Emerson, Nietzsche e o - Animal Metafórico
Emerson, Nietzsche e o - Animal Metafórico
Emerson, Nietzsche e o - Animal Metafórico
"Estai atentos, irmãos, àquelas horas em que o vosso espírito prefere falar
por metáforas: aí reside a origem da virtude."
Nietzsche, in Assim falava Zaratustra3
Crawford4 propõe uma bem documentada resposta à questão de saber “como chegou
(1988: 211). A autora menciona uma larga matriz de influências, que inclui Eduard von
Johann Zöllner (cf. 1988: 305) bem como o influente ensaio de Gustav Gerber
1 Nietzsche, in Das Philosophenbuch (edição portuguesa: F. Nietzsche, O Livro do Filósofo, trad. A. Lobo, Porto:
Rés, s.d.). Este trabalho insere-se num projecto mais vasto, que pretende analisar os diferentes tratamentos
filosóficos da noção de metáfora. Com ironia, Jacques Derrida observou que, tradicionalmente, os filósofos
gostam de teorizar sobre a metáfora porque isso funciona como pretexto que os autoriza a utilizar metáforas.
Subentende-se, claro, que o seu uso não teria um cabimento legítimo na ordem da argumentação racional. De
entre os maiores autores do cânone filosófico, Nietzsche é, provavelmente, o que mais desafiou este
pressuposto. Neste texto propõe-se uma explicação para essa sua posição de princípio.
Este texto foi escrito na Universidade de Wisconsin-Madison, sob o patrocínio da Fundação Fulbright e da
Fundação para a Ciência e Tecnologia (bolsa de doutoramento PRAXIS XXI/BD/19778/99). Agradeço ao
Professor Lester Hunt os comentários e as sugestões que contribuíram para o resultado final.
2 R.W. Emerson, Nature, in Emerson – Essays and Lectures, New York: The Library of America, 1983, p.23.
3 “Achtet mir, meine Brüder, auf jede Stunde, wo euer Geist in Gleichnissen reden will: da ist der Ursprung
eurer Tugend.” (Also Sprach Zarathustra, Berlin: Walter de Gruyter, 1968, p.95). Edição portuguesa: F.
Nietzsche, Assim falava Zaratustra, trad. P. O. Castro, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p.87.
4 C. Crawford, The beginnings of Nietzsche’s Theory of Language, Berlin: de Gruyter, 1988.
1
influência que o filósofo americano Ralph Waldo Emerson terá tido nesta tese
propor que terá sido na sua leitura de Emerson que Nietzsche terá recolhido a primeira
Verdade e a Mentira num Sentido Extra-Moral são demasiado evidentes para serem
matéria. Para tal, utilizarei a teoria da linguagem que Emerson condensa no Capítulo IV
do seu ensaio Nature como fio condutor de uma comparação entre as suas noções e as
ideias de Nietzsche sobre o mesmo assunto. Nesse ensaio, Emerson propõe uma conexão
funcionam como signos dos factos naturais; b) portanto, há factos particulares que se
divisão delineada por Emerson, tentando mostrar as várias linhas de força através das
5 G.J. Stack, Nietzsche and Emerson – An elective affinity, Athens: Ohio Press University, 1992.
6 Stack, 1992: 19. A influência de Emerson sobre Nietzsche foi, de acordo com Stack, duradoura e profunda.
Para além das suas teorias sobre a linguagem, a marca do escritor americano estende-se sobre um gama vasta
de ideias, algumas das quais centrais ao pensamento de Nietzsche. Refiram-se, como exemplo, as suas
reflexões sobre a teoria da evolução e sobre o modo como a fisiologia do homem afecta a sua cultura (cf.
Stack, 1992: 170), a noção de “doação de virtude” e a emergência do “super-homem” (Stack, 1992: 333), ou a
tese segundo a qual todas as virtudes derivam de “propensões que eram originalmente más ou imorais” (Stack,
1992: 318).
