Anais SIPS - FINAL

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 384

ISSN 2527-1490

VII SIPS
VII SEMINÁRIO
INTERNACIONAL
DE POLÍTICA
SOCIAL

ANAIS
2024
ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS
ISSN 2527-1490

VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICA SOCIAL

Desafios para a Política Social e a Democracia no Capitalismo Tardio:


tecnologia, corporações, desinformação e o avanço da direita

03, 04 e 05 de Julho de 2024


Universidade de Brasília

Realização
Programa de Pós-Graduação em Política Social - PPGPS
Da Universidade de Brasília
Brasília, 03 a 05 de julho de 2024

ORGANIZAÇÃO APOIOS
FICHA TÉCNICA

Título:

Anais do VII Seminário Internacional de Política Social: Desafios para a Política Social e a
Democracia no Capitalismo Tardio: tecnologia, corporações, desinformação e o avanço da direita.

Organizadores

Camila Potyara Pereira


Silvia Cristina Yannoulas

Edição:

Universidade de Brasília - UnB

Realização

Programa de Pós-Graduação em Política Social - PPGPS da Universidade de Brasília

Informações

https://sips.unb.br/

Como citar

PEREIRA, C. P. ; YANNOULAS, S. C. (Orgs.). Anais de Trabalhos Completos do VII Seminário


Internacional de Política Social: Desafios para a Política Social e a Democracia no Capitalismo
Tardio: tecnologia, corporações, desinformação e o avanço da direita. Brasília: Universidade de
Brasília, DF: Programa de Pós-Graduação em Política Social - PPGPS, 2024.
EQUIPE ORGANIZADORA DO VII SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE
POLÍTICA SOCIAL

Título da Sétima Edição do Sips (2024):


Anais do VII Seminário Internacional de Política Social: Desafios para a Política Social e a Democracia
no Capitalismo Tardio: tecnologia, corporações, desinformação e o avanço da direita.

Coordenação Geral:
Camila Potyara Pereira (2022-2023)
Silvia Cristina Yannoulas (2023-2024)

Comissão Científica PPGPS:


Cristiano Guedes de Souza,
Evilásio da Silva Salvador
Janaína Lopes do Nascimento Duarte
Newton Narciso Gomes Junior.

Comissão Científica Internacional


Adriana Clemente (Argentina)
Nora Gluz (Argentina)
Josep Burgaya (Espanha)
Xabier Arrizabalo Montoro (Espanha)
Domenico Carriere (Itália)
Yannis Papadopoulos (Grécia).

Comissão Organizadora:

Docentes do PPGPS:
Hayeska Costa Barroso
Kênia Augusta Figueiredo
Liliam dos Reis Souza Santos
Maria Elaene Rodrigues Alves
Michelly Ferreira Monteiro Elias
Miriam de Souza Leão Albuquerque
Reginaldo Ghiraldelli
Thais Kristosch Imperatori.

Representantes Discentes do PPGPS:


Andreza Telles dos Santos Ferreira
Laryssa Danielly Silva Fernandes
João Victor da Cruz Silvério
Lucas Tenorio Soares Carvalho
Thaisy Cunha Pessoa.

Apoio Logístico (Estudantes de Graduação)


Sabrina Lameira Soares Lino
Luiz Felippe de Freitas Magalhães.
APRESENTAÇÃO

O Sétimo Seminário Internacional de Política Social (VII SIPS), ocorrido na Universidade


de Brasília (UnB), no período de 3 a 5 de julho de 2024, contou pela terceira vez na sua história
com Apresentação de Comunicações Orais nas Mesas Temáticas reunindo pesquisadores
(as) de todo o país.

Nessa edição foram organizadas quatro mesas temáticas diretamente relacionadas à


área de concentração do programa: Estado, Política Sociais e Direitos. Essas mesas temáticas
receberam a apresentação 46 comunicações científicas que foram organizadas em torno das
quatro linhas de pesquisa do programa: política social, Estado e sociedade; classes, lutas
sociais e direitos; trabalho, questão social e emancipação: e, exploração e opressão de sexo/
gênero, raça/etnia e sexualidade.

A mesa 1 “Política Social, Estado e Sociedade” contou com apresentação de 13


trabalhos que circundaram em torno da crítica a ideologia neoliberal e seus efeitos nefastos
para classe trabalhadora e suas consequências no financiamento, orçamento e gestão das
políticas sociais. Além de relevantes trabalhos sobre a questão da educação, da análise da nova
direita e as políticas sociais, das contrarreformas, sem falar da perspectiva socioeconômica
na questão indígena.

A mesa 2 “Classes, Lutas Sociais e Direitos” teve apresentação de 9 trabalhos que


versaram sobre os movimentos sociais e direitos da cidadania, as lutas sociais no Brasil,
a questão da saúde, a situação dos estudantes com deficiência na universidade pública,
a crítica ao golpe de 1964 e as semelhanças com autocracia burguesa, o serviço social na
educação, a segregação socioespacial das cidades, e o racismo algorítmico. Além de uma
comunicação internacional sobre as lutas sociais em Angola.

A mesa temática 3 do VII SIPS tratou da temática “Trabalho, Questão Social e


Emancipação” com 15 trabalhos apresentados que investigam os embates entre o direito
ao trabalho e o corolário sobre a “questão social”. São trabalhos que abordaram assuntos
candentes, desde a formação social brasileira até as profundas modificações em curso no
“mundo do trabalho” na crise do modo de produção capitalista.

A mesa 4 “exploração e opressão de sexo/gênero, raça/etnia e sexualidade” teve


apresentação de 9 trabalhos, que exploraram e apresentaram o andamento de pesquisas
sobre a política de saúde dos quilombolas, a influência da mídia na alienação parental, as
políticas de saúde e educação nas determinações do racismo, a violação dos direitos dos
indígenas, a violência contra as mulheres quilombolas, a violação dos direitos das mulheres
trans e travestis, a resistência luta da comunidade quilombola, o papel da mulher indígena,
reflexões sobre os docentes negros e os desafios enfrentados pelas trabalhadoras domésticas.

Com a publicação dos Anais, o Programa de Pós-Graduação em Política Social, cumpre


seu objetivo de fomentar a produção e a difusão de conhecimento sobre questões referentes
às políticas sociais em âmbito nacional, regional e local. Os (as) leitores (as) têm acesso em
primeira mão a pesquisas relevantes que estão sendo desenvolvidas no país, notadamente,
nos programas de pós-graduação da área 32 da Capes - Serviço Social. São trabalhos de grande
importância acadêmica e social que demonstram a vivacidade da produção acadêmica da
nossa área de conhecimento. As comunicações expressam a diversidade de temas que vem
sendo pesquisados e aprofundando criticamente no serviço social brasileiro e áreas afins, que
sem dúvidas corroboram para a formação de recursos humanos de alto nível, qualificados
para o ensino superior, a pesquisa, a produção de conhecimento, o planejamento, a gestão
e a análise de políticas sociais no nosso país.

Desejamos a todos/as, uma boa leitura.

Comissão Científica VII SIPS


Prof. Dr. Cristiano Guedes
Prof. Dr. Evilasio Salvador
Profa. Dra. Janaína Duarte
Prof. Dr. Newton Gomes Júnior
PROGRAMAÇÃO DO VII SIPS

DIA: 03/JULHO

8h às 12h: Credenciamento

Coordenação geral do credenciamento: Profª. Thaís Kristosch Imperatori e Sra. Domingas Carneiro
(UnB/Brasil).

8h30 às 12h30: Apresentação de Trabalhos


Coordenação geral dos trabalhos: Comitê Científico (Prof. Evilasio, Prof. Cristiano, Profa. Janaína e
Prof. Newton - UnB/Brasil).

14h às 18h: Credenciamento

14h30 às 15h: Mesa de Abertura do VII SIPS

DEX - Decana de Extensão Profa. Olgamir Amancia Ferreira


DPG - Profa. Pérola De Oliveira Magalhaes Dias Batista, coordenadora de cursos Stricto Sensu
Diretora do ICH - Profa. Neuma Brilhante Rodrigues
Chefa do Departamento SER - Profa. Patrícia Cristina da Silva Pinheiro
Coordenação da Mesa: Profa. Silvia Cristina Yannoulas

15h às 17h: Mesa 1: Colonialismo Digital e Ameaças à Democracia

Palestrantes:
Prof. Dr. Deivison Faustino (Unifesp/Brasil)
Profª. Dra. Jodi Dean (NY/EUA)
Coordenação de Mesa: Profª. Camila Potyara Pereira (UnB/Brasil)

17h às 18h: Debate

18h30: Lançamento de livros

Organizadoras: Professoras Miriam Albuquerque e Liliam Reis.


DIA 04/JULHO

8h30 às 12h30: Apresentação de Trabalhos

Coordenação geral dos trabalhos: Comitê Científico (Prof. Evilasio Salvador, Prof. Cristiano Guedes,
Profa. Janaína Duarte e Prof. Newton Gomes Júnior - UnB/Brasil).

14h30 às 17h30: Mesa 2: TICs, Corporações e Direito à Comunicação

Palestrantes:
Prof. Dr. Marcos Dantas (UFRJ/Brasil)
Jornalista Ramenia Vieira (Intervozes/Brasil)
Coordenação de Mesa: Profª. Kênia Figueiredo (UnB/Brasil)

17h30 às 18h30: Debate

DIA 05/JULHO

8h30 às 12h30: Minicursos simultâneos

14h30 às 17h30: Mesa 3: Estado, Lutas Sociais e Soberania Política no contexto do avanço das direitas

Palestrantes:
Profª. Dra. Ana Elizabete Mota (UFPE/Brasil)
Prof. Dr. Flávio Casimiro (Instituto Federal Sul Minas)
Coordenação de Mesa: Profª. Liliam Reis (UnB/Brasil)

17h30 às 18h30: Debate

18h30 - Mesa de Encerramento do VII SIPS

Palestrantes:
Representante da Diretoria da Abepss, Profa. Leila Passos (UFCE/Brasil)
Representante da Área 32 na Capes, Profa. Mônica Senna (UFF/Brasil)
Coordenação da Mesa: Prof. Reginaldo Ghiraldelli (UnB/Brasil)
PROGRAMAÇÃO DOS MINICURSOS

DATA: 05 DE JULHO - 08h30 às 12h30

MINICURSO 1

Tema: Gênero, Sexualidades e Neoconservadorismo: Desafios para as políticas sociais.


Palestrantes:
Docente Convidado: Prof. Dr. Guilherme Almeida (UFRJ/Brasil)
Docente UnB: Profa. Hayeska Barroso (Brasil).

MINICURSO 2

Tema: Racismo, Trabalho e Desigualdade Estrutural


Palestrantes:
Docente: Prof. Dr. Mario Theodoro (Senado Federal, Brasília/Brasil)
Docente UnB: Profa. Elaene Rodrigues Alves (Brasil).

MINICURSO 3

Tema: Envelhecimento Populacional e Políticas de Cuidado

Palestrantes:

Docente: Prof. Dr. Vicente Marbán Gallego (Universidad de Alcalá/Espanha)

Docente UnB: Profa. Michelly Ferreira Monteiro (Brasil).


SUMÁRIO

MESA 1: POLÍTICA SOCIAL, ESTADO E SOCIEDADE

NEOLIBERALISMO E O ORÇAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO PERÍODO PANDÊMICO������������ 15


Rayssa Késsia Eugênia Rodrigues; Enaire de Maria Sousa da Silva

NEOLIBERALISMO-FINANCEIRIZADO E A RESSIGNIFICAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS: as


particularidades do Brasil.��������������������������������������������������������������������������������������������������������� 23
Lúcio Willian Mota Siqueira

TRIBUTAÇÃO, POLÍTICAS SOCIAIS E DESIGUALDADE: uma análise da realidade brasileira����������� 30


Damaris Campos de Almeida Silva

SERVIÇO SOCIAL, DEMANDAS DE SAÚDE DISCENTE E ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL: contribuições


profissionais no itinerário de permanência universitária������������������������������������������������������������ 38
Anderson Nayan Soares de Freitas

CONTRARREFORMAS E AVANÇO DO USO DAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO


(TICS): uma articulação para a precarização do trabalho������������������������������������������������������������ 45
Allana Louise Félix da Silva

EDUCAÇÃO & DEPENDÊNCIA: uma análise teórico-crítica à luz de Florestan Fernandes������������� 52


Jefferson Sampaio de Moura; Andreza Telles dos Santos Ferreira

O CIDADÃO E O USUÁRIO: reflexões acerca da participação social nas Políticas Sociais ������������� 59
Verônica Moreira Oliveira

PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: novas agendas de pesquisa


a partir da análise de programas federais de insfraestrutura social�������������������������������������������� 66
Isadora Tami Lemos Tsukumo

ASSISTENTES SOCIAIS NOS SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM


OSC´S: desafios institucionais���������������������������������������������������������������������������������������������������� 73
Camila Gabriel Meireles Amorim

FINANCIAMENTO ESTUDANTIL: quem são os beneficiados?������������������������������������������������������� 85


Mirela Berendt Pinto da Luz

O IMPACTO DA NOVA DIREITA NAS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL NA PERSPECTIVA DA ASSISTÊNCIA


SOCIAL�������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 92
Vitória Macedo de Carvalho
PERSPECTIVAS POLÍTICO-ECONÔMICAS NA DINÂMICA DA QUESTÃO INDÍGENA������������������������ 99
Ingrid Ribeiro dos Santos

REFORMA ATUAL DO ENSINO MÉDIO E O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA����� 107


Eliza Bartolozzi Ferreira

MESA 2: CLASSES, LUTAS SOCIAIS E DIREITO

MOVIMENTOS POPULARES E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DE 2003 A 2016 NO BRASIL 114


Michelly Ferreira Monteiro Elias; Anna Gabriela Mendes Ribeiro

AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA PÚBLICA: análises do endividamento público no Governo Fernando


Henrique Cardoso�������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 121
Rozimeire Satiko Shimizu

LUTAS SOCIAIS EM ANGOLA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO: uma análise a partir dos


acontecimentos de 2015 a 2023����������������������������������������������������������������������������������������������� 128
Hitler Jessy Tshhikonde

AGENTE INDÍGENA DE SAÚDE E AGENTE INDÍGENA DE SANEAMENTO: regulamentação da profissão


como ação necessária ao fortalecimento da PNASPI���������������������������������������������������������������� 157
Débora Barros dos Santos; Camila Tenório Ferreira

ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR: expressões de capacitismo na


Universidade de Brasília���������������������������������������������������������������������������������������������������������� 164
Thaís Kristosch Imperatori; Ariane Miguel Pereira de Azevedo; Elissa Correia de Assunção Soares

O GOLPE DE 1964 E DE 2016: semelhanças da autocracia burguesa����������������������������������������� 171


Kim Taiuara Chavarria Brochardt

O SERVIÇO SOCIAL NA EDUCAÇÃO: a questão social e suas expressões no âmbito escolar������� 178
Cristiane Pereira Barbosa Almeida; Josenice Ferreira dos Santos Araújo

A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DE PALMAS/TO���������������������������������������������������������������������� 186


Maria José Antunes da Silva

MESA 3: TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E EMANCIPAÇÃO

FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO�������������������������������������������������� 195


Juliana Stéfane Carvalho Gomes da Silva; Janaína Lopes do Nascimento Duarte; Thales Eduardo de
Oliveira Martins
MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E SUAS REPERCUSSÕES PARA OS DIREITOS SOCIAIS
����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 201
Isabella Reis Silva; Reginaldo Ghiraldelli

TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO E CAPITALISMO DEPENDENTE: um levantamento


bibliográfico���������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 208
Marianne Ribeiro de Almeida

DIREITOS E TRABALHO NO BRASIL SOB O CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA���������������������������� 215


Guilherme da Hora Pereira

O FAZER MUSICAL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO-SOCIAL NO FORTALECIMENTO DA SAÚDE


MENTAL DE TRABALHADORES DA COLETA DE LIXO DE GOIÂNIA-GO����������������������������������������� 222
Fabrícia Santos Santana; Maria Lúcia Pinto Leal

REFORMA TRABALHISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL������������������������������������������ 229


Karollyne Araujo da Costa; Thais Pereira Carvalho

A INSERÇÃO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR E AS


TENDÊNCIAS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL�������������������������� 236
Laryssa Danielly Silva Fernandes; Mariléia Goin

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E IMPACTOS PARA O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL������� 244


Anna Raquel Andrade Gonzaga; Moema Amélia Serpa Lopes de Souza

O TRABALHO INFANTIL COMO EXPRESSÃO DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: a particularidade da


infância da classe trabalhadora no Brasil��������������������������������������������������������������������������������� 251
Terçália Suassuna Vaz Lira; Mikaele De Véras Matias

CIDADE, ALIENAÇÃO E FETICHISMO ���������������������������������������������������������������������������������������� 259


Lucas Tenório Soares Carvalho

COMUNICAÇÃO PÚBLICA NAS POLÍTICAS SOCIAIS: um fomento à cultura participativa de classe e


a democracia��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 266
Kênia Augusta Figueiredo; Eliana Mourgues Cogoy

A FACE OCULTA DA SOCIOEDUCAÇÃO: o punitivismo como projeto hegemônico no sistema


socioeducativo do distrito federal.������������������������������������������������������������������������������������������� 273
Miriam de Souza Leão Albuquerque ; Matheus Trindade de Souza

TELEMARKETING NO BRASIL: análise dos Acordos Coletivos do SINTTEL-DF frente às mudanças no


Mundo do Trabalho����������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 280
Clarissa Araújo da Silva

A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO: o “modus operandi” da empresa Uber no cenário amazônico 288


Renato Soares de Aquino
REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DA PRECARIZAÇÃO DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SERVIÇO
SOCIAL������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������ 295
Suzi Mayara da Costa Freire

REFLEXÕES ACERCA DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL:


uma análise sob a perspectiva dos gestores em saúde da SES-DF��������������������������������������������� 302
Lanysbergue de Oliveira Gomes

MESA 4: EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO DO SEXO/GÊNERO, RAÇA/ETNIA E


SEXUALIDADE

POLÍTICA DE SAÚDE E COMUNIDADE QUILOMBOLA: desigualdades no acesso à saúde����������� 310


Luís Henrique Belém de Oliveira ; Lucélia Luiz Pereira

CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO DEBATE DA ALIENAÇÃO PARENTAL�������� 317


Lara Iara Gomes Borges; Alessandra Teixeira da Cunha Silva; Maria Cristina Piana

POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE E SOCIOEDUCATIVA: Determinações do Racismo����������������������� 326


Manuela Soares Silveira

ANÁLISE DAS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS INDÍGENAS EM CONTEXTO DE DESINFORMAÇÃO E


OFENSIVA CONSERVADORA - 2016 A 2022������������������������������������������������������������������������������� 333
Priscila Bezerra de Moraes ; Thaísy Cunha Pessoa

MULHERES TRANS E TRAVESTIS EM SITUAÇÃO DE RUA NO DF: uma análise da violação de direitos
����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 340
Maria Cecília Minora Vasconcelos ; Luiza Sousa de Carvalho

QUILOMBO É SINÔNIMO DE RESISTÊNCIA: uma reflexão sobre a Comunidade Quilombola


Malhadinha/TO����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 347
Laís Pereira Santos; Maria José Antunes da Silva; Rosemary Negreiros de Araújo

RACISMO ALGORÍTMICO E MICROAGRESSÕES RACIAIS NO MUNDO DIGITAL��������������������������� 355


Milena Barros Marques dos Santos

O PAPEL SOCIAL DA MULHER INDÍGENA DA COMUNIDADE XERENTE NA CONTEMPORANEIDADE


����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� 362
Isaura Sousa Matos Santos; Raimunda Carvalho Lemos Rodrigues; Margarida de Oliveira Barros
Moura

DOCENTES NEGRAS NO ENSINO SUPERIOR: reflexões a partir da lei 12.990/2014 ������������������� 369
Dyana Helena de Souza

DESAFIOS ENFRENTADOS POR TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL������������������������������ 376


Janaina Alves Costa
MESA 1: POLÍTICA SOCIAL, ESTADO E SOCIEDADE
NEOLIBERALISMO E O ORÇAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO PERÍODO PANDÊMICO

Rayssa Késsia Eugênia Rodrigues


Enaire de Maria Sousa da Silva

RESUMO

O artigo tem por objetivo analisar o orçamento da política de saúde na


pandemia de Covid-19. Foi realizada pesquisa bibliográfica, além de coleta de
dados na base Siga-Brasil. O artigo está organizado em uma introdução, dois
capítulos e considerações finais. O primeiro capítulo aborda a relação entre o
neoliberalismo e o financiamento em saúde, enquanto o segundo apresenta
a análise de dados do orçamento da política de saúde no Brasil durante o
período pandêmico. Ao fim, considerou-se que o padrão orçamentário
executado pelo governo Bolsonaro contribuiu para o desempenho
insatisfatório do país no controle dos casos e, consequentemente, no
aumento de óbitos que caracterizaram a pandemia de Covid-19 no Brasil.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, as intervenções do Estado no âmbito da saúde possuem como ponto de partida


o contexto de urbanização e industrialização do país. Segundo Bravo (2006), a questão da saúde
emerge como especialidade da questão social, resultante da expansão da divisão social do trabalho
e o consequente surgimento de uma nova classe social demarcada pelo segmento operário. Dessa
forma, resgata-se o contexto das primeiras intervenções no âmbito da saúde enquanto resposta às
demandas da classe trabalhadora. No entanto, em um movimento complexo e contraditório, tais
intervenções se configuraram na submissão das ações de saúde às necessidades de acumulação
capitalista, de modo que a classe trabalhadora, ao ter sua demanda por saúde acatada pelo Estado,
passa a ter sua força de trabalho regulada.

Este cenário, que reflete o contexto das primeiras intervenções do Estado, elucida a posição
privilegiada do capital em relação às políticas de saúde desde sua gênese. Este padrão tem se
reproduzido ao longo da formação sócio-histórica do Brasil e, na contemporaneidade, apesar das
novas nuances impostas sobre a conjunta sócio-política, se mantém. Nesse sentido, abordar o
orçamento da saúde pública do Brasil exige o esforço teórico e metodológico de situá-la enquanto
resultado das relações sociais capitalistas estabelecidas no curso da realidade e, portanto, obedece
aos movimentos inerentes ao modo de produção vigente.

Este artigo possui por intuito analisar o orçamento da política de saúde na pandemia de
Covid-19 através da demonstração de dados orçamentários que compreendem o período de
vigência da pandemia no Brasil. Para tanto, foi realizado, preliminarmente, pesquisa bibliográfica
a respeito do Neoliberalismo, seu vínculo com a saúde e os reflexos sobre o financiamento do SUS.

15
15
Posteriormente são apresentados os dados quantitativos referentes ao orçamento de saúde no
Brasil durante a pandemia de Covid-19.

2. A POLÍTICA DE SAÚDE BRASILEIRA NO CONTEXTO NEOLIBERAL: REFLEXOS SOBRE O


(DES) FINANCIAMENTO DO SUS

A nova fase de acumulação do capital, impulsionada pela crise capitalista da década de 1970,
trouxe consigo métodos de produção flexíveis, com alterações no padrão de trabalho desenvolvido
que, a partir de então, passa a contar com níveis cada vez maiores de exploração da força de trabalho.
A entrada desses ditames nos Estados-nacionais exigiu dos governos a adoção de reformas que
pudessem reestruturar as instituições e o arcabouço econômico dos países.

No caso do Brasil, essas modificações passaram a ser operadas a partir da Reforma do Estado,
em 1995, responsável por modificar as formas de intervenção estatal sobre vários aspectos da
realidade brasileira, neles inseridos as políticas sociais. Nesse sentido, o direcionamento do Estado
passou a se basear no incentivo à iniciativa privada, ao tempo em que as expressões da questão
social passaram a ser tratadas de maneira focalizada, seletiva, e com orçamentos cada vez menores.

O cenário se apresentou de maneira contraditória na medida em que, ainda no fim na década


de 1980, a redemocratização do país proporcionou à sociedade o reconhecimento de muitos direitos
sociais a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. Dessa forma, o que o país passou
a vivenciar a partir da década seguinte foi a desconstrução de direitos coletivamente conquistados
através das novas prioridades estabelecidas pelo Estado.

No caso da saúde, o reconhecimento do Estado como responsável pela prestação das ações
e serviços de maneira gratuita, universal e integral foi concretizado pelas lutas empenhadas por
trabalhadores da saúde e movimentos sociais desde a década de 1980. Esses segmentos, que juntos
reivindicaram uma Reforma Sanitária no Brasil, foram decisivos no processo de institucionalização
da saúde, influenciando na determinação dos princípios e diretrizes que hoje subsidiam o SUS,
sobretudo, através das conclusões oriundas da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Segundo Paim
(1997, p. 14),

o conceito ampliado de saúde e dos seus determinantes assumido pela


8ª Conferência Nacional de Saúde e posteriormente incorporado pela
Constituição da República e pela legislação infra-constitucional fundamenta-
se em parte da produção teórico-crítica da Saúde Coletiva no Brasil. Do
mesmo modo, os princípios e diretrizes relativos ao direito à saúde, à
cidadania, à universalização, à equidade, a democracia e a descentralização
conferem uma atualidade dessa produção, sobretudo pela contribuição das
ciências sociais ao campo da Saúde Coletiva.

Tais aspectos, apesar de inseridos no aparato legislativo da saúde brasileira e, em certa


medida, executados através das políticas de saúde, passaram a ser descaracterizados a partir das
necessidades de ampliação da acumulação capitalista impostas pelas políticas de ajuste neoliberal
no Brasil. Assim, diante da Reforma do Estado, o intuito de desburocratizar o aparelho estatal e

16
16
tornar os serviços públicos mais eficientes justificou a aproximação da esfera pública com a iniciativa
privada e, consequentemente, com os interesses de mercado. No âmbito da saúde isso refletiu de
diversas formas.

Inicialmente, menciona-se a alteração nos modelos de gestão em saúde. A partir da adoção


dos conceitos gerenciais, partiu-se do ponto de que algumas políticas sociais, como a saúde,
poderiam ser geridas por organizações que não necessariamente fossem públicas. Além disso, a
necessidade de suprir os interesses de mercado que tem justificado o Estado priorizar a iniciativa
privada que, constitucionalmente, deveria ter participação com viés complementar, no entanto,
observa-se a priorização de repasses de recursos públicos a entidades privadas em detrimento dos
investimentos em políticas estatais.

Além disso, a própria precarização do trabalho, típica das políticas neoliberais, tem oferecido
aos trabalhadores de saúde desafios cotidianos. As condições de trabalho degradantes aliadas às
crescentes demandas por atendimento dificultam a viabilização do acesso universal, favorecendo a
institucionalização de ações seletivas e focalizadas. Todas essas medidas correspondem a estratégias
utilizadas para buscar reduzir o financiamento na saúde pública do Brasil.

Este contexto envolve ainda a reorientação de prioridades de intervenção por parte do Estado
que passou a conduzir os investimentos públicos a setores considerados benéficos à potencialização
da economia. Diante disso, as políticas sociais não foram situadas enquanto espaço privilegiado de
intervenção, tendo sua gestão e execução destinada, primordialmente, para instâncias do Terceiro
Setor, em um cenário crescente de refilantropização da questão social.

Historicamente, o financiamento das políticas de saúde sempre se apresentou como um


grande desafio. Ao se referir à adesão das propostas dos movimentos da Reforma Sanitária pelo SUS,
Paim (2008, p. 114) menciona que, diferentemente dos conceitos que permeiam a regionalização,
descentralização e equidade em saúde,

O mesmo não ocorreu em relação ao financiamento, quando foram


recomendadas maior inversão no setor, com definição de percentual do
Produto Interno Bruto (PIB) (8 a 10%), criação de receita própria para o
setor, fundo nacional de saúde e gestão colegiada desse fundo, bem como a
“desvinculação das fontes para os sistemas de saúde e previdência”.

Além deste cenário, relevante para a institucionalização de aspectos formativos do SUS, a


evolução da saúde no Brasil já indica a histórica dificuldade do Estado em se responsabilizar pelo
financiamento em saúde, sobretudo, frente à presença de um modelo de saúde previdenciário
que responsabilizou os trabalhadores pelo custeio da saúde através de contribuições contínuas.
Nesse sentido, as políticas neoliberais acentuaram tendências históricas de subfinanciamento ao
executarem estratégias de destinação de recursos da saúde à iniciativa privada, com ações e serviços
funcionando de maneira insuficiente em virtude da falta de investimentos.

Entende-se que a década de 1990 representou o ponto de partida para a análise do


subfinanciamento da saúde aos moldes neoliberais. No entanto, a partir de 2016, com a criação
da Emenda Constitucional (EC) 95/2016 durante o governo Temer, os gastos da saúde no Brasil
passaram a ter suas aplicações congeladas, inaugurando-se assim um novo momento em que,

17
17
diferente do que havia até então, não há unicamente os baixos investimentos em saúde, típicos
do subfinanciamento. Com a referida EC e a consequente aprovação do Novo Regime Fiscal (NRF),
a situação foi agravada e os gastos com saúde passaram a entrar em constante declínio devido aos
investimentos que deixaram de corresponder aos níveis inflacionários.

Considerando que o prazo determinado para o congelamento de gastos foi de 20 anos, é


uma situação que tende a perdurar e, diante da chegada do Governo Bolsonaro em 2019, foram
implementadas medidas que concretizaram o recém-instituído desfinanciamento em saúde.
Ainda em 2019 foi aprovada a Portaria MS nº 2.979, responsável por instituir o novo modelo de
financiamento da Atenção Primária em Saúde (APS), o Previne Brasil. A medida foi responsável por
colocar como condicionalidade para alocação dos recursos federais na APS a captação ponderada
e o pagamento por desempenho, consequentemente, o Piso de Atenção Básica Fixo (PAB Fixo) foi
extinto.

Tendo em vista que em 2020, momento em que foi deflagrada a crise sanitária causada
pela pandemia de Covid – 19, tais medidas refletiram sobre o SUS, o orçamento para as ações de
enfrentamento à saúde foi duramente impactado e, consequentemente, carece de análise à parte.

3. ORÇAMENTO DA POLÍTICA DE SAÚDE NA PANDEMIA DE COVID-19 NOS MARCOS


DO NOVO REGIME FISCAL

Para a análise do orçamento da política de saúde na pandemia de Covid-191, faz-se necessário


destacar que as políticas neoliberais afirmaram a austeridade fiscal como a única possibilidade de
saída da chamada “crise fiscal do Estado”. Conforme indica Gentil (2019), essa falsa crise fiscal do
Estado é um mecanismo utilizado para desresponsabilizar o capital pelas suas próprias contradições
e crises. Além disso, por meio do discurso da austeridade, os tentáculos do neoliberalismo passaram
a tensionar os diferentes governos – de direita, centro-esquerda ou extrema direita (Mattei, 2023).

A política adotada pelo Governo Bolsonaro ganhou destaque pelo negacionismo em relação
a pandemia de Covid-19, a minimização da letalidade da doença, a incitação ao descumprimento das
medidas de isolamento social, orientadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a divulgação
de medicamentos ineficazes para o tratamento – recorde-se do chamado “Kit-Covid”, entre outros.
Nesse cenário, ao fim da pandemia o Brasil apresentou-se como o segundo país com o maior número
de mortes absolutas em decorrência da Covid-19 – ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

No âmbito orçamentário, a partir do Gráfico 01 observamos a tendência de concentração


dos investimentos na subfunção assistência hospitalar, na série histórica em análise, 2013-2023,
foram investidos anualmente em média 55,86% dos recursos em assistência hospitalar, enquanto
isso, no mesmo período, foram investidos 24,85% na subfunção atenção básica. A média de
investimento na subfunção suporte e profilático farmacêutico e vigilância epidemiológica foram,
respectivamente, 12,32 e 6,57%. Já as subfunções vigilância sanitária e alimentação e nutrição
1 Dentre os ministros da Saúde nomeados durante o governo Bolsonaro, formou-se uma lista que evidenciou
as instabilidades na gestão da política de saúde. Essa lista inclui os nomes dos médicos Luiz Henrique Mandetta, Nel-
son Teich e Marcelo Queiroga; e o general da ativa do Exército, Eduardo Pazuello. Buscando ultrapassar os marcos da
análise técnica das gestões desempenhadas pelos ministros citados, retomaremos alguns elementos para a compreen-
são do financiamento da política de saúde.

18
18
representaram, respectivamente 0,32 e 0,08%. Nesse panorama, durante a pandemia de Covid-19
ocorreu um aumento dos recursos destinados à vigilância epidemiológica, em termos percentuais,
em 2020 e 2021 foram investidos respectivamente 6,2 e 11% nessa subfunção – o que em termos
reais representou um salto de R$ 10,56 para R$ 19,56 bilhões (considerando os valores pagos e o
resto a pagar – pago, atualizados pelo IPCA).

Gráfico 01 - Orçamento da política de saúde e suas subfunções, respectivamente, em


termos reais e percentuais, no período 2013-2023 (em bilhões/R$, valores atualizados pelo
IPCA – dez/2023)

Fonte: Siga-Brasil (2024), elaboração própria.

O gráfico 01 foi construído considerando o orçamento da política de saúde acrescido dos


recursos do Orçamento Covid-19. Em termos comparativos é necessário subtrair o aporte de recursos
direcionados à saúde a partir do chamado Orçamento Covid-19, nomeado de orçamento de guerra2 –
que permitiu que se ultrapassasse os limites estabelecidos pelo NRF, tendo como finalidade atender
as demandas provenientes da pandemia.

No gráfico 02 observamos o comparativo do orçamento da política de saúde nos anos


2020 e 2021, que permite visualizar o valor total de recursos investidos considerando a subtração
do orçamento de guerra que foi direcionado à saúde. Em 2020 e 2021 foram direcionados,
respectivamente, 50,59 e 42,36 bilhões de reais, dados atualizados pelo acumulado do IPCA (tendo
como referência dez/2023), por meio do chamado Orçamento Covid-19.

2 O “orçamento de guerra” foi aprovado na EC 106/2020 que decretou o estado de calamidade pública em
razão da pandemia, permitindo a adoção de um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações. Assim, a EC
106/2020 estabeleceu que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) não incidisse sobre o orçamento Covid-19.

19
19
Gráfico 02 - Orçamento da política de saúde e subtraído o Orçamento Covid-19 (em bilhões/
R$, valores atualizados pelo IPCA – dez/2023)

Fonte: Siga-Brasil (2024), elaboração própria.

Nesse sentido, o orçamento da saúde subtraído do orçamento da Covid-19 apresentou


variações decrescentes a partir de 2015, contudo, esse cenário se torna mais grave em 2016 que,
quando comparado a 2015, apresenta uma variação negativa (-2,0%); essa variável negativa também
aparece na comparação 2016-2017 (-5,5%).

Dessa forma é importante ressaltar que a comparação 2017-2018 apresenta um percentual


de crescimento positivo (7,3%) alavancado pelos “Restos a pagar (RP) – pagos” (17,14 R$ bilhões
em 2018, o maior volume da série analisada). Na série histórica do presente estudo, em termos
comparativos, tal crescimento de recursos só ocorre no período 2020-2021, diante das necessidades
impostas pela pandemia, e na comparação 2022-2023, diante do início do governo Lula e a retomada
dos investimentos em políticas sociais possibilitada pela PEC da transição.

20
20
Gráfico 03 – Variação de crescimento do orçamento da política de saúde – subtraídos os dados do
orçamento Covid-19 (%, 2013-2023)

Fonte: Siga-Brasil (2024), elaboração própria.

Ao revés dos interesses golpistas, ainda em 2022, a equipe de transição do governo Lula
conseguiu construir alianças para transição de governo. Dentre os feitos da equipe de transição,
merece destaque a aprovação da PEC da transição (PEC nº 32/2022) que flexibilizou o teto dos
gastos em 2023, garantindo a retomada dos investimentos públicos, especialmente no âmbito das
políticas sociais.
Contudo, a aprovação da PEC da transição foi condicionada a apresentação de uma nova
proposta de ajuste fiscal direcionada ao controle dos gastos públicos. A proposta nomeada de Novo
Arcabouço Fiscal (NAF) foi apresentada pela equipe econômica do novo governo Lula, liderada
pelo ministro da fazenda Fernando Haddad, por meio do Projeto de Lei Complementar 93/2023
transformado na Lei Complementar (LC) nº 200/2023. É importante observar que repetindo o rito
das medidas de controle dos gastos públicos que a antecederam, não houve nenhum debate político
com os movimentos sociais sobre a proposta apresentada pelo governo.
Salvador (2023) destaca que sob a lógica do NAF as despesas primárias ficam limitadas ao
percentual do crescimento real apurado a partir do resultado das receitas primárias. Desse modo, na
hipótese de alcance da meta de resultado primário: as despesas primárias podem ser reajustadas,
de forma positiva, no limite de 70% do incremento real da arrecadação do exercício anterior.
Caso o governo não alcance a meta, o limite de investimento caí para 50% do incremento
real da arrecadação do ano anterior. De modo geral, o NAF estabelece um limite para o crescimento
real das despesas primárias que não poderá ser inferior a 0,6% e nem superior a 2,5%, ao ano. Dessa
forma, o NAF visa aumentar o superávit primário direcionado ao pagamento do serviço da dívida
pública, pois, o crescimento dos gastos primários precisa ser inferior ao crescimento das receitas
primárias, conforme estabelecido. No contexto estabelecido a partir do NAF, o orçamento da

21
21
política de saúde tende a continuar sendo apropriado e direcionado para o pagamento das despesas
financeiras, tal qual o pagamento da dívida pública.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme demostrado a partir dos elementos recuperados no presente artigo, a política de


saúde foi balizada pelo projeto neoliberal que avança sobre os direitos sociais, uma das expressões
desse processo é a apropriação dos recursos das políticas sociais. Na pandemia de Covid-19, o
histórico de subfinanciamento e desfinanciamento da política de saúde resultou na ausência de
infraestrutura para o atendimento dos/as brasileiros/as que contraíram o vírus – o que, em última
instância, resultou na morte de mais de 600mil brasileiros/as, até 2021, em decorrência da pandemia
de Covid-19.
Esse cenário, consagrado pelo NRF, foi favorecido pela política negacionista adotada durante
o governo Bolsonaro. A vitória eleitoral de Luís Inácio Lula da Silva, em outubro 2022, não significou
a interrupção ou pausa das políticas neoliberais, conforme ficou evidenciado na política econômica
adotada por meio do NAF, mas evidenciou a necessidade de organização e luta dos movimentos
sociais em torno da construção outra forma de sociabilidade para além do capital.

REFERÊNCIAS

GENTIL, D. L. A política fiscal e a falsa crise da seguridade social brasileira: uma história de
desconstruções e saques. Rio de Janeiro: MauaX, 2019

MATTEI, C. A ordem do capital: Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho


para o fascismo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2023

SALVADOR, E. As origens suspeitas do “arcabouço fiscal”. São Paulo: Outras palavras – internet,
02 de mai. de 2023. Disponível em: <https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/as-origens-
suspeitas-do-arcabouco-fiscal/> Acesso em: 26 de mar. De 2024.

PAIM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 2008.

BRAVO, Maria Inês Souza. Política de Saúde no Brasil. In: MOTA, Ana Elizabete et al. Serviço social e
saúde: formação e trabalho profissional. Rio de Janeiro: Cortez, 2006.

PAIM, J. S. Bases conceituais da reforma sanitária brasileira. In: FLEURY, S. (Org.). Saúde e democracia:
a luta do Cebes. São Paulo: Lemos, 1997.

22
22
NEOLIBERALISMO-FINANCEIRIZADO E A RESSIGNIFICAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS:
as particularidades do Brasil.

Lúcio Willian Mota Siqueira

RESUMO

O artigo debate o impacto do neoliberalismo-financeirizado como


modelo econômico-social de desenvolvimento para América Latina.
Trás as particularidades do modelo para as economias dependentes e
seus desdobramentos para os trabalhadores, dando destaque para a
ressignificação das políticas sociais. Aponta os ataque aos direitos sociais e
da captura do imaginário social, problematizando as transferências de renda
como política de proteção social pela via do consumo.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Financeirização. Políticas Sociais.


Transferência de Renda.

1. NEOLIBERALISMO E FINANCEIRIZAÇÃO COMO DESENVOLVIMENTO DO CAPITAL NA


AMÉRICA LATINA

Na América-Latina o tempo histórico dos ajustes neoliberais e as contrarreformas que se


desencadearam são diferentes, como são variadas as formas políticas que os ajustes assumiram
nestes países. O espectro neoliberal nas economias Latinas varia entre as formas de “caráter mais
‘doutrinário’ ou mais ‘puro’, no qual se aplicam estritamente os princípios do liberalismo econômico,
até aquelas de tipo mais ‘pragmático’, quase sempre mais afeitas ao ritmo e à gradualidade
determinada pelo interesse dominante em cada país” (Soares, 2000, p. 24).

O mercado financeiro em expansão e sob as bases de uma fraca fiscalização e regulações


constituiu papel importante no sistema mundo, mas, principalmente nos países dependentes de
determinar as relações e comportamentos dos homens e na demanda agregada: consumo das
famílias, investimento estatal, diretrizes para exportação. Há a partir do processo de financeirização
uma mudança no modo, tempo, investimento e composição de capital fixo e variável nas indústrias,
determinando o modelo e grau de consumo das famílias e disputando o fundo público de forma
a acirrar a luta pela apropriação e alocação de recursos na sociedade e na distribuição de renda.

Esses elementos levam parte dos industriais a transferirem volumosos recursos do


investimento em capital fixo/variável para o capital financeiro na busca pela ampliação dos lucros
e acumulação de capital, adotando a postura rentista. O processo de financeirização e a busca
por superlucros alteram a produção e circulação de mercadorias, bem como na produtividade do
trabalho, pois altera a função da força de trabalho na realização do valor. Deriva desta mudança o
alargamento do exército industrial de reserva, imprimindo um desemprego estrutural em face de
um desemprego do tipo ‘ideal’.

23
23
Os planos de desenvolvimento econômico contribuíram para o aprofundamento da
dependência e surgimento das primeiras fases da financeirização da economia permitindo que o
capital financeiro adquirisse capital político suficiente para comandar o modelo de desenvolvimento
nacional e o modelo de regulação que advém do tipo da economia-política aplicada. Estabelece-se
a centralidade do capital financeiro e amplia-se o seu domínio sobre o capital produtivo, a produção
de mercadorias e as relações que circundam o consumo, fato que implica em graves consequências
para o conjunto da classe trabalhadora.

Para Salm (2005), há uma incompatibilidade mundial entre a política econômica e a criação
e expansão de postos de trabalho; porém, nos países dependentes que não experimentaram o
pleno emprego e, tampouco um Estado Social, essa incompatibilidade é aprofundada. A situação
nas economias dependentes que já possuem um quadro de desemprego e subemprego crônico
tem suas proporções agravadas: as transformações tanto no mundo do trabalho quanto das
oportunidades ocupacionais são deletérias, dada a impossibilidade da inversão do quadro crônico
e de seu agravamento.

Acontece um processo de rendição forçada do desenvolvimentismo, e acrescentamos


do chamado neodesenvolvimentismo, ao ideário macroeconômico de estabilização monetária e
estabelecimento de metas para produção de superávit primário, o que fortaleceu os economistas
ortodoxos com sua posição neoclássica (Salm, 2005, p. 191). A política econômica desenvolvimentista
de industrialização e criação de postos de trabalho (em sua estrutura precários e de baixos salários)
não foi capaz de gerar emprego e renda; o novo modelo é incompatível com as dimensões de política
econômica e de política de emprego como sinônimos de crescimento e equidade e, portanto, o que
se tem é o conflito.

Nessas condições macroeconômicas, a geração de emprego e renda se limita a políticas de


emprego na ótica microeconômica, fator incapacitante de promoção e sustentação do crescimento
econômico com geração de empregos e equidade. Logo, os níveis indecentes de desemprego,
subemprego e informalidade são de uma realidade socioeconômica anunciada e inevitável, tendo
em vista o comportamento e a decisão esquizofrênica do poder político submisso-associado ao
poder econômico imperialista-financeiro.

O Brasil chega aos anos 2000 como terra arrasada socialmente, pois, no fim dos anos de
1980 e início dos anos de 1990, para além do modelo de desenvolvimento econômico- social,
denominado de neoliberalismo, implanta-se no país uma forma de desenvolvimento pautado numa
política de choque que tem em sua essência o fim dos padrões mínimos de solidariedade social e o
fim das funções obrigatórias do Estado no cumprimento da proteção social.

Granemann (2020, p. 52) argumenta que a burguesia e seus governos entoam diuturnamente
um cântico devocional que captura as consciências e, esse cântico carregado de argumentos e
ideologias sofisticadas ecoam incansavelmente “e repetidamente a impossibilidade de coexistência
de empregos e direitos sociais e, por meio de publicações de alcance mundial, testemunham as
reduções de postos de trabalho”. Trata-se de uma expressa chantagem das burguesias nacionais
à classe trabalhadora, de modo que os trabalhadores fiquem incapacitados de reação e, grande
parte desses trabalhadores, através da ideologia sofisticada do capital e suas mistificações exitosas,
faz com que esses indivíduos acreditem que o desemprego é de estrita responsabilidade de si.

24
24
Wanderlei Guilherme dos Santos (1987) considera as políticas sociais do período neoliberal
de caráter financeirizado como aquelas que ordenam as “escolhas trágicas”. Portanto, o modelo
de política social escolhido, e do tipo ideal para as economias periférico- dependentes, torna-se
uma tragédia ao passo que se revela como política “tirânica”, porque a escolha “de um princípio de
justiça, consistente e coerente, cuja superioridade em relação a outros princípios (...)” seja superior
a qualquer outro princípio, e nas políticas de cunho neoliberal, o que prevalece é o princípio da
elevação da taxa de lucro. São políticas tirânicas porque “impõe privações severas” enquanto há
alternativas que “não imporiam severas privações a ninguém” (Santos, 1987, p. 37)

Constitui-se um padrão monetário mundializado estruturalmente determinado pelas ações,


títulos financeiros e especulação financeira de correntes da deliberada liberalização do capital em
seu movimento imperialista na busca pela supervalorização do capital. É a lógica da maximização
do valor dos portfólios financeiros e, consequentemente, da remuneração dos dividendos que,
por sua vez, está acima de qualquer outro objetivo, seja dos industriais, seja dos trabalhadores. A
prioridade acionária constituía- se pela lógica dos ganhos rápidos e elevados.

Para Chesnais (2005), o sistema das finanças como dinâmica principal e norma geral não
possui a finalidade de elevar a capacidade produtiva ou a produção, mas tem como principal
fundamento a valorização do capital fictício, dos ativos: as transações nas bolsas de valores dão o
tom e se impõem ao sistema produtivo. Com isso, o mercado de ações ganha poder suficiente para
colocar na pauta do dia os interesses da burguesia imperialista financeira e determinar as decisões
das empresas e grandes corporações. Da dominação empreendida nas decisões da produção,
ocorre uma nova mudança que merece destaque: a deslocalização dos oligopólios internacionais e
a fragmentação das cadeias produtivas, forçando uma nova divisão internacional do trabalho com
destaque para a ascensão da economia chinesa.

Nesta contradição visualiza-se, além da incapacidade do atraso que funda as bases de sua
própria derrota, a regulação estatal da economia e de suas estruturas no interior de seus limites
nacionais, ou seja, uma desigualdade interna e, também, entre os países imperialistas e a periferia.
Para ultrapassar as cadeias e limites historicamente impostos a periferia, é preciso que se construa
novas condições históricas para suplantar e transformá-la em seu oposto, mudar o curso do
desenvolvimento.

2. POLÍTICAS SOCIAIS E SUA RELAÇÃO COM A ACUMULAÇÃO DE CAPITAL NO BRASIL

Podemos falar que no Brasil, pelo menos a partir dos anos de 1990, há uma hegemonia
deste capital neoliberal-financeirizado, nos termos gramsciniano, isto, porque, percebe-se que
as instituições que compõe a estrutura do Estado são permissivamente dóceis e operam como
empregadas do capital a fim de assegurar a reprodução do capital financeirizado pelas vias da
formatação e organização da política econômica. É o Estado sendo o garantidor de sua efetivação,
independente do matiz ideológico do partido que esteja a frente do executivo federa.

A “nova” orientação das ações do Estado definiu como sociedade o conjunto de sujeitos
amontoados que por interesses individuais se realizam enquanto homens. Toda e qualquer ação
que possibilite aos sujeitos despertarem para o coletivo enquanto sujeitos múltiplos e diversos que

25
25
tenham o mesmo horizonte de proteção social e direito tem que ser interrompidas, uma vez que
a “liberdade” de escolhas e os interesses pessoais são invioláveis. “Assim a saúde, a educação, a
alimentação, o trabalho, os salários perdem sua condição de direitos - constitutivos de sujeitos
coletivos – e passam a ser recursos (ou mercadorias) regulados unicamente pelo mercado” (Soares,
2000, p. 73).

Para tanto, a burguesia nacional subsidiada pelo ideário liberal e orientada pelo capital
internacional, propôs três pontos fundamentais como solução de um problema inexistente, mas por
ela criado como forma de manipular o imaginário social, vejamos: 1) a prioridade governamental no
pagamento da dívida pública utilizando-se do fundo público para sinalizar ao capital internacional e
seus investidores certa estabilidade econômica; 2) a prestação dos serviços públicos compartilhada
com o terceiro setor, voluntariado, sociedade civil organizada e parcerias público-privadas (PPP),
desonerando o Estado de suas obrigações de financiamento; 3) Adequação das políticas que
compõe o sistema de seguridade social através do caminho da financeiriação, uma maneira que
permite reconfigurar o sistema de seguridade e garantir a prestação dos serviços e ações públicas
para proteção dos mais pobres que necessitam do socorro estatal (Brettas, 2017).

As políticas sociais da década de 1990 foram marcadas pelo esvaziamento do orçamento


nos investimentos sociais que se somou com a seletividade, agravando o quadro social dos países
latino-americanos – precarizou e desprotegeu um grande contingente populacional de menor poder
de pressão social, isto, pois, com a redução ou anulação destes investimentos criou um quadro de
falta de insumos básicos à reprodução e sobrevivência da classe trabalhadora; ademais, há uma
redução real dos salários.

Mota (et al, 2010), afirma que o quadro de ajustes econômicos nos países centrais, mas
principalmente nos países de economia dependente-periférica, foi intenso e que as investidas do
grande capital e dos organismos internacionais redirecionaram e ressignificaram a ideia de proteção
social. A autora destaca as tendências de “regressão das políticas redistributivas” em prol de
“políticas compensatórias de combate à pobreza”, “processo este que se deu concomitantemente
à expansão dos programas sociais de exceção, voltados para o cidadão-pobre, com renda abaixo
da que é definida como linha da pobreza. (Mota et al, 2010, p. 182).

A focalização na visão da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) é o


processo de centralização dos recursos que estão à disposição de investimento numa parcela da
população que potencialmente poderá ser beneficiária, que deve ser precisamente identificada
para se criar programas e projetos que atendam um definido problema ou necessidades não
supridas. Em contraponto a Cepal, o processo de focalização das políticas sociais “é o correlato
da individualização da força de trabalho e da possibilidade estrutural da exclusão de uma parte
dela do mercado de trabalho, ou seja, da forma “legítima” de acessar recursos” (Soares, 2000, p.
79). Logo, opera-se a proteção social pela via de políticas sociais compensatórias focalizadas nos
miseráveis, fato que exclui do atendimento público populações pobres que não se enquadram nas
condições determinadas para acesso ao serviço.

Segundo Pereira (2010), as políticas sociais seguem três diretrizes que se dão
concomitantemente: 1) as políticas sociais deixaram de ser pensadas como insumo essencial
para a reprodução dos trabalhadores; 2) Perderam o sentido universalizador da proteção para
se tornaram políticas que evitassem uma maior deterioração da condição de vida dos mais pobres

26
26
e miseráveis, sem caráter de direito, mas de cunho assistencialista e; 3) as políticas sociais foram
redefinidas como instrumento transitório, pondo fim a alguns programas, projetos e serviços por
serem considerados desnecessários, uma vez que os programas sociais passaram a ter “portas de
saída”.

Num contexto onde a hegemonia do projeto neoliberal-financeirizado é


pujante frente a luta contra-hegemônica, as políticas sociais em sua forma e significado passam
por um processo de “reconversão”, orientada por objetivos que buscam, por um lado, amenizar
os efeitos catastróficos do ajuste fiscal estrutural para reprodução da classe subalterna, de forma
compensatória atuando nos índices micro e macroeconômicos e, numa outro esfera, as políticas
sociais se implantam numa perspectiva de não-direito, pelo processo de focalização, critérios
de acesso e condicionalidade para permanência, se estrutura às margens da institucionalidade
e legalidade que regem o campo da proteção social, dado o fato, sua natureza é flexível e não
constituída na forma e significado do direito de cidadania.

Este processo de ressignificação é constituído em dois processos para Ivo (2004): 1)


“processo de desconstrução (retórica da crise) simbólica e ideológica dos sistemas de seguridade”:
é a segmentação e seletividade dos trabalhadores merecedores e do mecanismo de eficiência e
efetividade dos gastos públicos no combate a extrema pobreza e pobreza. É a ação governamental
da gestão técnica da questão social; 2) “a centralidade do tratamento da inserção dos indivíduos
no mercado, através de transferências monetárias” estimuladoras do consumo de bens, produtos
e mercadorias básicas de reprodução da classe trabalhadora.

As transferências de renda condicionadas carregam consigo o elemento político-ideológico


que se une ao social de maneira a reorientar as políticas sociais de combate à pobreza
e de proteção social, de modo que, a ruptura entre trabalho e proteção social
seja imperceptível para os trabalhadores. Logo, os PTR além de serem um mecanismo capaz de
amenizar as mazelas e pacificar a potência do trabalhador numa possível convulsão social, tem
como principal objetivo diminuir a pobreza de consumo. Aumentar o potencial de compra da classe
subalterna e fazer com que o fluxo de acumulação de capital seja acelerado pelo consumo de
massa e do aumento da produtividade.

No Brasil, o Programa Bolsa-Família (PBF) é a expressão genuína deste processo do não-


direito e da melhoria do processo de acumulação de capital, isto, porque, possui como transferência
de renda condicionada um caráter compensatório para promover ações de combate a fome nos
países considerados pelo centro capitalista e organismos internacionais como: “periféricos” ou
“subdesenvolvidos”.As transferências de renda do Bolsa-Família ganham um significado para além
de caráter compensatório nos governos do PT, acrescenta-se a ideia de via de combate a pobreza e
fome, de proteção social e garantia ao exercício pleno da cidadania.

As políticas sociais em sua ressignificação operada pelo capital neoliberal- financeirizado


absorveram conceitos que influenciam o pensamento social e difunde à classe trabalhadora
despolitizada e excluída de qualquer formação político-sindical até pela esquerda, a ideia de que
a cidadania é um status individual, e a justiça e igualdade social só pode ser alcançada com o
aumento da liberdade e das capacidades. Portanto, os PTR em seus efeitos de segunda ordem,
já que o efeito de primeira ordem é o imediato alívio da pobreza, pode melhorar ou contribuir de
modo indireto para a elevação da renda nacional, através da dinamização da economia nos níveis

27
27
locais e regionais retirando o precariado do subconsumo e dando a ele novo status.

O aumento da renda de milhões de famílias beneficiárias provoca um aumento significativo


do consumo e, por conseguinte, essa demanda induz o crescimento da produção e da necessidade
de mais trabalho o que leva a retirada de mais-valor. Acelera o processo de produção, circulação e
consumo de mercadorias dentro dos mercados locais, regionais e nacional, visto que os beneficiários
da transferência de renda possuem maior propensão relativa ao consumo impulsionando a dinâmica
do fluxo circular da renda.

Estes impactos na renda per capta além de promover alteração na composição do


consumo de itens específicos de alimentação de maior qualidade altera o consumo agregado das
famílias: moradia, lazer, vestimenta. Acrescenta-se que, as transferências monetárias, ao liberaram
parcela da renda e servirem de renda de recomposição do orçamento familiar, permitem que os
trabalhadores desobriguem o Estado e desoneram o capital ao fomentar a autoproteção pela via
do consumo e a autoconstrução, o que barateia os custos da reprodução do trabalhador.

Por fim, frente a derruição dos direitos sociais, crescente desemprego e informalidade,
flexibilização dos direitos trabalhistas, e aumento exponencial da dívida pública, é preciso resgatar
e fortalecer junto à classe trabalhadora o papel primordial que as políticas sociais possuem na
garantia da reprodução social dos trabalhadores nesta sociabilidade. Devemos recuperar o
conceito mais amplo de cidadania plena: como autonomia crítica para os sujeitos atualizem suas
potencialidades de realização humana em cada tempo histórico (Coutinho, 1999), saúde plena e
capacidade de agencia. E recuperar também o conceito de política social não limitada a uma ideia
setorial, “ao minimalismo das práticas locais “bem-sucedidas”, ou ao reducionismo econômico e,
sobretudo, de uma política social que não se submeta a uma supostamente necessária cronologia:
estabilização – crescimento econômico – redistribuição” (Soares, 2000, p. 91).

REFERÊNCIAS

BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no


Brasil. Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.

CHESNAIS, F. Mundialização: o capital financeiro no comando. Les Temps Modernes, 2000.

IVO, A. B. L. A Reconversão do Social: dilemas da redistribuição no tratamento focalizado. São


Paulo em Perspectiva, 18 (2), 2004.

MARINI, R. M. (2005), “Dialética da dependência”, in R. Traspadini e J. P. Stedile, J. P. (org.). Ruy


Mauro Marini: vida e obra, São Paulo: Expressão Popular.

MOTA, A. E. A seguridade social em tempo de crise. In: Cultura da crise e seguridade social: um
estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 80 e 90. São
Paulo: Cortez, 1995.

PAULANI, L. M. Não há saída sem a reversão da financeirização. Estudos Avançados, vol. 31, n. 89,

28
28
2017.

PEREIRA, J. M. M. Assaltando a pobreza: política e doutrina econômica na História do Banco


Mundial (1944 – 2014). Revista História (São Paulo), n. 174, jan/jun., 2016.

O Banco Mundial e a construção político-intelectual do combate à pobreza. Topoy, v. 11, n. 21, jul.
- dez. 2012, pp. 260 – 282.

SANTOS, W. G. do. A Trágica Condição da Política Social. In: ABRANCHES, Sérgio Henrique; SANTOS,
W. G. dos.; COIMBRA, M. A. Política social e combate a pobreza. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro,
1987.

SOARES, L. T. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo, Cortez, 2000.

29
29
TRIBUTAÇÃO, POLÍTICAS SOCIAIS E DESIGUALDADE:
uma análise da realidade brasileira

Damaris Campos de Almeida Silva

RESUMO

Este trabalho propõe uma análise das dinâmicas do estado na gestão do


fundo público dentro do contexto do capitalismo financeiro e sua interação
com as crescentes disparidades sociais no Brasil. A intenção é explorar
as atuais restrições fiscais que obstaculizam a eficaz implementação das
políticas sociais e das reformas na estrutura tributária brasileira. Ademais,
almeja-se uma discussão abrangente que não somente corrija a tributação
sobre o consumo e ajuste os impostos dos estratos mais abastados, mas
que também promova aumentos nos gastos sociais e a redução de impostos
sobre os menos favorecidos, objetivando, assim, elevar a renda dos estratos
inferiores da sociedade. Os desfechos ilustram uma carga tributária mais
onerosa sobre os estratos menos favorecidos, concomitantemente a uma
significativa diminuição nos investimentos em políticas sociais vitais para
enfrentar a desigualdade, em detrimento da alocação de recursos públicos
para amortizar os encargos financeiros da dívida pública.

Palavras-chave: Desigualdade, capitalismo financeiro; políticas sociais,


fundo público.

1. INTRODUÇÃO

As desigualdades sociais e a concentração de renda são marcas inerentes ao sistema


capitalista, revelando suas contradições intrínsecas, as quais estão intimamente entrelaçadas aos
padrões de acumulação de capital. As estruturas estatais, dominadas pela dinâmica do capitalismo
exercem profundos impactos na dinâmica da sociedade. Essa pesquisa almeja examinar tais
conformações do Estado na gestão do fundo público no contexto do capitalismo financeiro, sua
correlação direta com a crescente desigualdade no Brasil e suas implicações nas políticas sociais.
Essa abordagem de cunho crítico visa lançar luz sobre os desafios enfrentados na execução das
reformas tributárias no país, levando em conta as significativas barreiras que dificultam a realização
plena de seus propósitos declarados. Na primeira seção, busca-se a compreensão do papel dos
fundos públicos no atual contexto capitalista, oferecendo reflexões teóricas sobre sua essência,
destacando a base tributária que sustenta a política social brasileira. Nesse contexto, evidenciamos
o caráter marcadamente regressivo da carga fiscal entre os estratos mais vulneráveis da sociedade
brasileira. Na segunda seção, investiga-se as lacunas presentes na estrutura tributária nacional,
comparando com padrões internacionais para ressaltar suas deficiências e suas consequências.
Por fim, a terceira seção avalia como o novo arcabouço fiscal e o sistema tributário restringe a
capacidade do estado para efetuar mudanças substanciais na execução da política social.

30
30
2. O PAPEL ESTRUTURAL DO FUNDO PÚBLICO NO CAPITALISMO FINANCEIRO E AS
POLÍTICAS SOCIAIS

No contexto do modo de produção capitalista, com sua característica de apropriação privada


e exploração intensa da força de trabalho, surgem contradições que desencadeiam as crises no
sistema. Essas crises acontecem por consequência da tendência ao crescimento incessante da
produção, desconsiderando os limites de mercado e, como destacado por Mészàros (2011), até
mesmo os limites impostos pela natureza e, portanto, pela sustentabilidade da vida. A dinâmica
da taxa de lucro surge como o principal fator limitante do desenvolvimento capitalista. Dessa
forma, a crise estrutural do capital transcende a esfera socioeconômica, permeando por todas as
dimensões da vida em sociedade, conforme argumentado por Mészàros (2005), esse sistema cria
crises sem precedentes, cujas ramificações afetam todos os aspectos de uma sociedade como o
âmbito econômico, político, social, educacional e cultural.

O mundo da chamada economia globalizada tem sido marcado por uma série de crises
financeiras (SALVADOR, 2010). A fragilidade sistêmica dessas crises, conforme apontado por
Chesnais (2002), reside na extensão significativa do crédito baseado na produção futura que os
detentores de ativos financeiros buscam, juntamente com as expectativas em relação aos retornos
de suas aplicações financeiras. Em um cenário de estagnação do crescimento econômico, as crises
do sistema capitalista, originadas da intensa especulação se tornam cada vez mais inevitáveis,
tendo em vista os limites do sistema em si.

Considerando a etapa do capitalismo onde existe o predomínio do sistema financeiro,


como argumenta Chesnais (2005), tanto nos países ricos da OCDE quanto nos países periféricos,
como países da América Latina, a acumulação do capital é de modo incessante alimentado pela
dívida pública. Dessa forma a dívida pública tem um papel fundamental no poder das instituições
que controlam o capital portador de juros, exercendo sempre pressão financeira na população de
mais baixa renda, além de pressão política que promove austeridade orçamentária, bem como
privatizações nos países em desenvolvimento e assim o começo do processo de desindustrialização.

No contexto brasileiro, a atração de capitais é impulsionada por meio de altas taxas de


juros e garantias de capacidade de pagamento da dívida pública, o que mantém dessa forma, um
sistema fiscal que aumenta a carga tributária e busca sempre atingir superávit primário em seu
orçamento. Dessa maneira, fica garantido que uma parte significativa do aumento da arrecadação
seja direcionada aos credores dos títulos da dívida pública (BIN, 2010).

Além disso, certas estruturas estatais passam a ser subjugadas pelos interesses dessa elite
portadora do capital, transformando o Brasil em um típico exemplo de regime fisco-financeiro, no
qual as finanças públicas se encontram inteiramente subordinadas às privadas. Como resultado, o
desenvolvimento das capacidades produtivas e a busca por uma distribuição equitativa se tornam
tarefas ilusórias, levando a uma concentração de renda em detrimento do trabalho e à ampliação
das desigualdades sociais, culminando em períodos recessivos.

Behring (2021), por sua vez, conceitua o fundo público como uma composição de mais-valia
e trabalho necessário, pois o Estado necessita apropriar-se de uma parte substancial da mais-valia
para assegurar as condições de reprodução e produção capitalista. Uma vez que uma das principais
maneiras de materialização do fundo público ocorre pela extração de recursos da sociedade sob

31
31
a forma de impostos, contribuições e taxas, a partir da mais-valia socialmente produzida pelos
trabalhadores, este se configura como parte do trabalho excedente convertido em lucro, juro ou
renda da terra, sendo então apropriado pelo Estado para diversas finalidades (BEHRING, 2010).

O orçamento público como parte do fundo público passa então a ser peça fundamental
nos interesses políticos, conforme ressaltado por Oliveira (2009). Ele é empregado para balizar
as discussões sobre as contribuições da sociedade para o financiamento estatal, servindo como
instrumento de controle e orientação dos gastos. Logo, a determinação dos gastos públicos e suas
fontes de recursos não é apenas uma questão econômica, mas, sobretudo, resulta de escolhas
políticas.

Nesse contexto, as prioridades do Estado brasileiro, ao alocar uma parcela substancial do


orçamento público para o pagamento de juros e amortização da dívida pública em detrimento
de políticas sociais como previdência, saúde, educação, trabalho e assistência social, refletem
justamente essas escolhas políticas (OLIVEIRA, 2009).

Uma das bases importantes para o dinheiro público é conseguir o dinheiro dos impostos
de todos, o que significa ver como as pessoas de diferentes grupos sociais são afetadas pelo custo
de manter as políticas do governo. (SALVADOR, 2010). No entanto, o sistema tributário brasileiro
evidencia uma acentuada regressividade, com a predominância de tributos indiretos, resultando
em uma situação em que os menos favorecidos contribuem de forma desproporcional para a
sustentação do Estado em relação à sua renda (SALVADOR, 2023).

Conforme observado por O’Connor (1977), os impostos configuram como um instrumento


de exploração econômica que requer uma análise de classe, uma vez que cada alteração substancial
no equilíbrio político e de classe se reflete na configuração tributária. A tributação sobre bens
e serviços, demonstra de forma clara a regressividade intrínseca ao sistema tributário brasileiro,
incidindo de maneira especialmente pesada sobre a classe trabalhadora, notadamente os estratos
mais desfavorecidos, visto que, boa parte de sua renda se torna consumo (O’CONNOR, 1977).

A análise da carga tributária brasileira revela sua regressividade contundente, onde a maior
parcela da receita é obtida por meio de impostos indiretos e cumulativos que recaem sobre bens
e serviços, ao passo que a tributação sobre renda e patrimônio permanece em níveis modestos
(IPEA, 2011). Dessa maneira, essa estrutura tributária é um fator de concentração do ônus fiscal
sobre os estratos mais frágeis da sociedade, agravando as disparidades sociais preexistentes (IPEA,
2011).

3. ANÁLISE DA ESTRUTURA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA E DA AGENDA DE REFORMAS:


DESAFIOS E PERSPECTIVA

A estrutura tributária brasileira depara-se com uma questão central de intensa regressividade,
prejudicando os menos favorecidos em favor dos mais abastados. Tal regressividade ampliada pelo
peso dos impostos indiretos sobre o consumo, em contraponto aos impostos diretos que incidem
sobre a renda e a propriedade. Essa discrepância se torna visível quando se compara os padrões
internacionais, onde, embora a carga tributária brasileira não ultrapasse a média dos países da

32
32
OCDE (OCDE, 2020), sua distribuição desigual e profundamente regressiva é notável.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2022), a carga
tributária média dos países ricos da OCDE (35%) é maior que a média de países da periferia do
capitalismo (24%), porém similar à carga tributária brasileira (33%). Em relação ao Imposto de
Renda da Pessoa Física (IRPF), existe uma diferença notável entre os países da OCDE (9%) e os
latino-americanos (2% a 3%, incluindo o Brasil, demonstrando dessa forma a necessidade de tornar
o imposto mais progressivo. Quanto aos impostos sobre a propriedade, a arrecadação nos países
da OCDE foi 60% superior à do Brasil, evidenciando a importância de desenvolver uma reforma
tributária progressiva no país. No que diz respeito aos impostos sobre o consumo, a arrecadação no
Brasil foi aproximadamente 50% superior à média da OCDE, indicando a necessidade de reequilibrar
a carga tributária, com ênfase na tributação sobre renda e propriedade e na redução da tributação
sobre bens e serviços (Ipea, 2022).

Tabela 1 - Comparação internacional: base de incidência em relação ao total da carga tributária


(100%)

Arrecadação tributária pelo Bens e


Carga Imposto de Renda Contribuição social
PIB, por categoria de imposto Propriedade serviços
(2019) tributária
(Em %) Indivíduo Empresa Trabalhador Empregador Gerais
Brasil 33,1 s
3,0 s
2,9 2,1 6,4 1,5 12,1
Média da OCDE-17 35,3 9,1 3,2 4,7 5,9 2,4 6,2
Média da América Latina-5 23,8 2,2 3,7 1,4 3,0 1,5 8,3

Fonte: OCDE (2024) e IPEA (2024). Média de 36 países. Elaboração própria.

A visão ortodoxa do estado capitalista de que o ajuste fiscal é fundamental para manter
a estabilidade econômica, o debate sobre a redistribuição da carga tributária é completamente
ofuscado. Quando se discute ampliar a carga para os mais ricos, é necessário um olhar especial para
os mais pobres, isso porque em um cenário onde há um aumento de tributação para os mais ricos,
se não houver um aumento de gastos sociais e investimentos públicos, os benefícios para a base
da pirâmide e o crescimento econômico serão limitados. No entanto, é importante ressaltar que,
mesmo entre economistas progressistas, que defendem a tributação dos mais ricos e um maior
investimento em políticas sociais, a discussão sobre a redução de tributos para os mais pobres no
Brasil é escassa.

A reforma tributária atual focou na simplificação e unificação dos impostos sobre consumo
que irá ocorrer de forma gradual. A nova tributação sobre mercadorias e serviços entrará em vigor
em 2026 e terminará em 2033. Ainda não se pode falar sobre uma reforma tributária progressiva,
o modelo da proposta ainda está em andamento para segunda fase não foi definido, mas há uma
expectativa em relação ao fim de isenção sobre lucros e dividendos distribuídos pelas empresas, a
modificações nos juros sobre capital próprio pagos aos acionistas, mudanças na tributação da folha
de salários e implementação de um imposto de renda progressivo, para uma maior justiça fiscal.
(OXFAM, 2024)

33
33
4. BARREIRAS ESTRUTURAIS PARA A EQUIDADE SOCIAL: TRIBUTAÇÃO E INVESTIMENTO
EM POLÍTICAS SOCIAIS

A necessidade de uma reforma tributária progressista é amplamente defendida como


uma medida crucial para combater as desigualdades sociais, No entanto, mesmo com avanços na
tributação dos mais ricos, o Novo Arcabouço Fiscal emerge como um obstáculo significativo para
o aumento dos gastos sociais e dos investimentos públicos voltados à redução das desigualdades.

O arcabouço fiscal pode ser visto como um motor estrutural e permanente das desigualdades
sociais, substituindo o antigo teto de gastos do governo Temer por três limites orçamentários que
têm o potencial de resultar em efeitos semelhantes ao congelamento de gastos públicos (PPZ
BASTOS, 2023). O primeiro desses limites impõe restrições ao crescimento dos gastos primários,
excluindo os pagamentos de juros e limitando-os a 70% da variação da receita tributária. No entanto,
os formuladores do Arcabouço Fiscal previram a possibilidade de um aumento significativo nos
gastos primários em caso de efetivas reformas tributárias que ampliassem as receitas do governo,
estabelecendo, assim, um segundo teto para conter esse aumento.

O propósito subjacente ao segundo teto é estabelecer uma salvaguarda contra a possibilidade


de que a elevação da tributação sobre os segmentos mais abastados seja desviada do objetivo de
mitigar as desigualdades sociais, mediante um aumento dos gastos e investimentos direcionados
aos estratos menos favorecidos. Nessa direção, restringe-se o crescimento dos gastos primários a
uma taxa anual fixa de 2,5%. Sob essa prerrogativa, mesmo em face de um aumento de 10% na
receita tributária, os gastos primários seriam limitados a um crescimento de apenas 2,5%, enquanto
o excedente seria contabilizado como superávit primário.

Verdadeiras revoluções tributárias no Brasil, diante do atual Arcabouço Fiscal, não permitem
sequer uma taxa de crescimento de gastos sociais e investimentos públicos próxima às registradas
por Bolsonaro e Paulo Guedes antes da pandemia. Estimativas de Tavares e Deccache (2023) indicam
que, se o Novo Teto de Gastos tivesse sido aplicado retroativamente desde 2002, teria resultado,
mesmo em um cenário bastante otimista, em uma redução substancial dos gastos primários do
governo federal, chegando a R$ 8,4 trilhões em valores atuais

Behring (2021) destaca o papel fundamental do fundo público como suporte em situações
de colapso sistêmico do capitalismo, garantindo crédito pelo Estado capitalista para assegurar
as condições gerais de produção e reprodução social. De acordo com Salvador (2010), a função
do Estado na reprodução do capital inclui desonerações tributárias, incentivos fiscais e redução
da base tributária para favorecer o investimento capitalista, além de viabilizar a reprodução da
força de trabalho por meio de salários indiretos e políticas sociais. Isso também envolve alocação
de recursos orçamentários para investimentos em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento,
e, no contexto do capitalismo contemporâneo, transferência de recursos sob a forma de juros e
amortização da dívida pública para o capital financeiro, especialmente para as classes dos rentistas.

A análise da carga tributária brasileira revela sua brutal regressividade, onerando fortemente
a classe trabalhadora, em particular os mais pobres. Segundo dados do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA, 2023), mais da metade da arrecadação provém de tributos que incidem
sobre bens e serviços, com baixa tributação sobre a renda e o patrimônio. Informações da Pesquisa

34
34
de Orçamento Familiar (POF) de 2008/2009 indicam que as 10% famílias mais pobres do Brasil
destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto as 10% famílias mais
ricas gastam 21% da renda em tributos (IPEA, 2023).

Gráfico 1 - Despesas primárias deflacionadas pelo IPCA

Fonte: Tesouro Nacional. Elaboração própria. Série deflacionada pelo IPCA de julho de 2023.
Elaborado por Tavares e Deccache (2023)

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após meticulosa análise sobre a relação entre o fundo público, o capital financeiro e
desigualdade social, torna-se clara a carga dupla imposta à população mais desfavorecida. Em
primeiro lugar, essa camada enfrenta uma incidência tributária desproporcionalmente elevada;
em seguida, testemunha uma parcela substancial desses tributos ser desviada do financiamento
de políticas sociais, sendo direcionada para cobrir gastos com a dívida pública, tais como juros e
amortização. Essa regressividade no sistema de financiamento não apenas perpetua, mas também
acentua as desigualdades sociais no panorama nacional.

Entretanto, o diálogo em torno de medidas fiscais progressivas frequentemente é ofuscado


por uma perspectiva ideológica neoclássica, que vincula investimentos à premissa de poupança
prévia, restringindo assim o leque de políticas econômicas disponíveis. A chamada “austeridade
fiscal progressista” também muitas vezes não só perpetua, mas também agrava as disparidades
existentes, falhando em reconhecer os efeitos adversos dos cortes nos gastos públicos e do aumento
tributário sobre os mais abastados na capacidade governamental de fomentar equidade social e
estabilidade econômica.

35
35
Uma abordagem mais efetiva seria a adoção de políticas sociais centradas na ampliação
dos gastos direcionados aos estratos menos favorecidos, na redução dos impostos indiretos que
os afetam de maneira desproporcional. Essa estratégia poderia angariar amplo apoio popular
para medidas tributárias mais robustas sobre rendas elevadas e grandes fortunas, sem depender
necessariamente de alterações prévias na tributação dos mais ricos. Tal mudança de paradigma nas
políticas fiscais, priorizando investimentos em programas sociais e alívio da carga tributária sobre
os segmentos mais vulneráveis da sociedade, não apenas é factível, mas também essencial para
sociedade obter uma ordem social mais justa e equitativa.

Portanto, é necessário observar a possibilidade tangível e imediata de políticas eficazes.


Esta perspectiva não apenas oferece esperança, mas também delineia um curso de ação concreto
para a construção de um futuro mais inclusivo e equitativo para todos os cidadãos brasileiros.

REFERÊNCIAS

BEHRING, Elaine; BOSCHETTI, Ivanete. “Transferência de renda”, teto de gastos e oportunismo:


para uma crítica de esquerda. 2020.

BEHRING, Elaine. Crise do capital, fundo público e valor. In: BEHRING; Elaine et al. (Orgs.). Capitalismo
em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010.

BASTOS, P. P. Z. Quatro tetos e um funeral: o novo arcabouço/regra fiscal e o projeto social-liberal


do ministro Haddad. Nota do Cecon, n. 21, 13 abr. 2023

BIN, Daniel. A superestrutura da dívida: financeirização, classes e democracia no Brasil neoliberal.


São Paulo: Alameda, 2010.

CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos


econômicos e políticos. In: CHESNAIS, François (Org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo,
2005, p. 35-68.

IPEA. Equidade Fiscal: impactos distributivos da tributação e do gasto social. Comunicado do IPEA
n° 92. Brasília: IPEA, 2023.

MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo,
2002.

OECD Institute of Public Finance (2014), The Distributional effect of consumption taxes in OECD
countries, OECD Tax Policy Studies, nº 22, OECD Publishing.

36
36
OXFAM. Reforma tributária e justiça fiscal. Disponível em: <https://www.oxfam.org/en/pressroom/
pressreleases-01-19/richest-1>.

O’CONNOR, James. USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

SALVADOR, Evilasio. Fundo Público e Questão Tributária no Brasil. Brasília: FOHPS-UnB, 2023.

SALVADOR, Evilasio. Fundo público e seguridade social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.

TAVARES, F. M. M.; DECCACHE, D. Democracia, direitos e política fiscal: desafios para a reconstrução
democrática brasileira sob o novo marco fiscal. Ateliê Geográfico DOI: 10.5216/ag.v17i3.78088.
Disponível em: <https://revistas.ufg.br/atelie/article/view/78088>.

37
37
SERVIÇO SOCIAL, DEMANDAS DE SAÚDE DISCENTE E ASSISTÊNCIA ESTUDANTIL:
contribuições profissionais no itinerário de permanência universitária

Anderson Nayan Soares de Freitas

1. INTRODUÇÃO

Ao vislumbrar o assistente social como um profissional inserido historicamente na divisão


sócio técnica do trabalho, bem como desempenhando suas ações numa perspectiva de totalidade,
apreende-se que sua atuação com a população assistida independentemente do espaço sócio
ocupacional em que esteja inserido, vincula-se a contribuir para a efetivação dos direitos sociais,
como forma de sobrepor as dificuldades, apresentando possibilidades para sua emancipação e
qualidade de vida.

É nesse viés que em se tratando das demandas estudantis apresentadas na realidade de uma
universidade federal, presente no estado do Ceará, o Serviço Social adentra a este lócus pautando
suas intervenções na sobreposição de problemáticas que permeiam essa realidade estudantil, seja
por necessidade de alimentação, transporte, saúde e outras situações que agravam as condições
sociais dos discentes.

O serviço social da Universidade Federal do Cariri (UFCA) situa-se na PRAE (Pró-Reitoria de


Assuntos Estudantis), que tem como objeto de sua intervenção a parcela estudantil em situação
de baixa renda, realizando para apreensão de sua realidade a análise socioeconômica. Esse
procedimento é exclusivo do profissional de Serviço Social dentro da instituição e também nele
consta a sua maior contribuição.

A análise desse profissional é o pré-requisito chave para que os discentes possam adentrar
aos programas de permanência estudantil da universidade. Atualmente são 05 (cinco) profissionais,
e um total de 3.481 discentes (UFCA, 2022). As principais atividades desenvolvidas pelos assistentes
sociais são: análise socioeconômica, envolvendo processos de socialização de informações,
entrevistas e visitas domiciliares.

A contribuição do assistente social para permanência discente na realidade de uma


universidade federal presente no interior do estado do Ceará, no tocante às demandas de saúde,
abarcadas diante do processo de trabalho com o Programa Auxílio-Emergencial no seu intento de
atenuar por meio de aporte financeiro essas demandas.

A importância dessa contribuição está na relevância do trabalho realizado na medida em


que os atravessamentos e/ou implicações dos problemas de saúde estudantil, interferem não só na
qualidade de vida universitária, mas também podem corroborar em situações de baixo rendimento
e evasão do ensino superior.

38
38
2. O PROGRAMA AUXÍLIO-EMERGENCIAL, ÀS DEMANDAS DE SAÚDE DOS DISCENTES
E O TRABALHO DO/A ASSISTENTE SOCIAL: uma relação para consecução da permanência
estudantil

O Ensino Superior tem sido pauta de debates nacionais na medida em que se reconhece
que o direito à inserção nesse nível de ensino, mesmo assegurado nas diversas legislações sociais,
se vê ameaçado, dadas as contradições existentes que perpassam os muros universitários. Versa-se
aqui, sobre as diversas desigualdades sociais, reconhecidas e traduzidas em vulnerabilidades que
ameaçam a permanência estudantil (ANDRADE; TEIXEIRA, 2017).

São várias as demandas que tem se apresentado como barreiras para o alcance da conclusão
do Ensino Superior, e posterior inserção no mercado de trabalho, sendo ainda a educação superior
uma das maiores formas de desenvolvimento social dos sujeitos, bem como sua referida ascensão.
Para uma melhor compreensão desse contexto, pode-se dizer diante do Decreto 7234/2010 que
institui o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) que essas demandas se traduzem
diante das ações do PNAES em promover o acesso a:

I - moradia estudantil; II - alimentação; III - transporte; IV - atenção à saúde; V -


inclusão digital; VI - cultura; VII - esporte; VIII - creche; IX - apoio pedagógico;
e X - acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação
(BRASIL, 2010, p. 01).

Diante do exposto, observa-se que o Programa vem subsidiar condições de permanência no


ensino superior. Desenvolvendo mecanismos sintonizados a esses eixos salientados. Não obstante
a essa apreensão, encontram-se as bases para interface do Serviço Social com essa política, que
no caso da UFCA (Universidade Federal do Cariri) torna-se uma profissão indispensável para a
comunidade estudantil.

A inserção do Serviço Social na UFCA é recente, datada de 2014, logo após a universidade
que antes era um campus da UFC (Universidade Federal do Ceará), ter se tornado independente em
meio ao processo de desmembramento – Lei n° 12.826 de 05 de junho de 2013.

É oportuno mencionar que, esse desmembramento fez parte do processo de interiorização


das universidades, que consideravelmente proporcionou o aumento do acesso ao ensino
superior, como parte de um conjunto de avanços como a implantação dos próprios programas de
financiamento estudantil e de oferta de bolsas em instituições de ensino privadas, tratando-se aqui
do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Programa Universidade para Todos (Prouni). Assim
como a ampliação das formas de ingresso, como as cotas raciais e para pessoas com deficiência,
apesar de ainda persistir um longo itinerário para o alcance de toda a população que enfrentam as
desigualdades para o acesso à universidade (SILVA; CAVAIGNAC; COSTA, 2019).

Nesse viés, a contribuição profissional tem se dado em virtude dos desafios que perpassam
o contexto citado, assim o profissional tem na realização de análise socioeconômica e documental
uma intervenção fundamental para que os discentes com baixa renda e demais adversidades sociais
possam ter possibilidades de transpor suas barreiras e permanecer na universidade.

39
39
Sobre o processo de análise socioeconômica, como aponta Mioto (2009), constitui uma ação
inerente do trabalho do/a assistente social pela sua capacidade de contribuir para a apreensão da
realidade dos sujeitos, e diante dessa apreensão é que se pode criar estratégias e desempenhar
intervenções, neste sentido, essa análise é a porta de entrada para os programas de permanência
da instituição.

E em se tratando destes programas, a UFCA dispõe prioritariamente do Programa Auxílio-


Emergencial, que contribui para permanência discente em três aspectos de acordo com a resolução
do auxílio : estudantes não alcançados por outros programas e ações devido a condição de serem
novatos, estudantes com demandas voltadas aos aspectos de saúde com necessidade de compra de
medicamentos, realização de exames laboratoriais, de próteses, assim como também tratamento, e
por último discentes que vivenciam situações repentinas que interfiram no rendimento universitário
por comprometimento de sua situação financeira (CONSUP/UFCA; 2018).

Sabe-se que tanto o acesso à saúde quanto a educação sob o olhar da constituição cidadã
de 1988 estão postos como direitos sociais, todavia as políticas sociais de ambos os âmbitos ainda
estão longínquas do alcance efetivo da população, o que repercute tanto no quadro familiar, como
na integridade discente, que o leva a uma encruzilhada dentro da universidade, na medida em que
se apresentam demandas de saúde nas quais não tem rendimentos suficientes para suprir, ainda
que se tenha uma política de saúde pública e dita “universal” como o Sistema Único de Saúde (SUS).

E é diante dessa perspectiva que o programa de forma complementar atua na erradicação


dessas demandas tendo em vista que sem saúde, tampouco se consegue dar continuidade ao
processo educativo-formativo. Nessa magnitude, a organização do trabalho do serviço social para
inserção dos discentes no programa vai se dar da seguinte forma.

Figura 1 – Processo de organização do trabalho do serviço social no Programa Auxílio-Emergencial.

Fonte: sistematização própria, 2023.

No planejamento, buscamos organizar todo um cronograma para o processo de concessão


do auxílio, observando os critérios a serem utilizados, quantidade de vagas disponíveis, e
principalmente pensando a celeridade para o quanto antes os discentes terem acesso ao referido
programa.

40
40
Logo após, inicia-se a divulgação do edital do auxílio buscando socializar o máximo de
informações para os discentes, e ao mesmo tempo se iniciam as inscrições com um período de em
média 5 dias, em que se inscrevem no sistema virtual da universidade, entregam cópias das suas
documentações de renda e identificação, bem como do núcleo familiar, e o formulário do programa
com o tipo de solicitação almejada.

Após essas três primeiras etapas inicia-ses a análise socioeconômica, como já referenciado
em linhas anteriores, mas a título de informação complementar, cabe ainda ponderar esta como
competência profissional prevista em legislação da categoria em seu Art. 4º, item XI: “realizar
estudos socioeconômicos com os usuários para fins de benefícios e serviços sociais junto a órgãos
da administração pública direta e indireta, empresas privadas e outras entidades” (CFESS, 2019,
p. 31). Salienta-se ainda que este processo de análise pode envolver também entrevistas e visitas
domiciliares, o que depende da visão do profissional que faz a leitura da realidade discente, da
especificidade da demanda e da disponibilização de recursos pela instituição.

Dentro desse processo, Cavaignac e Costa (2017), chamam atenção para que possa-se
compreender que não é uma tarefa simples a atuação profissional na assistência estudantil, não
diz respeito apenas a gestão e administração de auxílios, mas que o profissional tem que transpor
as subjetividades apresentadas de uma mera execução normativa, para de fato compreender as
particularidades dos discentes, fazendo assim uma análise crítica dessa realidade.

Sobre este aspecto da atuação profissional, cabe ainda mencionar que,

O estudo socioeconômico realizado pelo/a Assistente social oportuniza o


conhecimento da realidade do corpo discente de forma micro e macro, e
precisa ultrapassar o caráter de seleção e alcançar a lógica universalista, em
que o atendimento de necessidades de alimentação, moradia e transporte,
por exemplo, sejam vistas como imprescindíveis, assim como a presença de
docente em sala de aula e livros na biblioteca. A realidade apreendida por
meio do estudo socioeconômico, realizado de forma profunda e especializada
e alinhado aos interesses dos/as usuários, pode balizar a percepção sobre
a garantia de direitos preconizados constitucionalmente, pois corrobora o
entendimento de que para o acesso (em seu sentido amplo) à educação,
ao/à estudante precisa que seja assegurado o atendimento das necessidades
inerentes ao processo educativo. (MIRANDA, 2021, p. 134).

Dando continuidade, com a conclusão do processo de análise, os/as profissionais colocam


a condição de deferidos e indeferidos no programa a partir do atendimento ou não aos critérios
exigidos, emitindo parecer. E posteriormente, finaliza-se o processo que dura em torno de um mês
com a publicização dos resultados no site da universidade.

Apesar da condição de seletividade no trabalho com o auxílio, observamos mediante o


processo de trabalho o quão significativo o programa tem sido para a permanência estudantil
dos que são assistidos. Em questão de valores, cabe mencionar que de acordo com a Portaria nº
296, de 06 de agosto de 2019, em seu Art. 2º, “consiste no pagamento mensal de até R$ 400,00
(quatrocentos reais), por um período de 1 (um) a 04 (quatro) meses consecutivos dentro do ano
vigente” (CONSUP/UFCA, 2019, p. 01).

41
41
Nesse âmbito, o trabalho neste auxílio tem subsidiado a assistência nos aspectos de saúde
nas seguintes áreas:

Figura 2 - áreas estratégicas de saúde que o Programa Auxílio-Emergencial abarca

Fonte: sistematização própria, 2023.

É diante dessas áreas estratégicas que, ao vislumbrar o processo de trabalho profissional


para que os discentes possam ser assistidos pelo referido programa, pode-se abstrair o nível de
contribuição do assistente social em possibilitar essa assistência à saúde.

Deste modo, infere-se também, como versa Almeida (2013) que,

[...] através de programas de assistência estudantil, universidades públicas e


particulares vem contribuindo para o acesso e permanência dos discentes,
considerando o perfil e a política desenvolvida por cada uma delas. E que,
neste cenário, o assistente social é profissional privilegiado, pois trabalha nas
diversas frentes de assistência estudantil, favorecendo não só o acesso às
políticas públicas e a garantia de direitos sociais, mas também a permanência
na universidade (ALMEIDA, 2013, p. 123-124).

Compreendendo nesses moldes a tessitura das vulnerabilidades estudantis, e que estas


perpassam o campo da saúde, mas também o ultrapassam. Buscando atenuar as demandas
encontradas, sendo sempre a porta viabilizadora e mantenedora da inserção estudantil em
programas como o mencionado neste relato.

3. CONCLUSÃO

Diante do que foi apresentado, pode-se dizer que a atuação profissional tem como
prerrogativa fundamental na Universidade Federal do Cariri – UFCA apropriar-se da realidade

42
42
estudantil, analisando suas vulnerabilidades, como estas incidem na sua permanência na
universidade, e possibilitando a inserção em programas de permanência estudantil. Observa-se
que o foco da nossa proposta de debate volta-se em específico para como se dá essa contribuição
no âmbito das demandas de saúde, sendo que estas trazem interferências significativas para o
processo educativo-formativo no ensino superior quando não há o devido suporte.

A importância desse contributo profissional está na perspectiva de pensamento de que


“[...] pensar a formação acadêmica dos alunos implica na criação de condições para que eles
possam concretizar suas expectativas em relação à sua graduação, em tempo regular e com melhor
rendimento possível” (ALMEIDA, 2013, p. 123). Tendo os programas de permanência, assim como
é o caso do auxílio-emergencial a possibilidade de fazer isso acontecer, e os profissionais de serviço
social diante desse cenário interventivo tem o privilégio de atuar para materialização dessas
condições.

Destarte, cabe ao profissional seguir nesta perspectiva contributiva com a análise e inserção
dos discentes nos programas de permanência e em especial, no Programa Auxílio-Emergencial,
dado o seu caráter voltado ao atendimento das demandas de saúde, situação esta cada vez mais
complexificada mediante o curso contemporâneo que apresenta um contexto de crise política,
social, no trabalho e na economia, principalmente acarretando aos aspectos de saúde mental da
população estudantil e o seu adoecimento.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira; PEREIRA, Larisa Dahmer (Org.). Serviço Social e Educação, 2 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, p.113 - 129, 2013.

ANDRADE, Ana Maria Jung de; TEIXEIRA, Marco Antônio Pereira. Áreas da política de assistência
estudantil: relação com desempenho acadêmico, permanência e desenvolvimento psicossocial de
universitários. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas), v. 22, p. 512-528,
2017.

BRASIL. Decreto n. 7234, de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência
Estudantil – PNAES. Brasília, 2010.

______. Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008. Dispõe sobre o estágio de estudantes; altera a
redação do art. 428 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Diário Oficial da União, Brasília, DF,
26 set. 2008.

______. Lei nº 12.826, de 5 de junho de 2013. Dispõe sobre a criação da Universidade Federal do
Cariri - UFCA, por desmembramento da Universidade Federal do Ceará - UFC.

CAVAIGNAC, Mônica Duarte; COSTA, Renata Maria Paiva da. Serviço social, assistência estudantil e
“contrarreforma” do Estado. Temporalis, v. 17, n. 34, p. 411-435, 2017.

CFESS. Código de Ética do/a Assistente Social - Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão. Edição
trilíngue - CFESS. Brasília, 2019.

43
43
CONSUP/UFCA. Portaria nº 296, de 06 de agosto de 2019. Dispõe sobre os valores dos Auxílios
Emergencial, Óculos e Financeiro a Eventos pagos pela Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis - PRAE
da Universidade Federal do Cariri - UFCA. Disponível em: https://documentos.ufca.edu.br/wp-
folder/wp-content/u ploads/2019/08/REITORIA-UFCA-%E2%80%93-Portaria-n%C2%BA-296-define-
valores-dos-aux%C3%ADlios-da-PRAE-06.08.19.pdf. Acesso em: 16 de abr. 2023.

CONSUP/UFCA. Resolução nº 26/Conselho Superior Protempore UFCA, de 16 de agosto de 2018.


Disponível em: https://documentos.ufca.edu.br/wp-folder/wp- content/uploads/2019/09/Res-26.
pdf. Acesso em: 16 de abr. 2023.

MIOTO, R. C. T. Estudos Socioeconômicos. In: CFESS; ABEPSS. Serviço Social: Direitos Sociais e
Competências Profissionais. Brasília: CFESS; ABEPSS, 2009.

MIRANDA, Adriana de Melo. O estudo socioeconômico nas políticas de assistência estudantil dos
Institutos Federais da região Centro-oeste: configurações, contradições e perspectivas. 2021.
Dissertação (Mestrado em Política Social) – Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2021. Disponível
em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/41764. Acesso em: 16 de abr. 2023.

SILVA, Flávia Gonçalves da; CAVAIGNAC, Mônica Duarte; COSTA, Renata Maria Paiva da. Assistência
estudantil e acesso à educação superior: um estudo na UECE. Revista Em Pauta: teoria social e
realidade contemporânea, v. 17, n. 44, 2019.

UFCA. Relatório de gestão, 2021. Disponível em: https://documentos.ufca.edu.br/wp -folder/wp-


content/uploads/2022/04/Relatorio-de-Gest%C3%A3o-2021.pdf. Acesso em: 16 de abr. 2023.

44
44
CONTRARREFORMAS E AVANÇO DO USO DAS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TICS):
uma articulação para a precarização do trabalho

Allana Louise Félix da Silva

RESUMO

O presente artigo versa sobre a nova morfologia do trabalho, dando ênfase


sobre a articulação das contrarreformas e o avanço do uso das Tecnologias
da Informação e Comunicação. A reestruturação produtiva, iniciada nos
anos 1970, trouxe novos desenhos sobre o trabalho na contemporaneidade.
As contrarreformas e o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs), especialmente as digitais, ocupam espaço relevante neste cenário.

Palavras-chave: Trabalho. Contrarreformas. Tecnologias da Informação e


Comunicação.

1. INTRODUÇÃO

O trabalho assumiu diferentes configurações no decorrer da história: das formas


exaustivas e violentas que marcaram o escravismo à realização de atividades laborais nos feudos,
do artesanato e da manufatura às primeiras máquinas introduzidas na indústria, da vigência do
fordismo e taylorismo nas fábricas à reestruturação produtiva iniciada nos anos 1970 que, entre
outros desdobramentos, impôs ao mundo do trabalho novas ferramentas, condições e relações de
trabalho.

A nova morfologia do trabalho apresenta elementos que articulam inéditas formas e relações
de trabalho, na mesma medida que recorre à características experienciadas nos primórdios do
capitalismo. As contrarreformas e o avanço do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs), especialmente as digitais, ocupam espaço relevante nas reconfigurações do trabalho na
contemporaneidade.

2. MUNDO DO TRABALHO: O ALVO CENTRAL DA BARBÁRIE CAPITALISTA

O mundo do trabalho tem sido marcado pelo desemprego crônico, pela precarização
das relações de trabalho, pelo esfacelamento da proteção trabalhista, pela expansão do setor de
serviços e da plataformização do trabalho, em que a utilização das Tecnologias da Informação
e da Comunicação (TICs), sobretudo digitais, atuam como ferramentas de intensificação e
aprofundamento da exploração do trabalho.

45
45
O recrudescimento do capital, caracterizado pela agudização das contradições do próprio
sistema, instaurou uma crise que se apresenta no capitalismo a partir dos anos 1970, uma crise
estrutural (Mészáros, 2009).

As incertezas que se interpõem frente ao controle da estrutura capitalista, diante da


crise, exige uma reconfiguração que retome as rédeas de seu desenvolvimento. A resposta
para tal enfrentamento se apresenta na acumulação flexível, viabilizada por meio de novas
operacionalizações, na qual se sustenta sob uma nova base tecnológica, organizacional e
sociometabólica para a exploração da força de trabalho.

Uma matriz orientadora que compõe novos moldes de sociabilidade e organização também
é adotada, o neoliberalismo:

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma das teorias práticas político-


econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido
liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no
âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a
propriedade privada, livres mercados e livre comércio. (HARVEY, 2008, p.12)

Evidencia-se, portanto, um processo de reorganização do capital frente à crise, cuja


privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor
produtivo estatal se tornam característicos.

A financeirização do capital, enquanto marcador desse estágio do capitalismo, aponta para


a expansão do mercado financeiro com cada vez menos restrições e barreiras regulatórias, que só
se faz possível com o apoio e atuação conjugada do Estado.

Tais pontos são centrais no contexto de crise estrutural do capital, em que as políticas
privatistas ganham destaque e as instituições constitutivas do capital financeiro – os bancos e os
investidores institucionais – assumem posição estratégica no comando da acumulação e dominação
capitalista (Silva, 2021).

Os retrocessos tornam-se regras com a ascensão do neoliberalismo. Afinal, é num contexto


de uma crise estrutural, que atinge amplamente as mais diversas esferas, que o projeto neoliberal
se coloca como solução. Os seus impactos refletem sobre todas as dimensões da vida, mas o
trabalho se acentua como alvo mirado:

O mundo produtivo contemporâneo, particularmente a partir do amplo


processo de reestruturação do capital desencadeado em escala global no
início da década de 1970, vem apresentando um claro sentido multiforme.
Por um lado, acentuando as tendências de informalização da força de trabalho
em todo o mundo e de outro lado do pêndulo, as tendências em curso nas
últimas décadas estariam sinalizando traços que seriam vistos como mais
“positivos”, em direção a uma maior intelectualização do trabalho, sobretudo
nos ramos dotados de grande impacto tecnológico-informacional-digital.
(ANTUNES, 2020, p.70)

46
46
Após a reestruturação produtiva, o trabalho passou por metamorfoses relevantes, é o
que Antunes (2020) designa como nova morfologia do trabalho. Trata-se de uma processualidade
multitendencial que impacta o trabalho na contemporaneidade e abrange diferentes modos de
precarização.

Percebe-se que as mudanças que atingem o trabalho não se reduzem à mera sofisticação
de seus instrumentos e receituários, mas incidem diretamente sobre a sua própria forma de
realização, assim como mina conquistas históricas que se vinculam a este campo no decorrer de seu
desenvolvimento. Então, o que se vivencia no mundo do trabalho na atualidade, é algo para além
da negação do capital em se utilizar das disponibilidades em favor do desenvolvimento humano,
mas efetiva um retrocesso sobre conquistas já consolidadas pelos/as trabalhadores/as.

Esta é uma grande contradição da sociabilidade burguesa nesse contexto, apesar da plena
possibilidade em viabilizar uma relação com o trabalho menos penosa e mais facilitada, o que se
concretiza na contemporaneidade possui um direcionamento em seu sentido oposto.

É tendo isso como panorama que se pode visualizar o trabalho na contemporaneidade


como alvo direto da barbárie capitalista, pois escancara em como as ferramentas e artimanhas
utilizadas pelo capital possuem um único objetivo: a busca desenfreada por lucro, que se reverte,
paralelamente, em ônus e exploração para o trabalhador. As contrarreformas e o avanço do uso
das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) são marcadores dessa reconfiguração do
trabalho, em que há a articulação da precarização do trabalho e da utilização de novos modos
de extração de sobretrabalho e de mais-valia, como ocorre com a imbricação do uso das TICs ao
mundo do trabalho.

3. AS CONTRARREFORMAS E O AVANÇO DO USO DAS TICS COMO REFLEXOS DA


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

O redesenho do trabalho aos moldes contemporâneos, que tem como alguns de seus
reflexos a imbricação do uso das TICs ao trabalho e a precarização, se materializa na chamada
trípode destrutiva que impera sobre o trabalho, a terceirização, a informalidade e a flexibilidade
(Antunes 2020). A articulação direta do trabalho com o ímpeto destrutivo do capital se apresenta
em um movimento dialético, ao mesclar alguns progressos com retrocessos.

O processo de expropriação, enquanto fenômeno constitutivo e permanente do modo de


produção capitalista, conjuga um processo que se aprofunda com sua expansão. Tendo isso como
partida, as expropriações contemporâneas (Fontes, 2010) ganham maior sentido, visto que não
se apresentam como a expropriação primária, aquela descrita por Marx ao falar sobre a assim
chamada acumulação primitiva. Nesse momento, trata-se de maior exasperação da disponibilidade
dos/as trabalhadores/as para o mercado e um aprofundamento da precarização dos modos de
vida. Dessa forma, há uma atualização das formas de expropriação.

A atualização das formas de expropriação se esclarece em sua articulação com o mundo


do trabalho na atualidade, já que é com a ascensão do neoliberalismo, sobretudo no Brasil, que a
expropriação de direitos sociais tomam efervescência. As contrarreformas constituem exemplos de

47
47
agressivas expropriações sobre os/as trabalhadores/s, cujos objetivos almejam a lucratividade do
capital em detrimento de condições de vida socialmente aceitáveis aos trabalhadores (Silva, 2017).

Além da desregulamentação dos direitos do trabalho, outras inserções e mudanças se


apresentam: uma revolução tecnológica ainda mais intensa, com a introdução da automação, da
robótica e da microeletrônica, a flexibilização da unidade fabril, o aumento do novo proletariado
de serviços, os novos padrões de gestão e “envolvimento” da força de trabalho redesenham as
formas de execução do trabalho. E para além disso, também atinge, sem tardar, a subjetividade
do/a trabalhador/a, afetando seus organismos de representação, dos quais os sindicatos e partidos
são expressão (Antunes, 2018).

Algumas dessas características se expressam na realidade brasileira:

A flexibilização produtiva, as desregulamentações, as novas formas de


gestão do capital, o aumento das terceirizações e da informalidade acabaram
por desenhar uma nova fase do capitalismo no Brasil. A introdução das
modalidades típicas da era da acumulação flexível, combinadas com
elementos do taylorismo e do fordismo ainda presentes em diversos ramos
produtivos, indica que o fordismo brasileiro já se mesclava com novos
processos produtivos, principalmente com aqueles oriundos da experiência
toyotista ou do chamado modelo japonês. As novas modalidades de
exploração intensificada do trabalho, as distintas formas da flexibilização e
informalização da força de trabalho (contratos empregatícios que ficavam
à margem da legislação social trabalhista), combinadas com um relativo
avanço tecnológico, tornaram-se um traço distintivo do capitalismo brasileiro
recente. (ANTUNES, 1999, p.125)

Sobre o uso das TICs articulada ao trabalho, os interesses de seu uso na acumulação capitalista
tomam rumo necessário na discussão sobre suas vantagens e desvantagens. Em O capital, Marx já
previa e questionava sobre a finalidade da maquinaria no modo de produção capitalista, mesmo
que sob contexto diferente: “Daí este notável fenômeno na história da indústria moderna, a saber,
de que a máquina joga por terra todas as barreiras morais e naturais da jornada de trabalho” (Marx,
2017, p.480).

Há um amplo cenário que se forja em torno dos interesses burgueses e se desdobra em


uma realidade de desemprego crônico, de desmonte do trabalho regulamentado, com distintas
formas de flexibilização e precarização do trabalho, cujas alternativas apresentadas pelo capital
ocultam seu caráter exploratório sob uma roupagem meritocrática e individualizadora. O ideário
que prevalece é permeado de valores que fortalecem a hegemonia neoliberal, estimulando o
trabalhador a alcançar “seu próprio sucesso”, enquanto em termos concretos, é empurrado para
um contexto de precarização do trabalho, desprovido de segurança, direitos e proteção.

Estes traços constituem o desenho do trabalho no capitalismo global, mas assumem


particularidades conforme sua alocação em diferentes formações sócio históricas, engendradas
pela divisão internacional do trabalho. Na realidade brasileira, seu movimento é ritmado, ora mais
sagaz, ora mais ameno. Aqui, há ênfase do período entre 2016 e 2021, momento em que essas
medidas se aprofundam de forma incisiva e célere nos governos de Temer e de Jair Bolsonaro.

48
48
As medidas contrarreformistas realizadas neste período possuem amplitude que não
permite uma análise minuciosa neste espaço, no entanto, convém destacá-las. A Lei n.º 13.467,
sancionada em 13 de julho de 2017, estabelece a chamada contrarreforma trabalhista, uma das
maiores ofensivas aos trabalhadores/as.

Além da contrarreforma trabalhista, o movimento de contrarreforma previdenciária não


só se manteve, como se aprofundou, articulada “a mais destrutiva Emenda Constitucional (EC)
sobre a seguridade social aprovada desde sua instituição” (Silva, 2021, p. 44). Aprovada no governo
Bolsonaro, a EC nº 103/2019, trouxe enormes prejuízos à classe trabalhadora: “seja pelos limites
de acesso, seja pela redução do tempo de usufruto, seja pela redução dos valores dos benefícios.
Tudo isso implicará ampliação da desigualdade social nas dimensões de renda, gênero, raça/etnia,
regiões geográficas, entre outras” (Silva, 2021, p.58).

Logo, há a conformação e aprofundamento de uma vasta fragilização e flexibilização das


formas de proteção à classe trabalhadora. Além disso, a adoção do uso das TICs no trabalho encontra
um terreno fértil, aberto pelas medidas contrarreformistas, para aprofundar a precarização. Como
exemplo, a possibilidade de acentuação do teletrabalho, adequada na Lei n.º 13.467/2017, tem
sua continuidade e fusão ao avanço do uso das TICs como alternativa resolutiva de problemáticas
desencadeadas, inclusive, pelo próprio desmantelamento e precarização do trabalho.

O uso das inovações tecnológicas na sociedade capitalista salienta seu caráter contraditório:

A tecnologia desempenha, portanto, um papel central e contraditório em


relação à força de trabalho. A inserção de novos modelos de organização
do trabalho em nível mundial comprovou que o processo de reestruturação
produtiva pautada pela inovação tecnológica, ao invés de proporcionar
melhores condições aos trabalhadores, contraditoriamente, impulsiona
a exploração de trabalho por meio de extensas jornadas, que implica na
captura da subjetividade do trabalho, o qual passa a viver inteiramente ao
trabalho, além de outros fatores que implicam na precarização das condições
do trabalho. (SOUZA, 2022, p.130)

A utilização das TICs traz, mais uma vez, o esclarecimento de que seu uso em detrimento
da coletividade, não se efetiva, e nem pode se efetivar na sociedade burguesa, visto que sua
inserção ocorre alinhada a um movimento de degradação das condições de trabalho, assim como
de aprofundamento de sua exploração e intensificação.

A maquinaria, enquanto meio de trabalho, possui impacto direto sobre a composição


orgânica do capital, sobretudo, em relação ao trabalho vivo. O prolongamento da jornada de
trabalho e sua intensificação ganham destaque:

Se a maquinaria é o meio mais poderoso de incrementar a produtividade do


trabalho, isto é, de encurtar o tempo de trabalho necessário à produção de
uma mercadoria, ela se converte, como portadora do capital nas indústrias
de que imediatamente se apodera, no meio mais poderoso de prolongar a
jornada de trabalho para além de todo limite natural. Ela cria, por um lado,
novas condições que permitem ao capital soltar as rédeas dessa sua tendência

49
49
constante e, por outro, novos incentivos que aguçam sua voracidade por
trabalho alheio. (MARX, 2017, p.476)

Portanto, o cenário que se impõe sobre o trabalho hoje, articula a expansão informacional-
digital, mas se vincula à trípode destrutiva: a terceirização, a informalidade e a flexibilidade. A
proteção trabalhista é desmontada e, não suficiente, há um aprofundamento das precárias
condições de trabalho com o papel imprescindível que as TICs desempenham.

Algumas das grandes consequências é a expansão do trabalho sem direitos, mediada


pelo desmantelamento da proteção trabalhista e desmonte dos direitos sociais básicos da classe
trabalhadora. O aumento da fragmentação e heterogeneização no interior da classe trabalhadora e
o enfraquecimento do sindicalismo, que tomam forma pela desmobilização dos/as trabalhadores/
as de múltiplas formas. Os mecanismos utilizados pelo capital a fim de manter sua dominação
irrefreável, como ocorre com o uso intensivo das TICs, em que a ascensão de um novo proletariado
diante das tecnologias e espaços virtuais, “vivencia um trabalho (quase) virtual em um mundo
(muito) real” (Antunes, 2009, p.237). Os desdobramentos se encontram no impulsionamento
da intensificação do trabalho e no isolamento do/a trabalhador/a, já que há um afastamento
da coletividade que o espaço comum proporciona. As novas formas de adoecimento ocorrem
não só pelo processo de robotização, mas também pela combinação de práticas pautadas por
“multifuncionalidade, polivalência, times de trabalho interdependentes, além da submissão
a uma série de mecanismos de gestão pautados na pressão psicológica voltada ao aumento da
produtividade” (Antunes, 2020, p.144).

As mudanças no trabalho são incontáveis e em diversificadas formas. As consequências e


prejuízos não seriam diferentes, repercutem de forma incisiva em amplas dimensões da vida social:
“afetou tanto sua materialidade, a sua forma forma de ser, quanto às suas demais dimensões, com
as esferas subjetiva, política, ideológica, dos valores e do ideários que pautam suas ações e práticas
concretas”(Antunes, 2015, p.227).

De acordo com Antunes (2011), trata-se da erosão do trabalho regulamentado, sendo este
trabalho substituído pelas formas de precarização. Somam-se outros elementos, o que evidencia
um projeto bem articulado: a implementação de um trabalho menos custoso para o capital, já que
há um amplo desinvestimento na força de trabalho, seja com a desregulamentação do trabalho,
com a transferência dos custos do desempenho do trabalho para o/a próprio/a profissional e/ou
com a sobrecarga de trabalhos reduzida a poucos profissionais, assim como ônus cada vez mais
potencializado para o/a trabalhador/a, em que a precarização e intensificação do trabalho se
viabilizam pelo avanço e uso intensivo das TICs. Apesar das possibilidades de uma relação mais
facilitada com o trabalho, a corrosão dos direitos trabalhistas e a usurpação até o seu limite dos/
as trabalhadores/as, pelos caminhos cada vez mais abertos para a extração de mais-valia que
encontram nas TICs um aliado forte na execução deste processo, ganham impulsionamento na
contemporaneidade.

50
50
REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do


trabalho. Campinas, SP: Cortez. 1995.

ALVES, Giovanni Antonio Pinto. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do


capital. Educação & Sociedade. Centro de Estudos de Educação e Sociedade - Cedes, v. 25, n. 87, p.
335-351, 2004. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/10827

PRAUN, Luci. A sociedade dos adoecimentos no trabalho. Serviço Social & Sociedade, n. 123, p.
407– 427, jul. 2015.

O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
325 p.

Os sentidos do trabalho: Ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP:
Boitempo. 1999.

(org). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

FONTES, V. A transformação dos meios de existência em capital – expropriações, mercado e


propriedade. In: BOSCHETTI, I. (org). Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez,
2018. p. 17- 59.

O Brasil e o Capital Imperialismo – teoria e história. Rio de Janeiro, FIOCRUZ - EPSJV e UFRJ, 2010.
Capítulo 1.

HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola, 2008.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro 1. 1ª ed. Revista. São Paulo: Boitempo, 2017.

SILVA, ALF. Contrarreformas trabalhista e previdenciária e a expansão do trabalho sem direitos


no Brasil no contexto da crise do capital entre 2016 e 2021. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
– Departamento de Serviço Social, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília. 2022.
89p.

SILVA, MLL. A previdência social no Brasil sob a mira e ingerências do capital financeiro nos últimos 30
anos e a tendência atual de capitalização. In: SILVA, MLL da.(org.) A contrarreforma da previdência
social no Brasil (Uma análise marxista). Campinas/SP: papel social, 2021.

Expropriação de direitos trabalhistas e previdenciários em favor da lucratividade do capital. Revista


Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v.27, n.1, p.179-209, 2017.

SOUZA, M. O teletrabalho no INSS: a visão de entidades sindicais de trabalhadores sobre o


teletrabalho em implementação na autarquia federal. 2022. 501 p. Tese (Doutorado em Política
Social) — Universidade de Brasília, Brasília, 2022.

51
51
EDUCAÇÃO & DEPENDÊNCIA:
uma análise teórico-crítica à luz de Florestan Fernandes

Jefferson Sampaio de Moura


Andreza Telles dos Santos Ferreira

RESUMO

O padrão de dependência e submissão se forma no cenário econômico,


social, cultural e político, com bases que o sustentem até no âmbito
educacional. Nesse sentido, a presente pesquisa objetiva refletir teórico-
criticamente a relação educação e dependência no contexto do capitalismo
dependente brasileiro à luz da obra de Florestan Fernandes. Foi realizado
um estudo de caráter qualitativo, com base na revisão de literatura e com
análise sustentada no método histórico-dialético, tendo como aporte teórico
as obras de Florestan Fernandes. A análise aponta para o desafio educacional
como grave dilema social brasileiro, que ao tempo em que apresenta a
potencialidade de romper os processos de exploração e opressão, pode
também sustentar um sistema de dependência e de conformação.

Palavras-chave: Dependência. Educação. Florestan Fernandes.

1. INTRODUÇÃO

Em meio à ditadura civil-militar brasileira em 1971, Chico Buarque lançou “Construção”,


uma canção que desafiou a classe privilegiada da época a refletir sobre a realidade precária dos
trabalhadores envolvidos nas grandes obras do país. Com uma narrativa melódica, ele destacou
a divisão de classes no Brasil da época, onde o valor limitado desses trabalhadores era mantido
para preservar distâncias sociais. Chico Buarque não previu que esse cenário persistiria até os dias
atuais.

O que se cantava em 1971 se mantêm nos canteiros de obras ao redor do país, expandindo-
se para o “quarto de empregada”, para o “quartinho da limpeza” de auxiliares de limpeza, para os
guichês de vigias e para o meio-fio do asfalto usado como banco para entregadores de aplicativos
almoçarem.

Após mais de cinquenta anos, a mensagem da canção permanece relevante: a persistente e


desigual divisão de classes no Brasil continua a alimentar e se adaptar diariamente para preservar
os privilégios de uma minoria, às custas da maioria da população.

Para uma compreensão mais profunda das questões estruturais da divisão de classes,
propomos um debate a partir das ideias do sociólogo Florestan Fernandes. Embora tenha falecido
em 1995, suas reflexões continuam pertinentes para entender a exploração e a violação de direitos
no contexto brasileiro atual.

52
52
Assim, a presente pesquisa objetiva refletir teórico-criticamente a relação educação e
dependência no contexto do capitalismo dependente brasileiro à luz da obra de Florestan Fernandes;
e surge das reflexões e debates realizados na disciplina de “Tópicos Especiais em Política Social –
Capitalismo Dependente e Educação em Florestan Fernandes”.

Este artigo de natureza qualitativa se baseia na revisão de literatura e na análise sustentada


pelo método histórico-dialético. Utiliza três obras de Florestan Fernandes como suporte teórico:
“Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina”, “Universidade Brasileira: Reforma
ou Revolução?” e “O Desafio Educacional”. Divide-se em dois tópicos principais: “Da Dependência”
e “Da (Des)educação”, além de conter resumo, introdução e conclusão.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Da dependência: um projeto para a manutenção da hegemonia burguesa

Florestan Fernandes empregou o conceito de capitalismo dependente para entender


o modelo de desenvolvimento econômico dos países latino-americanos, incluindo o padrão de
dependência educacional no Brasil. Ele identificou mudanças implementadas pelas elites locais que
não tinham o objetivo de modificar o modelo dependente de desenvolvimento do país.

Segundo uma abordagem histórico-crítica, que busca ir além das aparências para alcançar
a essência, Florestan Fernandes (1976) investiga a formação do Estado Nacional Independente e
conclui que o processo de independência está ligado à consolidação do capitalismo no país. Essa
análise nos ajuda a entender os dilemas e desafios educacionais enfrentados até hoje.

Nessa direção, para Florestan, a questão do desenvolvimento do capitalismo no Brasil


relaciona-se com a forma como o país se insere na economia internacional e, principalmente, como
atua em relação aos interesses, exigências econômicas e políticas dos países imperialistas. Essa
inserção dependente à economia internacional não deve ser interpretada como uma imposição “de
fora” – dos centros hegemônicos para a periferia do capitalismo. Ao contrário, é uma articulação
consentida, ou seja, a burguesia interna vincula-se aos interesses da burguesia externa e, assim,
reproduz internamente relações que mantém a dominação ideológica e a exploração econômica.
É importante ressaltar que, “[...] a formação de um Estado nacional independente desenrolou-se
sem que se processassem alterações anteriores ou concomitantes na organização da economia e
da sociedade” (Fernandes, 1976, p. 24).

Para o autor o desenvolvimento do país, de maneira dependente, conserva as bases


econômicas e estruturais do regime escravocrata e, ainda, não integra as camadas populares no
processo. Florestan (1975, p. 25) é enfático ao afirmar que “nos países latino-americanos [...] não
possuímos uma democracia real”, mas sim uma “democracia restrita”, que beneficia interesses
privados internos e externos no mesmo compasso que restringe a atuação das massas em luta

53
53
pela universalização de direitos básicos.3 Essa restrição se dá historicamente, a partir de padrões
encontrados no período colonial brasileiro, difundida e defendida pelas classes privilegiadas como
estratégia de manutenção de seus privilégios. Isso leva à naturalização das contradições sociais e
à (des)educação da maioria da população, garantindo a manutenção dos privilégios das elites sem
enfrentar resistência significativa. O desafio é reconciliar interesses que são fundamentalmente
irreconciliáveis, acalmando insatisfações individuais ou coletivas por meio da disseminação de
ideologias que sustentem o status quo (Fernandes, 1975).

Como mencionado anteriormente, a dependência e a subordinação não impedem o


desenvolvimento do capitalismo no Brasil; no entanto, interrompem o processo de desenvolvimento
autônomo liderado pela “nação real”. Além disso, é crucial entender outra faceta da dependência,
destacada por Fernandes (2008): a superexploração da classe trabalhadora, que garante a
produção de mais-valia por meio da intensificação do trabalho. A burguesia nacional, alinhada à
estrangeira, consegue acumular capital para si, enviando parte do excedente produzido para os
centros hegemônicos. Essa dinâmica econômica tem sérias consequências para o desenvolvimento
cultural e educacional do país.

Em sua obra “Universidade brasileira: reforma ou revolução”, Fernandes (1975B, p. 84)


reforça a questão ao sinalizar que “a todo processo econômico – comercial, financeiro ou industrial
– sempre corresponde um processo cultural condicionante ou consequente. E, de maneira geral, a
dependência (ou heteronomia) nunca é só econômica: ela é, simultaneamente, social e cultural”.

Nesse sentido, as classes populares “podem irradiar a difusão de hábitos de consumo em


massa e de certas exterioridades de ‘conforto’ e de ‘vida civilizada’’’ (Fernandes, 1975, p. 41),
conquistados por meio de lutas coletivas; todavia não conseguem universalizar processos de
“redistribuição da riqueza” e/ou “do prestígio social”, ou seja, mudanças estruturais, menos ainda
de “democratização do poder”, isso porque a classe detentora do poder mantém-se, de forma
constante, atenta a quaisquer movimentações das classes trabalhadoras na busca por condições
de vida mais dignas, encarando “qualquer ameaça à estabilidade da ordem” como uma “catástrofe
iminente”, que “provoca estados de extrema rigidez estrutural” (p. 70).

A exemplo disso, durante os treze anos do governo petista no Brasil (2003 a 2016), houve
conquistas educacionais significativas resultado das lutas das classes trabalhadoras, tais como: a
ampliação de vagas e matrículas no ensino superior público através da Universidade Aberta do Brasil
(UAB); o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(REUNI); o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES); a Lei de Cotas; o estabelecimento
do piso salarial nacional para profissionais da educação básica; o programa Ciência sem Fronteiras;
e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
da Educação (FUNDEB).

Esse avanço nas conquistas educacionais é percebido como uma ameaça iminente pela
classe dominante, que age rapidamente para interromper esse progresso e assegurar não apenas
seus privilégios e acumulação de capital, mas também a submissão e o controle sobre as classes
trabalhadoras. Em 2016, ocorre um golpe de estado que remove a presidente Dilma Rousseff do

3 Conforme Fernandes (2011, p. 82) para que tenhamos uma revolução de fato democrática é necessário forjar
uma sociedade que, “proceda da vontade e das necessidades das classes trabalhadoras e o Estado se organize como
um Estado democrático da maioria, pela maioria e para a maioria”.

54
54
poder. Um ano após o golpe, é sancionada a Lei nº 13467/2017, que altera a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) e retira direitos da classe trabalhadora.

O padrão de vigilância contínua e rigidez estrutural tem sido uma constante na história
brasileira, representando um processo de contrarrevolução permanente contra a ordem burguesa
estabelecida.

Os estratos sociais privilegiados contam com condições estruturais


para resguardar e fortalecer seus interesses, posições e formas de
solidariedade de classe, transferindo para as classes “baixas” (e em parte
também para as classes “médias”) os custos diretos ou indiretos do
privilegiamento de seus interesses, posições e formas de solidariedade de
classe (FERNANDES, 1975, p. 72).

Apesar de todo esse arcabouço manipulativo exercido pelas classes privilegiadas, Florestan
não anula o caráter emancipador das lutas coletivas da classe trabalhadora, mas de modo muito
consciente e realista aponta as limitações dessa ação, como bem apontamos acima, limitações que
garantem a manutenção do status quo, do subdesenvolvimento e da dependência.

Fernandes analisa como as classes privilegiadas promovem o conformismo à influência


estrangeira, visando manter seus privilégios apesar da dependência. Ele observa que as classes
“baixa” e “média” absorvem e propagam essa defesa, utilizando-a como uma estratégia para
acreditar numa possível ascensão social. Essa análise revela uma realidade de submissão e
dependência que transcende a dominação externa, manifestando-se também nas relações de
classe internas.

