O Ideograma Como Um Modo de Ler e Ver Poesia

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O Ideograma como um

Modo de Ler e Ver Poesia

Thiago de Melo Barbosa/Universidade Federal do Pará

Incipit
A LÍNGUA DE ADÃO
NO PRINCÍPIO ERA o verbo, e este, o primitivo, carrega-
va todo o espírito das coisas, era a língua de Deus, aquela
na qual as metáforas eram inerentes às palavras; deste
modo, toda linguagem era poética, o homem cantava o
que o rodeava preservando sempre o vivo frescor das
musas, graças às comparações e similitudes próprias da
única língua existente no mundo: o primeiro homem
foi um poeta nato.
Realismos e cientificismos à parte, a anedota acima
é uma tentativa de ilustrar, mesmo que de modo su-
perficial, a concepção de língua, ou melhor, da gênese
desta, para o filósofo e orientalista norte-americano
Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908), autor do cé-
lebre ensaio The chinese written character as a medium
for poetry, considerado por muitos como a pedra fun-
damental das discussões sobre o estudo dos ideogramas
associados à poesia. Segundo Haroldo de Campos, no
livro Ideograma: lógica, poesia, linguagem, o filósofo acre-
ditava “na tese mitopoética de uma linguagem original,

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edênica ou adâmica, em que as palavras reverberavam
o halo das coisas, numa comunhão paradisíaca, irra-
diando-se na força tropológica das metáforas”,1 teoria
esta que pode ser encontrada, guardadas algumas pro-
porções, também nas obras de Giambattista Vico, Ralph
Waldo Emerson e Rousseau.2
A importância de conhecer essa crença de Fenollosa
acerca da língua concentra-se no fato de que foi por
manuscrítica

causa dela que o estudioso intensificou suas pesquisas


sobre as propriedades dos caracteres chineses, isto por-
que acreditou ter encontrado alguns resquícios daquela
língua adâmica preservados nos ideogramas desta
milenar escrita. Tal fato ocorreu quando o orientalista,
ao ler os poemas chineses, notou que os signos (ideo-
gramas) utilizados nesta língua têm uma ligação muito
forte com o objeto representado, como se cada palavra
fosse uma metáfora visual do objeto. Deste modo, par-
tindo do princípio de que “A metáfora, reveladora da
Natureza, é a substância mesma da poesia”,3 não de-
morou para o filósofo associar à poesia os seus estudos
com os ideogramas.
Mas Fenollosa não foi o único que pensou em asso-
ciar a escrita chinesa com alguma obra de arte; também
o cineasta russo, Sierguéi Eisenstein, refletiu a respei-
to do tema após alguns estudos sobre o japonês (língua
com muitas influências do chinês), a partir dos quais

1 FENOLLOSA, E. Os caracteres da escrita chinesa como instrumento para


poesia. In: CAMPOS, H. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem.
São Paulo: EDUSP, 2000, p. 42.
2 Refiro-me especialmente ao trabalho destes autores com relação ao tema
da origem das línguas.
3 Ibidem, p. 128.
notou no criativo processo de construção dos ideogra-
mas a técnica de montagem cinematográfica. E como
o diretor defendia a ideia de que a cinematografia é
“antes de tudo e acima de tudo, montagem”,4 logo fez a
relação com os ideogramas, apresentando suas ideias
no ensaio denominado “O princípio cinematográfico e
o ideograma”.
O caráter mítico-encantatório dos ideogramas, cuja
confecção, diga-se de passagem, é uma verdadeira arte
para chineses e japoneses, muito já mexeu com as ca-
beças ocidentais, os quais, principalmente depois de se

Incipit
descobrir como são construídos – refiro-me a certa
etimologia da língua – mostram-se ainda mais belos e
mágicos, misteriosos como a origem da linguagem hu-
mana ou da poesia, afinal, qual outro código escrito
pode nos remeter a um passado tão distante quanto
quando ainda desenhávamos nas cavernas? Certamen-
te nada parecido há nas línguas ocidentais. Fenollosa
acredita que apenas na essência poética encontramos
alguma semelhança com esse processo de criação, e, a
fim de clarear ainda mais esta visão do orientalista, acre-
dito ser interessante a leitura de uma lenda sobre a
origem da língua poética, citada por Sigismundo Spina
no livro Na Madrugada das Formas poéticas.

[...] tendo-se feito homem, o espírito das coisas se pôs a falar numa
língua estranha, cheia de imagens e flores. Não compreendido, e
tomado por louco, foi lançado ao mar. Um peixe o devorou; mas um

4 E ISENSTEIN, S. O princípio cinematográfico do ideograma. In: CAMPOS,


H. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: EDUSP,
2000, p. 149.

