraram com
a tecnologia digital. As transformações da Dança no decorrer dessas décadas de histórias são
notáveis. Contudo, não se pode afirmar que toda dança foi tecnologicamente e digitalmente
integrada. Mesmo considerando a expansão de seus recursos, a utilização de novas
espacialidades e temporalidades, bem como os conhecimentos e habilidades que ela gerou,
cabe afirmar que a dança digital está inclusa no campo da Dança.
No bojo de suas contribuições, Schiller (2003) afirma que como um campo de pesquisa
artístico e teórico de Dança, a dança com tecnologia galgou uma expressiva evolução com a
expansão e o desenvolvimento das tecnologias digitais. Um exemplo disso é a obra de
Michael Noll26, entendida também como um precedente germinal, mesmo que seu trabalho
inovador e criativo na Bell Labs (1960) não seja largamente reconhecido.
26
Disponível em: < http://dada.compart-bremen.de/item/agent/16>. Acesso em: 15 mar. 2014.
89
tecnologias (não necessariamente digitais) para criar formas de arte, baseadas em movimento,
Noll pode ser creditado nos seus trabalhos experimentais pelo uso de tecnologias digitais.
Michael Noll engendrou sua mais antiga arte computacional digital, no verão de 1962,
enquanto estava trabalhando no Bell Telephone Laboratories em Murray Hill, New Jersey,
sem esquecer o trabalho experimental desenvolvido inicialmente também neste laboratório.
Em um de seus experimentos realizado alguns anos depois, Noll comparou uma pintura de
Piet Mondrian28 com um padrão gerado por computador. Seu Ballet Computer-Generated29
(1968) foi considerado o primeiro uso de um computador digital para criar uma animação de
figuras de vara em um palco, acarretando um aspecto visual diferenciado.
Em 1968 e 1970, o artista utilizou o seu método de computador com animações para
inventar as sequências de título para um filme (Incredible Machine), assim como para um
especial de Televisão (The Inexplicable), demonstrando uma utilização precoce dessas
animações, algumas em quatro dimensões.
27
Disponível em: <http://noll.uscannenberg.org/>. Acesso em: 13 mar. 2014.
28
Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Piet_Mondrian>. Acesso em: 13 mar. 2014.
29
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=phVN_HS5Fy8>. Acesso em: 13 mar. 2014.
30
Disponível em: <http://noll.uscannenberg.org/>. Acesso em: 13 mar. 2014.
90
de arte Moderna, do Condado de Los Angeles, o USC Fisher Gallery, da Biblioteca de Artes
Cênicas no Lincoln Center, e da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.
A imagem do movimento produzida com essa tecnologia, com o programa utilizado por
33
Noll , não apresentava figuras humanas. O movimento e a imagem se revelavam por figuras
geométricas, ou melhor, por linhas. Diferente do vídeo que apresentava as figuras humanas e
movimento que elas produziam, os programas de computadores possibilitavam a criação com
outros tipos de figuras, aliás, eles poderiam criá-las.
As produções não eram tão intensas como depois dos anos 2000. Na concepção de
Schiller (2003), Dança e Tecnologia, palavras da autora, só ganhou impulsão como um
campo, na década de 1980 com a acessibilidade aos computadores em virtude de seus preços
mais baixos, MIDI (Musical Instrument Data Interface, 1982), vídeo em desktop, multimídia
e software de animação. As configurações artísticas demonstraram um princípio de integração
com essas ferramentas. O palco inteligente (Inteligent Stage), um termo utilizado para
identificar um palco mediado tecnologicamente na Institute for Studies in the Arts, Arizona
State University; (Internet, CD -ROM) formas interativas e laboratórios de pesquisa, são os
maiores exemplos. Em alguns países, pesquisas universitárias e independentes também
manifestaram sua ação para o desenvolvimento desse campo.
modo geral, como é o caso do Dance and Technology Zone35, um website, ainda ativo, criado
por Scott de La Hunta36, Troika Ranch37 e Ric Allsopp38. Este website foi organizado para
reunir grupos internacionais de pessoas que desejam compartilhar informações sobre as
formas de artes com mediação tecnológica, ele ainda está em transformação até os dias atuais.
Em 2015, acontecem por todo o mundo diversos eventos e festivais que focam nas
configurações da dança digital. Antes de seguir descrevendo as manifestações mais atuais,
torna-se relevante fazer uma reflexão. Mesmo Schiller (2003) trazendo vários exemplos acima
citados, todos eles estão localizados no hemisfério norte, o que não nega, bem como não
considera, os acontecimentos nessa área que poderiam existir no hemisfério sul. Em Schiller
(2003), e em outros que abordam a questão do desenvolvimento do campo de dança ou arte
com tecnologia, as maiores ou por vezes quase exclusivas referências são de artistas e eventos
situados no hemisfério norte do planeta, em especial, nos Estados Unidos da América e nos
países ocidentais da Europa. Cabe, talvez, lançar um questionamento sobre o que estava
acontecendo em outros países. Infelizmente, os registros encontrados são escassos e mesmo
em alguns sites de eventos e artistas, há poucas informações que descrevem ou
contextualizem as atividades, no entanto o pouco material encontrado é de pertinente
contribuição neste estudo.
35
Dispoível em: <http://www.art.net/~dtz/>. Acesso em: 10 jan. 2014.
36
Dispoível em: <http://www.art.net/~dtz/>. Acesso em: 10 jan. 2014.
37
Dispoível em: <http://www.art.net/~dtz/>. Acesso em: 10 jan. 2014.
38
Dispoível em: <http://www.art.net/~dtz/>. Acesso em: 10 jan. 2014.
39
Disponível em: <http://www.videodanzaba.com/home.html>. Acesso em: 12 fev. 2014.
40
Disponível em: <http://www.dance-tech.net/profile/SilvinaSzperling>. Acesso em: 12 fev. 2014.
94
videodança e curadora dessas obras, que por muitos anos promove outras atividades,
fomentando o desenvolvimento da área.
Silvina Szperling dança e coreografa desde os anos 80, tanto para o palco quanto para
outros ambientes. Desde 1993, a artista trabalha na poética do videodança, iniciando com
Temblor (1993), visto na Figura 8, que recebeu o Prêmio na Argentina “Best Editting” e está
na New York Public Library's Dance Collection, no Lincoln Center, local cujo acervo
compreende uma coleção significativa na área. A artista também criou uma série de peças de
multimídia para a empresa SZ Danza, com a qual excursionou pela Argentina e
internacionalmente.
41
Disponível em: <http://www.dance-tech.net/profile/SilvinaSzperling>. Acesso em: 12 fev. 2014.
95
Figura 8 – Temblor.
Ao seu videodança SZis (2005) (Figura 9) foi atribuído um subsídio do Dance Film
Association, NYC e foi exibido extensivamente pela América Latina. Outro videodança,
Chámame (2008) (Figura 10), estreou em Junho de 2008 na Alliance Française, em Buenos
Aires, e recebeu o Prêmio de Melhor Desempenho no Festival Tápias, Rio de Janeiro, Brasil.
Chámame também foi exibido no moves 09 (Manchester, UK), Dance Camera West (Los
Angeles, EUA), Dance on Camera American Dance Festival (Durham, EUA), entre outros
festivais.
Figura 9 – SZis.
Figura 10 – Chámame.
42
Dispponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
43
Dispponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
44
Dispponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
45
Dispponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
46
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
97
O M3x3 (1973) (Figura 11) considerado o primeiro videoarte brasileiro e talvez também
o primeiro videodança, é um trabalho de computer dance para TV. Os dançarinos estão
dispostos regularmente em uma matriz 3×3 que compõe um palco, formando uma imagem em
alto contraste, como no frame é possível verificar. Este conjunto, agregado ao movimento
com inspirações mecânicas, constrói uma crítica à sociedade urbana que na época continuava
com um crescimento desordenado.
47
Disponível em: <https://galeriaexpandida.wordpress.com/artistas/analivia-cordeiro/>. Acesso em: 10 mar.
2014.
98
Figura 11 – M3X3.
Unsquare Dance (2007) (Figura 12) é um vídeo que tem a coreografia criada com o
software elaborado, com a colaboração de Julio Lucio48 e Alice Bodansky49, por Luis Vello50
e pela própria Analívia Cordeiro51. O software X-Motion foi elaborado no Instituto de
Matemática Pura e Aplicada IMPA, Brasil, e tem como função visualizar a emoção através
das trajetórias espaciais do movimento do corpo, compondo em Unsquare Dance (2007) uma
dança de luzes pulsante.
48
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
49
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
50
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
51
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
99
Cordeiro52 criou várias outras obras, não com vídeos, mas também performances, como
Celofone (1979) (Figura 13) que agrupadas, compõe mais de 30 anos de carreira. Um aspecto
importante a ser considerado a respeito de sua contribuição para a dança digital, além da
criação de diversas obras e circulação por muitos países em contato com outros artistas, é a
elaboração de um programa de computador com enfoque artístico.
52
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
100
Figura 13 – Celofane.
Por outro lado, a dificuldade não é uma questão exclusiva de gênero, na arte com
tecnologia há uma cisão que apresenta dois grupos, salvo as exceções, de profissionais em sua
composição: os artistas e os programadores. Via de regra cada um desses grupos se
responsabiliza por uma parte tanto da execução quanto do processo criativo. Isso não é
negativo enquanto haja diálogo entre as partes, no sentido de negociações, interferências
mútuas nos trabalhos, "contaminações".
101
Em dois fatores, pelo menos, divergem os contextos territoriais, e por isso culturais, da
dança digital. Ambos os fatores são econômicos, cujas consequências ultrapassam as questões
financeiras, são eles: o custo dos aparatos e a renda dos profissionais de arte. Eles influenciam
a cultura e o pensamento de tal forma que o rotineiro para uns pode ser exceção para outros.
O estudioso Steven Dixon (2007) argumenta que há tempos o aspecto digital das
configurações artísticas deixou de ser o estranhamento, a novidade, que até a imprensa já
considera a dança digital, mais como uma dança de interface, e não leva tanto em conta a
palavra “digital” na sua divulgação ou crítica. A partir dessa afirmação, parece que de alguma
forma o uso dessa tecnologia já se tornou extremamente comum. Isso pode ser facilmente
verificável, se for levado em conta que o contexto dos argumentos de Dixon (2007) está
localizado mais especificamente nos EUA e na Europa.
Embora o Brasil seja um país de uma boa relação econômica internacional, possui uma
enorme concentração de renda, cuja aparente estabilidade econômica é garantida por impostos
altíssimos, tornando os produtos tecnológicos bastante caros. Nele, a classe artística da Dança,
em sua maioria, tem uma remuneração que nem sempre permite sobreviver das suas obras
102
Por outro lado, independente da tecnologia que se pode utilizar, seja ela a mais
elaborada como um software ou uma das mais antigas como o vídeo, a criatividade é a
possibilidade de manipulação dessas tecnologias para a poética. Às vezes, os artistas se
encontram perdidos poeticamente buscando efeitos impressionantes e esquecem que as
tecnologias digitais são ferramentas que podem ser integradas à poética artística, e não para
torná-los submissos aos equipamentos.
Visto isso, se a tecnologia confere novas possibilidades na vida, por que não seria assim
também na Arte? Nessa perspectiva, ecoa a afirmação de Machado (1993), “as novas
tecnologias introduzem diferentes problemas de representação, abalam antigas certezas no
plano epistemológico e exigem a reformulação de conceitos estéticos” (MACHADO, 1993, p.
24). Essa inferência significa que uma gama de possibilidades está aberta para a experiência
estética, tanto de construção como de apreciação, sugerindo a necessidade de reflexão acerca
da intenção e condições de uso dos equipamentos.
Seguindo esse pensamento, a criação artística fica limitada, ao que a máquina foi
programada previamente na sua fabricação para produzir. Portanto, o artista pode criar a partir
de um modelo “poético”, um modo de organização pré-determinado. O aparato, ainda que
seja uma matéria (PAREYSON, 1997) da poética, fornece possibilidades limitadas. Ao
deslocar do âmbito exclusivo da fotografia, se entende que a captura e projeção de imagens,
ambas muito utilizadas na dança digital, também podem ser incluídas na observação do autor.
Outros autores demonstram pontos convergentes com Flusser (1985). Steven Dixon
(2007), em seu livro Digital Performance, adverte sobre algumas questões que permeiam a
relação Arte x Tecnologia. Uma delas é a pouca participação de artistas na criação e
programação dos aparatos tecnológicos digitais utilizados na criação artística. Esse fato tem
sua origem também na falta de conhecimentos técnicos dos códigos de operação desses
programas, que exigem um tempo de dedicação e estudos bastante complexos.
O que acontece, então, com a maioria dos artistas é uma adaptação aos programas
comerciais, que subjaz sua criação a uma programação estabelecida previamente em um
106
software. A maioria desses programas é pago, o que dificulta o seu uso considerando a
realidade financeira dos profissionais e estudantes de arte.