O que as classes “baixa” e “média” dificilmente concebem é que, assim como na oligarquia
colonial só havia acesso para “os que eram iguais, que possuíssem o direito do privilegiamento,
do estilo de vida conspícuo e da dominação autocrática”, na classe burguesa brasileira não “há
espaço” para pessoas de origem popular (Fernandes, 1975, p. 92).

Para esse padrão e estilo de dominação burguesa, os excluídos são necessários. A eles
cabe o trabalho braçal, manual, de subserviência, não intelectual, precarizado, descredenciado e
subvalorizado. Como cita a canção citada na introdução deste artigo, mesmo em seu adoecimento
e/ou morte, essa classe ainda “atrapalha o tráfego”, “atrapalha o público” e/ou “atrapalha o
sábado”. A ela cabe os “olhos embotados de cimento e lágrima”, comer “feijão com arroz como se
fosse o máximo”, agonizar “no meio do passeio público”, como bem aponta a canção.

2.2. Da (des) educação: o padrão educacional dependente no Brasil

Esse padrão de submissão se constitui, como já citado, em diferentes instâncias sociais,


inclusive a educacional. À escola, na lógica burguesa capitalista de dependência brasileira, cabe
a “transmissão da ideologia dominante das nações e classes burguesas”. Fernandes sinaliza que,
para além dessa demanda, esse modelo educacional tem no Brasil uma categoria docente que
por vezes se omite frente a ela, por isso mesmo que “se obtém, dos professores e educadores
brasileiros, a tolerância, a submissão ou a cooperação ‘coloniais’ a uma lavagem de cérebro”, “a

55
55
uma devastação iníqua” das “potencialidades culturais criadoras e à perda de perspectiva do que
deva ser o sistema educacional de uma nação capitalista, mesmo que seja associada, periférica e
dependente” (FERNANDES, 1989, p. 14).

Isso se deu porque

“a nossa pedagogia ficou presa ao pseudolegalismo de uma educação


subcapitalista. A lei deu continuidade à dominação férrea das elites
dos senhores de escravos – mais tarde dos fazendeiros burgueses, dos
comerciantes dos grandes negócios de exportação, de importação e dos
industriais nativos e ‘multinacionais’” (FERNANDES, 1989, p. 23).

No livro “O Desafio Educacional”, Florestan Fernandes oferece uma análise detalhada dos
desafios e contradições da educação brasileira, destacando a relevância da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional e da Constituição Federal de 1988. Ele propõe a criação de um novo modelo
educacional que supere os limites da dependência capitalista.

Nesse novo modelo educacional, visto como uma “revolução” pelo autor, a educação precisa
possuir

um sentido descolonizador e emancipador da pessoa do educando, do


corpo de estudantes e professores. Ela deve também favorecer o combate à
opressão dos de baixo e dos estudantes dentro da escola, consagrando aquilo
que Paulo Freire designa como uma pedagogia de liberação dos oprimidos,
cuja decorrência mais ampla e profunda vem a ser a autonomia cultural e
pedagógica do estudante, do professor da escola e do país (Fernandes, 1989,
p. 31).

Como discutido anteriormente, a dominação requer uma estrutura multifacetada para


sustentá-la, abrangendo não apenas o aspecto econômico, mas também o social, cultural e político.
Para combater esse cenário, é necessário estabelecer uma nova base disruptiva que liberte as
classes trabalhadoras das ideias e ideologias das classes privilegiadas que permeiam o imaginário
popular.

A busca deve ser por uma educação que assegure o acesso, permanência e formação do
indivíduo para questionar e se libertar do sistema de exploração e submissão. Essa educação
deve promover a pesquisa criativa, incentivar a expressão humana e cultivar o pensamento crítico
transformador (Fernandes, 1989).

Reiteramos a necessidade de a educação brasileira garantir a permanência estudantil. Sobre


isso, Florestan (1989, p. 126) proferiu em Brasília, em 1988, para os constituintes: “a escola não
retém o estudante, mas o expulsa. Por quê? Porque ele tem de trabalhar. (Palmas) Não pode ficar
em uma escola que não lhe dê comida, assistência, que não seja fator de correção das desigualdades
econômicas, sociais e culturais”.

56
56
A problemática da educação é “o mais grave dilema social brasileiro”, defendia o autor.

A sua falta prejudica da mesma forma que a fome e a miséria, ou até mais,
pois priva os famintos e miseráveis dos meios que os possibilitem a tomar
consciência da sua condição, dos meios de aprender a resistir a essa situação.
(Palmas) Portanto, pode representar um fator de difusão da ignorância e
do atraso cultural. Com esses mecanismos e um sistema escolar injusto e
inócuo, há reprodução do sistema de desigualdade, da concentração de
riqueza, de poder e de dominação (Florestan, 1989, p. 127).

Os processos educacionais, em uma perspectiva socialista, devem capacitar os mais


vulneráveis a reconhecer sua exploração e violação de direitos no contexto do capitalismo
dependente e do subdesenvolvimento brasileiro. Eles devem promover uma aprendizagem voltada
para superar esses desafios e construir uma nova ordem social. É essencial quebrar a cadeia de
opressão histórica e hereditária, exigindo um modelo educacional que beneficie os oprimidos, não
os opressores.

Esse mesmo modelo educacional, o que se propõe, rompe as barreiras estabelecidas entre
o trabalho manual e o intelectual, considerando o trabalho produtivo como algo essencialmente
humano.

Não podemos embarcar sem maiores cuidados em uma solução de aparência


libertária, mas que pode ser determinada pela ordem vigente, reduzindo-
se o sistema nacional de ensino a uma imensa “usina pedagógica”. É vital
associar educação escolar e trabalho produtivo. Todavia, não como um
esforço do aprisionamento do trabalho pelas conveniências do capital:
como fator de socialização crítica libertária, igualitária e democrática do ser
humano (Fernandes, 1989, p. 28).

O autor destaca a necessidade de concentrar os investimentos públicos na educação,


mantendo os princípios e o modelo educacional mencionados anteriormente. Ele enfatiza que
recursos estão disponíveis para isso, mas a lógica capitalista dependente restringe seu uso para
políticas educacionais, perpetuando os ideais burgueses que sustentam o discurso da falta de
verbas para a educação.

Para superar a estrutura de dependência em geral, o desafio no Brasil é criar meios para
reter e distribuir a riqueza. Especificamente na educação, o desafio é eliminar a ideia de que ela é
um privilégio, conforme defendido por Anísio Teixeira e reiterado por Florestan Fernandes.

Ao trabalhador da canção de Chico Buarque, inventamos e reinventamos a civilização e a


educação sem barbárie, sem violação de direitos e sem exclusão social.

3. CONCLUSÃO

A educação é o grave dilema social brasileiro, pois ao tempo em que nutrimos uma estrutura
social que se mantêm por meio da exploração da classe trabalhadora em prol dos privilégios de um

57
57
pequeno grupo; temos disponível um forte e poderoso mecanismo de invenção e reinvenção de
novos rumos para a classe oprimida e violentada.

Florestan Fernandes centrou uma parte de sua vida teórico-acadêmica na análise e defesa
da educação, considerando o seu caráter transformador em prol da construção de uma nova
sociabilidade humana, não pautada na dependência e no capitalismo selvagem.

A defesa rompeu os muros da universidade, consolidando Florestan como um ativista e


militante da educação no cenário nacional, palestrante e proferindo falas de altíssima relevância
para intelectuais, estudantes, constituintes e políticos.

Nesse sentido, o presente trabalho teve como objetivo refletir teórico-criticamente a


relação educação e dependência no contexto do capitalismo dependente brasileiro à luz da obra
de Florestan Fernandes. A análise aponta para o desafio educacional como grave dilema social
brasileiro, que ao tempo em que apresenta a potencialidade de romper os processos de exploração
e opressão, pode também sustentar um sistema de dependência e de conformação. Nesse sentido,
o desafio posto é de se construir um sistema educacional que rompa a lógica capitalista dependente.

O papel dos processos educacionais, na perspectiva socialista, defendida por Florestan


Fernandes, considerando o cenário de capitalismo dependente e subdesenvolvimento brasileiro,
necessita de ofertar à/ao educanda/o, especialmente os oprimidos e explorados as ferramentas e
meios para conseguirem tomar consciência de sua condição de exploração e violação de direitos,
ao tempo em que caminham para a aprendizagem humana que foca na superação desses cenários
e no estabelecimento de uma nova sociabilidade.

O desafio é grande, mas possível por meio da luta e da conscientização de classes e de


investimentos para o campo educacional, atrelados a uma perspectiva libertadora de educação
com foco na plena formação humana e na construção de uma sociedade sem barbárie.

REFERÊNCIAS

FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. 2ª edição. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

Universidade brasileira: reforma ou revolução? São Paulo: Alfa-Omega, 1975B.

A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar,1976.

O desafio educacional. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1989.

Brasil: em compasso de espera. Pequenos escritos políticos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

58
58
O CIDADÃO E O USUÁRIO:
reflexões acerca da participação social nas Políticas Sociais

Verônica Moreira Oliveira

Tá vendo aquele edifício, moço?

Ajudei a levantar

Foi um tempo de aflição

Era quatro condução

Duas pra ir, duas pra voltar

Hoje depois dele pronto

Olho pra cima e fico tonto

Mas me vem um cidadão

E me diz, desconfiado

Tu ‘tá aí admirado

Ou ‘tá querendo roubar?

Meu domingo ‘tá perdido

Vou pra casa entristecido

Dá vontade de beber

E pra aumentar o meu tédio

Eu nem posso olhar pro prédio

Que eu ajudei a fazer.

(BARBOSA, 1978)1

O eu lírico da canção é um trabalhador que fala de sua experiência na cidade e de sua


interação com um cidadão. Compreender a figura do usuário da Política Nacional de Assistência
Social e seu reconhecimento enquanto cidadão é um dos desafios para a política social e para a

1 A música Cidadão, do poeta e compositor baiano Lucio Barbosa foi interpretada pela primeira vez em 1979 por
Zé Geraldo e foi mais difundia ainda, pela interpretação de Zé Ramalho, lançada no álbum Frevoador, de 1992.

59
59
democracia no contexto do capitalismo dependente, que nega a existência da categoria
cognitiva de classes sociais visando inibir os mecanismos revolucionários por meio do não
reconhecimento dos “de baixo” 2.

A realidade ilustrada na letra da música Cidadão remete à perspectiva de Marx ao destacar


que comer de garfo e faca não expressa simplesmente a evolução humana, mas também status
social, reflete a relação entre os dominantes e os trabalhadores subalternizados, cada vez mais
latente em nossa sociedade.

“Fome é fome, mas a fome que se satisfaz com a carne cozida, que se come por meio de
uma faca ou de um garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua com ajuda das mãos,
unhas e dentes.” (MARX, 2008, p. 248)

Essas citações, que não são novidade no meio acadêmico, foram aqui repetidas para
demarcar a linha metodológica adotada nesta comunicação e para reforçar o problema que
perpetua entranhado nas políticas públicas, por meio da dicotomia cidadão-usuário, que aqui se
pretende explorar. Assim, objetiva-se neste artigo, problematizar a ideias de usuário e de cidadão no
contexto da Política Nacional de Assistência Social e somar às reflexões em torno da sua efetivação
do controle democrático.

A reflexão aqui proposta mira na relação que os indivíduos/trabalhadores/proletariados


estabelecem com o Estado. Para tanto, será realizada revisão bibliográfica de produções teóricas e
de bases legais e institucionais da Política, a fim de compreender os sentidos implícitos no uso dos
termos cidadão e usuário e suas intersecções e divergências.

Após 35 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil e,


principalmente, das lutas sociais para reconhecimento e positivação de direitos, perpetuam muitos
desafios para a execução da Política Social no contexto do capitalismo dependente. Dentre eles,
encontra-se a problemática desta comunicação: As contradições presentes na relação entre as
ideias de cidadão e de usuário no contexto da participação social, principal aspecto da democracia.

O jurista alemão Georg Jellinek (1851 - 1911) desenvolveu a teoria dos quatro status, a
qual categoriza as diferentes posições que o indivíduo/cidadão assume perante o Estado. Jellinek
“estabelece quatro posições jurídicas abstratas que o individuo se encontra ante ao Estado” (passivo,
negativo, positivo e ativo ou da cidadania), “tanto como sujeitos de deveres, quanto como titulares
de direitos” (Oliveira, 2023), relação a partir da qual são instituídos os direitos fundamentais
(liberdade, prestação e participação).

Na caracterização que Jellinek faz das relações dos indivíduos com o Estado, o 1º é o status
passivo, que se refere à sujeição do indivíduo a obrigações e proibições em relação ao Estado;
em contraponto, o 2º é o status negativo, que se referre à não sujeição, à liberdade jurídica não
protegida do indivíduo para fazer ou não fazer; o 3º é o status positivo, onde o indivíduo, além do
direito, tem também a competência de recorrer e exigir prestações positivas do Estado; por fim,
o 4º é o status ativo, ou da cidadania ativa, onde o indivíduo recebe competências para participar
enquanto cidadão nos negócios do Estado, por meio da capacidade eleitoral ativa e passiva, por
exemplo.
2 Com base no texto Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina, de Florestan Fernandes.

60
60
Para complementar a presente análise qualitativa foram levantados os sentidos associados
aos verbetes “cidadão” e “usuário” no contexto da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988 – CF1988 e das bases legais e institucionais da Política de Assistência Social. Para sistematizar
os resultados desse exercício, foram retiradas elementos do contexto da citação expressa dos
termos aqui analisados e organizados no quadro3 a seguir:

Documento Contexto da citação Contexto da citação


analisado expressa do termo CIDADÃO expressa do termo USUÁRIO

Constituição da República 14 ocorrências: parte legítima; 5 ocorrências: Direitos dos usuários;


Federativa do Brasil de propor ação popular; prestar participação do usuário na
1988 depoimento; iniciativa de leis; administração pública; serviço de
denunciar irregularidades; atendimento ao usuário; acesso dos
participar de Conselho; eleito usuários aos registros; pagamento
para juiz de paz; notável saber de preços ou tarifas pelos usuários
jurídico; direitos de segurança
pública; receber um exemplar
da constituição
Lei Orgânica de Assistência 3 ocorrências: Direito do 4 ocorrências: fortalecimento
Social - cidadão e dever do estado; dos movimentos sociais e das
respeito à dignidade do organizações de usuários; aquisições
Lei 8.742 de 7 de dezembro cidadão, à sua autonomia que devem ser garantidas aos
de 1993 e ao seu direito; garantias usuários; representantes dos
prestadas ao cidadão usuários ou de organizações de
usuários;
31 ocorrências: direito; 43 ocorrências: usuários de
responsabilidades do estado substâncias psicoativas; auto
Política Nacional de asseguradas ao cidadão; organização e conquista de
Assistência Social - respeito à dignidade do autonomia; atendimento dos
Resolução nº 145, de 15 cidadão; Público da Assistência usuários; oferta de serviços;
de outubro de 2004 Social; participação popular/ defesa dos direitos; proteção;
cidadão usuário; direito à monitoramento e a avaliação;
informação especificidades dos usuários;
exposição à violência; dependência;
vulnerabilidade; participação;
protagonismo; cidadão usuário;
acesso a conhecimentos; discussões
da política; desafio da participação
dos usuários

3 Este quadro consiste em um exercício de análise, não pretende abarcar todas a citações nem servir como
modelo, mas que pode ser uma proposta interessante a ser explorada.

61
61
5 ocorrências: garantia da 41 ocorrências: Participação;
laicidade na relação entre o vigilância socioassistencial;
Norma Operacional Básica cidadão e o Estado; respeito necessidades; vulnerabilidades e
do Sistema Único de à dignidade e à autonomia do riscos sociais, gestão compartilhada;
Assistência Social - NOB/ cidadão, sem discriminação direitos dos usuários; protagonismo
SUAS. de qualquer espécie ou e da autonomia; acesso aos serviços,
comprovação vexatória da programas, projetos e benefícios;
Resolução CNAS nº 33, de sua condição; benefícios participação democrática;
12 de dezembro de 2012 continuados para cidadãos disseminação de conhecimento;
não incluídos no sistema situação de subalternização;
contributivo de proteção resiliência; complexidade das
social; protagonismo e situações vivenciadas; atores do
certeza de proteção social SUAS; mobilização e organização dos
para o cidadão; conquista de usuários; controle social; canais de
maior grau de independência comunicação; coletivo de usuários
pessoal e qualidade, nos laços
sociais, para os cidadãos e as
cidadãs sob contingências e
vicissitudes

Da breve leitura de Jellinek, e considerando a expressão hodierna da relação entre Estado e


indivíduo no Brasil nos documentos legais e institucionais, analisada no quadro acima, compreende-
se que o termo cidadania está relacionado preponderantemente ao status positivo e sobretudo ao
status ativo de Jellinek. Já o termo usuário está mais associado ao status positivo, mas sobretudo ao
status passivo, haja vista as regras e condicionalidades que os usuários estão sujeitos em especial
nas políticas sociais.

A partir da produção acadêmica, assim como da percepção empírica da realidade ilustrada


na música que abriu esta comunicação, observa-se que em muitas, ou na maioria das vezes, o
mesmo indivíduo que está na posição de usuário não se reconhece ou é reconhecido como cidadão.
O que torna evidente a necessidade de reforçar a união desses papeis na mesma pessoa.

Entende-se que dentro da estrutura do Estado há mecanismos para a junção dos papeis de
cidadão e de usuário e por meio da a participação social, como expressa a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (ONU, 1948) em seu Art. 21 – 1, “Todo ser humano tem o direito de tomar parte
no governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 preconiza a participação social, de


forma predominantemente indireta, por meio da democracia representativa, já em seus princípios
fundantes, como se lê no Parágrafo Único do Art, 1º, “Todo poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

A democracia direta, que se refere à participação social na gestão das políticas públicas
e nas decisões do estado, ocorre por meio de mecanismos de controle social como o orçamento
participativo, os conselhos de gestão, as conferências de políticas públicas e as audiências
públicas. Nessa perspectiva, destaca-se o art. 204 da CF 1988, que trata da realização de ações
governamentais na área da assistência social e prevê a “participação da população, por meio de

62
62
organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os
níveis”.

Nas duas ultimas décadas ocorreram experiências de processos participativos de gestão


pública no Brasil que visaram implementar mecanismos legais e institucionais de fomento à
organização e participação social nos processos de gestão, como por meio da atuação dos
conselhos, das conferências, das audiências públicas e do orçamento participativo entre outros
fóruns. A Política Nacional de Participação Social, criada em 2014, no Governo da presidente Dilma
Rousseff é um exemplo.

No entanto, entre as inúmeras ofensivas da extrema-direita desde o golpe de 2016 no


Brasil, destaca-se o silenciamento da participação cidadã por meio de ações como o Decreto
presidencial nº 9.759/2019 que limitou e extinguiu colegiados da administração pública federal,
desestruturando espaços participativos e pontes intersetoriais entre as pastas, inclusive revogou
o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que instituía a Política Nacional de Participação Social
- PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS.

Dentre os primeiros atos do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi
reestabelecido o espaço da participação cidadã na gestão pública por meio do Decreto n° 11.371,
de 1° de janeiro de 2023, que revogou o decreto de Bolsonaro, seguido do Decreto 11.407, de
mesma data, que instituiu o Sistema de Participação Social, coordenado pela Secretaria-Executiva
da Presidência da República, cuja finalidade é estruturar, coordenar e articular as relações do
Governo federal com os diferentes segmentos da sociedade civil na aplicação das políticas públicas.

Nessa perspectiva foi criada, em parceria com a Universidade de Brasília - UnB, a Plataforma
Brasil Participativo. A iniciativa entrou em prática em 2023 com o Plano Plurianual Participativo –
PPA Participativo, onde foram realizadas ações presenciais e virtuais com vistas à participação da
sociedade na elaboração de propostas para o Plano Plurianual 2024-2027. As informações desse
processo foram organizadas no Relatório da Participação Social no PPA 2024-20274.

O método de construção do PPA Plurianual 2024-2027 buscou estratégias para envolver a


população brasileira por meio de estratégias como os fóruns interconselhos, a inovação tecnológica
Plataforma Brasil Participativo e as plenárias estaduais e distrital que contaram com a participação
de grupos representativos de sindicatos, das mulheres, da juventude, do campo, movimentos
negros e movimento LGBTQIA+, entre outros.

O processo do PPA Participativo conseguiu alcançar o maior número de participação social


em 20 anos. Outrossim, a problemática aqui explorada persiste: quantos dos mais de 1,4 milhão de
participantes virtuais e dos mais de 34 mil que participaram presencialmente nos eventos do Plano
Plurianual Participativo são usuários da Política de Assistência Social?

O Distrito Federal – DF apresentou o maior número de participantes por estado no PPA


Participativo, tendo 1,29% de sua população participado do processo. Considerando a realidade,
do DF, no universo dos 4,7 milhões de atendimentos realizados pelos serviços de Assistência Social

4 Plano Plurianual 2024 – 2027: Relatório da Participação Social no PPA 2024-2027. Disponível em https://www.
camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ppa/PPA_2024_2027/proposta/Relatoriodaparticipacaosocial.pdf

63
63
ao longo de 20235, quantas dessas pessoas participaram da Plataforma Brasil Participativo ou já
participaram outra forma de controle social?

No movimento de recuar e avançar da abertura do Estado para a participação social é


importante lembrar dos tensionamentos e contradições de interesses vivenciados na realidade de
capitalismo dependente, pois se esta participação social não for qualificada, iniciativas como a
Plataforma Brasil Participativo podem representar mais uma cooptação dos desvalidos em favor da
classe dominante.

Pela história das conquistas sociais sabe-se que os tensionamentos são comuns nas lutas
pelas garantias de direitos. O fato de haver uma maior abertura política não é suficiente, é necessário
qualificar a participação social e sensibilizar o sentimento de sujeito de direito e o sentimento de
pertença.

À guisa de conclusão e, partindo do interesse e do reconhecimento da necessidade de


aprofundar a análise inicia no presente artigo, observa-se que a cisão do trabalhador em dois,
o cidadão e o usuário (ou em mais), é criada e reforçada pelo neoliberalismo associado ao
neoconservadorismo com a finalidade de enfraquecer a luta de classes e manter as políticas
públicas a serviço da burguesia e do capital.

A PNAS reforça a justificativa da problematização aqui apresentada quando apresenta como


definição de usuários:

Constitui o público usuário da Política de Assistência Social,


cidadãos e grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e
riscos, tais como: famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos
de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades
estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal
resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais
políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de
violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária
ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e
alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco
pessoal e social. (PNAS, 2006).

Compreende-se que a separação de atores do SUAS em trabalhadores, conselheiros,


usuários e entidades pode ser estratégico para a administração pública organizar o sistema, mas
deve-se cuidar para que na execução diária da política, a abordagem não seja capacitista e ignore
as capacidades e potencialidades dos usuários na construção do SUAS. Não é à toa que o texto da
Política Nacional de Assistência Social expressa entre os elementos essenciais para a sua execução
“O desafio da participação popular/cidadão usuário”.

No curto espaço deste artigo foi priorizada a provocação acerca do lugar do usuário, e a
única resposta/certeza que se tem é a de que esses trabalhadores, cada vez mais vulnerabilizados
no capitalismo dependente e diminuídos/relegados ao lugar de usuários nas políticas sociais, são a
5 Conforme consulta realizada em 9 de maio de 2024 no Mapa Social do DF, disponível em https://paineis-ext.
mpdft.mp.br/extensions/mapasocial/mapasocial.html.

64
64
“classe verdadeiramente revolucionária” (Marx e Engels, 1998, p.49) e “não pode erguer-se , pôr-se
de pé, sem fazer saltar todos os estratos superpostos que constituem a sociedade oficial” (Marx e
Engels, 1998, p. 50).

Por fim, reforça-se a necessidade do fortalecimento do sentimento de classe, para que


os trabalhadores que circunstancialmente recorrem às ofertas da política de assistência social,
ao serem referidos como usuários, não se vejam definidos pelo que lhes falta, na perspectiva de
castas, que o pensamento neoliberal quer perpetuar. Mas, mesmo que aos poucos, reconheçam-
se como a “classe que traz nas mãos o futuro” (Marx e Engels, 1998, p.49).

REFERÊNCIAS

Assembleia Geral da ONU.(1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. LOAS Anotada – Lei Orgânica de
Assistência Social. Brasília. Dezembro de 1993.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Secretaria Nacional de Assistência


Social. Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS- NOB- RH/SUAS. Brasília.
Dezembro de 2006.

BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social. Brasília.
Outubro de 2004.

FERNANDES, Florestan. Capitalismo de pendente e classes sociais na América Latina. 4, ed. São
Paulo: Global Editora, 2009.

MACHADO, Eliel. Proletariado e luta de classes em Marx e Engels. In: BÓGUS, Lucia; WOLFF,
Simone; CHAIA, Vera. (Orgs.). Pensamento e teoria nas Ciências Sociais: referências clássicas e
contemporâneas. São Paulo: EDUC; CAPES, 2011.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL. Mapa Social do DF, disponível em https://paineis-ext.


mpdft.mp.br/extensions/mapasocial/mapasocial.html.

MARX, Karl. Contribuição à Critica da Economia Política. tradução e introdução de Florestan


Fernandes, São Paulo: Expressão Popular, 2008.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. In: COGGIOLA, Osvaldo. (org.).
Manifesto do partido comunista – Karl Marx e Friedrich Engels. São Paulo: Boitempo, 1998.

OLIVEIRA, Tiago Rege de. Análise da Teoria dos Quatro Status de Georg Jellinek no Âmbito da
Doutrina dos Direitos Fundamentais. Revista Eletrônica Interdisciplinar, Univar, 2023. Disponível
em: http://revista.univar.edu.br/rei/article/view/342/308

Plano Plurianual 2024 – 2027: Relatório da Participação Social no PPA 2024-2027. Disponível em
https://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/ppa/PPA_2024_2027/proposta/
Relatoriodaparticipacaosocial.pdf

65
65
PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS:
novas agendas de pesquisa a partir da análise de programas federais de insfraestrutura social

Isadora Tami Lemos Tsukumo

1. INTRODUÇÃO

Nas duas primeiras décadas do século XXI, observou-se a proliferação de mecanismos de


participação social regulamentados pelo Estado brasileiro que, no âmbito federal, centraram-se na
constituição de Instituições Participativas (IPs) – especialmente Conselhos e Conferências setoriais
– e na dinamização de outros mecanismos de interação entre Estado e Sociedade, as chamadas
Interfaces Socioestatais.

Experimentalismos participativos envolvendo os destinatários diretos das políticas públicas


federais têm sido pouco abordados pela literatura focada no debate sobre democracia participativa
e políticas públicas.

Programas federais como o Minha Casa Minha Vida – Entidades (MCMV-E), Centro de Artes
e Esportes Unificados (Praças CEUs), tiveram a singularidade de, por meio de regulamentação
própria e desenho institucional específico, inserir a participação direta dos destinatários ou
público-alvo das políticas na execução das ações, especialmente durante a implementação, mas
com o pressuposto de prosseguimento de instâncias e outras formas de organização comunitária
após findada a relação formal com o Executivo Federal, visando à gestão das infraestruturas sociais
implantadas.

Enquanto no MCMV-E movimentos organizados de moradia ou entidades conduziram


a execução da ação financiada pelo Estado desde a indicação do terreno até a constituição de
condomínios multifamiliares, no Praças CEUs a organização comunitária decorreu do processo de
mobilização social obrigatório durante a implantação do equipamento no território, culminando
com a formalização de uma instância de gestão compartilhada do equipamento.

O objetivo do presente trabalho é delimitar problemas conceituais e sugerir novas agendas


de pesquisa no campo da participação social na implementação das políticas públicas à luz de
dados, do desenho institucional, de estudos recentes sobre os Programas MCMV-E e Praças CEUs,
frente à literatura sobre participação social.

2. SINGULARIDADES DO DESENHO INSTITUCIONAL DOS PROGRAMAS MCMV-E E


PRAÇAS CEUS

No período de 2009 a 2021, foram entregues 1,5 milhão de unidades habitacionais


produzidas no âmbito do MCMV – Faixa 011 das quais 15.168 foram produzidas na modalidade
1 Conforme Banco de Dados da Secretaria Nacional Habitação do Ministério do Desenvolvimento Regional,
data base 2021.

66
66
Entidades. Foram 215 empreendimentos executados sob gestão direta de entidades privadas sem
fins lucrativos, sendo 326 contratados nessa modalidade em estágios diversos de implementação.
Do ponto de vista de volume de recursos públicos investidos o MCMV – E implicou em 4,2 bilhões
de reais de 2009 a 2019, frente a 98,3 bilhões de reais do MCMV Faixa 01, considerando-se os
valores globais das operações contratadas.

O desenho do programa MCMV-E, além de implicar as entidades diretamente na produção


dos conjuntos habitacionais, tem como premissa o desenvolvimento do “Trabalho Social”2 durante
a implementação e após a ocupação das habitações pelas famílias, obrigatório para as intervenções
federais de produção habitacional e urbanização de assentamentos, tendo como investimento
cerca de 1,5% a 2,5% do valor total da intervenção.

Já o programa Praças CEUs, tem como determinação regulamentar a execução de


atividades de “Mobilização Social e Planejamento da Gestão” envolvendo a comunidade durante a
implementação3. As Praças CEUs representam uma parcela pequena do PAC Comunidade Cidadã:
328 unidades, frente a 4.168 equipamentos sociais urbanos4. O investimento, da ordem de 800
milhões de reais da União, representou 25% do total de 3,5 bilhões selecionados, ordem de recursos
muito pequena frente aos demais Eixos do PAC (Transportes, Energia, Cidade Melhor, MCMV e Água
e Luz para Todos), que apenas de 2009 a 2011 somaram 50,7 bilhões de reais em valores pagos na
execução orçamentária5. Do ponto de vista da conclusão, havia 220 equipamentos oficialmente
inaugurados em todas as regiões do país até dezembro de 20196.

Os investimentos obrigatórios em mobilização e planejamento da gestão das Praças


representavam de 0,6% a 2% do total de cada equipamento. Ainda que os recursos sejam
relativamente diminutos se comparados ao MCMV-E, a finalização dos processos participativos
culminava, obrigatoriamente, em ações concretas envolvendo a comunidade: uma intervenção
comunitária artística ou paisagística nos edifícios construídos e a constituição de um Grupo Gestor
Tripartite.

2 O Trabalho Social em intervenções do Ministério do Desenvolvimento Regional é definido na Portaria MDR No


464/2018 como “um conjunto de estratégias, processos e ações, realizado a partir de estudos diagnósticos integrados
e participativos do território, compreendendo as dimensões: social, econômica, produtiva, ambiental e político institu-
cional do território e da população beneficiária. Esses estudos consideram também as características da intervenção,
visando promover o exercício da participação e a inserção social dessas famílias, em articulação com as demais políti-
cas públicas, contribuindo para a melhoria da sua qualidade de vida e para a sustentabilidade dos bens, equipamentos
e serviços implantados.” Anteriormente a este normativo, a regulamentação do TS se dava pela Portaria MCidades No
121/2014 e, antes das portarias unificadas, pelos normativos de cada programa ou ação. No caso do MCMV, a Lei Nº
11.977/2009 determina a obrigatoriedade do TS no § 5º do seu artigo 3º.
3 Lançado em 2010, pela Portaria Interministerial No 401/2010, na segunda etapa do Programa de Aceleração
do Crescimento (PAC 2.
4 Conforme dados do “2º Balanço do PAC 2 – Julho -Setembro de 2011”, Comitê Gestor do PAC, p 135-139.
5 Idem, p. 23.
6 Conforme “PESQUISA SOBRE O FUNCIONAMENTO DAS ESTAÇÕES CIDADANIA – CULTURA* EDIÇÃO 2019”,
disponível em http://pracinhas.cultura.gov.br/wp-content/uploads/sites/28/2020/07/final_Dados_Pesquisa_resu-
mo_2019.pdf.

67
67
Quadro 1. Composição dos processos participativos com destinatários segundo regulamentação dos
Programas MCMV-E e Praças CEUs

Elemento de análise MCMV-E Praças CEUs

Regulamentação Portaria MDR No 464/2018 Portaria MinC No 95/2014

“Mobilização Social e
Denominação do processo “Trabalho Social”
Planejamento da Gestão”
“I - promover o sentimento de
“promover a autonomia e o apropriação da comunidade ao
protagonismo social, (...) criar equipamento público (...);
mecanismos capazes de viabilizar
a participação dos destinatários II - fortalecer e capacitar grupos
nos processos de decisão, da comunidade para (...) a gestão
Objetivos
implantação e manutenção do equipamento; e
dos bens/serviços (...) além de
incentivar a gestão participativa III - aproximar comunidade,
para a sustentabilidade do poder público local, entidades e
empreendimento” (COTS, p. 4) cidadãos atuantes na área (...)”
(Art. 2º, § 3º)
7 oficinas de mobilização
Ações comunitárias em 5
social, abrangendo os temas:
Eixos: Mobilização, organização
Sensibilização e história
e fortalecimento social;
do bairro; Grupo Gestor
Educação ambiental e
– constituição e regras de
Atividades mínimas patrimonial; Desenvolvimento
funcionamento; Usos e
Socioeconômico; Assessoria
Programação dos espaços
à Gestão Condominial; e
da Praça; e planejamento e
Acompanhamento e gestão
intervenção física no edifício
social da intervenção.
construído.
Entidade Organizadora
(Organizações formais, sem fins Ente Federado (Prefeituras ou
Responsável pela execução
lucrativos, vinculadas ou não Governo do Distrito Federal)
aos movimentos de moradia)
1,5% a 2,5% do valor total da 0,6% a 2,0% do valor total da
Recursos
intervenção intervenção

68
68
Diagnóstico da área,
Mapeamento de entidades
mapeamento de entidades
e lideranças, constituição
Resultados exigidos por e lideranças, cadastro social
de Grupo Gestor tripartite;
regulamentação (ateste das famílias, Constituição
elaboração e revisão do
físico e financeiro na de comissões temáticas e
Planejamento para Gestão
prestação de contas) Comissão de acompanhamento
e Ocupação do CEU; e
das obras, ações desenvolvidas
planejamento e execução de
conforme projeto apresentado,
uma ação de intervenção no
contemplando os Eixos de
edifício.
trabalho.
Fonte: Portaria MDR No 464/2018; Portaria MinC No 95/2014; COTS - Caderno de Orientação
Técnico Social, CAIXA, 2013 (Elaboração própria).

A análise estrita da regulamentação dos programas, conforme Quadro 1 acima, demonstra


que a participação fica formatada para acontecer em momentos pré-definidos e orientada pelos
atores responsáveis pela condução dos processos e execução dos recursos, mas com a constituição
de instâncias perenes de gestão.

Trabalhos recentes sobre os dois Programas trazem elementos para a compreensão de


como os processos previstos se deram na prática e quais efeitos tiveram sobre seus participantes e
instituições envolvidas.

Tatagiba e Teixeira (2015), ao desenvolverem pesquisa qualitativa sobre os processos


participativos na implementação de conjuntos MCMV-E no estado de São Paulo, buscando avaliar
a qualidade da participação, utilizaram o conceito de autogestão, tal como definido por Norberto
Bobbio7, entendido como um sistema de organização das atividades sociais, desenvolvidas
mediante a cooperação e onde as decisões são tomadas diretamente pelos participantes.

A partir daí, as autoras analisaram a capacidade das organizações sociais de realizar a gestão
dos empreendimentos de forma autônoma em relação aos demais atores envolvidos (agentes
do Estado e, especialmente, construtoras) e o grau de descentralização do poder dos dirigentes
das organizações em relação às famílias beneficiárias. Definiram então três categorias de análise
da qualidade da participação: 1) autonomia decisória combinada com concentração de poder;
2) autonomia decisória combinada com socialização de poder; e 3) alienação sobre a gestão do
empreendimento combinada com concentração de poder nos dirigentes da organização.

A maioria dos empreendimentos analisados, ficou enquadrado no primeiro grupo, onde


a qualidade da participação foi considerada baixa do ponto de vista da distribuição do poder de
decisão entre os dirigentes das organizações e as famílias beneficiárias, mas houve autonomia
das organizações na condução da gestão dos empreendimentos habitacionais, frente aos órgãos
públicos e às construtoras, especialmente quando as organizações tinham histórico de mobilização
comunitária e estavam afiliadas a movimentos nacionais de luta por moradia.

Sob a ótica da gestão de políticas de cultura Rattes (2022), analisou a implementação da


Praças CEUs. Ele enfatiza a força inovadora do desenho do programa, mas destaca a limitação dos
7 A obra citada pelas autoras é BOBBIO, N. 1998. Dicionário de Política. Brasília: UnB.

69
69
processos participativos desenvolvidos no que tange à autonomia da comunidade frente à gestão
pública municipal nos casos estudados, observando a implementação no município de Feira de
Santana, na Bahia. A análise foi feita considerando as tipologias de níveis de participação cidadã
criadas por Arnstein8 (1969) e concluiu-se que houve momentos no processo em que se alcançou o
quinto degrau – “Pacificação”, no qual os cidadãos influenciam o poder público, mas não participam
da decisão final.

Os degraus superiores – “Delegação de poder” e “Controle cidadão”, nos quais há poder


efetivo dos cidadãos sobre as decisões finais, não foram alcançados nos casos estudados e, embora
a comunidade participasse com maioria nos Grupos Gestores, havia assimetria de poder em
relação ao poder público local e não havia predominância de deliberações efetivas. No entanto,
Rattes pondera que a implantação dos equipamentos abriu oportunidades de acesso a serviços
públicos variados e gerou um canal de manifestação sobre as demandas comunitárias, priorizadas
nas agendas de atividades das Praças (Rattes, 2022, p. 262).

3. PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: DELIMITAÇÕES


CONCEITUAIS E SUGESTÃO DE NOVAS AGENDAS PARA APROFUNDAMENTOS FUTUROS

A análise dos processos participativos relacionados aos programas federais em tela pode
ensejar a delimitação uma categoria de “participação social” que explicite mais precisamente
a natureza dessas experiencias e possibilite desenvolver pesquisas empíricas para análises
aprofundadas.

Até o momento, verifica-se que tais experiências não foram especificadas do ponto de vista
conceitual, uma vez que a literatura mais recente que trata de democracia, participação e políticas
públicas, centra-se na delimitação das Instituições Participativas (IPs) e das Interfaces Socioestatais -
categorias que não são suficientes para a definição dos processos participativos ocorridos no âmbito
do MCMV-E e do Praças CEUs, especialmente de suas particularidades de público e território, uma
vez que envolvem os destinatários diretos em áreas de vulnerabilidade social urbana.

Também não seria adequado aplicar para tais experiencias as categorias e análises utilizadas
no estudo dos Orçamentos Participativos municipais, uma vez que os casos em tela não se centram
em mecanismos de representação ou eleição de representantes – conselheiros ou delegados - e
apresentam continuidade no tempo, especialmente no âmbito dos condomínios e das agendas de
serviços das Praças.

No caso da definição de Instituições Participativas (IPs), considerando-se o conceito


desenhado por Cortes (2011), entende-se que, ainda que seja possível a aplicação às experiencias
desenvolvidas no âmbito do MCMV-E e do Praças CEUs, a definição da autora alinha-se mais
diretamente a Conselhos e Conferências, destacando-se o caráter setorial e de representação dessas
instâncias, e de perenidade, no caso dos Conselhos. Da mesma forma, as tipologias de Interfaces
Socioestatais trabalhadas por Vaz e Pires (2012) não apresentam aderência aos casos em tela.

8 A escada de participação social desenvolvida por Arnestein (1969) é composta por oito degraus, que vai do
menor ao maior nível de participação. ARNSTEIN, Sherry R. A Ladder of Citizen Participation. Journal of the American
Institute of Planners, n. 35, v. 4, pp. 216–224, 1969.

70
70
A categoria que mais se aproxima dos processos que envolvem destinatários na
implementação dos programas públicos é a de Programa Associativo, utilizada por Adriana Pismel
e Luciana Tatagiba (2022) para tratar do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Segundo as
autoras tais programas dariam ênfase à participação nos territórios, ao papel das organizações
da sociedade civil e ao repasse de recursos públicos para fortalecer tais organizações (Tatagiba;
Teixeira, 2021a, p. 27 citada por Pismel; Tatagiba, 2022).

A definição poderia ser aplicada ao Minha Casa Minha Vida - Entidades, mas, exceto pela
ênfase na participação social nos territórios, o conceito não tem aderência ao processo desenvolvido
no âmbito do Praças CEUs, que não parte de intermediação de organizações da sociedade civil
previamente formalizadas e mobilizadas, tampouco envolve repasse para tais instituições.

Tais enfoques e referências conformam um amplo pano de fundo sobre o tema da


participação em políticas públicas e tangenciam, mas não elucidam os caminhos para analisar as
especificidades dos processos participativos ocorridos no âmbito dos Programas MCMV-E e Parças
CEUs, especialmente sobre seus efeitos sociais posteriores nos territórios e comunidades onde
foram implementados.

Nesse contexto, a definição e as categorias de participação social trabalhadas por


Carole Pateman em Participação e Teoria Democrática (1992) parecem pertinentes à agenda
de investigação que emerge da análise de tais Programas. A autora desenvolve de um conjunto
de categorias de análise de experiencias participativas, com base em estudos empíricos sobre
participação nas indústrias, realizados na década de 1960 em diversos países da Europa e da antiga
União Soviética, que enfatizam a essencialidade da radicalização da vivência participativa cotidiana,
com efetiva distribuição de poder de decisão, para que a função educativa da participação se realize
e retroalimente o sistema político nas escalas superiores.

Entende-se que a ideia de democracia participativa por meio da vivência de uma participação
cotidiana, territorial e não setorial, pode guiar pesquisas futuras, pois possibilitaria abrir caminhos
de análise para a observação dos efeitos dos processos participativos ocorridos no âmbito dos
programas federais em tela, com foco nas práticas dos cidadãos em seus territórios mais do que no
funcionamento dos espaços formais e setoriais de participação.

Tal abordagem poderá resultar na identificação de uma tipologia diferenciada de participação


social na implementação de políticas públicas, útil dos pontos de vista teórico e prático para a
construção de ações de ampliação e aprofundamento da democracia participativa, perpassando
eventuais flexibilizações nas estruturas hierárquicas da sociedade.

Nesse sentido, pode-se vislumbrar diálogos com as literaturas de políticas públicas,


democracia e estado capitalista, no contexto brasileiro e, tendo em vista a crítica desenvolvida por
Miguel (2017), espera-se constituir abordagens futuras que suscitem uma análise mais ampla dos
processos participativos vinculados a políticas públicas.

E por fim, quais seriam os limites para tais experimentações, considerando o acirramento da
institucionalização da política pelo neoliberalismo, por meio de definições e amarras normativas,
especialmente no campo do “orçamento público”, que limitam crescentemente a parcela das
políticas públicas submetida à deliberação em instâncias participativas ou de forma direta,

71
71
aprofundando os efeitos da falsa separação entre o político e o econômico, tão estruturante para
o capitalismo (Wood, 2010).

REFERÊNCIAS

CAIXA. COTS - CADERNO DE ORIENTAÇÃO TÉCNICO SOCIAL. Brasília, 2013. (Disponível em: https://
urbanismo.mppr.mp.br/arquivos/File/caderno_de_orientacao.pdf. Acesso em 01/07/2023)

COMITÊ GESTOR DO PAC. 2º Balanço do PAC 2 – Julho -Setembro de 2011. Brasília, 2011.

CORTES, Soraia Vargas. As diferentes Instituições Participativas existentes nos municípios brasileiros.
In: PIRES, R.C. (Org.). Efetividade das Instituições Participativas no Brasil: Estratégias de Avaliação.
Brasília: IPEA, 2011.

MIGUEL, Luís Felipe. Resgatar a Participação: democracia participativa e representação política no


Debate Contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, 100:83-118, 2017.

MINISTÉRIO DA CULTURA / SEINFRA. PESQUISA SOBRE O FUNCIONAMENTO DAS ESTAÇÕES


CIDADANIA – CULTURA* EDIÇÃO 2019”. Disponível em: http://pracinhas.cultura.gov.br/wp-content/
uploads/sites/28/2020/07/final_Dados_Pesquisa_resumo_2019.pdf. Acesso em: 20/03/2022.

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO REGIONAL / SECRETARIA NACIONAL DE HABITAÇÃO. Banco de


Dados da Secretaria Nacional Habitação do Ministério do Desenvolvimento Regional. Brasília, data
base 2021.

PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 [1970].

PIRES, Roberto.; VAZ, Alexander. Participação social como método de governo? um mapeamento
das “interfaces socioestatais” nos programas federais. Texto para Discussão No 1707. IPEA, Brasília,
2012.

RATTES, Plinio César dos Santos. A praça é do povo? Diversidade e participação social na gestão das
Praças CEU de Feira de Santana (BA). Tese (Dourado em Cultura e Sociedade). UFBA, 2022.

TATAGIBA, Luciana; TEIXEIRA, Ana Cláudia Chaves. Avaliação do Programa Minha Casa, Minha Vida
– Entidades. O desafio da participação dos beneficiários. Relatório Final. Núcleo de Pesquisa em
Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac Unicamp), 2015.

TEIXEIRA, A. C. C. et al. A participação da sociedade na implementação de políticas públicas. A


novidade dos “programas associativos. In: 40º ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL
DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 40., 2016, Caxambu. Anais […]. Caxambu:
Anpocs, 2016. p. 1-15.

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São
Paulo: Boitempo, 2010.

72
72
ASSISTENTES SOCIAIS NOS SERVIÇOS DE ACOLHIMENTO
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM OSC´S:
desafios institucionais

Camila Gabriel Meireles Amorim

RESUMO

O objetivo principal deste estudo é de analisar quais os desafios profissionais


enfrentados por assistentes sociais atuantes em serviços de acolhimento
para crianças e adolescentes ofertados por organizações da Sociedade
Civil. Para tanto, foi realizada pesquisa com profissionais do Serviço Social
atuantes em serviços de acolhimento para crianças e adolescentes do
Distrito Federal, com coleta de informações por meio do formulário google
forms. Foi possível observar pelas respostas das participantes: as relações de
precarização profissional especialmente pela intervenção dos dirigentes nas
respostas profissionais; nas condições de trabalho ofertadas pelas entidades
socioassistenciais e pela falta de autonomia associada a impossibilidade
de exercer a atividade profissional conforme o projeto ético político da
categorial profissional.

Palavras-chave: Assistência Social, Serviço Social, Entidades Socioassistenciais.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo buscou identificar os principais desafios do Assistente Social atuantes nas
organizações da Sociedade Civil no processo de acolhimento de crianças e adolescentes. Os dados
coletados na pesquisa realizada, apresenta uma realidade profissional que desvela as dificuldades
enfrentadas pelo assistente social em sua atuação do profissional nos serviços de acolhimento para
crianças e adolescentes no Distrito Federal.

O objetivo deste estudo, foi de analisar quais os desafios profissionais enfrentados por
assistentes sociais atuantes em serviços de acolhimento para crianças e adolescentes ofertados
por organizações da Sociedade Civil. Para compreender a complexidade advinda desse trabalho
institucional requer uma análise de conjuntura, englobando a perspectiva institucional, ideológica
política, econômica e social.

Partindo para uma análise macrossocial, observa-se que o processo de mundialização


do capital tem gerado diversos impactos perversos para as condições de vida e de trabalho da
classe trabalhadora. Diante desse cenário os acirramentos das expressões da questão social e do
desmonte das políticas sociais supostamente garantidoras de direitos interferem diretamente no
trabalho do assistente social.

73
73
Além disso, o sistema econômico neoliberal tem como premissa básica o fortalecimento do
mercado e o enfraquecimento das ações do Estado, notadamente em relação às políticas sociais
de assistência social. Ou seja, com o recuo do Estado frente às questões sociais, a Sociedade Civil
assume a responsabilidade por garantir ainda que precariamente serviços institucionais como os
de creches, instituições ade acolhimento para crianças e adolescentes.

Nesse sentindo observa-se cada vez mais a atuação das organizações da Sociedade Civil
que por meio da parceria com o Estado, recebe recursos financeiros para a execução do serviço. A
lógica da parceria, instituída pelo Marco Regulatório da Sociedade Civil – MROSC, lei 13.019 de 31
de julho de 2014, constitui o Estado gerente, que fiscaliza e monitora os serviços prestados pelas
organizações da Sociedade Civil ao mesmo tempo que se exime da responsabilidade de executar
de forma direta o serviço.

Com a parceria, a organização da Sociedade Civil deve garantir a equipe mínima para a
execução das atividades, além do que, perpetua-se contratações de profissionais com rendimentos
baixos e condições de trabalho exaustivas.

Tal precariedade impacta diretamente nas atividades desenvolvidas pelo Serviço Social,
em especial, tratando-se de instituições para acolhimento infanto-juvenil, em que a complexidade
se inicia com as histórias de vida trazidas pelas crianças acolhidas. São histórias marcadas pelo
acirramento das expressões da questão social, relativas especialmente a violências, abandono,
situação de rua e uso contínuo de álcool e drogas, tudo isso, associado, em grande parte a situação
de pobreza.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A execução da Política de Assistência Social e as entidades socioassistenciais

As obras de assistência social, tiveram início no Brasil com as irmandades das Santas Casas de
Misericórdia, fundadas com as Capitanias hereditárias por volta de 1540. E desde o início, o Estado
brasileiro, subvencionou entidades filantrópicas para prestarem serviços de assistência social. Tais
entidades ofertavam serviços historicamente considerados filantrópicos, com práticas baseadas
na caridade e na benevolência com os mais pobres. A perspectiva da filantropia foi o padrão de
resposta, que se instituiu por muitos anos no Brasil, para atender as demandas de determinados
segmentos populacionais (Junior, Carvalho, 2021).

Não obstante, a relação entre o público e o privado para a execução da política de assistência
social tem maior visibilidade a partir de 1930, quando é instaurado um padrão de proteção social
no Brasil. São instituídas políticas sociais, com respostas fragmentadas aos setores combativos da
sociedade, a fim de controlar movimentos sociais e classistas (Teixeira, 2007).

É preciso enfatizar que, as políticas sociais ofertadas a partir de 1930, tinham como objetivo
central, criar obstáculos de consciência de classe e consequentemente fragilizar a luta de classes
com a silenciamento da classe trabalhadora, ofertando tutela, e em contrapartida, cooptava-se
lideranças, por meio do controle de manifestações por meio da repressão (Teixeira, 2007).

74
74
Com essa perspectiva de enfrentamento da questão social, é garantida aos trabalhadores
formais o acesso a políticas sociais, e consequentemente o estatuto de “cidadania”. Aos trabalhadores
informais, sem atividade laboral reconhecida pela legislação brasileira, foi atribuída a categoria de
“subcidadania”, aos quais eram direcionadas políticas sociais pontuais, paternalistas, conservadoras
a favor do compadrio e favoritismo. E nesse cenário, que se desenvolve duas vertentes paralelas no
sistema de proteção social: dos direitos sociais e da filantropia (Teixeira, 2007).

Outro segmento era a população pobre, e que não vendia sua força de trabalho, ou seja,
os não rentáveis, como crianças, adolescentes, idosos, deficientes e desempregados, que pela sua
condição, não ameaçavam o Estado com suas demandas. A esse público, era ofertada a assistência
social no campo do “não-direito”, aos quais eram ofertadas ações assistenciais filantrópicas.

A ação da filantropia passou então a ser regulamentada pelo Estado, sendo que a primeira
instituição de assistência social foi a LBA, um órgão de colaboração com Estado, que representava
a relação da iniciativa público – privada, que instaurou o paradigma da “filantropia estatal”. Com as
crescentes reivindicações dos trabalhadores, os sistemas de proteção sociais foram ampliados entre
as décadas de 60 e 70, e tiveram as proteções sociais ampliadas, abarcando boa parte da população
brasileira em situação de risco social.

Em 1977 com a criação do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – SINPAS,


a LBA e a FUNABEM passaram a incorporar o sistema previdenciário, de modo que, a LBA ficou
encarregada de implementar e executar a Política Nacional de Assistência Social, bem como orientar,
coordenar e supervisionar outras entidades executoras dessa política (Teixeira, 2007).

Com a Constituição de 1988, tem-se pautado um arcabouço de direitos sociais, organizados


pela Seguridade Social, na qual estão reunidos a saúde, assistência social, não contributivas,
enquanto direitos dos cidadãos e dever do Estado e a previdência social contributiva. Sinteticamente,
a Seguridade Social representa a reunião de esforços para garantir respostas do Estados a situações
de desproteção e risco social (Junior, Carvalho, 2021).

No entanto, com o avanço neoliberal a partir da década de 90, na contrareforma do Estado,


se contrapôs aos avanços dos direitos sociais, democraticamente constituídos pela população
brasileira. Na relação com o mercado, o Estado Social de Direitos, reduz sua atuação frente as
demandas sociais da população e passa a se eximir da responsabilidade na execução de políticas
públicas, que a partir de então, serão pontuais e fragmentadas.

O Estado mínimo para a área social e Estado máximo para o capital cede espaço para que
as organizações da Sociedade Civil retomem as atividades na assistência social como executoras de
serviços direcionados à população, subvencionadas pelo Estado, que assumirá a função de gerenciar
as atividades desenvolvidas por estas.

A partir do ano de 2005, como forma de sacramentar a relação Estado e Sociedade Civil na
execução de políticas sociais, com a regulamentação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS
o governo busca adequar essas instituições aos parâmetros legais de prestação de serviços com o
reordenamento institucional na garantia de direitos socioassistenciais (Gonçalves, Paiva, 2017).

O reordenamento da filantropia, está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu art.


204, com a primeira iniciativa de regulamentação das entidades à assistência social com a Resolução

75
75
191 de 10/11/2005 do Conselho nacional de Justiça – CNAS e posteriormente com a Lei 12.101 de
27 de novembro de 2009, principal marco jurídico desse processo. Observa-se que, o destaque para
a participação da Sociedade Civil na execução dos programas de forma a desenvolver juntamente
com o Estado uma parceria, com vistas a complementar a oferta dos serviços, programas e projetos.
Nessa organização, somente o Estado disporá de mecanismos coordenar as ações (PNAS, 2004), de
modo a garantir a o cumprimento das propostas dos serviços, programas e projetos.

Assim, ao participar da execução dos programas, a Sociedade Civil passa a integrar o Sistema
Único de Assistência Social – SUAS, não só como prestadora complementar, mas como co-gestora,
caracterizada como serviços socioassistencial de relevância pública, com oferta de prestação de
serviços à população usuária da Política Pública de Assistência Social – PNAS com trajetórias de
vulnerabilidade e risco pessoal e social; visibilidade, controle social e representação de interesses
coletivos (PNAS, 2004).

A nova lógica proposta pela política de assistencial, pressupõe a mudanças das organizações
da Sociedade Civil, que devem garantir mudanças institucionais, antes fundadas na lógica da
propriedade privada e do clientelismo. Para tanto, o Estado atuará como regulador das entidades,
que devem tornar seus atos públicos, uma vez que são realizados com recursos públicos (PNAS,2004).

A incorporação da Sociedade Civil à rede SUAS estava prevista no art. 2 e 4 da Lei Orgânica da
Assistência Social - LOAS, e a Norma Operacional Básica - NOB SUAS definiu as atribuições da rede
socioassistencial:

a) Oferta integrada de serviços, programas e projetos;


b) Caráter público e de co-responsabilidade
c) Hierarquização da rede de complexidade de serviços
d) Porta de entrada unificada
e) Territorialização da rede socioassistencial
f) Caráter contínuo, sistemático e planejado com recursos públicos
g) Referência Unitária em todo território nacional – nomenclatura,
conteúdo e padrão de funcionamento (PNAS, 2004, p.95).

Na lógica da parceria entre o Estado e as organizações da Sociedade Civil, a partir do que foi
instituído pelo SUAS, o Estado passa a implementar as políticas de assistência social no sistema de
parceria com as entidades da Sociedade Civil, via editais de chamamento público, com o objetivo de
selecionar publicamente entidades e assegurar a prestação de serviços de proteção social básica1 e
de proteção social especial, como é o caso das instituições analisadas neste estudo.

Ao definir as entidades parceiras, o Estado realiza o repasse de recursos públicos para a


garantia da execução do serviço. Conforme a Lei 13.019 de 31 de julho de 2014, podem ser celebrados
Termos de Colaboração, em que o Estado tem a iniciativa de propor Planos de Trabalhos para parcerias
com as Organizações da Sociedade Civil para a efetivação da transferência de recursos financeiros. Já
1 Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assis-
tencia_social/Normativas/tipificacao.pdf

76
76
nos casos dos Termos de Fomento, as Organizações da Sociedade Civil propõem Planos de Trabalho
ao Estado a fim de obter recursos financeiros para a execução dos serviços socioassistenciais.

Nessa perspectiva, o que de fato importa para a política pública é a oferta do serviço, e não
necessariamente a qualidade da oferta. Nesse contexto, o Estado atua como gerente e cumpre com
as obrigações, cobranças e fiscalizações sobre o serviço ofertado, e não garante a ampliação dos
serviços públicos estatais (Duarte, 2013) na esteireira da lógica neoliberal.

3. METODOLOGIA

A presente proposta de estudo consistiu na compreensão do trabalho do/as assistentes sociais


em serviços de acolhimento de crianças e adolescente no Distrito Federal, de modo a responder a
seguinte questão: quais principais desafios enfrentados por assistentes sociais em sua atividade
profissional nos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes ofertados por organizações
da Sociedade Civil?

Para tanto, o acesso às informações deu-se a partir da estratégia de aplicação do método


qualitativo, por meio de aplicação do questionário semiestruturado. O acesso aos profissionais deu-
se por meio de encaminhamento do questionário ao e-mail da coordenação técnica da instituição,
que repassava as profissionais, para que pudessem, caso quisessem, responder.

Em momento nenhum, as pesquisadoras tiveram acesso o/as assistentes sociais que


responderam ao questionário. O universo da pesquisa compreendia 14 (quatorze) instituições de
acolhimento para crianças e adolescentes que ofertavam as modalidades casa lar, abrigo institucional
e acolhimento familiar, e que tinham contratados 18 assistentes sociais, no primeiro semestre de
2021. Desse universo, 14 (quatorze) assistentes sociais responderam ao questionário.

4. RESULTADOS

4.1 Perfil Profissional

Quatorze (14) assistentes sociais responderam ao questionário forms e se declaram como


do sexo feminino, com idade que variou entre 23 a 56 anos e o tempo de formação profissional na
graduação mínimo apresentado foi de 2 anos e o máximo de 12 anos. Dos dados dos questionários,
verificou-se que, 71,4% das entrevistadas informaram que possuem ensino superior em formato
presencial e 28,6% em ensino Ensino à Distância - EAD. As profissionais informaram sobre o tempo
em que atuam como assistentes sociais no acolhimento para crianças e adolescentes, que variou
de 1 ano a 8 anos de experiência. Com relação à qualificação profissional, 64,3% informaram que
possui especialização, enquanto 35,7% não possui.

77
77
4.2 Atividades desenvolvidas pela assistente social na OSC

Foram abordadas questões relativas à atividade profissional desenvolvida pela profissional


na Organização da Sociedade Civil – OSC. Inicialmente, buscou-se compreender as principais
atividades realizadas pela assistente social. O resultado do formulário demonstrou que as principais
atividades desenvolvidas pela/os assistentes sociais têm como função primária o atendimento de
crianças e adolescentes; o atendimento as famílias utilizando como estratégias de acompanhamento
as visitas domiciliares, articulação de redes do sistema de garantia de direitos e elaborações de
relatórios, conforme pode ser observado na tabela 1.

Tabela 1. Atividades desenvolvidas pela/os assistentes sociais nas OSC do Distrito Federal

Opções do Formulário Quantidade de


Respostas
Atendimento à Família 14
Atendimento à crianças e adolescentes 12
Visita Domiciliar 11
Acompanhamento Grupal às Famílias 7
Elaboração de Relatórios 12
Articulação com o sistema de garantia de direitos 11
Elaboração de Plano de Vida 1
Orientação aos cuidadores sociais 1
Fonte: Questionário Forms.

Em seguida, procurou-se compreender se no processo de trabalho da/os assistentes sociais,


era percebido desvio de função. Ou seja, se a instituição, solicitava o exercício de atividades que
não fosse as realizadas pelo assistente social em seu fazer profissional. Nesse caso, 5 entrevistadas
responderam que não há desvio de função na instituição onde atuam e 9 responderam que há
desvio de função na instituição onde são contratadas. Dentre atividades informadas como desvio de
função estão: serviços administrativos, motorista e cuidadoras.

Os profissionais foram questionados sobre tomada de decisão no seu fazer profissional junto
as crianças e seus adolescentes e o uso do senso comum em detrimento do conhecimento científico.
As respostas apresentaram que, 6 responderam que não usam do senso comum, 4 responderam
que usam o senso comum através da orientação de coordenadores dos serviços de acolhimento e 4
responderam que sim, usam o senso comum, apoiadas em decisão pessoal.

Sobre o acesso as normativas, bem como sua aplicação, procurou-se compreender a


familiaridade da/os assistentes sociais com o documento de 2009 “Orientações Técnicas para
o Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes” do Conselho Nacional dos Direitos das
Crianças e Adolescentes – CONANDA, documento que norteia as ações dos profissionais em serviços
de acolhimento. Nesse quesito, levando em consideração o domínio das orientações técnicas de
serviço de acolhimento às crianças e adolescentes, 11 entrevistadas afirmaram que conseguem
aplicá-las na medida do possível nas intervenções e 1 afirma que não possui conhecimento em

78
78
razão de falta de leitura do material, as outras duas respondentes do formulário não apresentaram
resposta.

4.3 Autonomia profissional da assistente social na OSC

Objetivou-se analisar sobre a autonomia profissional, dando enfoque ao fato de os


profissionais possuírem ou não autonomia no seu fazer profissional. Quando questionadas sobre
a autonomia profissional nos espaços sócio-ocupacionais que ocupam, 10 responderam que sim,
possuem autonomia e 4 responderam que não possuem.

Ainda sobre a autonomia, profissional, buscou-se analisar se há interferência dos dirigentes


das instituições na decisão sobre o fazer profissional. Nesse sentido, em relação a interferência dos
dirigentes das instituições, 7 responderam que há interferência dos dirigentes e 7 responderam que
não há interferência.

No que se refere a valorização profissional, na questão 10, somente 4 responderam que sim,
que o trabalho do assistente social é valorizado na instituição em que atua e 10 responderam que
às vezes são valorizados.

Buscou-se ainda compreender os padrões de relações entre os profissionais do serviço social,


especialmente no que se refere decisões sobre intervenções profissionais. Sendo assim, questionou-
se sobre a existência de situações de embate com os dirigentes, e, 8 responderam que acontecem os
embates com frequência e 6 afirmam ter total autonomia em suas decisões. Quando questionados
seja foram ou são assediados moralmente 8 afirmam que sim, sendo 2 com frequência e 6 afirmam
não sofrerem o assédio moral.

4.4 Desafios profissionais no trabalho com os acolhidos e suas famílias.

Nesse tópico, o enfoque foi sobre os desafios enfrentados pelo profissional do serviço social
junto às famílias das crianças e adolescentes acolhidos e com os próprios acolhidos. Nesse caso, as
perguntas foram direcionadas para os enfrentamentos profissionais relativos ao acompanhamento
técnico, as estratégias profissionais e desafios enfrentados pelos profissionais para intervir
com famílias e crianças e adolescentes assoladas pelas questões sociais e com forte vivência de
sociabilidades violentas.

Destaca-se que, para acessar mais informações, essa categoria possuía questões abertas,
que nos formulários forms, foram preenchidas pelos profissionais.

Quanto as principais dificuldades enfrentadas pelos profissionais na intervenção com


famílias e crianças e adolescentes, a/os assistentes sociais responderam as seguintes situações:1.
Conduta agressiva dos acolhidos devido ao uso de entorpecentes, 2. Deficiência intelectual de
alguns acolhidos e 3. Dificuldade de trabalho em conjunto com outros equipamentos públicos.

Sobre as dificuldades enfrentadas no acompanhamento as famílias dos acolhidos, a/os


assistentes sociais pontuaram as seguintes situações: 1. Adesão aos encaminhamentos, devido a
negligencias transgeracionais e 2. Compreensão sobre o que era o serviço de acolhimento.

79
79
5. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

5.1 Desafios Institucionais e o trabalho do Serviço Social em Organizações da Sociedade


Civil

a) Atividades desenvolvidas pelo Serviço Social

Dentre as atividades desenvolvidas pela/os assistentes sociais participantes da pesquisa,


destaca-se que a) atendimento às famílias; b) atendimentos a crianças e adolescentes; c) visita
domiciliar; d) elaboração de relatórios e e) articulação com o sistema de garantia de direitos.

No cotidiano profissional, a profissão do serviço social lida diariamente sobre as expressões


da questão social, defendendo assim os direitos universais da população que sofre com as
desigualdades sociais (De Carvalho, 2012). A complexidade da sociedade requer intervenções que
possuam uma postura ética e técnica, com objetivos profissionais a fim de construírem e definirem
metodologias, técnicas instrumentais de intervenção, pois são necessárias em processos nos quais
são realizados pelo/as assistentes sociais (SOUSA, 2008).

Alguns desses processos estão vinculados a instrumentalidade e os instrumentos que


abrange na área do Serviço Social, e são os principais métodos que auxiliam nos atendimentos.
Na institucionalização do Serviço Social, os métodos aplicados nas intervenções, ainda se
fundamentavam nos princípios religiosos instrumentalizados pela igreja católica. Somente com a
trajetória profissional, marcada por várias tentativas de romper com o olhar de ajuda e caridade,
e posteriormente, com o Movimento de Reconceituação conduzida e instituída pela categoria
profissional, é que se passou a esquadrinhar a instrumentalização do Serviço Social.

De Paula (2023) argumenta que a intervenção profissional, enquanto ação socialmente útil,
se constitui a partir de três dimensões: teórico-metodológica “porque fazer? ”; ético-política “para
que fazer”, e técnico-operativa “o que fazer e como fazer?”.

No caso das ações desenvolvidas pela/os assistentes sociais em instituições de acolhimento


para crianças e adolescentes, referendadas no formulário google forms, estes entram no rol da
operacionalização “ o que fazer e como fazer”, e que se encontram “presentes as referências
teóricas e metodológicas; os valores éticos e a concepção política e todo aparato técnico-operativo
necessário a realização da intervenção” (DE PAULA, 2023, p. 83) da profissional.

A perspectiva do assistente social tecnicista predominou historicamente e ainda existe entre


a categoria profissionais. Nessa perspectiva, de acordo com Guerra (2002), atuar somente do ponto
de vista operativo-instrumental não é suficiente enquanto ação profissional para dar respostas as
demandas apresentadas pela população atendida.

Além dos mais, ao estabelecer as atividades a serem realizadas com as famílias e com as
crianças e adolescentes, a profissional acessa não somente a dimensão técnico-operativa, mas
também a dimensão teórico-metodológica, por meio do acumulo de conhecimento, especialmente
aquele constituído no âmbito do pensamento marxista, que permite analisar não apenas o que
está explicito, mas também as questões implícitas (DE PAULA, 2023).

80
80
Como pode ser observado neste estudo, com foco nos profissionais do Serviço Social que
atuam diretamente com famílias de crianças e adolescentes acolhidos na modalidade acolhimento
institucional e familiar, requer o aprimoramento profissional contínuo, como previsto na Lei nº
8.662 de 1993 – Código de Ética do Assistente Social, faz-se primordial, haja vista, a dinamicidade
das relações sociais e a necessidade de compreensão e leitura das realidades e conjunturas sociais
nas quais estão inseridas estas famílias, para que, a atuação profissional baseie-se continuamente
na perspectiva ético-política.

A falta de orientação técnica para determinado acolhimento de crianças e adolescentes


pode gerar agravos na identificação de determinada articulação a ser realizada para atendimentos
em situações eminentes na qual o usuário está sendo exposto, levando assim a uma intervenção
que não condiz com a realidade vivenciada, que pode ocasionar uma compreensão equivocada da
família, e da criança ou adolescente que está sendo acolhido.

b) Familiaridade com documentos técnicos e tomada de decisão profissional

Frente a realidade de trabalhos em entidades socioassistenciais, como apontados nos dados


no tópico de resultados, vale ressaltar que a precarização do trabalho, pode gerar a sobrecarga
desses profissionais, ocasionando a ausência da qualidade do serviço prestado e a garantia da
funcionalidade dele.

A precarização do trabalho do/as assistentes sociais tem sido um desafio vivenciado por
essa categoria profissional, pois, o/as assistentes sociais, enquanto classe trabalhadora, sofrem
por estarem em trabalhos precarizados, sem recursos para o desenvolvimento de suas funções
(RAICHELIS, 2011).

As instituições não oferecem condições propicias para os desenvolvimentos deles, mas ao


invés disso cobranças e desvios de funções e falta de autonomia são características observadas
nos questionários enviados para as profissionais da área. A falta de recursos necessários para o
desenvolvimento das funções prestadas, leva o assistente social a uma via de mão dupla, que se
resulta a postura profissional do assistente social de maneira alienada, ou seja, sem refletir sua
prática profissional, ofertando aos usuários intervenções mecanizadas, sem respostas institucionais,
e mais ainda, culpabilizadora da exclusão social a que estes estão submetidos.

Para garantir uma prática baseada em princípios éticos, a atuação profissional deve estar
alicerçada em documentos norteadores da ação profissional: Código de Ética Profissional e nos
casos de acolhimento de crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA
e as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. No
levantamento realizado com a/os assistentes sociais dos serviços de acolhimento para crianças e
adolescentes do Distrito Federal, 11 profissionais responderam que conseguem aplicá-la na medida
do possível nas intervenções e apenas 1 profissional afirma que não possui conhecimento em razão
de falta de leitura do material.

Quando o profissional do Serviço Social mantém-se contínuo na lógica de formação e


qualificação profissional, este aciona quase que inconsciente, na atuação profissional, a dimensão
teórica-metodológica, quando se analisa elementos da conjuntura apresentada pelos usuários, no
momento que se constrói análises institucional; quando se estabelece relações de articulação com

81
81
os diversos equipamentos da política social e por fim, quando se busca compreender os efeitos da
lutas de classes e as relações sociais capitalistas e sua incidência sobre as condições de vida das
pessoas (DE PAULA, 2023).

c) Autonomia profissional e atravessamento institucional

A legitimação da política de assistência social enquanto política pública não fez com que
o conservadorismo presente historicamente nas ações da assistência social fossem superadas.
Tal fato pode ser observado na missão institucional, especialmente de entidade que executam o
serviço de acolhimento para crianças e adolescentes

Os atravessamentos dos empregadores, nesse caso dos presidentes e dirigentes dos serviços
de acolhimento, imbuídos da prática ideológica religiosa, desrespeitam a autonomia profissional,
quando estabelecem desvios de função e impõem intervenções de cunho pessoal, baseadas em
princípios morais e arraigados de juízo de valor. A imposição destas ordens institucionais, violam o
Código de Ética do Assistente Social e a Lei que regulamenta a profissão.

Avalia-se que a referida situação pode estar associada em duas situações: 1. Enquanto
profissional que vende a sua força de trabalho e estando sujeito a lógica da hierarquia institucional,
o profissional do serviço social teria pouco ou nenhum espaço para diálogo e proposição de
intervenções diferentes das defendidas pelos dirigentes institucionais.

d) Intervenção profissional e o trabalho com famílias

Quanto ao trabalho com as famílias, a/os assistentes sociais que responderam ao


questionário, trouxeram como principais questões: “Conduta agressiva dos acolhidos devido ao uso
de entorpecentes, Deficiência intelectual de alguns acolhidos e Dificuldade de trabalho em conjunto
com outros equipamentos públicos”

Em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal – IPEDF


sobre o diagnóstico dos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes no Distrito Federal,
foi apontado que, “a pobreza, o uso abusivo de álcool, drogas e outros problemas de saúde mental,
seja do acolhido ou família, interferem na reintegração familiar” (IPEDF,2021, p.94).

Os dados acima encaminham para a interpretação de que a concepção de família perpassa


pelas diferentes perspectivas de matrizes teórico metodológicas. Ou seja, a tendência do estrutural
funcionalismo, além de fazer defesa pelo modelo ideal de família e persevera na concepção de que
a família é a primeira e principal responsável pela provisão de bem-estar social dos seus membros
(MIOTO, 2020).

Já na perspectiva crítico dialética, “tendo em conta suas categorias basilares historicidade,


totalidade e contradição. A multiplicidade de formas familiares é vista como decorrente dos
processos de transformação da sociedade. Entende-se a os modos de vida da família que tem lugar
no seu interior” como expressões da questão social. (MIOTO. 2020, p.28).

Do positivismo herdamos as análises que moralizam e culpabilizam os sujeitos sociais que


são considerados desajustados à ordem vigente, em que a pobreza e as relações sociais não são

82
82
interpretadas como uma questão social, mas como uma questão pessoal, que associa os sujeitos à
má vontade (Guerra,2023, p.48).

6. CONCLUSÃO

O tema desenvolvido nesse estudo, por sua dimensão e importância, não deve ser esgotado
por aqui. Pelo contrário, é preciso garantir que essa discussão ganhe amplitude, uma vez que, trata-
se de execução de políticas sociais, tratadas pelo Estado mínimo sem a devida importância que
merece.

A relação entre o filantrópico e a administração pública, arrasta-se ao longo dos anos e


é regulamentada numa lógica de responsabilidade compartilhada entre o Estado e a Sociedade
Civil. O resultado dessa junção na execução de serviços públicos, destinada a população carente
é a permanência da lógica da filantropização na oferta dos serviços, e que perde de vista a
perspectiva de direitos. É também, a precarização das relações de trabalho, haja vista que estas
entidades contratam profissionais a baixos custos, com condições de trabalho ruins, especialmente
aos assistentes sociais, que se deparam com cerceamento de sua autonomia profissional e
consequemente do cumprimento de seu projeto ético-político.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgado em 1988.

BRASIL. Lei n. 13.019, de 31 de julho de 2014. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 1 de ago. 2014.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

BRASIL. Código de Ética profissional do/a Assistente Social. Lei 8662/93 de regulamentação da
profissão.

BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência


Social. Política Nacional de Assistência Social. BRASIL. Resolução n. 145, de 15 de outubro de 2004.
Publicada no Diário Oficial da União em 26/11/2004, 2004.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação nacional dos serviços
socioassistenciais. Brasília: MDS, 2014.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações técnicas: serviços de


acolhimento para crianças e adolescentes. Brasília: MDS, 2009.

DE CARVALHO, F. A. O Serviço Social e a interdisciplinaridade. Revista Diálogos, Brasília, vol. 18,


74 – 79, dez, 2012. Disponível em: https://portalrevistas.ucb.br/index.php/RDL/article/view/3915.

83
83
DE PAULA, L. G. P. A dimensão técnico –operativa no trabalho de assistentes sociais. In.: HORST,
C.H.M.; ANACLETO, T.F.M..A dimensão técnica-operativa no trabalho de assistentes sociais. Belo
Horizonte : CRESS, 2023.

DUARTE, J.L.N. Entre o público e o privado: reflexões sobre o significado das entidades beneficentes
no contexto do SUAS no Distrito Federal. Revista Políticas Públicas, São Luís do Maranhão, V. 17, N.
02, 2013. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3211/321131272014.pdf.

GONÇALVES, P.A. ; PAIVA, A.R. Serviço Social e instituições filantrópicas da assistência social: novas
requisições profissionais. Serviço Social em perspectiva, Unimontes, V.01, N. 01, junho de 2017.
Disponível em: https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/sesoperspectiva/article/view/802.

GUERRA, Y. A dimensão teórico-metodológica no trabalho de assistentes sociais. In.: HORST, C.H.M.;


ANACLETO, T.F.M..A dimensão técnica-operativa no trabalho de assistentes sociais. Belo Horizonte:
CRESS, 2023.

INSTITUTO DE PESQUISA E ESTATÍSTICA DO DISTRITO FEDERAL. Diretoria de Estudos e Políticas Sociais.


Relatório - Diagnóstico dos serviços de acolhimento de crianças e adolescentes no Distrito Federal.
Brasília, 2023. Disponível em: https://www.ipe.df.gov.br/wp-content/uploads/2021/12/Relatorio-
Diagnostico-dos-servicos-de-acolhimento-de-criancas-e-adolescentes-no-Distrito-Federal.pdf.
Acessado em 12/05/2024.

JUNIOR, A.A., CARVALHO, T.A. A relação entre público e privado na assistência social e saúde.
Revista Simetria, Escola de Contas Tribunal de Contas Municipal – São Paulo, 2021. Disponível em:
https://escoladecontas.tcm.sp.gov.br/images/artigos/hotsite/relacao-publico-privado-tcc.pdf

MIOTO, R.C.T. Família Contemporânea e proteção social: notas sobre o contexto brasileiro.
In.: FÁVERO, E. T. (org). Famílias na cena contemporânea: (des)proteção social, desigualdades e
judicialização. Uberlândia: Navegando, 2020.

RAICHELIS, R. O assistente social como trabalhador assalariado: desafios frente às violações de


seus direitos. Serviço Social e Sociedade, n. 107, p. 420-437, 2011. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/sssoc/a/xJZpht8LVT96vSvn7cPNQMR/.

SOUSA, Charles Toniolo. A prática do assistente social: conhecimento, instrumentalidade e


intervenção profissional. Emancipação, v. 8, n. 1, 2008. Disponível em: https://www.cressrn.org.br/
files/arquivos/k7maNx2767S70XHK8137.pdf

TEIXEIRA, S.M. Políticas sociais no Brasil: a história (e atual) relação entre o “público e o privado”
no sistema brasileiro de proteção. Sociedade em debate, Pelotas, 13(2), 2007. Disponível em:
file:///C:/Users/Camila/Downloads/400-Texto%20do%20artigo-1477-1-10-20120710%20(1).pdf.

84
84
FINANCIAMENTO ESTUDANTIL:
quem são os beneficiados?

Mirela Berendt Pinto da Luz

O presente ensaio visa realizar reflexões sobre o Fundo de Financiamento ao Estudante do


Ensino Superior (FIES). O FIES é uma política pública, pois a proposição e a organização do Programa
são de responsabilidade do Estado, porém os cidadãos que aderem a ele, após a conclusão ou
trancamento do curso superior, devem realizar o pagamento dos valores contratados acrescidos de
juros. Até o mês de maio de 2022, a inadimplência dos contratos em atraso era equivalente a R$
7,3 bilhões. (AGÊNCIA SENADO, 2022).

O primeiro financiamento estudantil, o PRONAFE, política pública de acesso a instituições


de ensino superior (IES) privadas, foi criado no ano de 1975, no período da ditadura civil militar e
na chamada era do desenvolvimentismo no Brasil, com o objetivo de financiar estudantes de baixa
renda. Segundo dados do Fundo Nacional da Educação (FNDE, 2022) o programa atendeu 870 mil
estudantes. Em 1992, a Lei nº 8.436 altera o nome do Financiamento Estudantil para CREDUC.
(BRASIL, 1992).

De acordo com Menezes e Santos (2001), o CREDUC perdurou até 1999 e apesar de já ter
apresentado um grau elevado de inadimplência em relação ao cumprimento dos contratos, no
Governo Fernando Henrique Cardoso sofreu reestruturação e foi transformado no FIES.

Analisando os dados do Censo da Educação Superior (INEP, 2022), no período compreendido


entre os anos de 1999 e 2022, evidencia-se a expansão do ensino superior privado e aumento do
número de matrículas: no ano de 1999 eram 905 instituições de ensino com 1.799.234 matrículas,
no ano de 2022, 2283 instituições de ensino, com 7.367.080 matrículas.

Apesar da oferta de vagas e interiorização da rede federal de educação superior por meio
do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI),
entre os anos de 1999 e 2022 em relação ao ensino superior público tem-se os seguintes dados:
1999 – 192 instituições de ensino; 2022 - 312 instituições. No ano de 1999 eram 832.022 matrículas
e em 2022, 2.076.517.(INEP, 2022).

Em agosto de 2016, com o golpe que destitui a Presidenta Dilma Rousseff, assume o então
vice-Presidente Michel Temer. O governo dele foi marcado pelo desmonte de políticas sociais, por
perda de direitos dos trabalhadores, elevado índice de desemprego, a Emenda Constitucional Nº
95 (EC95), de 2016, a Reforma Trabalhista de junho de 2017 e os encaminhamentos para a Reforma
da Previdência efetivada em 2019 no Governo Bolsonaro.

De acordo com Souza e Soares (2019, p.15),

Esta certeza é clara em apenas dois anos do ilegítimo governo de Michel


Temer, a partir de ações como a Emenda Constitucional nº 95, congelando
por 20 anos o gasto público destinado a direitos sociais fundamentais
como Saúde, Educação e Assistência Social; a aprovação da contrarreforma

85
85
trabalhista que nos repõe a situações bárbaras de trabalho intermitente,
desprotegido e análogo à escravidão; e a nefasta proposta de contrarreforma
da previdência.

Em continuidade aos retrocessos do Governo anterior, o Governo Bolsonaro dá continuidade


ao ideário neoliberal, com agenda de privatizações, continuidade de desmonte dos programas
sociais e a ofensiva conservadora.

Segundo Mattos, (2020, p.214),

Essa combinação da ideologia obscurantista neofacista com políticas concretas


de restrição e ataques a direitos democráticos e sociais se articulou, como
não poderia deixar de ser, a política ultraneoliberal comandada por Paulo
Guedes em um fortalecido Ministério da Economia (que reuniu as antigas
pastas da Fazenda e do Planejamento, Orçamento e Gestão, incorporando
também órgãos antes ligados a outros ministérios). A política econômica do
governo Bolsonaro teve sempre como um dos nortes principais intensificar
o ajuste fiscal iniciado em 2015, ainda com Dilma na Presidência, e muito
aprofundado por Temer (especialmente coma Emenda Constitucional 95,
do “teto dos gastos”). O ajuste se combinou a uma ampliação do leque de
empresas a serem privatizadas e com passos adiante na retirada de direitos
dos trabalhadores, caracterizando o modelo de política de austeridade
radical de Guedes/Bolsonaro.

Neste cenário de desmonte, a educação pública não ficou de fora, com cortes no orçamento
das universidades, institutos federais e institutos de pesquisa.

Historicamente, o financiamento estudantil tem sido ofertado com o objetivo de democratizar


o ensino superior, mas há questões que vão além disso. Democratizar significa o cidadão ter que
pagar para estudar, pois a rede pública do ensino superior não disponibiliza vagas suficiente? Ou
é outro mascaramento do Estado Neoliberal articulando em favor da privatização da educação
e da reprodução da ideologia capitalista? De acordo com o FNDE (2020), do ano de 2010 a 2020
foram concedidos 2.770.206 financiamentos, paralelamente ao número de contratos, observa-se o
crescimento do número de instituições de ensino superior privadas no país. De acordo com o Censo
da Educação Superior, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC, 2022), 88% das instituições de
ensino superior no país são privadas.

Outro fator que deve ser destacado é a inadimplência em relação ao FIES. A inadimplência
cresce proporcionalmente ao índice de desemprego no país. Esse indicador vem aumentando
desde 2015, tendo seu maior índice no primeiro trimestre de 2021, totalizando 14 milhões e 900
mil pessoas desempregadas no país (IBGE, 2022), 1 ano após o início da Pandemia de COVID no
Brasil. A pandemia escancarou as desigualdades existentes no sistema capitalista e do desmonte
das políticas públicas no Brasil: o caos na saúde pública, o desemprego, a fome, a falta de recursos
tecnológicos para acompanhamento das aulas remotas, a evasão escolar, o número de mortes
exacerbou a precariedade das condições de vida da classe trabalhadora.

Diante desse cenário, faz-se necessário avaliar o FIES não apenas como uma política de
acesso ao ensino superior, mas também como uma política que financia o capital privado, indo ao

86
86
encontro da lógica neoliberal de eximir o Estado da função de prover educação pública e gratuita.
Há de se refletir também se o FIES, como política pública, contribui para o aumento do número de
pessoas desempregadas, criando um exército de reservas, que apesar da qualificação, diante da
realidade, trabalhadores acabam por aceitar condições precárias de trabalho, indo ao encontro da
lógica do capital.

Conforme Marx (2017, p.705),

A acumulação capitalista produz constantemente, e na proporção de sua


energia e volume, uma população trabalhadora adicional relativamente
excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de valorização do
capital, e portanto, supérflua.

Assim deve-se ressaltar que apesar do Estado incentivar a expansão do ensino superior
privado, suas ações em relação a geração de empregos são quase nulas, considerando a primazia
dos processos de financeirização em detrimento da produção. Essa é a tônica do neoliberalismo,
que traz em sua essência o fortalecimento do individualismo, da negação da totalidade, da
desconstrução do coletivo. Diante disso, o trabalhador em condições precárias de trabalho ou
mesmo em situação de desemprego, pode sentir-se responsável pela sua situação.

A primeira grande expansão do ensino superior aconteceu na década de 60, com a proposta
de formar recursos humanos para o processo de industrialização do país. Neste período a União
Nacional dos Estudantes (UNE) já debatia o caráter elitista das instituições de ensino superior.

Nas décadas de 1970 e 1980 o Estado Brasileiro continuou com investimentos nas
universidades, ofertando ensino gratuito tanto em nível estadual como federal. Na iniciativa
privada predominava instituições pequenas e isoladas, com a oferta de poucos cursos. De acordo
com Durham (2003), no período compreendido entre 1970 a 1980, a participação do setor privado
na oferta de matrículas passou de 50,5% para 64,3%. É importante destacar, que este período foi
marcado pela ditadura civil militar, com o amadurecimento do sistema capitalista no Brasil. Em
nome do desenvolvimento econômico e contra o comunismo, os governos deste período adotaram
uma política a favor do capital estrangeiro, das privatizações e da classe dominante.

Conforme IANNI (2019, p.31-32),

Foi assim que se definiu e consolidou, ao longo de todos os governos da


ditadura, o núcleo principal do planejamento econômico estatal: o Estado
foi posto a serviço de uma política de favorecimento do capital imperialista,
política essa que se assentou na superexploração da força de trabalho
assalariado, na indústria e na agricultura.

Este período foi marcado pela política desenvolvimentista e a industrialização do país. Era
necessária uma profissionalização dos trabalhadores para acompanhar a tecnologia das empresas
transnacionais que iniciaram suas atividades no Brasil. Foi durante a Ditadura civil militar, em
meados dos anos 1970, que o capital passou pela sua primeira grande crise ocasionado por diversos
fatores como: o colapso do modelo fordista, o fim do acordo de Bretton Woods, a crise do petróleo.

87
87
O PRONAFE, cuja Lei foi aprovada no Governo do Presidente Geisel em 1975, além de ter como
objetivo o acesso a educação superior, apoio do Estado as instituições privadas, ideologicamente
tinha como premissa o afastamento dos jovens das universidades públicas e de ideias contrárias ao
sistema vigente e a ditadura. Na justificativa do Projeto de Lei destaca- se (BRASIL, 1975),

Por igual, a tranquilidade psicológica do educando, garantindo-lhe


rendimento para atender as despesas mais imediatas, não somente antecipa
maior assimilação do ensino e elevação da produtividade nas pesquisas,
quanto elimina foco de insatisfação social, geralmente localizado nas
Universidades, onde os jovens, por não disporem de recursos, acreditam em
falsas mensagens, tornando-se presas fáceis da agitação e subversão.

A reflexão que deve ser enaltecida, é de que as políticas públicas são construídas por
interesses que nem sempre beneficiam a maioria da população, apesar de muitas delas serem
resultados da luta e de conquistas da classe trabalhadora.

A segunda maior expansão do ensino superior privado no Brasil foi na década de 1990,
como consequência da política neoliberal iniciada no Governo do Presidente Fernando Collor de
Melo e com seu ápice no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Corroborando para
a questão cita-se Demier, (2017, p.60), “Indubitavelmente, um momento decisivo desse processo
- e que exprimiu a conquista da “hegemonia”, na sociedade civil, pelo grande capital financeiro
transnacionalizado - foi a eleição em 1994, de Fernando Henrique Cardoso”.

A lógica do neoliberalismo, das privatizações, do estado mínimo, ignorando seu papel em


relação a educação, pode ser evidenciado nos dados do Censo da Educação Superior referente ao
ano de 2022, 88% das instituições de ensino no país são privadas.(INEP, 2022).

Salvador (2020, p. 381) ressalta o encolhimento real do orçamento federal destinado a


educação: “no período de 2016 a 2019, apresenta uma perda real de 12,57%, saindo de 112,71
bilhões de reais para 98,54 bilhões de reais.”

A decisão sobre os objetivos de gastos do Estado e a definição sobre a origem dos recursos
para financiá-los obedecem a critérios não somente econômicos, mas predominantemente
políticos, espelhando a direção tomada na sua definição e a correlação das forças sociais e políticas
atuantes na sociedade. É no orçamento das políticas sociais que se materializa a ampliação ou
diminuição dos direitos e interesses coletivos.

De acordo com a pesquisa de empregabilidade do Instituto SEMESP (2020), 3 a cada 4 alunos


de 18 a 24 anos da classe C que frequentam o ensino superior estavam matriculados em uma IES
privada em 2020. Este dado, assim como os dados do Censo da Educação Superior 2022, são a
materialidade da falta de investimento do Estado na educação pública e gratuita. O FIES é um fundo
público com dotação orçamentária do Ministério da Educação, recursos de loteria e do pagamento
do próprio financiamento pelos egressos que f inanciaram o ensino superior. É por meio do fundo
público que o Estado repassa os recursos do orçamento para a execução das políticas sociais, em
suma, o fundo público materializa as políticas sociais. É importante ressaltar que enaltecendo as
políticas neoliberais, o Estado apropriou-se do fundo público incentivando o acesso ao ensino
superior privado, em oposição a ampliação de vagas em IES públicas.

88
88
Conforme Behring, 2021, p.258:

O capitalismo maduro e decadente coloca em questão os direitos e as


políticas sociais, pois apropria-se vorazmente do fundo público, desencadeia
uma imensa ofensiva sobre os trabalhadores e retrocede em medidas que
estiveram no campo da emancipação política, em seus derradeiros suspiros
social-democratas.

Em 2010 aconteceram mudanças no FIES, o FNDE tornou-se agente operador e a figura do


fiador foi descartada até a crise de 2015. A ausência da necessidade de fiador, facilitou a contratação
do FIES e os dados apontam um crescimento no número de contratos, tendo seu ápice em 2014
com 732. 558 contratos firmados.

Observa-se que o FIES possibilitou acesso ao ensino superior, mas os cidadãos devem devolver
ao Estado o pagamento das mensalidades, quando cabe ao Estado propiciar ensino gratuito e de
qualidade. Considerando que as receitas do orçamento da União são originárias dos tributos pagos
pela sociedade, as pessoas que contratam o FIES, pagam seus estudos em duplicidade. Behring
(2016) aponta: o fundo público se forma a partir de tributos da sociedade. O capital comercial, o
industrial, o monetário são tributados em cima dos lucros gerados a partir da mais valia produzida
pelos trabalhadores; eles são tributados por meio dos impostos decorrentes do seu trabalho –
Imposto de renda; e por fim o trabalhador é tributado de forma indireta por meio dos impostos
sobre as mercadorias que consome.

Os resultados de inadimplência do FIES são reflexos da realidade do mundo do trabalho, das


contrarreformas trabalhistas constantes na agenda econômica neoliberal.

Os beneficiários do FIES pertencem a classe trabalhadora, portanto não há como realizar


a análise desta política pública de inclusão dissociada da categoria trabalho. Trabalho entendido
como a realização da práxis, onde o sujeito possa obter o salto ontológico, trabalho vivo e não
um trabalho alienante e morto, estranho aos seres humanos. A questão do desemprego não é
resultado apenas da crise econômica, perpassa questões estruturantes como a política neoliberal,
a lógica do capital que necessita de mão de obra excedente, a mundialização as novas tecnologias
e a nova morfologia do trabalho.

As políticas sociais por mais que beneficiem a princípio a classe trabalhadora, sempre
beneficiaram os interesses do capital. É inquestionável que o FIES proporciona acesso ao ensino
superior a população excluída do ensino superior, mas o questionamento que fica é a que custo?

89
89
REFERÊNCIAS

ABMES - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS MANTENEDORAS DO ENSINO SUPERIOR. Atraso no


Fies bate recorde, e dívida chega a R$ 13 bilhões. Disponível em: https://abmes.org.br/noticias/
detalhe/3280/atraso-no-fies-bate-recorde-e-divida-chega-a-r-13- bilhoes. Acesso em: 20 dez. 2019.

BEHRING, Elaine. Fundo Público: um debate estratégico e necessário. In: XV ENCONTRO NACIONAL
DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL (ENPESS), 2016, Ribeirão Preto. Anais Ribeirão Preto,
ABEPSS, 2016.

Fundo Público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n°. 274, de 05 de maio de 1975. Institui o Programa
Nacional de Financiamento ao Estudante (PRONAFE) e determina outras providências. C â m a r a
dos Deputados, 1975. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_
mostrarintegra?codteor=1188093. Acesso em: 29 de jun. 2022.

BRASIL. Câmara dos Deputados. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n°. 1540, de 07 de
outubro de 1999. Dispõe sobre o Crédito Educativo e dá outras providências. Câmara dos Deputados,
1999. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/16877. Acesso em: 29 jun.
2022.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Censo da
Educação Superior 2022: notas estatísticas. Brasília, DF: Inep, 2023. Disponível em: https://www.
gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e- indicadores/censo-da-educacao-
superior/resultado. Acesso em 3 mar. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.375, de 21 de junho de 2022. Altera as Leis nºs

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 8.436 de 25 de junho de 1992. Institucionaliza o Programa de


CréditoEducativo para Estudantes Carentes. Disponível em: https://legislacao.
presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=8436&ano=1992&ato=480UT Wq10MFpWT1a5.
Acesso em: 10 jul. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Lei n° 5.172, de 25 de Outubro de 1966. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em 08 de dez. de 2019.

DIEESE - DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SÓCIOECONOMICOS. Com


ensino superior, mas sem trabalho na área. Boletim Emprego em Pauta. Disponível e m :
https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2019/boletimEmpregoEmPauta13.html.
Acesso em 05 dez. 2019.

DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de


Janeiro: Manual, 2017.

90
90
DURHAM, Eunice. O ensino superior no Brasil: público e privado. São Paulo: USP, 2003.
(Documento de Trabalho, n. 3/03). Disponível em: http://goo.gl/CJOMvi. Acesso em 07 de dez. de
2019.

FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Histórico. Disponível em: http://


www.fnde.gov.br/component/k2/item/4752-hist%C3%B3rico#:~:text=O%20CREDUC%20foi%20
implantado%20no,mais%20de%20870%20mil%20estudantes. Acesso em: 17 de abr. 2022.

IANNI, Octavio. A ditadura do grande capital. São Paulo: Expressão Popular, 2019

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por amostra de


domicílios contínua. Taxa de desocupação, jan-fev-mar 2019; jan-fev- mar 2022. Disponível em:
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa- nacional-por-amostra-
de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series- historicas&utm_source=landing&utm_
medium=explica&utm_campaign=desemprego.Acesso em 10 jun. 2022.

INSTITUTO SEMESP. Pesquisa de Empregabilidade do Brasil. 2.ed . 2020. Disponível em: https://
www.semesp.org.br/instituto/. Acesso em :10 dez. 2020.

MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São
Paulo: Usina Editorial, 2020.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital.
Tradução de Rubens Enderle. 2.ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MENEZES, Ebenezer Takuno de; SANTOS, Thais Helena dos. Verbete Creduc. Dicionário

Interativo da Educação Brasileira -Educabrasil. São Paulo: Midiamix, 2001. Disponível em: https://
www.educabrasil.com.br/creduc/. Acesso em: 15 out. 2021.

MP que permite renegociar dívidas do Fies chega ao Senado. Agência Senado, Brasília, 18/05/2022.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/18/mp- que-permite-
renegociar-dividas-do-fies-chega-ao-senado. Acesso em: 2 jul. 2022.

Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007 - 2010/2007/Decreto/
D6096.htm. Acesso em: 2 dez. 2019.

SALVADOR, Evilásio. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. IN:
CASTRO, Jorge Abrahão; POCHMANNM, Marcio (Orgs). Brasil: Estado social contra a barbárie. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020. p.367-388.

SOUZA, Giselle.; SOARES, M. G. Morena. Contrarreformas e Recuo Civilizatório: um Breve Balanço


do Governo Temer. SER Social. v. 21, n. 44, p. 11–28, 2019. Disponível em: https://periodicos.unb.
br/index.php/SER_Social/article/view/23478. Acesso em: 11 jul. 2022.

91
91
O IMPACTO DA NOVA DIREITA NAS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL NA PERSPECTIVA DA
ASSISTÊNCIA SOCIAL

Vitória Macedo de Carvalho

1. INTRODUÇÃO

Por conta de um passado recente na sociedade brasileira, marcado por uma conjuntura
desfavorável a classe trabalhadora, onde se pôde observar a sucessão de um quadro político de
centro-esquerda para o de extrema direita no país trouxe à tona um cenário de tensão que remonta
às décadas de 80/90 no Brasil. Tal cenário se deve à ascensão da nova direita no ano de 2018, que
representou não só a dominação na esfera política, mas, configura todo um aparato ideológico,
político e econômico formando na sua totalidade um verdadeiro projeto de desproteção social.

Esse projeto em questão tem como raiz ideológica tanto o neoconservadorismo como o
neoliberalismo. Ambas as correntes apresentadas têm como objetivo a manutenção do sistema
de desigualdades sociais em prol da reprodução da lógica capitalista, a qual seja; a manutenção da
taxa de lucro.

Considerando o Brasil como país de capitalismo periférico e subordinado aos países de


capitalismo central (BRASIL: A PERIFERIA NO SISTEMA CAPITALISTA) é compreensível a ideia da
fragilidade da nossa democracia. Isso porque, logo após a formulação da Constituição Federal
forjada no período de redemocratização do país, a lógica neoliberal adentrou o contexto político,
impedindo sobretudo a consolidação do Sistema de Seguridade Social, que passava a ser integrado
pelas políticas de Previdência, Assistência e Saúde.

A barreira protetiva do sistema de proteção social à lógica neoliberal foram os princípios


adotados na Constituição: universalização, intersetorialidade, e descentralização administrativa.
Esses princípios permitiram a abertura ao debate, e impediram o precipitado desmonte social.

Contudo no ano de 2016 o retorno da direita ao poder através de um golpe inconstitucional,


trouxe novamente a discussão de contrarreformas sob a justificativa de ajustes fiscais, a consolidação
dessas contrarreformas veio logo após o ano de 2018 com a eleição do candidato de extrema
direita Jair Messias Bolsonaro.

O projeto da nova direita ressignificou os princípios da Seguridade na Constituição Federal,


fazendo uma verdadeira distorção dos mesmo, pautando-se portanto na focalização, meritocracia,
e responsabilização do indivíduo, da família e da sociedade civil por conta da desresponsabilização
do Estado.

A Assistência Social como política integrante do sistema seguridade entra no tensionamento


entre o projeto da Nova direita e o projeto democratizante, devido a sua configuração como política
responsável pela garantia dos mínimos sociais. A sua efetivação fica de frente a dois projetos
antagônicos, um primeiro que pretende utilizar a ideia de mínimo como forma de submeter a
política aos seu interesses reducionistas, a fim de levar a garantia social ao nível residual, já o

92
92
segundo busca na efetivação dos mínimos fortalecer o projeto emancipatório.

A história da Assistência Social é dialética, e possui um passado de avanços e retrocessos,


avaliando esse passado percebemos claramente que em diversos governos a assistência assumiu
papel de ferramenta de dominação política, desviando-se da sua construção social como ferramenta
de garantia de direitos sociais.

2. NOVA DIREITA

O processo de colonização do Brasil por Portugal se pautou em relações de extrema


violência, por meio do apagamento identitário dos povos originários que aqui antes residiam, pela
escravidão dos povos negros e indígenas e pelos diversos estupros dos corpos femininos que já eram
escravizados, entre diversas atrocidades. A partir dessa perspectiva, a construção política do Brasil
passou por diversos séculos de corrupção, desigualdade social e não garantia dos direitos sociais
da população, sobretudo da classe trabalhadora, das pessoas empobrecidas, das mulheres, das
pessoas pretas e indígenas, das pessoas com deficiência, dos idosos, das crianças e adolescentes,
assim como todas as demais minorias. Passando por décadas e décadas nas mãos de um Estado
de direita, focalizados no sistema de produção capitalista, na individualização e no liberalismo,
baseados na cultura ocidental e apresentando uma forte influência cristã e conservadora sobre as
decisões estatais, conforme Silveira (2007):

“o ideário liberal do direito à propriedade privada constrói uma concepção


de cidadania excludente e uma sociedade de privilégios, gerando uma massa
de miseráveis, de negros e índios expropriados de sua cultura e camponeses
de sua terra, além da discriminação de mulheres e gays, o que em nossa atual
sociedade pode ser chamada de “banalização do humano.” (IAMAMOTO,
2007)

O Brasil apresenta uma forte polarização política, entre esquerda e direita, que vem
crescendo desde 2014 com a ascensão de idéias neoconservadoras e com a progressão do
Movimento Brasil Livre (MBL), um movimento político vinculado a direita brasileira com ideais
liberais e conservadores, responsável este por mobilizar a população do Brasil a onda de protestos
e manifestações populares contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, levando ao seu processo de
impeachment. A nova direita brasileira foi influenciada também pelo processo de eleição americano
no ano de 2016, do hoje ex-presidente Donald Trump, que possui ideários de extrema direita
conservadora, indo de contraponto às políticas sociais e favorecendo o crescimento do liberalismo
econômico nos Estados Unidos.

A nova direita nada mais é do que a herança da direita nacionalista e da direita liberal que o
Brasil conheceu nas décadas dos anos 30 e 60, com a junção do fanatismo religioso, judaico-cristão,
esta se pauta no livre arbítrio e nos exemplos de ações presentes nas escrituras da bíblia cristã de
como deve ser a atuação do Estado, excluindo a subjetividade e pluralidade dos seres humanos.

Na América Latina, abriu caminho para a expansão de igrejas neopentecostais, ao mesmo


tempo, setores mais conservadores da Igreja Católica fortaleceram-se como alternativa a essa

93
93
“concorrência”. O fundamento religioso incorpora o discurso empreendedor, através da Teologia
da Prosperidade, mas também os discursos punitivos e armamentista, com políticas de alianças
com esses setores.

Apesar de defenderem as pautas anti-aborto, anti-corrupção e anti-drogas, a nova direita


apresenta uma grande contradição sendo a favor da política armamentista para a população e
apresentando envolvimentos de corrupção, ademais ainda segue sendo uma ameaça aos direitos
sociais conquistados à 34 anos com a Constituição Brasileira por ver o Estado como inimigo a ser
batido, uma vez que a laicidade do Estado é considerada como um obstacúlo à sua ação.

Logo, a nova direita e a bancada evangélica que vem se fazendo presente nas decisões
políticas do nosso país, caminha em direção contrária da legislação presente na Constituição e
da garantia dos direitos sociais, que deveria garantir o Brasil como um Estado laico - imparcial as
questões religiosas dos indivíduos - separando o estado da igreja, visto que a colonização brasileira
iniciou-se pelo processo de catequização católica dos povos indígenas e pautou durante muito
tempo a moral e costumes dos indivíduos, segue sendo perpetuada de outras maneiras.

Apesar disso, a atual Constituição Federal em vigor, promulgada em 5 de outubro de 1988,


dispõe em seu inciso 1°, do artigo 19, que

“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios


estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes
o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações
de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de
interesse público.” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988)

3. IMPACTO DA NOVA DIREITA NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

A Assistência Social no Brasil surgiu desconectada do Estado e com forte presença das
instituições filantrópicas e religiosas e, após décadas de discussões e redefinições, esse cenário
finalmente foi remodelado e reinterpretado, a Assistência Social tornou-se um direito garantido
pela constituição cidadã, mais especificamente no seu 203º artigo, “A assistência Social será
prestada a quem dela necessitar”, e, além disso, conta com uma lei orgânica para regulamentar esse
processo. Apesar desses avanços a assistência social sempre viveu em um território tomado por
uma “confluência perversa entre, de um lado, o projeto neoliberal que se instala em nossos países
ao longo das últimas décadas e, de outro, um projeto democratizante, participatório” (DAGNINO,
2016, p. 195). Esse projeto neoliberal, embora estivesse presente desde o surgimento do projeto
constitucional da assistência, adotou diferentes facetas para o enfraquecimento dessa política com
o surgimento da nova direita.

Inicialmente esse movimento tenta minar as bases teóricas e acadêmicas dos profissionais que
trabalham diretamente com a prática dessa política, tomemos como exemplo um dos movimentos
conservadores dessa área, o “Serviço Social Libertário propõe difundir as ideias liberais, a partir dos
principais temas discutidos nas áreas sociais, econômicas, políticas e culturais” (SERVIÇO SOCIAL
LIBERTÁRIO, 2016), esse tipo de movimentação fundada no mesmo berço antipetista de tantos

94
94
outros grupos visa não somente uma suposta pluralidade ideológica como também o abandono da
corrente marxiana. Além disso, esse grupo também defende interesses que não necessariamente
correspondem aos interesses da classe trabalhadora, como a PEC 241, crítica à Lei Rouanet e a
defesa da Reforma da Previdência (SILVEIRA, 2019).

Mas, além do Serviço Social Libertário, que apesar de esforços verdadeiramente apelativos
nunca conseguiu passar de uma fração irrisória e diminuta dos projetos ideológicos do curso, o que
verdadeiramente afetou a formação e qualificação dos profissionais dessa área foi o movimento
iniciado em 2005 que ocasionou a popularização do ensino à distância no Brasil, que leva a um
“processo formativo desqualificado” (SANTOS, ALMEIDA, SANTOS, 2016, p10) dentro do Serviço
Social. “Assim, o perfil do profissional formado pelo ensino a distância será um perfil que tende
ao empobrecimento profissional. A formação profissional nesta modalidade é propensa a ser
uma formação acrítica, não reflexiva” (CHAGAS, p. 54, 2016). Dessa forma, o desenvolvimento
de estratégias de enfraquecimento teórico-ideológico parte da tentativa de minar os atores
que participam ativamente da defesa dos direitos inerentes às populações pauperizadas, mas,
evidentemente, a ofensiva da nova direita não se resume a isso.

Destarte, outra faceta dessa questão repousa sobre o financiamento dado à política de
assistência, conhecida como “irmã pobre” da seguridade, ela passou por uma montanha russa
no que diz respeito às flutuações dos valores destinados a sua concretização. Delgado (2022) traz
alguns números acerca disso, fazendo um recorte temporal dos governos do ex-presidente FHC até
o governo de Michel Temer temos o seguinte:

Esse gráfico elucida com grande facilidade a evolução desse investimento, onde o governo
Temer só teve um orçamento aprovado para a assistência de 900 milhões de reais. (DELGADO
et al., 2022). Além disso, esse período de queda nos investimentos é concomitante a todos os
movimentos sociais de origem reacionário e conservadora no Brasil, que levaram ao golpe e,

95
95
atualmente, ao grande número de deputados fisiologistas eleitos, ao final da janela de filiações e
trocas de partidos desse ano a maior bancada da câmara federal corresponde ao Partido Liberal
(PL), com 78 deputados (DI CUNTO, 2022).

Essas duas manobras, por si só, já representam grandes riscos para a consolidação e
efetivação da assistência social no Brasil, a garantia de direitos mister entra em cheque a cada
nova movimentação do capital monopolista e ameaça os tímidos avanços sociais conquistados pela
classe trabalhadora.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nova direita brasileira é fruto do projeto de naturalização das desigualdades sociais que
moldou e molda a cena política. Entretanto, os esforços populares contrários a essa ideologia,
produziram ao longo dos anos subsídios de enfrentamento através da construção de garantias
legais a exemplo da consolidação do sistema de seguridade social estabelecido na cf de 88

Os posicionamentos da Nova direita com o seu projeto neoliberal e conservador se choca


aos interesses da população com seu projeto democratizante, e nesse cenário de enfrentamento
entra em jogo a disputa pelas garantias sociais, que se tornam alvo das inúmeras tentativas de
desmonte que nova direita impõe às políticas públicas, através da focalização, precarização, e
subfinanciamento.

O que podemos entender desse contexto, é que o avanço da nova direita ao atacar a
proteção social ataca diretamente a noção de cidadania, uma vez que os direitos estabelecidos
constitucionalmente são uma conquista coletiva.

Sendo assim, a Assistência Social como parte integrante da seguridade não pode ser
focalizada a um público de pobreza absoluta tendo em vista que é uma peça fundamental para a
construção não só de uma população, mais igualitária como também ferramenta de transformação
da consciência política.

As políticas sociais fazem parte das conquistas civilizatórias, podem adquirir radicalidade
em países como o Brasil, mas não são a solução para a desigualdade estrutural, para a miséria
provocada, para a exploração do capital sobre o trabalho. (BEHRING& BOSCHETTI, 2009, p. 46).
Importante ter em conta o viés contraditório das políticas sociais por serem capazes de atender ao
mesmo tempo as demandas do capital e do trabalho.

Vale ressaltar que a atual conjuntura brasileira apresenta-se profundamente hostil aos
interesses dos trabalhadores e do subproletariado, em que a correlação de forças apresenta-se
altamente desfavorável à disputa por recursos financeiros e na garantia de direitos e legislações
protetivas que estão sob grave ameaça, ou já têm sido retirados. Sendo assim, urge buscar formas
de resistência e de ampliação do debate.

96
96
REFERÊNCIAS

‌BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL: A PERIFERIA NO SISTEMA CAPITALISTA. [s.l: s.n.]. Disponível em: <http://www.inscricoes.


fmb.unesp.br/upload/trabalhos/20171018164023.pdf>. Acesso em: 13 maio. 2024.

CHAGAS, Bárbara Da Rocha Figueiredo. Ensino a Distância e Serviço Social: desqualificação


profissional e ameaças contemporâneas. Textos & Contextos. Porto Alegre; v. 15. Jan./jul. 2016.

DAGNINO, E. . Confluência perversa, deslocamentos de sentido, crise discursiva. In: Fedozzi, L;


Corradi, Rodrigo de Souza; Rangel, Rodrigo Rodrigues. (Org.). Democracia Participativa na América
Latina. 1ed. Porto Alegre, v. 2016.

DA SILVA, Segislane Moésia Pereira; FRANÇA, Marlene Helena de Oliveira; MACIEL, Valnise Verás.
Conservadorismo como instrumento capitalista em tempos de barbárie. Revista Katálysis,
Florianópolis, SC, v. 23, n. 2, p. 256-265, maio/ago 2020.

DELGADO, Diana; TOLENTINO, Erika dos Santos; BARBOSA, Mara Cristina Fernandes; MACHADO,
Ricardo William Guimarães; NUNES, Nilza Rogéria de Andrade. (Des)financiamento e (des)proteção
social: o abate da ‘prima pobre’ da Seguridade Social. O Social em Questão. Rio de Janeiro; nº 52.
Jan a abr/2022.

DI CUNTO, Raphael. PL consegue a maior bancada na Câmara dos Deputados desde 2014. Valor.
Globo. 05/04/22. Disponível em: < https://valor.globo.com./politica/noticia/2022/04/05/pl-
consegue-a-maior-bancada-na-camara-dos-deputados-desde-2014.ghtml> Acesso em: 24 abr. 2024.

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

SANTOS, Augusto Cesar dos. Breves considerações sobre a formação profissional na modalidade
EAD em serviço social. Público x Mercantil no ensino superior em serviço social: um estudo dos
desdobramentos da ead para o mercado de trabalho dos assistentes sociais. São Cristóvão, 2016.

SERVIÇO SOCIAL LIBERTÁRIO Página de facebook [publicações 2016]. Disponível em: <facebook.
com/servicosociallibertario.> Acesso em: 19/04/2024.

SILVEIRA, José Rodolfo Santos da. Contribuição para pesquisa do conservadorismo ultraliberal na
redefinição de projetos profissionais: a “nova” direita vai ao serviço social. Núcleo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo (NIEP-Marx). Niterói, 2019.

SILVEIRA, R. G. et al. Fundamentos teórico-metodológicos da educação em direitos humanos. João


Pessoa: Ed. da UFPB, 2007.

SOUZA, Jamerson Murillo. O conservadorismo moderno: esboço para uma aproximação. Serviço
Social & Sociedade [online]. 2015, v. 00, n. 122 [Acessado 24 Abril 2022] , pp. 199-223. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/0101-6628.020>. ISSN 2317-6318. https://doi.org/10.1590/0101-
6628.020.

97
97
BEHRING, Elaine Rosseti. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda dos direitos.
2ª ed. São Paulo: Cortez, 2008.

BEHRING, Elaine Rosseti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social. Fundamentos e história. Biblioteca
Básica em Serviço Social. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

GIOVANNI, Geraldo di. Políticas Públicas e Política Social. Disponível em: http://geradigiovanni.
blogspot.com/2008/08/polticas-pblicas-e-poltica-social.htm

98
98
PERSPECTIVAS POLÍTICO-ECONÔMICAS NA DINÂMICA DA QUESTÃO INDÍGENA

Ingrid Ribeiro dos Santos

RESUMO

O papel do Estado na abordagem da Questão Indígena é influenciado pelos


interesses de classes dentro do sistema capitalista. Por meio de pesquisa
documental, procurou-se evidenciar os conceitos de Estado a partir do
método materialista histórico-dialético e a relação contraditória entre o
Estado e a concessão de direitos sociais aos povos indígenas, bem como
identificar os mecanismos estruturais contemporâneos e os danos causados
a esta população. Conclui-se que, embora os direitos indígenas estejam
previstos na Constituição Federal de 1988 como direito social fundamental,
na prática há uma priorização dos interesses econômicos, resultando em
um constante desmantelamento das políticas sociais indígenas. Isso revela
a configuração estrutural da macropolítica da classe burguesa, que adota
medidas desfavoráveis aos povos indígenas, impactando negativamente a
proteção social e ambiental no Brasil.

Palavras-chave: Questão Indígena, Estado, Direitos sociais, Proteção Social,


Território, Economia Política, Povos Originários.

ABSTRACT:

The State’s role in addressing the Indigenous Issue is influenced by class


interests within the capitalist system. Through documentary research, an
attempt was made to highlight the concepts of the State from the historical-
dialectical materialist method and the contradictory relationship between
the State and the granting of social rights to indigenous peoples, as well as
to identify contemporary structural mechanisms and the damages caused
to this population. It is concluded that, although indigenous rights are
provided for in the 1988 Federal Constitution as a fundamental social right,
in practice there is a prioritization of economic interests, resulting in a
constant dismantling of indigenous social policies. This reveals the structural
configuration of the macropolitics of the bourgeois class, which adopts
measures that are unfavorable to indigenous peoples, negatively impacting
social and environmental protection in Brazil.

Keywords: Indigenous Issue, State, Social Rights, Social Protection, Territory,


Political Economy, Original Peoples.

99
99
1. INTRODUÇÃO

Este trabalho reflete sobre a Questão Indígena na atualidade e as suas implicações no


território indígena, a partir da análise da direção política e econômica do Estado. Inicialmente,
apresenta uma reflexão teórica sobre a contraditória da relação entre Estado e políticas indigenistas,
levantando os conceitos de Estado dos principais autores que adotam o materialismo histórico-
dialético como método crítico de análise da realidade. E, com base nessa fundamentação, apresenta
os dados gerais sobre as pautas indígenas, por meio da pesquisa documental, que buscou mapear
as principais medidas adotadas pelo Estado frente a Questão Indígena.

Baseado nos dados, identificou-se as principais ações do Estado, a sua abordagem em relação
a priorização das pautas indígenas e as imposições da economia burguesa. Finalmente, refletiu-se
criticamente sobre a contradição dessas políticas e as consequências sociais que provocadas.

2. DESAFIOS POLÍTICO-ECONÔMICOS SOBRE A QUESTÃO INDÍGENA

A depender da direção ideológica e política de um governo vigente, o Estado pode atender


a uma economia capitalista global que apresenta uma ameaça às lutas e resistências do movimento
indígena e causa o esvaziamento das políticas sociais e o agravamento da questão indígena. Por
este motivo, é fundamental a compreensão dialética sobre o Estado e seu papel na sociedade. Para
Engels,

Dado que o Estado surgiu da necessidade de manter os antagonismos de


classe sob controle, mas dado que surgiu, ao mesmo tempo, em meio ao
conflito dessas classes, ele é, via de regra, Estado da classe mais poderosa,
economicamente dominante, que se torna também, por intermédio dele, a
classe politicamente dominante e assim adquire novos meios para subjugar
e espoliar a classe oprimida. (Engels, 2019, p. 213).

Segundo Potyara Pereira (2009, p.9), o Estado não é neutro, pois constitui-se dos interesses
de classes da sociedade que o configura:

Em vista disso, o Estado, apesar de possuir autonomia relativa em relação


à sociedade e à classe social com a qual mantém maior compromisso e
identificação (a burguesia, por exemplo), tem que se relacionar com todas as
classes sociais que compõem a sociedade, para se legitimar e construir a sua
base material de sustentação. Além disso, o Estado é criatura da sociedade,
pois é essa que o engendra e o mantém (e não o contrário).

A partir desta concepção, a autora enfatiza que o Estado compõe as relações na sociedade,
de dominação, “ou a expressão política da dominação do bloco no poder, e um conjunto de
instituições mediadoras e reguladoras dessa dominação” (Pereira, 2009, p. 11).

No contexto econômico, de desenvolvimento produtivo, a propriedade fundiária privada


sempre foi mecanismo para a acumulação privada. Uma estratégia econômica que dava condições

100
100
para a dominação de classes por meio da renda da terra.

O estágio da produção de mercadorias, com o qual tem início a civilização, é


caracterizado economicamente pela introdução: 1. Do dinheiro de metal e,
desse modo, do capital monetário, do juro e da usura; 2. Dos comerciantes
como classe intermediadora entre os produtores; 3. Da propriedade fundiária
privada e da hipoteca e 4. Do trabalho escravo como forma dominante de
produção. (Engels, 2019, p. 213).

Este processo econômico burguês enfatizado por Engels (2019), ocorreu no Brasil pela
disputa territorial, que envolveu interesses de classes distintos, composto pela burguesia de
latifundiários e agentes públicos do Brasil Império, que, diante da condição de poder coercitivo e
armado, dominaram os povos indígenas e todas as populações que não se integraram-se ao modelo
de sociedade colonizadora, que significava viver conforme a classe hegemônica dos países centrais.

Nessa direção, corroboram as definições sobre Estado em Osório (2017, p. 2) como uma
condensação dessas relações de poder, sejam elas políticas, de raça, e de gênero, que se apresentam
atravessadas por variadas formas e de distintas direções que conformam a sociedade.

2.1 Principais legislações indigenistas no contexto histórico brasileiro

Em meados de 1910, foi criado o Serviço Nacional de Proteção ao Índio -SPI - como um
mecanismo estatal para controlar e segregar a população indígena, e integralizá-los a lógica de
produção do sistema capitalista. Regulamentado pelo Decreto nº. 8.072, de 20 de junho de 1910,
que legalizou, entre outras medidas, a concessão de terras devolutas aos indígenas no Brasil, com
o objetivo de conter e controlar os territórios, eliminando todas as possibilidades de resistências
indígenas contra a expropriação e aculturamento dessa população.

Apesar de certos dispositivos legais serem propostos especificamente para assuntos


indígenas no campo jurídico, na prática o Estado manteve sua intervenção sob a perspectiva
colonizadora, sem garantir, de fato, os direitos sociais e políticos indígenas, na tentativa de integrá-
los à sociedade não indígena.

Em substituição ao SPI, foi inaugurada a FUNAI - Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Lei
nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, o único órgão indigenista oficial do regime militar responsável
pelo processo de Demarcação de Terras Indígenas. Esse órgão seguiu a mesma lógica colonizadora
de restringir o uso do espaço indígena, na tentativa de segregá-los da sociedade não-indígena,
para enfraquecer as resistências, visto que permanecia intacta na sociedade a visão colonial racista
sobre a vida indígena.

A FUNAI centralizou o serviço indigenista no âmbito federal e regulamentou a legislação


indigenista, no Estatuto do Índio, Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Contudo, esses
dispositivos legais representaram na prática a sistematização da negação da vida dos povos
indígenas. Durante esse período, o governo militar manteve relação direta com a FUNAI, inserindo
militares nos cargos de presidência da Fundação.

101
101
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, artigos 231 a 232, os povos
originários têm os seus direitos sociais e civis estabelecidos sob a perspectiva democrática. No
entanto, estes não são devidamente assegurados pelo Estado. Eles refletem medidas políticas
protetivas assimilacionistas, que buscavam integralizar a população indígena à nação, rejeitando
as suas culturas, organizações políticas e sociais, idiomas, e quaisquer manifestações contrarias às
práticas culturais hegemônicas.

O Ministério dos Povos Indígenas, fundado em 2023, durante o Governo Lula, assume a
FUNAI como uma autarquia. É a primeira vez que os povos indígenas chegam à institucionalidade
representados no alto escalão da administração pública.

2.2 Estratégias econômicas da burguesia agrária contra a proteção indígena

No momento contemporâneo, o imperativo do capital em se expandir permanece o mesmo,


o que muda são as estratégias de dominação, expropriação e privatização do território.

No cerne da disputa territorial, encontram-se grandes corporações agroindustriais, que têm


como parceiro o Estado e agências financiadores internacionais como o Banco Mundial, e do outro
lado, populações tradicionais, famílias que vivem do plantio de subsistência e da pesca extrativista
e artesanal.

Justamente na relação entre capital e Estado, que as contradições da Questão Indígena se


complexificam, e, portanto, “[...] na medida em que a acumulação de riqueza pelo capital cresce
no compasso do acirramento da questão social e da degradação ambiental.” (SILVA, 2019, p. 40).

Entre as estratégias político-econômicas do Estado, podemos exemplificar algumas, como:

• Projeto de Lei nº 490/2007, que altera a Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973


- dispõe sobre o Estatuto do Indígena, no intuito de transferir a competência da
realização de DTI do Poder Executivo para o Legislativo, mediante a aprovação de lei
na Câmara dos Deputados e no Senado.

• PL 191/20, do governo Bolsonaro e PL 1654/23, deputado Zé Trovão (PL-SC) -


Projeto de Lei para exploração recursos naturais referentes a hidrocarbonetos e
outros relacionados a fonte de energia elétrica, em Território Indígena.

• Marco Temporal (Projeto de Lei 490/07) - consiste em estabelecer uma data limite
ao direito de reivindicação sobre a Demarcação de Terras Indígenas em todo o país
que ocorreram até a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro
de 1988.