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pescador, tendo prendido o peixe e comido, começou a falar por sua
vez uma linguagem misteriosa. E o pescador foi apedrejado e enter-
rado profundamente. Lentamente o vento do deserto descobriu sua
fossa, e, num dia de simum, alguns restos de corpo caíram no “kous-
kous” de um caçador. E imediatamente este se pôs as narrar em
palavras místicas coisas desconhecidas. Foi também exterminado;
seu corpo, reduzido a pó tão fino como a poeira do deserto, foi lan-
çado no espaço. Um homem cujo mister consistia em tirar de uma
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corda estendida sobre uma cabaça harmonias divinas, respirou al-


guns destes grãos e logo, como a corda que seus dedos faziam vibrar,
começou a cantar, e o que saiu de seus lábios foi tal, que todo o
mundo se pôs a chorar e deixaram-no viver. Assim a piedade deu
nascimento ao griot, e é ela ainda que lhe permite existir.5

Nas primeiras linhas da história, quando lemos que


“o espírito das coisas se pôs a falar...”, nota-se muito
daquilo que encantou Fenollosa nos ideogramas, i.e, a
possibilidade das coisas falarem, graças à maior proxi-
midade entre objeto e signo. Portanto, fica claro que
uma das lutas do poeta é contra a arbitrariedade do
signo, e isso é uma questão levantada tanto por um fi-
lósofo erudito, como Fenollosa, quanto pelos “Baramas
e Mandingas” que, de acordo com Spina, fazem circu-
lar a lenda citada. Foi principalmente com base nestas
questões que se pensou nos objetivos do presente arti-
go, os quais são: tentar esclarecer a eterna luta do poeta
contra um signo apático pelo uso, mas cheio de potên-
cias expressivas pouco exploradas, e mostrar de que
forma o conhecimento dos ideogramas chineses, ou

5 LETOURNEAIR, 1894 apud SPINA, S. Na madrugada das formas poéticas.


São Paulo: Ateliê, 2002, p. 75.
melhor, da “técnica ideogramática”, podem auxiliar
nesta batalha.

O IDEOGRAMA EM SI
Para compreendermos como Fenollosa pode relacio-
nar os ideogramas chineses com a construção poética,
torna-se necessário uma noção, pelo menos básica, de
como aqueles são construídos, para que com isso pos-
samos conhecer suas principais características. Diante
disso, salientarei neste tópico, os quatro pontos princi-
pais a serem observados na constituição de um caractere

Incipit
chinês, os quais, segundo Yu-Kuang Chu, são:

– Representação pictural;
– Diagramação da ideia;
– Evocação por sugestão;
– Combinação de radicais.

O primeiro ponto destacado diz respeito àqueles


ideogramas cuja ligação com a imagem do objeto re-
presentado ainda é muito forte, i.e, o caractere é como
se fosse uma pintura esquemática da coisa, tal como
ocorre com os ideogramas de montanha (figura abai-
xo), porta, árvore etc.

6 Todos os ideogramas presentes no artigo foram retirados do livro


Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. Nos exemplos 1, 2 e 4, têm-se os
ideogramas nas suas formas primitivas (à esquerda) e nas suas formas
atuais (à direita).

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O segundo ponto corresponde a uma espécie de al-
ternativa pictural para representar aquilo que não pode
ser representado, explico-me: imagine como podería-
mos desenhar, figurativamente, a quantidade numérica
“um”. Acredito que todos acham a missão um tanto
quanto impossível, não? Contudo, para representar
aquilo que não tem correspondente na natureza, que é
pura abstração, os chineses recorreram à diagramação
manuscrítica

da ideia, como é notável nos exemplos dos ideogramas


de acima e abaixo.

No terceiro princípio, o da sugestão, dois caracteres


são colocados juntos para sugerir uma terceira coisa,
daí a famosa frase de Fenollosa – muito explorada pe-
los poetas do movimento concreto – sobre a escrita
chinesa: “Nesse processo de compor, duas coisas que se
somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma
relação fundamental entre ambas”.7 Este princípio cos-
tuma ser exemplificado com o ideograma de Brilho, o
qual é composto pela junção de Sol e Lua, no entanto,
aqui, até para fugir um pouco de um exemplo já muito
citado, uso o ideograma de lealdade, que creio servir tão
bem quanto o de brilho, para o exemplo em questão.