As tecnologias mais utilizadas na Dança, como matéria de sua arte, são de linguagem
digital. Dentre elas, se destacam equipamentos de meios de comunicação e computacionais.
Os artistas usufruem de câmeras de vídeo, fotográficas, de computadores e software, para a
criação, não as utilizando isoladamente.
Lev Manovich (2001), em sua obra, The Language of New Media, faz várias inferências
sobre as tecnologias de comunicação. Uma de suas afirmações, que esclarece a relação entre
elas, é quando pontua as trajetórias de desenvolvimento: das mídias modernas e dos
computadores. Todas as máquinas, de fotografia, de filmagem, de impressão, de rádio e de
computação, serviam para disseminar informação criando uma ideologia comum na sociedade
moderna de massa, e construindo registro de diversas ordens: médicos – de nascimento – e até
policiais. Dessa forma, ele afirma que: “mídias de massa e de processamento de dados são
tecnologias complementares de uma moderna sociedade de massa; eles aparecem juntos e se
desenvolvem lado a lado, tornando esta sociedade possível53 (MANOVICH, 2001, p. 47
(tradução nossa)).
A grande virada em relação às mídias, segundo esse autor, é quando o computador deixa
de ser apenas uma calculadora e passa a sintetizar e manipular as mídias. Novos objetos de
mídia podem ser criados no computador, registrados numericamente, “matematizados”. E
aqueles que ainda não estão, podem ser convertidos em expressão numérica, ou seja,
digitalizados.
Com a informatização da sociedade, aparece um dos princípios das novas mídias, a que
esse autor se dedica, a representação numérica, modificando a “identidade” da mídia. “Todos
os objetos de nova mídia, se eles são criados a partir do zero em computadores ou convertidos
53
Mass media and data processing are thecomplementary technologies of a modern mass society; they appear
together and develop side by side, making this society possible. (MANOVICH, 2001, p. 47)
107
a partir de fontes de mídia analógicas, são compostas de código digital; eles são
representações numéricas” (MANOVICH, 2001, p. 50 (tradução nossa))54.
Para aqueles objetos que não foram criados originalmente em computador, ou que
possuem linguagem analógica, há a alternativa de passarem pelo processo de conversão para
linguagem digital. O analógico se caracterizaria tecnicamente por dados contínuos, “o eixo ou
dimensão que é medida não tem unidade indivisível aparente a partir da qual é composta”
(KERLOV; ROSEBUSH, 1986 apud MANOVICH, 2001, p. 50 (tradução nossa))55. Quando
esses dados contínuos são transformados em expressão numérica, ocorre o processo de
digitalização.
54
All new media objects, whether they are created from scratch on computers orconverted from analog media
sources, are composed of digital code; they are numerical representations. (MANOVICH, 2001, p. 50).
55
the axis or dimension that is measured has no apparent indivisible unit from which it is composed. (KERLOV;
ROSEBUSH, 1986 apud MANOVICH, 2001, p. 50).
56
First, data is sampled, most often at regular intervals, such as the grid of pixelsused to represent a digital
image. (MANOVICH, 2001, p. 50).
108
A imagem analógica, em tom contínuo, oferece mais detalhes e menos nitidez, ao passo
que, uma imagem digital contém um número limitado de informação, mas apresenta uma
determinada resolução espacial e tonal, que pode fornecer uma resolução de imagem
satisfatória, a depender do equipamento; “enquanto uma imagem digital armazenada ainda é
constituída de um número finito de pixels, em tal resolução pode conter muito mais
circunstanciada do que jamais foi possível com a fotografia tradicional” (MANOVICH, 2001,
p. 70 (tradução nossa))57. As tecnologias digitais já atingiram números de informações
surpreendentes, além, inclusive, do que a percepção humana é capaz de captar. A questão a
ser refletida, segundo o autor, é sobre a quantidade de informação que é necessária em uma
mídia.
Em uma linguagem analógica, a cada vez que um objeto é copiado, ocorre perda de
qualidade, pois as variações espaciais e tonais não são exatamente replicáveis. No entanto,
quando o mesmo é codificado digitalmente, a qualidade se mantém independente do número
de cópias, exceto pela utilização de conversores que compactam as informações,
transformando de um tipo de linguagem digital para outro; nesse caso, a perda é inevitável.
Quanto maior for a resolução do objeto digital, a quantidade de pixels que ele possui,
tanto maior será o local de armazenamento e o tempo gasto em suas operações. Por essas
razões, “o software e hardware utilizados para adquirir, armazenar, manipular e transmitir
imagens digitais uniformemente conta com compressão com perdas – a técnica de fazer
arquivos de imagem menor, eliminando algumas informações”. (MANOVICH, 2001, p. 71
(tradução nossa))58.
57
So while a digitally stored image is still comprised of a finite number of pixels, at such resolution it can contain
much finer detail than it was ever possible with traditional photography. (MANOVICH, 2001, p. 70).
58
the software and hardware used to acquire, store, manipulate, and transmit digital images uniformly rely on
lossy compression – the technique of making image files smaller by deleting some information. (MANOVICH,
2001, p. 71).
109
pode orientar a escolha de um artista, em relação ao uso dessa ou daquela linguagem, é o seu
propósito, o senso de justeza artística, o seu gosto. Ainda que o digital ofereça acesso fácil e
disponibilidade de programação, um objeto analógico pode conter as qualidades visuais,
sonoras, entre outras, que sejam necessárias à poética de um trabalho.
O que, no entanto, pode ser uma indicação mercadológica para o uso dos equipamentos
digitais, seria a oferta massiva desses produtos no mercado. Com isso, os objetos que
possuem códigos digitais são os mais acessíveis e disseminados, situação que facilita o
trabalho artístico, quando se escolhe esse tipo de linguagem.
Prova disso são as inscrições dos eventos de arte e tecnologia, que obviamente pela
praticidade, para ampliar o número de interessados, disponibilizam o processo online, no
sistema web, cujas informações adicionadas, além dos formulários de inscrição, vídeos,
fotografias, são em linguagem digital. A reflexão é: não há problema em colocar inscrições
pela Internet, e sim, quando só há essa possibilidade. Consequentemente, todo trabalho em
vídeo, por exemplo, teria que ser digital.
A dança digital é uma produção da vida humana, cuja configuração utiliza tanto o
humano quanto um aparato tecnológico digital. Se observadas a partir de uma perspectiva
crítica, as ferramentas tecnológicas possuem limitações criativas e manipulações
mercadológicas que dificultam a produção artística. Dentro desse contexto, os artistas ainda
conseguem transcender essa estrutura limitadora e criar trabalhos singulares poeticamente. A
tecnologia permeia intensamente o cotidiano do ser humano, ele a utiliza em suas expressões
e necessidades.
No momento em que uma máquina é utilizada, ela cria, proporciona, uma experiência
peculiar para o seu usuário. No uso de um equipamento sempre se estabelece algum tipo de
relação, esta podendo ser mais ou menos ativa da parte humana. De qualquer forma, a
experiência inquieta, estimula outros estados de corpo e de percepção, os quais também
“alimentam” o artista.
59
Disponível em: <http://www.sfu.ca/~tschipho/>. Acesso em: 30 jan. 2014.
60
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
61
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
62
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
63
Disponível em: <www.palindrome.de/>. Acesso em: 21 maio 2014.
64
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso em: 15 fev. 2014.
65
Disponível em: <http://analivia.com.br/curriculum/>. Acesso em: 20 fev. 2014.
113
Uma perspectiva interessante é refletir sobre a relação que se decide estabelecer com as
tecnologias, as estruturas limitadoras são reverberações das próprias intenções humanas.
McLuhan (1979, p. 67) afirma que os meios de comunicação, ou seja, os medias, são
produtores de situações, mas não de consciência: “já explicamos que os meios, ou extensões
do homem, são agentes “produtores de acontecimentos”, mas não agentes “produtores de
consciência”".
Qual a função do artefato a ser utilizado? Em quê ele serve à estética e poética da
produção artística? Essas duas questões extremamente imbricadas que parecem óbvias, nem
sempre são levantadas no processo de criação artístico, e por serem tão evidentes se tornam
fundamentais para orientar a relação estabelecida com esses artefatos. Seja qual for o grau do
avanço tecnológico dos artefatos utilizados em uma obra, a condição vigorante dessa presença
é a sua capacidade de servir ao propósito de criação, de sensibilizar, ou seja, não deve ter o
uso desvinculado de uma necessidade criativa.
A tecnologia se afirma nas relações humanas que ligam uns aos outros, em redes
comunicacionais nos ambientes mais diversos, inclusive no processo criativo. As máquinas
funcionam não mais como uma extensão, um prolongamento ou novo membro do corpo. As
tecnologias convocam outras formas de relação e pensamentos, modificam o estar no mundo,
66
Disponível em: <https://processing.org/>. Acesso em: 12 fev. 2014.
114
O corpo dilata suas percepções e pode tornar mais complexa as sensações que
experimenta com a interação com a tecnologia digital, na percepção do espaço, do tempo e
também na visualização, seja no processo criativo ou na exibição. O corpo que sempre está
sendo, em contínuo movimento de fluxo de informações, constrói conhecimentos e descobri a
si mesmo nas relações que experimenta com o ambiente. Louppe (2012, p. 70-71) acrescenta
que “toda a investigação do corpo demanda esse silêncio meditativo e concentrado, em que o
sujeito do corpo parte à pesquisa de si – do outro em si ou de si no outro”. Em tal situação, a
máquina propõe esta troca de informações.
Os artefatos, vídeo, jogos, sensores, software, que, em alguns casos, já foram ou ainda
são usados como cenários, agora, na proposta de dança digital, se tornam agentes
compositivos e a dança produzida é criada nessa relação. Alguns sustentam a afirmação de
que a relação com a tecnologia é um limitador da liberdade e da criação artística, ou mesmo,
que a dança digital é uma negação da vida, do corpo e da humanidade.
Para repensar a relação entre vida humana e máquina, pode-se obter inspiração nos
argumentos de Roberto Esposito (2010). O teórico italiano promove uma extensa pesquisa
sobre a biopolítica, “uma política em nome da vida” (ESPOSITO, 2010, p. 32).
(...) mais que para o termo bios, entendido no sentido de «vida qualificada»
ou de «forma de vida», a biopolítica remete sem mais para a dimensão da
zoé, ou seja da vida na sua expressão biológica mais simples ou, quando
muito, à linha de conjunção ao longo da qual o bios emerge sobre a zoé
naturalizando-se também ele. (ESPOSITO, 2010, p. 31).
115
Quando o autor coloca a palavra vida, com ela não está se referindo somente ao aspecto
natural ou físico, mas traz o significado também da vida cultural, sentido presente também no
grego. Com essa prerrogativa, é proposta a dança digital, bios e dança, a dança que considera
e subjetiva a vida que lhe expressa, potencializando essa vida enquanto sujeito de ações.
Ainda que em algumas instâncias possa se argumentar que não há sempre vida humana
ali expressa, no momento do acontecimento artístico (“resultado” ou “apresentação” da obra),
no qual só se utiliza projeções e não um corpo humano em vivo. É fato que essa projeção,
criada por um vídeo pré-gravado ou não, foi gerada por um corpo humano (biológico, social,
psicológico). Sobretudo, o aspecto fundamental dessa subjetivação se configura no momento
em que esta dança manifesta uma necessidade dos artistas de sua época, na qual ela se torna
uma necessidade singular de expressão.
Os aparatos que a dança digital utiliza em sua poética são compartilhados no cotidiano,
não só dos artistas, são tecnologias inseridas em quase todas as vidas, não externas a elas. As
configurações de experiências estéticas que surgem quando os artistas dialogam com a
tecnologia, é oriunda daquilo que, enquanto sujeitos, eles provocam e desejam expressar.
A dança digital, assim como outras danças, pode ser uma dança que respeita a vida,
porque ao menos na sua criação foi produzida por uma relação do humano com uma
tecnologia digital, esta que em várias instâncias atravessa a vida mesmo em necessidades
rotineiras e possibilita outra de si mesma, “ainda mais hoje, quando o corpo humano aparece
sempre mais desafiado, e até literalmente atravessado, pela técnica” (ESPOSITO, 2010, p.
31).
Laurence Louppe (2012) sugere que o dançarino deve encontrar sua própria técnica,
isso significa que cada artista possui uma poética própria, mesmo que o dançarino tenha
formação em várias técnicas e utilize aparatos tecnológicos já programados. Ainda que ele
retome a alguma técnica antiga, como pode ser observada em alguns trabalhos
contemporâneos, a forma como ele fará suas associações, como ele vai organizar os elementos
da experiência estética, é sua forma de se diferenciar. Isso também é uma potência da bios.
Dentro de uma análise com inspiração na análise estética de Pareyson (1997), o desafio
do artista é justamente transgredir as ordens e uso das matérias, no caso, das tecnologias, e
propor novas formas de manipulação desses instrumentos. Olvidar determinações prévias e
controladores, subvertendo ideologias mercadológicas, faz parte do comportamento artístico.
