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Coleção

Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos

Coordenação
Ana Lídia Campos Brizola
Andrea Vieira Zanella

Vol. 8 Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Organizadores
Frederico Viana Machado
Gustavo Martineli Massola
Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro

Florianópolis
2015
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária
da
Universidade Federal de Santa Catarina

I61 Estado, Ambiente e Movimentos Sociais [recurso


eletrônico] / organizadores Frederico Viana
Machado, Gustavo Massola, Maria Auxiliadora
Teixeira Ribeiro ; coordenadoras da coleção Ana
Lídia Campos Brizola, Andrea Vieira Zanella. –
Florianópolis : ABRAPSO Editora : Edições do
Bosque CFH/UFSC, 2015.
307 p.: tabs. - (Coleção Práticas
Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos;
v. 8)

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-86472-27-5

1. Psicologia social. 2. Movimentos sociais –


Psicologia. I. Machado, Frederico Viana.
II. Massola, Gustavo. III. Ribeiro, Maria
Auxiliadora Teixeira. IV. Série.

CDU: 159.9
Diretoria Nacional da ABRAPSO 2014-2015

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Primeiro Secretário: Marcelo Gustavo Aguilar Calegare
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Ana Lídia Campos Brizola
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Sobre a ABRAPSO
A ABRAPSO é uma associação sem fins lucrativos, fundada durante a 32a
Reunião da SBPC, no Rio de Janeiro, em julho de 1980. Fruto de um posicio-
namento crítico na Psicologia Social, desde a sua criação, a ABRAPSO tem
sido importante espaço para o intercâmbio entre estudantes de graduação e
pós-graduação, profissionais, docentes e pesquisadores. Os Encontros Nacio-
nais e Regionais da entidade têm atraído um número cada vez maior de pro-
fissionais da Psicologia e possibilitam visualizar os problemas sociais que a
realidade brasileira tem apresentado à Psicologia Social. A revista Psicologia
& Sociedade é o veículo de divulgação científica da entidade.
http://www.abrapso.org.br/

Sobre as Edições do Bosque


As Edições do Bosque têm como foco a publicação de obras originais e
inéditas que tenham impacto no mundo acadêmico e interlocução com a
sociedade. Compõe-se de um conjunto de Coleções Especiais acessíveis no
repositório institucional da Universidade Federal de Santa Catarina. A tônica
da editoria é aproximar os autores do público leitor, oferecendo publicação
com agilidade e acesso universal e gratuito através dos meios digitais
disponíveis. A Edições do Bosque conta com a estrutura profissional e corpo
científico do Núcleo de Publicações (NUPPE) do CFH/UFSC.
http://nuppe.ufsc.br/
https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/104796

Revisão: CCLI Consultoria linguística


Editoração: Spartaco Edições
Capa e Projeto gráfico: Spartaco Edições

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons


Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Sumário

A Coleção 1

Como prefácio: as dores e as delícias de ser do contra 3
Eduardo Augusto Tomanik

Construção de lutas políticas na sociedade brasileira: dificulda- 11
des e possibilidades da ampliação de direitos democráticos por
movimentos sociais no contexto do governo Lula
Frederico Alves Costa

Movimentos Negros e LGBT no Governo Lula: desafios da 22


institucionalização segmentada
Frederico Viana Machado e Cristiano Santos Rodrigues

Grande mídia nas manifestações de massa no Brasil em 2013 46
Telma Regina de Paula Souza

Greenpeace e Estado: paradoxos no ativismo ambiental 65


Marcela de Andrade Gomes, Kátia Maheirie e Marco Aurélio
Máximo Prado

A produção de documentários como estratégia em Psicologia 82


Comunitária
Elisa Harumi Musha e Erich Montanar Franco

Política, ambiente e comunidade: interfaces entre 98
mundialização e Psicologia Socia
Marco Antonio Sampaio Malagodi, Gustavo Martineli Massola e
Luis Guilherme Galeão-Silva

Sociedade civil e democratização: cartografias da psicologia 122
social
Mariana de Castro Moreira

VI
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Mapeamento etnográfico de movimentos de ocupação urbana 141


em Porto Alegre
Cristiano Hamann, Rodrigo de Oliveira-Machado, João Pedro Cé
e Adolfo Pizzinato

Psicologia e políticas públicas: possibilidades para inclusão 158


de catadores
Gláucia Tais Purin, Ana Paula Martins e Lorena de Fátima Prim

O desenvolvimento da “questão natural” na obra de Serge 177


Moscovici
Tania Barros Maciel, Priscilla Maia Rangel, Marie Louise Trindade
Conilh de Beyssac.

Desastres e interdisciplinaridade: diálogos para a 200
transdisciplinaridade
Alisson Tiago Gonçalves Vieira, Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro
e Mariana de Moraes Duarte Oliveira

Performances tecnológicas em gestão para a prevenção 217


de desastres: o caso dos pluviômetros em comunidades
paulistanas
Mário Henrique da Mata Martins e Mary Jane Paris Spink

Do movimento das águas ao movimento da vida ribeirinha: 237
mulheres em transformação
Zaira de Andrade Lopes, Vivina Dias Sól Queiróz e Gabriela Lopes
de Aquino

Implicações socioafetivas do jovem com o local de moradia 264
Dayse Da Silva Albuquerque e Maria Inês Gasparetto Higuchi

Estimar os jovens é estimar a escola, o bairro e a comunidade 284


Zulmira Áurea Cruz Bomfim, Ana Kristia da Silva Martins e
Debora Linhares da Silva

Sobre os autores, organizadores e coordenadoras 303

VII
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

A coleção

Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos reúne tra-


balhos oriundos do XVII Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Psicologia Social - ABRAPSO, realizado na Universidade Federal de Santa
Catarina em outubro de 2013. Comemorando 30 anos, ao realizar esse
evento que aliou ensino, pesquisa e atuação profissional em Psicologia
Social implicada com o debate atual sobre problemas sociais e políticos do
nosso país e sobre o cotidiano da nossa sociedade, a ABRAPSO reafirmou
sua resistência política à cristalização das instituições humanas.
A ABRAPSO nasceu comprometida com processos de democratiza-
ção do país, a partir de uma análise crítica sobre a produção de conheci-
mento e atuação profissional em Psicologia Social e áreas afins. O hori-
zonte de seus afiliados é a construção de uma sociedade fundamentada
em princípios de justiça social e de solidariedade, comprometida com a
ampliação da democracia, a luta por direitos e o acolhimento à diferença.
Nossas pesquisas e ações profissionais visam a crítica à produção e repro-
dução de desigualdades, sejam elas econômica, racial, étnica, de gênero,
por orientação sexual, por localização geográfica ou qualquer outro as-
pecto que sirva para oprimir indivíduos e grupos. Os princípios que orien-
tam as práticas sociais dos afiliados à ABRAPSO são, portanto, o respeito à
vida e à diversidade, o acolhimento à liberdade de expressão democrática,
bem como o repúdio a toda e qualquer forma de violência e discrimina-
ção. A ABRAPSO, como parte da sociedade civil, tem buscado contribuir
para que possamos de fato avançar na explicitação e resolução de violên-
cias de diversas ordens que atentam contra a dignidade das pessoas.
Os Encontros Nacionais de Psicologia Social promovidos pela
ABRAPSO consistem em uma das estratégias para esse fim. Foi um dos
primeiros eventos nacionais realizados na área de Psicologia (em 1980)
e se caracteriza atualmente como o 3º maior encontro brasileiro de
Psicologia, em número de participantes: nos últimos encontros congregou
em média 3.000 participantes e viabilizou a apresentação de mais de
1.500 trabalhos.

1
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

O XVII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia


Social foi concebido a partir da compreensão de que convivemos com
violências de diversas ordens, com o aviltamento de direitos humanos e
o recrudescimento de práticas de sujeição. Ao mesmo tempo, assistimos
à presença cada vez maior de psicólogos(as) atuando junto a políticas de
governo. Ter como foco do Encontro Nacional da ABRAPSO a temática
Práticas Sociais, Políticas Públicas e Direitos Humanos possibilitou
o debate desses acontecimentos e práticas, das lógicas privatistas e
individualizantes que geralmente os caracterizam e os processos de
subjetivação daí decorrentes. Ao mesmo tempo, oportunizou dar
visibilidade às práticas de resistência que instituem fissuras nesse cenário
e contribuem para a reinvenção do político.
Neste XVII Encontro, além da conferência de abertura, simpósios,
minicursos, oficinas e diversas atividades culturais, foram realizados 39
Grupos de Trabalho, todos coordenados por pesquisadores/doutores de
diferentes instituições e estados brasileiros. Estes coordenadores sele-
cionaram até cinco trabalhos, entre os apresentados em seus GTs, para
compor a presente coletânea. Um entre os proponentes de cada grupo
responsabilizou-se pelo processo editorial que envolveu desde o convite
para apresentação dos trabalhos completos, avaliação por pares, decisões
editorias e reunião da documentação pertinente. Como resultado, che-
gou-se à aprovação de 148 textos. Organizados por afinidades temáticas,
mantendo-se os conjuntos dos GTs, estes passaram a compor os oito vo-
lumes desta Coleção. Para apresentar as edições foram convidados pes-
quisadores que participaram na coordenação de GTs ou organização do
evento, com reconhecida produção acadêmica nas temáticas abordadas.
Agradecemos a todos os envolvidos neste projeto: trata-se de um
esforço conjunto não apenas para a divulgação das experiências e do co-
nhecimento que vem sendo produzido na Psicologia Social brasileira, em
particular no âmbito da ABRAPSO, mas para a amplificação do debate e
provocação de ideias e ações transformadoras da realidade social em que
vivemos.

Ana Lídia Brizola


Andréa Vieira Zanella

2
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Como prefácio: as dores e as delícias de ser do contra


Eduardo A. Tomanik

Este tal de animal-humano é mesmo estranho. Poderia estar viven-
do até hoje, tranquilamente, sua existência de bicho, animal biológico,
movido por instintos ou determinações naturais como todos os outros,
mas não. Preferiu ser, como diriam nossos avós, do contra; fazer o inespe-
rado, agir de forma diferente.
Primeiro, aprendeu a pensar ou inventou o pensamento, já que não
temos notícias de outros pensantes antes dele. Diz a Bíblia que pagamos
um preço caro por este atrevimento: perdemos todas as mordomias de
viver no paraíso. Seria tão mais fácil continuar por lá, sem trabalhar e sem
ter preocupações...
Não contente com isto, mais adiante o animal-humano aprendeu
a pensar sobre a natureza e criou as ciências. Novamente, teria sido fácil
(muito mais fácil, aliás), continuar a aceitar a suposição de que as coisas
aconteciam como aconteciam porque um deus ou vários deuses determi-
navam que assim fosse.
Mas o bicho-humano parece não conseguir se livrar da mania de
querer saber mais. Atrevido, inventou-se como objeto e, com isto, obri-
gou-se a pensar sobre si mesmo. As divergências que surgiram daí foram
sérias. Já que os humanos parecem não conseguir viver isolados, um gru-
po de pensadores começou a tratá-los como membros de um bando e a
estudar como as regras do bando agem sobre cada um de seus membros.
Outro grupo passou a considerar cada um dos animais humanos como
um indivíduo, alguém dotado de características próprias e que precisava e
merecia ser estudado em si mesmo.
Poderíamos ter parado por aí e estabelecido uma respeitosa distân-
cia entre estes estudos. Com isto, os membros do primeiro grupo, que
passaram a chamar-se de cientistas sociais poderiam ter continuado seus
trabalhos de mapear e de entender como funcionam as regras e costumes
sociais. Alguns continuam, e fazem trabalhos muito bons.

3
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Os do segundo grupo, também conhecidos como psicólogos, pode-


riam ter ficado quietinhos em seus cantos, cuidando das pessoas e de seus
problemas individuais. Alguns ficaram, e também são muito úteis. Apren-
demos muito, tanto com estes quanto com aqueles.
Mas, tanto em um lado quanto no outro, mais uma vez, surgiram os
do contra. No meio de cada um dos grupos alguns começaram a cismar
que o bando também era composto por individualidades ou que o indiví-
duo, mesmo sendo único, sofria muitas influências do grupo. A saída, aí,
foi inventar uma aparente contradição: uma psicologia (ciência do indiví-
duo) que fosse também social.
Realizada esta quase impossível alquimia, durante um bom tempo,
cientistas esforçados e esperançosos dedicaram-se a desvendar como o
outro, presente ou não, real ou imaginário, direcionava ou determinava as
ações dos indivíduos humanos e a criar teorias sobre como aquela influ-
ência era exercida.
Mas para quê serviriam ou deveriam servir estes estudos? Os estu-
diosos e os praticantes desta psicologia social foram buscar esta resposta
nos nossos colegas mais antigos, os estudiosos da natureza.
Quando os seres humanos decidiram tentar explicar os fenômenos
naturais por leis também naturais, e não pelas vontades dos deuses, cria-
ram vários motivos para explicar e para justificar estas buscas. Porém, en-
tre aquelas intencionalidades ou motivações, uma se destacou tanto que
passou a ser até considerada como natural, de tão aceita: a de que era
preciso conhecer para controlar. Se entendêssemos bem as regras que
determinam os acontecimentos naturais, poderíamos usar estas regras de
forma a fazer com que a natureza nos ajudasse a suprir os nossos interes-
ses de forma muito mais intensa e rápida do que vinha fazendo até então.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, muitos dos chamados cientis-
tas sociais, psicólogos e psicólogos sociais assumiram, como justificativas
para seus estudos, as necessidades e conveniências de harmonização da
sociedade (eliminando os conflitos e as discordâncias) e de adaptação de
cada indivíduo a esta sociedade, que oferecia oportunidades para que to-
dos fossem prósperos e felizes.
Tudo parecia caminhar muito bem, mas, de novo, surgiram os do
contra.

4
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Primeiro foram uns revoltosos das ciências sociais que começaram


a denunciar que a tal sociedade não era tão boazinha assim e, pior ainda,
que aquelas ideias de harmonia eram apenas um tapume feito para es-
conder que enquanto a grande maioria dos indivíduos carregava o piano
(e o pão, a farinha, o cimento, o tijolo e o mundo) nas costas, uns poucos,
espertinhos, ficavam com tudo (ou com a maior parte) do que os outros
produziam. Além dessa, uma porção de outras desigualdades eram escon-
didas por trás daquelas ideias sobre uma sociedade boa para todos.
Seguindo este caminho, outros do-contra começaram a se perguntar
se valia a pena, mesmo, acalmar e adaptar os que reclamavam ou que não
se adaptavam à tal sociedade; se não seria melhor (e mais humano) in-
centivar estes não adaptados justamente a não se adaptarem e a lutarem
por mudar a sociedade. Para ser mais do contra ainda, tanto psicólogos
(sociais ou não) quanto cientistas sociais desceram de seu pedestal de
cientistas e passaram a participar das lutas, movimentos, associações e
tentativas de ação dos não adaptados.
Como resultado deste movimento, mesmo tendo que enfrentar mui-
ta reclamação (e muita repressão), cientistas do contra foram construindo
uma nova concepção de ciência, na qual a intenção de conhecer para con-
trolar vem sendo substituída por outra: a de desconfiar para transformar.
Assim nasceu uma psicologia social do contra, contra aquela outra
psicologia social, adepta da adaptação, mas a favor de mudanças que tor-
nassem a vida de todos cada vez menos desigual.
No Brasil, estes psicólogos sociais do contra fundaram a Associação
Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).
Desde a primeira reunião, com pouco mais de uma dúzia de pesso-
as, realizada num espaço e num tempo cedidos pela Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência até as condições atuais, em que conta com
associados participantes em praticamente todos os Estados e cantos do
país, em que seus Encontros Nacionais reúnem mais de 3.000 pessoas, em
que tornou-se uma entidade conhecida e reconhecida, a ABRAPSO vem
mostrando que ser do contra pode ser uma boa alternativa.
Como podemos ver pelos textos publicados pela ABRAPSO ao lon-
go de todos estes anos, os participantes e simpatizantes desta psicologia
social do contra primam por, como diriam novamente os antigos, se mete-

5
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

rem onde não foram chamados; eles insistem em estudar e em participar


de espaços e de processos muito diferentes das preocupações que deve-
riam (ou que foram) as de uma ciência sobre o indivíduo no grupo. Temas
como ambiente, estética, mídias, desigualdades e desigualizações sociais,
política, manifestações artísticas não-comerciais, migrações, corpos, gê-
neros e sexualidades, saúdes, trabalho e educação aparecem constante-
mente naqueles textos, sempre envolvidos em preocupações sobre como
aqueles processos influenciam as vidas das pessoas, mas também sobre
como as pessoas atuam, diante e dentro deles.
Além disso, só para contrariar aqueles cientistas clássicos, que pre-
feriam imaginar que a teoria e a prática eram e deviam ser momentos
separados, no conjunto dos participantes e das atividades da ABRAPSO,
além dos trabalhos de intervenção e de participação, as preocupações e
os estudos teóricos sobre os processos psicossociais continuam existindo,
e dando frutos muito bons, só que aparecem associadas a novos questio-
namentos, sobre os próprios processos e espaços sociais.
Mesmo em suas práticas institucionais, este pessoal continua, mui-
tas vezes, sendo do contra. Num momento histórico em que os congres-
sos científicos tendem a ser vistos como simples oportunidades para a
conquista de novos registros no Currículo Lattes, os Encontros da ABRAP-
SO vêm priorizando a organização de Grupos de Trabalho, nos quais os
resumos de pesquisa não são apenas apresentados, mas discutidos, re-
pensados, confrontados e combinados com outros, que tiveram a mesma
temática ou temáticas semelhantes. Os trabalhos deixam de ser tratados
como unidades independentes.
Num tempo em que os textos tendem a ser avaliados pela quantida-
de de dígitos, a ABRAPSO insiste em priorizar a qualidade dos conteúdos.
Num período (esperemos que seja apenas um período) em que a lógica
do produtivismo quase sufoca a busca da profundidade e faz com que os
artigos sejam tidos como os textos científicos mais importantes, a ABRAP-
SO insiste em produzir livros.
Aqui cabe um breve conjunto de comentários. Resumos (expandi-
dos ou não), artigos, capítulos e livros são todos veículos de transmissão
de conhecimentos científicos. O que os diferencia ou deveria diferenciar,
ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não é a extensão, a
quantidade de páginas previstas e aceitas para cada um: é a finalidade.

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Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Resumos, como sugere o nome, devem servir para divulgar os elementos


essenciais de um trabalho, sem entrar em muitos detalhes. Os artigos, de
forma geral, servem para a difusão dos resultados obtidos em um proces-
so de pesquisa ou de intervenção; a discussão breve das bases teóricas e a
descrição dos procedimentos, que normalmente fazem parte dos artigos,
servem como bases para a apresentação e a discussão dos resultados. Já
os livros autorais e os capítulos, nas coletâneas, são o espaço tradicional-
mente destinado aos textos que visam os aprofundamentos teóricos, as
discussões mais detalhadas, as reflexões mais complexas.
Nada impede, é claro, que artigos tragam discussões teóricas va-
liosas e há muitos que o fazem. Alguns periódicos científicos, inclusive,
reservam espaços para a publicação de artigos deste tipo. No entanto,
de forma geral, artigos são voltados para a difusão de informações, livros
são voltados para as reflexões (ainda que, repito, as características de um
possam também estar presentes no outro).
Mesmo em uma coletânea, é recomendável que o conjunto dos ca-
pítulos sirva para compor e para demonstrar uma ou mais ideias centrais,
o que raramente ocorre nos periódicos (salvo, eventualmente, nas chama-
das edições temáticas) e muito menos nas reuniões de resumos.
Voltando à ABRAPSO, novamente, seria mais fácil fazer o que (qua-
se) todo mundo faz: ao final de cada Encontro, publica-se os Anais, com os
resumos ou resumos expandidos que já haviam sido aprovados e pronto.
O Encontro e todo o trabalho de sua organização estão acabados. Pois a
ABRAPSO faz tudo isto, mas vai além.
Os últimos Encontros Nacionais e alguns Encontros Regionais têm
produzido também coletâneas de textos especialmente selecionados, por
sua qualidade e profundidade, como modo de disponibilizar reflexões e
avanços teóricos que normalmente não estariam disponíveis nos Anais.
Aí o pessoal que centralizou a organização do XVII Encontro Nacio-
nal resolveu ser mais do contra ainda e publicar não um, mas oito livros,
uma coleção inteira, de uma vez só. Imagine o atrevimento desse pessoal!
Quem eles pensam que são?
O primeiro resultado, dolorido, deste contrariamento renitente, é
que já estamos finalizando os preparativos e iniciando a realização do
Encontro seguinte (o XVIII, de 2015 em Fortaleza) e o pessoal envolvi-

7
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

do com a Coleção ainda está trabalhando para finalizar o anterior, que


aconteceu em 2013, em Florianópolis. E não estão fazendo isto, ainda,
por terem trabalhado mal ou lentamente, mas porque resolveram tra-
balhar a mais.
O resultado delicioso é que a Coleção está toda aí, pronta, disponível
e rica em ensinamentos, experiências e desafios. Este era o último livro
previsto e sua publicação encerra a tarefa toda.
No caso específico deste volume, ao ter o privilégio de conhecê-lo
antes da publicação, me encantou ver temas aparentemente tão desco-
nexos e distantes como movimentos sociais diversos, construção de iden-
tidades e outros processos psicoafetivos, teorias sobre as relações entre
o homem e a natureza, técnicas e estratégias de ação e a ressignificação
de objetos e de processos foram trabalhados, isolados ou formando ines-
perados conjuntos, permitindo a construção de novos significados e de
novos olhares não apenas sobre eles, mas para os conjuntos de nossas
relações, vivências e reflexões.
Os jogos de sentidos, a denúncia dos processos de ocultação e as
tentativas de construção de modos de revelação e superação dos mes-
mos, as possibilidades de desconstrução, reconstrução e ressignificação
do que é tido como dado permeiam cada um e o conjunto dos textos.
Apenas como exemplos, em vários dos textos, a política é tratada
como um campo de contradições mas também de possibilidades. Ora ela
aparece como a denominação mas também como um conjunto de prá-
ticas que delineiam um significado muito próximo ao que foi o original,
de modo de viver e de atuar na pólis, no mundo coletivo. O foco, nestes
casos, é o da participação política.
Em outros momentos ou textos, ela é tomada como um conjunto de
disposições institucionais, prescritas e adotadas por órgãos e agentes ofi-
ciais e que estabelecem e direcionam, portanto institucionalizam, ações,
objetivos e formas de pensar. O âmbito, aqui, é o das políticas públicas.
Só que, recusando suas possibilidades de imobilização e de cristalização
das ações, elas são vistas e tratadas como práticas sociais, não exatamen-
te como aquelas determinadas pela estrutura burocrática do Estado, mas
como as que são vividas, efetivadas e sentidas pelos que delas participam,
como executores ou beneficiários. Reafirmam-se assim as possibilidades

8
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

da existência do ser humano como agente, mesmo quando tudo poderia


e parece contribuir para o contrário.
Possibilidades semelhantes são abertas e expostas quando o am-
biente, que vem sendo tratado a séculos como tudo aquilo que está fora
do ser humano, é apresentado como o espaço construído e ressignificado,
individual e coletivamente, pelas práticas, as reflexões e os sentimentos
humanos, no qual os seres humanos estão incluídos, do qual dependem
para sua sobrevivência mas que só existe enquanto construção humana.
Ou quando as vulnerabilidades (o homem exposto e submetido) são trata-
das em conjunto e em contraste com os movimentos (o homem em ação
e como manifestação ou construção de seu poder).
A amplitude e a diversidade dos temas abordados é outro ponto
extremamente positivo. Numa escala espacial, os textos trazem preocu-
pações que abarcam desde os processos planetários da mundialização
até o espaço restrito (mas, nem por seu tamanho, menos importante) do
cotidiano e das dificuldades dos jovens em seus bairros, dos catadores
de materiais recicláveis ou das mulheres pescadoras. Numa outra escala,
de amplitude teórica, os textos abrangem desde as concepções amplas
e profundas sobre a natureza, elaboradas por um pensador reconhecido
até as identidades, os desejos e as implicações socioafetivas construídas e
vivenciadas por pessoas comuns, simples e que talvez não se reconheçam
ou nem se reconheceriam como teóricos, mas que são autores de teorias
prático/afetivas sobre eles mesmos, suas vidas e o mundo ao seu redor.
Além disso, instrumentos cuja função e utilidade são já, plenamente
conhecidos e reconhecidos, aparecem, nestes textos, revistos e reinter-
pretados. Um documentário é o que o nome diz: algo que documenta, ou
seja, que captura e imobiliza um acontecimento ou processo através de
um ou mais registros e que conserva aqueles fenômenos justamente por
tê-los capturado; um pluviômetro é um aparelho, um aparato técnico que
serve para medir a quantidade de chuva numa área e num período deter-
minados. Pois eles são isso, mas também não são apenas isso. Neste mun-
do de raciocínios do contra, documentários e pluviômetros ressurgem
como produtos humanos, dotados de intencionalidades e de potenciali-
dades de uso político, a favor ou contra a diminuição das desigualdades.
Diante de um conjunto de informações e de reflexões tão instigante,
só para também ser do contra, não vou parabenizar nem felicitar os orga-

9
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

nizadores do Encontro, da Coleção, de cada livro, deste livro em especial,


nem seus autores. Sei que suas felicidades e seus melhores presentes já
se iniciaram em todo o processo de construção dos textos e dos livros,
cresceram ou crescerão nos momentos de cada publicação e tornar-se-ão
ainda maiores e mais completos com as transformações que as leituras dos
textos certamente produzirão sobre os conhecimentos, os pensamentos,
os afetos e as ações de seus leitores. Estes são os melhores impactos de
um texto científico (e, talvez, os únicos que mereceriam ser considerados).
Quanto a você, leitor, que acompanhou até aqui estes meus comen-
tários, uma última sugestão: mergulhe alegremente na leitura dos textos,
deixe-se envolver por seus conteúdos, dialogue com eles.
Sei que você não vai sair contrariado desta aventura.

10
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Construção de lutas políticas na sociedade brasileira:


dificuldades e possibilidades da ampliação de direitos
democráticos por movimentos sociais no contexto do
governo Lula
Frederico Alves Costa

Introdução

A discussão apresentada foi realizada no XVII Encontro Nacional da


ABRAPSO, focalizando a luta política de movimentos sociais brasileiros du-
rante o período do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Lula),
a partir de entrevistas realizadas junto a alguns movimentos sociais1 e da
Teoria Democrática Radical e Plural, desenvolvida por Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe.
O objetivo do capítulo é apontar para dois aspectos no interior do
debate referente à luta política: por um lado, um modo de enfraqueci-
mento da luta política, que denominamos de “expansão hegemônica”,
focalizando a relação entre a atuação de movimentos sociais brasileiros
e a conquista da Presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores
(PT); e por outro lado, uma forma de vínculo entre movimentos sociais na
construção da luta política, que denominamos de “estratégia de aliança”.
Dessa maneira, buscamos apresentar uma breve discussão sobre estraté-
gias políticas no contexto brasileiro, no período do governo Lula, a partir
da relação entre movimentos sociais e o governo Lula, concebida em ter-
mos da dinâmica de relações hegemônicas.
Esta discussão é baseada em uma pesquisa anterior (Costa, 2010),
na qual entrevistamos, durante o ano de 2009 (final do governo do presi-
dente Luiz Inácio Lula da Silva), membros de diferentes grupos de movi-
mentos sociais que atuavam na cidade de Belo Horizonte, os quais apre-
sentavam demandas distintas e que historicamente têm realizado ações

1
Entrevistas realizadas para a pesquisa de Costa (2010).

11
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

de protesto que não se reduzem a atuações construídas pela via da ins-


titucionalização da luta política. Esses grupos possuem posições diferen-
ciadas em relação à institucionalização da luta política e todos defendem
a importância de autonomia em relação ao governo2. Os grupos inves-
tigados foram: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), Central Única dos
Trabalhadores (CUT), Brigadas Populares (BP), Negras Ativas (NA), Marcha
Mundial das Mulheres (MMM), Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e Assembleia Popular Metro-
politana de Belo Horizonte (AP-MBH).
A discussão encontra-se fundamentada em considerações da Teoria
Democrática Radical e Plural, a qual é desenvolvida por Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe desde meados dos anos 1980, sendo o livro seminal inti-
tulado Hegemony and Socialist Strategy (1985). Esses autores propõem
uma teoria democrática baseada na compreensão do antagonismo como
elemento definidor do político, no entendimento da unidade política
como constituída a partir de uma luta hegemônica e na compreensão das
relações sociais como contingentes, sendo críticos tanto à concepção de
um fundamento último da realidade quanto à atribuição de uma essencia-
lidade aos sujeitos políticos.
A partir dos conceitos de antagonismo, hegemonia e contingência, a
dinâmica política é concebida em torno de uma perspectiva que entende
o político no terreno da divisão; assim, na impossibilidade de uma socie-
dade reconciliada. A instituição da sociedade é, desse modo, decorrente
de uma relação entre particularidade e universalidade sob um terreno
caracterizado pela compreensão do poder como um “lugar vazio”, isto é,
nada nem ninguém é consubstancial ao poder, sendo a instituição da so-
ciedade decorrente da hegemonização de um imaginário social que busca
nomear aquele lugar vazio, representar a plenitude ausente da socieda-
de. Essa nomeação se faz a partir da emergência de relações antagônicas,
ou seja, pela disputa entre um “nós” e um “eles” sobre a representação
da sociedade, sendo o “nós” e o “eles” constituídos como negatividades,
uma vez que só existem enquanto negação um do outro, sendo definidos
não por um conteúdo positivo (já que esta perspectiva se afasta da noção
de um fundamento último da realidade e de uma essencialidade dos su-
jeitos), e sim a partir daquilo que os impede de existir.

2
Para melhor caracterização de cada um dos grupos pesquisados, ver Costa (2010).

12
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

A disputa política nesta medida é uma disputa pela constituição


da sociedade, e é enquanto tal que se concebe que demandas dos su-
jeitos políticos são, desde o início, divididas: apresentam um caráter
diferencial (particularidade), no que tange ao seu conteúdo concreto,
que é a única possibilidade de constituição do próprio sujeito político
(demanda antiagronegócio, pautada pelo MST; anti-homofobia, defen-
dida pela ABGLT; antirracismo, afirmada pelo Negras Ativas, por exem-
plo); e apresentam um caráter equivalencial, na medida em que aque-
las demandas indicam a necessidade de se nomear outra alternativa
de sociedade, isto é, que a existência de determinado sujeito político
não se faz possível no interior do campo de representação hegemônico
existente.
Assim, as demandas visibilizam a ausência de plenitude da socie-
dade instituída e afirmam a possibilidade de uma outra nomeação de
sociedade, não se reduzindo à oposição à estruturalidade da estrutura
hegemônica, e sim, desde o início, se constroem pela subversão (negati-
vidade) da própria constituição ontológica dessa estrutura (Laclau, 1993).
Dessa maneira, como colocamos acima, a afirmação de uma demanda
já representa desde o começo algo a mais que o simples deslocamento
específico (caráter diferencial da demanda) produzido na estrutura hege-
mônica, possibilitando que diferentes sujeitos políticos possam estabele-
cer equivalências, uma vez que uma determinada particularidade pode
servir como metáfora para a plenitude ausente da sociedade (caráter
equivalencial da demanda), funcionando como uma superfície de inscri-
ção para toda reivindicação existente na sociedade.
Cabe salientarmos que nem todo discurso que emerge no campo
da discursividade como encarnação da plenitude tornar-se-á hegemôni-
co, dependendo que outros sujeitos políticos se identifiquem com esse
discurso. Entretanto, por ter o discurso, desde o início, uma dupla fun-
ção – de conteúdo literal e de metáfora – e não existir nenhuma relação
necessária, a mera disponibilidade do discurso, segundo Laclau (1993), é
suficiente para que ele possa se tornar um imaginário social, apresentan-
do-se como uma alternativa credível de uma nova ordem social.
Diante da demanda dos sujeitos serem entendidas como divididas
desde o começo, apresentando o discurso aquela dupla função, Laclau
(1993) concebe o sujeito político como um sujeito mítico, na medida em

13
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

que, ao visibilizar a plenitude ausente da sociedade, busca instituir uma


nova alternativa de sociedade. O “mito” é compreendido como:
um espaço de representação que não guarda nenhuma relação de conti-
nuidade com a “objetividade estrutural” dominante. O mito é, assim, um
princípio de leitura de uma situação dada, cujas condições são externas ao
que é representável na espacialidade objetiva que constitui uma certa es-
trutura. A condição “objetiva” de emergência do mito é por isso um deslo-
camento estrutural. O “trabalho” do mito consiste em suturar esse espaço
deslocado, através da constituição de um novo espaço de representação. A
eficácia do mito é, assim, essencialmente hegemônica: consiste em consti-
tuir uma nova objetividade através da constituição de um novo espaço de
representação. (Laclau, 1993, p. 77, tradução nossa)

Hegemonia é entendida, desse modo, como a convergência entre


objetividade e poder, ou seja, entre a instituição do social e um modo de
nomeação do social, o qual, como se dá entre um “nós” e um “eles” que
se constituem como negatividades, implica sempre exclusão. Essa disputa
se faz em torno de projetos hegemônicos (cadeias hegemônicas) que se
constituem a partir da articulação entre demandas de diferentes sujeitos
políticos (“nós”), a qual é possível em razão daquele caráter equivalencial
de qualquer demanda particular.
Diante disso, cabe considerarmos que, sendo a instituição da socie-
dade decorrente de uma luta hegemônica, sujeitos políticos que consti-
tuem a cadeia hegemônica sedimentada (“eles”) constroem estratégias
que visam enfraquecer o caráter antagônico da luta política (invisibilizar a
divisão do espaço social): a) reduzindo as demandas de sujeitos políticos
antagônicos a demandas diferenciais (lógica da diferença), absorvendo-as
para o interior do campo de representação hegemônico; b) borrando as
fronteiras antagônicas, a partir da tentativa de dissolver a cadeia equi-
valencial contra-hegemônica, através do estabelecimento de uma cadeia
equivalencial alternativa, constituída pela articulação entre demandas da
cadeia hegemônica e demandas da cadeia contra-hegemônica. Ambas es-
tratégias visam manter a representação hegemônica da sociedade, ainda
que alguns deslocamentos neste imaginário social se façam necessários,
possibilitando a expansão hegemônica.
Concebemos que as estratégias de expansão hegemônica são uma
possibilidade de compreendermos a dificuldade de articulação entre de-

14
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

mandas de diferentes movimentos sociais no contexto brasileiro atual,


sendo a conquista da Presidência da República pelo Partido dos Trabalha-
dores um aspecto importante a ser considerado na análise da dinâmica
política brasileira. Discutiremos brevemente esse aspecto, entendendo-o
a partir daquela estratégia de construção de uma cadeia alternativa que
borra as fronteiras antagônicas, bem como apontaremos para uma possi-
bilidade de vínculo entre os movimentos sociais nesse contexto de dificul-
dade de articulação entre demandas de diferentes movimentos sociais, a
qual denominamos estratégia de aliança.
Nossa análise da relação entre movimentos sociais e governo Lula
tem por interesse a dinâmica da luta política em termos da noção de he-
gemonia, e, assim, de deslocamentos nas relações entre “nós” e “eles”
na constituição do imaginário social. Desse modo, o Estado é pensado
não como um todo monolítico e estável, e sim nos termos da consti-
tuição simbólica de um imaginário social hegemônico, e, portanto, na
compreensão da disputa entre alternativas de sociedade antagônicas.
O que implica, inclusive, estratégias que visam a borrar essas frontei-
ras antagônicas a fim de manter o campo de representação hegemônico
existente e enfraquecer a condição inerente à emergência do político,
isto é, a luta antagônica pela nomeação - sempre precária, porque hege-
mônica - da sociedade.

Expansão hegemônica e o governo Lula

Entrevistados de diferentes grupos investigados afirmavam uma in-


satisfação com o governo Lula, a qual se relacionava à frustração da ex-
pectativa por parte de alguns movimentos sociais em construir proces-
sos de democratização social junto a esse governo. Essa frustração com
o governo pode ser observada, por exemplo, na fala da entrevistada do
MST, movimento social que historicamente tem se aliado ao Partido dos
Trabalhadores:
Hoje no Brasil, assim, se a gente pega de fato de 2003 pra cá, na verdade
em 2002, nós do MST criamos uma expectativa que vocês não imaginam
o tamanho da expectativa. Inclusive de 2003 à 2004 foi o período que nós
mais botamos gente nos acampamentos do MST, porque o povo vinha,
não precisava nem chamar, o povo vinha, porque aquilo: “a esperança

15
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

venceu o medo né”. E nós também estávamos esperançosos e acreditá-


vamos que o governo iria cumprir um papel para com a classe brasileira e
a classe trabalhadora brasileira ... Se nós disséssemos hoje no MST: “nós
estamos contentes, tem essas e essas políticas públicas que no governo
Lula avançou”, nós estaríamos mentindo para vocês. Do ponto de vista
da agricultura familiar é... tem muita gente hoje do ponto de vista do
campo dizendo: ”não, melhorou, alguma coisinha, mas melhorou, né”. Da
Reforma Agrária, você vai por números, pra nós do Movimento piorou.
(entrevistada, MST).

É esse quadro de frustração que podemos abordar a partir do que


denominamos acima de estratégia de expansão hegemônica, focalizando
o borramento das fronteiras antagônicas entre “nós” e “eles”.
Lula e o PT, segundo alguns entrevistados, por um lado, historica-
mente se colocaram ao lado dos movimentos sociais, construindo, a partir
da fundação do PT, conjuntamente com movimentos sociais, outra alter-
nativa de Brasil, a qual se configurava na construção do Projeto Democrá-
tico Popular. Por outro lado, ações do governo Lula foram construídas em
favor de grupos que se encontravam exatamente no interior do campo de
representação antagônico ao qual se localizavam os movimentos sociais
que se uniam em torno do Projeto Democrático Popular.
É diante dessa compreensão que podemos entender o relato da en-
trevistada do MST de que o projeto de desenvolvimento para o campo
enfatizado pelo governo Lula era o do agronegócio, não sendo a reforma
agrária uma prioridade, diferente de quando, como aponta a entrevistada
da AP-MBH, Lula afirmava ser um absurdo não se realizar a reforma agrá-
ria no país.
Ao mesmo tempo em que alguns de nossos entrevistados afirmavam
a insatisfação com o governo Lula em relação a determinadas demandas,
compreendiam também que os movimentos sociais que se articulavam
em torno daquele Projeto Democrático Popular encontravam dificulda-
des no enfrentamento ao governo, com o receio de favorecerem, dessa
maneira, seus próprios adversários, ou seja, “dar a mão à palmatória da
direita” (entrevistada MST).
Desse modo, poderíamos dizer que, se o Projeto Democrático Po-
pular, estabelecido em torno do PT, servira até um dado momento como

16
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

um “significante vazio”, possibilitando uma articulação entre diferentes


demandas democráticas e delimitando uma fronteira entre esquerda e di-
reita; a articulação do PT, no governo Lula, com atores antagônicos àquela
cadeia de equivalência contra-hegemônica fez com que aquela fronteira
entre esquerda e direita ficasse borrada. Diante de o Projeto Democrático
Popular não mais representar a “plenitude ausente” da ordem simbóli-
ca e, assim, abarcar a pluralidade de demandas democráticas que faziam
parte dessa cadeia contra-hegemônica, outros projetos têm tentado dis-
putar o “nome” a ser conferido à esquerda, sem, contudo, o PT se tornar
para todos os movimentos sociais um sujeito antagônico.
Nesse sentido, se faz possível entender “fragmentações” da esquer-
da nos últimos anos ao redor de projetos distintos, rompimentos de vín-
culos que ocorreram entre movimentos sociais, divergências internas aos
próprios movimentos sociais.
Diante dessas considerações poderíamos dizer que, ainda que possa
haver uma fronteira política entre um “nós” e um “eles”, essa fronteira
encontra-se borrada, acarretando tanto a insatisfação de movimentos
sociais com o modo com que o governo PT tem tratado lutas historica-
mente construídas conjuntamente com esse partido quanto dificuldades
de alguns desses movimentos sociais se posicionarem contrariamente ao
próprio governo, mesmo afirmando autonomia política, diante do receio
em privilegiar a “direita”.
Além disso, a atuação particularizada da esquerda e as divergências
internas aos próprios movimentos sociais nos últimos anos ao redor de
projetos distintos contribuem de maneira significativa para a construção
da luta dos movimentos em torno da lógica da diferença, dificultando o
vínculo entre os movimentos sociais, enfraquecendo a luta política. É fren-
te a essa fronteira borrada entre nós e eles e ao fortalecimento da lógica
da diferença que passo agora a tratar de uma possível estratégia de luta
política dos movimentos sociais.

Vínculos entre movimentos sociais brasileiros no contexto atual

Ainda que promotoras de obstáculos à radicalização do imaginário


democrático, na medida em que borram as fronteiras entre “nós e “eles” e

17
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dificultam a construção de equivalências entre sujeitos que se encontram


em condição de subordinação, as estratégias de expansão hegemônica ga-
rantem certa legitimidade a demandas desses sujeitos e, dessa maneira,
possibilitam a existência deles no interior do sistema, permitindo o alcan-
ce de algumas demandas e alguns deslocamentos na cadeia hegemônica.
Entretanto, essa possibilidade de existência caracteriza-se pelo es-
tabelecimento de relações diferenciais no interior da cadeia hegemônica
e não por relações antagônicas, dificultando a construção de um projeto
contra-hegemônico ao favorecer a desarticulação entre diferentes de-
mandas democráticas. A institucionalização da luta política a partir do
processo de “ongzação” dos movimentos sociais, a constituição de Con-
ferências de Políticas Públicas em torno de temáticas específicas, a cons-
trução de Secretarias de Políticas Públicas específicas e a não vinculação
entre essas políticas são aspectos que contribuem para a reprodução da
lógica da diferença e, desse modo, para a redução da luta política à gestão
da positividade social, isto é, para a expansão hegemônica.
Assim, se por um lado é possível afirmar que a partir do governo Lula
observamos a promoção e implementação de diferentes políticas demo-
cráticas, por outro lado também é possível conceber que vivemos um con-
texto de enfraquecimento de articulação entre as demandas particulares
de diferentes sujeitos políticos.
Como abordamos em trabalhos anteriores (Costa, 2010; Prado &
Costa, 2011), em pesquisa realizada junto aos movimentos sociais, a cons-
trução de uma articulação entre diferentes movimentos sociais, condição
para a configuração de um projeto hegemônico para a esquerda nos ter-
mos da lógica da equivalência, está pautada muito mais em um desejo de
se construir aquele projeto por parte de alguns movimentos do que na
concretização de uma prática de articulação.
Contudo, também pudemos observar a construção de vínculos entre
diferentes movimentos sociais, que denominamos “estratégia de aliança”.
Vínculos esses caracterizados pela construção de ações conjuntas e pon-
tuais entre movimentos sociais distintos em torno de uma demanda parti-
cular; bem como pela incorporação de demandas particulares por grupos
que, em princípio, não apresentavam aquela demanda na construção da
luta política.

18
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Nessa medida, concordamos com Mouffe (Laclau & Mouffe, 1998)3


que uma hegemonia não pode ser formada simplesmente por um movi-
mento absorver outras lutas, na medida em que a hegemonia é um pro-
cesso de nomeação da sociedade que se constitui a partir da identificação
de diferentes sujeitos políticos em torno de um imaginário alternativo de
sociedade.
Consideramos, porém, que no contexto atual brasileiro - caracteri-
zado pela desvinculação entre diferentes lutas políticas, por rompimen-
tos internos nos movimentos sociais em relação a divergências quanto
à proximidade ou afastamento ao PT diante das vinculações do governo
Lula e, atualmente, do governo Dilma, com demandas de sujeitos políticos
antagônicos a esses movimentos -, aquela “estratégia de aliança” possibi-
lita o fortalecimento e legitimidade de demandas democráticas na cons-
trução de lutas políticas, bem como uma aproximação entre diferentes
movimentos sociais.
Desse modo, concebemos que, ainda que de maneira momentâ-
nea, “estratégias de aliança” possibilitam romper com a atuação parti-
cularizada dos movimentos sociais, sendo uma resposta à desvinculação
entre os sujeitos políticos, a qual é favorecida pelas estratégias de expan-
são hegemônica.