7 FENOLLOSA, E. Op. cit., p. 116.


estes estudiosos ressaltam ainda que, mesmo diante de
ideogramas com caráter mais pictórico, o falante nati-
vo do chinês não tem noção desta metáfora visual e vê,
no dia a dia, sua escrita de modo semelhante como ve-
mos a nossa, ou seja, como signos arbitrários que apenas
servem como instrumentos para a comunicação.

TÉCNICA IDEOGRAMÁTICA
manuscrítica

Sem entrar no mérito da discussão que encerra o


tópico anterior, até mesmo porque o presente artigo
não ambiciona solucionar questões da linguística chi-
nesa, mas, sim, apresentar, e se possível esclarecer, aquilo
que Fenollosa e Pound acreditaram ser interessante para
a criação poética partindo dos ideogramas chineses, ou
melhor, partindo da visão deles desta escrita. Portanto,
é com essa visão, errada ou não, que devemos lidar caso
queiramos entender de forma satisfatória o que, daqui
por diante, chamarei de técnica ideogramática.
Alguns conceitos de poesia, em especial os moder-
nos, colaboram para o desenvolvimento da ideia da
produção de poemas ideogramáticos. Um destes é o de
função poética, a qual foi definida por Roman Jakob-
son como aquela que visa pôr em evidência o caráter
palpável do signo, diante disso, pressupõe-se que uma
das preocupações do poeta deva ser com a materialida-
de da palavra. Esta valorização do que há de palpável
no signo, muito lembra a questão pictural dos ideogra-
mas, logo, acredito ser aceitável colocá-la como uma
primeira justificativa para o desenvolvimento de poe-
mas marcados (de maneira intencional ou não) por um
recurso típico da construção dos ideogramas chineses;
tal como fez, em muitos poemas que compõem sua obra,
o poeta norte-americano, e. e. cummings9 que nas pa-
lavras de Augusto de Campos, “Introjeta num idioma
moderno ocidental, como o inglês, procedimentos de-
rivados do ideograma chinês (a figuralidade de origem
pictográfica e o pensamento por analogia)”.10

un(bee)mo

vi
n(in)g
are(th
e)you(o

Incipit
nly)

asl(rose)eep

i(abe)mó

v
e(lha)l
você(n
a)está(ú
nica)

dorm(rosa)indo

O poema11 de cummings acima é pertinente por


aquilo que já foi dito, mas também por nos remeter a

9 O nome do poeta Edward Estlin Cummings (1894-1962), sempre apa-


recerá neste trabalho como e. e. cummings, com todas as letras em caixa
baixa, tal como ele gostava que fosse grafado.
10 C AMPOS , A. e. e. cummings, sempre jovem. In: E. E, CUMMINGS .
Poem(a)s. Trad. Augusto de Campos. Campinas: Editora Unicamp, 2011,
p. 14.
11 A tradução é de Augusto de Campos, e pode ser encontrada em e. e.
cummings Poem(a)s. São Paulo: Ed. Unicamp, 2011, p. 145.

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mais uma ideia que corrobora, ou até mesmo abaliza, a
técnica ideogramática, i.e, o conceito, muito caro aos
japoneses (vide os famosos haikais), de poesia como
linguagem sintética e condensada. E como defensor
desta teoria, não poderia deixar de citar o poeta-críti-
co Ezra Pound, que define a poesia, no seu ABC da
Literatura, como “a mais condensada forma de expres-
são verbal”.12
manuscrítica

Para alcançar a condensação mencionada no parágra-


fo anterior, e. e. cummings vale-se, dentre outros, do
recurso de montagem paralela, técnica que o cineasta
Eiseinstain definiu como própria do cinema, mas que
será vastamente utilizada na poesia que tende ao
ideograma. Contudo, não é de todo correto pensar que
o recurso da montagem foi um empréstimo do cinema
à poesia, visto que muitas das conclusões sobre esta téc-
nica o cineasta chegou ao estudar os haikais e os
ideogramas japoneses.
Dentro da Teoria Literária, as reflexões dos Forma-
listas Russos quanto à língua poética em oposição à língua
do cotidiano, muito podem acrescentar à discussão de-
senvolvida até o momento, e, sem dúvida, serem postas
num diálogo com a questão dos ideogramas. Nesta
conversa que proponho, o ponto central deve ser o da
significação de língua poética para o formalismo, a qual
Eikhenbaum defende afirmando que: “[...] a língua
poética não é unicamente uma língua de imagens e
que os sons do verso não são somente os elementos