Além do mais, boa parte das tecnologias usufruídas em poéticas não foram elaboradas com o
intuito de funcionalidade artística.
O expoente tecnológico do final do século XX e início do XXI, que pode ser citado,
certamente, foi o software. Existem vários modelos disponíveis no mercado, mas o que agora
117
se destaca por sua difusão e merece comentário é o Processing, tornando-se hoje uma das
plataformas mais difundidas no mundo, por razões simples: sua gratuidade e a versatilidade
de seus usos e combinações com outros sistemas.
Este software parece que está colaborando com uma “onda ideológica” mundial que é o
do it yourself, ou, faça você mesmo, como uma resposta a um sistema mercadológico de
produtos prontos, programados, que defendem uma praticidade, mas que por outro lado
impedem o desenvolvimento de habilidades e estimula o desconhecimento do funcionamento
dos objetos, esses seriam produtos de extensas formas de manipulação social.
As criações artísticas com o Processing são diversas, uma delas é a última apresentada
no trecho sobre o grupo Palindrome, contudo, no intuito de trazer mais uma colaboração
67
Disponível em: <http://www.processing.org/>. Acesso em: 12 fev. 2014.
118
Figura 14 – Constelaciones 1.
realização há anos atrás, em virtude das tecnologias desenvolvidas que há pouco tempo estão
disponíveis.
Este vídeo em especial, levando em conta as outras imagens da instalação, tem uma
beleza peculiar. Nele, há um corpo em deslocamento em várias nuances de movimento que se
dissolve como um rastro. Ao se movimentar, o corpo cria constelações de estrelas que se
organizam aleatoriamente em variações infinitas. O que o torna especial é a forma como ele
foi organizado, o jogo poético que existe entre som, movimento, imagem e luz.
A câmera de filmagem foi uma das primeiras tecnologias que fomentaram a dança
digital. O diálogo que ela estabelece com o artista perdura e transcende às modificações
tecnológicas: uma passagem do eletromagnético ao digital. A câmera assume a função do
olhar, por isso a máquina funciona como uma extensão, de McLuhan (1979), ou como uma
distensão do olhar humano. Tal prática muda as perspectivas visuais.
tratamento da imagem. Todas essas dimensões que são disponibilizadas instauram outras
possibilidades espaciais e de ambiências para a exibição de dança. Com a apropriação do
vídeo, a Dança concretiza alianças com outras áreas de conhecimento.
A câmera pode, por exemplo, com a função de zoon aproximar uma imagem sem o
deslocamento espacial do observador, concedendo a percepção de movimento do corpo. A
imagem se move sem o espectador modificar nem sequer a posição de sua cabeça, no entanto
ele visualiza aquilo que a lente da câmera optou por mostrar. O deslocamento da imagem
pode também ser obtido a partir do que aquele que filma faz com a máquina, ou mesmo se a
captura for feita dentro de um espaço em movimento, como carro, trem, entre outros.
Nas Figuras 15 e 16, estão duas montagens de sequência de frames dos videodanças de
Maya Deren (1943) e Silvina Szperling (2005), respectivamente Meshes of the afternoon
(1943/2011) e SZis (2005/2009). A primeira obra é feita com tecnologia eletromagnética e a
segunda provavelmente com equipamento digital de filmagem e com edição a partir de outras
tecnologias digitais. Nas duas sequências, é possível observar as variações de plano de
imagem, com diferentes ângulos e perspectivas, ou até o corpo em movimento.
121
Figura 16 – SZis.
Fonte: Arquivo pessoal (RIBEIRO, 2016).
122
123
A câmera de vídeo ainda pode colocar como imagem da dança diferentes partes do
corpo em isolamento, possibilidades que não são conseguidas sem este tipo de tecnologia. A
intenção artística pode ser fazer a dança somente com a imagem dos pés, das mãos ou de
qualquer outra parte, até pedaços do corpo que formem um conjunto. Pensar em dança
enfatizando partes do corpo não é uma preconização da dança digital, mas o uso do vídeo
como matéria da arte certamente facilita esta iniciativa e outras da inventividade humana.
distende as capacidades de um órgão para uma tecnologia. Talvez, o ápice desse processo seja
a transferência da imagem do seu próprio corpo.
Lidar com essas tecnologias sugere motivação bem como dedicação. O tempo de
estudo, de entendimento e de experimentação do que aquela tecnologia pode fornecer de
articulação poética e o próprio tempo de trabalho com a tecnologia, de captura e de edição de
imagem são a justificativa do empenho. Por vezes, o processo de edição e tratamento da
imagem é equivalente ao período de composição de uma coreografia.
Esta dança não requer somente conhecimentos específicos correspondentes à sua área
de concentração. O uso do vídeo anuncia a conexão com conhecimentos do Cinema e o
trabalho em conjunto do vídeo com o software de edição e depois de animação.
Tal ferramenta, assim como o vídeo, cria novas poéticas e, principalmente, formas de
visualidades para a Dança. Na relação estabelecida entre artista e tecnologia, formas
diferentes de perceber e organizar a informação são geradas, contribuindo para uma
renegociação do processo criativo. Além disso, o software possibilita a criação de outra
matéria da arte que é o corpo digital, cuja percepção de sua presença está em sua visualização.
O corpo digital pode ser apresentado na figura de um boneco ou mesmo como figuras que
tenham aparência da imagem humana.
Os programas nem sempre são criados com finalidades artísticas ou mesmo por
profissionais que tenham convívio na área. Talvez para satisfazer inquietações específicas ao
campo da Dança e por motivação particular de cada artista, alguns softwares foram criados
para o trabalho em dança, na integração de conhecimentos de Computação e de Dança. O Life
125
Forms69, o Isadora70 e o Eyecon71 são exemplares dessa ferramenta que possuem uma
comunhão entre artistas e programadores.
As possibilidades na utilização desse software são diversas. O aparato pode servir como
um auxílio ao coreógrafo no momento de construção da sequência de movimentos, quando
este profissional testa várias possibilidades até mesmo antes de levá-las para o estúdio com os
dançarinos. Assim, o foi a experiência de Cunningham (DIXON, 2007) com a primeira versão
do Life Forms, cuja primeira coreografia criada nessa relação foi em 1989.
69
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
70
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
71
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso em: 15 fev. 2014.
72
Disponível em: <http://www.credo-interactive.com/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
73
ounts of these early attempts are fascinating, including “Merce Cunningham: Cyber Dances with Life Forms”
(1997) by TheclaSchiphorst, a programmer with a background in dance, who was a member of the original
Life Forms design team and who tutored Cunningham while in parallel developing the capabilitiesof the
software that Paul Groot would later call “the dream of a multimedia Gesamtkunstwerk.” (DIXON, 2007, p.
184).
126
Essa coreografia já seria uma inovação nos padrões de movimento da época, mesmo que
Cunningham (DIXON, 2007) não a tivesse executando em um programa de criação e edição
para dança como o Life Forms. Thecla Schiphorst (DIXON, 2007) declarou que o software
serviu para ele como uma extensão e um complemento de seus objetivos, já que Cunningham
(DIXON, 2007) conseguia fazer com os bonecos virtuais aquilo que seus bailarinos, em um
primeiro momento, pareciam não conseguir executar. Depois de um estudo coreográfico de
movimento no programa, o coreógrafo treinava os movimentos com os seus dançarinos.
Figura 17 – Ocean.
Merce Cunningham (DIXON, 2007) foi aclamado como um dos primeiros artistas em
Dança a trabalhar com a tecnologia digital, tendo seus estudos iniciado desde os anos de 1950
com o dancefilm, até seus experimentos e criações com o Life Forms74. Ele foi um coreógrafo
que com ou sem a utilização de tecnologia digital, sugeriu novas formas de composição
coreográficas. Como Dixon (2007) anuncia, parece que ele e o software foram uma
combinação perfeita.
O Life Forms é um software, como os outros, que solicita tempo de aprendizado para o
uso de suas ferramentas. A criação coreográfica em sua programação exige destreza com seu
método e, pelo que já foi testado no Elétrico – Grupo de Pesquisa em Ciberdança, da
Universidade Federal da Bahia, Brasil, há uma limitação dos movimentos do boneco virtual,
por exemplo, ele não consegue executar movimentos ondulosos com o quadril, gestos
habituais de dançarinos brasileiros e, principalmente, baianos.
74
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
128
figurinos. Este filme tanto pode funcionar como um videodança, quanto como uma projeção
em algum espetáculo de dança.
75
Disponível em: <http://www.escavador.com/sobre/8487976/andreia-oliveira-araujo-da-silva>. Acesso em: 06
jul. 2015.
76
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
77
Ludmila Pimentel - pesquisadora, artista na área de Dança e Tecnologia, Mestra em Comunicação e Cultura
Contemporânea (UFBA - 2000) e Doutora em Artes Visuais e Intermídias pela Universidade Politécnica de
Valencia (2008), Espanha. Atualmente é Professor Adjunto III da UFBA, Professor Permanente do Mestrado
em Dança e Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFBA. Membro do
Conselho Editorial e Parecerista do Journal of Somatics and Practices (Conventry University, Inglaterra).
129
Outro trabalho que recebeu destaque da parceria entre Andréia Oliveira78 e Ludmila
Pimentel79 foi o Experimento de Corpo (2010) (Figura 20), apresentado no FILE 2010, Brasil.
78
Disponível em: <http://www.escavador.com/sobre/8487976/andreia-oliveira-araujo-da-silva>. Acesso em: 06
jul. 2015.
130
Ele é composto por uma animação de Oliveira usando o programa Life Forms80 com posterior
edição de Pimentel. O efeito de massa de modelar do software de edição confere ao corpo
digital outra aparência: por vezes ele é só uma massa amorfa irreconhecível, em outros
momentos surgem algumas formas nele permitindo sua aproximação com um boneco. Ele fica
no limbo entre a identificação de corpo e coisa, trazendo a percepção do espectador para o
limiar sobre a mensuração do ponto em que algo realmente se aproxima da imagem do corpo.
79
Disponível em: <http://www.escavador.com/sobre/8379607/ludmila-cecilina-martinez-pimentel>. Acesso em:
05 jul. 2015.
80
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
81
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
131
MAX82. Em 1996, ele foi integrado a um espetáculo que recebeu premiação de Montagem de
Espetáculo pela Fundação Cultural do Estado da Bahia.
No Em não lugares (1995) e nas três parcerias entre Oliveira e Pimentel (2009/2010),
não se vê corpos humanos, nem corpos digitais que tragam imagens de feições humanas. Os
trabalhos são compostos com bonecos, também corpos digitais, que podem executar
movimentos semelhantes aos movimentos humanos. Esses bonecos do Life Forms83 foram
gerados com captura de informações do corpo para programação pelos próprios idealizadores
do software: um resultado da interação entre humano e máquina.
O uso dessa tecnologia agrega uma nova matéria à dança digital: os bonecos digitais.
Eles se tornam parte da poética dessa dança e proclama transformações ao belo que desloca
82
Disponível em: <http://www.autodesk.com.br/products/3ds-max/overview>. Acesso em: 03 mar. 2014.
83
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
132
seus critérios, ainda que pessoais, do corpo humano para o boneco digital. Dessa forma, as
figuras de composição dessa arte serão uma mescla entre as possibilidades dos aparelhos e
tecnologias e os gostos dos artistas e dos programadores.
O belo é sempre uma questão polêmica porque mistura critérios coletivos e particulares,
no sentido de que por vezes esses critérios são compartilhados por grupos, assim como estão
sujeitos aos gostos pessoais. O belo na dança digital pode servir a diferentes gostos, e por isso
em outros softwares os corpos digitais são de aparências variadas e as imagens são
construídas de outras maneiras. Apesar de se atingir uma aproximação com a imagem humana
na utilização do vídeo, quando essa imagem é trabalhada nos programas de edição, é possível
usufruir de ferramentas que reconfigurem a imagem corpórea no esfacelamento ou diluição de
sua figura.
A imagem do corpo humano sofre diluição quando nos trabalhos artísticos produzidos:
ou não apresentam mais essa imagem, ou a colocam desfigurada, ou fugidia. A figura do
corpo pode ser substituída por formas geométricas e outras imagens, como animais ou
quaisquer delas, dispensando a sua presença para geração de movimento e semântica. Em
alguns casos, elas surgem deformadas, esquartejadas revelando a manipulação e
recomposição de partes do corpo. No último tipo, a figura humana ou quase humana sofre a
intercorrência do tempo, aparecendo e desaparecendo; transformando-se em outra, em uma
presença descontínua. Essas maneiras de dissolver a figura humana podem estar misturadas de
variadas nuances.
84
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Victor_Frankenstein>. Acesso em: 05 fev. 2015.
133
No início de suas pesquisas com as tecnologias digitais, o vídeo e o Life Forms86 foram
umas de suas primeiras ferramentas utilizadas, contudo suas buscas em relação às poéticas
continuaram, até que desenvolveu algumas performances com o software Isadora e
atualmente pesquisa com o Processing. O Projeto i-ArchBodies (Arquitetura de corpos
interativos) (2007-2013), feito em parceria com a artista e também programadora, Mariana
Carranza87, é um exemplo de seus trabalhos elaborados com a programação do software
Isadora88. Na figura 23, está a imagem de uma das cenas dessa instalação.