7 Nietzsche, Über Warheit und Lüge im aussermoralischen Sinne, in Nietzsche Werke, Berlin: Walter de Gruyter, 1973,
p.381. Edição portuguesa: F. Nietzsche, Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral, trad. H. Quadrado,
Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.
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quais o seu tratamento do tema é reverberado e expandido ao longo dos vários textos de
de Vontade de Poder.
Emerson menciona a forma como “toda e qualquer palavra (…), se recuarmos até à sua
providencia alguns exemplos que pertencem ao domínio dos conceitos éticos: direito
(right) significa recto (straight) e errado (wrong) significa torcido (twisted), transgressão
(transgression) está no lugar de “o transpor uma linha” (the crossing of a line) e mesmo o
fazer a arqueologia de alguns dos mais importantes conceitos usados para descrever
factos da vida mental e espiritual do homem, tais como conhecimento e ignorância, amor,
memória ou esperança, trazendo-os de volta às suas origens, por assim dizer, imagéticas9.
“escondida de nós” no tempo remoto em que a linguagem teve a sua génese, pois “à
8 Nature, p. 20.
9 Cf. Nature pp.20-21.
3
medida que recuamos na história, a linguagem torna-se mais pitoresca, até chegarmos à
sua infância, em que é toda poesia; ou em que todos os factos espirituais são
esta relação entre palavras e coisas visíveis perdeu-se e as “palavras antigas vão sendo
alemão encara como uma força activa necessária à constituição quer da nossa linguagem
começar por uma breve incursão pelo modo como Nietzsche descreve as origens da
linguagem.
linguagem inconsciente surge como produto dos instintos, tendo a música tomado
linguagem consciente, por seu lado, é uma tradução desta linguagem inconsciente em
10 Nature, p.22.
11 Nature, p.22.
12 Nature, p.22.
13 “Esquecer não é, ao contrário do que crêem os espíritos superficiais, uma mera vis inertiae, mas sim uma
faculdade de inibição, active, positive – no sentido mais rigoroso do termo -(…). [Que] volte a haver lugar
para o novo, sobretudo para as funções mais nobres (…)… É esta a utilidade da nossa capacidade de
esquecimento activo (…), que é uma espécie de guardiã ou de conservadora da ordem psíquica, da
tranquilidade e das boas maneiras” (F. Nietzsche, Para a genealogia da moral, trad. J. Justo, Lisboa: Círculo de
Leitores, 1997, pp.59-60.
4
conceitos não são mais do que a tradução e a retenção na memória de ritmos e de gestos.
Mas como se processa tal tradução? É em parte para responder a esta questão que
metafórica. Mais tarde, e muito influenciado por Gustav Gerber, ele irá desenvolver esta
instinto inconsciente nos seres humanos15 e a filha de um parto que atravessa três etapas.
começam por ser “representações sólidas de estímulos nervosos”17 que são activados
quando nos deparamos com o “X enigmático” [“rätselhafte X”] de objectos, como uma
metáforas desde esta estimulação nervosa até à sua representação linguística. Numa
primeira metáfora, o estímulo nervoso é transformado numa imagem, sendo depois esta
conceitos. De cada vez que esta transformação ocorre, alcançamos uma “transposição
completa de uma esfera para outra completamente diferente e nova”19. No fim deste
complexa e detalhada que a de Emerson, Nietzsche insiste no modo como a “lógica” está
estabelecem semelhanças entre diferentes itens. O conceito de “folha”, por exemplo, foi
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obtido através do abandono das diferenças individuais observáveis em cada folha
que separa todas as folhas observadas. Ao longo deste processo de abstracção, vamos
assumindo que existe algo a que chamamos “a folha”. Então, de novo seguindo uma
Do mesmo modo, os termos que usamos para descrever aquilo que Emerson
individualizadas, quando nos perguntam por que é que alguém agiu honestamente,
respondemos “Ora, por causa da sua honestidade”25. É desta forma que o homem tende a
6
O segundo passo consiste, precisamente, em esquecer o processo inconsciente
seja, ilusões de que se apagou o carácter de ilusão, metáforas congeladas que são, em
como uma cor específica ou uma temperatura, que nasce a nossa “inclinação moral para a
verdade”28. Mas isto apenas significa que dizer a verdade significa “mentir de um modo
eterna da verdade pelo homem é tão louvável quanto a acção daquele homem que procura
conceito geral que as vai subsumir. Uma segunda e mais larga dimensão, e, de facto, uma
dimensão que se aproxima ainda mais da proposta de Emerson, constitui este terceiro
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por “hábitos de séculos” 32, esquecerem as metáforas intuitivas que jazem enterradas sob
directo ao mundo dos “objectos puros” é possível, o homem comum também se esqueceu
civilização.