12 POUND, E. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo


Paes. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 40.
de uma harmonia exterior, que não só acompanha o
sentido, mas que eles próprios têm uma significação
autônoma”. 13
Partindo do exposto acima, conclui-se que os
formalistas viam a língua poética, ou a linguagem lite-
rária, como “motivada (não arbitrária), autotélica (e não
linear), autorreferencial (e não utilitária)”,14 da forma
que resumiu Antoine Compagnion ao falar do forma-
lismo em O Demônio da Teoria. Todas estas
características citadas podem ser encontradas nos ideo-
gramas chineses – lembrando sempre que estamos indo

Incipit
de acordo com o modo como Fenollosa e Pound enca-
raram esta língua. No caso da não arbitrariedade do
signo, um bom exemplo é encontrado no poema “Tema
A”, de Max Martins, no qual o autor, valendo-se da
metapoesia, discute justamente esta eterna luta do po-
eta contra a arbitrariedade, como é nítido nos versos
finais (bastante ideográficos, diga-se de passagem) do
poema em questão.

13 E IKENBAUM, B. A teoria do “método formal”. In: T OLEDO, D. O. de.


(Org.). Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo,
1976, p. 11.
14 C OMPAGNON, A. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 40.

177
15
manuscrítica

Para finalizar, não poderia deixar de mencionar os


poetas concretos, tanto pela contribuição teórica acer-
ca da questão dos ideogramas, quanto pela prática na
produção de poemas ideogrâmicos. Dentro deste mo-
vimento, especialmente na sua fase mais radical, ou
matemática, o enfoque na questão do ideograma foi tan-
to que já nos manifestos dos poetas é possível encontrar
afirmações como “o poema concreto ou ideograma passa
a ser um campo relacional de funções”, 16 na qual nota-
se uma clara simbiose entre ideograma e poema. Noutro
manifesto, “olho por olho a olho nu”, Haroldo de Cam-
pos descreve o poema concreto como uma

[...] composição de elementos básicos da linguagem, organizados


ótico-acusticamente no espaço gráfico por fatores de proximidade e
semelhança, como uma espécie de ideograma para uma dada emo-
ção, visando à apresentação direta – presentificação – do objeto.17

15 M ARTINS, M. Poemas Reunidos: 1952-2001. Belém: EDUFPA, 2001, p.


337.
16 CAMPOS, A. Poesia concreta. In: CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI,
D. Teoria da Poesia Concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960.
São Paulo: Ateliê, 2006, p. 72.
17 CAMPOS, H. Olho por olho a olho nu. In: Ibidem, p. 75.
Toda essa reflexão do Concretismo resultou na pro-
dução de interessantes poemas, através dos quais
tentaram romper com a lógica-linear do verso em fa-
vor da analogia-sintética do ideograma, i.e., aplicaram
às suas obras aquilo que chamo aqui de Técnica Ideo-
gramática. Tal experiência pode ser constatada
facilmente em alguns dos mais conhecidos poemas con-
cretos, como “nascemorre”, de Haroldo de Campo;
“velocidade”, de Ronaldo Azeredo, etc. Seguem abaixo
imagens de alguns desses poemas, ou ideogramas, con-
cretos.

Incipit
18

Haroldo de campos

18 C AMPOS, H. Xadrez de Estrela: percurso textual 1949-1974. São Paulo:


Perspectiva, 1976, p. 118.

179
19
manuscrítica

Décio Pignatari Ronaldo de Azeredo 20

21

Augusto de Campos

CONCLUSÃO
Acredito que um dos pontos mais importantes na
conclusão deste artigo seja o de se fazer um esforço

19 P IGNATARI , D. Poesia Pois É Poesia: 1950-2000. São Paulo: Ateliê/


Unicamp, 2004, p. 116.
20 Disponível em: <http://ww.concretosparalelos.com.br/?p=76>. Acesso
em: 10 set. 2011.
21 C AMPOS , A. Viva Vaia: poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê, 200,
p. 103.
para que as ideias tratadas aqui não se afigurem como
exclusivas de um determinado tipo de poema, uma vez
que isso pode facilmente acontecer por conta das expe-
riências feitas pelos poetas concretos, fato que, em certo
sentido, tende a turvar o objetivo pretendido no texto,
que é o de se refletir acerca da questão dos ideogramas
associados à poesia de maneira geral, e não limitada a
uma dada recepção. Para tanto, parece interessante, por
exemplo, datar as reflexões de Fenollosa, lembrando que
este pensava a poesia no final do século XIX, logo, não
tinha como modelo poético os poemas concretos. Re-
flito deste modo não a fim de desmerecer, ou tentar