86
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
87
Disponível em: <https://marianacarranza.wordpress.com/tag/digital/>. Acesso em: 10 abr. 2014.
88
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
135
Este software é descrito pelo Troika Ranch como um ambiente de programação gráfica
flexível que fornece um controle interativo sobre a mídia digital. Na sua função, o Isadora
pode reunir informações de vários dispositivos sensoriais e usar essas informações para
controlar e manipular vídeo digital, sintetizadores de música, dispositivos de modulação de
som, iluminação teatral e conjunto de peças robóticas .
Na Figura 24, tem-se In Plane (1994), um dos primeiros trabalhos de programação dos
fundadores do Troika, que configura um dueto entre o performer e sua representação em
vídeo, ou o seu corpo digital. O performer usa um dispositivo, também criado por eles,
chamado Midi Dancer, que controla a entrada da imagem, o movimento do projetor, a geração
de som e as luzes do teatro.
Figura 20 – In Plane.
O dispositivo é equipado com fibras plásticas que medem a flexão e extensão das
principais articulações do corpo. Quando a articulação se move, ele envia um sinal para o
computador. Este sinal se transforma em código que pode ser programado para controlar
qualquer aparelho utilizado na ação cênica.
O An Adjacent Disclosure (1991) (Figura 25) foi uma obra que utiliza tecnologia das
telecomunicações, com dois performers, cada um em um espaço: um no Teatro e outro em um
Café próximo. Além da telemática, agregaram-se outras técnicas que transformam a imagem
capturada. Durante todos esses anos de pesquisa, o Troika Ranch95 acumulou várias
tecnologias que são vendidas, como também os seus workshops que ensinam a utilização
desses aparatos, principalmente do software desenvolvido.
O Isadora96 possui uma interface acessível que não exige conhecimentos específicos de
computação para ser manipulado. Ele permite a combinação de várias funções, seja na captura
de imagem em tempo real com a webcam ou com uma câmera conectada ao computador, ou
com a utilização de um filme. O software pode produzir imagens independentes geradas nele
próprio, com texto ou figuras, bem como pode, a partir dessas imagens dadas na captura ou no
filme, usar efeitos produzindo outras imagens. No Isadora, pode-se ainda gravar um videoarte
ou videodança, ou produzir imagens para uma projeção.
Os bonecos do Life Forms98, ou os corpos digitalizados nas câmeras de vídeo, não são
as únicas possibilidades da dança digital, sempre transformada por novas tecnologias.
Programas como o Isadora, que podem trabalhar com sensores de captura, permitem que a
relação entre corpo e ferramenta digital seja de repostas instantâneas. Isso instaura outra
possibilidade poética, com a qual os artistas podem dançar com seus corpos digitais, que se
aproximam de suas imagens ou as colocam reconfiguradas. A evolução dessa dança é também
96
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
97
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 15 dez. 2013.
98
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
138
contínua porque, além das modificações humanas e ambientais, outros profissionais trabalham
no desenvolvimento de programas.
No site, fica evidente o foco do grupo na interação artística entre humano e tecnologia,
uma pretensão de realizar diálogos – nunca completamente fixos ou repetíveis – entre a
música, as imagens e os dançarinos. A ação de movimento ou da voz do dançarino fornece
informações ao sensor que as transforma em dados para o software, que, por sua vez,
promove uma atividade na seleção de imagens, sons e qualquer outra função constituinte em
sua programação. A sensação é a de que o aparelho responde instantânea e singularmente ao
dançarino, sem a possibilidade de definição exata dessa resposta.
99
Disponível em: <www.palindrome.de/>. Acesso em: 21 maio 2014.
100
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso em: 15 fev. 2014.
101
Disponível em: <www.palindrome.de/>. Acesso em: 21 maio 2014.
139
Figura 26 – E-touching.
O Grupo declara que o E-touching (2004) não é realmente uma espetáculo, mas uma
tecnologia, usada em pelo menos quatro trabalhos diferentes, porque a consideram bem tátil.
A Human Conversation (2006), por exemplo, adquiriu uma particular sensibilidade na
utilização dessa tecnologia, como assim inferem os artistas. No E-touching (2004), é utilizado
um hardware personalizado de toque e um recuso de sensor extremo do software EyeCon102.
O toque desperta sensações ainda que não seja realizado carne (corpo físico) a carne (outro
corpo físico), impulsionando algumas reflexões:
É uma ideia simples: você faz o contato pele a pele entre performers
audíveis ou visíveis (ou ainda melhor, os dois). Tocar é, afinal de contas,
carregado com conteúdo. Mesmo quando é muito pequena, para os que estão
tocando pode ter um grande significado. Ocorreu-me que, mesmo o mais
ínfimo dos toques nos coloca em uma união elétrica com o outro. Os elétrons
sempre fluem entre você quando você toca em alguém.103
102
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso em: 15 fev. 2014.
103
Its a simple idea: you make the skin-to-skin contact between performers audible or visible (or better still,
both). Touching is, after all, laden with content. Even when it is very small, to the touchers it can have a very
big meaning. It occurred to me that even the tiniest of touches puts us into an electrical union with each
other. Electrons always flow between you when you touch someone. Disponível em:
<http://www.palindrome.de/>. Acesso em: 21 maio 2014 (tradução nossa).
140
Uma de suas últimas criações Flower. Wine. Moon. Me. (2010) (Figura 27) viajou por
diversos países, e tem como tema o chinês e sua linguagem, mas declaradamente representa
uma abordagem ocidental para apreciar a música chinesa e a linguagem. Para isso, realizaram
104
Disponível em: <http://www.palindrome.de/content/who.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.
105
Disponível em: <www.palindrome.de/>. Acesso em: 21 maio 2014.
106
Disponível em: <http://www.palindrome.de/content/who.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.
107
Disponível em: <http://www.palindrome.de/content/who.html>. Acesso em: 20 fev. 2014.
141
um estudo dos quatro tons da língua chinesa. O próprio conceito de “tom” tem um significado
intuitivo para o chinês que supera os padrões morfológicos.
Os dados são então transmitidos para outro sistema de computador que os utilizam na
criação ou influência de imagens, luz, som e música. Este espetáculo é uma mistura que
142
O Eyecon e os demais softwares são matéria da dança digital, cujo uso proporciona para
as poéticas reorganizações no processo de manipulação dessa matéria bem como na expansão
de sua compreensão. Cada programa exige o desenvolvimento de conhecimentos específicos
para o seu uso, colocando-se como desafio a articulação desses conhecimentos para coincidir
com os desejos artísticos de criação do trabalho. No ato criativo com um programa surgem
outras matérias que transformam a noção de acontecimento em dança ao instaurar outros
corpos dançantes: os corpos digitais.
108
Disponível em: <http://eyecon.palindrome.de/>. Acesso em: 15 fev. 2014.
109
Disponível em: <https://processing.org/>. Acesso em: 12 fev. 2014.
145
A dança digital, já em sua constituição, e por causa da sua relação com o aparato
tecnológico, produz uma digitalização das formas, carnes e aparência do corpo humano, ou de
qualquer objeto. É possível perceber, nos vários exemplos de trabalhos artísticos, a geração de
formas corpóreas, quase como premissa da poética da dança digital. Essa forma é o corpo
digital que aqui é entendido como duplicata do humano, ainda que simbólica e não idêntica, e
que por isso se relaciona com a terminologia que Steven Dixon (2007) discute nos seus
estudos: o digital double; ou seja, duplo digital. Os estudos desse autor apresentam várias
categorias de duplo digital na performance das áreas artísticas e, dentre elas, na Dança.
A figura do duplo não é exclusiva da dança digital, muito menos da arte. O duplo é uma
ocorrência natural da vida, e ele pode ser identificado em qualquer sombra de um corpo ou
objeto, ou qualquer outra forma. Ele pode estar em um reflexo na água, no vidro e em
qualquer outra superfície, cujo acontecimento é produzido espontaneamente também pela
ação dos raios solares ou outra fonte de iluminação. O seu aspecto comum em relação à vida
humana não anula a possibilidade de interpretações e relações que o duplo gera na Arte.
Dixon (2007, p. 242 (tradução nossa))110 comenta que a noção do duplo foi
potencializada com entendimento conceitual na performance desde a publicação de O Teatro
e seu Duplo (1938), de Antonin Artaud. O que este autor e artista embute como o duplo no
110
a primitivist and spiritualized vision of a sacred, transformational, and transcendental theater. (DIXON,
2007, p. 242).
146
No que se refere à prática recente da performance, agora digital, o autor observa que o
duplo aparece como uma imagem, replicação do referente humano, que “tem sido usado para
produzir uma gama de diferentes formas de imitação e de representação, que refletem sobre a
natureza mutável e compreensão do corpo e do self (eu), espírito, tecnologia e teatro.”
(DIXON, 2007, p. 245 (tradução nossa))111. Não só no Teatro e nas Artes Plásticas, na Dança
também são utilizadas várias formas do corpo duplicado e digitalizado, como o próprio autor
demonstra.
Na análise sobre essas manifestações, Dixon (2007) encontra quatro categorias do duplo
digital com formas e temas distintos: os duplos digitais apareceriam na forma de reflexo,
alter-ego, emanação espiritual e manequim manipulável. Essas categorias são exemplificadas
uma a uma pelo autor. Em todo caso, elas nem sempre aparecem isoladas, e sim intricadas.
Para o duplo como reflexo, o autor cria uma associação com o mito de Narciso, que
observa o seu reflexo na lâmina d’água. Enquanto Narciso se detinha perplexo frente ao seu
reflexo natural, “nós parecemos olhar para o nosso próprio reflexo, isso não é um reflexo
natural, mas uma cópia de vídeo – uma simulação eletrônica transmitida através de lentes,
chips e cabos, então reproduzida como pixels coloridos”. (DIXON, 2007, p. 246 (tradução
nossa))112. A água, nos trabalhos artísticos com tecnologia, pode ser sintetizada por
computação gráfica como uma atualização performática do mito de Narciso; ou mesmo sua
função ser transferida para uma superfície que sirva de tela.
Não se pode negar que todo duplo digital é um tipo de reflexo “tecnologizado”. O que
há de diferencial quanto à sua definição é que este duplo é “uma imagem digital que espelha a
forma visual, e em tempo real, o movimento idêntico do intérprete ou usuário interativo”
(DIXON, 2007, p. 251 (tradução nossa))113. O autor indica que no caso de um duplo como
reflexo o performer está consciente de sua presença e as movimentações de ambos estão em
sincronia. Por outro lado, nos trabalhos artísticos nos quais o duplo digital está como outro
111
has been used to produce a range of different forms of imitation and representation which reflect upon the
changing nature and understanding of the body and self, spirit, technology, and theater. (DIXON, 2007, p.
245).
112
we appear to look at our own reflection, it is not a natural reflection, but a video copy — an electronic
simulation transmitted through lenses, chips, and cables, then reproduced as colored pixels (DIXON, 2007, p.
246).
113
a digital image that mirrors the identical visual form and real-time movement of the performer or interactive
user (DIXON, 2007, p. 251).
147
No decorrer de seu estudo, o autor comenta sobre a relação do duplo digital com a
noção do “Outro”, discutida primordialmente por Freud, e mais tarde por outros teóricos.
Dixon (2007) traz sua reflexão alicerçada em um artigo de Matthew Causey, Screen Test of
the Double: The Uncanny Performer in the Space of Technology (1999), no qual apresenta
uma discussão sobre o enfretamento do ator com seu “Outro” digital, no momento da aparição
do duplo.
acepções tais como: estrangeiro, hora ou lugar estranho, inquietante, desconfortável, sombrio,
obscuro, assombrado, repulsivo, sinistro, suspeito, lúgubre, demoníaco” (MARTINI;
COELHO JUNIOR, 2010, p. 373).
Os autores atentam para o caráter ambíguo da palavra “heimlich, que quer dizer
familiar, mas também significa algo secreto e oculto, o que, paradoxalmente, torna essa
palavra próxima de seu oposto, unheimlich” (MARTINI; COELHO JUNIOR, 2010, p. 373).
Pelo que os pesquisadores colocam dos apontamentos de Freud, o próprio entende o
unheimlich como uma “subespécie” do heimlich, ou seja, compreende o estranho como algo
que também é familiar, mas que estava oculto, secreto. A experiência de estranheza não está
relacionada sempre a tudo que é assustador; ela acontece quando algo que deveria estar oculto
emerge.
Freud ainda associa o estranho com a infância – quando o eu ainda não se distingue do
ambiente ou de outros seres – e a experiência do estranho auxilia nessa distensão (MARTINI;
COELHO JUNIOR, 2010). A outra associação é feita na literatura, quando o leitor, por
recursos do escritor, pode ter a sensação de incerteza sobre o reconhecimento de um
personagem como ser humano ou como um autômato.