Deve ser realçado que Emerson descreve o homem como um “analogista”35 que
estuda as relações entre todos os objectos e cuja principal preocupação reside na conexão
originariamente serviam para descrever factos físicos de modo a poder descrever factos
espirituais. Para Nietzsche, a actividade metafórica ocorre como nexo instintivo entre
espiritual e o dos factos naturais rompeu-se. Tal manifesta-se no facto de “se ter deixado
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de criar uma imagética nova”38. Ao se omitir que foram outrora tomadas de empréstimo a
partir das aparências materiais, as velhas palavras são pervertidas num crescendo de
“duplicidade e falsidade”. Há uma espécie de parasitismo que tem lugar na forma como
de velhas palavras a coisas que, de facto, não existem, a um “papel-moeda que continua a
circular, mesmo quando já não há ouro nos cofres”40. Esta é uma metáfora que o leitor de
hegemonia socialmente imposta, mas de modo algum merecida, estamos a usar “moedas
que perderam o seu valor facial e são agora já não consideradas como moedas mas
apenas como metal”41. Mas este suposto “metal” ou “verdade-em-si” ou “objecto puro”42,
esta pretensão de fazer passar metáforas por coisas reais, não subsiste fora da sugestão
tal como no exemplo de Emerson, o ouro nos cofres desaparece assim que nos
claro, no facto de Emerson acreditar num mundo de factos físicos fora das actividades do
sujeito, ao passo que Nietzsche toma esta assumpção como ela própria uma criação
devida aos processos fisiológicos que produzem a linguagem. Uma vez que não há acesso
38 Nature, p.22.
39 Nature, p.22-23.
40 Nature, p.22: “a paper currency [that] is employed, when there is no bullion in the vaults”.
41 Über Wahrheit und Lüge, p.375.
42 Über Wahrheit und Lüge, p.377.
43 Über Wahrheit und Lüge, p.373.
9
fora do poder que o homem tem para interpretar os seus próprios estímulos nervosos44.
homens sábios deveria ser “perfurar esta dicção podre e atar as palavras às coisas
civilização. A boa escrita e o discurso brilhante devem procurar ser uma “perpétua
alegoria” e uma demanda activa por uma imagética espontânea, fundindo “a experiência
com a acção presente da mente”48. Emerson chama a isto a “criação autêntica”49. Ela
seria capaz de perfurar a superfície endurecida dos conceitos e jogar com “as grandes
intuitivo” já não se guia por conceitos mas por intuições. Será capaz de destruir a
44 “The major points Nietzsche offers in his essay “On Truth and Lies” are firmly in place: that our reality is
no absolute reality but only appearance; that Nietzsche understands metaphysics and teleology as poetic
possibilities and not as truth; and that art is the only remaining form of existence.” (Crawford, 1988: 200).
45 Cf. Assim falava Zaratustra, p. 38.
46 Nature, p.22.
47 Nature, p.23.
48 Nature, p.23.
49 Nature, p.23: “proper creation”.
50 Über Wahrheit und Lüge, p.382.