Considerações finais

O borramento da fronteira entre esquerda e direita proporciona-


da por estratégias de expansão hegemônica bem como a observação da
desvinculação entre diferentes movimentos sociais ou de vínculos que se
caracterizam por “estratégias de aliança” poderiam nos conduzir ao pes-
simismo de afirmar que não nos resta muito mais na construção da luta
política do que nos conformarmos com o que é possível de ser alcançado
no presente.
Porém, frente à compreensão da dinâmica política a partir dos con-
ceitos de antagonismo, hegemonia e contingência, se a articulação entre
demandas democráticas é o modo em que se concebe a possibilidade de

3
Entrevista realizada juntamente com Ernesto Laclau.

19
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

uma radicalização da democracia, a pluralidade de sujeitos políticos é a


própria condição da democracia. Assim, se, por um lado, não podemos
negar os limites presentes para a construção de um projeto contra-hege-
mônico, por outro lado, não podemos abandonar a noção de utopia, pois
sem a possibilidade de negar uma ordem além do ponto em que nós somos
capazes de ameaçá-la não existe possibilidade de qualquer constituição
de um imaginário radical – seja democrático ou de outro tipo. A presença
deste imaginário como um conjunto de significados simbólicos que totali-
zam como negatividade uma certa ordem social é absolutamente essencial
para a constituição de todo pensamento de esquerda. Nós temos já indica-
do que as formas hegemônicas da política sempre supõem um equilíbrio
instável entre este imaginário e a gestão da positividade social; mas esta
tensão, que é uma das formas em que a impossibilidade de uma sociedade
transparente é manifestada, deve ser afirmada e defendida. Toda política
democrática radical deve evitar os dois extremos representados pelo mito
totalitário da Cidade Ideal, e pelo pragmatismo positivista dos reformistas
sem um projeto.
Este momento da tensão, da abertura, que dá ao social seu caráter essen-
cialmente precário e incompleto, é o que todo projeto de democracia ra-
dical deve afirmar para institucionalizar. (Laclau & Mouffe, 1985, p. 190,
tradução nossa)

Assim, o que se coloca para a esquerda e para os movimentos so-


ciais é o desafio de fortalecer “estratégias de aliança” e afirmar a utopia
de uma alternativa de sociedade, a partir da construção de equivalências
entre demandas democráticas, a qual se faz possível devido às demandas,
desde o início, se constituírem como divididas, como literalidade e metá-
fora. A questão primordial de nosso tempo pode ser a de refletirmos sobre
as possibilidades de articulação entre diferentes demandas democráticas
(Costa, 2012), sendo esse um caminho de reflexão e ação para uma psico-
logia social que se fundamenta na indissociação entre ciência e política,
entre teoria e prática na construção de uma sociedade democrática.
As “jornadas de junho de 2013” no Brasil publicizaram uma multi-
plicidade de demandas, fomentando a importância de construção de um
imaginário social alternativo ao campo de representação hegemônico.
Acontecimentos decorrentes dessas “jornadas” podem auxiliar em novas
construções em torno daquele desafio que se coloca para a esquerda.

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Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Referências

Costa, F. A. (2010). Democratização social e pluralidade de sujeitos políticos:


uma leitura a partir da Teoria Democrática Radical e Plural. Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Fede-
ral de Minas Gerais, Belo Horizonte.
Costa, F. A. (2012). A mudança social no contexto de uma pluralidade de su-
jeitos políticos: contribuições teóricas de Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e
Slavoj Zizek para a Psicologia Política. Psicologia Política, 12(25), 571- 590.
Laclau, E. (1993). Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo.
Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión.
Laclau, E. & Mouffe, C. (1985). Hegemony and socialist strategy. Towards a
radical democratic politics. London: Verso.
Laclau, E. & Mouffe, C. (1998). Hearts, minds and radical democracy. Entre-
vista concedida a David Castle para a Red Pepper Magazine. Acesso em 10
de dezembro, 2008, em http://www.redpepper.org.uk/Hearts-Minds-and-
-Radical-Democracy
Prado, M. A. M. & Costa, F. A. (2011). Estratégia de articulação e estratégia
de aliança: possibilidades para a luta política. Sociedade e Estado, 26(3),
685-716.

21
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Movimentos Negros e LGBT no Governo Lula: desafios


da institucionalização segmentada
Frederico Viana Machado
Cristiano Santos Rodrigues

Introdução

Um dos marcos do processo de redemocratização brasileira, ocorri-


do a partir da década de 1980, diz respeito à ampliação de fóruns parti-
cipativos que funcionam, ao menos em teoria, como formas de estreitar
as relações entre o Estado e a sociedade civil. A produção teórica sobre
democracia dentro das ciências sociais tem procurado, desde então, exa-
minar tais inovações participativas, que, ao ampliarem a inclusão dos ci-
dadãos em processos decisórios, propiciam tanto um redesenho e res-
significação das instituições políticas tradicionais como (re)orientam o
repertório de ação e as estratégias dos movimentos sociais. O presente
trabalho apresenta reflexões preliminares sobre a comparação dos resul-
tados de duas pesquisas de doutoramento (Machado, 2013; Rodrigues,
2014) e tem como objetivo discutir o processo de institucionalização dos
movimentos negros e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
xuais) junto ao Estado brasileiro, durante a administração do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010).
Ao escrutinar o processo recente de negociação dos movimentos ne-
gros e LGBT brasileiros por maior inclusão junto aos aparatos estatais, este
trabalho pretende contribuir para as articulações teóricas sobre o aprofun-
damento da democracia vis-à-vis a consolidação de práticas participativas
e de intervenção social por atores coletivos da sociedade civil. Nosso enfo-
que analítico privilegia mecanismos político-discursivos que ora ampliam,
ora reduzem as oportunidades de acesso institucional de tais movimentos
sociais. Apontamos ainda para o fato de que a correlação entre aumento
das oportunidades de acesso institucional e incremento na capacidade dos
grupos organizados impactarem o poder público não é inequívoca.

22
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

As pesquisas que deram origem a este trabalho se baseiam na aná-


lise de documentos oficiais e entrevistas semiestruturadas com ativistas
direta ou indiretamente envolvidos em órgãos governamentais. Apresen-
tamos o nosso argumento em dois momentos distintos, mas interconec-
tados. Discutimos, inicialmente, cada movimento social separadamente,
analisando os contextos políticos em jogo para a inclusão e/ou repressão
dessas temáticas no âmbito estatal. Em seguida, comparamos essas duas
experiências de militância, apontando para suas similitudes e diferenças.
Importante notar, contudo, que nossa análise não incide diretamente so-
bre o projeto governista e suas políticas públicas em sentido amplo, mas
sobre as articulações que o Poder Executivo, em particular, e o Estado,
como um todo, estabelecem com os movimentos sociais e seu impacto na
constituição de identidades coletivas e discursos sobre a política.

Movimentos LGBT: da saúde aos direitos humanos, o percurso de uma


inclusão subalterna

Um ponto fundamental para compreendermos a segmentação des-


ta temática, e que marca uma diferença importante com relação a outros
movimentos sociais, diz respeito à entrada das demandas LGBT para o
Estado através das políticas públicas de saúde voltadas ao combate à epi-
demia de HIV/AIDS. Os movimentos LGBT tiveram uma função estratégica
na década de 1990, pois foram atores essenciais para articular a elitizada
burocracia estatal e a diversidade social dos contextos de vulnerabilidade.
Essa articulação permitiu o desenvolvimento de políticas públicas de pre-
venção e enfrentamento às DST/AIDS que se tornaram referência mundial
por respeitarem as condições de vida e o universo simbólico do público-
-alvo, tratando do tema com sensibilidade e sem moralismos. Essa articu-
lação propiciou a entrada de ativistas LGBT para a estrutura do Estado e o
financiamento de projetos de ONGs. Além disso, esse processo ampliou a
visibilidade de um tema marginalizado e a estruturação de grupos orga-
nizados, ao mesmo tempo em que associava suas demandas ao campo
das doenças sexualmente transmissíveis e às políticas de saúde, o que de
certo modo confirmava esse mesmo caráter marginal e o estigma social.
No Governo Lula se dá a diversificação das discussões sobre sexuali-
dade. Isso se inicia com a preparação e publicação do Programa Brasil Sem

23
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Homofobia (PBSH) (Ministério da Saúde, 2004), evidenciando a expansão


dessas temáticas para o campo dos direitos humanos, da educação e da
assistência social ao longo de todo o primeiro mandato. Em 2007, pode-
mos argumentar que o movimento LGBT vivia seu apogeu: as paradas se
proliferavam pelo país com números de participantes dificilmente alcan-
çados por outros movimentos sociais; o PBSH começava a se concretizar
em ações com verbas públicas e orçamento próprio; surgiam os centros
de prevenção à violência homofóbica, os projetos de capacitação de pro-
fessores, profissionais da segurança pública e outros; preparava-se a pri-
meira conferência nacional LGBT, com conferências preparatórias em di-
versos estados e municípios, o que mobilizou uma grande quantidade de
atores em torno dessas questões; organizava-se a frente parlamentar pela
livre orientação sexual no Congresso Nacional a partir do projeto ALIADAS
da ABGLT; a mídia parecia finalmente estar se sensibilizando para debater
abertamente as questões LGBT.
É importante destacar que em 2006 foi elaborado, pela Organização
das Nações Unidas, o documento intitulado Princípios de Yogyakarta sobre
a Aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos às Questões de
Orientação Sexual e Identidade de Gênero (ONU, 2006). Esse documento
apresenta princípios básicos para orientar os Estados na implementação
e garantia de direitos humanos para a população LGBT, o que aponta para
articulações políticas globais que possivelmente influenciaram nas ações
dos movimentos LGBT e dos governos no Brasil, sobretudo do Governo
Lula, interessado em investir nas relações internacionais e melhorar a
imagem do Brasil no exterior.
Entretanto, a partir do final do segundo mandato do Governo Lula,
esse cenário assume novos contornos, que se tornam mais definidos no Go-
verno Dilma Rousseff. O veto ao kit anti-homofobia, o fortalecimento dos
discursos religiosos no âmbito político e a não aprovação do PLC 122 (Proje-
to de Lei da Câmara n. 122, 2006) e do pacto de união civil talvez sejam os
exemplos mais visíveis, mas sobram relatos sobre as limitações, desconfor-
tos e obstáculos enfrentados pelos agentes que trabalham com essas temá-
ticas no interior dos órgãos governamentais, bem como sobre a fragilidade
dos investimentos que foram feitos pelo governo (Machado, 2013).
O panorama, inicialmente animador, começou a apresentar im-
pedimentos. Os financiamentos que o governo começara a disponibili-

24
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

zar não se consolidaram. Mesmo o posicionamento do Governo Fede-


ral com relação a essas questões, que na 1ª Conferência Nacional LGBT
era bastante enfático e comprometido, foi se tornando ambíguo, so-
bretudo nos últimos dois anos do Governo Lula, tendo assumido uma
postura ainda mais reticente durante o Governo de Dilma Rousseff,
que, diferentemente de seu antecessor, não compareceu na 2ª Con-
ferência Nacional LGBT. Além do veto ao kit anti-homofobia, também
causou espanto o veto presidencial a uma campanha de prevenção às
DST/AIDS, coisa que, segundo nossos entrevistados, nenhum presiden-
te havia feito até então. Importante recordarmos que as eleições que
elegeram Dilma Rousseff podem ser lembradas como um momento
dramático de moralização dos discursos políticos, sobretudo em torno
da descriminalização do aborto e das demandas apresentadas pelos
movimentos LGBT.
O conceito de estrutura de oportunidades políticas é útil para pen-
sarmos essas relações entre atores, pois ajuda a identificar como os mo-
vimentos sociais recebem fortes incentivos para se mobilizarem durante
um determinado período, mas perdem rapidamente sua capacidade de
mobilização na ausência de determinados recursos ou com a emergência
de grupos antagônicos que alteram a abertura do governo em relação a
seus desafiadores (Tarrow, 2011; Tejerina, 2011). Desse modo, para com-
preendermos as mudanças na estrutura de oportunidades políticas, é ne-
cessário termos em vista que “toda inovação organizacional impõe custos
de invenção, aperfeiçoamento, instalação, socialização e articulação dos
elementos contíguos” (Tilly, 2000, p. 102). Esses custos transformam as
relações de solidariedade, as coalizões políticas e podem facilitar a resis-
tência. Devemos considerar tanto os custos de implementação como os
de negociação entre os atores (Tilly, 2000).
No caso das discussões sobre sexualidade, no início do Governo
Lula – provavelmente devido ao crescimento das Paradas do Orgulho
LGBT, cuja novidade ensejava um forte motor de mobilização e politiza-
ção, e do poder de impacto dos movimentos LGBT na política institucio-
nal, o que fortaleceu a identidade política desses atores (Prado & Ma-
chado, 2014) – os custos para a inserção desses movimentos no interior
do Estado penderam para seu empoderamento e acesso a recursos. O
governo rapidamente tratou de mobilizar essas identidades, em virtude

25
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

das negociações e dos benefícios discursivos e dividendos eleitorais que


esses atores pareciam trazer para a consolidação e a legitimidade públi-
ca de um projeto político.
Entretanto, ao final do segundo mandato, provavelmente por conta
da organização de contramovimentos fundamentalistas, os custos para
uma diminuição do poder de influência dos militantes LGBT nas ações
governamentais foram menores do que um rompimento com a banca-
da evangélica, líderes religiosos (muitos deles formadores de opinião
com amplo acesso à mídia e redes de influência bem organizadas) e as
instituições religiosas. Deve-se levar em consideração que, entre outros
aspectos, nas eleições de 2010 o PT já não contava com Luiz Inácio Lula da
Silva para disputar a presidência, o que provavelmente exigiu concessões
maiores em busca de apoio político-eleitoral.
Como podemos perceber, as diferenças e hierarquias categoriais de-
sempenharam um papel importante nesse contexto, já que, como se veri-
ficou, as categorias LGBT encontram mais dificuldades em incluírem suas
especificidades em outras pautas do que o contrário, inclusive no interior
das diversas lutas sociais e movimentos populares (Machado, 2013). Nes-
se mesmo sentido, atualmente nota-se um orçamento pífio no nível fede-
ral para o financiamento de ações e da estrutura organizativa dos gestores
envolvidos com as políticas públicas para LGBT. Isso pode ser somado a
um silenciamento sobre essas temáticas no interior do governo já a partir
do final do segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. O depoimento
da presidenta Dilma Rousseff dizendo que não aceitaria que o governo
fizesse “propaganda de orientação sexual”, no contexto das polêmicas
sobre o kit anti-homofobia, foi um acontecimento bastante revelador de
como os discursos alteraram a abertura para os movimentos LGBT.
Mesmo com todo o retrocesso identificado na pauta segmentada
dessa temática, a entrada de militantes para a estrutura governamental
e os investimentos em políticas participativas, ainda que parcos e/ou re-
siduais, resultaram na “blindagem” do governo contra mobilizações que
porventura poderiam afetar a adesão ideológica – num sentido pragmá-
tico, mais que emocional ou de pertencimento – das bases sociais dos
movimentos LGBT ao PT. Por exemplo, mesmo que muitos grupos organi-
zados e lideranças tenham feito reiteradas críticas ao silenciamento das
demandas LGBT nos discursos, práticas e ações políticas governamentais

26
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

a partir de 2008, essas redes de movimentos não deixaram de apoiar a


coalizão de partidos encabeçada pelo PT. Tampouco os grupos e ativistas
de maior visibilidade passaram a apoiar os partidos de oposição.

Movimento Negro e as Políticas de Promoção da Igualdade Racial

Lideranças do movimento negro têm longo histórico de participação


em legendas de centro-esquerda. No início da década de 1980, quando
os partidos políticos começaram a se rearticular no país, vários ativistas
negros passaram a adotar a estratégia de uma dupla militância, realiza-
da dentro e fora dos partidos. Quando alguns desses partidos, como o
PMDB, PDT e PT, começaram a sagrar-se vencedores em eleições locais
e estaduais, algumas reivindicações do movimento negro passaram a ser
transformadas em políticas governamentais.
Por essa razão, a partir da década de 1990 um conjunto expressivo
de inovações participativas é implementado em governos locais em todo
o país, incluindo-se alguns conselhos, coordenadorias e secretarias para
assuntos da comunidade negra. Essa mudança na estrutura de oportuni-
dades políticas permitiu que as estratégias do movimento negro se deslo-
cassem, gradativamente, do campo da denúncia para uma dimensão mais
propositiva e cooperativa em relação aos aparatos estatais.
Entretanto, ao longo da década de 1990, a relação entre movimento
negro e Estado, em nível nacional, oscilava entre o conflito e a coopera-
ção/assimilação. Entre 1988 e 1994 o único mecanismo institucional efe-
tivamente implantado foi a Fundação Cultural Palmares, criada na gestão
de José Sarney. O surgimento dessa fundação:
simboliza, em nível federal, a inauguração de uma nova etapa no tratamen-
to da questão racial. Essa temática passa a ser reconhecida como portado-
ra de demandas de reconhecimento e legitimidade, que se expressam na
adoção da data de 20 de novembro como dia da consciência negra e no
reconhecimento de Zumbi como herói nacional, ambos resultado do es-
forço empreendido pelas organizações negras. Tais conquistas, ainda que
tivessem importante valor simbólico, estavam, entretanto, bastante aquém
dos anseios da população afro-brasileira da época. (Jaccoud, Silva, Rosa, &
Luiz, 2009, p. 267)

27
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Outra medida governamental importante diz respeito à Lei n. 7.716


(1989). De autoria do Deputado Federal Carlos Alberto de Oliveira, conhe-
cido como “Caó”, o projeto de lei se propunha a definir quais são os cri-
mes resultantes de preconceito de raça e/ou cor. Os vetos presidenciais,
no entanto, limitaram o alcance da lei e a tornaram muito semelhante à
Lei Afonso Arinos, de 1951. Por conta de suas limitações, tanto a criação
da Fundação Cultural Palmares, organismo circunscrito à preservação e
divulgação da cultura negra, quanto a legislação sobre crimes de racismo
não rompiam, em termos políticos, com o imaginário nacional acerca da
população negra. Esse imaginário, segundo Guimarães (2002), se carac-
teriza por reconhecer negros e índios apenas enquanto objetos culturais,
marcos fundadores da civilização brasileira, mas não como cidadãos ple-
nos de direito.
Durante o governo FHC (1995-2002), assiste-se a uma expansão dos
contornos das estruturas de oportunidades políticas engendradas pelo
movimento negro em seu processo de institucionalização. Dois eventos
são especialmente marcantes nesse período, um nacional e outro inter-
nacional. Em 1995, o movimento negro organiza, por ocasião da celebra-
ção dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, a Marcha Zumbi dos
Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. Para além de uma
simples comemoração pelo dia nacional da consciência negra, as organi-
zações negras brasileiras empreenderam discussões sobre reparações e
políticas de ação afirmativa, assumindo de vez uma postura de confronto
em relação à falsa neutralidade do Estado brasileiro frente às desigual-
dades raciais.
Por ocasião da Marcha Zumbi dos Palmares, o governo federal assi-
nou um decreto criando o Grupo de Trabalho Interministerial de Valoriza-
ção da População Negra (GTI). A função desse grupo era discutir e propor
políticas de ação afirmativa para a população negra nos mais diversos âm-
bitos do Estado e sociedade civil, com especial atenção para políticas na
educação, mercado de trabalho, saúde, cultura e comunicação.
Em 1996, o Ministério do Trabalho implementou o Grupo de Tra-
balho para Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação
(GTDEO). A criação do GTDEO foi fruto de pressão internacional, já que,
em 1992, a CUT, apoiada por outras centrais sindicais, apresentou uma
reclamação formal à Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra

28
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

o governo brasileiro por descumprimento da Convenção 111. Ainda em


1996, o governo federal, através da Secretaria de Direitos de Cidadania,
promoveu o Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: o Pa-
pel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos. O
principal objetivo do seminário era debater a validade e aplicabilidade de
políticas de ação afirmativa. No mesmo ano, é lançado o Programa Na-
cional de Direitos Humanos (PNDH) que, entre suas inúmeras propostas,
dispunha sobre a necessidade de o Estado implementar políticas de ação
afirmativa (Jaccoud et al., 2009).
No entanto, na história recente das organizações do movimento ne-
gro, a III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial,
a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância (3a CMR), realizada de
31 de agosto a 8 de setembro de 2001, em Durban, África do Sul, repre-
senta o grande marco, tanto pelos seus desdobramentos quanto por ma-
terializar, em certa medida, um processo de consolidação e visibilidade
política das organizações negras que se iniciou nos anos 1980. A luta por
reparações e políticas de ação afirmativa, que foi ganhando corpo dentro
das organizações negras ao longo da década de 90, tornou-se central a
partir da 3a CMR, em que as mais diversas organizações se aglutinaram
em torno de tais reivindicações, tornando o diálogo com o Estado cada
vez mais intenso.
Ainda que contando com inúmeros conflitos, a participação do Bra-
sil foi expressiva durante os eventos preparatórios e na 3a CMR propria-
mente dita. A delegação brasileira foi a maior entre todas as delegações
presentes em Durban, contando aproximadamente 600 integrantes; o
segundo cargo na hierarquia da Conferência Mundial contra o Racismo,
o de Relatora Geral, ficou a cargo de Edna Roland, uma importante ativis-
ta negra brasileira, e a consolidação do termo afrodescendente de forma
consensual para definição dos descendentes de africanos negros escra-
vizados fora da África bem como a proposição de políticas reparatórias
para os afrodescendentes foram conseguidas graças ao protagonismo de
militantes brasileiros.
No Brasil, o pós Durban é marcado pelo início da consolidação insti-
tucional da questão racial no país. O governo brasileiro comprometeu-se,
pela primeira vez na história, a enfrentar o problema das desigualdades
raciais. Por conta desse comprometimento, algumas medidas começaram

29
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

a ser tomadas. A Secretaria de Direitos Humanos criou o Conselho Nacio-


nal de Combate à Discriminação Racial (CNCD), cujo objetivo era incenti-
var a implementação de políticas de ação afirmativa. Alguns ministérios
iniciaram, já em 2001, programas de ação afirmativa, mas sem apresentar
resultados muito expressivos. Também em 2001 é instituído o primeiro
programa de ação afirmativa para ingresso de estudantes negros no ensi-
no superior público brasileiro.
Tanto a Marcha Zumbi dos Palmares quanto a 3a CMR exerceram um
importante impacto no processo de sedimentação institucional da ques-
tão racial no país. Porém, conforme afirma Grin (2010), o governo FHC
não rompe completamente com o imaginário social sobre a inclusão de
afrodescendentes, adotando, assim, uma postura titubeante frente à te-
mática racial. Por trás de um vigoroso plano de intenções para combater
as desigualdades sociais e raciais, revela-se uma disputa entre políticas
universalistas (voltadas para a garantia de direitos individuais) e específi-
cas (focadas na garantia de direitos coletivos a grupos marginalizados). Por
essa razão, entre 1995 e 2000, a maior parte das políticas públicas formu-
ladas para a população negra não chegou a ser implementada (Grin, 2010).
Durante o Governo Lula (2003-2010), o debate público sobre a
questão racial não apenas se expande como se complexifica politicamen-
te. Para Lima (2010), até o governo Lula, a relação entre movimento negro
e Estado era de exterioridade, com os ativistas cumprindo o papel de re-
clamantes, mas com baixa inserção institucional. Nesse governo, militan-
tes do movimento negro passam a ocupar cargos em órgãos governamen-
tais e a ter voz ativa na formulação e gestão de políticas públicas. Por essa
razão, com a ascensão do PT ao poder, impõe-se um ritmo mais acelera-
do a um amplo conjunto de mudanças no panorama das relações raciais
brasileiras que, nos governos anteriores, ficaram apenas na intenção ou
tiverem alcance reduzido. Adensa-se, portanto, na administração petista,
o caráter eminentemente proativo do Estado em relação à elaboração de
políticas públicas racialmente sensíveis.
A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(Seppir), em março de 2003, representa a principal conquista do movi-
mento negro contemporâneo. A Seppir não apenas passou a garantir uma
visibilidade sem precedentes às demandas de ativistas do movimento ne-
gro como os incorporou ao aparato estatal, possibilitando que contribu-

30
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

íssem de maneira mais efetiva para a definição e acompanhamento de


políticas públicas.
Além da Seppir, foram criadas, ainda em 2003, duas outras institui-
ções voltadas para a proposição de políticas públicas racialmente sensí-
veis: o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), órgão
colegiado de caráter consultivo vinculado à Seppir, cujo objetivo é propor
políticas de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação e de
promoção da igualdade racial; e o Fórum Intergovernamental de Promo-
ção da Igualdade Racial (FIPIR), entidade que congrega organismos exe-
cutivos estaduais e municipais – secretarias, coordenadorias, assessorias,
entre outras – voltados para a questão racial, com o intuito de articular os
esforços dos três níveis de governo para implementar políticas de promo-
ção da igualdade racial.
Com o objetivo de promover a igualdade racial de forma ampla, a
Seppir atua a partir da perspectiva da transversalidade ministerial, influen-
ciando para que os demais ministérios incluam em suas agendas políticas
medidas racialmente sensíveis. São exemplos dessa transversalidade me-
didas como a realização de censos étnico-raciais em escolas, a proposição
de políticas públicas de saúde para a população negra e a recomendação
de elaboração de livros didáticos realçando traços positivos da negritude
e africanidade. No que tange à educação básica, a aprovação da Lei n.
10.639 de 2003, que versa sobre a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da rede de ensino, representa
certamente uma tentativa de reinterpretar a história racial brasileira.
São exemplos de outras medidas pela Seppir: Decreto n. 4.887
(2003), que regulamenta o procedimento para identificação, reconheci-
mento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por re-
manescentes das comunidades de quilombos; instituição do Grupo de
Trabalho Interministerial sobre Quilombos; assinatura de um Termo de
Compromisso entre a Seppir e o Ministério da Saúde para a implemen-
tação de uma Política de Saúde para a População Negra; celebração de
acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), visando à ca-
pacitação de gestores públicos para implementar políticas de igualdade
de gênero e de raça; celebração de protocolo de intenções envolvendo a
Seppir, o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à
Fome (Mesa) via Programa Fome Zero e a Fundação Cultural Palmares, o

31
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

qual busca por melhoria das condições de vida de 15 mil famílias em mais
de 150 comunidades remanescentes de quilombos (Jaccoud et al., 2009).
A institucionalização da Seppir também traz consigo dilemas de
ordem interna e externa. Por um lado, há uma disputa pelos espaços
disponibilizados pela Seppir a atores da sociedade civil, gerando
constantes questionamentos acerca de quais lideranças teriam o privilé-
gio e a expertise política para, de fato, representar a população negra bra-
sileira junto ao governo federal. Por outro lado, há um risco permanente
de que governos menos alinhados com a luta antirracista venham a des-
tituir a Secretaria no futuro, ou que a temática racial seja repensada em
outros termos, de modo a abrir espaço para a extinção da pasta. Garantir
a sustentabilidade da Secretaria passa, nesse contexto, pela aproximação
com outros setores do governo, com o intuito de ampliar o caráter trans-
versal das políticas de igualdade racial.
Durante o Governo Lula também foram realizadas duas Conferên-
cias Nacionais de Promoção da Igualdade Racial (Conapir). A primeira, re-
alizada em 2005, teve como objetivo a formulação de um Plano Nacional
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, além de avaliar a atuação
da Seppir na promoção da igualdade racial. A segunda Conapir, realizada
em 2009, deu continuidade aos trabalhos iniciados no encontro anterior
e procurou consolidar e avaliar a implementação do Plano Nacional pro-
posto em 2005.
Em ambas as conferências, houve uma prevalência de temas sociais,
voltados fortemente para a melhoria das condições socioeconômicas das
populações negras e indígenas. Na 1a Conapir, 10 dos 12 grupos de traba-
lho se referiam a esses temas e, na 2a, 6 de 9 (Seppir, 2005, 2009). Outro
fato relevante a ser ressaltado é que, de acordo com Pogrebinschi (20101),
as diretrizes aprovadas nas conferências nacionais de minorias tendem a
ser predominantemente de natureza administrativa (aquelas cujas reivin-
dicações se dirigem ao Poder Executivo), deixando de lado as de natureza
legislativa (dirigidas ao Poder Legislativo). Em sua primeira edição, a Cona-
pir produziu 1.048 deliberações e, na segunda, 761, sendo que 77.2% des-
sas deliberações foram de natureza administrativa (Pogrebinschi, 2010).


1
Pogrebinschi, T. (2010, outubro). Participação como Representação: Conferências Nacionais
e Políticas Públicas para Grupos Sociais Minoritários no Brasil. Trabalho apresentado no 34º
Encontro da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Caxambu, MG.

32
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Apesar de contar com a participação de um grande número de pes-


soas e contemplar múltiplas etapas deliberativas, o impacto que as con-
ferências de minorias exercem sobre o poder público não é cartesiano. A
maioria das conferências nacionais de políticas públicas tem caráter con-
sultivo, ou seja, embora convocadas e financiadas pelo Governo Federal,
suas decisões não precisam ser obrigatoriamente acolhidas pelo Estado.
Assim, a capacidade que tais conferências têm de influenciar a agenda po-
lítica governamental varia bastante, a depender do contexto sociopolítico
em que elas ocorrem. As duas edições da Conapir, por exemplo, lograram
incluir 43% de suas deliberações na agenda do Governo Federal, uma por-
centagem relativamente alta se comparada com os resultados das con-
ferências LGBT, mas ainda assim aquém das demandas vocalizadas pelos
ativistas nesses espaços participativos.
O maior avanço político do Governo Lula em relação à população
negra pode ser observado na expansão das políticas de ação afirmativa
para acesso ao ensino superior público. Embora algumas propostas de
ação afirmativa tenham, como dito acima, sido aventadas no governo an-
terior, elas passaram a ocupar um lugar central apenas no Governo Lula.
Durante a administração FHC, o contexto político, embora aberto à temá-
tica racial, permaneceu resistente à implementação de políticas públicas
racialmente focalizadas.
Havia um interesse, por parte da administração petista, em esta-
belecer uma política nacional de ações afirmativas já no primeiro ano de
mandato do presidente Lula. Entretanto, havia alguns obstáculos a serem
vencidos. Por um lado, a temática era (e ainda é) muito controversa, e
a opinião pública, induzida pelo enfoque eminentemente negativo dos
principais veículos de comunicação de massa do país, estava bastante
dividida. Por outro lado, havia a necessidade de se pensar uma proposta
política que não implicasse a ruptura com a autonomia das universidades
federais.
Diante de tais obstáculos, o Governo Federal acabou optando por
evitar um confronto direto com os opositores das ações afirmativas. Duas
ações foram então levadas a cabo para que mais universidades aderissem
à proposta do governo enquanto um projeto de lei sobre a temática tra-
mitava no Congresso. Primeiramente, o governo desenvolveu o Programa
Universidade para Todos (ProUni), para facilitar o acesso de alunos caren-

33
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

tes ao ensino superior privado. O ProUni, embora não tenha enfocado


diretamente a inclusão de afrodescendentes, permitiu que aumentasse o
número de matriculados desse segmento social em instituições privadas
sem, contudo, se utilizar diretamente do critério racial, ainda cercado por
controvérsias, para fazê-lo. Em segundo lugar, o governo passou a ofe-
recer incentivos para que as universidades federais passassem a adotar,
voluntariamente, alguma medida de inclusão. A criação do Programa de
Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni), em 2007, foi um grande indutor do aumento no número de uni-
versidades com programas de ação afirmativa. Assim, em 2008, 53 insti-
tuições federais de ensino aderiram ao Reuni, e uma parte significativa
dessas instituições propôs programas de ação afirmativa (Daflon, Feres,
& Campos, 2013).
Até a promulgação da Lei n. 12.711 de 2012, que criou uma política
de reserva de vagas para alunos oriundos de escola pública, pretos, pardos
e indígenas em todo o sistema de educação federal (médio e superior),
cerca de 70 universidades públicas estaduais e federais haviam implanta-
do algum programa de ação afirmativa. Desse total, 56% eram federais e
44% estaduais. A maior parte desses programas de ação afirmativa (77%)
partiu de iniciativas dos próprios conselhos universitários, enquanto que
nos 23% restantes a implementação se deu por força de leis estaduais.
Há, do ponto de vista da execução dos programas e dos seus bene-
ficiários, uma grande pluralidade. Em algumas universidades, tais políticas
foram adotadas por via de negociações com movimentos negros locais; em
outras, a atuação docente foi o fator decisivo; houve ainda universidades
em que os núcleos de estudos afro-brasileiros tiverem maior peso sobre
a decisão (Daflon, Feres, & Campos, 2013). Os egressos de escola pública
têm sido os maiores beneficiários desses programas (85% dos casos). Em
segundo lugar (58% dos casos) vêm os pretos e pardos. Em terceiro, os
indígenas, em 51% dessas universidades. Em quarto e quinto, vêm os por-
tadores de deficiência e participantes de programas de formação em licen-
ciatura indígena e, por fim, outros grupos compostos por nativos do estado
ou do interior do estado em que a universidade se localiza, professores da
rede pública, pessoas de baixa renda, pessoas originárias de comunidades
remanescentes de quilombos, filhos de agentes públicos mortos ou inca-
pacitados em serviço e mulheres (Daflon, Feres, & Campos, 2013).

34
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

A predominância de programas de ação afirmativa voltados para


alunos de escolas públicas pode ser creditada a dois fatores. Por um lado,
denota um reconhecimento, por parte da sociedade, de um modo geral, e
dos gestores de universidades, de modo particular, de que a competição
na hora do vestibular não se dá em condições de igualdade, em decorrên-
cia de disparidades de classe que reservam a uns uma educação básica de
qualidade e a outros um sistema precário e ineficaz de ensino. Por outro
lado, revela o ainda elevado grau de resistência da população brasileira
em reconhecer o peso que desigualdades raciais exercem nas experiên-
cias de vida, inclusive educacionais, de indivíduos pertencentes a grupos
desprivilegiados (Daflon, Feres, & Campos, 2013).
Assim, apesar de as demandas por políticas de ação afirmativa te-
rem surgido no bojo das reivindicações do movimento negro, foram os
alunos oriundos de escola pública e de baixa renda que mais se bene-
ficiaram dos programas criados pelas universidades brasileiras. A imple-
mentação, escalonada ao longo de quatro anos, da Lei n. 12.711 (2012)
pode vir a equacionar esse quadro, além de homogeneizar os programas
desenvolvidos no interior das universidades e, de forma correlata, permi-
tir o desenvolvimento de pesquisas avaliativas sobre essa política pública
(Daflon, Feres, & Campos, 2013).

O Governo Lula e a segmentação institucional

Ao longo de sua história, o Estado brasileiro tem se caracterizado


por seu alto grau de centralização territorial e concentração funcional de
poder, fatores que, segundo Kriesi (2004), contribuem significativamen-
te para a pouca abertura política estatal para a participação formal de
atores sociais da sociedade civil. A partir da promulgação da Constituição
de 1988, há um progressivo processo de descentralização política, porém,
com efeitos limitados em nível federal. Em vários municípios e estados
brasileiros, especialmente naqueles governados pelo Partido dos Tra-
balhadores (PT), são criados fóruns de participação mista e instituições
(secretarias, coordenadorias, conselhos etc.) para propor, executar e/ou
fiscalizar a adoção de políticas públicas para grupos minoritários.
Nesse sentido, a chegada do PT ao Governo Federal marca uma
ruptura com o padrão de baixa abertura política predominante na esfera

35
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

federal até então. O Governo Lula passa a mobilizar e assimilar identida-


des “minoritárias” em seu leque de investimentos, alianças estratégicas e
coalizões partidárias. Através do Sistema Nacional de Participação Social,
organismo vinculado ao Escritório-Geral da Presidência da República, o
governo procura centralizar, organizar e coordenar diferentes frentes de
participação social. Para Duque Brasil (2011, p. 12), o Governo Lula se ca-
racterizaria por seu perfil “inclusivo-ativo a partir da criação de institui-
ções participativas” e por oferecer “amplas possibilidades de inclusão po-
lítica e de inclusão no Estado associadas às conexões e compartilhamento
de projetos democratizantes do campo movimentalista com o Partido dos
Trabalhadores (PT)”. Entretanto, como já afirmamos acima, se conside-
rarmos o tipo de movimento social, veremos que esse perfil apresentará
diferenças no tratamento – sobretudo das temáticas LGBT, que foram in-
cluídas ativamente pelos arranjos participativos (inclusão no Estado), mas
apenas timidamente incluídas do ponto de vista político.
O Governo Lula inova ao criar diversas instâncias participativas de
inclusão de temas e demandas que já vinham sendo abordadas pelos mo-
vimentos sociais no âmbito da sociedade civil (Pogrebinschi, 2010). Há,
contudo, um paradoxo de difícil solução nessa inclusão via Estado, como
apontam autores como Dryzek (1996) e Arechavaleta (2010). Por um lado,
as mudanças no contexto político permitem que os movimentos sociais
tenham um impacto mais efetivo sobre as instituições estatais e, por ou-
tro, sua entrada na política institucional diminui seu poder de discrepância
com relação a seus adversários. Assim, Arechavaleta (2010, p. 199) chama
a atenção sobre como a “legitimação e a institucionalização da atividade
coletiva é um meio muito eficaz de controle social”.
No Brasil, que tem um sistema partidário extremamente confuso, o
Estado estaria mais aberto à influência dos grupos de interesse, já que a
presença de cisões nas elites políticas enfraquece as coalizões, o que foi
bastante acentuado durante o Governo Lula. Nossa análise aponta que,
em grande medida pelo perfil do PT, o Estado também amplia sua abertura
aos interesses granjeados por movimentos sociais e grupos organizados
da sociedade civil, mas sem flexibilizar seu comprometimento com setores
mais conservadores do espectro político. Se sistemas políticos abertos pro-
piciam um aumento da mobilização social, talvez devêssemos nos pergun-
tar, então, quais tipos de protestos e conflitos uma determinada abertura

36
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

no contexto político elicia e quais efeitos podem ter sobre a constituição


de identidades coletivas e a formação de fronteiras políticas entre atores.
De um modo geral, os sujeitos da pesquisa argumentam que a en-
trada dos movimentos sociais para o Estado e sua presença nos arranjos
participativos implicam a redução de antagonismos com o governo, inde-
pendente do partido que esteja no poder. Ao menos do ponto de vista da
significação dessas relações, a percepção dos entrevistados é a de que a
sustentação e a radicalização de críticas ao governo se veem comprometi-
das pela aproximação entre atores governamentais e não governamentais.
Vários entrevistados apontaram que estar no Estado é algo positivo
por proporcionar possibilidades maiores de transformação social do que
um movimento social, tanto por acessar uma diversidade maior de atores
políticos (empresas, universidades, organizações, partidos etc.) como por
movimentar uma quantidade maior de recursos, sem necessariamente
uma avaliação qualitativa do que seja ocupar esses espaços. Apesar de
algumas exceções, não aparece claramente nas entrevistas uma análise
crítica do Estado (enquanto uma instituição historicamente contingente
e com uma função regulatória específica num determinado projeto de
sociedade) e de seus fluxos institucionais e burocráticos. Como o Estado
não é reconhecido como um ator social, mas como o cenário principal
das performances políticas, os grupos e indivíduos que o acessam é que
aparecerão como problemáticos.
A diminuição dos antagonismos, a visão positiva da ação política
pela via do Estado (justificada pelo acesso a recursos), a ausência de crí-
ticas ao Estado, dentre outros aspectos que podem ser citados, abrem
espaço para percepções políticas mais individualizadas, dependentes da
competência e da atuação individual, e que acabam por colocar em se-
gundo plano as reflexões sobre os processos coletivos, a mobilização so-
cial e as configurações institucionais. Tais discursos deixam entrever que a
“fidelidade aos princípios” originais do movimento social do qual veio um
determinado militante, a “integridade de caráter” do ativista que vai pro
Estado e não se deixa corromper, a honestidade, entre outros, são mais
importantes do que uma reflexão política elaborada ou processos de mo-
bilização e conscientização mais amplos.
Nessa perspectiva, embora com objetivos e valores éticos e políti-
cos supostamente diferentes, a atuação dos movimentos sociais se asse-

37
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

melha à dos grupos de influência e lobby, o que pode ser compreendido


num sentido semelhante ao apresentado por Oliveira (2001), de que a
sociabilidade antipública da sociedade brasileira fortalece a tendência a
se privatizarem os espaços de interlocução com o Estado. Isso nos leva a
pensar que os grupos organizados, ao se apresentarem como represen-
tantes de populações mais amplas, ou as lideranças representando as ba-
ses que com elas se articulam, constroem narrativas identitárias que, por
serem construídas de forma hierarquizada e distanciada do “segmento”
que agenciam, dependem ainda mais do reconhecimento institucional
para alcançarem o monopólio dessas narrativas (Eder, 2003).
Do ponto de vista da constituição de identidades coletivas, o verti-
calismo no interior dos grupos organizados e sua tendência à institucio-
nalização irá legitimar um projeto organizacional e estratégico, mais que
um processo de articulação enraizado na cultura e no cotidiano da popu-
lação representada, que foi transformada em “segmento populacional”
pela mobilização de identidades segmentadas promovida pelo governo.
Os laços que unem esses indivíduos em torno de uma identidade coletiva
tendem a ser mediados mais fortemente pelos aspectos institucionais de
seu grupo de pertencimento e por suas experiências pessoais no campo
de uma “diferença”, o que pode afastar as lideranças de suas bases, e os
ativistas da população que buscam representar.
Além disso, o próprio processo de segmentação não chega a ser
pautado nos mecanismos de acesso ao Estado, em sua tendência a alocar
setorialmente e de forma fragmentada as diversas demandas sociais. Mes-
mo que se fale em intersetorialidade, interseccionalidade etc., esses dis-
cursos reafirmam a lógica institucionalizada que prioriza a representação e
a pressão por políticas públicas específicas, em detrimento da organização
junto aos ativistas, e desses para com suas bases e a sociedade em geral.
Nesse contexto, ao mesmo tempo em que identificamos o elogio
e até mesmo o incentivo às pressões da sociedade civil direcionadas ao
Estado, em muitas entrevistas notam-se críticas às reclamações dos mo-
vimentos sociais, no sentido de esses não terem compreendido como
funciona o Estado, pressionando-o de forma equivocada. Então, se a par-
ticipação social se justifica por produzir um saber coletivo, compreendido
como consensos produzidos coletivamente sob a tutela do Estado e que
possibilitam o desenvolvimento de políticas públicas “mais adequadas” às

38
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

diversas realidades sociais, a inteligência coletiva que o produz é em gran-


de parte menosprezada ou mesmo desprezada pela “ingenuidade”, pela
falta de “conhecimento” ou pelas impossibilidades postas pela “correla-
ção de forças” que atravessa o Estado. Em um campo político cujo Estado
é significado como o veículo prioritário, quando não o único, da mudança
social, e a ação política tem como finalidade o desenvolvimento de polí-
ticas públicas cada vez mais especificas e setorializadas, o papel dos mo-
vimentos sociais (ou dos grupos organizados) não poderia ser outro que
especializar-se nos trâmites burocráticos estatais e em questões técnicas
da administração pública e do desenvolvimento de projetos.
Com a criação de novas secretarias, subsecretarias, conselhos, con-
ferências, editais etc., o governo fez coincidir, no âmbito do Estado, proces-
sos de diferenciação e categorização social desenvolvidos pelos movimen-
tos sociais. Isso se deu através da reprodução de formas organizacionais e
discursos desenvolvidos em espaços interacionais exteriores ao Estado, e
que passam a compor aspectos da organização de órgãos governamentais
e seus procedimentos. Importante recordarmos que o PT não era total-
mente alheio a essas categorias, já que suas relações com os movimentos
sociais atravessam a história desse partido, o que diminui ainda mais os
custos de importação desses modelos de interação e de conhecimentos
compartilhados sobre categorias sociais e práticas políticas para o interior
do Estado. O discurso governamental passa a incluir, nesse contexto, uma
discussão mais generalizada sobre a especificidade das identidades so-
ciais, o que irá se refletir na institucionalização de temas e categorias que
apareciam apenas em contextos específicos ou eram invisibilizados no dis-
curso estatal. O Estado adapta, assim, narrativas identitárias produzidas
em contextos de militância e/ou acadêmicos, reproduzindo perspectivas
diferencialistas acerca das identidades e o enfoque na violação de direitos
(Prado, Mountian, Machado, & Souza, 2010).
Em determinados contextos, essas diferenças categoriais se alas-
tram em diversos setores do Estado, levando com que as identidades
sejam pautadas em novos e importantes espaços, desde setores com-
prometidos com a pauta demandada pelos movimentos sociais até mo-
vimentos opositores organizados. Em relação ao movimento LGBT, a
bancada evangélica e o fundamentalismo religioso são exemplos claros
de atores que passam a pautar debates ao redor de categorias assinala-

39
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

das por esses movimentos, no sentido de uma contraposição e rechaço


às suas demandas e ao reconhecimento governamental à legitimidade
de suas identidades políticas. Isso constitui um importante elemento
de formação de fronteiras identitárias entre identidades coletivas, pois
o rechaço a uma determinada categoria implica o reconhecimento dos
atores que a incorporam e monopolizam suas narrativas, o que leva a
um reordenamento das posições de sujeito no interior de um sistema
organizacional.
O movimento negro, por outro lado, construiu uma rede de solida-
riedade não apenas no interior do PT, mas principalmente com outros
atores políticos. Assim, embora haja inúmeros críticos às políticas públi-
cas racialmente sensíveis, especialmente àquelas concernentes ao aces-
so ao ensino superior, a ação do movimento negro engendrou novos dis-
cursos de “comprometimento com as minorias” que parecem difíceis de
serem antagonizados no atual contexto político brasileiro. Além disso, os
debates acerca da promoção da igualdade racial, diferentemente das dis-
cussões sobre direitos LGBT, não são conflitantes com os discursos con-
servadores organizados, especialmente os proferidos por representantes
das igrejas neopentecostais e grupos fundamentalistas que se encontram
bastante articulados do ponto de vista político. As categorias identitárias
que confrontam o sistema de crenças religiosas que fundamentam a vida
pública dessas lideranças, tais como as que o movimento LGBT utiliza, se
tornam elementos importantes para a formação de fronteiras políticas e
de reconhecimento junto aos setores conservadores da sociedade.
Essas opções organizacionais e de ações no plano executivo tiveram
como efeito visibilizar hierarquizações sociais dando voz a desigualdades
existentes na sociedade brasileira, a partir de narrativas, teorias, estatís-
ticas etc. que deram concretude e substância ao preconceito social e às
desigualdades. Por um lado, esta abertura na estrutura de oportunidades
políticas pode ser compreendida como um aspecto importante para a
democratização das relações sociais, pois transformou atores “invisíveis”
em identidades políticas com alguma legitimidade pública. Por outro
lado, diversos pares categoriais foram cimentados no plano institucional
reforçando dicotomias anteriormente silenciadas nas instituições gover-
namentais, mas sem que isso implicasse adesão declarada, comprometi-
mento efetivo e ações ostensivas.