Nesta última pontuação freudiana, chega-se a uma relação interessante entre o ser
“autômato”, considerado na literatura, e o duplo digital. A partir desse pensamento, é possível
sugerir que há uma estranheza na dança digital, e que ela pode estar na presença do duplo, ou
mesmo de assumir esse duplo como presença – capaz de “dar conta” de um acontecimento de
dança. O não estranhar poderia ser perceber que este duplo digital é carregado de sentidos e
possibilidades de afetação, sugerindo ainda que possa haver dança sem o corpo humano no
momento do seu acontecimento, o que não exclui a presença do mesmo no processo de
criação.
O estágio do espelho estaria também como formador da função do eu. Este processo é a
visualização que a criança faz do seu reflexo no espelho. Não somente isso, é também o
reconhecimento e a identificação com essa imagem, fundamental para a constituição do
sujeito. O estágio do espelho é a fase primordial na construção da imagem do “eu”.
Posteriormente, o sujeito parece ser assiduamente capturado por sua própria imagem. O que
149
indica que esse processo não é unicamente um estágio, nem qualquer experiência com o
espelho, mas a vinda da alteridade, “este momento da primeira relação consigo mesmo que é
irremediavelmente, e para sempre, uma relação com o outro” (OGILVE, 1991 apud SALES,
2005, p. 116).
O duplo digital como emanação espiritual, terceira categoria de Dixon (2007), significa
entendê-lo como um ser espiritual ou sobrenatural. “Duplos digitais representando
emanações espirituais ou encarnações do corpo se relacionam com noções de fantasmas,
corpos astrais, experiências extracorpóreas e projeção da alma” (DIXON, 2007, p. 255
(tradução nossa))116. Este duplo tanto pode ter a aparência de forma etérea, mais líquida e
transparente, quanto de partículas gasosas – essas são apenas indicações visuais do autor
para auxiliar a discriminação do duplo.
Com esta categoria de emanação espiritual, pode haver interpretações que a observem
como um entendimento dicotômico de corpo e mente, ou seja, o corpo e o duplo como
116
Digital doubles representing spiritual emanations or incarnations of the body relate to notions of ghosts,
astral bodies, out-of-body experiences, and soul projection (DIXON, 2007, p. 255).
150
espírito desse corpo. A intenção do autor é distinta, pois ele percebe que “o duplo digital
como uma alma ou emanação espiritual representa não a subjetividade dividida de
consciência pós-moderna, mas sim um símbolo do eu unificado, cósmico e
transcendental” (DIXON, 2007, p. 259 (tradução nossa))117. Assim, o duplo realiza uma
projeção do eu transcendente ou da alma, quando é colocado como uma emanação espiritual.
Nesse sentido, ele simboliza uma concepção mística do corpo digital.
Pela concepção deste autor, o mais usual dos duplos de computador é o manequim
manipulável, que executa papéis dramáticos miríade, “como um modelo conceitual, como um
deslocamento do corpo, e como o corpo de um ser sintético” (DIXON, 2007, p. 270 (tradução
nossa))118.
Nos trabalhos artísticos que se aplicam a essa categoria, o duplo pode surgir como
uma divindade mítica digitalizada. O avatar aparece em ambientes online e é gerado por
programas de computador. Este duplo digital não tem o compromisso de apresentar
características físicas humanas; pode representar seus desejos ou fantasias do usuário ou
do artista, bem como iconografias mercantilizadas. O que ascende dessa categoria não é a
sua capacidade de representar aspectos humanos e não humanos, mas que é uma
consciência, se torna “corpo”, um avatar de computador.
O duplo digital como manequim manipulável é chamado por Dixon (2007) também
de fantoche, que nos casos de performance de dança digital podem ser produzidos, por
exemplo, no software Life Forms119. O duplo como fantoche é elaborado por
características dadas pelo programa, e o seu movimento fica a cargo da biblioteca de poses
117
The digital double as a soul or spiritual emanation represents not the split subjectivity of postmodern
consciousness, but rather a symbol of the unified, cosmic and transcendental self (DIXON, 2007, p. 259).
118
as a conceptual template, as a replace¬ment body, and as the body of a synthetic being (DIXON, 2007, p.
270).
119
Disponível em: <http://charactermotion.com/products/danceforms/>. Acesso em: 20 mar. 2014.
151
O duplo digital pode ser um potente gerador de afetação, provocar inúmeras reações no
público, parecidas ou distintas das que o corpo humano proporciona. Os desdobramentos de
sua presença, das possibilidades de relações e simbologias, garante o acontecimento artístico.
Ele não só faz parte de uma composição visual de formas e cores que podem interessar aos
olhos do espectador, como essa mesma visualidade pode trazer catacterísticas de identificação
pessoal, social, cultural. Nesse sentido, a afetação pressupõe uma aproximação.
As categorias estruturadas por Dixon (2007), bem como as análises que a partir delas
são desenvolvidas, revelam a notável presença deste duplo, corpo digital, como matéria da
120
The alter-ego double is the dark doppelganger representing the Id, split consciousness, and the schizophrenic
self. (DIXON, 2007, p. 269).
152
arte. Essas análises reiteram a necessidade de pensar a criação em dança para esses novos
“seres” que partiram do humano, mas que se tornaram “Outros”.
O duplo digital insurge reivindicando o seu status de matéria da dança, assim como
sempre foi o corpo. Com isso, ele provoca uma rebelião na concepção de matéria, de dança e
de movimento. A possibilidade de movimento e de acontecimento da dança se instaura, agora,
na presença do duplo produzido com essas tecnologias específicas.
O movimento era considerado aquilo que o corpo humano poderia fazer: como mover
braços, pernas e qualquer outra parte do corpo. Essa qualidade de mover é o que merecia a
atenção do criador. O corpo, por sua vez, “lugar” no qual o movimento era gerado, é
concebido até hoje como o conjunto biológico que pensa, sente, experimenta uma vida social
e que é humano. Dessa forma, o artista/criador detinha sua poética no relacionamento com
este corpo, e coreografando o seu movimento.
O que pode ser percebido como uma característica da dança digital é que ela surge nesse
contexto e tem sua origem, justamente, pela configuração desse contexto. Então, as sensações
que um artista possui em um trabalho que tenha uma projeção de vídeo, ou mesmo que um
sensor de um software é utilizado, são também novas em relação à utilização de uma roupa de
tecido, ou à luz de um refletor, ou do uso de uma cadeira. Principalmente, quando os
elementos que estão na relação cênica interagem com a sua ação, quando um movimento de
seu braço pode controlar o som ou direcionar a posição do projetor.
Nessa prática, parece que o foco não está só no corpo do dançarino e nos seus limites
físicos, que terminam nos seus orifícios, pele ou pelos, pois seu corpo foi projetado,
distendido. O corpo adquire funções não usuais quando um levantar de braço também conota
um controle de som ou outro elemento cênico, ou quando a captura da sua imagem produz
uma imagem de um duplo, que pode ser quase igual ao seu ou alterado. Isso implica no
ganho, pelo dançarino/criador, de uma responsabilidade maior: a de ser coautor na produção
desses elementos no ambiente, bem como de entender que sua ação afeta todo esse conjunto.
Como a presença do duplo provoca uma tensão nas questões de noção de movimento e
de acontecimento de dança, ele se torna uma insurgência, demonstrando a necessidade de
repensar a obrigatoriedade do corpo humano em qualquer mostra ou apresentação de dança.
155
No caso das configurações que o utilizam dialogando com o corpo em vivo, sua presença
reitera ainda a percepção também na perspectiva do dançarino.
Seja na dança com o artista em vivo e seu duplo digital, como naquelas configurações
que necessitam somente do corpo digitalizado, há atenção no planejamento e no
desenvolvimento da dança e de suas condições criativas. O duplo digital é também um
gerador de movimento de dança e sua presença exige novas considerações e agenciamentos.
Tal transferência obviamente é observada em seus aspectos físicos, das estruturas como
tamanho e forma às expressões e movimentos, mas não como uma condução "direta", ou seja,
na transferência de substâncias entre organismos. O corpo por ter suas informações capturadas
não as perde para a tecnologia e para o duplo digitalizado. Essas informações são traduzidas
em outra linguagem e matéria. A sensação é de que o corpo foi transladado, transferido em
alguma instância, embora seja Outro.
O duplo digital é ainda uma consequência dos tipos de processos com as tecnologias na
poética em Dança: na intenção e descobertas na produção dos aparelhos e no processo de
criação com os mesmo. Já que essas tecnologias produzem imagens, como o duplo, reitera a
156
questão da Dança como arte visual – aludida por Aristóteles (1987) quando colocava a Dança
como uma arte dedicada aos olhos.
A diferenciação dessas imagens e a relação delas com o duplo pode ser melhor
estipulada com a explicação de Flusser (1985). Tendo em vista as imagens com interferência
humana através de máquinas, temos o duplo digital pertencente ao grupo das imagens
técnicas, já que “trata-se de imagem produzida por aparelhos” (FLUSSER, 1985, p. 10). Além
deste autor, há outro que também se dedica ao estudo desse tipo de imagens, Josep Domènech
(2011, p. 8), compreendendo-as como “lugares complexos nos quais se reúne o real, o
imaginário, o simbólico e o ideológico, e nos quais, portanto, iniciam-se constelações de
significados”, fortalecendo todas as possibilidades de interpretações geradas pelo duplo, seja
com associações míticas, psicanalíticas ou qualquer outra.
Ambos, Flusser (1985) e Domènech (2011), direcionam as suas análises para a imagem
técnica, no entanto, ao contexto da poética da dança digital interessa tanto a imagem técnica,
quanto a espontânea. Na Dança, mesmo utilizando uma projeção (imagem técnica), não seria
considerada somente a imagem que se basta em uma superfície plana, mas a que é construída
157
com essa superfície em conjunto com as outras superfícies: tudo o que irá compor a
possibilidade de visualidade daquele trabalho em questão. Com isso, é emergente uma
interseção entre essas imagens técnicas e espontâneas. Há a possibilidade de existir, em um
trabalho artístico, tanto uma quanto a outra, e/ou as duas em diálogos, entremeios, interseções,
justaposições.
Os elementos da imagem que fazem parte do espaço cênico estão inseridos no campo do
visual, que “está repleto de fenômenos oferecidos à visão e ao olhar, sem a necessidade de
terem sido gerados para essa contemplação concreta” (DOMÈNECH, 2011, p. 41). No
entanto, como adverte o próprio autor, o visual – aquilo que é passível de ser visto – se
relaciona com o visível, que é o campo da visibilidade do observador, determinado não
somente por fatores biológicos e psíquicos, se não culturais.
A lógica de composição da imagem está no campo do visual. Ela está naquilo que o
artista, em sua intenção construída individual e culturalmente e em comunhão com a
158
A imagem é uma condição existencial desse corpo gerado na relação entre o humano e o
digital, pois, sem ela, ele não é visualizado; não se percebe a sua presença. A forma
bidimensional ou até tridimensional de algumas tecnologias não isenta de significados a
imagem produzida através delas. Essa forma não é desprovida de intenção ou sentido. A
captura em vídeo, por exemplo, consegue representar expressões faciais. Notadamente, o
produto gerado com a interface tecnológica digital que será produzido e analisado nesta
investigação é parte de um conjunto complexo, carregado de intenções e interpretações –-
esse conjunto é a imagem.
A forma corpórea digitalizada é uma imagem, mas não a totalidade dela. Essa forma é
uma imagem que faz parte de uma composição da imagem. A forma corpórea se diferencia
dos outros elementos da imagem, talvez pela sua referência direta ao corpo humano. Dixon
(2007) denomina essa forma corpórea de digital double, ou seja, duplo digital. O resultado
que se obtém da relação entre corpo e tecnologia digital é o que se identifica aqui como o
potencial poético da dança digital.
Assim, o duplo como imagem se aproxima à imagem dialética proposta pelo filósofo
Walter Benjamin (1989 apud DIDI-HUBERMAN, 1998), enquanto são conferidas a ela
informações que ultrapassam a sua concretude. Ou seja, uma imagem não se finda no espaço
onde a compõe, longe disso, ela continua nas ações que provoca, em diálogos com os corpos
afetados.
O filósofo Walter Benjamin (1989 apud DIDI-HUBERMAN, 1998) rompe com a razão
moderna, quando na análise da imagem, propõe o conceito de imagem dialética, na qual os
tempos se encontrem não em uma forma linear de percepção. Para o filósofo, a imagem é a
dialética em suspensão. Nessa temporalidade, as coisas não se desenrolam como em uma
cadeia sequencial, ela é, portanto, uma imagem fragmentada. Talvez por isso, em trabalhos
contemporâneos, façam-se encontros em temporalidades distintas. Em performances, são
colocados elementos que fazem alusão tanto a um tempo passado, quanto futuro, sem
necessariamente limitar-se a qualquer um deles. Mesmo que elementos cênicos conotem um
período histórico ou cultura, por exemplo, não se limitam a essa significação, podendo
desencadear gerações de sentidos diferentes em pessoas específicas.