A interpretação econômica burguesa agrária de tal Tese é de que tal projeto evitaria conflitos
entre os fazendeiros, agropecuaristas, madeireiros, posseiros, mineradores e indígenas. No entanto,
sob a vista dos povos indígenas, defender tal tese significaria a validação dos genocídios, violências,
expropriações e todas as formas de coerção e opressão feitas pelo Estado antes da promulgação
da CF/88, para que os indígenas perdessem os seus territórios. Além de tratar-se de uma tese

102
102
inconstitucional, contra todos os valores culturais pertencentes às suas etnias.

O documento “O que esperamos dos próximos governantes, 2022” (CNA, 2022, p. 84)
explicita os objetivos da burguesia do agronegócio. Entre elas:

a) atuar no sentido de reverter decisões liminares que suspenderam


ordens judiciais de reintegração de posse e adotar medidas que
coíbam as invasões de terras por índios antes da efetiva regularização;

b) promover a inserção de indígenas no processo produtivo, superando


os principais entraves na produção e comercialização de produtos
agrícolas de comunidades indígenas;

c) possibilitar que as comunidades indígenas desenvolvam em suas


terras atividades econômicas, mesmo em cooperação com terceiros
não indígenas.

Tais informações mencionadas acima, indicam os interesses público-privados sobre os


direitos indígenas, na tentativa de exercer influência e articulação política sobre 1) as decisões
judiciais a respeito do território indígena; 2) forçar a inserção de produção e reprodução capitalista
dentro dos territórios indígenas, retomando a perspectiva integracionista das primeiras leis
indigenistas.

Seguindo as proposições do CNA (2022), durante o Governo Bolsonaro (2018-2022)


nenhuma Terra Indígena foi demarcada. Enquanto a FUNAI estava sob a competência do Ministério
da Justiça e Segurança Pública, o governo travou 17 demarcações praticamente consumadas, e
autorizou cerca de 239 mil hectares certificados em aproximadamente 240 fazendas dentro de
territórios indígenas, nesse período. Esse processo foi possibilitado pela INSTRUÇÃO NORMATIVA
Nº 9, de 16 de abril de 2020.

3. AGENDA INDÍGENA CONTEMPORÂNEA

A discussão sobre a Questão Indígena e as suas particularidades, como a Demarcação de


Terras Indígenas e suas implicações, se apresenta como um desafio posto no campo social visto que
é um tema atravessado por debates mais profundos, como a intervenção do Estado e o processo
sócio-histórico dos direitos sociais para essa população, bem como as contradições que envolvem
o capital e trabalho. De acordo com o Censo de 2022 (IBGE, 2024), os dados sobre população
indígena no Brasil tiveram um aumento significativo: cerca de 1.694.836 no total, correspondente
a aproximadamente 0,83% da população total do Brasil, divididos em 305 etnias e 274 línguas.

O reconhecimento das particularidades e singularidades desses povos, na realidade


brasileira, é resultado da soma dos trabalhos coletivos, aliados ao movimento indígena, para o
combate às políticas anti-indígenistas.

103
103
Este reconhecimento possibilita intervenções de maneira equitativa, universal, assim como
consta nos princípios da Constituição Federal de 1998. Porque não há como garantir direitos, sem
nos atentarmos à diversidade étnica racial existente nesse país e sem a consulta prévia aos povos
originários para realização de quaisquer ações relacionadas às intervenções em suas vidas.

Para Baniwa (2006), o Movimento indígena é o “conjunto de estratégias e ações que as


comunidades e as organizações indígenas desenvolvem em defesa de seus direitos e interesses
coletivos” e se difere da Organização indígena, que é plural e depende das particularidades de cada
etnia indígena.

Entre os Baniwa, por exemplo, o valor da generosidade está referendado


no mito de origem, quando o criador (yampirikuri) distribuiu as ferramentas
de trabalho para cada grupo social criado e aconselhou que as ferramentas
seriam mais eficazes se os produtos produzidos nunca fossem negados a
alguém necessidade. Por isso, entre os Baniwa, a pessoa mais desprezível é
o egoísta e o individualista (Baniwa, 2006, p. 63).

Essa passagem revela a perspectiva indígena sobre a relação do ser humano com o trabalho,
bem como a sua organização social, baseada na vida coletiva, e jamais individualizada.

Ainda que as políticas sejam construídas para atender a população indígena, elas partem de
interesses antagônicos, e segue um projeto da classe hegemônica, que significa o prevalecimento
da cultura hegemônica, em detrimentos dos direitos das classes dominadas.

Desse modo, entende-se que a Questão indígena, é agravada pelas invasões de terras, que
acontecem pelo esvaziamento e pela falta de robustez das políticas de proteção social desses povos,
em especial pelos desmantelamentos dos aparelhos estatais que estão envolvidos no processo de
demarcação de terras indígenas.

No entanto, o direito à Demarcação de Terras Indígenas se revela com mecanismo de


ampliação de direitos sociais e ambientais e, consequentemente, uma política de limitação de
acessos aos territórios para fins mercantis. Este fato apresenta-se como ameaça ao domínio das
classes burguesas.

Sob a ameaça imperativa do avanço capitalista, os povos originários são submetidos à


migração urbana, sem planejamentos para garantir uma moradia adequada, manutenção de sua
cultura, direito ao atendimento especializado em Saúde e educação, causando subnotificações dos
povos originários em atendimentos sociais.

Embora os Direitos Sociais dessa população tenham uma jurisdição com princípios
democráticos, eles encontram-se postos sob um Estado de origem burguesa que é contraditório,
que envolve a dominação, e, portanto, a sua ampliação, não significa a superação da estrutura de
sociedade que configura o Estado.

104
104
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho objetivou tratar no campo teórico, sobre o direito da população originária ao
território. Diante dos fatos apresentados, pôde-se concluir que a Questão Indígena está relacionada
aos vários processos que conduzem as políticas públicas no país, atravessada por uma histórica
disputa política entre o projeto colonizador do Estado e a luta pela vida indígenas, evidenciando
uma intensa política de extermínio e acumulação de capital, em detrimento dos direitos dos povos
tradicionais no Brasil, como dos indígenas.

Embora o Estado apresente certas medidas mitigatórias no campo do reconhecimento


dos direitos indígenas, sabe-se que os danos sobre os povos indígenas são irreversíveis, como
os impactos socioambientais e a crise climática. Por isso, torna-se evidente a importância do
fortalecimento da luta, tendo como estratégias a produção científica e a frequente pesquisa para
compor os espaços de debates e discussões na defesa da política indigenista no Brasil.

REFERÊNCIAS

BANIWA, Gersem José dos Santos Luciano. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre
os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

BRASIL. O que é marco temporal e quais são os argumentos favoráveis e contrários. Agência Câmara
de Notícias, Brasília, 29 de maio de 2023. Disponível em: https://bit.ly/3DVxI37. Acesso em: 11 ago.
2023.

CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL; FEDERAÇÕES; SINDICATOS. O que


esperamos dos próximos governantes: 2022. Brasília: CNA, 2022. 85 p. il. Disponível em: https://CNA
divulga documento “O que esperamos dos próximos governantes” | Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil (CNA) (cnabrasil.org.br). Acesso em: 11 de maio de. 2024

ENGELS, Friedrich, 1820-1895. A origem da família, da propriedade privada e do estado [recurso


eletrônico]: em conexão com as pesquisas de Lewis H. Morgan / Friedrich Engels ; tradução Nélio
Schneider. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2019.

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2022 Rio de


Janeiro: IBGE, 2024. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/panorama/indicadores.
html?localidade=BR&tema=4. Acesso em: 12 de maio. 2024.

OSÓRIO, J. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente. Temporalis, [S. l.], v. 17, n. 34,
p. 25–51, 2017. DOI: 10.22422/2238-1856.2017v17n34p25-51. Disponível em: https://periodicos.
ufes.br/temporalis/article/view/17820. Acesso em: 24 jul. 2023. Acesso em: 24 de jul. 2023.

OLIVEIRA, João Pacheco de; FREIRE, Carlos A. da Rocha. A Presença Indígena na Formação do Brasil
- Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;

105
105
LACED/Museu Nacional, 2006. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/
me004372.pdf. Acesso em: 16 out. 2023.

PEREIRA, Potyara A. P. Estado, sociedade e esfera pública. in: CFESS; ABEPSS. (org.). Serviço Social:
direitos sociais e competências profissionais. 1ª ed. Brasília: CFESS, 2009, v. 1, p. 285-300. Disponível
em: https://www.cressrn.org.br/files/arquivos/8jWy8e5p39eA46R2v6H9.pdf. Acesso em: 24 jul.
2023.

SANTOS, L. DOS R. S. Estado e classes sociais: uma imbricada e contraditória relação.


Revista Katálysis, v. 24, n. 1, p. 99-108, ja. 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rk/a/
PLXnK4V7mMcTdLpbcw6DT3g/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 18 dez. 2023.

SILVA, André Lima da. O ESTADO BRASILEIRO NAS POLÍTICAS SOCIAIS PARA O MEIO AMBIENTE NA
DÉCADA DE 2000: NOTAS PARA O DEBATE. IN: 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais. Tem:
“ 40 anos da “Virada” do Serviço Social”. Brasília, DF, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3Yy3qNe.
Acesso em: 24 jul. 2023.

106
106
REFORMA ATUAL DO ENSINO MÉDIO E O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Eliza Bartolozzi Ferreira

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é analisar dois fundamentos da reforma do ensino médio instituída
por meio da Lei nº 13.415/2017. A reforma é aqui compreendida como parte de um projeto
político-pedagógico de larga envergadura tanto em sua capilaridade ao afetar toda a educação
básica brasileira quanto pretende alterar a organização do ensino superior. Mas, sobretudo, como
parte de um contexto de crise do capitalismo. Essa abrangência e o seu grau destrutivo da educação
pública no país pode explicar a emergência adotada pelo então Presidente Temer (2016-2018) ao
enviar uma Medida Provisória para o Congresso Nacional assim que instalado um novo golpe à
democracia brasileira.

Este texto apresenta esses dois fundamentos, mesmo que brevemente. Duas semanas
após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 31/08/ 2016, o recém-nomeado
Ministro da Educação José Mendonça Bezerra Filho apresentou ao Presidente da República Michel
Temer a Exposição de Motivos (EM) no 00084/2016/MEC, de 15/09/2016, em que argumentava a
favor de mudanças significativas no ensino médio. A Exposição de Motivos deu origem à Medida
Provisória – MP no 746, de 22/09/2016, após sete dias, portanto, da data da solicitação. Dentre
outras providências, a MP instituía a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino
Médio em Tempo Integral e alterava a Lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A
Medida Provisória foi convertida na Lei no 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.

As justificativas para a criação das reformas do ensino médio no Brasil se pautaram nas
orientações advindas dos organismos internacionais. A EM 00084/2016, chamava atenção para

(...) um novo modelo de ensino médio oferecerá, além das opções de


aprofundamento nas áreas do conhecimento, cursos de qualificação,
estágio e ensino técnico profissional de acordo com as disponibilidades de
cada sistema de ensino, o que alinha as premissas da presente proposta
às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para
Infância – Unicef (Brasil, 2016, p. 2).

Muitos estudiosos (Ferreira, 2017; Kuenzer, 2017; Lima & Maciel, 2018) denunciaram a
forma autoritária com que se impôs uma reforma por meio de medida provisória, desconsiderando
a comunidade acadêmica e escolar, especialmente os jovens e seus professores. Lima e Maciel
(2018) apontam, inclusive, que a própria Procuradoria Geral da República se posicionou, em
dezembro de 2016, pela inconstitucionalidade da medida provisória, por não apresentar os
requisitos de relevância e urgência exigidos para a edição deste instrumento. Todavia, apesar de
todos os questionamentos, críticas e resistências durante o seu processo de tramitação, a MP nº
746/2016, foi convertida no início de 2017 na Lei nº 13.415, dando prosseguimento à atual reforma
do ensino médio, intitulada pelo governo federal como “novo ensino médio”.

107
107
Em linhas gerais, a organização curricular do ensino médio é alterada porque deixa de
ter um tronco comum para todos os estudantes, passando a admitir diferentes percursos, sob o
argumento de atender os diferentes projetos de vida dos jovens. O currículo do ensino médio,
então, é composto por dois ciclos: o primeiro, formado por uma Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), comum a todos; e, o segundo, por itinerários formativos, “[...]que deverão ser organizados
por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local
e a possibilidade dos sistemas de ensino” (Brasil, 2017). Na BNCC está previsto o limite máximo de
1.800 horas, sem a definição de uma carga horária mínima, destinadas aos conteúdos organizados
pelas redes de ensino em quatro áreas do conhecimento (linguagens, matemática, ciências humanas
e ciências da natureza), tendo unicamente como disciplinas obrigatórias Língua Portuguesa,
Matemática e Língua Inglesa. Quanto aos itinerários formativos são previstas as mesmas quatro
áreas do conhecimento, acrescidos da formação técnica, que comporiam as cinco ênfases, dentre
as quais, segundo o MEC, os próprios estudantes poderiam escolher para aprofundamento de seus
estudos.

1. 1º FUNDAMENTO: UMA REFORMA PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Quando ainda havia somente a MP nº 746/2016, Cunha (2017) publicou um artigo onde
apresenta a hipótese de que a reforma é resultado da retomada da função “contenedora” atribuída
ao ensino médio, pois retoma a antiga concepção do ensino médio como preparação para o ensino
superior, para uns, e formação para o trabalho, para outros. Para o autor, tudo parece indicar que a
explicação dessa política se encontra não no Ensino Médio, propriamente, mas no Ensino Superior,
como nas reformas das décadas de 1970 e 1990. Essa hipótese é explorada pelo autor a partir da
crise da expansão do setor privado do Ensino Superior, que vinha do segundo governo Dilma e, o
acirramento dessa crise, já no governo Temer, principalmente pelo estreitamento do financiamento
governamental.

Cunha (2017) situa a crise vivida pelo ensino superior privado com falências de faculdades e
centros universitários depois de vários anos de acelerado crescimento, com apoio governamental.
Ademais, aponta a redução drástica do financiamento governamental, particularmente o Fundo de
Financiamento Estudantil do Ensino Superior (FIES) que, em 2014, contava com 38% do alunado
das instituições privadas, proporção que caiu para 19% em 2015. “Os alunos pagantes não ficaram
imunes à crise que atinge as famílias da baixa classe média, notadamente o desemprego. Tudo isso
resultou em uma taxa de inadimplência, em 2016, da ordem de 50% dos contratos” (CUNHA, 2017,
s/p).

Assim, para Cunha (2017), a contenção da demanda de Ensino Superior foi a explicação da
MP nº 746/2016, complementada com a redução do financiamento estudantil mediante o FIES, em
volume de recursos/vagas e transferência para as instituições privadas dos encargos financeiros
até então assumidos pelo governo. O autor ainda conjectura que, considerando o caldo de cultura
ideológica instalado com o golpe, a cobrança de mensalidades pelas universidades públicas (para
o que seria preciso uma reforma da Constituição) reduziria parte de suas vantagens comparativas
diante das privadas, que poderiam atrair para estas um maior número de candidatos capazes de
pagar seus cursos de graduação.

108
108
Decorridos poucos anos da publicação do artigo de Cunha (2017), vimos o Congresso
Nacional ameaçar a sociedade brasileira com a cobrança de mensalidades nas universidades por
meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206/19, retirada da pauta por força da pressão
dos movimentos sociais e dos deputados de oposição ao governo. Desde 2019, o projeto de
cobrança de mensalidades nas universidades públicas ronda a sociedade confirmando a rede de
interesses ligada à reforma do ensino médio sob o olhar atento de Cunha.

Em 2022, os governos e organizações de caráter privado emitiram documentos diversos


com poder de comprovar a hipótese de Cunha (2017). Dentre tantos documentos normativos
produzidos no período, o Parecer nº 05 do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno é um
bom exemplo para discutir. O parecer apresenta as “recomendações de Diretrizes Nacionais para
a avaliação da Educação Básica: Novo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)”, em resposta aos
desafios instaurados pelo Novo Ensino Médio e pela BNCC Etapa do Ensino Médio, Resolução CNE/
CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018. Segundo o Parecer (CNE/CP, 2022), a nova arquitetura do
Ensino Médio requer um novo exame para o acesso ao Ensino Superior. De acordo com a Resolução
CNE/CP nº 4, de 17/12/2018, “Art. 13. As matrizes de referência das avaliações e dos exames, em
larga escala relativas ao Ensino Médio, devem ser alinhadas à BNCC-EM, no prazo máximo de 4
(quatro) anos a partir da publicação desta” (CNE/CP, 2018).

O Parecer nº 05/2022 apresenta uma síntese histórica e linear do Enem criado em 1998,
apontando suas principais características e as mudanças ocorridas até o ano de 2021. Segundo o
documento, o “Enem original” (denominação do documento ao Enem 1998-2008) sinalizou um
conceito mais abrangente de aprendizagem: por resolução de problemas, interdisciplinaridade
e contextualização, constituindo-se em um bom instrumento, na visão dos conselheiros, para
qualificar o desempenho dos estudantes egressos do Ensino Médio, e não para selecioná-los ou
classificá-los como o vestibular tradicionalmente faz. Já o Enem atual, de acordo com o Parecer,
descaracteriza o Enem original, que visava romper os vínculos tradicionais do Ensino Médio com o
vestibular, e recupera o sentido de uma Educação Básica comprometida com o Ensino Superior, ao
se tornar um vestibular nacional, um processo de seleção extremamente competitivo.

As recomendações do CNE evidenciam para uma série de mudanças no ensino superior,


a começar pela centralidade dada à condição de ingresso do estudante nesse nível de ensino.
A proposta é que o ingresso seja em duas vertentes sendo que, a primeira, está relacionada à
diferenciação e divisão das áreas de conhecimento. Se for assim, observamos que segue a tendência
reformista neoliberal em curso desde a década de 1990, qual seja a de fortalecer a descentralização
que conduziu ao abandono da ideia de uniformidade e, por sua vez, ressaltou a diversidade.

A segunda vertente busca materializar o fortalecimento da concorrência entre as IES,


com possibilidades abertas para cobranças de mensalidades nas públicas combinadas com a
recomendação de as IES estabelecerem formas variadas de ingresso de acordo com a lógica da
oferta-demanda. O item 11 do Parecer traz recomendações do CNE e remete a uma proposta de
individualização das IES, uma fragmentação ainda maior, quando enquadra as IES ao novo Enem e
lhes dá, ao mesmo tempo, uma autonomia para estabelecer um tipo de hierarquia e burocratização
a depender da dinâmica que será instalada por este projeto. A depender, será o fim do Sistema
de Seleção Unificada (SISU). Pode ser também um golpe mortal para as IES públicas tal como as
conhecemos hoje no Brasil.

109
109
O ensino fundamental também é afetado pela reforma do ensino médio desde sua primeira
etapa. Essa afirmativa foi constatada após acompanhar as políticas educacionais que estão se
movimentando no quadro histórico atual. A observação dos fatos relatados em documentos de
variados gêneros como uma lei ou uma notícia de jornal ou até mesmo por meios de relatos gerais2,
leva a conferir a extensão e a profundidade que a lógica de projeto adentrou no universo escolar.
O modelo Escola da Escolha está hoje presente no Ensino Fundamental ofertado em pelo menos
1.300 escolas no país. Em Cachoeiro de Itapemirim/ES, por exemplo, o modelo foi iniciado em 2019
com duas escolas e, no ano de 2022, o modelo está em 7 (sete) escolas do município, em parceria
com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE).

O município de Vitória/ES vem ampliando o tempo em sua rede de ensino e implantando


os componentes curriculares projeto de vida e eletivas, tal como ocorre no novo ensino médio.
Inclusive adota a “feira de eletivas”, à qual os professores disputam a escolha do aluno. A “Escola
da Escolha” é uma proposta centrada no protagonismo e no projeto de vida dos estudantes do
ensino fundamental e do ensino médio. Essa é a perspectiva pedagógica que domina a reforma do
ensino médio quando os sistemas educacionais elegeram o projeto de vida como eixo do currículo,
adicionado ao discurso do incentivo à liberdade de escolha. No primeiro momento, a bandeira da
liberdade de escolha foi a mais utilizada pelos reformadores, com divulgação pelos grandes meios
de comunicação para acessar toda a sociedade que enxerga esse mantra com bons olhos. Já o
projeto de vida é o dispositivo curricular para manter o controle e a disciplina dos jovens a partir de
uma premissa ontológica que parte da ideia de que somos seres tomados de interesses individuais.
Essa ideia é alçada junto com o discurso neoliberal sobre a incerteza, considerada condição para
a sua operação. A incerteza, segundo Oliveira (2022), tem um papel fundamental na imaginação
política para definir a expectativa de uma vida melhor, bem como os problemas que precisam de
solução em um futuro, todavia desconhecido.

2. 2º FUNDAMENTO: A REFORMA INSTAURA UM NOVO SIGNIFICADO À TCH

A reforma aparenta uma liberdade de escolha, mas no fundo o que faz é exercer o controle
sobre o indivíduo ao firmar e autoafirmar uma determinada conduta social. A atividade é a
grandeza que mede as pessoas em uma cité de projetos (Boltanski; Chiapello, 2009), mas que não
se confunde com trabalho assalariado. A noção geral de emprego é substituída pelo conceito de
portfólio de atividades que cada um administra por conta própria. A atividade tem em vista gerar
projetos ou integrar-se em projetos iniciados por outros. “Ter a opção de não se engajar em dado
projeto, portanto poder escolher os seus projetos, é uma das condições para o funcionamento
harmonioso da cidade, e essa condição é garantida pela pluriatividade que cada um desenvolve”
(Boltanski; Chiapello, 2009, p. 142). O valor constituído na cité de projetos é exatamente a diferença
e não a capacidade de fundir-se em formas coletivas e, a criatividade, é função do número e da
qualidade dos elos construídos por cada indivíduo.

Esse raciocínio presente no mundo empresarial explicitado por Boltanski e Chiapello (2009)
pode ser relacionado ao projeto da reforma do ensino médio quando foca a formação dos jovens a
partir da ideia de cada indivíduo com seu projeto de vida. A cité par projeto guarda como princípio
2 https://www.cachoeiro.es.gov.br/noticias/rede-municipal-de-cachoeiro-e-a-primeira-do-es-a-adotar-metodo-
logia-escola-da-escolha/

110
110
fundamental a adaptabilidade, flexibilidade e fugacidade das estruturas, aspectos relevantes no
espírito da atual fase neoliberal de sociedade. O projeto educacional é parte integrante cada
vez mais acentuado para a constituição dessa sociedade a partir de duas funções principais que
a educação pode proporcionar: sendo uma alavanca para o mercado por ser um campo vasto e
diversificado para o desenvolvimento de negócios e, por ser um tempo/espaço fundamental para
formar os indivíduos necessários (adaptados) para esse projeto.

Podemos entender que neste contexto aqui narrado ocorre uma mudança no exercício
do poder e com uma velocidade nunca experimentada. O que significa uma potencialização das
formas liberais vividas historicamente pela população ocidental que radicaliza a envergadura da
vara para a direção de políticas antidemocráticas, conservadoras e fundamentalistas. Para o mundo
conexionista, a educação precisa mudar o rumo até agora adotado com base no princípio da gestão
democrática. Daí é possível entender a origem dos projetos de lei que buscam perseguir docentes
como estratégia para impor uma conduta moralmente fundamentalista no interior das escolas.

Na realidade, entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo existe uma


concordância que não é nada fortuita: se a racionalidade neoliberal eleva
a empresa a modelo de subjetivação, é simplesmente porque a forma-
empresa é a ‘forma celular’ de moralização do indivíduo trabalhador, do
mesmo modo que a família é a ‘forma celular’ da moralização da criança
(Dardot; Laval, 2016, p. 388).

A atual reforma do ensino médio se instaura no estágio de radicalidade neoliberal que faz o
sistema capitalista tornar-se mais explorador e concentrador de renda, no mesmo tempo que captura
as subjetividades por meio de dispositivos que buscam agregar aspectos morais conservadores no
interior de uma sociedade frustrada diante das promessas não cumpridas da modernização liberal
e da democratização social. A partir desse raciocício, argumentamos que se na década de 1990, na
primeira onda neoliberal, a empregabilidade é a elaboração ideológica que explica a questão social
do ponto de vista do sujeito individual que disputa um emprego; na segunda onda neoliberal, o ser-
empreendedor (ser-empresa) é o projeto pedagógico por excelência que a escola deve desenvolver
em uma era que anuncia o fim do emprego. Dessa forma, ocorre um deslocamento não aleatório
da ideia do sujeito em face à empregabilidade para o empreendedorismo.

Entendemos que a reforma atual do ensino médio expressa a compreensão de uma


mudança na forma que conhecemos a Teoria do Capital Humano (TCH) aplicada em uma sociedade
industrial animada por uma ideia de desenvolvimento. Nesse tempo, o trabalhador levava os seus
conhecimentos e habilidades requeridas para utilizar a maquinaria, o que significa ter um capital
adquirido em sua educação. De maneira geral, podemos dizer que essa noção de capital humano
apresenta uma dimensão externa focada na qualificação do trabalhador e em uma certificação. Já
a noção de capital humano vislumbrada na sociedade desindustrializada, digital e animada pelo
abandono da ideia de desenvolvimento (Bresser-Pereira, 2020) tomou outra forma. A economia
política passa a ter como objeto o comportamento humano, ou melhor, a racionalidade interna
que o anima. O trabalho exercido pelos indivíduos é concebido como uma conduta econômica,
sendo necessário entender como essa conduta é praticada, racionalizada e calculada por aquele
que a exerce. Então, podemos dizer que a TCH é praticada agora por meio do controle interno como
forma de captura do indivíduo agora mais completamente.

111
111
Nesse contexto de atualização da TCH é que se torna importante observar a lógica social
que sustenta as redes de significados que dão origem às reformas educacionais conferindo dilemas
de natureza diversa que vão influir no direito à educação e na condição de exercício desse direito
à população da escola pública.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reforma do ensino médio representa a mudança mais profunda da história da educação


brasileira, pois busca alcançar o espírito de empresa de forma acentuada no coração da educação
pública, laica, gratuita e de qualidade referenciada socialmente. A base de sustentação teórica da
reforma, assentada na racionalidade econômica, pode ser explicada pela Teoria da Escolha Pública
que parte de um pressuposto ontológico de que os indivíduos são guiados por interesses pessoais.
Como lembra Chauí (2003), o interesse se distingue do direito, pois o interesse é particular e
depende do grupo ou classe social que o tenha ou o defenda. O direito, ao contrário, é geral e
universal, é válido para todos os indivíduos sem distinção. Operar pela lógica do interesse e não
pelo direito pode gerar consequências perversas no processo educativo dos jovens, pois há uma
grande diferença quando se desloca a política educacional da ação coletiva e do interesse geral para
o indivíduo egoísta e racional que aplica o cálculo do custo-benefício. Essa transmutação do direito
em interesse e do serviço público em lógica da demanda, é um ataque frontal da reforma à educação
pública tal como é conhecida hoje no Brasil.

REFERÊNCIAS

BOLTANSKI, L. e CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BRESSER-PEREIRA, LC. O abandono do projeto nacional de desenvolvimento. Observatório do


Estado Social, 2020.

CHAUI, M. A universidade pública sob nova perspectiva. In: Revista Brasileira de Educação. Anped,
2003.

CUNHA, L. A. Ensino médio: atalho para o passado. Educação & Sociedade, 38(139), 373–384, 2017.

DARDOT, P. e LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016.

Ferreira, E. B. (2017). A contrarreforma do ensino médio no contexto da nova ordem e progresso.


Educação & Sociedade, 38(139), 293–308.

Kuenzer, A. Z. (2017). Trabalho e escola: a flexibilização do Ensino Médio no contexto do regime de


acumulação flexível. Educação & Sociedade, 38(139), 331–354.

OLIVEIRA, T. Assetização da natureza como razão da ex-a-propriação neoliberal. In: MIOLA, I. et all.
Finanças verdes no Brasil: perspectivas multidisciplinares sobre o financiamento da transição verde.
São Paulo: Blucher Open Access, 2022.

112
112
MESA 2: CLASSES, LUTAS SOCIAIS E DIREITO
MOVIMENTOS POPULARES E POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO DE 2003 A 2016 NO BRASIL

Michelly Ferreira Monteiro Elias


Anna Gabriela Mendes Ribeiro

1. INTRODUÇÃO

Como um dos desdobramentos da pesquisa intitulada “Movimentos populares e direitos


de cidadania no Brasil entre os anos de 2003 e 2016”, este artigo reflete sobre as principais
reivindicações e bandeiras de lutas dos movimentos populares no Brasil nesse período. Para isso
aponta os movimentos populares que mais se destacaram nessa fase da realidade brasileira e
sistematiza suas principais reivindicações, visando demonstrar como os movimentos populares vêm
atuando como sujeitos de políticas públicas com vistas a contribuir com o processo de consolidação
dos direitos de cidadania no país.

Desta maneira, os movimentos populares são concebidos enquanto uma forma de luta
social que organiza segmentos sociais (mulheres, população negra, estudantes, população das
periferias, indígenas e dentre outros) em torno de lutas contra relações de dominação e opressão
estabelecidas, reivindicando o acesso, a expansão e a consolidação de diversos direitos de cidadania.

A atuação dos movimentos populares durante a crise do regime ditatorial (1964-1985) que
se deu a partir de meados da década de 1970, fez com que eles se tornassem em um dos principais
protagonistas da luta pela redemocratização e do processo constituinte na segunda metade da
década de 1980. Apesar desse processo não ter sido homogêneo do ponto de vista das forças
sociais envolvidas, um dos seus principais resultados foi a Constituição de 1988 que regulamentou
políticas públicas relacionadas às reivindicações das classes trabalhadoras e demais segmentos
dominados.

Posterior a esse período houve o início do neoliberalismo no Brasil a partir da década


de 1990, em que apesar da correlação de forças desfavoráveis para as lutas por direitos e de
enfrentamento ao capital, os movimentos populares passaram a exercer um importante papel de
resistência às privatizações, às tentativas de tratados de livre comércio, de desregulamentação dos
direitos sociais e de destituição das políticas sociais frente à ofensiva neoliberal.

Considerando a atualidade da hegemonia neoliberal desde então, esse artigo situa a


particularidade da conjuntura brasileira no período de 2003 a 2016 como uma fase de continuidade
da hegemonia neoliberal que conseguiu contraditoriamente criar e implantar políticas públicas
acerca de importantes direitos de cidadania, em particular os direitos sociais, a exemplo da
educação, moradia, trabalho, saúde, dentre outros.

Diante desses elementos, o texto aborda primeiramente a problemática da luta pelos


direitos de cidadania no contexto da hegemonia neoliberal no Brasil, situando alguns elementos
conjunturais do período de 2003 a 2016 e em seguida aponta os resultados da pesquisa que
identificou as principais reivindicações e bandeiras de lutas dos movimentos populares frente a
essa realidade.

114
114
2. DESAFIOS ACERCA DOS DIREITOS DE CIDADANIA NO NEOLIBERALISMO BRASILEIRO
E AS PARTICULARIDADES DE 2003 A 2016

Do ponto de vista histórico-conceitual, ao se conceber a cidadania como um fenômeno


dotado de materialidade e sentido histórico-social, entende-se que esta não é “[...] uma entidade
naturalmente dada, mas uma mediação social [...] politicamente objetivada conforme a correlação
de forças existente, as condições do processo de disputa pela hegemonia e as possibilidades
da ordem social dominante” (Abreu, 2008, p.12). Por isso, ao se situar a cidadania na realidade
da formação social brasileira, vê-se como esta vem sendo historicamente condicionada por
particularidades que a restringe no sentido do exercício amplo dos direitos sociais, políticos e civis
para a maioria da população brasileira.

Nesta perspectiva, vê-se nas diferentes conjunturas históricas existentes no Brasil desde
o início do século XX, que as lutas sociais foram fundamentais para que os direitos de cidadania
fossem conquistados e regulamentados.

O modelo neoliberal estabelecido a partir de 1990 no contexto brasileiro e em vigor até


a atualidade, resultou no acirramento da relação capital x trabalho, principalmente no que diz
respeito à precarização das condições de vida e trabalho das classes trabalhadoras. Associado a
isso, se estabeleceu um processo de aprofundamento da fragilização dos direitos de cidadania
(em particular dos direitos sociais) regulamentados na Constituição de 1988 e de precarização das
condições trabalho e emprego, em que o Estado teve um papel central para isso.

O Estado desempenhou um papel fundamental na transformação desses


padrões de emprego por meio da compressão da demanda, das privatizações,
das mudanças na política industrial e na política regulatória, da ampla
subcontratação e do trabalho precários, das mudanças nas leis trabalhistas,
da implementação negligente mesmo das novas leis e da repressão direta
[...] (Saad Filho; Morais, 2018, p. 127).

No âmbito das lutas sociais, esses aspectos que ocasionaram profundas mudanças no mundo
do trabalho levaram ao enfraquecimento do movimento sindical. Dentre as diversas expressões
dessa problemática, Antunes (2010) destaca que passou a existir um fosso entre os trabalhadores
“estáveis” e os que se encontravam em condições trabalhistas precarizadas, gerando certa
separação e diferenciação entre esses segmentos, e dificultando formas comuns de organização
sindical entre eles.

Contudo, apesar desse contexto de correlações de forças desfavoráveis para as lutas da classe
trabalhadora, parte dos movimentos populares permanecerem com suas lutas e reivindicações
durante a década de 1990, e avançaram no caráter contestatório do modelo neoliberal. Nesse
sentido, se destacou principalmente a atuação de movimentos populares como os de luta pela
moradia e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Desta maneira, ao se situar os movimentos populares enquanto uma forma de luta social
que se constituem em “modos de contestação contra as diferentes formas de exploração e
dominação que emergem no capitalismo contemporâneo [...]”, (Galvão, 2012, p. 256), identifica-
se que através de suas demandas e reivindicações por serviços e políticas públicas; ampliação da

115
115
democracia; em defesa dos recursos naturais e pelos direitos de cidadania; esses movimentos vêm
mobilizando desde o início do neoliberalismo no Brasil, parte dos segmentos sociais que enfrentam
os desdobramentos mais perversos das desigualdades vivenciadas nesse contexto.

Nesse sentido, Machado (2006) afirma que os movimentos populares conseguiram desde
a década de 1990 diminuir o ritmo do avanço neoliberal no Brasil. Essa realidade vem colocando
para eles um conjunto de desafios, que segundo Houtart (2006) ultrapassa a dimensão específica
dos movimentos em si, permeando a busca pelos seus objetivos específicos de maneira articulada
aos desafios gerais impostos pelo neoliberalismo; pela construção de uma consciência coletiva
baseada na ética de defesa do humano; a criação de mecanismos de cultivo da utopia tendo como
horizonte a transformação social como possibilidade histórica; a realização de alianças conjunturais
e estratégicas entre sujeitos diferentes para a construção de lutas comuns e concretas. Desta
maneira, aponta:

Para que os movimentos sociais estejam em posição de construir o novo


sujeito social há duas condições preliminares. Em primeiro lugar, ter a
capacidade de uma crítica interna com o fim de institucionalizar as mudanças
e assegurar uma referência permanente aos objetivos. Em segundo lugar,
captar os desafios da globalização, que por sua vez são gerais e específicos
ao campo de cada movimento: operário, camponês, de mulheres, populares,
de povos nativos, de juventude, e em breve de todos que são vítimas do
neoliberalismo globalizado (Houtart, 2006, p. 425).

Situado nesse contexto mais amplo do neoliberalismo enquanto atual fase do capitalismo,
durante os anos de 2003 a 2016 em que o Partido dos Trabalhadores assumiu o Governo Federal
houve um processo de expansão das políticas públicas que possibilitou o acesso de diferentes
segmentos da população aos direitos de cidadania. Contudo, ressalta-se que isso se deu mantendo
a hegemonia do capital financeiro e estabelecendo uma política fiscal, cambial e de crédito que
desenvolveu a economia interna, ao mesmo tempo em que ampliou as ações voltadas para os
setores mais pauperizados da população (Almeida, 2012).

Nesse sentido, é possível apontar em linhas gerais com base em Saad Filho; Morais (2018)
que desde o início a conformação dos governos do PT (principalmente no que diz respeito aos
dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva) teve um significado de buscar conciliar interesses de
ampliação do Estado no âmbito econômico e social por parte da esquerda e de manutenção de
medidas econômicas que beneficiavam parte das classes dominantes (principalmente a burguesia
interna e a oligarquia agrária). Diante disso e considerando a permanência da hegemonia neoliberal,
assim como as mudanças políticas e ideológicas recentes pelas quais o próprio PT havia passado no
sentido de adquirir o caráter de um Partido mais reformista, os governos de 2003 a 2016 acabaram
ficando restritos a certo tipo de gerenciamento do neoliberalismo com “mudanças marginais”
(Saad Filho; Morais, 2018, p. 141).

Diante desses breves elementos, aponta-se que o período de 2003 a 2016 foi marcado por
profundas contradições permeadas pelos conflitos de classes que diante das particularidades da
conjuntura brasileira se acirram a partir de 2013 tendo como desfecho o golpe parlamentar, que
com o apoio das classes dominantes suspendeu o mandato presidencial de Dilma Rousseff do PT
em 2016, inaugurando uma nova fase neoliberal no Brasil, caracterizada dentre outros aspectos,

116
116
por uma profunda regressão aos direitos de cidadania.

3. BREVE CARACTERIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS POPULARES ENQUANTO SUJEITOS DE


POLÍTICAS PÚBLICAS NO PERÍODO DE 2003 A 2016 NO BRASIL

Para identificar as principais reivindicações e bandeiras de lutas dos movimentos populares


no Brasil no período de 2003 a 2016 no Brasil, a pesquisa realizada fez um levantamento dos
movimentos populares que mais se destacaram apresentando suas demandas ao Estado brasileiro
entre 2003 e 2016, por meio de reivindicações e mobilizações. Para isso, foi feito um levantamento
na plataforma Scielo e em periódicos que abordam a temática das lutas sociais e dos movimentos
populares, baseando-se nos critérios dos movimentos que possuíam uma abrangência nacional e
os que foram mais citados nas fontes pesquisadas, que foram encontradas por meio dos buscadores
“movimentos sociais” e “Brasil”, tendo o recorte temporal do período pesquisado. A partir disso,
foram identificados 132 artigos na plataforma Scielo e outros 6 periódicos especializados na temática
estudada. Este total foi dividido entre 3 estudantes participantes da pesquisa, em que cada uma/
um leu seus respectivos resumos para identificar os nomes dos movimentos mais citados.

Com isso, se chegou a um total de 34 movimentos populares, sendo eles: Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST; Movimento de Mulheres Camponesas- MMC; Movimento
Brasil pelas Florestas; Movimento de Libertação do Sem-Terra- MLST; Movimento Ambientalista;
Movimento de Pequenos Agricultores- MPA; Movimento Nacional dos Pescadores - MONAPE;
Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais – MPP; Movimento Indígena; Movimento Passe
Livre-MPL; Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto- MTST; Movimento Nacional da População em
Situação de Rua; Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos;
Movimento dos Trabalhadores (as) por Direitos- MTD; Movimento Nacional de Luta pela Moradia-
MNLM; Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis - MNCR; União Nacional dos
Estudantes- UNE; União Brasileira dos Estudantes Secundaristas- UBES; Movimento Interfóruns
de Educação Infantil do Brasil- MIEIB; Levante Popular da Juventude- LPJ; Movimento em Defesa
das Pessoas Atingidas por Hanseníase- MOHAN; Movimento em defesa da saúde pública/Frente
Nacional contra a Privatização da Saúde; Movimento Hip Hop; Fora do Eixo; Levante Popular da
Juventude- LPJ; Movimento dos Atingidos por Barragens- MAB; Movimento pela Soberania Popular
na Mineração- MAM; Marcha Mundial de Mulheres- MMM; Movimento LGBTQIA+; Movimento de
Mulheres Negras; União Brasileira das Mulheres- UBM; Liga Brasileira de Lésbicas- LBL; UNEGRO;
Movimento Negro Unificado – MNU.

Em seguida, com base nos critérios de abrangência e diferencialidade, foram escolhidos 12


movimentos populares para serem caracterizados, coletando as seguintes informações de cada um
deles: ano de fundação, cidades e estados onde estão organizados, caracterização da base social
que organiza; forma de organização interna; principais objetivos; principais reivindicações e ações
realizadas entre 2003 e 2016.

Sobre as formas de organização tem-se constatado que há movimentos que se organizam


baseados no princípio do centralismo democrático, possuindo um total alinhamento na
concepção político-ideológica que orienta as suas respectivas atuações baseadas em um conteúdo
programático construído e seguido pelo conjunto do movimento, incluindo a elaboração de análises

117
117
e a construção de ações em torno de uma estratégia e táticas comuns. E há os movimentos que
possuem uma organização mais difusa e diversa, em que diferentes concepções político-ideológicas
acerca das formas de luta e atuação coexistem no âmbito do próprio movimento, desde que sejam
coerentes com os seus objetivos. A partir da singularidade de cada movimento, o que se identifica
em todos é a forma de organização e atuação coletiva em suas mais diversas maneiras, seja através
de núcleos, setores, grupos de base, fóruns, equipes de trabalho e/ou manifestações. Além disso,
se observa como especificidade dos movimentos que se organizam em torno do centralismo
democrático a existência das direções políticas, assembleias, plenárias e congressos enquanto
espaços deliberativos.

Em relação aos seus principais objetivos, a maioria dos movimentos associa os seus objetivos
particulares, ou seja, os objetivos que dizem respeito especificamente às demandas do segmento
social que ele organiza (mulheres, indígenas, pessoas negras, sem-teto, sem-terra, trabalhadores/
as desempregados/as, populações atingidas, população LGBTQIA+, dentre outros), com objetivos
mais amplos que envolvem principalmente a defesa da democracia, da justiça e igualdade social,
da preservação do meio ambiente, dos direitos humanos e do caráter público e laico do Estado.
Além disso, observa-se que seus respectivos objetivos estão associados às lutas pelo fim dos
sistemas de poder e dominação (racismo, patriarcado, capitalismo, colonialismo, capacitismo,
sistema heteronormativo) e em parte desses movimentos fica explícito a defesa de reformas sociais
vinculadas a projetos societários alternativos ao capitalismo.

Em relação ao que foi constatado acerca das reivindicações e das ações, ressalta-se que
o conjunto das demandas dos movimentos populares abarcam reivindicações acerca de políticas
públicas como saúde, educação, habitação, previdência, alimentação, agrária, transporte, igualdade
de gênero e racial, trabalho digno; reivindicações acerca da preservação e da defesa dos recursos
naturais (por terra, por outro modelo de mineração, por outro modelo energético, pelo meio
ambiente); reivindicações de pautas amplas (pela democracia, contra o imperialismo, contra o
neoliberalismo, contra as privatizações, contra os tratados de livre comércio); reivindicações pela
valorização das identidades (combate à violência contra as mulheres e a população negra; combate
às práticas racistas e sexistas; em defesa da diversidade sexual, afetiva e de gênero); reivindicações
em defesa dos direitos humanos.

Sobre o caráter dessas reivindicações, o que se identificou como predominante foi uma
perspectiva de defesa no sentido da consolidação e ampliação dos direitos de cidadania e dos
serviços públicos existentes; de criação e regulamentação de políticas públicas que promovam a
justiça social, racial e de gênero; do combate a todo e qualquer ato de preconceito e discriminação;
da implantação de medidas estruturantes e definitivas por parte do Estado, com vistas a promover
a distribuição da renda, da terra e da riqueza, incluindo a democratização do acesso ao fundo
público; da criação de uma nova matriz produtiva, energética e ambiental que inclua relações de
trabalho socialmente justas com base em um sistema produtivo que preserve a natureza e a saúde
humana; da construção de uma cultura democrática, plural e diversa.

Em relação às ações realizadas pelos movimentos populares, constata-se que dentre


campanhas; marchas; mobilizações de rua; ocupações; plebiscitos; uso de novas tecnologias
para comunicação com a sociedade; abaixo-assinados; festivais; encontros; articulações políticas;
publicação de cartas, notas e relatórios; cursos e ações diretas de denúncia; é possível afirmar
que os movimentos atuaram em três âmbitos principais, sendo eles: o da formação e organização

118
118
interna de cada um deles; o da denúncia, pressão, negociação e preposição de políticas públicas
junto ao Estado e o do diálogo com a sociedade, visando a construção de valores e práticas que
fortaleçam os seus objetivos de luta.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos sobre as principais reivindicações e bandeiras de lutas dos movimentos populares


no Brasil no período de 2003 a 2016, tem demonstrado que no âmbito das particularidades da
realidade brasileira, os movimentos populares têm atuado na defesa de diversos direitos sociais,
ao mesmo tempo em que atuam exercendo o direito da organização coletiva, da livre manifestação
e da contestação ao sistema hegemônico, abarcando desta maneira o conjunto dos direitos de
cidadania.

Mesmo com a manutenção contraditória da hegemonia neoliberal no Brasil no período de


2003 a 2016, os movimentos populares continuaram exercendo um importante papel enquanto
sujeitos das políticas públicas, pautando reivindicações junto ao Estado que não atendem somente
as necessidades das suas bases específicas, mas de diversos segmentos explorados e dominados da
sociedade contemporânea, dentre os quais se situa a (s) classe (s) trabalhadora (s).

Por fim, ressalta-se ainda que a proximidade em relação à institucionalidade conferiu


aos movimentos populares desafios em relação à combatividade e à independência frente às
contradições do poder executivo. Por outro lado, a atuação destes enquanto sujeitos de políticas
públicas possibilitou a partir de 2003 até o golpe de 2016, o diálogo com as instituições públicas, e
o atendimento inédito, mesmo que parcialmente, de reivindicações históricas de diversos setores
da sociedade.

REFERÊNCIAS

ABREU, Haroldo. Para além dos direitos: cidadania e hegemonia no mundo moderno. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2008.

ALMEIDA, Lucio Flávio Rodrigues de. Entre o nacional e neonacional-desenvolvimentismo: poder


político e classes sociais no Brasil contemporâneo. Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez,
n.112, p. 689-710, out./dez. 2012.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo


do trabalho. 14. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

GALVÃO, Andréia. Marxismo e movimentos sociais. In: GALVÃO, et. al. Capitalismo: crises e
resistências. 1. ed. São Paulo: Outras expressões, 2012.

HOUTART, François. Os movimentos sociais e a construção de um novo sujeito histórico. In: (Org.).
BORON, Atílio. et. al. A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. 1.ed. CLACSO, 2006.

119
119
MACHADO, Eliel. Lutas e resistências na América Latina hoje. Revista Lutas & Resistências. Grupo de
Estudos de Política da América Latina, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade
Estadual de Londrina, n. 1, p.54-64. Londrina: Midiograf, 2006.

SAAD FILHO, Alfredo; MORAIS, Lecio. Brasil: neoliberalismo versus democracia. 1. ed. São Pualo:
Boitempo, 2018.

120
120
AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA PÚBLICA:
análises do endividamento público no Governo Fernando Henrique Cardoso

Rozimeire Satiko Shimizu

RESUMO

Este artigo resulta do trabalho de pesquisa sobre o movimento social, a


Associação sem fins lucrativos Auditoria Cidadã da Dívida Pública, que
tem como objetivos a realização da auditoria cidadã da dívida pública
federal; a exigência do cumprimento do Artigo 26 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias- ADCT da Constituição Federal, que prevê a
realização de auditoria da dívida externa; exigir a transparência, controle
social e a publicização do endividamento público e realizar análises sobre a
dívida pública federal, no contexto da evolução da dívida pública federal do
governo Fernando Henrique Cardoso.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Dívida Pública; Governo Fernando


Henrique Cardoso.

ABSTRACT

This article results of work of research about social movements, the Non-
Profit Association Auditoria Cidadã da Dívida Pública, which aim to conduct
the citizen audit of public debit; the requeriment of compliance with Article
26 of the Transitional Provision Act- ADCT of the Federal Constitution, which
provides for an audit of the external debt; demand transparency, social
control and publicization public debt and carry out analyses of federal public
debt of Fernando Henrique Cardoso government, the dismantling of social
rights and the procedures for auditing the federal public debt.

Keywords: Social movements; Public Debit; Fernando Henrique Cardoso


Government.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo analisa a propositura da associação sem fins lucrativos Auditoria Cidadã da Dívida
Pública- ACD na luta pelo cumprimento de realização de uma auditoria cidadã da dívida pública
federal brasileira, de forma cidadã. De forma a exigir a transparência sobre o endividamento público
para trazer controle social e publicização da dívida pública federal; para levar o conhecimento sobre
o endividamento público, a execução orçamentária e financeira federal e mobilizar a sociedade em
geral, bem como analisar a evolução da dívida pública federal no governo FHC.

121
121
De forma a narrar a evolução da dívida pública federal no governo FHC, com este recorte
temporal como marco inicial das atividades da ACD, de forma a ter um estudo aprofundado na
contemporaneidade, destacando a dívida pública federal neste governo e as ações da ACD.

Para analisar as políticas econômicas, monetárias e fiscais desse governo, quais foram as
medidas econômicas, quais as mudanças, além de comparar os governos de direita e esquerda e
verificar a austeridade da dívida pública federal. De modo a verificar as razões da dívida pública
federal ter aumentado no governo FHC.

O assunto da dívida pública chama atenção pelo desequilíbrio fiscal dos governos e sem uma
política monetária eficaz, que aumenta ainda mais o grau de endividamento público e destaca a má
gestão da dívida pública federal e qual foi o posicionamento da ACD durantes estes governos.

Para tal, analisamos primeiramente a dívida pública no governo FHC, com o programa de
salvamento de bancos, o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema
Financeiro- PROER e o Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade
Bancária- PROES.

2. ESTABILIZAÇÃO, DÉFICIT PÚBLICO E REFORMAS NO GOVERNO FHC

Este artigo versa sobre o endividamento público brasileiro e a necessidade de financiamento


do setor público, a gestão da dívida pública federal e o gerenciamento adotado pelo Ministério da
Fazenda e pelo Tesouro Nacional no período aludido, de forma a averiguar o comportamento da
dívida pública federal no governo FHC e as ações da ACD.

O objetivo deste artigo é analisar a trajetória da relação dívida pública/ PIB no governo
FHC, bem como compreender a atuação da ACD nesse governo, a partir do Plano Real essa relação
aumentou de forma contínua, com análise sobre a evolução do quadro fiscal, a exigência por parte
dos órgãos credores da dívida de alcançar o superávit primário e das privatizações. Analisar
também as Necessidades de Financiamento do Setor Público- NFSP, o aumento da despesa ao
longo desse governo, o aumento dos benefícios previdenciários do INSS, os gastos sociais com o
Bolsa Família e as despesas assistenciais da Lei Orgânica de Assistência Social- LOAS.

Importante é destacar o cenário econômico e político, no governo que antecedeu o governo


FHC, no governo Collor, que foi um cenário de instabilidade, com grande inflação, com fator de
estabilização do Plano Real e foi bem sucedido, trazendo continuidade econômica e confiança
internacional. Mas que trouxe crescimento da dívida pública federal e riscos para o a política
econômica brasileira.

Segundo Giambiagi (2016), FHC fez opções na economia e sua meta era vencer a inflação
e que antes do Plano Real já houveram cinco planos frustrados de estabilização: Cruzado (1986),
Bresser (1987), Verão (1989), Color I (1990) e Collor II (1991). O primeiro governo FHC foi marcado
pela estabilização econômica, a expansão do PIB em 11% em relação ao ano anterior, o crescimento
da demanda agregada, mas também com redução da entrada de capitais associada ao ambiente
externo, as reservas internacionais do Brasil começaram a cair. O Real foi uma experiência bem-

122
122
sucedida e com a pressão inflacionária, com a economia superaquecida e com uma deterioração do
balanço de pagamentos, as autoridades reagiram com um conjunto de medidas: uma desvalorização
controlada de 6% em relação à taxa de câmbio e o Banco Central passou a administrar um esquema
de microdesvalorizações, com movimentos ínfimos de uma banda cambial com piso e teto muito
próximos.

Ainda, segundo Giambiagi (2016), tivemos uma alta taxa de juros nominal de 4,3%,
aumentando o custo de carregar divisas. A crise fiscal de seu governo foi caracterizada pelos fatos:
um déficit primário do setor público consolidado; um déficit (nominal) de 6% do PIB e uma dívida
pública crescente. O desgaste da âncora cambial como instrumento da política monetária trouxe
deterioração da conta corrente e gerou passivos externos e a necessidade de compensar esse déficit
externo mediante a entrada de capitais que se sentissem atraídos pelas elevadas taxas de juros
oferecidas pelo mercado passou a gerar despesa financeira. Isso pressionou as contas públicas e
contribuiu para piorar a trajetória da relação dívida pública/ PIB.

Mesmo com a pressão política e econômica, FHC conseguiu implantar o Plano Real, quando
ainda era ministro da fazenda. Durante o governo Collor estabilizou a economia, que vinha de
uma alta inflação, com remarcação diária de preços, afetando o país como um todo, considerada
uma grande vitória, todavia trouxe endividamento público e o aumento da dívida pública federal
e o agravamento da relação dívida pública/ PIB, como citado no parágrafo anterior. Essa relação
mesmo sendo alta não impõe grandes condicionantes, como por exemplo, nos Estados Unidos, a
relação dívida pública/ PIB é alta, mas este país tem uma alta arrecadação de impostos.

As privatizações foram acirradas neste governo, processo iniciado no governo Collor e


prosseguiu no governo FHC, o recurso destas é destinado ao pagamento da dívida pública, várias
empresas públicas consideradas lucrativas foram privatizadas, segundo Rodrigues e Jurgenfeld
(2019) empresas estatais como a Companhia Vale do Rio Doce, Telebrás e outras.

As privatizações foram defendidas como uma forma de reduzir o déficit público sem a
necessidade de emissão de moeda ou dívida pública, em outros países o recurso das privatizações
é destinado ao pagamento de despesas correntes, na América Latina prioritariamente a receita
das privatizações é destinada para o pagamento da dívida pública, conforme Pinheiro e Landau
(1995) sobre as moedas a privatização, uma das características mais notáveis do Programa Nacional
de Desestatização (PND) é a aceitação de títulos da dívida de médio e longo prazos das estatais e
do setor público como moeda de pagamento na compra das empresas e alguns papéis da dívida
externa, todos esses títulos foram aceitos pelo valor de face. As dívidas utilizadas foram: as dívidas
securitizadas da União; as debêntures da Siderurgia Brasileira S.A- Siderbrás; os certificados de
privatização; as obrigações do Fundo Nacional de Desenvolvimento; os títulos da dívida agrária; as
letras hipotecárias da Caixa Econômica Federal e os títulos da dívida externa.

Por outro lado, Fattorelli (2013) destaca que o PROER e o PROES foram programas de
salvamento bancário, no âmbito federal, este último representou a privatização dos bancos
estaduais, o resultado desses programas foi a transferência direta de recursos públicos para bancos,
com geração de dívidas para os setores públicos nacional e estadual. O custo do PROER foi de 40
bilhões de dólares e do PROES foi de 69 bilhões de dólares.

123
123
Desta forma, conforme Fattorelli (2013) as privatizações não trouxeram vantagens para o
país, pois as empresas estatais privatizadas eram lucrativas e o país se rendeu às exigências do
neoliberalismo, que foram a retirada de direitos e as privatizações. Sendo a maior parte beneficiada,
o capitalismo estrangeiro, que não tiveram a exigência de manutenção dos empregos e de garantia
de direitos, de adquirir produtos nacionais e ainda houve a grande exploração do ecossistema e do
bioma brasileiros.

Essas empresas estatais eram lucrativas e foram privatizadas por valores inferiores ao seu
valor de face, segundo Fattorelli (2013), algumas ainda receberam vultuosos investimentos do
governo federal antes da privatização e outras que foram privatizadas e que rendiam muito mais
que o valor arrecadado e outras ainda foram negociadas por títulos da dívida pública. Enfocando
ainda que foram tantas empresas estatais privatizadas e ainda a dívida pública dobrou.

Em relação aos bancos estaduais, estes foram privatizados, as dívidas ficaram para os
Estados, que ainda tiveram que arcar com as despesas trabalhistas dos funcionários demitidos e
destacamos ainda, que muitos Estados ainda pagam as dívidas desses bancos até os dias de hoje.

Por outro lado, Fattorelli (2013) alega que as privatizações foram engendradas para perda
do patrimônio público, várias empresas estatais doravante lucrativas foram privatizadas, como
exemplo, podemos citar a empresa Vale do Rio Doce, a maior empresa mineradora do planeta,
que era e ainda é lucrativa e que foi privatizada, vendida para o capital estrangeiro e o país ficou
como resultados, os crimes de Brumadinho e Mariana. Assim, a ACD trouxe ao conhecimento da
população o sistema da dívida pública, alegando que esta não teve contrapartida em investimentos
no país, apenas desvio de recurso diretamente para o sistema financeiro.

Desta forma, as privatizações tidas como vantajosas, que teriam ganhos comparativos,
que diminuiria a ação do Estado, que seriam mais eficientes e pontuais, todavia não houve essa
melhora esperada, perdendo assim a população brasileira com a perda do patrimônio público, de
empresas pública doravante estratégicas e lucrativas para o capitalismo, houve a piora da prestação
dos serviços e/ou fornecimento dos bens e ainda a majoração das taxas.

No segundo mandato houve a renegociação do acordo com o Fundo Monetário Internacional-


FMI, para dívida pública, com a desvalorização. Outra reforma dos anos FHC foi o fim dos monopólios
estatais de petróleo e telecomunicações, como citado anteriormente, os serviços não melhoraram,
houve aumento e a dívida pública ainda não diminuiu com a venda das grandes estatais. Abrindo
assim o país ao capital estrangeiro, os bancos estaduais também foram privatizados e a dívida
destes são pagas até os dias de hoje pelos Estados.

Para contextualizar, segue na tabela abaixo a descrição da dívida líquida do setor público em
percentuais do PIB:

124
124
Tabela XX - Dívida Líquida do Setor Público – 1994-2002 (%PIB)

Discriminação 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002
Dívida interna 21,5 22,8 26,7 27,3 32,2 34,2 35,9 42,0 44,4

Governo central 6,7 8,9 13,1 15,2 18,8 19,5 21,2 23,4 24,4
Base monetária 3,6 2,8 2,2 3,3 3,8 4,1 3,8 4,0 4,9
Dívida mobiliária 11,7 14,2 19,4 25,6 31,3 34,4 38,2 45,9 40,4

0,0 0,0 0,0 -4,9 -8,5 -11,0 -12,3 -13,3 -14,6


Renegociação est./ munic.
FAT -2,0 -2,3 -2,3 -2,4 -3,2 -3,5 -4,0 -4,6 -5,1
Operações compromissa-
0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,5 -0,7 5,2
das
Outras -6,6 -5,8 -6,2 -6,4 -4,6 -4,5 -5,0 -7,9 -6,4

9,6 9,4 10,0 11,3 12,3 13,6 13,9 16,5 18,3


Estados e Municípios
Dívida renegociada 0,0 0,0 0,0 4,9 8,5 11,0 12,3 13,3 14,6
Outras 9,6 9,4 10,0 6,4 3,8 2,6 1,6 3,2 3,7

Empresas estatais 5,2 4,5 3,6 0,8 1,1 1,1 0,8 2,1 1,7
Dívida externa 8,5 5,0 3,5 4,0 5,7 9,2 8,8 9,5 15,5
Dívida Total 30,0 27,8 30,2 31,3 37,9 43,4 44,7 51,5 59,9
Dívida fiscal 30,0 27,8 28,5 31,2 36,9 36,3 37,3 39,2 39,0
Ajuste patrimonial n.d n.d 1,7 0,1 1,0 7,1 7,4 12,3 20,9
Privatização n.d n.d -0,1 -1,9 -2,9 -3,4 -4,7 -4,6 -4,3
Outros ajustes n.d n.d 1,8 2,0 3,9 10,5 12,1 16,9 25,2
Dívida interna n.d n.d 0,0 0,0 0,4 3,7 4,4 5,7 10,2
Dívida externa n.d n.d 0,1 0,2 0,5 2,9 2,9 4,2 8,3
Outros ajustes n.d n.d 1,7 1,8 3,0 3,9 4,8 7,0 6,7
Fonte: Banco Central apud Giambiagi (2016, p. 189)

Na tabela acima, podemos averiguar toda dívida líquida do setor público nos dois mandatos
FHC, a relação dívida pública/ PIB sempre cresceu, aumentando o déficit pela Necessidade de
Financiamento do Setor Público- NFSP, aumentando o grau de endividamento. Giambiagi (2016)
destaca um contexto externo ruim: no período 1999 – 2002, o país enfrentou a maior crise
econômica da Argentina, a contração da maioria dos mercados da América Latina; os efeitos dos
atentados terroristas contra as Torres Gêmeas de Nova York; a desvalorização do euro; uma séria
contração de crédito nos mercados internacionais; e uma queda das exportações brasileiras e isso
tudo levou a uma necessidade maior de desvalorização cambial, com efeitos negativos sobre a
dinâmica dos preços e dos juros, que foram pressionados pela necessidade de evitar uma maior
inflação, causada pela taxa de câmbio.

125
125
Na dívida pública federal falta transparência, publicização para saber em que consiste
o montante total, para foram investidos os recursos e se trouxe crescimento econômico e
desenvolvimento social para o país e também se representa uma dívida social, tendo em vista que
o Brasil é um país endividado.

Contudo a relação dívida pública/ PIB foi ascendente desde o início do governo FHC, segundo
informações do Banco Central, no início do governo a dívida pública era em torno de R$ 153 bilhões,
dobrou em apenas três anos de gestão, fechando em 97 em R$ R$ 306, 494 bilhões, os economistas
não se preocupavam apenas com o seu tamanho, mas sim com o seu crescimento, enfocando que
a dívida era até pequena para parâmetros internacionais, mas que houve uma explosão da dívida
no governo FHC.

As razões para o crescimento da dívida foram a alta dos juros para evitar a fuga de investidores
estrangeiros. Ainda, a União assumiu a dívida dos Estados cobrando dos governadores mais
austeridade, na federalização da dívida pública, o que muitos argumentam que foi a socialização
dos prejuízos, o governo federal socorreu bancos públicos e privados e também pela acumulação
de dólares pelo Banco Central para manter o Plano Real, tendo assim altos custos sociais. Sobre
isso, Giambiagi (2016, p. 189-190) explica:
Entre 1995 e 2002 não houve um único ano no qual a relação dívida pública/ PIB
não tenha aumentado em relação ao ano anterior. Há, porém, uma diferença fun-
damental entre os dois governos FHC. No primeiro, a dívida aumentou por razões
fiscais, pelas NFSP elevadas. Enquanto isso, no segundo governo, devido ao forte
ajuste primário, a dívida de origem fiscal se manteve relativamente estável e o
aumento do total se explica pela variação dos ajustes patrimoniais de 20% do PIB
entre 1998 e 2002, por causa dos efeitos cambiais e do reconhecimento de dívi-
das antigas – ou “esqueletos”. O fato, porém, é que os investidores, acostumados
a olhar a evolução dos grandes agregados, continuavam vendo uma dívida públi-
ca em constante aumento.

Houve uma diferença em relação à dívida pública federal nos dois mandatos de FHC,
no primeiro, com a priorização da estabilização monetária, ocorreu também o desequilíbrio
externo, uma política monetária com altas taxas de juros e uma política econômica que acarretou
desemprego. No primeiro mandato houve uma âncora cambial para estabilização monetária, base
do Plano Real, com elevação das taxas de juros para evitar a fuga de capitais estrangeiros, como
citado anteriormente, mas isso fez com a dívida pública quase dobrasse. No primeiro mandato, em
1995 a proporção do PIB era de 30% passando para 60% em 2002. O maior êxito do governo FHC
foi eliminar a hiperinflação, com estabelecimento da Unidade Real de Valor- URV para alinhar os
preços e fazer a conversão da nova moeda, o Real.

Naquele momento, houve também déficit público e déficit primário, contudo apesar
de várias empresas estatais serem privatizadas, a dívida pública federal cresceu, mesmo com o
argumento de que as privatizações diminuiriam o déficit público, ocorreu o contrário. O Brasil
fez ainda um empréstimo de US$ 40 bilhões junto ao Fundo Monetário Internacional- FMI para
assegurar o pagamento da dívida pública.

126
126
3. CONCLUSÃO

Este artigo resultou do trabalho de pesquisa sobre o movimento social, a associação sem fins
lucrativos Auditoria Cidadã da Dívida Pública na luta pela exigência da auditoria da dívida pública
federal, de forma cidadã, analisando esta no governo FHC.

No início do governo FHC, em três anos a dívida pública dobrou, porque o governo federal
sustentou o câmbio, com objetivo também de reeleição, após o país adotou o câmbio flutuante e
meta de inflação. O aumento da dívida pública se deu em decorrência da política de estabilização.
No final do governo FHC, em 2002, segundo a Fundação Getúlio Vargas (2020), a dívida pública
atingiu 59,5% do PIB, em decorrência da elevação da taxa de câmbio, os títulos públicos eram
indexados ao câmbio.

Nos primeiros três anos de governo, a dívida pública dobrou pela alta taxa de juros para
evitar a fuga de capitais estrangeiros, os Estados endividados também contraíram dívida pública
a juros altos, houve também a federalização da dívida pública e pela acumulação de dólares para
manter a estabilidade monetária e o Plano Real, pelo lado econômico e também político para
garantir a reeleição.

No primeiro mandato, a relação dívida pública/ PIB era de 30% e no segundo mandato
já representava 44,5%, mesmo com tantas empresas estatais privatizadas e quase 90% da dívida
pública federal era dolarizada, sendo o país vulnerável a crises internacionais. Destacando a política
econômica neoliberal,

No segundo mandato FHC, segundo Fattorelli (2013), os movimentos sociais se manifestaram


contra a entrada do capital estrangeiro, das exigências do neoliberalismo e principalmente pelas
reformas e pela retirada de direitos. Podemos destacar ainda, as diferenças nos modelos econômicos
dos governos FHC, Lula e Dilma. O governo FHC foi marcado por uma política econômica restritiva
visando a estabilização econômica, com um cenário de dificuldades com a mudança de moeda e o
enxugamento do Estado, com as privatizações, o Estado mínimo.

REFERÊNCIAS

FATTORELLI, Maria Lucia. Auditoria Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos. Brasília:
Inove Editora, 2013.

GIAMBIAGI, Fábio. ALÉM, Ana. Finanças Públicas: teoria e prática no Brasil. 5. ed. ver. e atual. – Rio
de Janeiro: Elsevier, 2016.

PINHEIRO, Armando Castelar. LANDAU, Elena. Privatização e Dívida Pública. Rio de Janeiro: BNDES,
1995.

RODRIGUES, C. H. L.; JURGENFELD, V. F. Desnacionalização e financeirização: um estudo sobre as


privatizações brasileiras (de Collor ao primeiro governo FHC)*. Economia e Sociedade, v. 28, n. 2, p.
393–420, maio 2019.

127
127
LUTAS SOCIAIS EM ANGOLA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO:
uma análise a partir dos acontecimentos de 2015 a 2023

Hitler Jessy Tshhikonde

RESUMO

Este artigo apresenta uma análise das lutas sociais em Angola no contexto
contemporâneo, focalizando no período de 2015 a 2023. Utilizando uma
abordagem multidisciplinar, o estudo examina as principais questões que
motivam as lutas sociais, suas dinâmicas e seus impactos na sociedade
angolana. Após uma revisão da literatura sobre o tema, o artigo descreve
a metodologia utilizada, que incluiu a análise de dados qualitativos e
quantitativos relacionados a protestos, manifestações e outros tipos de ação
coletiva ocorridos durante o período de estudo. Os resultados indicam uma
série de temas recorrentes nas lutas sociais em Angola, incluindo demandas
por melhores condições de vida, acesso à terra, serviços públicos de qualidade,
combate à corrupção e maior participação política. Além disso, o estudo
identifica os principais atores envolvidos nas lutas sociais, como grupos de
ativistas, sindicatos, organizações da sociedade civil e comunidades locais.
As análises revelam que as lutas sociais desempenham um papel importante
na pressão por mudanças políticas, sociais e econômicas em Angola, embora
enfrentam desafios significativos, como repressão estatal, falta de recursos e
divisões internas dentro dos movimentos sociais. Com base nos resultados, o
artigo conclui destacando a importância das lutas sociais como instrumento
de transformação social e a necessidade de políticas públicas que promovam
a inclusão, a participação cidadã e o respeito aos direitos humanos em
Angola.

Palavras Chaves: Angola, Movimentos Sociais , Lutas Sociais , Ordem


capitalista.

1. INTRODUÇÃO

Angola, uma nação de grande diversidade étnica, cultural e geográfica, tem sido palco de
uma série de transformações políticas, econômicas e sociais ao longo de sua história. Desde sua
independência em 1975, o país passou por um período de guerra civil devastadora, seguida por um
processo de reconstrução e consolidação democrática. No entanto, apesar dos avanços alcançados,
Angola continua a enfrentar uma série de desafios, incluindo desigualdades socioeconômicas,
corrupção, restrições à liberdade de expressão e direitos humanos, e uma infraestrutura insuficiente
para atender às necessidades básicas da população.

128
128
Neste contexto, as lutas sociais emergem como uma expressão fundamental da voz e da
resistência das comunidades angolanas frente às injustiças, desigualdades e opressões enfrentadas
em seu dia a dia. Essas lutas refletem uma variedade de demandas e aspirações, abrangendo
questões como acesso à terra e recursos naturais, direitos dos trabalhadores, igualdade de gênero,
educação, saúde, habitação e justiça social.

Considerando esta realidade, as questões que levaram à conformação neste artigo foram:

• Quais são os principais atores envolvidos nas lutas sociais em Angola e quais são
suas demandas e objetivos?

• Como as desigualdades econômicas e sociais têm contribuído para o surgimento e a


intensificação das lutas sociais em Angola?

• Quais são os impactos das lutas sociais em Angola na construção da democracia e no


fortalecimento dos direitos de cidadania no país?

Ante ao exposto, a principal questão que se constitui enquanto problema de pesquisa é:


como tem se configurado as lutas sociais em Angola no contexto contemporâneo, considerando os
principais impulsionadores, atores, dinâmicas e objetivos desse processo que visa a transformação
social e política do país?

Desta maneira, este estudo diz respeito à temática das lutas sociais em Angola, tendo
como objetivo principal analisar as lutas sociais em Angola no contexto contemporâneo, focando
nos principais impulsionadores, atores, dinâmicas e objetivos que moldam esses movimentos de
resistência e protesto no período de 2015 a 2023. Ao examinar de perto essas lutas, pretendemos
oferecer insights sobre as demandas e necessidades das comunidades angolanas, bem como
destacar os desafios e oportunidades que essas lutas enfrentam ao buscar a mudança social e
política.

Para tanto, esta pesquisa adotará uma abordagem materialista-histórica, combinando


análises históricas, políticas, sociais e culturais para entender a natureza e a configuração das
lutas sociais em Angola, em particular no seu contexto contemporâneo. Para isso, buscaremos
analisar o objeto da pesquisa com base em categorias de análise que nos permitam apreender seu
movimento e contradições.

Nesse sentido, este artigo situa elementos sobre a realidade de Angola, abordando aspectos
acerca do Estado e do desenvolvimento da sua ordem capitalista, do seu contexto contemporâneo,
considerando a hegemonia neoliberal e a existência das lutas e movimentos sociais frente a essa
realidade.

No decorrer deste estudo, será dada atenção especial aos desafios enfrentados pelos
movimentos sociais angolanos, incluindo a repressão estatal, a cooptação por parte do grupo
hegemônico e as divisões internas dentro dos próprios movimentos. Ao mesmo tempo, serão
destacadas as estratégias e táticas utilizadas pelos ativistas para superar esses obstáculos e avançar
em suas demandas por justiça, igualdade e transformação social.

129
129
Em última análise, esta pesquisa busca contribuir para uma compreensão mais aprofundada
das lutas sociais em Angola, oferecendo observações valiosas para acadêmicos, formuladores de
políticas e ativistas interessados no fortalecimento da democracia, dos direitos humanos e do
desenvolvimento sustentável no país.

Diante desses elementos, o presente artigo apresenta uma revisão de literatura que
fundamenta a proposta do estudo; o percurso a ser construído através da metodologia; contextualiza
historicamente e apresenta ainda análise dos dados e as referências bibliográficas que foram
utilizadas para elaboração deste estudo.

2. MOVIMENTOS SOCIAIS E CONCEITOS AFINS

Considerando a multiplicidade e a importância dos movimentos sociais enquanto uma das


principais formas de lutas sociais na contemporaneidade, é importante indicar alguns elementos
teórico-conceituais sobre a concepção de movimento sociais.

Segundo Lojkine (1997), um movimento social pode ser definido como um conjunto
organizado de práticas e ações coletivas de grupos sociais que buscam transformar as estruturas
sociais existentes. Esses movimentos surgem como respostas a contradições e conflitos inerentes
ao sistema capitalista, especialmente em relação à exploração, à dominação e à exclusão social.
Nas suas palavras:

[…] um movimento social caracteriza-se primeiramente pela capacidade de


um conjunto de agentes das classes dominadas diferenciar-se dos papéis e
funções através dos quais a classe (ou fração de classe) dominante garante
a subordinação e dependência dessas classes dominadas com relação ao
sistema sócio-econômico em vigor (Lojkine, 1997, p.314).

O autor apresenta-nos a definição dos movimentos sociais com base na combinação de


dois processos sociais imprescindíveis: Um processo de “pôr-se em movimento” de classes, frações
de classes e camadas sociais”. Esse primeiro processo define a intensidade e a extensão (o campo
social) do movimento social pelo tipo de combinação que une: a) base social, e b) a organização
do movimento social – do “pôr-se em movimento” ao desafio político do qual é portador (Lojkine,
1997, p.318).

Ademais, Lojkine (1997) enfatiza que os movimentos sociais não são apenas expressões de
insatisfação ou protesto, mas sim formas organizadas de resistência e luta por mudanças sociais.
Eles são impulsionados por uma consciência coletiva de injustiça e pela busca por justiça social,
igualdade e emancipação.

Além disso, Lojkine (1997) destaca a importância da análise das condições estruturais e
das dinâmicas sociais subjacentes que moldam os movimentos sociais, incluindo fatores como
a concentração de poder, as relações de classe, as contradições econômicas e as estratégias de
dominação da classe dominante.

130
130
[…] o alcance histórico real de um movimento social só pode ser definido
pela análise de sua relação com o poder político. Logo, em vez de “parar”
e de “esfriar” quando confrontado ao Estado, o movimento social será
definido, em última instância, por sua capacidade de transformar o sistema
sócio-econômico no qual surgiu (Lojkine, 1997, p.320).

Nesta perspectiva, o autor analisa os movimentos sociais a partir da sua natureza coletiva,
sua orientação para a transformação social e sua inserção em contextos mais amplos de conflito e
luta de classes na sociedade capitalista. Além disso, corrobora com Alain Touraine quando diz que “o
movimento social só adquire sentido completo se tiver capacidade de opor-se à classe dominante e
ao conjunto de seu sistema hegemônico” (Lojkine, 1997, p. 314).

Os movimentos sociais são vistos como meios pelos quais o proletariado e outros grupos
oprimidos lutam por seus interesses e buscam transformar a ordem social existente. No entanto, “o
tipo de ação social envolvida é que será o indicador do caráter do movimento” (Gohn, 2000, p.14).

A autora destaca a importância da análise das trajetórias, estratégias, redes de solidariedade


e identidades dos movimentos sociais, bem como de sua relação com outros atores sociais, como
o Estado, partidos políticos, organizações da sociedade civil e a mídia. Deste modo, o conceito
de movimentos sociais, segundo Gohn (2019), deve enfatizar sua natureza plural, dinâmica e
transformadora, reconhecendo sua importância na promoção da cidadania ativa1 e na construção
de uma sociedade mais justa e democrática.

Em suas palavras “os movimentos geram uma série de inovações nas esferas pública e
privada, participando direta ou indiretamente da luta política de um país e contribuindo para o
desenvolvimento e transformação da sociedade civil e política” (Gohn, 2000, p.13).

Já Frank e Fuentes (1989), apresentam uma visão analítica sobre os movimentos sociais e
seu papel na transformação social em dez teses na qual afirmam que os movimentos sociais são
inerentes à sociedade, sendo uma forma de ação coletiva. E que por serem dinâmicos, podem ser
explicados por fatores estruturais e conjunturais, podendo ter diferentes objetivos, estratégias e
formas de organização que podem gerar mudanças sociais, ao mesmo tempo em que enfrentam
diversos obstáculos e desafios diante disso.

No que diz respeito à transformação social, os autores Frank e Fuentes (1989), convergem
com Gohn (2000), principalmente quando afirmam que:

Os movimentos sociais são agentes importantes de transformação social e


portadores de uma nova visão. Uma razão da importância dos movimentos
sociais, evidentemente, é o vazio que eles preenchem em espaços nos quais
o Estado e outras instituições sociais e culturais são capazes de atuar pelos
1 Para ela, a cidadania ativa implica uma participação efetiva dos cidadãos na vida pública, na defesa de seus
interesses e na busca por mudanças sociais. Sua tese é sustentada na visão segundo a qual “a participação social
cidadã é aquela que configura formas de intervenção individual e coletiva, que supõem redes de interação variadas e
complexas determinadas (provenientes da “qualidade” da cidadania) por relações entre pessoas, grupos e instituições
como o Estado. A participação social deriva de uma concepção de cidadania ativa. A cidadania define os que per-
tencem (inclusão) e os que não se integram à comunidade política (exclusão); logo, a participação se desenvolve em
esferas sempre marcadas, também, por relações de conflito e pode comportar manipulação”. (Milani, 2008, p. 560).

131
131
interesses de seus membros, ou não querem fazê-lo (Frank , Fuentes, 1989,
p.37).

Para eles, os movimentos sociais têm o potencial de influenciar as políticas públicas,


promover a conscientização social, mobilizar recursos e criar transformações significativas na
sociedade. Suas teses oferecem uma estrutura analítica abrangente para compreender a natureza,
dinâmica e impacto dos movimentos sociais na sociedade contemporânea.

Na mesma linha de pensamento, Touraine (2006) defende que os movimentos sociais surgem
em resposta a conflitos e contradições na sociedade contemporânea. Eles representam formas de
resistência e luta contra estruturas de poder dominantes e injustiças sociais. Os movimentos sociais
buscam promover mudanças sociais significativas, desafiando as relações de poder existentes e
defendendo novas formas de organização social.

Um movimento social é a combinação de um conflito com um adversário social


organizado e da referência comum dos dois adversários a um mecanismo
cultural sem o qual os adversários não se enfrentam, pois poderia se situar
em campos de batalha ou em domínios de discussão completamente
separados (Touraine, 2006, p.18-19).

Desta maneira, o autor vê os movimentos sociais como agentes de transformação social


e cultural, ou seja, “um movimento social é sempre um protesto moral; coloca-se por cima da
sociedade para julgá-la ou transformá-la, e não no centro para manejá-la e orientá-la no sentido
que exigem a Razão ou a História” (Touraine, 1997, p.79).

Para ele, os movimentos desempenham um papel fundamental na promoção da democracia,


da justiça social e da igualdade, desafiando estruturas de poder injustas e promovendo novas
formas de organização social e política.

Deste modo, os movimentos sociais podem ser vistos como motores de mudança social,
capazes de influenciar o curso da história e moldar o futuro da sociedade, conforme vimos em
Frank e Fuentes (1989) e veremos a seguir em Melucci (1989).

A propósito, Alberto Melucci, um sociólogo italiano, contribuiu significativamente para


o estudo dos movimentos sociais com sua abordagem centrada na teoria da ação coletiva e na
compreensão da mobilização social.

Conquanto, Melucci (1987, p.51) define os movimentos sociais como “uma forma de ação
coletiva (a) baseada na solidariedade, (b) desenvolvendo um conflito, (c) rompendo os limites do
sistema em que ocorre a ação”. Pois, para ele, “os movimentos sociais devem ser examinados não
à luz das aparências ou da retórica, mas como sistemas de ação” (Melucci, 1989, p.51).

No entanto, os movimentos sociais para este autor são agentes de transformação social que
buscam promover mudanças significativas na estrutura e nas relações sociais. Ele argumenta que
os movimentos sociais são impulsionados por uma aspiração pela mudança e por uma busca por
uma sociedade mais justa e igualitária.

132
132
Os atores nos conflitos são cada vez mais temporários e sua função é revelar
os projetos, anunciar para a sociedade que existe um problema fundamental
numa dada área. Eles têm uma crescente função simbólica [...]. Eles tentam
mudar a vida das pessoas, acreditam que a gente pode mudar nossa vida
cotidiana quando lutamos por mudanças mais gerais na sociedade (Melucci,
1989, p. 59).

O autor acrescenta ainda que assim “como profetas sem encantamento, os movimentos
contemporâneos praticam no presente a mudança pela qual eles estão lutando: eles redefinem o
significado da ação social para o conjunto da sociedade” (Melucci, 1989, p. 62).

Melucci reconhece a capacidade de mobilização, inspiração e de desafiar a sociedade em


busca de um futuro mais justo e humano pelos movimentos sociais e destaca a importância do
consenso e da cooperação na busca por mudanças sociais. Ele argumenta que os movimentos
sociais são capazes de articular diferentes visões e interesses e de encontrar formas de cooperação
para alcançar seus objetivos.

Estas redes (descritas primeiramente por Gerlach e Hine, 1970) têm


as seguintes características: a) elas permitem associação múltipla; b) a
militância é apenas parcial e de curta duração; c) o envolvimento pessoal e a
solidariedade afetiva é requerida como uma condição para a participação em
muitos dos grupos. Este não é um fenômeno temporário, mas uma alteração
morfológica na estrutura da ação coletiva (Melucci, 1989, p. 61).

Desta maneira, compreendemos que os movimentos sociais também são impulsionados pela
consciência de classe, que surge quando os trabalhadores reconhecem sua condição de exploração
e opressão dentro do sistema capitalista. Aliás, essa consciência de classe é fundamental para a
mobilização coletiva e para a formação de movimentos que buscam defender os interesses da
classe trabalhadora.

Na visão marxista, os movimentos sociais têm o potencial de desafiar e eventualmente


superar a dominação da classe dominante. Eles não são apenas reações isoladas a injustiças
específicas, mas sim partes de um processo mais amplo de luta por uma sociedade sem classes, na
qual os meios de produção são controlados democraticamente pela classe trabalhadora.

Fanon (1989), já referenciado neste estudo, aborda a questão da consciência de classe ao


discutir sobre como a luta anticolonial pode gerar uma solidariedade de classe entre os oprimidos
colonizados, levando-os a se unirem em busca de emancipação e libertação. Seu trabalho é
imprescindível no desenvolvimento do nosso estudo, principalmente por ser um autor que
conheceu a realidade angolana e influenciou o surgimento da luta anticolonial em Angola.

Associado a isso, a perspectiva marxista também reconhece que os movimentos sociais


podem ser influenciados por diversas variáveis, como a consciência de classe, a organização política,
as condições econômicas e políticas, e a repressão por parte do Estado e das classes dominantes.
Assim, esta perspectiva busca analisar essas complexidades e identificar estratégias que possam
contribuir com a luta pela emancipação política e humana, e é a partir dela que buscaremos realizar
a análise do nosso objeto de pesquisa.

133
133
3. METODOLOGIA

Com escolha teórico-metodológica, optamos pelo materialismo-histórico-dialético que se


baseia nos princípios desenvolvidos por Karl Marx e Friedrich Engels “a partir de seus estudos sobre
o modo de produção capitalista, tendo como proposição central da pesquisa marxiana “a gênese,
a consolidação, o desenvolvimento e as condições de crise da sociedade burguesa” (Netto, 2011,
p. 17).

Marx via o conhecimento teórico como um reflexo da realidade objetiva. Isso significa que
o conhecimento humano não é simplesmente uma representação subjetiva da realidade, mas é
baseado na análise e na compreensão das leis e padrões que governam a realidade material.

[...] o conhecimento teórico é o conhecimento do objeto - de sua estrutura


e dinâmica - tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e efetiva,
independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do
pesquisador. A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real
do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em
seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta
reprodução (que constitui propriamente o conhecimento teórico) será tanto
mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto (Netto,
2011, p. 20-21).

Para Marx, entender a realidade objetiva é essencial para compreender e transformar o


mundo. Ele acreditava que o conhecimento humano deve ser baseado em métodos científicos
rigorosos, que permitam uma investigação sistemática e objetiva da realidade material.

Assim como não podemos ter uma visão correta de nenhum aspecto estável
da realidade humana se não soubermos situá-lo dentro do processo geral de
transformação a que ele pertence (dentro da totalidade dinâmica de que ele
faz parte), também não podemos avaliar nenhuma mudança concreta se não
a reconhecermos como mudança de um ser (quer dizer, de uma realidade
articulada e provida de certa capacidade de durar) (Konder, 2004, p.54).

Para este autor, a dialética é essencial para entender as contradições e conflitos que
impulsionam a mudança social. Além disso, ele enfatiza a importância da práxis revolucionária na
transformação das estruturas sociais e na busca pela emancipação humana.

Nessa perspectiva metodológica, as categorias são fundamentais para o processo apreensão


do objeto, de tal maneira que para a realização desta pesquisa pretendemos nos basear nos estudos
acerca das lutas sociais em Angola, tendo como eixos temáticos desta a análise estudos que nos
permitirão compreender a realidade angolana no contexto pós-colonial e o papel do Estado no
desenvolvimento da ordem capitalista, o neoliberalismo e a realidade contemporânea em Angola
entre 2015 e 2023 e por último as lutas e movimentos sociais no contexto contemporâneo em
Angola. A partir do primeiro eixo, resgataremos a formação das classes sociais em Angola, as
contradições sociais, as dinâmicas históricas e as possibilidades de transformação social no país.
Esse eixo tem relação com o segundo, a partir do qual objetivamos compreender as implicações

134
134
políticas, econômicas e sociais do neoliberalismo no país.

Em relação ao último eixo deste estudo, importa realçar que as lutas e os movimentos
sociais desempenham um papel fundamental na transformação social.

Exposto a abordagem teórico-metodológica, partiremos para a apresentação dos


procedimentos metodológicos pelos quais pretendemos desenvolver o nosso estudo. Para tal,
torna-se necessário realizar uma revisão bibliográfica e pesquisa documental que irá incluir estudos,
sistematizações e análises acerca das categorias ordem capitalista, neoliberalismo e lutas sociais.

No que tange a pesquisa bibliográfica pretendemos realizar um levantamento de livros,


artigos e demais trabalhos acadêmico-científicos que abordam temáticas sobre o neoliberalismo,
lutas sociais e a realidade de Angola no contexto contemporâneo. Não obstante, a pesquisa
bibliográfica, pretendemos ainda realizar uma coleta de dados a partir de plataformas on-line como
a Central Angola 7311 (criada pelos ativistas para arquivar dados sobre o movimento), Club-K Angola
e Maka Angola (portal de notícias), Frontline Defender (Blog), arquivos da Anistia Internacional e
outros que ao longo dos últimos 10 anos fizeram a catalogação das lutas e dos movimentos sociais
de Angola.

Com vista a catalogação das lutas e dos movimentos sociais de 2015 a 2023, tencionamos
adotar o método de Análise de Eventos de Protesto (AEP) que é uma metodologia criada no
campo de estudos de movimentos sociais que permite analisar e compreender vários aspectos dos
protestos, como suas causas, caraterísticas, participantes e resultados.

Vários autores que escreveram sobre os movimentos sociais usaram este método nos
seus trabalhos, como por exemplo Olsak (1989), Klandermans e Staggenborg (2002), Krippendorff
(2004), Koopmans e Rucht, (2002), Franzosi (2004) e Hutter (2014).

Entretanto, pesquisadores de movimentos sociais usam artigos de jornais, documentos


governamentais, relatórios policiais e informações fornecidas por novas mídias digitais como suas
fontes textuais e estas nos permitem a operacionalização de variáveis tais como o local do protesto,
a duração, as táticas, os objetivos, a demografia dos participantes e as respostas do governo o local
do protesto, a duração, as táticas, os objetivos, a demografia dos participantes e as respostas do
governo.

Uma vez coletados os dados, partiremos para a análise e sistematização com base no
referencial teórico escolhido para fundamentação da pesquisa, com o objetivo de dar respostas à
luz do método escolhido às questões relativas ao objeto em questão visando confirmar ou não a
hipótese de pesquisa.

4. A REALIDADE ANGOLANA NO CONTEXTO PÓS-COLONIAL E O PAPEL DO ESTADO


NO DESENVOLVIMENTO DA ORDEM CAPITALISTA

A institucionalização do Estado Novo2 em Portugal e consequentemente a alteração dos


2 O Estado Novo foi um regime político autoritário que governou Portugal de 1933 a 1974. Foi estabelecido por
António de Oliveira Salazar, que se tornou o chefe do governo em 1932 e exerceu um controle autoritário sobre o país
até 1968, quando foi sucedido por Marcelo Caetano.

135
135
estatutos das suas colónias para províncias ultramarinas em 1951, bem como as mudanças políticas,
económicas e sociais causadas a partir de um esforço para evitar pressões internacionais no sentido
de iniciar o processo de descolonização, proporcionaram um ambiente potencialmente fértil para
mobilização dos movimentos anticoloniais em África.

No Conselho de Segurança das Nações Unidas, o ano de 1961 se inicia com destaques
preocupantes a respeito de Angola, principalmente a revolta dos camponeses na Baixa de Cassanje
em janeiro, a sublevação em Luanda na Cadeia de São Paulo em Fevereiro e a insurreição no norte
de Angola em Março.

Segundo Pearce (2017, p.58), “os portugueses reagiram às manifestações de resistência do


início da década de 1960 promovendo reformas e intensificando a repressão” ao mesmo tempo
esta questão “suscitou um voto do Conselho de Segurança (9 votos favoráveis e 2 abstenções)
convidando o governo português a suspender a repressão” (Mazrui; Wondji, 2010, p.1076).

Outro aspecto relevante é que antes da chegada dos colonizadores portugueses no século
XV, os reinos de Angola, como o Reino Lunda, Reino do Bailundo, Reino do Congo, o Reino do
Ndongo, Reino da Matamba, Reino dos Kwanhamas entre outros, já existiam como sociedades
organizadas, com suas próprias estruturas políticas, econômicas e sociais. Porém, a resistência
anticolonial muitas vezes visava preservar a independência e a autonomia desses reinos3.

Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos africanos foram recrutados para lutar em nome
de seus países colonizadores europeus. No entanto, esse serviço militar muitas vezes levou à
conscientização política e à aspiração por liberdade e independência. Muitos africanos começaram
a questionar o domínio colonial e a buscar formas de resistência e autodeterminação.

O término dos combates, no ano de 1945, produz efeitos imediatos: a França


e a Inglaterra perdem o seu “capital de intimidação”, adquirido há cerca de um
século em razão da sua potência e do seu prestígio. Os nacionalistas extraem
deste enfraquecimento um novo aporte a sua audácia e conseguem, graças
a sua capacidade de mobilização, tirar também todas as consequências do
desembarque anglo‑americano e das divisões francesas, ocorridos em Argel,
Rabat e Tunis. No fim da guerra, eles valorizam a participação dos seus países
ao lado dos Aliados para tornar efetivas as suas reivindicações (Mazrui;
Wondji, 2010, p.58).

A Segunda Guerra Mundial enfraqueceu significativamente as potências coloniais europeias,


tanto em termos de recursos econômicos quanto de legitimidade política. Isso abriu espaço para
um aumento da resistência anticolonial em várias partes da África, com movimentos nacionalistas
emergindo para exigir a independência e a autodeterminação.

3 A História de Angola pode ser dividida da seguinte forma: Civilizações Pré-Históricas e Proto-Históricas
(Comunidade Primitiva); período Pré-Colonial (com o desenvolvimento de novos modos de produção pré-capitalista,
semi-escravagista e semi-tributária). Pode-se convencionalmente admitir 1575 como marco cronológico do fim deste
período; Período do Mercantilismo Colonial (acumulação primitiva e posteriormente capitalista). Começa antes de
1575 e desenvolve-se até 1885; Período do Capitalismo Colonial (de 1885 a 1975); Período da Independência (desde
1975 aos nossos dias) (Henriques, 2004).

136
136
O anticolonialismo das grandes potências é, ao contrário, acolhido com
muita esperança. Os nacionalistas evocam, como haviam feito em 1918 com
os quatorze Pontos de Wilson, a Carta do Atlântico (14 de agosto de 1941),
a Declaração das Nações Unidas (1º de janeiro de 1941) e a Carta de São
Francisco. Eles tiram partido das tomadas de posição das grandes potências
e interpretam as suas declarações no sentido da emancipação dos povos
coloniais (Mazrui; Wondji, 2010, p.58).

No decurso da colonização, os europeus impuseram um sistema jurídico de discriminação


aos povos indígenas da África como parte de sua estratégia de dominação e exploração. Esse
sistema jurídico era caracterizado por leis e regulamentos que subjugaram os povos nativos em
benefício dos interesses coloniais.

A dualidade jurídica imposta na África colonizada refletia a ideologia


da superioridade racial branca e foi utilizada por todas as potências
colonizadoras, não obstante certas diferenças conceptuais e práticas. Assim,
havia indigènes e citoyens nas colónias francesas, subjets e citizens nas
colónias britânicas, “indígenas” e “cidadãos” nas colónias portuguesas e,
durante algum tempo, tribalisés e immatriculés na colônia belga do Congo.
Não era, portanto, apenas uma questão de status ou de situação de classe, mas
sim uma definição formal de direitos (e da falta deles) com implicações nos
vários aspectos da vida. A divisão jurídica, ao contrário do que argumentam
defensores do sistema colonial, não se baseava em primeira instância na
cultura e nos hábitos: os “brancos” podiam ser criminosos condenados,
analfabetos, muito pobres, bêbados, politicamente indesejáveis, mas eram
sempre “cidadãos”. Os “negros” e “seus descendentes” tinham de satisfazer
vários critérios económicos, culturais e políticos para deixarem de ser
“indígenas” e se tornarem “cidadãos” – e muito poucos conseguiam (Neto,
2015, p.121).

Em Angola, Portugal estabeleceu um sistema de controle social e político que incluía


políticas discriminatórias em relação aos povos indígenas, visando principalmente a manutenção
do domínio colonial e a exploração econômica dos recursos naturais da região. O estatuto do
indígena em Angola refletia essa política de discriminação e subjugação.

Esse Estatuto dos Indígenas explicitava que “os indivíduos de raça negra ou
dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do
comum daquela raça” não eram parte da nação portuguesa, e a sua integração
“de modo a constituírem um elemento essencial da administração” da colónia
dependeria de uma “transformação gradual dos seus usos e costumes”
(Artigo 1). Assim, não tinham “direitos políticos em relação a instituições
de carácter europeu” (Art. 9) e a administração da justiça regia-se “por
foro privativo, independente da organização portuguesa” (Art. 12) usando
tribunais específicos, os “Tribunais Privativos dos Indígenas” onde os juízes
eram as autoridades administrativas coloniais. A transição de “indígena”
para “cidadão” era deixada ao arbítrio das autoridades administrativas da
colônia (Neto, 2015, p.122).

137
137
No geral, o estatuto do indígena em Angola refletia a política colonial de Portugal, que
visava subordinar os povos indígenas ao controle e exploração colonial, enquanto privilegiava os
interesses econômicos e políticos das autoridades portuguesas e das elites locais colaboracionistas.
Essas políticas contribuíram para a opressão e exploração sistemáticas dos indígenas e para a
perpetuação do domínio colonial em Angola.

Com a conscientização política crescente nos outros países africanos, alimentou-se um


despertar nacionalista em toda Angola. Os Movimentos nacionalistas, tornaram-se cada vez mais
ativos na luta pela independência e pela autodeterminação dos povos. Foi assim que surgiu o
movimento “Vamos descobrir Angola” cujo os integrantes, segundo Santos (2007, p.33), “propunham
uma redescoberta dos valores culturais angolanos sufocados pela assimilação cultural”.

Todavia, este movimento ganhou notoriedade, sobretudo, quando alguns angolanos foram
estudar na Casa dos Estudantes do Império em Portugal e juntaram-se com africanos de outros
países de expressão portuguesa fortalecendo laços e estratégias de lutas. A par deste movimento,
estavam as igrejas Batista, Metodista e Congregacional por via das suas missões a fim de despertar
as comunidades para a autodeterminação.

Douglas Wheeler e René Pelissier na obra “História de Angola”, oferecem análises abrangentes
e perspicazes da história de Angola, explorando diferentes aspectos do desenvolvimento histórico
do país e suas implicações para o presente e o futuro. Suas ideias centrais ajudam a contextualizar
os eventos históricos e a compreender as complexidades da sociedade angolana ao longo do tempo.

Ao examinarem o contexto de conscientização política em Angola, os autores concluíram


que “este nacionalismo, que pretendia ser pan-angolano – ou seja, anti tribalista – permanecia, na
maior parte dos casos, um fenômeno elitista e urbano, faltando-lhe o apoio das grandes massas
rurais, sem o qual qualquer revolta nacional em Angola estava condenada ao insucesso” (Wheeler,
Pélissier, 2011, p.236).

Foi precisamente neste contexto em que emergiu a Frente Nacional de Libertação de


Angola (FNLA), que começou como União das Populações do Norte de Angola a partir de 1954,
depois se transformou na União das Populações de Angola em 1958, e, no início dos anos 60,
passou a ser designado por FNLA, formando o Governo Revolucionário no Exílio. Na mesma senda,
surgiu o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em 1961, como resultado de uma
fusão entre o Partido da Luta Unida dos Africanos, o Partido Comunista Angolano, o Movimento de
Independência de Angola, o Movimento de Libertação Nacional de Angola e do Movimento pela
Independência Nacional de Angola.

Cria-se mais tarde a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) em
1966 com um diferencial: todos os outros movimentos tinham sido criados fora de Angola, a
particularidade deste último é o fato de ter sido criado no interior de Angola por dissidentes da
FNLA e da Associação dos Tchokwes do Congo, Angola e da Rodésia.

O aparecimento desses movimentos enquanto entidades políticas devem


ser entendidos no contexto das mudanças políticas verificadas em Angola
em consequência do derrube da Primeira República portuguesa por António
de Oliveira Salazar, em 1962, e da subsequente criação do regime autoritário
do Estado Novo (Pearce, 2017, p.56).

138
138
É importante lembrar que as igrejas protestantes, conforme escrevemos anteriormente,
desempenharam um papel crucial na mobilização para a independência. Holden Roberto, líder da
FNLA, por exemplo, foi formado pela Igreja Baptista de onde seus parentes faziam parte; Agostinho
Neto líder do MPLA foi filho de um Pastor Metodista, e Jonas Savimbi, líder da UNITA, foi filho de
um Pastor Congregacionalista.

Segundo Luís (2021, p.129) com a chegada dos missionários protestantes ingleses e
americanos no país, acusaram “os congéneres católicos pelo atraso de Angola, uma decorrência
das políticas coloniais” pois para eles o país carecia de “melhores oportunidades quanto ao acesso
à religião, à educação, à saúde e ao bem-estar social”.

A Igreja Católica, neste momento, estava ligada ao regime colonial português, mas ainda
assim cabe destacar o cónego Manuel das Neves que, para Pacheco (2001), foi o mentor da
mobilização que culminou com a sublevação de 4 de fevereiro de 1961. Outrossim, vale destacar
também o Simão Gonçalves Toco e o Movimento Tocoísta4 no despertar da consciência para a luta
de libertação nacional.

Ademais, todo este processo foi facilitado também graças a independência do Congo
Democrático, país vizinho de Angola que conquistou a sua independência em 1960 e permitiu
que os movimentos de libertação de Angola desenvolvessem as suas atividades em seu território.
Outros países africanos foram importantes nesta fase, mas o Congo Democrático que tem uma
fronteira extensa com Angola foi o que mais contribuições forneceu tanto para a FNLA como para
o MPLA.

Neste ínterim, autoridades coloniais portuguesas recusaram a autodeterminação para


os angolanos o que levou anos de luta até porque a FNLA, o MPLA e a UNITA possuíam bases e
acampamentos onde organizavam suas operações.

Esses locais serviam como pontos de reunião, treinamento militar e centros de coordenação
das atividades de resistência. Igualmente, estes movimentos contra a autoridade colonial
implantavam durante a luta pela descolonização (nos anos 60 e 70) estruturas políticas para
governar as áreas libertadas e mobilizar apoiadores. Eles estabeleciam sistemas de governança
como comitês ou órgãos executivos para administrar os territórios sob seu controle e desenvolver
políticas de autodeterminação5. O Governo Revolucionário do Exílio é o melhor exemplo para
este caso. Sediado na República Democrática do Congo, este era composto por ministros e
representantes políticos nacionais e internacionais. Jonas Savimbi, por exemplo, foi o Ministro dos
Negócios Estrangeiros neste governo encabeçado por Holden Roberto.

4 O Tocoismo foi fundado por Simão Gonçalves Toco na década de 1940 e atraiu seguidores em várias regiões
de Angola. Este movimento combinava elementos do cristianismo com crenças tradicionais africanas e adotava uma
abordagem de autodeterminação e independência espiritual. No entanto, não estava diretamente ligado aos movi-
mentos de libertação armada, como o MPLA, a UNITA ou a FNLA, que lideraram a luta armada contra o colonialismo
português.
5 Existem várias obras que retratam o percurso histórico dos movimentos de libertação, alguns escritos por
membros e outros escritos por autores estrangeiros. Contudo, podemos destacar aqui a obra “O Pai do Nacionalismo
Angolano” de N´Ganga (2009) na qual retrata a vida e obra do líder de Holden Roberto, bem como o percurso histó-
rico da FNLA. A Associação Tchiweka de Documentação apresentou uma série de livros e documentos que retratam o
percurso histórico do MPLA, Lara (1997). Por parte da UNITA, Chiwale (2008), Muekalia (2013).

139
139
Importa acrescentar que a luta armada e a guerrilha foram estratégias-chave nos movimentos
pela descolonização em Angola. A FNLA, o MPLA e a UNITA realizavam ataques a postos militares e
infra estruturas coloniais, buscando enfraquecer o controle colonial por meio da resistência armada
e da mobilização das massas.

O MPLA nesta altura, por exemplo, detinha o Centro de Instrução Revolucionário (C.I.R) onde
eram formados os soldados política e militarmente, bem como uma rádio no Congo Brazzaville de
onde partilhavam conteúdos para os seus militantes e os demais.

De acordo com Rocha (2002, p.127), “todos os grupos nacionalistas produziram panfletos,
apelando à mobilização e exigindo a independência, e que eram encontrados pela madrugada nos
quintais, debaixo das portas ou pendurados nas árvores”.

De fato, os movimentos em Angola buscavam mobilizar o apoio popular para a causa da


independência, conscientizando as comunidades sobre a luta contra o colonialismo e engajando-
as em atividades de resistência de vários modos. Isso incluía mobilização política, atividades
educacionais, campanhas de conscientização pública e recrutamento de simpatizantes.

Vale, no entanto, acrescentar que estes movimentos pela descolonização em Angola


também buscaram apoio e solidariedade externa. Eles estabeleceram laços com outros movimentos
anticoloniais, governos e organizações internacionais em busca de suporte financeiro, político e
diplomático.

Sobre este assunto vários autores apresentaram contribuições muito valiosas como por
exemplo, Hodges (2003), Visentini (2012), Wheeler, Pélissier (2011), estes são unânimes em
reconhecer que o MPLA, durante a luta, contou com o apoio da União Soviética, de Cuba e de
outros países que eram liderados por governos do Bloco Soviético. Já a FNLA contava com o apoio
dos Estados Unidos da América e do ex. Zaire, enquanto a UNITA inicialmente contava com o apoio
da China e do Marrocos, e mais tarde passou a beneficiar de assistência logística dos Estados Unidos
e da África do Sul.

Num contexto marcado pela Guerra Fria, os movimentos buscavam alianças de acordo com
as possibilidades, e não propriamente porque comungavam os mesmos ideais. No desenvolvimento
deste estudo iremos mostrar como os movimentos posicionam-se hoje do ponto de vista ideológico,
mas antes precisamos apontar que a independência de Angola foi conquistada na sequência do
Golpe de 25 de Abril de 1975 em Portugal, protagonizado pelo Movimento das Forças Armadas
(MFA).

Com a queda do regime de Salazar e Marcelo Caetano em 1974, as novas autoridades


portuguesas mostraram-se favoráveis ao processo de independência das colônias. Nesta senda, os
Acordos de Alvor assinado pelo novo governo português e pelos líderes dos movimentos angolanos,
reconheceram a FNLA, MPLA e a UNITA como sendo “os únicos representantes legítimos do povo
angolano”.

A legitimidade política destes movimentos como escreveu Cravinho (2010, p.161)


“assentava no protagonismo da luta anticolonial [...] o mérito de haver desempenhado um papel
de protagonismo na realização do sonho da libertação do domínio colonial”. Daí a justificativa da

140
140
exclusão de outros Partidos Políticos e da Sociedade Civil nos Acordos de Alvor.

Nesta direção, foi constituído um governo de transição envolvendo os três movimentos


de libertação incluindo autoridade portuguesa, ao mesmo tempo que ficou acordado que as
eleições para a Constituinte deveriam ser realizadas no prazo de nove meses e a proclamação da
independência em 11 de novembro de 1975.

Em meio a disputas geopolíticas, os movimentos entraram em conflito, o MPLA com o apoio


do MFA, de Cuba e da U.R.S.S, proclamou de forma unilateral a independência de Angola, formou o
governo e, para solidificar o seu poder, foi adotado um regime político totalitário marxista-leninista
(1975-1991) concentrando-se em um partido único, uma assembleia do povo, uma Polícia Política
designada por Direção de Informação e Segurança de Angola (DISA), e um Conselho da Revolução
que desempenhava o papel dos Tribunais onde também estava institucionalizada a pena de morte.

Hodges (2003) oferece uma análise abrangente deste contexto de transição política e
econômica em Angola após a independência. Para ele, o MPLA

Adotou o marxismo-leninismo como ideologia oficial, em 1976, e transformou-


se em partido de vanguarda, assumindo a denominação de MPLA - Partido
do Trabalho (MPLA-PT). Levado a princípio pelo abandono das propriedades
e dos negócios dos colonos a empreender uma nacionalização parcial da
economia, o MPLA alargou a estatização das estruturas econômicas na
segunda metade da década de 1970 e tentou geri-las usando um sistema de
planeamento centralizado de aspiração soviética (Hodges, 2003, p.27).

Todos os atos do MPLA nesta altura eram justificados com subterfúgios pela existência de
problemas internos, agressão interna e externa, e, principalmente, a realidade africana marcada
por Golpes de Estado no pós-independência. Assim, por essas e outras razões:

Os cubanos ajudaram o MPLA a ganhar o controle de todo o país [...], mas


os esforços do regime para instaurar um Estado forte ficaram, no entanto,
comprometidos pela insuficiência de competências na Administração
Pública. A principal exceção foi a esfera militar, onde para enfrentar as várias
ameaças à segurança o regime constituiu Forças Armadas fortes com ajuda
soviética e as receitas geradas pelo petróleo. (Hodges, 2003, p. 26-27).

Nestas circunstâncias, era notória a formação de um governo central forte com autoridade
significativa sobre a tomada de decisões, sem oposição política de outros partidos políticos e
de organizações da sociedade civil. Para Antônio (2015, p.95), a supressão da livre competição
eleitoral, “aniquila o pluralismo de ideias e domestica os cidadãos ao discurso hegemônico”. Nestes
casos, “a violência e o clientelismo se constituem em importantes instrumentos de domesticação”.

Porém, a luta pela independência havia mobilizado inúmeros cidadãos e a sede de participar
na vida pública estava em voga. O governo que se apresentava inicialmente como um “legítimo
representante do povo” passou a se colocar como um ente inquestionável. Segundo Hodges (2003,
p.76), “no período de 1975-1976, desenvolveu-se nos bairros de Luanda um movimento baseado
no poder popular, sob liderança de um grupo de extrema-esquerda”.

141
141
O Poder Popular era coordenado pelos Comitês Amílcar Cabral, um grupo da Universidade
de Luanda que em nome do MPLA ocupavam os espaços deixados pelo regime autoritário de
Salazar e Marcelo Caetano. Este grupo posteriormente passou a ser conhecido como Organização
Comunista de Angola (OCA) e por alguns considerados de extrema esquerda.

Quando os dirigentes do MPLA chegaram a Luanda, meio ano depois da


revolução em Portugal, os CAC tinham lançado o Poder Popular, uma das suas
âncoras, com uma invejável facilidade de mobilização de massas. Agregavam
jovens de várias raças, grupos sociais e raízes culturais distintos, que se tinham
encontrado no movimento estudantil e nos bairros negros circundantes após
os massacres perpetrados por brancos racistas (Figueiredo, 2017, p.21).

No entanto, o processo de transição para a independência foi marcado por conflitos e


rivalidades entre diferentes facções dentro do MPLA, incluindo a ala liderada por Nito Alves e seus
aliados, incluindo José Van-Dúnem e Sita Vales, eram conhecidos por representar uma ala mais
radical e progressista dentro do MPLA, neste caso os coordenadores do então Poder Popular. Eles
eram críticos da liderança de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, acusando-o de
centralizar o poder e adotar uma abordagem autoritária.

Tal como nos outros países africanos, os governos pós-coloniais que “empreenderam uma
longa luta armada contra o imperialismo europeu e pela libertação nacional, utilizam hoje o domínio
dos códigos ocidentais como principal instrumento de dominação interna”. (Appiah, 1997, p.21).

Na realidade angolana, essa situação gerou tensões dentro do MPLA que atingiram o
auge em fevereiro de 1977, quando Nito Alves e seus seguidores foram removidos dos cargos
de liderança do partido e do governo. Isso desencadeou uma série de protestos e confrontos em
maio do mesmo ano na cidade capital Luanda, capital de Angola, onde os seguidores de Nito Alves
começaram a tomar o controle de várias instituições e órgãos de segurança.

O governo liderado por Agostinho Neto respondeu ao Poder Popular com uma violenta
repressão. Tropas Cubanas e a polícia angolana foram mobilizadas para esmagar os protestos e
prender os líderes do movimento. Milhares de pessoas foram presas, torturadas e executadas,
enquanto muitos outros fugiram para o exílio.

Frantz Fanon (1968), em suas análises sobre o período pós-colonial na África, expressou
críticas contundentes em relação aos anticoloniais e sua relação com o povo. Fanon observou que
muitos dos líderes e partidos que emergiram após a independência não conseguiram satisfazer as
aspirações populares ou promover uma verdadeira transformação social, e, em muitos casos, os
partidos pós-coloniais tornaram-se desconectados das massas populares e passaram a representar
interesses da classe dominante. Essa alienação da base popular resultou em uma lacuna entre os
líderes políticos e o povo, enfraquecendo a legitimidade e a eficácia dos governos pós-coloniais.
Em suas palavras:

Os partidos, que durante o combate atraíram a si o conjunto da nação,


decompõem-se. Os intelectuais que às vésperas da independência tinham
congregado o partido confirmam por seu comportamento atual que essa
união não tinha outro objetivo que o de participar da distribuição do bolo da

142
142
independência. O partido transforma-se num instrumento de êxito individual
(Fanon, 1968, p.141).

Ele observou ainda que muitos partidos adotaram práticas autoritárias e corruptas,
perpetuando assim as injustiças e desigualdades que existiam durante o período colonial.

Contudo, existe no interior do novo regime uma desigualdade no


enriquecimento e na monopolização. Alguns acumulam proveitos e revelam-
se brilhantes especialistas do oportunismo. Os favores ilegais multiplicam-
se, a corrupção triunfa, os costumes se degradam-se. Os corvos são agora
numerosos demais e vorazes demais em comparação com a pobreza do
espólio nacional. O partido, verdadeiro instrumento do poder entre as mãos
da burguesia, reforça o aparelho do Estado e determina o enquadramento
do povo. Sua imobilização. O partido ajuda o poder a conter o povo. É cada
vez mais, um instrumento de coerção nitidamente antidemocrático partido é
objetivamente, e às vezes subjetivamente, o cúmplice da burguesia mercantil
(Fanon, 1968, p.141).

Essa contribuição valiosa nos ajuda a analisar a Angola pós-colonial e como o partido governo
do MPLA tem sido incapaz de realizar as aspirações populares e de promover uma transformação
social. É importante acrescentar que o autor em seu estudo enfatizou a importância da participação
popular, da justiça social e da emancipação completa como elementos essenciais para a construção
de uma sociedade verdadeiramente livre e democrática na África.

Voltando para a realidade angolana pós-colonial, importa frisar que os acontecimentos de


maio de 1977 evidenciaram ainda as tensões políticas e sociais que persistiram após a independência
do país, moldando o curso futuro da política angolana.

Na sua obra intitulado “13 teses em minha defesa”, Nito Alves apresenta preocupações
ligadas à justiça social, justiça econômica e racial6 que estimularam a revolta popular. Contudo, o
autor aponta:

Só depois dos sangrentos acontecimentos de maio de 1977 e das purgas


subsequentes no partido, conhecidas como retificação é que o movimento
amplo do antigo MPLA se transformou num pequeno e disciplinado partido
de vanguarda, sob a designação de MPLA-Partido do Trabalho (MPLA-PT), no
primeiro congresso do partido, em dezembro de 1977 (Hodges, 2003, p. 77).

Uma outra contribuição valiosa sobre os acontecimentos de maio de 1977 tal como as
suas consequências na sociedade angolana atual, podem ser encontrados na obra de Jean-Michel
Mabeko Tali sobre “Dissidências e Poder de Estado: O MPLA perante a si próprio (1962-1977)”.
O autor analisa como o MPLA construiu sua identidade política e ideológica ao longo do tempo,
tal como as influências e evoluções ideológicas dentro do partido, desde suas raízes marxistas-
leninistas até adaptações contemporâneas para enfrentar desafios políticos e sociais.
6 Para ele “Angola só será verdadeiramente independente quando brancos, negros e mestiços passarem a
varrer juntos às ruas”. Esta frase foi dita num contexto pós independentes depois de constatar que alguns portugueses
ainda detinham o controle do país.

143
143
Contudo, enquanto o MPLA lutava consigo próprio, a UNITA renasceu no sudeste de Angola
reforçada com apoio dos Estados Unidos e da África do Sul para dar continuidade a guerra civil sob
pretexto de que durante os Acordos de Alvor de 1975 os movimentos reconhecidos como legítimos
representantes do povo angolano eram três e não fazia sentido o MPLA governar na lógica de
partido único.

A UNITA apresenta-se assim como o partido da paz e da democracia multipartidária. Ganha


a simpatia do Ocidente e consegue ter o controle de 73% do território nacional. O governo do
MPLA volta a ser vítima de contestação interna de vozes que defendiam o abandono da economia
centralizada.

Foi precisamente neste contexto em que realizaram o segundo congresso do partido


marcado por um ambiente de reformas econômicas que ficaram conhecidas como “Saneamento
Económico Financeiro”, mas ainda assim “o crescente reconhecimento da impossibilidade de uma
vitória militar sobre a UNITA encorajava as reformas políticas que possibilitaram o compromisso
com a reconciliação” (Hodges, 2003, p.29).

Nesta senda, em junho de 1990 o Comité Central do MPLA reuniu e decidiu abandonar o
sistema de partido único e permitiu uma concorrência política aberta com a UNITA e com outras
iniciativas políticas.

Segundo Hodges (2003, p.30), “estas reformas radicais implicaram uma significativa
democratização da vida política e criaram espaços para o desenvolvimento do setor privado e da
sociedade civil, que no anterior sistema tinham sido fortemente limitados”, mas elas surgem na
sequência de dois importantes acordos.

Acordo assinado aos 22 de dezembro de 1988 entre o MPLA (Governo de Angola), Cuba e
África do Sul, mediados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas na qual um dos principais
objetivos dos acordos era garantir a retirada gradual das tropas cubanas de Angola e encerrar o
conflito armado em Angola e promover a reconciliação nacional entre os diferentes grupos políticos
do país.

Depois destes acordos, os Estados Unidos comprometeram-se a reconhecer Angola como


um Estado soberano e deixaram de apoiar a UNITA, mas estes últimos sentindo-se excluídos das
negociações por via militar buscaram mostrar que ainda tinham forças para culminar com um novo
acordo em Bicesse.

Neste último, assinado em 1991, Portugal reaparece no cenário político angolano, mas
agora como mediador do conflito. Deste modo, os Acordos de Bicesse estabeleceram um processo
de transição para a democracia em Angola. Isso incluiu a realização de eleições multipartidárias, a
criação de instituições democráticas, como um parlamento e um sistema judiciário independente,
e a garantia de direitos civis e políticos para todos os cidadãos.

Assim sendo, as primeiras eleições legislativas e presidenciais foram realizadas em 1992


num contexto de desconfiança mútua entre os dois principais partidos políticos MPLA e a UNITA. O
país voltou à guerra civil e apenas terminou parcialmente em 2002. No entanto, é importante frisar
que quando se narra a história do país esquece-se do caso da Frente de Libertação de Cabinda

144
144
(FLEC), que desde os anos 60 tem estado a lutar para a independência da província angolana de
Cabinda.

Contudo, a assinatura dos acordos de Paz entre o MPLA e a UNITA em 2002 e em 2006 entre
o MPLA e a FLEC colocaram um MPLA numa situação de partido hegemônico, o vencedor da guerra.

Na sua narrativa retrospectiva da luta de libertação colonial, o MPLA percebe-se como o


único movimento de independência legítimo de Angola, e esta imagem é retratada em aliança com
os movimentos vencedores dos outros países lusófonos a Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO), Partido Áfricano para a Independência da Guiné Bissau e Cabo Verde PAIGC, Movimento
de Libertação de São Tomé e Príncipe.

Quanto à narrativa retrospectiva da guerra civil, o MPLA percebe-se como o partido da paz e
o garante da estabilidade política em Angola. Porém, esta realidade está presente em muitos países
africanos que até hoje são governados por partidos originários dos movimentos anti-colonial como
a African National Congress na África do Sul, a South West Africa People’s Organisation na Namíbia,
a Zimbabwe African National Union- Patriotic Front etc…

Neste seguimento, passaremos agora para a descrição da ordem capitalista em Angola


desenvolvida ao longo de séculos de colonização e industrialização, influenciada por uma variedade
de fatores, incluindo relações coloniais, investimentos estrangeiros e práticas comerciais globais.
Embora a ordem capitalista tenha contribuído para o crescimento econômico do país, também
gerou desigualdades e desafios sociais que continuam a ser enfrentados pela sociedade angolana.

Em seu trabalho “Angola: Um Estado Fracassado Bem-Sucedido”, David Sogge apresenta


uma análise crítica da situação política e econômica em Angola, explorando o paradoxo de um
Estado que, apesar de ter sucesso em certos aspectos, é considerado fracassado em outros. Sogge
argumenta que os vastos recursos naturais de Angola, especialmente o petróleo e os diamantes,
contribuíram para o fracasso do Estado ao invés de promover seu sucesso. Ele sugere que a
chamada “maldição dos recursos naturais” levou à corrupção, à má gestão econômica e à falta de
responsabilidade por parte do governo.

Os sistemas administrativos de Angola desenvolveram-se de acordo com o


direito português; esses sistemas eram frágeis. Por mais de 40 anos sob o jugo
ditatorial, e acrescido da estranha noção de sustentabilidade e legitimidade
do sistema colonial, o governo angolano tornou-se rígido, centralizado
e corrupto. Em zonas rurais, a presença do Estado, quando existia, era
rudimentar no melhor dos casos. Ao lado das instituições formais coexistiam
diversas normas informais do Estado policial português, privilégios para
funcionários e oficiais de baixo escalão, e corrupção em grande escala nos
altos escalões políticos e militares. A associação cívica resumia-se a algumas
igrejas, clubes de desporto e organizações de caridade. Estava vedado o
ativismo político na sociedade civil (Sogge, 2009, p.81).

Embora Angola seja rica em recursos naturais, Sogge observa que a maioria da população
continua a viver na pobreza e enfrenta falta de acesso a serviços básicos, como saúde e educação.
Segundo Sogge (2009, p.1), “os angolanos, entretanto, no seu dia-a-dia convivem há décadas

145
145
com outras feições menos aparentes da violência: repressão, marginalização e formas evitáveis
de pobreza, as quais contribuíram para subordinar os colonizados e organizar uma economia
predatória”.

Ele destaca ainda a desigualdade econômica como um dos principais desafios do país,
exacerbado pela má distribuição da riqueza e pela corrupção.

O alcance social do clientelismo não é compreensivo, e corre, portanto,


o risco de frustrar as crescentes expectativas dos pobres, que formam a
maioria da população. Pesquisas recentes apontam para o facto de que
apenas uma minoria crê que estão as suas vidas a melhorar. Se os angolanos
veem as coisas como os demais cidadãos do continente africano, então
provavelmente creem que a pobreza, na sua experiência, piorou (Sogge,
2009, p.81).

Na mesma linha de pensamento, a obra de Ricardo Soares de Oliveira intitulada “Magnífica


e Miserável: Angola desde a guerra civil”, o autor explora as contradições econômicas em Angola,
um país rico em recursos naturais, especialmente petróleo, mas que enfrenta altos níveis de
pobreza e desigualdade. Ele examina como a gestão dos recursos naturais, a corrupção e a falta de
diversificação econômica contribuíram para essas contradições.

Em suas palavras, “é através do poder do estado, seja diretamente, seja através de laços
familiares, amizades e outras redes sociais, que a elite tem acesso a oportunidades econômicas,
supre necessidades do capital e mantém uma indiferença total em relação a pressões regulatórias
e políticas” (Oliveira, 2013, p.208).

O autor destaca o papel central do petróleo na economia angolana e como isso influenciou
a política e a distribuição de poder no país. Ele analisa como a dependência do petróleo afetou a
governança, as instituições políticas e os padrões de desenvolvimento em Angola.

A extraordinária atividade econômica, alimentada pelo petróleo, que


se seguiu só pode ser descrita como a construção de um tipo particular
de capitalismo baseado mais em rendas e menos na atividade produtiva,
mas cuja profundidade e sofisticação é diferente da extração de recursos
realizada durante a guerra. Este capitalismo de características angolanas é
inevitavelmente político, no sentido em que está dependente do patrocínio
estatal, o qual garante o acesso a capital e a oportunidade lucrativas, e também
devido à intervenção abrangente, apesar de informal, do presidente. O poder
discricionário deste último substitui as instituições formais do capitalismo
(inexistentes em Angola) enquanto principal instância reguladora do novo
sistema (Oliveira, 2013, p.194).

Nestas condições, o país enfrenta desafios e oportunidades em termos de governança,


desenvolvimento econômico e estabilidade política. Estes desafios e oportunidades permitem o
surgimento de movimentos sociais que lutam por reformas profundas e mudanças estruturais em
várias áreas do Estado.