40
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Considerações finais

As conclusões do trabalho identificam ambiguidades tanto no dis-


curso estatal acerca da democratização das relações políticas entre o Es-
tado e sociedade civil como por parte dos atores dos movimentos sociais,
que negociam sua identidade política, em relação ao Estado, a partir de
processos descontínuos de diferenciação. Tal ambiguidade nas interações
sociais entre atores coletivos em espaços institucionais de participação
aponta para a necessidade de um entendimento menos linear das práticas
políticas contemporâneas em seus múltiplos lóci de ação.
No âmbito da sociedade civil, observa-se um aprofundamento das
hierarquias entre grupos organizados, pois o reconhecimento de identi-
dades coletivas pelo Estado implica a sobrevalorização de determinadas
narrativas políticas e, consequentemente, a possibilidade de acesso a re-
cursos, privilegiando aqueles grupos que melhor se adéquam aos requisi-
tos institucionais impostos pela burocracia estatal. Do ponto de vista es-
tatal, observa-se certa fragmentação temática na estrutura organizacional
e discursiva, diminuindo a efetividade de suas repostas às demandas dos
movimentos sociais e, ao mesmo tempo, fomentando práticas discursivas
que responsabilizam a sociedade civil pelas impossibilidades de avanço.
A institucionalização dos movimentos negros e LGBT apontam para
elementos centrais para se pensar as possibilidades de acesso à estrutura
de oportunidades políticas no Estado brasileiro, em que a fragmentação
do discurso estatal encobre, para ambos os movimentos, processos de as-
similação dos atores políticos e de regulação da participação social cujos
resultados nem sempre são positivos.
Se as elites políticas e econômicas já consolidadas foram eficazes
na manutenção da desigualdade categorial através de mecanismos de ex-
ploração – tanto a partir de articulações com o governo, que manteve a
política econômica nos mesmos moldes dos governos anteriores, como a
partir da reprodução de determinados discursos conservadores por parte
desse mesmo governo –, as lideranças dos movimentos sociais, por sua
vez, de modos mais ou menos explícitos, participaram desses processos
através das oportunidades instaladas pela segmentação temática no inte-
rior do Estado.

41
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Embora inicialmente o Governo Federal tenha proposto um conjun-


to expressivo de políticas para ambas as coletividades, acabou paulatina-
mente silenciando em relação aos grupos LGBT. Isso ocorreu, em grande
medida, por conta das frágeis alianças estabelecidas entre lideranças des-
se movimento social e agentes estatais e pelo receio de que os elos man-
tidos entre o PT e grupos religiosos conservadores da base aliada fossem
rompidos, dificultando, assim, a governabilidade. As organizações do mo-
vimento negro, no entanto, obtiveram ganhos mais significativos, em vir-
tude de alianças mais fortes com o governo e, diferentemente dos grupos
LGBT, por trazer à esfera pública uma temática que, embora cercada de
conflitos, soa bem menos controversa para os setores mais conservadores
do governo e da sociedade.
Esse aspecto, central na análise que apresentamos, pode ser iden-
tificado no histórico dos grupos, no qual se observa a anterioridade na
consolidação e na legitimidade das relações entre o Estado e os movi-
mentos negros. Além disso, vemos que, ao longo da história de ativismo
desses dois campos, o movimento negro teve sua pauta assumida de
forma mais contundente por um grande número de instituições de des-
taque na política nacional, além de contar com pressões internacionais
mais fortes e generalizadas nas agências transnacionais. Outro aspecto
importante que podemos ressaltar, e que reflete a melhor inserção da
igualdade racial, é o alcance intersetorial mais efetivo das ações propos-
tas pela Seppir.
Embora ainda não seja possível desenvolver, neste capítulo, uma
análise mais aprofundada sobre essa interação cooperativa entre Estado e
movimento negro durante o governo petista, é importante considerar al-
guns de seus impasses. Assim, apesar das inúmeras conquistas alcançadas
pelo movimento negro a partir de sua articulação com agentes estatais, há
um risco real de que, a depender do contexto político, haja um retrocesso
em termos de adoção de políticas públicas ou manutenção das existentes,
o que foi verificado no movimento LGBT a partir da metade do segundo
mandato do governo Lula.
Um dos antídotos para esse possível retrocesso em um futuro pró-
ximo está em garantir que a institucionalização e o estabelecimento de
redes de cooperação desenvolvidas pelos movimentos sociais com o Esta-
do não suplantem a política de conflito e seus repertórios contestatórios,

42
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

como marchas e protestos de rua. São ações de confrontação como essas


que reforçam os sentimentos de pertencimento em setores mais amplos
da população, contribuindo diretamente para a formação de identidades
coletivas que permitem o estabelecimento de um tensionamento político
que é salutar para manter o projeto democrático-inclusivo vivo.

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44
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

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45
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Grande mídia nas manifestações de massa no Brasil


em 2013
Telma Regina de Paula Souza

Introdução

Em junho de 2013 a sociedade brasileira foi assaltada por informa-


ções midiáticas acerca de grandes manifestações sociais que eclodiram
nas principais capitais do país, se espraiando pelas cidades do interior dos
estados. Antes disso, a mídia pontuava aqui e ali notícias sobre manifesta-
ções contrárias ao aumento das tarifas do transporte coletivo, intituladas
pelo jornal Folha de São Paulo como Guerra da Tarifa. Esse cenário, que foi
agregando inúmeras bandeiras de luta, promoveu um debate intelectual
ainda em aberto, visto os desdobramentos incertos daquelas manifesta-
ções. No Encontro da ABRAPSO, em setembro de 2013, apresentamos um
retrato das notícias publicadas na mídia jornalística, em especial no jornal
Folha de São Paulo, que no percurso de um mês, junho de 2013, foi mu-
dando seu enfoque: de “Guerra das Tarifas” para “País em Protesto”.
O retrato da mídia1, além dos fatos, revelou versões, entre essas
uma razão cínica, visto que selecionou dos fatos episódios que poderiam
provocar o descrédito nos manifestantes, como a matéria “Por que fui?”,
publicada no Caderno Cotidiano (Folha de São Paulo, em 18 de junho de
2013):
“Estou aqui contra as corrupções e os direitos”, disse. Quais? “Ah, todos”
E o preço da passagem de ônibus em Campinas, também é alto? “Camila,
quanto custa mesmo o ônibus?”, perguntou para a amiga. “R$ 3,30”, foi a
resposta. (M, 22)2 enfrentou sua primeira manifestação vestindo calça de

1
Capturamos esse retrato por meio de uma pesquisa exploratória das matérias jornalísticas
noticiadas no jornal Folha de São Paulo, visto ser esse um jornal de grande circulação e influ-
ência no Brasil, segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC), e em revistas semanais
como “Época”, “Isto é” e a “Veja”.

2
Apesar de publicado no jornal, optamos por não identificar os nomes dos envolvidos nos
episódios noticiados.

46
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

ginástica justinha, tênis Nike rosa-choque, mochila Nike, batom e rímel. No


seu kit protesto também tinha uma máscara de pintor (R$ 17) contra gás
lacrimogêneo, óculos de proteção (R$ 13) e vinagre (pegou da sua mãe, em
casa). Estudante de Direito da UNIVAP, M veio de Campinas em um ônibus
fretado “Eu represento você ai sentado no sofá”, dizia o cartaz que carrega-
va. (Mello, 2013 on line)

Também na relação dos manifestantes com a polícia, o jornalismo,


além de descrever a violência da ação policial, não dispensou o enqua-
dramento cínico de sua versão, claramente expresso no episódio publi-
cado em 20 de setembro (três meses após as grandes manifestações), no
Caderno Poder do jornal Folha de São Paulo, com o título: Na Avenida
Paulista, major da PM “ensina” grupo a protestar:
Garoto, tem vergonha de manifestar? Perguntou o major. O garoto não res-
pondeu, mas o policial o conduziu mesmo assim até a calçada, do outro
lado da rua. “Pronto, fica segurando o cartaz aqui, de frente para os carros”,
instruiu. “Lá ninguém estava te vendo”.
De volta ao local onde estava o resto do grupo, e diante da reação positiva
à sua intervenção, continuou a organizar o protesto. “Vou ter que ensinar
você, é?” brincou.
“Você, grandão, fica aqui”, disse o major a M, que vestia camiseta do GAPP,
o Grupo de Apoio ao Protesto Popular, uma entidade que assiste manifes-
tantes com primeiros socorros durante os atos.
O “grandão” reclamou: “Mas aí vou fazer propaganda do grupo, não é o
objetivo”. O major rebateu: “Com esse tamanho e não quer fazer propa-
ganda?”
Dali em diante, ele não parou mais. “Deixa o cartaz parado, senão ninguém
consegue ler” ... “Levanta mais esse braço” ... Ao final, quando o ato se dis-
persava, voltou aos manifestantes: “Aprenderam?” perguntou, em tom de
brincadeira. (Gama, 2013, on line)

Para além de uma dimensão cínica, a mídia jornalística continu-


amente avaliou as manifestações, retratando-as espetacularmente em
imagens que podem ter atraído uma multidão de pessoas para as ruas.
As avaliações da mídia, inicialmente condenatórias dos manifestantes, fo-
ram assumindo um caráter de apoio. A capa da revista Veja (3 de julho de
2013) traz uma imagem do povo em passeata empurrando o Congresso

47
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Nacional para um abismo, com o título: “Então é no grito?”, e na chama-


da: “Os governos e o Congresso correram para atender os manifestantes.
Isso mostra que a pressão popular funciona. Mas as ruas não podem subs-
tituir as instituições”. A matéria da revista aborda a votação da Proposta
de Emenda Constitucional (PEC) nº 373, que tramitava há dois anos no
Legislativo. O título da matéria: “Não é que funciona mesmo?” é seguido
pelo comentário: “Em poucos dias, os protestos conseguiram a façanha
inédita de fazer o Congresso aprovar projetos contra a corrupção, os go-
vernos reduzirem tarifas e o judiciário mandar um político para a cadeia.
O grito dos manifestantes acordou os três poderes” (Cabral, 2013, Veja, p.
54). Na mesma data, o título da capa da revista Isto É, foi: “Você mandou
e o poder se mexeu”. Na semana anterior (26 de junho de 2013), a capa
dessa revista, com imagem de jovens na rua, tem o título: “Hoje você é
quem manda”, e a chamada: “A voz das ruas se impõe, assusta os políti-
cos, conquista vitória e mostra que veio para ficar”.

Também na mídia jornalística, identificamos vários esforços para a


análise das manifestações. As análises comportam uma crítica ao sistema
capitalista de produção e aos governos neoliberais, mas acentuam diver-
sas motivações para a ação das massas, como podemos observar na ma-
téria da revista Época, com o título: PÁTRIA AMADA, BRASIL. Onde vai
parar a maior revolta popular da história da democracia brasileira? (24
de junho de 2013), que apresenta as motivações das ruas na opinião de al-
guns especialistas. As motivações apontadas são: fracasso da política tra-
dicional - Estado, partidos e instituições políticas; autoritarismo do Estado
encastelado; distanciamento dos governos do povo; acesso difícil e caro
a bens e serviços públicos; inadequação do sistema político e a necessi-
dade de novos modelos; decepção com a política, a depressão provocada
pela injustiça gerou a raiva nas ruas; insatisfação com os serviços públicos
oferecidos num país em que a carga tributária é altíssima (36%); oportuni-
dade de ter visibilidade em função da Copa das Confederações; consciên-
cia coletiva produzida nas redes sociais, descentralizada e sem hierarquia;
jovem com vontade de fazer microrevoluções; melhoria das condições de
vida e a perda de respeito da população em relação aos políticos; temor
da volta da inflação e sentimento da enorme discrepância entre aquilo
com que cada um contribui e o que recebe de volta do poder público.

3
Proposta que diminuía o poder investigativo do Ministério Público.

48
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Buscamos identificar, nas análises dos intelectuais que se manifesta-


ram na grande mídia impressa, os significados das manifestações no perí-
odo em que estavam em efervescência e agrupamos em cinco significados
que se complementam.

Ênfase no econômico-cultural – relacionada à exclusão social

Teresa Caldeira, antropóloga, em uma matéria do jornal Folha de


São Paulo, de 23 de junho, analisa os protestos da seguinte forma: “Dá
muito bem para entender o que está acontecendo e isso vem sendo arti-
culado há muito tempo”. Considera que o Movimento PL4 “articula todo o
imaginário da produção cultural da periferia”, expresso na frase: “A cida-
de só existe para quem pode se movimentar por ela” (grafite do MPL em
2010). “Rap, literatura marginal, pixação, saraus, todos se fazem na base
e rede de circulação. E circular por São Paulo é um caos para quem não
tem dinheiro” (citada por Machado & Rocha, 2013, Folha de São Paulo,
on line). Para a antropóloga Teresa Caldeira, há uma tensão de classe
latente. Compara as manifestações no Brasil com os acontecimentos na
França.
Entendemos que as questões apontadas por Caldeira problema-
tizam o desenvolvimento urbano das grandes cidades brasileiras, favo-
rável aos interesses de uma elite econômica. Os jovens da periferia das
cidades, e do sistema econômico, manifestam sua exclusão negando os
espaços do seu não pertencimento. Podemos também sugerir que nas
manifestações a rua é inclusiva, todos podem estar lá; a rua permite uma
unidade da diferença, constituindo momentaneamente uma identidade
coletiva, em que pese, no caso das manifestações em foco, parecer pre-
dominar a presença da “classe média”5. Para aqueles que refutam o prin-
cípio da totalidade dessa unidade, a rua é negada nos atos considerados


4
Refere-se ao Movimento Passe Livre, considerado o organizador das primeiras grandes mani-
festações em junho de 2013, que tiveram outros movimentos antecedentes contra o aumen-
to da passagem de ônibus e pelo passe livre, como a Revolta do Buzu (Salvador, 2005).

5
Segundo uma pesquisa publicada na revista Opinião Pública (2013): “As características so-
cioeconômicas dos manifestantes que ocuparam a Avenida Paulista em junho deste ano
mostram não apenas a elevada concentração de jovens (16 a 25 anos), mas as altas escola-
ridades e renda dos manifestantes, quando comparados à população geral da cidade de São
Paulo” (p. 481).

49
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

como vandalismo, cujo alvo é sempre simbólico, caixas de banco, vidraças


de prédios públicos, veículos e ônibus. O sentido das manifestações nes-
se enquadre analítico é a negação da exclusão, do não lugar dos jovens
da periferia, expresso em suas expressões artístico-culturais. O sujeito da
ação é o jovem, considerado pelo status quo como um rebelde. A “des-
qualificação” das manifestações pela mídia, antes de atraírem uma multi-
dão de pessoas, pode estar relacionada à “desqualificação” desse jovem,
estudante ou “desocupado”.
Discordando da comparação das manifestações brasileiras com as
manifestações de revolta ocorridas na França em 2005, o sociólogo Se-
bastian Roché, na mesma matéria da Folha, expõe que os acontecimen-
tos na França estavam relacionados à xenofobia, jovens que se conside-
ram vítimas por não serem brancos, na maioria filhos de imigrantes e
mulçumanos. Ele não vê comparação entre os acontecimentos no Brasil
e os na França.
Na França, não foram pobres destruindo o meio de vida de outros pobres
... A burguesia ou o governo não foram os alvos. Nenhum espaço do po-
der foi sitiado ou tomado. Ninguém se aproximou, por exemplo, do parla-
mento nem da sede do governo [como ocorreu no Brasil]. Aqui, os grupos
operavam durante a noite, escondiam o rosto em capuzes e muitas vezes
buscavam o confronto com a polícia. Não houve qualquer manifestação de
massa, nenhum líder ou palavra de ordem emergiu. (citado por Machado &
Rocha, 2013, on line)

Roché entende que as revoltas urbanas podem exprimir um desejo


de participação direta nas decisões públicas, como ocorreu na Turquia.
Para ele, os protestos no Brasil se parecem mais com o Maio de 68.

Ênfase econômico-político – relacionado às melhorias de vida e desejo


de participação política

A tese da melhoria econômica, e depois sua freada, foi a base de


inúmeras análises, entendendo que houve um aumento da classe média
e desejo pelo consumo. “Acho que o esforço de maquiagem para mostrar
ao mundo um país que não existe contribui para a revolta das pessoas”
(Eduardo Giannetti, citado em Carneiro, 2013, p. 05).

50
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Em parte, parece que a ampliação da classe média ampliou também


a exigência por qualidade dos serviços públicos e os investimentos para a
realização da Copa do Mundo no Brasil passam a ser um dos temas mais
presentes nas manifestações.
Provavelmente, o único tema unificador das demandas foi a repulsa à Copa
do Mundo (e das Confederações) e à presença da Federação Internacional
de Futebol Associado (Fifa) no país ... A exigência bem-humorada e espon-
tânea de hospitais e escolas “padrão Fifa” certamente será uma das marcas
dos protestos ocorridos em junho. (Romão, 2013, pp. 13-14)

Para Romão, além do evento esportivo mundial (a Copa das Confe-


derações), que funcionou como combustível e veículo das manifestações,
três outros fatores foram preponderantes: o Movimento Passe Livre, com
uma demanda objetiva; a repressão policial abusiva, que alterou o posi-
cionamento da grande mídia a favor dos manifestantes, e o contexto de
descontentamento generalizado com o sistema político, que abordaremos
a seguir.
Na matéria da revista Época, em 24 de junho, o cientista político
Alberto Almeida expõe sua opinião:
Os protestos no Brasil são o resultado de duas coisas: a melhoria das con-
dições de vida e a perda de respeito da população em relação aos políticos.
Quando a vida melhora, o povo se comporta como no ditado: “Dá a mão,
quer o braço”. A condição econômica melhorou com o aumento de consu-
mo, agora querem mais – mas não respeitam mais os políticos. (Dez analis-
tas explicam o que leva milhões a protestar, 2013, p. 58)

A complexidade das demandas expressas nas ruas e os limites do


sistema político são discutidos por Nogueira (2013), destacando as mu-
danças na economia brasileira no modelo social-desenvolvimentista e seu
fracasso.
Bastou uma pequena avalanche de aumentos (alimentos, bens de consu-
mo, serviços e transporte) para que o equilíbrio se rompesse. Aos poucos,
foram se evidenciando os problemas e ruídos que o modelo conseguira ad-
ministrar até então: a desigualdade, a distância entre as classes sociais, a
persistência da corrupção, o desperdício público, a má qualidade das res-
postas governamentais e das políticas públicas, o reduzido espaço para a
participação política, a ausência de políticas para os jovens, o vazio progra-

51
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

mático dos partidos, a ruindade do debate público democrático e das dis-


putas eleitorais, as alianças políticas sem critérios. O que aparentava estar
adormecido, ou que pulsava em pequena escala ─ micromanifestações, in-
dignações virtuais, greves localizadas ─, irrompeu à luz do dia e em grande
escala. (Nogueira, 2013, p. 40)

Agregadas às manifestações, ou rebeliões como alguns as denomi-


nam, ocorridas em outros contextos, como na Espanha (com os Indigna-
dos da Puerta del Sol), em Portugal (com a Geração à Rasca), na Grécia
(com a ocupação da praça Syntagma) e o Occupy Wall Street, as manifes-
tações no Brasil foram entendidas como resposta ao declínio do sistema
capitalista de produção, considerado um capitalismo senil. Muitas aná-
lises, revisitando o sujeito revolucionário do marxismo, apontam para o
precariado como novo sujeito revolucionário:
A perda de direitos sociais, políticos e sindicais e as características de
inorganicidade das novas camadas do proletariado, especialmente
na Europa, são marcadas pela presença de um apartheid em relação
aos imigrantes ilegais e por uma maior exclusão dos direitos também
nas novas gerações de trabalhadores. Precariado, termo que parece
ter surgido como um neologismo anglicizado no Japão, designa uma
nova forma de proletariado informal e terceirizado, um novo tipo de
trabalhador cujas habilidades intelectuais são exploradas por meio de
precarização, desregulamentação e perda dos direitos sociais do welfa-
re state das gerações anteriores do proletariado industrial. (Carneiro,
2012, p. 13)

Os interesses econômicos da elite, representada, na análise desses


intelectuais, por 1% da população, provocam a ira dos 99%6 que se mobi-
lizaram contra a desigualdade econômica planetária.
Podemos salientar algumas das características desses novos movimen-
tos sociais. Primeiro, constituem-se de densa e complexa diversidade
social, exprimindo a universalização da condição de proletariedade (os
99%). No caso europeu, muitos manifestantes são jovens empregados,


6
Segundo o programa Milênio (exibido em 17 de fevereiro de 2014), a expressão: “Nós somos
os 99%”, cunhada pelo antropólogo americano anarquista David Graeber, foi a inspiração
de muitos manifestantes fora do Brasil. http://g1.globo.com/globo-news/milenio/videos/t/
programas/v/antropologo-americano-autointitulado-anarquista-fala-sobre-onda-de-protes-
tos-no-mundo/3155123/

52
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

operários precários, trabalhadores desempregados e estudantes de


graduação subjugados pelo endividamento e inseguros quanto ao seu
futuro ─ eles constituem o denominado “precariado”; incluem-se tam-
bém, no caso do Occupy Wall Street, veteranos de guerra, sindicalistas,
pobres, profissionais liberais, anarquistas, hippies, juventude desen-
cantada, trabalhadores organizados, etc. (Alves, 2012, p. 32)

Ênfase no uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)

Comparações também foram feitas com o Movimento Indignados


- 15-M, ocorrido em maio de 2011 na Espanha, em que jovens passa-
ram a acampar em praças públicas a partir de 15 de maio. Na Espanha
e no Brasil, os protestos revelaram uma enorme capacidade para usar
novas e eficazes formas de comunicação. Para Gonçal Mayos, “Elas
surpreendem o poder, os políticos e as administrações, despertando-
-os de suas rotinas ‘partidárias’. (citado por Russo, 2013, Folha de São
Paulo, on line).
“Saímos do facebook!!! Quem falou que era impossível?” Esse “gri-
to de guerra” pode estar revelando que as novas tecnologias para comu-
nicação podem ser um meio de informação eficaz e não substituível do
corpo em ato. O poder desse meio tem sido discutido entre intelectuais
e ativistas, especialmente porque as redes sociais rompem com as orga-
nizações hierarquizadas.
O novo ativista luta por direitos e reconhecimento, não por poder. Não sa-
crifica a vida pessoal em nome de uma causa coletiva ou da glória de uma
organização. Não se referencia por líderes ou ideologias. Age festivamen-
te e sem rotinas fixas, valendo-se muitas vezes da sátira e do deboche. É
multifocal, abraça várias causas simultaneamente. Sua mobilização é in-
termitente. Muitos atuam de modo pragmático, profissionalizam-se como
voluntários, buscam resultados mais do que confrontação sistêmica. Seu
ambiente são as redes sociais, sua maior ferramenta é a conectividade.
(Nogueira, 2013, p. 54)

Essas características, como adverte Nogueira, podem ser perigosas,


caso “se separem dos embates sociais concretos, das tradições enraiza-
das, das instituições que organizam o mundo real” (p. 56).

53
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Ênfase no psicológico

O estado de espírito brasileiro como melancólico, sentimento de im-


potência: “As manifestações trouxeram vida, esperança. É um movimento
de catarse. A insatisfação teve voz”, diz Sylvia Dantas, psicóloga (citada por
Collucci & Werneck, 2013, Folha de São Paulo, 22 de junho, on line). Na
revista Época, de 24 de junho, Kehl, psicanalista, coloca:
Nos últimos dez anos, as eleições de Lula e Dilma levantaram esperanças,
especialmente nos jovens. Mas o modo de fazer política não mudou: con-
tinuamos a nos escandalizar com episódios de corrupção. Isso foi deixando
a sociedade num estado depressivo. O que nos leva a sair dessa expressão
depressiva é essa raiva que eclodiu, a partir das manifestações ... mais espe-
cificamente da reação da polícia. O que vemos não são apenas indignação
– passageira. A juventude que está na rua não tem consciência disso. Está lá
porque quer transformar essa sensação. (Dez analistas explicam o que leva
milhões a protestar, p. 55)

Em uma dimensão mais existencial, a psicanalista Anna Verônica


Mautner, em matéria do Jornal Folha de São Paulo (Opinião, 10 de setem-
bro de 2013), sugere uma possível resposta para as manifestações:
Eu diria que nos esgueiramos para fora das quatro paredes, onde estamos
enclausurados pelas tecnologias modernas, para reencontrar, nas ruas,
em carne e osso, o “outro”... Eu diria que hoje saímos às ruas para mostrar
aos céus que existimos. Diluem-se as reivindicações e se expressa inquie-
tação. Por que acontece assim? Parece que queremos incomodar, mas
não o suficiente para que provoque uma reação. (Mautner, 2013, on line)

Renato Janine Ribeiro, comparando com a Primavera Árabe: “Talvez


o problema, para nós, não seja tanto a opressão, mas o tédio” ─ que para
ele, está na origem do Maio de 68 (citado por Collucci & Werneck, 2013,
Folha de São Paulo).

Ênfase no político

Em matéria sobre um debate ocorrido na USP, no Caderno Coti-


diano, o jornal Folha de São Paulo pontua ideias dos intelectuais da USP.

54
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Para José Álvaro Moisés, os protestos revelam o enorme mal-estar com


a democracia no Brasil. Alfredo Bosi aponta a crise da democracia pura-
mente formal e representativa. Para Sergio Adorno – “um momento de
interrupção da comunicação entre os atores políticos ... Os canais consi-
derados legitimamente aceitos de comunicação e reivindicação parecem
insatisfatórios.” Bernado Sorj entende que a arena da política ainda é a
rua: “Milhares de assinaturas contra Renan Calheiro não levaram a nada,
mas milhares de pessoas na rua, sim”. As ruas revelam a demanda por um
novo tipo de democracia, com mais transparência e participação popular
(Collucci & Werneck, 2013).
Em 08 de julho, no Caderno Poder, da Folha de São Paulo, Paolo
Gerbaudo, sociólogo, assevera:
A noção de povo é a chave para entender esses novos movimentos. A
alegação básica deles é que representam todo o povo, e não apenas uma
classe, na luta contra um Estado visto como corrupto. Isto os diferencia
dos movimentos antiglobalização, que reuniam minorias e tinham um
espírito global. Esses novos movimentos são nacionais, dirigem suas rei-
vindicações a cada país ... É um discurso populista. (citado por Franco,
2013, p. 12)

Ele analisa a quebra de contrato social:


A crítica à partidocracia é legítima. Por outro lado, às vezes parece haver
nos movimentos uma crença quase religiosa de que é preciso eliminar to-
das as mediações. Há uma demanda correta por renovação moral, mas se-
tores mais reacionários... podem explorá-la para fins antidemocráticos ...
A luta principal é por uma nova forma de democracia, na qual os partidos
não poderão mais lidar com os cidadãos apenas de quatro em quatro anos.
(citado por Franco, 2013, p. 12)

Nessa linha de argumento, Nogueira (2013) entende as manifesta-


ções como um alerta para a esquerda partidária e sindical, assim como
para a democracia representativa.
A revolta das ruas foi como o “espírito” de uma nova esquerda, anunciando
aquilo que a velha esquerda deixou de valorizar: mais importante que “che-
gar ao poder” é elaborar novas maneiras de organizar a convivência e com-
partilhar poderes. Uma esquerda mais “cultural” e participativa, refratária
a ordens unilaterais e hierarquias, que deseja uma nova economia, mas dá

55
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

mais destaque à igualdade, aos direitos, às liberdades, aos indivíduos. Ela


mostrou à velha esquerda que a democracia é um valor que precisa ser
praticado no Estado e no cotidiano, que luta política é mais que controle de
votos e recursos de poder. (pp. 55-56)

Depois das ruas....

Passados alguns meses do ápice das manifestações, pouco pa-


recem ter significado para a sociedade e o governo, predominando as
notícias das ações dos Black Bloc7 (BB) e de manifestações anti-copa,
ambas avaliadas negativamente pela grande mídia como expressões de
violência, sem nenhum impacto político concreto, mas que assustam os
governos e reduzem o apoio da sociedade às manifestações. Como caos,
passaram a ser objeto apenas da ordem policial, colocadas à margem da
democracia, como barulho. E como barulho pacífico, teriam produzido
alguma mudança no sistema sociopolítico brasileiro? E os barulhos que
ocorreram em outros países que precederam às manifestações no Brasil:
a Primavera Árabe, os indignados anticapitalistas europeus (com desta-
que aos espanhóis), o movimento estudantil chileno, as ocupações de
Wall Street, quais seus significados? Parece-nos que, embora inúmeros
significados sejam apontados pelos intelectuais, predomina uma crítica
ao sistema capitalista de produção em agonia. A pluralidade das bandei-


7
Utilizamos o termo iniciando em letra maiúscula, em certa medida, atribuindo uma iden-
tidade aos que assumem a tática black bock, o que é considerado um equívoco por alguns
analistas. Para o jornalista e historiador Bruno Fiuza (2013), Em primeiro lugar, usam um
artigo definido e letras maiúsculas para se referir ao objeto, como se “o Black Bloc” fosse uma
organização estável, articulada a partir de algum obscuro comando central e que pressupu-
sesse algum tipo de filiação permanente. Ora, tratar um black bloc desta forma seria o mes-
mo que tratar uma greve, um piquete ou uma panfletagem como um movimento. Talvez a
melhor forma de começar a desfazer os mal-entendidos sobre os black blocs seja combater a
fetichização do termo. Como chegou ao Brasil por influência da experiência americana, essa
tática manteve por aqui seu nome em inglês, mas não é preciso muito esforço para traduzir a
expressão. Por mais redundante e bobo que possa parecer, nunca é demais lembrar que um
“black bloc” (assim, com artigo indefinido e em letras minúsculas) é um “bloco negro”, ou
seja: um grupo de militantes que optam por se vestir de negro e cobrir o rosto com máscaras
da mesma cor para evitar serem identificados e perseguidos pelas forças da repressão. (Black
blocs, lições do passado, desafios do futuro, publicado em 08 de outubro de 2013, no site
Viomundo, o que você não vê na mídia. Disponível no site: http://www.viomundo.com.br/
politica/black-blocs-a-origem-da-tatica-que-causa-polemica-na-esquerda.html)

56
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

ras de lutas expressas nas manifestações brasileiras8 revela que não são
as demandas, em si mesmas, que levaram as pessoas às ruas, mas todo
o sistema sociopolítico. Referindo-se à ocupação de Wall Street, Žižek
(2012) assevera:
Nesta etapa, devemos resistir precisamente a uma tradução assim apressa-
da da energia das manifestações para um conjunto de demandas pragmá-
ticas “concretas”. Sim, os protestos realmente criaram um vazio ─ um vazio
no campo da ideologia hegemônica ─, e será necessário algum tempo para
preenchê-lo de maneira apropriada posto que se trata de um vazio que
carrega consigo um embrião, uma abertura para o verdadeiro Novo. A razão
de os manifestantes saírem às ruas é que estão fartos de um mundo onde
reciclar latinhas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou com-
prar cappuccino da Starbucks com 1% da renda revertida para os problemas
do Terceiro Mundo é o suficiente para se sentir bem. Após a terceirização
do trabalho e da tortura, após as agências matrimoniais começarem a ter-
ceirizar até nossos encontros, os manifestantes perceberam que por um
longo tempo permitiram que seus compromissos políticos também fossem
terceirizados ─ e querem-nos de volta. (p. 18)

Para Žižek, o capitalismo global mina a democracia quando tenta


dela se aproximar. A luta democrática liberal contra os excessos econômi-
cos que produzem a injusta desigualdade social, luta para democratizar o
capitalismo, sem questionar a “moldura institucional democrática do Es-
tado de direito (burguês)” (p. 22) é uma armadilha cruel.

8
Exemplos das frases ostentadas em faixas e cartazes: MENOS CORRUPÇÃO, MAIS EDUCAÇÃO/
LEGALIZE VINAGRE (referência a detidos por portar vinagre no quarto ato)/Mãos para o alto,
R$3,20 é um assalto/Povo unido contra corrupção/Enfia os R$0,20 no SUS/Quem manda é o
povo/Os bandidos de verdade tão em Brasília. Tudo solto/Não à pEC 37/Fora todos os partidos/O
rei da baderna está nu.# VEM PRA RUA!/Saímos do facebook!!! Quem falou que era impossí-
vel?/Joaquim Babosa. Esse é o cara/Fora Renan Calheiros/R$ 26.700,00. Salário de deputado
que trabalha 3 dias por semana/Governantes, aprendam a ceder à vontade do povo, pois esse
é só o começo/PEC 37 PEC 35/Polícia Não me bate, Me proteja/Queremos escolas no padrão
FIFA/Vendo Palio 98/Eu quero é “CURA” para corrupção, transporte, saúde e educação/A LUTA
CONTINUA. CHEGA DE DEMOCRACIA PARA INGLÊS VER. # OGIGANTEACORDOU#VEM PRA
RUA#O BRASILACORDOU/R$ 0,20 TODA REVOLUÇÃO TEM UM ESTOPIM. TÁ LINDO, BRASIL/
REFORMA POLÍTICA JÁ/Brasil, vamos levar o protesto para a urna/O Brasil acordou. A periferia
nunca dormiu/A PM está fazendo na Paulista o que faz todo dia na periferia/Um professor vale
mais que o Neymar/Queremos hospitais padrão Fifa/Dilma, me chama de Copa e investe em
mim. Assinado: Educação/Já temos estádios para a Copa, só falta um país em volta deles/Não
tenho partido. Tenho amor pelo meu país/Ideias são a prova de balas/As ruas falam/Feliciano
a gente não te esqueceu. Só estamos arrumando uma merda por vez!

57
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Precisamente nesse sentido, Badiou está certo ao afirmar que hoje o nome
do pior inimigo não é capitalismo, império, exploração ou algo similar, mas
democracia: é a “ilusão democrática”, a aceitação dos mecanismos demo-
cráticos como moldura fundamental de toda mudança, que evita a transfor-
mação radical das relações capitalistas. (p. 23)

Essa mesma linha analítica está presente entre outros intelectuais


(Alves, G., Davis, M., Harvey, D., Ali, T., Walerstein, I.; Teles, E.; Sader, E.,
Carneiro, H.; Peschanski, J.; e Safatle, V.)9 que apontam a desmistificação
da democracia ocidental nos movimentos dos indignados europeus e nor-
te-americanos (incluímos os brasileiros), mas nem todos entendem que
tais movimentos sejam o embrião de algo novo.
Não podemos ser apenas seduzidos pelo fascínio da contingência indignada
nas praças e ruas. Os novos movimentos sociais de indignados compõem o
quadro da barbárie que impregna a ordem burguesa do mundo, abrindo um
campo de sinistras contradições sociais que dilaceram por dentro a ordem
do capital ─ mas são incapazes, em si e por si, de ir além. (Alves, 2012, p. 37)

Entendemos que, no caso brasileiro, como manifestações de


massa, sem um vínculo antecedente ou consequente com movimentos
sociais antagonistas, não podem ser tomadas como capazes de definir
uma nova ordem, mas revelam o colapso da ordem democrática de
nosso Estado de Direitos. Nesse sentido, Teles (2012), ao discutir se-
gurança pública e democracia, na análise da ação da Polícia Militar do
Estado de São Paulo em Pinheirinhos e o projeto higienista em relação
aos usuários de crack, no centro de São Paulo, problematiza a demo-
cracia brasileira como um dispositivo que cala a voz dos movimentos
sociais.
Nesse sentido, o Brasil realiza, ao menos desde os anos 1990, a construção
de um Estado social sob a ideia de que a democracia se consolida com
base no discurso dos direitos humanos combinado com a lógica de mer-
cado, o que limita a própria ideia de humano. O novo modo de agir, corro-
borado pelo discurso em questão, vem substituindo há algumas décadas


9
Intelectuais que escreveram para a coletânea da Boitempo Editora “Occupy: movimentos de
protestos que tomaram as ruas” sobre os movimentos populares ao longo de 2011 em vários
países. A mesma editora publicou outra coletânea sobre as manifestações no Brasil: Cidades
Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, em 2013, na qual a
ênfase está na usurpação do direito à mobilidade urbana nas grandes cidades.

58
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

o movimento social organizado independente do ordenamento do Estado


de direito. No lugar da ação política, os novos atores sociais são instados
a fomentar, no teatro da fabricação dos resultados, a governança do sofri-
mento por meio de mudanças contabilizadas nos índices de desenvolvi-
mento da humanidade. (p. 80)

Temos discutido os significados e sentidos de nossa democracia li-


beral que produziu um discurso participacionista neutralizador do sentido
político da participação social.
Tratamos aqui como políticos10 os movimentos antagonistas, aqueles
que, segundo Melucci (1982/1991), atingem a produção de recursos de
uma sociedade: “Luta não só contra o modo pelo qual os recursos são
produzidos, mas coloca em questão os objetivos da produção social e a
direção do desenvolvimento” (p. 27). Mas nenhum movimento, para Me-
lucci, poderá ser apenas antagonista, eles não ocorrem em estado “puro”,
sem alguma mediação no sistema político ou na organização social, o que
entendemos reiterar as preocupações com o depois das manifestações,
visto não terem produzido ainda uma organização para além das ações
diretas11. Melucci aponta os riscos da ausência de uma base instrumental
nos movimentos antagonistas.
Um movimento antagonista “puro”, que não consiga uma base instrumen-
tal e não tenha alguma relação com os mecanismos de representação e de
decisão, tende a “fragmentar-se” e a dividir-se ao longo das dimensões que
definem a sua ação. Conflito e ruptura dos limites de compatibilidade se se-
param. O conflito perde a sua raiz social e as suas conotações de antagonis-
mo, e se transforma em busca simbólica de inovação, que toma facilmente
a forma de uma contracultura evasiva e marginal, sem alguma incidência
sobre os mecanismos cruciais do sistema. A ação de ruptura perde as suas
referências conflituais (adversários e aposta em jogo) e torna-se a repetição
desesperada de uma rejeição, que se esgota em si mesma, que encontra na
marginalidade violenta a única forma de expressão”. (1991, p. 28)
10
Ou sentido político, que entendemos como um espaço do dissenso, do confronto entre ad-
versários que lutam pela apropriação dos códigos organizadores do social, ou ainda, que
lutam pelo monopólio da hegemonia, no sentido gramsciano.
11
Embora reconheçamos muitos movimentos relacionados às bandeiras de luta expressas nas
manifestações, incluindo movimentos para democratizar a democracia, tais como: Artigo 19,
Movimento Pela Moralidade Pública e Cidadania, Coletivo Digital, Transparência Hacker, Fó-
rum de Transparência e Controle Social - São Paulo, etc.

59
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Pensamos que essas questões devem ser aprofundadas e podem


nos ajudar a entender os sentidos do “movimento” Black Bloc, criminali-
zado no Brasil e alvo da ação policial12.
Observamos que Melucci distingue os movimentos antagonistas dos
movimentos políticos, esses últimos exprimem um conflito por meio da
ruptura dos limites do sistema político, buscando ampliar a participação
nas esferas de decisão. Essa distinção faz sentido no caso brasileiro, pois,
em que pese o clamor pela democracia estivesse presente nas ruas, re-
clamando sua ausência, temos no Brasil uma “democracia participativa”
formatada nos “Espaços Públicos”, ou nas instituições participativas que
vem se alargando cada vez mais para incluir demandas sociais, mas sem
resvalar os limites dos poderes políticos da democracia representativa, ou
seja, sem ser antagonista.
É interessante observar que as matérias publicadas na mídia jor-
nalística apontam com destaque a demanda por reforma política e a
descrença da população nas instituições políticas brasileiras, sempre fa-
zendo referência aos partidos, parlamentos e governos, sem incluir os
Espaços Públicos de nossa democracia participativa, como as conferên-
cias, conselhos gestores, e outros. Isso indica que tais espaços não fazem
sentido para a população como um todo e, para os que deles participam,
podem representar um espaço saturado (tudo já está definido a priori);
um lugar de lutas instrumentalizado pelos interesses hegemônicos, por-
tanto sem a partilha de poder, como se pretendem, e sem a possibilida-
de do dissenso, o que impede a produção de mudanças substanciais na
vida social.
As manifestações de massa ocorridas no Brasil não apresentaram
uma alternativa para o alargamento da participação para além do que já

Observamos que a reprovação dos BB também foi manifesta na grande mídia por intelectu-
12

ais, como Alba Zaluar. No Caderno A do jornal Folha de São Paulo, seção Tendências/Debates
(em 12 de dezembro de 2013), Zaluar afirma: No Brasil, estamos na fase de consolidar a
democracia, os direitos sociais tão importantes para combater a desigualdade, o respeito
ao bem público, o acatamento ao espaço público ainda mal definido, mal compreendido e
pouco respeitado. Não é hora de impor mal-alinhavadas ideias sobre uma suposta sociedade
futura sem mercado, sem Estado, portanto sem tudo que sabemos fazer parte da democracia
... Ainda bem que o Estado democrático de Direito está se consolidando no Brasil e suas ins-
tituições ainda não foram desconstruídas como propõem Foucault, Negri e outros ideólogos
do neoanarquismo (2013).

60
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

está dado. Parecem demandar uma participação plena, como expresso


pelo Movimento Passe Livre – São Paulo (2013)13:
Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da orga-
nização de seu próprio cotidiano. É assim, na ação direta da população
sobre sua vida ─ e não a portas fechadas, nos conselhos municipais en-
genhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das
outras artimanhas institucionais ─, que se dá a verdadeira gestão popu-
lar. (p. 16)

Por uma necessidade pragmática (vícios do ofício), entendemos que


não é possível a realização de uma democracia tão direta como a ideia
acima parece sugerir. Mais uma vez, recorremos a Melucci (1994), que
sugere a necessidade do espaço público ser continuamente repensado:
Os movimentos sociais, as culturas inovadoras e tudo aquilo que não toma
forma dentro dos canais institucionais deve encontrar possibilidade de se
exprimir e de ser escutado. Na vida cotidiana existe um enorme laboratório
de inovações onde se prepara tudo que permitirá a mudança das institui-
ções, das organizações, do sistema político. O problema central é a passa-
gem desse nível submerso à capacidade de traduzi-lo em novas regras e
novos direitos. Se trata de passar da identificação imediata das novas ne-
cessidades à definição de um espaço comum no qual possa haver espaço
para toda diversidade. (p. 133)

Para finalizar essa breve discussão e ainda provocar a continuidade


do debate em aberto, reproduzo o que considero uma “provocação” de
Žižek (2012):
Os protestos de Wall Street estão apenas começando, e é assim que o início
deve ser, com um gesto formal de rejeição, mais importante do que um con-
teúdo positivo ─ somente um gesto assim abre espaço para um conteúdo
novo. Portanto, não devemos ficar aterrorizados pela eterna questão: “Mas
o que eles querem?” Recorde que esta é a questão arquetípica dirigida por
um mestre masculino a uma mulher histérica: “Todos esses seus lamentos
e reclamações ─ você ao menos sabe o que realmente quer?”. No sentido
psicanalítico, os protestos são efetivamente um ato histérico, provocando o
mestre, minando sua autoridade, e a questão: “O que você quer?” procura
Texto redigido por uma comissão, estabelecida em reunião do Movimento Passe Livre – São
13

Paulo, conforme nota da Editora Boitempo no livro Cidades Rebeldes: passe livre e as mani-
festações que tomaram as ruas do Brasil (2013)

61
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

exatamente impedir a resposta verdadeira. Seu ponto é: “Fale nos meus


termos ou se cale!”.

Isso, é claro, não significa que os manifestantes devam ser mimados e adu-
lados ─ hoje, se é que isso é possível, os intelectuais devem combinar o
apoio integral aos manifestantes com uma distância analítica fria e não
paternalista, começando por sondar a autodesignação dos manifestantes
como os 99% contra o ganancioso 1%: quantos dos 99% estão prontos para
aceitar os manifestantes como sua voz e até que ponto? (p. 23)

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Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

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64
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Greenpeace e Estado: paradoxos no ativismo ambiental


Marcela de Andrade Gomes
Kátia Maheirie
Marco Aurélio Máximo Prado

Introdução

A sabedoria consensual repete de bom grado que o sono de uma razão


embriagada por sua força engendrava os monstros da guerra. Opõe a isso a
figura “modesta” de uma letargia da razão: um sono sem sonhos que deve
engendrar a paz. (Rancière, 1995, p. 70, tradução nossa)

Diante da complexidade das práticas políticas no contemporâneo,


este capítulo, fruto de uma tese de doutorado, busca problematizar a re-
lação estabelecida entre a Organização Não-Governamental (ONG) Gre-
enpeace e o Estado - aqui entendido como os equipamentos e dispositi-
vos de governança, como os setores, legislações e sujeitos relacionados
à gestão pública do país. O interesse em analisar essa relação deveu-se a
um estudo de campo realizado no Greenpeace do Brasil (São Paulo, Rio de
Janeiro e Manaus) e no da Espanha (Madri e Barcelona), o qual revelou
uma relação bastante íntima e paradoxal dessa ONG com o Estado.
Em termos teóricos, recorremos à obra do filósofo Jacques Rancière,
a qual nos auxilia a compreender a política como um campo paradoxal,
composto pela organização, gestão e consenso, mas, também, pelo seu
antagonismo, pela subversão e litígio da ordem vigente. Em linhas gerais,
Rancière (2005) define que a vida coletiva é partilhada de forma estética,
ou seja, por meio da inscrição de alguns regimes de sensibilidades, au-
dibilidades e visibilidades. Esses “sistemas de evidências sensíveis” reali-
zam uma determinada distribuição dos corpos, das funções, das palavras
e das competências, de tal forma que alguns terão parte nessa partilha,
enquanto outros ficarão no grupo do “sem-parte”. Essa partilha que, de

65
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

acordo com o autor, pressupõe união e divisão, faz com que alguns agen-
ciamentos discursivos e modos de experiência sejam visíveis e audíveis,
enquanto outros, de forma ideológica, ficam invisibilizados e são sentidos
como ruídos na sociedade.
A partir dessa leitura, iremos problematizar de que maneira o Gre-
enpeace busca tornar audível o discurso ambientalista na ordem vigente
(capitalista, individualista e consumista), em especial, por meio de sua pa-
radoxal relação com o Estado. Se, em alguns momentos, o Estado emerge
como o inimigo, contra o qual as ações da ONG se voltam para atacá-lo,
por outro, é por meio do diálogo e da parceria com este, que o Greenpe-
ace vislumbra efetivar suas conquistas. Notamos, então, a presença do
próprio paradoxo da política destacado por Rancière – a gestão e a sub-
versão, o consenso e o dissenso – nas diferentes ações elaboradas pelo
Greenpeace. Atos espetacularizados, exagerados, inusitados, criativos e
irreverentes – marcas das chamadas “ações diretas” realizadas pela ONG
– compõem, junto às ações mais formais – como as reuniões periódicas
com o Estado –, o mosaico diverso de atividades e formas de politização
do espaço público elaboradas pelo Greenpeace.
Em termos metodológicos, utilizamos a entrevista aberta, nortea-
da por um roteiro, com quatro participantes que possuem ou possuíam
vínculo com o Greenpeace, por ser funcionário ou ativista dessa ONG. A
partir da compreensão dialógica de pesquisa (Bakhtin, 2010), bem como
do uso da chamada Análise Crítica do Discurso, ressaltamos enunciados,
produzidos na relação pesquisador-pesquisado, os quais nos auxiliaram a
compreender e problematizar a relação paradoxal do Greenpeace com o
Estado, contribuindo, dessa forma, com possíveis análises da cena política
no espaço contemporâneo.