A hipótese de Walter Benjamin (1989 apud Didi-Huberman, 1998) de acordo com Didi-
Huberman, é que toda imagem de arte por mais simples que seja não se reduz a uma pura
visualidade. Ela sempre sugere uma transportação, metaforicamente, para algum tempo e/ou
lugar, aberta a muitas interpretações. O argumento dos autores corrobora para compreender o
potencial simbólico da dança. Ela traz vários elementos em sua composição, como elementos
de cena, indumentária, som, luz e até mesmo o movimento; todos eles podem carregar
informações explícitas ou implícitas de um período histórico ou de ambientes específicos. As
conexões estabelecidas a partir desses elementos, visuais ou não, com ambientes ou épocas
pode ser distinta em cada pessoa, seja ela o artista/criador ou aquela pessoa que visualiza a
criação.
aspecto de particularidade subjetiva. Louppe (2012) fala da relação entre corpos e toca no
tema da formação da imagem do corpo:
(...) e o corpo do outro nos seus suportes, nos seus contatos ou mesmo na sua
observação tátil ou visual, revela o meu próprio corpo. Essa busca raramente
passará pela imagem ou pela figura anatômica, mas, sobretudo, pelas
sensações e intensidades. (LOUPPE, 2012, p. 72)
A relação entre movimento e imagem pode ser refletida através de dois aspectos: o
primeiro seria entender que o movimento, o qual um artista e/ou seu duplo digital executa,
pode se concretizar ainda na percepção e no imaginário de quem assiste esse movimento
acontecer, não somente nos deslocamentos de alguma parte do corpo do artista. O segundo
aspecto é compreender este movimento como parte de uma imagem, ou seja, ao mesmo tempo
em que ele existe e segue em um fluxo, ele transforma a imagem da qual é constituinte.
Para entender a forma pela qual os duplos digitais são constituídos e, constituidores de
imagens, seria interessante deslocar o conceito de corpo e, também como aconteceu com a sua
percepção, ampliar a sua utilização. Nesse deslocamento, é pertinente considerar que essa
162
forma digitalizada do corpo é parte dele em sua forma transladada, promovendo experiências
sinestésicas, e é carregada de intenção projetada nela. Sugere-se a compreensão de que esse
corpo seja um corpo dialético, ele transbordou do corpo físico e criou relações e diálogos.
O pressuposto da imagem se torna uma poética dentro da poética da dança digital. Ele
envolve elementos de visualidade e, dentro delas podem estar corpos e/ou luzes e/ou qualquer
tipo de objeto ou forma. Esse processo, que envolve a elaboração e organização desses
elementos, formas, pode ser entendido como uma poética da imagem, que não deixa de ser
uma reverberação da dança digital. Em primeira instância, ela amplia o entendimento de
Dança, de corpo e de movimento na dança. Pensar na poética da imagem é entender os
arranjos que o artista, numa relação com a tecnologia, pode propor como lógica de criação,
através de elementos visuais da cena.
Para essa articulação de formas digitalizadas e ideias, que pode construir dramaturgia e
coreografia, é adotada nesta investigação uma proposta de neologismo na tentativa de
entender esse processo. A imagemtologia aparece como um termo propício para abrigar as
ideias que permeiam a poética da imagem. Este pressuposto está conectado a outros, também
possíveis pressupostos da poética da dança digital, que são o da integração com a tecnologia
digital, a transitoriedade e as várias possibilidades de matéria da arte (principalmente o
duplo).
O termo imagemtologia pode ser entendido como a lógica que rege o conjunto de
pensamentos, sentidos, imagens dialéticas, ou ainda, entender o sentido da gestualidade, do
movimento, do deslocamento, da relação entre os elementos, e também a relação com o todo,
e da proposta artística para a criação do trabalho.
163
Dentro dessa análise, são considerados os corpos que realizam, constroem esse trabalho,
e propõem informações e ações no ambiente, e que, por sua vez, entram em contato com
outros corpos; todos em processos de negociação com essas informações e ações, e propondo
novos entendimentos e novas ações em uma construção e reorganização contínua.
Em cada extremidade do retângulo era posicionada uma plateia, de modo que elas
ficavam uma em frente à outra e a apresentação acontecia no espaço entre elas. Apesar dessa
organização, elas não se viam em quase toda a execução, e a conjuntura visual que era
121
Todas as imagens de Argumentos a favor de laoscuridad (2007) são frames retirados do DVD, cedido pelo
próprio artista para essa pesquisa acadêmica.
165
Edgardo Mercado (2007) elabora uma composição de imagens, cujos elementos visuais
são os próprios dançarinos, os duplos sombra deles, duplos digitais, palavras e outras figuras.
Estas últimas podem ser observadas como formas geométricas. Todos são imagens e também
elementos dela que foram analisados em dois agrupamentos: o corpo sombra e as formas
geométricas, por entender ambos como expoentes da experiência estética nesse trabalho. O
objetivo é compreender o que eles contribuem na percepção de princípios da poética de
Edgardo Mercado (2007), e, principalmente, na reflexão de pressupostos para a poética da
dança digital.
166
O duplo sombra de forma alguma pode ser considerado como uma exclusividade da
dança digital. As sombras, sejam elas de objetos ou dos corpos humanos, são matérias da arte
recorrentes em trabalhos de Teatro ou Dança. O que o duplo como sombra de Argumentos a
favor de la oscuridad (2007) agrega na discussão poética é em relação ao contexto que ele
está sendo utilizado, ou seja, como ele foi produzido, a forma como ele está sendo organizado
e como se relaciona com os outros aspectos da imagem e da dança.
No comentário de Dixon (2007, p. 250), aparece uma única relação entre o duplo e a
sombra: “O duplo sombra do alter-ego na performance digital é igualmente um suplente
(substituto alternativo) e, invariavelmente, uma encarnação obscura” (DIXON, 2007, p. 250
(tradução nossa))122. Essa declaração aponta para um entendimento deste tipo de duplicata-
sombra como um desdobramento do duplo alter-ego. Talvez, esse tipo de duplo digital seja
uma interpretação cabível para os corpos digitais utilizados por Mercado (2007), viabilizando
a possibilidade de estabelecer uma associação psicanalítica.
Agregado a isso, outras observações podem ser feitas sobre os duplos. Em Argumentos
a favor de la oscuridad (2007), ao tomar-se como primeira referência de análise em relação à
visualidade deste duplo o aspecto do tamanho, é possível observar que ele parece ganhar a
122
The shadow double of the alter-ego in digital performance is likewise an alternate, and invariably darker
embodiment.(DIXON, 2007, P. 250)
167
qualidade de semelhança com o corpo humano, como um efeito poético no qual a duplicata é
quase do mesmo tamanho do corpo que o gerou. Para obter este efeito, os dançarinos ficaram
posicionados próximo às telas e distante dos projetores. Isso é o mais recorrente, contudo, em
alguns deslocamentos dos dançarinos, esses corpos são aumentados ou minimizados.
O tamanho do duplo como sombra é produzido pela distância entre uma pessoa e a fonte
luminosa, neste caso o projetor. Quanto maior a proximidade, maior será a sombra, e quanto
menor, ela se aproximará do tamanho do corpo. Uma sombra grande parece um gigante e
pode gerar inúmeras associações a partir dessa ideia, ao passo que uma sombra pequena pode
conferir um aspecto lúdico ou outras inferências.
A distância entre corpo e tela e corpo e projetor interferem na forma deste duplo, e por
isso exigem do dançarino um arranjo na percepção espacial e posicionamento – um trabalho
de cognição, assim como vários outros, e também de organização do corpo no espaço. A
relação com essas tecnologias, em função de suas características procedimentais, entra em
negociação com a coreografia e com a dramaturgia do trabalho artístico. Nos aspectos
coreográficos e dramatúrgicos, interessa como essas “questões são assimiladas, resolvidas,
reorganizadas ou ignoradas pelos artistas em seus corpos, a partir do aproveitamento que
fazem do repertório de ações e conhecimento que dispõem” (BRITTO, 2011b, p. 188). Estas
são escolhas que “estão ancoradas em complexas lógicas de afinidades eletivas que o corpo
estabelece involuntária e naturalmente para definir seu conjunto de possibilidades interativas
em cada situação” (BRITTO, 2011b, p. 188).
O tamanho é uma variável tanto da sombra quanto dos corpos digitais, que influencia
nas ideias presentes em um trabalho artístico, concordando tanto com as compreensões de
imagem técnica de Flusser (1985) e Domènech (2011), já que são produzidas com o suporte
de uma tecnologia e com intenção e manipulação humanas, quanto da imagem dialética de
Benjamin (1989 apud DIDI-HUBERMAN, 1999), pois suscitam interpretações no espectador.
Os conceitos dos autores reforçam a ideia de que em uma imagem há possibilidades de
afetação, de provocar sensações e pensamentos, em quem dança e em quem assiste, a partir de
um diálogo entre as características e contextos do corpo e da forma de apresentação da obra.
Em relação a este trabalho, Mercado (2007) optou por uma sombra que se assemelhasse
ao humano na maioria do tempo. Por essa sombra adequar-se a um tamanho natural de uma
pessoa, ela alude a uma aproximação do real, no aspecto humano. A sombra enquanto sombra
é real, mas nunca o humano. E este, o dançarino, não pode ser visto claramente no decorrer da
execução cênica. Ele é observado na penumbra, na transparência de uma tela. Na Figura 29,
168
pode ser observado o corpo do dançarino atrás da tela e a sombra que ele gera na relação com
o projetor.
duplo digital, bem como os espaços de estruturas palpáveis – telas, piso – e o espaço de
estruturas impalpáveis e aludidas – espacialidades “ilusórias” construídas com projeção de
imagem – além de qualquer ação e gesto incluindo a configuração e relação com objetos,
entre outros.
Apesar da coreografia também ser uma ação do corpo com propósito cênico, e também
caber dentro do movimento o seu aspecto semântico e intencional, quando se atinge a
perspectiva da ação enquanto construção de sentido chega-se ao campo da dramaturgia da
dança. Ambos os campos se misturam, apresentam fatores comuns e funções codependentes,
cujas interseções deveras marcantes formam linhas divisórias tênues e quase imperceptíveis.
O movimento, os corpos, o nexo semântico, a espacialidade, a ação, fazem parte da
coreografia assim como da dramaturgia, a diferenciação atém-se: à organização do
movimento em relação à forma, tempo e espaço e ao sentido desse mesmo movimento,
respectivamente. Em geral, os diretores e coreógrafos de Dança exercem as duas funções ao
mesmo tempo para construir suas temáticas.
Mercado (2007) utiliza a relação do corpo com o aparato tecnológico para construir
imagens que argumentam em favor de sua reflexão temática. Ele intencionalmente organiza as
imagens para que sensações possam ser motivadas nos espectadores. Corpos, duplos-sombra e
imagens projetadas são elementos de sua conjuntura visual que são orientados pela “lógica de
estruturação corporal e artística, a partir da qual foram formuladas, que continuam a produzir
ressonância neste contexto”. (BRITTO, 2011b, p. 188). Mercado (2007) coreografa qualquer
uma dessas imagens sem hierarquia ou preconceitos. Cada corpo, e sua respectiva imagem,
foi conduzido por um pensamento coreográfico. Todos os elementos visuais da cena foram
“orquestrados” poeticamente: um apuro técnico para a expansão do visível (DOMÈNECH,
2011).
171
No caso desse espetáculo, fica ainda anunciada uma combinação entre a imagem
técnica, a composição visual da tela e a imagem espontânea, os dançarinos e as outras
imagens, o piso, o projetor, que podem ser vistos na penumbra da tela. O espaço cênico de
visualização, criado por Mercado (2007), não é plano; tem perspectivas e volumes concretos e
espontâneos, além dos sugeridos na imagem técnica. Sendo assim, esse trabalho artístico
demonstra que o campo visual da dança digital também acontece nas interseções entre esses
tipos de imagem.
O que se destaca neste trabalho específico é a constatação de que não há uma hierarquia
entre corpo humano e digital, levando a reconhecer que o movimento e a dança não estão
somente no corpo, mas também em uma imagem – em um elemento visual cênico. As
prerrogativas de um corpo, e de movimento, permanecem redimensionando, se respeitada a
distensão de seus entendimentos, para o que a dança digital agrega.
A observação desta obra específica da dupla desencadeou, com posterior apoio nos
autores de imagem, a seguinte relfexão: o duplo-sombra é um elemento compositivo da
imagem. Ele é basicamente uma imagem que ganha concretude na tela onde a sombra se torna
visual e se dispõe ao visível. Essa tela pode ser qualquer superfície em que apareça a sombra,
como uma parede, um tecido, um papel, um chão. Esse corpo também é um compositivo
visual, porque ele é parte da imagem que está dentro de outra imagem. É possível observar
isso ao se pensar esse processo organizado como camadas de percepção visual, quais sejam: o
duplo-sombra, alguma outra figura ou elemento visual que supere o tamanho dele ou o
penetre e na qual ele está incluso; assim sucessivamente, até atingir a total amplitude de
visibilidade ocular.