146
146
5. LUTAS E MOVIMENTOS SOCIAIS NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO EM ANGOLA

A História contemporânea de Angola é marcada por três momentos fundamentais que


começam com a luta pela independência envolvendo três principais atores políticos a destacar
a FNLA, o MPLA e a UNITA: a guerra civil de 1975 a 2002 entre o governo do MPLA e as forças
rebeldes da UNITA; a transição para a democracia que começa em 1991 com a assinatura do Acordo
de Bicesse e a aprovação da Constituição em 2010, e o surgimento de novos atores políticos com
realce ao Movimento Cívico.

Mas tudo começa em 1961 com as revoltas camponesas na Baixa de Cassanje, a sublevação
na penitenciária de São Paulo e a insurreição no norte de Angola. Depois disso, os movimentos pela
descolonização ganharam expressão e visibilidade, o que culminou em 1975 com o Acordo de Alvor
que deu origem à independência de Angola.

Após a independência, os movimentos de libertação continuaram a desempenhar um


papel importante na política angolana. O MPLA, como partido no poder, manteve sua influência,
enquanto a UNITA e a FNLA se tornaram partidos de oposição. No entanto, conflitos armados e
políticos persistiram entre esses grupos.

Libertos do verdadeiro colonizador, os movimentos anticolonialistas


usaram o anticolonialismo como arma de arremesso mútua. Para o
MPLA, a UNITA era um fantoche do regime do apartheid da África do Sul
e do Ocidente imperialista, enquanto, no entender da UNITA, o MPLA era
dirigido por mestiços descendentes dos antigos colonizadores e tornaram-
se um instrumento dos ímpios invasores cubanos (...) Os adeptos do MPLA
veem o seu partido como o único que verdadeiramente libertou Angola
do jugo colonial e como guardião da nação angolana contra uma investida
colonialista que tinha na UNITA o seu instrumento local. Para os seguidores
da UNITA, a credibilidade do seu movimento advém também da oposição ao
regime colonial português e da defesa de uma Angola negra africana e cristã
autêntica que estava a ser atacada por um estado ateu sediado em Luanda,
dominado por crioulos e instrumentalizado pelo império soviético. (Pearce,
2017, p.37-38).

Depois de 16 anos de Guerra Civil, isto é, de 1976 a 1991, MPLA abandonou formalmente o
marxismo-leninismo durante o terceiro congresso e na sequência foi aprovada, uma lei de revisão
constitucional à luz dos Acordos de Bicesse assinado entre o Governo e as forças rebeldes da UNITA,
e uma troika de países na qual faziam parte a Rússia, os Estados Unidos e Portugal.

A partir deste momento, Angola deixou de ser República Popular, o sistema político deixou
de ser de partido único e foram criadas leis sobre associações (Lei n⁰ 14/ 91), partidos políticos (Lei
n⁰ 15/ 91), o direito de associação (Lei n⁰ 16/ 91), a imprensa (Lei n⁰ 25/ 91) e o direito à greve (Lei
n⁰23/ 91) para permitir a convivência num contexto de democracia.

Além das mudanças políticas registradas, também ocorreram mudanças no setor da


economia influenciadas pelo Banco Mundial e pelo FMI naquilo que consideram de “reajustes

147
147
estruturais”. Porém, as consequências destas medidas estimularam o surgimento de lutas e
movimentos sociais no país.

Conforme a perspectiva marxista, os movimentos e lutas sociais são expressões da luta


de classes que se originam a partir das contradições existentes entre os interesses das diferentes
classes sociais e frações de classe, especialmente entre a classe trabalhadora e a classe dominante.
Essas contradições podem se manifestar em questões como condições de trabalho, salários, direitos
sociais, acesso a recursos e poder político.

Assim, em meados de 1991 emergiram novos partidos políticos, associações cívicas,


organizações não governamentais e diversos grupos culturais, além de importantes movimentos
sociais, refletindo os desafios e aspirações da sociedade angolana.

Importa salientar que o ano de 1991 marca o fim da Primeira República que teve início em
1975 com a proclamação da Independência e a partir de 1992, sobretudo com a realização das
primeiras eleições em Angola o país inaugura uma nova forma de convivência baseada no pluralismo
de ideias na qual o Partido-Estado passa a conviver com as outras forças políticas e também com
uma série de Igrejas, Organizações da Sociedade Civil e Organizações Não Governamentais.

No entanto, as eleições de 1992 foram marcadas por contestação dos resultados eleitorais
o que levou mais uma vez o país a mergulhar num conflito armado entre as forças governamentais
e as forças rebeldes da UNITA, mas nesta nova conjuntura política o governo passa a contar com o
apoio dos Estados Unidos num contexto em que a U.R.S.S tinha chegado ao fim.

Esses novos atores políticos em Angola, caso das Igrejas e Organizações da Sociedade Civil,
passaram a intervir ativamente apelando ao fim da Guerra, retorno da Paz e da reconciliação
nacional. Contudo, apenas em 2002 os conflitos armados terminaram parcialmente em 17
províncias (excetuando Cabinda) com a morte do líder da UNITA Jonas Savimbi.

Ante o exposto, neste estudo procuramos analisar as greves da classe trabalhadora, mas o
nosso foco será dado às manifestações e os protestos ocorridos entre o período de 2015 a 2023.

Ademais, a Constituição da República de Angola, promulgada em 2010, reconhece e protege


os direitos dos trabalhadores, incluindo o direito à greve. O Artigo 65º da Constituição estabelece
que “os trabalhadores têm direito a greve nos termos da lei”. Isso significa que os trabalhadores
têm o direito de interromper suas atividades como forma de protesto ou reivindicação, desde que
isso seja feito de acordo com a legislação aplicável na Constituição, na Lei sobre a greve nº 23/91,
Lei Geral do Trabalho n.º 7/15 e na Lei Sindical n.º 21-D/92.

Importa frisar que o Movimento sindicalista surgiu na sequência da independência no


contexto do monopartidarismo arrolado pelo governo como União Nacional dos Trabalhadores
Angolanos (UNTA), mas a partir dos anos 90 surgiram outras centrais sindicais fora da esfera do
Partido-Estado. Entre eles destacamos o Sindicato Nacional dos Professores (SINPROF), Sindicato
Nacional dos Enfermeiros (SINDEA) , Sindicato Nacional dos Médicos de Angola (SINMEA), Sindicato
dos Trabalhadores de Energia Elétrica (SINTEE), Sindicato dos Taxistas Angolanos (STA), Sindicato
Nacional dos Magistrados do Ministério Público (SNMNP), Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA)
e o Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Indústrias de Bebidas e Similares de Angola (SNTIBSA)

148
148
que representam os interesses da classe trabalhadora e lutam por melhores salários, condições de
trabalho e direitos laborais.

As manifestações e os protestos são formas comuns de expressão popular e contestação


política em Angola. O Artigo 47º da Constituição, estabelece que “os cidadãos têm o direito de
reunir-se pacificamente e sem armas, sem necessidade de autorização, para fins lícitos, incluindo a
defesa dos seus direitos e ações cívicas ou políticas”. Este artigo garante o direito dos cidadãos de
se reunirem livremente para expressar suas opiniões, participar em atividades políticas e sociais, e
defender seus interesses e é regulado pela Lei nº 16/91.

No entanto, as manifestações abordam uma variedade de questões, incluindo a alternância


política, corrupção, má governança, desigualdade econômica, direitos humanos, condições
de trabalho e acesso a serviços básicos. Nesta situação, grupos da sociedade civil, estudantes,
sindicatos e outros têm organizado protestos em todo o país para exigir mudanças e reformas.

Para Martins (2016, p.201), “os movimentos contestatários em curso são movimentos
progressivos, visando obter apoio cada vez maior da população”, de fato estes movimentos
articulam uma narrativa convincente sobre um futuro melhor, mais justo e igualitário, e oferecem
uma alternativa ao status quo estabelecido desde 1975. Em muitos casos, estes movimentos
dão voz aos membros da comunidade e lhes envolvem ativamente no processo de tomada de
decisões, ou seja, incentivam a participação popular e promovem responsabilização dos líderes e
representantes conforme acontece com o Movimento Cívico Mudei.

De igual modo, alguns movimentos (como o caso do Movimento Jovens pelas Autarquias,
Movimento Hip hop Terceira Divisão, Movimento Unidas Somos mais fortes, Associação Mudar
Viana, MOSAIKO Cultural) buscam empoderar os indivíduos, capacitando-os em matéria de
direitos humanos, cidadania e poder local, com vista a se tornarem agentes de mudança em suas
próprias comunidades. Eles mobilizam pessoas para a ação, organizando protestos, campanhas de
conscientização, eventos de base e outras formas de engajamento cívico.

Importa salientar que as redes sociais desempenham um papel significativo na mobilização e


organização de atividades de protesto e conscientização em Angola. Plataformas como o Facebook,
WhatsApp, Youtube, Tik tok, Twitter e blog´s são usadas para compartilhar informações, coordenar
ações e amplificar vozes de ativistas e defensores dos direitos humanos. O ativismo nas redes sociais
permite que os angolanos expressem suas preocupações e reivindicações de forma rápida e eficaz.

Os jovens têm desempenhado um papel cada vez mais ativo nas lutas sociais em Angola,
buscando mudanças políticas, econômicas e sociais. Movimentos de jovens, como o Movimento
Revolucionário, Movimento Hip hop Terceira Divisão, Movimento Ondjango Feminista, Movimento
Unidas Somos Mais Fortes, Movimento Ubuntu, Movimento de Jovens pelas Autarquias,
Movimento dos Estados Angolanos, Movimento Liberdade Já, Os 15+2, e Movimento dos Taxistas
e Mototaxistas, têm defendido uma maior participação política da juventude, oportunidades de
emprego, e acesso à educação de qualidade e melhores condições de vida.

A juventude angolana, sobretudo, desde 2011 tem se organizado em grupos e coletivos


para pressionar por suas demandas e contribuir para a transformação da sociedade de vários

149
149
modos. Com a crescente preocupação com questões ambientais e de desenvolvimento sustentável,
o ativismo ambiental tem ganhado destaque em Angola. Grupos e organizações ambientais têm
defendido a proteção dos recursos naturais, a conservação da biodiversidade, a gestão sustentável
dos recursos naturais e a mitigação das mudanças climáticas. O ativismo ambiental muitas vezes
se concentra na oposição a projetos de exploração de recursos naturais que podem ter impactos
negativos no meio ambiente e nas comunidades locais.

Igualmente, destacamos a mobilização comunitária que é uma forma importante de luta


social em Angola, onde as comunidades se organizam para abordar questões locais e defender
seus direitos. Isso inclui a formação de comitês de base, associações de moradores, cooperativas e
outros grupos para lidar com questões como acesso à água potável, saneamento, habitação, saúde
e educação. Desta forma de luta social, surgiu o Movimento de Jovens Pelas Autarquias (locais) que
luta por um lado pela descentralização do Poder para permitir a institucionalização das Autarquias
locais e por outro lado, capacitar a comunidade para participar ativamente nas eleições municipais
que estavam marcadas para 2020 e foram adiadas sine die.

Neste estudo, todos estes movimentos serão resumidos em “Movimento Revú7” ou “Geração
da Mudança” conforme são vulgarmente conhecidos e descritos por outros pesquisadores como
Miguel e Magalhães (2023), Blanes (2020), Dala (2016).

Os Revús podem ser descritos como uma confluência de ativistas de origens


díspares que se mobilizaram, pela primeira vez na história independente
de Angola, explicitamente contra o partido no poder do país (o MPLA) e o
presidente (até 2017, José Eduardo dos Santos). Embora demograficamente
residuais, os Revús conseguiram agitar a política nacional de forma
significativa, em particular no que diz respeito à responsabilização do regime
em termos de direitos humanos, transparência e justiça financeira (Blanes,
2020, n.p, tradução nossa).

Diante do exposto importa realçar que o Movimento Revú emergiu na sequência da


Primavera Árabe, enquanto um movimento de protesto que ocorreu em vários países do mundo
árabe a partir de 2010, desencadeado por uma série de fatores, incluindo insatisfação popular
com regimes autoritários, repressão política, desigualdade econômica, corrupção e falta de
oportunidades para os jovens.

Embora a Primavera Árabe tenha se concentrado principalmente nos países do norte da


África e do Oriente Médio, suas consequências também foram sentidas em Angola.

A Primavera Árabe serviu como uma inspiração para os movimentos de protesto em Angola,
onde a população enfrenta desafios semelhantes em relação à governação autoritária, pobreza,
desigualdade e corrupção. Embora os protestos em Angola não tenham alcançado a mesma escala
7 De acordo com Dala (2016, p.6) “trata-se de uma designação criada no quadro do típico linguajar angolano.
REVÚ é abreviatura da palavra REVOLUCIONÁRIO e seu significado abrange de facto todos os angolanos que se identifi-
cam no discurso e na ação abordados neste livro”. No entanto, “o movimento revolucionário, ou simplesmente “Revú”,
passou a simbolizar o conjunto de ativistas que organizaram e desenvolveram atos de protestos, além de grupos de
estudo e de críticas diretas ao governo nas redes sociais”. Importa acrescentar que Revú também foi pseudônimo do
proeminente rapper angolano vulgarmente conhecido como Keita Mayanda nos finais dos anos de 1990 e início dos
anos 2000.

150
150
que nos países árabes, eles foram influenciados pelo desejo de mudança e pela mobilização popular
observada durante a Primavera Árabe.

Na sua obra intitulada “Labirintos Mundiais: As revoluções pós-modernas e os caminhos


da incerteza global”, o ex-ministro do Interior e Diretor do Serviço de Inteligência e Segurança do
Estado Sebastião Martins, designou por “Primavera Angolana” e considerou que o objetivo dos
jovens angolanos envolvidos na onda de protestos que tiveram início no dia 7 de março de 2011,
visava

A introdução de profundas alterações ao regime político vigente, mais


concretamente a substituição do atual Presidente da República, a introdução
de reformas nas instituições democráticas e da forma como têm vindo a ser
assegurados os interesses coletivos. Para estes movimentos o modo como o
Governo tem conduzido o destino do país não é visto como o mais correto,
principalmente do ponto de vista democrático, objetivando-se, por isso, a
sua substituição (Martins, 2016, p.197)

Para o Bureau Político do MPLA, a convocação de manifestação soou como uma declaração
de guerra. Em declarações à Rádio Luanda Antena Comercial (LAC), no dia 15 de fevereiro de 2011,
o Secretário Geral do Partido na altura Dino Matrosse conclamou, entre outras coisas: “quem se
manifestar provocando distúrbios, vai apanhar!”

Na mesma senda, o Secretário Provincial de Luanda do MPLA, Bento Francisco Bento, num
ato político em Luanda vociferou: “Angola não é a Tunísia, Angola não é a Líbia!”.

Enquanto isso, o comunicado do Bureau Político do MPLA acusava os serviços de inteligência


do Ocidente, bem como grupos de pressão em Portugal, Itália, França, Bélgica, Grã-Bretanha e
Alemanha de serem as forças por trás da convocação da manifestação de 7 de março de 2011.

Perante estes objetivos, também estas unidades políticas, para que possam
alcançar os seus fins, carecem de estabelecer uma estratégia que se mostra
idónea para o efeito. Em primeiro lugar, importa relembrar a insuficiência
de recursos que permitam enfrentar diretamente o Governo, o que faz
com que os mesmos careçam de centrar a sua ação em métodos não
violentos, ou seja, mediante um estilo de ação indireta, que, através de uma
atuação ponderada e de um processo lento, prolongado, progressivo e de
descredibilização (Martins, 2016, p.197).

A manifestação convocada para 7 de março de 2011, marcou o início de uma nova era no
cenário político angolano. Sua convocatória foi feita via internet por um cidadão que optou por usar
os nomes dos líderes fundadores do MPLA, FNLA e da UNITA incluindo o nome do ex. Presidente
que estava a ser contestado. Agostinho Jonas Holden dos Santos foi assim que se identificou com
um presumível Movimento Revolucionário do Povo Lutador de Angola (MRPLA).

Contudo, esta convocação ganhou visibilidade quando o rapper Ikonoklasta (Luaty Beirão)
resolveu aparecer publicamente num concerto de hip hop no mês de fevereiro a abraçar a luta e a
confirmar a sua presença no dia 7 de março de 2011.

151
151
O Movimento Hip Hop tem desempenhado um papel significativo como forma de expressão
artística e ativismo político. Desde a sua emergência nos anos 80 e 90, o Movimento Hip Hop
Angolano tornou-se uma ferramenta poderosa para muitos jovens expressarem suas preocupações,
críticas sociais e políticas, e narrativas sobre a realidade do país.

Muitas letras de RAP (Rhythm and Poetry) produzidas no país, sobretudo, RAP Hardcore,
também conhecidas como Underground abordam questões como corrupção, má governação,
desigualdade econômica e social, destacando os desafios enfrentados pela população angolana.
Os artistas como Filhos da Ala Este, Pobres Sem Culpas, Hemoglobina, Conjunto Ngonguenha,
MCK, Movimento Hip Hop Terceira Divisão, Flagelo Urbano, CCC, 21. Soldado, Jaime MC, Brigadeiro
10 Pacotes, Kid MC, Movimento Monangambé, Decretório, MC N, Sarosh, Jazigo, Das Terapia,
Hepluzivo Mental, MP Crew, Mbonzo Lima muitas vezes usam suas músicas como plataforma para
denunciar injustiças e apontar falhas no sistema político e social8. Suas músicas servem de trilha
sonora na luta por liberdade e democracia em Angola tal como no tempo colonial o Semba foi a
trilha sonora na luta pela descolonização.

Diante da diversidade das lutas e movimentos sociais no contexto contemporâneo de


Angola e dos elementos teórico-conceituais acerca dos movimentos sociais, é importante destacar
que estes vêm desempenhando um papel fundamental para que haja mudanças sociais de várias
maneiras no país: exercem pressão sobre o governo e as instituições para adotarem políticas e
práticas que promovam a justiça social, a igualdade e os direitos humanos; influenciam a agenda
política, exigindo reformas legislativas e políticas que abordem as preocupações das comunidades
marginalizadas e desfavorecidas; desafiam as normas culturais e sociais existentes, promovendo
novas ideias, valores e comportamentos que contribuem para uma sociedade mais inclusiva e
progressista;ajudam a construir redes de solidariedade e cooperação entre pessoas e grupos que
compartilham interesses comuns. Eles promovem a união de diferentes comunidades e organizações
em torno de objetivos compartilhados, ampliando assim o alcance e o impacto das iniciativas que
visam profundas mudanças na realidade de Angola.

As formas de lutas que pretendemos analisar neste estudo são as manifestações e os


protestos a partir de 2015 até 2023, realizados em parte por movimentos sociais. Portanto, este
período corresponde ao contexto de crise acentuada devido a queda do preço do petróleo e
principalmente por ser o momento em que as instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e
o FMI) conseguiram impor suas medidas neoliberais com maior aceitação por parte do governo
Angolano.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Angola é uma República formalmente Presidencialista, onde o Presidente exerce considerável


autoridade executiva, apesar de haver Parlamento e tribunais, a natureza do regime político é
8 Cabe realçar que alguns pesquisadores brasileiros apresentaram contribuições valiosas sobre a relação entre
o Movimento Hip Hop e o Movimento Revú. Entre eles destacam-se Oliveira (2015) que escreveu sobre “o rap e o
ativismo pelos direitos humanos”; Santos (2019) sobre “a cultura hip-hop e os inimigos políticos da nova república” ,
Mendonça Júnior (2020) sobre o “RAP e ativismo político no espaço lusófono”.

152
152
autoritária consequente da longevidade do MPLA enquanto governo que detém o Poder de forma
hegemônica desde o ano de 1975.

O país enfrenta desafios significativos em termos de desenvolvimento social, com altos


índices de pobreza e desigualdade, com uma maioria da população vivendo em condições precárias,
com acesso limitado a serviços básicos como saúde, educação e água potável.

Em termos económicos, o país é altamente dependente do setor petrolífero, que representa


a maior parte das receitas de exportação e do orçamento do governo.No entanto, a queda dos
preços do petróleo em 2014 desencadeou uma crise econômica e fiscal significativa no país,
destacando a vulnerabilidade da economia angolana à volatilidade dos preços das commodities e
estimulou a sociedade a participar ativamente da vida pública o que deu origem ao surgimento de
lutas e movimentos sociais, sobretudo, de 2015 a 2023.

As lutas sociais têm contribuído para aumentar a conscientização sobre questões sociais e
políticas importantes entre a população angolana. Nesta senda, movimentos sociais têm surgido
para defender os direitos humanos, promover a igualdade de gênero, lutar contra a corrupção e
exigir melhores condições de vida.

As mobilizações sociais têm exercido pressão sobre o governo para implementar reformas
políticas, econômicas e sociais. Demandas por maior transparência, prestação de contas e
participação cidadã têm sido amplamente divulgadas por meio de protestos e manifestações.
Consequentemente, o governo responde às manifestações sociais com repressão e violência,
limitando o espaço para a expressão pública e a liberdade de associação. Muitas vezes, ativistas
e manifestantes enfrentam ameaças, assédio, detenções arbitrárias e, em alguns casos, violência
física. Em suma, as lutas sociais também enfrentam desafios relacionados às desigualdades
estruturais profundamente enraizadas na sociedade angolana. A desigualdade econômica, social
e racial pode limitar a representatividade e o alcance dos movimentos sociais, afetando sua
capacidade de mobilização e influência.

REFERÊNCIAS

ANTÓNIO, Nelson Domingos. Transição pela transação: Uma análise da democratização em Angola.
Rio de Janeiro: Polo Books, 2015.

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

BLANES, Ruy Llera. On the ‘Futility’ of Provocation and the Micro-Revolutions in Angola.
Anthropological Theory Commons. 2020 Url: http://www.at-commons.com/2020/10/16/on-the-
futility-of-provocation-and-the-micro-revolutions-in-angola/

CHIWALE, Samuel. Cruzei-me com a História. Sextante Editora, 2008.

153
153
CRAVINHO, João Gomes. Legitimidade Política em África in ROSAS, Fernando; OLIVEIRA, Pedro Aires
(Coord.) As Ditaduras Contemporâneas. Lisboa, Edições Colibri.2010.

DALA, Nuno Álvaro. O pensamento político dos jovens Revú: Discurso e acção. Edição Independente,
2016.

FANON, Franz. Os condenados da terra.Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1968.

FIGUEIREDO, Leonor. O fim da extrema esquerda em Angola:Como o MPLA dizimou os comités


Amilcar Cabral e a OCA (1974-1980). Lisboa: Guerra & Paz, 2017.

FRANK, André Gunder.; FUENTES, Marta. Dez teses acerca dos movimentos sociais. Lua Nova –
Revista de cultura e política, nº 17, junho de 1989, São Paulo.

FRANZOSI, Roberto. The Press as a Source of Socio-Historical Data: Issues in the Methodology of
Data Collection from Newspapers. Historical Methods, 1987.

FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e Liberdade. São Paulo: Nova Cultura, 1985.

GOHN, Maria da Glória. 500 anos de lutas sociais no Brasil: movimentos sociais, ONGs e Terceiro
Setor. In: Revista Mediações. Londrina. v. 5, n. 1, 2000 p. 11-40, jan./jun.

HENRIQUES, Isabel Castro. Território e Identidade: a construção da Angola colonial. Lisboa: Centro
de História da Universidade de Lisboa, 2004.

HODGES, Tony. Angola-Do Afro-estalinismo ao Capitalismo Selvagem. Cascais, Principia,2003.

HUTTER, Swen. Protest event analysis and its offspring. Research Gate, 2014. Disponível:https://
www.researchgate.net/publication/299890087_Protest_Event_Analysis_and_Its_Offspring.
Acessado aos 16 de Outubro de 2022.

KLANDERMANS, Bert, STAGGENBORG, Suzanne. ‘Introduction’, in Bert Klandermans and Suzanne


Staggenborg (eds.), Methods of Social Movement Research. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2002.

KONDER, Leonardo. O que é dialética. 28. ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

KOOPMANS, Ruud; RUCHT, Dieter. Protest Event Analizes. In: KLANDERMANS, Bert.; STAGGENBORG,
Suzanne. (eds). Methods of Social Movements Research. Minneapolis: University of Minnesota
Press, 2002.

KRIPPENDORFF, Klaus. Content analysis: An introduction to its methodology. Thousand Oaks: Sage,
2004.

LARA, Lúcio. Um amplo movimento: Itinerário do MPLA através de documentos e anotações.


Luanda: Associação Tchiweka de documentação,1997.

LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

154
154
LUÍS, João Baptista Gime. O contributo das missões protestantes e do tokoismo na libertação de
Angola. Revista Relegns: Thréskeia-UFPRV.10a 144, 2021.

MABEKO TALI, Jean-Michel. Dissidências e poder de Estado: O MPLA perante si próprio (1962-1977).
Luanda: Nzila, volume II, 2001.

MARTINS, Sebastião. Labirintos Mundiais: As revoluções pós-modernas e os caminhos da incerteza


global. Lisboa: Edições Sílabo, 2016.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Boitempo Editorial, s.d.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. 3. ed. São Paulo: Boitempo,
2014.

MAZRUI, Ali; WONDJI, Christophe. História geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO,
2010.

MELUCCI, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? Lua Nova, São Paulo, n.17, p. 49- 66,
1989.

MENDONÇA JÚNIOR Francisco Carlos Gomes. RAP e ativismo político no espaço lusófono: Estudos
de casos no Brasil, Portugal, Angola e Moçambique.Tese:Universidade de Coimbra, 2020.

MESSIANT, Christine. A Fundação Eduardo dos Santos (FESA): A propósito da “investida” da


sociedade civil pelo poder angolano. Lusotopie, XVII (2) | 2018, p.331-355.

MIGUEL, Oliveira Adão; MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. Os 15+2 e a memória educativa da
redemocratização em Angola. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, SP, v. 23, 2023 p. 1-15. Disponível
em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8674141 . Acesso em:
21 Mar. 2024 .

MILANI, Carlos. O princípio da participação social na gestão de políticas públicas locais: uma análise
de experiências latino-americanas e europeias. In RAP- Revista de Administração Pública, 42 (3),
mai.-jun. / 2008, p.551-579.Rio de Janeiro.

MINAYO, M. C. de S. (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18 ed. Petrópolis: Vozes,
2001.

MUEKALIA, Jardo. Angola a segunda Revolução: Memórias da luta pela Democracia. 4ª.Ed. Sextante
Editora, 2010.

NETO, Maria da Conceição. Maria do Huambo: Uma vida de “indígena”. Colonização, estatuto jurídico
e discriminação racial em Angola (1926-1961). África (São Paulo, 1978, Online), São Paulo, n. 35, p.
119-127, 2015.

NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão popular, 2011.

N´GANGA, João Paulo. Pai do Nacionalismo Angolano: As memórias de Holden Roberto. (1923-
1974).São Paulo: Parma, 2008.

155
155
OLIVEIRA, Ricardo Soares. Magnífica e miserável: Angola desde a guerra civil.Lisboa: Tinta da China,
2015.

OLSAK, Susan. Analysis of Events in the Study of Collective Action. Annual Review of Sociology,
vol.15, 1989.

PACHECO, Carlos. As sublevações de 1961 em Luanda: a figura do cónego Manuel Joaquim Mendes
das Neves in Angola 40 anos de Guerra- Encontros de divulgação em estudos sociais (sd).

PEARCE, Justin. A Guerra civil em Angola 1975-2002. Lisboa:Tinta da China, 2017.

ROCHA, Edmundo. Angola: contribuição ao estudo da génese do nacionalismo moderno angolano


(período 1950-1964) : testemunho e estudo documental. Vol.II. Luanda: Kilombelombe, 2002.

SANTOS, Donizeth Aparecido dos. Da ruptura à consolidação: um esboço do percurso literário


angolano de 1948 a 1975. Publicações UEPG Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas., Linguas,
Letras e Artes, Ponta Grossa, 15 (1) 31-42, jun. 2007.

SANTOS, Jaqueline Lima. Imaginando uma angola pós-colonial: A cultura hip-hop e os inimigos
políticos da Nova República. Tese: UNICAMP, 2019.

SOGGE, David. Angola:Um “Estado Fracassado” bem-bucedido.Madrid: FRIDE, 2009.

TOURAINE, Alain. Um novo paradigma-Para compreender o mundo hoje. Petrópolis: Vozes, 2006.

¿Podremos vivir juntos? Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1997.

VISENTINI, Paulo Fagundes. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo:
Editora Unesp, 2012.

WHEELER, Douglas; PÉLISSIER, René. História de Angola. Lisboa: Tinta-da-China, 2009.

156
156
AGENTE INDÍGENA DE SAÚDE E AGENTE INDÍGENA DE SANEAMENTO:
regulamentação da profissão como ação necessária ao fortalecimento da PNASPI

Débora Barros dos Santos


Camila Tenório Ferreira

1. INTRODUÇÃO

Até o estabelecimento do atual sistema de atenção à saúde dos povos indígenas, foram
necessários diversos movimentos de luta e articulação, através dos quais foi construída a noção de
atenção diferenciada aos povos indígenas do Brasil. Segundo Langdon, Diehl e Dias-Scopel (2014,
p. 213) tal noção se deu “com base com base nos princípios e modelos propostos em diferentes
documentos, como a Declaração de Alma-Ata de 1978, a Constituição Brasileira de 1988 e a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho de 2005.

Em 1986, aconteceu em Brasília a I Conferência Nacional de Proteção à Saúde do Índio,


onde foi reiterada a importância de um modelo diferenciado que garantisse o direito à saúde de
forma integral e universal, respeitando a diversidade dos povos e a necessidade da participação do
Movimento Indígena em todo o processo de discussão e construção. Nessa primeira conferência
propuseram, pela primeira vez, o modelo dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI, no
âmbito do Ministério da Saúde - MS, e não mais a partir da centralização da política indigenista
conduzida pela Fundação Nacional do Índio - FUNAI1.

A transição ocorreu em 1991, por meio do decreto nº 23/91, sendo criada posteriormente
a Comissão Intersetorial de Saúde do Índio, composta por representantes do MS, Ministério da
Justiça, universidades, Organizações não governamentais - ONGs e lideranças indígenas, com o
objetivo de prestar assessoria ao Conselho Nacional de Saúde na elaboração das diretrizes de
políticas governamentais relativas à saúde indígena.

Em 1999 foi sancionada a Lei nº 9.836, também conhecida como Lei Arouca, que instituiu o
Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - SasiSUS, e criou o modelo de atenção à saúde
indígena, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. O SasiSUS representa a concretização dos
direitos conquistados na CF88 no que diz respeito à equidade e justiça para os povos indígenas. É
constituído pelos DSEI, que é uma forma de estruturação dos serviços de saúde implantada dentro
das terras indígenas, seguindo os critérios geográficos, demográficos e culturais.

Em 2002, a partir da Portaria do MS n° 254, de 31 de janeiro, foi instituída a Política Nacional


de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas - PNASPI. Esta Política representa uma grande conquista do
Movimento Indígena, resultado do processo de luta pelo modelo de atenção à saúde diferenciado;
e objetiva garantir o acesso integral dos povos indígenas aos serviços de saúde, como prevê os

1 Em 01 de janeiro de 2023, por meio de medida provisória publicada no Diário Oficial da União, a FUNAI passa
a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas. A alteração foi reivindicada pelo Grupo Técnico Povos Indígenas,
da equipe de transição do governo, por compreender que, em suma, o termo “índio” não representa a diversidade
étnica dos povos indígenas do Brasil.

157
157
princípios e diretrizes do SUS, de forma a considerar sua diversidade social, cultural, geográfica,
história e política, além de reconhecer a importância e a eficácia de sua medicina tradicional,
respeitando tais práticas, bem como o direito de manifestar sua cultura durante os processos de
tratamento ou assistência.

Para orientar a execução das ações, a PNASPI estabelece algumas diretrizes, como a
organização dos serviços de atenção à saúde dos povos indígenas na forma de DSEI e Pólos-Base, no
nível local, onde a atenção primária e os serviços de referência se situam; a preparação de recursos
humanos para atuação em contexto intercultural; monitoramento das ações de saúde dirigidas
aos povos indígenas; articulação dos sistemas tradicionais indígenas de saúde; promoção do uso
adequado e racional de medicamentos; promoção de ações específicas em situações especiais;
promoção da ética na pesquisa e nas ações de atenção à saúde envolvendo comunidades indígenas;
promoção de ambientes saudáveis e proteção da saúde indígena e controle social (BRASIL, 2002).

De acordo com a PNASPI, a organização dos DSEI deve contar com uma equipe
multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e
agentes indígenas de saúde, contando com a participação sistemática de antropólogos, educadores,
engenheiros sanitaristas e outros especialistas e técnicos considerados necessários (BRASIL, 2002).

A PNASPI ressalta a importância do papel do Agente indígena de Saúde - AIS como trabalhador
fundamental para a execução das ações de atenção primária nas aldeias, sendo de sua atribuição
desenvolver a mediação entre a equipe como um todo e a população indígena. Para isso, reforça
a necessidade da qualificação dos AIS a partir de uma formação estratégica, a fim de promover a
interculturalidade2 no serviço e a articulação entre os sistemas indígenas de saúde (BRASIL, 2002).
Entretanto, ao longo dos 22 anos de PNASPI, a formação de AIS e AISAN não se estabeleceu como
preconizado, e o que temos observado é um processo de desvalorização e desmobilização desses
profissionais.

2. HISTÓRICO DE ATUAÇÃO DO AIS E AISAN

Na saúde indígena, a inclusão dos AIS na atenção primária se deu através das universidades
e ONGs a partir da década de 1980, registrando experiências em locais como o Acre, Rio Negro,
Alto Solimões e Xingu, e envolvendo a formação de indígenas em atividades de atenção básica em
situações em que não havia outros profissionais ou para atender surtos de doenças epidêmicas.
Com a criação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS em 1991, indígenas também

2 O conceito de interculturalidade surge para distinguir-se dos conceitos de multiculturalidade e pluricultura-


lidade. Melhor compreendido como uma concepção, visa no campo educacional trazer à tona os conflitos históricos
perpassados pela hierarquização racial e suas consequências, produtos do colonialismo, ao mesmo tempo em que pro-
põe relações ontológicas, filosóficas, epistemológicas, econômicas e políticas menos assimétricas entre as sociedades
nacionais hegemônicas e os grupos racialmente marginalizados (DO NASCIMENTO, 2014, p. 2). De acordo com Fleuri
(2003), nos países da América Latina, a emergência das identidades indígenas na luta pela defesa de seus direitos
políticos e culturais, especialmente no que tange aos territórios ancestrais e à revalorização de suas línguas através de
programas educativos adequados, produz o surgimento das propostas de trabalho intercultural, distanciando-se da
lógica compensatória homogeneizante.

158
158
foram treinados e deixaram de trabalhar voluntariamente para serem contratados pelos municípios
e atuarem nos territórios indígenas, sendo também contratados como Agentes Comunitários de
Saúde - ACS, pelo então Programa Saúde da Família - PSF, a partir de 1994. Em 1996, a Coordenação
de Saúde do Índio, da Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, divulgou uma proposta de diretrizes
para a formação dos AIS, definindo-os como figuras fundamentais na mediação dos serviços de
saúde. Outro documento divulgado pela FUNASA em 1999 buscou normatizar a implantação
do Programa de Agentes Indígenas de Saúde como parte do processo de implantação dos DSEI
(LANGDON et al., 2006).

No entanto, foi somente com a criação do SasiSUS, através da Lei Arouca em 1999, que o
papel do AIS ganhou destaque, e sua atuação passou a ser oficializada (LEITE; GUGELMIN; FERRI,
2016). A institucionalização do AIS como componente das Equipes Multiprofissionais de Saúde
Indígena (EMSI), prestadoras de serviços de atenção primária nas aldeias, é considerada como
uma estratégia desenvolvida para alcançar os objetivos da atenção diferenciada à saúde indígena
pautada pelo movimento indígena e delineada como uma distinção na qualidade dos serviços.
Tal institucionalização atende demandas como a criação de cargos assalariados para membros da
comunidade indígena; a ausência de profissionais de saúde no território indígena; a mediação das
relações interétnicas (LANGDON et al., 2006; LANGDON; DIEHL; DIAS-SCOPEL, 2014).

Os AIS são o elo entre os saberes tradicionais, sua língua e cultura e entre os membros
da comunidade e os da EMSI, pois são os únicos que realizam o contato regular e constante da
população indígena aldeada com os profissionais de saúde (LANGDON et al., 2006; LANGDON;
DIEHL; DIAS-SCOPEL, 2014). Sua principal atribuição é:

o exercício de atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde


voltadas à população indígena, mediante ações domiciliares ou comunitárias,
individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes
do SUS e do SasiSUS e sob supervisão do órgão distrital e federal responsável
pela gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (BRASIL, 2019).

Também em 1999, a FUNASA, então responsável pela execução da PNASPI, assumiu a


atribuição de ampliar a cobertura de abastecimento de água nos territórios indígenas, assim como
de manter em funcionamento os sistemas de abastecimento de água já existentes. No momento, a
FUNASA discutia o processo de formação dos AIS e decidiu contratar e formar em serviço agentes
para atuar no funcionamento dos sistemas de abastecimento de água, o que deu surgimento, no
ano 2000, ao Agente Indígena de Saneamento - AISAN.

Para serem contratados, além da existência de sistema de água que necessitasse de


operação, outras atribuições relacionadas ao saneamento ambiental integrado à atenção básica
foram delineadas para a atuação do AISAN, ligadas ao esgotamento sanitário, resíduos sólidos,
bem como ações educativas. “Os critérios de seleção do AISAN e a indicação desses Agentes
pelas próprias comunidades têm sido discutidos nas Conferências Nacionais de Saúde Indígena”
(DE MELO, 2016, p. 35). Apesar da semelhança com o AIS, a começar pela nomenclatura “Agente
Indígena de”, enquanto o AIS cuida diretamente da saúde das pessoas, o AISAN cuida da saúde
do ambiente em que essas pessoas vivem. Significa, portanto, que o trabalho dos dois Agentes
Indígenas são complementares entre si e apresentam como foco principal a promoção da saúde
das pessoas nos territórios indígenas.

159
159
Compreende-se que, apesar de a PNASPI não mencionar o AISAN (já que no momento
da criação da Política, a discussão sobre sua inserção na EMSI fosse embrionária), a garantia da
concretização do princípio da Atenção Diferenciada na Saúde Indígena, conforme destacado na
Política, só ocorre na atuação conjunta entre o AIS e o AISAN. Assim como ao AIS, ao AISAN são
atribuídas seis competências específicas de atuação, sendo a sua principal atribuição:

o exercício de atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde,


especificamente, quanto ao saneamento básico e ambiental, voltadas
à população indígena, mediante ações domiciliares ou comunitárias,
individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes
do SUS e do SasiSUS, das diretrizes nacionais e políticas para o saneamento
básico e sob supervisão do órgão distrital e federal responsável pela gestão
do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (BRASIL, 2019).

Em 2004 aconteceu a aprovação das diretrizes da gestão da PNASPI, através da Portaria


nº 70, de 20 de janeiro, que ratificou a presença dos AIS e incluiu, oficialmente, os AISAN como
agentes do trabalho na estrutura do DSEI (BRASIL, 2004). Em seguida, em 4 de julho de 2005,
através da Portaria nº 1.088, AIS e AISAN passam a integrar o Núcleo Básico de Atenção à Saúde
Indígena, passando a compor a EMSI, o que é ratificado pela Portaria nº 2.656, de 17 de outubro
2007 (BRASIL, 2005; 2007).

Fruto de reivindicações históricas dos povos indígenas foi criada, na estrutura organizacional
do MS, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), com a responsabilidade de coordenar a
PNASPI e todo o processo de gestão do SasiSUS, mediante a Lei nº 12.314, de 19 de agosto de 2010,
posteriormente regulamentada pelos Decretos nº 7.336, de 19 de outubro de 2010 e nº 7.797 de
30 de agosto de 2012.

Segundo dados atuais da Sesai (2024), existem hoje cerca de cinco mil AIS e dois mil e
quinhentos AISAN, atendendo 526 etnias e cerca de sete mil aldeias, e apesar do histórico do
processo de trabalho destes profissionais remontar à década de 1980, seu reconhecimento como
categorias profissionais ainda é motivo de muitas discussões.

3. REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO

Considerados como Trabalhadores Comunitários da Saúde - TCS por apresentarem como


característica comum serem pessoas provenientes e residentes das comunidades nas quais se
desenvolvem as ações de saúde (GARNELO; SAMPAIO; PONTES, 2019), ou simplesmente como
Agentes de Saúde - AS, podemos perceber semelhanças históricas entre o surgimento dos ACS, AIS
e AISAN, embora cada trajetória carregue especificidades.

Como se sabe, o AIS já foi contratado como ACS e, para além disso, as próprias atribuições
dos AIS sofreram influências do programa de ACS. Mas as similaridades não progrediram juntas,
uma vez que enquanto os ACS tiveram sua profissão oficializada em 2002, por meio das Leis nº
10.507/2002, nº 11.350/2006 e nº 14.536/2023.

160
160
Para Garnelo, Sampaio e Pontes (2019, p. 10), os AIS e AISAN “permanecem isolados e invisíveis
para o restante do Sistema Único de Saúde”. Tal fato ocorre não por falta de reconhecimento. Em
novembro de 2016, Maher e Cometto (2016) destacaram, no editorial do Boletim da Organização
Mundial da Saúde, os AIS, junto aos ACS, como atores fundamentais “para o alcance do acesso
universal aos serviços de saúde e para a distribuição equitativa de ações de promoção da saúde,
prevenção de doenças e ações curativas, principalmente no âmbito da saúde materno-infantil e das
infecções transmissíveis”.

Na contramão do que ocorreu com os ACS, o que os AIS e AISAN conquistaram até o momento
foi a inclusão das duas categorias na Classificação Brasileira de Ocupações - CBO, do Ministério do
Trabalho e Emprego, na categoria dos Trabalhadores em serviços de promoção e apoio à saúde3,
“sob n° 5151-25 (AIS) e n° 5151-30 (AISAN) mas não gozam das mesmas prerrogativas profissionais
dos ACS. Faz-se necessário o reconhecimento de sua própria categoria” (BRASIL, 2019).

Vale ressaltar, ainda, que o trabalho dos AIS e AISAN é uma temática constante de discussão
nas Conferências Nacionais de Saúde Indígena, associada à necessidade de seu reconhecimento
como categoria profissional, definição de suas atribuições e perfil técnico, a denúncia das situações
trabalhistas precárias, sua inserção social, a importância da criação de estratégias para aumentar
sua escolaridade e oportunizar formação e educação permanente (BRASIL, 2014; LEITE; GUGELMIN;
FERRI, 2016). Compreende-se o papel destes Agentes como único e estratégico, fazendo o elo entre
os membros não indígenas das EMSI sobre as particularidades socioculturais e históricas de seu
povo, “contribuindo para diminuir o seu desconhecimento, o que limita seriamente as possibilidades
de uma atenção à saúde sensível às diferenças” (BRASIL, 2019).

Na redação de Emenda à Medida Provisória nº 827, de 19 de abril de 2018, que altera a Lei nº
11.350/2006, quanto aos direitos dos ACS e dos ACE, o Senador Telmário Mota reforça que, apesar
de desempenharem papel praticamente idêntica à dos ACS, com acréscimo dos conhecimentos da
realidade e das práticas indígenas, os AIS e AISAN não contam com uma legislação específica que
lhes ofereça proteção e estabeleça, com clareza suas responsabilidades.

O artigo 2º da referida Emenda, parágrafo 6º define: “Os Agentes Indígenas de Saúde e os


Agentes Indígenas de Saneamento são considerados Agentes Comunitários de Saúde para os fins
desta Lei” (BRASIL, 2018). Para o Senador, “nada mais justo do que estender a esses profissionais
as mesmas prerrogativas dos Agentes Comunitários de Saúde, tendo em vista a equivalência de
atribuições”, e afirma que a Emenda objetiva corrigir uma injustiça praticada contra os AIS e AISAN.

Segundo Joenia Wapichana, atual presidenta da FUNAI e então Deputada Federal, o


reconhecimento dos AIS e AISAN “como categorias profissionais é um passo importante para
consolidar a atuação destes profissionais e qualificar as suas condições de trabalho, remuneração,
direitos trabalhistas, papel nas equipes, relações de trabalho e formação”, texto que consta no

3 Os trabalhadores em serviços de promoção e apoio à saúde, visitam domicílios periodicamente; orientam a


comunidade para promoção da saúde; assistem pacientes, dispensando-lhes cuidados simples de saúde, sob orien-
tação e supervisão de profissionais da saúde; rastreiam focos de doenças específicas; realizam partos; promovem
educação sanitária ambiental; participam de campanhas preventivas; incentivam atividades comunitárias; promovem
comunicação entre unidades de saúde, autoridades e comunidade; realizam manutenção dos sistemas de abasteci-
mento de água; executam tarefas administrativas; verificam a cinemática da cena na emergência; socorrem as vítimas
e realizam ações de controle de endemias (BRASIL, 2019).

161
161
Projeto de Lei n° 3.514, de 2019, que propõe a regulamentação da profissão dos Agentes Indígenas
no âmbito do SasiSUS. “A lei vai ao encontro da nossa Constituição Federal que consagra aos povos
indígenas o direito à sua organização social, à sua língua, costumes e tradições e contribui para a
valorização da diversidade cultural brasileira”.

Mas temos observado a morosidade no processo de tramitação do PL e podemos


considerar uma intencionalidade. Foi explícita a política antiindígena do governo Bolsonaro, e
nesta direção a política de Saúde Indígena foi um dos alvos, sofrendo ataques desde a proposição
de municipalização da sua execução a campanhas para descaracterização do Subsistema. Nesse
contexto de desmonte não é vantajoso regulamentar uma categoria profissional tão importante
para a execução da PNASPI. Recentemente foi aprovado o requerimento n° 14/2024, que requer
a realização de Audiência Pública para debater o PL 3.514/2019, e a SESAI, sobretudo o controle
social da saúde indígena, no âmbito do Fórum de Presidentes de Condisi - FPCondisi tem um papel
fundamental na mobilização para pautar a importância da aprovação do PL 3.514/2019.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável, diante das consequências do processo de desmonte sofrido pela Saúde Indígena
durante os governos Temer e Bolsonaro, a necessidade de fortalecimento da PNASPI e do SasiSUS,
bem como a importância da participação da população indígena na reconstrução e fortalecimento
da Política. O princípio da interculturalidade, o respeito à diversidade cultural e cosmológica dos
povos indígenas permeia todas as diretrizes da Política, sendo os AIS e AISAN os principais Agentes
promotores, mas vêm tendo seu protagonismo apagado. A regulamentação da profissão representa
a consolidação da luta pelo reconhecimento desse protagonismo e pela garantia da participação
dos povos indígenas em todo o processo, garantindo assim a efetivação da PNASPI.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 3.514, de 2019. Regulamenta a profissão de Agente
Indígena de Saúde (AIS) e Agente Indígena de Saneamento (AISAN), no âmbito do Subsistema de
Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), e dá outras providências.

______. Ministério da Saúde. Portaria nº 70, de 20 de janeiro de 2004. Aprova as Diretrizes da


Gestão da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena.

______. Portaria nº 1.088, de 4 de julho de 2005. Dispõe sobre a definição dos valores do incentivo
financeiro de atenção básica de saúde aos povos indígenas e sobre a composição e organização das
equipes multidisciplinares de atenção à saúde indígena.

______. Portaria nº 2.656, de 17 de outubro de 2007. Dispõe sobre as responsabilidades na


prestação da atenção à saúde dos povos indígenas, no Ministério da Saúde e regulamentação dos
Incentivos de Atenção Básica e Especializada aos Povos Indígenas.

162
162
______. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.
2. ed. Brasília: Fundação Nacional de Saúde, 2002.

BRASIL. Senado Federal. Emenda à MPV nº 827, de 2018.

DE MELO, D. M. V. C. O processo de trabalho do AISAN integrado à EMSI. In: BRASIL. Programa de


Qualificação de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) –
Brasília, 2016.

DO NASCIMENTO, A. M. Interculturalidade: apontamentos conceituais e alternativa para a educação


bilíngue. Revista Sures, n. 3, 2014.

FLEURI, R. M. Intercultura e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 23, mai/
ago, 2003, p.16-35.

FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. Formação de agentes indígenas de saúde. Brasília: Departamento


de Operações, Coordenação de Saúde do Índio, Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde;
1999.

GARNELO, L.; SAMPAIO, S. S.; PONTES, A. L. O trabalho e a formação dos agentes comunitários de
saúde e dos agentes indígenas de saúde. In: Atenção diferenciada: a formação técnica de agentes
indígenas de saúde do Alto Rio Negro [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2019, pp. 13-24.

LANGDON, E. J.; DIEHL, E. E.; DIAS-SCOPEL, R. P. O Papel e a Formação dos Agentes Indígenas de Saúde
na Atenção Diferenciada à Saúde dos Povos Indígenas Brasileiros. In: TEIXEIRA, C. C.; GARNELO, L.
comps. Saúde Indígena em perspectiva: explorando suas matrizes históricas e ideológicas [online].
Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2014, pp. 213-239.

LANGDON, E. J. et al. A participação dos agentes indígenas de saúde nos serviços de atenção à
saúde: a experiência em Santa Catarina, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, p.
2637-2646, 2006.

LEITE, M. S.; GUGELMIN, S. A.; FERRI, E. In: BRASIL. Programa de Qualificação de Agentes Indígenas
de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) – Brasília, 2016.

MAHER, D.; COMETTO, G. Research on community-based health workers is needed to achieve the
sustainable development goals. Bulletin of World Health Organization, 94: 786, 2016.

WHO. World Health Organization. Formulating strategies for health for all by the year 2000. Guiding
principles and essential issues. Geneva: World Health Organization; 1979.

163
163
ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR:
expressões de capacitismo na Universidade de Brasília

Thaís Kristosch Imperatori


Ariane Miguel Pereira de Azevedo
Elissa Correia de Assunção Soares

1. INTRODUÇÃO

As matrículas de pessoas com deficiência na educação superior brasileira têm se ampliado


nos últimos anos, especialmente após a implementação da Lei nº 13.409/2016, que garantiu a esse
público, juntamente com pretos, pardos, indígenas e quilombolas, cotas nos processos seletivos
para ingresso nos cursos de graduação nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES).
Dados do Censo da Educação Superior de 2016 (INEP, 2018) registravam a existência de 35.891
matrículas de estudantes de graduação declarados com algum tipo de deficiência, transtorno
global do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação, o que correspondia a 0,4% do total
de matrículas. Em 2022, o número de matrículas mais que dobrou, somando 79.262 discentes e
representando 0,83% (INEP, 2024).

Essa realidade impõe desafios para a permanência, a aprendizagem, a participação e a


diplomação de alunos com deficiência, com a garantia de recursos de acessibilidade e de processos
pedagógicos efetivamente inclusivos. Nas IFES, destaca-se a atuação dos núcleos de acessibilidade,
que “Art. 5º [...] § 5º [...] visam eliminar barreiras físicas, de comunicação e de comunicação que
restringem a participação e o desenvolvimento acadêmico e social de estudantes com deficiência”,
conforme o Decreto nº 7.611/2011.

Este estudo objetiva compreender expressões de capacitismo vivenciadas por estudantes


com deficiência ingressantes por meio de cotas na Universidade de Brasília (UnB). Trata-se de um
recorte, realizado no âmbito do Programa de Iniciação Científica, e da apresentação preliminar de
dados da pesquisa intitulada “Efeito das ações afirmativas na UnB: avaliação e monitoramento da
política de cotas”, financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal.

Para tanto, tem-se como ponto de partida o reconhecimento dos direitos à não discriminação
e à educação postulados na Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD) (Decreto nº 6.949/2009) e na Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015). As experiências
dos estudantes universitários e a relação entre dois direitos situam o terreno onde problematizamos
o capacitismo, definição recente e em construção que busca superar a ausência de léxico para
definir “discriminação por motivo de deficiência” (Diniz; Barbosa, 2014).

O trabalho está estruturado em três tópicos. No primeiro, é realizada uma problematização


teórica acerca das concepções de deficiência segundo os modelos médico e social, de modo a
subsidiar as reflexões acerca do capacitismo. Em seguida, apresenta-se o percurso metodológico
do estudo, que possui caráter qualitativo e contou com a realização de oito entrevistas com
estudantes da UnB. Por último, os dados coletados são analisados, evidenciando as compreensões
dos discentes sobre o que é capacitismo e suas expressões no dia a dia universitário.

164
164
2. PROBLEMATIZAÇÃO TEÓRICA

Ao longo das décadas, ocorreram mudanças significativas na forma como compreendemos


a deficiência. Inicialmente, predominava uma abordagem puramente biomédica, que considerava
a deficiência como uma condição exclusivamente ligada às características físicas, sensoriais ou
mentais do indivíduo. No entanto, a partir dos anos 1960 e 1970 iniciam-se estudos sociológicos
sobre a deficiência, assim como movimentos de luta por direitos, surgindo uma nova perspectiva:
o modelo social (Diniz, 2007).

Este modelo desafia a visão tradicional, reconhecendo que as limitações enfrentadas por
pessoas com deficiência não são apenas uma consequência de condições médicas ou de uma lesão,
mas sim fortemente moldadas pelas barreiras presentes na sociedade. Deficiência torna-se um
“conceito complexo que reconhece o corpo com lesão, mas também denuncia a estrutura social
que oprime a pessoa deficiente” (Diniz, 2007, p. 9)

Essas barreiras podem incluir a falta de acessibilidade física e de comunicação, bem como
atitudes que reforçam estereótipos e preconceitos. O modelo social destaca a importância de
abordar não apenas as necessidades individuais das pessoas com deficiências, mas também de
promover mudanças sociais e culturais para sua participação plena na sociedade. Essa abordagem
tem sido fundamental na luta pela igualdade de direitos e oportunidades, impulsionando políticas
públicas e práticas sociais que visam eliminar as barreiras. (Santos, 2008). Trata-se de situar os
debates sobre deficiência no campo da justiça social e dos direitos humanos.

A CDPD, aprovada em 2006 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e incorporada com
status constitucional no Brasil, foi um marco significativo na luta pela inclusão e igualdade ao se
orientar pela compreensão social de deficiência:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo
de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação
com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na
sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

No entanto, mesmo com esse reconhecimento formal, ainda enfrentamos desafios


importantes em sua efetivação. Questões como ausência de acessibilidade, discriminação e
falta de apoio adequado ainda persistem. Como podemos garantir que as políticas e práticas
estejam verdadeiramente alinhadas com os princípios da Convenção, e que as vozes das pessoas
com deficiência sejam ouvidas e respeitadas em todos os níveis de tomada de decisão? Como
podemos promover uma mudança social que valorize a diversidade e as experiências individuais?
Estas são questões essenciais que precisamos abordar ao refletir sobre o impacto e os desafios da
implementação da CDPD.

O termo capacitismo é essencial para definir a discriminação estrutural sofrida por pessoas
com deficiência, principalmente quando reconhecemos o histórico de isolamento e de segregação
social e familiar ao qual elas foram e continuam sendo submetidas. O capacitismo se manifesta de
várias maneiras, desde a falta de acessibilidade até a subestimação de capacidades e a negação
de oportunidades, que expressam atitudes negativas, tratamento injusto e preconceituoso, e
aprofundamento de desigualdades em decorrência de deficiências. Isso pode incluir a suposição

165
165
de que elas são menos inteligentes, menos produtivas ou menos dignas de respeito do que pessoas
sem deficiência. Essas atitudes podem levar à exclusão social, isolamento e baixa autoestima entre
as pessoas com deficiência (Mello, 2016).

O capacitismo se reflete, portanto, em políticas, práticas, normas e comportamentos


que discriminam, oprimem e excluem. Por exemplo, muitos locais públicos ainda não possuem
acessibilidade arquitetônica para garantir o acesso de pessoas usuárias de cadeiras de roda ou
informações em Libras para pessoas surdas, o que limita sua participação na sociedade. Nos
sistemas educacionais, essas opressões se materializam, dentre outros, pela falta de acessibilidade
arquitetônica nas escolas (como banheiros e mobiliários adaptados, piso tátil, elevadores e rampas)
e suporte adequado nos processos de ensino-aprendizagem (capacitação de professores, materiais
em formatos acessíveis, disponibilização de equipamentos e recursos de tecnologia assistiva), o
que impacta o desenvolvimento acadêmico, a participação nas atividades escolares e no convívio
com colegas e professores, e em oportunidades futuras.

Enquanto outros grupos marginalizados têm termos específicos para descrever a


discriminação que sofrem como racismo, sexismo, homofobia, entre outros, a discriminação
contra pessoas com deficiência é mais difícil de ser sintetizada em um único termo. Diante
dessa complexidade, o termo capacitismo emerge como uma tentativa de nomear e descrever a
discriminação, o preconceito e as opressões contra pessoas com deficiência.

Neste trabalho entendemos que o capacitismo tem relação direta com a existência de
barreiras, compreendidas, com base na Lei Brasileira de Inclusão, como “Art. 3º [...] IV. qualquer
entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da
pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de
movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação
com segurança, entre outros” (BRASIL, 2015). Tais barreiras podem estar em espaços físicos
(urbanos e arquitetônicos), nos transportes, nas comunicações e nas informações, nas atitudes e,
na área da educação, em processos pedagógicos e de ensino-aprendizagem.

3. METODOLOGIA

A pesquisa teve caráter qualitativo ao analisar “um nível de realidade que não pode ou
não deveria ser quantificado. Ou seja, trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das
aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” (MINAYO, 2007, p. 21). Diante disso, baseou-se
nos pressupostos de que a pesquisa social tem um objeto histórico, construído na realidade social
e é intrínseca e extrinsecamente ideológica.

Para a coleta de dados foram utilizadas as técnicas: 1. análise documental, com destaque
para legislações federais que tratam dos direitos das pessoas com deficiência e o direito à educação,
assim como documentos internos à UnB, com ênfase na Política de Acessibilidade (Resolução CAD
050/2019); e 2. entrevistas semiestruturadas com oito estudantes de graduação ingressantes pelo
sistema de cotas dos cursos de Direito, Medicina e Ciências Sociais com deficiências física, visual,
auditiva, múltipla e autismo, realizadas em março de 2024.

166
166
Os entrevistados foram convidados para contribuírem com o estudo por meio de um
chamamento enviado pela Diretoria de Acessibilidade (DACES) da UnB, uma vez que a Lei de Acesso
à Informação (Lei nº 12.527/2011) assegura a proteção à informação pessoal, dentre os quais, os
contatos de e-mail e telefone dos discentes. Tendo em vista o objetivo da pesquisa, considerou-
se que a ideia de amostragem não era a mais adequada, uma vez que o foco eram as vivências
e atitudes dos sujeitos no cotidiano universitário (MINAYO, 2007). As entrevistas foram gravadas
e realizou-se a transcrição não naturalista dos áudios, privilegiando o discurso verbal (AZEVEDO,
2017). A análise se deu por meio de análise de conteúdo, com o recorte da categoria “capacitismo”
no presente trabalho.

A pesquisa seguiu os cuidados éticos dispostos na Resolução CNS 510/2016 e foi aprovada
pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (CEP/CHS) da UnB. Os entrevistados
assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e a apresentação dos dados preservará o
anonimato dos sujeitos.

4. VIVÊNCIAS DOS ESTUDANTES E CAPACITISMO NA UNIVERSIDADE

Mello (2016) nos faz refletir sobre a ausência de uma categoria analítica na língua portuguesa
capaz de sintetizar a “discriminação por motivo de deficiência”, da mesma forma que o racismo
substituiu a antiga expressão “discriminação por motivo de cor da pele”. Nesse sentido, a própria
CDPD se insere nessa lógica ao definir em seu Art. 2º a “discriminação por motivo de deficiência”
como:

Qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o


propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute
ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político,
econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas
de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável (BRASIL, 2006).

A não-discriminação é um princípio da Convenção, assim como a autonomia individual,


a plena e efetiva participação e inclusão, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade, entre
outros.

Nas entrevistas, perguntou-se o que os estudantes entendiam por “capacitismo” e se já


vivenciaram algum preconceito decorrente de sua deficiência dentro do ambiente acadêmico.
Dentre as oito entrevistas realizadas evidenciou-se que a discriminação sofrida pelo corpo com
impedimentos se diferencia de outras e que todos foram alvo de capacitismo em algum momento
da graduação, seja ele explícito ou velado. Dentre as diferentes palavras utilizados para se definir
essa discriminação tem-se a “incapacidade”, assim como a frase proferida pelo E7, que afirma que
o capacitismo é “desqualificar e deslegitimar a capacidade da pessoa com deficiência e tratá-la
como uma criança”. Isso implica em não reconhecer a autonomia e a liberdade do estudante em
fazer suas escolhas.

167
167
Evidenciou-se que a concepção capacitista possui uma correlação com um termo abordado
por Anahi (2016), a corponormatividade, que considera determinados corpos como inferiores,
incompletos quando relacionados aos padrões hegemônicos corporais/funcionais. Atrelado a
esses padrões, observa-se que há estereótipos sobre as pessoas com deficiência e, como apontado
por E4, capacitismo também consiste na “negação da deficiência” através de uma discriminação
proferida como elogio ou baseada em entendimentos disseminados pelo senso comum, a exemplo
de discursos que reforçam os exemplos de superação.

A palavra “invisibilidade” também foi presente na fala dos estudantes. A invisibilidade de


seus corpos em um contexto de corponormatividade que muitas vezes desencadeiam situações
constrangedoras e capacitistas foi um influenciador para a restrição de participação social. O
termo “invisibilidade” aparece relacionado à negação da deficiência bem como ao tratamento
diferenciado dependendo do tipo de deficiência. Nesse sentido, estudantes com deficiências
visíveis, como as físicas e visuais, sofreram com o chamado capacitismo explícito, enquanto os
demais com deficiências não visíveis, lidam com atitudes capacitistas mais veladas, ou disfarçadas.

A “invisibilidade” atrelada à negação da deficiência propiciou momentos de revolta,


inquietação e desconforto nos entrevistados. E3 apontou que por sua deficiência não ser visível,
escutava falas capacitistas sobre seus colegas de curso que tinham deficiências aparentes e E2,
com deficiência auditiva, relatou que diversas vezes teve que mostrar seu aparelho auditivo para
que entendessem o motivo de sua dificuldade em algumas matérias. Já E6, ao participar de um
congresso acadêmico de seu curso em outra cidade, mesmo tendo uma deficiência visível e fazendo
uso de cadeiras de rodas, teve a acessibilidade totalmente negada no evento, se sentindo “invisível”
perante as outras pessoas e impedida de participar de muitas atividades.

Percebe-se que atitudes capacitistas contra pessoas com deficiência refletem a falta de
reconhecimento sobre a importância da sua inclusão e da acessibilidade no ambiente acadêmico,
assim como foi sintetizado por E7 quando apontou que constantemente escutou de colegas de classe
que sua presença e suas reivindicações de adaptação iriam “atrasar a turma”. E2 e E5 salientaram
que para entendermos o capacitismo temos que olhar para nossa realidade, uma sociedade ainda
muito conservadora e com problemáticas que decorrem de condições históricas. Ao analisar a
Universidade, os entrevistados identificam o desenvolvimento de ações, mas pontuais, que não
efetivam políticas efetivamente inclusivas e nem superam o capacitismo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O breve estudo buscou analisar o capacitismo na vivência de estudantes universitários da


UnB. Os entrevistados relacionam o capacitismo principalmente às barreiras atitudinais, definidas
na Lei Brasileira de Inclusão como “Art. 3º [...] IV [...] atitudes ou comportamentos que impeçam
ou prejudiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e
oportunidades com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).

Os dados destacam falas e discursos de colegas e professores que negam o direito de pessoas
com deficiência de estarem no espaço universitário e acessarem o direito à educação superior,
assim como a restringem a autonomia e a liberdade de pessoas com deficiência de tomarem suas

168
168
decisões. As expressões de discriminação, opressão e negação de direitos e participação estão
presentes do cotidiano dos participantes da pesquisa de diferentes formas, seja explícita ou velada.
Outras barreiras como arquitetônica, urbanística, nos transportes e nas comunicações não foram
percebidas como manifestações diretas de capacitismo. Criar um ambiente inclusivo e acolhedor às
diversidades humanas é fundamental para garantir de forma efetiva o direito à educação.

A implementação efetiva dos princípios estabelecidos na Convenção exige um compromisso


coletivo de governos, instituições, organizações da sociedade civil e sociedade em geral para
eliminar o capacitismo de todas as esferas da vida. Isso inclui a adoção de políticas e práticas que
promovam a acessibilidade, a igualdade de oportunidades e o respeito pelos direitos humanos das
pessoas com deficiência.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Vanessa et al. Transcrever entrevistas: questões conceptuais, orientações práticas e


desafios. Revista de Enfermagem Referência, vol. IV, 14, Coimbra, 2017. Disponível em: https://
rr.esenfc.pt/rr/index.php?module=rr&target=publicationDetails&pesquisa=&id_artigo=2715&id_
revista=24&id_edicao=114 Acesso em: 6 mar. 2024.

BRASIL. Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento
educacional especializado e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7611.htm#:~:text=%C2%A7%205%C2%BA%20Os%20
n%C3%BAcleos%20de,social%20de%20estudantes%20com%20defici%C3%AAncia. Acesso em 11
abr. 2024.

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre


Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinado em Nova York, em 30
de março de 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
decreto/d6949.htm Acesso em 18 abr. 2024.

BRASIL. Lei nº 13.149, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm Acesso em 10 abr. 2024.

DINIZ, Debora; BARBOSA, Livia. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Novos
comentários à Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: SNPD-SDH-PR,
2014.

DINIZ, Debora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.

INEP - INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Resumo


técnico do Censo da Educação Superior 2016. Brasília: Inep, 2018. Disponível em: https://download.
inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/resumo_tecnico/resumo_tecnico_censo_da_
educacao_superior_2016.pdf. Acesso em 11 abr. 2024.

169
169
INEP - INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA. Resumo
técnico do Censo da Educação Superior 2022. Brasília: Inep, 2024. Disponível em: https://download.
inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/resumo_tecnico_censo_
educacao_superior_2022.pdf. Acesso em 11 abr. 2024.

MELLO, Anahi. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência


capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/1413-812320152110.07792016 Acesso em: 16 abr. 2024.

MINAYO, Maria Cecília de Sousa (Org). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 25 ed. rev. e
atual. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

SANTOS, Wederson Rufino dos. Pessoas com deficiência: nossa maior minoria. Physis: Revista de
Saúde Coletiva, v. 18, n. 3, p. 501-519, set. 2008. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/
SDWpCmFGWGn69qtRhdqqGSy/ Acesso em 10 abr. 2024.

170
170
O GOLPE DE 1964 E DE 2016:
semelhanças da autocracia burguesa

Kim Taiuara Chavarria Brochardt

RESUMO

Pelo presente pretende-se demonstrar alguns paralelos dos casos de


recrudescimento da autocracia burguesa no Brasil a partir dos golpes de
1964 e de 2016. Procedemos, inicialmente, com uma breve caracterização
do estilo de atuação autocrática da burguesia brasileira. Prosseguimos
com sintéticas reconstituições das conjunturas dos períodos em questão,
extraindo aquelas que nos parecem ser as determinações unitárias de um
processo em relação a outro. Em seguida, sob a perspectiva teórica marxista,
as apresentamos nas conclusões.

Palavras-chave: golpe; autocracia burguesa; luta de classes.

1. UM ESTILO HISTÓRICO DE ATUAÇÃO AUTOCRÁTICA

A origem das classes dominantes locais, a estrutura econômica da sociedade brasileira


combinadas à dominação imperialista, foram determinantes para a contenção de uma modernização
autônoma e autossustentável. Não dispondo de recursos e disposição histórica suficientes para
catalisar um processo de modernização capitalista autônoma, as classes dominantes locais serviram
de receptáculo da indução modernizadora oriunda do capital estrangeiro, organizando a expansão
econômica, política e institucional do sistema de produção capitalista no interior do país, de modo
a reforçar suas posições de poder dominante ao mesmo tempo em que esta empresa lhes fora um
negócio lucrativo (FERNANDES, 2020).

Pode-se dizer, que o caráter do capitalismo consolidado no Brasil está intimamente


associado ao estilo histórico de atuação autocrático da burguesia brasileira. Considerando que não
houve uma ruptura com o modo de ser das oligarquias rurais, mas sim uma reacomodação dos
interesses das elites ante o novo contexto histórico-mundial em que a nação era incorporada ao
espaço de influência do capitalismo moderno, a burguesia brasileira encarou as transformações em
andamento, restringindo o acesso dos frutos da “civilização ocidental” aos segmentos “mais iguais”
da sociedade, isto é, às classes altas e médias. Isto só foi possível graças à monopolização política
do Estado e sua instrumentalização tanto como ferramenta de autodefesa perante a ação do capital
externo, como de neutralização e repressão às pressões vindas “de baixo para cima”:

O Estado não é, para as classes dominantes e com o controle do poder


político, um mero comitê dos interesses privados da burguesia. Ele se torna
uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve servir a interesses
particularistas (internos e externos, simultaneamente), segundo uma

171
171
complexa estratégia de preservação e ampliação de privilégios econômicos,
socioculturais e políticos de origem remota (colonial ou neocolonial) ou
recente. (FERNANDES, 1974, p. 29)

Esse uso monopólico e instrumental do Estado por parte das classes dominantes revela
um dos aspectos essenciais desse padrão compósito de dominação burguesa, qual seja, o
coesionamento e a convergência das diversas frações da burguesia por meio do Estado1 quando
confrontadas com eventuais situações históricas em que a sua dominação de classe encontrou-se,
suposta ou efetivamente, em xeque.

Para viabilizar o capitalismo dependente, garantindo por um lado tanto a expansão interna
da sociedade capitalista como a formação do poder burguês, e, por outro, a alta lucratividade do
capital estrangeiro, os níveis de extração de mais-valor gerado pela exploração da força de trabalho
nacional foram acentuados brutalmente, constituindo o processo que Florestan Fernandes
qualificou de “apropriação dual do excedente econômico”:

Ignorou-se que a apropriação dual do excedente econômico – a partir de


dentro, pela burguesia nacional; e, a partir de fora, pelas burguesias das
nações capitalistas hegemônicas e por sua superpotência – exerce tremenda
pressão sobre o padrão imperializado (dependente e subdesenvolvido) de
desenvolvimento capitalista, provocando uma hipertrofia acentuada dos
fatores sociais e políticos da dominação burguesa. (FERNANDES, 2020, p.
290).

A manutenção dessa tensão econômica e política no processo de transformação e


acumulação capitalista no Brasil, acompanhada simultaneamente da necessidade de estabilidade
para o curso dos negócios, resultou na forma particular de democracia instituída no país, isto é, a
“democracia restrita”: aberta às classes altas e médias, mas preservando sua ritualística ao absorver
as classes baixas numa típica forma de “democracia de cooptação”.

Não era do interesse dessas classes uma revolução nacional e democrática, pois ela levaria
a maior participação das classes subalternas na democratização política e econômica da sociedade
capitalista e, por conseguinte, à extinção dos privilégios preservados pelas “classes altas e médias”,
podendo, inclusive, desencadear uma dinâmica de “revolução contra a ordem”. Portanto, o modo
encontrado para resolver este impasse foi a associação dependente das frações dominantes
brasileiras em relação imperialismo, tendo por pressuposto a instrumentalização do Estado e, por
consequência, a conformação de uma “democracia restrita”.

A forma de atuação da burguesia brasileira forjaria o Estado autocrático burguês, mediante a


ditadura empresarial-militar de 1964-1985, para depois diluí-lo sob o manto do Estado democrático
de direito, ao nele cristalizar certas funções do modo autocrático de dominação, preservando-o
em períodos históricos distintos para ter sempre possível no horizonte da luta de classes o seu
recrudescimento, traço particular da dominação de classes no Brasil.

1 Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só
usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua
unificação no plano político, antes de converter a dominação socioeconômica” (FERNANDES, 2020, p. 208).

172
172
2. DOMINAÇÃO AUTOCRÁTICO-BURGUESA NO BRASIL: ENTRE OS GOLPES DE 1964 E
2016

2.1. O golpe de 1964

O contexto imediatamente anterior ao golpe de Estado dado pelas forças armadas e a


burguesia brasileira em 1964 era significativamente conturbado. Internacionalmente, o mundo
vivia sob a disputa do bloco capitalista com o bloco comunista, configurando a conhecida “guerra
fria”2. Nacionalmente punhas um projeto de desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro,
frente ao aprofundamento dos laços com imperialismo e da estrutura do capitalismo dependente
(NETTO, 2014).

Em tal conjuntura, na América Latina, sobretudo após a revolução cubana, os Estados Unidos
passaram a reforçar sua atuação, patrocinando golpes, desestabilizando governos democráticos,
com o objetivo de manter o alinhamento político dos países do continente aos seus desígnios
imperialistas3. Além da necessidade política de preservar esta parte do mundo sob a sua influência,
o alinhamento mencionado era também imprescindível em vista das mudanças econômicas em
curso. Naquele momento havia uma superacumulação de capitais estadunidenses, que requeriam
a sua exportação para espaços onde pudesse operar sua contínua valorização. A consecução desses
objetivos exigia a derrota de projetos de desenvolvimento autônomo, nacional-democrático ou
socialistas; e o ajustamento da estrutura econômica ante a nova divisão internacional do trabalho
(NETTO, 2014).

No Brasil, a luta de classes entre 1961 a 1964 anunciava uma tensão social cada vez mais
elevada. O padrão de desenvolvimento econômico brasileiro encontrava-se em crise estrutural
profunda, cujos limites impunham, inevitavelmente, mudanças de monta na lógica reprodutiva
do capitalismo dependente na sua fase de incorporação monopólica. De um lado, forças nacionais
e democráticas com forte amparo no campesinato e no proletariado urbano, reivindicavam, sob
o governo Goulart, as reformas de base como alternativa para o desenvolvimento do capitalismo
brasileiro frente aos obstáculos postos4; e, de outro, a burguesia brasileira e os grandes proprietários
de terra, associados ao imperialismo estadunidense, procuravam equacionar os impasses do
desenvolvimento pela via do aprofundamento do capitalismo dependente, alternativa esta que
demandava a exclusão das classes populares e sufocava a revolução nacional-democrática na típica
fórmula das transformações “pelo alto”. A solução deu-se pela exacerbação da heteronomia, isto
é, pelo reforço ao caráter dependente do desenvolvimento socioeconômico em terras nacionais.

2 “O mundo se viu polarizado, gravitando em torno de Washington e Moscou” (NETTO, 2014, p. 30).
3 “Em resposta à influência da Revolução Cubana, os Estados Unidos aprofundaram a sua ingerência
na América Latina, operando em dois níveis: o legal, através de ‘programas de ajuda’ (o mais importante foi a
Aliança para o Progresso, lançado por Kennedy em 1961 e cujos pífios resultados levaram à sua extinção em 1969), e o
clandestino, com as iniciativas encobertas da CIA, a agência central de inteligência norte-americana.” (NETTO, 2014, p.
33).

4 “Nas condições brasileiras de então, as requisições contra exploração imperialista e latifundista, acrescidas
das reivindicações de participação cívico-política ampliada, apontavam para uma ampla restruturação do padrão de
desenvolvimento econômico e uma profunda democratização da sociedade e do Estado”. (NETTO, 2008, p. 23).

173
173
Com o golpe de 1964 garantido pelas Forças Armadas em aliança com a burguesia nativa
e apoiado pelo imperialismo norteamericano, não obstante seu início instável, passou-se às
modificações políticas da tecitura estatal com vistas a implementação do modelo econômico
adequado aos monopólios:

O Estado erguido no pós-64 tem por funcionalidade assegurar a reprodução


do desenvolvimento dependente e associado, assumindo, quando intervém
diretamente na economia, o papel de repassador de renda para os
monopólios, e politicamente mediando os conflitos setoriais e intersetoriais
em benefício estratégico das corporações transnacionais na medida em que
o capital nativo ou está coordenado com elas ou com elas não pode competir
(NETTO, 2008, p. 27-28).

Tal modelo foi fortemente baseado no arrocho salarial, configurando um alto grau de
exploração da força de trabalho nesse período em favor da empresa monopolista. Por isso, a repressão
ultraviolenta ao movimento sindical operário e ao movimento camponês, fundamentalmente,
fizera-se componente central do golpe e do ordenamento estatal que, torcido em pró dos negócios
capitalistas, asfixiaria quase que absolutamente qualquer possibilidade de resistência.

O recrudescimento da autocracia burguesa no Brasil expresso no golpe de 1964, teve,


portanto, determinações internas e externas. Objetivou-se adequar o capitalismo brasileiro à
nova divisão internacional do trabalho, reproduzindo o seu caráter dependente em novas bases;
neutralizar o reformismo burguês, inviabilizando a alternativa de desenvolvimento capitalista
em bases autônomas, nacionais e democráticas; e reprimir a organização do proletariado e do
campesinato enquanto classes e, por conseguinte, de qualquer possibilidade revolucionária, ainda
que ela não fosse uma ameaça real à vista.

2.2. O golpe de 2016

Em meio ao cenário de crise estrutural do capital em 2007-2008 (MÉSZÁROS, 2011) e


enfraquecimento relativo do imperialismo estadunidense, a China emerge à posição de segunda
economia mundial (MERINO, 2020). A ascensão arrebatadora desta nova potência econômica
mundial se expressa na sua enorme capacidade produtiva, comercial, no seu avanço tecnológico
e militar. Os EUA, na posição de potência imperialista hegemônica, por sua vez, passou a tratar a
China como uma nação adversária, revivendo a propaganda da guerra fria (BORON, 2020).

Na segunda década do século XXI a China já havia se convertido em principal parceira


comercial de muitos países da América Latina, entre eles, o Brasil, ocupando o posto que antes
pertencia aos Estados Unidos5. Sabe-se que a América Latina concentra boa parte dos recursos
naturais, minerais e energéticos do mundo, sendo, neste quesito, extremamente rica, e, como diria
Boron (2020, p. 108) “não é mistério para ninguém que a vigorosa expansão da China em direção
aos países do Terceiro Mundo tem como objetivo fundamental garantir para si o fornecimento de
certos recursos naturais imprescindíveis para sua economia”. Diante do avanço da China sobre
5 “Com base na definição de ‘concorrência estratégica’,passou-se a considerar a China como uma ameça no
‘quintal’ estadunidense, por sua crescente influência comercial na América Latina.” (MERINO, 2020, p. 147).

174
174
esse continente, somado à ascensão de forças progressistas aos governos latino-americanos, o
imperialismo estadunidense passou a reforçar sua posição hegemônica neste território continental.

Neste contexto de crise do capital acentuada pelo acirramento da concorrência geopolítica


e econômica dos EUA com a China, alguns governos latinoamericanos sofreram golpes,
desestabilização política e viram o fortalecimento da direita e extrema-direita, cujas posições estão
mais alinhadas aos interesses do imperialismo estadunidense. Os golpes contra Manuel Zelaya em
Honduras em 2009, Fernando Lugo no Paraguai em 2012, Dilma Rousseff no Brasil em 2016 e Evo
Morales na Bolívia em 2019 são exemplares nesse sentido (BORON, 2020, p. 131-132).

Tratando, especificamente, do caso brasileiro, vale relembrar alguns acontecimentos: em


2007 o governo brasileiro anuncia a descoberta do petróleo na zona do pré-sal; em 2008 o governo
dos EUA comunica a reativação da quarta frota da sua Marinha que estava desativada desde 1950.
Oficialmente, a reativação teria por finalidade a supervisão das suas unidades militares situadas na
América Latina e Caribe. Em 2013, vaza a informação de que tanto o Governo Dilma Rousseff como
a Petrobras estavam sendo espionados pelos EUA (BORON, 2020, p. 133).

No ano de 2014, durante as eleições presidenciais, é deflagrada, sob a liderança do ex-


juiz federal Sérgio Moro, a operação Lava Jato – OLJ –, cujos alvos principais foram, entre outros,
lideranças e parlamentares do Partido dos Trabalhadores, com denúncias de casos de corrupção
que envolviam, destacadamente, a Petrobras e grandes empreiteiras brasileiras. Tal operação seria
decisiva para a criminalização de lideranças e parlamentares petistas, colando a pecha de corrupto,
também, no governo chefiado pela então presidenta Dilma Rousseff. Em 2015 e início de 2016,
manifestações massivas da direita foram realizadas, pedindo intervenção militar, fim da corrupção
e deposição da presidenta. Situada na pior crise econômica brasileira e numa acentuada crise
política, a OLJ desempenhou papel central para desidratar o governo ao municiar a grande mídia
diariamente com informações vazadas, resultando no golpe jurídico-parlamentar de 2016. Neste
mesmo ano, já sob o governo Temer, depois de consolidado o golpe, é realizada a mudança da
legislação que versava sobre o regime de exploração do petróleo na zona do pré-sal, favorecendo
aos interesses de petroleiras estrangeiras, em detrimento da Petrobras. Ademais, o governo Temer
passou a aplicar as medidas contidas no programa Uma Ponte para o Futuro, como a contrarreforma
trabalhista, a generalização da terceirização, a mudança regressiva no cálculo do salário mínimo, a
emenda constitucional 95 e outras tantas com impacto social e econômico, em especial, no que se
refere a depreciação do valor da força de trabalho.

Em 2018, o candidato a Presidência da República, Luis Inácio Lula da Silva, é impedido de


participar das eleições pelas condenações no âmbito da operação Lava Jato, facilitando a vitória
de Jair Bolsonaro que teria por Ministro da Justiça e Segurança Pública em seu governo, o senhor
Sérgio Moro. Hoje, é de conhecimento público o envolvimento da OLJ com o Departamento de
Justiça dos Estados Unidos (BORON, 2020).

3. CONCLUSÃO

Observou-se nos dois contextos históricos particulares, que a função desempenhada pelo
imperialismo estadunidense fora decisiva no recrudescimento da autocracia burguesa no Brasil.

175
175
Em primeiro lugar, as crises econômicas combinadas à disputa por influência geopolítica com outra
potência mundial, resguardadas as diferentes especificidades históricas, compuseram, num plano
mais amplo, o quadro de determinações que mobilizou o imperialismo dos Estados Unidos em
direção ao reforço de sua posição sobre o capitalismo dependente brasileiro. O golpe militar de
1964 no Brasil constituiu um governo plenamente alinhado aos Estados Unidos. O golpe de 2016,
embora não tenha deposto um governo averso aos interesses imperialistas, ainda assim deu lugar
a uma composição governamental, baseada no MDB-PSDB, muito mais subserviente a Washington.

Com o regime instaurado em 1964 um dos objetivos fora a eliminação completa de qualquer
projeto de desenvolvimento alternativo à heteronomia configurada no capitalismo dependente,
bem como de suas forças de sustentação. Em 2016, mesmo sem alterar o regime político, o golpe
teve, entre suas finalidades, a inviabilização, ainda que temporária, do Partido dos Trabalhadores
como alternativa de governo. Pode-se extrair deste paralelo que, no quadro do capitalismo
dependente e associado, suas classes dominantes locais e as correspondentes estrangeiras, são
acentuadamente sensíveis e pouco toleráveis a quaisquer níveis do reformismo, seja ele de alta ou
baixa intensidade.

Por fim, outro componente determinante inscrito nos dois processos golpistas consiste
na necessidade do capital quanto à restauração da taxa de lucro que se traduziu na sujeição da
força de trabalho brasileira a níveis consideráveis de exploração, produzindo as taxas de mais-valor
requeridas para a acumulação capitalista. Num contexto, o arrocho salarial representou a política
econômica sob a qual a força de trabalho fora, acerbamente, espoliada. Noutro, as contrarreformas
trabalhistas e a mudança no cálculo base do salário mínimo, respondera pela depreciação do
valor da força de trabalho articulada a sucção do mais-valor por ela gerada. Tanto lá como cá, o
desemprego cumpriu com sua função de manter a oferta de força de trabalho em alta e o seu valor
em baixa.

Em síntese, o recrudescimento da autocracia burguesa no Brasil de 1964 e de 2016 revelou


como paralelos, primeiro, a ingerência do imperialismo estadunidense sobre a sociedade nacional
para a salvaguarda de seus interesses; segundo, os estreitos limites do capitalismo dependente e
associado frente a empreendimentos reformistas por mais modestos que sejam os seus objetivos,
escancarando seu reacionarismo crônico; e terceiro, a fundamental importância dos níveis
acentuadamente altos de exploração da força de trabalho alcançados pelas classes dominantes no
Brasil para a reprodução ampliada do capitalismo dependente. Esses três paralelos, mais do que
coincidências conjunturais entre momentos históricos distintos são, na verdade, determinações
estruturais constitutivas do “capitalismo selvagem” que teve vez no Brasil, isto é, do capitalismo
dependente e associado.

REFERÊNCIAS

BORON, Atílio A. Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova estratégia de segurança nacional
dos Estados Unidos. As veias do sul continuam abertas: debates sobre o imperialismo do nosso
tempo. 1. Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

176
176
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento da sociedade
brasileira. Ed. São Paulo: Difel, 1974.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 1. Ed.


Curitiba: Kotter editorial; São Paulo: Contracorrente, 2020.

MERINO, Gabriel E. A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas diante da
ascensão da China. As veias do sul continuam abertas: debates sobre o imperialismo do nosso
tempo. 1. Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

MÉSZÁROS, Istvan. A crise estrutural do capital. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2011.

NETTO, José Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 12. Ed.
São Paulo: Cortez, 2008.

NETTO, José Paulo. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). 1. Ed. São Paulo: Cortez,
2014.

177
177
O SERVIÇO SOCIAL NA EDUCAÇÃO:
a questão social e suas expressões no âmbito escolar

Cristiane Pereira Barbosa Almeida


Josenice Ferreira dos Santos Araújo

RESUMO

O artigo trata do debate das expressões da questão social no âmbito escolar,


trazendo a reflexão de que é necessária a compreensão dos fundamentos
do sistema educacional no Brasil e da educação como uma política social.
Busca situar esse direito no sistema capitalista e sua relação no âmbito das
lutas sociais. Objetiva destacar o Serviço Social na política de educação, nas
instituições de ensino e na gestão, por meio de revisão bibliográfica em
torno dessa temática. Evidencia, assim, que a educação pode contribuir
na construção da democracia e nos processos de emancipação humana e
conclui que o trabalho realizado de forma coletiva pelos profissionais do
âmbito educacional, como o assistente social, pode trazer resultados eficazes
para as necessidades educacionais.

Palavras- chave: Política Social. Prática Profissional. Educação Pública.

ABSTRACT

The article deals with the debate on the expressions of social issues in the
school environment, bringing the reflection that it is necessary to understand
the foundations of the educational system in Brazil and education as a social
policy. It seeks to place this right in the capitalist system and its relationship
within the scope of social struggles. It aims to highlight Social Service in
education policy, in educational institutions and in management, through
a bibliographic review around this topic. It thus shows that education can
contribute to the construction of democracy and the processes of human
emancipation and concluded that the work carried out collectively by
educational professionals, such as social workers, can bring effective results
to educational needs.

Keywords: Social Policy. Professional Practice. Public education.

178
178
1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre as expressões da questão social no âmbito escolar, implica na análise crítica
em torno das contradições sociais oriundas da sociedade capitalista, que perpassa o processo de
acumulação e suas implicações sobre a classe trabalhadora. Tendo como referência a relação entre
política social e educação e a compreensão dos fundamentos do sistema educacional brasileiro.

Acredita-se que a compreensão da educação como um direito social previsto na Constituição


Cidadã, bem como situar esse direito no sistema capitalista, revela as contradições e as lutas sociais.
Com o intuito de destacar a prática do assistente social na política de educação, nas instituições
de ensino e na gestão, sendo necessária a revisão bibliográfica de produções teóricas que trazem
reflexões sobre essa temática.

Levando em consideração que o Serviço Social, é uma profissão interventiva, inserida na


divisão social do trabalho, tem sua emergência atrelada diretamente as manifestações da questão
social, que são produzidas pela relação conflituosa entre capital e trabalho. Trata-se de uma
profissão que possibilita a atuação nas diversas políticas sociais, tendo sua intervenção situada
no enfrentamento dos complexos desafios sociais oriundos da desigualdade social que assola a
sociedade brasileira.

2. OS FUNDAMENTOS DO SISTEMA EDUCACIONAL NO BRASIL

Para a compreensão da educação cabe explicitar alguns fundamentos teóricos que possibilita
perceber o ato educativo como um meio de emancipação do homem e aplicar tais conceitos na
análise da realidade. Pensar nos elementos que compõem a realidade histórica e social da educação
na compreensão da realidade nos remete a contextualização de que os primeiros mestres no Brasil
foram os padres da Companhia de Jesus6, chegaram no País nos anos de 1540 e faziam parte da
missão colonizadora de Portugal. Nesse sentido Melo afirma que:

A educação formal brasileira inicia-se no período do Brasil Colônia, com


a chegada dos jesuítas, em 1549, sob a orientação do Padre Manoel da
Nóbrega. Estes religiosos foram responsáveis pela instrução e catequização
até o ano de 1759, quando o Marquês de Pombal os expulsou e implantou
as Reformas Pombalinas. (MELO, 2012, pág. 9).

O processo histórico da educação no Brasil é marcado por disputas e lutas sociais pela
expansão do direito a educação. Com a expulsão dos jesuítas, comandada pelo então primeiro-
ministro de Portugal, Marquês do Pombal, buscou-se a organização de um novo sistema de ensino
no país, deixando de lado a religião, na busca por um ensino promovido pelo Estado.

6 Os padres da Companhia de Jesus vieram de Portugal, liderados pelo padre Manoel da Nóbrega, e tornaram-se
os precursores da educação escolar brasileira, a partir de 1549. Ensinavam aos descendentes da elite colonizadora. Os
jesuítas foram responsáveis pela criação de vários colégios e seminários, mantiveram esta hegemonia durante duzentos
e dez anos e foram expulsos do Brasil em 1759, pelo Marquês de Pombal. (MELO, 2012).

179
179
No período imperial, a primeira Constituição de 1824, outorgada pelo imperador D. Pedro
I, trazia a ideia de um sistema nacional de educação, sendo “a instrução primária é gratuita a todos
os cidadãos”. Apesar disso, o ensino não foi oferecido para todos, porque o número de vagas não
era suficiente para atender a demanda e os professores não eram capacitados, sendo a educação
um privilégio dos homens livres. Nesse sentido Ribeiro (1984) argumenta que:

Neste momento, há o registro de aprofundamento de estudos pela elite


intelectual brasileira, sobre os seguintes assuntos discutidos na Europa:
Liberalismo e Positivismo. Desta leitura foram retiradas ideias que serviram
de base para as reivindicações dos republicanos. Eis algumas delas: abolição
dos privilégios aristocráticos; separação da Igreja e do Estado; instituição
do casamento e registro civil; secularização dos cemitérios; abolição da
escravidão; libertação da mulher para, através da instrução, desempenhar
seu papel de esposa e mãe; e a crença na educação como chave dos
problemas fundamentais do país (RIBEIRO, 1984, p. 65).

No contexto do Período Republicano, o País recebe influências dos ideais Positivistas e


Liberais e a força da elite no âmbito das decisões políticas, econômicas, sociais e educacionais. Com
a ditadura militar, a partir de 1964, a educação foi reduzida a prática, sendo desprovida de discussão
política, com atenção voltada as demandas do mercado de trabalho, primando pela entrada de
empresas internacionais e mão de obra para atender as necessidades imediatas relacionadas ao
desenvolvimento econômico brasileiro durante o período do golpe. Em concordância com Rosa
(2006), ao afirmar que:

Essa compreensão revel uma tendência muito forte no ensino durante a


Ditadura Militar no Brasil, que foi, fundamentalmente, a ênfase em uma
educação de caráter técnico-funcional, ou seja, preocupada estritamente
com aspectos específicos e práticos, no jogo do capitalismo internacional,
associando a toda uma política econômica em curso (ROSA, 2006, p.50).

Apesar da política educacional brasileira nesse período ser democrática, vivenciava na prática
os impactos do regime militar, com medidas autoritárias, a limitação da liberdade de pensamento
e de ações, tendo o ideário do capital humano como concepção. Com uma ideologia voltada para
servir aos interesses da classe dominante, buscando controlar a massa para manter uma harmonia
social.

Compreender a educação, como uma política social, que faz parte do processo de produção
e reprodução social no modo de produção capitalista, implica conhecer os elementos contraditórios
que envolvem as políticas sociais no capitalismo. O Estado busca atender as necessidades básicas
dos cidadãos por meio das políticas sociais. Essa intervenção visa apaziguar as contradições geradas
no interior do capitalismo. Segundo Pereira (2016) ao afirmar que:

Para dar conta das crescentes demandas sociais advindas, principalmente,


da “questão social”, então desencadeada - a que se viu obrigado a responder,
o Estado capitalista, até por uma questão de sobrevivência, renunciou
à sua posição equidistante de árbitro social para tornar-se francamente
interventor. E, nesse papel, ele passou não só a regular com mais veemência

180
180
a economia e a sociedade, mas também a empreender ações sociais, prover
benefícios e serviços e exercer atividades empresariais. Dessa feita, o
Estado capitalista tornou-se, desde o final do século XIX, parte visivelmente
interessada nos conflitos entre capital e trabalho, agudizados pelo processo
de industrialização, assumindo um forte papel regulador, dando origem ao
Estado de Bem-Estar ou Estado Social (PEREIRA, 2016, p.32-33).

As políticas sociais não podem ser vistas como favores do Estado e do sistema capitalista para
a classe dominada, nem como conquistas das mobilizações e pressões dos movimentos populares.
Apresenta-se como expressão da correlação de forças e lutas na sociedade e, portanto, concessões
dos grupos majoritários que estão no poder, que pretendem permanecer e legitimar o controle.

É necessário retomar o discurso crítico para explicitar as relações entre a educação e seus
condicionamentos sociais, mostrando a determinação recíproca entre a prática social e a prática
educativa. O processo educativo é essencial na vida do cidadão e na formação do sujeito para
o exercício da cidadania. É preciso garantir amplo debate entre professores, alunos, família e
comunidade e se aproximar dos movimentos sociais, com uma visão crítica, sobre a política de
educação para somar esforços nas estratégias de resistência à educação mercantilista, voltada para
os interesses do capital.

3. AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NA EDUCAÇÃO

O Serviço Social, em sua trajetória histórica, tem marcado seu espaço sócio-ocupacional,
principalmente nas políticas sociais, além das organizações da sociedade civil e empresas privadas.
Atua, majoritariamente, com pessoas em situação de vulnerabilidade social e vítimas dos diversos
tipos de opressões e violências. Tem sua emergência situada no bojo das transformações sócio-
históricas do capitalismo em sua fase monopolista. De acordo com FORTI (2013, p, 268):

Revolução de 30, que favoreceu a ampliação e a consolidação das bases


industriais no País em detrimento da economia agro-exportadora, após
a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Nesse contexto, o Serviço Social
emerge e inicia seu percurso com perspectivas idealizadas das condições
objetivas da vida social, materializando o obscurecimento da sua dimensão
política, efetivando a perspectiva de apelo moral no trato das expressões da
“questão social”.

No capitalismo, o campo educacional, estabelece-se como um espaço de contradições,


próprias do sistema capitalista, que se expressam a partir de interesses antagônicos na sociedade
de classes, nas correlações de forças e relações de dominação e poder e de disputas de distintos
projetos societários. É nesse contexto que ocorrem as situações de conflitos e violências no âmbito
escolar, que se manifestam como expressões da questão social.

Assim, os profissionais do Serviço Social poderão contribuir para a organização política e


social da classe trabalhadora e na luta pela efetivação do direito à educação pública e com qualidade
para todos. Bem como “exercer a função pedagógica, por meio de uma comunicação dialógica,

181
181
como orientou Paulo Freire em sua vasta produção teórica” (CFESS, 2023, pág. 12). Sustentando
uma concepção de educação que esteja em consonância com a direção hegemônica do projeto
ético-político profissional.

Cabe pontuar que a questão social advém da contradição da sociedade capitalista, com a
apropriação privada do que é produzido pelo conjunto da sociedade através da mais-valia extraída
da mão de obra dos trabalhadores. De acordo com (IAMAMOTO, 2006, p. 27), a questão social
pode ser entendida como:

O conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista


madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva,
o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de
seus frutos mantém-se privada por uma parte da sociedade, aumentando
ainda mais a segregação, as desigualdades sociais.

As demandas na área do Serviço Social na educação além das unidades de ensino estão
voltadas para gestão, instituições de qualificação da força de trabalho juvenil e adulta, movimentos
sociais, entre outras, envolvendo tanto o campo da educação formal como as práticas no campo
da educação popular. A realização de uma educação emancipadora está atrelada a garantia do
respeito à diversidade humana e a defesa dos direitos humanos. Sendo assim, Paulo Freire diz que:

“Por isso é que toda prática educativa libertadora, valorizando o exercício


da vontade, da decisão, e da resistência, da escolha; o papel das emoções,
dos sentimentos, dos desejos, dos limites; a importância da consciência da
história, o sentido ético da presença humana no mundo, a compreensão da
história como possibilidade jamais como determinação, é substantivamente
esperançosa e, por isso mesmo, provocadora da esperança”. (FREIRE, 2000,
p. 23).

A perspectiva transformadora no espaço da escola exige que os professores das escolas


não apenas conheçam a realidade social que os alunos estão inseridos, mas que também
as compreendam. Compreender as violências que se manifestam no contexto da escola
como expressões trágicas de necessidades não atendidas é um desafio fundamental para o
desenvolvimento de práticas educativas emancipatórias no espaço escolar. Efetivar o projeto ético-
político profissional do Assistente Social neste terreno adverso só é possível se potencializarmos
ações para o fortalecimento e organização dos sujeitos coletivos. Neste sentido:

É necessário reassumir o trabalho de base, de educação, mobilização e


organização popular, organicamente integrado aos movimentos sociais e
instâncias de organização política de segmentos e grupos sociais subalternos,
o que parece ter sido submerso do debate profissional ante o reflexo dos
movimentos sociais e dos processos massivos de organização sindical e
social, a partir da década de 90 (IAMAMOTO, 2007, p. 200).

A intervenção do Assistente Social é marcada por interesses em disputa e se insere no


trabalho coletivo desenvolvido nas instituições e unidades de ensino. Sendo necessária uma ação

182
182
interdisciplinar com o intuito de garantir a efetivação da educação para todos e de qualidade.
Contribuindo para que os sujeitos possam desenvolver suas habilidades, competências e
potencialidades. Conforme MARTINS (2012, p.122) vimos que:

Essa forma de inserção do serviço social e de outros profissionais, formando


uma equipe interdisciplinar para atuar na política de educação, confirma a
tendência atual das políticas sociais que atendem o segmento família, criança
e adolescentes, de criar vínculos com a educação, especificamente com a
escola, reforçando a importância da função social realizada pela família e
pela escola no processo de socialização e inclusão social desse segmento
populacional.

Para que o assistente social possa desenvolver com competência teórico-metodológica,


técnico-operativa e ético-política sua atuação profissional deve compreender e materializar
seus direitos e deveres expressos no Código de Ética Profissional e em observância a Lei de
Regulamentação da Profissão. É a partir do conhecimento, investigação e de interpretação dos
fenômenos sociais que os profissionais podem construir os mecanismos e instrumentos que dão
materialidade à intervenção profissional.

O desenvolvimento de ações no sentido de efetivar a democratização da escola, na organização


da gestão, na ampliação do acesso com a participação efetiva da família e da comunidade, suscita
demandas que necessitam do conhecimento e da habilidade de outros profissionais, entre eles o
assistente social que possui competências para elaborar, implementar, executar e avaliar políticas
sociais. No que se refere a gestão, MARTINS (2012, pag.81) mostra que:

O papel do assistente social na Secretaria de Educação é o de realizar ações


e intervenções comprometidas com valores que dignifiquem e respeitem
os educandos em suas diferenças e potencialidades, sem discriminação
de qualquer natureza, por meio do apoio e de orientação não somente
aos alunos, como à sua família e ao corpo docente, em busca de melhores
opções para o sucesso no processo de aprendizagem e de integração escolar
e social.

Dessa forma, a luta pela cidadania deve estar vinculada ao movimento da luta de classes,
buscando alternativas e possibilidades frente à questão social, propiciando a democracia e a
participação efetiva, compartilhando decisões e poder que no âmbito da educação pode ser
potencializado através de representações da comunidade escolar, nos Conselhos de Direitos,
Conselhos Escolares, Grêmios Estudantis, dentre outros.

183
183
4. CONCLUSÃO

O Serviço Social vem conquistando espaço com sua inserção na área da educação, que
embora não seja recente em todo o território brasileiro de igual modo, está em processo de
consolidação. Tendo como um de seus desafios o fortalecimento das lutas sociais em defesa de
uma educação emancipadora, firmada na teoria crítico-dialética.

Percebe-se a necessidade da realização do trabalho multidisciplinar, visando consolidar


a educação como direito social e no planejamento de ações e estratégias de enfrentamento as
expressões da questão social que se manifestam no ambiente escolar e para contribuir no processo
de formação política dos alunos, proporcionando reflexões, exercitando a crítica e a potencialidade
de transformação social.

Pode-se dizer que é neste contexto que o assistente social retoma a área de educação
como um importante espaço de atuação. Sendo um processo que exige a compreensão das
particularidades da Política de Educação, em seus diferentes níveis de ensino, problematizando
este conhecimento, desvelando os seus significados, com todos os representantes da comunidade
escolar. Pois, a busca pela ampliação dos direitos e a aplicabilidade das políticas sociais que são
essenciais para a dignidade humana requer militantes, profissionais, alunos e atores sociais capazes
de lutar e defendê-los.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico,
1988.

CFESS. Diálogos do Cotidiano – Assistente Social: Reflexões sobre o trabalho profissional. Brasília (DF):
CFESS, 2023.

FORTI, V. Direitos Humanos e Serviço Social: Polêmicas, debates e embates. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

IAMAMOTO. Marilda Vilela. O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional.


São Paulo: Cortez, 2006.

IAMAMOTO, Marilda Vilela. RENOVAÇÃO E CONSERVADORISMO NO SERVIÇO SOCIAL: Ensaios Críticos.


9. ed.- São Paulo: Cortez, 2007.

MARTINS, Eliana Bolorino C. O Serviço Social no âmbito educacional: dilemas e contribuições da


profissão na perspectiva do Projeto Ético-Político. In: SILVA, Marcela Mary José da (Org.). Serviço Social
na educação: teoria e prática. Campinas: Papel Social, 2012. p. 45.

184
184
Melo, Josimeire Medeiros Silveira de. História da Educação no Brasil. Coordenação Cassandra Ribeiro
Joye. – 2ª ed. Fortaleza: UAB/IFCE, 2012.

RIBEIRO, Maria Luísa S. História da Educação Brasileira: a organização escolar. São Paulo: Moraes, 1984.

PEREIRA, C. P. Proteção Social no capitalismo: crítica a teorias e ideologias conflitantes. São Paulo:
Cortez, 2016.

ROSA, Juliano de Melo. As vozes de um mesmo tempo: a educação física institucionalizada no período
da Ditadura Militar em Cacequi. Dissertação de Mestrado em Educação/UFSM. Santa Maria: UFSM,
2006.

SAVIANI, Demerval. Pedagogia Histórico-crítica: primeiras aproximações. 6. Ed. Campinas: Autores


Associados, 1997.

185
185
A SEGREGAÇÃO SOCIOESPACIAL DE PALMAS/TO
THE SOCIO-SPATIAL SEGREGATION OF PALMAS/TO

Maria José Antunes da Silva

RESUMO

Este artigo tem como objetivo mostrar as principais conclusões de uma


pesquisa de Doutorado, realizada no município de Palmas/TO, cuja tese
foi a elevação da renda da terra, ancorada na Teoria do Valor, de Marx,
no período entre 1993 a 2012 sobre a produção da cidade capitalista na
contemporaneidade com suas fortes marcas de expropriação da terra. Foi
realizado um estudo bibliográfico na sociologia e geografia crítica, além de
dados documentais e legislações das plantas genéricas da cidade. Observou-
se que a segregação socioespacial é a marca central, fruto da lógica perversa
da apropriação privada da renda da terra. Todavia, ela não ocorre sem
resistência, e a classe trabalhadora local registra conquistas importantes
nesse contexto.

Palavras-chave: Lutas de Classes. Cidade do Capital. Renda da Terra.


Segregação Socioespacial.

ABSTRACT

This paper aims to show the main conclusions of a Doctoral research, carried
out in the municipality of Palmas in the State of Tocantins (Brazil), whose
thesis was the increase in land rent, anchored in Marx’s Theory of Value,
in the period between 1993 and 2012 on the production of the capitalist
city in contemporaneity with its strong marks of land expropriation. A
bibliographic study was carried out in sociology and critical geography, as
well as documentary data and legislation of the generic plants of the city. It
was observed that socio-spatial segregation is the central mark, the result
of the perverse logic of private appropriation of land rent. However, it does
not occur without resistance, and the local working class registers important
achievements in this context.

Keywords: Class Struggles. Capital City. Land Income. Socio-Spatial


Segregation.

186
186
1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo mostrar as principais conclusões de uma pesquisa de
Doutorado, realizada no município de Palmas/TO, cuja tese foi a elevação da renda da terra, ancorada
na teoria do valor de Marx, no período entre 1993 a 2012 sobre a produção da cidade capitalista na
contemporaneidade com suas fortes marcas de expropriação da terra. A coleta de dados permitiu
identificar a materialidade do processo de segregação socioespacial em Palmas, que desemboca em
uma série de precarizações no processo de reprodução social da classe trabalhadora empobrecida,
em seu modo de vida e de moradia, e os estudos teóricos apontaram que esse processo é fruto do
uso da renda da terra pelo capital.

Essa pesquisa tomou como base a Teoria Social de Marx, tendo como referência a Teoria Valor
Trabalho, as concepções sobre a Renda da Terra e as Lutas de Classe. A partir dessas concepções,
podemos debater sobre a assertiva de que todas as riquezas da sociedade são fruto do trabalho, e
a renda da terra trata do trabalho não pago ao trabalhador, ou seja, da mais-valia.

O objeto de estudo dessa pesquisa foi a cidade de Palmas, capital do Estado do Tocantins,
por apresentar um processo de conformação e de inserção espefífica dentro do Estado. Por
um lado, a cidade apresenta uma fundação e um desenvolvimento singulares e, por outro,
apresenta uma forma especial de concentração da renda da terra e, como consequência, de
segregação socioespacial, uma vez que possui um tempo histórico, uma localização, um estágio
de desenvolvimento socioeconômico brasileiro e político peculiares e que atravessam, tanto a
formação da cidade, como a forma de apropriação, desenvolvimento e concentração da renda
da terra. São perceptíveis suas contradições, sendo uma cidade aparentemente rica com uma
urbanização “bem-feita” e, contraditoriamente, com um projeto altamente segregacionista, com
as contradições sociais veladas nas periferias da cidade.

2. A PRODUÇÃO DE PALMAS E A TEORIA DO VALOR TRABALHO

Palmas foi gestada em um momento de redemocratização e reconfiguração do Estado


brasileiro, para um Estado democrático de direito. Apesar disso, a cidade “cresceu” sob a égide
neoliberal que passou a assolar o país, com contrarreformas regidas sob a bandeira do “Estado da
livre iniciativa privada”. Isso com a mescla do moderno, do arcaico e do mandonismo político da
região.

A importância da criação de Palmas como capital do Estado está na integração e no


desenvolvimento de uma região onde houve o desenvolvimento de uma classe dominante local
(possuidores de terras) que antes estivera sob o mando e o desmando da política do Estado de
Goiás. Ela transformou-se de subordinada para autônoma no seu novo status enquanto ente
federado, e de presa aos “grilhões” da política de Goiás.

Em Palmas, o Estado foi o agente de desenvolvimento local e, é nessa conjuntura de


particularidade brasileira que ela se encontra, com sua singularidade de formação social-econômica-
cultural, além da sua inserção “periférica” em relação ao território nacional, onde houve o singular

187
187
processo de apropriação e de concentração da terra, de segregação socioespacial e de lula pela
moradia.

O exponencial aumento de concentração da renda da terra, em um curto espaço de tempo,


é um dos traços da formação de Palmas, realizado pelo poder estatal, o Estado neoliberal, que
conjuga não somente o moderno e o arcaico, mais o neoliberalismo e a transferência do público
(furto da terra) para indivíduos e grupos privados. Trata-se de uma forma de apropriação da riqueza
socialmente produzida, por meio da concentração da renda da terra, mediada pelo Estado.

Entre outras características de sua peculiaridade, Palmas não passou por um desenvolvimento
e ocupação de cidade de forma natural, mas foi instalada em um território que não apresentava
características de cidade. Como consequência disso, o “vazio urbano” (território rural) favoreceu a
dominação dos grupos hegemônicos, no intuito de consolidar seus projetos (Reis, 2018).

A fundamentação teórica para a apreensão da conformação urbana de Palmas tratou


de situá-la dentro do modo de produção do capital em seu processo ampliado de produção,
considerando toda a rede de atendimento a seu processo de reprodução. Portanto, Palmas foi
criada para ser uma cidade moderna, neoliberal e do capital, se constituindo como fundamental,
como sendo o centro de ligação e de fortalecimento do desenvolvimento do capitalismo no Brasil.

De acordo com Marx (2017), a renda da terra tem a potência de produzir superlucros
localizados, que se refere a uma categoria econômica que nasce das relações sociais capitalistas,
fruto da exploração do trabalho não pago, sendo a renda da terra uma parte da mais-valia que é
repartida entre os capitalistas. Independentemente das formas metamorfoseadas que aparece
essa renda, suas origens continuam intactas. O preço de custo e de produção fornecem o valor
da mercadoria a ser vendida pelo capitalista. Ficou demonstrada a forma pela qual o capitalista
desenvolve uma grande corrida por superlucros. Entretanto, o superlucro, advindo da renda da
terra, não comunga da mesma lógica, pois a renda da terra é oriunda dos atributos presentes
unicamente na terra, a partir da renda absoluta e da renda de monopólio. Esse processo ocorre
porque a terra não é mercadoria, logo, não é reprodutível. Portanto, não entra na equalização dos
custos de uma mercadoria.

A concentração de rendas da terra desemboca no processo de apropriação da renda da terra


que é utilizada por concentradores rentistas ao ter o solo transformado em capital. Esse processo
possibilita um grande uso da renda da terra pelo sistema financeiro, já que se torna um acúmulo
de capital que abre para possibilidades de arrecadar mais dinheiro com a aplicação de juros e
mais lucros. Entretanto, esse processo não muda a origem desse capital acumulado que ocorre no
processo de expropriação do trabalho não pago (Marx, 2017).

Em muitos momentos históricos, a consequência do processo de acúmulo de capital e de


riquezas ociosas foi motivo da detonação de crises do capital. Todavia, conforme Behring (2011),

[...] a espiral da crise precisa ser compreendida por dentro dos ciclos longos
de expansão e depressão, superando-se, dessa forma, a tendência de os
economistas articularem às crises aos detonadores imediatos, que em geral
são os catalizadores da depressão, mas não a sua causa. (Behring, 2011, p.
166).

188
188
Logo, as crises do capital são inerentes à lógica do sistema, então, independentemente do
motivo da detonação da crise, ela sempre ocorrerá, pois é fruto da tendência da queda da taxa de
lucro, corriqueira no processo de superprodução que se reflete no valor de troca das mercadorias.

A terra também é um obstáculo para o capitalista, pois não é reprodutível, mas esse obstáculo
é retirado quando ela é apropriada pelo capitalista. É o crescimento da renda que incide no solo,
e não o contrário, e essa realidade se apresenta quando, em tempos de crescimento econômico,
parte da mais-valia é destinada à renda da terra. Em contrapartida, em tempos de crise, ocorre
um processo oposto. É possível antecipar o uso futuro de uma determinada renda da terra, e esse
movimento resulta em especulação.

Se por um lado a terra não é mercadoria, por outro lado, a moradia o é. Todavia essa
última não se converterá automaticamente em mercadoria, pois seu valor de uso é predominante
no processo de reprodução social do trabalhador. Porém, esse processo se modifica quando o
capitalista faz uso da moradia como uma mercadoria com valor de troca, onde é possível extrair
lucro de diversas maneiras, como, por exemplo, com o aluguel, com o arredamento e com a venda.

3. A CONFIGURAÇÃO DA POLÍTICA URBANA DE PALMAS

O debate acima explicou a lógica perversa que o capitalismo provoca como consequência
a segregação socioespacial provocada pela elevação da renda da terra para a classe trabalhadora
empobrecida que, como alternativa, ocupa áreas distantes dos centros urbanizados. Em Palmas, em
poucos anos, foi habitada a partir de suas extremidades e, com as lutas de seus moradores, o Estado
foi obrigado a realizar infraestrutura para atender às novas demandas de moradia. Essa pesquisa
identificou o escandaloso processo de segregação socioespacial que produziu consequências, como
um desperdício significativo de orçamento público com grandes gastos realizados na urbanização
de locais que ficavam em situação de subutilização.

A segregação socioespacial, de acordo com Ramos (2002), de modo geral, está se referindo
ao afastamento físico e simbólico entre as classes sociais abastadas e as classes empobrecidas,
e não somente à segregação socioespacial das classes sociais empobrecidas. Palmas, em seu
processo de urbanização, constituiu um processo de segregação socioespacial, respondendo a uma
lógica socioeconômica própria das cidades capitalistas da modernidade e, mesmo quando produziu
investimentos estatais, na política de habitação de interesse social, respondeu a uma ordem
econômica que manteve essa segregação socioespacial. Logo, a habitação sofreu um processo de
valorização que segregou os trabalhadores empobrecidos, que foram “empurrados” para locais
distantes dos espaços urbanizados, além de terem de se submeter a moradias precárias e com
infraestrutura urbana inadequada. A Figura 1 nos mostra a segregação socioespacial produzida
historicamente em Palmas.

189
189
Figura 1: População com renda de até R$ 70,00 de Palmas

Fonte: GOMES (2020)

A Figura 1, acima, que trata da população com renda de até R$ 70,00, mostra o local onde
a população em situação de pobreza absoluta reside: nas extremidades da cidade, segregadas do
centro, concentrando-se mais na região sul, onde deveria ser ocupado somente quando a cidade
contasse com mais de um milhão de habitantes. Todavia, a região em questão foi povoada ainda
no início da criação da cidade, sendo que as regiões centrais, na atualidade, ainda contam com
quadras inteiras desabitadas.

Os dados empíricos dos preços administrativos dos terrenos de referência de cobrança do


Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do Imposto de Transmissão de Bens e Imóveis (ITBI)
foram reveladores do processo de elevação da renda da terra em Palmas, fruto do trabalho social
aplicado à cidade, com um vultuoso processo de investimento em urbanização. Em poucos anos,
foi possível fixar um grande volume de renda da terra.

Se por um lado grandes investimentos estatais deram asas para a elevação da renda da
terra urbana, por outro, não significou a ocupação automáticas das áreas urbanizadas, uma vez
que, até hoje, há quadras inteiras urbanizadas, mas sem moradores, áreas disponíveis para o
mercado e aguardando ainda mais elevação da renda da terra. Como agravante, as áreas periféricas
da cidade também foram impactadas com a elevação da renda da terra em poucos anos. Essa é
uma consequência das instalações que foram desenvolvidas no decorrer das ocupações. Todavia,
a consequência disso, foi a produção em massa de moradias fora do perímetro urbano de Palmas.

190
190
Essas moradias ficam na cidade de Porto Nacional, no distrito de Luzimangues,1 ao lado de Palmas,
com uma população que representa quase que 10% da população de Palmas. Vale ressaltar que
esse processo cria diversos desafios à classe trabalhadora, tendo em vista que os moradores de
Porto Nacional trabalham em Palmas, conforme fica evidenciado nos estudos de Pinto (2014).

4. A MORADIA E A LUTA DE CLASSES

Todo o processo de ocupação do município de Palmas não ocorreu sem resistência. Conforme
Silva (2009), as contradições produzidas no processo de segregação socioespacial tiveram como
enfrentamentos diversas lutas da classe trabalhadora, que tensionaram com várias formas de
resistência, na perspectiva de acessar a moradia urbana em Palmas e, como respostas a essas lutas,
diversas moradias populares foram construídas em regiões menos segregadas. Houve um grande
potencial de lutas da classe trabalhadora na constituição e na ocupação da cidade, que contribuiu
com sua reconfiguração, como podemos ver na Figura 2, abaixo:

Figura 2: Quadras centralizadas com expressiva resistência da classe trabalhadora

Fonte: Gomes (2020).

1 O município de Luzimangues fica situado ao lado do Lago de Palmas, fazendo divisa com Porto Nacional,
porém está localizado a 60 km de distância do centro dessa cidade, e aproximadamente, a 12 km do centro de Pal-
mas. Nos últimos anos, o loteamento em questão apresentou um crescimento elevado nas vendas, pois pro-
punha prestações de baixo valor, dimensionadas a perder de vista e, com essa estratégia de venda, o local passou
a ser moradia de trabalhadores empobrecidos de Palmas. Pinto (2014) contabilizou 22.323 imóveis nesse local.

191
191
De acordo com Engels (2005), a ideia de que todas as pessoas têm que ter uma “casinha
e uma hortinha” é uma solução burguesa, que não considera as particularidades da classe
trabalhadora, tendo em vista que, na sociedade capitalista, a casa própria não tem solução, pois a
lógica da acumulação não permite a distribuição de moradias. A solução da casa própria trata- se
apenas de paliativos dentro do mundo do capital, sendo que a maneira definitiva de se enfrentar
as mazelas da habitação popular é a busca de solução para resolver os problemas societários, que
perpassa por encontrar as explicações para a organização social do capitalismo.

A partir dessa compreensão, abre-se o caminho para a busca da superação desse sistema. As
ações do Estado para a moradia são formadas considerando as particularidades que se encontram
em uma totalidade das questões urbanas, no contexto da sociabilidade capitalista, que tem sido
pauta de lutas dos movimentos sociais urbanos que, historicamente, reivindicam essa condição de
reprodução da vida social. Tais conquistas não foram fáceis, tendo em vista que as lutas políticas
de diversos movimentos sociais urbanos se encontraram no meio do caminho com o braço forte do
Estado policial, que não mediu força no combate às lutas da classe trabalhadora, apresentando-se
fortemente armados em defesa da propriedade privada.

Apesar disso, os trabalhadores promoveram um importante desbloqueio de diversas


terras que foram ocupadas. Atualmente, podemos observar a materialidade dessas lutas, com a
presença da classe trabalhadora em quadras que jamais poderiam ter sido compradas, como: Vila
União, 1.106 Sul, 1.206 Sul e, principalmente, 409 Norte e 1.306 Sul. Essas duas últimas foram
contempladas com investimento público na produção das moradias populares. Isso foi possível,
pois as conquistas desses dois espaços ocorreram no período em que existia, ainda que de forma
insuficiente, investimentos de produção habitacional de interesse social. O destaque especial a
essas áreas ocorre em função de estarem em locais de boa localização, onde a renda da terra tem
um importante valor, e cujos trabalhadores jamais conseguiriam ter reunido recursos suficientes
para a compra desses terrenos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo elencar os principais elementos sobre a pesquisa realizada
no município de Palmas/TO, no período de 1993 até 2012, que pretendeu investigar os dados da
realidade que implicaram na produção de uma cidade construída no processo de uma modernidade,
mas que ainda apresenta problemas de habitação não resolvidos. Esse processo ocorre em função
de se tratar da construção de uma cidade no interior do país com uma economia dependente, com
um desenvolvimento desigual e combinado, e que atende a uma lógica da totalidade do modelo de
sociedade burguesa do capitalismo contemporâneo (Oliveiro, 2003).

No município de Palmas, nos debates políticos dos movimentos sociais, já se aventava que
a questão do acesso à terra era uma grande problemática, mas não havia ainda os subsídios críticos
e teóricos para explicar esse tema, apesar de a classe trabalhadora já ter um arcabouço de debate
com relação a questões fundiárias, que eram os principais gargalos a serem enfrentados na luta
pela moradia digna. Os elementos constitutivos desse estudo poderão ser socializados com os
trabalhadores para constituir subsídios para debates de lutas de classes, a fim de maturá-los, pois
é preciso entender que a raiz central da problemática societária está na expropriação do trabalho.

192
192
Então, podemos concluir que a elevação da renda da terra, ancorada na Teoria do Valor
de Marx, é questão determinante na produção da segregação socioespacial no município de
Palmas. Todavia, ela não ocorre sem resistência, e a classe trabalhadora local registra conquistas
importantes nesse contexto.

REFERÊNCIAS

BEHRING, E. Política social no capitalismo tardio. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia. Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2015. (Coleção Marx-Engels).

GOMES, Pedro Igor Galvão. Mapa georreferenciado, Figuras 1 e 2 elaboradas com base nos dados
do IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020), e de estudos do Grupo de Estudos em
Desenvolvimento Urbano e Regional GEDUR-UFT (2020) do sistema de Coordenadas: Sistema de
Coordenadas Global Projeção: Sirgas 2020. Palmas, 2020.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III: o processo Global da Produção Capitalista.
Trad. e seleção de textos de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017. (Coleção Marx-Engels).

PINTO, Lúcio Milhomem Cavalcante. Luzimangues: uma “nova cidade” na periferia de Palmas?
Revista Arquitetos, n. 2, ano 14, janeiro. 2014. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/
read/arquitextos/14.164/5019. Acesso: 15 jan. 2018.

RAMOS, Maria Helena Rauta. Políticas Urbanas, conselhos locais e segregação socioespacial. In:
RAMOS, M. H. R. (Org.). Metamorfoses sociais e políticas urbanas. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
2002.

REIS, Patrícia Orfila Barros dos. Modernidades Tardias no Cerrado: arquitetura e urbanismo na
formação de Palmas. Florianópolis: Insular, 2018.

SILVA, Maria José Antunes. Sujeitos em Cena: processo de organização dos movimentos sociais em
Palmas/TO - 1989-2008. 2009. 114 f. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social, PUC/GO, 2009.

193
193
MESA 3: TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E
EMANCIPAÇÃO

Mesa 3

Trabalho, Questão
Social e Emancipação
FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO

Juliana Stéfane Carvalho Gomes da Silva


Janaína Lopes do Nascimento Duarte
Thales Eduardo de Oliveira Martins

1. INTRODUÇÃO

A história do Brasil é marcada por um contexto peculiar de desenvolvimento capitalista,


profundamente influenciado pelo colonialismo, pela escravidão e pela exploração de recursos
naturais. Esses elementos contribuíram para a formação societária marcada pela dependência
e pela desigualdade. Desde os tempos coloniais até os dias atuais, a dependência econômica e
social dos países da América Latina em relação aos centros capitalistas tem sido uma característica
persistente. Este artigo tem como objetivo explorar a relação entre o capitalismo dependente
e a formação social e histórica do Brasil, analisando como essa dinâmica influencia a política de
educação.