Greenpeace: um breve relato sobre sua história, percursos e princípios

A ONG Greenpeace surgiu no Canadá em 1970 e, desde então, vem


lutando “pelo verde e pela paz”, em prol de uma sociedade mais susten-
tável. Sua formação se deu a partir de um ato no qual um grupo de eco-
logistas tentou interceptar um teste nuclear que seria realizado em uma
ilha no Polo Ártico, nascendo, nesse momento, um de seus princípios, o

66
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

qual é se tornar testemunha ocular diante de um acontecimento que, sob


a perspectiva do Greenpeace, agride o meio ambiente e fere a lógica da
sustentabilidade (Campos, 2006; Gabeira, 1988; Gomes, 2014; Lycarião,
2008, 2010; Marzochi, 2009).
Atualmente, o Greenpeace é uma ONG atuante em 43 países, so-
brevivendo financeiramente, conforme dados fornecidos pela própria
instituição, exclusivamente de doações cedidas por pessoas físicas, sendo
vetada a colaboração fornecida por “pessoa jurídica” (empresas, institui-
ções etc.). Essa recusa em aceitar parcerias e doações de outros atores
coletivos está, fundamentalmente, pautada na busca pela garantia de in-
dependência e autonomia, já que essa ONG atua especialmente contra
o Estado e contra grandes multinacionais. Conforme dados disponíveis
no site Greenpeace, e as informações coletadas em pesquisas realizadas
sobre essa ONG, atualmente a instituição conta com uma rede de apro-
ximadamente 4 milhões de colaboradores e 18 mil voluntários, os quais
realizam diversos tipos de ações em defesa do meio ambiente, buscando
soluções “economicamente viáveis e socialmente justas”, em prol da pro-
teção da biodiversidade e do equilíbrio entre as questões ambientais, so-
ciais e econômicas (Campos, 2006; Gabeira, 1988; Gomes, 2014; Lycarião,
2008, 2010; Marzochi, 2009).
Tendo em vista que não faz parte do objetivo deste trabalho analisar
as diferentes ações do Greenpeace, citamos a seguir uma breve síntese
dos tipos de ações realizadas de forma a, minimamente, contextualizar
essa ONG ao leitor: ações voltadas para a conscientização ambiental
(instalação de postos informativos sobre o meio ambiente, os chamados
“pontos verdes”); coleta de assinaturas para ingressar com alguma ação
que pode ser realizada tanto de forma presencial como virtual (no pró-
prio site da organização há várias petições, abaixo-assinados, fóruns de
discussão etc.); instalações em pontos estratégicos da cidade; a chamada
“photo oportunity”, que tem como objetivo montar uma foto com corpos
humanos para elaborar uma mensagem que seja veiculada na mídia para
chamar a atenção pública; busca de diálogos com o Estado, com intuito
de participar na gestão das políticas públicas ambientais; o trabalho junto
ao Ministério Público Federal, tanto para entrar com uma ação civil públi-
ca como para participar em audiências públicas; a produção de relatórios
científicos; e, por fim, as ações diretas, que se caracterizam pela inserção

67
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

presencial no espaço público de modo a protestar de forma pacífica e não


violenta, as quais são ações de caráter espetacular e midiático.
A seguir, discorreremos sobre nossa perspectiva metodológica e
descreveremos os procedimentos utilizados. Depois, faremos uma breve
descrição de cada participante deste estudo. Por fim, a partir dos concei-
tos da literatura de Rancière – em especial, as noções de “política”, “polí-
cia” e “sujeito político” –, analisaremos alguns enunciados com o intuito
de provocar um debate e uma problematização sobre as múltiplas formas
de relação entre o Greenpeace e o Estado.

Métodos e procedimentos

Recorremos ao uso de entrevistas abertas, realizadas em forma


de diálogo, com sujeitos que são ou eram vinculados ao Greenpeace no
momento da entrevista. A partir de uma perspectiva bakhtiniana, Freitas
(2003) entende que a entrevista se configura como uma construção dia-
lógica em que pesquisador e pesquisado são autores dos processos de
significação construídos. Nesse sentido, não podemos “colocar” o sentido
veiculado nem no participante, nem pesquisador, mas na relação estabe-
lecida entre eles nesse contexto de pesquisa. Sendo assim, toda e qual-
quer interpretação elaborada por parte do pesquisador está relacionada
à sua forma singular de se apropriar e articular os diferentes enunciados
escutados e visualizados, demarcando que o sentido atribuído às falas é
subjetivo, singular e histórico. De acordo com a autora:
O pesquisador é um dos principais instrumentos da pesquisa porque, sendo
parte integrante da investigação, sua compreensão se constrói a partir do
lugar sócio-histórico no qual se situa e depende das relações intersubjetivas
que estabelece com os sujeitos com quem pesquisa. (Freitas, 2003, p. 28)

A partir desse encontro, dialógico por condição, buscamos destacar


enunciados que, em alguma medida, se aproximavam da temática alvo
deste trabalho, isto é, a relação do Greenpeace com o Estado. A partir da
chamada Análise Crítica do Discurso (ACD), corrente europeia orientada
por uma tradição mais política e sociológica (Rueda, 2011), compreen-
demos que a linguagem, histórica e ideologicamente constituída, se re-
vela como reflexo, expressão e constituição dos processos sociais. Sendo

68
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

assim, elegemos discursos que, de alguma maneira, nos aproximavam


dos processos sociais vividos e construídos pelo Greenpeace, a partir da
elaboração singular de cada participante, tomando Rancière como aporte
teórico para sustentar nossa análise, a qual busca construir um olhar in-
terpretativo e problematizador acerca da relação que o Greenpeace esta-
belece com o Estado.

Participantes da pesquisa

Paulo1, brasileiro, 30 anos, formado em História e Ciências Sociais,


especializado em Política Urbana, foi voluntário do Greenpeace por três
anos e depois se tornou funcionário dessa organização. Na época da en-
trevista, trabalhava como Coordenador de Campanha há dois anos. Pâme-
la, espanhola, 37 anos, bióloga, mestrado em Recursos Naturais, na época
da entrevista trabalhava como Coordenadora de Campanha há cinco anos.
Luana, 30 anos, bióloga com mestrado em Biologia Marinha, doutoranda
em Políticas Ambientais Internacionais, trabalhou no Greenpeace durante
cinco anos como Coordenadora de Campanha. O último participante não
autorizou qualquer descrição sobre seu sexo, idade, nacionalidade, assim,
utilizaremos “anonimato” quando o discurso se referir a esse sujeito.

Discussão dos resultados

O Greenpeace possui uma maneira peculiar de se relacionar com o


Estado que nos fez pensar a relação existente entre a política e aquilo que
Rancière (1996, 2006, 2007, 2011a, 2011b) denominou de polícia. O autor
critica a visão tradicional de política, a qual se daria por um processo con-
sensual de gestão das populações e por meio do consentimento das cole-
tividades. Ao contrário, o autor define política como a instauração de dois
mundos em litígio, em que um deles busca sair do lugar do “sem-parte”
na partilha do sensível, almejando se tornar um ser audível e contado no
computo da ordem social. A política seria, então, uma ruptura com um
determinado modo sensível de apreender, pensar, olhar, escutar e sentir a

1
Todos os nomes utilizados são fictícios para garantir o anonimato do participante. Todos os
participantes foram esclarecidos dos objetivos da pesquisa, autorizaram a gravação e uso de
suas falas para publicações.

69
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

realidade, já que ela se “manifesta pelo dissenso, no sentido mais originá-


rio do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do
que é visível, dizível, contável” (Rancière, 1996, p. 372).
Aquilo que as teorias tradicionalmente denominam de política, Ran-
cière (1996, 2006) vai chamar de “polícia”, defendendo que não se trata de
conotar um tom pejorativo, mas, sim, de dar um nome ao modo de gestão
e governança da população. A polícia, então, se define por: “um conjun-
to de processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento
das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a
distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação desta
distribuição” (Rancière, 1996, p. 372).
O autor propõe, nesse sentido, restringir o conceito de política e am-
pliar o conceito de polícia, compreendendo que o dissenso, antes de ser
um conflito entre governo/pessoas, é um conflito sobre a própria configu-
ração do sensível. Conforme o autor, o político se constitui por um tripé
composto pela política (ato precário de causar o dissenso), a polícia (uma
forma de governança) e a igualdade (compreendida como o operador ló-
gico da política que se pauta na condição igual de todo ser humano em
ser falante). O encontro dessas duas lógicas operacionais, a política e a
policial, pautadas no princípio da igualdade, é que possibilita, conforme
Rancière (2011 a), a inscrição de momentos políticos e espaços democrá-
ticos na ordem vigente.
A partir dessa leitura, a de pensar na possibilidade de se construir
uma comunidade política democrática, torna-se necessário incluirmos es-
tes dois processos heterogêneos: a política e a polícia, pois, se um existe
para organizar, classificar e nomear, o outro emerge com intuito de desor-
ganizar, desclassificar e renomear, e, somente com a presença desses dois
movimentos, “politizar” e “policiar”, é que podemos instaurar caminhos
democráticos, ainda que instáveis, na ordem vigente.
A partir dos discursos produzidos no contexto desta pesquisa, no-
tamos um paradoxo presente na maneira do Greenpeace se (des)articu-
lar com o Estado que, podemos pensar, é o próprio paradoxo da política
apontado por Rancière. A política se sustenta em um paradoxo, o qual, de
forma antagonística e simultânea, se configura como uma arena conflitiva
entre a polícia e a política. Em outras palavras, a esfera da política se insti-
tui por meio do consentimento das coletividades, pautado em um sistema

70
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

de legitimação que define lugares, funções e competências e, também,


por atos intermitentes que desregulam e subvertem essa disposição his-
toricamente instituída, denunciando o caráter contingencial da hierarquia
estruturante da sociedade.
Essa posição paradoxal da política esteve, de alguma maneira, pre-
sente em ambos os países. O Greenpeace ocupa, em alguns momentos,
um lugar de oposição frente ao Estado – quando realiza ações diretas con-
tra algumas normas, leis, códigos instituídos – e, também, em outros, se
posiciona em forma de parceria com relação a este, realizando reuniões e
debates periódicos acerca das questões ambientais. Essa posição parado-
xal é apreendida de diversas maneiras pelos entrevistados. Paulo e Pilar
compreendem que essa relação parceiro/adversário é fundamental para
conseguirem transformações mais sólidas e consistentes na sociedade:
Nosso objetivo muitas vezes é espalhar uma mensagem, imagino que seja
um canal, um meio político, um canal de comunicação ... O Green é um
forte canal de comunicação para chegar mais clara uma determinada men-
sagem, que são as questões que o Green acha mais importante ... é uma
forma de fazer denúncia, de mostrar para a população o que as grandes
empresas e, até o próprio Estado, estão fazendo sem considerar a biodiver-
sidade. Ao mesmo tempo que nosso principal alvo é o Estado, ele pode ser
também um de nossos aliados, principalmente o presidente da república.
Acho que é a partir de um movimento político, de fazer pressão... Então, a
presidente tem um status, um alvo importante para a gente atingir. Então a
gente acha que para fazermos política é fundamental esse espaço de diálo-
go com a câmara e com a presidente. Isso ficou cada vez maior pra gente...
A gente viu que no Brasil, a gente pode mexer com as corporações, mas o
poder do Estado ainda é muito forte, e se o poder do Estado é muito forte,
agente tem que conversar com o Estado. (Paulo)

Nos nutrimos de la política, somos un grupo político porque trabajamos


con los políticos para conseguir los cambios, no hay que negar que en las
democracias sanas, y tan poco las insanas, que los políticos son vehículos
para cambiar las leyes, sobretodo son los que poden conseguir mejorar el
Estado. Entonces, tenemos que actuar contra y junto del… (Pilar)2


2
“Nos servimos da política, somos um grupo político porque trabalhamos com os políticos para
conseguir as transformações, não há como negar que nas democracias saudáveis e, também,
nas insanas, que os políticos são os veículos para transformar as leis, sobretudo, são eles que po-
dem conseguir melhorar o Estado. Então, temos que atuar, junto e contra ele” (tradução nossa).

71
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Trazemos duas ações realizadas pelo Greenpeace que se revelam


em um campo empírico interessante para refletirmos sobre as fronteiras
entre a política e a polícia na contemporaneidade. Uma delas ocorreu
na cidade do Rio de Janeiro, em 2011, em que ativistas, fantasiados de
baleias, ocuparam o saguão da empresa OGX3 em oposição à exploração
de petróleo que ela realizava na região de Abrolhos (Bahia). As “baleias”
ficaram acorrentadas no saguão da empresa por 12 horas, esguicharam
“óleo” – falso – em todo o espaço e, por fim, foram retiradas à força pela
tropa de choque4.
A outra ação foi realizada também na cidade do Rio de Janeiro, no
ano de 2009, quando um grupo de ativistas escalou a ponte Rio-Niterói
para estender uma imensa faixa (50 x 30m) com a mensagem: “World
Leaders: climate and people first”5. Nesse período, os líderes do G-20 se
reuniam para debater questões relativas à economia mundial e, em uma
tentativa de chamar a atenção da mídia e da sociedade civil acerca da
importância de incluir o aspecto climático no debate da economia, o Gre-
enpeace realizou uma ação direta com intuito de polemizar tal questão.
Quando os ativistas escalam a ponte Rio-Niterói, estendendo uma
grande faixa com um discurso em defesa da inserção da questão climática
na agenda dos principais países do mundo em termos econômicos, bus-
cam deslegitimar a função da polícia, já que essa é “a ordem do visível e
do dizível que determina a distribuição das partes e dos papéis ao deter-
minar primeiramente a visibilidade mesma das ‘capacidades’ e das ‘inca-
pacidades’ associadas a tal lugar ou tal função” (Rancière, 2006, p. 372).
Nesse caso, quem é que possui título, capacidade e competência
para eleger as principais preocupações mundiais? Ao tentar perturbar
a partilha do sensível, o Greenpeace busca tornar audível e visível um
objeto – a questão climática – no cotidiano das pessoas, tentando confi-

3
A empresa OGX (Óleo e Gás Participações), quando a ação foi realizada, era uma das empre-
sas responsáveis pela exploração de petróleo na região de Abrolhos. O proprietário da em-
presa então era Eike Batista - o uso da máscara dos ativistas remetia a ele -, e o uso da coleira
no pescoço remetia ao episódio em que, na época, sua esposa, Luma de Oliveira, desfilou em
uma escola de samba usando uma coleira com o seu nome.

4
Para maiores informações sobre essa ação, acessar: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/
Noticias/Baleias-ocupam-sede-da-OGX/

5
Para maiores informações sobre essa ação, acessar: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/
Noticias/g20-e-preciso-construir-o-fut/

72
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

gurar um outro status de legitimação ao discurso ambiental. Nesse sen-


tido, “os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que
não tem aí o seu lugar (Rancière, 2006, p. 373), “falam num mundo que
não existe e de coisas que não existem, coisas para cujo enunciado eles
não possuem nenhum título” (p. 376). O discurso da sustentabilidade e
proteção das baleias existe apenas no mundo do Greenpeace, já que no
universo das empresas petroleiras a preocupação com a biodiversidade
é inexistente.
Na ação em que o Greenpeace protesta contra a exploração de pe-
tróleo na região de Abrolhos, a ONG cria um litígio entre agenciamentos
discursivos antagônicos (ambientalistas x capitalistas), os quais possuem
diferentes formas de apreender e organizar a partilha do sensível. De
modo algum esses universos são dicotômicos, mas, se um possui como
norte o acúmulo da riqueza e se sustenta na lógica individualista e con-
sumista, o outro se pauta no princípio da sustentabilidade (Bell, 2000),
que possui como pressuposto a proteção da biodiversidade, a qual inclui
todas as espécies vivas existentes no planeta.
Nesses atos exagerados e escandalosos realizados na esfera públi-
ca – características típicas dos atos políticos (Rancière, 2006, 2011a) –, o
Greenpeace busca desregular o agenciamento discursivo relativo à ex-
tração dos recursos naturais. Hegemonicamente, sob a lógica capitalista,
esse regime discursivo é entendido como propulsor do desenvolvimento
e próspero à sociedade, já que o sistema produção depende, fundamen-
talmente, do petróleo para existir. A lógica sustentável de produção de
energia, dessa forma, não possui um lugar inscrito na ordem simbólica vi-
gente. Por meio da inserção de um objeto que existe (as baleias) somente
no mundo do Greenpeace, a ONG busca configurar um novo sensorium,
uma nova forma de partilhar o sensível, de modo a polemizar o (não)
lugar dessa forma de ver, pensar e sentir a exploração de petróleo no
universo das empresas petroleiras.
Sendo assim, em alguns momentos, entendemos que o Greenpeace
funciona como um sujeito político, pois, por meio de atos dessa natureza,
se coloca no lugar de “um operador de desclassificação, uma potência
de desfazer a estrutura policial que se opõe aos corpos em seu lugar, em
sua função, com a parte que corresponde a essa classe e a essa função”
(Rancière, 2006, p. 378).

73
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Dessa forma, a possibilidade da política emergir é por meio de um


ato inesperado, pois somente dessa maneira conseguirá escapar do or-
denamento da polícia (o princípio do “efeito surpresa” do Greenpeace
busca burlar esses dispositivos de controle). Nesse sentido, sob a ótica de
Rancière, o ato político é inusitado, fugaz, precário e instantâneo, já que,
possivelmente, será identificado e incorporado na partilha do sensível de
uma forma policialesca.
Os sujeitos políticos não existem como entidades estáveis. Existem como
sujeitos em ato, como capacidades pontuais e locais de construir, em sua
universalidade virtual, aqueles mundos polêmicos que desfazem a ordem
policial. Portanto, são sempre atos precários, sempre suscetíveis de se con-
fundir de novo com simples parcelas do corpo social que pedem apenas a
otimização de sua parte. (Rancière, 2006, p. 378)

Partimos da compreensão que as ações diretas do Greenpeace são


formas de colocar em ato a instauração de mundos polêmicos, na medida
em que podem provocar uma perturbação na ordem do sensível, trans-
formando a rua, entendida pela polícia como espaço de circulação, em
espaço político. Por meio dessas práticas, possibilita que o espaço público
discuta assuntos da comunidade, fazendo circular novos discursos, tor-
nando voz o que antes era ruído e, ainda, subvertendo as funções “con-
sensualmente” definidas da partilha hegemônica: quem possui a função
e competência para arguir sobre a exploração de petróleo em Abrolhos?
Se a base política começa com o cômputo litigioso dos não-contados, isso
implica que os sujeitos políticos em geral só existem por sua distinção em
relação a qualquer grupo social, a qualquer parte da sociedade ou função
do corpo social. O que os constitui é o próprio litígio. Os sujeitos políticos
são potências de enunciação e de manifestação do litígio que se inscrevem
como algo a mais, algo sobreposto, em relação a qualquer composição do
corpo social. (Rancière, 2006, p. 377)

O sujeito político é aquele que inscreve algo novo no sensível,


que faz com que essa partilha tenha que se rever para lidar com algo
que antes não era existente, visto e ouvido. A partir dessa leitura, en-
tendemos que o Greenpeace, em alguns momentos, opera como um
sujeito político ao inscrever esse “algo a mais” que não é disseminado
nos dispositivos hegemônicos da ordem vigente, revelando e provo-

74
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

cando um litígio sobre as múltiplas formas de se relacionar estetica-


mente com a natureza.
De acordo com a perspectiva de Rancière (2012a, 2005), o ato polí-
tico ocorre por meio de uma subjetivação política que diz respeito a uma
experiência que amplia as formas de inteligibilidades e sensibilidades do
sujeito em relação ao regime hegemônico, visibilizando corpos que foram
invisibilizados pela polícia, subvertendo a partilha do sensível e desregu-
lando os lugares e funções na ordem vigente. É por meio de atos que pos-
suem como norteador o princípio da igualdade que podemos pensar em
um movimento de emancipação, entendido por Rancière (2009, 2011a)
como a redisposição da configuração do sensível, e da possibilidade de
emergir novas experiências na vida coletiva.
Além desse ato conflitivo frente ao Estado e às grandes corporações,
o Greenpeace busca, também, construir um canal de diálogo, tentando
argumentar e demonstrar seus ideais e projetos para a sociedade, apro-
ximando-se de um modelo mais policial (de governança consensual) do
que de um ato político. A argumentação e a demonstração compõem o
modelo comunicativo da racionalidade política, revelando-se em dois im-
portantes processos de configuração do sujeito político. Essas duas moda-
lidades de subjetivação são entendidas como uma situação de fala a qual
dois locutores se veem confrontados e impelidos a ampliarem seus limi-
tes discursivos. Os locutores são “obrigados a explicitar as normas que os
guiam, a experimentar seu caráter contraditório ou não contraditório. São
assim levados a universalizá-las tendencialmente e a se aproximarem um
do outro neste movimento de universalização (Rancière, 2006, p. 376).
Conforme nos conta Paulo, a estratégia da ação direta é o último
recurso a que o Greenpeace recorre, pois, além de ser algo trabalhoso, é
extremamente caro (as ações podem custar, em média, de 30 a 200 mil
reais). Esse participante entende que é importante e eficiente manter um
canal de diálogo com o Estado. Porém, outro participante (anonimato)
compreende que o Greenpeace “perde seu DNA” quando senta para dia-
logar com o Estado, funcionando não apenas com o, mas exatamente da
mesma maneira que o Estado:
O Green não tem que funcionar como o Estado, fazer acordos e moratórias
que depois não terá como fiscalizar, se nem o Estado consegue, quem dirá
o Green... Este não é o papel do Green... Só para estar na mesa, fazendo

75
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

acordo, muito chique, recebendo dinheiro, porque vai bombar na mídia e


atrair mais colaboradores. Mas depois não vai ter cacife para controlar e
fiscalizar... Acho que o papel do Green é o de “jogar merda no ventilador”,
mostrar todas as falhas que as grandes empresas fazem, é de fazer um tra-
balho junto nas comunidades, para mudar mesmo a consciência ambien-
tal... Não ficar em uma mesa definindo as regras e leis do meio ambiente
em Brasília... (anonimato)

Notamos que essa relação paradoxal do Greenpeace enquanto


polícia (participando nas formas de governança e suas respectivas legi-
timações no que tange às decisões relativas ao meio ambiente) e política
(realizando protestos com caráter de denúncia, subversão, resistência e
enfrentamento) é significada de diferentes maneiras por esses três par-
ticipantes, ora sendo entendida como uma estratégia necessária para
efetivar as transformações almejadas, ora compreendida como um esva-
ziamento do elemento “idealista” da ONG, revelando-se como o próprio
esvaziamento identitário dessa organização.
O ingresso do Partido dos Trabalhadores no Estado brasileiro tem
trazido novos questionamentos para o Greenpeace que, novamente, são
paradoxais, podendo ser fortalecedores, no que diz respeito à emergência
de novos sujeitos políticos, como também de sua própria dissipação no
campo da polícia. Para a participante Luana, o fato de o Greenpeace ser
independente o protege dos mecanismos policialescos de cooptação:
Acho que a independência é um fator bem importante, porque o Greenpe-
ace pode fazer oposição com qualquer empresa pois ele não tem “rabo
preso” com ninguém. Por exemplo, o que ocorre muito no nosso atual go-
verno, os movimentos sociais que antes era oposição, hoje muitos deles
são cooptados no governo do PT, não são mais oposição, inclusive alguns
recebem ajuda financeira do Governo. Com o Greenpeace isso nunca vai
acontecer, ele não vai receber ajuda do governo, não vai receber ajuda de
empresas, só vai receber ajuda das pessoas... (Luana)

A relação que vem sendo estabelecida entre o Governo e os diferen-


tes sujeitos coletivos desde o ingresso desse partido político em 2003 foi
objeto de análise da pesquisa de Machado (2013), a qual ressaltou o risco
da diluição do caráter político dos atores quando esses se adentram na
lógica policial, em especial quando suas lideranças passam a ocupar car-

76
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

gos públicos e administrativos no Estado. Do mesmo modo, a complexida-


de da relação entre política/polícia no Greenpeace é acentuada quando
escutamos o discurso de Paulo, referente à relação do Greenpeace com
alguns setores do atual Governo brasileiro:
o Ministro ligava pra gente e dizia: vocês não estão a fim de fazer uma ação?
Eu sozinho não estou conseguindo. Eu sento na sala com 30 ministros, só
que só tem 1 ou 2 que entende o que eu estou falando, os outro 28 não
entendem e são contra. Só eu falando aqui sozinho no Governo, eu não
faço barulho. Venham fazer um protesto, a gente dá um jeito. Vem aqui na
porta e encham o saco, porque aí eu posso falar: tá vendo, presidente? A
sociedade civil tá protestando. E aí eu me coloco na reunião ministerial de
uma forma diferente. (Paulo)

Esse convite e consentimento por parte do Estado para a realização de


um protesto pode, em alguma medida, ser o próprio elemento esvaziador
do caráter político das ações do Greenpeace, pois, se o ato político emerge a
partir de um litígio entre dois mundos que disputam diferentes formas de par-
tilhar o sensível, nessa esteira, como pensar em um ato político consentido?
Este discurso de Paulo também nos aponta que não é possível com-
preender “o Estado” como uma instância única, homogênea, coesa e ab-
soluta. Ao contrário, trata-se de um espaço composto por múltiplas forças
heterogêneas e antagônicas que buscam encontrar uma parte para que
seu agenciamento discursivo tenha legitimidade. Assim, o telefonema do
ministro pode tanto indicar uma “policiação” do ato político como uma
tentativa de inscrever um momento político dentro da ordem policial,
buscando, neste último caso, a colaboração de outros movimentos sociais
e coletivos políticos.
A gente tem vivido um drama nos últimos dois anos, não só no Brasil, mas
no mundo, é que, como a gente sempre faz ação em lugar público, por
exemplo, na câmara dos vereadores, eles não querem que apareça na mí-
dia a segurança pegando a gente. Então, vem aquele discurso, geralmente
daqueles deputados mais bonzinhos, de pessoas que são articuladas aos
movimentos sociais e tal.. “ah, deixa os meninos protestarem”, “sem bater,
sem bater!”. De um tempo pra cá, esta ordem não chega mais [referindo-se
à ordem de agir de forma a impedir o protesto]. Então a gente faz uma in-
tervenção e qual o efeito? “Ah tá... então, continuando...” Assim, entende?
A ação perdeu o fim, porque a política não age mais contra a gente! (Paulo)

77
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

As ações diretas podem ser entendidas como atos (performáticos,


midiáticos, estéticos, criativos, irreverentes, inusitados...) que provocam
uma desregulação do sensível, fazendo com que as pessoas pensem e sin-
tam a realidade de uma outra maneira e de um outro lugar. Contudo, para
que ocorra um processo de subjetivação política, é necessário que a arena
discursiva, argumentada e demonstrada, ocorra entre os mundos litigio-
sos. Podemos pensar que esses processos também ocorrem em outros
tipos de atividades do Greenpeace, como a produção dos relatórios cien-
tíficos, publicação de dados estatísticos, elaboração de materiais denun-
ciando as falhas ambientais de grandes empresas e, fundamentalmente,
por meio da interlocução direta com o Estado.
Mas, ao mesmo tempo em que podemos pensar que essa interlocu-
ção é o elemento que traria o caráter político das ações do Greenpeace,
é justamente aí que a política escapa e é capturada pela polícia. Nesse
momento, não há mais uma relação de litígio e dissenso entre Greenpe-
ace e Estado – ainda que discordem sobre seus ideais –, mas, sim, uma
relação de parceria para elaborar a governança e gestão da sociedade, ou
seja, a polícia.
A reabsorção do político pelo estatal seria o fim da própria política,
pois se sustenta no governo modesto e gestionário da riqueza e da distri-
buição dos corpos e funções, fazendo desaparecer o exercício do dissen-
so. A política está sempre ameaçada a se dissipar, e seu principal risco não
é o desaparecimento, mas sim a confusão com seu contrário, a polícia: “o
risco dos sujeitos políticos é confundir-se de novo com partes orgânicas do
corpo social ou com esse próprio corpo” (Rancière, 2006, p. 378).
Como nos aponta Rancière (2006), não há uma lacuna existente en-
tre a política/polícia, pois a polícia buscar incorporar a política em sua lógi-
ca de funcionamento, capturando-a de tal maneira que sua função política
acaba por esvair: “O principal desaparecimento da reflexão e ação política
é a sua identificação com o corpo de uma comunidade... mas se a política
é algo diferente de polícia, ela não pode se encaixar em tal identificação...”
(p. 379), pois, se isso ocorrer, o ato político perde seu caráter dissensual,
litigioso e fissurador da lógica vigente.
Nesse sentido, Rancière localiza o sujeito político em um hiato, in
between, no intervalo entre a lógica de subjetivação e a lógica de identi-

78
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

ficação, em que em alguns momentos esporádicos irá conseguir interpe-


lar a ordem policial mas, em seguida, será capturado por ela. Portanto,
pensar em democracia significa pensar em processos de emergência de
sujeitos políticos que rompem o consenso, desregulam a partilha do sen-
sível, denunciam a hierarquia e provocam novas experiências, ainda que
de forma fugaz e instantânea, mantendo-se em constante exercício de
inscrever o dissenso.
A impressão que fica é que, quando o conjunto desses atos políti-
cos irá alcançar o ponto máximo de argumentação e reconfiguração do
sensível - quando conseguem marcar uma reunião com o presidente da
República, por exemplo -, a política se dilui nos dispositivos e agenciamen-
tos policialescos que regulam a ordem vigente. Isso, a priori, não é bom
ou ruim. Esse movimento de intensificação e dissipação é a condição da
própria política, pois, às vezes, a política “alcanza entonces un punto en
que ella también se anula (Rancière, 2009, p. 14), já que o consenso “es la
forma de transformación de la política en policía” (Rancière, 2012b, p. 93).
O Greenpeace nos revela a precariedade da fronteira entre a política
e a polícia, mostrando que essa ONG se situa no intervalo entre as duas
funções, ora como produtora de dissenso, ruptura e desordem da polícia,
ora como a própria polícia, elaborando formas e regras de governabili-
dade. Exatamente no momento em que mais se aproxima de se caracte-
rizar como um sujeito político, a política se esvai e em seu lugar emerge
a polícia, demonstrando que, como afirma Rancière, o sujeito político é
ocasional, raro e intermitente.

Considerações finais

Por fim, ressaltamos que só é possível pensar na criação de proces-


sos democráticos quando resguardamos o caos dissensual dos sujeitos
políticos, que, mesmo sendo domesticados pela ordem policial, possuem
um poder emancipatório de produzir novas maneiras de viver, pensar, en-
tender e sentir o espaço comum. A polícia não inviabiliza a política, já que
“não se deve esquecer também que, se a política emprega uma lógica to-
talmente heterogênea da polícia, está sempre amarrada a ela” (Rancière,
1996, p. 44).

79
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Nesse sentido, compreendemos que a articulação, em forma de en-


frentamento ou de diálogo, que o Greenpeace realiza com o Estado não
desqualifica suas ações políticas. Ao contrário, multiplicam-se os canais
de interpelação da ordem vigente, ampliando os alcances de suas lutas.
Assim sendo, o Greenpeace pode ser entendido como um dispositivo
que, em alguns momentos, fortalece a democracia, a qual só é possível
ser pensada por meio da garantia de “formas disensuales de combate,
de vida y de pensamento colectivo” (2012b, p. 148) que se endereçam à
verificação da igualdade.
Retomando a epígrafe inicial, ressaltamos que é importante coexis-
tir a “letargia da razão consensual” e o seu desmonte, ou seja, existir a
população e o povo, a vigília e o sono. Se pretendemos construir espaços
democráticos e emancipatórios na sociedade, é preciso que essa razão le-
tárgica se faça presente. Porém, é de suma importância que ela vá dormir
e se embriague de vez em quando, enfraquecendo seu sistema de contro-
le e de vigília, permitindo que o novo possa emergir, possibilitando que a
política construa sonos com sonhos.
Pensar em política a partir do princípio da igualdade é pensar, tam-
bém, na sua impossibilidade, por isso temos que incluir o ato de sonhar no
campo da política, pois somente a partir do escândalo o que é sonhar com
um mundo igualitário, é que podemos fazer irromper no real fissuras as
quais permitam o escoamento do diferente, desenhando novas inscrições
no tecido social, tornando-o mais igualitário e emancipatório.

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Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

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81
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A produção de documentários como estratégia em


Psicologia Comunitária
Elisa Harumi Musha
Erich Montanar Franco

Introdução

O presente trabalho é um relato de atividade de estágio em Psi-


cologia Comunitária realizado em parceria com a União de Núcleos As-
sociações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco
(UNAS). A experiência descrita e analisada abaixo foi desenvolvida em
conjunto com um grupo de seis jovens que fazem parte de um projeto
denominado Jovens Alconscientes (J. A.). Desde 2010, essa iniciativa vem
ganhando grande visibilidade por meio da mídia e redes sociais. O projeto
desenvolve ações voltadas para conscientização sobre a importância do
uso consciente da bebida alcoólica. O J. A. é formado por um grupo de 20
adolescentes que, sob a orientação de um coordenador e de um educa-
dor, desenvolvem atividades de inclusão social, culturais ou esportivas, de
acordo com a realidade local. Além disso, busca-se a formação de multi-
plicadores do conhecimento adquirido, incluindo a participação cidadã.
A formação dos jovens ocorre por meio de diversas oficinas ligadas
às áreas de comunicação, educação e promoção da saúde. Os jovens par-
ticipam do projeto durante dois anos e recebem uma bolsa de estudo fi-
nanciada pela Companhia de Bebidas das Américas (AmBev).
A demanda mais importante apresentada pelos integrantes da ofi-
cina foi a conscientização dos jovens de Heliópolis acerca do consumo
excessivo do álcool. É importante destacar que, embora essa demanda
esteja alinhada aos objetivos institucionais do projeto J. A., ela surgiu dos
próprios jovens durante discussões sobre os interesses coletivos e possí-
veis atividades. A partir desses questionamentos, os jovens se mobiliza-
ram e afirmaram seu interesse na criação de vídeos que pudessem ins-

82
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

pirar reflexões sobre o tema do uso da bebida alcoólica. Nesse sentido,


sugeriu-se a organização de uma oficina de produção de documentários.
Assim, um dos desafios foi o de proporcionar uma experiência que
instigasse tanto a discussão sobre o uso do álcool quanto a autonomia
dos jovens. Foi necessária atenção para que o trabalho com os jovens ofe-
recesse um espaço que não focasse apenas na atividade como um fim
em si mesmo, mas que também pudesse servir como um dispositivo que
possibilitasse o questionamento sobre a própria realidade em que estão
inseridos.
Conforme os parâmetros da Psicologia Social Comunitária, busca-
mos participar da criação de possibilidades para compartilhar saberes e
práticas com grupos comunitários e articular as demandas com possibili-
dades concretas de ação.
Nosso objetivo consistia em mobilizar os participantes para o debate
sobre os riscos do consumo excessivo do álcool a partir do registro dos
posicionamentos de diversos atores sociais da comunidade e de outros
setores da sociedade organizada. Embora o foco das atividades tenha sido
seu processo, isto é, a produção do documentário como dispositivo para
apropriação crítica da realidade, seu produto audiovisual também serviria
como estratégia disparadora de reflexão e debate em atividades multipli-
cadoras, executadas pelos membros da comunidade.
Durante as discussões realizadas ao longo da oficina, adotamos a
perspectiva de que a autonomia está relacionada com a capacidade que
cada sujeito tem de se apropriar de sua história e, a partir disso, assu-
mir o papel de protagonista e agente transformador do cotidiano que o
circunda (Freitas, 2000). Por esse motivo, tornou-se importante criar um
espaço no qual os jovens pudessem participar ativamente das tomadas
de decisões e da construção do vídeo, tendo em vista que as emoções e
afetos são mediações fundamentais para o desenvolvimento social e para
a práxis da Psicologia Comunitária (Lane, 1996).

Problematização do uso do álcool e outras drogas

A produção e o consumo de álcool e outras drogas tem sido objeto


de estudo e debate em diversos campos do conhecimento e tem gera-

83
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

do intensos embates entre as muitas perspectivas, que incluem posicio-


namentos morais, esforços para garantir direitos e propostas de atuação
com foco na saúde. Além disso, há que se considerar que tanto o tráfico
de drogas como a venda de bebidas alcoólicas integram a dinâmica econô-
mica da estrutura capitalista. Essa dinâmica é influenciada pela repressão
policial, que impulsiona as margens de lucro e o monopólio do comércio
por grupos armados. Isso contribui para que o tráfico de drogas seja uma
das atividades econômicas mais rentáveis (Nascimento, 2006). Garcia,
Leal e Abreu (2008) enfatizam que o consumo de drogas tornou-se um
produto com mercado e marketing estabelecidos e que gera um lucro de
aproximadamente 500 bilhões de dólares ao ano.
Ao mesmo tempo, os meios de comunicação difundem uma pers-
pectiva moralista e criminalizante dos usuários de drogas ilícitas, mas
abrem espaços publicitários que banalizam o uso do álcool (Noto et al.,
2003). Para Coelho (1980), os meios de comunicação alimentam a indús-
tria cultural que contribui para a alienação do indivíduo e o forçam a subs-
tituir o questionamento pelo entretenimento.
Pereira, Jesus, Barbuda, Sena e Yarid (2013) destacam que o Siste-
ma Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) previne o abuso
e privilegia a atenção e a reinserção social. Além disso, normatiza as es-
tratégias de repressão à produção não autorizada e ao tráfico. Segundo
os autores, o desafio consiste em evitar desequilíbrio entre as ações de
saúde e o controle repressivo do tráfico.
Silveira e Moreira (2005) retomam levantamento da Organização
Mundial de Saúde (OMS) e afirmam que aproximadamente 10% das po-
pulações dos centros urbanos de todo o mundo fazem uso abusivo de
drogas. Para ele, a ausência de políticas claras e concretas de atenção mo-
tivou a instalação de propostas que visam, exclusivamente, à abstinência
e à repressão. Contudo, essas medidas contrariam as diretrizes do Minis-
tério da Saúde brasileiro, que propugnam a defesa da vida e da atenção
integral, a fim de prevenir, tratar e reabilitar dependentes químicos. Dessa
forma, para evitar a aplicação de modelos calcados no julgamento moral
e na criminalização do usuário, preconizam-se medidas de redução de da-
nos (Dias et al., 2003). Nesse sentido, pode-se afirmar que há um profun-
do descompasso entre a Legislação Federal e as práticas de controle dos
usuários de drogas.

84
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Atualmente, o debate sobre o tema do uso e do abuso de drogas


vem se ampliando, juntamente com as críticas à ineficácia das ações pu-
nitivas sobre o usuário. Evoca-se o direto constitucional à saúde como
norteador das estratégias de cuidado com os usuários de drogas lícitas
ou ilícitas. Ao mesmo tempo, denuncia-se a banalização do uso abusivo
do álcool e a ação repressora do Estado, dirigida, prioritariamente, aos
grupos sociais de baixo poder aquisitivo. Esse debate traz, em seu bojo,
a temática da legalização das drogas, seus pressupostos e suas implica-
ções. As perspectivas em relação ao problema do álcool e outras drogas
devem ser encaradas como a expressão de compromissos, interesses e
ideologias pertinentes ao campo político contemporâneo (Tralhão, 2003).
Garcia, Leal e Abreu (2008) enfatizam que o processo de formulação e
implementação da política pública sobre drogas deveria corresponder às
necessidades dos cidadãos, mas tem sido afetado por pressões externas e
por interesses das indústrias privadas.
Segundo Tralhão (2003), as novas estratégias legais para o proble-
ma da droga tendem a ser apresentadas em termos empíricos e factuais.
Inventariam, por exemplo, qual proporção da população utiliza drogas,
quais os tipos de substâncias consumidas, em que frequência e intensida-
de o são e quais os seus efeitos. Para ele, as várias abordagens objetivistas
não são produtivas para se avançar nesse debate, pois seus conteúdos e
formas estão a serviço de posicionamentos políticos, morais e ideológicos.
Por sua vez, Pereira et al. (2013) apontam os avanços conquistados no ca-
minho da humanização das formas de enfrentar os agravos resultantes do
uso de drogas. Os autores apontam que, gradualmente, antigos dogmas
fundamentados na repressão estão sendo superados, dando lugar a ações
de prevenção e de tratamento mais adequados, com enfoque na saúde
pública, e articulados com os ideais da bioética e da proteção dos usuá-
rios. Nesse contexto, a Política Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas
deve ser modificada por novas estratégias de enfrentamento contra o uso
abusivo de drogas (Garcia et al., 2008).
Retomando a perspectiva da Psicologia Comunitária, entendemos
que esse ramo da Psicologia pode contribuir para os debates e ações
relacionados ao uso abusivo de drogas por meio da metodologia de
pesquisa-ação. Tal metodologia, originária da Educação Popular e da An-
tropologia Social, é um instrumento precioso para atuar em comunida-

85
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

de. Para Góis (2008), outra característica da Psicologia Comunitária é sua


orientação para uma práxis libertadora, que busca o reconhecimento das
potencialidades da comunidade a partir da compreensão do modo de vida
das pessoas. Nesse sentido, entendemos que a Oficina de Documentário
pôde servir como práxis libertadora, ao possibilitar que cada jovem exer-
citasse seus diferentes modos de expressão. De acordo com a autora, a
formação e a atuação em coletivos são relevantes por ensejarem novas
formas de atuação instituinte e por favorecerem as sociabilidades contra-
-hegemônicas.

O uso do documentário como estratégia de problematização

A opção metodológica pela oficina de documentário foi motivada


pela grande disseminação de novas tecnologias. Essa metodologia permi-
tiu a construção de uma narrativa própria e crítica acerca de elementos
da realidade vivida pela comunidade do bairro de Heliópolis, na cidade
de São Paulo. Além disso, o processo de elaboração do documentário foi
uma oportunidade para experimentar e reconhecer o papel mediador das
produções audiovisuais.
Segundo Vicentini e Domingues (2008), na década de 70 observou-
-se o surgimento de diversas tecnologias, entre as quais o vídeo, que ga-
nhou destaque ao ser considerado um instrumento de uso comum nos
anos 80. Atualmente, passou a ser utilizado pela população em geral, de-
vido à sua evolução técnica, ao barateamento e à popularização dos equi-
pamentos. Eles afirmam que:
A popularização da Internet e o custo reduzido das filmadoras e máquinas
digitais conferiram às pessoas a possibilidade de produzir e distribuir o pró-
prio material audiovisual. A princípio, acreditou-se que tal processo coloca-
ria a disposição do professor um recurso barato, acessível e com potencial
para dinamizar as atividades didático-pedagógicas. Por isso, multiplicaram-
-se os programas de incentivo ao uso do vídeo em sala de aula, passando
a constar, inclusive, como política estratégica para superar o descompasso
da escola em relação ao monumental avanço dos meios de comunicação de
massa que se operava fora dela. (p. 03)

Figueiró, Neto e Sousa (2012) abordam o alcance do trabalho do ci-


neasta e as possibilidades de intervenção social por meio do documentário.

86
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Para eles, é possível transformar o cotidiano através do uso socialmente en-


gajado do recurso audiovisual, criando condições para a produção de novas
leituras de mundo e formas de ser que sejam menos excludentes para de-
terminados coletivos. Contudo, para que o sujeito possa compreender como
se dá a passagem do imaginário para o real, é necessário ter em vista que
o documentário só é possível com a participação de pessoas reais, que não
atuam em um drama de ficção. A fala das pessoas envolvidas no vídeo pro-
picia uma produção imagética com um forte compromisso com a realidade.
Nesse sentido, o documentarista/pesquisador se coloca em campo
não apenas com a intenção de coletar dados, mas também de produzi-los,
à medida que assume uma postura de sujeito ativo, disposto a entender
a produção de subjetividade. Nas palavras de Figueiró et al. (2012, p. 60):
“produzimos intervenções, linhas de fuga, bifurcações, que permitam que
a vida siga seu fluxo por caminhos mais potentes”.
O potencial educativo dos recursos audiovisuais vem sendo discu-
tido pelo Ensino de Ciências com o intuito de repensar os pressupostos
dessa modalidade, por meio de uma contextualização na interface entre
Ciência-Tecnologia-Sociedade (Alves & Messeder, 2011). Segundo Von
Linsingen, Pereira e Bazzo (2003, p. 119):
A expressão ciência, tecnologia e sociedade (CTS) procura definir um campo
de trabalho acadêmico cujo objeto de estudo está constituído pelos aspec-
tos sociais da ciência e da tecnologia, tanto no que concerne aos fatores
sociais que influem na mudança científico-tecnológica, como no que diz
respeito às consequências sociais e ambientais.