51 Über Wahrheit und Lüge, p.382: “Jenes ungeheure Gebälk und Bretterwerke der Begriffe”.
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que é mais estranho e afastando o que se encontra mais próximo”52. Ao fazê-lo, ele
manifesta a sua “Vontade de Poder”. O “homem intuitivo” compete lado a lado com o
vitoriosa”53, e a forma como “brinca com coisas sérias”, desafiando o decreto humano
que estipula que “Existe algo sobre o qual ninguém tem o direito de rir”54, torna-o num
fundador de civilizações baseadas no “domínio da vida pela arte”, como terá sido o caso
da Grécia antiga55.
inconsciente num objecto origina “uma nova arma no paiol do poder”56, i.e., uma nova
estereotipadas que não subjuguem o vigor das intuições sob abstracções e esquemas
Tudo isto define um programa literário, para além de uma agenda filosófica. A
52 Über Wahrheit und Lüge , p.382. O carácter anti-platónico do “homem intuitivo” é perfeitamente claro nesta
passagem. Nietzsche parece estar a mencionar explicitamente a desqualificação que Platão faz da actividade
inuitiva quando, por exemplo, escreve, no Sofista, "Quanto a mostrar de qualquer maneira que o mesmo é
outro e o outro o mesmo, que o grande é pequeno e o semelhante dissemelhante, e comprazer-se a
salientar estas oposições nos seus raciocínios, isso não é crítica verdadeira, é obra dum novato que acaba
de tomar contacto com as realidades." (Sofista, XLIII)
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corresponde ao trabalho de um desses “homens sábios” ambicionados por Emerson, ou
Nietzsche faz do “homem intuitivo” como aquele que sabe rir dos mais reverenciados
linguísticas”59.
ratificação exterior para sentir o nosso próprio poder. É uma forma de desencorajar o
leitor comum pois que se exige uma nova “arte da interpretação” e um redobrado rigor
através dele que ele reconhece os seus próprios pares62 no rebanho63. Em “Retórica
12
2. Os factos naturais como ilustrações do mental
transposições desde os estímulos nervosas até aos conceitos genéricos, esta origem
perdeu-se na memória da espécie e, numa certa forma de inversão, foi o uso social da
primeiro texto, considerado por alguns como a mais importante discussão de Nietzsche
alguma virtude, “e ela é realmente a sua virtude”68, então ela permanecerá num estado
familiaridade dos nomes”. Assim que se tenta comunicar tal virtude, tornamo-nos “um
conexões entre o povo e terá sido desenvolvida “apenas sob a pressão da necessidade de
13
comunicar”. Portanto, a consciência não pertence, realmente, à existência do homem
particular mas “antes à sua natureza social ou de rebanho”. É o “génio da espécie” que
Assim, não é apenas a nossa linguagem mas a própria tradução consciente dos
que uma vida mais autêntica dispensaria esta tendência para “se ver ao espelho”. Mais:
boa parte da nossa vida já se passa sem este “efeito de espelho”, i.e., sem nunca assomar
à consciência.
consciência com o modo como Emerson observava uma segunda ligação metafórica entre
tomados como o mais perfeito reflexo ou tradução dos “factos espirituais” humanos.
metafórica entre os factos físicos e espirituais que torna possível uma expressão autêntica
14
Porque todas as palavras – incluindo aquelas palavras que usamos para descrever
“factos espirituais” – foram outrora signos de factos naturais, assim também esses
mesmos factos naturais se podem volver símbolos da vida espiritual. Emerson vai mais
longe e propõe mesmo uma homologia constante entre “aparências naturais” e “estados
mentais”, numa forma de relação tão intensa que muitos dos nossos estados mentais
apenas poderão ser descritos “pela apresentação daquela aparência natural como sua
cordeiro ou que um homem firme é um rochedo. É através da linguagem, dada esta sua
“nem o homem pode ser compreendido sem aqueles objectos, nem estes objectos sem o
homem”70. Com o recurso conveniente a uma metáfora sexual, Emerson nota como factos
conectados metaforicamente à vida humana, factos triviais como o ciclo das estações ou
forma como a origem da virtude é assinalada pela irrupção da metáfora no discurso. Mais
falsificação dessas mesmas virtudes, Nietzsche parece abrir espaço para uma expressão