Para a elaboração deste texto o método utilizado foi o materialismo histórico-dialético. Os


procedimentos utilizados durante a realização dessa pesquisa aproximativa a revisão bibliográfica,
no que se refere às reflexões contidas na obra de Florestan Fernandes e seus interlocutores; e, uma
breve pesquisa documental dos principais documentos publicados pelo Ministério da educação no
período recente.

Desde a colonização até os dias atuais, a educação no Brasil tem sido marcada pela exclusão,
pela desigualdade e pela privatização, refletindo as características da formação social brasileira. No
contexto atual, a política educacional é moldada por uma ótica de classe, que privilegia os interesses
da dominação burguesa (local associada à internacional) em detrimento das necessidades das
classes trabalhadoras. Além disso, a ascensão do neofascismo e o enfraquecimento dos direitos
sociais, principalmente a partir do Governo Bolsonaro (2019-2022), colocam em xeque as conquistas
obtidas na luta por uma educação pública e de qualidade.

Assim, este texto encontra-se organizado em 2 partes: a) capitalismo dependente e a


formação social e histórica do Brasil; e b) a implicação da formação brasileira e seu viés dependente
no que se refere a educação. Diante desse cenário, nas considerações finais se destacam a luta por
uma educação emancipadora e inclusiva que se torna ainda mais urgente e necessária nos tempos
atuais. A resistência às políticas neoliberais e conservadoras, assim como a luta pelo horizonte de
uma nova sociabilidade, baseada na igualdade e na justiça social, são fundamentais para enfrentar
os desafios do presente e construir um futuro distinto, de reconhecimento de direitos para todos.

2. CAPITALISMO DEPENDENTE E A FORMAÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA DO BRASIL

A formação social e histórica do Brasil diferencia-se dos países centrais que passaram

195
pelos moldes tradicionais em seu desenvolvimento capitalista. O colonialismo e a escravização
dos negros e índios, a exportação de matérias-primas e o uso desse trabalho forçado provocaram
marcas profundas na estrutura social, econômica e cultural, deixando como legado a exploração, a
desigualdade social e de estruturas que se assemelham a tempos coloniais.

Esse cenário de “dependência colonial” não se rompe, apenas se revitaliza, mesmo com a
independência desses países, pois, para Fernandes (2020), no aspecto econômico, as estruturas
sociais e econômicas permanecem iguais (ou quase, considerando as particulares conjunturas),
sendo usadas para controle das elites locais e “contribuindo” para os países de capitalismo central.
Para Fernandes (1968), o Brasil teve sua consolidação a partir da mescla entre o “moderno e
arcaico”, sendo então “livres” politicamente, mas dependentes economicamente e socialmente
dos países centrais capitalistas.

A dependência se torna necessária para o capitalismo, pois existe uma articulação entre
os países centrais e os dependentes. Desvincular-se dessas estruturas não apresenta ser uma
opção viável, pois existe uma associação de interesses internos e externos, que também privilegia
a classe dominante local. O desenvolvimento “atrasado” no Brasil, é uma condição de aparência,
que possibilita uma exploração e apropriação que é importante para a permanência das classes
dominantes nas posições de poder (SILVA, 2021), visto que para condução interna deste processo
de exploração aguçada é fundamental uma burguesia local1 que esteja vinculada organicamente
aos interesses da burguesia imperialista. É o que constitui uma lógica de parceria, ou seja, “as
burguesias locais se constituem como parceiras (ainda que menores e subordinadas) das burguesias
hegemônicas” (DUARTE, 2020, p. 80).

O vínculo com as burguesias centrais é importante para a constituição e manutenção do


capitalismo dependente no Brasil. Para a burguesia o “controle direto do Estado surgia como única
e real garantia de autoproteção para o predatório privado existentes” (FERNANDES, 2020, p. 217).
Essa burguesia também contribui com o papel de pauperização da classe trabalhadora, retirando
direitos, destruindo políticas públicas e aumentando a exploração, desarticulando a mobilização
trabalhista e sindical.

No tocante, todo este processo que marca a formação brasileira e se espraia para um
desenvolvimento capitalista dependente “acarreta repercussões importantes para o debate da
educação” (DUARTE, 2020, p. 81), principalmente pública em um país tão marcado pela lógica do
privilégio, pelo agravamento da desigualdade e pelo acúmulo de poucos.

3. AS IMPLICAÇÕES DA DEPENDÊNCIA NA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO

A sociedade brasileira se constitui com base na exploração, expropriação e escravização


1 De acordo com os estudos e reflexões de Fernandes (2020), a burguesia local difere-se da burguesia dos
países de capitalismo central, especialmente no que tange à compressão de pertencimento e de integração nacional.
Dado que aquela atua para atender aos seus interesses privados e para promover a reprodução do capital mundial, as-
sim, não operam com o intuito de romper com a dependência, tampouco para oferecer a universalização dos direitos
para toda sociedade, como ocorreu nos países centrais.

196
dos povos originários e, principalmente, da população negra. Assim, a formação social brasileira
perpassa por um passado escravocrata, etnocêntrico, racista, genocida, patriarcal e elitista que
é revitalizado no presente sob novos contornos para garantir novos padrões de produção e de
reprodução do capital. Vale apontar que devido à condição de dependência do Brasil, em relação
aos países de capitalismo central, essas características são intensificadas ao extremo (FERNANDES,
2020).

Essa organização social, política, econômica e cultural atravessa de forma dialética a política
de educação, assumindo novas formas a depender da conjuntura sócio-histórica, mas com a essência
colonial sempre presente. Isto é, conforme sinaliza Fernandes (2020), existe no Brasil uma condição
colonial permanente que se demonstra pelas “raízes históricas escravocratas, patrimonialistas e
conservadoras que persistem na dinâmica econômica, sociocultural e política do país” (DUARTE,
2021, p. 25).

Por conseguinte, nota-se que as desigualdades são essenciais para a existência do modo
de produção capitalista, por isso, a dinâmica da educação em solo brasileiro move-se na história a
partir de um padrão também dependente que se renova no campo educacional, ao sabor da luta
de classes. Haja vista que a dependência ocorre em razão da ausência de autonomia, categorizado
por Fernandes (2020) como heteronomia, dos países dependentes no que consiste aos processos
decisórios. Logo, a educação brasileira desde o período colonial até a atualidade, é disposta, de
modo hegemônico, para atender aos interesses externos e privatistas da burguesia local, em
detrimento das necessidades nacionais.

A título de exemplo, a educação no Brasil colônia era direcionada à catequização dos povos
indígenas com o intuito de servir às pretensões dos colonizadores portugueses, posteriormente
subordina-se às pressões da Inglaterra que vislumbrava expandir o mercado consumidor (MELO,
2012). Já no século XX, com o capitalismo em sua fase monopolista2, os efeitos da sociedade de
classe também direcionam uma educação cindida pelas classes fundamentais, conferindo uma
dualidade educacional “[...] que é estruturante do capitalismo: uma escola para os filhos da classe
dominante e outra para os filhos da classe trabalhadora” (PAQUIELLA, 2020, p. 215).

O período da ditadura civil militar brasileira endureceu essa característica da educação, pois
aliado ao processo de industrialização, coexiste um modelo educacional pragmático e tecnicista
orientado para formação de mão de obra barata para atender às indústrias estrangeiras (MELO,
2012). Após o fim da ditadura burguesa no final da década de 1980, por meio de inúmeras lutas e
resistências, a classe trabalhadora disputa espaços e logra a promulgação da Constituição de 1988,
marcando o cenário da redemocratização brasileira com a conquista de diversos direitos, ainda que
a partir dos limites capitalistas.

Contudo, apesar da fixação de tais direitos sociais na Constituição Federal, configurando


um estatuto legal, a maioria desses direitos ficam somente no papel e no imaginário dos seus
idealizadores, diante do campo de disputas de classe. Na realidade, grande parcela da população
brasileira, principalmente pertencentes à classe que vive do trabalho estão apartadas do acesso aos
direitos básicos de saúde, educação, trabalho, lazer, moradia, segurança, alimentação, transporte e
2 NETTO (2011, p. 2019) indica que a fase do capitalismo monopolista denota “o sistema totalizante de contra-
dições que confere à ordem burguesa os seus traços basilares de exploração, alienação e transitoriedade histórica”.

197
dentre outros, conforme estruturado no artigo 6º da Constituição (BRASIL, 1988).

A lógica do capitalismo em sua faceta dependente determina o enfraquecimento de


quaisquer políticas sociais no âmbito brasileiro. Nesse sentido, as contradições são acentuadas
e, embora sejam evidentes algumas conquistas de 1988 para a classe trabalhadora, a ofensiva
neoliberal promovida nos anos 1990 sinaliza que as disputas políticas na esfera estatal se inclinam
aos interesses da classe dominante. Assim, onde existe um direito, há, do outro lado, uma enérgica
tendência privatizante e exploradora que desresponsabiliza o Estado na primazia da condução e
do financiamento das políticas sociais, materializando as incoerências existentes entre capital e
direitos, especialmente na realidade dependente.

Nesse ínterim, a educação pública mesmo que esteja legitimada enquanto um direito de
todos e como dever do Estado de assegurá-la, de acordo com o artigo 205 da Constituição Federal
(BRASIL, 1988), não é garantida de fato. Na contramão, o artigo 209 garante a intervenção da
iniciativa privada no fornecimento da educação como um serviço (e não direito social), provocando
o deslocamento dessa política social da esfera do direito para o campo da mercadoria.

As intenções e as ações concretas dos países mandatários e da classe burguesa local expressam
as características da formação social brasileira, em combinação com o capitalismo dependente,
repercutem também na política de educação, uma vez que “os elementos estruturantes do
capitalismo dependente também mobilizam um padrão dependente educacional” (DUARTE, 2020,
p. 81). Como exemplos concretos, as orientações do Consenso de Washington na década de 1990,
assim como as instruções do Banco Mundial requisitam dos países da periferia do globo políticas
econômicas de ajustes severos, a fim de reduzir drasticamente os gastos públicos com políticas
sociais para, estrategicamente, privatizar, ainda mais, os serviços públicos como a educação.

Esses instrumentos contribuem para a manutenção da educação como privilégio de classe,


posicionando-a enquanto mercadoria, sendo apreciada por quem pode pagar. Na atualidade, pode-
se destacar algumas ações governamentais orientada por esses interesses, tais como: a Emenda
Constitucional nº 95 (BRASIL, 2016) que engendrou um ajuste fiscal que sucateou os gastos do
Estados nas áreas sociais, em especial das políticas de educação e saúde, a contrarreforma do
Ensino Médio, os projetos que aspiram à institucionalização do homeschooling, ou seja, fomentam a
educação domiciliar, e o Programa Escolas Cívico-Militares3. No que diz respeito ao Ensino Superior
tem-se o aumento exponencial do Ensino à distância, além do Novo Fies de 2017 e do Programa
“Future-se” de 2019.

Dito isso, cabe salientar que as intenções políticas, econômicas e ideológicas da classe
dominante formam um direcionamento neofascista, a partir da associação entre ultraneoliberalismo
e ultraconservadorismo (ARCARY, 2019) como ferramenta de manutenção do status quo. Em outras
palavras, advém um cenário propicio para revigorar, de modo mais intenso, as peculiaridades
da formação social brasileira, ou seja, as violências de classe, de raça, de etnia, de gênero, de
sexualidade que são revividas cotidianamente na sociedade e, sobretudo, nas escolas, como
importantes estratégias de manutenção da dependência.

3 No dia 12/07/2023, o Programa Escolas Cívico-Militares foi extinto pelo Governo Lula, contudo assegurou-se
à autonomia dos Estados e do Distrito Federal para optarem pela manutenção ou não do Programa. Apesar das análi-
ses de especialistas sobre o caráter excludente deste modelo de educação, diversos Estados e inclusive o DF escolhe-
ram pela continuidade do Programa.

198
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A LUTA DEVE SER PERMANENTE!

Os últimos anos sinalizaram a importância dos estudos e reflexões do sociólogo, militante


e professor Florestan Fernandes, visto que esse fornece um material denso e complexo de
compreensão da realidade brasileira em sua totalidade, considerando sua formação social,
econômica, política e cultural. O entendimento acerca da maneira em que o Brasil se insere
na econômica mundial reflete radicalmente no modo de produção e reprodução das relações
sociais e culturais. Assim, “a formação social brasileira e a relação entre o padrão dependente
de desenvolvimento e de educação constitui importante chave analítica para a compreensão dos
dilemas educacionais brasileiros” (DUARTE, LIMA, 2022, p.7).

A dependência brasileira forjada na associação colaborativa entre a burguesia local e a


burguesia internacional em prol da manutenção do sistema de exploração, indicam as formatações
da política de educação dentro desta realidade. Essa peculiaridade propicia uma ultraexploração
da classe trabalhadora e dos recursos naturais locais, em razão da apropriação dual do excedente
econômico (FERNANDES, 2020). Isso significa dizer que a engrenagem da dependência possibilita
vantagens à burguesia local e internacional, por isso, essa estrutura precisa ser desmistificada em
sua essência, pois a dependência não é uma mera fatalidade do desenvolvimento capitalista, mas
sim um uma necessidade orgânica do capitalismo em sua constituição mundial.

Para corresponder a essa realidade, a política de educação é orientada por uma ótica de
classe, dessa forma, ocorre simultaneamente ao capitalismo dependente um padrão educacional
dependente. A partir da concentração de renda, prestígio e poder nas mãos da classe dominante
transcorre uma exclusão da classe trabalhadora de diversos direitos, inclusive o direito a uma
educação pública e de qualidade. Do contrário, constitui-se uma educação engessada, acrítica e
tecnicista para a classe trabalhadora e seus filhos. Fato esse evidenciado pela precariedade e pelas
condições de desmonte das escolas e universidades públicas brasileiras, gerados, sobretudo, pela
falta de investimento público, como resultado da disputa do fundo público, como também pela
legitimação de ações como o homeschooling, a expansão do Ensino à Distância e da educação
privada em detrimento da pública, principalmente no que tange ao Ensino superior.
Por fim, cabe salientar que a realidade é dinâmica e que apesar da extrema direita ter
sido derrotada nas urnas em 2022, o projeto neofascista ainda persiste pelos espaços de poder,
vociferando o ódio de classe, raça, gênero, etnia, sexualidade e dentre outros marcadores
sociais. Além disso, embora o Governo Lula em seu primeiro ano de mandato, em 2023, tenha
proporcionado mudanças significativas no direcionamento da educação pública como a extinção
do Programa Escolas Cívico-Militares, a criação do Programa Escola em tempo Integral e investido
na educação, coexiste também ações de incentivo à privatização da educação, como o Decreto
11.498/23 (BRASIL, 2023). Portanto, a luta em defesa da educação pública e de qualidade é
permanente e indissociável da luta por uma nova sociabilidade sem exploração e opressão, aliada
da luta pela quebra dos determinantes da dependência.

REFERÊNCIAS

ARCARY, Valério. Bolsonaro é ou não um neofascista? In: O neofascismo no poder (ano I): análises
críticas sobre o governo Bolsonaro. Rio de Janeiro: Consequência, 2019, p. 101-117.

199
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico,
1988.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF:
DOU, 15 dez. 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/
emc/emc95.htm>. Acesso em: 15/03/2024.

BRASIL. Decreto nº 11.498, de 25 de abril de 2023. Altera o Decreto nº 8.874, de 11 de outubro de


2016, para dispor sobre incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura com benefícios
ambientais e sociais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 de abril de 2023. Disponível em: <https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/decreto/d11498.htm#:~:text=DECRETO%20
N%C2%BA%2011.498%2C%20DE%2025,com%20benef%C3%ADcios%20ambientais%20e%20
sociais> Acesso em: 18/03/2024.

DUARTE, Janaína Lopes do Nascimento. Notas sobre o pensamento educacional de Florestan


Fernandes. In: LIMA, Kátia Regina de Souza (org). Capitalismo dependente, racismo estrutural e
educação brasileira: diálogos com Florestan Fernandes. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020,
p. 77-93.

DUARTE, Duarte. Velhos e novos dilemas da educação superior brasileira em tempos de Covid-19.
In: SANTOS, Leonardo Moreira dos; SOUSA, Raquel de Brito; NOGUEIRA, Ian Carlos (Orgs.).
Humanidades em tempos de trabalho remoto: Educação, Universidade, Saberes. Porto Alegre/RS:
Editora Fundação Fênix, 2021, p. 21-46.

DUARTE, J.; LIMA, K. Fascistização e educação superior: o futuro da universidade pública em xeque.
In: Argumentum, Vitória, v. 14, n. 1, p. 7-25, jan./abr. 2022.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de Classes e subdesenvolvimento. 2o ed. [s.l.] Zahar editores,


1968. p. 9–48.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica.


Curitiba: Kotter Editorial; São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

MELO, Silveira. História da Educação no Brasil. – 2 ed. Fortaleza: UAB/IFCE, 2012. Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. III. Universidade Aberta do Brasil – UAB. IV. Título.
CDD – 370.9810785.

NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 8ª edição. São Paulo: Cortez, 2011.

PAQUIELLA, Larissa. Dualidade educacional, Institutos Federais e Territórios: um debate necessário.


In: LIMA, K. R. de S. (Org.). Capitalismo dependente, racismo estrutural e educação brasileira:
diálogos com Florestan Fernandes. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020. p. 211-228.

SILVA, Juliana Stéfane Carvalho Gomes da. O Serviço Social e a Pandemia da Covid-19: a importância
das entidades organizativas na orientação da categoria profissional (Trabalho de Conclusão de Curso
– Serviço Social). Brasília/DF: Departamento de Serviço Social/Universidade de Brasília, 2021.

200
MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E SUAS REPERCUSSÕES PARA OS DIREITOS SOCIAIS

Isabella Reis Silva


Reginaldo Ghiraldelli

RESUMO

Este texto enfatiza as consequências deletérias da Reforma Trabalhista


para os direitos da classe trabalhadora. De abordagem qualitativa,
apresenta algumas das mudanças ocorridas na legislação trabalhista, com
o propósito de identificar a dilapidação da proteção social no Brasil diante
da implementação de medidas neoliberais. Sob a ótica da luta de classes,
considera-se que a legislação que regula as relações de trabalho é um campo
de tensões e disputas ideopolíticas. A aprovação da Reforma Trabalhista em
2017, representa um ponto de inflexão no que se refere ao processo de
ataque permanente ao sistema de proteção, garantias e direitos sociais da
classe trabalhadora.

Palavras-Chave: Trabalho. Reforma. Legislação Trabalhista. Direitos Sociais.

1. INTRODUÇÃO

As relações de trabalho são reflexo de um processo histórico e dinâmico que assume


características específicas de acordo com determinados contextos e formação socioeconômica. No
caso brasileiro, a legislação trabalhista é um aspecto relevante do mundo do trabalho e, por meio
da sua configuração, é possível identificar tendências ideopolíticas que orientam as normativas
jurídicas e sua incidência nos sistemas de proteção social em uma conjuntura marcada pelos
antagonismos entre classes sociais.

A partir do ano de 2016 foram intensificados os debates em defesa de uma reforma da


Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aprovada em 1943 (Brasil, 1943). Com base nas discussões
favoráveis à necessidade de uma reforma, constavam discursos de que a CLT era obsoleta e não se
enquadrava mais em um contexto econômico complexo e tampouco se mostrava eficiente paras
as crises econômicas emergentes e para o saneamento das contas públicas (Droppa; Biavaschi;
Teixeira, 2021).

A aprovação da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467) em 2017, representou a corrosão de


direitos trabalhistas conquistados historicamente pela classe trabalhadora. Dentre os argumentos
favoráveis à aprovação da Reforma Trabalhista, estavam, segundo Krein e Colombi (2019), a
retomada da confiança do mercado, o crescimento econômico e a geração de empregos.

Em julho de 2017, no contexto de votação do Projeto de Lei da Câmara (PLC n.38), o


então senador Romero Jucá (PMDB/ RR), afirmou que o projeto não retirava direitos da classe

201
trabalhadora, tendo em vista que estes estavam assegurados na Constituição Federal de 1988.
Declarou ainda que a aprovação do PLC garantiu avanços e modernização da legislação e das
relações de trabalho, propiciando oportunidades de empregos, frente ao exacerbado nível de
desemprego1. Em contrapartida, a senadora Gleisi Hoffmann (PT/PR), em seu discurso2, declarou
que os direitos sociais garantidos pela CLT estavam sendo “rasgados”.

A Terceirização Total (Lei nº 13.429/17) foi aprovada em 31 de março de 2017, quando já


tramitava no senado a Reforma Trabalhista. A lei que autoriza a Terceirização Total se contrapõe à
súmula nº 331 (Brasil, 1993) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que regulava a terceirização
apenas para as atividades-meio, passando a permitir após a sua aprovação, a terceirização das
atividades-fim (Droppa; Biavaschi; Teixeira, 2021).

Um dos principais pontos que caracterizam a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17 e


13.429/2017) como dilapidação dos direitos sociais da classe trabalhadora, são as novas formas
de contratação que deixam a classe trabalhadora à mercê da instabilidade salarial, insegurança
laboral, incertezas contratuais e arrefecimento das organizações coletivas diante dos ataques aos
sindicatos.

Este texto, resultado de pesquisa qualitativa, apresenta algumas mudanças na legislação


trabalhista a partir da aprovação da Reforma Trabalhista. Os dados foram analisados e sistematizados
com base em informações disponíveis no Portal da Legislação - Planalto, Congresso Nacional, Portal
da Câmara dos Deputados e Agência Senado. Por conseguinte, a revisão da literatura permitiu
a sistematização de conteúdo que possibilitou uma compreensão do objeto a partir de uma
perspectiva histórica e de totalidade. Buscou-se informações adicionais e complementares em
páginas eletrônicas do TST (Tribunal Superior do Trabalho), Ministério Público do Trabalho (MPT) e
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA).

2. AS MUDANÇAS NA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA OS


DIREITOS SOCIAIS

A legislação trabalhista é um aspecto relevante na análise do mundo do trabalho no


capitalismo, pois além de regular as relações laborais, torna evidente a arena de tensões, conflitos,
antagonismos e disputas ideológicas, políticas e econômicas no terreno da luta de classes. O que
caracteriza a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17 e 13.429/2017) como desconstrução dos
direitos e do sistema de proteção social, são as novas formas de contratação e vínculos laborais,
que deixam a classe trabalhadora mais suscetível às intempéries sociais provocadas pelas crises
do modo de produção capitalista. Dentre as suas consequências são observadas inseguranças e
incertezas nos tipos de vínculos laborais, instabilidade contratual, ampliação de formas precárias
e informais de trabalho, terceirizações e rebaixamento salarial. No que se refere às mudanças na
legislação trabalhista após a aprovação da Reforma em 2017, o Quadro 1 enumera alguns aspectos
com o objetivo de identificar a dilapidação dos direitos sociais conquistados historicamente pela
classe trabalhadora.
1 Sessão deliberativa - Reforma trabalhista - 11/07/2017 (Parte 2). Disponível em: https://youtu.be/HfYYF3Zg-
zYA?t=4071. Acesso em: 11 de jul. 2023.
2 Sessão deliberativa - Reforma trabalhista - 11/07/2017 (Parte 2). Disponível em: https://youtu.be/HfYYF3Zg-
zYA?t=803. Acesso em: 19 de mar. 2024

202
Quadro 1. Alterações contratuais e acordos a partir da Reforma Trabalhista de 2017

Tema Regra Anterior Com a Lei nº 13.467/17


Intervalo in- O art. 71 da CLT, afirma que em qual- O art. 611-A, afirma que deve ser
trajornada quer trabalho em que a jornada ul- respeitado o limite mínimo de 30
trapasse 6h, é obrigatório o intervalo minutos para jornadas superiores a
de no mínimo 1h. 6h.
Jornada de De acordo com a Súmula nº 444 do O art. 59-A, afirma mediante acor-
trabalho TST, permite-se a jornada 12x36, caso
dos individuais ou coletivos a jorna-
prevista em lei ou mediante conven-
da de 12h seguidas por 36h ininter-
12x36
ção coletiva. ruptas de descanso.
Os art. 443 e 452-A, regulamentam
o contrato de trabalho Intermiten-
te, no qual, a prestação de serviços
é subordinada, com alternância de
prestação de serviços e inatividade.
Trabalho in- Não há previsão.
É assegurado o pagamento de fé-
termitente
rias, 13º salário e previdência social
ao final de cada período de serviço.
O art. 442-B, declara que a contra-
tação de autônomo, não indica em-
Conforme a Lei nº 8.213/91, o traba-
pregado/a, ainda que a contratação
lho de autônomos não possui relação
Trabalhador seja com ou sem exclusividade, de
de emprego, desde que atendidos os
Autônomo forma contínua ou não, desde que
requisitos legais.
cumpridas todas as formalidades
legais.
Com a alteração, o art. 58-A, per-
mite que a jornada semanal seja de
O art. 58-A da CLT, regulamenta o
até 30 horas semanais, sem pos-
contrato de regime em tempo par-
sibilidade de fazer horas extras ou
cial, de modo que a jornada não
jornada semanal de 26 horas sema-
Trabalho em pode exceder 25 horas semanais,
nais, com possibilidade de fazer até
Tempo Parcial sem horas extras. O salário pago é
6 horas extras. Salário proporcional
proporcional a sua jornada.
à jornada trabalhada.

203
Os arts. 580 e 582 da CLT, afirmam a Devido a alteração, o art. 582 decla-
obrigatoriedade do desconto anual, ra que a contribuição sindical deve
Contribuição
equivalente a um dia do salário do ser descontada apenas de quem
Sindical
trabalhador. autorizar, ou seja, passa a ser opcio-
nal.

Os art. 75-A a 75-E, passam a prever


o contrato home office. Todas as
atividades a serem desenvolvidas
Teletrabalho Não havia regulamentação legal. pelo/a trabalhador/a, assim como
os custos de aquisição, manutenção
e fornecimentos de equipamentos,
deverão estar no contrato escrito.
O art. 487 da CLT, afirma que deverá O art. 484-A valida a extinção do
haver aviso prévio, caso uma das par- contrato de trabalho por acordo
Demissão sem
tes queira rescindir o contrato, sem entre as partes. Não é autorizado o
justa Causa
justo motivo. Autoriza o recebimento recebimento do seguro-desempre-
do seguro-desemprego. go.
O art. 791 da CLT e as Súmulas nº 219 Os art. 789, 791 e 791-A, declaram
e nº 329 do TST, atestam que o traba- que o/a trabalhador/a passará a
lhador que entrar com reclamação, arcar com custos para o ingresso da
Reclamatória não arcará com os custos. Caso per- reclamatória. A parte que perder o
Trabalhista ca, não há pagamento de honorários processo, arcará com os custos da
ou de sucumbências. ação e honorários sucumbenciais.

Grávidas e De acordo com o art. 394-A da CLT, a O art. 394-A, passa a permitir o
Lactantes em trabalhadora grávida não poderá tra- trabalho em locais insalubres. O
ambiente in- balhar em lugares insalubres. afastamento em graus médios ou
salubre mínimos, ocorrerá mediante atesta-
do médico.
Fonte: Lei 13.467/2017 (Brasil, 2017). Elaboração própria3.

A Lei n.13.467/17 (Brasil, 2017) proporcionou três mudanças que implicaram diretamente
sobre o poder de contestação e reivindicações da classe trabalhadora e ações dos sindicatos (Krein;
Oliveira; Filgueiras, 2019): o artigo nº 611-A (Brasil, 2017) determina que os acordos coletivos
estão acima do legislado, isto é, o que for acordado entre trabalhador e empregador está acima

3 As informações contidas na tabela, quanto a legislação das principais alterações da Reforma Trabalhista,
foram retiradas e modificadas do site Guia Trabalhista. Disponível em: https://www.guiatrabalhista.com.br/tematicas/
sinopse-reforma-trabalhista.htm. Acesso em: 18 de jul. 2023.

204
da lei. O artigo nº 582 (Brasil, 2017) estabelece a contribuição sindical como opcional, refreando
e dificultando o papel de regulador, fiscalizador e reativo do sindicato (Droppa; Biavaschi; Teixeira,
2021). Os artigos nº 790-B e 791-A (Brasil, 2017) atestam que em relação às reclamatórias, a parte
derrotada deveria arcar com os honorários sucumbenciais e periciais, de ambas as partes, ainda
que fosse beneficiária da justiça gratuita.

A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), posicionou-se


contrária à Reforma Trabalhista e à Terceirização Total (Brasil, 2017), retratando diversos aspectos
aprovados como inconstitucionais. Para a Associação, o artigo 611-A, que permite a prevalência do
negociado sobre o legislado, é limitada pela Constituição Federal (Brasil, 1988). A possibilidade de
enquadrar os/as trabalhadores/as em locais com graus de insalubridade e aumentar a jornada de
trabalho em locais insalubres, “[...] perfazem retrocesso social, com prejuízos à vida digna e à saúde
do trabalhador, sendo incompatíveis com a Constituição [...]” (ANAMATRA, 2018).

As interpretações e julgamentos do STF, foram alvos de ataques e de descontentamento,


sendo considerados como uma “justiça política do capital”, cujos posicionamentos esvaziam as
competências e atribuições da Justiça do Trabalho, propiciando a erosão do Direito do Trabalho,
por meio das tais inovações legislativas (Paes, 2021). Em junho de 2022, o STF decidiu que “acordos
ou convenções coletivas de trabalho que limitam ou suprimem direitos trabalhistas são válidas,
desde que seja assegurado um patamar civilizatório mínimo ao trabalhador4 [...]”.

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, as ações requeridas por trabalhadores em


2017 declinaram de 289.700 para 82.300 em apenas um mês (Vargas e Santos, 2022). O Supremo
Tribunal Federal (STF) contestou a validade da cobrança no ingresso de reclamatória trabalhista
e pagamento de honorários, declarando-os como inconstitucionais. Contudo, a parte que não
comprovar a utilização da justiça gratuita, terá que arcar com os honorários5.

A Lei da Terceirização Total (Brasil, 2017) foi aprovada por 7 votos favoráveis e 4 votos
contrários. O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
324 (Brasil, 2018) pelo Supremo Tribunal Federal (STF), teve como pretexto de sua legalização, o
discurso de que a terceirização das atividades-fim não fere a Constituição Federal (Brasil, 1988),
considerando sua maior eficiência do ponto de vista econômico e das empresas contratantes, pois
não arcariam com os encargos trabalhistas e facilitaria a contratação e a mobilidade, em meio ao
cenário de mais de 12 bilhões de trabalhadores desempregados (Filgueiras; Dutra, 2021).

No ano de 2023, após o resgate de 207 trabalhadores/as brasileiros terceirizados/as em


condições análogas a de escravidão6, a temática “terceirização” aparece interligada ao trabalho
escravo em reuniões e discussões no Congresso Nacional. Segundo o senador Paulo Paim (PT-
RS), a cada dez trabalhadores resgatados sob o regime de escravidão, nove estão vinculados a
empregos terceirizados7. Tal realidade demonstra que trabalhadores/as terceirizados/as estão mais
4 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=488269&ori=1. Acesso
em: 05 de jun. 2023.
5 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=475159&ori=1. Acesso
em: 05 de jun. 2023.
6 Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/02/27/trabalhadores-resgatados-em-
-situacao-de-escravidao-no-rs-o-que-se-sabe-e-o-que-falta-saber.ghtml. Acesso em: 19 de mar. 2024.
7 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2023/03/06/paim-alerta-que-terceirizacao-da-
-atividade-fim-favorece-trabalho-escravo. Acesso em: 05 de jun. 2023.

205
suscetíveis ao trabalho escravo contemporâneo, ou seja, nos moldes dessa configuração do mundo
do trabalho no capitalismo, a terceirização expressa flagrantes violações de direitos humanos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A aprovação da Reforma Trabalhista em 2017 desencadeou diversas alterações no âmbito


da legislação laboral, desde a sua consolidação em 1943, com efeitos desastrosos para o sistema
de proteção social, tendo em vista as significativas perdas de direitos da classe trabalhadora. Esse
exemplo evidenciou os conflitos e antagonismos entre as classes sociais, com seus respectivos e
distintos interesses, demonstrando que o direito é sempre tensionado, contraditório e expressão de
disputas econômicas e ideopolíticas. As modificações da CLT advindas com a Reforma Trabalhista,
com base em um discurso neoliberal, falacioso e mistificador de necessidade de modernização das
relações de trabalho não se deu no plano efetivo da realidade social.

Em um cenário de ataques aos direitos sociais conquistados historicamente pela classe


trabalhadora, é preciso buscar formas coletivas de enfrentamento às investidas neoliberais da
sociabilidade capitalista. Esses tempos bicudos exigem da classe trabalhadora reflexão crítica,
organização, mobilização e luta coletiva permanente.

REFERÊNCIAS

ANAMATRA, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho. Reforma Trabalhista


- Enunciados Aprovados. 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (2017). XIX
Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - Conamat (2018). Disponível em: <
https://www.anamatra.org.br/publicacoes/cadernos-anamatra/27175-reforma-trabalhista-
enunciados-aprovados > Acesso em: 15 de ago de 2023.

BRASIL. Lei nº 5452 de 1º de maio de 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


decreto-lei/del5452.htm > Acesso em 31 ago 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acesso em:
10 de ago de 2023.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 331 do TST de 21 de dezembro de 1993. Disponível
em: < https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.html>
Acesso em: 17 de maio de 2023

BRASIL. Lei nº 13.429, de 31 de março de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm> Acesso em 31 ago 2022.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em 31 ago 2022.

206
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n º 324, de 30 de agosto de 2018. Disponível em: < https://
portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4620584 > Acesso em: 6 de jun de 2023.

DROPPA, Alisson; BIAVASCHI, Magda Barros; TEIXEIRA, Marilane Oliveira. A Terceirização no contexto
da Reforma Trabalhista: conceito amplo e possibilidades metodológicas. Caderno CRH, [S. l.], v. 34,
p. e021030, 2021.

FILGUEIRAS, Vitor Araújo; DUTRA, Renata. Distinções e Aproximações Entre Terceirização e


Uberização: os conceitos como palco de disputas. Caderno CRH, v. 34, p. e021033, 2021.

KREIN, José Dari; COLOMBI, Ana Paula Fregnani. A Reforma Trabalhista em foco:
desconstrução da proteção social em tempos de neoliberalismo autoritário. Educação &
sociedade, v. 40, 2019.

KREIN, José Dari; OLIVEIRA, Roberto Véras de; FILGUEIRAS, Vitor Araujo.
Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas, SP: Curt
Nimuendajú, 2019.

PAES, Arnaldo Boson. Transformações nas relações de trabalho: os desafios da Justiça do Trabalho
no Brasil. Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), junho, 2021.
Disponível em: <https://www.anamatra.org.br/artigos/31086-transformacoes-nas-relacoes-de-
trabalho-os-desafios-da-justica-do-trabalho-no-brasil>. Acesso em: 05 de jun de 2023.

VARGAS, Juliano; SANTOS, Gabriella Pereira dos. Efeitos da Legislação Trabalhista sobre o mercado
de trabalho brasileiro de 2003 a 2018. Revista da ABET, [S. l.], v. 21, n. 1, 2022.

207
TRABALHO DOMÉSTICO REMUNERADO E CAPITALISMO DEPENDENTE:
um levantamento bibliográfico

Marianne Ribeiro de Almeida

1. INTRODUÇÃO

As pesquisas recentes sobre trabalho doméstico remunerado são fundamentais para


entender o funcionamento do capitalismo e sua reprodução, dada a importância desse trabalho na
sustentação do sistema. O capitalismo dependente, teoria que embasa essa análise crítica, explica
como a América Latina participa do mercado global, fornecendo matérias-primas em troca de
produtos industrializados, alterando as relações de trabalho na região.

Dessa forma, ao analisar os textos encontrados no levantamento bibliográfico, não somente


o conteúdo deles são relevantes, mas a nacionalidade dos autores e o local em que escolhem
pesquisa.. Esse artigo é qualitativo, não tem como intuito comparar dados que não são comparáveis.
O estudo agrega um total de nove textos, fornecendo uma visão abrangente das complexidades
envolvidas no estudo a respeito do trabalho doméstico remunerado. Este levantamento contribui
para a compreensão de como a questão social se expressa através dos tipos de trabalho de acordo
com cada país.

2. METODOLOGIA

Este estudo baseou-se em uma pesquisa na plataforma Scopus, abrangendo artigos


publicados entre 2020 e 2023, durante a pandemia de COVID-19, com o objetivo de analisar os
direcionamentos teóricos sobre trabalho doméstico remunerado. Os resultados, coletados em
junho de 2023, destacam as condições precárias desse tipo de trabalho e a falta de publicações que
explorem sua relação com as relações sociais capitalistas e o capitalismo dependente.

Dois principais enfoques teóricos foram identificados: um focado nos impactos do trabalho
doméstico na vida pessoal e familiar das trabalhadoras, destacando danos à saúde física e mental,
e outro relacionado às condições do trabalho doméstico com a divisão sexual do trabalho.

3. PERSPECTIVAS ACADÊMICAS

3.1 o mercado de trabalho doméstico

O ponto a ser observado aqui é o mercado de trabalho doméstico, a análise foi composta
por textos que se voltam para o ambiente do trabalho com cuidados e com limpeza dentro dos

208
lares, quem são as pessoas que ocupam esses lugares e principalmente as lutas que travam para
conquistarem direitos enquanto classe trabalhadora.

Blaydes (2023), analisa as condições das trabalhadoras domésticas imigrantes que exercem
seu trabalho no Golfo Árabe. A autora utiliza como fonte de pesquisa documental, reportagens de
Organizações Não Governamentais (ONGs) e relatórios construídos por Organizações de Direitos
Humanos. Também realiza pesquisa empírica com 656 empregadas domésticas imigrantes que
saíram da Indonésia e Filipinas para viver na Arábia Saudita. Como resultado de sua pesquisa,
Blaydes (2023) comenta que a desvalorização do trabalho doméstico e sua baixa remuneração,
não deriva do valor de sua produção, mas da relação de poder embutida nesse trabalho. A autora
confirma que o posto de trabalho de empregada doméstica é ocupado por mulheres com mais
dificuldades para acessar o mercado de trabalho, devido ao seu status social periférico, nas
construções de gênero. Segundo a autora, além de responsabilizadas pelo trabalho doméstico, as
mulheres acabam por ocupar esses cargos porque são excluídas das melhores oportunidades de
trabalho, que priorizam os homens. Ainda, segundo a autora, os países mais desenvolvidos tendem
a empregar imigrantes ilegais como empregadas domésticas, sem direitos trabalhistas. Com esses
argumentos, Blaydes (2023) conclui que as construções sociais que desqualificam as mulheres e o
trabalho doméstico, se inter-relacionam e retroalimentam, de forma a subalternizar condições de
vida dessas trabalhadoras.

Buján (2022) analisa as condições de trabalho das empregadas domésticas migrantes na


Espanha, para identificar impactos da pandemia de Covid-19 no trabalho de saúde e cuidado. Ao
desenvolver esta análise, Buján (2022) afirma que em países centrais, as empregadas domésticas
normalmente são imigrantes ilegais vindas de países de capitalismo dependente, que tem como
única opção o trabalho doméstico. Ainda conforme Buján (2022), cerca de 50% das empregadas
domésticas na Espanha trabalham sem nenhum registro, ou seja, sem acessar direitos trabalhistas
ou de assistência social garantidos aos trabalhadores legalizados.

Paul, et.al. (2022), com base em dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de
ONGs, de relatórios de consultoria e demais publicações científicas, criaram o Global Care Policy
Index1 (GCPI), com índices que informam sobre os diversos tipos de exploração que subjuga o
trabalho doméstico no mundo. Paul, et.al. (2022) identificaram, dentre 29 países analisados, as
melhores condições de trabalho doméstico na Suécia e as piores condições desse trabalho em
Bangladesh. Os autores reforçam, também, que nenhum dos países analisados atendeu a nota
recomendada pela OIT, principalmente, os países da América Latina, subordinados aos interesses
do capitalismo mundial, onde se concentram as empregadas domésticas mais precarizadas e com
as piores remunerações.

Scheffer (2021) analisa o trabalho doméstico no Uruguai e Paraguai, a partir de entrevistas


com as trabalhadoras e de técnicas de observação participante nos locais de trabalho. A autora
explica que as mulheres provenientes do meio rural e que não acessaram a educação formal,
ocupam os piores postos de trabalho e dentre eles, o trabalho doméstico. Scheffer (2021), ao fazer

1 sistema de pontuação original para comparações de políticas de atendimento, feito com critérios objetivos,
ranqueia os países de acordo com as políticas públicas de cada país. Esse índice pretende alcançar dois objetivos: ava-
liar como é, em cada país, a proteção dos provedores de cuidados domésticos, analisando-os de acordo com os parâ-
metros de referência da OIT e incentivar os países a melhorarem a proteção a esses provedores de cuidados na esfera
doméstica. (Paul, et.al., 2022).

209
sua análise a partir de recortes de raça, gênero e classe, evidencia a predominância das mulheres
negras no trabalho doméstico remunerado, que acumulam desigualdades econômicas, culturais e
políticas.

Teixeira (2021), também estuda o trabalho doméstico a partir de marcadores de raça, gênero
e classe, enfatizando especificidades do trabalho doméstico no Brasil, associadas às desigualdades
historicamente construídas a partir do colonialismo e da escravidão brasileira. A referida autora
analisa a situação das empregadas domésticas no contexto da pandemia de COVID-19, mas por
uma perspectiva mais ampla que leva em conta a formação sócio histórica do Brasil (Teixeira, 2021).

Em sua obra, a autora propõe um debate sobre a situação das empregadas domésticas
brasileiras no contexto da pandemia de COVID-19 que visa ampliar a discussão sobre esse cenário
e vinculá-lo estruturalmente ao da formação sócio-histórica do país que tem como elementos
fundadores o racismo e colonialismo. O que unifica essas pesquisas é o foco delas, todas focam no
mercado de trabalho doméstico, analisam como esse funciona e como ainda reproduz racismo e
machismo em relação a esse trabalho.

3.2 a influência do trabalho na vida privada das empregadas domésticas

Nessa perspectiva, a ênfase dos estudos se dá na vida privada das empregadas domésticas.
As pesquisas encontradas tratam sobre as condições de saúde física e mental das trabalhadoras e
as relações entre esses fatores e o exercício das funções delas nos mais diversos lugares do mundo.

Guerra, et. al (2022), fazem uma revisão sistemática de pesquisas, realizadas em países
africanos, latino-americanos e asiáticos, realçando os sintomas depressivos relacionados ao
trabalho doméstico. Os referidos autores chamam a atenção para a dificuldade de identificar, nas
pesquisas analisadas, diagnósticos médicos sobre a depressão das empregadas domésticas que
quase nunca acessam especialistas em saúde. Os sintomas depressivos, identificados na pesquisa
estavam, na maioria dos casos, associados à falta de privacidade das trabalhadoras, à privação de
alimentos e ao abuso moral e sexual no local em que trabalham, principalmente entre aquelas que
moram no local de trabalho. (Guerra et al., 2022)

Tariq, et al. (2020) focam sua pesquisa na saúde física das empregadas domésticas que
residem em assentamentos ilegais da Cidade de Karashi no Paquistão. Esses autores identificaram
condições de risco à saúde física dessas trabalhadoras que manipulam produtos químicos de
limpeza sem usar Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) adequados.

Pokale, et al., (2021), analisam condições de saúde de mulheres imigrantes e contratadas


como empregadas domésticas para trabalhar na cidade de Pune, na Índia. De acordo com o estudo
realizado a partir de cinco regiões da cidade, a maioria dessas trabalhadoras, para aumentar sua
remuneração, trabalha em tempo parcial em várias casas e recebem conforme as horas trabalhadas.
Este estudo reforça as condições de vida dessas trabalhadoras que convivem com altas taxas de
pobreza e problemas de alcoolismo de seus companheiros.

Adisa, et.al., (2021) analisam condições de trabalho doméstico remunerado em Lagos,


capital da Nigéria, a partir de 21 mulheres que expõem condições de precarização do seu trabalho,

210
associadas ao acúmulo de funções e atividades imprevisíveis; às jornadas de trabalho muito longas;
às condições degradantes do ambiente de trabalho; à não progressão de carreira; ao perfil das
trabalhadoras e às lutas travadas por elas em favor de seus direitos.

Essa perspectiva de análise do trabalho doméstico remunerado, apesar de tangenciar


assuntos como a informalidade na contratação dessas profissionais e resquícios de escravidão
moderna, pontos diretamente ligados ao mercado de trabalho doméstico, foca nas consequências
que o trabalho doméstico traz para a vida íntima das pessoas que exercem essa atividade de forma
remunerada. É possível compreender que o assunto aqui abordado trata das consequências do
mercado de trabalho doméstico na vida de suas trabalhadoras.

4. CAPITALISMO DEPENDENTE

Ruy Mauro Marini (2022) introduziu o conceito de Capitalismo Dependente em 1973,


explicando como a inserção da América Latina no mercado mundial foi crucial para a manutenção
e desenvolvimento do capitalismo central. Isso ocorreu devido à exploração dos países periféricos,
que exportavam alimentos e matérias-primas em troca de produtos industrializados dos países
centrais. Essa troca desigual levou os países dependentes a superexplorar seus trabalhadores,
intensificando o trabalho, aumentando a carga horária e reduzindo os salários para garantir o lucro
dos capitalistas centrais e locais.

A ideologia capitalista, conforme Souza (2023), enfatiza as diferenças entre grupos sociais, o
que gera racismo, machismo, xenofobia e homofobia, dentre outros preconceitos, que servem para
perpetuar a organização do capitalismo. No Brasil, essa organização social coloca as mulheres negras
na base da hierarquia social, refletida nos índices de pobreza, reforçando a divisão socioeconômica
criada e mantida pelo capitalismo dependente.

Na divisão racial do trabalho, os negros ocupam os piores empregos, com o racismo


normalizando a exploração de seus corpos, especialmente no trabalho doméstico remunerado,
onde são empregados quando não têm outras opções. Essa divisão na classe trabalhadora, conforme
Souza (2023), aliena e contém a luta dentro da mesma classe, permitindo que os detentores do
capital evitem resistências significativas.

Ao analisar criticamente o levantamento bibliográfico realizado, é possível encontrar todas


essas características no trabalho doméstico remunerado, principalmente nos países periféricos,
enfatizando os pertencentes à América Latina, que em sua formação sócio-histórica, têm a
escravidão e colonialismo como bases para a organização da sociedade.

5. DISCUSSÃO

Com a varredura teórica realizada, à luz da Teoria Marxista da Dependência, foi possível
analisar questões que tangenciam os textos, mesmo que de forma não intencional pelos

211
pesquisadores. As pesquisas foram realizadas por autores, na perspectiva do Mundo do Trabalho
do Golfo Àrabe, Brasil, Chile e Paraguai, Espanha e Estados Unidos. Já na perspectiva, que trata
sobre a influência do trabalho na vida privada das empregadas domésticas, as pesquisas foram
realizadas no México, Paquistão, Índia e Nigéria. Dos nove textos analisados, sete são escritos por
países de capitalismo periférico.

Como visto, em grande parte dos textos, inclusive os dois que são realizados em países
de capitalismo central (Estados Unidos e Espanha), as empregadas domésticas, ocupam os piores
postos de trabalho em relação à garantia de direitos e remuneração, conforme a pesquisa de Paul
et. all (2022), mesmo no país que melhor protege suas trabalhadoras domésticas, a Suécia, não
o faz de maneira satisfatória se comparado às demais profissões. O que escancara como essa
precarização é inerente à categoria de trabalho de forma geral.

Nos países de capitalismo periférico em que os trabalhadores são mais explorados, as


condições de trabalho e remunerações inferiores, essa situação tende a piorar, o que é possível
comprovar com a leitura de todas as pesquisas que se encontram na perspectiva que visa analisar
a influência do trabalho na vida privada da empregada doméstica, realizadas no Paquistão, Nigéria
e Índia, todos países de capitalismo periférico.

O trabalho doméstico é o mais precarizado e menos gerador de riqueza imediata, por isso
os postos de trabalho são ocupados pelas categorias mais vulneráveis da sociedade, sejam elas
indígenas, negros ou imigrantes, mas sempre mulheres. Na divisão sexual do trabalho, coube aos
homens os trabalho que agregam capital, às mulheres o trabalho de reprodução social. Nos países
latino-americanos analisados (México, Brasil, Chile e Paraguai), o que chama atenção é o número
de empregadas domésticas exercendo esse trabalho, o foi teorizado por Souza (2023), segundo ela,
nos países de economia dependente:

A condição dependente inibe o acesso massivo aos bens de consumo


viabilizados pelo desenvolvimento das forças produtivas, como máquina de
lavar, equipamentos de auxílio na limpeza doméstica ou urbana etc.; assim
como o não acesso massivo a equipamentos de uso coletivo, como creches,
restaurantes populares ou lavanderias etc. (Souza, 2023, s/n)

Com essa afirmação a autora corrobora com o que vem sendo teorizado nesse artigo, que
a classe trabalhadora dos países de capitalismo dependente precisam mais dos trabalhos de uma
empregada doméstica, por alguns motivos, como o trabalho mais intensivo, jornadas mais longas e
menor acesso à tecnologias que facilitem o trabalho doméstico. Além disso, a questão do excesso
de mão de obra disponível nesses países faz com que uma parcela da população fique à disposição
para exercer postos de trabalho degradantes e informais, a autora segue:

ter uma trabalhadora doméstica em casa não é um “luxo” apenas da


burguesia (que com certeza o tem, mas não é o foco neste debate). Essa
é a realidade de muitos trabalhadores assalariados, que também precisam
vender sua força de trabalho — principalmente a chamada classe média
que, embora possa não se reconhecer como classe trabalhadora, dados os
mecanismos de alienação, o é — e só podem ter determinadas condições de

212
vida a partir da sua renda do trabalho, porque acessam de maneira muito
rebaixada os serviços de que necessitam para se reproduzir, por meio da
exploração do trabalho doméstico (Souza, 2023, s/n).

Teixeira (2023), trata de como as empregadas domésticas permanecem em situações


vexatórias no Brasil, exemplificando com casos concretos de como essa profissão foi uma das mais
atingidas pela crise de saúde e econômica do COVID-19. Que trouxe mortes em maior número para
a população mais pobre, e uma diminuição de vagas em trabalhos formais, deixando, mais uma vez,
o mercado de trabalho doméstico como a única opção para um vasto número de mulheres pretas,
o grupo mais preterido no mercado de trabalho brasileiro.

O estudo sobre o trabalho doméstico no Brasil, como explica Saraiva (2022) precisa ser feito
de forma totalizante, que leve em conta a situação de dependência do país, fator de gênero, raça e
classe, de forma que o trabalho não fique esvaziado.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao identificar que existem essas duas perspectivas na literatura a respeito das funções de
trabalho das empregadas domésticas, foi possível compreender que elas se dão de acordo com
a intencionalidade de cada pesquisador: as pesquisas sobre o Mercado de Trabalho Doméstico,
normalmente observam a necessidade de ampliação de ações de entes públicos e da sociedade
civil na ampliação de direitos das empregadas domésticas, bem como do reconhecimento do
trabalho de reprodução social enquanto um trabalho, mesmo àquele que não é remunerado por
ser exercido por familiares de cada domicílio.

Os trabalhos da linha de pesquisa nomeada como A Influência do Trabalho na Vida Privada


das Empregadas Domésticas observa que o mercado de trabalho não é o fator fundamental
de vulnerabilidade dessas mulheres, como citado, muitas vezes é a desorganização familiar, o
machismo e racismo, que podem, ou não serem presentes no trabalho destas. E o mercado de
trabalho, é também consequência das opressões que elas vivem. Além disso, a linha que debate
o mercado de trabalho contribui com seus estudos com foco de como são distribuídas as funções
às trabalhadoras na divisão sexual e racial do trabalho, entendendo esse grupo enquanto classe
trabalhadora, o que também, por vezes é esquecido pela outra linha de pesquisa.

À luz da teoria marxista da dependência, é possível compreender que em todos os países


o trabalho doméstico é o mais preterido e portanto, acaba sendo ocupado pelas camadas mais
vulneráveis da sociedade. Nos locais, cujo exército de reserva é substancial, o trabalho doméstico
remunerado é ainda mais mal remunerado, superexplorado e precarizado, por serem empregadas
de uma classe trabalhadora alienada pela ideologia capitalista que mantém a classe trabalhadora
dividida em castas.

Com esse levantamento fica claro a necessidade de aprofundamento na pesquisa das duas
áreas e que elas conversam em muitos trabalhos, o que é considerado positivo. Algo que não
se pode perder de vista é a questão da interseccionalidade ao analisar as opressões que essas
profissionais sofrem na sociedade civil, que decorrem da opressão no trabalho.

213
REFERÊNCIAS

ADISA, T. A.; ADEKOYA, O. D.; OKOYA, O. Modern-day slavery? The work-life conflict of domestic
workers in Nigeria. Gender in Management: An International Journal, v. 36, n. 4, p. 519–535, 21
mai. 2023.

BLAYDES, L. Assessing the Labor Conditions of Migrant Domestic Workers in the Arab Gulf States.
ILR Review, p. 001979392211474, 11 jan. 2023

MARTÍNEZ BUJÁN, R. Migration, Domestic Care Work and Public Policies on Long-Term Care in
Spain. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 30, n. 65, p. 73–90, ago. 2022.

MARINI, R. M. “Dialética da dependência” e outros escritos. 2ª ed. Expressão Popular, 2022.

PAUL, A. M.; HAOLIE, J.; CHEN, C. If caring begins at home, who cares for the carers? Introducing
the Global Care Policy Index. Global Policy, v. 13, n. 5, p. 640–655, Nov. 2022.

POKALE, A.; GOTHANKAR, J.; PORE, P. Living and working conditions of female domestic workers
in Pune City. Indian Journal of Occupational and Environmental Medicine, v. 25, n. 4, p. 215, 2021

ROJAS SCHEFFER, R. Same work, same value? Paid domestic workers’ and housewives’ struggles
for rights in Uruguay and Paraguay. Current Sociology, v. 69, n. 6, p. 843–860, out. 2021

TARIQ, H.; SHAIKH, S.; MUSHARAF, M. Working Conditions and Work-Related Health Issues of
Female Domestic Workers in Four Districts of Karachi. Annals of Work Exposures and Health, v. 64,
n. 4, p. 378–386, 30 abr. 2020.

SARAIVA, C. G. Totalidade, reprodução social e divisão sexual-racial do trabalho no capitalismo


dependente. Praia Vermelha, v. 32, p. 48–73, 2022.

SOUZA, C. L. S. D. A indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no


capitalismo dependente. Serviço Social & Sociedade, v. 146, n. 1, p. 16–35, 2023.

TEIXEIRA, J. C. Brazilian housemaids and COVID‐19: How can they isolate if domestic work stems
from racism? Gender, Work & Organization, v. 28, n. S1, p. 250–259, jan. 2021.

214
DIREITOS E TRABALHO NO BRASIL SOB O CONTEXTO DA CRISE CAPITALISTA

Guilherme da Hora Pereira

RESUMO

O texto apresentado, objetivando examinar o processo histórico da conquista


e da perda de direitos pela classe trabalhadora, destaca a tensão dialética de
tal relação durante os tempos neoliberais. Para tanto, analisa criticamente
o reposicionamento, a construção e a dilapidação dos direitos sociais e da
proteção social no contexto da crise capitalista brasileira, impulsionada
pela agenda neoliberal, explorando as contradições das relações sociais
estabelecidas na realidade brasileira, a revelar as nuances da reestruturação
produtiva em favor da acumulação flexível no Brasil.

Palavras-chave: Acumulação Flexível. Direitos do Trabalho. Crise Capitalista.

1. INTRODUÇÃO

O texto apresentado tem por objeto a reflexão crítica acerca do reposicionamento e da


dilapidação do conjunto de direitos concernentes ao mundo do trabalho sob o contexto da crise
capitalista brasileira que, em seus panoramas político e econômico, consagra a agenda neoliberal
para, coroando o complexo de reestruturação produtiva iniciado na década de 1990, corroer, sob a
égide de uma agenda regressiva e enérgica de austeridade e ajuste fiscal, a dinâmica do mundo do
trabalho e da vida social brasileiros.

2. CONSTRUÇÃO E CONTRADIÇÃO DOS DIREITOS DO TRABALHO NO BRASIL: ENTRE


CONQUISTAS, CRISES, CONTRARREFORMAS E RETROCESSOS.

A análise da configuração do panorama brasileiro dos direitos no mundo do trabalho


pressupõe a particularização da posição geopolítica e socioeconômica do Brasil no contexto mundial,
notadamente no que se refere às particularidades verificáveis no processo de desenvolvimento
capitalista dos países da América Latina em sua integração dependente ao mercado mundializado.

Assim, o mundo do trabalho brasileiro, historicamente constituído a partir da exploração


do trabalho escravo até meados do século XVIII e pelo intenso fluxo imigratório no período
compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX, reflete a base econômica de uma
sociedade essencialmente agrário-exportadora que, destacando-se, inicialmente, pela produção
e comercialização de café até que os efeitos da crise de 1929 solapassem a economia brasileira,
experimenta um processo expansivo de urbanização e de industrialização tardia entre os anos de

215
1930 e 1970, com efeitos até o período contemporâneo.1

O processo regulatório do mercado de trabalho brasileiro acompanhou o fluxo das relações


sociais advindas da exploração da força de trabalho no País. Nesse sentido, o principal marco deste
período histórico brasileiro, no que diz respeito ao arcabouço de direitos derivados das relações de
trabalho, foi a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), consagrada pelo Decreto-Lei n. 5.542, de
1º de maio de 1943 e recebida como um importante avanço da proteção e dos direitos do trabalho
no Brasil, embora, no mesmo compasso da legislação previdenciária, também excluísse, à época,
trabalhadores rurais, domésticos e grupos específicos de obreiros cuja proteção laboral não era
interessante ao processo de modernização capitalista no País ou cuja mobilização em luta coletiva
era menos efetiva ou combativa – o que revela a contradição primordial da CLT, compreendida como
legislação social fundamentalmente protetora do trabalho e da classe trabalhadora brasileira, mas
que ostenta, simultaneamente, o caráter de dádiva e outorga em relação à dimensão da luta de
classes nacional (GHIRALDELLI, 2021).2

Tendo a consolidação dos direitos trabalhistas no Brasil assumido uma relação quase direta
para com a formalização do vínculo de trabalho – mais especificamente, do vínculo de emprego,
representado pelo “porte” da Carteira Profissional de Trabalho3 - não surpreende a informação de
que, entre as décadas de 1930 e 1980, o Brasil tenha experimentado uma significativa expansão
do emprego assalariado-formal, com números expressivos revelando uma proporção de 80%
de formalização nos novos postos de trabalho gerados no País (POCHMANN, 1997), os quais
caracterizam as novas configurações de um mercado de trabalho que acompanha a expansão
relativa do processo de industrialização e do setor de serviços no País.

A década de 1980, marcada pela acentuação da crise no Brasil e pelo cenário de elevada
inflação, estagnação econômica e derrocada da ditadura militar – reflexo da crise internacional do
capitalismo inaugurada na década de 1970 – assinala o tensionamento das correlações de forças
instituídas no cenário brasileiro, notadamente a partir do protagonismo de movimentos sociais
que, organizados na resistência contra a superexploração do trabalho, instituíram, naquele período
específico, limites à subsunção real da subjetividade operária à lógica do capital (ALVES, 2000, p.
164-165), a exemplo do novo sindicalismo. O perfil combativo inaugurado por um movimento de
presença sindical de massas em que predominava a luta de classes na produção e a efetiva militância
sindical operária contra a superexploração do trabalho, assumindo novas proporções para além da
fábrica, desempenhou papel fundamental na luta pela redemocratização do País, pelos direitos
sociais e pela cidadania, tendo por marco institucional a promulgação da Constituição Federal de
1988.

Já a década de 1990 é caracterizada pelo choque de competitividade imposto pela ofensiva


neoliberal pós-Consenso de Washington, o que representou um novo impulso ao complexo de
reestruturação produtiva brasileiro. ALVES (2000) refere-se a este período como o momento de
transição entre o Toyotismo “restrito”, por ele apontado como insuficiente para a instauração
de um novo paradigma relacional no mundo do trabalho, sendo classificado como espécie de
1 Ver GORENDER (2016), KOWARICK (2019) e SILVA (1976).
2 A este respeito, interessantíssimas são as considerações e discursos realizados por Lindolfo Collor, um dos
idealizadores da CLT enquanto norma de regulamentação dos conflitos sociais decorrentes do processo de exploração
da força de trabalho e então Ministro do Trabalho do governo de Getúlio Vargas, reunidos em COLLOR (1990).
3 Ver SANTOS (1979).

216
aprofundamento – e enrijecimento – do fordismo, e o Toyotismo “sistêmico”, este sim, referenciado
como momento do complexo de reestruturação produtiva capaz de recompor o espaço-território
da produção capitalista em torno de um novo (e precário) processo de trabalho descentrado,
segmentado e fragmentário em suas múltiplas expressões sociais, culturais e tecnológicas.

O Brasil, a partir de uma abertura comercial e financeira indiscriminada iniciada durante


o governo Collor de Mello (1990-1992) e consolidada nos governos Itamar Franco (1992-1994) e
Cardoso (1995-2002) – com notável papel desempenhado pelo Plano Real, a partir de 1994, no
programa de desnacionalização e concentração de setores estratégicos da economia (sobretudo)
industrial brasileira – integra-se à dinâmica competitiva da economia internacional, elevando as
taxas de importação e, ao mesmo tempo, recuando nas exportações, o que provocou um intenso
processo de desestruturação do mercado de trabalho, com crescimento exponencial do desemprego
e de formas precárias e flexíveis de trabalho (MATTOSO; POCHMANN, 1998).

No mesmo período, verifica-se a migração de empresas produtoras de artigos manufaturados


para regiões consideradas pobres, de baixa organização sindical e ainda não industrializadas
do País, com o objetivo de reduzir os custos contratuais do trabalho, obter incentivos fiscais do
Estado e diminuir a presença e o controle dos sindicatos sobre a mão-de-obra, demonstrando
concretamente a tese de que

A flexibilização aparece como o canal através do qual as decisões capitalistas


se desvencilham da camisa de força criada pela consolidação de um
certo padrão de organização social. A reprodução ampliada do capital,
na medida em que se intensifica e generaliza, põe em causa fronteiras,
códigos, constituições, moedas, estilos de gestão econômica privada e
pública, práticas de planejamento governamental e empresarial, projetos de
desenvolvimento. (DEDECCA; MONTAGNER, 1993, p. 9)

Tal contexto articula-se, fundamentalmente, a uma agenda jurídico-institucional que


defende a necessidade de uma nova regulação do trabalho que traduza, no arcabouço normativo
brasileiro, os imperativos da instaurada “acumulação flexível”, no que ALVES (2000, p. 239-240)
refere como

um processo histórico em que o capital, em suas múltiplas expressões, é


posto como o verdadeiro “sujeito” em processo, que promove alterações
nas condições de produção em geral, seja na cadeia produtiva [...], seja
na dimensão da regulação político-institucional do trabalho. O capital em
processo tende a “revolucionar o conjunto das relações sociais”. Esta é uma
reestruturação capitalista que atinge os mais variados aspectos da economia
política local, regional ou mundial, e da organização da hegemonia (e das
relações entre as classes), no campo da produção, da sociedade e do Estado.

O arcabouço de proteção dos direitos trabalhistas erigidos pela Constituição Federal de


1988 prostra-se inerte ante ao aprofundamento dos ajustes e medidas de austeridade adotados
pelo Estado a partir da década de 1990. Revelam-se aí os limites das possibilidades emancipatórias
da forma jurídica que, subordinada aos contrafluxos do complexo de reestruturação produtiva, não

217
resistiu ao processo de conversão da perspectiva universalista dos direitos sociais, contemplada
pela Constituição brasileira, em um sistema misto, de combinação entre o público e o privado,
marcado pela transferência das responsabilidades públicas para as entidades da sociedade civil ou
até mesmo para o próprio indivíduo. Conforme conclui Ferreira (IBGE, 2023, p. 171):

neste cenário, o aumento do desemprego, a precarização do trabalho


diante das diversas modalidades de ocupações: autônomas sem horas de
trabalho definida, sem garantias trabalhistas, com as transformações que
vêm ocorrendo no âmbito do trabalho, criam novas formas de relações,
experiências e condições que afetam a vida pessoal, familiar e social.
Realidade que requer cobertura de serviços no âmbito das políticas de
Seguridade Social, que por meio das contribuições sociais podem acessar
estes benefícios. No entanto, à medida que estas deixam de existir, o Estado,
gestor das políticas sociais, fica com menor possibilidade de atender as
demandas que cresceram, principalmente, no período pandêmico.

As chamadas contrarreformas surgem na esteira do ajuste jurídico-institucional da regulação


do trabalho em favor do complexo de reestruturação produtiva neoliberal. É o que ALVES (2000, p.
240) designa como o “cimento jurídico-político do novo (e precário) mundo do trabalho”, a ecoar a
racionalização de custos que se impõe como força motriz de um mundo do trabalho estruturalmente
flexível e para o qual o Estado desempenha papel central.4 Conforme preceitua JESSOP (1999, p.
64-65) ao comentar o papel do Estado na reestruturação produtiva flexível:

El Estado es una importante fuerza estructural y estratégica a este respecto


y sus principales roles son asegurar la reproducción ampliada y la regulación
del capitalismo. Aquí son particularmente importantes dos funciones:
primera, ayudar a garantizar las condiciones para la valorización del capital
y, segunda, ayudar a garantizar las condiciones para la reproducción de la
fuerza de trabajo.

O movimento contrarreformista não perdeu fôlego nos governos petistas que, se é verdade
que tenham articulado importantes avanços no que diz respeito ao crescimento do emprego formal,
à política de valorização do salário mínimo e à ampliação do ensino superior e técnico em nível
federal, com significativo investimento em medidas de inclusão social por intermédio de programas
e políticas sociais (GHIRALDELLI, 2021), também é verdade que adotaram uma estratégia baseada
na conciliação de classes orientada ao crescimento econômico e ao atendimento das demandas do
capital financeiro.

Mantidas, pelos governos petistas, as bases neoliberais estabelecidas pelo Plano Real –
especialmente o chamado tripé macroeconômico composto por superávit primário, controle do
câmbio e metas de inflação determinadas por elevadas taxas de juros – e diante do impacto (e dos
efeitos diferidos) da crise econômica internacional iniciada em 2008, somaram-se o aprofundamento
da crise social, econômica e política ao caldeirão da conjuntura nacional do início da década de
2010, a revelar o esgotamento da tática conciliatória adotada pelos governos petistas.

4 A este respeito, ver VALENCIA (2009), notadamente o capítulo 4.

218
Ascendido à Presidência da República, Michel Temer instrumentalizou o Estado brasileiro
na direção de medidas neoliberais ainda mais severas, aprovando a Emenda Constitucional n. 95,
de 2016, que estabeleceu o congelamento de gastos públicos pelo período de 20 (vinte) anos e
a contrarreforma trabalhista5, que implodiu o arcabouço protetivo das relações de trabalho até
então existentes no ordenamento normativo brasileiro. de todo o arcabouço normativo reunido
na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), originária de 1943 e regularmente modificada para
atender aos anseios do setor produtivo nacional.6

De acordo com ALVES (2017), o desmonte da proteção trabalhista, por meio do seu
arcabouço jurídico-legislativo, é um processo que vem ocorrendo gradativa e permanentemente na
realidade brasileira, sob a ofensiva do capitalismo predatório, sendo a Contrarreforma Trabalhista
a expressão mais acabada, corrosiva e absoluta desse processo, corroborando os processos de
coisificação, intensificação e precarização do trabalho verificados no processo de reestruturação
produtiva neoliberal. Com isso, a desregulamentação e a flexibilização do trabalho tornam-se
palavras de ordem no cerne de uma contrarreforma falaciosamente modernizadora que, em rigor,
formaliza a figura do empregado just-in-time7 e garante a posição dependente do Brasil diante da
consolidação de uma nova morfologia do capitalismo mundializado a partir da reconfiguração da
superexploração do trabalho brasileiro sob o neoliberalismo.8

Trata-se da consagração de um arcabouço regulatório que ataca de modo nevrálgico os


direitos e a proteção social da classe trabalhadora, violando a principiologia fundamental do direito
do trabalho enquanto mandado de otimização em prol da proteção da classe trabalhadora – e
expondo a controvérsia sobre a sua validade enquanto anteparo protetivo em face da demanda
capitalista pela conformação das estruturas regulatórias às necessidades da acumulação ampliada
capitalista.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção dos direitos relacionados ao arcabouço de proteção social e do


trabalho brasileiro se deu, historicamente, a partir do fluxo de contradições tipicamente reveladas
a partir das especificidades da produção capitalista brasileira. Nesse contexto, nas últimas décadas,
inúmeras foram as medidas de orientação neoliberal implementadas no sentido do desmonte
dessas bases da proteção social brasileira, representando perdas históricas e retrocessos sociais
que afetam diretamente o conjunto da população brasileira que vive e sobrevive do trabalho.

5 A proposta legislativa a que se designa como contrarreforma trabalhista concretizou-se nas Leis n. 13.429,
de 31 de março de 2017, e 13.467, de 13 de julho de 2017, as quais promoveram profundas alterações à Lei n.
6.019/1974 eao Decreto-Lei n. 5.452/1943 (a CLT), respectivamente. O acompanhamento detalhado dos debates intra-
partidários ocorridos no interregno da tramitação do projeto pode ser visto em LEITE (2020).
6 “[...] a CLT foi sendo alterada historicamente por meio de leis, decretos, emendas constitucionais e medidas
provisórias. Foram promovidas 233 alterações até 2016, 75% das quais ocorreram pela via legislativa. Na ditadura
militar houve maior quantidade de decretos emanados do Executivo, sendo, ainda, importante lembrar que a CLT bem
como as instituições do poder judiciário e do Ministério Público do Trabalho que a ela remetem passaram pelo crivo
democrático dos legisladores constituintes, sendo fundamentais para a manutenção da plena cidadania social no mun-
do do trabalho” (GALVÃO, 2017, p. 14).
7 Ver ABÍLIO (2020).
8 Ver VALENCIA (2023).

219
Nesse contexto de acentuada crise civilizatória e de amplo, profundo e devastador processo
de exponenciação – material e formal – das formas precárias e atípicas de trabalho, consagra-
se a lógica de descartabilidade e de banalização do humano-trabalhador9, expondo-se, sob o
ordenamento do neoliberalismo ortodoxo e suas implicações subjetivas e objetivas10, as fissuras
contraditórias postas na relação capital versus trabalho em que os sistemas de proteção social
constituem-se em ameaças, obstáculos e entraves para a reprodução e acumulação ilimitada e
irrestrita do capital em sua face financeira, destrutiva e mundializada.

REFERÊNCIAS

ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Revista de Estudos Avançados. São Paulo.
34: 111-126 p. 2020.

ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo.


São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.

ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório.


São Paulo: Boitempo, 2011.

ALVES, G. O Minotauro brasileiro: Reforma Trabalhista e desenvolvimento histórico do capitalismo


no Brasil. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Campinas. 51: 97-108 p. 2017.

COLLOR, L. Origens da legislação trabalhista brasileira. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e
Silva, 1990.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016.

DEDECCA, C.; MONTAGNER, P. Flexibilidade produtiva e das relações de trabalho: considerações


sobre o caso brasileiro. Texto para Discussão. Campinas: Instituto de Economia, Unicamp. 29: 1-30
p. 1993.

GALVÃO, A. Contribuição crítica à Reforma Trabalhista. Campinas: Unicamp, 2017.

GHIRALDELLI, R. Trabalho, contrarreformas e (des)proteção social no Brasil. In: Trabalho, direitos e


desigualdades na realidade brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2021.

GORENDER, J. O escravismo colonial. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016.

IBGE, C. D. D. E. D. D. I. Brasil em números. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.


9 “O Sujeito autômato, na sua tendência monopolista e ampliada, territorializou toda a existência do homem
trabalhador sob o signo do valor de troca e, via de consequência, passou a interpelá-lo não mais como portador da
condição de sujeito-mercadoria na relação de troca de força de trabalho, mas como sujeito-mercadoria pela sua pró-
pria existência” (PEREIRA, 2023, p. 114-115)
10 Ver ALVES (2011) e DARDOT e LAVAL (2016).

220
JESSOP, B. ¿Hacia un Estado de trabajo schumpeteriano? Observaciones preliminares sobre la
economía postfordista. In: Crisis del Estado de Bienestar: Hacia una nueva teoría del Estado y sus
consecuencias sociales. Bogotá: Siglo del Hombre: Universidad Nacional de Colombia, 1999. p. 63-
99.

KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Editora 34,
2019.

LEITE, S. C. A elaboração legislativa da reforma trabalhista. Brasília: Trampolim Jurídico, 2020.

MATTOSO, J.; POCHMANN, M. Mudanças estruturais e trabalho no Brasil. Economia e Sociedade.


Campinas. 10 1998.

PEREIRA, G. D. H. Sindicato e neoliberalismo: movimento sindical e crise do sujeito. Sociedade em


Debate (Pelotas). Pelotas. 29: 100-117 p. 2023.

POCHMANN, M. Traços gerais do movimento de desestruturação do mercado de trabalho brasileiro.


Campinas: IE/CESIT, 1997.

SANTOS, W. G. D. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus,
1979.

SILVA, S. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976.

VALENCIA, A. S. A estruturação do mundo do trabalho: superexploração e novos paradigmas da


organização do trabalho. Uberlândia: EDUFU, 2009.

VALENCIA, A. S. A nova morfologia do capitalismo global: a era da superexploração do trabalho.


Praxis, 2023.

221
O FAZER MUSICAL COMO INSTRUMENTO POLÍTICO-SOCIAL NO FORTALECIMENTO DA SAÚDE
MENTAL DE TRABALHADORES DA COLETA DE LIXO DE GOIÂNIA-GO

Fabrícia Santos Santana


Maria Lúcia Pinto Leal

O presente estudo encontra-se em desenvolvimento como pesquisa de doutoramento em


Política Social, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Política Social do Departamento de
Serviço social e Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília.

O fazer musical, enquanto produção das sonoridades do indivíduo, configura-se como efeito
da aplicabilidade da musicoterapia relacionado com a necessidade do homem em expressar o seu
mundo interno, subjetivo, onde as emoções têm nuances e que estão próximas de uma descrição
discursiva (Millecco Filho; Brandão; Millecco, 2001). Assim, o estudo se desenvolve com o principal
objetivo de investigar as contribuições da musicoterapia no fortalecimento da saúde mental de
trabalhadores da coleta de lixo de Goiânia-GO.

Acredita-se que o trabalho do coletor de lixo é um modelo de trabalho exercido na


“invisibilidade” e na precarização. Julga-se que a implementação da musicoterapia como instrumento
político-social em ambientes de trabalho pode desencadear processos de conscientização e
transformação social que contribuam positivamente no enfrentamento e na prevenção do
adoecimento mental entre os trabalhadores.

Esta hipótese é fundamentada na premissa de que o fazer musical, como forma de expressão
e comunicação intrinsecamente humana, tem o potencial de não apenas amenizar sintomas de
estresse e ansiedade, mas também de servir como uma ferramenta para questionar e contestar
estruturas sociais opressivas presentes no ambiente de trabalho.

No decorrer dos anos, enquanto profissional musicoterapeuta, a utilização da musicoterapia


nas relações sociais e como instrumento de expressão por aqueles que se encontram em
vulnerabilidade1, muito tem inquietado. A atividade no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da
região Noroeste de Goiânia, a musicoterapia oportunizou o encontro com trabalhadores da coleta
de lixo, também conhecido como trabalhador dos serviços de coleta de resíduos2, com transtorno
mental, com predominância para a dependência química3. Estes trabalhadores chegavam ao CAPS
1 Embora Carmo e Guizardi (2018) apresentem que o vocábulo vulnerabilidade seja uma palavra envolta de im-
precisão conceitual, a possível conceituação adotada para este estudo toma como referência o campo da seguridade
social, a qual compreende por vulnerabilidade a situação em que o cidadão vivência múltiplas determinações resultan-
tes de um contexto frágil ou de nulo acesso aos direitos.
2 Terminologia proposta pelo Código Brasileiro das Ocupações (CBO) para descrever os Trabalhadores nos
serviços de coleta de resíduos, de limpeza e conservação de áreas públicas código 5142-15. Nesta mesma família estão
o varredor de rua, gari, coletor de lixo, trabalhador e serviços de limpeza e conservação de áreas públicas no (BRASIL,
2013).
3 A dependência química, de acordo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacio-
nados com a Saúde (CID-10), é um transtorno mental e comportamental devido ao uso de múltiplas drogas e ao uso de
outras substâncias psicoativas.

222
apresentando sinais de dependência química, vulnerabilidade social, vínculo familiar fragilizado e/
ou rompido e atividades laborais prejudicadas. Na sua maioria, eram encaminhados pela empresa
para que fizessem o tratamento e assim que possível, retornassem ao exercício profissional.

Contudo, durante o período de trabalho nesta unidade (2018-2022) observou-se


uma reincidência destes trabalhadores no tratamento. Situação que remeteu aos seguintes
questionamentos e a problematização deste estudo: a musicoterapia pode contribuir no
fortalecimento da saúde mental dos trabalhadores da coleta de lixo de Goiânia? A musicoterapia
pode contribuir na intersetorialidade das políticas públicas de seguridade social no tocante da
saúde mental do trabalhador?

A utilização da musicoterapia como instrumento para fortalecer os direitos humanos,


de pessoas em situação de vulnerabilidade e a sua aplicabilidade nas Políticas Públicas, tem se
configurado como interesses de pesquisa desde a graduação e atualmente insere-se nos estudos do
doutorado. Acredita-se que estas ações percorridas desde a graduação, são como um ativismo em
musicoterapia. Para Bruscia (2014) o ativismo em musicoterapia se configura como o desempenho
profissional em movimentos políticos, sociais e culturais, através da articulação de seus membros
em busca da produção de mudanças.

Nos dias atuais, a musicoterapia tem ampliado sua prática nas Políticas de Saúde e
Assistência Social. O Ministério da Saúde reconhece a aplicabilidade da musicoterapia através da
Portaria nº 145/2017, como uma terapia integrativa da Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares (PICs).

Na Política Nacional de Assistência Social (PNAS) a musicoterapia é regulamentada por meio


da Resolução nº 17 de 20 junho de 2011. A musicoterapia na Política Nacional de Assistência Social e
a atuação do musicoterapeuta nesta política, tem sido objeto de estudo no mestrado e permanece
propulsando o desejo investigativo em busca de corroborar com o ativismo na área. Compreende-
se que no âmbito da Assistência Social, a musicoterapia utilizará a música para exercer suas ações
no âmbito da política pública e na perspectiva da garantia de direitos, empoderamento social,
prevenção e redução da vulnerabilidade e dos riscos sociais (Santana, 2016).

A utilização da música no tratamento de doenças e como elemento de experimentações em


outros campos disciplinares, permitiram a ampliação da aplicabilidade da musicoterapia, contribuindo
para um caminhar científico. Do mesmo modo que, revelou a importância da multidisciplinaridade
(Carvalho, 1975). Assim, nesta perspectiva do trabalho multi e interdisciplinar, o presente estudo
pretende investigar as contribuições da musicoterapia, aplicada em outros campos de saberes,
enquanto instrumento de proteção social, daqueles que estão na vulnerabilidade/invisibilidade.

Acredita-se que o trabalho exercido pelo trabalhador da coleta de lixo é invisibilizado e


mensurado pelo que fazem. Crê-se que, assim como o lixo, o trabalhador é colocado numa situação
de desvalorização, vulnerabilidade, invisibilidade e viva sentimentos de falta de solidariedade,
condicionantes significativas para o adoecimento.

A quantificação dos adoecimentos de trabalhadores é apresentada pelo Observatório de


Segurança e Saúde no Trabalho, uma smartlab de iniciativa docente da Faculdade de Saúde Pública
da Universidade de São Paulo (USP) e ferramenta do Ministério Público de Trabalho.

223
Considerando apenas o ano de 2022, os dados registrados apontam um total de 612,9mil
acidentes de trabalho e 2,5mil óbitos de trabalhadores. Todos estes números levam em consideração
a população com vínculo de emprego regular e foram apontados pelo Instituto Nacional de
Seguridade e Saúde (INSS), por meio das notificações de acidentes de trabalho (CAT) recebidas. Ainda
sobre estes números, estima-se que tenham ocorrido 18,9% de subnotificações o que corresponde
a 116mil acidentes de trabalho não notificações. O entendimento da subnotificação torna-se
possível, considerando os pedidos de afastamento previdenciário não notificados anteriormente
(Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, 2023).

As notificações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), expõem os


dados recebidos pela Vigilância em Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde e demonstram um
total de 392,6mil casos notificados no período de 2017-2022. Destes casos, as doenças e agravos
relacionados foram: acidente de trabalho grave, câncer relacionado ao trabalho, dermatoses
ocupacionais, acidente provocado por exposição a material biológico, LER/DORT, perda auditiva,
pneumoconioses, transtornos mentais e acidente grave de crianças e adolescentes de 0 a 17 anos.
O transtorno mental foi apontado nos acidentes graves e demonstraram um quantitativo de 2.424
de acidentes de trabalho, registrados durante o ano de 2022.

Na ficha de notificação sobre agravo/doença devido Transtornos Mentais Relacionados


ao Trabalho (F-99), o SINAN considera adoecido o trabalhador que apresentar os seguintes
comprometimentos:

Todo caso de sofrimento emocional em suas diversas formas de manifestação


tais como: choro fácil, tristeza, medo excessivo, doenças psicossomáticas,
agitação, irritação, nervosismo, ansiedade, taquicardia, sudorese,
insegurança, entre outros sintomas que podem indicar o desenvolvimento
ou agravo de transtornos mentais utilizando os CID - 10: Transtornos mentais
e comportamentais (F00 a F99), Alcoolismo (Y90 e Y91), Síndrome de Burnout
(Z73.0), Sintomas e sinais relativos à cognição, à percepção, ao estado
emocional e ao comportamento (R40 a R46), Pessoas com riscos potenciais
à saúde relacionados com circunstâncias socioeconômicas e psicossociais
(Z55 a Z65), Circunstância relativa às condições de trabalho (Y96) e Lesão
autoprovocada intencionalmente (X60 a X84), os quais tem como elementos
causais fatores de risco relacionados ao trabalho, sejam resultantes da sua
organização e gestão ou por exposição a determinados agentes tóxicos
(Brasil, 2019).

Nas informações sobre o adoecimento mental de trabalhadores apresentados no Observatório


de Segurança em Saúde no Trabalho e no SINAN, não foram encontrados detalhamentos específicos
sobre as notificações considerando os tipos de adoecimentos mentais, sexo, cor, profissões e outros,
que permitissem uma melhor compreensão sobre os trabalhadores registrados.

No campo das pesquisas científicas sobre o tema, realizou-se uma breve revisão sistemática
no Portal de Periódicos CAPES de trabalhos publicados no período de 2003-2023, utilizando os
descritores: catador de lixo, trabalhador do manejo de resíduos sólidos, trabalhador do serviço de
coleta de resíduos; trabalhador da limpeza urbana; trabalhador da coleta de lixo e coletor de lixo.
Dos artigos encontrados, considerou-se os escritos nos idiomas português, inglês e espanhol e que

224
contemplassem no título ou no resumo o tema do adoecimento de trabalhadores.

Observou-se que os estudos contemplavam a saúde no seu âmbito físico/ergonômico,


nas relações com o meio ambiente e na política de manejo de resíduos sólidos. Os artigos que
contemplaram a saúde mental se pautaram na psicodinâmica e fizeram uma leitura do problema
tomando como referência a psicologia do trabalho. Dois únicos trabalhos, um do ano de 2007,
apresentou dados sobre o uso de substâncias químicas por trabalhadores da coleta de lixo (Mabuchi
et al., 2007) e outro de 2019, que mencionou sobre a sobrecarga mental pela necessidade de
se manterem vigilantes no trabalho e o sofrimento psíquico destes trabalhadores (Souza; Araújo;
Zambroni-de-Souza, 2019).

Mabuchi et al. (2007) descreveram o uso de álcool por trabalhadores da coleta de lixo. O
estudo evidencia que 94% dos sujeitos estudados ingeriam bebida alcóolica durante a realização
do serviço e outros 15% foram considerados dependentes do álcool. Os autores sugerem que
este comportamento impacta na vida social e profissional desses trabalhadores, demandando um
cuidado especial.

Assim, ressalta-se a necessidade de cuidado para com a saúde mental do trabalhador, do


mesmo modo como dedicam atenção à saúde física. Antunes (2018) relata que nas últimas décadas
observa-se o crescente número de trabalhadoras e trabalhadores mutilados, lesionados, adoecidos
fisicamente e mentalmente e muitos incapacitado para retornar ao mercado de trabalho. Resultante
de um modelo de gestão pautada no controle da subjetividade dos trabalhadores e nas diferentes
formas de precarização do trabalho.

De acordo a revisão sistemática realizada por Magalhães (2020) sobre a saúde mental
de trabalhadores do manejo de resíduos sólidos urbanos, há uma carência de estudos que se
debrucem nesta questão e aponta a escassez de materiais sobre o tema. Assim, acredita-se que
o estudo em questão poderá preencher este hiato, na construção de um estudo crítico-dialético
sobre o adoecimento mental de trabalhadores na contemporaneidade.

Nota-se que há uma preocupação com relação aos acidentes de trabalho, afastamentos,
óbitos e subnotificações. Apreensão que amplia, se considerado que há trabalhadores vivenciando
vínculos precários, sentimentos de desamparo mediante a desregulamentação do trabalho
ocorrida na última década, o medo do desemprego e outras as condições que favorecem o seu
adoecimento. Estas condições os levam para além das suas capacidades físicas e mentais a fim de,
garantirem seus vínculos de trabalho.

A arte aqui se aproxima, como uma possível estratégia, assim como pontuam Antunes e
Dejours. Estes autores pautam a necessidade do desenvolvimento de estratégias de prevenção e/
ou tratamento daqueles que se encontram adoecidos. Tonet (2005), defende que os problemas e
necessidades que não podem ser supridas pelo trabalho, sejam resolvidos por outras dimensões
como a linguagem, a educação, a política, a arte, a ciência e outros.

Quando Antunes (2018) sugere que é necessário criar estratégias para fortalecer os
trabalhadores para superarem a exploração do capital e todas as consequências que ele introduz
na vida destes, encontra-se o lugar de propositura deste estudo.

225
Percebe-se o espaço de trabalho como um lugar contraditório. O trabalhador precisa
trabalhar, mas é este local que o tem adoecido. Assim como, não se acredita que seja efetivado a
interseccionalidade entre as políticas públicas de seguridade social.

O trabalhador, cada vez mais fragilizado pelo sistema, carece de fazer-se ouvir. Ser ouvido
pelo Estado, pelo sistema, ser ouvido por seu coletivo, ser ouvido por si. Acredita-se que a música,
enquanto instrumento político e social, permitirá este ecoar. Permitirá a abertura de espaços de
comunicação e expressão para, estrategicamente, os fortalecerem e prevenir o agravamento do
adoecimento mental.

Santos et al., (2009) defendem que juntamente com o adoecimento mental, o trabalhador
também vivencie o esvaziamento do sentido do trabalho, perdendo o duplo movimento de
objetivação e subjetivação. Neste sentido, Dejours (1992) complementa que a execução de uma
tarefa sem o emprego material ou afetivo, exigirá do trabalhador uma produção de esforço e
vontade, nem sempre presentes na vivência depressiva da relação saúde-trabalho.

O estudo em questão está em desenvolvimento e como descrito, será destinado para


trabalhadores da coleta de lixo que fazem acompanhamento no Centro de Atenção Psicossocial da
região noroeste de Goiânia-GO. Pretende-se desenvolver uma pesquisa exploratória e descritiva,
tomando como abordagem do problema a natureza qualitativa, utilizando como instrumentos de
coleta de dados a entrevista semiestruturada e os encontros de grupo. Todos os dados coletados
serão pré-analisados, categorizados e na sequência analisados através do método qualitativo
de análise de conteúdo, seguindo a técnica da análise categorial (Bardin, 1977) e com apoio do
Software Archivfuer Technik, Lebenswelt und Alltagssprache. Text interpretation (Atlas.ti).

Acredita-se, que enquanto houverem desigualdades, explorações, opressões, assédios e


outros mecanismos nas relações de trabalho que contribuam para o comprometimento da saúde
do trabalhador, existirá campo para realização de novos estudos. Do mesmo modo que, os aportes
da Política Social, enquanto área de debate epistemológico, poderá contribuir para que outras áreas
avancem nas discussões críticas e dialéticas sobre os modos de trabalho na perspectiva capitalista.
É neste ensejo que se propõe a atuação transversal da música e da musicoterapia.

Espera-se que este estudo tenha a capacidade, de permear os espaços de saberes,


políticos, sociais, institucionais, para clarificar como a musicoterapia poderá contribuir enquanto
instrumento político-social. Do mesmo modo que permita uma compreensão aprofundada de
como a musicoterapia pode ser uma ferramenta de resistência e resiliência em face das pressões
psicossociais no local de trabalho. Espera-se que igualmente que outros campos de saberes
despertem o interesse para a aplicabilidade de estratégias de cuidado no âmbito da saúde mental
de trabalhadores.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São
Paulo, SP: Boitempo, 2018.

226
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Editora 70, 1977. 70 f.

BRASIL. Ministério da Saúde, 2019. Sistema de Informação de Agravos de notificação. Ficha de


Investigação – Transtorno Mentais. Disponível em: https://portalsinan.saude.gov.br/images/DRT/
DRT_TranstornosMentais.pdf. Acesso em: 05 de jul. 2023.

______. Ministério do Trabalho e Emprego, 2013. Código Brasileiro de Ocupações – Trabalhadores


nos serviços de coleta de resíduos, de limpeza e conservação de áreas públicas. Disponível em
<http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/Busca porTituloResultado.jsf> Acesso em: 11
de out. 2019.

BRUSCIA, Kenneth E. Defining Music Therapy. 3 ed. Barcelona: Barcelona Publishers, 2014.

CARMO, Michelly Eustáquia do; GUIZARDI, Francini Lube. O Conceito de Vulnerabilidade e seus
Sentidos para as Políticas Públicas de Saúde e Assistência Social. Cad. Saúde Pública, 2018. Disponível:
https://doi.org/10.1590/0102-311X00101417. Acesso em: 05 set. 2023.

CARVALHO, Doris Hoyer de. A Musicoterapia e o seu Desenvolvimento no Rio de Janeiro. In: Boletim
da Associação Brasileira de Musicoterapia, nº 1, Rio de Janeiro, 1975. Disponível em: < http://
biblioteca-da-musicoterapia.com/biblioteca/arquivos/artigo//Doris%20Hoyer%20de%201975.
pdf>. Acesso em: 15 de maio 2014.

DEJOURS, Christophe. A Loucura do Trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São


Paulo: Cortez/Oboré, 1992.

MABUCHI, Alessandra dos Santos, et al. Uso de Bebidas Alcoólicas por Trabalhadores do
Serviço de Coleta de Lixo. Revista Latino Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 15,
n. 3, p. 446-452, jun., 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-11692007000300013. Acesso em: 26 de out. 2019.

MAGALHÃES, Yasmim Bezerra. Revisão Sistemática da Saúde Mental de Trabalhadores do Manejo


de Resíduos Sólidos Urbanos. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Faculdade de Ciências da
Saúde da Universidade de Brasília. Brasília, 2020.

MILLECCO, L. A.; BRANDÃO, M. R. E.; MILLECCO, R. P. É preciso cantar: musicoterapia canto e canções.
1 ed. Rio de Janeiro: Enelivros, 2001. 136 p.

OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO. 2023. Disponível em: https://smartlabbr.


org/sst. Acesso em: 10 set. 2023.

SANTOS, M. C. O, et al. Desregulamentação do trabalho e desregulação da atividade: o caso da


terceirização da limpeza urbana e o trabalho dos garis. Produção, v. 19, n. 1, p. 202-213, 2009.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?frbrVersion=3&script=sci_arttext&pid=S0103-
65132009000100013&lng=en&tlng=em. Acesso em: 19 de out. 2019.

SANTANA, Fabrícia S. A Musicoterapia na Política Nacional de Assistência Social. Dissertação


(Mestrado em Música) – Escola de Música e Artes Cênicas, Universidade Federal de Goiás. Goiânia,
2016.

227
SOUZA, Celiana Pereira de; ARAUJO, Anísio José da Silva; ZAMBRONI-DE-SOUZA, Paulo César. “Aqui
tem que ter atividade mesmo, nesse trabalho tem que ser ligado”: riscos, implicações e estratégias
de defesa para a saúde de coletores de lixo domiciliar. Rev. Psicol., Organ. Trab., Brasília, v. 19, n.
1, p. 555-563, jun. 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.17652/rpot/2019.1.15307. Acesso em:
10 jul. 2023.

TONET, I. Cidadania ou emancipação humana? Revista Espaço Acadêmico, n. 44/2005. Disponível


em: http://ivotonet.xp3.biz/. Acesso em: 17jun. 2023.

228
REFORMA TRABALHISTA E O MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL

Karollyne Araujo da Costa


Thais Pereira Carvalho

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo analisar o mercado de trabalho


brasileiro, principalmente após a implementação da Reforma Trabalhista,
apresentada pela Lei 13.467/2017, que foi adotada no governo do presidente
Michel Temer. Além disso, busca analisar suas consequências como a
intensificação da flexibilidade nos contratos de trabalho, a precarização do
trabalho, a informalidade e a desproteção social dos/as trabalhadores/as.

1. INTRODUÇÃO

A centralidade do trabalho está presente na vivência dos indivíduos ao exercer sua


sociabilidade, porém a relação com o trabalho inserido na perspectiva capitalista apresenta
especificidades que colocam os trabalhadores/as em posições que não garantem condições de
trabalho dignas, especialmente no cenário de desejo do aumento de lucro a todo momento.

Dessa forma, a partir do estabelecimento de uma dinâmica neoliberal, pautada no controle


do trabalho, da sociedade, da subjetividade e da concorrência, amparado em mudanças legislativas
como a Reforma Trabalhista de 2017, previsto pela Lei nº 13.467 que aprova formas de precarização
das relações trabalhistas, percebe-se que esse processo também recai para a vida pessoal da classe
trabalhadora, pois em todo momento há a imposição de que deve-se estar em constante disciplina
e própria mercantilização, tornando o/a trabalhador/a responsável por si mesmo, sem a proteção
do Estado aos seus direitos.

Somado ao contexto apresentado, ainda há outros aspectos que intensificam as formas de


consolidação da Precarização do Trabalho, como a uberização, a terceirização, e a flexibilização
das formas de contratação, impactando diretamente em direitos sociais da classe trabalhadora.
A informalidade, a desocupação e a subutilização são fenômenos que tem se mantido com a
instauração da Reforma Trabalhista. Essas modificações no mundo do trabalho reverberam em
outros aspectos, como a relação desses trabalhadores/as sem proteção social e a ideologia do
empreendedorismo neoliberal.

Ao analisar a conjuntura apresentada, nota-se a presença da expressão da “questão


social” a partir da relação do Capital e Trabalho - inserido na dinâmica de acumulação capitalista -
caracterizada pelas desigualdades sociais expressas na realidade do cotidiano de trabalhadores/as,
além disso, sabe-se cada dinâmica societária possui especificidades da formação sócio histórica de
cada região (Ianni, 2004).

229
Portanto, o presente trabalho se apresenta a partir da análise de produções teóricas
e de dados do IBGE por meio da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
Contínua), a fim de explorar as dinâmicas atuais do mercado de trabalho que se relacionam com
o neoliberalismo, contratos de trabalho flexibilizados, proteção social e as expressões da questão
social.

2. REFORMA TRABALHISTA E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

A reforma trabalhista no Brasil, estabelecida pela Lei nº 13.467/2017, durante o governo do


presidente Michel Temer (2016-2018), apresentou modificações na legislação trabalhista brasileira
diante da inserção de dispositivos que abordam sobre a terceirização, como a reforma trabalhista
(Lei n.º 13.467 de 2017) e a lei da terceirização (Lei n.º 13.429/2017, resultando em contratos
flexibilizados, dentre outros aspectos, causando o agravo da desproteção social, e o aumento da
precarização do trabalho (Carvalho e Dias, 2022).

Com o avanço da globalização do capitalismo, a elaboração de reformas trabalhistas


não ocorreu apenas no Brasil, mas também em países como Itália, Alemanha, Reino Unido,
México, Chile e Espanha. Em todos esses países, foi constatado que as reformas instituídas não
foram benéficas para a classe trabalhadora, já que a precarização do trabalho foi ampliada, com
significativo aumento das taxas de desemprego, informalidade e diminuição da remuneração
da população. Diante disso, houve uma fragilização dos direitos trabalhistas, deixando claro que
reformas trabalhistas, tem um processo de adoção de práticas de flexibilização do trabalho, o que
acarreta apenas em desvantagens à classe trabalhadora. (CESIT, 2017)

No campo das produções teóricas, demonstra-se que os objetivos desejados pela Reforma
Trabalhista estavam unidos a flexibilidade das modalidades de contratação, da jornada de trabalho,
da remuneração e da organização sindical, além da individualização dos riscos aos trabalhadores,
gerando a perspectiva de desmantelamento dos direitos sociais, assim como do papel protetor
do Estado (Colombi; Krein, 2019). No entanto, mesmo com essas modificações na legislação não
houve melhora no cenário trabalhista, como pode-se observar nos índices de desemprego, salários,
condições de trabalho e segurança (Droppa; Biavaschi; Teixeira, 2021).

Com isso, ao elaborar a análise de indicadores como a informalidade, desemprego e a


subutilização como os objetivos almejados pelas modificações legislativas não tiveram efeito
positivo no Brasil, mas sim demonstram a intensificação da precarização do mundo do trabalho,
como já constatado também a partir de experiências internacionais.

A taxa de informalidade é composta por trabalhadores que não possuem vínculo trabalhista
firmado pela carteira de trabalho assinada e que também não contribuem para a previdência
social. De acordo com os dados obtidos pelo IBGE em 2023, por meio da PNAD Contínua (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio Contínua), a parcela da classe trabalhadora informal no Brasil
entre 2016 e 2023 se manteve estável, o que demonstra que não houve expansão da formalização
da classe trabalhadora, como mostra a tabela abaixo, que trata do primeiro trimestre de cada ano,
sendo 2016 o ano anterior à reforma e os demais pós-reforma:

230
Taxa de informalidade das pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência
(%)
1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri-
mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre
2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
Brasil 38,3 39,2 40,2 40,4 39,5 39,1 40,1 39
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Elaboração Pró-
pria.

Além disso, apresentando a taxa de desocupação, sendo compreendida como pessoas com
idade laboral e que não trabalham, mas estão disponíveis e tentam encontrar trabalho, segundo
os dados analisados da PNADC de 2023, o índice de desocupados aumentou após a instituição
da Reforma Trabalhista, com números que chegam a 14,9% da população brasileira no primeiro
trimestre de 2021, expondo que a Reforma Trabalhista instituída, não obteve êxito nas promessas
de aumento da empregabilidade. Como mostra os dados do primeiro trimestre dos anos 2016 a
2023 da tabela a seguir:

Taxa de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade (%)
1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri-
mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre
2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
Brasil 11,1 13,9 13,2 12,8 12,4 14,9 11,1 8,8
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Elaboração Pró-
pria.

Contudo, o desemprego, diante da sociabilidade capitalista, é uma característica fundamental,


pois possui uma função necessária com o objetivo de que possa ofertar ao sistema de acumulação
do capital, além força de trabalho já inserida na produção, mas também a “reserva da mão de
obra”, ou seja, uma população com idade para o trabalho que possa substituir os trabalhadores já
em exercício (Fortes, 2018).

Além da desocupação e da informalidade, outro índice que se elevou com a Reforma


Trabalhista foi a subutilização, que é composto pelas pessoas que estão subocupadas por
insuficiência de horas trabalhadas, junto com pessoas desocupadas e a força de trabalho potencial
(IBGE, 2023). De acordo com a análise dos dados da PNADC, a taxa de subutilização aumentou
consideravelmente após a Reforma Trabalhista, pois no primeiro trimestre de 2016, a taxa era de
19,4%, já no primeiro trimestre de 2021 essa taxa alcançou o índice de 29,6%, como demonstra a
tabela abaixo:

231
Taxa composta de subutilização da força de trabalho, na semana de referência, das pessoas de 14
anos ou mais de idade (%)
1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri- 1º tri-
mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre mestre
2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023
Brasil 19,4 24,1 24,7 25 24,4 29,6 23,2 18,9
Fonte: IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Elaboração Própria

Além dessas taxas apresentadas, há outras novas relações de trabalho, inseridas na dinâmica
neoliberal, como pode-se destacar a terceirização que foi instituída por meio das disposições
legais da Lei nº 13.429/17 e pela Lei nº 13.467/17, prometendo a redução dos custos e maior
produtividade, relembrando os pilares da acumulação flexível1.

A terceirização é concebida como a externalização de parte do processo produtivo de um


contratante, que transfere para outra empresa a incumbência de contratar uma pessoa jurídica
que execute atividades-meio como limpeza e segurança. Antes da aprovação da Lei nº 13.429/17,
a contratação de prestação de serviços eram regulamentada pela lei do trabalho temporário (Lei
nº 6.019/74), a lei do serviço de vigilância (Lei nº 7.102/83) e de conservação de limpeza (CNAE
811 e 812), como observado por Droppa, Biavaschi e Teixeira (2021). Com as reformas trabalhistas,
as terceirizações foram expandidas para qualquer tipo de atividade, barateando a mão de obra e
fragmentando ainda mais o processo produtivo, assim como é exposto Filgueiras e Dutra (2021)

Conforme a terceirização tem se expandido, suas formas de expressão abrange novos


modelos, que se apresenta como o “capitalismo de plataformas, que eleve o fenômeno da
terceirização a quarteirização, como a possibilidade de uma empresa, já terceirizada, contratar
outra empresa para desenvolver atividades diferentes, o que traz a realidade que se apresenta sem
proteção social ao trabalhador ou garantia de direitos. (Droppa; Biavaschi; Teixeira, 2021). Ademais,
Dutra e Filgueiras (2021) expõem que os efeitos da terceirização para a classe trabalhadora são
apresentados com menores salários, maior jornada de trabalho e rotatividade de contratações,
maior exposição a abusos, acidentes e adoecimento laboral, aumento dos casos de trabalho em
condição análoga à de escravos.

A partir dos pilares neoliberais como garantir o livre mercado, associado a liberdade
individual para empreender e o estabelecimento da mínima intervenção do Estado, associado a
modificações na legislação trabalhista, nota-se que os trabalhadores, são encorajados a captar a
ideia de ser empresário-de-si, por incentivo de organizações, como a Confederação Nacional da
Indústria (CNI) que representa o empresariado, em conceitos como produtividade, concorrência,
mérito e proatividade.

Os autores Amorim, Moda e Mevis (2021) salientam sobre a romantização do


empreendedorismo, que é uma tendência neoliberal, com o conceito de empresário-de-si,
onde o trabalhador acredita que está contribuindo para a economia e dinamicidade do mercado

1 “A acumulação flexível caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas
maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional.” (Abramides; Cabral, 2003)

232
de trabalho, quando na verdade está ainda subordinado ao capital, e sem garantias de direitos
trabalhistas, demonstrando como se torna um instrumento de exploração e dominação da classe
trabalhadora.

Dessa forma, a partir do estabelecimento de uma dinâmica neoliberal, pautada no controle


do trabalho, da sociedade, da subjetividade e da concorrência, percebe-se como esse processo
também se expressa na vida pessoal dos trabalhadores/as, pois em todo momento há necessidade
de estar em constante disciplina e própria mercantilização.

Além disso, a falácia de que o sucesso profissional de qualquer pessoa depende apenas de
seu esforço e mérito faz parte do imaginário do empreendedor no Brasil, o que torna cada pessoa
a única responsável por sua situação financeira. Isso faz com que a classe trabalhadora internalize
que os problemas sociais, a precarização do trabalho e as condições de vida do trabalhador são
questões individuais e não coletivas.

Outro fenômeno presente nas relações de trabalho que tem se expandido no Brasil, é a
pejotização, que consiste na modalidade de contratação onde o trabalhador é inscrito no programa
de Microempreendedor Individual (MEI), para assim poder ser contratado pela empresa apenas
como prestador de serviços, sem vínculo empregatício formal, mesmo que tenha subordinação,
exclusividade, e todas as responsabilidades de um empregado comum, realizando atividades fim
nas empresas (Orbem, 2016). Com a alteração da Lei n.º 6.019/1974 (Lei do trabalho temporário)
que alterou o artigo 4.º-A admitindo a forma ampliada da terceirização, foi facilitada a ocorrência
da pejotização, transformando a classe trabalhadora passível da perda dos seus direitos sociais,
sem proteção das normas trabalhistas (Carvalho e Dias, 2022).

3. CONCLUSÃO

Nota-se que o Trabalho possui uma posição importante diante da nossa sociabilidade,
visto que durante a história esteve presente e ainda tem impacto relevante na sociedade atual.
Segundo Antunes (2020), o que se observa no cenário atual é que não há o fim do trabalho ou da
classe trabalhadora, mas sim a ampliação do trabalho precário que afeta de diferentes formas os
trabalhadores/as.

Diante desse cenário, nota-se as modificações de leis que precarizam ainda mais o cenário
dos trabalhadores, visto que os objetivos traçados pela reforma trabalhista de: criação de postos de
trabalho de qualidade, menos desemprego, dentre outros, não foram atingidos, em contrapartida
houve a precarização mais intensa diante do cenário do trabalho no Brasil, pois oferece a classe
dominante mais poder sobre a classe trabalhadora, no sentido de uso da força de trabalho com
baixos pagamentos, sem proteção social de trabalhadores (Droppa; Biavaschi; Teixeira, 2021).
Além disso, há questões que necessitam ser debatidas, pois atingem a classe trabalhadora como a
diminuição da proteção social, pois não há vínculo trabalhista com plataformas de aplicativos que
conectam as demandas de serviço, o que dificulta em caso de necessidade de apoio ou de acesso à
seguridade social como a previdência social, que na maioria dos casos, exige a contribuição.

233
Em suma, percebe-se a contradição e disputas entre a classe trabalhadora e o empresariado,
que possui uma dinâmica própria do cenário capitalista atual, intensificado pelo neoliberalismo,
que propõe ideias que visam o incentivo à produção, concorrência, individualismo, ignorando
as condições objetivas de sobrevivência de trabalhadores/as. Com a fragilização das relações
trabalhistas, os trabalhadores/as tiveram que garantir sua sobrevivência por meio da abdicação dos
direitos trabalhistas, e esse cenário mostra o empobrecimento e aumento da desigualdade social da
população. O trabalho flexibilizado, que teve sua expansão possibilitada pela Reforma Trabalhista,
deixa nítido a vulnerabilidade social, política e econômica a que a população está sujeita, vindo
acompanhada da perda de vínculos trabalhistas e a precarização das condições de trabalho.

REFERÊNCIAS

ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa; CABRAL, Maria do Socorro Reis. Regime de acumulação flexível e
saúde do trabalhador. São Paulo em Perspectiva, [s. l.], 2003. DOI https://doi.org/10.1590/S0102-
88392003000100002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/spp/a/P87NC7ZMqpymgR9t3gBG8yh/.
Acesso em: 26 mar. 2024.

AMORIM, Henrique; MODA, Felipe; MEVIS, Camila. EMPREENDEDORISMO: uma forma de


americanismo contemporâneo?. CRH, [s. l.], 2021. DOI https://doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.36219.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/4zN8sv5BhPHhKKjywHRr4vy/. Acesso em: 26 mar.
2024.

ANTUNES, Ricardo (org.). 2020. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1. ed. São Paulo:
Boitempo. 333 pp. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/zwxvVg76rBc89Fs3QQS6cMb/.
Acesso em: 26 mar. 2024.

BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 21 de abril de 2024.

BRASIL. Lei n.º 13.429, de 31 de março de 2017. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm> Acesso em: 21 de abril de 2024.

CARVALHO, Fernando Ribeiro da Silva.; DIAS, Marcos Rogerio Pianco. O Impacto da Pejotização como
Meio de Fraudar Obrigações do Contrato de Trabalho após a Lei nº 13.467/2017. Revista de Ciências
Jurídicas e Empresariais, [S. l.], v. 23, n. 2, p. 132–138, 2022. DOI: 10.17921/2448-2129.2022v23n
2p132-138. Disponível em: https://revistajuridicas.pgsscogna.com.br/juridicas/article/view/10040.
Acesso em: 26 mar. 2024.

COLOMBI, Ana Paula Fregnani; KREIN, José Dari. A Reforma Trabalhista em foco: Desconstrução da
Proteção Social em Tempos de Neoliberalismo Autoritário. Educação & Sociedade , Campinas, 9 ago,
2019. DOI https://doi.org/10.1590/ES0101-73302019223441. Disponível em: https://www.scielo.
br/j/es/a/X9zPP8bXjjvTHTXK4wYqszk/. Acesso em: 26 mar. 2024.

DROPPA, Alisson; BIAVASCHI, Magda Barros; TEIXEIRA, Marilane Oliveira. A TERCEIRIZAÇÃO NO


CONTEXTO DA REFORMA TRABALHISTA: conceito amplo e possibilidades metodológicas. CRH, [s.

234
l.], 2021. DOI https://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.45060. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
ccrh/a/8hqZ94tV7dXRz5yjcbzm5jc/. Acesso em: 26 mar. 2024.

DRUCK, Graça; DUTRA, Renata; SILVA, Selma Cristina. A CONTRARREFORMA NEOLIBERAL E A


TERCEIRIZAÇÃO: a precarização como regra. CRH, [s. l.], 2019. DOI https://doi.org/10.9771/
ccrh.v32i86.30518. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccrh/a/djFJYWDLrSjCyTHJK6TNKCr/
abstract/?lang=pt#. Acesso em: 26 mar. 2024.

FILGUEIRAS, Vitor Araujo; DUTRA, Renata. DISTINÇÕES E APROXIMAÇÕES ENTRE TERCEIRIZAÇÃO E


UBERIZAÇÃO: os conceitos como palco de disputas. Caderno CRH, v. 34, p. e021033, 2021.

FRANCO, Fábio Luís. FAZER PRECARIZAR: neoliberalismo autoritário e necrogovernamentalidade.


CRH, [s. l.], 2021. DOI https://dx.doi.org/10.9771/ccrh.v34i0.44503. Disponível em: https://www.
scielo.br/j/ccrh/a/Tc6bptDkKjrbNPcPzn9bqcf/. Acesso em: 26 mar. 2024.

FORTES, Ronaldo Vielmi. SOBRE O CONCEITO DE EXÉRCITO INDUSTRIAL DE RESERVA: ASPECTOS


HISTÓRICOS E ATUALIDADE. Temporalis, [S. l.], v. 18, n. 36, p. 256–273, 2019. DOI: 10.22422/
temporalis.2018v18n36p256-273. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/
view/21461. Acesso em: 21 abr. 2024.

GALVÃO, Andréia; KREIN, José Dari. A CONTRARREFORMA TRABALHISTA E A FRAGILIZAÇÃO


DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DO TRABALHO: THE LABOR COUNTER-REFORMATION AND THE
FRAGILIZATION OF PUBLIC LABOUR INSTITUTIONS. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 15ª Região, n. 53, [s. l.], 2018. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/
handle/20.500.12178/182350/2018_galvao_andreia_contrarref_trabalhista.pdf..Acesso em: 26
mar. 2024.

IANNI, Octavio. A Idéia de Brasil Moderno. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas,
SP, v. 1, n. 1, p. 19–38, 2006. DOI: 10.20396/resgate.v1i1.8645452. Disponível em: https://periodicos.
sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645452. Acesso em: 21 abr. 2024.

IBGE- INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. PNADC, Pesquisa Nacional de Amostra


de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro, IBGE, 2023. Disponível em: <https://painel.ibge.gov.br/
pnadc/> Acesso em: Acesso em: 26 mar. 2024.

KREIN, José D. (org.). Subsídios para a discussão sobre a reforma trabalhista no Brasil. CESIT/IE/
UNICAMP. Campinas, 2017.

ORBEM, Juliani V. A (re) construção de uma “nova” modalidade de trabalho denominada “pejotização”
no contexto sociocultural brasileiro. Revista Áskesis, São Carlos, v. 5, n. 1, p. 143-156, jan-jul. 2016.

235
A INSERÇÃO DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR E AS
TENDÊNCIAS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SERVIÇO SOCIAL NO BRASIL

Laryssa Danielly Silva Fernandes


Mariléia Goin

1. INTRODUÇÃO

As TICs promoveram e ainda promovem mudança substancial na lógica do ensino e na


relação de ensino-aprendizagem. Negreiros (2019) afirma que a partir de 1970 iniciou-se um
novo marco no desenvolvimento do capitalismo, marcado pelo processo de mercadorização da
vida, mediante a ideologia neoliberal e, sobretudo, o desenvolvimento da produção científica e
tecnológica para a humanidade sob a lógica da reestruturação produtiva. O esgotamento político-
econômico keynesiano-fordista alterou a lógica de acumulação do capital.

Negreiros (2019) destaca que esse novo modo de produção, o toyotista, se expressa na
sociedade capitalista a partir dos seguintes aspectos: a) o processo produtivo se volta a demanda
do mercado de consumo, mediante aos interesses específicos de consumo, com o mínimo de
estoque de mercadorias – inaugura-se a flexibilidade; b) a diversificação de mercadorias demanda
a inserção de novas tecnologias para tornar a produção mais inovadora e diversificada no uso
da força humana de trabalho; c) inaugura-se a era da polivalência e multifuncionalidade da mão
de obra, com o discurso de trabalho em equipe, com a defesa de uma maior integração entre os
trabalhadores/as e descentralização da produção – como exemplo, as grandes indústrias deslocam
seu pólo produtivo para locais em que a mão de obra seja mais barata, como é o caso de países de
capitalismo periférico e dependente.

Diante desse contexto, essa produção objetiva refletir acerca das mudanças promovidas
pela inserção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no ensino superior brasileiro
e as tendências resultantes dos seus rebatimentos na formação em Serviço Social, tendo em vista
que se operam mudanças de ingerência interna da própria profissão, dado seu caráter estruturante
às políticas educacionais brasileiras.

2. DESENVOLVIMENTO

Com as alterações no modo de acumulação capitalista decorrentes das transformações


produtivas, Negreiros (2019) afirma que nos países de capitalismo dependente, a exemplo do
Brasil, a reestruturação produtiva se efetiva com particularidades, numa ampla superexploração
da classe trabalhadora – cujos rebatimentos são a precarização da força de trabalho, os contratos
flexíveis, a terceirização, o trabalho informal, os subempregos, os trabalhos em condições análogas

236
à escravidão, os trabalhos por temporada, a uberização1 do trabalho, a redução de salários,
a constituição da classe trabalhadora de forma heterogênea, com profunda desarticulação e
enfraquecimento da luta de classes. Há nesse contexto o desemprego estrutural, mediante a
substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto (maquinários), a privatização de órgãos públicos,
o redimensionamento do Estado2, com diminuições significativas para o investimento em políticas
públicas, desregulamentação dos direitos socialmente conquistados e a disputa pelo fundo público3,
para o pagamento da dívida externa.

Nesse contexto de reestruturação produtiva, destaca-se a ideologia neoliberal, incorporando


novas dinâmicas societárias, com a prevalência do individualismo e de um novo gerenciamento do
Estado. Dardot e Laval (2016) ressaltam que essa nova racionalidade trata-se de uma invasão a
todas as dimensões da vida humana, pautada por uma mercantilização generalizada das relações
sociais. Tudo se torna mercadoria.

No âmbito da educação, como uma das esferas da vida social impactada por essa nova
racionalidade, Negreiros (2019, p. 99) afirma que a mercadorização avança na educação e, por
consequência, resulta na massiva privatização das instituições, que compõem um conjunto de
diretrizes desenvolvidas pelos organismos internacionais.

A autora destaca que, nas modalidades de EaD, há uma predominância das TICs, sob
orientação neoliberal, em que demarca-se a expansão das EaDs, privadas com ou sem fins
lucrativos. Desse modo, percebe-se que a expansão e incentivo do EaD no Brasil inaugura a era
da aprendizagem flexível, com forte reforço dos padrões de dominação existentes, articuladas
à massificação do ensino e da sua mercantilização, “sendo impostas como uma nova estratégia
pedagógica necessária à formação de um novo perfil profissional” (NEGREIROS, 2019, p. 193).

Diante disso, decorridos 27 anos da aprovação das Diretrizes Curriculares4 do Serviço Social
brasileiro, algumas tendências (e obstáculos) se destacam como rebatimentos das transformações
ocorridas no processo educacional nas últimas décadas, intensificadas pela inserção das TIC’s na
formação profissional, na atualidade.

Especificamente em relação ao Serviço Social, Abramides (2012) e Guerra (2010) indicam


que a expansão da EaD tem sido um dos nós dessa incorporação das TIC’s, que corresponde 1) a
precarização, aligeiramento e banalização do ensino, devido à ausência de uma perspectiva de
totalidade na formação, bem como a ausência da tríade ensino, pesquisa e extensão, numa intrínseca
subordinação à lógica do capital; 2) a criação de uma “fábrica de diplomas”, pois não importa o
perfil profissional que se deseja formar (crítico, criativo e propositivo), baseado nas diretrizes da
ABEPSS, mas um profissional que esteja pronto para as multifuncionalidades do mercado; e 3) o
aprofundamento da educação mercantil, com a criação de novos nichos lucrativos de mercado,
subordinados aos organismos internacionais, priorizando a produtividade e a flexibilidade.

1 Ver Antunes (2020), Uberização, trabalho digital e Indústria 4.0, editora Boitempo, 2020.
2 Esse redimensionamento chega para o Brasil em 1990 no governo FHC, com a proposta de Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE).
3 Ver livro Fundo público, valor e política social, de Elaine Behring (2021).
4 As diretrizes curriculares de 1996 são o marco da profissão no Brasil, símbolo da luta pelo Serviço Social tradi-
cional e conservador, modificando as bases formativas e do trabalho profissional.

237
Abramides (2012, p. 20) destaca que o ensino de EaD é “concebido para ser um ensino
massivo, contraposto à universalização do ensino público, estatal e em todos os níveis. Prevê o
número reduzido de tutores e técnicos na utilização desta força de trabalho em detrimento dos
educadores presenciais, na lógica da flexibilização de direitos”.

Segundo os dados tabulados a partir do e-MEC, em 2021, eram 129 instituições privadas à
distância no Brasil; dessas, 35 ofertam cursos nas cinco regiões do Brasil. Os grupos das faculdades
privadas na modalidade de ensino a distância se dividem em privadas com fins lucrativos e privadas
sem fins lucrativos. Os dados tabulados na Tabela 1 demonstram a abrangência das instituições a
distância nas cinco regiões do Brasil e o seu quantitativo de vagas.

Tabela 1 - Lista de faculdades e centros universitários de EaD predominantes nas cinco regiões do
Brasil com o maior quantitativo de vagas

EAD BRASIL

INSTITUIÇÕES N.º DE VAGAS5

UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP 73260


CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI –
7680
UNIASSELVI
CENTRO UNIVERSITÁRIO DA GRANDE DOURADOS 3000
UNIVERSIDADE ANHANGUERA 16800
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL 4000
UNIVERSIDADE PITÁGORAS – UNOPAR 7000
FACULDADE EDUCACIONAL DA LAPA –
6000
FAEL
CENTRO UNIVERSITÁRIO INTERNACIONAL –
3000
UNINTER
Fonte: Elaborada pela autora com base nos dados disponíveis no site do e-MEC (2021).

A partir do que está exposto na Tabela 1, podemos asseverar que a expansão do ensino
privado e de EaD revela um grande investimento estatal. Negreiros (2019, p.112) ressalta que,
em 2016, “o FIES alcançou um custo global aos cofres públicos de R$ 32,2 bilhões. Apenas no ano
de 2014, foram firmados 732 mil contratos, o que custou ao Estado uma cifra de R$ 12 bilhões”.
Destaca que “o Brasil é, atualmente, o país com maior número de instituições privadas com fins
lucrativos no mundo, sendo também o que registra o maior número de aquisições e fusões de
empresas (foram mais de 200 na última década)” (NEGREIROS, 2019, p. 112), como é o caso do
grupo educacional Kroton, que desde 2011 se expande no mercado educacional, no âmbito do
ensino superior brasileiro, e em 2016 se tornou o maior conglomerado educacional do mundo.

5 Quantitativo de vagas ofertadas para todo o Brasil.

238
Segundo Negreiros (2019), a educação brasileira está completamente entregue à lógica dos
organismos internacionais, uma vez que obedece aos ditames do Banco Mundial, quando este
afirma que há um excesso de gastos públicos com a educação pública que não atingem o índice de
aprendizagem suficiente, especialmente as instituições de ensino superior, classificando-os como
ineficientes. Para os organismos internacionais, está em curso a lógica de privatização da educação
superior e de uma educação técnica voltada para o estrito retorno financeiro.

Portanto, o que se efetiva nessa conjuntura é

[...] a destituição da educação enquanto um direito, metamorfoseando-a


em serviço que agora pode ser absorvido pelo mercado em seus mais
diversos processos: desde a expansão de instituições privadas a serviços
a serem ofertados para suprirem demandas didático-pedagógicas, tais
como processos de avaliação e acompanhamento do desenvolvimento dos
discentes; ambientes de aprendizagens digitais; orientações digitais através
do uso de recursos de Inteligência Artificial, dispensando a atuação docente
(NEGREIROS, 2019, p. 214).

Esses dados demonstram as metamorfoses da formação profissional em Serviço Social no


Brasil, acompanhadas da lógica de ampliação do ensino privado e, por sua vez, do ensino EaD. É
nessa esteira que se torna impreterível a análise das tendências que invadem a formação profissional
em Serviço Social no Brasil, sendo que a primeira tendência está marcada pela hegemonia de uma
educação privada, (89,35%), com indicadores da lógica mercantil da educação no Brasil.

Gráfico 1 - Percentual da oferta de cursos de graduação em Serviço Social no Brasil nas modalidades
presencial e a distância e natureza institucional

Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados disponíveis no site do e-MEC (2021).

239
Esses dados retratam a conjuntura de uma educação privatista, em que 89,35% da formação
sucede em instituições privadas presenciais e a distância e somente 10,65% da formação ocorrem
em instituições públicas. Ademais, caracterizam os rumos da formação profissional após a aprovação
das Diretrizes Curriculares em 1996 e a sua fragilização após a aprovação das diretrizes do MEC em
2002.

Iamamoto (2014) ressalta que a tendência predominante é a lógica mercantil e empresarial


que invade a universidade, com foco para uma formação imediata, pragmática, operacional, com o
objetivo de atingir resultados. Esse contexto de formação dialoga com o movimento da sociedade
capitalista, desde a reestruturação produtiva, baseada pela tríade neoliberal: flexibilização,
terceirização e privatização.