172
Ao trabalhar com tecnologias que também são instrumentos de outras áreas, como as
câmeras, os computadores e programas, cujas finalidades abrangem tanto a criação, edição
quanto a exibição de imagem, a dança digital angaria um produto derivado da coordenação
desses equipamentos – não é somente de corpos humanos ou de cenários, como em outras
modalidades de dança. Tal qual em todas elas se constrói algo para ser exibido, salvo
exceções, a visão tem sido considerada o foco dos sentidos ao se pensar na recepção do
espectador. A dança digital tem uma tendência, e gosto, em produzir sinteticamente as
imagens, que são imagens digitalizadas. Este pode ser um senso para o seu sentido de belo,
porém como Favaretto (1996) indica, o belo não pode ser mais seguido como um modelo
regulador.
Consoante esta dança precisa projetar as imagens criadas, ela demanda contextos,
ambientes próprios, nos quais apresentem condições favoráveis para a sua ocorrência. Isso
significa espaço ou telas onde as imagens serão projetadas, iluminação apropriada para que
não ofusque a luz do projetor – tanto a artificial de lâmpadas ou refletores, quanto a natural,
janelas, portas ou frestas que permitem alguma passagem de luz.
O jogo entre claro e escuro e o valor simbólico da luz é um dos elementos poéticos de
Argumentos a favor de la oscuridad (2007). A existência do duplo-sombra apregoa ainda o
contraste entre a claridade e a escuridão ou o excesso de luz e a penumbra. O não ver
completamente o corpo ou deixar perceptível que há outro corpo ali, atrás da sombra e por
trás de alguma tela que não é claramente visível, o estar atrás de algo, é um esconder-se. Não
só a existência, bem como a intensidade da aparição desse corpo, dependem da dosagem entre
claridade e escuridão.
perceptível, Figura 33, o corpo do dançarino: um anúncio de que ele está presente e é a fonte
de distensão da sombra.
O não saber, o não ter certeza, a incerteza de como aquilo se constrói, e o que é
realmente, amplia as possibilidades de percepções. A incerteza facilita ou proporciona a
interpretação aberta, e o fruidor pode ou deva criar sua própria impressão interpretativa da
obra – em verdade, ele sempre cria. Ao estabelecer uma relação com os estudos de Domènech
(2011), é possível deduzir que o espectador vê a apresentação, e a partir de suas referências,
entendimentos, conceitos, sensações, conhecimentos, memórias, organismo, faz associações
entre aquilo que é posto na visualidade e suas características, gerando novos conceitos e
entendimentos: dessa forma ele acessa o seu visível e produz sua visão. Inspirado na
discussão trazida por Didi-Huberman (1999), pode-se compreender isso como um processo
dialético na percepção da imagem. Esse processo é natural, no entanto, potencializado quando
em uma obra aberta para a incerteza.
passo que o incerto traz várias probabilidades que a cada uma delas se conecta uma rede de
diferentes associações.
Essa duplicata faz parte da poética da imagem e é produzida na relação com o ambiente,
com as condições de iluminação, de espacialidades, e com as matérias da arte. Ele é também
um digital double (DIXON, 2007), e ao mesmo tempo uma imagem dialética (BENJAMIN,
1989 apud DIDI-HUBERMAM, 1999) que se configura como uma interface entre o
dançarino e o espectador.
Elas podem fazer alusão à formação acadêmica de Mercado (2007), o que anuncia um
aspecto autobiográfico na obra. Todavia, isso não define Argumentos a favor de la oscuridad
(2007) como um trabalho que utiliza a vida do próprio criador como eixo temático, mas que,
178
como qualquer trabalho de criação, possui elementos que fazem parte de suas referências ou
com os quais o artista elabora o seu ponto de vista e o próprio gosto (PAREYSON, 1997).
123
Disponível em: http://www.edgardomercado.com.ar/pages/contacto. Acesso em: 06 jul. 2015
179
Como aqui a análise incide sobre um trabalho que utiliza aparatos tecnológicos digitais,
esse fluxo irá considerar ainda o que a presença desses aparatos gera como resultado. As
tecnologias geram imagens que estão dentro desse fluxo, imagens que funcionam como
interface entre os criadores e também executores e o fruidor. Os elementos do visual são uma
interface dentro do fluxo.
Uma pessoa, enquanto o fruidor que assiste ao DVD, e que está imersa na rede de
conexões, faz correlações e entendimentos em sua percepção das imagens. Linhas e
retângulos são as formas que predominam. As linhas e retângulos possuem uma aparência de
portas, Figura 36, que abrem e fecham. As formas apresentam um dinamismo, em relação ao
posicionamento espacial e também ao tempo em que permanecem na projeção.
180
O primeiro deles é compreender que esse termo, assim como a poética, indica uma
pluralidade de formas, a depender de cada trabalho artístico. Outro aspecto relevante é
entendê-lo como uma conjuntura maior, a qual abriga tanto a coreografia (grafia de corpos,
movimento) quanto a dramaturgia (entendimento do enredo, ação e acontecimento), pois
ambas interferem na pensamento de composição e na disposição das imagens.
Nesse contexto, se percebe qaulquer poética como algo aberto e flexível, assim,
reorganizável. A imagemtologia, lógica da poética imagética, de Mercado (2007) emerge no
diálogo entre corpos, duplos e figuras. Duplos que se deslocam no ambiente formatado por
essas figuras dinâmicas, e assim como os duplos, elas se lançam para as possibilidades,
comportamento que suaviza o estático.
A poética da dança digital pode trazer uma unidade nos elementos cênicos, sem uma
valoração hierárquica ente eles: o corpo humano pode ter a mesma importância que os duplos;
assim como as imagens que são produzidas digitalmente e são projetadas ou exibidas em
cena. Essa poética exige uma imagemtologia, logo, demanda perceber todos esses elementos
compositivos da visualidade cênica – corpos, figuras, entre outros – como passíveis de
organização sequencial de movimentos, nos casos cujas configurações apresentam imagens
e/ou corpos. Todos eles se movem!
Observar ideias e conceitos, a partir do ponto de vista de quem faz a prática deles, ou
seja, de quem produz arte, pode gerar outros sentidos que potencializam os conhecimentos
gerados pela e na experiência. O corpo/pesquisador/artista não se contentava somente com as
leituras e a escrita para desenvolver a análise, as reflexões. Esse corpo necessita se lançar para
o “experimento” artístico.
sentimento. Como uma reverberação do trabalho de Mercado (2007), surge Despetala (2014),
o cume de um processo que potencializou o início de outro.
Este trabalho artístico, principalmente a relação que pode ser percebida no seu contexto
de criação, fornece aspectos de reflexões que permitem discutir sobre as possibilidades
poéticas da dança digital. O intuito é pensar nessa dança como fruto de conexões e
negociações que oferecem novos entendimentos, principalmente na perspectiva do dançarino
– envolvendo o processo criativo, a interação com a matéria da dança, e com o ambiente.
A reflexão, inspirada por este trabalho artístico, mescla uma escrita descritiva do
processo criativo, com argumentos estudados sobre a poética da dança digital. Com o relato
dessa experiência, pode-se perceber de forma mais detalhada uma poética possível em dança
digital, compreendendo alguns aspectos técnicos, as condições do ambiente e a interação com
a matéria da arte.
184
Das próprias memórias infantis da vivência com a dança surgiu a imagem das rosas
vermelhas, presente materno, frequente, após as apresentações de balé. E por outro lado, do
estudo de dança digital e dos resquícios da poética de Edgardo Mercado (2007) despontou o
duplo. Os dois, as rosas e o duplo, precisavam ser unidos em um trabalho artístico. Mais que
isso, ambos necessitavam coincidir, e por essa razão foi pensado em: um duplo de rosas, que o
duplo recorrente da dança digital fosse preenchido pelas rosas vermelhas das lembranças da
infância.
O que é possível perceber, também no aspecto referente aos materiais da dança digital, é
que todas as tecnologias não são amplamente conhecidas em termos de suas potencialidades,
mas dentre elas, estaria ainda alguns software que possuem um custo de aquisição da licença,
bem como curso de tutoria, no intuito de conhecer suas respectivas funções. No Elétrico –
Grupo de Pesquisa, houve a oportunidade de fazer algumas experimentações com o software
Isadora124, orientadas pela professora líder do Grupo.
Pelas ações contidas no software, bem como pela proximidade com a sua linguagem e
programação, o Isadora foi escolhido como uma das tecnologias para ser utilizada no
processo poético do trabalho artístico. Uma de suas funções manifestava a possibilidade de
mesclar dois vídeos, com algumas variações na posição de suas respectivas imagens. No caso
de Despetala (2014), o que interessava era colocar uma imagem dentro do duplo digital.
A possibilidade de usar o Processing havia sido descartada logo no início, então, fez-se
uma busca dentro das funções do Isadora, para encontrar o efeito que pudesse ser similar, por
exemplo, ao que o Processing poderia executar aliado ao kinetic (sensor que captura
informações do corpo humano); a intenção era criar um duplo com botões de rosas
sintetizadas pelo programa.
A procura não foi bem sucedida, e como em geral acontece em toda poética,
negociações com o ambiente são estabelecidas, se configurando mais um dos pressupostos
possíveis: a abertura. Novos entendimentos se formam, e continua o processo de articulação
entre a vontade criadora e as possibilidades ambientais; neste caso, também estão incluídas as
tecnologias digitais.
124
Disponível em: <http://troikatronix.com/>. Acesso em: 06 jul. 2015.
186
Essa filmagem resultou em pequenos vídeos, que foram editados de forma simples no
Windows Movie Maker, mesclando etapas diferenciadas, e brincando com a dinâmica do
movimento e não movimento/deslocamento. A edição, sem qualquer efeito do programa, foi a
que melhor se adequou posteriormente na montagem com o Isadora.
O vídeo, para gerar o duplo, teve um processo ainda mais simples. Ele foi gravado no
Teatro do Movimento da Escola de Dança da UFBA, em tomada única, sem cortes. Como o
figurino era branco, o fundo da gravação precisava ser preto para acentuar a presença do
duplo, por isso, as próprias paredes do Teatro serviram de fundo, com a luz de serviço para a
iluminação. Essa captura foi toda em câmera parada, apoiada sobre uma mesa, e com a
distância necessária para enquadrar o corpo inteiro.
Depois da etapa de gravação, foi necessário conferir como os vídeos iriam se comportar
na programação do Isadora e também na finalização que culmina no movie, com a ação de
combinação das duas filmagens. Nessas etapas realizadas em conjunto com Ludmila
Pimentel, foi percebido a necessidade de nova gravação da dança, a fim de testar em qual das
amostras de vídeo a ação dos programas se adaptaria melhor. Alguns programas que geram o
187
vídeo final, movie ou um DVD, subtraem as partes superior e inferior da imagem. Isso
cortaria partes do corpo: mãos, braços e pés, a depender do movimento executado (como
levantamento de braços e aproximação da câmera).
A partir de uma das ações conhecida do Isadora, tinha-se a indicação de que era
necessária a gravação de dois vídeos: um com o corpo para gerar o duplo digital e o outro
com as rosas; ou apenas uma gravação para gerar um vídeo de rosas, posteriormente
combinado à captura em tempo real. Com isso, deveria ser feito no momento da apresentação,
a captura do corpo do artista com a webcam, ou com outra câmera acoplada ao computador,
que funcionasse como sensor.
A imagemtologia, por ter poética, processo, vai se diferenciar a cada artista e, talvez, a
cada trabalho. Ela pode ainda indicar o modo de compreensão criativa de cada arte, por
exemplo, a composição em Dança apresenta distinções da composição em Teatro, ou mesmo
em Artes visuais. Isso não impede que essas diferentes imagemtologias possuam pontos de
convergências, até com critérios da poética.
125
As fotos da performance Despetala (2014) apresentadas no CUCA, em Feira de Santana, Bahia, foram feitas
pelo fotógrafo Anderson Moreira.
189
As partes do todo podem até ser contraditórias e bem diferenciadas, mas o conjunto que
elas formaram é uno. O todo não é somente a soma e/ou a combinação das partes. Ele é muito
mais que isso: “como dois e dois são cinco” (VELOSO, 1971).
A dança digital não compreende a tecnologia apartada de sua construção poética, muito
menos de sua experiência estética – de seu trabalho artístico. A tecnologia não é somente um
adereço que pode ser descartado sem que modifique sua composição, tão pouco o ser humano
é dispensável. Eles estão juntos, complementando-se, distendendo-se. Nela, convêm outros
entendimentos de movimento e outros focos para sua composição, e não só o corpo humano.