69 Nature, p.20.
70 Nature, p.21.
71 Nature, p.21.
72 Nature, p.22.
73 Assim falava Zaratustra, p.86.
15
figurativa da virtude, partindo do princípio de que as virtudes funcionam como metáforas
das elevações do corpo. Isto explicaria a razão pela qual o tema da “superação”, tão
conceitos cujo sentido literal sugere sempre ora um movimento ascendente ora
nesta secção de Zaratustra a ideia segundo a qual o nosso uso consciente dos conceitos e
i.e., formas que ainda não “assomaram à consciência”, o que significaria a sua
é que poderia haver lugar a qualquer esperança de uma trans-avaliação dos valores.)
da “mais alta eloquência e poder”77, assemelham-se uns aos outros na forma como, por
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assim dizer, conseguem re-ligar-se à origem “pitoresca” das palavras. Em Nietzsche,
sustentado por uma parafernália comum de metáforas, imagens e metonímias que residem
no núcleo esquecido dos nossos conceitos. Na secção 20 de Para além do bem e do mal,
por exemplo, Nietzsche explica o “estranho ar de família entre as filosofias indiana, grega
comunidade dos conceitos”79. Pensar não é tanto uma descoberta mas o reconhecimento
da natureza pitoresca das palavras, em Nietzsche o pensamento – seja qual for o idioma
lar remoto e primitivo da alma, no qual nasceram todos estes conceitos”80. Em ambos os
coisas visíveis, no caso de Emerson, ou reactivar a forte aliança que existe entre o
Nietzsche. Para ambos, o pensamento mais válido constitui-se sempre como “um
atavismo da mais alta ordem”82. A diferença, claro, está em que, se Emerson toma esta
ligação metafórica como apenas reunindo “factos” físicos e espirituais, Nietzsche adopta
78 Para além do bem e do mal, trad. C. Morujão, Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p33.
79 Idem, p.33.
80 Idem, p.33.
81 Idem, p.33.
82 Idem, p.33.
17
uma abordagem muito mais fisiológica: os conceitos são transposições (metáforas de
metáforas, para utilizar a fórmula de Sobre a verdade e a mentira) que têm origem no uso
nome de toda a espécie humana84. É este mesmo reconhecimento que constitui um dos
princípios de uma gaia ciência, e da sua capacidade de jogar com os conceitos, uma
impossível. Para se poder dizer algo completamente novo seria necessário inventar um
invenção de outras novas86. Em textos centrais como Zaratustra, regista-se uma ausência
à sua própria natureza era mais íntima. Isto pode ser interpretado como uma forma de
83 Tanto George Stack como Claudia Crawford propõem que o modo como Nietzsche correlaciona os
idiomas, as formas de vida culturais e os padrões de crença e comportamento deve ser tomado como uma
antecipação do estruturalismo (cf. Crawford, 1988: 137-138).