Para que as propostas de abordagem CTS sejam realmente coloca-


das em prática, uma nova configuração curricular na abordagem de temas
de relevância social é necessária. Ela deve problematizar as construções
históricas e a utilização de diferentes tipos de materiais didáticos confec-
cionados com conteúdos do cotidiano dos jovens. Esses materiais devem
estar de acordo com a necessidade de construção da cidadania científica
e tecnológica, ao incorporar ciência e tecnologia ao trabalho pedagógico e
levar em conta a transdisciplinaridade no estudo dos conteúdos. De acor-
do com Santos (2001), as seguintes características devem estar presentes,
ao selecionar os materiais para CTS: (a) responsabilidade socioambiental
dos cidadãos, (b) influências mútuas, (c) relação com as questões sociais,
(d) ação responsável, (e) tomada de decisões e (f) resolução de problemas.

87
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

É possível afirmar que os recursos audiovisuais podem contribuir


para a melhoria do processo ensino-aprendizagem, pois possuem funções
que variam desde a introdução a um determinado tema até a motiva-
ção do grupo para trabalhar o assunto escolhido. Por meio do conteúdo,
da linguagem e da comunicação, os vídeos ganham qualidades que são
essenciais para envolver o espectador em um processo significativo de
aprendizagem (Alves & Messeder, 2011). Além disso, o recurso audiovisu-
al codifica a realidade por meio de elementos simbólicos que são próprios
à cultura do grupo que produziu a obra e às pessoas nela retratadas (Rosa,
2000).
Nossa proposta apoiou-se na concepção de que o saber e a ação não
podem ser separados. São inerentes um ao outro e, no limite, ao saber
em ação. O tripé formado por ensino, pesquisa e extensão é questionado,
propositivamente, por uma visão integrada dessas modalidades da ação
universitária, que propõe educação-pesquisa-aprendizagem em ação.
Substituímos a noção de extensão como acúmulo de informações por
construção partilhada de conhecimentos e práticas (Sandeville Jr., 2010).
Por fim, não é possível desprezar as tensões que podem surgir en-
tre as experiências comunitárias típicas e as abordagens segundo as quais
deve haver uma nova inserção da Universidade nas lutas e nas contradi-
ções urbanas. Além disso, devem-se considerar as implicações de caráter
ético, estético, político e ideológico, inerentes a essa nova inserção. Essas
tensões irrompem do choque de valores e de visões de mundo entre es-
sas diversas realidades. No entanto, dessas tensões e contradições podem
advir benefícios mútuos. As comunidades beneficiam-se desse intercurso
com a Universidade, uma vez que dele surgem novos vetores de pensa-
mento e de reflexão crítica acerca do contexto social em questão; por sua
vez, a Universidade ganha com a análise ampliada e ora mais concreta e
mais específica de seus objetos de estudo: as comunidades.

Relato da experiência

Aproximação do campo de ação


A experiência relatada dividiu-se em duas partes. Na primeira, o
esforço foi concentrado em atividades de aproximação e diálogo com

88
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

atores sociais engajados em diversos projetos da UNAS. Buscou-se o re-


conhecimento das demandas e uma maior apropriação da história, das
potencialidades e do universo simbólico das pessoas envolvidas. Nessa
aproximação entramos em contato direto com o Movimento Sem Teto,
o Centro da Criança e Centro do Adolescente, os Jovens Alconscientes, a
Rádio Heliópolis e uma unidade de Medidas Socioeducativas. Sobre essa
aproximação, Sandeville Jr. (2010) afirma que a cidade e a paisagem são
espaços de produção social, de experiências, significações, intersubjetivi-
dades e contradições; fazem parte do locus fundamental do processo de
aprendizagem, de reflexão e da ação criativa.
Transitando entre os diversos espaços ocupados pelos movimentos
sociais, dialogamos com integrantes de diversos grupos. Além de realizar
pesquisa sobre as necessidades dos integrantes do Movimento Sem Teto
em parceria com seus dirigentes, também participamos de uma oficina de
intervenção urbana com grafite, dirigida ao público infantil dentro do Polo
Cultural de Heliópolis. Aproximadamente 100 crianças participaram da
confecção de cartazes utilizados em uma manifestação contra a violência
no bairro. Naquele momento, ainda não havíamos nos inserido no proje-
to com os Jovens Alconscientes, contudo, acreditamos que a participação
nessas atividades contribuiu para que houvesse um maior entendimento
das dinâmicas institucionais, além da criação de vínculos com as pessoas
da comunidade.
Fomos surpreendidos por um lugar no qual se respira a coletividade.
Ao mesmo tempo em que se sentia o distanciamento da estagiária em
relação a essa realidade, devido a diferenças culturais e econômicas, eram
claras as possibilidades de participação para a futura psicóloga. A UNAS
se mostrou um espaço político e organizado de grande efervescência: ao
mesmo tempo em que se destacam inúmeras necessidades associadas à
histórica negação de direitos da classe trabalhadora, observou-se intensa
mobilização na luta pela garantia dos direitos negados. Também foi evi-
dente o quanto essa entidade se caracteriza como um espaço politizador
e potencial para a elaboração de propostas para a superação das dificul-
dades. A cidadania está intrinsecamente ligada à experiência concreta
dos movimentos sociais que conhecemos. Neles, a luta por direitos e pela
ampla construção da democracia constituiu a base fundamental para a
emergência da cidadania.

89
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Como Dagnino (1994), analisamos que o modo de inserção e parti-


cipação da UNAS junto à comunidade sugere uma ampliação da noção de
cidadania, pois:
ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação
social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura
e da política. Incorporando características da sociedade contemporânea,
como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de
novo tipo e de direitos de novo tipo, a ampliação do espaço da políti-
ca, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco
e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática.
(Dagnino, 1994, p. 133)

Assim, afirmar a cidadania como estratégia significa enfatizar o seu


caráter de construção histórica, definida por interesses concretos e práti-
cas de luta pela sua contínua transformação. Lutas que são representadas
a partir de todos os projetos que a UNAS realiza, tendo como proposta a
formação de um cidadão autônomo que tem o direito de ser atendido em
suas diversas necessidades – sejam elas culturais, de saúde, de educação,
de lazer ou de moradia.

A produção coletiva do documentário


A convite da UNAS, fomos conhecer o projeto Jovens Alconscientes
e refletir com eles sobre as possibilidades de ação comunitária junto aos
seus membros. No primeiro encontro da estagiária com os J. A., 20 jo-
vens de ambos os sexos estiveram presentes. É importante ressaltar que
esses jovens estavam concluindo a formação como membros do projeto
e, portanto, sua participação na oficina de documentário deveria ocorrer
de forma independente e sem a ajuda financeira na forma de bolsa de
estudo. Uma vez expostos os objetivos e a duração da oficina, seis dos 20
jovens demonstraram interesse pela atividade oferecida. Todos os parti-
cipantes eram do sexo masculino, suas idades variavam de 16 a 21 anos,
alguns já haviam concluído o ensino médio e outros o estavam cursando.
Eles também integravam o J. A. há dois anos e participam ativamente de
atividades comunitárias que envolvem a promoção de saúde e promoção
da paz e da educação. Todos participaram de forma livre e esclarecida. No
caso dos jovens com menos de 18 anos, a autorização dos pais é condição
para o ingresso nas atividades do projeto Jovens Alconscientes.

90
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

A atividade teve por objetivo gerar um espaço que possibilitasse


o debate sobre os meios de comunicação e sua ação mediadora da re-
alidade, a problematização sobre o consumo excessivo do álcool e de
outras drogas, discussões sobre a importância dos documentários e a
experiência da produção de uma narrativa própria sobre o problema
em questão.
O processo de documentação audiovisual foi composto por quatro
etapas práticas e reflexivas: (a) Problematização da proposta do cinema
documentário e das produções audiovisuais, compreendidas como ação
mediadora da realidade; (b) Elaboração de projeto de vídeo documentário
(delimitação dos objetivos, escolha dos participantes, apropriação dos ins-
trumentos de registro, papel do entrevistador e modo de interação com
os entrevistados); (c) Execução do projeto (entrevistas, debate sobre as
entrevistas, organização do material e edição) e (d) Apresentação e deba-
te dos vídeos produzidos com outros membros da comunidade.
Durante os primeiros encontros, criamos um cronograma com as ati-
vidades a serem desenvolvidas. Foram elas: elaboração de uma proposta
de entrevista, gravação de entrevistas com as pessoas selecionadas para
participarem do vídeo, criação de um roteiro para o documentário, edição
do vídeo e apresentação para a comunidade seguida de debate.
Nos encontros iniciais, ocorreram discussões espontâneas sobre
os seguintes temas: o papel dos meios de comunicação, as propagandas
para o consumo de bebidas alcoólicas e o uso da bebida alcoólica entre
os jovens.
Durante as atividades, os participantes refletiram sobre as contra-
dições presentes no espaço midiático e como as peças publicitárias estão
prioritariamente dirigidas aos jovens. Um dos integrantes comentou: “é...
é engraçado né! Porque você vê a propaganda que diz: se dirigir não beba.
Mas depois eles passam várias propagandas de bebida falando que é bom
beber o tempo todo! Isso é contraditório!” (Igor, 16 anos, cantor de rap)1.
Os jovens abordaram a imposição de padrões de beleza e a compe-
titividade associada ao consumo das bebidas e o quanto esse comporta-
mento passa a ser reconhecido como uma condição para a inserção nos

1
Para garantir o sigilo, foram criados nomes fictícios para todos os jovens que participaram
das atividades.

91
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

grupos. Surgiram entre eles as seguintes reflexões: “o moleque passa a


acreditar que precisa se vestir de tal jeito pra ser aceito” (Bruno, 21 anos,
educador do J. A.), “se a maioria dos amigos bebe, ele também vai beber
porque a mídia divulga uma imagem de que é legal!” (André, 19 anos,
locutor na Rádio Comunitária de Heliópolis).
Após os debates iniciais, evidenciou-se a pressão dos interesses co-
merciais sobre o comportamento dos jovens em relação às bebidas alco-
ólicas e foram feitas associações entre o consumo e a alienação. Ao se-
rem solicitados a esclarecer esse conceito, um dos integrantes do grupo
comenta: “ah, as pessoas fazem as coisas sem saber o porquê e depois
seguem o que a massa faz!” (Rubens, 20 anos, sonoplasta na Rádio Comu-
nitária de Heliópolis).
Essas questões foram retomadas em diversos momentos, quando se
analisou o quanto a linguagem publicitária atingia o adolescente. Essas dis-
cussões foram fundamentais, pois, conforme Carvalho (1998), a produção
publicitária enfatiza o individualismo e difunde, de forma mais ou menos
explícita, valores, mitos e ideais que sustentam uma ditadura da beleza,
da juventude e do consumo como forma de existência e pertencimento.
Em função dessas reflexões, o grupo optou por gravar as primeiras
entrevistas dentro da quermesse, evento realizado pela UNAS com o pa-
trocínio da Companhia de Bebidas das Américas (AmBEV). Os documen-
taristas estavam interessados em conversar com pessoas que comerciali-
zavam bebidas e verificar seus posicionamentos acerca do uso de bebidas
alcoólicas por jovens em situações de entretenimento. Assim, gravaram
entrevistas com duas pessoas responsáveis pelas barracas de comida e de
bebidas. Foram abordados dois aspectos: (a) a opinião do comerciante em
relação ao uso de álcool entre os jovens na quermesse e (b) se eles tinham
o costume de vender bebida para menores de 18 anos.
Nessas entrevistas, os jovens constataram a dificuldade das pessoas
em tratar do tema abertamente diante de uma câmera. Nessa atividade
emergiram contradições que explicitaram a tensão entre os interesses pú-
blicos e privados. Ficou evidente para os jovens que registravam imagens
e discursos que, apesar do conhecimento sobre a proibição da venda para
menores de 18 anos e da afirmação dos riscos do consumo dessas bebidas,
na quermesse prevalecem os interesses econômicos que se acentuam em

92
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

função da pobreza. Entre os entrevistadores, as dificuldades econômicas e


o individualismo típico da sociedade contemporânea foram considerados
como variáveis importantes para esses posicionamentos contraditórios.
Nas demais entrevistas, os participantes puderam indagar sobre as
opiniões relacionadas ao consumo do álcool entre jovens e sobre o consu-
mo dos próprios entrevistados. De maneira geral, foi possível detectar as
diversas formas de consumo e debater a liberdade individual para o uso
do álcool e de outras drogas. Nesse momento, refletiu-se acerca da im-
portância da tomada de consciência sobre a complexidade do problema,
que envolveria aspectos culturais, políticos e econômicos. A partir disso, o
grupo expressou a necessidade da obtenção de informações mais precisas
sobre os riscos à saúde e sobre a questão da legalização das drogas. Dessa
forma, houve uma busca de informações sobre os serviços de saúde e as
diretrizes das políticas públicas para o atendimento de usuários de álcool
e drogas, as tensões e interesses frente à legalização e a proibição das
drogas e sobre a violência e o tráfico.
A etapa final consistiu na apresentação do documentário seguida
de debate que ocorreu no Polo Cultural, espaço educativo comunitário
associado a um centro educacional infantil. O documentário recebeu o
título “Álcool para quem? Para que o álcool?”. Participou ativamente do
evento uma nova turma dos Jovens Alconscientes. Durante o debate com
os jovens, surgiram questionamentos importantes: “Qual foi o objetivo de
vocês com o documentário? O que vocês queriam passar?”. Um dos docu-
mentaristas respondeu:
a gente não quis dar uma resposta pronta, a ideia não foi dizer se o álcool
é bom ou ruim. Porque é a pessoa que vai dizer isso. O que a gente fala é
sobre o uso consciente... Acho que o documentário, ele teve como objetivo
deixar o ponto de interrogação pra pessoa que assistiu! Pra que ela possa fi-
car pensando, refletindo sobre o que viu. (Lucas, 19 anos, educador do J. A.)

O diálogo entre o documentarista e a expectadora ilustra o senti-


mento de apropriação do espaço coletivo para o debate e o reconheci-
mento da importância da postura problematizadora frente à realidade.
Além disso, a resposta oferecida indica o claro entendimento da proposta
da modalidade cinematográfica do documentário.

93
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Nesse evento, todos os participantes puderam relatar e avaliar sua


experiência de participação na oficina de documentário. Os jovens enfati-
zaram que as filmagens e a edição não foram uma experiência nova, mas
apontaram a importância das reflexões compartilhadas de forma divertida
e da liberdade de expressão durante as atividades. Nas palavras de um
dos participantes:
Teve brincadeiras, mas não foi só uma brincadeira. Acho que nos nossos
encontros a gente conseguiu compartilhar as ideias. Quando a gente se
reunia sempre acabava discutindo outras coisas, que não eram só sobre
o álcool, mas que também tinha relação. A oficina serviu pra gente po-
der compartilhar, cada um pensa diferente e teve essa troca de ideias
sobre coisas que são importantes. (Felipe, 19 anos, estudante na Escola
Técnica)

Dessa forma, reafirma-se a premissa de que o grupo é uma experi-


ência histórica resultante de relações que ocorrem em um cotidiano que
reflete diversos elementos da estrutura social, expressos nas contradições
que emergem no grupo que articula indivíduo e sociedade, vivência sub-
jetiva e realidade objetiva (Lane, 1984).
Frente a isso, é possível enfatizar que o trabalho de produção audio-
visual consistiu em uma ação cultural que codificou a realidade a partir de
símbolos fornecidos pela cultura partilhada do grupo que produziu a obra,
bem como as pessoas que são retratadas na obra (Rosa, 2000). Apesar
de ser uma intervenção pontual, o processo grupal de produção e com-
partilhamento crítico do documentário demonstrou ser uma importante
estratégia em Psicologia Comunitária, pois seus objetivos consistem em
ampliar o poder de transformação dos atores sociais envolvidos e impli-
cá-los em ações voltadas para mudanças sociais e psicossociais em sua
comunidade (Montero, 2003), além de priorizar o desenvolvimento de
consciências críticas e de identidades orientadas por concepções éticas
solidárias (Freitas, 2000).
Após o término das atividades, o conselho gestor da UNAS passou a
discutir a possibilidade da reprodução do documentário para fins pedagó-
gicos e, devido à grande aceitação da plateia, aventou-se a possibilidade
da realização de uma nova oficina com a temática bailes funk.

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Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Considerações finais

A construção do documentário auxiliou a mediar a discussão sobre


uso da bebida alcoólica entre os jovens. Foram vividas diversas situações
que envolveram tomadas de decisão, participação nas discussões, en-
gajamento com a atividade proposta e disponibilidade para resolver os
conflitos. A oficina de documentário proporcionou um papel ativo aos jo-
vens na construção de uma visão crítica do mundo, durante a apropriação
do recurso do audiovisual. Isso favoreceu a elaboração e difusão de uma
narrativa própria acerca dos problemas associados ao álcool e às drogas.
Nesse sentido, tem-se em vista a necessidade de os moradores das comu-
nidades se apropriarem da história e das possibilidades de transformação
do lugar onde vivem.
Destaca-se, ainda, que a atividade realizada impactou a comunidade
de forma mais ampla à medida que o resultado final do trabalho pôde ser
compartilhado e debatido com outros jovens. Além disso, o documentário
produzido poderá ser utilizado de forma crítica e autônoma em outras
ações dentro do bairro.
É importante abordar a reciprocidade transformadora da oficina de
documentário realizada, pois consistiu em uma importante atividade profis-
sionalizante para a estagiária que esteve mais diretamente ligada à atividade
desenvolvida. A vivência grupal e a aproximação do cotidiano da comunida-
de do bairro de Heliópolis, por meio do contato com os movimentos sociais,
foram vitais para um processo de apropriação e produção de conhecimentos
em Psicologia Comunitária, que ocorreu de forma associada à politização da
estudante e reafirmou a importância de práticas em psicologia dirigidas ao
fortalecimento da cidadania. Com efeito, os estágios para a formação de pro-
fissionais em psicologia têm se apresentado como um importante espaço
para a execução de ações que integram ensino, pesquisa e extensão. O pro-
jeto foi extensionista, pois permitiu que a comunidade se beneficiasse dos
conhecimentos produzidos na universidade, teve caráter educativo (para os
membros da comunidade e para a estagiária) e científico, à medida que per-
mitiu o registro, a análise e a divulgação da experiência proposta.
A respeito das dificuldades encontradas para a realização da oficina,
apontamos a falta de um horário fixo para a realização das atividades, o

95
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

que acarretou encontros em finais de semana e em feriados. Contudo,


isso foi necessário para reunir todos os participantes e garantir que o tra-
balho pudesse ser discutido em conjunto. Nos últimos encontros, em que
as edições finais do documentário foram realizadas, houve maior dificul-
dade para reunir todos do grupo. Destaca-se o fato de que a participação
no projeto J. A. tem grande impulso das bolsas de estudo, assim, findo o
período de formação, poucos jovens se dispuseram a participar de uma
nova proposta para refletir e pensar sobre a questão do álcool e das dro-
gas. Nesse sentido, cabe refletir sobre a longa duração da oficina e sobre
a possibilidade de atividades mais pontuais e mais abertas para outros
membros da comunidade.

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97
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Política, ambiente e comunidade: interfaces entre


mundialização e Psicologia Social
Marco Antonio Sampaio Malagodi
Luis Guilherme Galeão-Silva
Gustavo Martineli Massola

Introdução

As questões ambientais tornaram-se, nos últimos 30 anos, centrais


para a compreensão da dinâmica social global. A análise dos fenômenos
socioambientais não pode prescindir, porém, de uma rigorosa compre-
ensão dos processos psicossociais que se relacionam, direta ou indireta-
mente, com tais fenômenos. Em sua acepção mais ampla, essas questões
implicam uma crise civilizatória de amplas proporções, cujas consequ-
ências espraiam-se para um questionamento dos próprios fundamentos
da civilização ocidental, pautados por uma cisão entre natureza e cultura
que está posta como problema fundamental por toda a tradição filosófica
da antiguidade (Guba, 1990). A concepção da natureza como um outro
frente à cultura e o esforço milenar para dominá-la tornam-se um grave
problema quando se demonstra, pelo uso dos próprios meios técnicos de-
senvolvidos para realizá-lo, que tal esforço poderia redundar, caso fosse
bem-sucedido, na aniquilação da própria cultura. Neste sentido, a crise
ambiental é maior que o esgotamento dos recursos naturais disponíveis
para a reprodução da existência humana (Gerhardt & Almeida, 2005).
A eleição da preocupação com este esgotamento pode, em outro
sentido, ser lida como uma ação estratégica para privar a percepção desta
crise de seus elementos potencialmente mais transformadores.
Assim, a crítica radical à sociedade de consumo e suas consequên-
cias, presente na origem do ambientalismo como movimento social e po-
lítico, tem sido enfraquecida pela adoção hegemônica de estratégias de

98
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

educação ambiental alienantes que responsabilizam o indivíduo, na sua


condição de consumidor final, pelas mais graves consequências da referi-
da crise. Entendemos que a Psicologia Social deve posicionar-se no centro
de tal debate, e neste aspecto, sua ausência neste campo de discussões
não implica apenas a perda de uma oportunidade histórica para fazer va-
ler seu papel nas Ciências Sociais. O próprio debate torna-se incompleto
e fragmentário ao desconsiderar a instância psicossocial como uma das
mediações logicamente necessárias para que se possa compreender a
origem e a possível superação desta crise. A crise ambiental é, então, ao
mesmo tempo um fenômeno econômico, político e psicossocial, gerador
de tensões sociais de diversos tipos e fomentador de ações de resistência
organizada que, se constitui um fenômeno social de grande importância,
não deixa de relacionar-se intrinsecamente com fenômenos de caráter
psicossocial.
É assim que alternativas de apropriação material e simbólica
da natureza, territorialidades alternativas, resistem e surgem em
diversos lugares, impulsionando a emergência de inúmeros conflitos
socioambientais e criando redes de sociabilidade mundiais organizadas
em torno da tentativa de resistir a este processo e criar caminhos e
condições para a expressão de alternativas identitárias, constituindo o
fenômeno que, por oposição à globalização hegemônica, tem recebido
o nome de “mundialização” (Agrikoliansky, Sommier, Cardon, & Lévêque,
2005). A mundialização implica o reconhecimento da globalização em seu
caráter hegemônico, contraditório e produtor de desigualdades. Reconhe-
ce também que uma de suas principais consequências é a destruição dos
modos de vida baseados na solidariedade e sua substituição por relações
mediadas pelo capital. Por outro lado, não entende este processo como
inevitável ou inescapável e propõe que a luta contra a opressão e a desi-
gualdade se dê em inúmeras frentes.
Buscamos destacar aqui algumas destas formas de resistência. Es-
pecificamente, aquelas que se expressam na interface entre fenômenos
comunitários e identitários e suas relações com o território (algumas das
quais consideraremos como territorialidades em disputa). São discutidas
então duas perspectivas analíticas sobre tais formas de resistência: por
um lado, a perspectiva da identidade psicossocial e sua relação com o am-
biente; por outro, a perspectiva dos conflitos ambientais.

99
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A primeira é derivadados estudos oriundos da Psicologia Ambiental


Crítica que encontram na noção de enraizamento de Simone Weil (1996)
inspiração e fundamento. A partir desta perspectiva, crise ambiental e glo-
balização são entendidas como fenômenos cuja compreensão exige a in-
vestigação sobre a relação entre a constituição da identidade psicossocial
e o lugar, em sentido físico e também social, ou, sob outra designação ter-
minológica, entre identidade e território. A crise ambiental representa ao
mesmo tempo uma crise na relação entre identidade e lugar, relação que,
nas sociedades tradicionais e mesmo durante boa parte do século XX, po-
dia ser tomada como necessária, mas que o dinamismo das sociedades
do pós-Guerra levou muitos pensadores a questionarem. As sociedades
em que se desenvolveu a crise ambiental são as mesmas sociedades em
que o indivíduo se encontra, em grau elevado, “livre” de suas amarras ge-
ográficas. Procuraremos mostrar que tal coincidência pode ser entendida
tendo como mediação os fenômenos estudados pela Psicologia Social. Es-
ses fenômenos implicam formas organizadas de reação que estabelecem
situações específicas de conflito e luta.
A segunda perspectiva enfatiza a (re)ação de sujeitos sociais no
terreno, historicamente vulnerabilizados, que acionam situações carac-
terizadas como conflitos ambientais, quando estão sob a ameaça de des-
territorialização por outras práticas sociais de agentes sociais mais pode-
rosos (representados por empresas de celulose, hidrelétricas, obras de
infraestrutura do Estado, indústrias, resorts, agricultura e pesca industrial,
etc), associados à operacionalização de uma lógica econômica desenvolvi-
mentista, hegemônica1. Na abordagem dos conflitos ambientais (Acselrad,
2004a), vemos que os modos de apropriação (práticas sociais) da base
material da sociedade devem ser compreendidos tanto em sua dimensão
política (material, de poder) quanto cultural (simbólica, discursiva, ima-
ginária), quando novas identidades se (re)criam, em meio à emergência
e vivência de tais conflitos sociais, gerando, nas últimas décadas, novas
formas de resistência.
Se, na primeira perspectiva, o trabalho problematiza a relação entre
fenômenos socioambientais e psicossociais, defendendo o valor heurísti-
co da Psicologia Social para a compreensão desses fenômenos e sua re-


1
Resgatam-se aqui as reflexões já realizadas anteriormente em outros trabalhos (Malagodi &
Siqueira, 2012; Malagodi, 2012; 2013).

100
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

levância para o estudo das possibilidades e características da resistência


coletiva à globalização na contemporaneidade, na segunda perspectiva,
os próprios conflitos originados deste quadro serão o objeto de discussão,
apresentando-se algumas de suas características e algumas das formas
pelas quais se mostram, além de se apresentar algumas reflexões sobre
sua gênese específica.
Por fim, fazemos um balanço de tais contribuições colocadas como
desafio ao campo da Psicologia Social, e mais amplamente, para o avanço
de novas solidariedades na produção de saberes interdisciplinares, neste
momento de transição paradigmática.

Crise ambiental, identidade e enraizamento: o campo da Psicologia


Social

De acordo com Tassara e Ardans (2004), podemos chamar de Polí-


tica Ambiental a construção intencional e compartilhada do futuro e po-
demos chamar de ambiente a organização humana no espaço total, que
compreende os seus fragmentos territoriais. Neste sentido, ambiente é a
organização humana no sistema-mundo e a Política Ambiental confunde-
se com a própria política em geral, como a práxis humana voltada para
a consecução do bem comum. Se o ambiente, assim, é uma construção
humana, podemos chamar de crise ambiental este fenômeno amplo e
complexo pelo qual o ambiente é construído de forma subjugadora e não
participativa, e pelo qual, em decorrência, os indivíduos sentem-se alie-
nados dos próprios espaços que habitam e constroem. A crise ambiental
não se refere apenas à degradação dos recursos naturais, mas à própria
possibilidade de problematizar esta degradação (Gerhardt & Almeida,
2005), aproximando-a de modelos distópicos de futuro, ou seja, opostos
aos padrões de desejabilidade esperados de uma humanidade emancipa-
da, quer dizer, livre da dominação.
Tal crise deve ser pensada tendo como pano de fundo o fenôme-
no da globalização. Podemos entender a globalização como a expansão
mundial das instituições que surgiram na modernidade europeia e que
carregam consigo uma forma civilizatória. Esta globalização relaciona-se
dialeticamente com fenômenos tecnológicos e culturais, e as reverbera-
ções em um campo produzem reverberações em todos os outros cam-

101
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

pos ou esferas sociais ao mesmo tempo (Castells, 2007, p. 43). Também


produzem reverberações no âmbito psicossocial, pois marcam as identi-
dades individuais como colonizadas e subjugadas e impedem o surgimen-
to de alternativas culturais e identitárias. Tassara e Ardans (2006, p. 16)
afirmam: “Todas as formas de alienação identificadas podem ser consi-
deradas como formas de alienação política geradas pela exclusão e pelo
domínio subjugador no transcorrer da socialização e da constituição da
identidade”. Isso ocorre, pois, simultaneamente, a globalização hegemô-
nica cria modelos de desejabilidade inquestionáveis e subsume todas as
formas culturais no processo de criação e compartilhamento de informa-
ções, recusando a existência de processos culturais mais antigos, como os
rituais, as instituições e as formas de narrativa (Benjamin, 1975).
A identidade psicossocial, em seu nível individual, pode ser apreen-
dida através das representações de si em resposta à pergunta “quem és”
(Jacques, 2002). A identidade, que historicamente se relaciona com as ex-
pressões do eu, tem sido objeto de atenção variável ao longo da história,
em conformidade com a valorização ou desvalorização do indivíduo e da
individualidade (Fromm, 1983; Jacques, 2002, p. 159). De maneira geral,
podemos definir identidade como a forma pela qual os indivíduos perce-
bem a si mesmos e aos outros, discorrem sobre suas experiências, comu-
nicam e avaliam sua situação em novos ambientes, expressam pontos de
vista e visões de mundo, e interpretam e raciocinam acerca de suas vidas
cotidianas em novas situações (Martel, 2006).
Devemos à Psicologia Ambiental o estudo de um componente da
identidade que é fundamental para a presente discussão: a identidade de
lugar. A psicologia ambiental, como muitas áreas da Psicologia, é ao mes-
mo tempo uma área científica relativamente nova e antiga. Como campo
de pesquisa, dirige sua atenção não “para o indivíduo singular, mas sim
para as relações pessoa-ambiente” (Kruse, 2004, p. 134). Definida assim
sucintamente, de acordo com Tassara (2004, p. 5), a psicologia ambiental,
em sua origem, “conota-se com o comportamentalismo de Watson”, ten-
do, ao longo do século XX, sofrido a influência de outras escolas, como a
gestaltista. Como subdisciplina da psicologia, a Psicologia Ambiental apre-
senta atualmente uma estrutura institucional, composta por organizações
de ensino e pesquisa; organizacional, composta por associações profissio-
nais; e de publicações, bem delimitada, o que não permite mais entendê-

102
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

-la como simples enfoque dentro de outras subdisciplinas psicológicas


(Günther, 2004). Mas, frente à crise ambiental mencionada anteriormen-
te, a Psicologia Ambiental tem um objeto, segundo Tassara (2004), que
se mimetiza, inter-relaciona e confunde com a própria crise ambiental,
exigindo uma compreensão complexa e ampla do conceito de ambiente
que incorpore a dimensão da subjetividade e que requer que se entenda o
ambiente como algo produzido pelo homem mediante decisões tomadas
coletivamente no âmbito das políticas públicas.
Tal entendimento leva necessariamente à crítica do processo de for-
mulação dessas políticas públicas e exige a participação dos indivíduos,
participação que apresenta como condição essencial a elaboração das re-
sistências individuais ao trabalho participativo. A elaboração de tais resis-
tências exige a crítica aos pressupostos trazidos por esses indivíduos nas
situações de interação por eles vivenciadas, ou seja, a uma atitude refle-
xiva em relação aos pressupostos das crenças partilhadas pelos referidos
indivíduos. Num processo político democrático, esta é a tarefa da Psicolo-
gia Social, e, assim, conforme Tassara e Ardans (2007), “a Psicologia Social
é esse processo de desconstrução crítica e o conhecimento dele derivado
sobre a vida social como um todo”. Assim, a Psicologia Ambiental que as-
sume criticamente a crise ambiental como objeto de reflexão e a remete
a uma crise política da razão – e, por este motivo, podemos chamá-la de
“psicologia ambiental crítica” – se insere nos esforços da Psicologia Social
pela construção de uma sociedade mais democrática. Por isso, é possível
afirmar que a psicologia ambiental crítica é uma “psicologia social voltada
para subsidiar, pelo conhecimento e pela ação, o enfrentamento da crise
ambiental” (Tassara, 2004).
Muitos estudos em Psicologia Ambiental destacam a existência de
vínculos identitários específicos com o ambiente vivido. Uma das expres-
sões cunhadas para entender esta relação é a de apego ao lugar, “um vín-
culo afetivo que as pessoas estabelecem com áreas específicas onde pre-
ferem permanecer e onde se sentem seguras e confortáveis” (Hernández,
Carmen Hidalgo, Salazar-Laplace, & Hess, 2007). Outra é a de identidade
de lugar, isto é, aquelas dimensões do eu, como a mistura de sentimen-
tos a respeito de contextos físicos específicos e conexões simbólicas com
os lugares, que definem quem nós somos (Raymond, Brown, & Weber,
2010). As tentativas de conceituar tais noções, compreender suas causas

103
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

e consequências e, fundamentalmente, medi-las, produziram milhares de


pesquisas nos últimos 20 anos. A importância deste tema pode ser lida
por vários prismas, sendo um deles a recente percepção de que os luga-
res, considerados como um local específico que em sua expressão concre-
ta não se iguala a qualquer outro lugar (Devine-Wright & Clayton, 2010),
perdem crescentemente o papel que possuíam nos processos de sociali-
zação e na dinâmica social (Castells, 2007). É amplamente aceito que os
lugares marcavam a vida social dos grupos humanos pré-modernos de tal
forma que, de maneira geral, não se podia separar a dinâmica e a estrutu-
ra social de tais grupos dos lugares por eles ocupados. O desenvolvimento
das instituições modernas levou o Ocidente a uma situação oposta, que se
acentua contemporaneamente. Pode-se falar no caráter fantasmagórico
dos lugares (Giddens, 1991), na existência de processos de desterritoriali-
zação (Ianni, 1997) ou na crescente dependência das regiões frente a ou-
tras regiões do globo (Santos, 1997) - de qualquer forma, o problema aqui
considerado diz respeito à crescente interdependência econômica e social
que marca nossa época em escopo global e parece tornar os lugares es-
pecíficos intercambiáveis e pouco importantes por eles mesmos. Os efei-
tos deste fenômeno em nível individual podem ser muito variáveis, indo
desde uma atitude blasé e indiferente face aos lugares habitados até um
sentimento de alienação e perdimento que, segundo Ianni (1997), marca
a psicologia do homem contemporâneo. Outros autores, ao contrário, en-
tendem que a globalização e a mercantilização dos ambientes tornaram
os lugares mais, e não menos, importantes em uma era dominada pela
ameaça do aquecimento global. Por esta razão, pesquisas sobre a relação
eu (self)-ambiente continuam a ser fundamentais para a pesquisa em Psi-
cologia Ambiental (Devine-Wright & Clayton, 2010).
Apego ao lugar, identidade de lugar, senso de lugar, enraizamen-
to, identidade ambiental e conectividade com a natureza são algumas
das expressões cunhadas pela Psicologia Ambiental para se referir a esta
relação entre eu (self) e ambiente ou lugar (Devine-Wright & Clayton,
2010). De modo geral, as diferenças entre os fenômenos indicados por
tais expressões não são claras e há um longo caminho a ser percorrido
para que essas noções ganhem rigor suficiente para permitirem análises
precisas sobre a relação à qual se referem. Mas inúmeros estudos têm
sido publicados com a intenção de investigar algumas das causas e con-
sequências de tal relação. Ente as consequências que mais atenção têm

104
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

atraído, está a relação da força do vínculo com o lugar e a participação


em atividades coletivas voltadas ao bem comum. Uma das razões para
sua importância vem da relação entre participação e defesa do ambien-
te, no sentido da oposição à degradação ambiental e do combate à crise
ambiental entendida de forma mais ortodoxa (Lewicka, 2010). Mas no
sentido em que aqui se utiliza, a relação entre vínculo com o lugar e par-
ticipação ganha relevância por outro motivo.
Podemos partir do princípio de que o enfrentamento das condições
geradas pela globalização hegemônica exige formas de ação coletivas,
em decorrência da impossibilidade, no presente contexto histórico e so-
cial, de o indivíduo fazer frente às determinações estruturais que susten-
tam este modo de subjugação (Adorno, 1995). A discussão a respeito das
formas pelas quais os indivíduos resistem à globalização hegemônica ou
enfrentam suas conseqüências exige, assim, que se estudem as formas
de associação voltadas ao enfrentamento dessas condições e, enfim, que
se estudem as formas de associação civil em geral.
Para Scherer-Warren (2002), associações civis são “formas orga-
nizadas de ações coletivas, empiricamente localizáveis e delimitadas,
criadas pelos sujeitos sociais em torno de identificações e propostas
comuns” (Scherer-Warren, 2002, p. 42). Trata-se, na forma como estão
aqui definidas, de organizações formais, originadas, muitas vezes, de in-
teresses específicos de seus integrantes.
Conforme a autora, o associativismo indica a participação dos su-
jeitos na esfera pública: através da criação dessas organizações, os indi-
víduos podem gradualmente constituir uma identidade coletiva que lhes
permite, por hipótese, formular reivindicações coletivas e criar novos va-
lores e normas para a vida em sociedade. Tais associações formam a base
para os movimentos sociais, que surgem como “síntese dessas múltiplas
experiências referenciadas a um campo simbólico” (Scherer-Warren,
2002, p. 45). Uma das dimensões fundamentais do associativismo é a da
espacialidade. Com isso, a autora entende a relação específica entre as
tecnologias da informação e as demandas territoriais, que faz com que
tais demandas sejam continuamente redimensionadas, na medida em
que o âmbito da localidade passa a ser invadido por problemas globais
e, inversamente, problemas locais podem projetar-se, a partir das no-
vas tecnologias, em escala global (Scherer-Warren, 2002, p. 53). Dessas

105
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

questões, surge a necessidade de discutirmos o problema do território


ou do “lugar”.
O problema da espacialização desses fenômenos grupais pode nos
sugerir um recorte para seu estudo. Na medida em que o que interessa
ao presente trabalho são os grupos que se formam a partir de demandas
fortemente vinculadas ao território, podemos, assumindo o sentido terri-
torial deste termo, utilizar para tais organizações a expressão associação
comunitária. Assim, as associações comunitárias são organizações formais
cuja origem grupal e cujo princípio de dinamismo psicossocial estão rela-
cionados a demandas fortemente vinculadas ao território ocupado pelos
seus participantes.
O problema coloca-se, neste nível, sob o signo da sociabilidade.
Scherer-Warren (Scherer-Warren, 2002, pp. 52-54) sugere que a noção de
“rede” pode ser proveitosa para compreender os processos de sociabili-
dade dos movimentos sociais. Para a autora, formam-se redes sociais do
cotidiano, que se originam das redes sociais primárias tradicionais, atra-
vessadas por redes virtuais (ligadas às tecnologias da informação), proces-
so este que é responsável pela formação de novas identidades na era da
informação. Tais redes são expressão das tradições e das raízes históricas
locais da comunidade, e podem cruzar-se com redes sociais construídas
no tecido social associativista. Estas últimas são portadoras de utopias
de transformação e apresentam caráter propositivo. O movimento social,
sob este ponto de vista, estrutura-se a partir do encontro das redes sociais
do cotidiano, que apresentam intensas relações de solidariedade, com as
redes sociais associativistas, que apresentam caráter estratégico. Uma as-
sociação de bairro ou uma ONG tende a aparecer no entrecruzamento
destas duas formas de redes sociais.
Ao psicólogo social, porém, é importante compreender se as de-
mandas originárias dos grupos primários apresentam marcas significa-
tivas de sua territorialidade; se essas marcas indicam a possibilidade
de sobrevivência de identidades individuais e coletivas enraizadas numa
sociedade crescentemente marcada pelo espaço de fluxos; se tais mar-
cas permanecem durante a aproximação frente às redes associativistas;
e se há a possibilidade de permanência quando da aproximação entre
esses grupos e os aparelhos de Estado. Em suma, o problema é se a mo-
tivação para a constituição de grupos populares que surge de demandas

106
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

locais permite aos mencionados grupos que se articulem de uma manei-


ra mais permanente e autônoma, e até mesmo resistente ao processo
de globalização, podendo conduzir à proposição de alternativas à globa-
lização hegemônica, que, neste específico sentido reportado, poderiam
ser consideradas altermundialistas (Agrikoliansky et al., 2005). Este ob-
jetivo, de relevância teórica para uma psicologia social dos fenômenos
da globalização, geraria um conhecimento sobre relações entre grupos
geneticamente vinculados a fortes demandas territoriais e o crescimen-
to de uma originalidade nas manifestações de sua potência de ação
frente à globalização hegemônica, apontando a existência de formas de
enraizamento, ou territorialização da identidade, que indicariam, por
sua vez, a permanência da importância dos espaços locais, e que seria
reconhecível na constituição identitária enraizada dos participantes de
grupos locais.
Há uma dimensão temporal no conceito de enraizamento de Simo-
ne Weil. Esta dimensão é expressa por uma determinada relação com o
passado e com o futuro. A revolução, no sentido do movimento políti-
co que deseja transformar a sociedade de forma a que as pessoas pos-
sam ter nela suas raízes, extrai sua seiva de uma tradição (Weil, 1996, p.
418). No desenraizamento, a situação pode ser tão desesperada que só
se pode achar socorro nas ilhotas de passado que permanecem vivas na
superfície da terra. “De todas as necessidades da alma humana, não há
outra mais vital que o passado” (Weil, 1996, p. 418).
Há outra dimensão no enraizamento, que poderíamos por aproxi-
mação denominar de “espacial”. É assim que Simone Weil explica o que
significa “participação natural”: “Participação natural, isto é, que vem
automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente.
Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa receber quase que
a totalidade de sua vida moral, intelectual, espiritual, por intermédio dos
meios de que faz parte naturalmente” (Weil, 1996, p. 411, grifo nosso). A
inserção na cidade, a recorrência dos ambientes vividos e experimenta-
dos, cria um vínculo entre o indivíduo e o lugar que produz enraizamento,
mas que pode ser facilmente rompido nas condições sociais contemporâ-
neas: “A vida de um grupo se liga estreitamente à morfologia da cidade:
esta ligação se desarticula quando a expansão industrial causa um grau
intolerável de desenraizamento” (Bosi, 1994, p. 447).

107
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

As dimensões temporal e espacial do enraizamento reverberam na-


quele vínculo entre reconstrução institucional, conservação do passado e
construção individual a que podemos chamar memória. A memória não é
apenas uma função da codificação, do armazenamento e da recuperação
de informações, interrompida pelos ruídos existentes neste processo – a
existência da memória pressupõe um vínculo do indivíduo com seu pas-
sado e um objetivo na rememoração, sem o qual a torna-se destituída de
sentido (Bosi, 1994).
O desenraizamento impede o acesso à memória. A memória, por
sua própria condição, refere-se ao vínculo com os tesouros do passado
que dão sentido à história do indivíduo e do povo e que a dominação
procura primeiro destruir. O escravo é estrategicamente gestado como
um ser sem passado. Na memória, convivem o fato em si, uma cente-
lha de crítica pessoal e a convenção idealizadora final, ou o estereótipo
mítico peculiar ao grupo (Bosi, 1994, p. 459), e neste campo situa-se a
luta entre a ideologia e a crítica social. E esta luta, assim definida, recai
centralmente no campo psicossocial. É justamente aí que se situam os fe-
nômenos cuja compreensão poderá permitir identificar, na constituição
de identidades individuais e coletivas, a existência de forças que possibi-
litem supor a resistência à globalização hegemônica.
Os fenômenos identitários, que são centrais para a Psicologia So-
cial, sofrem uma inflexão deste quadro sócio-político-tecnológico. Se
considerarmos a identidade como constituída por uma relação entre os
modelos oferecidos ao indivíduo, seus padrões de desejabilidade pes-
soais, e seu desempenho pessoal dos papéis sociais, que forma a base
referencial psicossocial do indivíduo, podemos considerar que, quanto
maior a ênfase no seu desempenho pessoal, ou seja, na personagem que
o indivíduo representa, e menor a reposição identitária decorrente do
estrito papel social – fenômeno que Ciampa (1990) chama de mesmice
– maior a capacidade individual de crítica social e maior o teor democrá-
tico das relações sociais. Ao contrário, se o desempenho individual coin-
cidir com o papel social prescrito, estaremos aproximando-nos do tota-
litarismo. Na sociedade marcada pela globalização hegemônica, ou seja,
pela globalização que sufoca a possibilidade de livre desenvolvimento de
alternativas identitárias, as identidades pessoais tendem a sofrer com o
mesmo processo de colonização que atinge os territórios, direcionando

108
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

os padrões de desejabilidade individuais para modelos pré-definidos e


inquestionáveis, ligados, em geral, a padrões de desejo de consumo.
Este conjunto de fenômenos está relacionado ao surgimento de um
tipo específico de conflito observado contemporaneamente e que será
discutido na próxima seção, o qual tem recebido a denominação de con-
flito ambiental. Seu surgimento pode ser identificado com a possibilidade
de resistência a este tipo de dominação que se exerce por meio da difusão
de instituições sociais de amplo escopo, mas que reverbera também nos
fenômenos psicossociais, revelando a necessidade do desenvolvimento
de estudos e intervenções neste nível com o fim de permitir o surgimento
e a consolidação de alternativas altermundialistas à globalização hegemô-
nica. Neste sentido, inúmeros fenômenos cuja dinâmica parece processar-
-se em outras esferas sociais e mesmo externamente à sociedade, como
os desastres naturais, podem ser analisados, como se verá adiante, como
resultado deste amplo quadro socioambiental, e têm na sua relação com
a identidade psicossocial um elemento explicativo central.