Uma arte que inscreve em sua poética a tecnologia digital, envolve tempo dedicado aos
conhecimentos dos aparelhos, trabalho com eles e ajustes técnicos. Esse período de trabalho
pode se equivaler ao mesmo período dedicado a uma composição coreográfica, ainda que esta
não seja rígida e permita improvisações. Por mais que as tecnologias digitais possam parecer
de estrutura funcional fixa, a imprevisibilidade é recorrente nos processos de construção e
190
O planejamento é importante em qualquer tipo de dança, mas, sendo ele feito, não
garante que os resultados sejam exatamente correspondentes às expectativas; assim também é
com as ações, os movimentos, as imagens. A imagemtologia de um trabalho artístico não
pode determinar a sua apreciação.
A ação de Despetala (2014) era de propor, para aquele espaço, uma experiência estética
e, em consonância com as suas condições, inscrever a presença do duplo digital, de forma que
fosse a manifestação de pensamentos. Uma imagem que transcende o físico de estruturas
espaciais, e pode “penetrar” em quem a observa, oferece outra forma de experimentar aquele
espaço.
No caso desse trabalho específico, o objetivo era que o duplo digital ficasse no tamanho
aproximado do corpo humano, ou seja, ele deveria confundir-se com a dançarina; uma das
propostas de movimentação era o duplo parecer o corpo. Na apresentação, poder-se-ia ter a
126
LIMA, Dani. Café Filosófico – O que pode o corpo. 2012. Disponível em: <https://youtu.be/oE3aoW2xp4w>.
Acesso em: 10 jan. 2015.
191
dimensão que um saíra do outro e que quando estavam concedendo espacialmente, ou seja,
quando o corpo servia de tela para a projeção do duplo, aparentava somente haver a presença
do duplo (Figura 38).
Como o foyer não oferecia condições de manter suspensa uma tela de tecido, material
que geralmente é utilizado, foram feitos alguns testes para descobrir uma superfície adequada.
A parede pintada de tinta branca demonstrou melhor definição de imagem do que a tela de
papel vegetal, às vezes usada pelo Elétrico em suas atuações. A seleção do material da tela
que recebe a projeção é sempre mediada por vários fatores. As condições físicas do espaço, a
193
luminosidade, o tipo de imagem a ser projetada e a definição dessa imagem são aspectos de
orientação poética na dança digital, que faz uso do ajuste técnico para a visualidade.
Uma poética da imagem deve pensar, em como lidar com o duplo-sombra, ainda que ele
não seja elemento de sua imagemtologia. O duplo-sombra, obtido a partir da relação entre
fonte de luz e corpo, aparece no momento em que o corpo se interpõe entre a luz do projetor e
a superfície da tela. Quanto mais próximo da tela o artista estiver, menor será a sua sombra.
Esse duplo fatalmente surgirá, no acontecimento da dança com projeção, exceto quando
o projetor estiver posicionado em oposição ao dançarino, ou seja, atrás da tela e não em sua
frente. A coreografia de seu movimento poderá ser uma escolha, mas não se pode esquecer ou
ignorar, quando ele se faz presente.
Ele, o duplo-sombra (Figura 40), não foi um objetivo em Despetala (2014), mas era
inevitável que aparecesse já que o corpo serviria também de tela. Isso implicava que o
projetor estivesse à frente da dançarina e também da parede. Como na maior parte do tempo,
o corpo está encostado na parede, em virtude do diálogo com o duplo, o duplo-sombra fica
visível em poucos momentos.
A superfície de projeção de Despetala (2014) foi uma parede côncava (Figura 41) que
ficava entre uma escada e a entrada dos banheiros. Inicialmente, foi pensado em fazer o
trabalho em uma quina, aproveitando duas paredes perpendiculares. Contudo, isso foi
impossibilitado pela condição da decoração do próprio espaço. A parede reta não permitia
uma distância adequada do projetor para o tamanho da imagem. Por outro lado, a superfície
côncava ofereceu à imagem um surpreendente desdobramento de camadas (Figura 41) e, por
vezes, uma distorção do duplo.
Dessa forma, pode-se pensar que “uma ideia de dança é formulada corporalmente, a
partir das sínteses resultantes desses relacionamentos coadaptativos que o corpo estabelece em
seu contexto de existência” (BRITTO, 2011a, p. 3). Não considerar as condições espaciais
que um acontecimento de dança experimenta é ignorar o aspecto processual da lógica de sua
195
poética, bem como desconsiderar que o corpo e, por isso a dança, está em constante
transformação.
O que move o dançarino e como ele pensa no seu gesto ao dançar com o seu duplo
digital são questões colocadas nessa discussão. Além disso, ressalta, em relação à poética da
imagem, a percepção de corpo que faz parte de um conjunto visual orientado pela
imagemtologia do trabalho.
O ponto de vista do dançarino sofre uma transformação, tanto se o duplo for produzido
no momento da apresentação ou se ele é previamente sintetizado. Não é suficiente pensar nas
ações e gestos, que seu corpo está fazendo ou irá fazer, mas nos que o seu duplo também faz.
A existência do duplo é a comprovação de que suas propriedades e informações sofreram uma
distensão, e por isso a sua percepção corporal pode ser modificada.
O figurino foi planejado estipulando como base cromática a matiz branca por duas
razões: uma constrastando com o fundo preto da parede do teatro (local de gravação do vídeo)
e o branco do figurino, pois facilita a visualização das imagens das rosas vermelhas, no
processo de mescla dos vídeos na animação em softwear. E outra para receber a projeção,
uma vez que nas apresentações Branco é uma tonalidade interessante para esses trabalhos com
images sintéticas, ele reflete a luz e serve como tela; dessa forma o figurino branco contribui,
nesse trabalho, para composição da imagem.
A única peça criada foi o collant branco. A calça fora emprestada e a saia um
reaproveitamento de um figurino de dança afro. Mesmo não sendo pensada para este trabalho,
a saia trouxe contribuições interessantes para a movimentação. Ela é aberta na frente e em
suas extremidades frontais; na barra possui uma alça de cada lado para colocar um dedo da
mão. Com isso, a saia se levanta quando há dedos dentro das alças e as mãos podem guiar
seus movimentos sem segurá-la.
composição do movimento, o qual surge da proposta cênica, assim como pode emergir como
uma improvisação da experiência estética.
O duplo é uma ideia de permanência do “objeto”, corpo, que foi duplicado. Nesse
sentido ele põe fim, em alguma instância, à morte desse mesmo objeto. O duplo é uma
replicação, que pode por em “cheque” o domínio do eu, a presença do duplo questiona a
soberania do eu. O duplo está nas sombras, no reflexo, no espelho ou mesmo na lâmina
d’água. Esse duplo é o “Outro”, o estranho dentro da perspectiva psicanalítica. Ele surge
então não só na arte, mas na vida em modo geral, e de acordo com os estudos dessa área, ele
participa no processo de formação do sujeito.
O “Outro” é também o duplo digital, uma imagem dialética que necessita de contextos
específicos para a sua presença. Ele não é mais um simples reflexo, ao contrário, a tecnologia
o potencializa e o duplo ganha diversidade na sua sofisticação de forma e imagem. O duplo se
torna na dança uma transferência e distensão do dançarino – uma exteriorização do corpo, que
possibilita a realização de se ver e se reconhecer fora de si, se é que há esse “si”.
A partir do momento em que o duplo digital se torna uma imagem dialética, pressupõe
ainda a autonomia de sua presença, no sentido de que ele proporciona os seus próprios
sentidos. A visualização do duplo é uma experiência simbólica para o público, mas também
para o dançarino, que pode o reconhecer como “corpo” que carrega informações suas, mas
que já se emancipou e se tornou “Outro”.
maneira” (SUQUET, 2008, p. 537) estar dentro de um contexto em relações que provocam
contínuas transformações. Essa percepção de corpo é “uma rede móvel de conexões sensoriais
que desenha uma paisagem de intensidades. A organização da esfera perceptiva determina os
lances casuais dessa geografia flutuante, tanto imaginária como física”. (SUQUET, 2008, p.
537).
Na dança digital o artista compreende que seu corpo, sua percepção e seu gesto se
expandem. O dançarino se torna responsável por um conjunto muito maior que seu corpo ou
que seu eu. Ele se percebe dentro de um complexo dialético de elaboração de imagens e
sentidos. O processo de construção dialética da imagem se reorganiza na experiência, no
sentir, no perceber e no estabelecer de relações e entrelaçamentos.
202
Tudo o que há em um ambiente afeta em intensidades variadas. Pode ser que várias
pessoas decidam, por gosto ou mesmo por falta de oportunidade, ficar mais afastadas das
tecnologias digitais, e sendo artistas, não as utilizem nos seus trabalhos. Mas, é fato que elas
já se integraram nas artes e são exibidas constantemente, bem como são objetos de desejo de
muitos. Elas afetaram, ainda, as escolhas que são feitas para solucionar as questões de tempo
e distâncias, em processos artísticos. Se grande parte dessas tecnologias está na área da
Comunicação, e esta é feita entre e por pessoas, afeta aquilo que as pessoas fazem, em vários
aspectos da vida.
O que pode ser percebido como uma característica da dança digital é que ela surge nesse
contexto e tem sua origem justamente por ele ser configurado dessa forma. Então, as
sensações que um artista possui em um trabalho, que tenha uma projeção de vídeo, ou mesmo
que um sensor de um software é utilizado, são também novas em relação à utilização de uma
roupa de tecido, ou à luz de um refletor, ou de ter contato com uma cadeira, mas,
principalmente, quando os elementos que estão na relação cênica interagem com a sua ação,
quando um movimento de seu braço pode controlar o som ou direcionar a posição do projetor.
Nessa prática, parece que o foco não está só no corpo do dançarino e nos seus limites
físicos que terminam nos seus orifícios, pele ou nos pelos, pois o seu corpo foi projetado,
distendido e transladado. O seu corpo adquire funções não usuais, quando um levantar de
braço também conota um controle de som ou outro elemento cênico, ou quando a captura da
203
sua imagem produz uma imagem de um corpo, que pode ser quase igual ao seu, ou alterado.
Isso implica que o dançarino ganha uma responsabilidade maior, de ser coautor na produção
desses elementos no ambiente, bem como entender que sua ação afeta todo esse conjunto.
O pensamento faz parte do corpo, não está fora dele. Pelo contrário, o pensamento é
cada movimento que o corpo faz, e a cognição está em todos os sentidos e em todas as
funções. Assim, entende-se a experiência com as tecnologias digitais também como algo
corporalizado, que o corpo organiza e reorganiza nos seus processos cognitivos, sensórios,
fisiológicos, motores, que são todos fatalmente interligados.
Poder-se-ia afirmar que a dança digital é uma negação ao corpo? Seria apropriado
colocá-la como uma arte desumanizada, sem corpo, se mesmo quando não há uma presença
física do corpo humano em carne, se ainda nestes tipos de configurações artísticas existe um
processo de embodiment? Um videodança, por exemplo, não significa literalmente uma
ausência do corpo, mas, de outro modo, uma presença de sua transladação dialética, uma
presença naquilo que ele, o corpo, produziu com a interação com a tecnologia: um duplo
digital.
Por causa do tipo de efeito que são gerados pelos aparatos tecnológicos, a dança digital
promove outros desdobramentos do corpo humano, como uma emergência de sua poética. O
duplo é uma transladação de várias informações do corpo, contudo, a sua dialética –
possibilidade de afetação pela sua presença – coloca a Dança em uma crise de aceitação. A
sua atuação inevitável tende a ampliar a teia complexa entre o ser humano, a arte e a
tecnologia, em uma construção sem fim.
204
A criação em arte é produzida pela relação com a matéria. É sempre um jogo de ação,
permissão, organização, negociação, gerando multiplicidades de acontecimentos. A
transformação é inevitável e quem sabe irrevogável.
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
209
O ser humano é um operário, mas não de máquinas como pensava Flusser (1985). Ele é
um operário da própria ação, das suas ideologias, dos seus enganos, da arte e da sua ambição.
Talvez, a libertação esteja em pensar na responsabilidade do ato e do que é construído. Se arte
210
A teia se constrói inflada e acelerada, e parece que o ser humano (nós), perdeu-se nessa
construção. Ou isso seria apenas uma sensação induzida e simulada? O controle pode não ser
nunca absoluto, mas não isenta a potência da ação humana. A Dança é também as crenças que
possuem dela. O artista pode fortalecer, limitar, negar o que é o imensurável acontecimento
dessa arte. Quem qualifica ou valida o conhecimento que ela produz, senão o próprio artista?
A poética é uma pluralidade de possibilidades, por isso não há uma única poética de
dança digital, e sim: poéticas. Esta não se limita somente ao como fazer, ou mesmo o fazer
bem, ela é muito mais democrática do que parece, pois está presente em todo e qualquer
trabalho artístico. O juízo de valor, que cabe à poética, é do próprio artista que a está
construindo, pois o seu senso de justeza orienta suas escolhas e ações. Assim, chega-se aos
aspectos constitutivos mais flexíveis e variáveis que fazem parte de uma poética: a construção
(processo criativo), o gosto, as ações, as escolhas, a lógica de pensamento.
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