84 Cf. Kofman, 1983: 171.
85 Cf. Kofman, 1983: 171.
86 Cf. Kofman, 1983: 171, n.2.
18
mundo e revela bem o desejo de comunicar uma perspectiva nova87, fá-lo de uma forma
O terceiro e último traço do retrato que Emerson faz da relação entre a linguagem
constituição espiritual do homem quando se constata que “as leis da natureza moral
respondem às leis da matéria”89. Os axiomas técnicos da física, tais como “o todo é maior
que a sua parte” ou “reacção igual a acção” são igualmente adequadas a servirem como
íntima relação possível entre ele próprio como “micro cosmos” e a Natureza como
Que a Natureza permanece “estéril” a não ser que seja fertilizada pela história
humana significa que todos os factos físicos aguardam alguma espécie de interpretação
19
vontade de poder”93. Onde quer que encontremos sentido, constataremos também que
uma vontade de poder exerceu o seu poder sobre uma coisa menos poderosa e impôs
extinguindo o seu “sentido” e sua “finalidade” prévias. Portanto, todo e qualquer sentido
interpretação. Isto conduz-nos ao aspecto final desta comparação entre os dois autores,
Tanto pode significar o desejo de manipular algo ou alguém como o desejo de exercer os
mesmo objecto. Mais precisamente, conhecemos o mundo para podermos sentir o nosso
20
Tal objectivo, como sugerido por Emerson, é atingido fundamentalmente através
metafórica101:
em boa medida, uma actividade metafórica, através da qual tudo quanto existe é
constantemente reinterpretado com vista a servir as finalidades impostas por uma força
compulsão metafórica exprime uma eterna “insatisfação com o presente estado de coisas”
que movimentam os conceitos “numa transposição completa de uma esfera [de sentido]
metafórica como um reflexo dos factos espirituais, na forma como os “objectos naturais”
nos assistem na expressão de certos sentidos muito particulares, Nietzsche pensa este
100 Stack argumenta que em ambos os autores podemos encontrar “a transference to nature in totto of an
anthropomorphic psychistic propensity” (Stack, 1992: 170).
101 Vimos como Nietzsche descreveu o impulso metafórico como uma espécie de actividade artística e
instintiva. E tal como qualquer outro instinto, o seu objectivo é atingir “o domínio unitário do mundo” (cf.
Kofman, 1983: 43).
102 Nietzsche, citado por Kofman, 1983: 122.
103 Cf. S. Barker, Autoaesthetics, New Jersey: Humanities Press, 1992, p.176.
104 The Will to Power, §331, p.180.
105 Über Wahrheit und Lüge, p.373.
21
específico imposto pelo seu novo “senhor”. E o objectivo é o sentido. Contudo, é também
verdade que, em larga medida, ambos os autores partilham a ideia segundo a qual a
conhecimento é poder. Também para Emerson, de cada vez que o espírito se “manifesta
objecto, obtém-se “uma nova arma no arsenal do poder”. A diferença reside no facto de
4. Conclusão
Que restou, então, daquela primeira impressão causada sobre Nietzsche aquando
das suas primeiras leituras de Emerson? Antes de mais, deve insistir-se no facto de
perdurar uma diferença marcante a separar os dois autores. A descrição que Emerson faz
do homem enquanto “ser analogista” está baseada numa teoria da correspondência entre
pathos” quando se lhes impõe um sentido humano, espiritual, eles precedem, porém, uma
tal atribuição. Em Nietzsche, é a própria noção de “facto” que se torna uma criação
Portanto, Nietzsche desqualifica a existência de “factos” tal como esta era pressuposta
22
por Emerson, i.e., a existência de entidades que precedem o poder interpretativo
individual.
sábios” ou “espíritos libertados” que sejam capazes de usar a linguagem com total
entre pensamento e mundo (Emerson) ora sobre o modo similar como uma fisiologia
comum afecta toda a produção cultural (Nietzsche). Para ambos, o pensamento autêntico
seja pela “criação de imagens” (Emerson) seja pelo reconhecimento do modo como as
propõe entre micro e macrocosmos acaba por encontrar no conceito de vontade de poder
23
estamos, de facto, a transferir para esse nível uma pulsão fisiológica, natural. À maneira
propôs com a sua teoria das correspondências metafóricas entre espiritualidade humana e
entre Natureza e cultura, que Kaufmann109 identificaria como o tema mais recorrente da
109 Cf. W. Kaufmann, Nietzsche: Philosopher, Anarchist, Anti-Christ, New York: Vintage Books, 1968, p.193.
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