De acordo com a Iamamoto (2014), a formação atual é voltada para o mercado, com
inúmeras expansões de vagas nos cursos privados presenciais e de ensino a distância, marcado
pela prevalência de instituições privadas na contrapartida do sucateamento das universidades
públicas; e, nessa esteira, verifica-se a ausência de um ensino balizado pelo tripé ensino, pesquisa
e extensão – conforme preconizam as diretrizes do MEC (2002). “Tal orientação flexibiliza e aligeira
a formação profissional para atender as exigências imediatas em detrimento de uma formação
humanista ético-política” (ABREU, 2007, p. 124).

Iamamoto (2014) aponta que, a partir da mercantilização do ensino superior, há a


substituição da categoria totalidade, significativa no processo de formação, por um conhecimento
instrumental, cuja “tendência é deslocar o centro de interesse dos conteúdos teóricos para outros
de caráter instrumental, centrados na prática e no sistema produtivo, sensíveis às exigências do
mercado” (IAMAMOTO, 2014, p. 626).

A segunda tendência é expressa pela inexistência de cursos públicos em alguns estados


brasileiros ou a existência de apenas um curso público na região, a exemplo da região Norte (Acre,
Amapá e Rondônia), que não possui cursos públicos, e do estado de Roraima, em que só existe um
curso público. Na região Nordeste, os estados do Maranhão, do Piauí e de Sergipe só possuem um
curso público. Na região Centro-Oeste, o estado de Mato Grosso do Sul não possui curso público, e o
estado de Goiás possui apenas um. Na região Sudeste, o estado do Espírito Santo apresenta apenas
um curso público; e, por fim, na região Sul, o estado de Santa Catarina possui apenas um curso
público. Especificamente nesses estados, que inexistem cursos públicos ou que possui apenas um,
compreende-se que a formação fica à mercê dos cursos privados, seja presencial ou a distância.

É possível observar a desproporcionalidade do ensino público nas regiões do Brasil. Conforme


indica Goin (2019), a ausência de cursos públicos em 4 estados brasileiros, que representa 15% das
regiões no Brasil, intensifica o debate acerca do perfil que se está formando nesses estados, em que
a formação é majoritariamente privada e em que medida essa formação dialoga com as Diretrizes
da ABEPSS.

A terceira tendência situa-se na conjuntura hodierna neoliberal e neoconservadora,


com predominância no capitalismo financeiro, no protocolo de Bolonha e nos determinantes

240
da contrarreforma do ensino superior no Brasil6, que culminam em uma formação profissional
entregue ao mercado capitalista. Boschetti (2015, p. 642-643) ressalta que

os traços que indicam uma reatualização do conservadorismo, aqui


apresentados, não podem ser compreendidos como elementos endógenos e
exclusivos do Serviço Social. Ao contrário, são tendências presentes em todas
as áreas, fortemente alimentadas pela contrarreforma do ensino superior,
forjada desde a década de 1990 no contexto da mundialização do capital
e sujeição dos países às recomendações de organismos internacionais,
como Banco Mundial (BM), Organização Mundial do Comércio (OMC) e
Fundo Monetário Internacional (FMI). As tendências de mercantilização do
ensino superior ganharam fôlego a partir dos anos 2000, com a aprovação
do Protocolo de Bolonha, que também incorporou muitas recomendações
dessas organizações (BM, OMC, FMI), como um requisito para a constituição
da União Europeia. O chamado Processo de Bolonha foi desencadeado pela
Declaração da Sorbonne/Paris/França (25 de maio de 1998), subscrita por
quatro países – França, Alemanha, Itália e Reino Unido –, e consistia em
uma declaração de intenção para estabelecer novas diretrizes para o ensino
superior na Comunidade Europeia.

Segundo a autora, o protocolo de Bolonha ocorreu em 1999, na cidade de Bolonha, na


Itália, com a participação de 29 ministros da educação europeus. Este encontro tinha como objetivo
estabelecer um “Projeto de Reorganização do Ensino Superior na Europa”.

Boschetti (2015, p. 645) afirma que o protocolo de Bolonha fundamenta o avanço do (neo)
conservadorismo no âmbito da formação profissional, em todas as áreas, com traços que indicam
um retrocesso na luta por uma educação pública e de qualidade, com fundamentação crítica, numa
perspectiva de totalidade. Essa concepção de uma universidade barata, rápida e padronizada, com
financiamento autossustentável, adaptada às exigências do mercado capitalista, se capilariza pelo
Brasil desde a década de 1990, mediante a incorporação neoliberal e a LDB, com a proposta de
“reforma universitária”. Esses elementos aprofundam e aceleram a massificação do ensino privado
e a distância, com assustadora expansão de cursos, vagas e matrículas.

Desse modo, a formação profissional em Serviço Social, no Brasil, estabelece uma relação
dialética com esses determinantes conjunturais, e reflete os rebatimentos dos projetos coletivos
e de mercantilização da vida social (saúde, educação, previdência e assistência). Mota (2019, p.
171) afirma que “[...] esta relação entre projetos profissionais e projetos societais pode esgarçar-
se, dependendo da correlação de forças e das tendências da luta de classes, operando reveses na
cultura e nas posturas do coletivo profissional”.

Assim, como na década de 1980 havia inúmeros desafios conjunturais, mas também havia
forte articulação política dos movimentos sociais, hoje, podemos visualizar a atual conjuntura com
forte ofensiva neoliberal e neoconservadora, com ideologias que promovem a desarticulação social,
6 Segundo Abramides (2012), a contrarreforma do ensino superior se inicia no Governo de Fernando Henrique
Cardoso, em 1994, momento em que se consolida o neoliberalismo no Brasil, se expande e se aprofunda na contrarre-
forma do Governo Lula, de 2002 a 2010, e apresenta sua continuidade no Governo de Dilma Vana Rousseff, a partir de
2011 até 2016, quando sofre o impeachment.

241
por meio do individualismo, com cortes significativos nos financiamentos das políticas sociais e
disputa pelo fundo público.

Esse cenário reflete que não são poucas as mudanças e impactos oriundos da inserção
das TIC’s na educação superior e, conforme demonstrado, no Serviço Social, por se tratar de
um curso de Bacharelado no âmbito das Ciências Sociais Aplicadas que, comumente, demanda
menos estrutura física e mais recursos humanos, logo, mostra-se como um curso sedutor para uma
formação não presencial e aligeirada, facilmente ofertadas nas instituições à distância, que não
dispõe de complexa estrutura física para sua oferta.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ausências da educação pública, laica e socialmente referenciada impactam na relação da


organização política da categoria, na relação orgânica entre pesquisa e universidade, na concepção
de profissão, no entendimento do objeto da profissão, questão social7, no perfil que se deseja formar,
além disso, os impactos também são sentidos na ausência de uma mobilização estudantil – que
atuam na defesa da direção social e política da profissão. A relação orgânica entre ensino, pesquisa
e extensão fica à mercê de uma educação mercantilizada. A totalidade da formação profissional
que possibilita compreender de forma dialética as determinações estruturais e conjunturais que
incidem sobre a universidade e a formação profissional torna-se refém de uma formação aligeirada
e privatista. A educação privada, on-line e mercantilizada não possibilita esse salto qualitativo,
portanto instauram-se na formação profissional em Serviço Social a invasão neoliberal e o “abre-
alas” do neoconservadorismo na profissão.

Por isso, torna-se imprescindível a luta por uma universidade democrática, plural, pública
e de qualidade, para alcançar uma formação crítica, capaz de interferir ativamente nos rumos da
formação profissional em Serviço Social, com as mediações necessárias na vivência da universidade
no diálogo com os movimentos sociais, docentes e discentes, grupos de pesquisa, monitorias e na
realização de extensão universitária, possibilitando o contato com a sociedade, num intercâmbio
de saberes.

REFERÊNCIAS

ABEPSS - Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Diretrizes gerais para o Curso
de Serviço Social (Com base no Currículo Mínimo aprovado em Assembleia Geral Extraordinária
de 8 de novembro de 1996). Rio de Janeiro, 1996. Disponível em: http://www.abepss.org.br/files/
Lei_de_Diretrizes_Curriculares_1996.pdf. Acesso em: dez. 2021.

ABRAMIDES, M. B. C. As contrarreformas do ensino superior e a luta pela educação de qualidade.


Serv. Soc. & Saúde, Campinas, SP v. 11, n. 1 (13), p. 7-26, jan./ jun. 2012.

7 Entende-se que a Questão Social é fruto das contradições do desenvolvimento e expansão do capitalismo na
sociedade hodierna, na medida em que quanto mais se produz riqueza, mais se reproduz a pobreza.

242
ABREU, M. M. Pesquisa em Serviço Social: tendências na implementação das Diretrizes Curriculares.
Temporalis, nº 14, Ano VII, p. 119-148, jul./dez. 2007.

BRASIL. Ministério da Educação. Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior.


Cadastro e-MEC. Disponível em: https://emec.mec.gov.br/emec /nova#avancada. Acesso em: out.
2021.

BOSCHETTI, I. Expressões do conservadorismo na formação profissional. Serv. Soc. Soc., 124, oct.-
dec. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/xv3Lm3vQmxLmWNTmbpmBzNt/
abstract/?lang=pt. Acesso em: maio 2022.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo:
Boitempo, 2016.

GOIN, Marileia. Tendências atuais no ensino dos Fundamentos do Serviço Social. Textos & Contextos,
Porto Alegre, v. 18, n. 2, p. 1-12, jul./dez. 2019.

GUERRA, Y. A formação profissional frente aos desafios da intervenção e das atuais configurações do
ensino público, privado e a distância. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 104, p. 715-736, out./dez. 2010.

IAMAMOTO, M. V. A formação acadêmico-profissional no Serviço Social brasileiro. Serviço Social e


Sociedade, São Paulo, n. 120, p. 608-639, dez. 2014.

MOTA, A. E. 40 anos da Virada do Serviço Social no Brasil: lições e desafios. Formação social e
Serviço Social: a realidade brasileira em debate. Outras expressões: São Paulo, 2019.

NEGREIROS, T. C. G. C. Tempo de aprendizagem flexível: as novas tendências de aprendizagem


mediadas pelo uso das tecnologias da informação e comunicação para a classe trabalhadora. Tese
de doutorado. UFPE: CCSA, 2019.

243
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E IMPACTOS PARA O MUNDO DO TRABALHO NO BRASIL

Anna Raquel Andrade Gonzaga


Moema Amélia Serpa Lopes de Souza

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o mundo do trabalho tem passado por uma reestruturação produtiva
permanente, que se apresenta como uma das principais estratégias do capital para enfrentamento
de sua crise estrutural (Mészáros, 2002). Ao considerar a realidade nacional, o acirramento da
exploração e precarização do trabalho tem gerado significativos efeitos após a implementação do
neoliberalismo nos anos 1990 e desmonte do sistema de proteção social. Os sucessivos governos a
partir da referida década têm aderido às orientações dos organismos financeiros multilaterais e, a
partir de 2015, como acirramento deste processo, estão sendo implementadas políticas de cunho
ultraneoliberais1.

Como sinalizado por Antunes (2015), desse cenário são derivadas inúmeras consequências
para a classe-que-vive-do-trabalho, entre elas, podemos destacar o rebaixamento das suas condições
de vida, seja pela ampliação do desemprego estrutural, seja pela precarização generalizada
das condições de trabalho e salariais. O autor chama a atenção para o fato de que vivenciamos
acentuada desregulamentação, flexibilização e terceirização, bem como a intensificação levada ao
limite das formas de exploração do trabalho.

Diante desses elementos sumariamente expostos, compreende-se que analisar criticamente


o mundo do trabalho e como este se configura atualmente diante do cenário de crise perpassa, de
modo basilar, pelos fundamentos da teoria social crítica. Partindo de uma abordagem ontológica
do conhecimento, a qual a realidade é colocada em perspectiva de totalidade, pretende-se analisar
criticamente o fenômeno da precarização do trabalho a nível global e sobretudo na realidade
brasileira, de modo a considerar a vinculação dos seus determinantes com a crise capitalista atual.

2. O TRABALHO EM CONTEXTO DE REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E RECONFIGURA-


ÇÃO DO ESTADO

A crise capitalista contemporânea vem acarretando importante reconfiguração na


sociabilidade burguesa a partir da década de 1970. Este cenário implica em compreender que o
capitalismo experimenta profundas modificações no seu ordenamento e na sua dinâmica social
contemporânea, especialmente no que se refere à reconfiguração da função do Estado2.

1 Fase mais avançada e destrutiva do neoliberalismo; caracterizando-se, dentre outros elementos, na amplia-
ção do ajuste fiscal, neoconservadorismo e criminalização da pobreza.
2 Cabe elencar, segundo Mandel (1982), as principais funções do Estado são: a) criar as condições gerais de
produção, que não podem ser asseguradas pelo setor privado; b) reprimir as ameaças das classes dominadas ao modo
de produção corrente; c) integrar as classes dominadas e garantir que a ideologia dominante da sociedade seja a ideo-
logia da classe dominante.

244
Considerando as particularidades da fase monopolista do capital3, compreende-se que esta
recoloca em patamar elevado o sistema totalizante de contradições que confere à ordem burguesa
os seus traços basilares de exploração e alienação (Netto, 2011). É a partir disso que o eixo da
intervenção estatal ganha um novo sentido nesta fase superior do capitalismo: é direcionado para
garantir o superlucro dos monopólios.

Isto se dá diante da relação fecunda de suporte do Estado em relação ao capital, que


altera as formas de mediar a relação capital/trabalho a depender das requisições da sociabilidade
burguesa. Acerca do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, Lênin (1976, apud Iamamoto,
2015) menciona que o imperialismo é uma fase superior deste modo de produção, que surge em
decorrência do desenvolvimento das propriedades fundamentais do capitalismo; verificando-se a
substituição da livre competição pelo monopólio. Assim sendo: o imperialismo é a fase monopolista
do capitalismo, tendo como traços essenciais, sinteticamente:

A concentração da produção e do capital em elevado grau, criando os


monopólios que passam a desempenhar um papel decisivo na vida
econômica; a fusão do capital bancário com o industrial, com domínio
da oligarquia financeira; a exportação de capitais (distinta da exportação
de mercadorias), que passa a assumir maior relevância; a presença de
associações internacionais monopolistas de capitalistas, que, junto com
as potências imperialistas, realizam uma repartição do mundo (Iamamoto,
2015, p. 102).

Diante desses elementos acerca da fase clássica do imperialismo, cabe referenciar que
esta desenrola-se após a Segunda Guerra Mundial, a partir da década de 40 do século XX. Este
desenvolvimento ulterior da expansão monopolista é chamado por Mandel (1982) de “capitalismo
tardio”. Iamamoto (2015) chama a atenção para o fato de que, no desdobramento do capitalismo
contemporâneo, este mantém as características fundamentais do imperialismo destacadas por
Lênin (1976), entretanto, a busca por superlucro torna-se o estímulo principal do crescimento
da produção. Assim, “as flutuações das taxas de lucro resultam em ondas longas com tonalidade
expansiva e/ou de estagnação na tensão entre superacumulação, crise e depressão” (Iamamoto,
2015, p. 103).

Em síntese, Mandel (1982) considera o desenvolvimento do capitalismo em três estágios:


livre concorrência; imperialismo clássico, marcado pela constituição dos monopólios; e capitalismo
tardio, mostrando desdobramentos originais do modo de produção no pós-guerra.

Este último é dividido em dois momentos: onda longa expansiva que se desdobra em uma
onda longa de estagnação. O destaque para este momento histórico é importante uma vez que
possibilita compreender as configurações atuais do mundo do trabalho e o papel desempenhado
pelo Estado na sua regulação.

A crise de 1929 e o fim da Segunda Guerra Mundial deu subsídios sócio-históricos para a
emersão de um novo projeto de relações sociais e de produção, denominado Welfare State (Behring,
2003). Durante a onda longa expansiva, apoiados no pacto keynesiano-fordista, a burguesia e o
3 Este estágio corresponde à fase em que Netto (2011) aponta que o capitalismo ascende a sua maturidade
histórica. Sinaliza a chamada “fase superior” (Lênin, 1917) ou “capitalismo tardio” (Mandel, 1982).

245
Estado passaram a assumir uma nova postura de pacto social dentro do regime de acumulação
para a manutenção do poder hegemônico da burguesia.

Assim, se consolidou, entre os anos de 1940 e 1970, a experiência do Estado de bem-estar


social em resposta à pressão da luta da classe trabalhadora e tentativa de controle da expansão das
ideias socialistas da União Soviética. Durante 30 anos, sucedeu a expansão das políticas sociais e
trabalho relativamente protegido, através da ampliação das atribuições do Estado em suas funções
sociais. Cabe destacar que a estratégia de Estado de bem-estar social enquanto enfrentamento à
crise não alcançou as economias periféricas, como é o caso do Brasil.

O esgotamento desse processo ocorreu no final da década de 1960 e precipitou-se,


na década seguinte, uma nova crise do capital, com fortes desdobramentos sobretudo para o
trabalho. A este respeito, Antunes (2015) menciona que o Toyotismo e sua forma de organização
do trabalho baseada na acumulação flexível penetra, mescla-se ou mesmo substitui o padrão
fordista dominante, cujos desdobramentos são também agudos no que diz respeito aos direitos
do trabalho, sendo estes flexibilizados de modo a dotar o capital do instrumental necessário para a
adequar-se a seu novo período.

Esta segunda fase, compreendida como uma onda longa de estagnação, provoca,
para Mészáros (2011), a precarização estrutural em diversos âmbitos, através de processos
desregulamentação do trabalho, crescimento do desemprego e destruição dos recursos naturais,
produzindo desdobramentos nefastos e irreversíveis à ecologia, ao trabalhador, entre outros
aspectos da realidade.

Nesse sentido, Mandel (1982) aponta que as tendências do cenário exposto são para o
esgotamento das capacidades civilizatórias deste modo de produção. Tais sinalizações são base
para as reflexões contemporâneas acerca da sociabilidade burguesa, que vem promovendo um
cenário de absoluta pauperização das condições de trabalho e vida dos trabalhadores.

Diante disso, várias mutações vêm se configurando em todas as dimensões da vida humana,
uma delas - e de importância central - nas palavras de Antunes (2015), diz respeito às metamorfoses
no processo de produção do capital e suas repercussões no processo de trabalho. A reestruturação
produtiva e as diversas transformações no mundo do trabalho são identificadas como estratégias
de enfrentamento à crise. Assim, são instauradas novas formas de exploração, que intensificam a
precarização dos trabalhadores.

Ainda que a intensificação da exploração seja realidade, é importante sinalizar, como


destaca Alves (2007), que a condição de precariedade do trabalho não é um fenômeno novo,
sempre esteve relacionada às formas de apropriação da força de trabalho impostas pelo modo de
produção capitalista. Assim, compondo este cenário, o autor enfatiza que o processo de constituição
do precário mundo do trabalho são traços do novo sóciometabolismo do capital nas condições da
mundialização financeira, apresentando o recuo da ação do Estado como regulador do mercado de
trabalho e da proteção social, sendo expressas nas novas formas de organização do trabalho.

Para melhor entender esse movimento, é relevante compreender que a crise capitalista
mundial vem contribuindo para a deterioração da legislação que regulamenta as relações de
trabalho, colaborando, assim, para o surgimento de uma nova morfologia do trabalho (Antunes,

246
2015), de modo a repercutir na ampliação de contratos temporários e subcontratação, pluriemprego,
polivalência, desespecialização, informalidade, entre outros.

O fortalecimento desse movimento de apropriação do trabalho encontra bases no


neoliberalismo, um movimento ideopolítico que se alastrou em escala mundial, redefinindo novas
relações entre Estado e sociedade civil; de modo que o Estado reduz sua regulação no mercado de
trabalho. Para Behring e Boschetti (2011), a hegemonia neoliberal na década de 1980 nos países
capitalistas centrais não foi capaz de resolver a crise do capitalismo. Por outro lado, as medidas
implementadas tiveram efeitos destrutivos para as condições de vida da classe trabalhadora,
provocando o acirramento das expressões da questão social e precarização das legislações em
diferentes países do mundo.

O neoliberalismo avança dos países centrais e se direciona aos países periféricos e


dependentes, que aderem às políticas neoliberais por meio da reconfiguração do papel do Estado e
adesão à agenda permanente de ajuste fiscal, como é o caso da América Latina. Possuindo dimensão
continental, este cenário, deve, ainda, ser particularizado ao analisar a realidade brasileira, tendo
em vista que o Brasil vem aderindo a intensificação de precarização e flexibilização do trabalho
de maneira veemente. Como agravante, o país possui um mercado de trabalho historicamente
precário e informal, configurando traços estruturais do mundo do trabalho no país, que se dá pela
forma subordinada de inserção da economia brasileira no capitalismo mundial, bem como os traços
constitutivos do seu mercado de trabalho, que mantém sua herança conservadora, ainda que sob
relações capitalistas modernas.

3. TRANSFORMAÇÕES NO MUNDO DO TRABALHO E SUAS IMPLICAÇÕES NO BRASIL

Diante da realidade conjuntural de crise do capital e reestruturação produtiva a nível global,


compreende-se que os países dependentes intensificam sua contribuição no processo de retomada
da acumulação capitalista.

Nesta análise, os organismos financeiros multilaterais fortalecem sua atuação na


perspectiva de apoiar o imperialismo e seus interesses nos países dependentes. Para Iamamoto
(2015), o excedente de capital produzido não é direcionado para elevar o nível de vida das grandes
massas populacionais dos países, mas para aumentar os lucros mediante a exportação de capitais
estrangeiros aos países mais periféricos. Isto se justifica uma vez que, nestes países, o capital é mais
escasso e os salários mais baixos; pressupondo, assim, a intensificação da precarização das relações
e condições de trabalho, como é o caso do Brasil.

Ao elucidar a particularidade brasileira na análise acerca da crise estrutural do capital e


impactos para o mundo do trabalho, há de se considerar, antes, suas particularidades no processo
de constituição do mercado de trabalho, que surge carregando traços de uma sociedade escravista.

Para Santos (2012), a dualidade e a heterogeneidade do mercado de trabalho brasileiro


são problemas histórico-estruturais que já estavam presentes antes mesmo da crise que atingiu a
economia mundial como um todo. Desse modo, ainda que a flexibilidade e a precariedade costumem

247
aparecer ligadas à fase de acumulação flexível do capital, no Brasil, não se pode considerá-las sem
que sejam, antes, situadas como características do “fordismo à brasileira”.

Pode-se compreender, a partir desses elementos, que, no Brasil, a flexibilidade encontra


um caminho previamente aberto, dada a herança do passado, muito embora redimensionadas
por um contexto de transformações no capitalismo mundial. O entendimento dessas mediações é
fundamental - embora extrapolem esta análise - para compreender traços do mercado de trabalho
brasileiro.

Assim, os sinais da crise expressos na reestruturação produtiva brasileira preservaram


a histórica submissão ao grande capital, ao passo em que debilitaram as conquistas da classe
trabalhadora. A sintonização aos rumos do Consenso de Washington possibilitou a adoção de
medidas neoliberais a partir da década de 1990. Em consequência deste momento, o Estado
brasileiro, ao corporificar os ditames neoliberais, responde às novas requisições da acumulação
capitalista, sendo estas visíveis nos seus mecanismos de intervenção que, empenhados nas
estratégias de desregulamentação do aparato institucional, passam a atender as orientações de
adaptabilidade, eficiência, produtividade e flexibilidade (Behring, 2003).

Avançando neste debate, a crise capitalista de 2008 vem fundamentando a desregulamentação


das relações trabalhistas ao passo em que contribui para uma nova morfologia do trabalho (Antunes,
2015). Na América Latina, as mudanças políticas advindas deste quadro, muda o cenário que levou
a um avanço das esquerdas e tomada do poder através da democracia representativa, cabendo,
agora, a neutralização de tais forças políticas pelos mandatários do capital internacional e local;
referenciando, com isso, o cenário em que a democracia, já tão vulnerável na América Latina, e em
particular no Brasil, é posta em questão, impulsionando o avanço da direita (Lira, 2019).

No Brasil, isso se dá, principalmente, através do golpe de 2016, momento em que o


capitalismo brasileiro procurou sair da crise estrutural não comportava mais políticas de conciliação
de classes, como vinha acontecendo no país durante mais de uma década.

O governo ilegítimo de Michel Temer inaugura o período que pode ser denominado como
“ultraneoliberalismo”, que, para Silva (2021), expressa o aprofundamento veloz e destrutivo do
projeto neoliberal. A exemplo das políticas de cunho ultraneoliberais, destaca-se a aprovação da
Emenda Constitucional n° 95/2016, a Contrarreforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) e a aprovação
de uma lei específica da Terceirização (Lei nº 13.429/2017).

Percebe-se que o processo de precarização do trabalho no Brasil expressa a demanda do


capital, diante da crise que se desenrola desde 2008, em suas diversas fases. Esse cenário, somado
às políticas de viés ultraneoliberais e consolidação do capitalismo de plataformas4, resultaram no
acirramento da precarização do trabalho no Brasil.

É nesta nova configuração assumida pelo Estado que se delineiam as novas expressões
da questão social frente ao acirramento do conflito capital/trabalho, cenário este fortalecido
pela condição brasileira de submissão ao capital estrangeiro; com repercussões históricas e
contemporâneas para a organização sindical de seus trabalhadores.
4 Para Antunes (2023), o capitalismo de plataformas se refere ao universo informacional-digital em que o tra-
balho está submetido, sob condução financeira, se desenvolvendo de forma que a produtividade do capital se valorize
em seu ponto de ápice.

248
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O aumento da exploração do trabalho por decorrência da crise estrutural do capital (Més-


záros, 2002) é uma realidade que tem sido vivenciada mediante o acirramento da precarização do
trabalho a nível global e na realidade brasileira de modo particular. Neste quadro, tem grande im-
portância as imposições dos organismos internacionais e as fraturas nos movimentos organizativos
dos trabalhadores brasileiros, que se encontram cada vez mais fragilizados diante do processo per-
manente de desregulamentação dos direitos.
Como definidores deste complexo processo, estes fatores assumem particularidades frente
ao padrão de desenvolvimento sócio-econômico da realidade brasileira, onde a desregulamenta-
ção do trabalho se difere dos demais países da América Latina por uma conjugação de fatores que
articulam o redimensionamento do papel do Estado e a centralização nos interesses do grande
capital com a introdução das inovações tecnológicas e organizacionais em contexto em que a flexi-
bilização e a precarização é histórica e estrutural no mercado de trabalho.
Tais tendências se encontram na dinâmica mais geral da realidade social sob a égide de
uma sociabilidade que impõe à força de trabalho um contínuo processo de precarização do traba-
lho e da vida sobretudo em contexto ultraneoliberal.

REFERÊNCIAS

ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2ª Ed.


Londrina: Práxis, 2007.

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses no mundo do trabalho. 16ª Ed. São
Paulo: Cortez, 2015.

____________. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006.

____________. Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma: três teses sobre a nova era de
desantropomorfização do trabalho. In: Ricardo Antunes. (Org.). Icebergs à Deriva. 1ª Ed. São Paulo/
SP: Boitempo, 2023, v.1, p. 13-39.

BEHRING, E. R. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. 2ª Ed. São


Paulo: Cortez, 2003.

BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

CARCANHOLO, M. D. A crise do capitalismo dependente brasileiro. In: MACÁRIO, Epitácio. (Org.).


Dimensões da Crise Brasileira: dependência, trabalho e fundo público. Fortaleza: EdUECE; Bauru:
Canal 6, 2018, p. 23 – 56.

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão

249
social. 9ª Ed. São Paulo: Cortez, 2015.

LENIN, V. I. O imperialismo, fase superior do capitalismo. 1917. Disponível em: https://www.


marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo. Acesso: 10/04/2024.

LIRA, T. S. V. Superexploração da força de trabalho, crise mundial e golpe de Estado no Brasil. Revista
de Políticas Públicas, Maranhão, v. 22, n. 2, p. 903-922, jan./dez. 2019.

MANDEL, E. O capitalismo tardio. 2ª Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011.

_____________. Para Além do Capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São
Paulo: Boitempo, 2002.

NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 8ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

SANTOS, J. S. “Questão Social”: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012.

SILVA, M. L. L. Neofascismo, ultraneoliberalismo e corrosão da essencialidade da previdência social


no Brasil. Textos e Contextos, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 1-16, jan./dez. 2021.

250
O TRABALHO INFANTIL COMO EXPRESSÃO DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL:
a particularidade da infância da classe trabalhadora no Brasil

Terçália Suassuna Vaz Lira


Mikaele De Véras Matias

1. INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno sócio-histórico que se manifesta de diversas formas nas


sociedades, sendo (re)configuradas em dadas condições históricas. Ainda que acompanhe a trajetória
da humanidade, ela está extremamente ligada ao desenvolvimento da sociabilidade burguesa, pois
ao mesmo tempo em que atos e ações de violência são geradas e/ou potencializadas, por esta
sociedade, esta mesma sociedade exige e “vende” respostas efetivas para o seu enfrentamento.

Dessa forma, a violência assume particularidades no capitalismo, sendo uma das expressões
da questão social, fruto da contradição capital-trabalho, uma vez que o modo de produção capitalista
necessita da mesma para se reproduzir, não há capitalismo sem o fenômeno da violência, ela é
inerente a esse modo de produção. Destarte, “a violência é a parteira de toda velha sociedade que
está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica” (Marx, 1996b, p. 37).

Em relação à violência que afeta a população infanto-juvenil, ela se faz presente em diferentes
formas, neste trabalho iremos nos deter na discussão do trabalho infantil como expressão da
violência estrutural, reflexo da superexploração1 da força de trabalho no Brasil. Segundo Minayo
(2001), o trabalho infantil enquanto expressão da violência estrutural está diretamente relacionada
com a situação de pobreza que os “meninos e meninas trabalhadores” vivenciam.

É importante destacar que esses sujeitos vêm sofrendo historicamente diversos tipos de
violência, desde a colonização do Brasil em 1530, quando embarcavam nas grandes navegações
lusitanas rumo às descobertas marítimas. Assim, a violência faz parte da vida das crianças e
adolescentes brasileiros, desde a colonização até os dias atuais, como é o caso do trabalho infantil
no país, no qual iremos abordar mais adiante.

2. TRABALHO INFANTIL NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL E


SUAS IMPLICAÇÕES

Minayo (2001) destaca que a exploração do trabalho infanto-juvenil constitui uma das
expressões da violência estrutural. O trabalho infantil ainda é, infelizmente, uma realidade
1 A superexploração da força de trabalho é definida como um mecanismo de apropriação da mais valia por
meio da violação do valor da força de trabalho, seja violando o seu fundo de vida ou de consumo. Trata-se de uma
forma de compensar a transferência de valor para as economias centrais. No caso das economias periféricas depen-
dentes, em vez de compensar a transferência de valor com o aumento da produtividade, como ocorre nas economias
centrais, aqui se compensa através da superexploração da força de trabalho, recaindo sobre a vida do trabalhador e
sua família, o qual inclui crianças e adolescentes.

251
brasileira, além de ser um problema a ser enfrentado em várias partes do mundo. O trabalho
infantil está relacionado com as condições de vida dessas crianças e adolescentes, que muitas das
vezes, passam a trabalhar para complementar a renda familiar, já que se encontram em situação de
pobreza absoluta2 e miserabilidade.

Entende-se por trabalho infantil, de acordo com o Art. 60 do Estatuto da Criança e do


Adolescente (ECA) e da Constituição Federal de 1988 - e também da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), de acordo com o seu Art. 403 e da Convenção 138 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT): toda forma de trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade
mínima permitida por lei. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16
anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos de idade. Sendo vedado qualquer tipo de
trabalho perigoso, danoso e insalubre a menores de dezoito anos.

Segundo o “III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção


ao Adolescente Trabalhador (2019-2022)”,

O termo “trabalho infantil” refere-se às atividades econômicas e/ou atividades


de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não,
realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis)
anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos,
independentemente da sua condição ocupacional.

Destaca-se que, na atualidade, a situação de pobreza absoluta vivenciada pelo segmento


infanto-juvenil, incide diretamente na sua condição de vida, bem como no seu desenvolvimento e
no reconhecimento da sua condição de infante. Assim, se faz recrutar crianças e adolescentes para
a explolração do trabalho infantil no Brasil.

A Fundação FEAC3 (2021) destaca os dados publicados pelo Instituto Mobilidade e


Desenvolvimento Social, com base em dados de 2019, que cerca de 40% das crianças brasileiras
com menos de nove anos vivem na pobreza, o que significa que mais de 25 milhões de pessoas
nessa faixa etária moram em lares com renda média mensal menor que R$ 436.

Segundo dados mais recentes, lançados pelo IBGE (2023):

Em 2022, o rendimento médio real das pessoas de 5 a 17 anos de idade


que realizavam atividades econômicas em situação de trabalho infantil foi
estimado em R$ 716; contudo, para esse mesmo grupo de pessoas que não
estava em trabalho infantil, o valor subia para R$ 906. (IBGE, 2023, p. 07).

2 Entende-se por pobreza absoluta a “[...] não satisfação de necessidades básicas universais e objetivas”. Ela
“está diretamente associada à ideia de sobrevivência física, à satisfação de um mínimo de dignidade humana” (Pereira,
2006, p. 233-235, grifo nosso).
3 “A Fundação FEAC é uma organização independente que atua em Campinas (SP) com o objetivo de contri-
buir para a criação de uma sociedade mais justa, sustentável e com igualdade de oportunidades. Para isso, investe em
ações de educação, assistência social e promoção humana com foco nas regiões e nas populações mais vulneráveis,
especialmente crianças e adolescentes, e no impulsionamento de organizações da sociedade civil, empresas e pessoas
para as causas sociais.” Ver mais em: https://feac.org.br/.

252
Ressalta-se que há o predomínio de meninas em situação de trabalho infantil doméstico,
demostrando que culturalmente, as mulheres, ainda que bem jovens, são colocadas para
assumirem os serviços domésticos, enquanto os meninos continuam “aproveitando” a sua infância.
É importante destacar ainda que, de acordo com Gonzalez (2020), essa prática é frequente entre
meninas negras, que devido a falta de oportunidades para seus pais, muitas vezes são enviadas
para famílias brancas de alto poder econômico para trabalharem como domésticas. Isso, por vezes,
as impede de frequentar regularmente a escola e, ainda mais, de desfrutar de momentos de lazer.

A respeito do trabalho infantil doméstico, Lira e Peruzzo (2016) destacam:

Sua exploração no contexto contemporâneo reflete a sobrecarga de trabalho


imposta à mulher – pelo aumento da sua inserção em espaços produtivos e
reprodutivos – e as baixas condições salariais, associadas à quase inexistente
alteração na cultura familiar que atribui, às mulheres, as responsabilidades
pelos afazeres domésticos, o que tem levado à incidência do uso da força de
trabalho infantil nessa atividade. (Lira; Peruzzo, 2016, p. 101).

De acordo com as estatísticas do IBGE (2023), “em 2022, o Brasil tinha 1,9 milhão de
crianças e adolescentes com 5 a 17 anos de idade (ou 4,9% desse grupo etário) em situação de
trabalho infantil”, no qual há o predomínio do sexo masculino, representando 65,1%, enquanto
34,9% são meninas. Em relação ao recorte de raça, o número de crianças e adolescentes negros em
situação de trabalho infantil é maior do que o de não negros, correspondendo a 66,3% das vítimas
do trabalho infantil no país sendo pretos ou pardos. Em relação a renda de crianças e adolescentes
negros e não negros: “O rendimento das crianças e adolescentes pretos ou pardos em trabalho
infantil (R$ 660) era equivalente a 80,8% do rendimento das crianças e adolescentes brancos (R$
817) nessa situação” (IBGE, 2023).

Essa realidade nos mostra que o racismo estrutural4 está estritamente relacionado com o
trabalho infantil e também com a superexploração da força de trabalho, uma vez que o racismo
pressiona negativamente as condições de vida da classe trabalhadora brasileira, sendo esta em sua
maioria negra, incluindo as crianças e adolescentes mencionadas nas estatísticas do IBGE, posto
que, “o corpo negro só é visto como mão de obra, e não como sujeito (muito menos cidadão)”
(Veronese; Fabiano, 2024, p. 62).

Destarte, o racismo, na particularidade brasileira, se torna um dos mecanismos de


rebaixamento do valor da força de trabalho, afetando as condições de vida e de trabalho da
classe trabalhadora, em especial da população negra e das crianças e adolescentes trabalhadoras.
Fagundes (2020, p. 64, grifo nosso) destaca “[...] que a parcela da população protagonista entre
4 Descrito por Silvio Almeida (2018) como um fenômeno que normaliza as relações, ou seja, que dita as nor-
mas estruturais da sociedade, este é a raiz do ocultamento, discriminização e demonização da cultura afro-brasileira
construída pelos negros africanos. Destarte, o racismo estrutural é o elemento constitutivo da formação social bra-
sileira, se estabelecendo como forma de ser e pensar da sociedade, vindo a se estabelecer como regra, que “sempre
existiu”, naturalizando e impulsionando a sua contínua reprodução. A história do Brasil é marcada pela opressão contra
a população negra, e o lugar que hoje essa população ocupa na sociedade faz parte de um projeto de dominação
colonial e sem sombra de dúvidas, da lógica capitalista, e para entender essa afirmação se faz necessário revisitar o
processo de formação sócio-histórica brasileira.

253
os desempregados e responsável por ocupar os postos de trabalho com as piores condições é a
parcela negra da população brasileira”.

Ressalta-se aqui, que uma das bases do capitalismo é o racismo, sendo assim não há
intenções do mesmo contribuir para o seu fim, logo, não é sua intenção acabar com o racismo,
pois este é funcional à reprodução do capitalismo, sobretudo, o periférico. Daí, a denominação de
capitalismo racista, como dito por Eliane Assis (2022).

É importante destacar que as crianças e adolescentes também não estão livres da lógica
do trabalho considerado perigoso, penoso, insalubre ou degradante, que coloca em risco a sua
saúde e a segurança. Segundo o IBGE (2023, p. 06), “Em 2022, havia 756 mil pessoas de 5 a 17
anos de idade em ocupações consideradas como piores formas de trabalho infantil (proxy da Lista
das Piores Formas de Trabalho Infantil - Lista TIP), o que representava 46,2% do total de pessoas
desse grupo etário que realizavam atividades econômicas perigosas e/ou danosas (1,6 milhão de
pessoas)”. Essa proporção era de 51,3% em 2016, 45,8% em 2019, subindo para 46,2% em 2022.

Ressalta-se que o aumento das estatísticas do trabalho infantil desde 2016, está relacionado
com o contexto vivenciado no país a partir do golpe de 2016, que reduziu/congelou os gastos
para as áreas sociais (como a própria redução exponencial de investimentos para o Programa de
Erradicação do Trabalho Infantil – PETI), o aumento da pobreza, do desemprego, e a diminuição
da renda das famílias, que historicamente são elementos que contribuem para a inserção de
crianças e adolescentes no mundo do trabalho, associa-se ainda, a disseminação e o avanço do
neoconservadorismo5 e suas implicações no âmbito da cultura e da política que eleva o trabalho
infantil a uma dimensão maior de aceitação e até de defesa como elemento educativo e disciplinador
para as crianças e adolescentes das classes pobres.

O que acontece é que, no Brasil, mas não apenas por aqui, se aliou à agenda
econômico-financeira, um aprofundamento do neoconservadorismo. O
governo tem se manifestado pelo culto à violência policial e ideologia
repressiva6 (rebaixamento da idade penal, armamentismo, extensão de
penalidades) e também pelas intolerâncias às “minorias” sexuais, com fortes
apelos religiosos (contra legalizações: aborto, drogas/produtos psicoativos,
uniões homoafetivas). (Borges; Matos, 2020, p. 74-75).

Tal lógica também incide no reforço aos elementos culturais de aceitação e legitimação do
trabalho infantil: “[...] com o avanço do conservadorismo (que vem resultar na disseminação de um
discurso de defesa da diminuição da idade penal e da admissão ao trabalho)” Lira (2020, p. 163,
grifo nosso), pois tendo em vista a necessidade de sobreviver, tais crianças e adolescentes crescem
5 “A ofensiva (neo)conservadora atinge diferentes dimensões da realidade, contando com grande chance de
incorporação por atividades sociais que prescindem da razão em decorrência da crença em dogmas, a exemplo das
religiões. Nesse sentido, quando se trata de avaliar questões que remetem a valores morais, os (neo)conservadores
são moralistas, ou seja, intolerantes, preconceituosos e, no limite, fundamentalistas” (Barroco, 2015, p. 631).
6 É importante destacar que essa natureza repressiva já faz parte das próprias funções do Estado no
capitalismo tardio, conforme nos ensina Mandel (1982), visto que, no capitalismo o Estado assume a posição de
contribuir com a reprodução ampliada do capital, logo ele sempre está de um lado: o lado do modo de produção
capitalista.

254
sendo conduzidas ao trabalho desde cedo e a não se preocuparem primeiramente com os estudos,
cujas determinações vem sendo recrudescidas com o aumento da pobreza, do desemprego e do
conservadorismo na sociedade brasileira.

Assim, o discurso segue sendo o mesmo: “é melhor trabalhar do que roubar”; “o trabalho
dignifica o homem”, naturalizando assim o trabalho infantil. Entretanto, “[...] ainda que criticamos
a ideia que atrela trabalho e dignidade, percebe-se que ao corpo negro não é reservado nem
mesmo o direito a ser digno” (Veronese e Fabiano, 2024, p. 64, grifo nosso). Destarte, a onda (neo)
conservadora também afeta o trabalho infantil, uma vez que resgata os valores tradicionais que
promovem a aceitação de crianças e adolescentes envolvidos em atividades laborais.

Desse modo, o que se atesta é que a violência estrutural contra esse segmento, é produzida
e reproduzida pela lógica da valorização do capital, no âmbito do modo de produção capitalista, que
naturaliza as expressões da questão social. Destaca-se que a violência estrutural é drasticamente
ampliada por meio da crise estrutural do capital7 desde a década de 1970, como nos aponta
Mészáros (2009).

Cabe destacar que sendo o Brasil um país de economia periférica dependente, a lógica de
valorização do capital tem como fundamento a violência estrutural, utiliza-se da superexploração
da força de trabalho, para garantir a transferência de valor, o que implica na violação do fundo de
vida e de renda das famílias trabalhadoras, elementos estes que determinam a inserção precoce
de crianças e adolescentes no mundo do trabalho. A superexploração da força de trabalho acaba
por colocar essas famílias em situação de pobreza absoluta, as obrigando a criarem estratégias de
sobrevivência, que acaba por resultar na exploração do trabalho infantil.

É importante destacar que ao trabalharem, essas crianças e adolescentes não estão


aproveitando realmente a sua infância e os seus direitos acabam sendo negligenciados e/ou
violados. Ressalta-se ainda que há inúmeras consequências do trabalho infantil na vida das crianças
e adolescentes, além de não desfrutarem de sua infância plena, ao trabalharem, esses sujeitos
ficam mais propícios a sofrerem exploração e abuso sexual; as crianças que trabalham muitas
vezes são forçadas a abandonar a escola ou têm acesso limitado à educação; além de prejudicar
o rendimento escolar, resultando em um ciclo de pobreza e falta de oportunidades educacionais.

Urge portanto, a luta preeminente de militantes dos direitos infantis para reivindicar ações
mais contundentes de enfrentamento a essa chaga social, expressão da violência estrutural, o
trabalho infantil. Tal realidade vem afetando fortemente o desenvolvimento de milhares de crianças
do nosso país, impedindo-as de viver aquilo que é próprio da condição infantil, o direito a ser
criança, e de ser protegido por tal condição, tanto pela família, como pela sociedade e pelo Estado,
uma vez que segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Art. 227 da Constituição
Federal de 1988 é dever dos mesmos colocarem esses sujeitos como prioridade absoluta e oferecer-
lhes proteção integral.

7 Assim, a crise capitalista associada aos impactos das transformações do mundo do trabalho e da financeiri-
zação da economia num quadro de uma economia periférica-dependente que tem como base a superexploração do
trabalho, não é de estranhar os resultados desastrosos que se fazem sentir e que se refletem em todas as esferas da
vida social, não só na economia, mas também na cultura, com o avanço do conservadorismo, e sobretudo na política,
como é o caso do Brasil, com a direita retomando o poder, via golpe de Estado. (Lira, 2018, p. 913).

255
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realidade do trabalho infantil no Brasil é uma expressão contundente da violência estrutural


que permeia nossa sociedade, refletindo as profundas desigualdades sociais, econômicas e raciais
que persistem e se reproduzem ao longo da história. Este fenômeno, que deveria ser inaceitável
em qualquer sociedade que se considere civilizada e justa, coloca em risco direitos fundamentais
de crianças e adolescentes, comprometendo seu desenvolvimento integral e seu pleno exercício
da cidadania.

A partir dos dados e análises apresentados, fica evidente que o trabalho infantil é uma
consequência direta das políticas econômicas e sociais adotadas no país, além da superexploração
da força de trabalho que historicamente desvaloriza a força de trabalho, especialmente a força
de trabalho negra e periférica. O racismo estrutural, aliado à lógica do capitalismo, potencializa a
superexploração da força de trabalho, incluindo a das crianças e adolescentes, em detrimento de
seus direitos fundamentais.

O aumento alarmante do trabalho infantil, particularmente agravado após o golpe de


2016 e o avanço do neoconservadorismo, é reflexo direto das políticas de desinvestimento em
áreas sociais e de proteção à infância e adolescência. Este cenário é agravado pela naturalização e
legitimação do trabalho infantil como uma “necessidade” ou “virtude”.

Nesse contexto, é imprescindível que o Estado assuma sua responsabilidade constitucional


e legal de garantir os direitos das crianças e adolescentes, promovendo políticas públicas de
prevenção do trabalho infantil, bem como de proteção social às famílias em situação de pobreza
absoluta. A luta contra essa chaga social - o trabalho infantil - é, portanto, uma luta por justiça
social, por igualdade racial e por um futuro digno para todas as crianças e adolescentes brasileiros.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

ASSIS, Eliane Santos de. A fundamental radicalização e racialização da questão social para um
projeto profissional antirracista no serviço social. 2022. Tese (Doutorado em Serviço Social) -
Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2022.

BARROCO, Maria. Não passarão! Ofensiva neoconservadora e Serviço Social. In: Serviço Social e
Sociedade, nº 124. São Paulo: Cortez, 2015, p. 623-636.

BORGES, M. E. S.; MATOS, M. C. de. AS DUAS FACES DA MESMA MOEDA: ultraneoconservadorismo


e ultraneoliberalismo no Brasil da atualidade. In: BRAVO, M. I. S.; MATOS, M. C. de; FREIRE, S. de M.
(orgs.). POLÍTICAS SOCIAIS E ULTRANEOLIBERALISMO. Minas Gerais: Navegando, 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.stf.jus.


br/arquivo/cms/legislacaoConstituicao/anexo/CF.pdf. Acesso em: 13 de jul. 2023.

256
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Disponível em:https://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/L8069compilado.htm. Acesso em: 24 fev. 2024.

CUNHA, T. Trabalho infantil escravo: a pior forma de exploração laboral do mundo contemporâneo.
In: MIRAGLIA, L. M. M; HERNANDEZ, J. N.; OLIVEIRA, R. F. S. (orgs.) Trabalho Escravo Contemporâneo:
Conceituação, perspectivas e desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

FAGUNDES, G. G. Superexploração e Racismo no Brasil: Diálogos e Questões. 1. ed. Curitiba: Editora


Appris, 2022.

GONZALEZ, L. A categoria político-cultural de amefricanidade. In RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (org.).


Por um feminismo afro-latino americano. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2020.

Grupos Móveis do MTE resgataram mais de mil crianças e adolescentes da escravidão moderna.
GOV. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2023/
junho/grupos-moveis-do-mte-resgataram-mais-de-mil-criancas-e-adolescentes-da-escravidao-
moderna. Acesso em: 12 fev. 2024.

IBGE. Trabalho de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade 2016/2022. Pesquisa Nacional


por Amostra de Domicílios - Pnad Contínua. 2023. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.
gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/4d88af050175b7343188894e0afb5748.pdf. Acesso em: 20
jan. 2023.

LIRA, T. S. V. A PERSISTENTE EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NA AMÉRICA LATINA E A FALÁCIA


DA ERRADICAÇÃO. QUALITAS REVISTA ELETRÔNICA, [S. l.], v. 21, n. 1, p. 145–166, 2020.

LIRA, T. S. V.; PERUZZO, J. F. O trabalho infantil doméstico nas economias periféricas dependentes.
Argumentum, v. 8, n. 3, p. 91–104, 2016.

LIRA, T. S. V. O sentido do trabalho infantil doméstico: particularidades e contradições na esfera da


reprodução social nas economias periféricas dependentes. Campina Grande: EDUEPB, 2020.

LIRA, T. S. V. SUPEREXPLORAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO, CRISE MUNDIAL E GOLPE DE ESTADO NO


BRASIL. Revista de Políticas Públicas, v. 22, n. 2, 2018.

MANDEL, E. O Estado na Fase do Capitalismo Tardio. In: O Capitalismo Tardio. Trad. Carlos Eduardo
S. Matos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

MARINI, R. Dialética da Dependência. Germinal: marxismo e educação em debate, [S. l.], v. 9, n. 3,


p. 325–356, 2017. DOI: 10.9771/gmed.v9i3.24648.

MARX, K. O Capital. São Paulo, Nova Cultural, 1996. Livro 1, Tomo 1. Coleção Os Economistas. 1996b.

MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.

MINAYO, M. Violência contra crianças e adolescentes: questão social, questão de saúde. Revista
Brasileira de Saúde Materno Infantil, v. 1, n. 2, p. 91–102, ago. 2001.

257
PEREIRA, C. P. A pobreza, suas causas e interpretações: destaque ao caso brasileiro. SER Social, [S.
l.], n. 18, p. 229–252, 2006.

OIT (Organização Internacional do Trabalho). Convenção sobre a idade mínima para admissão,
1978a. Disponível em: https://www.trt2.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_138.
html#:~:text=Conven%C3%A7%C3%A3o%20n%C2%BA%20138%20da%20OIT&text=Aprova%20
os%20textos%20da%20Conven%C3%A7%C3%A3o,junho%20de%201973%2C%20em%20Genebra.
Acesso em: 20 jan. 2024.

Pobreza atinge cerca de 40% das crianças brasileiras com menos de 9 anos. FUNDAÇÃO FEAC.
Disponível em: https://feac.org.br/pobreza-atinge-cerca-de-40-das-criancas-brasileiras-com-
menos-de-9-anos/. Acesso em: 23 de jul. 2023.

Trabalho infantil de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos de idade 2016/2022/IBGE, Coordenação


de Pesquisas por Amostra de Domicílios. 2023. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv102059_informativo.pdf. Acesso em: 12 fev. 2024.

VERONESE, J. R. P.; FABIANO, F. da R. RACISMO E TRABALHO INFANTIL: Compreendendo (re)


existências a partir das margens. 1a ed. – Florianópolis: Habitus, 2024.

258
CIDADE, ALIENAÇÃO E FETICHISMO

Lucas Tenório Soares Carvalho

Este texto busca refletir de forma sucinta acerca de complexos categoriais presentes na
tradição marxista cuja mediação se faz imperativa no contexto da leitura do espaço urbano. Para
isso, observa-se a importância que assumem as categorias “alienação” e “fetichismo” para a
superação do estado de “pseudoconcreticidade” de análises correntes sobre a relação entre os
indivíduos e o espaço na cidade.

De antemão, o que se caracteriza enquanto cidade neste texto é produto de relações


econômicas, sociais, culturais e políticas historicamente estabelecidas. É inviável analiticamente que
o fenômeno citadino se explique por si próprio, isso pois a cidade não representa uma totalidade
particular e estática na história, mas corresponde à objetivação de uma totalidade a ela exterior.
Neste sentido, a cidade objeto deste texto há de ser entendida enquanto resultado da totalidade
de relações de produção e reprodução social ensejadas pelo modo de produção capitalista (Oliven,
1984; Lefebvre, 2021).

A fim de apreender a dinâmica da cidade a partir do capitalismo, um ponto de partida reside


na relação entre cidade e campo – esta é calcada na divisão do trabalho e na forma da propriedade
privada capitalista e sua institucionalidade organizada e homogeneizada em novas bases. A divisão
do trabalho em determinado território “leva à separação do trabalho industrial e comercial, de um
lado, e do trabalho agrícola, de outro”. (Lefebvre, 2021, p.26)

Em torno de uma fábrica de porte médio, um vilarejo se constitui; ele


engendra uma população tal que inevitavelmente outros industriais chegam
para utilizar (explorar) essa mão de obra. O vilarejo se torna uma pequena
cidade e a pequena cidade uma grande. “Quanto maior é a cidade, maiores
são as vantagens da aglomeração”; ali se reúnem todos os elementos da
indústria: os trabalhadores, as vias de comunicação (canais, estradas
de ferro, estradas), os transportes de matérias-primas, as máquinas, as
técnicas, o mercado, a bolsa. Daí o crescimento surpreendentemente rápido
das grandes cidades industriais. [...] A tendência centralizadora a domina e
cada indústria criada no campo tem em si o germe de uma cidade industrial.
(Lefebvre, 2021, p.10)

Observa-se que neste processo estão elencadas categorias fulcrais para a explicação do
urbano, tal como a divisão territorial do trabalho e as formas de cooperação; a centralidade das vias
de comunicação e transporte na constituição do território e a tendência expansiva, concentradora e
centralizadora de capitais no comando da dinâmica da acumulação na produção do espaço urbano.
Em “O Capital”, Marx (2015, p.530) afirma que “a base de toda divisão do trabalho desenvolvida
e mediada pela troca de mercadorias é a separação entre cidade e campo. Pode-se dizer que a
história econômica inteira da sociedade está resumida no movimento dessa antítese”. O que se
sugere a princípio é a designação do urbano enquanto o lócus de realização da produção capitalista.

259
Na tradição marxista, um dos estudos primordiais para a apreensão das condições deste
fenômeno urbano reside na obra de Engels “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (2010).
A obra evidencia os contrastes presentes no espaço urbano, que vira o lugar mediado pela pobreza
e a riqueza justapostas – sendo esta clivagem a condição e o resultado da dinâmica da exploração
do trabalho comandada pela classe burguesa.

A população disposta nas grandes cidades, porém, tampouco é retratada na obra de Engels
enquanto mero elemento da dimensão produtiva. O autor descreve na população urbanizada –
por meio do desenvolvimento de conceitos tais como a “multidão solitária” e a “atomização” dos
sujeitos urbanos – a concretude da alienação presente no espaço produzido e implicitamente
vinculada a esfera não apenas da produção, mas da reprodução social1.

Mészáros (2006) destrincha o conceito de alienação na teoria marxiana em quatro aspectos


considerados por ele como principais. O primeiro deles reside na condição em que os indivíduos
se encontram alienados da natureza – essa condição denota a relação dos seres em sociedade
com o produto do seu trabalho. O produto final de seu trabalho também pode ser entendido nas
palavras de Marx como a relação dos seres sociais com “o mundo sensível exterior, com os objetos
da natureza” qual ele modifica e concede novo resultado (2006, p.20).

O segundo aspecto da alienação em Marx – “o ser humano está alienado de si mesmo” -,


reside nas expressões da relação do trabalho em face do ato de produzir, ou seja, “a relação do
trabalhador com sua própria atividade como uma atividade alheia que não lhe oferece satisfação
em si e por si mesmo, mas apenas pelo ato de vendê-la a outra pessoa” (2006, p.20). Assim, resulta
dessa relação duas características: o estranhamento tanto da coisa produzida quanto o auto-
estranhamento de quem a produz.

O terceiro aspecto corresponde aos indivíduos estarem alienados do seu “ser genérico”.
Entende-se por esta condição, onde Mészáros referencia os Manuscritos econômicos-filosóficos
(2004, p.85), que o trabalho alienado efetua “do ser genérico do homem, tanto da natureza quanto
da faculdade genérica espiritual dele, um ser estranho a ele, um meio da sua existência individual.
Estranha do homem [...] a natureza fora dele, tal como sua essência espiritual e humana”.

E, por fim, o quarto aspecto da alienação em Marx, fruto do anterior - ao estranhar a


condição (alienada) do gênero humano em si, o ser humano também está alienado do ser humano,
ou seja, dos outros indivíduos que o rodeiam na vida em sociedade dentro do metabolismo da
sociedade capitalista (Mészáros, 2006).

Dessa forma, compreende-se que a alienação enquanto categoria contribui para elucidar
os determinantes ontológicos da classe trabalhadora urbana estranhada, tanto no momento da
produção quanto da reprodução social. Assim, é estranhada do espaço produzido a população
que vive em cada segmento da cidade, sendo cada um desses segmentos contraditoriamente

1 Bhattacharya (2019, p. 110) analisa a reprodução social como a dimensão operadora da sociedade em sua
integralidade, onde a constituição dos indivíduos e seu desenvolvimento assumem funções para o desenvolvimento da
produção e da reprodução das relações capitalistas. Lukács (2013) caracteriza a reprodução social como um complexo
inter-relacional, o que compreende a relação da condição humana e o desenvolvimento de seu meio; a subsunção do
trabalho à produção capitalista e suas premissas para realização; suas imbricações nos modos do ser social construir-
-se em suas dimensões sociais, ético-morais, em sua cultura, sua educação, sexualidade, em seus valores, e em toda a
totalidade da vida social.

260
sociabilizados entre as classes constituintes do território.

Contudo, não somente a população se inscreve no estado de alienação: o próprio espaço


construído, enquanto produto do trabalho, perpassa a mesma condição. O espaço urbano produzido
é poucas vezes assimilado como fruto ou condição do trabalho humano, mas sim enquanto uma
forma fragmentada e a-histórica da vida em sociedade.

Nesse sentido, Santos (2021) analisa a relação entre os indivíduos e o espaço na sociedade
capitalista. A complexificação das atividades econômicas conjuradas pela subsunção do trabalho
humano ao capital se relaciona com os indivíduos de maneira que, na produção do espaço, estes
se defrontam com uma situação onde seu trabalho “não passa de uma parcela ínfima dentro de
um processo que interessa a milhares ou a milhões de pessoas, separadas frequentemente por
milhares de quilômetros” (Santos, 2021, p. 28).

As sucessivas divisões do trabalho e a permutação das trocas, cujo resultado se materializa


na crescente especialização da produção conjuntamente à sua fragmentação em determinado
território, enseja aos indivíduos o estado de alienação. Os indivíduos, segundo Santos (2021),
encontram-se estranhos ao seu trabalho, ao seu espaço, à sua terra – que se metamorfoseiam em
mercadoria. O autor vai além:

Isto é ainda mais verdadeiro quando se impõe a necessidade de estandardizar


a produção, aumentar a produtividade da terra, racionalizar a atividade
e, desse modo, utilizar melhor cada tipo de gleba para uma determinada
produção. Também o espaço sofre os efeitos do processo: a cidade torna-
se estranha à região, a própria região fica alienada, já que não produz mais
para servir às necessidades reais daqueles que a habitam. À medida que a
cooperação estende sua escala espacial, o homem produtor sabe cada vez
menos quem é o criador de novos espaços, quem é o pensador, o planificador,
beneficiário (Santos, 2021, p. 29).

Noutra oportunidade, Santos (2021, p.34) esclarece que o próprio espaço se apresenta
aparentemente fragmentado. “Como a práxis de cada um são fragmentárias, o espaço dos
indivíduos aparece como fragmentos de realidade e não permite reconstituir o funcionamento
unitário do espaço”.

É oportuno resgatar o diálogo que Santos (2021) estabelece com Lefebvre (1974) acerca da
dinâmica socioespacial do capitalismo. Santos dialoga com a afirmativa de Lefebvre (1974, p.121)
que “a forma do espaço social é o encontro, a reunião, a simultaneidade”, enquanto “o espaço-
natureza justapõe, dispersa”. A contradição presente nesta afirmativa se problematiza ao passo
que o espaço social se constrói de maneira associada à estrutura social que lhe engendra. Dessa
forma, Santos aponta que “com o desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão do
trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças de classes”. Assim, o espaço social,
que abriga as divisões do trabalho e desenvolve as formas de cooperação que se concentram no
espaço produtivo, ao mesmo tempo que une os indivíduos acaba contraditoriamente por separá-
los na mesma medida.

261
Em relação a isso, Santos propõe que essa união no espaço social, na verdade:

[...] reúne homens tão fetichizados quanto a mercadoria que eles vêm
produzir nele. Mercadorias eles próprios, sua alienação faz de cada homem
um outro homem. O espaço, como esse ponto de encontro de que fala
Lefebvre (1974, p.121), é uma reunião de sombras, ou, quando muito, um
encontro de símbolos (Santos, 2021, p.34).

Assim, a investigação do espaço urbano deve abarcar primeiramente a superação de seu


estado aparente a fim de capturar o movimento real de sua dinâmica. Santos (2021, p.35) reflete a
forma pela qual os indivíduos, alienados do espaço que se inserem, negligenciam a totalidade que
o envolve.

Diante de uma paisagem, ou nossa vontade de apreendê-la se exerce sobre


conjuntos que nos falam à maneira de cartões-postais ou, então, nosso olhar
volta-se para objetos isolados. De um modo ou de outro, temos a tendência
de negligenciar o todo; mesmo os conjuntos que se encontram em nosso
campo de visão nada mais são do que frações de um todo.

A construção do espaço, bem como a produção de qualquer outra mercadoria, é determinada


pelas relações sociais inscritas em sua fabricação. Nesse sentido os produtores do espaço não se
desembaraçam da ideologia dominante quando constroem uma estrada, complexos habitacionais,
um bairro ou um parque. “O ato de construir está submetido a regras que procuram nos modelos
de produção e nas relações de classe suas possibilidades atuais” (2021, p.35), e sua existência
enquanto objeto geográfico corresponde ao produto da correlação de forças dos atores cujo
processo de produção está inscrito.

Dessa forma, a paisagem urbana e seus elementos são antes de tudo uma mercadoria – e a
condição em que esta se apresenta já inscreve intrinsecamente os elementos necessários para sua
realização no ciclo do capital. Assim, “os locais de trabalho, de estudo, de lazer, o quadro de nossa
vida cotidiana, são concebidos como mercadorias para seduzir e atrair o consumidor. Na verdade,
todos esses rostos se resumem num só, o da mais completa fetichização” (Santos, 2021, p.38).

A saída para a quebra do espaço enquanto aparência pode consistir em dois movimentos: a
desmistificação da paisagem a partir do reconhecimento de sua funcionalidade técnico-produtiva e
da sua condição de fetichização; e, o outro, o reconhecimento da sociedade total que o circunscreve
a partir das condições históricas que o “animam”.

A partir disso, defende-se que compreender o processo de fetichização do espaço urbano


é função complementar ao desvendamento do espaço no processo de desmistificação da
pseudoconcreticidade e aproximação de sua composição essencial.

O fetichismo na análise de Marx pode ser compreendido enquanto uma objetividade


socioprocessual que compõe a constituição ontológica da mercadoria (Lukács, 2010, p.131). Essa
condição incide no sistema de produção de mercadorias conjuntamente ao processo de alienação. A
fetichização pode ser compreendida, sinteticamente, pela objetivação da aparência da mercadoria
num processo onde a sua condição estranhada se naturaliza na sociedade se forjando enquanto
sua condição natural.

262
O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto, simplesmente
no fato de que ela reflete aos homens os caracteres sociais de seu próprio
trabalho como caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho,
como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete
também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma
relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores. É por
meio desse quiproquó que os produtos do trabalho se tornam mercadorias,
coisas sensíveis-suprassensíveis ou sociais […] É apenas uma relação social
determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas (Marx, 2015, p.206)

Em suas formas fetichizadas, as mercadorias camuflam seus elos mediadores, portanto,


sua real composição. O trabalho é representado pelo salário, o capital pelo lucro, e a terra é
representada renda fundiária. A relação do valor aparece em suas camadas mais fenomênicas.
Olgária Matos (2010, p.223) descreve essa condição:

[…] não é mais possível diferenciar a realidade e ficção, modelo e reprodução,


fato e direito. A partir de Marx, um dos mecanismos principais do fenômeno
do fetichismo da mercadoria é a impossibilidade de o sujeito apreender
a estrutura social da determinação do valor dos objetos em virtude de
um regime de encantamento por sua visibilidade absoluta, sua suposta
objetividade. Efetivamente, o fetichismo produz aparência – mercadorias
-, inclusive a mercadoria visual que, como toda mercadoria, é objetividade
fanstasmática […] daquilo que aparece. Trata-se da falsa objetividade da
aparência, da facticidade de um estado falso, de um mundo objetivado,
reificado.

Da mesma forma ocorre com a cidade, onde cada pedaço do espaço urbano é mistificado
pela supressão de sua história, por sua alienação enquanto produto do trabalho e por seu
significado dentro da dinâmica da acumulação. Godoy (2022) sugere um exemplo simples, mas
caricato deste processo no contexto urbano: a sugestão é pensar nos grandes e modernos produtos
arquitetônicos relativos aos edifícios corporativos. Sua forma visual de mercadoria, potencializada
por sua dimensão estética, suas inovações tecnológicas, pela dimensão ideológica que vende o
design deste produto, disfarça as condições pelas quais ele se produziu, camufla sua função dentro
da reprodutibilidade das relações de produção e reprodução, e esconde em sua aparência os
vestígios das formas de circulação e consumo de sua infraestrutura enquanto capital fixado ao solo.

Apreende-se destas categorias que as relações do espaço urbano se escondem por meio
de condições objetivas, cuja funcionalidade reside na perpetuação da produção capitalista do
espaço não enquanto um meio de exploração, dominação e opressão, mas como uma inovação da
sociedade humana em seus avanços técnicos. Godoy (2022, p.161) aponta:

O “corpo” da metrópole, se assim podemos dizer, carrega múltiplas imagens


que, em seu fundo vazio, reflete a si mesmo, ora como a novidade que se
sobrepõe ao arcaico, ora o arcaico reveste-se de novidade e aparece como
moda. Essa profusão de imagens idílicas e infernais é, ao mesmo tempo, a

263
expressão da metrópole como negócio e da metrópole como espetáculo,
onde o morto se acopla no vivo, fazendo deste último apenas o suporte
orgânico para sua realização como valor.

Qualquer análise da cidade que dispense a decomposição de sua forma alienada e fetichizada
acaba por ser insuficiente no sentido de seu entendimento e de sua transformação. A leitura
sobre o uso do espaço urbano, cada vez mais radicalizado e disputado dentro da luta de classes,
prevê estratégias cujas as categorias aqui refletidas assumem protagonismo no desvendamento
das contradições referentes aos espaços produzidos e aos direitos que emanam de sua desigual
socialização.

Portanto, prevê-se a leitura das disputas pela valorização do espaço urbano, forjadas pelo
que Maricato (2011) apelidou de “nó da terra”, ou seja, a mediação contraditória dos interesses
do capital imobiliário e financeirizado em detrimento dos interesses que demandam da cidade a
prevalência de sua qualidade enquanto valor de uso: o que permite abrigo, proteção, infraestrutura
adequada, equipamentos sociais e acesso aos bens de consumo coletivo. Portanto, apropriar-se da
dinâmica das relações sociais no espaço, neste que é conformado pela valorização do valor, exige o
movimento de decompor sua aparência para que o direito à cidade possa se vislumbrar.

Contudo, tampouco o desvendamento destas categorias se mostra suficiente para a


apreensão dialética do espaço urbano, pois além das formas de alienação e fetichização do espaço,
se imbricam as dimensões de suas formas políticas, sociais, históricas e econômicas. Porém, a
proposta deste texto consiste em focalizar as categorias aqui trabalhadas para que estas possam
servir como ponto de partida para subsidiar o debate do espaço-social no contexto urbano.

REFERÊNCIAS

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Thithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um Manifesto.
São Paulo: Boitempo, 2019

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.

GODOY, Paulo. A valorização capitalista do espaço e a teoria marxista do valor. São Paulo: Alameda,
2022.

LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. 2ª edição Rio de Janeiro, Lamparina, 2021.

LEFEBVRE, Henri. Le temps des méprises. Paris, Stock, 1974.

LUKÁCS, György. Prolegômenos para uma ontologia do ser social: questões de princípios para uma
ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010.

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo 2013.

MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012

264
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo, SP: Boitempo, 2006. 289 p. (Mundo
do trabalho). ISBN 9788575590805.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

MARK, Karl. O capital: critica da economia política. Livro 1. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2015.

MATOS, Olgária. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Editora
Unesp, 2010.

OLIVEN, Ruben. Urbanização e mudança social no brasil. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.

SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5ª ed, 4ª reimpr. São Paulo: Editora Universidade
de São Paulo, 2021.

265
COMUNICAÇÃO PÚBLICA NAS POLÍTICAS SOCIAIS:
um fomento à cultura participativa de classe e a democracia

Kênia Augusta Figueiredo


Eliana Mourgues Cogoy

RESUMO

A apreensão crítica dos processos sociais de produção e reprodução das


relações sociais numa perspectiva de totalidade, pressupõe a realização
de análises que considerem o movimento histórico da sociedade brasileira
e as particularidades do desenvolvimento do capitalismo no país, para
o enfrentamento das manifestações da questão social. O objetivo deste
trabalho é refletir sobre a potencialidade da Comunicação Pública e da
Cultura como categorias transversais para o fomento da participação social
e fortalecimento da democracia por meio das políticas sociais, tendo como
referencial teórico a premissa gramsciana de que o Estado educa. Portanto,
na perspectiva da emancipação política da classe trabalhadora é essencial o
investimento nas políticas sociais em uma comunicação dialógica transversal
para que seja produzido no interior da sociedade uma cultura participativa
com identidade de classe, em defesa da democracia.

Palavras-chave: Comunicação Pública; Cultura; Democracia

ABSTRACT

The critical apprehension of the social processes of production and


reproduction of social relations from a perspective of totality, presupposes
the carrying out of analyzes that consider the historical movement of
Brazilian society and the particularities of the development of capitalism in
the country, in order to confront the manifestations of the social issue. The
objective of this work is to reflect on the potential of Public Communication
and Culture as transversal categories for promoting social participation and
strengthening democracy through social policies, using as a theoretical
reference the Gramscian premise that the State educates. Therefore, from
the perspective of the political emancipation of the working class, it is
essential to invest in social policies in transversal dialogic communication so
that a participatory culture with class identity is produced within society, in
defense of democracy.

Keywords: Public Communication; Culture; Democracy

266
1. INTRODUÇÃO

No cenário contemporâneo do capitalismo tardio nunca foi tão necessária e urgente a


reflexão sobre os princípios da Comunicação Pública - CP, sua relação intrínseca com a cultura
e a transversalidade destas com as políticas sociais. Importa destacar que a CP se funda na
comunicação como um direito humano, portanto, como um direito de cidadania fundamental, no
qual devem prevalecer os princípios de liberdade de expressão, autonomia de pensamento, opinião
e participação social o que colabora para o fortalecimento de uma cultura participativa Contudo,
é fundamental que esta reflexão se sustente no apontamento gramsciano de que o Estado educa.
Ou seja, de acordo com Gramsci (2001) o Estado opera como um educador, uma vez ter poder para
direcionar a criação de um novo tipo ou nível de civilização. O Estado é um aparelho de hegemonia
capaz de exercer o controle da consciência da mesma forma, ou até mais, que o controle das forças
da produção. Ou ainda, de acordo com Moraes, o “Estado tem e pede o consenso, mas também
educa este consenso, através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos
privados” (2010, p. 82). Como um instrumento da dominação burguesa (como parte da sociedade
civil) o Estado atua na luta pela consciência.

Para Carnoy (1986, p. 105) “o desenvolvimento burguês não se fez apenas através do
desenvolvimento das forças de produção, mas por meio da hegemonia na arena da consciência”.
Neste sentido, a classe dominante não apenas busca fortalecer o seu sistema econômico como
também busca influenciar e moldar as ideias, valores, concepções de mundo da sociedade. A partir
deste entendimento sobre o Estado, suscita-se o debate sobre a importância da democracia.

De acordo com Brown (2019), a base da democracia consiste na ‘igualdade política’ e ela
sustenta o seu argumento através da afirmação de que “somente a igualdade política assegura que a
composição e o exercício do poder político sejam autorizados pelo todo e sejam de responsabilidade
do todo” (Brown, 2019, p. 33). Essa igualdade política para a autora, torna-se a razão de ser de uma
democracia. Através dela, parte-se do entendimento de que todas as pessoas, independente de
gênero, cor, orientação sexual, ou classe social, precisam ter a garantia dos mesmos direitos, sem
discriminação ou distinção. A democracia tem sua importância revelada na medida em que esteja
ancorada na igualdade entre as pessoas. Wendy Brown (2019) ressalta a vigilância constante que
a democracia exige para evitar que a concentração de riqueza assuma o controle das alavancas do
poder político. No entanto, a conjuntura atual é marcada pelo ataque neoliberal, o qual constroi e
legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima. Neste sentido,

À medida que o ataque ao social derrota a compreensão democrática de


sociedade zelada por um povo caracterizado pela diversidade e habilitado
a governar a si de forma igualitária e compartilhada, a política se torna um
campo de posicionamento extremo e intransigente, e a liberdade se torna
um direito de apropriação, ruptura e até mesmo de destruição do social –
seu inimigo declarado (Brown, 2019, p. 39).

É nesta configuração de ataque ao social que o neoliberalismo vai propiciando uma


cidadania e um Estado antidemocráticos, em nome de indivíduos livres e responsabilizáveis. Para o
contexto neoliberal, a sociedade implicada na solidariedade e no bem comum perde espaço para
a moralidade familiar e para os indivíduos vistos como empresas, adotando uma perspectiva de

267
organização conservadora. Os elementos da liberdade e das normas morais e tradicionais apontam
o social como inimigo da liberdade e, consequentemente, o que propicia um ataque à democracia.

Frente a isso, refletimos que a CP por se configurar como um direito de cidadania


fundamental, pode colaborar no interior das políticas sociais para o fortalecimento de uma cultura
participativa contrapondo a ideologia hegemônica. Importa destacar que a perspectiva teórica que
norteia este trabalho está relacionada ao método dialético-crítico, na sua maneira de entender a
sociedade como essencialmente contraditória e em constante transformação, bem como agregada
a uma perspectiva materialista cultural que se soma a totalidade de análise sobre a realidade
contemporânea.

2. APROXIMAÇÕES ENTRE A CP E CULTURA

Diferentes autores apontam que a comunicação consiste numa importante forma de


produção de sentidos na sociedade, detendo de uma capacidade de alterar fatores de ordem
ideológica e cultural nos diversos campos da vida cotidiana dos sujeitos sociais (Esteves 2000;
Quevedo 2010; Murakami, 2008). A comunicação existe porque somos seres sociáveis, e ela alcança
uma centralidade importante na atual conjuntura, tendo em vista que ela pode ser compreendida
como estratégia política às transformações societárias para a efetivação da democracia brasileira.

Lima (2004, p. 67) comenta que, que o próprio conhecimento gerado pelo diálogo
comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação
social. “A comunicação, portanto, é dialógica. Fora dessas premissas não haverá comunicação, não se
produzirá cultura”. Desta maneira, torna-se elementar para a construção e ampliação da cidadania,
que a forma como as mensagens são conduzidas sejam realizadas por meio de instrumentos
estratégicos que ampliem a participação de todos/as sem distinção de grupos ou classes sociais e
que tenham em vista o interesse público, como no caso, a comunicação pública.

A CP consiste num termo relativamente jovem, o qual carrega concepções difusas e


errôneas, principalmente, quando associadas com propagandas governamentais como no período
do regime militar no Brasil (1964-1985,) a CP se caracterizava pelo viés autoritário e direcionada
para divulgações apenas das ações governamentais (Matos, 1997).

Em 2021, o I Congresso de Brasileiro de Comunicação Pública, ocorrido por videoconferência


elencou os “doze princípios” da CP, dentre os quais figuravam: 1) Garantir o acesso amplo
à informação; 2) Fomentar o diálogo; 3) Estimular a participação; 4) Promover os direitos e
a democracia; 5) Combater a desinformação; 6) Ouvir a sociedade; 7) Focar no cidadão; 8) Ser
inclusiva e plural; 9) Tratar a comunicação como política de Estado; 10) Garantir a impessoalidade;
11) Pautar-se pela ética; 12) Atuar com eficácia (Medeiros; Chirnev, 2021).

Os princípios da CP trazem na sua essência a comunicação como um direito humano por


estar vinculada à liberdade de expressão e à participação política e tem inspiração no Relatório
MacBride. Seja:

268
[...] todo mundo tem o direito de comunicar. Os elementos que integram esse
direito fundamental do homem, sem que sejam de modo algum limitativos,
são os seguintes: a) o direito de reunião, de discussão, de participação e outros
direitos de associação; b) o direito de fazer perguntas, de ser informado, de
informar e os demais direitos de informação; c) o direito à cultura, o direito
de escolher, o direito à proteção da vida privada e outros direitos relativos ao
desenvolvimento do indivíduo (Ramos, 2005, p. 249).
Embora a CP seja um conceito ainda em construção há uma tendência em reconhecer
que ela se dá na esfera pública estatal, sendo possível considerar seus princípios presentes
em espaços como: o cotidiano das políticas sociais, os conselhos de políticas e de direitos, nas
conferências nacionais, estaduais e municipais relacionadas às políticas públicas sociais. Nesta
perspectiva, é importante destacar algumas características das mensagens da CP na esfera pública
estatal, reforçando que por princípio ela deve ser de interesse geral, sendo as mensagens de
interesse coletivo, devendo centralizar o processo no cidadão, reconhecendo-o como um sujeito
que é concomitantemente consumidor, eleitor e usuário das políticas públicas, assegurando-
lhe uma escuta qualificada. A transparência é um princípio vigoroso e o entendimento de que a
comunicação é um processo maior do que informar é essencial. Compreender a perspectiva pública
da comunicação na sociedade democrática pressupõe elementos como informação e participação,
os quais possibilitam o entendimento, a reflexão, a argumentação, posicionamento e deliberação
por parte dos sujeitos envolvidos.

Segundo Weber (2017), a ausência de um fluxo de informações e interações, vinculados a


temas de interesse coletivo, não há comunicação pública. Dessa forma, Weber (2017) compreende
a comunicação pública como sendo a capacidade de fazer circular opiniões e movimentos ao
redor de temas vitais ao indivíduo, à sociedade, ao Estado e à política, de maneira organizada
ou espontânea. A Comunicação Pública é fruto de uma mudança da sociedade, com vistas a
democratização. Ela se constitui de debates sobre temas de interesse público, questões sensíveis,
polêmicas, morais, vitais, políticas e econômicas.

Há ainda o entendimento de que o Estado, propulsor do processo comunicativo, deve


viabilizar as condições para o exercício do direito coletivo e individual, à informação e à expressão
por meio do diálogo, respeitando as particularidades e as necessidades, bem como o estímulo
ao protagonismo dos sujeitos. Algo ainda importante para se dizer é a respeito da relação entre
comunicação e cultura uma vez que uma não existe sem a outra. A relação entre ambas possibilitam
a compreensão da vida humana e das suas mais diversas experiências.

A partir da década de 1980 foram desenvolvidas algumas teorias latino-americanas de


comunicação e cultura. Destacamos a Teoria latino-americana das mediações de Martín-Barbero.
Como formulação de uma nova teoria da cultura destacamos a proposta de Raymond Williams que
se centra na dimensão material e produtiva da cultura, ou seja, o autor buscou compreender a
cultura como espaço de luta e de transformação a partir das bases materiais e históricas.
O problema, historicamente variável, de ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ ganha uma
definição nítida e específica, na medida em que ‘sociedade’ torna-se uma
abstração e o coletivo só flui através dos canais mais voltados para o interior.
(Williams, 1989, p. 332)

269
Neste sentido, quando se busca a compreensão da significação social é preciso identificar
os relacionamentos estabelecidos e suas causas sociais, para então encontrar meios sociais de
transformação. Para tanto, o autor compreende que a necessidade da análise materialista da
cultura tem como parte central a história do desenvolvimento e uso social dos meios. Williams se
configura como um estudioso da comunicação humana, que inaugura um novo campo de estudos
para autores marxistas.

Mas, em que pese o engajamento na luta pela democratização da comunicação e o


enfrentamento à desinformação, comunicar no cotidiano com as/os usuárias/os das políticas
sociais não é algo tão simples assim. Sabemos que toda comunicação para ser dialógica, requer
uma linguagem adequada ao interlocutor. É o que na Comunicação Pública denomina-se de
“linguagem na justa medida”. E para tal, conforme Gomes (2007) é necessária uma unidade dialética
entre a dimensão humana e a técnica da comunicação. Ou seja, é preciso construir mecanismos,
articulados à cultura, em apoio à linguagem oral tão utilizada no atendimento no serviço público
para que a informação contida na comunicação seja alcançada pelas pessoas envolvidas no diálogo.
Lembrando sempre que a informação tem relação com dados e a comunicação com as relações
sociais, sendo esta o grande desafio do momento.

Gramsci (2001) colabora com o entendimento de que é no campo das experiências


concretas, na interlocução crítica com a cultura e no embate com os projetos políticos existentes no
movimento real da história, que elaboramos nossa compreensão acerca da realidade. Certamente
é na inseparável relação entre o agir e conhecer que a classe trabalhadora tem nas políticas sociais
a oportunidade, por meio do desempenho dos/as trabalhadores/as como intelectuais orgânicos de
desencadear processos que colaborem para sua emancipação política.

Ao considerarmos a CP como um instrumento de trabalho dos/das servidores/as públicos


compreendemos “como um processo de comunicação que se instaura por meio de um atendimento
público qualificado, mediado por agentes públicos, inseridos nas políticas sociais, no âmbito do
Estado” (Figueiredo, 2017, p. 17)1 verificamos que por meio da escuta e do diálogo confere-se
ao cidadão a qualidade de contratante social junto ao poder público, mas também possibilita, por
parte do agente público, o encorajamento à participação nos comitês de usuários, em associações
e em outras instâncias representativas e de luta, contribuindo para um protagonismo político, ou
seja, para a uma consciência de si e para si.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um tema desta envergadura não se esgota em um artigo. Entretanto é possível suscitar


elementos que colaborem em busca das superações necessárias em prol da emancipação política
dos trabalhadores atendidos nas diversas políticas sociais.

Nesta perspectiva, este trabalho buscou a partir do entendimento sobre os princípios

1 Extraído da palestra “O/A assistente social e os processos comunicativos: por uma contra-hegemonia dos
subalternos”, proferida no evento realizado pelo Núcleo de Assistentes Sociais de Poços de Caldas/Conselho Regional
de Serviço Social-MG, em 13/06/2017.

270
da CP e sua indissociabilidade com a cultura a existência de um espaço no interior das políticas
sociais para a execução de uma formação cidadã que colabore com a identidade de classe e com
a organização da classe trabalhadora. Neste sentido, a compreensão de que a comunicação é um
direito humano, sendo a CP um referencial importante visto ter princípios e características próprias
que lhe propiciam direção ético-política e operatividade, colabora para que a mesma possa ser
assegurada na execução das políticas sociais, Daí que a compreensão pelos agentes públicos de que
a comunicação é um direito humano transversal às políticas sociais é determinante especialmente
neste período em que as tecnologias de informação e comunicação têm sido utilizadas para a
desinformação e maior alienação da classe trabalhadora.

E como vimos a comunicação para ser dialógica precisa considerar a cultura - a maneira
de desvendar o mundo, os modos de vida, hábitos e crenças das classes subalternas, a fim de que
seja possível uma interlocução capaz de produzir novos conhecimentos em prol da emancipação
política, quiçá humana.

REFERÊNCIAS

BROWN, W. Nas Ruínas do Neoliberalismo: a Ascensão da Política Antidemocrática no Ocidente.


São Paulo: Politeia, 2019.

CARNOY, M. Estado e Teoria Política. 16ª ed. São Paulo: Papirus, 1986.

ESTEVES, J. P. (2000) Nova Ordem dos Media e Identidades Sociais. In Mídia e Processos Socioculturais.
In: Revista Mídias e processos sócio-culturais. São Leopoldo, Unisinos, nov., pp. 11-42

FIGUEIREDO, K. A. Comunicação pública: um direito humano em conexão com o Serviço Social.


Temporalis, v. 18, p. 162-177, 2018.

FIGUEIREDO, K. A. Comunicação Pública e Assistência Social: conexão entre os direitos humanos e


a democracia. 1. ed. São Paulo: Biografia, 2018. v. 1. 96p.

GOMES, R. A. L. A comunicação como direito humano: um conceito em construção. Dissertação


(Mestrado em Comunicação Social) – Programa de Pós-Graduação do Centro de Artes e Comunicação
da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, 2007.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Volume 3. Edição e tradução: Carlos Nelson Coutinho. Coedição:
Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

LIMA, V. A. de. Mídia, Teoria e Política. 2ª ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro:


UFRJ, 1997.

MARTÍN-BARBERO, J. Comunicação e mediações culturais. Entrevistador: Claudia Barcelos.


Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 23, n. 1, p. 151-163, jan./jun. 2000.

271
Disponível em: http://www. portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/ article/
view/541/510. Acesso em: 26 nov. 2013

MATOS, H. Desafios da comunicação pública no processo de democratização no Brasil. Revista


Comunicações e Artes, v. 17, n. 30, p. 22-30, 1997.

MEDEIROS, A. M.; CHIRNEV, L. Guia de comunicação pública. Brasília: Associação Brasileira de


Comunicação Pública, 2021.

MORAES, D. “Gramsci e as mutações do visível: comunicação e hegemonia no tempo presente”. In:


______. Mutações do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede. Rio de Janeiro: Pão
e Rosas, 2010.

MURAKAMI, M. H. Telenovela, gêneros televisivos e realidade social. Núcleos de Pesquisa da


Intercom, 2008. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008/resumos/R3-
1213-1.pdf>. Acesso em 13 de out.2012.

PERUZZOLO, A. C. Comunicação e Cultura: implicações epistemológicas. Revista Multiplicidade, v.


2, p. 1, 2011.

QUEVEDO, L. A. Los Medios de Comunicación y el rol del Estado. In Delgado, D. G. Rol del Estado
y desarollo productivo-inclusivo: Ideas para el bicentenário. Buenos Aires: Fundación Centro de
Integracion, Comunicación, Cultura y Sociedad – CICCUS; Faculdad Latinoamericana de Ciencias
Sociales – FLACSO, 2010.

RAMOS, M. C. Comunicação, direitos sociais e políticas públicas. In: MARQUES DE MELO, J.; SATHLER,
L. Direitos à comunicação na sociedade da informação. São Bernardo do Campo: Umesp, 2005.

WEBER, Maria H.; COELHO, Maria P.; LOCATELLI, Carlos (org.). Comunicação pública e política:
pesquisas e práticas. Florianópolis: Insular, 2017.

WILLIAMS, R. O Campo e a Cidade na história e na literatura. Trad. Paulo Henriques Britto. Companhia
das Letras. São Paulo, 1989.

272
A FACE OCULTA DA SOCIOEDUCAÇÃO:
o punitivismo como projeto hegemônico no sistema socioeducativo do distrito federal.

Miriam de Souza Leão Albuquerque


Matheus Trindade de Souza

1. INTRODUÇÃO

O artigo em tela versa sobre os resultados parciais obtidos no Projeto de Iniciação Científica
“ANÁLISE DA POLÍTICA DE ATENÇÃO INTEGRAL AOS USUÁRIOS DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS NO
SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO DISTRITO FEDERAL”, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa
do Distrito Federal com previsão de conclusão para outubro deste ano.

Em curso desde setembro de 2023, o Projeto tem como objetivo geral analisar a
operacionalização da Lei de Drogas dentro do sistema socioeducativo do DF e apreender sob
quais matrizes ideopolíticas têm se dado o entendimento dos magistrados acerca da relação dos
adolescentes com as substâncias psicoativas (SPA´S). A hipótese levantada por esta pesquisa é que
a não descrição objetiva da quantia de drogas que distingue o “usuário” do “traficante” na Lei
11.343/06, além da ausência de um olhar biopsicossocial sobre a relação daquele sujeito com a
substância, abre espaço para olhares subjetivos dos profissionais da segurança pública e da justiça,
que tende a interferir no andamento processual do fato e, consequentemente, nas condições de
vida de vários adolescentes em condição de vulnerabilidade social. É a partir desse imbróglio
que surgem os questionamentos-chaves do estudo: Como os atos infracionais de posse/tráfico de
drogas se entrelaçam com as condições de saúde dos adolescentes apreendidos? Qual concepção
tem sido adotada dentro do eixo saúde no trabalho socioeducativo: a da redução de danos ou o
proibicionismo? O que as normativas nacionais e distritais preconizam sobre o cuidado em saúde
mental e o uso de drogas dos adolescentes em medidas socioeducativas?

Assentado na Teoria Social Crítica de Marx, compreende-se que o manejo dos dados expostos
são movidos pela dinamicidade e materialidade da realidade social do modo de produção capitalista,
pela historicidade que constitui a política socioeducativa e pela perspectiva dialética, recheada de
antagonismos e contradições, que não permite o esgotamento da discussão no presente trabalho.
Como aponta Minayo (2008), o materialismo histórico-dialético oferece ferramentas interpretativas
que permitem ao pesquisador compreender a produção e a reprodução das relações socialmente
produzidas entre sujeitos, instituições e demais participantes da dinâmica societária.

No que concerne aos dados apresentados nessa primeira remessa, foram analisados
documentos judiciais cedidos pela Vara de Execução de Medidas Socioeducativas (VEMSE)
do Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT), mediante autorização judicial. Dentre os
documentos analisados destacam-se sentenças proferidas pelos magistrados, termos de audiência
e manifestações do Ministério Público. Nesse sentido, elencou-se 6 (seis) processos a serem
explorados, levando em consideração os parâmetros jurídicos e científicos empregados pelos
operadores das leis nos documentos judiciais, escolhidos aleatoriamente e prezando pela garantia

273
do sigilo e o respeito à integridade do adolescente conforme prevê o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA).

2. PANORAMA GERAL DOS ATOS INFRACIONAIS RELACIONADOS A DROGAS NO ÂM-


BITO SOCIOEDUCATIVO DO DF

O sistema socioeducativo possui uma natureza ímpar dentro das políticas sociais, exigindo
esforços de diversos estudiosos para decifrar seu complexo papel nas relações interpessoais
e institucionais. Conforme apontam Yokoy e Rodrigues (2021), essa política teve importantes
avanços com a promulgação do ECA (1990) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(2006 e 2012), principalmente no que se refere ao entendimento do adolescente como sujeito de
direitos e em peculiar condição de desenvolvimento, o que também exige um olhar particular para
a compreensão do ato infracional cometido. Todavia, em diálogo com as autoras, Souza (2023),
Ortegal (2019) e Bisinotto et al (2015) nos alertam para o lócus paradoxal que o sistema ocupa: ao
mesmo tempo que uma medida socioeducativa é gerada como uma resposta punitiva a um desvio
de conduta cometido por um adolescente, a socioeducação tem por princípio articular ações,
programas e serviços que se pautam nos direitos humanos, na promoção e na garantia dos direitos
sociais dos socioeducandos.

Nesse momento, entram em choque duas categorias naturalmente opostas, mas que, na
política socioeducativa, se fundem: proteção e responsabilização. Para autoras como Rizzini et al
(2019, p.60 e 62), “o trato centrado na busca da responsabilização do adolescente secundariza
o sentido de proteção social”, o que permite questionar: “seria possível [de fato] incorporar a
dimensão protetiva na aplicação de medida socioeducativa ao adolescente?”

Contextualizando tal questionamento a luz do nosso objeto de estudo, a definição da


direção conceitual adotada tanto pelos órgãos responsáveis pelo julgamento dos atos (sistema de
justiça) quanto aqueles que executam as medidas (unidades socioeducativas) é elemento crucial
para entender qual o olhar que têm sido hegemônico dentro dos programas socioeducativos
na relação entre as SPA´S e seus respectivos usuários/vendedores. Paula (2022) alerta que o
fenômeno da Guerra às Drogas falseia uma noção de ‘caça às substâncias’, sendo que, em sua face
real, é um processo de coerção a um delimitado público, racial e socialmente determinado, que
usufrui de pequenas frações dessas substâncias, bem como aos determinados territórios que são
estigmatizados socialmente como espaços de maior incidência de uso - o que se mostra inverídico
como aponta IPEA (2023).

Sob esse ângulo, mesmo nos autos judiciais analisados em que foram proferidas medidas
aplicadas para atos tidos como de menor gravidade social, impera-se, no decorrer de todo processo,
a matriz proibicionista, colocando a desestrutura familiar concomitantemente como causa e
consequência para o cometimento do ato infracional e justificando, a partir do Art. 174 do ECA2, a
2 Art. 174: Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela
autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministé-
rio Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato
infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança
pessoal ou manutenção da ordem pública. (BRASIL, 1990)

274
manutenção do adolescente em ambiente de internação provisória, logo após o acometimento da
infracionalidade, como ação de mantimento da ordem social:

O histórico infracional do adolescente aponta que ele vem se envolvendo de


forma reiterada com atos infracionais, e a medida socioeducativa em meio
aberto a ele se mostrou insuficiente para frear seus impulsos delinquentes,
o que não deixa dúvida de que em liberdade ele representa risco à ordem
pública, até porque ele não possui estrutura familiar para lhe orientar, se
encontra em profunda defasagem escolar, possui “guerra” com gangues [...]
(MANIFESTAÇÃO DO MP, Processo A. Grifos do próprio documento, itálicos
nossos).

Em outro caso similar, a acusação justificou seu posicionamento em desfavor do jovem


levando em consideração os impactos que a traficância possuem não somente para a segurança
pessoal do réu, mas também em um contexto macroestrutural:

É nítido que o tráfico se relaciona à crescente violência que, por sua vez,
leva à corrupção do Estado, à desestruturação familiar e a degradação
social. Dessa forma, não há como deixar de perceber a real gravidade do ato
(MANIFESTAÇÃO DO MP, Processo B. Itálicos nossos).

Em ambos processos3, os parâmetros jurídicos utilizados parecem desproporcionais


ao contexto infracional vivido por aquele jovem. Primeiramente, chama a atenção que se, no
processo A, a fragilidade do vínculo familiar é o que justifica o pedido de privação de liberdade
provisória, no processo B, tem-se o extremo oposto: esse desgaste pode vir a ser ocasionado pela
inserção do jovem no tráfico. De toda forma, centraliza-se na figura da família a responsabilidade
pela hostilidade do contexto social e isenta-se o Estado de suas responsabilidades sociais. Mioto
et al (2018, p.4) caracteriza esse processo como “o familismo dos sistemas de proteção social”, um
projeto neoliberal que procura dirimir o quantum de proteção assumido pelo Estado deslocando
para as unidades familiares a luta pelo bem-estar de seus membros.

Noutro giro, o processo B apresenta outros elementos que, historicamente, mostram-se como
gargalos no entendimento do mercado da droga: o lugar social ocupado por pequenos traficantes e
usuários nessa ampla tessitura. Como dito, a segurança pública privilegia ações para frear o tráfico
de drogas em periferias e territórios subalternizados, o que tem gerado um boom de apreensões
de sujeitos moradores dessas regiões. A grande falha metodológica dessa estratégia de segurança
está no fato de que, em certa medida, esses jovens que hoje se encontram institucionalizados são
a menor parte da engrenagem dessa densa rede. Estudos do IPEA (2023) comprovam que bairros
mais ricos e de maioria branca são praticamente imunes à entrada invasiva da polícia em domicílios,
sendo que, os maiores índices de drogas confiscadas em maior contingente advém justamente
dessas regiões. Assim, apontar como argumento jurídico e científico que um adolescente, em
contexto de extrema vulnerabilidade social, expressa uma gravidade para fenômenos sociais tão
complexos como a corrupção do Estado e a degradação social é, no mínimo, desmedido.

3 Em que vale destacar que os pedidos de internação provisória feitos pela Promotoria foram aceitos, seguidas
pela promulgação de medidas de LA e PSC no processo A e somente LA no processo B.

275
Em outros casos, tidos muitas vezes como de dano social mediano ou como forma de
progressão de regime a adolescentes que cumpriram exitosamente a internação, a medida
socioeducativa de semiliberdade é bastante aplicada. Nas situações analisadas dessa modalidade,
os processos também estão repletos do intenso caráter familista e a intervenção judiciária aparece
no intuito de revelar a preocupação do Estado quanto o “sentimento de justiça e intranquilidade
social”:

Ao que tudo indica, o jovem está claramente inserido na senda infracional,


repetindo atos infracionais graves e utilizando-se de atividades ilícitas como
meio de vida. Tudo isso torna concreto o receio de que, em liberdade, ele
vá persistir na prática de atos semelhantes e, assim, causar abalo à ordem
pública e sua própria insegurança. [...] além de gerar a falsa sensação de
inaplicabilidade da lei e a ausência punitiva/socioeducativa estatal no jovem
(DECISÃO JUDICIAL, Processo C. itálicos nossos).

Em nossa interpretação, os trechos destacados suscitam deslizes conceituais-teóricos em


que não há nitidez sobre a coexistência (ou sobreposição) do enfoque correcional-repressivo
próprio aos códigos menoristas que antecederam o ECA e a doutrina de proteção integral que
ancora as políticas públicas da infância e adolescência. Por mais que a materialidade dos fatos
demonstre que o jovem está submerso na ilegalidade, a decisão judicial nos leva a entender que o
adolescente em tela não está sendo avaliado sob o jus do cuidado e do potencial de alcance positivo
que a socioeducação oferece, sim pelo apelo social e propagação da sensação de resolutividade
da justiça (BRASIL, 2013). Tira-se o foco da necessidade de uma avaliação concreta da realidade
biopsicossocial do adolescente e sustenta-se sua condenação no papel social do ordenamento
jurídico e seu status quo. O próprio Projeto Político-Pedagógico das Medidas Socioeducativas do DF
(2013) aponta que esta justaposição de direcionamentos ético-políticos e teórico-metodológicos
contrários tende a caracterizar o atendimento socioeducativo única e exclusivamente pelo viés
punitivo e patologizar as concepções acerca das adolescências e dos atos infracionais.

Essa interlocução entre vieses foi o que relacionou por séculos loucura e periculosidade,
fundamentou a reclusão de pessoas desviantes do padrão produtivo do modo de produção capitalista
- em sua esmagadora maioria, pessoas negras - em instituições totais como manicômios, prisões,
casas de correção, entre outros (Davis, 2003). Para os usuários de SPA´s, o discurso hegemônico
reveste-se de contornos ainda mais conservadores que baseiam grande parte das decisões e
manifestações. Não é incomum notarmos posturas que reforçam estigmas históricos associados
aos usuários de drogas: lógica culpabilizante ao indivíduo e família; desresponsabilização do Estado
diante de sua negligência em casos de extrema vulnerabilidade social; uso de termos próprios aos
códigos menoristas; criminalização de questões sociais; ausência de estudo psicossocial que apoie
a decisão; medidas que desconsideram o modelo de uso do adolescente e a irrisória quantia de
drogas apreendida; descaracterização do adolescente como sujeito de direitos e de autonomia.
Atentemo-nos aos trechos abaixo:

Liberar o adolescente significa devolvê-lo ao ambiente criminógeno em


que está agora inserido, condenando-o a uma espiral de reiteração que
culminará, inexoravelmente, tão logo alcançada a maioridade, no sistema
de justiça criminal [...] O contexto atual faz evidente que o adolescente não

276
encontra amparo familiar que o possa disciplinar e proteger, de modo que
a drástica providência da internação cautelar é a única providência apta a
resguardar o adolescente, removendo-o do contexto infracional novamente
o inserindo em convívio social regrado. (MANIFESTAÇÃO DO MP, Processo D)

[...] as condições pessoais do adolescente, tal como apontadas na oitiva


informal realizada pelo Ministério Público, sinalizam que seus vínculos
familiares se encontram bastante fragilizados e que seus responsáveis já não
conseguem exercer a função de orientação e educação deles esperada, pois
o jovem atualmente estava em situação de rua, está afastado do ambiente
escolar, faz uso costumaz- ao que tudo indica- não possui uma rotina e
objetivos delineados que corroborem para seu crescimento pessoal (DECISÃO
JUDICIAL, Processo E) O menor infrator em destaque possui passagens
anteriores pela Vara de Infância e Juventude por atos infracionais análogos
a tráfico de substâncias entorpecentes, roubos e receptação (PROCESSO DE
APURAÇÃO, Processo F)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meticulosamente, cada documento expressa, em sua particularidade, ofensivos argumentos


que remam contra a maré do direcionamento da seguridade social brasileira. No Processo D,
subentende-se que a acusação coloca a privação de liberdade e o regramento do convívio social
como recursos protetivos para o jovem, o que se choca imediatamente com a Lei 10.216/2001 e
com outras diretrizes que reconhecem a importância do cuidado centrado na pessoa, em liberdade
e no território. Realidade que se assemelha a do Processo E, cuja internação provisória parece se
justificar pela evasão escolar e pelo risco social do jovem em situação de rua. Evidentemente, há
uma crônica problemática de ordem social nesse cenário, mas que não tem resolubilidade com a
institucionalização do sujeito em um ambiente privativo de liberdade. Crianças e adolescentes em
situação de rua devem ser atendidos por serviços de abordagem social, acolhimento institucional
e proteção integral à criança e ao adolescente, como prescreve Sistema Único de Assistência Social
(2006). O sistema socioeducativo está aquém dessas competências e não deve utilizar as medidas
sancionatórias de restrição ou privação de liberdade como “moeda de troca” para a condição de
desigualdade social de um jovem. Por fim, o processo F, mesmo após 34 anos da publicação do ECA,
torna a repetir termos estigmatizantes, próprios a doutrina da “irregularidade social” dos códigos
e estatutos menoristas do século XX. Apesar de não implicar diretamente no andamento jurídico
dado ao caso, é inconcebível que ainda ocorram a reprodução de vícios linguísticos não condizentes
com as bases legais vigentes.

Nessa encruzilhada, o sistema socioeducativo não só consolida o ideal punitivista, como


também se torna terreno fértil para perpetuação da lógica do racismo estrutural, manicomial e de
outras diversas posturas discriminatórias funcionais a manutenção da moral capitalista. A coleta do
quesito raça/cor nos atos infracionais pesquisados revela um contorno ainda mais acentuado de
adolescentes pretos e pardos: 68,9% no meio aberto, 71,4% na semiliberdade e 75,8% na internação

277
(SUBSIS, 2023). Será, então, uma mera coincidência que o cerceamento de corpos e mentes de
jovens negros em ambientes de privação de liberdade atinja estrondosos níveis, tal como nas
experiências manicomiais do século passado, ou como os índices atuais do sistema penitenciário?
Estaria a própria política social sendo responsável pela negligência e dificuldade de acesso desses
adolescentes a tratamentos dignos em saúde mental e redução de danos?

Posto isso, faz-se necessário fulgurar que a revisão documental e o levantamento dos
dados não imprime um exame fatalista na intersecção entre a relação dos adolescentes com as
SPA´s e o sistema socioeducativo, mas provoca inquietações e reflexões a serem publicizadas para
conhecimento de pesquisadores do tema e segmentos dos movimentos sociais da temática, assim
como devolver aos órgãos de gestão do sistema uma análise refletida e qualificada dos processos
de trabalho da política social. As lacunas postas demonstram a necessidade de revisão de fluxos,
celeridade no processo de implementação do Plano Operativo Distrital de Atenção à Saúde de
Adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas do Distrito Federal, fomentar ações
de formação continuada de servidores e reforçar a importância do preenchimento constante
e fidedigno dos instrumentais e banco de dados. Com essas medidas, pode-se não erradicar
desigualdades estruturantes que circundam o sistema socioeducativo, porém são soluções
concretas e imediatas que tendem a fortalecer e estabelecer iniciativas de cuidado em saúde com
capacidade de incidência em diferentes espaços.

REFERÊNCIAS

BISINOTO. C. et al. SOCIOEDUCAÇÃO: ORIGEM, SIGNIFICADO E IMPLICAÇÕES PARA O ATENDIMENTO


SOCIOEDUCATIVO. Psicologia em Estudo, Maringá, v.20, p.575-585, 2015.

BRASIL. Lei 11.343/2006. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-


2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 26/04/2024.

BRASIL. Lei 8069/90. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm> Acesso


em 24/03/2023.

BRASIL. Lei 10.216/ 2001. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/


l10216.htm> Acesso em 24/03/2023.

DAVIS, Angela. Are prisons obsolete? Seven Stories Press. Nova York, EUA. 2003.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2023. Entrada em domicílio em caso de crimes de
drogas : geolocalização e análise quantitativa de dados a partir de processos dos Tribunais da Justiça
estadual brasileira. Disponível em <https://www.ipea.gov.br/portal/publicacao-item?id=200c4256-
f79e-4ae4-90b5-031e602d15a6> Acesso em 26/04/2024.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. 18 ed.
Petrópolis: Vozes, 2001.

278
MIOTO, R. C. T. et al. O FAMILISMO NA POLÍTICA SOCIAL: APROXIMAÇÕES COM AS BASES DA
FORMAÇÃO SÓCIO-HISTÓRICA BRASILEIRA. In Anais do 16º Encontro Nacional de Pesquisadores
em Serviço Social, Vitória-ES, 2018.

PAULA, Tadeu de. Guerra às drogas e redução de danos: tecendo o comum nas encruzilhadas do
SUS. São Paulo, Hucitec Ed., 2022.

RIZZINI, I. et al. Adolescência, direito e medidas socioeducativas em meio aberto. Cortez Editora,
São Paulo- SP, 2019.

SOUZA, Matheus Trindade de; As interfaces entre questão racial, sistema socioeducativo e saúde
mental. In Violência e Saúde Mental: Debates Contemporâneos (p. 189-214). Rede Unida,
Florianópolis- SC, 2023.

Subsecretária do Sistema Socioeducativo do DF (SUBSIS). Dados quantitativos da intersecção entre


adolescentes em cumprimento de medidas relacionadas a drogas e suas condições de saúde.
Documento restrito à pesquisa de Iniciação Científica, cedido por decisão judicial. 2023.

ORTEGAL, L. R. O. Questão racial e sistema socioeducativo: uma introdução ao debate. In


Socioeducação: vivências e reflexões sobre o trabalho com adolescentes.Editora CRV, Curitiba,
2018.

YOKOY, Tatiana; Rodrigues, Dayane. Adolescências Brasileiras e Vulnerabilidade. Em: C. Bisinoto


[et al.] Curso Socioeducação como meio de responsabilização e emancipação de adolescentes:
material pedagógico (p.06-42). Universidade de Brasília, Planaltina-DF, 2021.

279
TELEMARKETING NO BRASIL:
análise dos Acordos Coletivos do SINTTEL-DF frente às mudanças no Mundo do Trabalho

Clarissa Araújo da Silva

O presente artigo parte do estudo realizada na dissertação de mestrado “Precarização


da Força de Trabalho no Telemarketing Sob a Égide do Neoliberalismo”, que explora a complexa
dinâmica do trabalho no setor de telemarketing sob a influência do neoliberalismo, destacando
as metamorfoses nas relações laborais e no panorama do trabalho. Utilizando uma abordagem
qualitativa baseada no materialismo histórico, o estudo examina a desregulamentação e
precarização do trabalho, além das adversidades enfrentadas pelos sindicatos. A pesquisa se
concentra nos acordos coletivos de quatro empresas, analisando direitos, auxílios e deveres dos
trabalhadores. Os resultados destacam a exploração, precarização e controle social do trabalho,
incluindo aspectos como remuneração, terceirização, adoecimento e monitoramento. Conclui-
se que o estudo contribui para uma compreensão mais profunda das condições de trabalho no
telemarketing, evidenciando o impacto das políticas neoliberais.

1. TELEMARKETING NO BRASIL: PRIVATIZAÇÃO, PRECARIZAÇÃO E DESAFIOS PARA OS


TRABALHADORES EM UM CONTEXTO NEOLIBERAL

O setor de telemarketing no Brasil experimentou notável crescimento após o processo de


privatização da telefonia, correlacionado ao período de ascensão do neoliberalismo. A privatização
da Telebrás, finalizada em 1998, atraiu capital estrangeiro por meio de leilões de concessões,
beneficiando principalmente investidores estrangeiros e gerando cerca de R$ 19 bilhões (DIEESE,
2009, p.07).

O estudo do DIEESE (2009) destaca que, após a privatização, o número de telefones fixos no
Brasil aumentou notavelmente de 1997 a 2003, atingindo 38,26 milhões. Atualmente, a telefonia
fixa é dividida entre autorizadas e concessionárias, com destaque para empresas como Claro, Vivo,
TIM e Oi. Quanto à telefonia celular, o segmento cresceu significativamente, atingindo 226,67
milhões de linhas móveis em operação em 2019.

O trabalho no setor de telemarketing é caracterizado por particularidades cruciais, como a


continuidade das operações e a automação do trabalho, com chamadas automáticas ou manuais
sucessivos. A terceirização intensificou-se após as privatizações, evidenciando a confluência entre
terceirização e precarização do trabalho (BRAGA, 2013).

Os trabalhadores do telemarketing enfrentam alta rotatividade e baixas remunerações.


A predominância feminina reflete a divisão sexual do trabalho e o processo de feminização da
pobreza no contexto neoliberal (NOGUEIRA, 2011). A falta de experiência torna-os suscetíveis às
pressões, contribuindo para a precarização do setor (VENCO, 2006b).

O controle social do trabalho no telemarketing é intenso, com jornadas marcadas por


estresse, metas rigorosas e supervisão constante (VENCO, 2006a). A estrutura hierárquica sugere

280
superexploração, e a taylorização do trabalho intelectual leva ao adoecimento físico e emocional
dos teleoperadores (BRAGA, 2012). O controle do tempo de atendimento (TMA) e a competição
exacerbada contribuem para sintomas de adoecimento (BRAGA, 2012; NOGUEIRA, 2011).

Os sindicatos e os acordos coletivos desempenham um papel crucial na busca por


condições de trabalho mais dignas e na preservação da saúde física e mental dos teleoperadores
(MOCELIN; SILVA, 2009). O contexto neoliberal e as práticas resultantes da privatização impactam
profundamente as dinâmicas do telemarketing, exigindo uma compreensão crítica das condições
de trabalho nesse setor (BRAGA, 2013).

2. UMA ANÁLISE DOS ACORDOS COLETIVOS DO SINTTEL-DF

A análise dos Acordos Coletivos entre 2015 e 2019 no setor de telemarketing no Brasil visa
compreender a exploração, precarização e controle social do trabalho nas negociações sindicais.
Neste contexto, o setor, predominantemente composto por mulheres negras, LGBTQI+ e pessoas
com deficiência, representa uma camada subproletária historicamente marginalizada (BRAGA,
2014a, p.34). A entrada significativa desses grupos na década de 2000 indica uma mudança no
cenário do mercado de trabalho formal, apesar dos desafios enfrentados pela organização sindical,
como alta rotatividade e inexperiência política dos trabalhadores (BRAGA, 2012, p. 200).

Com a privatização das empresas de telefonia, as demandas da categoria mudaram, com


foco na segurança no emprego e benefícios complementares, em vez de apenas aumento salarial
(ROSENFILD, 2009). A complexidade do trabalho, caracterizada por controle rigoroso e alta cadência,
dificulta a construção de um coletivo de trabalho, reduzindo a eficácia da ação sindical (ROSENFILD,
2009). No entanto, as greves têm sido uma forma importante de resistência contra a precarização
do trabalho, destacando a relevância dessas mobilizações (BRAGA, 2012, p. 209).

Para analisar esses dados, serão consideradas três categorias: exploração, precarização e
controle social do trabalho, buscando compreender o impacto da política neoliberal no setor de
telemarketing e as consequências da reforma trabalhista para os trabalhadores.

a) Exploração:

A pesquisa destaca a importância da categoria de exploração para entender a precarização


do trabalho no telemarketing, dentro do contexto do neoliberalismo, e suas repercussões na vida
dos trabalhadores. A análise se concentra nos acordos coletivos, especificamente na primeira
categoria, exploração, desdobrada em subcategorias de remuneração e intensidade do trabalho.

A Remuneração do trabalho é entendida não apenas como o salário pago diretamente,


mas também como uma série de outros rendimentos que se somam, garantindo um acúmulo de
recursos para a subsistência. Nessa subcategoria, incluem-se as seguintes cláusulas: a) Piso Salarial;
b) Reajuste Anual; c) Auxílio Alimentação; e d) 13º Salário.

O Piso Salarial representa o salário mínimo estabelecido para diferentes cargos, sujeito a
variações de acordo com a posição ocupada. Em cada novo acordo coletivo, ocorre à negociação

281
desse piso, podendo resultar em um aumento ou manutenção do valor da hora de trabalho para
os funcionários.

Da mesma forma, o Reajuste Anual, teoricamente, é negociado para assegurar uma


remuneração “justa” pelas horas trabalhadas. No entanto, esse elemento adicional pode tanto
aumentar quanto não acentuar a exploração da força de trabalho, dependendo da porcentagem de
reajuste acordada em cada negociação coletiva.

Embora muitos encarem o auxílio alimentação como um benefício fornecido pela empresa,
é crucial destacar que ele também é objeto de negociação. Essencial para garantir a produção
e reprodução social do trabalho, o auxílio alimentação cobre os gastos do trabalhador com seu
sustento e o de sua família. Vale ressaltar que este benefício não é calculado para efeitos de direitos
previdenciários.

O 13º salário, apesar de ter um valor pré-fixado, desempenha um papel crucial na garantia
da reprodução social do trabalho. Muitos trabalhadores dependem desses rendimentos para
cumprir seus compromissos financeiros, tornando-o uma parte essencial do ciclo financeiro anual.

Conforme o propósito deste estudo, a análise dos acordos coletivos será aprofundada nas
funções específicas do setor de telemarketing, destacando as seguintes categorias: atendentes,
supervisores/as, coordenadores/as e/ou gerentes de contratos. Por conseguinte, as demais
categorias incluídas nos acordos coletivos não serão abordadas.

Os dados apresentados indicaram uma tendência de aumento nominal do piso salarial


e crescimento contínuo do reajuste do auxílio alimentação nos acordos coletivos entre 2015
e 2019. Com excessão da Ist Telecomunicações não divulgou os valores de auxílio alimentação,
impossibilitando uma análise aprofundada.

Para se aprofundar na analise da categoria em questão, é necessário analisar não apenas os


aumentos nominais, mas também a base de cálculos. Comparando os dados disponíveis do salário
mínimo, seu reajuste nominal e aumento real com base no INPC .

Ao comparar os valores de piso salarial nos acordos coletivos com o salário mínimo legal,
observa-se uma média de remuneração de um salário mínimo e meio. No entanto, as diferenças
nos reajustes salariais em relação ao salário mínimo variam de acordo com empresa, ano e acordo
coletivo.

Destacam-se os acordos de 2016-2017, com valores negociados significativamente inferiores


ao reajuste anual do salário mínimo em todas as empresas. As empresas apresentaram os seguintes
dados sobre reajuste salarial:

• Nos anos de 2015-2016, a empresa Tel telecomunicações garantiu reajuste salarial


de 11,68%, a empresa Ist Telecomunicações por sua vez teve reajuste de 9%, a empresa Ericsson
teve reajustes de 9.88% e a empresa Tivit de 8,34%. O salário mínimo por sua vez teve reajuste
anual em 2015 de 8,84%.

• Nos anos de 2016-2017 a empresa Tel telecomunicações garantiu reajuste salarial


de 10%, a empresa Ist Telecomunicações por sua vez teve reajuste de 9,83%, a empresa Ericsson

282
teve reajustes de 10% e a empresa Tivit de 9,83%. O salário mínimo por sua vez teve reajuste anual
em 2016 de 11,68%.

• Nos anos de 2017-2018 a empresa Tel telecomunicações garantiu reajuste salarial


de 5%, a empresa Ist Telecomunicações por sua vez teve reajuste de 10%, a empresa Ericsson teve
reajustes de 2,5% e a empresa Tivit de 6,58%. O salário mínimo por sua vez teve reajuste anual em
2017 de 6,48%.

• Nos anos de 2018-2019 a empresa Tel telecomunicações garantiu reajuste salarial


de 1,56%, a empresa Ist Telecomunicações por sua vez teve reajuste de 3,0%, a empresa Ericsson
teve reajustes de 3,64% e a empresa Tivit de 3,1%. O salário mínimo por sua vez teve reajuste
anual em 2018 de 1,81%.

A empresa Tel telecomunicações negociou valores percentualmente abaixo do reajuste


salarial do salário mínimo nos últimos três acordos. A empresa Ist Telecomunicações teve reajustes
superiores ao aumento porcentual do salário mínimo. A empresa Ericsson manteve

b) Precarização

A categoria de análise será a Precarização, central na análise dos acordos coletivos, devido
à influência da reestruturação produtiva do capitalismo. Serão analisadas as subcategorias a)
terceirização e b) desregulamentação. Observa-se a ausência de cláusulas específicas nos acordos,
apesar do reconhecimento da terceirização pelos sindicatos. A Lei nº 13.429/2017 ampliou as
possibilidades de terceirização, enquanto a desregulamentação aborda temas como sindicalização
e representação sindical. Destaca-se uma cláusula no acordo DF000588/2018 que restringe o acesso
dos dirigentes sindicais a temas políticos. A liberação dos trabalhadores para atividades sindicais
requer autorização prévia da empresa, refletindo mudanças trazidas pela reforma trabalhista. No
setor de telemarketing, a prática sindical limita-se principalmente a negociações salariais e de
benefícios. O distanciamento do debate de classes é apontado como uma característica do novo
sindicalismo, alinhado com a defesa do sindicalismo cidadão.

A desregulamentação do trabalho é uma constante que contribui para a precarização. Na


subcategoria de desregulamentação do trabalho, são identificadas as cláusulas de sindicalização e
contribuição sindical como elementos relevantes para reflexão. A reforma trabalhista atuou como
um mecanismo de desregulamentação do trabalho, impactando diretamente o setor sindical. Krein
(2018, p. 93-94) ressalta que a reforma trabalhista não é o único fator contribuinte para a fragilização
do movimento sindical, devido a um contexto econômico, político e ideológico desfavorável à ação
coletiva no capitalismo contemporâneo. A reforma trabalhista, inserida na atual conjuntura política
e econômica brasileira, atuou como um mecanismo de desregulamentação do trabalho, afetando
significativamente o setor sindical. Segundo Galvão, Castro, Krein e Teixeira (2019, p. 253) entre as
mudanças promovidas pela reforma que impactam diretamente a organização sindical, destacam-
se:

a) A possibilidade de negociação coletiva individual, permitindo que o trabalhador negocie


diretamente com o empregador, sem mediação sindical;

b) Autorização para formação de comissões de representação dos trabalhadores dentro


dos ambientes de trabalho, criando uma “concorrência com os sindicatos”;

283
c) Condicionalidade do recebimento do imposto sindical à autorização de desconto feita
pelo trabalhador.

Essas alterações não apenas dificultaram a ação sindical, mas também a desregulamentaram,
ao permitir a criação de comissões de representação fora do sindicato e favorecer a negociação
individual. O imposto sindical, criado para controlar a ação sindical, tornou-se uma fonte crucial de
recursos para muitos sindicatos, mas a condicionalidade da autorização para desconto inviabilizou
a receita para muitas entidades.

c) Controle Social do trabalho:

O controle social no setor de telemarketing é essencial para entender a manutenção da


exploração e precarização do trabalho. A partir dos acordos coletivos, foram analisadas duas
subcategorias: monitoramento e adoecimento.

O monitoramento, realizado pelos supervisores, visa garantir a produtividade, abrangendo


aspectos como intervalo de almoço, crachá de identificação e uniforme. Apesar de parecerem
sem relação direta, uniformes e crachás são formas de controle, padronizando os trabalhadores
e eliminando individualidades. No que diz respeito ao intervalo de almoço, embora a legislação
exija 1 hora para jornadas superiores a 6 horas, nos acordos coletivos analisados, muitas empresas
dispensam o registro de ponto para uma hora de intervalo, o que não se aplica aos trabalhadores
de telemarketing, cuja pausa é de apenas 20 minutos. Essa falta de normatização permite que as
empresas determinem quando os trabalhadores podem tirar a pausa, podendo ser impedidos de
sair em momentos de alta demanda.

O adoecimento no setor de telemarketing é uma preocupação significativa, impactando


negativamente a produtividade. As empresas abordam essa questão através de cláusulas nos
acordos coletivos, que incluem exames médicos periódicos, atestados médicos e auxílio-saúde.

Todas as empresas analisadas apresentaram cláusulas referentes a exames médicos


periódicos, que consistem em avaliações clínicas realizadas conforme a legislação e regulamentação,
visando garantir a segurança dos trabalhadores ao identificar os reflexos da exposição à saúde no
ambiente de trabalho.

Embora os exames periódicos busquem assegurar a saúde dos trabalhadores, também


podem ser utilizados pelas empresas como meio de resguardar responsabilidades, mantendo
aqueles com condições de produtividade e demitindo os que apresentam problemas de saúde.

Os atestados médicos, um direito do trabalhador para abonar afastamentos durante


tratamentos e prevenção de doenças, são, muitas vezes, empregados como instrumentos de
controle social, fiscalizando quais trabalhadores possuem algum adoecimento, gerado muitas
vezes pela própria função desempenhada. Isso pode levar os trabalhadores a evitar tratamentos
por receio de demissão ao estarem doentes, tornando essa cláusula crucial para a análise.

O auxílio-saúde, como benefício concedido pelas empresas, é negociado nos acordos


coletivos da categoria. A amplitude desse benefício deve ser considerada para compreender o

284
controle social exercido pelas empresas sobre seus trabalhadores.

A constante presença do tema dos auxílios de saúde nos acordos coletivos levanta
preocupações, pois ao privilegiar planos de saúde privados, os sindicatos parecem se alinhar à
lógica mercadológica de privatização dos direitos sociais. No entanto, os auxílios de saúde também
podem ser vantajosos tanto para a empresa quanto para o trabalhador, visto que o tratamento
de saúde pode representar um custo significativo para a empresa em caso de afastamento do
trabalhador.

Dentro de uma conjuntura neoliberal, onde o controle social do trabalho utiliza a ameaça
de demissão e a possível perda do plano de saúde para manter os trabalhadores produzindo, é
crucial compreender os desafios e as implicações desse cenário. A análise abrangente dos acordos
coletivos proporciona insights valiosos sobre os efeitos da contrarreforma trabalhista do governo
Temer nos direitos laborais, resultando na erosão das conquistas históricas da classe trabalhadora.