Incipit
apagar, os inegáveis méritos concretistas, mas sim no
intuito de ampliar os domínios de uma discussão da
qual eles participaram, efetivamente, da construção.
Certamente, associar os ideogramas àquelas poesias
mais confessionais e com pouco apreço pelo rigor for-
mal dos poemas, tal como foi a romântica, por exemplo,
não é tarefa das mais fáceis; por outro lado, desvincular
a técnica ideogramática do concretismo não é tão difí-
cil como pode parecer. Até mesmo em prosa é possível
encontrar exemplos, como no trecho abaixo, retirado
de “O Burrinho Pedrês”.

E o Major Saulo indicava, mesmo na beira do estacado, um boi


esguio, preto-azulado, azulego; não: azul asa-de-gralha, água longe,
lagoa funda, céu destapado – uma tinta compacta, despejada de
chanfro às sobre-unhas e escorrendo, de volta dos garrões ao topete
– concolor, azulíssimo.22

22 R OSA, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 47.

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A citação é um belo exemplo daquele analogismo
típicos dos ideogramas: o narrador parece não se con-
formar em dizer que o boi é azul, ele quer ir além, deseja
“presentificar” a cor, e para conseguir isso se vale da
aglutinação (lembrar de evocação por sugestão) de inúme-
ros elementos que tenham relação com esta cor. Desta
forma, Guimarães Rosa conceitua o azul, fugindo das
abstrações típicas da lógica linear-discursiva ocidental,
manuscrítica

evitando assim, proceder de modo igual ao homem euro-


peu, do qual Ezra Pound fala ao tentar explicar a
diferença entre o modo de pensar oriental e o ocidental.

Na Europa, se pedimos a um homem que defina alguma coisa, sua


definição sempre se afasta das coisas simples que ele conhece per-
feitamente bem e retrocede para uma região desconhecida, que é a
região das abstrações progressivamente mais e mais remotas.23

Pound continua a reflexão citada acima construindo


um exemplo no qual se imagina fazendo a mesma per-
gunta – “o que é o vermelho?” – para um europeu e
para um chinês; de acordo com o autor, o primeiro res-
ponderia que “é uma ‘cor’, dirá que cor é uma vibração
ou uma refração da luz ou uma divisão do espectro”,24
enquanto que o segundo, o chinês, simplesmente “reú-
ne (ou seu antepassado reunia) as figuras abreviadas de
rosa/ferrugem, cereja/flamingo”.25 Com isso, Pound
tenta demonstrar o quanto um discurso se afasta das
coisas representadas e o outro se aproxima.

23 POUND, E. Op. cit., p. 25.


24 Ibidem, p. 25.
25 Ibidem, p. 27.
Por fim, resta apenas dizer que para além de Gui-
marães Rosa, muitos outros poetas (creio que não seja
nenhum exotismo colocar Guimarães como poeta) cor-
roboram bastante com o que aqui se discutiu, os
próprios poetas concretos gostam de citar Sousândrade,
Oswald de Andrade e João Cabral como exemplos den-
tro da poesia brasileira – eu acrescentaria ainda nesta
lista os nomes dos poetas Max Martins e Age de Car-
valho, e tenho certeza que vários outros possam entrar,
conforme a nebulosidade do assunto seja dissipada, e
os estudiosos de literatura enxerguem-no menos como

Incipit
algo exclusivo da poesia concreta.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, D. Teoria da Poesia Con-
creta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo:
Ateliê, 2006.
CAMPOS, A. Viva Vaia: poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê,
2001.
CAMPOS, H. (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São
Paulo: EDUSP, 2000.
______. Xadrez de Estrela: percurso textual 1949-1974. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
COMPAGNON, A. O Demônio da Teoria: literatura e senso co-
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E. E, Cummings. Poem(a)s. Trad. Augusto de Campos. Cam-
pinas: Editora Unicamp, 2011.
JAKOBSON, R. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix,
2005.
MARTINS, M. Poemas Reunidos: 1952-2001. Belém: EDUFPA,
2001.

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PIGNATARI, D. Poesia Pois É Poesia: 1950-2000. São Paulo: Ate-
liê; Unicamp, 2004.
POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006.
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SPINA, S. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ateliê,
2002.
TOLEDO, O. D. de (Org.). Teoria da Literatura: formalistas rus-
manuscrítica

sos. Porto Alegre: Globo, 1976.

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