Conflitos na apropriação social da natureza no Brasil

Diante da retomada do desenvolvimentismo, tal como presencia-


mos hoje no Brasil e na economia globalizada, há a necessidade de se
“recolocar a natureza” no interior do campo dos conflitos sociais, como
diz Henri Acselrad, de modo a combater a degradação socioambiental de
modo contundente. Daí a crítica à inclusão de uma natureza alienada da
sociedade nas representações dominantes que sustentam as intervenções
governamentais. Nesta retomada contemporânea do antagonismo entre
sociedade e natureza nas representações hegemônicas da natureza, per-
cebe-se no Brasil a predominância de abordagens técnicas e objetivistas,
convenientes a intervenções governamentais relacionadas ao contexto
dos grandes empreendimentos e da transformação das populações de
baixa renda em objetos de políticas de fraco teor democrático. Questio-
nando uma lógica societal cada vez mais naturalizada em nosso meio, al-
gumas pesquisas recentes realizadas no Brasil discutem tal conflituosida-
de em suas dimensões teóricas e empíricas, na perspectiva de superação
das condições de injustiça socioambiental.

109
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A importância de explicitação dos conflitos socioambientais

Comecemos por compreender o que são os conflitos ambientais (ou


socioambientais, como preferem alguns). Para Henri Acselrad (2004a),
esses conflitos se originam quando a forma de sobrevivência de alguns
grupos sociais no território é ameaçada por impactos indesejáveis (trans-
mitidos pelo solo, água, ar ou sistemas vivos), causados pela ação de ou-
tros grupos sociais. Tais conflitos começam a aparecer a partir da ação
de denúncia dessas atividades indesejáveis. Mas a configuração dos con-
flitos acontece mesmo é durante as ações de disputa entre esses atores
sociais, quando fica explícito que a distribuição de poder entre eles e o
respeito aos direitos de cada um são muito desiguais, motivo que faz
com que as populações afetadas contestem e até se revoltem contra essa
“realidade”. Passa a existir assim uma disputa por recursos, que não são
apenas materiais: são também simbólicos, envolvendo o desafio de se
conquistar espaços de expressão das insatisfações e injustiças, de comu-
nicação com a opinião pública pela mídia, de cobrança da legislação e
influência na elaboração de novas leis, de luta por reconhecimento de
legitimidade e de identidades.
Acselrad, Herculano e Pádua (2004) indicam uma abordagem de
justiça ambiental como a mais coerente para enfrentarmos a questão
dos conflitos ambientais, evitando tratá-los apenas em termos de efi-
cácia e eficiência na mediação entre interesses, típico de abordagens
tecnocráticas e economicistas. Segundo Acselrad (2011), ao criticarmos
a concentração dos riscos ambientais sobre as populações mais enfra-
quecidas, estaremos combatendo a degradação ambiental de um modo
geral, visto que os impactos negativos não mais poderão ser transferidos
para os mais pobres. Uma grande contribuição dos conflitos socioam-
bientais é justamente sua saída da invisibilidade histórica para alcançar
o debate público, reclamando a democratização das decisões sobre a
produção socioespacial dos territórios, problematizando os consensos
que nos são empurrados diariamente (tal como o consenso do desenvol-
vimento sustentável).
Acselrad (2005) utiliza a expressão geografia do dissenso para re-
presentar a dinâmica dos conflitos ambientais gerada no estado do Rio
de Janeiro no contexto da recente busca de recuperação do crescimento

110
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

econômico a qualquer custo, quando se investiu contra a responsabilida-


de ambiental do Estado e entraram em conflito, de forma direta, agentes
econômicos e “atores sociais no terreno”, como diz. Trata-se, portanto,
de uma “geografia da crítica que a sociedade civil ... endereça à confi-
guração espacial do modelo de desenvolvimento econômico instaurado
no estado”. Esta dinâmica conflitual, salienta o autor, pode nos ajudar a
compreender as ações de resistência que vêm contestando o modo como
o desenvolvimento se foi configurando espacialmente no estado. Entre
essas ações, estão aquelas que se confrontam com as “dinâmicas locacio-
nais que têm penalizado os grupos sociais que pouco puderam se fazer
ouvir nas esferas decisórias” (Acselrad, 2005, p. 8).
A relevante produção de conhecimento sobre o campo dos conflitos
ambientais tem revelado que a maior carga dos danos ambientais do de-
senvolvimento é destinada prioritariamente às populações de baixa ren-
da, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis: a injustiça
ambiental é o mecanismo que viabiliza e realiza isso tudo (Acselrad et al.,
2004; Acselrad, 2004b; Leroy & Acselrad, 2006; Zhouri & Laschefski, 2010;
Zhouri, Laschefski, & Pereira, 2005).
Pensar esse quadro em termos de justiça ambiental significa enten-
der que os efeitos da degradação ambiental são desigualmente distribuídos
entre a população (ao contrário do que se costuma dizer sobre as questões
ambientais), dependendo de seu poder econômico e político de influenciar
opinião e decisões públicas. Ao criticar a concentração dos riscos ambien-
tais sobre as populações mais enfraquecidas, estaríamos então combaten-
do a degradação ambiental de um modo geral, uma vez que os impactos
negativos não mais poderiam ser transferidos para os mais pobres.

As novas cartografias sociais


Associada ao tema anterior, vemos emergir no Brasil, nos últimos
vinte anos, uma grande diversidade de estratégias de mapeamentos par-
ticipativos em meio às disputas pela afirmação territorial de atores não
hegemônicos, que em nossa abordagem retoma a discussão das questões
socioambientais. Nesses mapeamentos, a proposta é a inclusão de popu-
lações locais nos processos de produção de mapas, quando historicamen-
te estiveram envolvidas diferentes instituições, principalmente: agências

111
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

governamentais, ONGs, organizações indígenas, organismos multilaterais


e de cooperação internacional, fundações privadas e universidades (Ac-
selrad & Colli, 2008).
Destacamos aqui o projeto Nova Cartografia Social da Amazônia,
coordenado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, que
tem como objetivo “dar ensejo à auto-cartografia dos povos e comunida-
des tradicionais na Amazônia”. O interesse do projeto não é apenas obter
um maior conhecimento acerca do processo de ocupação da Amazônia,
“mas sobretudo uma maior ênfase e um novo instrumento para o for-
talecimento dos movimentos sociais que nela existem” (Instituto Nova
Cartografia Social, 2011). Tais movimentos sociais consistem em mani-
festações de identidades coletivas, referidas a situações sociais peculia-
res e territorializadas. Estas territorialidades específicas, construídas so-
cialmente pelos diversos agentes sociais, é que suportam as identidades
coletivas objetivadas em movimentos sociais. A força de tal processo de
territorialização diferenciada constitui o objeto deste projeto, apontam
seus coordenadores.
O projeto, que hoje já conta com um grande número de fascículos
representativos das pesquisas em autocartografias realizadas em muitas
regiões do Brasil, traz uma forte perspectiva prática e de apoio ao forta-
lecimento dos movimentos sociais, além de o fazer a partir de suas ex-
pressões culturais diversas: “A cartografia se mostra como um elemento
de combate. A sua produção é um dos momentos possíveis para a auto-
-afirmação social” (Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, 2011).

O estudo dos desastres naturais: novas questões sobre justiça ambiental


Compreendendo-se os desastres como fenômenos sociais, torna-
-se relevante abordá-los tanto a partir da construção de suas condições
sociais prévias quanto da dinâmica de enfrentamento, durante e após os
eventos. Em outras pesquisas realizadas por um dos autores do presente
trabalho, partiu-se do termo “risco” em direção à eleição da noção de
“vulnerabilidade” como eixo heurístico que sustentasse uma reflexão in-
terdisciplinar. Instigada por uma abordagem sociológica, tal caminho per-
mitiu reconhecer a contribuição de perspectivas geográficas e demográ-
ficas, comparadas com aportes da abordagem de justiça ambiental. Isso
reforçou a escolha pela consideração da vulnerabilidade socioambiental

112
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

pela ótica política e de direitos humanos, sem ignorar a dimensão física e


ecológica dos desastres.
A ideia de que “os riscos produzidos na e pela modernidade são fa-
bricados socialmente” (Marchezini, 2009, p. 50) retomam os argumentos
que Ulrich Beck e Anthony Giddens desenvolveram ao final da década de
1980: perigos e riscos devem ser compreendidos a partir da própria estru-
tura social e não como eventos excepcionais. É neste sentido também que
as pesquisas a respeito das “calamidades naturais” podem melhor colabo-
rar no debate sobre as diferentes formas de interpretação dos problemas
ambientais, problematizando-se ora a ênfase no agente causal “natural”
(o fenômeno físico em si, como ameaça a ser combatida), ora na homo-
geneidade dos “impactos” negativos que seriam intrinsecamente gerados
pelo sistema econômico e tecnológico sobre o ambiente natural (Mattedi
& Butzke, 2001). Estes extremos parecem-nos arraigados em uma tradi-
ção epistemológica que fomenta mútua exterioridade entre sociedade e
natureza, tendendo a abordagens objetivistas e cuja força vemos se ex-
pressar ainda hoje em propostas de planejamento e gestão que insistem
em priorizar e naturalizar soluções técnicas e mercadológicas em detri-
mento de contextos socioculturais, ético-políticos, históricos e democrá-
ticos, realimentando assim a própria problemática (sócio)ambiental. De
acordo com Mattedi e Butzke (2001, p. 16), as teorias dos perigos natu-
rais (natural hazards) e dos desastres teriam promovido a inversão de tal
abordagem metodológica ao contribuírem para o exame dos efeitos pro-
vocados pelo ambiente físico sobre as atividades humanas: “A dimensão
social converte-se na pré-condição para que a dimensão natural se torne
destrutiva”. Em termos gerais, em comum a estas duas últimas correntes
teóricas haveria o reconhecimento da necessária reciprocidade das influ-
ências entre a dimensão social e a natural. A compreensão do problema
ambiental passa a ser então um efeito negativo que aparece na interseção
de sociedade e natureza, redimensionando, assim, o próprio debate sobre
o que sejam os riscos, segundo os autores.
Conforme Mattedi e Butzke (2001), a teoria dos perigos (hazards)
foi desenvolvida principalmente pelo ponto de vista geográfico. Ainda que
pudesse compreender o perigo como uma composição das dimensões
natural e social – definindo-o a partir de uma complexa rede de fatores
físicos que interagem com a realidade cultural, política e econômica da

113
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

sociedade –, havia uma forte tendência nesta teoria em se considerar o


agente do evento de forma isolada, o que teria se constituído em uma
limitação de seu poder explicativo. Marandola e Hogan (2005) destacam
outras contribuições da geografia, enfatizando um tipo de abordagem que
teria conseguido conjugar variáveis ambientais e respostas das “popula-
ções em risco”, e que desenvolveu amplamente estudos de avaliação do
risco (de um perigo ocorrer em determinado local), sendo pioneira no uso
da noção de vulnerabilidade. Ainda ancorada no pressuposto de que as
medições das probabilidades de os perigos acontecerem poderiam mini-
mizar os efeitos destrutivos dos desastres (prognósticos), esta tradição já
levava em conta as ações da população que poderiam colaborar na di-
minuição de sua própria vulnerabilidade (capacidade de ajuste e absor-
ção), o que nos ajuda a compreender a atual ênfase dada ao “aumento de
resiliência” das populações vulneráveis, no discurso oficial das principais
políticas públicas. Mas teria sido apenas a partir do final dos anos 1980
que a ideia de vulnerabilidade ganharia densidade conceitual, quando os
perigos passaram a incluir também a dimensão social e tecnológica (cau-
sas socioeconômicas), e não apenas a natural, dizem os autores.
Para Mattedi e Butzke (2001), diferentemente da teoria dos perigos,
a teoria dos desastres teria se desenvolvido com base no ponto de vista
sociológico, o que a levou a enfatizar os fatores sociais na análise das ca-
lamidades e desastres: o desastre é “um acontecimento, ou uma série de
acontecimentos, que alteram o modo de funcionamento rotineiro de uma
sociedade” (Mattedi & Butzke, 2001, p. 9). Os estudos sobre os desastres
a partir dos anos 1980 destacados por Mattedi e Butzke (2001) modulam
tal ênfase dada às dimensões sociais, quando algumas correntes busca-
vam compreender o que influenciava o grau de vulnerabilidade das popu-
lações nestes eventos disruptivos: o desastre expressaria a materialização
da própria vulnerabilidade social.
Marandola e Hogan (2005) afirmam que as categorias de risco, pe-
rigo e vulnerabilidade possuem caráter multidimensional e polissêmico,
e acreditam não haver base conceitual comum entre as diversas aborda-
gens e perspectivas de estudo relacionado a elas. A noção de vulnerabi-
lidade pode assumir algumas especificidades conforme o âmbito em que
é pensada. No contexto dos grupos afetados pelo desastre, o conceito
de vulnerabilidade pode esclarecer a desigual exposição aos fatores de
ameaça (Valencio, 2009). Desse modo, é considerado vulnerável o grupo

114
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

que, quando exposto a determinado fator de perigo, “não pode antecipar,


lidar com, resistir e recuperar-se dos impactos disso derivados, situação
que está associada a mudanças inesperadas do ambiente e rupturas nos
sistemas de vida” (Confalonieri, citado por Valencio, 2009, p. 40). Valencio
(2009) ressalta que o desastre é fabricado no funcionamento “normal”
da sociedade, que o enfrentamento desse processo não deve ter caráter
reducionista, daí que “os fenômenos naturais (como chuvas intensas) afe-
tam primeiramente a territorialização dos empobrecidos” (Valencio, 2009,
p. 44). A autora considera que tal lógica transfere os custos ambientais
para os mais fracos, configurando-se uma situação de injustiça ambiental
(Acselrad, citado por Valencio, 2009). Eis a ligação estreita entre vulnera-
bilidade, território e cidadania. Valencio (2009, p. 20) argumenta que é
recente no contexto brasileiro a preocupação das autoridades com o tema
da vulnerabilidade frente aos eventos naturais. Persistiria ainda a cultu-
ra de abordagens matematizadas e a-históricas, dificultando a interação
preventiva junto à diversidade de demandas sociais, o que levaria, assim,
à adoção de práticas de mitigação pouco efetivas. A autora chama nossa
atenção para a existência de um cálculo político envolvido na decisão ins-
titucional de não se enfrentar a discussão de fundo mais importante: a
perpetuidade da injustiça social. Para a autora, em nosso meio institucio-
nal de defesa civil, tem havido uma excessiva valorização na compreensão
de determinados fatores de ameaça, o que prejudica a consideração dos
processos de vulnerabilidade aí relacionados (Valencio, 2009).
Seguindo a proposta de Valencio (2009), na problematização do
uso do termo “área de risco”, interessa-nos compreender como essa no-
ção informa as intervenções governamentais em nosso contexto mais
específico e como ela é sustentada por outros discursos – como o técni-
co, o científico e o popular. Seja questionando a resultante autoimputa-
ção de responsabilidade pelos mais pobres, seja esclarecendo a política
local de remoção amparada pelos “mapas de risco”, entendemos que a
análise dos processos de territorialização e desterritorialização propos-
tos pela autora é fundamental para a compreensão do desastre como
um fenômeno próprio à dinâmica social. Por isso mesmo, na concepção
de Valencio (2012), não se deve analisar o desastre e a condição de de-
sabrigados que ele gera como uma mera ruptura da ordem social (como
ocorre no discurso dominante que enfatiza o “dia do desastre”): trata-se
da continuidade da lógica social que mantém populações em periferias

115
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

desatendidas, e sujeitas a um nível maior de degradação. Valencio in-


siste no questionamento da estigmatização que tal racionalidade hege-
mônica produz (com suas distâncias sociais e territoriais), cristalizando-
-se no status de desabrigado (Valencio, 2009). Esses mapeamentos das
áreas de risco jogam, portanto, um papel político fundamental neste
debate, pois, segundo a autora, a territorialização dos mais pobres –
indesejável na cidade –, aí persistindo, torna-os alvos fáceis do que ela
chama de “geografia física da cidade apartadora”, sempre seguida da
intervenção pública que os removerá dali, como já o faz o discurso perito
(Valencio, 2009, p. 44). Tal remoção é entendida pela autora como ins-
trumento de uma estética e de uma funcionalidade monológicas, negan-
do aos removidos o direito à autodeterminação e à equidade: à remoção
das moradias subnormais segue-se a desconsideração ampla para com
as razões da fixação, os vínculos e laços estabelecidos, as necessidades
das pessoas que produziram aquele espaço na ausência de um melhor,
dentro dos seus projetos de vida e de seus direitos ao espaço (Valencio,
2009, p. 44). Vargas (2006) critica uma abordagem objetivista do ris-
co (interpretação que poderíamos estender para as noções de perigo
e vulnerabilidade) por esta resultar em uma visão técnica ainda hoje
dominante que aponta como verdade o seguinte silogismo (em nossa
interpretação): (a) as populações de baixa renda são livres para realizar
“opções de consumo” no território, quanto à habitação; (b) mas a au-
sência de um saber e o não investimento em seu capital humano fazem
com que tais escolhas sejam “inconsequentes”; (c) em decorrência dis-
so, surgem as situações precárias envolvendo grupos específicos no con-
texto das moradias e locais analisados como de risco; (d) o que legitima
intervenções que desqualificam suas práticas e interferem sobre suas
vidas, expulsando-os dos territórios em que vivem. Por isso, a autora
defende uma abordagem construcionista do risco (construção social) e,
como Acselrad (2006), sugere a análise das dimensões materiais e sim-
bólicas dos conflitos envolvidos na questão, entre grupos sociais diferen-
ciados e levando-se em conta uma estrutura de crenças e visões que sus-
tentam as relações sociais. Esta abordagem favorece uma proposta de
interdisciplinaridade mais ousada e densa, levando-nos ao encontro da
questão da justiça (justiça ambiental) na qual a desigualdade (ambiental
e social) possa ser tratada também como uma questão de direitos huma-
nos, provocando-nos para análises mais aprofundadas e “estimulando e

116
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

potencializando a mobilização das pessoas para a transformação destas


condições” (Acselrad, 2006).
Este tipo de mobilização não pode ser obtido sem se considerar o
caráter socialmente condicionado da crise ambiental, não só no sentido
de uma crise de recursos, mas também como uma crise da relação entre
natureza e cultura. Tal crise produz conflitos que podem permanecer
submersos frente à aparente inevitabilidade dos modelos identitários
pautados pela hierarquização dos indivíduos por sua capacidade de con-
sumo e, de fato, não há garantias de que se possa fomentar as condi-
ções para que esses conflitos se explicitem e sejam potentes para gerar
transformações nas condições existentes de desigualdade e dominação
e promovam o acesso à justiça ambiental. Mas o caminho para a promo-
ção desta forma de resistência passa necessariamente pela compreen-
são mais aprofundada das relações que podem ser estabelecidas entre
grupos e indivíduos e os territórios nos quais se encontram. Deslocar
esta questão para a margem do debate, considerando-se que a atual
sociedade global é inevitavelmente produtora de identidades psicosso-
ciais desenraizadas, não responde ao problema essencial de entender
os conflitos ambientais contemporâneos como algo mais que a luta por
recursos naturais e a necessidade de mediação política para tal luta. Ou,
por outro lado, como o resultado de dificuldades inerentes ao planeja-
mento técnico do uso e ocupação do solo. Trata-se do resultado de um
amplo processo histórico pelo qual se produziu uma forma civilizatória
que proclamou sua autonomia frente à natureza e percebeu-se subme-
tida ao processo natural ali mesmo no seu interior, onde imaginava que
ela estaria sob seu inteiro domínio. A existência e a importância política
dos conflitos ambientais indicam que há muito que entender a respei-
to dessas formas de luta e do que elas permitem deduzir sobre a re-
lação estabelecida entre grupos, indivíduos e territórios. Além disso, o
reconhecimento de tais conflitos conduz à conclusão de que, por meio
dos instrumentos teórico-conceituais fornecidos pela Psicologia Social,
a relação entre identidade psicossocial e território mostra-se um nível
fundamental de análise e uma mediação essencial para a adequada
compreensão deste processo. E sua importância, neste caso, vai muito
além da compreensão dos impactos da globalização hegemônica sobre
a relação com o ambiente – mostra-se essencial em qualquer forma de
planejamento que vise explicitar os conflitos por território e enfrentá-

117
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

-los por vias pacíficas que aumentem o teor democrático das relações
na sociedade.
Se a Psicologia Social desejar, de fato, contribuir para a produção de
um mundo democrático, ela necessita aceitar como sua a tarefa de impri-
mir nos indivíduos e nos Grupos as características psicossociais ligadas à
tolerância e à reflexividade, condições fundamentais para a participação.
Caso contrário, ela corre o risco de instrumentalizar-se como meio de con-
trole, vigilância, dominação e propaganda, em conformidade com o alerta
de Solomon Asch (1972). Este risco, de, ela própria, tornar-se meio tec-
nológico em relação com a globalização hegemônica, a indústria cultural
em grande medida já realizou, recrutando-a no planejamento publicitário.
Cabe a ela lutar contra tal papel, jamais se esquecendo de que, em um
mundo desigual, cada passo no sentido da emancipação é acompanhado
de perto por um movimento no sentido da barbárie, exigindo de todos a
qualidade fundamental destacada por Brecht – lutar a vida toda.

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121
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Sociedade civil e democratização: cartografias da


psicologia social
Mariana de Castro Moreira

Introdução

O mapa de Canoas: ali estão desenhados os rios, matas, casas, escolas, igre-
jas, histórias, silêncios, desassossegos, descobertas, conquistas daqueles
que passaram a escrever uma história diferente, a história de cada um, as
histórias daquele lugar.

Figura “O mapa de Canoas” (Fonte: Espaço Compartilharte)

122
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Este artigo faz parte da pesquisa de tese (Moreira, 2014) em Psicos-


sociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS/UFRJ) e tem como
foco a problematização sobre a atuação da sociedade civil no fortaleci-
mento da democracia, no Brasil, nas últimas décadas. Lançamos um olhar
especial para o campo dos projetos sociais como territórios de ação que
dão materialidade às assim chamadas Organizações da Sociedade Civil
(OSC) e nos valemos da experiência da OSC Espaço Compartilharte, situa-
da em Teresópolis/RJ.
Organizações não governamentais, associações, institutos, funda-
ções, terceiro setor: terminologias diversas que apontam práticas múlti-
plas e referenciais distintos, sinalizando o necessário reconhecimento da
complexidade deste campo. A abordagem proposta não se dá em direção
ao consenso, mas no desafio de transitar entre fronteiras, heterogeneida-
des e controvérsias.
Em comum, encontramos nessas práticas a ação de pessoas, grupos
e organizações que se mobilizam, na esfera privada, em torno da causa
pública e que têm o princípio democrático como projeto político que nor-
teia as bases da convivência em sociedade.
Um olhar sobre as últimas décadas nos possibilita perceber o quanto
a atuação das referidas organizações vem se metamorfoseando e se re-
configurando de múltiplos modos. Uma cartografia destas práticas poten-
cializa a multiplicação de vozes, sentidos e possibilidades de reinvenção
de modos de ser e de viver juntos.
Destaca-se em tal trajetória o surgimento dos chamados novos mo-
vimentos sociais (Sader, 1988) e seu trabalho de “alargamento do espaço
da política” (Sader, 1988, p. 20), reinventando no cotidiano novas formas
de se fazer política, distintas – mas em diálogo - com os modos instituídos
desta ação.
A luta contra a ditadura militar, nas décadas de 60 a 80, produziu
formas instituintes de se fazer política, numa tentativa não somente de
transformação de um regime de governo, mas, sobretudo, de construção
de um projeto de sociedade que ampliasse as possibilidades de vivência
do espaço público.
Dentre esses movimentos sociais, as chamadas Organizações da So-
ciedade Civil ganham relevo sendo atores primordiais na luta pela garantia

123
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

de direitos sociais básicos, inscrevendo o país em uma proposta/perspec-


tiva de participação, aqui entendida como
um processo de vivência que imprime sentido e significado a um grupo ou
movimento social, tornando-o protagonista de sua história, desenvolven-
do uma consciência crítica desalienadora, agregando força sociopolítica a
esse grupo ou ação coletiva, e gerando novos valores e uma cultura política
nova. (Gohn, 2005, p. 30, grifos nossos)

Importante ressaltar o longo processo de lutas e mobilizações para


que a perspectiva da garantia de direitos e a participação da sociedade se
tornassem bases da gestão democrática. Ao contrário do que possa pare-
cer, a participação não pode ser entendida como uma simples concessão
estatal. Destacamos aqui a intensa militância de pessoas, organizações e
movimentos sociais que atuaram, especialmente a partir dos anos 60, de-
nunciando contradições e abusos do Estado, reivindicando espaços para
participar da construção de realidades menos desiguais.
Ocorre que, conforme sinaliza Nogueira (2011, p. 25),
embora ganhando força e diversificação, a sociedade civil não era capaz de
estabelecer maiores vínculos orgânicos com a sociedade política; da mesma
forma, avançava a consciência democrática e ampliava-se a participação,
mas inexistiam instâncias capazes de agregar e organizar em nível superior
(político-estatal) os múltiplos interesses sociais e, especialmente, de dar va-
zão e operacionalidade às reivindicações populares.

Se, no aparelho estatal, percebemos a fragmentação das ações so-


ciais, igualmente nos movimentos sociais, iremos encontrar a diversifica-
ção e pulverização de práticas e bandeiras, denotando a ausência de uma
plataforma político-social unificada no país. Assim, historicamente, a atu-
ação do Estado e da sociedade civil vem se dando de forma autônoma e
sua relação tem sido pautada por embates, dissonâncias e conflitos.
De todo modo, progressivamente, a participação, a garantia de direi-
tos e a democratização passaram a pautar a agenda dessas organizações.
Como assinala Scherer-Warren (1999), “de maneira geral, com o fim dos
regimes militares, a questão da democratização do poder local e da parti-
cipação no estabelecimento de políticas públicas passou a fazer parte dos
debates e das ações das ONGs dos países latino-americanos” (Scherer-
-Warren, 1999, p. 49), e complementa mais adiante:

124
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

No Brasil, muitas conquistas sociais da nova Constituição foram obtidas


graças à pressão e apoio das ONGs e movimentos sociais. Seja na pres-
tação de serviços ou consultorias, seja no controle do uso dos recursos
públicos e políticas sociais, as ONGs vêm reforçando sua relação com o
poder político, passando a atuar para a descentralização do poder e para
uma crescente participação da sociedade civil. (Scherer-Warren, 1999, p.
49, grifos nossos)

O sociólogo Herbert de Souza, uma referência deste debate, corro-


bora tal argumentação situando que:
Uma ONG se define por sua vocação política, por sua positividade política:
uma entidade sem fins de lucro cujo objetivo fundamental é desenvolver
uma sociedade democrática, isto é, uma sociedade fundada nos valores da
democracia – liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidarieda-
de ... As ONGs são comitês da cidadania e surgiram para ajudar a construir a
sociedade democrática com que todos sonham. (Souza, 1995, p. 03)

Olhar os anos 60 e os dias de hoje nos ajuda a (re)conhecer que o


mundo mudou. À época, OSC eram espaços de acolhimento de sonhos,
utopias e lutas. Hoje, os discursos que acompanham esta mobilização se
transformaram: há um movimento de criminalização dessas iniciativas,
associando-as a escândalos que envolvem corrupção, política partidária e
desvio de recursos públicos, de tal modo que a própria legitimidade deste
trabalho é colocada em xeque.
Parece-nos que, nos anos 60 e 70, as fronteiras entre o que se enten-
dia por sociedade civil, Estado e iniciativa privada eram mais claramente
delimitadas. Hoje, frente à complexificação das próprias demandas so-
ciais, muitos atores passam a atuar e a fazer parte do que se chama de
sociedade civil organizada, configurando um campo de forças e disputas
por territórios, poder, públicos, financiamento.
Ao mesmo tempo, mesclam-se novas identidades e configurações
híbridas a partir das parcerias que se estabelecem. Em uma mesma inicia-
tiva, podem estar associadas OSC como executoras de projetos públicos
que contam com recursos da iniciativa privada. Certamente a discussão
sobre quem faz o quê – e principalmente quem entra com qual recurso
– não está dada, mas encerra desdobramentos éticos e políticos que pre-
cisam ser problematizados.

125
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Sobretudo a partir dos primeiros anos do séc. XXI, acompanhando


a crise econômica mundial, inaugura-se longo período de transformações
para as OSC quando a sustentabilidade financeira acaba por comprome-
ter, muitas vezes, a própria sustentabilidade política de projetos de trans-
formação social.
Dados da FASFIL 2010, a mais recente pesquisa sobre Fundações
e Associações Privadas Sem Fins Lucrativos, no Brasil (IBGE, IPEA, GIFE,
2012), demonstram um decréscimo no número de associações: entre
2006 e 2010, elas cresceram em torno de 8,8%, número significativamen-
te menor quando comparado aos 22,6% do período anterior (2002-2005).
Nos últimos anos, inúmeras organizações vêm encerrando suas ati-
vidades, corroborando para o que um entrevistado em nossa pesquisa1
– gestor de uma grande OSC – afirma:
ONG é capital social, né, ONG é riqueza de um país, ONGs são pessoas se as-
sociando por uma causa pública ... foram pessoas que se uniram para lidar
com questões públicas, questões de bem comum, então é uma riqueza que
a gente desenvolveu e que na crise estrutural de financiamento que a gente
tem hoje, está ameaçada. As pessoas falam do risco para a democracia na
política quando tem corrupção, mas ninguém tá falando no risco pra demo-
cracia que é a gente não ter mecanismos estabelecidos de financiamento e
ter um monte de onguizinha quebrando por aí. (R, 2012)

Decorridas quase três décadas desta recente história de democra-


tização, parece-nos pertinente questionar como temos caminhado rumo
à consolidação da democracia2, quais novas questões se colocam, quem
1
Em nossa pesquisa de tese, foram realizadas entrevistas com pessoas que trabalham em
OSC, no Brasil, além de pessoas que acompanharam e/ou participaram do Espaço Comparti-
lharte, OSC, que é foco de nossa investigação. Seus nomes serão omitidos a fim de preservar
a privacidade dos entrevistados.
2
Ao lado de tal questionamento, destaca-se a constatação de que “as teorias e os temas relacio-
nados às discussões sobre os movimentos sociais foram deixados um tanto de lado na última
década e restritos a poucos investigadores no Brasil, assumindo o seu lugar perspectivas e pre-
ocupações muito mais relacionadas com a “institucionalização” das práticas coletivas civis” (GT
Movimentos sociais na atualidade: reconfigurações das práticas e novos desafios teóricos do
XVI Congresso Brasileiro de Sociologia). Neste âmbito, extensa investigação tem sido produzida
sobre a consolidação dos conselhos gestores e conferências deliberativas, assim como sobre
as experiências de orçamento participativo; estratégias institucionalizadas de participação que
apontam conquistas e desafios frente à perspectiva de democratização, descentralização e
controle social. Mas há ainda a demanda de discussão teórico-metodológica sobre novas for-
mas de participação, muitas vezes desconsideradas pelos tradicionais esquemas conceituais.

126
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

são os atores deste cenário sociopolítico, como podemos reconstruir es-


paços de participação e ação política capazes de acolher nossa utopia e,
em última análise, qual é nossa utopia hoje.
Algumas questões permanecem no debate e, dentre elas, o papel
do Estado, a atuação da sociedade civil, a participação como pilar fun-
damental do processo democrático, a relação entre tais atores. Afirmar
que elas permanecem como questão não permite assegurar continuida-
des ou permanências na forma como são pensadas.
De todo modo, e reconhecendo este fluxo, acreditamos que acom-
panhar a gênese e transformações dessas práticas possibilita reunir, pro-
blematizar e apontar algumas possíveis tendências e diretrizes de uma
agenda para as próximas décadas.
Neste debate, é preciso enfrentar algumas interrogações: quem
fará parte dos projetos sociais? Qual papel o Estado, a iniciativa privada
e a sociedade civil desempenharão? Como será a atuação das Organi-
zações da Sociedade Civil (OSC)? Quais serão os focos prioritários de
ação? Quem financiará estas práticas e de que modo? Como os atores
envolvidos se relacionarão?
Questões que se articulam e se desdobram não como algo dado
ou de forma natural, mas como construções necessariamente políticas.
Política está sendo entendida aqui não apenas como instância ou modo
de governo, mas especialmente como “forma de compartilhar destinos”
(Nogueira, 2011, p. 250) e de reconstruir coletivamente a utopia de um
futuro melhor.

Um olhar historiográfico: seguindo rastros e pistas da ação social no


Brasil

Um olhar em perspectiva sobre os últimos cinquenta anos de proje-


tos sociais, no Brasil, leva-nos um pouco mais longe, para o Brasil Colônia.
Isso porque, de modo recorrente, encontramos nestas práticas notáveis
raízes na filantropia, modelo trazido da Europa. A noção da ajuda ao pró-
ximo enquanto prática social está relacionada, desde o período colonial,
a instituições religiosas e, sobretudo, à Igreja Católica.

127
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Valores como a caridade, a benemerência e o amor ao próximo pau-


tam as primeiras iniciativas que se tem conhecimento em nosso país, ten-
do como público-alvo prioritário aqueles que se encontram excluídos do
processo produtivo: pobres, crianças, idosos e doentes são acolhidos e
cuidados graças a ações voluntárias.
As Santas Casas de Misericórdia são ícones da ação social dessa épo-
ca, abraçando, dentre seus objetivos, as chamadas “sete obras corporais”,
quais sejam: dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem
sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; assistir aos enfermos;
visitar os presos; enterrar os mortos.
Os primeiros hospitais, asilos e manicômios instalados no Brasil es-
tão ligados às Santas Casas, mantidas através da benemerência de doa-
ções à Igreja. Pouco a pouco, famílias mais abastadas e representantes da
realeza vão somar-se aos religiosos, mas, de toda maneira, quase sempre
estarão pautados pelo ideário da moral cristã.
Como assinala Oliveira (2005, p. 24, grifos nossos), a maioria da po-
pulação era atendida dentro das grandes fazendas da época, atribuindo
ares de privado ao atendimento prestado. Essa assistência individualizada
e dependente de favores criava um vínculo protecionista entre o dono das
terras e seus subordinados. Assim, o caráter comunitário inexistia, no sen-
tido de que o povo beneficiado tivesse como participar, gerir ou contribuir.
O que permanecia era a caridade alheia e a dívida de favores e gratidões
que se eternizavam.
Nossa visão da história distancia-se de um suposto trabalho de
desvelamento da realidade e aproxima-se da noção de invenção (Albu-
querque, 2007). Cabe aqui esta digressão: nosso encontro com a história
dessas práticas dá-se por dentro delas. Não somente pela implicação e
atuação em tal campo, mas por trazermos uma abordagem historiográfi-
ca que toma o que é dito / escrito não como fato evidente, porém como
construção humana e social que é tornada visível nesta forma de narrati-
va. Histórias, textos, depoimentos ganham contorno quando começam a
ser contados. Como nos sinaliza Albuquerque (2007, p. 26),
somos nós que evidenciamos, colocamos em evidência dado evento ou
conjunto de eventos e, no mesmo ato, esquecemos ou jogamos para os
bastidores outros tantos acontecimentos.

128
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Assim, retomamos nossa história, ressaltando que não por acaso, de


modo recorrente, ainda hoje encontramos mescladas práticas assistencia-
listas e assistenciais nestes projetos.
E mais: se hoje nos perguntamos em que medida exercemos nossa
cidadania ou mesmo quando criticamos a despolitização ou baixa parti-
cipação do povo brasileiro nos processos democráticos decisórios e nas
políticas públicas, é também porque poucas vezes temos problematizado
nossa história, nossas raízes neste campo.
A partir da República e com a Constituição de 1891, Igreja e Estado
separam-se formalmente como instituições. O caráter privatista, confes-
sional e caritativo das ações sociais prolonga-se. Somente bem mais adian-
te, no governo Vargas, surge o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS),
órgão que tinha, dentre suas atribuições, o repasse de recursos públicos,
sob a forma de subvenção, a instituições sem fins lucrativos que atuavam
nas áreas da saúde, educação, assistência social ou cultura. Grandes no-
mes da filantropia e da alta elite da sociedade compunham o CNSS e ava-
liavam quais entidades receberiam as subvenções estatais. Nota-se que se,
por um lado, há um embrião da proposta de autonomia frente ao Estado,
por outro, reforça-se o compromisso entre este e a elite brasileira.
Nesta mesma época, surge a Legião Brasileira de Assistência (LBA)
inicialmente com a missão de reunir os patriotas e organizações de “boa
vontade”. Com a LBA, ações emergenciais e campanhas pontuais ganham
capilaridade, mas ainda não estão associadas à perspectiva da garantia
de direitos. O primeiro-damismo na ação social – D. Darcy Vargas foi a
primeira presidente da LBA - é outra tendência que se estende ainda hoje
em muitos municípios brasileiros.
Por mais paradoxal que pareça, na Era Vargas encontraremos inú-
meros avanços na legislação não somente na área social, mas também
trabalhista e ambiental. Por ora, vale destacar que até então a pobreza
era vista como um desvio individual, sendo tratada como “caso de polícia”.
A partir dos anos 30, a pobreza passa a ser abordada como uma questão
social sob a responsabilidade também do Estado.
Sposati (2001, p. 76, grifos nossos) enfatiza que:
o trato da assistência social no âmbito da moral privada, e não da ética
social e pública, é um dos equívocos dessa versão filantrópica. O primeiro-

129
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

-damismo, a benemerência está no âmbito da moral privada. Neste senti-


do, é que os conservadores pretendem agir (e agem) modelando a aten-
ção àqueles mais cravados pela destituição, desapropriação e exclusão
social, organizando atividades que vinculam as relações de classe, sob a
égide do favor transclassista, do mais rico ao mais pobre, com a vincula-
ção do reconhecimento da bondade do doador pelo receptor ... O modelo
conservador trata o Estado como uma grande família, na qual as espo-
sas de governantes, as primeiras damas, é que cuidam dos “coitados”. É
o paradigma do não direito, da reiteração da subalternidade, assentado
no modelo de Estado patrimonial ... Neste modelo, a assistência social é
entendida como espaço de reconhecimento dos necessitados, e não de
necessidades sociais.

Importante destacar o quanto ou como tais práticas sociais vão sen-


do engendradas, desde o século XVII, na medida em que se configuram
determinadas disfuncionalidades na sociedade. Essa problematização
possibilita desnaturalizarmos nossas tradicionais concepções sobre quem
são nossos beneficiários ou o público-alvo das políticas, programas e pro-
jetos sociais.
Castel (2000) é referência ao situar a relação com o trabalho como
divisor entre válidos e inválidos. Em um primeiro grupo, estariam todos
os que estariam “legitimados” a não trabalhar, seja por incapacidade físi-
ca ou psíquica, aí incluídos crianças e idosos. Para estes, a “necessidade”
de uma “proteção” do Estado ou intervenção que, hoje, chamaríamos de
socioassistencial. Em um segundo grupo, estariam os indigentes, ou seja,
aqueles que poderiam trabalhar, mas que não o fazem de forma suficiente
para garantir sua própria sobrevivência.
Diversos autores (Ariès, 1986; Donzelot, 1984; Foucault, 1993)
dedicaram-se a acompanhar como a criança e o velho, sem família, o
louco e o indigente tornaram-se foco de uma determinada forma de in-
tervenção peculiar, constituindo-se objeto de certos saberes e práticas
sobre o social.
Silva (2005, p. 18) ressalta:
É a partir do momento em que certos “disfuncionamentos” de uma
sociedade não são mais regulados de uma maneira relativamente informal
no tecido dessa sociedade que podemos falar de uma “problematização”

130
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

do social. As relações sociais informais não são mais suficientes para


resolver tais “disfunções”. Assistimos então à criação de alguns espaços
institucionais e, por conseguinte, de um corpo profissional especializado
que passará a ocupar-se de tais “disfuncionamentos”.

Proteger os mais carentes, definir quem e o que será protegido (de


quem); construir espaços, técnicas e modos de cuidado e proteção são
práticas construídas historicamente. O que hoje nos parece estar dado ou
por demais natural, deixou rastros nas práticas engendradas por pessoas,
grupos e instituições.
Este talvez seja um detonador crucial em nossa argumentação sobre
os projetos sociais hoje: nosso movimento busca, em um primeiro mo-
mento, desnaturalizá-los, acompanhando a história de sua constituição ou
mesmo da objetivação do social.
Esta breve viagem por algumas pistas da história do trabalho social
no Brasil possibilita identificar e refletir acerca de certas heranças dos
modelos atualmente vigentes. Tal digressão no tempo justifica-se não por
buscar encontrar ali fatos ou verdades acabadas que expliquem ou re-
presentem as práticas sociais, mas sobretudo no intuito de buscar acom-
panhar como determinadas condições sócio-históricas contribuíram para
configurar modos peculiares de se pensar/fazer trabalho social no Brasil.

Primeiras pistas para uma “cartografia de controvérsias”

O movimento em busca de colocar história nos projetos sociais


levou-nos à desnaturalização da própria ideia de social. Um olhar sobre
estas práticas encontra, de modo recorrente, o social como algo dado,
explicando ou qualificando uma forma de abordar a realidade, como se
definisse a própria “natureza” dos fenômenos.
Aparecem aí entendimentos que contrapõem o social ao individual,
como sinônimo de quantidade, de número grande de pessoas; o social
como eufemismo para se referir à pobreza ou à miséria; o social articula-
do ao comunitário e/ou ao coletivo; o social como barreira ou obstáculo
a ações estabelecidas (problemas sociais em oposição a “determinantes”
biológicos ou psicológicos, por exemplo).

131
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Latour (1994, 2005) nos convida a colocar as grandes categorias ana-


líticas em suspeição, aproximando-nos de uma visão da realidade como
um fluxo de relações heterogêneas entre elementos justapostos. Assim o
social deixa de estar inserido para explicar a realidade e passa a ser visto
como um resultado – sempre parcial e provisório – de processos de agen-
ciamentos entre humanos e não-humanos que se faz o tempo todo.
Nas palavras do autor (Latour, 2005, grifos nossos),
Em cada momento, temos de reconstruir a concepção do que estava asso-
ciado porque a anterior definição passou a ser, até certo ponto, irrelevante.
Já nem sequer estamos mais certos do que significa ‘nós’; parece que so-
mos sustentados por ‘laços’ que já não assemelham aos laços sociais regu-
lares ... Portanto, o projeto global daquilo que supostamente fazemos em
conjunto é colocado em dúvida. O sentido de pertença entrou em crise. É
justamente para dar conta deste sentimento de crise e para seguir estas no-
vas conexões que nos será necessário uma outra concepção do social. Com
efeito, será necessário que esta seja muito mais ampla do que comumente
se designa por este termo, e todavia estritamente limitada no que respeita
ao delinear das novas associações e à arquitetura criada pelos seus agrega-
dos. Eis a razão pela qual irei definir o social não já como um domínio es-
pecial, uma realidade específica ou uma coisa particular, mas apenas como
um movimento muito particular de re-associação ou de reagrupamento.

Frente a uma Sociologia do Social, o autor propõe uma Sociologia


das Associações para estudar os fenômenos em movimento, em consti-
tuição, antes de se estabilizarem. O trabalho de investigação a ser feito
envolve seguir as configurações provisórias da realidade, sem buscar ge-
neralizações, mas nas pequenas narrativas.
Neste sentido, inspirados no trabalho realizado por Latour, em sua
etnografia da ciência, temos buscado desenvolver uma etnografia do tra-
balho das OSC, “entrando pela porta de trás”, como sugere o autor, isto
é, pelos vestígios que apontam como são construídas em seu dia a dia e
não em seu caráter definitivo ou institucionalizado, o que implica olhar
as práticas e seguir os atores, acompanhando as discussões, incertezas e
embates em jogo.
A metáfora da caixa-preta talvez seja pertinente para pensarmos a
constituição das OSC, sendo utilizada

132
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

na sociologia das ciências para falar de um fato ou de um artefato técnico


bem estabelecido. Significa que ele não é mais objeto de controvérsia, de
interrogação nem de dúvidas, mas que é tido como um dado ... Quando
uma técnica ainda não está completamente estabelecida como caixa-preta,
falamos de caixa cinza (Latour) ou caixa translúcida (Jordan e Lynch). (Pe-
dro, 2010, p. 87)

Pedro (2010, p. 87) nos ajuda ainda nessa argumentação afirman-


do que,
de modo simples, pode-se definir controvérsia como um debate (ou uma
polêmica) que tem por ‘objeto’ conhecimentos científicos ou técnicos que
ainda não estão totalmente consagrados. Isto significa que os objetos pri-
vilegiados de tais análises são as chamadas ‘caixas-cinza’, ou seja, questões
de pesquisa que ainda portam em si controvérsias, interrogações, que ain-
da não se constituíram em uma ‘caixa-preta’.

Esta pesquisa tem sido mobilizada pelas transformações nas práticas


das Organizações da Sociedade Civil – nossas “caixas-cinza”, portadoras de
controvérsias e interrogações - problematizando o papel e a atuação de
tais projetos nas últimas décadas. Nossa entrada neste campo de investi-
gação se dá na análise da experiência do Espaço Compartilharte, OSC, que
atua há mais de 20 anos em Teresópolis/RJ.
No texto de apresentação da instituição, encontramos:
As primeiras atividades foram iniciadas em 1991, a partir da união voluntá-
ria de um grupo de amigos - respaldados em seu passado de militância em
movimentos sociais - que começou a se reunir, inspirados pela busca por
contribuir na construção de um mundo mais justo, fraterno e igualitário.
Tratava-se de compartilhar com outros aquilo que a vida nos tinha propi-
ciado... Tratava-se de criar formas de multiplicar e dividir conhecimentos,
sentimentos, atitudes, valores.

Interessante notar que o trabalho começa no início da década de


90, quando o país vivia o período de democratização. O ano de 1988 está
marcado pela promulgação da Constituição, após a abertura de amplo
processo de discussão e negociação com representantes da sociedade ci-
vil, então chamados a participar dos processos decisórios e formulação de
políticas públicas.