O trabalho no setor de telemarketing, moldado pela ideologia neoliberal, é caracterizado


pela flexibilização, precarização, terceirização e privatização, distanciando-se das representações
tradicionais de classe e sujeitando-se à desregulamentação e superexploração. É importante
ressaltar que são os próprios trabalhadores que vivenciam diariamente os desafios dos Call
Centers, enfrentando monitoramento, avaliação, pressão e silenciamento, representando diversas
camadas da classe trabalhadora. A exploração é uma realidade concreta, reforçando a necessidade
de revitalizar o movimento sindical, fortalecer os movimentos sociais e resistir, especialmente por
parte de grupos precarizados, mulheres, negros, LGBTI+ e jovens.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O telemarketing no Brasil experimentou uma expansão considerável impulsionada pelo


neoliberalismo e pela privatização da telefonia ao longo das últimas décadas. Neste contexto, a
gestão adotou diversas estratégias de controle social, incluindo o uso de tecnologias para monitorar
e limitar a criatividade dos trabalhadores. Essas práticas, juntamente com mecanismos de estímulo
à intensificação do trabalho, resultaram em condições precárias, salários baixos e contratos flexíveis,
muitas vezes recorrendo à terceirização. A falta de normatização das tecnologias de controle social
acentua ainda mais a exploração no setor, exacerbada pela desregulamentação e flexibilização das
leis trabalhistas. Essas reformas enfraqueceram os sindicatos, que enfrentam desafios significativos
na negociação de acordos coletivos que garantam condições de trabalho justas. Apesar das tentativas
de ajustes salariais, os acordos frequentemente não abordam adequadamente a intensificação do
trabalho ou oferecem benefícios suficientes.

A pesquisa destaca a necessidade de uma compreensão mais profunda da exploração no


telemarketing e de uma ação coletiva para fortalecer os sindicatos e promover mudanças substanciais
nas condições laborais. Reconhecer a resistência dos trabalhadores e fomentar a solidariedade de
classe são passos cruciais para construir um mundo do trabalho mais justo e igualitário.

285
REFERÊNCIAS

ANATEL. Relatório Anual de Gestão da Anatel. ANATEL, Brasília-DF, 2019.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª


Ed. São Paulo. Boitempo Editorial, 2009.

________. O privilégio da Servidão: O novo proletariado de serviços na era digital. 1ª Ed. São
Paulo. Boitempo, 2020.

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. Programa de Pós-


Graduação em Sociologia. Coleção Mundo do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2012.

________. Para onde vai o precariado brasileiro? Sindicalismo e hegemonia no Brasil


contemporâneo. Revista Perseu, Nº 10, Ano 7, 2013.

________.Precariado e sindicalismo no Brasil contemporâneo: Um olhar a partir da indústria do


Call Centers. Revista Crítica de Ciências Sociais. Nº 103, Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra, Coimbra, 2014a.

________. Precariado e sindicalismo no Sul global. Revista Outubro, n.22, 2º semestre de 2014b.

BRASIL. Presidência da República. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Imprensa


Nacional. Plano aprovado pela Câmara da Reforma do Estado da Presidência da República. Brasília-
DF 1995.

________.Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). Lei nº 6.321, de 14 de abril de 1976 e


regulamentado pelo Decreto nº 5, de 14 de janeiro de 1991.

________. Presidência da República. Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Lei n. 5.452, de 1º de
maio de 1943.

________. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil. promulgada


em 5 de outubro de 1988.

DIEESE. O emprego no setor de telecomunicações 10 anos após a privatização. Estudos e


Pesquisas. Nº 46. São Paulo-SP. DIEESE: 2009. <Disponível em: https://www.dieese.org.br/
estudosepesquisas/2009/estPesq46PrivatizacaoTelecomunicacoes.pdf>.

________. Anuário do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda 2016: Remuneração: livro
6./ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. DIEESE, São Paulo: 2017.

________. Salário Mínimo: pela manutenção da valorização!. Departamento Intersindical de


Estatística e Estudos Socioeconômicos. DIEESE, São Paulo: 2020a.

FILGUEIRAS, Vitor Araújo e CAVALCANTE, Silvio Machado. Terceirização: Debate Conceitual e


Conjuntura Política. Revista da ABET. V. 14, Nº. 1, João Pessoa: Jan/Jun de 2015.

286
GALVÃO, CASTRO, KREIN, TEIXEIRA. Andréia, Bárbara , José Dari , Marilane Oliveira. Reforma
Trabalhista: precarização do trabalho e os desafios para o sindicalismo. Revista Caderno CRH.
Vol.32, Nº.86. Salvador – BA, 2019.

HARVEY, David. O enigma do Capital. Editora Boitempo. São Paulo: 2011.

________. Neoliberalismo: História e implicações. Edição Loyola. São Paulo: 2014.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 4º Semestre de 2016.

KREIN, José Dari. Os desmonte dos direitos, as novas configurações do trabalho e o esvaziamento
da ação coletiva. Revista Tempo Social.

MOCELIN e SILVA. Daniel Gustavo, Luís Fernando Santos Corrêa da. O telemarketing e o perfil sócio-
ocupacional dos empregados em Call Centers. Revista Caderno CRH. V. 21, Nº.53, 2008.

NOGUEIRA, Claudia Maria França Mazzei. O trabalho duplicado: A divisão sexual no trabalho e na
reprodução: um estudo das trabalhadoras do telemarketing. Expressão Popular. 2 Ed. São Paulo:
2011.

ROSENFIELD, Cinara. Construção da identidade no trabalho em Call Centers: a identidade provisória.


XXVI Congreso de la Asociación Latinoamericana de Sociología. Asociación Latinoamericana de
Sociología. Universidad de Guadalajara, México, 2008.

VENCO. Selma Borghi. Tempos moderníssimos nas engrenagens do telemarketing. Tese de


doutorado em educação. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Campinas, SP: 2006a.

________. Centrais de atendimento: a fábrica do século XIX nos serviços do século XXI. Rev. bras.
saúde ocup. [online]. 2006, vol.31, n.114, pp.07-18. ISSN 0303- 7657São Paulo-SP: 2006b.

287
A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO:
o “modus operandi” da empresa Uber no cenário amazônico

Renato Soares de Aquino

RESUMO

Este artigo parte da reflexão teórica da dissertação de mestrado apresentada


pelo autor ao – PPGPS/UNB, intitulada “Expressões e tendências do trabalho
uberizado: uma análise do motorista de aplicativo da UBER a partir da
realidade de Belém-PA”. Nesse sentido, a análise será a partir da empresa
Uber, seus motoristas e sua forma de operar, considerando a realidade de
uma cidade amazônica. Embora a discussão do tema faça referência a uma
empresa, a qual conquistou visibilidade, poder e crescimento nos últimos
anos, não particulariza a empresa Uber. Se utiliza esta multinacional como
um modo de elucidar as transformações contemporâneas no mundo do
trabalho, bem como expressar uma tendência que perpassa esse universo, o
qual, de forma global, vêm se expandindo por diversos outros setores. Logo,
é a partir dessa reflexão que se busca entender o processo de Uberização
do trabalho, o qual se caracteriza como uma nova forma de controle e
organização do trabalho no capitalismo contemporâneo.

Palavras-chave: Uberização. Trabalhadores Uberizados. Amazônia

1. INTRODUÇÃO

Se faz necessário destacar que o termo “uberização” é utilizado nessa discussão como
sinônimo de precarização do trabalho e como mais uma estratégia do capital para sua expansão e
aquisição de mais-valia, sendo considerado o movimento do capital bem como as transformações
provocadas por ele no mundo do trabalho. Logo, a uberização do trabalho pode ser definida pelo
tripé terceirização, informalidade e flexibilidade, a qual, adota processos de subcontratação,
incentiva a emergência de pequenos negócios com o culto ao empreendedorismo e à produção em
massa de pessoas nano-empreendedoras, “[...]uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-
de-si-mesmo[...]” (ANTUNES, 2018, p. 34).

A saber, segundo os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), há


aproximadamente 1,4 milhão de trabalhadores(as) inseridos(as) nos setores de transporte de
passageiros(as) e de mercadorias no Brasil. Mediados pela chamada Gig Economy que, de forma
breve, pode-se enfatizar sua representação sobre as relações de trabalho entre trabalhadores(as)
e empresas, as quais contratam para realizar funções pontuais e sem vínculo empregatício,
funcionando por aplicativos na maior parte do tempo. Por meio de um estudo do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundamentado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia

288
e Estatística (IBGE), na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) e
na PNAD Covid-19, pode-se observar que até 31% do total estimado de 4,4 milhões de pessoas
alocadas no setor de transporte, armazenagem e correios no Brasil estão inseridos na chamada Gig
Economy (IPEA, 2021)1.

Estudiosos e pesquisadores como Marcio Pochmann (2016), Tom Slee (2017), Ricardo
Antunes (2020), Ludmila Costhek Abílio (2020) e tantos outros, mencionam que a uberização/Uber
convergiu para um ponto de análise das transformações contemporâneas do mundo do trabalho
tendo em vista a nova fase de autonomização dos contratos de trabalho.

O capitalismo tende a se refuncionalizar, seja na busca de lucro, seja na busca de superar


crises, almejando sempre a maior exploração da classe trabalhadora, objetivando sua tão famigerada
mais-valia. Particularmente, nas quatro últimas décadas, o neoliberalismo e a restruturação
produtiva da era da acumulação flexível, ambos com forte poder destrutivo, provocam uma
verdadeira devastação na vida social, gerando o aumento exacerbado do desemprego, a enorme
precarização do trabalho e a crescente destruição ecossistêmica, na relação metabólica entre
homem e natureza, conduzida pela lógica societal voltada prioritariamente para a produção de
mercadorias, as quais destroem a vida social e o meio ambiente em escala global (ANTUNES, 2009).

Considerando a realidade de Belém do Pará, uma cidade amazônica recoberta por


particularidades geofísicas, culturais, econômicas, sociais e populacionais, a questão social e suas
expressões, como infere Sá e Nascimento (2019), são evidenciadas no contexto amazônico através
do processo de descolonização, formando um mercado de trabalho dependente de extrema
precariedade, o que acaba adquirindo características particulares do restante do país.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), baseado


nos dados do 4.º trimestre de 2019 e de 2021, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
Contínua (PNAD Contínua) trimestral, do IBGE, indica que a informalidade no Brasil nos anos de
2019 e 2021 atingiam respectivamente 33, 2 milhões e 33, 7 milhões de pessoas. No Pará, nesses
referidos anos, os índices chegaram a 2,1 milhões, no ano de 2019, e 2,1 milhões, no ano de 2021,
alcançando um dos maiores índices do país. Sobre as taxas de desocupação, percebemos que em
2019 e 2020 foram atingidas as porcentagens de 11,1% no país, enquanto que a região norte nos
mesmos anos atingiu 9,3% e 11,0%, estando atualmente com 11,1%2. Fica evidente que, mesmo
com as riquezas naturais e minerais da região norte, suas taxas ainda são altas se comparadas aos
índices do restante do Brasil.

Outrossim, de acordo com o Relatório de Pesquisa do IPEA (2015), ao analisar a cidade de


Belém, foi possível verificar que a capital paraense possui uma grande concentração populacional
em relação a outras localidades da região metropolitana, além de que esta é a cidade que apresenta
a maior implantação de serviços e de empregos, principalmente no setor terciário da economia.

Só esses dados já seriam suficientes para aguçar o interesse em estudar o processo de


uberização em uma cidade amazônica, porém, além deles é necessário considerar que o contexto

1 Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/210714_nota_trabalho_


remoto.pdf>. Acesso em 07 de nov. 2023.
2 Disponível em: <https://www.dieese.org.br/infografico/2022/1demaio.html?fbclid=IwAR3nq9xHVudhHF-
5gEk5zuCTMF61aEbwPf-KN1yAy5_uAg8u0KTxDj6Uzfp8>. Acesso em: 18 de jan. 2024.

289
econômico e social do Pará foi, e continua sendo atrelado à introdução da Amazônia na dinâmica
do capital, reverberando de forma direta em seus 144 municípios, dos quais se destaca o município
de Belém, que continua sendo caracterizado pela desigualdade, informalidade, desemprego e
precárias relações de trabalho. A partir dessa realidade, considera-se relevante discutir a uberização,
através de uma das empresas que mais vem ganhando destaque nesse setor, a empresa Uber.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A empresa Uber e o processo de Uberização do trabalho

Acerca da empresa Uber, se caracteriza como uma empresa multinacional, intitulada Uber
Technologies Inc. surge nos Estados Unidos da América (EUA), na cidade de São Francisco, no ano
de 2010. Atua na promoção de atividades de transporte urbano, possibilitando que usuários/
passageiros solicitem veículos para sua locomoção a partir do acesso ao aplicativo da empresa para
smartphones, ao qual, funciona em qualquer área com acesso à internet.

A empresa pode ser entendida nos termos de Abílio, Amorim e Grohmn (2021), como uma
empresa que opera por meio de plataformas digitais, porém a sua análise vai muito além, perpassa
o capital com pretéritas e atuais formas de exploração. Sobre essas plataformas digitais, se observa
que hoje se caracterizam como uma das fontes mundiais de centralização de capitais e dispersão
controlada do trabalho, estimulam ainda mais novas e massacrantes formas de terceirização e de
transferência de riscos e custos, possuem um papel importante na consolidação da condição de
trabalhadores como trabalhadores just-in-time e operam por meios técnico-políticos possibilitando
novas relações entre informação e informalidade

Mediante a essa breve elucidação, é importante enfatizar que a análise realizada se dá a partir
do motorista da Uber como uma forma tipicamente de produção, ou seja, como um trabalhador
inserido no capital e consequentemente produtor de mais-valia. Logo, para atuarem na Uber os
motoristas são totalmente responsáveis pelos meios de produção. Nas palavras de Cavalcante e
Filgueiras (2020) a empresa não precisa ter a propriedade legal dos meios de produção porque já
tem a posse efetiva.

Além disso, essa empresa de transporte, a qual não se classifica desse modo, mas sim como
uma empresa de tecnologia, utiliza aos seus motoristas o termo motorista parceiro e vendem o
ideário de trabalhador autônomo, microempreendedor.

É imprescindível o debate acerca da empresa Uber, pois de acordo com Pochmann (2016,
p.18), a Uber se transformou em um ponto principal para analisar as transformações contemporâneas
do mundo do trabalho, é apenas a “ponta do iceberg”. Segundo o autor a uberização “é uma nova
fase, que é praticamente a autonomização dos contratos de trabalho. É o trabalhador negociando
individualmente com o empregador a sua remuneração, seu tempo de trabalho” [...].

Em consonância com o exposto acima, Abílio (2017) ressalta que esta empresa conseguiu
pôr em evidencia um novo passo na subsunção real do trabalho, que permeia o mercado de
trabalho global, conseguindo envolver milhares de trabalhadores ao redor do mundo, além de ter
a possibilidade de expandir-se pelas relações de trabalho nos mais diferentes setores.

290
A organização e remuneração da força de trabalho pela empresa Uber estão bem distantes
das normas contidas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e consequentemente da
regularidade do assalariamento formal e dos direitos sociais. Esta empresa evidenciou algumas
tendências contemporâneas mundiais referente ao mercado de trabalho, como exemplo, a
“tentativa” de transformar o trabalhador em microempreendedor, o qual no Brasil esse motorista
conseguiu o direito de se registrar como Microempreendedor Individual (MEI) , sendo uma de suas
ações mais nefastas, pois o mito do empreendedorismo permeado pelo regime da acumulação
flexível, representa uma ideologia que contribui para o fortalecimento e aprofundamento dos
valores baseados no mérito e no ganho individual.

Dessa forma, Antunes (2019), atenta para a falsa ideologia desse “novo trabalho”, enfatiza
que estamos vivenciando uma “era de precarização estrutural do trabalho”. É partindo deste
cenário que este modo de trabalho se populariza, sob a máscara da liberdade, de não pertencer
ou dar satisfações à um determinado patrão, vendendo a ideia de complementar a renda e entre
outros, fetichizando suas relações aos seus “parceiros”, a legislação e a sociedade.

Mediante ao exposto é notável o quanto essa falaciosa relação de trabalho acaba sendo
atrativa à classe trabalhadora, principalmente quando estão inseridos em uma realidade pouco
favorável, como é o caso do cenário de Belém do Pará, complexo e possuindo expressivos números
ao se tratar de desemprego, informalidade, números populacionais e entre outros. De acordo
com o IBGE (2010) e seu censo Agro (2017)3, a cidade está na 11º colocação das cidades mais
populosas do país, com uma estimativa de 1.506.420 de habitantes, além disso, através de uma
pesquisa realizada em cooperação técnica entre a Secretaria Municipal de Economia de Belém e
o DIEESE, pode ser percebido, no 1.º trimestre de 2020, mais de 100 mil pessoas desempregadas,
caracterizando-a como a segunda cidade capital na região Norte com maior número de desemprego.

É imperioso destacar que diante desses números alarmantes de desemprego, a classe


trabalhadora procura mecanismos e estratégias para sobreviver, a informalidade é um exemplo.
Desse modo, um modelo capitalista neoliberal que traz marcas estruturantes do mercado de
trabalho brasileiro, com características precárias e degradantes, traz consigo a informalidade, a
adesão de contratos de trabalho sem mínimos garantidos e além de trabalhos formais com baixas
remunerações em suas entranhas.

Harvey (2016) menciona que a informalidade definirá um padrão de vida que acaba sendo
interessante para o capital, afinal, ela coloca o ser humano em uma situação desfavorável em
relação ao custo de vida, em outras palavras, é uma relação de extrema vantagem para o capital,
pois além de auxiliar o seu exército industrial de reserva, ainda faz com que trabalhadores(as)
estejam disponíveis para os mais diversos tipos de serviços, submetendo-se a situações degradantes
e precárias para sua sobrevivência. Logo, é visto que o desemprego e a informalidade que acabam
se atrelando ao cenário nacional, são uma realidade dessa região, fazendo reverberar em seus
habitantes formas ainda mais precárias de trabalho, a exemplo da uberização.

3 Disponível em: https://censoagro2017.ibge.gov.br/2013-agencia-de-noticias/releases/28668-ibge-divulga-


-estimativa-da-populacao-dos-municipios-para2020.html#:~:text=O%20munic%C3%ADpio%20de%20S%C3%A3o%20
Paulo,(2%2C88%20milh%C3%B5es). Acesso em: 12 de jan 2024.

291
3. CONCLUSÃO

A uberização do trabalho intensifica essas características estruturais do nosso mercado.


Trabalho uberizado significa mais informalidade, mais flexibilidade, e mais precarização. Além
disso, hoje em uma realidade de redução de postos de trabalhos cada vez mais latente, que
na maioria das vezes não garantem uma remuneração satisfatória ou condições adequadas, a
venda da força de trabalho para aplicativos se torna uma opção, assim como resultado do cenário
socioeconômico que condiciona essas opções. Principalmente quando esta é vendida a partir da
fantasia neoliberal que disfarça e aliena a cada ser humano.

Salama (1995, p. 35) já afirmava que “O futuro do capitalismo pode ser um capitalismo
selvagem (mais selvagem ainda que o que conhecemos na atualidade)”. É o que vivemos hoje, esse
modo de produção criou o “trabalhador ideal”, aquele que mais conseguir anular sua condição
humana enquanto trabalha: que não for tantas vezes ao banheiro, não adoecer, não conversar
com os colegas, não manifestar queixas, não faltar ao trabalho.

Vivenciamos a erosão do trabalho contratado e formal, o que faz ser notório o quanto
esta modalidade/organização de trabalho, acentua o esvaziamento da vida humana, a rebaixando
como mero objeto, mediante seu modo de trabalho baseado em longas e intensas jornadas, os
quais são excluídos de grande parte dos direitos trabalhistas, sociais e fundamentais.

A subordinação desse trabalhador acaba se dando por meio da implementação do


gerenciamento algorítmico, algoritmo este que o controla em todas as suas dimensões e de forma
fetichizada, é por ele que entregadores, motoristas e tantos outros trabalhadores desse segmento
são instruídos a que tarefas deverão realizar, bem como realiza um acompanhamento em tempo
real desse trabalhador e suas atividades.

Partindo dessa análise, se observa que um dos elementos centrais para o surgimento e
desenvolvimento da sociedade capitalista, descrito por Marx, “a constituição de trabalhadores
livres como pássaros” (Marx, 2015, p. 836), ressurge, agora não mais com o objetivo de afincar
o capitalismo, mas sim, como uma forma de exploração do trabalho, forma essa contínua, a qual
trabalhadores “livres” então mais do que nunca amarrado nas entranhas do capital.

É partindo deste cenário que a Uber e tantas outras empresas desse segmento se
popularizam, sob a máscara da liberdade, de não pertencer ou dar satisfações à um determinado
patrão, vendendo a ideia de complementar a renda e entre outros, fetichizando suas relações aos
seus “parceiros”, a legislação e a sociedade como um todo. Segundo Oliveira (2013), “parece coisa
de feitiçaria, e é o fetiche em sua máxima expressão.” Este processo acaba tendo uma profunda
relação entre moderno e precário.

REFERÊNCIAS
ABILIO. Ludmila Costhek. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa palavra. 19 fev.
2017, 2017. Disponível em: http://passapalavra.info/2017/02/110685. Acesso em: 20 abri. 2024.

______.; AMORIM, Henrique José Domiciano.; GROHMANN, Rafael. Uberização e plataformização


do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, [S. l.], v. 23, n. 57, p. 26–56, 2021.

292
Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/sociologias/article/view/116484. Acesso em: 10
mai. 2024.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2ª


ed. São Paulo: Boitempo, 2009.

______. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo,
2018.

______. Indústria 4.0: empresas plataformas, consentimento e resistência. In: Antunes, Ricardo
(Org). 1°e - São Paulo: Boitempo, 2020.

CAVALCANTE, Sávio.; FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Um novo adeus à classe trabalhadora? In: Antunes,
Ricardo (Org). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. 1°ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

DIEESE, Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Infográfico. São


Paulo: 01de maio de 2022. Disponível em: https://www.dieese.org.br/infografico/2022/1demaio.ht
ml?fbclid=IwAR3nq9xHVudhHF5gEk5zuCTMF61aEbwPf-KN1yAy5_uAg8u0KTxDj6Uzfp8. Acesso em:
05 de abr. 2023.

HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Dados da Área Territorial Brasileira, Consulta
por Município - Resultados. Rio de Janeiro: IBGE, 2010d. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/
home/geociencias/areaterritorial/area.php?nome=%>. Acesso em: 14 mar. 2022.

______. Pesquisa nacional por amostra de domicílios PNAD Contínua. Taxa de desocupação. Brasília:
IBGE, 2021. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/201-
agencia-de-noticias/releases/31731-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-13-7-e-taxa-de-
subutilizacao-e-de-28-0-no-trimestre-encerradoem-julho/. Acessado em: 28 mar.2022.

_______. Taxa de desemprego 1 trimestre de 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/


explica/desemprego.php. Acesso em: 1 jun. 2022.

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Carta de Conjuntura. Brasília: IPEA, N. 53, 4°
trimestre de 2021. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura. Acesso em: 15 mar. 2022.

______. Relatório de pesquisa caracterização e quadros de análise comparativa da governança


metropolitana no Brasil: arranjos institucionais de gestão metropolitana (componente 1). Rio de
Janeiro: IPEA, 2015. Disponível em: < https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5168/1/RP_
governanca-Belem.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2024.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro 1. 1ª ed. Revista. São Paulo: Boitempo,
2015.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista - O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.

293
POCHMANN, Marcio. A terceirização e a uberização do trabalho no Brasil. Blog da Boitempo, em 24
de agosto de 2016. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/08/24/a-terceirizacao-e-
a-uberizacao-dotrabalho-no-brasil//>. Acesso em: 25 set. 2020.

SÁ, Maria Elvira Rocha de.; NASCIMENTO, Nádia Socorro Fialho.; SILVA, Thais Sousa. Notas sobre
desenvolvimento e desigualdades sociais na Amazônia brasileira. In: 7º Encontro Internacional de
Política Social e 14º Encontro Nacional de Política Social, v. 1, n. 1, 2019, Vitória (ES). Anais Eletrônico
[...] Vitória (ES): periódicos UFES, 2019. 01-12. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/einps/
article/view/25337. Acesso em: 02 jun. 2022.

SALAMA, Pierre. A trama do neoliberalismo. In: SADER, Emir.; GENTILI, Pablo. (Orgs.). Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995.

SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.

UBER. Afinal, qual é a nota mínima exigida pela Uber? 2018. Disponível em: https://uberbra.com/
afinal-qual-e-a-nota-minima-exigida-pelauber/. Acesso em: 20 mai. 2020.

294
REFLEXÕES SOBRE OS IMPACTOS DA PRECARIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
PROFISSIONAL EM SERVIÇO SOCIAL

Suzi Mayara da Costa Freire

1. INTRODUÇÃO

A aproximação com o debate se expressa a partir do desenvolvimento do projeto de


pesquisa1 em curso sobre os projetos de formação profissional em Serviço Social. Busca-se refletir
sobre os impactos do processo de precarização da formação profissional em Serviço Social em
curso diante das medidas de flexibilização que tensionam os princípios e pressupostos formativos
conquistados na constituição e fortalecimento do Projeto Ético- Político do Serviço Social Brasileiro.

Destaca-se a relevância e atualidade do debate considerando as tendências atuais


do processo de precarização da formação como pauta de discussão e de pesquisa a partir das
contribuições desenvolvidas pelo Grupo Temático de Pesquisa (GTP) “Serviço Social: Fundamentos,
Formação e Trabalho Profissional” da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social
(ABEPSS), e das reivindicações na agenda das entidades representativas da categoria profissional
e de outros sujeitos coletivos que defendem a formação profissional e o trabalho de assistentes
sociais com qualidade.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A realização recente do 16º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS) “40 anos da
‘Virada’ do Serviço Social” em 2019 significou um marco para a profissão na atual quadra histórica.
Naquele momento, assistentes sociais de todos os estados brasileiros reuniram-se numa conjuntura
extremamente adversa e refletiram sobre pistas analíticas importantes para o futuro diante de
análises de conjuntura sobre os impactos econômicos, sociais e políticos para a profissão e para as
condições de vida e trabalho da classe trabalhadora mediante as investidas do projeto neoliberal,
conservador e de extrema direita no contexto de mundialização do capital.

Sabemos que após os 40 anos da virada, já acumulávamos subsídios reflexivos para disputar
a hegemonia do Projeto Ético-Político e do Projeto de Formação Profissional referenciado nas
Diretrizes Curriculares da ABEPSS. Por outro lado, ainda sem indícios dos desafios anunciados em
dezembro de 2019 e enfrentados no decorrer dos anos subsequentes no tocante a crise sanitária
e o cenário de pandemia de Covid-19, bem como os impactos de tais desafios para o processo de
flexibilização da formação profissional de novas gerações de assistentes sociais.

1 Projeto de pesquisa intitulado “Os Projetos de Formação Profissional em debate – uma análise das
tendências recentes para os programas de Pós-Graduação na área de Serviço Social” desenvolvido no processo de
doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPSPS/UnB).

295
No âmbito do Serviço Social, tais indagações estão relacionadas as possibilidades de
intervenções que possam ser críticas, criativas e propositivas, em detrimento dos desafios
historicamente presentes na profissão como o fatalismo, messianismo, tecnicismo, empirismo,
pragmatismo, teoricismo e a tendência a padronização de procedimentos em caráter de manuais
etc. Isto porque adquirem escopo setores da categoria profissional que passam a endossar a atuação
do Serviço Social clínico, a atuação orientada pelo assistencialismo, pela lógica do mérito, de viés
terapêutico e/ou psicologizante como expressão do avanço do conservadorismo na profissão.
(GUERRA, 2019; MOTA, AMARAL, 2016).

Em linhas gerais, são processos que traduzem as disputas de projetos profissionais


vinculados aos projetos societários distintos. No bojo das disputas, assistentes sociais tendem a
desenvolver competências profissionais e atribuições privativas orientadas pelo Projeto Ético
Político, ou pela perspectiva conservadora nos moldes dos interesses capitalistas, ou ainda a partir
de propostas flexíveis e conciliatórias, que defendem a possibilidade de flexibilizar princípios e
valores da profissão, limitando a finalidade de suas reflexões e propostas as margens do capital.

Esse cenário nos indica uma questão complexa, pois tratar dos fundamentos da formação
crítica em Serviço Social significa tratar de elementos da história, da teoria e de método. Não na
perspectiva de uma tricotomia história/ teoria/ método, como alerta Guerra (2019). E sim, na
perspectiva dialética e da totalidade histórica conforme indicado nas Diretrizes Curriculares da
ABEPSS de 1996.

No contexto de precarização e flexibilização da formação profissional, as considerações


aqui apresentadas buscam endossar a relevância do estudo dos fundamentos da formação crítica
do Serviço Social, tendo como fio condutor de análise a lógica dos Núcleos de fundamentos
constitutivos da formação profissional, sendo o núcleo de fundamentos da vida social, o núcleo
de fundamentos da formação sócio-histórica brasileira e o núcleo de fundamentos do trabalho
profissional.

Tais núcleos constituem e estão constituídos pelos fundamentos do Serviço Social (ABEPSS/
CEDEPSS, 1996). Partimos do pressuposto que história, teoria e método devem constituir
pressupostos que perpassam todo o processo formativo. Portanto, propõe-se revisitar com
densidade e rigor o debate sobre o projeto de formação profissional nas suas dimensões históricas,
teóricas e metodológicas, situando o Serviço Social na história, no processo de reprodução das
relações sociais (MOTA; AMARAL, 2016; GUERRA et al., 2019).

A referida interlocução possibilita apreensões de como se desenvolveu e se desenvolve


a incorporação pela profissão das referências, valores e princípios no contexto da sociedade
burguesa e de agravamento das expressões da Questão Social no contexto de desenvolvimento do
capitalismo (YAZBEK, 2019).

Ainda que o debate sobre os fundamentos no Serviço Social adquirem destaque com o
currículo de 1982 (GUERRA, 2019), considera-se que esse estudo exige aproximações sucessivas
com a natureza da profissão na sua gênese, os determinantes para sua criação e institucionalização
no contexto da industrialização, a constituição das principais matrizes do pensamento social e os
referenciais orientadores e as tendências contemporâneas, que serão necessárias para apreender
as transformações e revisões críticas construídas coletivamente no século XX e XXI (MOTA, AMARAL,
2016; YAZBEK, 2019).

296
Pensando nas suas inflexões atuais, desafios históricos permanecem no decorrer da
formação sócio-histórica brasileira que constituíram as raízes profundas expressas nas amarras do
capitalismo dependente, no racismo estrutural, nas relações desiguais de gênero e seus impactos
para os processos de exploração e opressão da classe trabalhadora.

São tendências que perpassam a trajetória histórica da profissão, e adquirem novos


arranjos de forma associada a emergência de novos referenciais pós-modernos com repercussões
no desenvolvimento de competências profissionais no tempo presente (YAZBEK, 2019). E,
em contrapartida, na descaracterização das habilidades profissionais e esvaziamento teórico-
metodológico e político da dimensão formativa do projeto profissional.

O desenrolar dessa trajetória até a atualidade não se desenvolve de forma isenta


das contradições e tensões. É a partir do Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS),
reconhecido como o “Congresso da Virada” de 1979, que o Conjunto CFESS-CRESS passa a ser
disputado por setores de esquerda da profissão com a articulação política de assistentes sociais
que estavam construindo os sindicatos no movimento pela democratização das entidades. Nas
décadas sequentes, o movimento de maturação teórica e política tem impactos na conquista da
hegemonia do Projeto Ético-Político orientado pela vertente marxista e de intenção de ruptura com
o conservadorismo como “[...] referência teórico-metodológica e política que vem alimentando a
cultura profissional e o ideário da profissão [...] (MOTA, AMARAL, 2016, p. 29).

Essa orientação teórica e política passa a respaldar e incidir na organização da profissão e


nos seus fundamentos legais expressos no avanço do Código de 1986 e posteriormente na revisão
em 1993. Nessa esteira, reitera-se em 1996 a aprovação das Diretrizes Curriculares da ABEPSS. Na
contramão da lógica de treinamento difundida pelo Projeto Neoliberal, a concepção de formação
indicada nas Diretrizes imprime à formação uma nova lógica curricular. (ABEPSS/ CEDEPSS, 1996).

Assim, a concepção de formação profissional nesse documento se constitui de uma totalidade


de conhecimentos que estão expressos nos Núcleo de fundamentos teórico metodológicos da
vida social, da particularidade da formação sócio-histórica da sociedade brasileira, e do trabalho
profissional. Contudo, os princípios e pressupostos do Projeto de Formação Profissional enfrentam
desafios estruturais para a sua materialização no contexto de contrarreformas das políticas sociais,
mercantilização dos direitos sociais e processos de reestruturação como respostas a crise estrutural
do capital.

Na política de educação superior no Brasil, acompanhamos a expansão dos cursos e a


expansão do acesso de estudantes da classe trabalhadora. Em contrapartida, a contrarreforma
da política de educação associada ao seu processo de mercantilização impactou na qualidade do
ensino superior público, especialmente diante de projetos que rechaçam formações com base no
pensamento crítico, como Escola sem Partido, o rebaixamento das ciências humanas e sociais, e
mais recentemente, o Programa Future-se (LEHER, 2019).

Nesse terreno, é ímpar destacar o processo de expansão e interiorização dos ensinos


privados e na modalidade de ensino à distância, acompanhando do esvaziamento qualitativo da
fundamentação dos cursos, reforço a lógica do empreendedorismo e da flexibilização de conteúdo,
impactando na desqualificação profissional e na frágil apropriação dos fundamentos da profissão
no cotidiano profissional (MOTA, AMARAL, 2016).

297
O desmonte das políticas sociais vem acompanhado de incidências, refrações e
consequências para a formação, para as condições éticas, técnicas de trabalho, para a produção de
conhecimento, para as apreensões das competências profissionais e atribuições privativas e para
a organização política de assistentes sociais (MOTA, AMARAL, 2016), e mais recentemente com o
redimensionamento das condições de trabalho de assistentes sociais no contexto pandêmico com
desdobramentos no pós-pandemia.

Na mesma direção, a lógica do marketing social-empresarial e a sua migração para a esfera


pública segue acompanhada das requisições institucionais com propostas de atendimentos remotos
da população usuária nas instituições públicas e privadas. Acrescenta-se aqui a ampliação das
medidas de flexibilização de ensino, pesquisa e extensão mediadas por Tecnologias da Informação
e Comunicação (TICs) em ambientes virtuais de forma síncrona e assíncrona.

Dessa forma, disciplinas, componentes curriculares e demais atividades formativas passaram


a ser flexibilizadas no âmbito dos cursos de graduação em Serviço Social, cursos de pós-graduação.
Tal processo se expressa no âmbito dos critérios de “forma” como carga horária, créditos, período,
modalidade de oferta, plataformas virtuais etc., aliada aos critérios de “conteúdo”, como a definição
de temas, disciplinas, componentes curriculares, ementas, referências, propostas de ensino,
pesquisa e extensão, perspectivas teórico-metodológicas e compromisso ético-político.

Ainda que a adoção de tais medidas foram ampliadas no contexto de emergência em saúde
pública com um caráter emergencial e provisório, destaca-se a preocupação com os precedentes
para a flexibilização (leia-se precarização) e redução dos cursos presenciais, aliada a expansão do
uso das TICs e de cursos na modalidade EAD nas instituições públicas. Observa-se que até 2020 as
modalidades de ensino de forma híbrida e/ou remota nos cursos de Serviço Social estão presentes
de forma hegemônica nas instituições privadas. Com o advento da pandemia de Covid-19, os cursos
de Serviço Social das Universidades públicas passam a implementar as alternativas de flexibilização
em caráter emergencial (ABEPSS, 2022).

Assim, a atual quadra histórica inicia nos desafiando a revisitar e adensar a crítica ao projeto
de educação hegemônico, a mercantilização da educação superior e seu aligeiramento. Assim,
não há como considerar os impactos para a formação de forma descolada das transformações
na organização e gestão da produção e do trabalho no contexto da mundialização do capital.
Bem como, as consequências para os(as) trabalhadores(as) como a flexibilização das relações de
trabalho, e a intensificação do trabalho diante da diversidade de vínculos que incidem no trabalho
temporário, subcontratado, terceirizado e o desemprego estrutural (ANTUNES, 2020).

Ademais, as condições desiguais de acesso de estudantes aos meios necessários para a


oferta de componentes curriculares e a necessária democratização e fortalecimento da assistência
estudantil também precisam ser consideradas nessa equação que contempla não apenas o acesso,
mas a permanência e a continuidade da formação que prescinde investimento no ensino, na
pesquisa e extensão de forma substantiva e articulada.

O cenário desenhado a partir dos anos 1990, adquire contornos inéditos e inacreditáveis
nos desenrolar dos anos 2000 até o presente ano, com impactos dramáticos para a formação e para
o trabalho profissional, diante do fortalecimento de perspectivas ecléticas, neoconservadoras, pós-
modernas, e a dimensão sincrética do Serviço Social (MOTA, AMARAL, 2016).

298
O monitoramento da Graduação e Pós-graduação realizado pela ABEPSS (2022) reitera
os impactos do Ensino Remoto Emergencial (ERE) para o avanço da precarização da formação
profissional, elencando tanto desafios no acesso aos meios, tanto âmbito da qualidade da formação.

Umas das questões discutidas que chama a atenção refere-se ao acesso à educação
superior e a adoção de ambientes virtuais interativos, dinâmicos e coletivos como estratégias de
comunicação e linguagem, orientados pelo argumento de democratização do acesso e socialização
de conhecimentos. A intenção de retratar essa tendência não pode ser confundida com a negação
das contribuições da tecnologia.

Destaca-se a relevância do uso pedagógico das tecnologias diante das possíveis contribuições
acerca do aprendizado por meios dos fóruns virtuais, da possibilidade de encontros síncronos e
assíncronos, na interlocução entre profissionais e pesquisadores de diferentes locais, universidades
e demais instituições.

Além da possibilidade de articulação de eventos científicos de nível municipal, estadual,


regional, nacional e internacional, com alcance importante da participação de público dos diferentes
locais e que contemplam a apresentação e socialização de pesquisas e experiencias profissionais. A
edição do XVII CBAS com o tema “Congresso da Virada – um legado para o Serviço Social” realizado
em 2022 é um importante exemplo.

Considera-se igualmente fértil o investimento na tecnologia como recurso político-


pedagógico para a política de educação, atuando de forma complementar aos recursos adotados
no processo de aprendizagem na modalidade presencial. A própria digitalização de livros e
obras publicadas para viabilizar o movimento de apropriação de pesquisas já produzidas para
construir/ alimentar um banco de dados digital das tecnologias contribui significativamente para
o espraiamento de produções e interlocução de profissionais, estudantes, pesquisadores(as),
Escolas de Serviço Social, entidades e seus respectivos grupos temáticos de estudos e pesquisas.
E no próprio fomento a criação de mecanismos voltados para o fortalecimento da interiorização e
internacionalização de atividades formativas.

O que buscou-se alertar é sobre a finalidade e direção das ações desempenhadas no espaço
das mídias sociais, pois o uso das referidas plataformas não se traduz necessariamente na qualidade
teórico-metodológica no processo de ensino-aprendizagem e nem determina a direção social de
tais ações, sendo necessário problematizar a apropriação dessas ferramentas e seus respectivos
conteúdos de forma político-pedagógica e popular. Especialmente em países tão desiguais como o
Brasil que convivem com um padrão dependente educacional (DAHMER, 2018).

As consequências de tais desafios se manifestam na ênfase nos procedimentos burocrático-


administrativos, ações de distração dos sujeitos, intervenções improvisadas, no aligeiramento e
superficialização da intervenção, na fragilidade da articulação das dimensões teórico-metodológica,
ético-política e técnico-operativa na perspectiva da instrumentalidade. (GUERRA, 2019).

Assim, preocupa-nos a “[...] nova geração de assistentes sociais que se afasta, cada vez
mais, das diretrizes curriculares da profissão [...]” (MOTA, AMARAL, 2016, p. 44). Da mesma forma,
os(as)profissionais enfrentam tais desafios juntamente a redução de estratégias de formação à
oferta de capacitação institucional que se expressa de maneira insuficiente no âmbito da forma

299
e do conteúdo, desqualificada, despolitizada e voltada exclusivamente para a dimensão técnica
diante das exigências e necessidades reais de qualificação (CFESS, 2012).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ressalta-se que as categorias história, teoria e método na perspectiva dialética e da totalidade


histórica constituem em pressupostos do processo formativo. Assim, é a partir da referida lógica
nuclear dos fundamentos que se torna possível analisar os impactos do processo de flexibilização
da formação profissional e das estratégias de enfrentamento das referidas tensões.

Essa concepção de formação profissional se consubstancia igualmente nas contribuições


recentes de referências produzidas no âmbito da ABEPSS como o GTP de Fundamentos, Formação
e Trabalho Profissional, nas publicações da ABEPSS, do Conjunto CFESS-CRESS e da literatura
consolidada do Serviço Social Brasileiro.

Na direção das tendências elencadas, o tempo presente reitera a importância de adensar


o debate sobre os fundamentos do Serviço Social e suas contribuições para a defesa do projeto de
formação profissional crítica a partir da perspectiva marxista.

REFERÊNCIAS

ABESS/CEDEPSS. Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social: com base no currículo mínimo
aprovado em Assembleia Geral extraordinária de 8 de novembro de 1996. In: Cadernos ABESS, nº
7. Rio de Janeiro: Cortez, 1996.

ABEPSS. Monitoramento Graduação e Pós-Graduação. A Formação em Serviço Social e o Serviço


Remoto Emergencial. Brasília, 2022.

ANTUNES, Ricardo (org). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Atribuições Privativas do/da Assistente Social em


questão. 1ª Edição Ampliada. Brasília, 2012.

DAHMER, Larissa. Expansão dos cursos públicos de Serviço Social entre os anos de 2003 e 2016:
desafios para a formação profissional. R. Katál., Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 189-199, jan./abr. 2018.

GUERRA, Yolanda. Consolidar avanços, superar limites e enfrentar desafios: os fundamentos de


uma formação profissional crítica. In: GUERRA, Yolanda. [et al]. Serviço Social e seus fundamentos:
conhecimento e crítica. 2ª ed. Campinas: Papel Social, 2019. ______. [et al]. Serviço Social e seus
fundamentos: conhecimento e crítica. 2ª ed. Campinas: Papel Social, 2019.

LEHER, R. Autoritarismo contra a universidade: o desafio de popularizar a defesa da educação


pública. São Paulo: Fundação Rosa de Luxemburgo, Expressão Popular, 2019.

300
MOTA, Ana Elizabete. AMARAL, Angela Santana do. Cenários, contradições e pelejas do serviço
scoial brasileiro / (org.). – São Paulo : Cortez, 2016.

YAZBEK, Maria C. Fundamentos históricos e teórico-metodológicos e as tendências contemporâneas


no Serviço Social. In: Serviço Social e seus fundamentos: conhecimento e crítica. 2ª ed. Campinas:
Papel Social, 2019.

301
REFLEXÕES ACERCA DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE
EM SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL:
uma análise sob a perspectiva dos gestores em saúde da SES-DF

Lanysbergue de Oliveira Gomes

RESUMO
A presente pesquisa objetiva analisar, sob o olhar dos(as) gestores(as) de
saúde, os limites e as possibilidades da Política Nacional de Educação
Permanente em Saúde (PNEPS), voltada aos(as) trabalhadores(as) da
Atenção Primária no Distrito Federal, considerando o que está previsto na
Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) e o Plano de
Educação Permanente em Saúde do Distrito Federal (PEPS-DF). Seus objetivos
específicos são: 1) Conhecer como está sendo implementada a Política de
Educação Permanente em Saúde no âmbito da Atenção Primária do Distrito
Federal; 2) Analisar como a PNEPS incide na formação de trabalhadores(as)
da Atenção Primária; 3) Identificar os limites e as possibilidades para a
efetivação da PNEPS na Atenção Primária no Distrito Federal. Trata-se de
uma pesquisa cuja abordagem é eminentemente qualitativa, na qual, para o
alcance da finalidade proposta, contou com pesquisas do tipo bibliográfica,
documental e de campo. A pesquisa bibliográfica foi realizada a partir das
seguintes categorias teóricas de análise: educação permanente em saúde,
trabalho e educação, atenção primária. A pesquisa documental, por sua
vez, se debruçou sob legislações, normativas, publicações institucionais,
bases de dados e de indicadores epidemiológicos, em nível nacional e local,
acerca da EPS e da saúde pública em geral. O campo empírico em que se
deu a coleta de dados foram os sete Núcleos de Educação Permanente
em Saúde (NEPS) da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Ao todo, o
Distrito Federal possui sete Regiões de Saúde (Centro-Sul, Leste, Sudoeste,
Central, Oeste, Sul e Norte), definidas a partir da territorialização da gestão
da saúde e organizadas, institucionalmente, em Superintendências. Os
resultados apontaram, dentre outros, para a existência de certa dificuldade,
por parte dos(as) gestores(as), em fornecer uma discussão substancial
sobre o tema da Educação Permanente, o que pode sugerir uma lacuna no
entendimento ou na capacidade de articular os conceitos sobre educação
permanente, educação continuada, educação formal e seus objetivos.
Ademais, a necessidade de superar questões estruturais, a falta de recursos
humanos, o baixo conhecimento sobre a Educação Permanente e, por fim, a
não incorporação/adoção pela SES dos princípios preconizados pela PNEPS
para a formação dos seus quadros e, consequentemente, o fortalecimento
do sistema de saúde, se colocam como fortes indicadores das configurações
atuais com que a saúde no Distrito Federal tem lidado com a temática da
educação permanente.
Palavras-chave: Educação Permanente; Política de Saúde; Trabalho;
Educação; Atenção Primária.

302
1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa objetiva analisar, sob o olhar dos(as) gestores(as), os limites e as


possibilidades da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), voltada aos(as)
trabalhadores(as) da Atenção Primária no Distrito Federal, considerando o que está previsto na
Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) e o Plano de Educação Permanente
em Saúde do Distrito Federal (PEPS-DF).  

Em 1986, a 8ª Conferência Nacional de Saúde já respirava os ares da marcha redemocratizadora,


“um momento político que culminou na aprovação das diretrizes e dos princípios norteadores do
Sistema Único de Saúde (SUS): universalização do acesso com equidade, integralidade da atenção,
unificação institucional do sistema, descentralização, regionalização, hierarquização da rede de
serviços e participação da comunidade” (Brasil, 2008, p. 3). O SUS é, portanto, uma política social
resultante das lutas históricas das classes trabalhadoras pelo acesso à saúde como direito universal.

Decorridas mais de três décadas desde a sua criação, o SUS atende mais de 190 milhões
de pessoas, sendo que 80% delas dependem, exclusivamente, dos serviços de saúde pelo mesmo
(Brasil, 2021). Esses serviços são regulamentados pela Lei n° 8.080/1990, que agrupa todas as ações
e serviços de saúde dispensados pelo poder público e pela iniciativa privada (Borges, 2021).

A Constituição Federal (CF), em seu artigo nº 196, reconhece “a saúde [como] direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1988). O texto constitucional atribui ao SUS, ainda,
dentre outras, a função de coordenar, planejar, estruturar e sistematizar o processo formativo na
área da saúde. Desta feita, apresenta-se como atribuição finalística do SUS, por meio de políticas
específicas definidas para tal, garantir a formação de qualidade para os(as) trabalhadores(as) da
saúde a partir de referências que objetivem a implementação da educação permanente em todos
os níveis formativos, “[...] englobando conteúdos gerais e as especificidades locais, orientados pelos
princípios do SUS, da ética profissional, com ênfase na humanização das relações e do atendimento”
(Brasil, 2003, p. 129).  

Nesse sentido, a educação permanente se configura, portanto, como importante dispositivo


para as equipes multiprofissionais na área da saúde, de modo a qualificar e balizar sua atuação,
a partir de referenciais para a formação continuada dos trabalhadores da saúde. Para além de
parâmetros didático-pedagógicos, a educação permanente1 posiciona-se a partir de uma orientação
político-pedagógica (Ceccim; Ferla, 2008). Os debates em torno desta temática ganharam espaço,
sobretudo, a partir da XII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 2003.  

A questão que norteia a presente pesquisa tem como base a seguinte problematização:
sob a ótica dos(as) gestores(as), quais são os limites e as possibilidades da Política de Educação
Permanente em Saúde (PEPS) no que tange à sua implementação, à formação e à qualificação de
trabalhadores(as) da atenção primária no Distrito Federal?

303
2. A ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE E A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PERMANENTE NO
ÂMBITO DO DISTRITO FEDERAL

No cenário da saúde pública, a Atenção Primária à Saúde (APS) e a Política de Educação


Permanente em Saúde (PEP), cujos pressupostos normativos sugerem o desenvolvimento de
práticas de saúde reflexivas / problematizadoras, se apresentam como elementos essenciais para
a concretização de referenciais de saúde centrados nos sujeitos, orientados para a promoção da
equidade, integralidade, interdisciplinaridade e participação popular.

A Atenção Primária em Saúde, porta de entrada do sistema de saúde, tem sido reconhecida
como um pilar fundamental na promoção da saúde e prevenção de doenças em âmbito público
e coletivo (Paiva, 2021). Já a Política de Educação Permanente apresenta-se como abordagem
educativa que visa a formação e o aprimoramento das habilidades dos profissionais da saúde
(Lemos, 2016). No entanto, é necessário compreender a inter-relação entre essas duas esferas e
explorar estratégias eficazes para integrá-las de forma coesa, visando fortalecer o sistema de saúde
e garantir um modelo de atenção à saúde integral, humanizado que contemple a promoção, a
prevenção e a recuperação da saúde.

O sistema público de saúde é gerido pela Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal
(SES-DF), organizado em níveis de complexidade crescente e encontra-se dividido em regiões de
saúde. As regiões, sete ao todo, comportam diversos pontos de atenção à saúde, responsáveis por
atendimentos ambulatoriais, de internação, urgência e emergência e serviço de apoio diagnóstico.
São 177 Unidades Básicas de Saúde e 15 hospitais gerais, 02 hospitais especializados, 11 unidades
de pronto atendimento, além de outras unidades de saúde, como policlínicas, SAMU e centros
diagnósticos.

Em meados dos anos 2000, reorganiza-se a estrutura administrativa do setor saúde no DF,
o PSF é assumido como estratégia prioritária para promoção da saúde, prevenção de doenças e
assistência médica básica (Alves, 2022). Essa mudança reflete um movimento em direção a um
modelo de atenção primária mais abrangente e centrado no paciente, que visa não apenas tratar
doenças, mas também promover a saúde e prevenir agravos (Paim, 2012).

O Plano Distrital de Saúde publicado em 2008, o Plano Distrital de Saúde publicado em


2012, para responder aos desafios de ordem política, estruturais, financeiros e organizacionais na
APS, propunham mudanças drásticas na organização da mesma a nível local. Desde então, a APS no
Distrito Federal tem passado por diversas transformações e expansões, buscando sempre ampliar
o acesso aos serviços de saúde, melhorar a qualidade do atendimento e promover a integralidade
do cuidado. Hoje, a Atenção Primária à Saúde desempenha um papel fundamental no sistema de
saúde do Distrito Federal, atendendo milhares de pessoas em suas unidades básicas de saúde e
contribuindo para a promoção da saúde e o bem-estar da população local.

2.1. A Política de Educação Permanente no SUS no Distrito Federal: contextualização his-


tórica e fundamentação legal.

No Distrito Federal, o Plano de Educação Permanente em Saúde (PEPS) estruturado em


conformidade com o estabelecido na PNEPS (GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL, 2019b), aponta

304
como um de seus principais desafios a necessidade de promover uma educação permanente aos
profissionais de saúde que tenha como base as particularidades das regiões de saúde e, assim, seja
capaz de viabilizar, de fato, mudanças no modelo de atenção, com atenção, sobretudo, nas redes
de atenção e na regionalização (GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL, 2019b).

No Distrito Federal, a gestão da saúde é organizada em regiões, definidas a partir da


territorialização, a saber: 1) Região Central, 2) Região Centro-Sul, 3) Região Leste, 4) Região Norte,
5) Região Oeste, 6) Região Sudoeste e 7) Região Sul. Ao todo, somam 177 Unidades Básicas de
Saúde no território das 33 regiões administrativas do DF1, devidamente distribuídas por cada
região: 09 na Região Central, 20 na Região Centro-Sul, 31 na Região Leste, 37 na Região Norte, 27
na Região Oeste, 32 na Região Sudoeste e 20 na Região Sul.

No DF, a operacionalização das ações educativas orientadas para o cotidiano dos


trabalhadores do SUS, tem ficado a cargo da Escola de Aperfeiçoamento do Sistema Único de
Saúde (EAPSUS) (CARVALHO e TEODORO, 2019). Segundo as autoras, a EAPSUS, a Escola Superior
de Ciências da Saúde (ESCS) e a Escola Técnica de Saúde de Brasília (ETESB) fazem parte de um
conjunto de escolas mantidas pela Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS),
cujo objetivo principal é planejar, articular e desenvolver ações pedagógicas alinhadas às diretrizes
da PNEPS, no que se refere à opção teórica e metodológica, priorizada pela Secretaria de Saúde do
Distrito Federal (SES/DF).

2.2. O que dizem os gestores em saúde da SES-DF sobre educação permanente

Sobre os limites e as possibilidades que existem atualmente para a atuação profissional no


âmbito da gestão na SES, os achados revelam uma série de elementos que refletem o contexto
complexo e dinâmico do sistema de saúde. Entre os limites, destacam-se questões estruturais,
como a burocracia administrativa, a falta de recursos financeiros, o quadro reduzido de servidores
e a sobrecarga de demandas.

Além disso, desafios relacionados à infraestrutura deficiente, à escassez de pessoal e às


limitações do cargo foram enunciados como fatores que impactam negativamente a condução das
ações de gestão. Tais aspectos recordam Antunes (2000), quando este discorre sobre as mutações
ocorridas no mundo do trabalho, e Machado (2011), quando trata das particularidades do trabalho
no âmbito do setor saúde.

A Educação Permanente apresenta-se como abordagem educativa que visa a formação e o


aprimoramento das habilidades dos profissionais da saúde (Lemos, 2016). Ela incorpora, em sua
prática, a reflexão crítica e propõe uma transformação no cotidiano, nas relações e nas práticas
profissionais. Para Ceccim (2005), a Educação Permanente em Saúde pode corresponder à Educação
em Serviço, à Educação Continuada e à Educação Formal. No contexto do capitalismo, a Educação

1 Regiões administrativas do Distrito Federal: Plano Piloto, Sudoeste/Octogonal, Cruzeiro e Candangolândia;


Lago Sul, Lago Norte, Park Way e Varjão; Guará, Núcleo Bandeirante, Riacho Fundo, Águas Claras, Arniqueira, Vicente
Pires, SIA e SCIA/Estrutural; Taguatinga, Samambaia, Sol Nascente/Pôr do Sol, Ceilândia e Brazlândia; Gama, Santa
Maria, Recanto das Emas e Riacho Fundo II; Paranoá, Itapoã, São Sebastião e Jardim Botânico; Sobradinho, Sobradinho
II, Fercal e Planaltina (DIPOS/CODEPLAN, 2022, p. 16).

305
Permanente no âmbito da Saúde objetiva superar contradições estruturantes que subordinam os
trabalhadores(as) às demandas do mercado e às condições precárias de trabalho.

Nas perspectivas apresentadas, pode-se verificar que os participantes da pesquisa


demonstraram dificuldade em fornecer uma discussão substancial sobre o tema da Educação
Permanente. Isso pode sugerir uma lacuna no entendimento ou na capacidade de articular os
conceitos sobre educação permanente, educação continuada, educação formal e seus objetivos. Tal
lacuna pode decorrer da falta de familiaridade com os princípios e práticas da Educação Permanente,
bem como da ausência de experiência prática na implementação desses conceitos. Além disso, pode
indicar uma necessidade de maior conscientização e formação sobre a importância da Educação
Permanente na atualização de habilidades e conhecimentos ao longo da vida profissional na área
da saúde.

Fora questionado aos(as) participantes se os(as) mesmo(as) tinham conhecimento sobre a


existência da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde ou acerca de algum plano ou
projeto de implementação da educação permanente para os(as) profissionais da saúde na Atenção
Primária do DF. Em seguida, perguntou-se como eram definidos os temas e as prioridades para a
educação permanente, além de como ocorriam os processos formativos de educação permanente
em saúde voltados para os(as) trabalhadores(as) da Atenção Primária na SES. As respostas
indicaram que os temas e as prioridades para a educação permanente são geralmente definidos
através da busca e colaboração com o Núcleo de Educação Permanente em Saúde (NEPS), instância
que se mobiliza, apesar das limitações outrora apresentadas, para fornecer direcionamento e
apoio na identificação das necessidades de formação dos profissionais de saúde. Ademais, os(as)
profissionais mencionaram que as questões relacionadas à educação permanente são apresentadas
e discutidas em encontros, comissões e ou reuniões específicas, onde são consideradas as demandas
identificadas no cotidiano das organizações e das instituições. Esses processos formativos geralmente
envolvem estratégias como capacitações, cursos, oficinas e grupos de estudo, que visam promover
a atualização de conhecimentos e habilidades dos profissionais da saúde, com foco na melhoria da
qualidade dos serviços oferecidos à população atendida pela Secretaria de Estado de Saúde (SES).

Por fim, mas não menos importante, foi questionado aos(as) participantes da pesquisa
em pauta sobre a existência de alguma política institucional de estímulo à formação dos(as)
trabalhadores(as) ou se eles(as) têm conhecimento acerca de algum tipo de incentivo e/ou
fomento que incentive os(as) trabalhadores(as) da SES-DF a participarem de iniciativas de
educação permanente. As respostas apontaram para um entendimento restrito e limitado quanto
à concepção do que venha a ser uma política institucional de educação permanente, reduzindo-
na a um aspecto que, em geral, integra o chamado plano de cargos, carreiras e salários, o qual se
configura como um dispositivo de gestão de recursos humanos no âmbito da administração pública
que define as funções dos(as) servidores(as) públicos(as), bem como a promoção e/ou progressão
funcional. Confundir e/ou reduzir a educação permanente à retribuição por titulação, por exemplo,
como visualizado nas falas dos(as) entrevistados(as), implica no esvaziamento de todo o potencial
formativo e crítico da mesma, que se vê, por fim e ao cabo, ora vista como ações isoladas e pontuais
no ambiente institucional, ora confundida com iniciativas de natureza diversa do que se concebe,
teórica e politicamente, como educação permanente em saúde.

306
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos dados coletados ressaltou a importância de compreender as experiências


e percepções dos gestores da EPS, visando aprimorar as práticas de saúde na Atenção Primária.
Os resultados apontaram para a necessidade de superar questões estruturais, a saber: o baixo
investimento observado no setor, a questões organizacionais, a escassez de recursos humanos, a
integração efetiva entre os entes administrativos e de tomada de decisão, o pouco conhecimento
sobre a Educação Permanente e por fim, a não incorporação/adoção pela SES dos princípios
preconizados na PNEPS para a formação dos seus quadros. Esses obstáculos refletem a necessidade
da adoção de estratégias capazes de estimular a participação e o engajamento dos trabalhadores(as)
neste processo de construção de conhecimento, tomada de decisão e aprimoramento profissional.

A pouca familiaridade com o debate acerca do tema trabalho, educação e suas


particularidades aliada ao aumento de demandas, a competitividade e o sucateamento do setor
saúde, comprometem negativamente as relações laborais e a formação de uma compreensão
crítica das estruturas de poder e dominação.

Nesse sentido, urge a promoção de um ambiente propício à construção de saberes, que


estimule a reflexão crítica, a troca de experiências e o desenvolvimento de competências necessárias
para enfrentar os desafios complexos do sistema de saúde. A superação desses entraves requer não
apenas a conscientização dos profissionais e gestores sobre a importância da Educação Permanente,
mas também a implementação de políticas e práticas que incentivem e valorizem o processo de
formação ao longo da carreira, visando a uma atuação mais qualificada, ética e comprometida com
a melhoria das condições de trabalho e consequentemente com a saúde pública.

REFERÊNCIAS
ALENCAR, Renata Rodrigues Rezende de. Movimentos e reflexões da Educação Permanente em
Saúde (EPS) no Distrito Federal: uma análise documental das práticas apresentadas na I Mostra de
Experiências Inovadoras no SUS/DF / Renata Rodrigues Rezende de Alencar, Tamara Correia Alves
Campos. – 2019.

ANJOS, Vera Lúcia Honório dos. A política de educação permanente em saúde no estado de Mato
Grosso sob a ótica dos gestores estaduais no período de 2017 a 2019. Orientador Cristiano Guedes
Souza. Brasília, 2022. 345 p. Tese (Doutorado em Política Social). Universidade de Brasília, 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento


de Gestão da Educação em Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde / Ministério
da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão
da Educação em Saúde. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009. 64 p. – (Série B. Textos Básicos de
Saúde), (Série Pactos pela Saúde 2006; v. 9).

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento


de Gestão da Educação na Saúde. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se

307
tem produzido para o seu fortalecimento? / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho
e da Educação na Saúde, Departamento de Gestão da Educação em Saúde – 1. ed. rev. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2018.

CARVALHO, Wania Maria do Espírito Santo e TEODORO, Maria Dilma Alves. Educação para os
profissionais de saúde: a experiência da Escola de Aperfeiçoamento do SUS no Distrito Federal,
Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2019, v. 24, n. 6 [Acessado 3 Março 2022] , pp. 2193-2201.
Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.08452019. Epub 27 Jun 2019. ISSN
1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232018246.08452019.

CECCIM, Ricardo Burg e FERLA, Alcindo Antônio. Educação Permanente em Saúde. Dicionário da
Educação Profissional em Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio, 2009. Disponível em: http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/edupersau.
html#topo Acessado 3 Março 2022.

FERNANDES, Rosa Maria Castilhos. Educação Permanente e Políticas Sociais. Campinas: Papel
Social, 2016. 156 p. Coleção Didática do Serviço Social.

GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. SECRETARIA DE SAÚDE. Plano Distrital de Saúde 2020-


2023. Brasília/DF, 2019b. Disponível em: https://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/
uploads/2017/11/2020_06_01_PDS-2020-2023_Aprovada_CSDF_v_publicizada.pdf. Acesso em: 16
mar. 2022.

GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. SECRETARIA DE SAÚDE. Relatório do Plano de Educação


Permanente em Saúde - PEPS. Gerência de Educação em Saúde SES/DF e Escola de Aperfeiçoamento
Profissional do SUS - EAPSUS. Brasília/DF, 2019a. Disponível em: https://www.conass.org.br/planos-
estaduais-educacao-permanente/PEEPS-DF.pdf. Acesso em: 16 mar. 2022.

GUIRALDELLI, Reginaldo. Desigualdades de Gênero no Mundo do Trabalho: as Trabalhadoras da


Confecção. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

LEMOS, Cristiane Lopes Simão. Educação Permanente em Saúde no Brasil: contribuição para a
compreensão e crítica. 1º ed. São Paulo: Hucitec, 2023. 164 p. Coleção Saúde em Debate.

MERHY, E. E.. O desafio que a educação permanente tem em si: a pedagogia da implicação. Interface
- Comunicação, Saúde, Educação, v. 9, n. 16, p. 172–174, fev. 2005.

PAIM, Jairnilson Silva. O que é o SUS. Rio de Janeiro. Fiocruz, 2015. 93p. Coleção Temas em Saúde.

PAIM, Jairnilson Silva; ALMEIDA FILHO, Naomar de. Saúde Coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro:
Medbook, 2014. 127 p. Coleção Academia em Saúde.

RABELO, Carlos Eduardo; FONSECA, Sara Helena de Almeida Guimarães. O SUS no Distrito Federal:
desafios na implementação e concretização de políticas públicas. Saúde em Debate [online]. 2017, v.
41, n. 113 [Acessado 24 Setembro 2022] , pp. 330-344. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-
1104201711309. ISSN 2358-2898. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711309.

VIEIRA, L. A. C. Educação permanente em saúde e a formação de profissionais no contexto do SUS:


análise de documentos oficiais. Universidade de Brasília, 2012.

308
MESA 4: EXPLORAÇÃO E OPRESSÃO DO SEXO/
GÊNERO, RAÇA/ETNIA E SEXUALIDADE

Mesa 4
Exploração e Opressão
do Sexo/Gênero,
Raça/Etnia e
Sexualidade
POLÍTICA DE SAÚDE E COMUNIDADE QUILOMBOLA:
desigualdades no acesso à saúde

Luís Henrique Belém de Oliveira


Lucélia Luiz Pereira

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar o processo de desigualdades que


cercam o acesso à saúde pela população quilombola. Para tanto realizou-se
contextualização histórica da política de saúde e formação social do Brasil,
bem como discutimos o papel do Estado e como o racismo continua sendo
um sistema que produz e reproduz desigualdades étnico-raciais. Tendo
como resultado que a realidade vivenciada pelos quilombos no nosso país
alerta para necessidade de implementação de políticas sociais que busquem
garantir a igualdade entre os segmentos populacionais. O racismo é um
determinante importante no processo saúde-doença-cuidado, que produz
impactos particulares nas comunidades quilombolas, considerando sua
historicidade.

Palavras-chave: População quilombola; Racismo; Saúde; Estado.

1. INTRODUÇÃO

A saúde pública brasileira é marcada por muitas mobilizações, lutas e conquistas da classe
trabalhadora, por isso é um produto histórico. No século XVIII era baseada na filantropia e na
prática liberal. As primeiras manifestações do Estado se dão no século XX, com maior vigência na
década de 1930, entretanto, foi no final da década de 1970, com o processo de abertura política e,
depois, a redemocratização do Brasil, que surge um movimento significativo no campo da saúde,
que contou com a participação de diversos segmentos da sociedade, com o objetivo de discutir
sobre as condições de vida da população e propostas governamentais para o setor, o Movimento
de Reforma Sanitária (BRAVO; ANDREAZZI, 2017).

Esse movimento possibilitou que em 1988, com a Constituição Federal brasileira, tivéssemos
uma concepção de seguridade social como expressão dos direitos sociais abrangendo três políticas:
saúde, assistência social e previdência social. Desse modo, a política de saúde preconizada pelo
Movimento de Reforma Sanitária ganha concretude na maior e mais importante legislação do país,
tornando obrigatório que o Estado formule e implemente políticas econômicas e sociais com a
finalidade de melhorar as condições de vida e saúde dos vários grupos da população. Portanto,
o Sistema Único de Saúde (SUS) é resultado de luta histórica do Movimento da Reforma Sanitária
Brasileira foi e é inspirado em valores essenciais para construção de uma sociedade justa e igualitária.

310
310
Temos como fato concreto que o SUS possibilitou o aumento da população ao acesso
aos cuidados de saúde, trouxe muitos avanços e continua buscando cumprir seus princípios de
universalidade, igualdade, integralidade e equidade, bem como a oferta de serviços de qualidade.
Todavia, mesmo o SUS sendo pautado nesses princípios, trazendo importantes transformações e
avanços, não foram suficientes para implementar mecanismos de superação do racismo enfrentado
pela população quilombola no acesso à saúde. Podemos observar que há desigualdades geográficas
e sociais no acesso, utilização e qualidade dos serviços de saúde, principalmente quando realizamos
o recorte racial, pois pessoas negras, que são cotidianamente vulnerabilizadas nessa sociedade,
tendem a enfrentar maiores desigualdades (PEREIRA, 2016).

2. SAÚDE, RACISMO E POPULAÇÃO QUILOMBOLA: BARREIRAS IMPOSTAS NO CUIDA-


DO COM A SAÚDE.

O fato histórico do Brasil ter sido o último país a abolir a escravidão, deixou marcas
profundas na sociedade brasileira. O regime escravagista brasileiro foi violento, como nos outros
países, com um processo de abolição lento, consolidando o preconceito e naturalizando a violência
e genocídio contra a população negra. De modo que a aguardada cidadania pós-abolição não
aconteceu, os ex-escravizados encontraram uma série de dificuldades para conseguir seus direitos
básicos (DOMINGUES, 2007, p. 120)

Em vista disso, no Brasil, as relações raciais, assim como as desigualdades existentes,


culminaram em diversas questões persistentes na sociedade brasileira contemporânea.
Transformaram as aparências, porém a essência das relações raciais está imutável, o escravagismo
mantém-se intacto no Brasil. Essa conjunção nos dá apontamentos para compreender o racismo
na atualidade.

A ideologia racista aparece sendo utilizada em duas dimensões, a primeira como um


elemento para justificar, naturalizar e/ou legitimar desigualdades, segregação e o genocídio de
populações consideradas minorias e o racismo continua tendo um papel fundamental na sociedade,
o de apoio a opressão colonial, uma vez que o racismo compõe as organizações econômicas e
políticas de nossa sociedade, por isso, ele é sempre estrutural, se manifestando normalmente na
sociedade, não sendo um fenômeno anormal (ALMEIDA, 2019). A segunda sendo compreendida
como elemento socialmente elaborado, estando relacionada diretamente com a subordinação na
reprodução das classes sociais, sendo assim, está ligada a reprodução da sociedade e distribuição
dos sujeitos (GONZALEZ, 2018). Dessa forma, o racismo é um dos elementos fundamentais para a
manutenção desse sistema capitalista, pois é um mecanismo de recrutamento para as posições na
estrutura de classes (GONZALEZ, 2018).

Silvio Almeida (2019, p. 25) entende o racismo como sendo “uma forma sistemática
de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas
conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
depender do grupo racial ao qual pertençam”. Portanto, o racismo está presente em nossa vida
cotidiana em sociedade e quando falamos dele, estamos falando de poder, de dominação de um
grupo sobre o outro. O racismo é consequência da estruturação da nossa sociedade, está ligado à

311
311
nossa formação social e suas particularidades, não é algo patológico, se trata da normalidade em
que constituem as relações sociais nessa sociedade capitalista, por isso é estrutural.

O racismo enquanto processo histórico e político cria condições sociais que possibilita a
discriminação sistemática de grupos racialmente identificados, assim, o racismo é regra e não exceção
na nossa sociedade, onde a expressão concreta do racismo ocorre por meio das desigualdades
sociais, políticas, econômicas e jurídica (ALMEIDA, 2019). Por isso as desigualdades raciais não são
apenas frutos do sistema de escravidão, mas também do período posterior a abolição, onde se
substituiu a escravidão por um sistema de estratificação racial. Segundo Lélia Gonzalez (2018), o
racismo, entendido como uma construção ideológica e um conjunto de práticas, foi perpetuado e
reforçado após a abolição da escravatura, beneficiando interesses específicos. Uma das heranças
deixadas pelo sistema escravagista foi a distribuição geográfica da população negra em regiões
periféricas, com baixo nível de desenvolvimento social e econômico, situação que perdura até os
dias atuais.

De modo geral, o que vemos é que a população negra continua ocupando as posições de
desvantagens na sociedade, sem ter acesso as riquezas construídas coletivamente, do país que
construiu. Essa situação nos mostra que as minorias raciais, nas relações de produção capitalistas
dominantes, em sociedades multirraciais não estão excluídas, ocupam um determinado papel, o
de ser superexplorado.  

3. POPULAÇÃO QUILOMBOLA E SAÚDE

A concepção de quilombo pode abranger vários significados ao mesmo tempo, alguns


estudiosos da temática costumam categorizar quilombo como sendo comunidades e populações
tradicionais, que possuem modos de vida, produção e reprodução social associadas à terra.
Fortalecendo a perspectiva de que as comunidades quilombolas não sejam vistas como resquícios
históricos de resistência negra, que não se reatualizam permanentemente, pois as comunidades
quilombolas estão em constante transformação, mas é impossível negar que um fato permanece:
as múltiplas desigualdades existentes desde o período colonial persistem e são produzidas e
reproduzidas atualmente (LEITE, 2000).

Dessa forma, ao abordarmos academicamente a situação dos quilombos na conjuntura


atual do Brasil, estamos falando de uma luta política e refletindo sobre o processo de construção
da sociedade brasileira. As populações quilombolas reivindicam desde sempre seu direito à
permanência, visando o reconhecimento legal de seus territórios ocupados, suas crenças, práticas
e valores – sendo muitas das vezes discriminados – bem como lutam para ter acesso aos outros
direitos básicos, como por exemplo: saúde, educação, trabalho, habitação, etc.

A população quilombola enfrenta diversos obstáculos na implementação de políticas sociais,


bem como a descontinuidade das ações realizadas pelo Estado, acarretando em desigualdades no
acesso as políticas sociais, contexto que é determinante para que tenham as piores condições e
indicativos relacionados a saúde. Nesse sentido, a compreensão do processo saúde-doença das
populações quilombolas demanda o entendimento dos obstáculos ao acesso à saúde, que são
resultados do legado racista histórico, produtor de desigualdades, vulnerabilização dos negros e

312
312
precarização de suas condições de vida, trabalho e saúde.  

Estimativas realizadas pelo Programa Brasil Quilombola (Brasil, 2012) indicam que a
maioria dos quilombolas vivem em áreas rurais, em situação de extrema pobreza, com baixo
nível de instrução escolar e recebem algum auxílio do governo federal. Muitos estudos ratificam
esses apontamentos, bem como acrescentam questões relacionadas as precárias condições de
sanitárias (BEZERRA ET AL. 2014). Esse contexto nos mostra que as condições precárias de acesso
a bens públicos e saneamento básico vivenciadas pelos quilombolas intervém nos indicadores
relacionados ao adoecimento e mortalidade, apontando para a existência de iniquidades raciais e
de classe em saúde, pois os lugares em que as populações quilombolas residem são, quase sempre,
marginalizados pelo poder público e algumas vezes questionados por grupos que possuem maior
poder e legitimidade, ligados ao Estado burguês.

Portanto, as condições precárias de acesso as políticas sociais vivenciadas pelas populações


quilombolas são as principais responsáveis pela subutilização dos serviços de saúde. Comprovando
que o acesso desigual permeia questões relacionadas a étnico-racial, demonstrando que os
impactos do racismo presente nos serviços de saúde são imensos e atravessam todo o processo de
cuidado. O acesso a saúde existe, mas ocorre de modo limitado e desigual, os quilombolas estão
mais expostos a condições precárias de saúde e o fato de residirem em áreas rurais é um fator de
risco potencial para a subutilização dos serviços de saúde (PEREIRA; MUSSI, 2020), considerando
que a vivência nos espaços rurais é rodeada de múltiplas desigualdades, como acesso à educação,
saneamento básico e saúde. Dessa forma as comunidades quilombolas, podem ser, as mais atingidas
pela invisibilidade, isolamento e acesso restrito as políticas sociais, sendo alvos indiscutíveis de
vulnerabilização e opressões, uma vez que

Os processos históricos produtores de desigualdades em saúde se produzem


reciprocamente, por meio da interação dos elementos provenientes da
macroestrutura político econômica e social, articulada às particularidades
dos diferentes grupos populacionais, bem como o modo de vida coletivo e a
realidade individual e familiar dos sujeitos (DIMENSTEIN ET AL., 2020, p.209).

Esse cenário nos mostra que a garantia do direito ao acesso a saúde pelas populações
quilombolas continuam sendo constantemente negligenciado e/ou negado, agravando as
desigualdades. Por isso, ao falarmos sobre a utilização dos serviços de saúde pelos quilombolas no
Brasil, se expõem um cenário que envolve vulnerabilidades à resistência história, étnica e cultural
de um grupo populacional marcado historicamente por preconceitos, discriminações, injustiças,
desigualdades e iniquidades, excluindo essa população das melhores oportunidades e condições de
vida (VIEIRA; MONTEIRO, 2013). Isso significa dizer que historicamente as comunidades quilombolas
são expostas a várias condições que dificultam o acesso aos serviços de saúde (PEREIRA; MUSSI,
2020, p. 295-296).

4. ESTADO E RACISMO

O cenário exposto nos tópicos anteriores só é possível graças à atuação do Estado no sistema
capitalista. Assim é fundamental que abordemos a relação Estado e racismo na sociedade brasileira.

313
313
De acordo com Rocha (2020), as relações estruturais no Estado Burguês estão fundamentadas
na propriedade privada, na exploração da mais-valia e no acúmulo de capital. Compondo esse
processo, temos como fato que a escravidão revela que o racismo e o capitalismo sempre
estiveram interligados (ROCHA, 2020), pois simultaneamente ao processo de solidificação do modo
de produção capitalista ocorria a escravidão, sendo o racismo um pilar essencial para justificar a
superexploração do povo negro.

A questão de classe e étnico-racial se retroalimentam em função da manutenção da


sociabilidade burguesa, uma vez que o Estado é a expressão de um projeto de sociedade da
classe dominante e seu aparato de Estado (composto por instituições, funcionários, leis, normas,
etc.) funcionará seguindo a mesma perspectiva, sob a lógica da ideologia política e econômica
neoliberal, destruindo o sistema de proteção social historicamente conquistado por meio de muita
luta da classe trabalhadora. É um modelo de sociabilidade que criminaliza corpos periféricos e não
brancos, objetivando culpabiliza-los pelas contradições estruturais do sistema capitalista.

A vista disso, o Estado burguês é o que possibilita a articulação da rede de poderes, que
perpassam todos os níveis da sociedade, influenciando diretamente nas relações étnico-raciais, uma
vez que a população negra e população branca possuem relações de poder político e econômicos
desiguais, o que, por conseguinte, interfere nas condições de vida e saúde das populações (SANTOS,
2019), assim, as relações étnicas também são relações de poder, dominação e exploração.

Assim, a população negra historicamente tem sua existência marcada por um processo
de genocídio e/ou subalternização continuo, onde o Estado tem um papel fundamental para
possibilitar o extermínio da população negra, seja por meio de seu aparato repressivo organizado
(força policial, sistema judiciário e prisional), seja por omissão intencional, uma vez que sua atuação
está direcionada para a manutenção das desigualdades oriundas desde o escravismo, que mantem
a população negra nas condições precárias de reprodução social da vida (SANTOS, 2019).

É sabido por todos que o sistema capitalista ao se desenvolver produz compulsoriamente


desigualdades, porém, no caso da população negra, as desigualdades são mais acentuadas por
ser o racismo estruturante no país. No contexto do neoliberalismo, os mecanismos que destroem
vidas negras foram aprimorados, e o genocídio é realizado de forma complexa e indireta, o Estado
cria mecanismos que impossibilitam, ou possibilitam de forma precarizada, que a população negra
tenha acesso à saúde.

A população negra está submetida as condições de produção e reprodução de sua morte. É


um genocídio que se evidencia na ausência das condições adequadas para viver, que é conduzido,
estrategicamente, pelo Estado racista burguês. Trata-se de uma omissão do Estado para com a
população negra, que muitas vezes provoca a morte. A exemplo do que estamos debatendo, a
privatização da saúde compõe esse pacote intencional de genocídio da população negra, uma vez
que a maioria dos negros dependem do SUS.

5. CONCLUSÃO

A realidade vivenciada pelos quilombos no nosso país alerta para necessidade de


implementação de políticas sociais que busquem garantir a igualdade entre os segmentos

314
314
populacionais. As desigualdades em saúde não são somente resultados das desigualdades nas
ações de atenção e na distribuição de recursos, mas também do racismo que colabora para que a
população negra, sobretudo a quilombola, sejam as mais afetadas pelas desigualdades em saúde.
Por isso argumentamos que as injustiças e desigualdades na saúde e na sociedade ocorrem de
forma interseccional, impactando no acesso aos serviços de saúde pelos segmentos que vivenciam
opressões.

Para superar essas profundas desigualdades étnico-raciais na sociedade brasileira, é preciso


reconhecer e respeitar a diversidade de sujeitos que a constituem, sendo necessário que todos
sejam vistos de forma igualitária. Entretanto, para que isso ocorra é necessário provocar mudanças
profundas no nosso modo de agir e pensar, ou seja, é refletir, questionar e modificar estruturas,
crenças e concepções que são bases para a organização dessa sociedade capitalista.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRAVO, Maria Inês Souza; ANDREAZZI, Maria de Fátima Siliansky; MENEZES, Juliana Souza Bravo
de. As lutas pela saúde nos anos 2000: A participação da Frente Nacional Contra A Privatização Da
Saúde. In: SILVA, Alessandra Ximenes da; NOBREGA, Mônica Barros da; MATHIAS, Thaísa Simplício
Carneiro (Organizadoras). Contrarreforma, Intelectuais e Serviço Social: As inflexões na Política de
Saúde. João Pessoa (PB): UFPB, 2017. E-book. P. 157-175.

BEZERRA, Vanessa Moraes et al. Inquérito de Saúde em Comunidades Quilombolas de Vitória da


Conquista, Bahia, Brasil (Projeto COMQUISTA): aspectos metodológicos e análise descritiva. Ciência
e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro , v. 19, n. 6, 2014, p. 1835-1847. Disponível em: http://www.scielo.
br/pdf/csc/v19n6/1413-8123- csc-19-06-01835.pdf Acesso em: 22 de maio de 2015.

DIMENSTEIN, Magda et al. Desigualdades, racismos e saúde mental em uma comunidade


quilombola rural. Amazônica-Revista de Antropologia, v. 12, n. 1, p. 205-229, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufpa.br/index.php/amazonica/article/view/8303. Acesso em: 05 de mar. de 2022.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo,


v.12, n.23, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v12n23/v12n23a07 Acesso em: 16
mar. 2022

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa.
Coletânea Organizada e editada pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA). Diáspora
Africana, 2018.

LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas. Etnográfica, v.


4, n. 2, p. 333-354, 2000.

315
315
PEREIRA, L. L. Repercussões do Programa Mais Médicos em comunidades rurais e quilombolas.
2016. 250f. 2016. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde)-Universidade de
Brasília, Brasília. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/21281. Acesso em: 05 de
mar. de 2022

PEREIRA, Rosilene das Neves; MUSSI, Ricardo Frankllin de Freitas. Acesso e utilização dos serviços
de saúde da população negra quilombola: uma análise bibliográfica. Odeere, v. 5, n. 10, p. 280-
303, 2020. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7883161. Acesso em:
01 de set. de 2021

ROCHA, Andrea Pires. Segurança e racismo como pilares sustentadores do Estado


burguês. Argumentum, v. 12, n. 3, p. 10-25, 2020.

SANTOS, Tainara Cristina. Estado, racismo e genocídio: imobilização social da população negra
como mecanismo de genocídio. Trabalho de conclusão de Curso, Universidade Federal de Santa
Catarina, 2019.

VIEIRA, Ana Beatriz Duarte; MONTEIRO, Pedro Sadi. Comunidade quilombola: análise do problema
persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da Bioética de Intervenção. Saúde em Debate, v. 37,
p. 610-618, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sdeb/a/GwYSxxVb5DCDkyrXhSxW4JG/?la
ng=pt . Acesso em: 05 de set. de 2021.

316
316
CONSIDERAÇÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO DEBATE DA ALIENAÇÃO PARENTAL

Lara Iara Gomes Borges


Alessandra Teixeira da Cunha Silva
Maria Cristina Piana

RESUMO

O artigo aborda a alienação parental sob uma perspectiva sócio-histórica,


destacando o papel do assistente social. Para tratar do assunto,foi realizado
um estudo documental através da análise de reportagens em um site de grande
circulação. O objetivo é analisar como a mídia aborda o tema e compreender
os debates envolvidos. Os resultados destacam a importância da regulação
midiática, do fortalecimento do ECA e do aprofundamento do debate sobre a
alienação parental para a sociedade.

Palavras-chave: Serviço Social; Alienação Parental; Mídia.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo discute e problematiza o fenômeno da alienação parental enquanto uma categoria
de estudo e expressão da questão social. Por se tratar de uma temática cada vez mais crescente
na atualidade, a alienação parental vem sendo interpretada sob diferentes análises, desafiando
estudiosos e profissionais que atuam com esta demanda. Assim, implicou-se a necessidade de
problematizá-la a partir de seu caráter sócio-histórico e como campo de atuação do(a) assistente
social.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em vigência há mais de 30 anos, proporcionou


mudanças significativas nas políticas voltadas para crianças e adolescentes e introduziu o paradigma
da proteção integral, superando o conceito de situação irregular, presente no Código de Menores de
1979 (Silva, 2005). No ECA (1990), está expressa uma preocupação em salvaguardar a integridade
física e psicológica da infância e juventude brasileira (Cruz, 2003).

Nesse cenário que almeja a proteção, foi promulgada a Lei nº 12.318, de 26 de agosto de
2010, que trata sobre a alienação parental, tornando-a prática condenável no âmbito constitucional
(Brasil, 2010). Após 13 anos de sua promulgação, é possível observar as polêmicas em torno da
normativa, amplamente utilizada em diversos processos que envolvem crianças, adolescentes
e suas famílias. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (Curso [...], 2019), os tribunais
brasileiros registraram, somente no ano de 2018, 3,8 mil processos de alienação parental.

317
317
Rocha (2018) aponta a importância de compreender quem é a família que vivencia o
processo de alienação parental, considerando as mudanças ocorridas nas famílias brasileiras e
como isso tem afetado as relações parentais e o rompimento conjugal. Para Fávero (2011, p. 141),
a alienação parental “[...] envolve a formação, na criança, de uma imagem negativa do genitor não
guardião, geralmente pelo genitor que está com a sua guarda em um processo de separação”.

A Lei nº 12.318 define que, nos processos que envolvam situações de alienação parental,
deve haver a atuação das equipes técnicas do judiciário, sendo elas compostas por assistentes
sociais e psicólogos

A apropriação do conhecimento a respeito da alienação também se configura num desafio


para o Serviço Social, nesse sentido, justifica-se a presente pesquisa teórica. Foi realizado estudo
documental com o levantamento de reportagens a respeito da alienação parental em um site de
grande circulação, com objetivo de analisar como a discussão sobre essa temática vem sendo
divulgada e compreender as discussões que permeiam o assunto.

2. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA ALIENAÇÃO PARENTAL A PARTIR DA PERSPECTIVA


CRÍTICA

O termo “alienação parental” teve origem na década de 1980 nos Estados Unidos da
América (EUA), quando o psiquiatra Dr. Richard Gardner a definiu como Síndrome da Alienação
Parental (SAP). De maneira geral, Gardner (2002) defende a ideia de que a alienação parental
ocorre nos casos de separação litigiosa em que o detentor da guarda dificulta o relacionamento
com o familiar que não possui a guarda. Esse movimento ocorre por meio da implantação de falsas
memórias por parte do familiar que detém a guarda, o que promove uma difamação contra o
outro responsável pela criança ou adolescente com objetivo de afastar o familiar não detentor da
guarda. Essa campanha de afastamento é classificada como alienação parental e os danos causados
à criança ou ao adolescente se configuram como SAP.

No Brasil, o termo ganhou popularidade em 2010 com a promulgação da Lei nº 12.318, que
prevê sanções a familiares que cometem alienação parental. Entre aparência e essência, a lei, que
em um primeiro momento aparenta garantir o direito de crianças e adolescentes à convivência
familiar e comunitária, é envolta por controvérsias quando aplicada. Em sua essência, trata-se de
uma norma com evidente viés de gênero, tendo em vista que, no Brasil, nos casos de divórcio,
na maioria das vezes, a familiar que detém a guarda é a mulher, ou seja, a suposta alienadora. É
também identificado o uso equivocado dessa Lei nas situações de violência contra a mulher ou
violência sexual, quando o agressor utiliza a lei como argumento para não se afastar da vítima.

No que diz respeito ao Serviço Social, Rocha (2018) sinaliza que a alienação parental é um
assunto pouco discutido e chama atenção sobre a importância dos profissionais se apropriarem da
temática por essa ser uma demanda cada vez mais frequente no cotidiano de trabalho.

Decorridos 13 anos da promulgação da referida lei, fica evidente a necessidade de superar


essa legislação e fortalecer o ECA que, desde sua promulgação, já possui mecanismos que garantam
a convivência familiar e comunitária.

318
318
3. ANÁLISE SOBRE O DEBATE MIDIÁTICO DA ALIENAÇÃO PARENTAL

No desenvolvimento deste artigo, um aspecto chama a atenção: o fato de que, com


o desenvolvimento das narrativas sobre o conceito de alienação parental no Brasil, houve uma
popularização do termo. Para analisar como a discussão sobre a alienação parental vem sendo
divulgada, foi realizado um levantamento no site da Rede Globo, considerada uma das maiores
redes de televisão brasileira. “A aparente prioridade a uma breve análise da TV Globo deve-se
aos seus efeitos sobre o Brasil” (Ruiz, 2009, p. 87). A emissora exerce significativa influência na
construção de consensos, apoia e apoiou diferentes governos, como também a ditadura civil militar
brasileira, fatos que evidenciam suas pretensões ideológicas (Ruiz, 2009).

Nesse veículo, buscaram-se reportagens sobre alienação parental e síndrome de alienação


parental. Os recortes temporais definidos para a busca foram o ano da promulgação da Lei nº
12.318/2010, que dispõe sobre a alienação parental; os anos de 2009 e 2011, respectivamente
anterior e posterior a essa promulgação; o ano de 2019, em que a Associação de Advogadas pela
Igualdade de Gênero (AAIG) deu entrada no pedido de medida cautelar contra a Lei de Alienação
Parental e o ano 2020, dez anos após a promulgação da lei. O resultado completo do levantamento
pode ser conferido nos Gráficos 1, 2 e 3:

Gráfico 1 - Conteúdos abordados nas reportagens sobre alienação parental (2009-2011)

Fonte: Estudo documental realizado pelas autoras com base nos dados públicos do site www.rede-
globo.globo.com (2023).

319
319
Gráfico 2 – Conteúdos abordados nas reportagens (2019- 2020)

Fonte: Estudo documental realizado pelas autoras com base nos dados públicos do site www.
redeglobo.globo.com (2023).

Gráfico 3 – Conteúdos abordados nas reportagens no período de 2009, 2010, 2011, 2019 e 2020

Fonte: Estudo documental realizado pelas autoras com base nos dados públicos do site www.
redeglobo.globo.com (2023).

Ao todo, considerando os gráficos apresentados, foram localizadas 45 reportagens. A maior

320
320
parte delas (51%) abordava aspectos como formas de se identificar a alienação parental, tanto
pelos envolvidos quanto pela justiça; atitudes a serem tomadas nas situações que envolvem a
alienação parental; respostas a dúvidas sobre o tema.

Além disso, ainda com base nos gráficos, foram localizadas seis reportagens relacionadas,
especificamente, à Lei da Alienação Parental, com comentários de especialistas e divulgação de
eventos sobre o tema. Verifica-se, assim, uma demanda para entender a problemática, ou melhor,
uma crescente busca pelo tema.

Contudo, há autores que sinalizam a escassez de debates e problematizações sobre a


questão, vê-se que:

No Brasil, como evidenciado em pesquisa empreendida por Sousa (2010)


sobre o tema, a escassez de debates e estudos acerca do conceito de SAP, bem
como a ausência de questionamentos sobre a ideia de um distúrbio infantil
ligado às situações de disputa entre pais separados, vêm contribuindo para a
naturalização do assunto de forma acrítica. Tal cenário colabora, ainda, com
a visão de que muitos casos de litígio conjugal têm como consequência o
surgimento da denominada síndrome (Souza; Brito, 2011, p. 269-270).

Também foram verificadas que cinco reportagens discutiam os aspectos relacionados à


elaboração da Lei e propostas de mudança da legislação vigente; quatro reportagens debatiam o
impacto da adoção da Lei na vida de crianças e adolescentes, as formas de proteção e, ainda, como
obter ajuda para reencontrar pais ou filhos desaparecidos.

O que se pretende aqui é evidenciar a condução das discussões sobre a alienação parental
pelos meios de comunicação e a forma como esses conteúdos podem influenciar a opinião pública
ao associar a alienação parental enquanto uma perspectiva de elencar culpados, de criminalização
de condutas.

A comunicação midiática como produto ideológico do sistema capitalista, afirmam Marx e


Engels (1998), são produções de ideias, representações, pois se relaciona às forças produtivas, ou
seja, à manipulação da classe trabalhadora. A televisão brasileira como uma das fontes de notícias
também contribui para criação de estereótipos e de uma leitura equivocada sobre a realidade social
e o tema em tela. Embora a lei aborde a punição dos atos, a alienação parental é uma situação
muito mais profunda, necessitando de análises mais detalhadas no âmbito da sociedade.

Uma das reportagens chama a atenção para o crescente aumento do número de casos
de processos registrados no Tribunal de Justiça do Estado São Paulo, no Fórum de Campinas. A
média é de um caso de alienação parental por dia. Nota-se, no levantamento, que a maioria das
reportagens trazem informações sobre a identificação das situações de alienação parental. A
maioria das discussões é feita por advogados e algumas reportagens são apresentados relatos de
psicólogos. Não foram localizadas reportagens em que o entrevistado fosse o(a) assistente social. A
esse respeito, cabe uma reflexão dos seguintes autores:

No que se refere ao Serviço Social, a grande mídia, em parte, certamente


por total desconhecimento da capacidade profissional da categoria (mas

321
321
também pelo conteúdo das posições defendidas) não abre espaço para
opiniões e análises de assistentes sociais. No entanto, outras categorias
são procuradas para se manifestarem sobre questões de fundo social, de
ausência de políticas públicas, de análise dos impactos gerados pela evolução
da sociedade capitalista (Ruiz; Contente, 2009, p. 399-400).

Sem dúvidas, o entendimento do(a) assistente social frente a essa questão e sua
interferência nos fenômenos sociais como, por exemplo, na alienação parental, contribuem para
que essas questões sejam entendidas a partir da totalidade social. Tal fato representa um ganho no
conhecimento acerca da alienação parental. É preciso problematizar o fenômeno, massificá-lo para
entendimento da sociedade, incluindo as famílias da periferia, nas quais crianças e adolescentes
têm um existir voltado para uma sociabilidade mais dura. Além disso, urge um olhar mais voltado
para questões da sobrevivência e do trabalho, e menos para educação e afeto. Fica evidente a
importância do entendimento de que existem infâncias e adolescências a partir da realidade social
em que estes sujeitos estão inseridos (Sherer, 2023).

Por outro lado, é importante ressaltar o aumento de casos de alienação parental na pandemia
de COVID-19, como retrata uma das reportagens, devido às inúmeras mudanças provocadas na
vida dos sujeitos durante a pandemia que repercutiram nas relações familiares. Ainda sobre esse
período histórico recente, a respeito da comunicação, é importante salientar a ampla disseminação
de falsas notícias sobre a ineficácia das vacinas e do isolamento social. A conjuntura política da
época contribuiu para “[...] a paradoxal situação de que as pessoas já não acreditam em nada e ao
mesmo tempo são capazes de acreditarem em qualquer coisa” (Grijelmo, 2017, p. 1).

A Lei que trata da alienação parental tem a intenção de coibir essa situação, tendo em vista
os efeitos danosos que essa prática pode provocar na vida de crianças e adolescentes. Porém,
somente quatro reportagens abordavam a Lei na perspectiva de garantir direitos de crianças e ou
adolescentes. Assim, de maneira geral, foi possível verificar que o enfoque das reportagens está em
divulgar a lei, sem aprofundar o debate com a sociedade em geral.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, uma das principais formas de lazer e acesso a informações da classe trabalhadora
são os programas televisivos. Após o final de mais um dia de venda da força de trabalho, o que
se quer é chegar em casa e buscar uma falsa distração por meio de um “mundo manipulador;
fantasioso; individual; sensacionalista”: a televisão. A mídia televisiva, por meio de programas,
novelas e noticiários, ditam modas, tendências e também podem manipular a realidade e a opinião
pública. Nessa conjuntura, manifestações de interesse ou indiferença sobre determinada questão
são regulados de acordo com objetivos do grande capital.

Assim, é importante mencionar como se constituem e se desenvolvem as interpretações


da alienação parental na mídia, tendo em vista que essas manifestações irão reverberar na vida da
classe trabalhadora. Dessa forma, ao realizar o estudo documental de reportagens sobre a alienação
parental, considerou-se que a comunicação se constitui como direito humano, mas importa analisar
a “[...] esfera da comunicação e os impactos que podem ser gerados por ela” (Sales; Ruiz, 2009,

322
322
p. 25). Além disso, é possível observar que tais reflexões podem contribuir para que essa situação
seja apreendida pelos profissionais como uma questão que necessita da análise de determinantes
sócio-históricos que perpassam as relações sociais.

Ainda no que tange ao Serviço Social enquanto compromisso com a classe trabalhadora,
é imperioso fortalecer o debate sobre a regulação dos meios de comunicação. Trata-se de uma
discussão impregnada de equívocos associados à censura. A regulação dos meios de comunicação
não proibirá ou impedirá a divulgação de notícias, mas pode estabelecer regras para maior
socialização de grupos por meio da mídia, como também a possibilidade de contestação do público.
É necessário, hoje, repensar a mídia e buscar formas democráticas de efetivar a regulação, o que
consequentemente irá conter a lógica de acumulação capitalista que atualmente tem papel de
destaque nos meios de comunicação (Leal Filho, 2018).

Para além disso, é preciso ressaltar os impactos que serão ocasionados na saúde física e
mental de crianças, adolescentes e familiares em vez de se buscar a dualidade, o bem ou o mal, de
uma questão tão complexa, e se necessário acionar, por meio do sistema de garantia de direitos,
o acolhimento das demandas dessas famílias em uma perspectiva de totalidade que envolve esses
conflitos para, portanto, evitar que os desdobramentos na aplicação da lei provoquem violações
de direito.

Por fim, é preciso registrar que este estudo não se esgota neste artigo, mas indica vários
aspectos que podem ser aprofundados em pesquisas relacionadas ao tema, dos quais destacam-se:

• A mobilização da categoria profissional a respeito da regulação da mídia como uma


forma de democratização da informação;

• O fortalecimento do ECA que, desde sua promulgação, já possui dispositivos que


salvaguardam o direito à convivência familiar;

• A revogação da Lei nº 12.318/2010, considerando sua perspectiva punitiva e os


riscos que sua aplicação podem ocasionar na vida de crianças e adolescentes;

• O aprofundamento do debate da alienação parental para a sociedade em geral.

Ressaltamos que várias reflexões ainda poderão surgir com a retomada das discussões a
respeito da mídia, do Serviço Social e da alienação parental. Espera-se que o artigo possa contribuir
para o avanço das discussões sobre o tema.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília,
DF: Senado Federal, 1990.

BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera

323
323
o art. 236 da Lei nº 8069, de 13 de junho de 1990. Brasília, DF: Senado Federal, 2010.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.
htm#:~:text=Assegurar%2Dse%2D%C3%A1%20%C3%A0%20crian%C3%A7a,juiz%20para%20
acompanhamento%20das%20visitas. Acesso em: 02 set. 2023.

CRUZ, A. S. Um estudo no âmbito do escritório modelo de advocacia da Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro sobre as situações de violência doméstica existentes por trás da categoria
ação de alimentos. 2003. Pontifícia Universidade Católica, Departamento de Serviço Social, Rio de
Janeiro, 2003.

CURSO forma 11,4 mil para prevenir casos de alienação parental. Colégio Notarial do Brasil,
Belo Horizonte, 29 ago. 2019. Disponível em: http://cnbmg.org.br/cnj-curso-forma-114-mil-para-
prevenir-casos-de-alienacao-parental/. Acesso em: 28 set. 2023.

FÁVERO, E. O serviço social e o campo sociojurídico: reflexões sobre rebatimento da questão social
no trabalho cotidiano. In: FORTI, V. L.; GUERRA, Y. A. D. Serviço social: temas, textos e contextos. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 135-146.

GARDNER, R. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Parental


(SAP). Tradução de Rita Rafaeli, 2002. Manuscrito não publicado.

GRIJELMO, A. A arte de manipular opiniões: técnicas para mentir e controlar as opiniões se


aperfeiçoaram na era da pós-verdade. El País, [S. l.], 28 ago. 2017. Disponível em: https://brasil.
elpais.com/brasil/2017/08/22/opinion/1503395946_889112.html. Acesso em: 24 set. 2023.

LEAL FILHO, L. L. A mídia descontrolada: episódios de luta contra o pensamento único. São Paulo:
Editora Barão de Itararé, 2018. 212 p.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

REDE GLOBO. Pesquisa [alienção parental]. Site Rede Globo de TV. Disponível em: redeglobo.globo.
com. Acesso em: 10 fev. 2023.

ROCHA, E. F. A prática do assistente social com famílias em perícias sociais envolvendo acusações de
alienação parental. In: GOIS, D. A. (Org.) Famílias e trabalho social: trilhando caminhos no serviço
social. Campinas: Papel Social, 2018.

RUIZ, J. L. S. Comunicação como direito Humano. In: SALES, M. A.; RUIZ, J. L. S. Mídia, questão social
e serviço social. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

RUIZ, J. L. S.; CONTENTE, C. Visibilidade do serviço social no século XXI: uma das estratégias para
consolidação do projeto ético-político profissional. In: SALES, M. A.; RUIZ, J. L. S. Mídia, questão
social e serviço social. São Paulo: Cortez Editora, 2009.

SALES, M. A.; RUIZ, J. L. S. Mídia, questão social e serviço social. 2. ed. São Paul: Cortez Editora,
2009.

SHERER, G. A. Bases conceituais de infâncias, adolescências e juventudes – uma análise por meio

324
324
da teoria crítica dos direitos humanos. Material didático. Mimeo. Disciplina Direitos Humanos e
Proteção Social nas perspectivas das infâncias, adolescências e juventudes. Programa de Pós-
graduação em Serviço Social, UNESP, Franca, 2023.

SILVA, M. L. O. O estatuto da criança e do adolescente e o código de menores: descontinuidades e


continuidades. Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 83, p. 30-48, 2005.

SOUZA, A. M.; BRITO, L. M. T. Síndrome de alienação parental: da teoria norte-americana à nova lei
brasileira. Revista Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 31, n. 2, p. 268-283, 2011.

325
325
POLÍTICAS SOCIAIS DE SAÚDE E SOCIOEDUCATIVA:
Determinações do Racismo

Manuela Soares Silveira

O presente trabalho é parte do pré-projeto de tese da autora e busca trazer aportes


iniciais que contribuam na compreensão das determinações do racismo junto às políticas sociais
de saúde na atenção a adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas
- MSE em meio aberto do Distrito Federal - DF e as formas de resistência desenvolvidas pelos
sujeitos. A proposição desse objeto de estudo parte da perspectiva do método marxista, conforme
desenvolve Netto (2011), de que o conhecimento concreto do objeto é o conhecimento de suas
múltiplas determinações, enquanto traços pertinentes aos elementos constitutivos da realidade,
possibilitando ao pensamento a reprodução da riqueza concreta desse objeto.

Em uma primeira aproximação de análise das políticas sociais de saúde, bem como
socioeducativa1, em sua definição técnico-operativa (PEREIRA, 1987), identificamos sua função de
atendimento à criança e ao adolescente e de proteção integral de seus direitos, dentro do chamado
Sistema de Garantia de Direitos - SGD.

Assim, em sua dimensão mais aparente, a política socioeducativa deve seguir princípios e
diretrizes, previstos especialmente no ECA e na lei nº 12.594/2012 (BRASIL, 2012), a qual institui o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE e regulamenta o processo de apuração,
aplicação e execução das MSE. A referida lei indica, entre outros aspectos, em seu artigo 8º a
obrigatoriedade de previsão de ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social,
cultura, capacitação para o trabalho e esporte, para os/as adolescentes e jovens atendidos/as.

Para o presente trabalho, destacamos a política social de saúde, que em sua dimensão mais
aparente de planejamento e normatividade, prevê como paradigma o conceito de saúde ampliada
contemplando seus diversos aspectos, conforme postula a Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei - PNAISARI (BRASIL, 2021). Dessa maneira, a
PNAISARI considera que a garantia à saúde integral desse público, vai além da perspectiva estrita do
adoecimento e seus sintomas isolados, devendo contemplar os determinantes sociais e os modos
de vidas desses sujeitos, na busca do completo bem-estar físico, mental e social.

Ainda em seus aspectos normativos, é central na na política social de saúde o Sistema


Único de Saúde - SUS, previsto na Lei 8.080/1990 (BRASIL, 1990) que trata a saúde como direito
fundamental do ser humano e responsabiliza o Estado por sua garantia, juntamente com as pessoas,
a família, as empresas e a sociedade. A referida Lei traz também a compreensão da saúde integral
e transversal, considerando também seus determinantes sociais.
1 No sistema socioeducativo são atendidos/as adolescentes e jovens aos/às quais foi atribuída prática de ato
infracional, conduta descrita como crime ou contravenção penal praticada por menores de dezoito anos por serem es-
tes penalmente inimputáveis, sendo responsabilizados/as pela aplicação de MSE, arroladas no artigo 112 do Estatuto
da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 2015), quais sejam: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de
serviços à comunidade - PSC; liberdade assistida - LA; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabeleci-
mento educacional. As quatro primeiras são cumpridas em meio aberto, e as duas últimas são cumpridas em estabele-
cimento de privação de liberdade.

326
326
No que concerne especificamente à saúde mental, importa mencionar a Lei 10.216/2001,
conhecida com Lei da Reforma Psiquiátrica, (BRASIL, 2001) que vai trazer novos paradigmas para a
garantia do direito e atenção em saúde mental, calcados no princípio do cuidado em liberdade e no
território, articulados nas lutas dos movimentos pela Reforma Sanitária e pela Luta Antimanicomial.

É importante na abordagem sobre as questões de planejamento da atenção em saúde


mental, destacar a atenção ao uso e abuso de substâncias psicoativas - SPA’s por parte de
adolescentes e jovens em MSE, uma vez que está diretamente relacionada à atribuição de atos
infracionais, especialmente de tráfico de drogas. Isso porque a relação desses sujeitos com as SPA’s
é usualmente enfrentada pelo Estado como questão de segurança e policiamento e não de saúde
(VISCONTI, 2018).

Nesse contexto, a Lei de Drogas brasileira, Lei 11.343/2006 (BRASIL, 2006), não determina
critérios claros e objetivos para diferenciar tráfico e uso, ficando à mercê dos atos discricionários
da abordagem policial e das decisões judiciais, conforme prevê o parágrafo 2º do art. 28 da Lei de
Drogas

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá


à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições
em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem
como à conduta e aos antecedentes do agente.

Tal aspecto decorre em maior criminalização de populações negras e comunidades mais


pobres, embora tanto o tráfico quanto o consumo de drogas ocorram em todas as classes sociais.
No ano de 2016, 74% dos presos no Brasil eram negros (VISCONTI, 2018). É elucidativa desse quadro
a análise trazida pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas - PBPD:

No Brasil, um dos efeitos da política de combate às drogas é o aumento da


letalidade policial. De 2009 a 2016, quase 22 mil pessoas foram mortas pela
polícia, de acordo com números oficiais. 76% delas eram negras, 99,3% eram
homens e 81,8% tinham entre 12 e 29 anos. A guerra às drogas tem afetado,
portanto, a juventude negra do país, e a abordagem policial, normalmente
feita de forma ostensiva em periferias e comunidades brasileiras, é bastante
seletiva, enquadrando usuários de droga como traficantes pelo simples fato
de serem negros, pobres e moradores de regiões marginalizadas (VISCONTI,
2018, p. 61).

Isso impacta diretamente o acesso dos/as adolescentes e jovens às políticas de saúde,


e consequentemente a garantia de seu direito à saúde integral. No ano de 2022, o Instituto de
Pesquisa e Estatística do Distrito Federal - IPEDF (2023) realizou a pesquisa “Perfil dos adolescentes
e suas trajetórias no Sistema Socioeducativo do Distrito Federal”, nas MSE de meio aberto e
semiliberdade, demonstrando não somente que há predominância de adolescentes do sexo
masculino (86,7%) e negros (87%), mas também que ambas as proporções são significativamente
maiores para essas características entre os jovens do DF, em que 59% são negros e 49%, do sexo
masculino, destacando a necessária atenção para essa realidade, que nos parece configurada pelo
racismo e seus processos de criminalização de jovens negros.

327
327
É ilustrativa do funcionamento da política social de saúde no DF a pesquisa em andamento
realizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - MPDFT (2022) “Análise
da Implementação da Política de Saúde Mental no Distrito Federal: os Centros de Atenção
Psicossociais (Caps)”, que tem identificado déficit no atendimento à saúde mental, com destaque
para a inadequação da capacidade de atendimento ao tamanho da população, a falta de recursos
humanos para atendimento multidisciplinar, e a atuação de algumas unidades de Caps em mais
de uma região de saúde atendendo a uma população superior a sua capacidade de atendimento,
comprometendo a qualidade e a eficiência dos serviços e dificultando o acesso dos/as usuários/as..

As evidentes contradições entre o planejamento e normativas que configuram as políticas


sociais de saúde no Brasil (assim como a socioeducativa) de um lado, e seu desenvolvimento na
realidade concreta de outro, demonstram a importância de ir além do debate descritivo e dados
técnicos, requisitando a análise exaustiva de suas causas e inter-relações, e das razões econômico-
políticas subjacentes aos dados (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Essas contradições evidenciam as
tensões políticas e societárias que marcam a formulação e a cobertura dessas políticas sociais (ibid).

Não sendo possível captar a política social objetivamente em sua inteireza, é necessária
a análise crítica de sua processualidade, buscando inferências mais compatíveis com suas
propriedades essenciais do que esquemas explicativos formais, que residam unicamente em suas
expressões aparentes (PEREIRA, 1987).

Essa análise crítica traz como orientação teórico-metodológica o materialismo histórico


e dialético de Marx, que para o conhecimento da realidade propõe a elevação do abstrato ao
concreto, sendo este o ponto de partida efetivamente real, mas também resultado, se colocando
ao pensamento como síntese de múltiplas determinações. Assim, propõe realizar “a viagem pelo
caminho de volta” (MARX, 2010), partindo de uma determinação mais precisa que é a realidade,
chegando a conceitos mais simples e abstratos, mas retornando para o concreto, que após a
primeira abstração, aparece como uma rica totalidade de múltiplas determinações e relações.

Assim, conforme postulado por György Lukács (apud FORTES, 2011), na compreensão da
totalidade do ser social está o entendimento que esta totalidade é determinada como um complexo
de complexos dinâmicos e heterogêneos. Então as relações que compõem a rica totalidade do
ser social serão mediadas e estruturadas dialeticamente por outras relações. Aqui destacamos
o racismo enquanto estrutura que determina a realidade social, e, portanto, um complexo que
compõe a realidade complexa.

Nesse sentido, para a compreensão e análise das políticas sociais, entende-se a importância
de realizar a leitura dessa realidade também a partir da perspectiva da decolonialidade, com
narrativas contra-hegemônicas, que são usualmente subalternizadas no processo de compreensão
da realidade e da história (ORTEGAL, 2019). Concordamos com o autor ao dizer que a colonialidade
se perpetua até hoje e formata o conhecimento em circulação, seja ele crítico ou não. Na contramão,
a decolonialidade se compromete com os subalternizados, seus saberes e seus referenciais.

Propomos que essa análise deve necessariamente partir do entendimento de que o racismo
enquanto estrutura que configura, determina e integra a organização econômica e política da
sociedade (ALMEIDA, 2019), vai fornecer o sentido, a lógica e a tecnologia para o funcionamento

328
328
das políticas sociais em questão. É por meio da categoria raça que se vai naturalizar e legitimar
a desigualdade do acesso aos direitos sociais (privilégio de pessoas brancas), a segregação e o
genocídio de grupos sociologicamente considerados minoritários (pessoas não brancas) (ibid).
Todo esse movimento será legitimado e reproduzido pelo Estado, inclusive pela configuração das
políticas sociais, uma vez que “a discriminação tem como requisito fundamental o poder [...]” (p.
26).

O conceito de “raça” aqui compreendido se baseia nos estudos de Ortegal (2019) e Almeida
(2019). Assim, a entendemos não como dado biológico, mas como componente mediador das
relações sociais, cuja dinâmica pode variar de acordo com cada contexto geográfico, histórico e
cultural:

[...] ainda que não possua fundamento material stricto sensu, a diferença
racial permanece capaz de operar, por meio de seu aspecto epistemológico
e supostamente reflexivo, como ideologia. Em outras palavras, embora não
possua validade como fato biológico, a ideia da existência de diferenças
raciais continua a ser reproduzida socialmente como crença e como elemento
mediador das relações sociais, servindo como ferramenta de reprodução de
violência e poder. (ORTEGAL, 2019, p. 75)

Dessa maneira, se em um primeiro momento tal categoria contribuiu para o estabelecimento


de uma estrutura societária desigual, a sua marcação no presente trabalho pretende utilizá-la como
reação antirracista no desvelamento e na identificação das dinâmicas dos processo de preconceito
e discriminação intrínsecos ao desenvolvimento das políticas sociais (GUIMARÃES, 1999 apud
ORTEGAL, 2019).

Nessas reflexões, como sugere Ortegal (2019), buscamos a contraposição na humanização, na


sensibilidade e na visibilidade como caminhos potentes. Falta às políticas sociais o olhar para esses/
as jovens como potência. A perspectiva hegemônica sobre eles/as é pela ótica da falta. Contudo,
a periferia negra não se silencia, ela faz barulho, ela se movimenta pela cidade, ela se reinventa.
São esses/as jovens que vão mostrar que há formas de vidas possíveis diante da precariedade, que
encontram no território e nas comunidades de afeto a produção da saúde.

Assim, a análise do surgimento e desenvolvimento das políticas sociais permite demonstrar


seus limites e possibilidades na produção do bem-estar nas sociedades capitalistas, considerando-
se o contexto de acumulação capitalista e luta de classes (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Conforme
as autoras, as políticas sociais são “processo e resultado de relações complexas e contraditórias
que se estabelecem entre Estado e sociedade civil, no âmbito dos conflitos e luta de classes que
envolvem o processo de produção e reprodução do capitalismo [...]” (p. 47)

Nessa perspectiva, a garantia do direito à saúde de adolescentes e jovens em cumprimento


de MSE em meio aberto do DF perpassa necessariamente pela participação desse público no
controle das políticas sociais a ele destinadas. A participação é um direito previsto em diversas
normativas, tais como: Constituição Federal, ECA, Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989. No entanto, para além do seu aspecto
aparente, técnico-operativo, consideramos aqui o direito à participação como o acesso a vivências

329
329
como sujeitos ativos e construtores de suas histórias e trajetórias. O desafio está na escuta das
estratégias desenvolvidas em suas sociabilidades, em busca do sentimento de pertencimento
social e ao território, da construção de identidade e do acesso a experiências de autoafirmação
(FERREIRA, 2021). Essa é a perspectiva que norteia o desenvolvimento da pesquisa que se busca
desenvolver, ao se propor ouvir socioeducandos/as do meio aberto do DF. Com tal intencionalidade
pretendemos ir na contramão do modo com que a branquitude tem hegemonizado pesquisas no
campo das Ciências Sociais, conforme aponta Ortegal (2019):

E o fato de a juventude negra ser geralmente tratada como problema e


não como potência também é capaz de informar sobre o modo como este
campo e as pesquisas que nele ocorrem são realizadas. [...] O processo de
esvaziamento destes sujeitos do quadro de referências bibliográficas produz
um efeito perverso, que faz parecer que estes jovens não possuem um saber
em si. Nem sequer um saber a respeito do problema que a eles mesmos
atinge, como se não elaborassem sobre suas próprias vidas. (p. 14-5 e 19)

Sem desconsiderar que tais relações e sociabilidades se encontram inseridas em um


contexto macrossocietário de acumulação do capital, acredita-se que conhecer as estratégias de
pertencimento e identidade dos/as socioeducandos/as negros/as em MSE de meio aberto, como
formas de resistência em saúde, possibilita pensá-las como potências nas ações das políticas
sociais, em um movimento dialético que evidencia contradições, interesses em conflito e disputas
no campo ideológico.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro, Pólen, 2019

BEHRING, Elaine e BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: Fundamentos e História. São Paulo, Cortez,
5a. Ed., 2008. (cap. 1. p. 25 a 46)

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção,
proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e
dá outras providências. Casa civil. Brasília, DF: 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 24 set. 2023

______. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Casa civil.
Brasília, DF: 2001. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.
htm>. Acesso em: 24 set. 2023

______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de
usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e
ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Presidência da República. Brasília,
DF: 2006. Disponível: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.
htm>. Acesso em: 07 out. 2023
330
330
______. Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a
adolescente que pratique ato infracional. Casa civil. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.
Brasília, DF: 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/Lei/
L12594.htm>. Acesso em: 24 set. 2023

______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Estatuto
da Criança e do Adolescente. 13.ed. Brasília: Centro de Documentação e Informação Edições Câmara,
2015. Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/18403/estatuto_
crianca_adolescente_ 13ed.pdf?sequence=27>. Acesso em: 24 set. 2023

______. Pnaisari: Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com
a Lei: instrutivo para a implantação e implementação da Pnaisari. Brasília: Ministério da Saúde,
Secretaria de Atenção Primária à Saúde, Departamento de Saúde da Família, 2021. 22 p. Disponível
em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_adolescentes_conflito.
pdf>. Acesso em: 24 set. 2023

FERREIRA, Priscylla Ramalho Dias. Juventudes e Participação Política. Belo Horizonte: Fino Traço
Editora, 2021

FORTES, Ronal Vielmi. György Lukács e a inflexão da ontologia Ser, objetividade e história no
pensamento de Karl Marx. In: Verinotio revista on-line – n. 13, Ano VII, abr./2011. Disponível em:
<https://www.verinotio.org/conteudo/0.82398625353722.pdf>. Acesso em: 07 out. 2023

IPEDF – INSTITUTO DE PESQUISA E ESTATÍSTICA DO DISTRITO FEDERAL. Trajetória dos Socioeducandos


no Distrito Federal: meio aberto e semiliberdade 2022. Relatório. 2ª edição. Brasília: IPEDF, 2023.
Disponível em <https://www.ipe.df.gov.br/wp-content/uploads/2024/01/Relatorio_Trajetoria-
socioeducandos-meio-aberto-semiliberadade-2Edicao.pdf>. Acesso em 28 mar. 2024

MARX, Karl. O método da economia política. Tradução de Fausto Castilho. In: Crítica Marxista,
n. 30, ano 2010, p. 103-125, Campinas, 2010. Disponível em: < https://www.ifch.unicamp.br/
criticamarxista/arquivos_biblioteca/documento11Documento.pdf>. Acesso em 07 out. 2023

MPDFT. Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Pesquisa do MPDFT identifica déficit no
atendimento à saúde mental. Brasília: MPDFT, 2022. Disponível em: <https://www.mpdft.mp.br/
portal/index.php/comunicacao-menu/sala-de-imprensa/noticias/noticias-2022/13760-pesquisa-
do-mpdft-identifica-deficit-no-atendimento-a-saude-mental>. Acesso em 30 set.2023

NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2011

ORTEGAL, Leonardo Rodrigues de Oliveira. Atos de reexistência: juventude negra, reinvenções e


resistência anti-extermínio. 2019. 155 f. Tese (Doutorado em Política Social) — Universidade de
Brasília, Brasília, 2019. Disponível em: <http://icts.unb.br/jspui/bitstream/10482/44456/1/2019_
LeonardoRodriguesdeOliveiraOrtegal.pdf>. Acesso em 03 out. 2023

PBPD. Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Nota Pública sobre PLC 37/2013. S/L: PBPD, 2019.
Disponível em: <https://pbpd.org.br/publicacao/nota-publica-sobre-plc-372013/>. Acesso em: 26
set. 2023

331
331
PEREIRA, P. O problema da conceituação da política social: uma revisão crítica das posturas teóricas
mais influentes. p.37-72. In: Crítica marxista da teoria e da prática da política social no capitalismo
– peculiaridades da experiência brasileira. Tese de doutorado. Brasília: Programa de Pós-Graduação
em Sociologia / Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, 1987

VISCONTI, Gabriel Santos Elias e Harumi (coord.). PBPD. Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
Droga é caso de política. S/L: PBPD, 2018. Disponível em: <https://pbpd.org.br/publicacao/guia-de-
bolso-para-debates-sobre-politica-de-drogas/>. Acesso em: 26 set. 2023

332
332
ANÁLISE DAS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS INDÍGENAS EM CONTEXTO DE DESINFORMAÇÃO E
OFENSIVA CONSERVADORA - 2016 A 2022

Priscila Bezerra de Moraes


Thaísy Cunha Pessoa

RESUMO

Este artigo pretende trazer reflexões referentes a desinformações presentes


durante a vigência do governo Michel Temer (2016-2018) e de Jair Messias
Bolsonaro (2018 a 2022), analisando os aspectos que permeiam a sua relação
com a violação dos direitos indígenas, ameaça dos modos de vida e violência
disseminada com o aparato estatal.

Palavras Chave: Desinformação, povos indígenas, direitos, fake news.

1. BREVE HISTÓRICO DOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL

Este trabalho é fruto de breves reflexões realizadas sob a ótica da organização política
indígena, acerca das nuances que perpassam o âmbito dos direitos indígenas no Brasil, entendendo
os desdobramentos e narrativas apresentadas pelo Estado Brasileiro a partir da divulgação em
massa de desinformações vivências e amparadas pelo Governo de Michel Temer e Jair Messias
Bolsonaro (2016 e 2022).

A relação dos povos indígenas com o Estado brasileiro se constituiu conflituosa no que diz
respeito à violação de seus direitos, no entanto, a auto-organização coletiva desses povos firmou
um longo processo de resistência e protagonismo no decorrer do contexto colonial, imperial e
republicano no sentido de combater retrocessos que perpassam o bojo dos direitos territoriais,
individuais, coletivos e garantia das especificidades étnicas “Há cinquenta anos não se fala mais
oficialmente nos direitos históricos dos índios. Instalou-se no senso comum a ideia de que os índios
gozam de privilégios (e não de direitos) porque – e enquanto – não chegaram (ainda) à civilização”.
(CUNHA, 2017, p. 259).

A pacificação indígena constitui-se como um dos objetivos para garantir o “progresso”


pretendido pelo Estado Brasileiro em direção à “civilização”. Os indígenas neste eram categorizados
entre “mansos” e “bravos”, categorização esta que demonstra a força das classes dominantes
herdadas até os dias atuais.

Na República (1899), as legislações consolidam o projeto modernizador da nação brasileira,


instaurando legalmente a perspectiva tutelar presente na segunda Constituição da República dos
Estados Unidos do Brasil em 1891.

333
333
Em 1910, foi instituído o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), primeiro órgão estatal criado para
estabelecer a relação entre os aparelhos de poder e povos indígenas, “Art. 2, §3 – Pôr em prática
os meios mais eficazes para evitar que os civilizados invadam terras dos índios e reciprocamente
(Decreto 8.072 de 20 de junho de 1910)”, sendo extinto em 1966 por envolvimento em escândalos
por corrupção.

Em 1967 o SPI é substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) que surgiu enfatizando
a lógica tutelar. A exploração intensificada do território nacional foi o impulso para o genocídio
indígena ocorrido no contexto do regime militar (1964 a 1985).

Em 1973 o Estatuto do Índio foi regulamentado sendo considerado para aquele momento
um avanço legislativo, marcando de forma inédita como uma legislação específica que trouxesse
respostas aos desafios da política social referente a identidade, educação, cultura, saúde e terras.
No entanto, o documento deixou lacunas que, posteriormente, em 1988 foram sanadas pela
Constituição Federativa do Brasil (CF), constituindo-se o grande marco legislativo responsável pelo
reconhecimento das especificidades indígenas na contemporaneidade.