133
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Embora recém-saído de um sistema de tutela, no qual o Estado re-


gulava a vida e silenciava toda e qualquer voz dissonante, o país, após
a abertura política e, dentro da perspectiva da descentralização, estava
marcado pelo fomento à participação da sociedade civil, materializado es-
pecialmente na multiplicação e valorização de experiências locais.
Pesquisa sobre o perfil das Fundações Privadas e Associações Sem
Fins Lucrativos (FASFIL), de 2002, apontava a existência de 276 mil entida-
des oficialmente cadastradas (IBGE, 2002), sendo que 62% delas haviam
sido criadas a partir dos anos 90 3.
Este ambiente-convite à participação e mobilização está presente
nos relatos dos fundadores do Espaço Compartilharte. Embora não apa-
reça de forma explícita para todos, há uma estreita sintonia com os movi-
mentos em curso nessa época, seja participando da Conferência Rio-92 ou
das mobilizações em torno da defesa dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente; em trabalhos com comunidades pobres ou nas manifestações dos
“caras-pintadas”, no Movimento pela ética na política, que culminaria com
o impeachment do Presidente Collor.
Nessa mesma época, Betinho – o “irmão do Henfil que voltou” -
convoca a participação da sociedade na Ação da Cidadania contra a
Miséria e pela Vida (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas-
IBASE, 1993):
Olhe à sua volta. Dá para aguentar? Arrisque a pergunta: o que eu posso
fazer? Lembre-se, o primeiro passo é a solidariedade ... Qualquer pessoa
pode criar um comitê de campanha. Não é preciso autorização de ninguém
... Procure outras pessoas em sua família, no bairro, na comunidade religio-
sa, no clube ou no trabalho.

Uma pesquisa realizada pelo IBOPE, em 1993, mostrava que 68%


da população brasileira com mais de 16 anos conhecia ou já tinha ouvido

3
Interessante verificar que a pesquisa 2002 apontava uma progressiva ampliação no número
de organizações, da seguinte forma: “As que foram criadas nos anos de 1980 são 88% mais
numerosas do que aquelas que nasceram nos anos de 1970; esse percentual é de 124%
para as que nasceram na década de 1990 em relação à década anterior”. (IBGE, 2002, p. 3).
Já a última pesquisa FASFIL (2012) indica um decréscimo, conforme supracitado, o que re-
força nosso questionamento sobre a atuação e tendências para as próximas décadas destas
organizações. O que estaria contribuindo para tal decréscimo? Trata-se de um modelo de
participação que se esgotou?

134
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

falar na ação que ficou conhecida como “Campanha do Betinho”. Destes,


32% já haviam participado de alguma iniciativa correlata e 11% perten-
ciam a algum Comitê de cidadania (Landim, 1998, p. 242).
O trabalho do Espaço Compartilharte emerge deste caldo de mobili-
zação. Há, no entanto, uma opção por trabalhar com comunidades rurais,
invisibilizadas neste processo. O grupo encontra em Canoas o espaço de
experimentar a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”.
Canoas é uma pequena comunidade localizada a 40 minutos do cen-
tro de Teresópolis, cidade da região Serrana, distante 98 km da capital do
estado do Rio de Janeiro. Teresópolis comumente é vista como um local
aprazível e bucólico, ideal para veranear, desde os tempos do Império.
Ao lado das belezas naturais da região, o imaginário sobre a cidade reúne
gente bem vestida, casinhas com lareira, queijos e vinhos.
Em 91, quando o trabalho foi iniciado, Canoas possuía aproxima-
damente 1400 moradores. Destes, 70% dos adultos eram analfabetos ou
analfabetos funcionais, 60% viviam na linha da pobreza ou mesmo da
miséria. A região era atendida por duas escolas multisseriadas de 1ª a
4ª séries. Uma terceira escola – Estadual – oferecia as outras séries do
Ensino Fundamental e Médio e ficava a cerca de 20 km, para a maioria
dos alunos, em uma época na qual ainda não existia transporte escolar
público.
A região ainda hoje é ocupada por grandes fazendas improdutivas
e sítios de veraneio, cujos donos residem nas metrópoles. Às vésperas
das férias de verão, antes de findar o período letivo, a evasão escolar
aumentava. Os pais tiravam as crianças da escola para que os filhos de
Canoas ajudassem a preparar os sítios para os filhos de quem vinha da
cidade.
O trabalho infantil, a baixa qualificação profissional dos adultos, a
precarização de vínculos trabalhistas reforçavam o êxodo rural. Das famí-
lias que saíam da região, muitas iam somar-se às favelas das periferias
urbanas, mantendo-se no desemprego ou piorando suas condições de so-
brevivência e qualidade de vida, principalmente no que se refere às crian-
ças e aos adolescentes.
O relato de L., idealizadora do Espaço Compartilharte, reúne ele-
mentos para compor este cenário:

135
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

1991. Outubro. Numa birosca – é o nome usado localmente para qualquer


comércio – perguntamos sobre alguém apto a realizar uma limpeza no ter-
reno. Em suas áreas já desmatadas crescia o lírio do brejo ... Crescem fazen-
do um emaranhado de raízes profundas, com grandes batatas no final das
mesmas. Por entre uma e outra planta, vai se formando um lodaçal de cor
preta, como nos mangues. Indicaram-nos um senhor “bom para serviços
pesados, muito forte e trabalhador.” Conversando com ele, sentimos algu-
ma coisa errada; tinha baixa estatura, muito magro, sem dentes, pálido, a
perfeita encarnação do famoso personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.
Mostrou-se ávido pelo serviço. Acertamos com ele a empreitada, pois que-
ríamos conhecer melhor a terra para iniciarmos a construção de uma casa
que viabilizasse nosso pernoite no local. Pagaríamos por semana. Na pri-
meira sexta-feira subimos para fazer o pagamento e lá estava ele, sentado,
numa parte alta e seca do terreno, cabeça baixa, cigarro de palha na boca.
Seus três filhos, R., de 11 anos; C, de 9, e L., de 3, mergulhados no brejo
até as axilas, algumas tábuas à volta, fazendo o serviço contratado. Com
toda a autoridade de “contratante” e sabedoria advinda de anos de estudo
acadêmico, militância política e sucesso profissional, falei :“Fulano, você foi
contratado para o serviço. Suas crianças estão em horário de escola e em
vez de estarem em aula, estão fazendo este serviço brutal por você? Você
tirou estes meninos da escola para trabalharem por você?” Ao que ele,
calmamente, tirando o cigarro da boca, respondeu: “Tirei, sim, dona, pois
aqui nós nascemos, vivemos e morremos para arrancar lírio de brejo e para
isso ninguém precisa aprender”. Fiquei paralisada. Era preciso re-aprender
a vida se quisesse compartilhar direitos e construir cidadania com a gente
deste lugar.

Os primeiros contatos com as pessoas de Canoas eram tomados


como oportunidades para conhecer os modos de viver e conviver na re-
gião. Para eles, o futuro era vivido como algo remoto. Se havia perspecti-
va de futuro, este já estava traçado, predeterminado. Os filhos de quem
trabalhava na roça seriam trabalhadores da roça. A escola pouco tinha a
oferecer como caminho de transformação de tais realidades.
Esta família trazida no relato acima vivia em um casebre sem luz,
telefone, água encanada ou sistema de esgoto. Para chegar até eles, era
preciso caminhar quilômetros por uma estradinha de terra. Não havia
transporte público regular. Com as baixas temperaturas da região Serrana,
principalmente as crianças eram acometidas, frequentemente, por pro-

136
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

blemas respiratórios (asma, bronquite, pneumonia). Somente na cidade


havia acesso a serviços de saúde, mesmo assim de forma precária.
Na casa ao lado, a família vizinha se alimentava de sopa de pedra:
cavavam um buraco no chão, acendiam a fogueira e cozinhavam o que
podia ser colocado em uma panela. Crianças e animais faziam as refeições
juntos. Entrar em contato com aquelas realidades desconstruía a visão
idílica da bucólica cidade serrana e construía novos desenhos para rea-
prender a ver a vida.
Assim, um novo aprendizado: o homem desta área rural não se ali-
mentava do que plantava. Inhame era para os porcos, verduras davam
trabalho ou não se sabia o que fazer com elas. Comia-se arroz, batata,
macarrão e muito óleo.
Além de desconstruir certos imaginários a respeito da vida no cam-
po e aprender com aquelas famílias sobre seus modos de vida, pouco a
pouco, tornava-se visível o quanto aquelas crianças, mulheres e homens
eram invisíveis para muitos. As discussões acerca de projetos ou ações
sociais nas áreas rurais estavam geralmente ligadas a matrizes analíticas
que não correspondiam àquela realidade: o trabalhador do campo, o ex-
tensionismo rural, os Sem Terra...
O texto de sistematização de um dos projetos institucionais4 nos aju-
da nesta argumentação (Lacerda, 2007, p. 13):
Viver numa zona rural tão próxima da segunda maior cidade do país tem
sua especificidade. Não chega a ser uma periferia, mas há forte influência
do modo de vida urbano, transformando a região num híbrido de cam-
po e cidade. A proximidade geográfica faz com que a convivência entre
crianças e adolescentes rurais e urbanos seja constante. No entanto, a
distância material e simbólica é grande entre ambos. A sedução de uma
vida de consumo abundante acende os sonhos de mudança para a capital,
e a histórica ausência de serviços básicos de educação, saúde e transpor-
te nas zonas rurais conspira ainda mais para a crueza das desigualdades.
Esse olhar desencantado dos adultos para o futuro, seus e de seus filhos,
é um forte traço cultural regional que o Espaço Compartilharte diagnos-


4
Em 2004, o Espaço Compartilharte ganhou o Prêmio Criança 2004, na categoria convivência
comunitária, concedido pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente.
Esta experiência foi sistematizada e está disponível para disseminação.

137
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

ticou e vem ajudando a desnaturalizar. Construir opções baseadas numa


cultura de direitos ajuda a abalar a ideia de que as pessoas são aquilo que
possuem, recapacitando os mais pobres a sonhar com um futuro mais
igualitário e promissor.

A invisibilidade estava presente também nas políticas públicas. Em


2000, o Censo demográfico do IBGE não visitou Canoas. As crianças e os
adolescentes que participavam então dos projetos, na instituição, ques-
tionaram os educadores e coordenadores: “Vocês falam que nós temos
direitos. Como, se nem existimos nos dados do município e do país? Eles
nem sabem quem somos nós.”
Provocados por tal questionamento, iniciou-se um projeto de cons-
trução de um Censo comunitário sobre Canoas. Órgãos municipais foram
visitados e nenhum mapa ou informações detalhadas da região foram en-
contrados. Visitando o instrumento de pesquisa utilizado pelo IBGE, crian-
ças, jovens e educadores adaptaram um questionário para a realidade lo-
cal, reunindo, além dos dados demográficos, questões construídas a partir
de suas problematizações: origem da água, destino do lixo, acesso ao lazer
e à cultura, convivência comunitária.
De posse deste instrumento, partiu-se para uma capacitação dos re-
censeadores comunitários. Cada casa foi visitada, dados colhidos, resulta-
dos problematizados. Mais que o resultado, o processo fala muito. A cada
etapa parcial, o grupo se reunia no Espaço Compartilharte, conversando
e problematizando sobre o que era ouvido, falado, silenciado. Um mapa
da região foi pintado artesanalmente e, hoje, está exposto na instituição.
Ali estão desenhados os rios, matas, casas, escolas, igrejas, histórias, si-
lêncios, desassossegos, descobertas, conquistas daqueles que passaram
a escrever uma história diferente, a história de cada um, as histórias da-
quele lugar.
Uma das três crianças que trabalhavam no brejo descrito na cena
inicial, pela idealizadora da OSC, participou de diversos projetos. Hoje,
quando perguntada o que essa experiência significou para sua vida,
ela fala:
Vontade de vencer, de lutar pelo que eu quero. Me abriu portas pro mun-
do... Foi com o Espaço Compartilharte que eu fui ao cinema pela primeira
vez, ao teatro, onde fiz minha primeira viagem... onde também fiz teatro e

138
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

aprendi a amar muiiito teatro, entre outras coisas. Sou grata a tudo que o
Espaço me proporcionou. Foi onde eu encontrei meu lugar, onde meu mun-
do fez sentido.. onde eu aprendi a amar o próximo, a respeitar e sobretudo
onde eu me tornei culta, seletiva e muiiiiito humana, respeitando todos,
seja qual for sua diferença ou indiferença. Onde eu trabalhei pela primeira
vez, pois fui jovem aprediz. E até hoje sinto muiiiiiita saudades do Espaço
Compartilharte e sei a falta que ele faz à nova geração!!!! Pois às vezes os
pais não podem dar o que uma criança quer ,mas os sonhos podem!!! E foi
no Espaço Compartilharte que eu aprendi a sonhar. (R., 2013)

Referências

Albuquerque, D. M. (2007). História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP:


Edusc.
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140
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Mapeamento etnográfico de movimentos de ocupação


urbana em Porto Alegre
Cristiano Hamann
Rodrigo de Oliveira-Machado
João Pedro Cé
Adolfo Pizzinato

Introdução

Para além das construções, moradias, ruas e demais intervenções


urbanas, as cidades situam socialmente uma série de valores e ideolo-
gias que produzem diferentes modos de vivenciá-la. Nesta multiplicidade
que caracteriza o urbano, é inerente a presença de conflitos, dadas as
diferentes possibilidades de vir a ser na cidade, novos e velhos rumos se
entrecruzam naquilo que intitulamos cotidiano. O desequilíbrio entre as
diferentes relações sociais que tem cabida na cidade chancela determi-
nadas formas de organização em detrimento de outras. Tal processo tem
como reflexo a assunção de debates que, por vezes, transbordam os apar-
tamentos, casas e casebres, ocupando o meio da rua.
Esse campo de disputa toma novas dimensões a partir da possibili-
dade de uma conexão que outrora não existia, ressaltando-se assim o ca-
ráter viral da internet enquanto novo “espaço” público. As redes sociais,
enquanto ferramenta que propicia a distribuição de vozes por um espaço
virtual, e onde a audiência, e possível afiliação, assumem uma dimensão
que antes supunha o encontro formal entre os corpos. A virtualidade ex-
pande as formas de organização dos encontros das pessoas e conseguem
agregar os que antes não possuíam um canal de comunicação com mo-
vimentos ou ações coletivas, mas que também compartilhavam identifi-
cações e reivindicações com tais movimentos e ações. Na presente refle-
xão, busca-se compreender como cidade e internet configuram campos
da ação psicossocial contemporânea.

141
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

As ações coletivas de caráter reivindicatório surgidas em diferentes


partes do mundo após a década de 1990, potencializadas pelo desen-
volvimento das tecnologias da informação e da comunicação presentes
desde a década de 1960, estimularam novos arranjos de relação social.
A possibilidade que o trânsito da informação traz consigo rompe com as
premissas anteriores de espaço/tempo, ou seja, da presença física e do
tempo “real” de propagação da informação. Esta nova conjuntura revela
uma configuração que imbrica as noções de local e global. Assim, a maio-
ria das pessoas tem acesso a construções culturais diferentes daquelas
às quais foram submetidas – se apropriaram – em seus locais de origem,
podendo produzir novas significações para seus cotidianos. São novos
panoramas culturais que surgem no horizonte interpretativo dos sujei-
tos, oportunizando a identificação com diferentes noções de si-mesmo,
de existência propriamente dita e gerando comunidades que, a princípio,
extrapolam o plano local e são globais enquanto exercício virtualizado de
organização. Nessa relação podemos citar inclusive a batalha entre di-
versos países para ocupar o que se denominou enquanto “imperialismo
simbólico”, uma organização da divulgação e implantação de sua cultura
ao redor do globo através do rádio e da televisão com o intuito de manter
viva e propagar pelo planeta a sua cultura, considerada como superior
aos demais países (Mattelart, 2005).
Mattelart (2005) ressalta ainda que, localmente, as medias são
apropriadas em seu formato e ressignificadas para dar ênfase às culturas
dos diversos países. Além disso, é importante atentar que o acesso quase
livre à internet possibilita um exercício de autoria por parte dos coletivos
que acaba por debilitar o exercício do imperialismo simbólico, já que o
acesso e produção de informação tornaram-se quase irrestritos, acarretan-
do na presença de múltiplas ideias acessíveis para uma diversidade grande
de pessoas. Esse cenário desponta como um desafio para a produção de
conhecimento em Psicologia Social, devida à sua expressão na atualidade.
Desta forma, esse capítulo busca elencar alguns resultados e refle-
xões que emergiram a partir de uma pesquisa na cidade de Porto Ale-
gre durante o ano de 2013. De caráter etnográfico, este estudo buscou
mapear as ações coletivas desenvolvidas nesta cidade, utilizando de uma
metodologia criada pelo próprio grupo, para acessar os participantes en-
volvidos nas ações coletivas mapeadas.

142
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Para resgatar a importância destas ações coletivas, cabe salientar o


processo global no qual se inserem. O ano de 2011 foi marcado pela eclo-
são de diversos movimentos sociais em diferentes partes do globo, que
se tornaram relevantes em nome de sua atuação social e política. Mesmo
apresentando uma agenda peculiar a seus contextos imediatos, tais mo-
vimentos, por apresentarem formas de luta e de solidariedade asseme-
lhadas, tomaram a dimensão de movimento global. No norte da África,
derrubando regimes políticos na Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen; estende-
ram-se à Europa, com ocupações e greves na Espanha e Grécia, revoltas
no subúrbio de Londres e ocupações na Wall Street, nos EUA, alcançando
a Rússia no final do ano (Carneiro, 2012). Essa onda iniciada na chamada
Primavera Árabe influenciou outros movimentos sociais aqui citados, pois
através do uso da internet como ferramenta de mobilização pode burlar
restrições de regimes autoritários que cerceavam os meios de comunica-
ção. Dessa forma, o uso das redes sociais soa como uma tendência irrever-
sível na atuação política e permite uma emancipação sobre a circulação
das informações e discussões sobre os regimes políticos, colocando em
xeque a hegemonia dos grandes meio de comunicação já que as novas
tecnologias potencializam o exercício da cidadania (Lopes, 2013).
Em Porto Alegre, por exemplo, percebe-se a influência de tais protes-
tos na atuação de grupos que se propõem a ocupar espaços urbanos com
diferentes motivações e implicações com os temas potentes da cidade.
Na pauta dos diversos movimentos porto alegrenses, figuram questões
de gênero e identidades sexuais não hegemônicas, críticas à desigualdade
socioeconômica, temáticas ambientalistas e contestação à privatização de
espaços públicos. As atividades de ocupação, integrando elementos de
festividade e protesto, ressignificam o espaço urbano tornando-o, nova-
mente, um lugar de inter-relações. Dentre esses movimentos, destacam-
-se Defesa Pública da Alegria, RUA – Rastro Urbano de Amor e Largo Vivo,
que promovem ocupações pautadas por manifestações artísticas; Okupa
Viaduto, com ocupações no viaduto da Avenida Borges de Medeiros todas
as terças-feiras; PortoAlegre.cc, de cunho mais institucional, revitalizando
parques no horário noturno; Batalha do Mercado, realizando, no último
sábado de cada mês, um torneio de hip-hop no centro da cidade; Marcha
das Vadias, passeata feminista anual que luta pela igualdade de gênero,
Massa Crítica iniciada em Los Angeles no ano de 1993 e difundida pelo
resto do mundo, onde de ciclistas manifestam-se em prol de formas al-

143
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

ternativas de trânsito, além de manifestações baseadas na grafia urba-


na, como PIXEyLUTE, grupo de pichadores engajados em intervenções
de cunho social; assim como Maiorais e Insonia, que através da pichação
evidenciam fortes questões identitárias de pertencimento grupal e de afi-
liação ideológica.
Utilizamos aqui a noção de ação coletiva e não a de movimentos
sociais, pois segundo Diani (1992), os movimentos sociais são constitu-
ídos por vínculos firmes e possuem alvos específicos e, estas ações que
descrevemos aqui possuem uma identificação menos estável e mais fu-
gaz. Devido ao grande número de movimentos e sua complexidade, a pre-
ferência pelo termo ações coletivas se justifica pela amplitude que esse
conceito abarca, ao contrário da conceituação de movimentos sociais. Tal
posicionamento teórico procura dar espaço à diversidade das ocupações/
apropriações na urbe.
Nesse campo conceitual, a ideia de happening, que é oriunda das ar-
tes performáticas e recuperada pelas ciências sociais, serve como subsídio
para compreensão destas ações coletivas. Nesse contexto, o happening
é elencado como uma perspectiva de análise para conseguir elucidar a
complexidade inerente a qualquer movimento de ocupação, posto que a
sua singularidade e o seu efeito de descontinuidade no tecido semiótico
da sociedade são úteis para a compreensão do funcionamento social. O
conceito de happening também é utilizado a fim de chamar a atenção
para a potencialidade dos lugares, pois, ocupando os espaços com mani-
festações artístico-estéticas, prima-se pela queda da barreira entre parti-
cipantes e observadores. Este formato de ocupação pretende rearranjar
as significações sobre algum conteúdo do cotidiano seja onde for realiza-
do, buscando suscitar discussões sobre o caráter social da vida cotidiana
(Hamann, Maracci-Cardoso, Tedesco, & Viscardi, 2013).
Segundo Rancière (2010), a arte torna-se política quando ela eman-
cipa o espectador, ou seja, o encontro entre a política e a arte possibilita
outra relação com o sensível (a predisposição significadora que percebe o
cotidiano). Este encontro gera uma transfiguração do que pode ser visto,
gerando um dissenso entre o que antes era visto/ouvido/sentido (percebi-
do) e que com a arte passa a ser ressignificado. O que o artista/interventor
faz, portanto, é oferecer outras possibilidades de significado para aquela
experiência e assim emancipar o espectador, dar-lhe a possibilidade de

144
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

participar da construção da experiência estética mediante a ruptura com


uma estética encerradora e naturalizada das artes e do cotidiano.
Waisbich (2013), ao circular pelas ocupações de junho de 2013,
nota que as reivindicações sociais percebidas em sua etnografia se confi-
guravam no que denomina “algo estranhamente festivo”. Uma percepção
que denomina um “estranhamento”, configuração e comportamentos
que parecem destoar das representações de manifestações reivindicató-
rias mais tradicionais do século XX. A sensação de festejo, neste contex-
to, quebra o curso ordinário da vida cotidiana, ou corrobora com o que
Minois (2000) denomina de “atmosfera de festa permanente” (p. 602)
tipicamente contemporânea?
Minois (2000) ainda destaca, recorrendo como exemplo o despontar
dos happenings dos anos 1960 e 1970, a presença da perda de individu-
alidade como uma temática importante. Estes atos públicos estariam, na
concepção de happenings tomada nesta compreensão, imbricados em cer-
to caráter espetacular, evidenciando jogos de contradição e corroboração.
Estas ocupações no espaço urbano geram práticas culturalmente
significadas e podem incorporar novos elementos para as identidades dos
participantes da comunidade, ainda que compreendam neste processo
posicionamentos e vozes diferenciadas. São estes posicionamentos e vo-
zes de mútua consideração, efeito, mudança e continuidade, que garan-
tem ao fenômeno a construção de significados através da incorporação e
(re)produção de sentidos. Estar na cidade é vivenciá-la como possibilidade
interminável de inovações, já que “reúne uma multiplicidade de experi-
ências humanas que, situadas em um substrato labiríntico, marcado pela
fugacidade do que ali ocorre, permite uma situação de combinações no
infinito de eventos” (Hiernaux, 2006, p. 200). O fortuito da urbe permite o
transgredir, abre espaço para pequenas subversões no cotidiano.
Essa relação com a cidade sustenta-se na compreensão de um diá-
logo existente entre aqueles que nela residem. Ao incorporar novas for-
mas de relacionamento, na maioria das vezes rompendo com o status
quo, as pessoas que participam de tais ações coletivas estão dizendo aos
demais seu posicionamento frente a determinadas resoluções acatadas
(ou naturalizadas) na nossa sociedade. Com base em uma premissa dialó-
gica, na qual se entende que a palavra é sempre originária dentro de uma
relação, onde se inscreve de sentido para o outro e ao mesmo tempo

145
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

evoca uma contra-palavra, se compreende que mesmo aqueles que não


aderem ou se identificam com estas ações acabam por se relacionar e
construir novas vozes acerca de tais fenômenos. Essas vozes que povoam
o imaginário da cidade também estão presentes na constituição identitá-
ria das pessoas, onde se aliam e formam discursos que pautam as noções
de ser e estar na sociedade.
Neste contexto, as relações humanas passam a ser concebidas como
diálogos entre diversos parâmetros e conceitualizações que juntos contri-
buem para a existência uma da outra através do tempo. Acoplam-se uma
diversidade de pontos de vista que, em algum tipo de tensionamento,
constituem uma polifonia, vozes que são sobrepostas e que, se isoladas
perdem o sentido, são apenas sustentadas na relação que possuem entre
si, criando um jogo de identidades.
Os jogos de identificações e diferenciações criam uma dinâmica de
construção do eu e da noção dos outros, e em tal dinâmica, cabem cum-
plicidades e antagonismos. Este processo ganha uma especial importân-
cia se pensarmos nas manifestações que ocorreram no mês de junho de
2013, onde as ruas das cidades brasileiras foram a plataforma de reivin-
dicações que comportaram diversas pautas. Inicialmente o valor da tarifa
dos ônibus era a motivação da aglomeração de pessoas e com a legiti-
mação das manifestações, boa parte da população passou a juntar-se à
massa, reivindicando o fim da corrupção, o fim dos partidos políticos, o
cancelamento da copa, uma reforma política no país, amor e paz para
o Brasil. Assim, constroem-se movimentos polifônicos, que instituem ne-
gociações entre diversos grupos que passam a considerar as alteridades
presentes no mesmo espaço, podendo assim gerar embates baseados nas
construções que constroem noções de si e dos outros.
Fomentando diálogos e ressignificações na cidade, esses eventos
impõem a problematização do conceito autor/audiência, remetendo-nos
a construção de subjetividades nos espaços urbanos, que se constituem
como lugares no processo de significação e construção da alteridade.
Não se refere, portanto, que estes processos se deem necessariamente
através do apelo visual de determinados pontos da urbe, dedicados a
uma memória legitimada, mas sim através de espaços que assumem, por
atribuição dos membros das comunidades, um caráter de apropriação.
Dessa forma, os habitantes da cidade constroem imagens e ideias male-

146
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

áveis sobre sua própria cidade, espaços de memórias, ou seja, com po-
tencial de reelaboração da simbologia dos acontecimentos neste espaço
(Nora, 1997).
Utilizamos neste trabalho a diferenciação dos conceitos de espa-
ço, lugar e não-lugar como ferramentas teóricas para melhor elucidar as
ideias presentes sobre a ocupação da urbe. Lugar refere-se à identificação
e apego ao local, um processo que gera simbolismos que conectam as
pessoas e suas experiências ao sentimento de pertença a determinado
território, sentimento socialmente construído pelas relações entre os su-
jeitos. Leite e Dimenstein (2007) atribuem a este processo o nome de “ter-
ritório de subjetivação”. Não são apenas espaços, pois portam qualidades
de movimento, tempo e trajetória. Também não se delimitam exclusiva-
mente a espaços físicos, podendo ocorrer no meio virtual, como visto na
contemporaneidade. O conceito de espaço caracteriza a potencialidade
de um território em tornar-se lugar ou não-lugar. Aqueles espaços onde
as relações não se enraízam, não potencializam identificações nem simbo-
lismos, são os não-lugares. Esses não-lugares são espaços de pouca troca
relacional, de transição e movimentação e circulação fugaz de indivíduos,
que não tem a preocupação em promover sentimentos de pertença ou
afiliação, apenas utilizam o local como via de transição.
Neste texto discutimos alguns aspectos do funcionamento das mi-
cropolíticas de ocupação no espaço urbano de Porto Alegre e da con-
figuração de relações de lugar e não-lugar nesse território. Para tanto
utilizamos, além dos marcadores teóricos, uma estratégia de aproxima-
ção/compreensão guiada metodologicamente a partir de três etapas se-
quenciais: o levantamento de informações através da mídia e redes de
relacionamento; a observação de ocupações e o estabelecimento de con-
tato com participantes e audiência; e a realização de entrevistas, auxilia-
das por uma proposta de produção fotográfica estabelecida previamente
com os entrevistados.
O levantamento de informações através de redes alternativas de or-
ganização, como a internet, mostra que são amplamente utilizadas pelas
mais variadas formas de ação coletiva. As redes sociais (em especial o Fa-
cebook) mostram-se como uma ferramenta de organização e comunica-
ção acessível para a maioria dos membros das ocupações. Para desenvol-
ver esta reflexão, mostrou-se necessário, portanto, o acompanhamento

147
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dessas redes – especialmente, o Facebook – para um maior monitoramen-


to das ações coletivas que são planejadas na cidade. De outra forma, por
meio de entrevistas abertas de caráter narrativo durante as próprias ações
coletivas, buscou-se integrar aspectos da percepção de participantes e es-
pectadores que influenciam no processo de construção de seus itinerários
no que diz respeito a estas ocupações.
Além disso, a fotocomposição foi assumida como uma proposta de
aproximação metodológica que se dispunha a operar enquanto forma al-
ternativa de apreensão da significação que os(as) participantes fazem das
ocupações. A escolha da produção de imagens se deve a seu potencial
enquanto forma de linguagem em pesquisa, permitindo a apreensão de
aspectos mais subjetivos que possivelmente não figurariam em entrevis-
tas tradicionais. Nesse sentido, a produção fotográfica desponta como
possibilidade de explorar espaços de autoria para os participantes da pes-
quisa. Tal aproximação metodológica se constituiu nos moldes defendi-
dos por Maurente e Tittoni (2007) e Pizzinato (2008), em que a fotografia
aperfeiçoa aspectos de expressão não tão diretamente apreendidos pelo
discurso verbal e instrumentaliza o processo de construção da entrevista
narrativa. Ainda, segundo Banks (2009), a produção de narrativas visuais
se define como uma organização intencional de informações, desta ma-
neira, os materiais devem ser entendidos como estruturas comunicati-
vas. Neste sentido foi proposto aos participantes de diferentes ações de
ocupação que além de elaborar considerações sobre as fotografias iso-
ladamente, buscassem estabelecer sentidos para a construção da série
fotográfica como um todo, seja estabelecendo ordens de importância,
sejam ordens temporais.

Organização, manifestação e ocupação

Dentro deste contexto de análise, pretendeu-se verificar que ações


por parte da comunidade e do poder público podem ser pensadas a fim
de estabelecer relações não punitivas, que compreendam os direitos dos
cidadãos e que promovam ações críticas e construtivas sobre a realidade.
Os resultados explicitam os processos dialógicos que ocorrem nessas ma-
nifestações e que contam com a contribuição de vários fatores psicológi-
cos, culturais e históricos.

148
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Assim, as ocupações na cidade, são rompimentos com os fluxos pa-


dronizados de significação dos espaços urbanos. Sua natureza é popular, ou
seja, organizadas por várias pessoas e camadas sociais, sem que o poder
estatal tome iniciativa nestes movimentos. Este tipo de intervenção pode
ser pensada como um transformador da percepção sobre o espaço, inclu-
sive interferindo nos julgamentos feitos sobre determinado local. Estes ha-
ppenings surgem guiados por sua efemeridade e se constituem como um
corpo, referenciais na memória coletiva. Sua capacidade de transformação,
seu caráter político, partindo dos pressupostos do Estatuto da Cidade, mos-
tram-se exemplos das vinculações entre as pessoas e os lugares. E, nesta
concepção, fica evidente a emergência de promover espaços na urbe em
que se permita oferecer experiências subjetivas de qualidade política. Reto-
mando a discussão de Rancière (2010), a criação de dissenso parece ser um
efeito das ocupações. Ao transformar os espaços e retomá-los enquanto
lugares os indivíduos criam discussões e rompem com o silencio que esta-
biliza o status quo, permite-se que surja o dissenso frente ao o poder insti-
tuído, emancipa os cidadãos frente ao estado e colocam no cotidiano e na
relação entre os diversos indivíduos a potência de construção dos lugares.
A análise das ações de ocupação sugere que a internet é o vetor
central de comunicação para a organização das ações coletivas aqui discu-
tidas. Tanto no mapeamento quanto nas entrevistas realizadas, a internet
foi utilizada como uma ferramenta de organização da ação, pois muitas das
manifestações e ocupações nas quais houve participação dos pesquisado-
res tinham páginas nas redes sociais, grupos e através disto convidavam
os diversos manifestantes/ocupantes/militantes que delas participavam:
A proposta de uma Serenata Iluminada é bastante simples: vamos levar
velas, lanternas, instrumentos musicais e outras manifestações artísticas
para fazer um encontro que mistura alegria, expressão e reflexão sobre
o uso dos espaços públicos de nossa cidade ... Traga sua LUZ, confirme
presença e convide seus amigos, pois será uma linda oportunidade de es-
tarmos juntos cultivando o respeito e a tolerância. (Serenata Iluminada no
Parque Farroupilha em Porto Alegre, organizado pelo PortoAlegre.CC)1

Nestas páginas web constavam informações sobre os locais das ocu-


pações, as ideias que pautavam as ações coletivas/movimentos sociais

1
https://pt-br.facebook.com/events/410575415652789/

149
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

que as organizavam assim como “instruções” sobre as possibilidades de


ação localizadas nestas ocupações. Um ponto chama a atenção: não há
assinatura ou proclamação de liderança individual. Além das ações es-
pecíficas, como o exemplo acima, os militantes de movimentos sociais
mais formais, que foram entrevistados falaram da importância da internet
para que essa configuração pudesse acontecer. Conforme aponta Castells
(2011), a liberação de imagens, os debates e os chamamentos por parte
dos manifestantes vai agregando pessoas, gerando identificações e as-
sim, as ações coletivas, mesmo que propostas por movimentos formais
utilizam-se a internet na organização das pautas e ações, abdicando da
formalidade institucional de liderança personalizada.
É, e a gente entende a internet, em especial as redes sociais, como uma
nova plataforma de comunicação, então isso para nós é muito importante
também se utiliza de todas as formas, das redes da internet para revolucio-
nar a comunicação. Acho que em termos de organização é mais ou menos
isso. (Raquel2 – Juntxs - Coletivo de jovens militantes vinculado ao PSOL)

Tem o boca-a-boca, né, tirando isso creio que o facebook seja a melhor for-
ma de organização, assim, que especifica horário, lugar, não sei o que - fica
mais organizado. É por esse meio que eu fico sabendo mais desses eventos,
e a gente pode convidar pessoas, é mais prático. (Nicole - Marcha das Va-
dias)

As diversas ações coletivas trouxeram para embate nas ocupações


um novo conceito de movimento, uma vez que a ação em rede, sem li-
deranças formais que representem todos aqueles que dela fazem parte,
gerou realocações nas práticas de negociação das reivindicações junto
aos poderes públicos. O caráter inovador desse formato de ação pode
ser compreendido em parte pela descredibilidade dos representantes
institucionalizados que atuam na política partidária nacional. A postura
contraria ao representacionismo partidário também surge como elemen-
to característico dessas ações. Tal condição apartidária produz discussões
entre os integrantes da ação coletiva, onde alguns optam pela partici-
pação formalizada dos partidos e de que destes surjam representantes
da ação enquanto no outro pólo aparecem aqueles que defendem que
a presença dos partidos reproduz o “sistema falido e genérico” que eles
questionam.

2
Todos os nomes de participantes aqui usados são fictícios.

150
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Por exemplo, o movimento “Agora vem pra rua”, tudo bem, muita gente
entrou, mas, como foi muito grande a nível nacional, como existiam muitas
ideias diferentes, ao mesmo tempo em que educou, também generalizou e
banalizou tudo aquilo que as pessoas estavam lutando. Sei lá, tinha muito
“reaça” e muita coisa que não tinha a ver com aquele movimento. (Luiza,
manifestações de junho)

Eu acho que Porto Alegre é uma cidade que... não é à toa que as coisas
aconteceram em Porto Alegre, né, porque especialmente nessa questão dos
Espaços Públicos é uma pauta muito cara aos lutadores de Porto Alegre,
né, nós tivemos um ataque brutal da última administração em relação à
ocupação, falo em ocupação dos espaços públicos, não só de intervenção
com a cidade, mas em especial de ocupação de largo, de espaços públicos,
a privatização do largo, a proibição de artistas de rua, a SMIC cada vez mais
é, autuando, e recolhendo material de artistas de rua, então isso é muito
foda, a privatização do Araújo Viana. (Raquel –Juntxs)

Figura 1. Manifestações de junho de 2013 – terceira contra o aumento


das passagens

Outra alternativa de compreensão, encontrada mais na reflexão dos


pesquisadores (entre o campo teórico e o palco da pesquisa) do que nas
entrevistas com os participantes, seria dessa organização tomar forma de
rede devido ao papel das redes sociais virtuais em sua concepção e orga-

151
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

nização. Assim, essa horizontalidade nas decisões e representações pode-


ria ser vislumbrada como um dos desdobramentos da sociedade em rede
a que Castells (2005) se refere, especialmente ao analisar movimentos
semelhantes no hemisfério norte. Os próprios participantes de algumas
ocupações de Porto Alegre também referem afiliação, identificação com
pautas e fazeres dessas ações coletivas.
Muito levando em conta os Indignados, aprendendo com os Indignados,
então a gente ocupa muito praças, assim, então geralmente quando a gen-
te tem reuniões, a gente funciona muito por assembleias que são ampla-
mente divulgadas nas redes, qualquer um pode participar é completamen-
te aberto. (Raquel – Juntxs)

Figura 2. Marcha da maconha, Porto Alegre, 25 de maio, 2013

Entre as consequências desse processo descentralizado está, mais


uma vez, o desencontro entre Estado e participantes das ações coletivas.
Tendo em vista que tal dinâmica revela-se como novidade contemporâ-
nea, as estratégias de diálogo, quando essa se apresenta como aceita por
ambas as partes, ainda estão em fase embrionária. Acompanhando as mí-
dias que divulgavam o discurso oficial do Estado se encontram adjetivos
como “desorganizado”, o que pode significar dois itens: a não compreen-
são dessa nova organização das ações coletivas e/ou buscar a depreciação
desses atos.

152
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Figura 3. Marcha da maconha. Porto Alegre, 25 de maio, 2013

A escolha dos locais “palco” das ações também é um aspecto impor-


tante a ser ressaltado. Os locais escolhidos representam pontos chave da
cidade. Espaços onde a memória social resiste à institucionalização capita-
lística da cidade, que transforma alguns locais – outrora palco de interação
social - em não-lugares, em espaços não relacionais. Ocupar, portanto,
pode ser um ato simbólico de transformar o espaço em lugar, naquilo que
permite a troca de afetos, a construção de laços entre as pessoas e permi-
te que potencializa a cidadania dos sujeitos.
O largo Glênio Peres anda com saudades da gente, de suas feiras proibidas
pela Prefeitura, suas noites de circo, de música, de piquenique, de convívio!
Nós que acreditamos que aquele espaço não merece chafariz-propaganda
da Coca Cola nem estacionamento voltamos a convidá-los, a convidar-nos,
a ocupar um dos espaços mais nobres deste Porto Alegre. ... Em defesa do
espaço público e da cultura, à rua! Fazemos piquenique, música, malabares,
teatro. Fazemos amigos. Compartilhamos o espaço público, enchemos de
vida a área que seria ocupada pelos carros. ... PARA LEVAR (se quiser, pois o
mais importante é a tua presença) instrumentos musicais, malabares, sla-
ckline, pernas de pau, etc.- mate e comidinhas (compramos ali no Mercado)
para um grande piquenique. Uma cidade para as pessoas! Compartilha o
evento no teu mural, convida os amigos. TODOS SÃO BEM-VINDOS!” (Pá-

153
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

gina do evento “Largo Vivo”, evento realizado no dia 23 de abril de 2013,


organizado por meio do Facebook)3

Figura 4. Largo Vivo. Porto Alegre, 12 de dezembro, 2013

Luiza, participante do movimento Marcha das Vadias, quando con-


vidada a fazer um exercício de se colocar no lugar das pessoas que cami-
nham por espaços ocupados, ressalta o possível estranhamento sentido
pelas pessoas que observam seu espaço de circulação diário modificado
no momento de uma ocupação. Luiza acredita que a possibilidade de, fur-
tivamente, se deparar com esses eventos, seriam como fendas de um co-
tidiano com um verniz homegenizado. Segundo Luiza, o espaço público é
“o mais importante”, desta forma, o acontecimento se torna um momento
que aciona tanto participantes como espectadores:
“Fico me perguntando como seria, né? Tipo, ser uma pessoa alea-
tória, ali, saindo para caminhar não sabendo que tem Marcha das Vadias,
assim e, de repente chega um monte de gente, um monte de guria pela-
da... deve ser bem engraçado” (Luiza, Marcha das Vadias).


3
https://www.facebook.com/events/378347612287653/?ref=3&ref_newsfeed_story_
type=regular

154
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Figura 5. Marcha das Vadias. Porto Alegre, 26 de maio, 2013

Considerações finais

A aproximação ao universo das ações coletivas e movimentos so-


ciais na cidade de Porto Alegre foi um desafio, não apenas como pauta de
discussão da organização social contemporânea, mas também um desafio
metodológico, na tentativa de dirimir a suposta fronteira entre partici-
pantes e pesquisadores. Além da óbvia e necessária inserção no campo
direto, observando, acompanhando e integrando as ações, contar com o
“olhar” e a “voz” direta dos participantes através de suas reflexões foto-
gráficas e discursivas foi realmente diferencial nesse processo.
Além disso, a pesquisa aproxima suas reflexões às de outros pen-
sadores da contemporaneidade (em especial Racière e Castells) quando
veem nas ações e movimentos sociais atuais mais do que uma “nova for-
ma de protestar” e sim, uma nova forma de ser, de afiliar-se e relacionar-
-se com e na urbe de hoje. Mais do que uma nova forma de agir, pode-
-se pensar nessas ações de ocupação da cidade como um aforismo de
uma nova ontologia do social – onde os processos identificatórios oscilam
do local ao global, do coletivo ao hiperindividual. Ocupar a cidade pode
ser ocupar-se de si mesmo, em um embate micropolítico que pode ser ir

155
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

além, questionando certezas aparentemente consolidadas sobre o que se


acreditava ser consenso – as noções de democracia, participação e repre-
sentatividade, por exemplo.
Evidentemente falamos aqui de uma nova forma de fazer política,
de encontrar na intersecção desses múltiplos dissensos (locais/globais;
coletivos/individuais...) as brechas necessárias para a criatividade e a rei-
vindicação de algo novo, de uma nova forma e por motivos diferentes das
leituras predominantes (ainda algo contaminadas pelos ares de 1968...).
Essa nova “militância” nem sempre se identifica com esse ou com qual-
quer outro rótulo, nem sabe se quer (ou se se requer) identificar-se ou
pertencer a um “movimento” (em uma leitura mais institucionalista).
Mas se movem, e movimentam a cidade. Principalmente movem o foco
da atenção da urbe para os outros lados de si mesma, para as muitas
periferias (ou os muitos não centros), para seus não-lugares, para suas
sombras e seus duplos.

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157
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Psicologia e políticas públicas: possibilidades para a


inclusão de catadores
Gláucia Tais Purin
Ana Paula Martins
Lorena De Fátima Prim

Introdução

O presente artigo é resultado do Trabalho de Conclusão do Curso


(TCC) de Psicologia, realizado no decorrer do ano de 2012, no Programa
de Extensão Universitária denominado de Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares, da Universidade Regional de Blumenau (ITCP/
FURB). Este Programa tem como objetivo central o apoio multidisciplinar
para a consolidação de experiências coletivas de geração de trabalho e
renda para grupos de trabalhadores em situação de vulnerabilidade so-
cial. A atuação da psicologia na ITCP/FURB se baseia na Psicologia Social
Comunitária e ocorre no diálogo com as demais áreas atuantes na ITCP:
Direito, Administração, Moda, Engenharia de Produção e Engenharia Flo-
restal, Serviço Social e Ciências Sociais que cooperam no alcance dos ob-
jetivos do Programa.
Este trabalho tem como objetivo refletir e propor alternativas acer-
ca da interação da Psicologia Social com as políticas púbicas, em especí-
fico no caso do setor da cadeia produtiva da reciclagem organizada na
perspectiva da Economia Solidária, visando à inclusão dos catadores. Para
tanto, estabeleceram-se os seguintes objetivos específicos: (a) caracteri-
zar o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR)
mostrando sua história, objetivos, conquistas e desafios; (b) apresentar os
avanços que a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n. 12.305, 2010)
possibilita à sustentabilidade ambiental e à inclusão dos catadores; (c)
analisar as possibilidades e desafios da Economia Solidária como alterna-
tiva para a autogestão dos catadores; (d) discutir a contribuição da Psico-

158
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

logia Social Crítica, a partir do referencial teórico de Vigotski e Sawaia para


a inclusão do catador. Para atender aos objetivos propostos, definiu-se
realizar uma pesquisa de cunho bibliográfico, ou seja, desenvolvida com
base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e ar-
tigos científicos (Gil, 2010).
Verifica-se, no decorrer do estudo, que o cotidiano dos catadores é
marcado pela preservação da natureza há muitas décadas, mas também
por uma duradoura luta pelo reconhecimento do seu trabalho. É a partir
de sua organização coletiva mediante participação no Movimento Nacio-
nal dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) que conquistaram seu
reconhecimento enquanto categoria profissional, e sua consequente par-
ticipação nas políticas públicas resultou na publicação da Política Nacional
de Resíduos Sólidos (PNRS), em vigor desde o ano de 2010.
A situação dos trabalhadores catadores de materiais recicláveis é
caracterizada pela falta de oportunidades no acesso aos bens materiais e
simbólicos da sociedade, tais como o acesso à escolarização, à profissiona-
lização, aos cuidados com a saúde, entre outros. A exclusão vivenciada por
eles, decorrente da intensa desigualdade social existente na sociedade, é
um fenômeno complexo e multifacetado, isto é, um processo construído
historicamente a partir de condições subjetivas e objetivas vinculadas à
dimensão social. Isto significa dizer que o olhar da Psicologia deve superar
as visões dicotômicas e fragmentadas que separam o sujeito do coletivo,
o corpo do psicológico e o cognitivo do afetivo. Nesta perspectiva, Vi-
gostski (2000) defende a importância de se compreender a produção de
sentidos e significados dos sujeitos e o seu envolvimento com o contexto
em que vivem.