Atualmente no Poder Legislativo Federal, avança a bancada ruralista, declaradamente


apoiadores das mineradoras, madeireiras, latifundiários, empresários responsáveis pela exploração,
muitas vezes ilegal, de recursos naturais e energia hidráulica, reforçando a prática do genocídio e
da dizimação destes povos, aliados ao agronegócio, ampliam as possibilidades legais de prejuízos
incalculáveis à história indígena.

2. A DESINFORMAÇÃO EM CONTEXTO DE CAPITALISMO TARDIO: AVANÇO DA


DIREITA E AMEAÇA À DEMOCRACIA

Mandel (1982), em sua obra “O Capitalismo Tardio”, propõe que o capitalismo tardio é uma
fase do capitalismo que ocorre em um contexto de globalização, no qual as fronteiras econômicas se
tornam menos importantes e a interconexão entre os países é mais pronunciada. Segundo Mandel,
o período pós-guerra testemunhou uma industrialização generalizada universal, impulsionada pela
terceira revolução tecnológica, esse processo transformou a ciência e a tecnologia em um comércio
lucrativo a fim de atender à lógica do mercado.

A criação da tecnologia televisiva e o do rádio a partir do século XX, contribuiu para a evolução
de informações, trazendo assim notícias falsas ou mal-intencionadas, porém esse fenômeno não é
novo, visto que a disseminação de informações foi ampliada com a criação da imprensa em 1493.

No relatório que traz à tona a epidemia de desinformação vigente no Brasil e no mundo,


Derakshan e Wardle (2017) elaboraram o conceito que “fake news” é um mecanismo utilizado pelos
políticos a fim de descrever notícias que os desagradam, tornando-se instrumentos responsáveis
por restringir e oprimir a imprensa livre.

Assim, a categoria a ser utilizada neste artigo será a expressão “desinformação” e não
“fake news”, considerando o conceito de desinformação como informação falsa, compartilhada
com a intenção de causar danos, cultivando divisão sociocultural, disseminação de informações

334
334
caluniosas que desaguam, no caso dos direitos indígenas, em graves tensões étnicas e negligência
de seus direitos.

Outro fenômeno semelhante à desinformação é o negacionismo, responsável por rejeitar o


consenso científico e levantar debates sem legitimidade. A partir do ano de 2016, mundialmente
houve um expressivo marco de compartilhamentos de desinformações em mídias sociais1 é neste
contexto que no Brasil ocorre o golpe contra o governo Dilma Rousseff e legitima a ascensão de
Michel Temer à presidência da República, em meio a falsos rumores midiáticos.

Mauro Iasi (2015) defende que o conservadorismo, apresentado nos desdobramentos do


impeachment de Dilma não se constitui como um fenômeno atual, pois sempre esteve presente
principalmente nos grupos de direita. Iasi defende que o conservadorismo expressa uma consciência
imediata de determinada sociedade e demonstra pelos valores considerados determinantes nas
relações sociais.

Bolsonaro, em fevereiro de 2018 antes de ser eleito endossa “índio é nosso irmão, quer ser
reintegrado à sociedade [...]. Índio já tem terra demais [...]”, reforçando uma ideologia abordada
pelo Estado em tempos imperialistas. Em seguida, se lança candidato à presidência com o lema
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” e a vence com largo apoio das forças armadas, dos
ruralistas e dos evangélicos reacionários.

A visão evangélica e ruralista em relação aos povos indígenas manifesta-se de forma


diversificada, incluindo desinformações em diversas linguagens e movimentos indígenas de
direita. Bolsonaro aproveitou do conservadorismo estabelecido entre seus eleitores para difundir
desinformações utilizando de figuras indígenas com o intuito de legitimar sua política anti-indígena.

Tal estratégia fica nítida quando em 24/07/19 Bolsonaro convida Ysani Kalapalo2 para fazer a
leitura de uma carta na 74º Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) em Nova York, o documento
remetia à declaração de agricultores indígenas que o apoiavam. No entanto, foi publicada uma
nota dos 16 maiores povos indígenas do Xingu repudiando intenção do Governo de incluir Ysani
Kalapalo na delegação oficial do Brasil sem consulta prévia às lideranças do movimento indígena
“Não aceitamos e nunca aceitaremos que o governo brasileiro indique por conta própria nossa
representação indígena sem nos consultar através de nossas organizações e lideranças” (G1, 2019).
Após um ano deste episódio, Ysani Kalapalo declarou sua insatisfação com o Governo Bolsonaro em
seu canal oficial no YouTube3.

A disseminação de discursos de ódio se mostrou presente durante todo o mandato de


Bolsonaro. Em 2019, a pandemia de covid-19 tomou proporção mundial e a desinformação se fez
presente nas comunidades indígenas despertando o crescimento do movimento anti-vacina. Este
episódio ficou marcado como uma violação grave de direitos humanos.

1 A partir do ano de 2016, inaugurou-se um acontecimento histórico, o que os especialistas denominaram


como pós-verdade. E isso ocorreu pelo caso do Brexit e as eleições presidenciais estadunidense, entre Donald Trump
e Hillary Clinton, no qual, em ambos foram observados compartilhamento desenfreado de desinformação em mídias
sociais e o apelo às emoções para manipular os eleitores e favorecer um grupo específico de poder.
2 Indígena e youtuber simpatizante das ideologias radicais de Bolsonaro
3 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=adcslV3Y0X0> Acesso em: 30 mar. 2024

335
335
A disseminação massiva de teorias conspiratórias anti-vacina e de desinformação
promovendo o uso de medicamentos ineficazes dificultou o combate à pandemia no Brasil. Em
01/02/2021 Fernando Rosa Katukina, 56 anos, cacique, representante de 10 aldeias do povo nôke
kôi, no Acre, teve uma parada cardíaca decorrente de problemas de saúde (diabetes e hipertensão)
enfrentados a 11 anos no entanto, o caso do cacique foi divulgado por redes sociais apresentando
informações falsas a respeito de sua morte. O cacique havia tomado a 1ª dose da vacina Coronavac
13 dias antes de sua morte. A APIB confirma que devido à falta de transparência das informações
da Secretaria de Saúde Indígena – SESAI, não foi possível checar o número de óbitos de indígenas
em decorrência do covid-194.

Outro fato fundamental para ser enfatizado é o descaso com a população Yanomami, região
com maior número de indígenas no Brasil. Bolsonaro disseminou desinformações, subestimou a
população em diversos discursos, trazendo inverdades inclusive, a respeito ao tamanho da Terra
Yanomami e de seus habitantes. A desinformação vinda do governo Bolsonaro era nítida em suas
falas em entrevistas à imprensa, discursos oficiais e falas no “cercadinho” do palácio do planalto.

3. ARTICULAÇÃO POLÍTICA SOB A ÓTICA DA GARANTIA DE DIREITOS

Como estratégia de enfrentamento às violações de direitos, ocorre anualmente a mobilização


e resistência indígena, Acampamento Terra Livre - ATL, uma instância de organização e referência
nacional do movimento indígena no Brasil. A gênese do ATL se deu no ano de 2004, a partir de uma
ocupação realizada por povos indígenas da região sul do país, em frente ao Ministério da Justiça,
na Esplanada dos Ministérios, logo contou com a adesão de lideranças e organizações indígenas de
outras regiões do país. Registra-se como um marco histórico para o Movimento Indígena, um ano
depois é deliberado no ATL a criação Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

4 Disponível em <https://amazoniareal.com.br/caos-na-pandemia-indigenas-viram-alvo-de-fake-news-antivaci-
na/> Acesso em 30 de março. 2024

336
336
O ATL é considerado como a maior Assembleia dos Povos e Organizações Indígenas do
Brasil e no final de cada encontro são apresentados documentos com posicionamentos, registro
de demandas e reivindicações referente aos desmontes das políticas públicas, com enfoque
principalmente nas terras e na garantia do direito de exercício da autonomia, em resposta ao
tratamento tutelar oferecido pelo Estado.

Em 2016, ano do impeachment da Presidente Dilma, o documento final do ATL apresenta


a “Carta pública ao governo interino de Michel Temer: não admitiremos nenhum retrocesso nos
nossos direitos” e denunciam a Medida Provisória N° 726, de 12 de maio de 2016, que excluiu
a FUNAI da estrutura governamental, bem como a exclusão do Conselho Nacional de Política
Indigenista (CNPI) da estrutura do Ministério da Justiça e Cidadania. A carta apresenta a série de
ataques direto à saúde e educação diferenciadas, alimentação e no reconhecimento das terras
indígenas vinda do Governo Temer.

No ano de 2017, a carta final denuncia “a mais grave e iminente ofensiva aos direitos
dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988”: cortes orçamentários e de recursos
humanos na FUNAI, ataques aos direitos fundamentais dos povos indígenas no poder legislativo
pela bancada ruralista, o aumento do racismo institucional e a criminalização contra os povos
indígenas. Nesse mesmo ano, o então presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Nilson
Leitão (PSDB-MT), disse em entrevista à rede de comunicação alemã Deutsche Welle que “o índio
de algumas regiões quer plantar soja5”.  

O presidente Temer, no último ano do seu governo, publicou o Parecer AGU nº 001/2017,
a carta do ATL apresenta que esse parecer de forma inconstitucional, levanta a tese do marco
temporal, contrariando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), vista como uma das
mais graves violações contra os povos indígenas. Dentre a garantia dos direitos já apresentada nos
encontros passados, é reivindicada a revogação imediata do parecer 001/2017.

No ano de 2019, início do governo Bolsonaro, foi realizado o 15º ATL e a reflexão realizada
pelos povos indígenas foi de perdas institucionais nos dois anos do Governo Temer. O discurso de
Bolsonaro que já havia trazido a desinformação referente a demarcação das Terras Indígenas “nem
mais um centímetro”, corroborou para o aumento de invasões às Terras Indígenas, a violência e
práticas criminosas contra as aldeias no país.

Com o avanço da pandemia de covid-19, o 16º e 17º ATL, nos anos de 2020 e 2021,
respectivamente, ocorreram de forma virtual. As cartas dos encontros ecoam como um grito de
socorro, reafirmam a garantia de direitos fundamentais, principalmente o direito originário às
terras e trazem reivindicações que retratam o desrespeito às suas vidas: ausência de infraestrutura
e logística na saúde, ausência de exames e tratamento dos acometidos pelo vírus, ausência de
destinação orçamentária para aquisição de materiais de proteção das comunidades indígenas.
Sobretudo, denunciam a subnotificação de indígenas doentes ou mortos em decorrência do
covid-19.

5 Disponível em < https://deolhonosruralistas.com.br/2022/04/26/comunicadores-indigenas-combatem-fake-


-news-no-rio-negro/> Acesso: 31. Mar.2024

337
337
Com o tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”, o 18º ATL/2022
volta a ser realizado presencialmente em Brasília-DF e foi marcado por ações nomeadas por “luta
pela demarcação e aldeamento da política brasileira”, com o alerta sobre o marco temporal que
possuía previsão de retomar o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) ainda no primeiro
semestre daquele ano (nesse mesmo ano, o julgamento foi adiado mais uma vez). Conforme
estabelecido no 16ª ATL, foi realizada a agenda “Campanha Indígena” com o objetivo de reforçar
junto a representantes de partidos políticos e pré-candidatos, o protagonismo indígena na política.
Outra agenda importante nesse ATL com o tema “Colorindo a luta em defesa do território” foi
realizada a primeira plenária nacional LGBT da história do encontro.

Um dos reflexos da desinformação é o aumento exponencial da violência contra os povos


indígenas, o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil do ano de 2022, do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi), denuncia que entre 2019 e 2022, foram assassinados no Brasil 795
indígenas, dentre estes casos, constam os assassinatos de lideranças Guarani e Kaiowá.

A APIB, tendo o ATL como ápice da organização, vem se constituindo em uma ampla
estratégia de enfrentamento às desinformações, de mobilização indígena e de reivindicação junto
ao Estado na defesa dos direitos originários e em busca do exercício da sua autonomia.

4. ALDEAMENTO DAS REDES E DA POLÍTICA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Empreender reflexões referentes ao impacto das desinformações contra povos indígenas


diante as ofensivas conservadoras e violações de seus direitos foi a pauta central deste trabalho,
contudo, não se esgota a partir dos resultados apresentados, ao contrário, demonstra a relevância
de dar continuidade ao debate e à pesquisa nesta temática.

Ao realizar pesquisa nas cartas finais, fruto dos encontros Acampamento Terra Livre nos anos
2016 a 2022, pode-se notar a perspectiva indígena frente aos desmontes e à intenção dos Governos
Temer e Bolsonaro em manter o extermínio dos povos e etnias, por um lado pela incitação ao ódio
fomentado pela desinformação e por outro pela negativa do Estado dos direitos inerentes à vida.

O acesso às tecnologias e à internet vem se transformando em um mecanismo eficaz na


preservação da cultura indígena e também para combater a disseminação de desinformação, a
exemplo da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, criada em 2017. O objetivo da criação da Rede
se deu no combate às desinformações propagadas por ruralistas da região do Rio Negro (AM), são
750 comunidades indígenas nesta região, a Rede oferta oficinas anuais para novos comunicadores
e as informações são repassadas também nas línguas locais e vem obtendo resultados satisfatórios
tanto nas comunidades, quanto na formação de comunicadores indígenas6. Outra possibilidade de
enfrentamento foi o nomeado “Aldeamento Político”. Sônia Guajajara, do povo Guajajara/Tentehar,
atualmente no cargo de Ministra dos Povos Indígenas ressalta:

“Não recuamos, depois de séculos de exploração, abuso e traição, nos


mantemos aqui, de pé e firmes. Resistimos a todo o período colonial, aos
6 Disponível em<https://deolhonosruralistas.com.br/2022/04/26/comunicadores-indigenas-combatem-fake-
-news-no-rio-negro/> Acesso em 30. Mar 2024

338
338
regimes ditatoriais, ao fascismo que está aí. E dessa vez, a aposta é ocupar
pela porta da frente, pela criação da Bancada do Cocar. O acampamento
não está partidarizado, somos um movimento livre e independente. Mas se
são os partidos que estão decidindo sobre nossa vida, nossa terra e nossos
direitos, é lá que devemos estar ocupando.”  Sônia Guajajara (Em discurso
no ATL 2022).

Portanto, o protagonismo destes povos faz-se necessário para consolidação do movimento


indígena e principalmente para o fortalecimento da luta em busca das garantias dos direitos
originários, sendo fundamental para o combate à desinformação em contexto de ofensiva
conservadora.

REFERÊNCIAS

WARDLE Claire; DERAKHSHAN Hossein. Desordem Informacional: para um quadro interdisciplinar


de investigação e elaboração de políticas públicas. Unicamp. 2017.

LEIRNER, P. O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares, operações psicológicas e política
em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda. Editorial. 2020.

VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São
Paulo: Companhia das Letras, 2017.

CIMI. Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil. 2022. Disponível em: <https://
cimi.org.br/wp-content/uploads/2023/07/relatorio-violencia-povos-indigenas-2022-cimi.pdf>.
Acesso em: 30/03/2024

IASI, Mauro. De onde vem o conservadorismo? Blog da Boitempo. 15 abr. 2015. Disponível em:
<https://blogdaboitempo.com.br/2015/04/15/de-onde-vem-o-conservadorismo/>. Acesso em: 30
mar. 2024.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com Aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

Caciques de 16 povos repudiam indígena que acompanhou Bolsonaro na ONU. G1. Disponível em
< https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/09/24/caciques-de-16-povos-repudiam-indigena-
que-acompanhou-bolsonaro-na-onu.ghtml> Acesso em 31. Mar. 2024

SER SOCIAL. Povos Tradicionais e Política Social. Brasília (DF), v. 27, nº 53, de julho a dezembro de
2023.

339
339
MULHERES TRANS E TRAVESTIS EM SITUAÇÃO DE RUA NO DF:
uma análise da violação de direitos

Maria Cecília Minora Vasconcelos


Luiza Sousa de Carvalho

RESUMO

O presente artigo tem como objeto de estudo as violações de direitos


que acometem mulheres trans e travestis em situação de rua do Distrito
Federal, uma vez que estas são vítimas da estrutura heterocispatriarcal
capitalista, e estão inseridas no contexto de pauperização em sua condição
extrema na sociedade. Nesse sentido, o objetivo geral deste trabalho é
identificar os alicerces das violações sociais que perpassam as vidas desse
grupo populacional, e os objetivos específicos são analisar a produção de
notificações de violências contra esse segmento nos últimos quatro anos,
além de compreender as bases sócio-históricasde tais violações. Observou-se
que não há publicação oficial de dados específicos a respeito do mapeamento
e dos registros de violência contra mulheres trans e travestis em situação
de rua no DF dos últimos quatro anos, e que além da subnotificação dos
casos de violências às quais são acometidas, há uma precariedade quanto à
proteção social direcionada à mulheres trans e travestis em situação de rua
no Distrito Federal.

Palavras-chave: Mulheres Trans e Travestis; População Em Situação de Rua;


ViolênciasContra Mulheres Trans e Travestis.

ABSTRACT

The present work has as its object of study homeless trans women and
travestis in the Federal District (DF), who are victims of the cisheteropatriarchy
capitalist structure, and are inserted in the context of extreme poverty
conditions in society. In this sense, we sought to identify the foundations
of social violations that permeate the lives of this population group, as well
as analyze the production of reports of violence against this segment in the
last four years. It was observed that there is no official publication of specific
data regarding the mapping and records of violence against trans women and
travestis living on the streets in the Federal District over the last four years,
and that in addition to the underreporting of cases of violence to which they
are affected, there is a precariousness regarding social protection aimed at
trans women and travestis living on the streets in the Federal District.

Keywords: Trans women and Travestis; Homeless Population; Violence


Against Trans Women And Travestis.

340
340
1. INTRODUÇÃO

O conceito de gênero engloba as especificações socioculturais delimitadas a partir das


normas regulatórias do sexo, ambos construídos socialmente. Ademais, as posições subalternas das
mulheres, sócio-historicamente construídas no sistema capitalista, faz com que a desvalorização
e a dominação das mulheres se espraie a tudo o que possa ser identificado como feminino,
promovendo a submissão dos sujeitos e de tudo o que é considerado feminino à violências, como
é o caso de corpos que desafiam as normas heterocispatriarcais.

Não obstante, a acumulação primitiva e o estabelecimento do modo de produção capitalista


fez emergir o pauperismo ao longo do seu processo histórico de consolidação,além de diversas
expressões da questão social, dentre elas, destaca-se a vivência de pessoas em situação de rua.
Por conseguinte, essa condição passa a ser naturalizada, perdendo-se a dimensão da problemática
embutida nas diversas negações de direitos que levam pessoas a fazerem das ruas, seus logradouros
e espaços de sociabilização.

Tendo por base as duas problemáticas, faz-se necessário pensar o conjunto de violências
que perpassam e estruturam o cotidiano de mulheres, especificamente as mulheres trans e
travestis em situação de rua, uma vez que seus corpos são considerados ilegítimos e não dignos de
viver, agravados pela condição de situação de rua. Assim, a partir da conjuntura da população em
situação de rua do Distrito Federal, urge o olhar direcionado às mulheres trans e travestis.

2. PATRIARCADO, GÊNERO E ABJEÇÃO

Compreender as violações que perpassam as vidas de mulheres trans e travestis em situação


de rua exige o estudo e o aprofundamento das correlações existentes entre o sistema patriarcal, e as
categorias gênero e abjeção, remontando o processo da acumulação primitivae suas implicações na
subjugação da mulher. A partir das relações patriarcais de gênero, fundantes no sistema capitalista,
são estabelecidas concomitantemente as hierarquizações, violações e explorações entre os sexos
Judith Butler (1993) estabelece que sexo não é algo estático, sob o qual se incide as imposições
sociais de gênero, mas é compreendido como uma diretriz que orienta a materialização dos corpos.
Convencionalmente, estipula-se gênero como a construção social do que se materializa a partir dos
sexos. A autora, no entanto, defende que o sexo, assim como gênero, é um construto, em que
o sexo seria resultado

forçado das normas culturais regulatórias que alinham a materialização dos corpos,
enquanto o gênero, estaria intimamente ligado às bases relacionais, ou seja, é constituído com base
nas “interseções raciais, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas”
(BUTLER, 2019, p. 20). Assim, ela desafia a ideia de que existem categorias de gênero fixas e
binárias, argumentando que a identidade de gênero é fluida e mutável, e que as normas de gênero
podem e devem ser questionadas e subvertidas.

É inerente ao sistema héterocispatriarcal, o qual se refere à interseção de três ferramentas


sistêmicas de opressão contra corpos que transgridem a heterossexualidade, a cisgeneridade
e o patriarcado, a delimitação do que é socialmente estimulado e legitimado, bem como o que

341
341
é condenável, e consequentemente, abjetificado. Nesse sentido, as opressões passam a ser
perpetuadas por meio da exclusão de corpos e identidades que desafiam e transgridem as normas
sociais estabelecidas, sendo relegados ao campo da abjeção. Acerca detal categoria, as autoras Carla
Rodrigues e Paula Gruman (2021) discorrem que, para a filósofa Julia Kristeva, a abjeção designa
a reação visceral e psicológica, que ocorre quandose depara com algo que é “outro”, mas que ao
mesmo tempo promove a reflexão acerca da própria origem corpórea e animal. A abjeção, para a
autora, portanto, se refere “[...] ao sentimento de repúdio causado pela transgressão de fronteiras,
sejam elas morais,linguísticas, políticas, psíquicas ou corporais” (LECHTE, 1990, p. 117). Ao beber
da fonte deJulia Kristeva, Judith Butler (2015) se debruça sob a conceituação de abjeção enquanto
método de pensamento dos gêneros e sexualidades dissidentes da norma para caracterizar “seres
abjetos”, ou seja, seres que transgridem de alguma forma as fronteiras estipuladas e normalizadas
socialmente para os corpos. À proporção que determina o limite, o abjeto vive fora dele, uma
vez que sua existência se produz a partir da rejeição, fundante do sujeito da norma e exterior ao
abjeto. Nota-se a relação dialética existente entre ambos, uma vez quesão opostos, todavia não
existem sem a coexistência mútua.

O corpo abjeto, portanto, pode ser identificado como corpos que passam a ser descartados
ou excluídos da sociedade por não se adequarem às normas de gênero e sexualidade dominantes.
A partir do viés da abjeção e da violência contra a população LGBTQIAPN+, é estabelecido o debate
acerca da vulnerabilidade vivenciada por pessoas transsexuais e travestis no tocante às normas de
gênero, com delimitação às mulheres trans e travestis. Ademais, a abjeção desses corpos é uma
forma de negar a diversidade de gênero, e portanto, suas existências, perpetuando a opressão
contra esses corpos, que passam a ser estigmatizados no imaginário social como corpos desviantes,
excretáveis, ilegítimos e não-dignos de viver.

3. A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E A ESPECIFICIDADE DE MULHERES TRANS E


TRAVESTIS EM SITUAÇÃO DE RUA NO DISTRITO FEDERAL

O pauperismo enquanto processo histórico, compreendido como “a pobreza acentuada e


generalizada no primeiro terço do século XIX” (SANTOS, 2012, p. 28), expressa o processo de
contradição inerente ao modo de produção capitalista, uma vez que ao mesmo tempo em que a
capacidade social de produzir riquezas aumentava, a pobreza crescia proporcionalmente. Nesse
sentido, a exploração da força de trabalho serviu como alicerce para o surgimento da questão
social, entendida por José Paulo Netto (2001) como a elucidação sociopolítica do fenômeno da
pauperização, intimamente associada à sociedade burguesa. No Brasil, uma latente expressão da
questão social é a população de rua, a qual Silva (2006) considera que o fenômeno “situação de
rua” é consequência de diversos determinantes: estruturais como dificuldade de acesso à moradia,
a emprego e renda, bem como rompimento de vínculos familiares, consumo abusivo de álcool e
outras drogas e outrasquestões de saúde mental.

Para enfrentamento dessa realidade foi instituída a Política Nacional da População em


Situação de Rua, de 2009. Tal Política, instituída a partir do Decreto Federal n° 7.053/2009, tem
como princípios, diretrizes e objetivos, os quais versam sobre os preceitos da dignidade humana. O
Distrito Federal, no entanto, implementou políticas específicas para a inclusão social da população
em situação de rua, alinhadas com a Política Nacional. A Política para Inclusão Social da População

342
342
em Situação de Rua do Distrito Federal, a partir do Decreto distrital nº 33.779, de 6 de julho de
2012, visa incentivar a organização da população que vivencia tal condição, garantir formação
profissional e promover mudanças de paradigmas culturais. Posteriormente, em 2020, a Política
Distrital para a População em Situação de Rua foi criada pela Lei distrital nº 6.691.

Faz-se fulcral compreender as diferenciações de vivências perpetradas pelo gênero às


mulheres trans e travestis, que não se enquadram nos moldes de gênero binário socialmente
naturalizado, nenhum espaço lhes pertence naturalmente, conforme apontado por Ceniceros
(2020, p.79). Portanto, lhes são retiradas as possibilidades de habitar um corpo e um gênero,

bem como a possibilidade de habitar a cidade, sendo vítimas de múltiplas exclusões por
ocuparem, no imaginário social, esse espaço do exótico e ao mesmo tempo, marginal e impróprio.
Assim, a violência contra mulheres trans e travestis em situação de rua atravessa múltiplas expressões
da questão social, de modo a configurar-se como uma demanda significativa e persistente em todo
o mundo.

A rede socioassistencial e a rede de atenção à saúde do Distrito Federal conta com


equipamentos especializados em atendimento à população LGBTQIAPN+, sendo eles: o Centro
de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS Diversidade), que realiza atendimento
especializado ao público LGBTQIA+; o Ambulatório de Gênero - HUB/ UnB, que oferece atendimento
em saúde mental para crianças, adolescentes e adultos LGBTQIAPN+; o Ambulatório de Diversidade
de Gênero – Ambulatório TRANS, queoferece atendimento e acolhimento à população LGBTQIAPN+,
sob o viés da despatologização das identidades e expressões de gênero, promovendo os cuidados
necessários à diversidade, para maiores de 18 anos. Além disso, conta também com equipamentos
de atenção à população em situação de rua sendo eles: o Centro de Referência Especializado
para População em Situação de Rua - Centro POP (duas unidades, uma no Plano Piloto e outra
em Taguatinga), bem como as unidades de acolhimento para adultos e famílias. No entanto, não
existem políticas voltadas especificamente para mulheres trans e travestis em situação de rua no
DF.

Ademais, há a necessidade de compreensão do atravessamento das questões raciais


como imperativo para desenvolver abordagens mais abrangentes e eficazes no enfrentamento
das adversidades enfrentadas por esse grupo marginalizado, uma vez que são perpassadas pelas
estruturas sócio-históricas de um país sustentado pelo racismo, escravismo, colonialismo, e pelo
patriarcado, onde a população negra é historicamente marginalizada. A análise da interseccionalidade
se torna essencial para compreender as múltiplas formas de opressão em que mulheres trans e
travestis negras em situação de rua enfrentam. Como destaca Angela Davis (1981), a interseção
entre gênero, raça e classe revela as maneiras pelas quais as estruturas sociais se entrelaçam e
perpetuam a marginalização, evidenciando que as mulheres trans e travestis negras em situação
de rua não são apenas vítimas da exclusão social, mas sim alvos específicos de sistemas opressivos.

Segundo o Relatório do Perfil da População em Situação de Rua no Distrito Federal de 2022


(IPEDF, 2022), a distribuição da população em situação de rua por sexo é composta em 19,3%
pelo sexo feminino, e em 80,7% pelo sexo mesculino. No que tange à identidade de gênero, 3,6%
não se identifica com o sexo que lhe foi atribuído. A partir dos dados de2022 do Ministério dos
Direitos Humanos e Cidadania , foram realizadas 21 notificações de violências contra população
em situação de rua do DF, em que 67% foram notificadas por mulheres em situação de rua. Destas,

343
343
com a categoria perfil da vítima a partir da categoria “identidade de gênero” foram registradas
11 casos como “ignorado”, 9 registros como “nãose aplica”, 1 registro de transsexual homem e 0
registros de transsexuais mulheres e travestis.

Sabe-se que esse grupo populacional alcança patamares exorbitantes de hostilização e


vulnerabilidade social, principalmente no que tange a população negra, marcador este que desloca
esse grupo à situação de alta vulnerabilidade e precarização de suas existências. Portanto, os
dados apontam para uma provável subnotificação dos casos, para o descaso e para a subsequente
dificuldade de produção de dados sobre a população trans, como um todo,em situação de rua no
Distrito Federal. Portanto, é presumível que esse segmento populacional foi sim vítima de violência
e/ou assassinato no DF no ano de 2022, ainda que esses casos não tenham sido notificados e
contemplados nas estatísticas. Ademais, a maior significância dentre o estudo e análise dos dados
foi a constatação de que não existem dados federais e estaduais/ distritais acerca dos registros de
violência contra mulheres trans etravestis em situação de rua especificamente.

4. CONCLUSÃO

A partir da exploração realizada ao longo deste artigo, evidenciou-se a intrincada relação


entre a subjugação da mulher e as configurações do sistema capitalista, que não apenas relega
as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também perpetua a violência de gênero. À luz de tais
elementos, a discussão sobre a abjeção somou no entendimento acerca da forma como corpos
e identidades dissidentes são excluídos e estigmatizados. Esse processo de marginalização,
evidenciado na violência contra pessoas LGBTQIAPN+, reflete não apenas na imposição de normas
sociais, mas também na criação de uma categoria de “outros” que são abjetificados e rejeitados
para afirmar a identidade normativa vigente.

Na esfera do Distrito Federal, análise da população em situação de rua, quandodelimitada à


população de mulheres trans e travestis, destacou o emaranhado de expressõesda questão social
enfrentado por esse grupo marginalizado. A partir da pesquisa documental realizada, verificou-se
que foram registrados dois assassinatos de mulheres trans e travestis em 2022 no DF. Isso permite
a reflexão acerca da dificuldade do mapeamento desse segmento populacional no DF, além de
denotar uma provável subnotificação dos registros de violência e assassinatos, não só contra essa
população, mas se estendendo à toda a população de mulheres trans e travestis. Também se faz
fulcral a crítica acerca da falta de levantamento de dados, tanto do perfil da população em situação
de rua no DF, quanto dos registros de violência contra o segmento de mulheres trans e travestis
em situação de rua no DF dos últimos quatro anos, o que impossibilitou a comparação dos dados
conforme se pretendia realizar neste artigo, uma vez que há apenas levantamentos de 2022. A
subnotificação e a falta de levantamentos específicos voltados a esse grupo populacional, dificultam
a elaboração e a construção de políticas públicas específicas voltadas para essa população, as quais
atualmente são inexistentes no DF. Essa realidade remonta a necessidade de revisão da capacitação
dos profissionais de todos os serviços, no que diz respeito ao atendimentosensível e comprometido,
que leva em consideração as particularidades e as necessidades específicas desse segmento
populacional, além da criação e da efetivação de serviços e políticas públicas especializadas.

344
344
O reconhecimento das múltiplas violações enfrentadas por esse grupo reforça a importância
de uma abordagem integrada, que leve em consideração não apenas a identidade de gênero, mas
também as interseções de raça/etnia. Essa perspectiva, aliada à criação de serviços especializados
e políticas voltadas para esse segmento populacional, tornam-se essenciais no enfrentamento das
complexas demandas dessa população marginalizada.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal. Perfil da população em situação de


rua do Distrito Federal. Relatório de pesquisa. Brasília: Codeplan et. al, 2022. Disponível
em: https://www.ipe.df.gov.br/wp-content/uploads/2021/12/Relatorio-Perfil-da-Populacao-em-
Sit uacao-de-Rua-no-Distrito-Federal.pdf. Acesso em: 5 set. 2023.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Painel de Dados: Painel de dados da
Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos. [S. l.]: SINAN, [2023?]. Disponível em: https://www.gov.
br/mdh/pt-br/ondh/painel-de-dados. Acesso em: 05 out. 2023.

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: Crocodilo, 2019.

BUTLER, Judith. Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do sexo. Nova York: Philosophy,
1993.

BUTLER, Judith; AGUIAR, Renato. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio
De Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CENICEROS, Melina Amao. Cuerpos impropios apropiando el espacio expropiado: las luchas de
las mujeres trans en Tijuana. Polis, Santiago, v. 19, n. 55, p. 112-138, jan. 2020. Disponível
em: http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-65682020000100112&lng=es
&nrm=iso. Acesso em: 02 fev. 2023.

DAVIS, Angela Y. Women, Race & Class. New York: Random House, 1981.

KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos EstudosCEBRAP,


n. 86, p. 93–103, mar. 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/
S0101-33002010000100005. Acesso em: 02 fev. 2023.LECHTE, John. Julia Kristeva. London: Rouledge,
1990.

NETTO, José Paulo. Cinco Notas a Propósito da “Questão Social”. Revista Temporalis, Brasília,
2. ed, ano II, n. 3, p. 9-32, 2001. Disponível em: https://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/
temporalis_n_3_questao_social-201804131245276705850.pdf. Acesso em: 05 fev. 2023.

RODRIGUES, Carla e GRUMAN, Paula. Do abjeto ao não-enlutável: o problema da inteligibilidade na


filosofia de Butler. Anuário Antropológico, v. 46, n.3, p. 67–84, 20 Set 2021. Disponível em: https://
doi.org/10.4000/aa.8933. Acesso em: 23 nov 2021.

345
345
SANTOS, Josiane Soares. “Questão Social”: Particularidades no Brasil. 1. ed. São Paulo: Cortez
Editora, 2012.

SILVA, Maria Lúcia Lopes da. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população
em situação de rua no Brasil 1995-2005. Orientadora: Profª. Drª. Ivanete Salete Boschetti Ferreira.
2006. 220 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós Graduação em Política Social, Universidade
de Brasília, Brasília, 2006. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/1763. Acesso em:
5 set. 2023.

346
346
QUILOMBO É SINÔNIMO DE RESISTÊNCIA:
uma reflexão sobre a Comunidade Quilombola Malhadinha/TO

QUILOMBO IS SYNONYMOUS WITH RESISTANCE:


a reflection on Malhadinha Quilambola Community in Tocantins (Brazil)

Laís Pereira Santos


Maria José Antunes da Silva
Rosemary Negreiros de Araújo

RESUMO

Este artigo visa abordar os aspectos socioeconômicos e culturais da


Comunidade Quilombola Malhadinha, situada no município de Brejinho de
Nazaré/TO. Foi realizado um levantamento bibliográfico sobre comunidades
quilombolas sobre esse território e sobre a legislação que beneficiaram os
negros e os quilombolas. Os resultados mostraram que a comunidade tem
como base socioeconômica o extrativismo e o cultivo de agricultura familiar
e vem desenvolvendo projetos voltados para o beneficiamento de frutos
do cerrado e de mandioca. Observamos que o processo organizativo da
comunidade tem levado a acessar importantes políticas públicas que tem
contribuído para a melhoria das condições de vida de sua população no
processo de emancipação política.

Palavras-chave: Comunidades Quilombolas. Descendentes escravizados.


Malhadinha.

ABSTRACT

This paper aims to address the socioeconomic and cultural aspects of


Malhadinha Quilombola Community, located in the municipality of Brejinho
de Nazaré in the State of Tocantins (Brazil). A bibliographic survey was carried
out on quilombola communities, and on the legislation that benefited black
people and quilombolas. The results showed that the community has as its
socioeconomic base the extractivism and the cultivation of family agriculture
and has been developing projects aimed at the processing of local fruits and
cassava. We observed that the organizational process of the community
has led to access to important public policies that have contributed to the
improvement of the living conditions of its population in the process of
political emancipation.

Keywords: Quilombola Communities. Enslaved descendants. Malhadinha.

347
347
1. INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a abordar os aspectos socioeconômicos e culturais da


Comunidade Quilombola Malhadinha, localizada acerca de 28 km do município de Brejinho de
Nazaré/TO, região central do Tocantins. Em função da indefinição quanto à divisa municipal, Porto
Nacional/TO, também é responsável por sua administração. Essa Comunidade é composta por 60
casas que abrigam 60 famílias, localizada na região da Fazenda São Felipe.

Malhadinha remete ao tema sobre os quilombos e, consequentemente, à história da


escravidão, tema que abordaremos superficialmente, embora se saiba da estreita relação entre
este período e a resistência dos escravos voltada para a questão da propriedade da terra e da
preservação da cultura afro-brasileira. As comunidades quilombolas do estado do Tocantins foram,
e são, até hoje, marcadas por violência e opressão, tanto do agronegócio, quanto na falta de
atuação do Estado.

Este artigo está dividido em quatro partes, quais sejam: Comunidades Quilombolas;
Remanescentes de antigos quilombos; Formação de comunidades quilombolas no Tocantins; e
Comunidade Quilombola Malhadinha.

2. COMUNIDADES QUILOMBOLAS

O Brasil foi, historicamente, marcado pelo tráfico e comercialização de africanos escravizados,


sendo o país com a maior quantidade de importação de escravos e, legalmente, foi o último a abolir
a escravidão. A principal mão de obra do regime escravista era de africanos e seus descendentes,
havendo também uma parcela de indígenas. O regime escravista era caracterizado pela intensa
violência e coerção aos negros. Os castigos e os tormentos infligidos não se constituíam em atos
isolados. (Treccani, 2006).

Souza (2008) menciona uma legislação que era responsável por criminalizar e penalizar
os escravizados que fugissem ou tentassem realizar rebeliões. As primeiras referências e registros
sobre os quilombos foram feitos pela Coroa Portuguesa e pelos administradores do Brasil Colônia.
Quilombo era definido como sendo “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco,
em partes despovoadas, ainda que não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões neles”
(Souza, 2008, p. 23).

Leite (2008, p. 965) afirma que as rebeliões e as tentativas de ir contra o regime escravista
marcaram a palavra “quilombo”, que era associada à “luta contra a dominação colonial e de todas as
lutas dos negros que se seguiram após a quebra desses laços institucionais.” Atualmente, a palavra
quilombo é entendida por diversos autores como um local de resistência, tanto no que se refere
à questão da propriedade da terra quanto à preservação da cultura afro-brasileira. Os quilombos
são importantes exemplos de luta contra a opressão e a exploração, além de serem considerados
Patrimônios Históricos Nacionais pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
desde 1938 e de serem reconhecidos como Patrimônios Culturais da Humanidade pela UNESCO
(2005).

348
348
3. REMANESCENTES DE ANTIGOS QUILOMBOS

É necessário colocarmos na pauta da sociedade brasileira o debate sobre a questão da


escravização e da resistência das comunidades quilombolas. Anjos (2003), denuncia que no passado
o “esquecimento da cultura afro-brasileira”, tinha sido uma das questões mais desafiadoras. Todavia
esta pode ter sido proposital, com o objetivo do embranquecimento da população. Essa é uma
característica marcante no processo de formação social brasileira, que se apropriou de mão de obra
escrava, contraditoriamente à mão de obra livre, característica própria de uma nascente formação
capitalista mundial que, ao mesmo tempo, nega ao trabalhador a sua condição de produtor de
riqueza e sua constituição de Ser Social.

A Figura 1, com base no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), em


2019 existiam 5.972 localidades quilombolas, no Brasil, sendo 404 em territórios oficialmente
reconhecidos. Havia 2.308 agrupamentos quilombolas e 3.260 identificados como outras
localidades quilombolas. Esses dados nos mostram um certo avanço no que diz respeito à pesquisa
e ao mapeamento de comunidades quilombolas.

Figura 1: Total estimado de Localidades Quilombolas no país – 2019

Fonte: Sallun (2022) e IBGE (2019).

349
349
Ainda, na Figura 1, é possível observar que, dos 27 estados, o Tocantins aparece em 18º
lugar. Todavia, os dados denunciam o reduzido o número de áreas quilambolas reconhecidas
oficialmente.

4. FORMAÇÃO DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO TOCANTINS

O Estado do Tocantins foi criado em 1988, todavia o território já tinha moradores nativos
desde o período que remonta a coroa portuguesa. Ele fazia parte de Goiás e, somente com a
Constituição Federal que se torna um estado da federação brasileira. Santos (2019) afirma que é
provável que as comunidades quilombolas mais antigas sejam da época do Ciclo do Ouro, como
podemos ver a seguir:

[...] foram relacionadas vinte e uma comunidades quilombolas na região


do Ciclo do Ouro nesse primeiro levantamento: Lagoa da Pedra, Fazenda
Lagoa dos Patos e Fazenda Kaágados, em Arraias; Kalunga do Mimoso,
em Arraias e Paranã; Chapada da Natividade e São José, no município de
Chapada da Natividade; Córrego Fundo, Curralinho do Pontal, Malhadinha
e Manoel Alves, em Brejinho de Nazaré; Morro de São João, em Santa Rosa
do Tocantins; Redenção, em Natividade; São Joaquim e Laginha, em Porto
Alegre do Tocantins; Mata Grande, em Monte do Carmo; Rio da Almas, em
Jaú do Tocantins; Baião e Poço Dantas, no município de Almas; Claro, Ouro
Fino e Prata, em Paranã; Jaú do Tocantins, em Dianópolis; Água Branca e
Matões, em Conceição do Tocantins. (Santos, 2019, p. 26).

Conforme Bruno (2002), a resistência da população negra no país foi permeada por grandes
pressões. Durante o período da Nova República, as elites agrárias tinham duas fortes características:
a defesa da propriedade como direito absoluto e a prática da violência. Santos (2019, p. 55) indica que
tais características se trata de “práticas de violência ritualizadas e institucionalizadas, envolvendo
formação de milícias, contratação de capangas e também a desqualificação dos trabalhadores
rurais e seus representantes.”

Os movimentos quilombolas, no estado tocantinense, são formados por comunidades com


histórias singulares de conquistas de territórios, contando com um auxílio entre as comunidades,
com o objetivo de fortalecer a luta de forma conjunta. Foi criada uma coordenação estadual que
foi integrada a uma coordenação nacional para enfrentar “a escravidão, as secas, as enchentes, a
fome, as cercas e as expulsões da terra promovidas pela lógica capitalista e pelo próprio estado
brasileiro” (Santos, 2019, p. 50).

Portanto, a luta e a resistência negra e quilombola, no estado do Tocantins, se fortaleceu no


processo histórico, por meio de uma construção coletiva entre as comunidades e com diferentes
atores sociais. Santos (2019) afirma que:

[...] o debate sobre a questão negra no Tocantins tomou força quando


militantes dos movimentos sociais das cidades de Miracema, Miranorte,
Tocantínia, Porto Nacional e Palmas participaram das comemorações dos 300

350
350
anos da morte de Zumbi dos Palmares, em Brasília, no ano de 1995. A partir
desse evento, esses militantes passaram a estudar e entender conceitos
como quilombola e comunidades negras rurais. (Santos, 2019, p. 60).

É importante ressaltar que já fazia décadas da existência dos movimentos quilombolas


quando houve o encontro entre os movimentos quilombolas e os movimentos de negros no
estado. A partir desse momento, houve um entrelaçamento na luta e o fortalecimento desses
dois movimentos. Em um estudo realizado por Santos (2019), com entrevistados na comunidade
Malhadinha, é possível perceber que o nascimento do movimento comunitário se deu a partir
de uma intensa mobilização entre eles. Entre outros aspectos, eles visavam a formação de uma
identidade do grupo, através de organizações de teatro e com a visita a outras comunidades. Para
isso, eles contaram com a participação do Grupo de Consciência Negra do Tocatnins (Gruconto), um
grupo de teatro. “Antes a gente trabalhava com teatro, como Movimento Negro. [...] Foi através do
Iramar e do André. [...] A questão do professor André Luiz, que ele é militante do Gruconto, [...] a
gente foi em outras comunidades […].” (Santos, 2019, p. 61).

Outro fator crucial para o fortalecimento das comunidades quilombolas foram alguns
investimentos estatais. Através do Decreto nº 2.385, em 2005, ainda que tardiamente, o governo
tocantinense começou a abordar a temática quilombola, com a convocação da I Conferência
Estadual de Promoção de Igualdade Racial, com o objetivo de sugerir diretrizes para embasar
ações relacionadas à igualdade racial e com a finalidade de “análise da realidade social, econômica,
política e cultural brasileira, no que se refere à avaliação das ações e políticas públicas de promoção
de igualdade racial nas três esferas de governo” (Esteves, 2012, p. 123).

Através do referido Decreto, houve a instituição do Comitê Estadual Gestor do Programa


Brasil Quilombola e Comunidades Tradicionais no Estado do Tocantins vinculado à Secretaria de
Cidadania e Justiça, articulado com a Secretaria de Cidadania e Justiça (Seciju), com o objetivo de
criação de políticas públicas para as comunidades quilombolas.

Para Santos (2019), a mediação entre as comunidades tocantinenses e a Fundação Palmares


auxiliou para o reconhecimento de 13 comunidades no estado: São João, em Santa Rosa do Tocantins;
Redenção, em Natividade; São Joaquim e Lajinha, em Porto Alegre do Tocantins; Povoado do Prata,
em São Félix do Tocantins; Mumbuca, em Mateiros; Baviera, em Aragominas; Cocalinho, em Santa
Fé do Araguaia; Barra do Aroeira, em Santa Teresa; Malhadinha e Córrego Fundo, em Brejinho de
Nazaré; e Chapada da Natividade e São José, em Chapada da Natividade. As comunidades Lagoa da
Pedra e Kalunga do Mimoso já eram reconhecidas.

5. COMUNIDADE QUILOMBOLA MALHADINHA

Esteves (2012) afirma que, no início da criação do estado do Tocantins, houve intensos
conflitos fundiários e, diante desse fator, em 1989, foi criado o Instituto de Terras do Estado do
Tocantins (Intertins), através da Lei nº 87, que logo organizou o processo de titulação em diversas
áreas, com a finalidade de diminuir os conflitos relacionados à terra. Eis o que diz Esteves (2012):

351
351
Os processos eram realizados a pedido das partes interessadas através de
um pedido formal, e o Estado elaborava uma portaria dando autorização de
medição da área, posteriormente uma vistoria ocupacional para confirmar
se a terra estava ocupada e se produz, e finalmente elaborava-se a titulação
individual das terras. (Esteves, 2012, p. 87).

Entre as comunidades quilombolas encontra-se a Malhadinha, que fica localizada acerca de


130 km da capital, Palmas. Esteves (2012) afirma que esse nome se originou, segundo relatos da
comunidade, do lugar onde se criava o gado solto, e:

Era na verdade um lugar onde o gado dormia “malhada do gado”. Os


vaqueiros procurando o gado nas madrugadas, já sabiam onde encontrá-
lo: na “malhada”. Outros relatos defendem que a palavra “malhada” vem
do gado que era mestiço, a pelada era malhada, ou seja, de várias cores. E
assim ficou o nome Malhadinha, embora o verdadeiro nome seja Fazenda
São Felipe. (Esteves, 2012, p. 41).

O processo de reconhecimento dessa comunidade iniciou em 2000, porém o reconhecimento


somente aconteceu em 2005. As terras são consideradas herança, passada dos pais para os filhos
e netos. Anteriormente, quem tinha maior poder aquisitivo comprava as terras e a cercava com
arames, e quem não tinha condição financeira para arcar com o valor de uma região, ocupava e
cercava as áreas que estavam livres para, posteriormente, solicitarem a regularização da terra.
Atualmente, cada família tem a titularidade de suas áreas, porém o processo de titulação coletiva
ainda não foi finalizado. A população de Malhadinha está em torno de 97 famílias, com cerca de
430 habitantes, segundo dados do IBGE (2021).

Como a maioria das comunidades quilombolas espalhados pelo país, é visível a dificuldade de
acesso à saúde e à educação formal. Malhadinha possui uma escola estadual, porém os professores
se ressentem dos desafios quanto ao desestímulo dos alunos que repetem, por diversas vezes, o
ano, em função de múltiplos fatores. Entretanto, também se percebe que, mesmo de forma lenta,
a situação vem melhorando, já que alguns dos alunos conseguem finalizar seus estudos. Já há os
que estão cursando o Ensino Superior.

A base econômica da comunidade quilombola Malhadinha é a agricultura familiar, porém


muitos indivíduos possuem uma atividade secundária, como a de pedreiro, mestre de obras
e vaqueiro. Há os que trabalham na fábrica de processamento de frutos do cerrado chamado
de Quintal do Quilombo que fabrica polpas de sucos e doces. Além dessa atividade produtiva,
em Malhadinha, há uma mini fábrica de farinha, onde são produzidos produtos derivados da
mandioca, como diversos tipos de farinha e o polvilho. Vale dizer que ambas as fábricas são geridas
e organizadas por mulheres quilombolas que trabalham para complementarem suas rendas.

Esse tipo de atividade é importante tanto para a produção de renda como para a subsistência.
Os dados desta pesquisa indicaram que a realidade da Comunidade Malhadinha não é destoante do
contexto das outras comunidades quilombolas do país, marcadas pelos processos de expropriação
de seus territórios, pela negação dos direitos, expressando ausência de interferência do Governo.

352
352
Nos últimos tempos, a presença do agronegócio em regiões circunvizinhas colocou em ameaça o
desenvolvimento de suas atividades agroextrativistas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo permitiu dar luz às Comunidades Quilombolas que têm sua importância em
vários setores da sociedade, e que possuem um número expressivo especialmente no estado do
Tocantins. Essas comunidades são um símbolo de resistência, já que passaram por situações de
violência e de segregação socia e que ainda passam por restrições de políticas públicas a seu favor.
Foi possível identificar que, no Tocantins, o Movimento Quilombola foi um fator importante para o
reconhecimento e para a visibilidade de suas Comunidades.

No caso de Malhadinha, houve o reconhecimento de seus territórios, e as duas organizações


associativas relacionadas, (uma) à agricultura e (outra) aos esportes, são responsáveis para dar
visibilidade à comunidade. A organização associativa de pequenos produtores é responsável
pelos projetos que são encaminhados junto ao poder público, portanto, sustentam a estrutura da
subsistência de sua população. Observamos que os processos de territorialização e de construção
cultural da comunidade se fazem presentes no cotidiano do grupo.

Todavia, ainda há um grande desconhecimento e reconhecimento das comunidades


quilombolas por parte considerável da sociedade brasileira e dos governantes. Podemos concluir
que há muito que se fazer em relação a essas comunidades que precisam ser conhecidas, valorizadas,
apoiadas e que têm muito a nos ensinar em termos de resistência, física, emocional, histórica e
cultural.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. O espaço geográfico dos remanescentes de antigos quilombos no
Brasil. Rev. Bras. Extensão Universitária, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 52-57, jul./dez. 2003.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, 2019.

BRASIL. Instituto de Terras do Tocantins - Intertins. Disponível em: https://www.to.gov.br/itertins.


Acesso em: 5 maio 2024.

BRUNO, Regina Angela Landim. O ovo da serpente: monopólio da terra e violência na Nova República.
2002. 316 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, Campinas, São Paulo, 2002.

ESTEVES, Francisco Patrício. Historicidade e campesinato: um estudo sobre a organização


socioeconômica da comunidade de Malhadinha e sua inserção nas políticas públicas de ação
afirmativa (1988 - 2011). 2012. 204 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2012.

353
353
GONÇALVES, Paulo Rogerio; SILVA, Ana Claudia Matos da; SOUSA, Maria Aparecida Ribeiro de. Os
territórios quilombolas no estado do Tocantins. Palmas, TO: COEQTO; APA-TO, 2016.

LEITE, Ilka Boaventura. O projeto político quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais.
Rev. Estud. Fem., v. 16, n. 3, setembro 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-
026X2008000300015. Acesso em: 1º mar. 2024.

SALLUN, Marianne. Por uma “aliança afetiva” entre a arqueologia e os saberes tradicionais:
contribuições para o entendimento da sociedade moderna no brasil. Rev. Cadernos do Leparq, v. XIX, n.
37, p. 273-301, jan./jun. 2022. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/361653183_
por_uma_alianca_afetiva_entre_a_arqueologia_e_os_saberes_tradicionais_contribuicoes_para_o_
entendimento_da_sociedade_moderna_no_brasil. Acesso em: 10 maio 2024.

SANTOS, Cláudia Borges Dos. “De fraco a forte”: estratégias políticas dos movimentos quilombolas
no Tocantins. 2019. 172 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília,
Brasília, 2019.

SOUZA, Bárbara Oliveira. Aquilombar-se: panorama histórico, identitário e político do movimento


quilombola brasileiro. 2008. 204 f. (Dissertação de Mestrado) - Universidade de Brasília. Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social. Brasília, 2008.

TRECCANI, Girolamo Domenico. Terras de Quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação.


Belém: Raízes, 2006.

UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2023.

354
354
RACISMO ALGORÍTMICO E MICROAGRESSÕES RACIAIS NO MUNDO DIGITAL

Milena Barros Marques dos Santos

RESUMO

Com o avanço das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), o


ciberespaço tem se firmado como lócus de ocorrência de relações sociais.
Nesse contexto, o presente estudo analisará a imbricação do racismo estrutural
às tecnologias digitais e a ocorrência do racismo algorítmico no âmbito do
capitalismo de vigilância. O estudo inicia-se com introdução, seguido de
apresentação do racismo estrutural, racismo algorítmico, e microagressões
raciais no ambiente digital, encerrando-se com as considerações finais.

Palavras-chave: Racismo algorítmico; Racismo estrutural; Capitalismo de


vigilância; TICs, Microagressões raciais.

1. INTRODUÇÃO

As reflexões apresentadas neste trabalho pretendem discutir a prática do racismo


algorítmico reproduzida no ambiente virtual, o ciberespaço. Na nova ordem econômica, marcada
pela concentração da riqueza, conhecimento e poder, as Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs), a inteligência artificial e o algoritmo, utilizados para ampliar a extração da mais valia,
camuflam o aprofundamento e perpetuação do racismo no contexto do capitalismo de vigilância.
Os algoritmos são regidos por modelos matemáticos desenhados por seres humanos, dependentes
de interesses de grandes corporações e big techs, portanto, inseridos em determinado contexto
social que os influencia.

Iniciaremos nosso estudo, após esta breve introdução, apresentando o racismo estrutural na
sociedade brasileira, o qual possui raízes nos processos de colonização portuguesa e de escravização
do negro. Em seguida, abordaremos o capitalismo de vigilância e o racismo algorítmico, prática que
propaga vieses, preconceitos e discriminações no ciberespaço, território em disputa para domínio
de ideais e ideologias. O tópico seguinte será sobre microagressões raciais no ambiente virtual. Por
fim, o estudo será encerrado com as considerações finais.

2. RACISMO ESTRUTURAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA

O racismo estrutural é uma construção social. É um fenômeno complexo, histórico,


naturalizado e não-uniforme, que se insere em relações de dominação, poder, cultura de
desigualdades, violência e preconceito. O racismo estrutural é fruto de determinações econômicas,
políticas, jurídicas que influenciam na organização da sociedade e decorrem da estrutura social.
Esse processo histórico e político transcende a ação do indivíduo, reforça a dimensão de suposta

355
355
superioridade de um grupo sobre outro, e “normaliza” a discriminação sistêmica (Almeida, 2019).

No Brasil, o racismo nasce associado à escravização de negros, apoiando-se em teses de


inferioridade biológica, e demonstra uma das mais perversas dimensões de nosso tecido social
(Jaccoud, 2008). O escravismo, na segunda metade do século XIX, constituía-se como óbice à
industrialização e à ampliação do mercado interno para inserção da economia brasileira no conjunto
da divisão internacional do trabalho do mundo capitalista (Oliveira, 2003). Porém, a Abolição da
Escravatura, em 1888, não significou a formação de mercado interno e tampouco de transição
homogênea para o trabalho livre.

Houve, mesmo com os escravizados libertos, a manutenção de padrões escravocratas de


relação de produção e de exclusão do negro, como por exemplo, no acesso às terras (Lei das Terras)
e à educação. Não é coincidência que, nos dias atuais, 67% dos moradores de favelas sejam pessoas
negras e que as assimetrias educacionais perdurem: negros, que compreendem pretos e pardos,
estudam, em média, 1,6 anos a menos que brancos. O índice de analfabetismo entre negros (7,1%)
é mais que o dobro de brancos (3,2%) e enquanto 48,3% de negros com mais de 25 anos haviam
concluído o ensino médio em 2023, esse percentual era de 61,8% para brancos (IBGE, 2023).

O projeto de desenvolvimento da nação previa a ideologia do embranquecimento,


principalmente nas décadas de 1920 e 1930, refletindo a crença na superioridade branca e a
busca do progressivo desaparecimento do negro. A entrada do imigrante europeu foi favorecida,
inclusive em regiões e setores dinâmicos da economia, ao mesmo tempo em que mecanismos
discriminatórios foram fortalecidos, como projetos de lei visando impedir a entrada de novos negros
no país. A partir dos anos 1930, a dimensão positiva da mestiçagem é destacada e o discurso de
convivência harmônica entre as três raças (branco, índio e negro) na formação do povo brasileiro,
projeta o mito da democracia racial (Jaccoud, 2008), associado com discurso de igualdade civil e
política entre negros e o restante da sociedade.

Considerados indolentes e inaptos ao trabalho regular e assalariado, os negros atuavam em


áreas rurais, na economia de subsistência, ou atividade temporárias e ocasionais nas áreas urbana.
É esse processo – de ascensão do trabalho livre acompanhado da entrada crescente da população
trabalhadora no setor de subsistência e atividades mal remuneradas como base da economia
do trabalho livre – que dará origem, décadas depois, ao denominado “setor informal” no Brasil
(Theodoro, 2008). Inclusive, no ano de 2022, conforme dados do IBGE (2023), pretos e pardos são
maioria no mercado informal de trabalho, além de ocuparem cerca de 65% dos postos de trabalho
com rendimentos mais baixos, como na Agropecuária, Construção e Serviços Domésticos.

Além disso, os corpos negros continuam a ser vítima de violência e opressões. Em 2022, 83%
das mortes violentas intencionais por intervenção policial foram de pretos e pardos. Eles também
são maioria no sistema penitenciário, correspondendo a quase 70% da população carcerária,
conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023). Soma-se a isso, estudo realizado
pela organização da sociedade civil Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (2023), que
revela que a maioria das prisões de negros por suposto envolvimento em tráfico de drogas ocorreu em
patrulhamento policial, a partir dos critérios de julgamento subjetivos e por “ações arbitrárias com
base em atitudes suspeitas” do indivíduo. Já em operações policiais, que “demandam investigações
e necessitam levantar informações sobre vítimas, encontrar testemunhas”, 63% das prisões levam

356
356
a pessoas brancas. Os dados revelam que pessoas negras e periféricas tem mais probabilidade de
terem os direitos violados, sofrerem abusos, serem tratados como vidas descartáveis, no âmbito da
necropolítica (Mbembe, 2016).

Quando o racismo está arraigado em uma sociedade, sendo parte da ordem social e estando
presente na vida cotidiana, os problemas de desigualdade racial são reproduzidos pelas instituições
e as práticas racistas são tidas como “normais” (Almeida, 2019) no conjunto de relações de todas
as ordens, como a policial, política, estatal, econômica, e alcançam governos, empresas, escolas
e, inclusive, tecnologias. Nesse sentido, o ciberespaço – ambiente virtual de convivência e trocas
simbólicas devido à possibilidade de integração de tecnologias ao cotidiano (Lévy, 1996) – apresenta-
se como espaço propício para a reprodução e propagação de práticas racistas, principalmente com
a opacidade dos sistemas automatizados e semiautomatizados baseados em algoritmos (Silva,
2019). Temos, com isso, a ocorrência do denominado racismo algorítmico.

3. CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA E RACISMO ALGORÍTMICO

As TICs se entranham de maneira cada vez mais profunda através das necessidades da vida
cotidiana, mediando diversas formas de participação social, e nesse contexto, entramos na era do
capitalismo de vigilância. Esse capitalismo necessita do digital para existir, mas não se confunde
com a tecnologia que emprega. O capitalismo de vigilância pode ser definido, conforme Shoshana
Zuboff (2019, p. 13) como “uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como
matéria-prima gratuita, para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas”.
Concretiza-se segundo uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços tem
o objetivo de mudar comportamentos, expropriar direitos e destituir a soberania do indivíduo. Essa
nova ordem revive a imagem apresentada por Karl Marx do capitalismo como o vampiro que se
alimenta do trabalho, mas no capitalismo de vigilância, apropriando-se de todo e qualquer aspecto
rentável da experiência humana (Zuboff, 2019).

No capitalismo de vigilância, há o amplo emprego de tecnologias, plataformas digitais,


inteligência artificial, algoritmos. Mas devemos ter em mente que as TICs são meios com fins
econômicos intrínsecos ao seu desenvolvimento e desdobramento. Por trás de sua aparente
neutralidade, temos o uso de modelos baseados em estatística e matemática, programados a partir
de interesses definidos, e em poderio cada vez mais profundo das grandes corporações e big techs.
Assim, os softwares estão impregnados do contexto social em que se inserem. As operações de
inteligência de máquina convertem os dados pessoais (matéria-prima) em produtos algorítmicos,
com possibilidade de predizer, influenciar, modificar, monetizar e controlar o comportamento dos
usuários (Zuboff, 2019; Silveira, 2021; Lemos, 2021). Por isso mesmo, a dataficação dos dados
pessoais e de aspectos da experiência humana tornaram-se um dos principais mercados da
economia informacional, sustentando a maior parte do faturamento das big techs (Silveira, 2021).

Com o aprendizado automático de máquina (machine learning), domínio em expansão da


inteligência artificial, “o computador mergulha nos dados seguindo apenas instruções básicas. O
algoritmo encontra padrões por si próprio e então, com o tempo, traça relações entre padrões
e resultados. Em certo sentido, ele aprende” (O’Neil, p. 86, 2020). E esse aprendizado revela-se
em decisões subjetivas de interações com base na avaliação de características, personalidade,

357
357
opiniões pessoais e políticas, estado emocional, habilidades para funções específicas, podendo
reforçar resultados discriminatórios, como o racismo (Rocha, et al, 2020). O racismo se imbrica nas
tecnologias digitais através de recursos automatizados, recomendação de conteúdo, tecnologias
biométricas, construções teóricas pervasivas, todos ordenados conforme padrões algoritmizados.

O racismo algorítmico é um fenômeno no qual o arranjo de “tecnologias e imaginários


sociotécnicos em um mundo moldado pela supremacia branca realiza a ordenação algorítmica
racializada de classificação social, recursos e violência em detrimento de grupos minorizados”
(Silva, 2022, p. 66). O racismo algorítmico é potencializado por práticas digitais discriminatórias,
como as microagressões raciais; discriminações raciais; e crimes de ódio. As microagressões
relacionam-se a ofensas, intencionais, ou não, sejam elas verbais, comportamentais ou ambientais
para comunicar desrespeito, insulto ou depreciação tanto em relação a raça, quanto gênero e
orientação sexual. O termo “micro” não se relaciona com o grau de violência das ofensas, e sim,
ao fato de serem implícitos, permitirem certo grau de anonimato ou a evasão do agressor pela
dificuldade em comprovar intencionalidade, com justificativas como as de se tratarem apenas de
piada ou comentário inofensivo (Silva, 2022).

4. MICROAGRESSÕES RACIAIS NO MUNDO DIGITAL

Para compreendermos a ocorrência do racismo algorítmico, apresentaremos três situações


específicas de microagressões raciais: uso de tecnologia de reconhecimento facial para auxiliar em
atuações na área de segurança pública; o racismo e sexismo em resultado de buscas para a consulta
com o descritor “mulher negra dando aula”; e a censura a conteúdos e palavras contra o racismo
em plataformas digitais.

a) Reconhecimento facial e segurança pública

O uso de sistemas de reconhecimento facial está inserido no âmbito das tecnologias


biométricas. Desde 2011, o setor público brasileiro reporta sua utilização em setores de educação,
transporte, controle de fronteiras, e principalmente, a partir de 2018, como política pública
de segurança pública para auxiliar em ações de identificação e prisão de suspeitos de crimes.
Hoje, ao menos 20 estados fazem uso desse sistema, com destaque para Bahia, com os maiores
investimentos na ferramenta policiais (R$ 728 milhões) e Goiás com o maior número de projetos
ativos em municípios, totalizando 64 (Abdala, 2023).

Porém, estudos revelam enviesamento nos resultados quando se trata de reconhecer rostos
negros. O levantamento realizado pela Rede de Observatório da Segurança, em 2019, revelou que
90,5% dos presos por reconhecimento facial no Brasil são negros, o que não significa que sejam os
autores dos crimes (Silva, 2022). Os erros tem sido recorrentes e apresentados pontualmente em
jornais de grande circulação, como o divulgado no Fantástico, em 21/04/2024.

Os vieses algorítmicos de reconhecimento facial já haviam sido reportados em pesquisas


como a de Joy Buolamwin e Timnit Gebru, em 2018. Os resultados indicaram sobre a falta de
precisão de algoritmos em relação a gênero e raça: mulheres negras apresentam taxa de erro maior
que 30%, enquanto homens brancos não ultrapassa 0,7%. Nesse sentido, podemos nos questionar

358
358
sobre a probabilidade de pessoas negras serem presas pelo chamado “falso positivo”. A suposição
de criminalidade é uma das microagressões mais pervasivas no caso da população brasileira (Silva,
2022).

b) “Mulher negra dando aula” e conteúdos pornográficos

A pesquisa no Google Imagens, em 01/10/2019, utilizando-se o descritor “mulher negra


dando aula”, retornou conteúdos pornográficos como resultado. O mesmo não ocorria quando a
busca era “mulher dando aula” ou “mulher branca dando aula”. A identificação foi feita por uma
profissional de relações-públicas, Cáren Cruz, quando da elaboração de apresentação corporativa
sobre professoras negras (Silva, 2022). O resultado sexista e machista demonstra a persistência da
violência contra a mulher negra. Embora fossem solicitadas ao trabalho escravo tal qual os homens,
assim como submetidas a castigos e mutilações, a mulher negra ainda esteve sujeita ao estupro,
considerado arma de dominação, repressão e desmoralização (Davis, 2016).

No Brasil, 61,1% das vítimas de feminicídio são de mulheres negras. Elas também representam
68,9% das demais mortes violentas de mulheres no país e 56,8% dos casos de estupro e estupro
de vulnerável, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023). No Facebook,
81% das vítimas de racismo são mulheres negras de classe média, com ensino superior completo
e na faixa etária de 20 a 35 anos. Elas são vítimas da intolerância predominantemente por homens
(65,6%) quando, entre outras situações, discordam de posts ou comentários negativos contra
negros; evidenciam engajamento com profissões de maior prestígio, como medicina e direito, ou
exercem posição de liderança; em caso de rejeição de propostas de relacionamento afetivo; ou
enaltecem cabelo cacheado natural estilo Afro (Trindade, 2018).

Os dados indicam que o machismo e o racismo contra mulheres negras são violências
reiteradamente praticadas e reproduzidas no meio digital. No âmbito das microagressões raciais no
ambiente virtual, está relacionado à exotização que associada à misoginia leva à hipersexualização
da mulher racializada (Silva, 2022).

c) #vidasnegrasimportam, importa?

Youtube, Facebook e Tik Tok estão entre as maiores plataformas digitais do mundo. Entretanto,
denúncias têm sido feitas quanto aos impedimentos e censuras de palavras e conteúdos contra
o racismo. Em 2021, por exemplo, o Tik Tok sinalizou como impróprios conteúdos como o “vida
negras importam (do inglês black lives matter) e termos afro-americanos. A tentativa de adicionar
frases como “apoiando o sucesso dos negros” ou “apoiando as vozes negras” eram censuradas. Mas
as mesmas versões de frases com apoio aos brancos eram entendidas como conteúdo “aceitável”
(Silva, 2022).

Nesse caso, há a negação da realidade sócio-histórica e manutenção de um conhecimento


que se tornou hegemônico a partir da perspectiva colonial eurocêntrica defensora da superioridade
da raça branca. A deslegitimação e a desinformação de ações e produção de conhecimento por
pensadores, ativistas, pesquisadores e simpatizantes da causa negra são microagressão relacionada
ao racismo algorítmico.

359
359
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo algorítmico é um fenômeno sócio-histórico complexo que se imbrica às TICs


reproduzindo, no ciberespaço, práticas, vieses, preconceitos e discriminações típicas do racismo
estrutural. O uso de sistemas automatizados e semiautomatizados baseados em algoritmos, e a
falsa sensação de neutralidade e objetividade das máquinas, escamoteiam a propagação desse
fenômeno no ambiente digital. Assim, nossa compreensão, é de que o ciberespaço constitui-se
como território de disputa para o aprofundamento de práticas racistas, e no caso brasileiro, de
continuidade da exposição da população negra a um ciclo cumulativo de desvantagens.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ABDALA, Vitor. Mais de 47 milhões podem estar sob vigilância de reconhecimento facial. Agência Brasil.
Rio de Janeiro, 13/12/2023. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-12/
mais-de-47-milhoes-no-pais-estao-sujeitos-reconhecimento-facial Acesso: 07/05/2024.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Bointempo, 2016.

GONZALES, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1982.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São
Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/
wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 30/04/2024 Acesso: 01/05/2023.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2022. Rio de


Janeiro, IBGE, 2023.

INICIATIVA NEGRA POR UMA NOVA POLÍTICA SOBRE DROGAS. Liberdade negra sob suspeita: o pacto
da guerra às drogas no Estado de São Paulo. São Paulo, 2023. Disponível em https://iniciativanegra.
org.br/publicacao/liberdade-negra-sob-suspeita/ Acesso: 02/05/2024

LEVY, P. O que é o virtual. São Paulo, 1996.

JACCOUD, Luciana. Racismo e República: o debate sobre o branqueamento e a discriminação racial


no Brasil. In: As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil – 120 anos após a abolição.
Brasília: IPEA, 2008. Disponível em

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/Livro_desigualdadesraciais.pdf Acesso: 06/04/2022.

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. In: Revista
Arte e Ensaio. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169 Acesso:
08/05/2024.

360
360
OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista, e o Ornitorrinco. São Paulo. Boitempo, 2003.

O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa. Editora Rua do Sabão. Edição do Kindle. 2020.

ROCHA, Claudio, J; et al. Discriminação algorítmica no trabalho digital. In: Revista de Direitos Humanos
e Desenvolvimento Social. Disponível em https://seer.sis.puc-campinas.edu.br/direitoshumanos/
article/view/5201. Acesso em 02/05/2024.

SILVA, Tarcízio. Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São
Paulo: Edições Sesc, 2022.

SILVEIRA, Sergio Amadeu da. Democracia e os códigos invisíveis (Coleção Democracia Digital).
Edição Sesc SP. Edição do Kindle, 2021.

THEODORO, Mário. Formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil. In: As políticas
públicas e a desigualdade racial no Brasil – 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008. Disponível
em

https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=5605 Acesso:
06/04/2022.

TRINDADE, Luiz Valério P. Formas contemporâneas de racismo e intolerância nas redes sociais.
13 de agosto de 2018. disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2018/07/
FormasContemporaneasRacismo_Portuguese-final.pdf Acesso: 04/05/2024.

ZUBOFF, S. A Era do Capitalismo de Vigilância. Intrínseca. Edição do Kindle, 2019.

361
361
O PAPEL SOCIAL DA MULHER INDÍGENA DA COMUNIDADE XERENTE NA CONTEMPORANEIDADE

Isaura Sousa Matos Santos


Raimunda Carvalho Lemos Rodrigues
Margarida de Oliveira Barros Moura

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo compreender o papel da mulher


indígena na perspectiva social, política e de poder na comunidade xerente
localizada no município de Tocantínia-TO. O município de Tocantínia está
situado a aproximadamente 84Km da capital Palmas, com população de 7.459
pessoas e densidade demográfica de 2,86 habitantes por Km² e uma média
de 3,72 moradores por residência (IBGE, 2022). A pesquisa fundamenta-se
numa pesquisa bibliográfica em livros e periódicos, relacionando aspectos

sócio-históricos e políticos com aporte da Teoria Social Crítica. Percebe-se


que as relações de gênero, sociais, culturais e políticas na sociedade enfatizam
às desigualdades de gênero que ainda perduram no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: Comunidade Xerente, Mulher indígena, Contemporaneidade.

ABSTRACT

The present work aims to understand the role of indigenous women in the
social, political and power perspective in the Xerente community located in
the municipality of Tocantínia-TO. The municipality of Tocantínia is located
approximately 84 km from the capital Palmas, with a population of 7,459
people and a demographic density of 2.86 inhabitants per km² and an
average of 3.72 residents per residence (IBGE, 2022). The research is based
on bibliographical research in books and periodicals, relating socio-historical
and political aspects with the contribution of Critical Social Theory. It is clear
that gender, social, cultural and political relations in society emphasize the
gender inequalities that still persist in the contemporary world.

Keywords: Xerente Community. Indigenous woman. Contemporary.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo compreender o papel da mulher indígena na


perspectiva social, política e de poder na comunidade xerente localizada no município de Tocantínia-

362
362
TO. O município de Tocantínia está situado a aproximadamente 84Km da capital Palmas, com
população de 7.459 pessoas e densidade demográfica de 2,86 habitantes por Km² e uma média de
3,72 moradores por residência (IBGE, 2022).

Para se compreender o papel da mulher indígena na perspectiva social, política e de poder


é necessário entender a construção do termo gênero ao longo da história. Primeiramente estava
relacionado às condições biológicas delimitadas por sexo: masculino e feminino. No decorrer da
história foram se incorporando novos aspectos como as transformações sociais, culturais, históricas
e políticas da sociedade que permitiram novas percepções em relação a concepção de gênero.
Essas transformações foram se propagando com maior intensidade a partir da década de 80 em
virtude entre outros aspectos do fortalecimento das teorias sociais.

A justificativa deve-se em virtude da relevância da temática gênero, embora, pouca


importância os grupos privilegiados têm dado sobre os estudos de gênero e por ainda existirem
poucas pesquisas sobre o tema. Diante o exposto vem à tona a pergunta: De que forma os aspectos
sociais, políticos e de poder influenciam o papel da mulher indígena na comunidade xerente na
contemporaneidade?

Dessa maneira, o presente trabalho tem como objetivo compreender o papel da mulher
indígena na perspectiva social, política e de poder na comunidade xerente localizada no município
de Tocantínia-TO. A pesquisa fundamenta-se numa pesquisa bibliográfica em livros e periódicos,
relacionando aspectos sócio-históricos e políticos com aporte da Teoria Social Crítica.

1.1 Conceito de Gênero

O conceito de gênero vem disseminando-se rapidamente a partir da década de 1980. Parte


significativa da atração exercida por esse conceito reside no convite que ele oferece para um novo
olhar sobre a realidade” [...] foi elaborado em um momento específico da história das teorias sociais
sobre a “diferença sexual” (PISCITELLI, 2002). O qual está situado nas distinções de características
femininas e masculinas. Assim observa que o conceito de gênero está se disseminando na teoria
social e que o mesmo se torna perceptível até mesmo em produções (PISCITELLI, 2002).

A partir da década de 80 vem sendo enfocado conceitos e aspectos entre outros relacionados
as características masculinas e femininas através de abordagem teórica social. Vale ressaltar que
as teorias sociais permitiram novas percepções acerca da diferença sexual, das desigualdades de
gênero que ainda perduram no mundo contemporâneo, a estruturação do significado gênero ao
longo da história demonstrando a necessidade de se manter o diálogo global no que diz respeito
aos desafios e perspectivas das ciências socais capazes de inferir nas análises de gênero.

1.2 Conceitos de família

Em sua origem a palavra família não significa o ideal mistura de sentimentalismo e dissensões
domésticas do filisteu de nossa época; [....] Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o
conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família “id est
patrimonium” (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos

363
363
romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher,
os filhos e certo número de escravos com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre
todos eles ” (ENGELS, 1984).

A evolução da família ao longo da história nos seus aspectos antropológicos e históricos


iniciando-se com as sociedades primitivas e com suas formas de organização social onde não existia
propriedade privada, eram constituídas por família matrilinear e que as mulheres ocupavam posição
de destaque na sociedade.

A família é um sujeito privilegiado de intervenção do Serviço Social desde os primórdios


da profissão. No Brasil, ela nasce vinculada aos movimentos de ação social numa proposta de
dinamização da missão política de apostolado social junto as classes subalternas, particularmente
junto a família operária (MIOTO, 2010).

Observa-se que a expressão família tinha como intuito determinar a estrutura e o papel da
família na sociedade, delimitando os poderes exercidos pelo homem sob a mulher nas relações
sociais, políticas e culturais configurados na realidade social. Outrossim, o conceito de família,
não necessariamente se restringe à condição de laços consanguíneos, pois atualmente na sociedade
existem vários modelos de família indivíduos que não se pautam num modelo único de família
nuclear.

2. GÊNERO E O PAPEL SOCIAL DA MULHER

Ao longo da história da humanidade o termo gênero estava inteiramente relacionado


ao aspecto biológico homem e mulher, ou seja, sexual e atrelado a esta condição biológica se
alicerçava na sociedade os papéis do homem e da mulher. O conceito de gênero surge em um
momento histórico das teorias sociais sobre as então diferenças sexuais trazendo consigo debates
sobre gênero e concepções do homem e da mulher na sociedade.

[....] O sexo, feminino ou masculino, seria biologicamente determinado, com base nos
cromossomos, hormônios, aparência genital […]. Já o gênero, homem ou mulher, é visto como uma
construção social, pois envolve o desempenho de papéis sociais na sociedade” (SENE, 2007, p.7).

A Priori Piscitelli (2002) evidencia que através do conceito de gênero11 o mesmo oferece
um novo olhar sobre a realidade. O qual está se situando nas distinções de características femininas
e masculinas. Assim observa que o conceito de gênero está se disseminando na teoria social.

Estes papéis foram se estabelecendo influenciados por aspectos sociopolíticos e culturais


onde o papel da mulher na organização social e familiar nos primórdios da humanidade exercia
destaque na sociedade.

1 Conceito de gênero se desenvolveu no marco dos estudos sobre “mulher’ ’e compartilha vários de seus pres-
supostos. Mas a formulação do conceito procurava superar problemas relacionados à utilização de algumas categorias
centrais nos estudos sobre mulheres...” (Piscitelli .2002).

364
364
[.....] Ligado inevitavelmente à maternidade, à reprodução do homem e do que brota da
terra” (VALE, 2005, p. 8). A mulher vista como mãe e cuidadora, além de realizar insubstituivelmente
essa “tarefa”, participou de várias outras realizadas dentro da sociedade pré-histórica. Foi caçadora,
protetora, pintora, agricultora, produtora de instrumentos e armas (BITTENCORT, 2020).

No entanto, com a estruturação e o desenvolvimento dos modos de produção e do sistema


político, o papel da mulher na sociedade sofre mudanças relevantes como: estratificação social,
à subordinação da mulher na sociedade influenciada pela formação patriarcal, que até então era
matrilinear.

Essa composição familiar patriarcal tinha o intuito de garantir a propriedade privada


e a herança, além de exercer configuração de poder em relação a mulher, através de postura
tradicionalista e opressora em relação às questões de gênero.

3. OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Os povos indígenas do Brasil são os habitantes originários do território brasileiro e estavam


presentes aqui antes da chegada dos europeus no final do século XV. Existe uma grande diversidade
de povos indígenas no Brasil, e a população de indígenas, segundo critérios do Censo de 2022, é de
aproximadamente 1,6 milhão (SILVA,2024).

3.1. A Comunidade xerente

É muito comum que se resuma a história dos povos indígenas brasileiros a partir da
colonização portuguesa. De fato, esse acontecimento é um marco na trajetória dos povos indígenas,
pois a partir disso, inicia a luta pelas terras, por sobrevivência e por direitos básicos que perdura até
os dias de hoje, somando 521 anos de resistência.

O Xerente, junto com os Xavante e Xakriabá, são classificados como Jê Centrais, e se


localizam no munícipio de Tocantínia, cerca de 70 km ao norte da Capital, Palmas. Em meados do
século XIX, ao norte da cachoeira Funil, nas margens do rio Tocantins, encontrava-se o território
dos Akwê Xerente. Eles viveram a experiência de Thereza Cristina (um aldeamento, fundado em
1851 por um frei italiano; hoje o local é conhecido como Tocantínia). É datado nesse período alguns
episódios protagonizados pelos Xerentes que dão luz a realidade atual. Uma versão da origem do
povo Xerente indica como local o Morro Perdido, que fica próximo ao Rio Araguaia. (TOCANTINS,
2021).

Habitavam as caatingas do médio Tocantins, entre os rios Manuel Alves Grande e Manuel
Alves Pequeno e nos sertões do Duro, quando foram submetidos, em 1810, por Fernando Delgado
Freire de Castilho, que governou Goiás de 1809 a 1820 (Alencastre, 1964-1965, apud Magalhães,
1928, p. 8). Para o ano de 1812, o padre Luiz Antônio da Silva e Souza anotou que os Xerente são
uma “nação que existe acima da cachoeira de Lageado, no Tocantins, e se estende até os sertões
do Duro, entre o Rio Preto e Maranhão (MAGALHÃES, 1928).

365
365
As aldeias Xerente existentes hoje são: Funil, Bela Vista, Cercadinha, Brejo Comprido,
Serrinha I e II, Centro, Água Fria, Rio do Sono, Mirasol, Recanta, Baixa Funda, Brejinha, Salto,
Porteira, Aldeia Nava, Sangradouro, Lajeadinho, Cabeceira, Morrinho, Recanto da Água Fria, Novo
Horizonte, Zé Brito, Aldeinha, Rio Preto, Bom Jardim, Paraío, Baixão, Traíra, Ponte, Mirasol Nova
(TOCANTINS, 2021).

3.2 Comunidade indígena de Tocantínia


O município de Tocantínia está situado a aproximadamente 84Km da capital Palmas, com
população de 7.459 pessoas e densidade demográfica de 2,86 habitantes por Km² e uma média
de 3,72 moradores por residência (IBGE, 2022). A colonização da região começou com a chegada
o Padre Frei Antônio de Ganges, por volta de 1860, com o objetivo de trabalhar e catequizar os
índios Xerentes, permanecendo por aqui durante 40 anos. O primeiro nome dado a nossa cidade
foi Tereza Cristina, em homenagem a então Imperatriz do Brasil, esposa de D. Pedro II, sendo mais
tarde substituído por Piabanha, devido a existência de um ribeirão com este nome. Somente em
1936, recebeu o nome de Tocantínia por iniciativa do Deputado João de Abreu, motivado pelo Rio
Tocantins. Foi emancipada em 07 de outubro de 1953, rompendo definitivamente sua ligação com
o município de Pedro Afonso, conquistando assim sua autonomia política (TOCANTÍNIA, 2023).

3.3. O papel da mulher indígena

A presença de mulheres indígenas no movimento indígena teve características e


intencionalidade com características diferenciadas em relação às mobilizações de líderes masculinos,
trazem novas pautas e preocupações. Enriquecem o debate interno do movimento, trazendo para
o coletivo as avaliações e demandas dos espaços específicos em que atuam como mulheres. [.....] o
acesso aos meios técnicos e financeiros para a geração de renda, a saúde reprodutiva, a soberania
alimentar, a participação das mulheres nas decisões políticas dos governos (VERDUM, 2008).

A participação das mulheres indígenas nos espaços ocupacionais e políticos que até então
eram restritos aos homens, deve-se ao engajamento no movimento indígena favorecendo as
discussões em relação aos espaços ocupados pelas mulheres na sociedade. Seguindo em relação
aos termos políticos, que consideram que as mulheres ocupam espaços de trabalho subordinados
aos masculinos. A subordinação feminina é pensada como algo que varia em função da época
histórica e do lugar, porém questionam o suposto caráter natural dessa subordinação, ao oposto
que essa subordinação é vinda das maneiras de como a mulher é construída socialmente.

Assim, quando falamos sobre o papel da mulher indígena na sociedade vem à tona suscitarmos
sobre os aspectos sociais, culturais e políticos que se estruturam nos diferentes espaços enfatizando
debates sobre as diferenças entre homens e mulheres no processo sócio-histórico e político, onde
posicionamentos tradicionais influenciavam o patriarcado, tornando o papel da mulher limitado à
maternidade, ao cuidado do lar e dos filhos. É evidente que as relações de gênero e as sociais estão
intrinsecamente relacionadas no contexto histórico e cultural em que se configuraram, isso nos
permitir compreender os sujeitos sociais em sua completude. Atualmente, a mulher indígena vem
conquistando sua emancipação em espaços sócio-ocupacionais no mercado de trabalho mesmo
sendo casadas e tendo filhos, no entanto, é preciso reconhecer que o acesso aos diferentes espaços
na sociedade deriva de engajamento no movimento indígena para compreensão e fortalecimento

366
366
do seu papel social enquanto mulher indígena.

4. METODOLOGIA

A metodologia utilizada fundamenta-se em pesquisa bibliográfica em livros e periódicos,


relacionando aspectos sócio-históricos e políticos com aporte da Teoria Social Crítica.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que as relações de gênero, sociais, culturais e políticas na sociedade enfatizam


às desigualdades de gênero que ainda perduram no mundo contemporâneo. Nesse sentido, é
necessário, uma discussão mais aprofundada em relação a participação das mulheres indígenas
em contextos sociais, políticos e de poder indígenas e não indígenas. É evidente que há pouca
importância que os grupos privilegiados têm dado sobre os estudos da categoria gênero. Mas, vale
frisar também que as mulheres, independente da raça, etnia e condição socio política e econômica
ao longo da história vem buscando lutar pelos seus direitos, legitimando seu acesso aos diferentes
espaços sociais, culturais, político e no mercado de trabalho.

REFERÊNCIAS:

CISNE, Mirla. Feminismo e consciência de classe no Brasil [livro eletrônico]/Mirla Cisne. – São
Paulo: Cortez, 2015.

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Trabalho relacionado


com as investigações de L. H. Morgan. 9a Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.

MAGALHÃES, Basílio de. Algumas notas sobre os Cherentes. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, v. 155 (1927), p. 5-30, 1928.

MIOTO, Regina Célia Tamaso; SILVA, Marta Campos; CARLOTO, Cássia Maria. (Orgs.). – FAMILISMO,
direito e cidadania [livro eletrônico]: contradições da política social / São Paulo: Cortez, 2010.

PISCITELLI, Adriana, GOLDANI, Ana Maria. A Prática Feminista e Conceito de Gênero: Re-criando a
(categoria) mulher? Leila niezan algranti Departamento de História Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas Universidade Estadual de Campinas organização e Apresentação: textos didáticos número
48. Novembro de 2002.

SENE, Glaucia Aparecida Malerba. Indicadores de gênero na pré-história brasileira: contexto


funerário, simbolismo e diferenciação social. O sítio arqueológico Gruta do Gentio II, Unaí, Minas
Gerais. MAE. USP, 2007, 389p.

SILVA, Daniel Neves. “Povos indígenas do Brasil”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.

367
367
uol.com.br/brasil/o-indigena-no-brasil.htm. Acesso em 05 de outubro de 2023.

TEIXEIRA, Solange Maria. A família na política de assistência social: avanços e retrocessos com a
matricialidade sociofamiliar. Rev. Pol. Públ. São Luís, v. 13, n. 2, p. 255-264, jul. /dez. 2009.

TOCANTÍNIA (TO). Câmara Municipal. Disponível em: https://tocantinia.to.leg.br/pagina/Historia.


Acesso em: 9 de out. 2023.

TOCANTINS (TO). Povos indígenas do Brasil: Disponível em: https://povosindigenasdobrasil.blogspot.


com/2014/08/os-akwe-xerente.html. Acesso em: 5 de out. 2023.

VALE, Ana. A mulher e a Pré-História: alguns apontamentos para questionar a tradição e a tradução
da mulher-mãe e mulher-deusa na Arqueologia pré-histórica. Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 5-25, 2005.

VERDUM, Ricardo. Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. In: VERDUM, Ricardo (Org.).
Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília: Inesc, 2008.

368
368
DOCENTES NEGRAS NO ENSINO SUPERIOR:
reflexões a partir da lei 12.990/2014

Dyana Helena de Souza

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo: problematizar a implementação da Lei 12.990/14 nos
concursos públicos destinados à carreira docente nas universidades federais brasileiras; e, refletir a
inserção de docentes negras no ensino superior considerando as opressões interseccionais. Integra
uma pesquisa de doutorado em Política Social.

Inicialmente, é necessário compreender o racismo e sua configuração na formação sócio-


histórica brasileira. Silvio de Almeida (2019) afirma a importância das teorias sociais críticas para
possibilitar o estudo das categorias raça e racismo. Defende a tese de que “o racismo é sempre
estrutural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e política da
sociedade (Almeida, 2019, p. 15)” e, que ele fornece “tecnologia para a reprodução das formas de
desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea (Almeida, 2019, p. 15)”.

O autor aborda o colonialismo e as transformações societárias do modo de produção


capitalista como centrais para a dominação e escravização, a partir da desumanização de povos
considerados primitivos. Conforme apresenta, a “classificação de seres humanos serviria, mais do
que para o conhecimento filosófico, como uma das tecnologias do colonialismo europeu para a
submissão e destruição de populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania” (Almeida, 2019,
p. 20). O racismo científico possibilitou a difusão de ideias e a justificativa de critérios “científicos”
para classificar intelectualmente e moralmente aqueles que seriam racialmente inferiores e
superiores. O racismo é conceituado como “uma forma sistemática de discriminação que tem a
raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes
que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam” (Almeida, 2019, p. 22).

Há uma tendência de associar o racismo apenas a partir de uma concepção individualista


e que atribui, exclusivamente, a indivíduos comportamentos preconceituosos ou discriminatórios.
Almeida critica essa visão, trazendo a concepção do racismo institucional e da necessidade do seu
entendimento considerando o papel do Estado.

No caso do racismo institucional, o domínio se dá com o estabelecimento


de parâmetros discriminatórios baseados na raça, que servem para manter
a hegemonia do grupo racial no poder. Isso faz com que a cultura, os
padrões estéticos e as práticas de poder de um determinado grupo tornem-
se o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade. Assim, o domínio
de homens brancos em instituições públicas – o legislativo, o judiciário, o
ministério público, reitorias de universidades etc. – e instituições privadas

369
369
– por exemplo, diretoria de empresas – depende, em primeiro lugar, da
existência de regras e padrões que direta ou indiretamente dificultem a
ascensão de negros e/ou mulheres, e, em segundo lugar, da inexistência de
espaços em que se discuta a desigualdade racial e de gênero, naturalizando,
assim, o domínio do grupo formado por homens brancos (Almeida, 2019,
p.27)

A dimensão institucional do racismo é sutil de modo a perpetuar os privilégios de uma


supremacia branca. Portanto, ele acentua “a dimensão do poder como elemento constitutivo das
relações raciais, não somente o poder de um indivíduo de uma raça sobre outro, mas de um grupo
sobre outro, algo possível quando há o controle direto ou indireto de determinados grupos sobre
o aparato institucional (Almeida, 2019, p. 31)”. Há um processo histórico e político que determina
a estrutura social, portanto, essa análise estrutural deve considerar o racismo como um sistema
“dada sua ampla e complexa atuação, seu modo de organização e desenvolvimento através de
estruturas, políticas, práticas e normas capazes de definir oportunidades e valores para pessoas e
populações a partir de sua aparência” (Werneck, 2016, p. 541).

2. A LEI 12.990/2014 E A RESERVA DE VAGAS PARA PESSOAS NEGRAS NOS CONCUR-


SOS PÚBLICOS FEDERAIS

A atuação do movimento negro é protagonista na luta pela equidade e ampliação da


democracia, objetivando reduzir as barreiras de acesso da população negra à política de educação,
e a outras políticas sociais. Para reparar os processos discriminatórios, as Políticas de Ações
Afirmativas têm sido inseridas no arcabouço legal brasileiro, especialmente a partir dos anos 2000.

Ações afirmativas são políticas públicas de promoção de igualdade nos


setores público e privado, e que visam a beneficiar minorias sociais
historicamente discriminadas. Tais políticas podem ser realizadas das mais
diversas modalidades e ser aplicadas em inúmeras áreas. As cotas raciais são
apenas uma modalidade, uma técnica de aplicação das ações afirmativas,
que podem englobar medidas como pontuação extra em provas e concursos,
cursos preparatórios específicos para ingresso em universidades ou no
mercado de trabalho, programas de valorização e reconhecimento cultural e
de auxílio financeiro aos membros dos grupos beneficiados. (Almeida, 2019,
p.90)

Merecem destaque algumas legislações que estabelecem políticas sociais no combate ao


racismo e à discriminação racial. A Lei n. 12.288 (Brasil, 2010) instituiu o Estatuto de Igualdade
Racial, sendo destinado a “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades,
a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais
formas de intolerância étnica”. Nas disposições iniciais, define conceitos-chave para a discussão da
questão racial, como discriminação racial ou étnica; desigualdade de gênero e raça; população
negra, políticas públicas e ações afirmativas. Abordando os direitos fundamentais, a Lei traz o
direito à educação, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira no ensino
fundamental e médio nas redes de ensino públicas e privadas.

370
370
Na educação básica, a Lei nº 10.639/2003, inclui no currículo a temática da História e
Cultura Afro-Brasileira; a Resolução no 1, de 2004, estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana (DCNERER); e, a Lei 11.645/2008, aborda o ensino da História e Cultura Indígena Brasileira.

A Lei 12.711/2012 versa sobre o ingresso discente nas universidades federais e nas
instituições federais de ensino técnico de nível médio e foi revista em 2022, após 10 anos de sua
implementação. Essa Lei reserva 50% das vagas para estudantes que cursaram integralmente o
ensino médio em escolas públicas, conforme expresso no artigo 1º. Já o artigo 3º detalha como
será a definição da destinação das vagas para pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas,
quilombolas e pessoas com deficiência. O artigo 7º-B estabelece que essas instituições também
devem promover “o ingresso desse público nos programas de pós-graduação stricto sensu”.

A Lei 12.990/2014 reserva 20% de vagas para pessoas negras nos “concursos públicos para
provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal,
das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia
mista controladas pela União”. A respeito do quantitativo de vagas destinadas às pessoas negras,
menciona que “A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no
concurso público for igual ou superior a 3 (três)”. Conforme a referida Lei, os candidatos que se
autodeclararem pretos ou pardos, negros, de cordo com o quesito raça/cor do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), poderão concorrer às vagas.

Mello e Resende (2020) analisaram as vagas oferecidas em concurso público para a carreira
de magistério superior no período de 2014 a 2018. Em síntese os principais resultados do estudo
demonstram que: no período analisado, a reserva de vagas para pessoas negras estava longe de ser
alcançada nas universidades federais; o número de docentes negros contratados é menor do que
o percentual estabelecido na Lei; as universidades divulgam editais de concursos para docentes
com menos de três vagas, não sendo aplicado o percentual de reserva para vagas de candidatos
negros; há um enorme índice de subnotificação de raça/cor do corpo docente universitário; há um
reduzido número de docentes negros nas universidades, mas nos últimos anos houve o aumento
do ingresso de alunos negros nos cursos de graduação das universidades públicas, reflexo da Lei
12.711/2012.

Nesse cenário, embora não tenha sido objeto de nossa investigação,


é instigante refletir sobre as razões fundantes das dificuldades para a
implementação da Lei n. 12.990 (BRASIL, 2014), em seu propósito geral de
diversificação do perfil de raça/cor do serviço público federal e, em particular,
do corpo docente das instituições federais de ensino. Estudos de ordem
qualitativa seguramente seriam parte do percurso teórico-metodológico
para encontrar respostas a essa questão, mas provavelmente o racismo
subjacente às lógicas institucionais da burocracia estatal e estruturante da
sociedade brasileira é um ponto de partida fundamental para compreender
a dinâmica da manutenção dos privilégios da elite branca, tradicionalmente
ocupante dos cargos de prestígio do campo acadêmico e científico nacional
e das instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão no Brasil. (Mello;
Resende, 2020, p.12)

371
371
O estudo citado levanta a necessidade de pesquisas sobre a implementação da Lei
12.990/2014 na elaboração de concursos nas universidades públicas federais. Sinaliza também que
o campo acadêmico e científico faz parte da reprodução do racismo e contribui na manutenção dos
privilégios da elite branca docente.

3. DOCENTES NEGRAS NO ENSINO SUPERIOR: INTERSECCIONALIDADES

Neste tópico, busca-se refletir sobre as intersecções que envolvem sistemas múltiplos
de dominação e os reflexos no trabalho de mulheres negras que ocupam cargos no magistério
superior em universidades públicas. Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge (2021) abordam o uso da
interseccionalidade como ferramenta analítica e exemplificam como as “divisões sociais resultantes
das relações de poder de classe, raça, gênero, etnia, cidadania, orientação sexual e capacidade são
mais evidentes no ensino superior” (Collins; Bilge, 2021, p. 18). A interseccionalidade pode ser
uma estratégia para pensar políticas de equidade.

Postular que as configurações contemporâneas de capital global que


alimentam e sustentam as crescentes desigualdades sociais se referem à
exploração de classes, ao racismo, ao sexismo e a outros sistemas de poder
promove um repensar nas categorias usadas para entender a desigualdade
econômica. Estruturas interseccionais que vão além da categoria de classe
revelam como raça, gênero, sexualidade, idade, capacidade, cidadania
etc. se relacionam de maneiras complexas e emaranhadas para produzir
desigualdade econômica. (Collins; Bilge, 2021, p. 35)

As autoras seguem trazendo elementos do papel das políticas públicas e de como são
enfrentadas as desigualdades sociais na social democracia e no neoliberalismo. Afirmam que é
importante compreender as “diferentes dimensões de relações de poder interseccionais, bem
como as respostas políticas que se dão a elas” (Collins; Bilge, 2021, p.45). A análise interseccional
compreende as relações de poder dentro de um contexto social e assume compromisso com a
justiça social.

Nilma Linos Gomes, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e bell hooks têm
contribuído para enegrecer o feminismo e para pensá-lo como uma prática emancipatória. Ângela
Davis (2016) discorre que o feminismo negro é essencial a compreensão da luta das mulheres
em busca da emancipação. Detalhou a condição das mulheres negras no sistema escravista e
como programas feministas do passado e do presente têm omitido os problemas dessas mulheres
trabalhadoras.

Analisando o contexto universitário, bell hooks (2015) aponta que, nesses espaços, “não
há um enfrentamento do racismo situado em um contexto histórico e político, contribuindo para
uma manutenção do “sistema de racismo, classismo e elitismo educacional” (hooks, 2015, p.
205). Ela fala que as mulheres negras, discentes e docentes, vivenciam uma solidão nos espaços
universitários.

372
372
Alguns estudos têm apresentado a trajetória e atuação de docentes negras em universidades
públicas (Clemente; Azevedo, 2020; Nascimento, 2019; Prates; Rotermund, 2019; Euclides; Silva;
SILVA, 2017). Esses estudos têm problematizado a desvalorização profissional de mulheres negras
na universidade, além de evidenciarem que elas permanecem em menor número dentro das
instituições de ensino superior; e, “enfrentam a dificuldade de serem reconhecidas enquanto
docentes” (Prates; Rotermund, 2019, p. 61).

A tese que será desenvolvida, durante a pesquisa de doutorado, abordará a inserção de


docentes negras do Serviço Social nas universidades públicas brasileiras, portanto, é relevante
identificar estudos sobre o protagonismo dessas mulheres na categoria profissional. A respeito
da história de organização de estudantes, assistentes sociais e docentes do serviço social no
enfrentamento à ditadura civil-militar, Elaene Alves (2018) se aproximou das memórias dessas
mulheres, estudando as violências e resistências vivenciadas por elas. A autora trouxe elementos
do cenário brasileiro atual que “reedita velhas e novas formas de violência que são típicas do
conservadorismo brasileiro, muitas vezes, comumente manifestado no machismo, no racismo, na
xenofobia, na homofobia” (Alves, 2018, p.16). Sendo assim, fez a seguinte observação no que diz
respeito às mulheres negras:

De fato, é importante ressaltar, através da pesquisa para esta tese, sobre


a ditadura civil-militar de 1964-1985, a ausência das mulheres negras nos
livros, assim como na bibliografia mais geral da ditadura. O incômodo não
está em supor que as mulheres negras não estavam aliadas à resistência;
ao contrário, por saber que, ao não ser feito o devido registro de suas
experiências, há várias produções e limites que reproduzem os preconceitos
estruturais da sociedade, expressando-se também como setor social tão
machista, racista e homofóbico quanto qualquer outro de caráter reacionário
(Alves, 2018, p. 122).

Priscila Lira (2019) estudou o movimento de mulheres negras e o serviço social, observando,
que na história da profissão, a trajetória de mulheres negras ainda têm sido invisibilizadas (Scheffer,
2016). Desse modo, sublinha que “a fala das que vieram antes de nós, [...] que ainda ecoam,
reverberam nas (reações de diversas profissionais assistentes sociais, evidenciando que nossos
passos vêm de longe! (Lira, 2019, p. 157)”, acrescentando que já passa da hora de ouvi-las.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar as reflexões deste trabalho, destaca-se o relatório “A implementação da


Lei 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, divulgado no dia 18 de março de 2024. O
relatório foi elaborado por integrantes da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF),
do Núcleo de Estudos Raciais do Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), e, do Movimento Negro
Unificado (MNU). O relatório constatou: que a reserva de vagas para pessoas negras nos cargos do
magistério superior não tem sido cumprida; e, o cenário persistente do racismo institucional e sua
reprodução nas universidades públicas.

373
373
A partir da contextualização realizada neste artigo as seguintes questões reflexivas serão
aprofundadas na pesquisa de doutorado: como tem sido construído os editais de concurso
público para carreira docente na área do Serviço Social, de acordo com o estabelecido pela Lei no
12.990/2014? Como a branquitude docente se privilegia com a não implementação da Lei citada?

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, S.A.L. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen; 2019.

ALVES, M.E.R. Pequena memória para um tempo sem memória: violências e resistências entre
mulheres do Serviço Social na Ditadura Civil-Militar de 1964-1985. Tese (Doutorado) – Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Serviço Social, 2018. 176 p.

BRASIL. Lei nº. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: Presidência da República, 2008. Disponível:http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 19 ago. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as leis
nos 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e
10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário oficial da União. Brasília, DF, 2010b.

BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais
e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Brasília,
DF: Presidência da República, 2012. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 19 ago. 2022.

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: Presidência da República, 2008. Disponível:http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 19 ago. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Dispõe sobre a reserva aos negros 20% (vinte por
cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos
públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das
empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm .

BRASIL. Relatório de pesquisa baseado em evidências: A implementação da Lei nº 12.990/2014:


um cenário devastador de fraudes [recurso eletrônico]/ Coordenação: Ana Luisa Araujo de Oliveira,
Alisson Gomes dos Santos, Edmilson Santos dos Santos. – Petrolina-PE: UNIVASF, 2024. Disponível
em: https://www.observatorioopara.com.br/relatorio/ .

374
374
CLEMENTE, F.S; AZEVEDO L.R; CLEMENTE, M.S. Gênero e saúde mental: um olhar sobre as mulheres
negras professoras universitárias. Feminismos. v. 8, n.1, Jan/ Abr. 2020.

COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução de Rane Souza. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2021.

DAVIS, A. Mulheres, raça e classes. São Paulo: Boitempo, 2016.

EUCLIDES, M.S; SILVA, J. Histórias de vida e superação: semelhanças e ambiguidades nos caminhos
profissionais de docentes negras. Vozes, Pretérito & Devir. a. 4, v. 17, n. 1, 2017.

GOMES, N.L; Silva, P.V.B; BRITO, J.E. Ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação:
lutas, conquistas e desafios. Educ. Soc., Campinas, v. 42, 2021.

hooks, b. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política.
Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./ abr. 2015.

LIRA, L.L. Movimento de mulheres negras e o Serviço Social. Dissertação (Mestrado)

PRATES, D.S; ROTERMUND, M.D.G. A inserção das mulheres negras nos cargos docentes das
instituições de ensino superior. Revista Metodista de Administração do Sul, v. 4, n. 6, 2019

SCHEFFER, G. Serviço Social e Dona Ivone Lara: o lado negro e laico da nossa história profissional.
Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 127, p. 476-495, set./dez. 2016.

WERNECK J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc 2016; 25(3): 535-549.

375
375
DESAFIOS ENFRENTADOS POR TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NO BRASIL

Janaina Alves Costa

RESUMO

Este artigo aborda a situação das trabalhadoras domésticas remuneradas


no contexto do trabalho reprodutivo, destacando também as limitações na
implementação da Lei Complementar 150/15, conhecida também como
PEC das Domésticas de 2013, que visa assegurar direitos trabalhistas. O
objetivo é analisar como as práticas diárias refletem uma estrutura de
trabalho marcada por desigualdades de gênero, raça e classe, com ênfase
na desvalorização do trabalho reprodutivo em detrimento do produtivo.
Conclui-se que as trabalhadoras domésticas enfrentam condições precárias,
incluindo baixos salários, condições de trabalho analógas à de escravidão,
racismo e falta de proteção legal, além de baixo índice de formalização. Essas
situações representam desafios a serem superados, refletindo as diversas
vulnerabilidades relacionadas à raça e condição econômica desprivilegiada,
exigindo uma abordagem consubstancial abrangente que considere a
interconexão dos marcadores sociais presentes na estrutura social ao qual
se insere as trabalhadoras domésticas.

Palavras-chave: Trabalhadoras Domésticas, Direitos Trabalhistas,


Desigualdades.

ABSTRACT

This article addresses the situation of paid domestic workers in the context of
reproductive work, also highlighting the limitations in the implementation of
Complementary Law 150/15, known as PEC das Domésticas of 2013, which
aims to ensure labor rights. The objective is to analyze how daily practices
reflect a work structure marked by gender, race and class inequalities, with
an emphasis on the devaluation of reproductive work to the detriment of
productive work. It is concluded that domestic workers face precarious
conditions, including low wages, working conditions analogous to slavery,
racism and lack of legal protection, in addition to a low level of formalization.
These situations represent challenges to be overcome, reflecting the various
vulnerabilities related to race and underprivileged economic conditions,
requiring a comprehensive, consubstantial approach that considers the
interconnection of social markers present in the social structure to which
the domestic workers are inserted.

Keywords: Domestic Workers, Labor Rights, Inequalities.

376
376
1. INTRODUÇÃO

O trabalho doméstico exercido por milhões de trabalhadoras domésticas compõe a força de


trabalho nacional, se enquadra como um trabalho não produtivo e ao mesmo tempo é essencial
para a dinâmica de manutenção e reprodução do capitalismo como sistema de acumulação de
capital. Apesar de ser um trabalho importante, ele é carregado de desvalor histórico, uma vez que
no Brasil, essas funções estão ligadas ao passado escravista do país. Sendo exercido principalmente
por mulheres, pobres e negras, a invisibilidade em relação aos desafios enfrentados pelas
trabalhadoras está começando a ganhar atenção, ainda que de forma tímida, em diversas áreas
do conhecimento. Isso se deve à recente legislação conhecida como PEC das domésticas (2013)
e à implementação da Lei Complementar Número 150/15, que foi pensada para atender essas
trabalhadoras e expor o projeto político de exclusão delas.

2. UM TRABALHO COMO OUTRO QUALQUER?

Na intenção de compreender o entrelaçamento do trabalho doméstico às realidades de


mulheres negras e pobres, faz-se necessário estudar mais a fundo a formação sócio-histórica do
Brasil, uma vez que esse ramo de trabalho é fortemente marcado por resquícios escravistas (TELLES,
2011).

No exercício em busca da compreensão não existem formas de categorias isoladas e é


justamente na integração indissociável delas que a consubstancialidade se apresenta como uma
importante chave para reconhecer que o que há é uma interconexão de fatores. Partindo de
uma análise teórica e prática da consubstancialidade é possível alcançar abordagens que não
hierarquizam os diferentes componentes estruturais que compõem a realidade das trabalhadoras
domésticas, através dessa análise teórica é possibilitada uma dimensão mais profunda e integrada
das questões de classe, gênero e raça e entre tantos marcadores presentes na vivência dessas
mulheres (KERGOAT 2010).

Apesar de a trabalhadora doméstica não ser vista como uma personagem estruturante e
essencial à imagem construída em torno da formação do Brasil, ela é peça fundamental no arranjo
capitalista, como bem aponta Saffioti:

(...) na medida em que esta produz bens e serviços para o consumo imediato
da família empregadora, não produz mercadorias para serem comercializadas.
Não se trata, pois, de produção simples de mercadorias, nem de trabalho
improdutivo situado no interior do modo de produção capitalista, como é o
caso das atividades comerciais. Ainda que assalariada, determinação típica
do sistema capitalista, esta força de trabalho atua de forma não capitalista
no seio das formações sociais dominadas pelo modo de produção capitalista.
Organizadas, pois, de maneira não-capitalista, as atividades das empregadas
domésticas têm lugar no interior de uma instituição não capitalista - a
família - que, contudo, mostra-se bastante adequada a auxiliar a reprodução
ampliada do capital (SAFFIOTI, 1979, p.41-42).

377
377
É nas tarefas reprodutivas que a trabalhadora gera as condições propícias para que seus
contratantes possam exercer tarefas no campo do trabalho produtivo enquanto estes se exoneram
de tarefas básicas para a sobrevivência e manutenção da própria vida, tais como cuidado com as
crianças, idosos e todas aquelas pertinentes à manutenção do lar.

Partindo do princípio que a exploração da empregada doméstica não se baseia na extração


de mais-valia, como acontece com os trabalhadores produtivos no setor capitalista, Saffioti aponta
que, a doméstica remunerada não pode ser considerada uma trabalhadora improdutiva dentro do
sistema capitalista, já que os trabalhadores improdutivos desempenham um papel essencial na
realização e apropriação da mais-valia por parte da burguesia.

No Brasil, o trabalho doméstico é composto na sua maioria por mulheres negras e se


considerarmos a formação sócio-histórica do país, a figura da mulher negra em condições
degradantes exercendo funções de asseio, cuidado infantil, de idosos, na cozinha e entre outras
funções de manutenção de uma residência, esteve presente desde o período colonial.

Após a abolição da escravidão como bem discute (PORFIRIO 2021, TELLES 2021), muitas
mulheres negras seguiram nos espaços em que eram escravizadas, mas como empregadas
domésticas assalaridas ou em troca de subsídios básicos para sua sobrevivência, comida e teto.
Mesmo em residências que não eram habitadas por pessoas de uma classe média e nem alta, não
era estranho a presença dessa figura, pois o hábito de delegar tarefas domésticas a uma outra
pessoa nem sempre foi em troca de salário em dinheiro.

Analisando as condições sociais, nas quais essas mulheres foram obrigadas a se submeter
para garantirem sua sobrevivência, podemos tratar da abolição como sendo um processo de ruptura
social inconclusa. Ao não oferecer políticas de reparos para a população negra, o Estado brasileiro
fomentou o surgimento de grandes reservas de mão-de-obra que, ainda na contemporaneidade,
se fazem abundantes nas periferias do capitalismo.

No Brasil atual identifica-se que o atual sistema vigente está inserido em bases arcaicas, já
que “aqui o capitalismo foi construído com base em riquezas produtivas acumuladas via exploração
de africanos escravizados e protagonizado pelas mesmas classes que escravizaram africanos.”
(MOURA, 2014, p.16).

As desigualdades que compunham a realidade do trabalho doméstico não permaneceram


restritas apenas ao período. De acordo com relatório apresentado pela Organização Internacional
do Trabalho (OIT) de 2022, a taxa de trabalhadores domésticos que usufruem de proteção social no
mundo é mínima, apenas 6%. Estima-se que há aproximadamente 75,6 milhões de trabalhadores
domésticos no mundo, sendo que 57,7 milhões são mulheres. Quando observada a América
Latina e o Caribe, identifica-se que a informalidade é alarmante. A pesquisa aponta que 64,6% dos
trabalhadores domésticos na América Latina e no Caribe seguem sem nenhum tipo de garantia de
proteção.

Segundo o boletim especial apresentado pelo Departamento Intersindical de Estatística e


Estudos Socioeconômicos (Dieese) e pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(Pnad Contínua) de 2023, no Brasil, 43% das pessoas ocupadas no período eram mulheres, sendo
que 53% delas são negras. O trabalho doméstico remunerado no Brasil para o ano de 2023 contava

378
378
com um perfil em que: 92% das pessoas ocupadas em serviços domésticos eram mulheres; dessas
trabalhadoras, 66% se identificam como negras; a faixa etária gira em torno dos 45 a 59 anos de
idade, esse número corresponde a 42% e a maior parte delas não conseguiu chegar ao ensino
médio (63%).

A pesquisa mostra que há um predomínio de desigualdade salarial alarmante, colocando


muitas dessas trabalhadoras em condições vulneráveis tanto em sentido da desvantagem econômica
causada pela inexistência de um salário digno, como pelas diversas violências experienciadas em
condições precarizadas de trabalho. As trabalhadoras domésticas têm baixos salários e recebem
em média menos da metade do rendimento recebido pelo total de mulheres ocupadas. A maioria
das trabalhadoras se encontra sem carteira assinada e, logo, estão desassistidas pela legislação
trabalhista.

Parte dessas trabalhadoras são as maiores, se não as únicas, provedoras de suas casas,
o que nos possibilita pensar que a condição de vulnerabilidade dessas mulheres só tende a se
potencializar, pois mesmo que estejam empregadas em residências em que os empregadores
não respeitam os direitos trabalhistas e oferecem condições de prejuízo psicológico para essas
trabalhadoras, a necessidade econômica de manter o sustento, mesmo que com baixa qualidade,
para seus familiares, faz com que elas tenham que se submeter. Considerando a baixa escolaridade
e a falta de oportunidades em outros ramos de trabalho, o trabalho doméstico acaba por aprisioná-
las.

Ao analisarmos esses dados em sintonia com o processo de estruturação histórica das


desigualdades de bases racistas, sexistas, territoriais e classistas as quais a população vivencia
historicamente no nosso país, em especial as mulheres negras, como nos convida a pensar (HOOKS
2019, DAVIS 2016, GONZALEZ 2020), a classe quando cruzada transversalmente com as linhas
raciais constituem um grave fator de divisão política entre as mulheres, fazendo com que algumas
delas possam se exonerar das funções domésticas e assalariar ainda que precariamente outras para
a realização dessas tarefas.

A inexistência da divisão sexual do trabalho em famílias abastadas no Brasil se deve em


grande parte à presença da empregada doméstica, historicamente parte do exército de mão-
de-obra do capitalismo. Trabalhadoras domésticas enfrentam diversos desafios, como trabalho
infantil, falta de acesso à educação, violência de gênero e racial, baixos salários e falta de direitos
trabalhistas.

3. A LEGISLAÇÃO TRABALHISTA E SEUS LIMITES PRÁTICOS

Foi apenas no ano de 2013 com a discussão da PEC das domésticas e posteriormente com
a implementação da Lei Complementar Número 150/15 que no cenário nacional, a trabalhadora
doméstica foi vista como uma trabalhadora merecedora de ter seus direitos trabalhistas equiparados
com os demais integrantes da classe trabalhadora, ao que se deveu essa demora em ser reconhecida
como trabalhadora?

379
379
A Lei Complementar 150/2015, conhecida anteriormente por PEC das domésticas,
resulta de uma longa luta sindical pelas trabalhadoras domésticas, iniciada na década de 1930. A
regulamentação dos direitos dessas trabalhadoras é fruto de um processo árduo e longo, liderado
por figuras como Laudelina de Campos Melo.

No início do século XX, surgiram medidas para regulamentar o trabalho doméstico, mas
somente em 1941 houve um reconhecimento mínimo. A CLT de 1943 excluiu completamente as
trabalhadoras domésticas, marcando uma longa luta por direitos. A PEC das domésticas e a Lei
Complementar de 2015 foram um marco. A Lei nº 5.859 de 1972 trouxe avanços, mas de forma
inferior aos demais trabalhadores. A Constituição de 1988 também trouxe garantias, porém a
desvantagem previdenciária persistiu.

A Lei estabelece exigências tais como: jornada de trabalho não superior a 8 horas por dia
(máximo de 44 horas semanais); a garantia de salário somente superior ao mínimo, proibição
de discriminação de salário, de função e de critério de admissão; proibição de discriminação em
relação à pessoa com deficiência; proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre, ou seja,
prejudicial à saúde; pagamento de horas-extras.

Uma limitação aparente na regulamentação desta legislação consiste no fato de que as


diaristas, até então socialmente entendidas como integrantes do trabalho doméstico, não foram
incorporadas no pacote de medidas ao qual se entendeu que deveria beneficiar a trabalhadora
doméstica. Aquelas trabalhadoras que exercem funções de limpeza e manutenção de residências,
mas que não prestam serviço para uma mesma pessoa e ultrapassando 3 dias de trabalho na
semana, foram excluídas e seguem desamparadas.

A associação do trabalho doméstico como sujo e sem valor persiste até os dias de hoje,
lançando uma sombra de desvalorização sobre as trabalhadoras que o realizam e dificultando
a aplicação efetiva das leis destinadas a diminuir tais desigualdades. Um aspecto atual das
desvantagens enfrentadas por essas trabalhadoras, mesmo após a implementação da legislação
trabalhista, é a semelhança com a modernização da escravidão. Isso é evidenciado pelo fato de que
em 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou mais de 2.800 trabalhadores em condições
semelhantes às de escravidão, representando o maior número dos últimos 14 anos.

Segundo dados emitidos pelo Painel de Informações Estatísticas da Inspeção do Trabalho


no Brasil, nos últimos 28 anos foram identificados 63.516 trabalhadores em condições de trabalho
escravo e desse contingente, 584 pessoas foram resgatadas de trabalho doméstico análogo ao de
escravidão entre 1995 e 2023. Entre 2017 e 2023, 117 trabalhadores domésticos foram resgatados
de trabalhos escravos.

Ao refletirmos esses dados para além do quantitativo, sabendo que há casos que não estão
sendo notificados, pois não estão sendo denunciados, podemos nos perguntar sobre o quanto do
passado está superado e o quanto dele está naturalizado nas práticas atuais.

380
380
4. CONCLUSÃO

Diante disso, cabe-nos perguntar sobre as possíveis lacunas deixadas nessa legislação
que desprivilegia a trabalhadora doméstica e as diaristas excluídas, e quais são os benefícios que
essas exclusões conferem aos empregadores. Além das desvantagens aparentes, é válido trazer
à tona alguns dos desafios que impedem o acesso aos direitos trabalhistas para algumas dessas
trabalhadoras e até mesmo a sua proteção, tais como: falta de vigilância, a inexistência de um
mecanismo de folha de ponto registrando horários, a existência da doméstica que dorme no serviço
e ultrapassa as 44 horas semanais, além disso, casos de trabalho análogo à escravidão que vez ou
outra surgem nos veículos de comunicação.

As tarefas cotidianas de manutenção doméstica dentro do ramo do trabalho reprodutivo


são de fundamental importância para todo o funcionamento e manutenção do sistema capitalista,
mas não recebem tanta atenção nas discussões e regulamentações como outros trabalhos do ramo
produtivo. Para que crianças e adultos possam sair todos os dias e realizem suas tarefas no ambiente
externo ao da casa em que vivem, é necessário que tudo tenha funcionado minimamente dentro
de suas casas para que possam encarar o mundo lá fora de maneira mais cômoda e preparada.

O desvalor que carrega o trabalho doméstico, por ainda estar atrelado a noções como
trabalho de preto, dificulta avançarmos em direção à sua valorização, já que, todavia, estamos
inseridos em uma sociedade que não aprendeu a lidar com seu racismo e nem a enxergar a
população negra como sujeitos dignos de direitos e de humanidade. Se não se valoriza o trabalho,
não se valorizam os agentes que o exercem, neste caso, a grande maioria de mulheres negras e
pobres que, ainda que sejam essenciais para a manutenção e avanço de um capitalismo feroz, são
tidas por esse sistema como corpos descartáveis e superexplorados.

Conclui-se que o Brasil não rompeu com uma posição subalterna e colonial na divisão
internacional do trabalho. Ao não existir essa ruptura, a raça é uma característica que rebaixa
salários e condições de vida, de trabalho e dá forma ao chamado racismo estrutural.

Identifica-se também que a legislação trabalhista apresenta brechas urgentes a serem


revistas. Um exemplo da contradição entre teoria e prática é a exigência de que os contratantes
respeitem o montante de 44 horas trabalhadas prestadas pela trabalhadora doméstica, mas
ao mesmo tempo existem milhares de trabalhadoras domésticas dormindo no emprego e sem
horário fixo para começar ou parar de trabalhar, não é estranho encontrar anúncios com cargas
horárias extenuantes, basta que examinemos as vagas com anúncios abusivos expostos em perfis
críticos que debatem a temática de redes sociais como Ela é só a babá1, no instagram. Devido à
mentalidade escravista que persiste nos dias atuais em grande parte da sociedade brasileira, ainda
que o trabalho doméstico esteja regulamentado por leis, parece ainda se tratar de uma ajudinha,
favorzinho, e nessa dinâmica a trabalhadora vive à mercê da boa vontade dos patrões em cumprir
com determinações já legisladas.

1 Disponível em: https://www.instagram.com/stories/highlights/17939051957662684/?hl=en. Acesso em 10


de maio de 2024.

381
381
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. MTE resgatou mais de 2.800 trabalhadores de condições
análogas à escravidão em 2023. Disponivel em: https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/
noticias-e-conteudo/2023/novembro/mte-resgatou-mais-de-2-800-trabalhadores-de-condicoes-
analogas-a-escravidao-em-2023. Acesso em 10 de maio de 2023.

DAVIS. Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Editora
Boitempo, 2016.

DIESSE. Departamento Intersindical De Estatística e Estudos Socioeconômicos. Relatório 2023.


Disponível em: https://www.dieese.org.br/boletimespecial/2024/trabalhoDomestico.html. Acesso
em 09 de maio de 2024.

GONZALEZ. Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Zahar, 2020.

GONZALEZ, Lélia. Retratos do Brasil negro. Alex Ratts, Flavia Rios. São Paulo. Selo Negro. 2010.

HOOKS, bell. Teoria feminista da margem ao centro.Tradução Rainer Patriota. São Paulo. Perspectiva,
2019.

KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos CEBRAP, n.
86. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005. Acesso em: 10 de maio de
2024.

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo. Fundação Maurício Grabois, co-edição
com Anita Garibaldi, 2014.

ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Relatório 2022. Making the right to social security
a reality for domestic workers.p.21.

PORFIRIO, Tamis. A cor das empregadas, a invisibilidade racial no debate do trabalho doméstico.
Belo Horizonte, Letramento; Temporada, 2021.

PORTAL DA INSPEÇÃO DO TRABALHO. Trabalho Escravo. Disponível em: https://sit.trabalho.gov.br/


radar/ . Acesso em 10 de maio de 2024.

PORTAL DO SENADO NOTÍCIAS. Entenda o que muda com a PEC das Domésticas. Disponível:http://
www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/03/18/entenda-o-que-muda-com-a-pec-das-
domésticas. Acesso em: 09 de maio de 2024.

SAFFIOTI, Heleieth. Emprego Doméstico e Capitalismo, Rio de Janeiro, 1978, p. 36, 41, 42,43.

382
382
ANAIS DE TRABALHOS COMPLETOS
ISSN 2527-1490

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Programa de Pós-Graduação em Política Social - PPGPS

ORGANIZAÇÃO APOIOS

Você também pode gostar