O surgimento do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais


Recicláveis (MNCR): em busca de valorização e direitos sociais

O Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis1


(MNCR) é um movimento social que organiza catadores de materiais reci-
cláveis no Brasil. Foi fundado em junho de 2001, no 1º Congresso Nacio-
nal dos Catadores de Materiais Recicláveis, em Brasília, reunindo mais de


1
Para mais informações, ver http://www.mncr.org.br

159
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

1.700 catadores2. Neste evento, foi lançada a Carta de Brasília, documento


que expressa as necessidades do povo que sobrevive da coleta de ma-
teriais recicláveis. Apesar de sua fundação ter ocorrido em 2001, o sur-
gimento do Movimento aconteceu em meados de 1999, no 1º Encontro
Nacional de Catadores de Papel, no qual os mesmos já impulsionavam a
luta por direitos em diversas regiões do Brasil.
O Movimento organizou três Congressos Latino-Americanos de Ca-
tadores. Em 2003 ocorreu o 1º Congresso Latino-Americano de Catadores
em Caxias do Sul – RS, com 800 participantes; em 2005, o  2º Congres-
so em São Leopoldo, RS, com 1050 participantes, e em 2008, o 3º Con-
gresso em Bogotá – Colômbia, com representação dos delegados de 15
países latino-americanos. Nos referidos congressos, aconteceram pales-
tras, cursos para capacitação, oficinas, apresentações e discussões sobre
a situação em que se encontrava esta categoria profissional, os desafios
que enfrentavam, as lutas e as conquistas pelos seus direitos, entre outras
problemáticas vivenciadas. Também foram elaborados, ao final do 1º e
2º Congressos, a Carta de Brasília e a Carta de Caxias, documentos es-
ses que foram apresentados à sociedade e às autoridades responsáveis
expressando a situação dos catadores da América, suas necessidades e
reivindicações.
Em março de 2006, o MNCR organizou a Marcha em Brasília, que se
tornou um marco histórico da luta dos catadores no Brasil, onde cerca de
1.200 catadores marcharam na Esplanada dos Ministérios e levaram às
autoridades suas reivindicações. Uma das exigências foi a criação de 40
mil novos postos de trabalho para catadores e catadoras de todo o Brasil.
O MNCR tem como missão contribuir para a construção de socie-
dades justas e sustentáveis a partir da organização social e produtiva dos
catadores de materiais recicláveis e suas famílias, orientados pelos princí-
pios que norteiam sua luta.
Seus princípios se sustentam na organização da categoria de catado-
res de materiais recicláveis de forma solidária. O MNCR, no seu primeiro
princípio, trabalha pela autogestão e organização dos catadores através

2
Conforme dados do MNCR, a profissão Catador de Material Reciclável existe desde meados
de 1950. Consideram que, enquanto categoria, sempre foram vistos como excluídos social-
mente, mas que sempre prestaram serviço à sociedade, mesmo sem dela receber o reconhe-
cimento, nem do poder público receber o pagamento devido por tal trabalho realizado.

160
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

da constituição de Bases Orgânicas e Comitês Regionais do Movimento


em cooperativas, associações, entrepostos e grupos, garantindo a parti-
cipação de todos os catadores na luta de seus direitos, por meio da de-
mocracia direta, na qual todos tenham voz e voto nas decisões, conforme
critérios constituídos nas bases de acordo.
Seu segundo princípio diz respeito à ação direta popular, que faz
com que os catadores partam desde a construção inicial dos galpões, sua
manutenção, até às mobilizações nas grandes lutas contra a privatização
do saneamento básico e do lixo, contribuindo para a preservação da natu-
reza, mas também lutando pelo devido reconhecimento e valorização da
profissão dos catadores.
Em seu terceiro princípio, o movimento busca garantir a indepen-
dência de classe em relação aos partidos políticos, governos e empre-
sários, mediante a luta pela gestão integrada dos resíduos sólidos com
participação ativa dos catadores organizados na execução da coleta
seletiva, triagem e beneficiamento final dos materiais, buscando tec-
nologias viáveis que garantam o controle da cadeia produtiva, assim
firmando com os poderes públicos e empresas privadas contratos que
garantam o repasse financeiro pelo serviço prestado à sociedade com
a reciclagem.
Quanto ao quarto princípio, busca-se o apoio mútuo  entre os
catadores, e a Solidariedade de Classe com os outros movimentos sociais,
sindicatos e entidades brasileiras e de outros países, para, desse modo, os
catadores conquistarem o direito à cidade, ao trabalho, moradia, educa-
ção, saúde, alimentação, transporte, lazer, transformação dos lixões em
aterros sanitários, transferência dos catadores para galpões com estrutu-
ras dignas e a efetivação da coleta seletiva.
Atualmente, a categoria profissional Catador de Material Reciclável
é reconhecida pelo Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO), com a seguin-
te Descrição Sumária: “catam, selecionam e vendem materiais recicláveis
como papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos
e outros materiais reaproveitáveis” (Ministério do Trabalho e do Empre-
go, 2010). Quanto às Condições Gerais de Exercício, o CBO considera que
o trabalho é exercido por profissionais que se organizam de forma au-
tônoma ou em cooperativas, para a venda de materiais às empresas ou
cooperativas de reciclagem, reconhecendo que seu trabalho é exercido a

161
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

céu aberto, em horários variados, sendo expostos a variações climáticas,


a riscos de acidente na manipulação do material, a acidentes de trânsito e
muitas vezes à violência urbana.
O MNCR considera uma conquista o seu reconhecimento no CBO,
porém destaca que muito ainda tem a ser feito enquanto reconheci-
mento da categoria, pois salienta que o catador é excluído do processo
de produção e sobrevive do que a indústria e o comércio rejeitam. O
movimento expõe que as grandes indústrias produzem seus produtos e
enriquecem apenas a classe dominante, que, por sua vez, explora seus
empregados. Essa indústria coloca seus produtos no mercado, lucra, mas
não se responsabiliza pelas embalagens e resíduos por ela produzidos,
permitindo que seus resíduos sejam despejados em aterros sanitários ou
em lixões.

A economia solidária como alternativa para a autogestão dos catadores:


possibilidades e limites

No Brasil, a proposta da Economia Solidária (ES) visa construir no-


vos paradigmas nas relações sociais de produção. A ES surgiu durante a
década de 70 na esteira da crise do modelo urbano-industrial, iniciada no
nível mundial e que também atingiu o Brasil, nos anos 80, e que tinha por
base o aumento da concentração de riquezas e de poder, o desemprego,
a precarização das relações de trabalho e a destruição ambiental, entre
outros problemas socioambientais. A ES nasceu, portanto, de um sério
questionamento sobre o tipo de desenvolvimento político e socioeconô-
mico que desejamos para a humanidade (Singer & Souza, 2000).
O autor enfatiza que a Economia Solidária surge como um modo de
produção e distribuição alternativo ao capitalismo, pois possibilita uma
economia (e uma vida em sociedade) baseada na cooperação, igualdade
e na autogestão, tendo por base a reorientação da economia a serviço do
ser humano.
No Brasil, desde a crise de acumulação capitalista, que se iniciou em
1980, acompanhada do crescente número de desemprego e exclusão so-
cial, a ES propõe a socialização e a democracia, partindo das lutas e práti-
cas dos movimentos sociais para modificar a sociedade (Schiochet, 2009).

162
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Assim, o autor mostra que, durante as décadas de 80 e 90, a glo-


balização e a reestruturação produtiva vêm acompanhadas da desmobi-
lização da sociedade civil devido ao enfraquecimento dos movimentos
populares. Nesta perspectiva, o Estado passa a ficar mais compromissado
com o poder privado e se descompromete com a questão social. Nas pa-
lavras do autor:
Essa ‘questão social’ caracteriza a conjuntura nacional na década de
1990. Após a derrota do projeto democrático popular em 1989, com
perspectivas de reformas estruturais profundas, assistimos ao descenso
da luta de massas, à desmobilização e à fragmentação do movimento
sindical e dos movimentos sociais. No âmbito da ação do Estado, sua
reorganização ao fazer frente às exigências da crise da acumulação do
capital significou a implementação de políticas explícitas de crescente
transferência dos recursos públicos para o sistema financeiro, e conse-
quente redução da responsabilidade pública para a questão social. En-
tão, aquilo que se chamou de ‘Estado mínimo’, nada mais foi do que um
Estado máximo para o capital, na sua capacidade de transferência de re-
cursos públicos da sociedade para um determinado setor da economia,
mais estrangeiro do que propriamente nacional, e mínimo para atender
aos direitos do povo e prover a nação de um projeto de desenvolvimen-
to. (Schiochet, 2009, p. 55)

Com isso, conclui-se que esta situação socioeconômica advém do


desemprego, precariedade, exclusão, descaso com os movimentos so-
ciais e lutas políticas. Portanto, a ES é uma alternativa para promover a
cidadania e a autogestão através da prática coletiva dos trabalhadores
por meio de EES (Empreendimentos Econômicos Solidários). Estes pro-
põem uma organização econômica mais justa e solidária. De acordo com
tal ideia, Schiochet (2009, p. 56) ressalta que:
Não há como negar que a Economia Solidária é uma estratégia própria
da sociedade civil. Contudo, com a chegada ao poder local das ‘forças de-
mocrático-populares’, passou a ser incorporada também na agenda dos
governos. Foi na segunda metade na década passada [entre 1990 e 2000]
que foram implantados os primeiros programas e ações governamentais
de apoio à economia solidária. Refiro-me aqui às iniciativas de cooperação
econômica e autogestão surgidas no âmbito dos programas de geração de
trabalho e renda.

163
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Essas iniciativas ganharam maior destaque e importância quando


implantadas em metrópoles como São Paulo, Recife, Bahia, entre outros.
Para Schiochet (2009, p. 56), “do ponto de vista das políticas públicas,
a inclusão da economia solidária nas ações governamentais explicitava
os limites e contradições do Estado mínimo para o social”, já que a ES,
como ação do poder público, demandava cada vez mais atenção como:
compor equipes qualificadas de gestores, planejar ações de longo prazo,
viabilizar capacidade de alocação de recursos e integrar, como constru-
ção de políticas públicas, o Estado à economia real das comunidades.
O autor aponta que as exigências da ES contribuíram para a crítica das
políticas públicas neoliberais e também ressalta a necessidade da parti-
cipação mais intensa do Estado no enfrentamento da desigualdade, po-
breza e injustiça social. Neste sentido, o autor defende que a ES deve se
constituir numa política pública que construa uma sociedade mais justa
e sustentável.

Diretrizes da Política Nacional de Resíduos Sólidos e a inclusão dos


catadores

Em 03 de agosto de 2010, foi publicada a Lei Federal n. 12.305, que


institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), sancionada pelo
Presidente da República. A referida lei estabelece princípios, objetivos e
instrumentos, bem como as diretrizes relativas à gestão integrada e ao
gerenciamento de resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsabi-
lidades dos geradores e aos instrumentos econômicos aplicáveis, nos ter-
mos do art. 1º da referida norma. A norma é aplicável aos responsáveis,
direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e a quem desen-
volva ações relacionadas à sua gestão integrada ou ao seu gerenciamento.
A PNRS utiliza como norte diversos princípios assecuratórios do de-
senvolvimento sustentável, cidadania e inclusão social, através da geração
de trabalho e renda, entre outros escopos do Estado democrático do direi-
to. Ainda objetiva, como rol exemplificativo, a proteção da saúde pública e
da qualidade ambiental; a não geração, redução, reutilização, reciclagem
e tratamento dos resíduos sólidos; o estímulo à adoção de padrões sus-
tentáveis de produção e consumo de bens e serviços; a capacitação téc-
nica continuada na área de resíduos sólidos e a integração dos catadores

164
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a respon-


sabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos. Essas previsões
podem ser constatadas nos artigos 6º e 7º da Lei n. 12.305 (2010).
É de suma importância destacar o art. 8º sobre os instrumentos da
PNCR, o incentivo à criação e ao desenvolvimento de cooperativas ou de
outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e reci-
cláveis e a educação ambiental.
A PNRS prevê, no seu Art. 15, um Plano Nacional de Resíduos Sólidos
e, no seu Art. 17, um Plano Estadual de Resíduos Sólidos, para os próximos
20 anos, sendo que tais Planos deverão ser atualizados a cada 4 anos. Al-
guns requisitos obrigatórios para estes planos são: a apresentação de um
diagnóstico de resíduos sólidos no Brasil e no estado, o estabelecimento
de metas para a redução, reutilização e reciclagem dos resíduos e rejeitos,
a instituição de metas para a eliminação e recuperação de lixões, associa-
das à inclusão social e à emancipação econômica de catadores de mate-
riais reutilizáveis e recicláveis, o desenvolvimento de programas, projetos
e ações para atender as metas previstas, a elaboração de meios para o
controle e a fiscalização. União e estados também precisam criar normas
para a concessão de recursos tendo em vista a implementação da política
de resíduos sólidos.
Conforme a PNRS, o art. 18, § 1º, II, coloca como critério priorizante
aos municípios implantarem a coleta seletiva com a participação de coo-
perativas ou outras formas de associação de catadores de materiais reu-
tilizáveis e recicláveis compostas por pessoas físicas de baixa renda para,
assim, obterem recursos da União.
No art. 19, X e XI, ficam expressos os conteúdos mínimos para o
Plano Municipal de Gestão Integrada, em que impõe a elaboração de pro-
gramas e ações de educação ambiental que promovam a não geração, a
redução, a reutilização e a reciclagem de resíduos sólidos e a elaboração
de programas e ações para a participação dos grupos interessados, em
especial o púbico já citado no art. 18 da PNRS.
Quanto ao Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, se refere
aos geradores de resíduos sólidos: industriais, serviços de saúde, mine-
ração, construção civil e geradores de resíduos perigosos, e o mesmo
impõe alguns conteúdos obrigatórios para a elaboração de seu plano,

165
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dentre tantos, destacamos o art. 21, § 3º, I que indica o estabelecimen-


to em regulamento para normas sobre a exigibilidade e o conteúdo do
plano de gerenciamento de resíduos sólidos relativo à atuação de coo-
perativas ou de outras formas de associação de catadores de materiais
reutilizáveis e recicláveis. Ainda que não haja um regulamento para nor-
mas relativas à atuação de cooperativas, conforme expresso acima, não
poderá ser dificultada a atuação das cooperativas ou outras formas de
associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, segundo
o Art. 50 da PNRS.
A PNRS assinala que poderão atuar em parceria com cooperativas
ou outras formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e
recicláveis os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes
dos produtos de pilhas/baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas e
produtos eletroeletrônicos para que se tomem todas as medidas necessá-
rias a fim de assegurar a implementação e operacionalização do sistema
de logística reversa3. Essas previsões podem ser averiguadas no Art. 33 da
Lei n.12.305 (2010).
O titular dos serviços públicos, sendo: União, Estados membros,
Municípios ou Distrito Federal, deve priorizar a organização e o funciona-
mento de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores
de materiais reutilizáveis e recicláveis para atender o cumprimento do art.
36, que trata da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos
produtos, o qual deve estabelecer sistema de coleta seletiva, implantar
sistema de compostagem, adotar procedimentos adequados referentes
aos resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis e aos rejeitos oriundos dos
serviços, entre outros procedimentos. Esta norma está presente na PNRS,
no art. 36, I, II, III, IV, V, VI e § 1º.
No mesmo sentido de apoiar aqueles que trabalham com resíduos
sólidos, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão
instituir regras com a finalidade de conceder incentivos fiscais, financei-
ros ou creditícios, à população, de acordo com o Art. 44, II da PNRS.


3
Lei n. 12.305 (2010), art. 3º, XII - logística reversa: “instrumento de desenvolvimento econô-
mico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a
viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveita-
mento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmen-
te adequada”.

166
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Contribuições da psicologia social crítica para a construção da cidadania


para os sujeitos da cadeia produtiva dos resíduos sólidos: um olhar a
partir de Vigotski e Sawaia

Um olhar a partir da psicologia de Vigotski

Na busca da construção de uma nova psicologia, Vigotski, junto com


seus colaboradores Luria e Leontiev, criaram uma nova psicologia, supe-
rando as duas tendências predominantes da época, a psicologia materia-
lista (ciência natural) e mentalista (ciência mental) que considerava o ser
humano somente como corpo ou mente. O ser humano é multidetermi-
nado e complexo, tendo ao mesmo tempo uma dimensão biológica, social
e psicológica. Esta abordagem possui três pilares centrais, que definem a
subjetividade humana, sendo: (a) as funções psicológicas têm base bioló-
gica, pois são frutos da atividade cerebral; (b) o funcionamento psicológi-
co se fundamenta nas relações sociais entre o indivíduo e a realidade; (c)
a relação que ocorre entre o homem e o mundo é uma relação mediada
por sistemas simbólicos (Vigotski, 2000).
Dessa forma, na visão de Vigotski, não é possível entender a
subjetividade, quando o homem é analisado de maneira isolada ou des-
contextualizado, mas sim a partir das interações sociais. A singularidade
do ser humano deve ser compreendida num momento histórico deter-
minado, numa sociedade específica, por meio das relações sociais espe-
cíficas a cada indivíduo. A concepção da base biológica está diretamente
ligada ao funcionamento psicológico, a partir do meio social, de modo que
“o homem transforma-se de biológico em sócio-histórico, num processo
em que a cultura é parte essencial da constituição da natureza humana”
(Oliveira, 1997, p. 24).
Ainda a respeito do funcionamento psicológico, Vigotski destaca o
conceito de mediação que ocorre nas relações entre o homem e o mundo,
sendo os sistemas simbólicos os elementos intermediários de tal relação.
Assim, o indivíduo é mediado pelo social e também provocador de trans-
formações no meio social. Desse modo, a “Mediação, em termos gené-
ricos, é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa
relação; a relação deixa, então, de ser direta e passa a ser mediada por
esse elemento” (Oliveira, 1997, p. 26, grifos no original).

167
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Vigotski (2000) definiu dois tipos de elementos mediadores, os ins-


trumentos e os signos. As ações concretas entre o sujeito e o mundo são
viabilizadas pelos instrumentos, como, por exemplo, o uso da calculadora
para a realização de cálculos de matemática. O controle das ações psi-
cológicas no ser humano, no entanto, é direcionado através dos signos,
também chamados de instrumentos psicológicos. Os signos são elemen-
tos que representam objetos, eventos ou situações.
A linguagem é um sistema simbólico de representação da realidade.
Segundo Vigotski (2000), a linguagem tem duas funções básicas: a primei-
ra é a de intercâmbio social, servindo para a comunicação entre os seme-
lhantes. Para tanto, é importante que se utilize signos compreensíveis por
outras pessoas, signos compartilhados que possam exprimir sentimentos,
vontades, pensamentos, entre outros. A segunda função da linguagem é
o pensamento generalizante, uma forma de organização do real através
do agrupamento de várias ocorrências de uma mesma classe de objetos,
eventos e situações, de uma mesma categoria conceitual.
Assim, a linguagem é aprendida pelo sujeito mediante interação
com a cultura na qual ele está inserido, e é utilizada como forma de co-
municação para com seus semelhantes. Para isso, o homem internaliza os
signos, dando sentidos aos significados das palavras. Os significados são
construídos ao longo da história da humanidade e os grupos humanos
modificam esses significados de acordo com suas relações sociais e com o
mundo em que vivem.
Vigotski (2000) aponta dois elementos do significado da palavra: o
significado e o sentido. O significado propriamente dito refere-se ao siste-
ma de relações objetivas que se formou no processo de desenvolvimento
da palavra, consistindo num núcleo relativamente estável de compreen-
são da palavra, compartilhado por todas as pessoas que a utilizam. O sen-
tido, por sua vez, concerne ao significado da palavra para cada indivíduo,
composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra
e às vivências afetivas do indivíduo.
Conforme Vigotski (citado por Prim, 2004, p. 102), “para compreen-
der os projetos, as escolhas e os motivos do homem, é importante conhe-
cer a sua afetividade”. O autor defende a ideia de que o aspecto intelec-
tual (pensamentos) não está separado do afetivo-volitivo (sentimentos e
emoções) e que juntos constituem a base da consciência humana. Dessa

168
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

forma, é importante investigar o subtexto do discurso para fazer a análi-


se do sujeito “pois compreendê-lo é encontrar a base afetivo-volitiva do
pensamento e fazer a análise psicológica é descortinar o plano interior
que está encoberto pelo pensamento verbal, que é a motivação”. Dessa
forma, os sentimentos e as emoções configuram interações complexas do
cognitivo com o afetivo, sendo os afetos a base da consciência humana.

Um olhar a partir da psicologia social crítica na America Latina


As ideias procedentes da Psicologia Histórico-Cultural com base
principalmente em Vigotski, Sawaia mostra como esta vem para a América
Latina e para o Brasil a partir do trabalho de Silvia Lane e Martin Baró. A
perspectiva desta psicologia, além de uma concepção histórica e crítica do
seu sujeito de estudo, também busca o compromisso social da psicologia
com a maioria da população oprimida e excluída pela desigualdade social.
Assim, no Brasil e na América Latina, vários autores, partindo de Síl-
via Lane e Martin Baró, construíram uma Psicologia Social Crítica e com-
prometida com as mudanças da sociedade em busca de mais participação,
democracia e igualdade social.
Sawaia (2001), seguindo os pressupostos de Vigotski, Espinosa e
Lane, cria na PUC-SP o Núcleo de Estudos da Dialética Exclusão/Inclusão
Social (NEXIN), que inicia as reflexões das relações entre a psicologia (afeti-
vidade) e a exclusão social. A referida autora argumenta que o processo de
exclusão social vai muito além da dimensão material, econômica, mostran-
do como ele é multifacetado e complexo, pois abrange a dimensão ética e
subjetiva, que ela chama de eticopsicossocial. Assim, o processo dialético
exclusão/inclusão social é constituído por três dimensões, sendo elas: a
objetiva/econômica, da desigualdade social; a ética, da injustiça e discrimi-
nação social; e a subjetiva, do sofrimento psicológico, que é denominado
de ético-político: “É o sofrimento de estar submetido à fome e à opressão,
e pode não ser sentido como dor por todos” (Sawaia, 2001, p. 102). O sofri-
mento mutila a vida de várias formas e atinge o sujeito por inteiro.
Sawaia (2001) considera que na gênese deste sofrimento está o sen-
timento de desvalor, de deslegitimidade social e o desejo de ser “consi-
derado gente”. Dessa maneira, o processo de exclusão também afeta a
subjetividade, causando-lhes sofrimentos de diferentes formas, diminuin-
do a autonomia e sustentando inúmeras formas de dominação, sutis ou

169
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

não. Assim, a autora afirma que, “sem o questionamento do sofrimento


que mutila o quotidiano, a capacidade de autonomia e a subjetividade dos
homens, a política, inclusive a revolucionária, torna-se mera abstração e
instrumentalização” (p. 101).
Nesse sentido, a exclusão atinge a dimensão ético-psicossociológica
que está relacionada com o subjetivo, o objetivo, o individual, o social, o
racional, a afetividade, e se constitui em todas as esferas da vida social.
Sawaia (2009, p. 357) enfatiza que todas essas dimensões também são
vividas como “necessidades do eu” e diz que: “São sentidos, significados
e ações que envolvem o homem por inteiro, nas suas relações concretas
com os outros e com a sociedade”. Dessa forma, a subjetividade é uma
dimensão tão importante quanto a organização econômica, social, políti-
ca e ambiental (objetividade/materialidade).
A Psicologia Sócio-Histórica de Sawaia (2009, p. 365) infere que “é
uma perspectiva analítica que entende que por trás da desigualdade so-
cial há vida, há sofrimento, medo, humilhação, mas também há o mais
extraordinário milagre humano: a vontade de ser feliz e de recomeçar
ali onde qualquer esperança parece morta”. Em vista disso, a autora, na
perspectiva da Psicologia Social Brasileira, considera o homem por inteiro,
de corpo e mente, emoção e cognição, determinado e determinante da
sociedade, de forma que o que acontece com um afeta o outro. Assim, a
subjetividade passa a ser constituinte da objetividade social, uma vez que
nos mostra que, mesmo na miséria, o homem não está reduzido às suas
necessidades biológicas. O descrédito social e a falta de dignidade são as
principais constituintes do sofrimento ético-político, então a autora des-
taca que “os homens se realizam com os outros e não sozinhos, portan-
to, os benefícios de uma coletividade organizada são relevantes a todos”.
Espinosa (citado por Sawaia, 2009, p. 367) considera que “os homens se
submetem à servidão porque são tristes, amedrontados e supersticiosos.
Enredados na cadeia das paixões tristes, anulam suas potências de vida
e ficam vulneráveis à tirania do outro, em quem depositam a esperança
de suas felicidades”. Por isso, afirma Espinosa, não se destrói uma tirania
eliminando o tirano, pois outros o substituirão caso as relações servis não
sejam destruídas. É preciso destruir as relações que sustentam a servidão.
Dessa forma, o investimento nos bons encontros entre os sujeitos propor-
ciona o aumento da potência de sua ação, fortalecendo ações revolucio-

170
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

nárias para a superação das dificuldades e lutas vivenciadas no cotidiano


dialético de exclusão/inclusão social.
O conceito de participação deve ser lido a partir dos múltiplos sen-
tidos que ele mesmo tem, já que vai desde a noção de adaptação até
a de transformação social (revolução). Na sociedade neoliberal, a ideia
da participação também foi afetada pela racionalidade instrumental, e a
afetividade se tornou um conceito central de sua definição, pois partici-
par implica estar afetivamente envolvido. O que equivale a dizer que não
há participação sem subjetividade, nem subjetividade sem participação.
Ambas são fenômenos da mesma substância, de modo que, para mudar
a qualidade da participação, é preciso mudar a ontologia da subjetividade
(Sawaia, citado por Prim, 2004).
A participação é uma necessidade do sujeito e, por isso, não pode
significar a renúncia deste de seus desejos individuais e, ao mesmo tem-
po, deve incluir o outro, o coletivo. A participação não deve ser uma obri-
gação moral ou uma renúncia de si mesmo, ela deve ser a busca pelo
desejo de ser livre e feliz. A ética da participação deve incluir a ideia de
potência de ação, que trata da passagem da passividade à atividade, e da
heteronomia à autonomia. A potência de ação pode ser definida como: “É
quando me torno causa de meus afetos e senhor de minha percepção. A
potência de padecer, ao contrário, é viver ao acaso dos encontros, joguete
dos acontecimentos, pondo nos outros o sentido de minha potência de
ação” (Sawaia, 2001, p. 125). Eleger a potência de ação como alvo da par-
ticipação ético-política equivale a buscar o sujeito que luta contra a escra-
vidão e que é defensor dos direitos sociais. Ela pressupõe o desbloqueio
de forças anteriormente reprimidas e inutilizadas das paixões e desejos,
incrementando a interioridade, visando ao crescimento da alegria.
Os homens realizam-se com os outros e não sozinhos, portanto, os
benefícios de uma coletividade organizada são relevantes para todos, e
a vontade comum a todos é mais poderosa do que o conatus individual,
e o coletivo é produto do consentimento e não do pacto ou do contrato.
“Bons encontros só são possíveis com justiça e sem miséria, quando não
há dominação instituída e excesso desproporcional do poder” (Sawaia,
2001, pp. 126 - 127).
Dessa maneira, o eixo de análise da participação popular deve in-
corporar a dimensão da subjetividade e dos afetos como dimensão funda-

171
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

mental, lembrando que isto importa em: (a) incentivar a participação po-
pular para lutar contra a potência do padecer em todas as esferas da vida
humana; (b) contemplar a afetividade no planejamento das políticas de
participação, considerando o sofrimento ético-político da subjetividade
que vive o processo dialético exclusão/inclusão social perverso; (c) evitar
o empobrecimento do campo perceptível e das necessidades; (d) planejar
ações de diferentes temporalidades, superando o paradigma da redenção,
que exige a renúncia e o sofrimento do presente, em prol da felicidade
futura; (e) manter acesa a comunicação permanente entre os membros
da comunidade.

Reflexões e propostas: a inclusão dos catadores

Verificou-se, na discussão apontada acima, que o MNCR, na sua po-


sição de representante dos catadores do Brasil, luta pelo reconhecimento
do trabalho de catador em defesa do meio ambiente e das gerações futu-
ras, através da sua participação ativa na execução da triagem e beneficia-
mento final dos materiais recicláveis. Uma outra bandeira defendida pelo
movimento consiste nos direitos dos catadores enquanto cidadãos,além
da realização de uma gestão integrada dos resíduos sólidos com participa-
ção ativa dos catadores organizados na execução da coleta seletiva, tria-
gem e beneficiamento final dos materiais, buscando tecnologias viáveis
que garantam o controle da cadeia produtiva e firmando contratos com o
poder público e com as empresas privadas, de tal forma que assegurem o
repasse financeiro pelo serviço prestado.
O movimento dialoga com toda a sociedade a necessidade de efe-
tuar controle social e age neste sentido, de modo que realizam marchas,
eventos e congressos regionais, nacionais e internacionais, cartas públicas
ao governo, entre outras ações. Neste trabalho, o conceito de controle
social, definido na Lei 12.305 (2010), o qual consiste em um conjunto de
mecanismos e procedimentos que garantam à sociedade informações e
participação nos processos de formulação, implementação e avaliação
das políticas públicas relacionadas aos resíduos sólidos.
Uma grande conquista do movimento a ser celebrada consiste no
reconhecimento da categoria no CBO, embora os catadores ainda se-
jam excluídos do processo de produção, sobrevivendo dos rejeitos das

172
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

atividades industriais e comerciais. Também como conquista resultante


do controle social realizado pelo MNCR e tida como um grande avanço
para as políticas públicas, cita-se a publicação da Lei Federal n. 12.305,
em 03 de agosto de 2010, que institui a PNRS estabelecendo princípios,
objetivos e instrumentos, bem como as diretrizes relativas à gestão in-
tegrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluídos os perigosos,
às responsabilidades dos geradores e aos instrumentos econômicos
aplicáveis. De forma explícita, a Lei é aplicável aos responsáveis diretos
e indiretos pela geração de resíduos sólidos, como também ao poder
público. Por outro lado, a Lei incentiva a criação e o desenvolvimento
de cooperativas ou de outras formas de associação de catadores de ma-
teriais reutilizáveis e recicláveis. Este incentivo torna-se propício para a
implementação e o desenvolvimento de empreendimentos de econo-
mia solidária, o que pode tornar efetiva a participação do indivíduo na
aplicação da lei. A denominação da preferência às cooperativas nesta lei
é um avanço para as políticas em ES, já que é escasso o apoio do Estado
nas ações da mesma.
Neste sentido, Schiochet (2009) aponta a necessidade da ES tornar-
-se uma política pública de Estado, e não de Governo como acontece até o
momento, e que ocorra assim a sua inserção no campo dos direitos e das
obrigações públicas. Tramita no Poder Legislativo federal uma proposta de
lei tratando sobre este tema, a qual possibilitaria incorporar a ES na agen-
da do Estado, transformar as demandas e necessidades da ES em direitos
dos trabalhadores e ainda garantir ações permanentes e para além dos
processos eleitorais como ocorre atualmente.
Se, por um lado, concretamente a Lei Federal n. 12.305 (2010) apon-
ta que o poder público poderá instituir medidas indutoras e linhas de
financiamento para atender, prioritariamente, entre outras iniciativas, a
implantação de infraestrutura física e a aquisição de equipamentos para
os grupos formados por tais catadores, por outro, cabe ao catador exigir
dos órgãos competentes que se cumpram os incentivos e as preferências
fixadas na referida lei, ou seja, exigir que se cumpra o que está no papel
através do controle social.
Conforme estudado por Sawaia (2009), a participação é uma ne-
cessidade do sujeito e, por isso, não pode significar a renúncia deste
de seus desejos individuais e, ao mesmo tempo, deve incluir o outro,

173
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

o coletivo. A autora sugere que o processo de exclusão social vai muito


além da dimensão material, econômica, pois abrange a dimensão ética
e subjetiva (ético-psicossocial), considerando que na gênese deste sofri-
mento está o sentimento de desvalor, de deslegitimidade social e o de-
sejo de ser “considerado gente”. Neste sentido, para superar a exclusão,
defende-seque a potência de ação é o direito que cada um tem, enquan-
to condição ontológica de se expandir, em busca da liberdade. Entende-
-se, assim, que é com o desenvolvimento da potencialização subjetiva
dos catadores de materiais recicláveis, o qual incorpora os valores éticos
na forma de sentimentos e desejos, que se torna possível repensar as
novas maneiras de relações e a superação do sofrimento ético-político
vivenciado por eles.
Nesta perspectiva, o papel da Psicologia com grupos, a partir da
participação popular, deve incorporar a dimensão da subjetividade e dos
afetos como dimensão fundamental, considerando que isto importa em:
incentivar a participação popular para lutar contra a exclusão vivenciada;
considerar a afetividade no planejamento das políticas de participação;
evitar o campo da falta de percepção e das necessidades; planejar ações
que contemplem a inclusão de todos na ação; manter a comunicação
permanente entre os membros da comunidade. Dessa forma, recorre-
-se a Sawaia (2009) e Vigostski (2000), os quais defendem que não há
participação sem subjetividade, nem subjetividade sem participação, e
para mudar a qualidade da participação, é preciso modificar a ontologia
da subjetividade humana.

Considerações finais

As dimensões de inclusão propostas por Sawaia (2009), em seus


estudos no campo da Psicologia Social Crítica, e aplicadas ao presente es-
tudo, implicam a participação popular do catador de material reciclável,
na qual devem estar contemplados, obrigatoriamente, a subjetividade e
os afetos dos catadores como dimensão fundamental. Esta participação
também deve contemplar a percepção atenta e a capacidade de comuni-
cação no grupo, considerando a sua organização em coletivo.
Entende-se, dessa maneira, que a inclusão dos catadores ocorre
mediante sua participação enquanto indivíduos organizados através do

174
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

MNCR gerando consentimento mútuo e tornando-se mais fortes que a


vontade individual, a fim de lutar contra sua exclusão, pelos seus direi-
tos sociais (direito à cidade, trabalho, moradia, educação, saúde, alimen-
tação, transporte e lazer), e pelo seu reconhecimento como categoria
profissional. A permanente participação social dos catadores, do mes-
mo modo como nas políticas públicas, resultou na PNRS, materializada
por meio da Lei Federal n. 12.305 (2010), a qual representa um avanço
no reconhecimento de seu trabalho, na responsabilização da população,
das entidades privadas e públicas, e também no apoio e incentivo às
associações/cooperativas de catadores. Constitui-se, assim, uma possi-
bilidade a sua organização institucional mediante a ES, desenvolvendo
Empreendimentos de Economia Solidária e possibilitando um trabalho
autogestionário, mais humanizado e solidário.
Contudo, é importante destacar que, embora os avanços alcança-
dos, é preciso que o catador realize o controle social das políticas, e que
siga participando de movimentos sociais, conselhos, entre outros, para
requerer seus direitos sociais não alcançados ainda.

Referências

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planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12305.htm
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pações. Acesso em 10 de outubro, 2012, em http://www.mtecbo.gov.br/
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sócio-histórico (4ª ed.). São Paulo: Scipione.
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ra Familiar do Oeste Catarinense: um estudo sobre a AGRIMA - Associação
de Agricultores Monte Alegre. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade
Católica, São Paulo, SP.
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ética da desigualdade social (2ª ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.

175
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre li-


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nomia Solidária: breve trajetória e desafios. IPEA - Mercado de Trabalho,
40, 55-59.
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gestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto.
Vigotski, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes.

176
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

O desenvolvimento da “questão natural” na obra de


Serge Moscovici
Tania Barros Maciel
Priscilla Maia Rangel
Marie Louise Trindade Conilh de Beyssac

Introdução

O objetivo do presente artigo é situar a proposição da “questão na-


tural” de Serge Moscovici, como objeto de estudo das ciências humanas,
e refletir sobre a contribuição do autor em tal empreendimento. Partimos
de uma pesquisa bibliográfica da obra naturalista do autor, artigos escritos
por pesquisadores sobre a trajetória de Moscovici, entrevistas publicadas
em periódicos científicos e não científicos, dentre outras obras que foram
consultadas para compor o cenário da época em que a proposição surgiu,
assim como as repercussões que suscitou e ainda suscita.
É importante iniciarmos por apresentar Serge Moscovici, laureado
com o prêmio da Fondation Balzan1 por sua contribuição à Psicologia so-
cial e ecologia, ao lado de Eric Hobsbawm, para a área da história no ano
de 2003. O pesquisador nasceu na Romênia, em 1925, em uma família
judia, e emigrou para a França em 1948. Logo nos seus primeiros anos
de vida, conforme narrado em sua autobiografia Chronique des Années
Égarées2, de 1997, conheceu a fome, o frio e a ira racial tendo, inclusive,
trabalhado em um campo de trabalhos forçados em Bucareste antes de
chegar à Paris do pós-guerra, com apenas um Franco no bolso.
Lage (2001), na apresentação da obra Penser la vie, le social, la na-
ture: Mélanges en l’honneur de Serge Moscovici, relata que, talvez por ter
enfrentado muitas adversidades na juventude, Moscovici tenha desenvol-

1
Para saber mais, acessar http://www.balzan.org/fr

2
Publicado em português com o título Crônica dos anos errantes: narrativa autobiográfica
(Moscovici, 2005).

177
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

vido o inconformismo e a capacidade de defender sua própria visão de


sociedade. Diz também que a obra de Moscovici não pode ser confinada
numa única disciplina, visto que ele é “autoridade científica indiscutível” e
que tem contribuído para o debate na história da ciência e da filosofia da
sociedade contemporânea, bem como contribuiu para o desenvolvimento
da Psicologia Social na Europa e abriu diálogos com outras disciplinas nas
Ciências Sociais.
Moscovici protagonizou na França sua trajetória acadêmica, onde
concluiu a graduação em Psicologia em 1949, e a partir de 1953 cursou a
École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), onde se doutorou
em 1961. Iniciou sua atividade profissional em 1955, como pesquisador
do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), e, entre 1969 e
1978, foi professor da École Polytechnique (França) e, de 1972 a 1980,
da Universidade de Paris. Fundou, em 1964, o Laboratório de Psicologia
Social na EHESS e, 15 anos depois, também fundou o Laboratório Euro-
peu de Psicologia Social da Maison des Sciences de L’Homme, em Paris
(França). Moscovici é responsável por teorias importantes para a Psico-
logia e áreas afins, como a Ecologia política, as representações sociais, a
da influência minoritária e a das decisões coletivas. Em seu currículo, há
13 livros de sua única autoria, 15 livros como organizador, 35 capítulos
de livros e 41 artigos de revistas científicas. Além do Balzan, recebeu di-
versos prêmios3 em vários países, entre eles o de Doutor Honoris Causa.
Como ambientalista, Serge Moscovici viveu o engajamento, desde o
fim dos anos 1960. Ele foi um dos primeiros a colocar as bases teóricas da
importância da “questão natural” para nossa civilização, e os fundamen-
tos de uma “ecologia política” que junta às questões essenciais decorren-
tes dessa relação entre cultura e natureza. Uma natureza que não tem
nada de um meio dado de uma vez por todas, mas construída e moldada
pelo homem. Próximo de René Dumont, no início dos anos 70, membro
dos “Amis de la Terre”4, ele participou na campanha de 1974 na França, e
se tornou um porta-voz ambientalista oficioso, antes de participar na fun-


3
O currículo e a bibliografia detalhada podem ser consultados em http://www.serge-mosco-
vici.fr

4
Em português, Os Amigos da Terra, associação fundada em 1970, visando ampliar a ação em
rede mundial do movimento Friends of the Earth, iniciado em 1969 por David Brewer nos
Estados Unidos.

178
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

dação do partido “Les Verts”, em 1984. Ele se afastou do partido no início


dos anos 1990, continuando partidário de um “movimento ambientalis-
ta”, que seria capaz de ser uma minoria ativa e levar nossas sociedades
em direção a um “naturalismo ativo”, cujo objetivo seria um asselvaja-
mento da vida social, frente às tecnociências incontroladas (Moscovici &
Lecœur, 2006).
Assim, a “questão natural”, tal como é denominada por Moscovici,
foi um dos campos merecedores de atenção ao longo de sua vida e pro-
dução desde o início. Ele dedicou quatro obras ao assunto, sendo o pri-
meiro livro de 1968, Essai sur l’histoire humaine de la nature; o segundo,
de 1972, La Société Contre Nature (Moscovici, 1975); o terceiro, de 1974,
Hommes Domestiques et Hommes Sauvages (Moscovici, 1976); e o quar-
to, de 2002, De la Nature: Pour Penser L´Écologie (Moscovici, 2007). Sua
atividade foi propulsora do movimento ecológico francês, tendo sido um
dos primeiros a conceituar a Ecologia política na década de 1970, criando
uma via por onde puderam fluir preocupações com os rumos do conheci-
mento científico e com as decisões sobre nosso modo de vida.
A seguir, analisaremos essas quatro obras, apresentadas em ordem
cronológica de produção, procurando evidenciar nelas o surgimento e de-
senvolvimento da “questão natural” na obra do autor, que se destaca como
um dos principais pensadores e trabalhadores, na França, no sentido filo-
sófico, pela Ecologia, conforme afirma Pascal Dibie5 no prefácio (“Adver-
tência”) no quarto livro de Moscovici (2007) dedicado à “questão natural”.

A história humana da natureza

Pascal Dibie (2006) relata que, em 1968, quando Moscovici escreveu


sua primeira obra naturalista – Essai sur l´histoire humaine de la nature –,
ela foi vista com curiosidade e também incompreensão, nos meios acadê-
mico e intelectual, principalmente pelo fato de Moscovici ter introduzido
a natureza como objeto das ciências sociais.
Entretanto, o historiador Jean Jacob, que mapeou no livro Histoire
de l’écologie politique (1999) as origens intelectuais das correntes am-
bientais que fazem parte do movimento político francês, apresenta Serge

5
Aluno de Moscovici, atualmente é professor de antropologia na Universidade de Paris VIII.

179
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Moscovici como um sociólogo proponente de um “naturalismo subversi-


vo”. Jacob descreve como “consistente” todo o seu trabalho naturalista e
argumenta que Moscovici defende uma reabilitação das tradições natu-
rais, de modo a tirá-las da humilhação em que a modernidade as jogou,
pois sua obra faz forte contestação de uma modernidade que pretendeu
liberar o homem dos ataques de uma natureza cruel e, para isso, terminou
por submetê-lo a uma série de pesadas restrições.
Para Jacob, por muito tempo a ecologia política francesa foi dividida
entre dois movimentos com diferentes sensibilidades, relativos a grupos
que refletem dois mundos diferentes. De um lado, intelectuais questio-
nando a modernidade e sua relação com a natureza. Do outro, um mo-
vimento de defensores associativos do meio ambiente natural, em vias
de desaparecer. O primeiro movimento relativisa a cisão natureza/cultu-
ra, que considera negativamente, enquanto o segundo tende a perpetuar
para defender uma natureza em sua relativa virgindade.
No final da década de 1960, Serge Moscovici (1968) propôs a “ques-
tão natural”, como alvo de atenção das ciências humanas, a partir do en-
tendimento de que cada século é atravessado por uma questão fundamen-
tal que mobiliza suas forças vivas. Para ele, as principais preocupações do
século XX estavam na necessidade de situar a humanidade entre as forças
do universo material, de modo a aumentar a capacidade humana de se
adaptar às mudanças de cenário, e no fato de as relações entre as socieda-
des estarem sendo cada vez mais impulsionadas pelo progresso científico.
Isso ocorria de tal modo que o progresso científico passou a estar
entre os fatores decisivos na organização, não apenas das relações sociais,
mas também dos conteúdos mentais da sociedade – fato sem equivalente
no passado. A revolução científica sem precedente, que ocorria na segun-
da metade do século XX, trouxe mudanças profundas nas condições de
vida humana, e equiparou em magnitude as forças e os processos que o
homem consegue dominar à intensidade da própria natureza, submeten-
do a totalidade do meio ambiente à influência humana.
Em entrevista a Stéphane Lavignotte, ocorrida em 2000, Moscovici
afirma que se interessou muito cedo pela relação do homem com a na-
tureza, provavelmente em virtude das consequências devastadoras da II
Guerra Mundial, e depois de ter lido a obra do filósofo Baruch Spinoza.
Ele destaca a concretude do potencial de destruição da bomba atômica

180
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

representou, tanto para a questão do conhecimento quanto para questão


da natureza (Moscovici, 2000).
Moscovici alerta sobre a mediação do mundo através do saber
científico, que passou a nortear o nosso entendimento de mundo, a des-
peito dos dados obtidos pelos nossos próprios sentidos. Para Moscovici
(1961/1978), esse estado de coisas decorre de um imperativo prático e
é irreversível, porque as pessoas deixam de esperar ter domínio sobre o
que as afetam, cedendo tal tarefa àqueles que podem fazê-lo melhor – os
especialistas.
A Teoria das Representações Sociais, desenvolvida em sua tese de
doutoramento concluída em 1961, explica como uma forma modificada
do saber científico apodera-se da consciência coletiva. Trata-se de um
fenômeno próprio das sociedades modernas. O abandono do senso co-
mum, decorrente da linguagem e da sabedoria acumuladas por comuni-
dades regionais ou profissionais, visto como fonte primordial e idônea de
prever o comportamento e os acontecimentos, conferindo-lhes sentido, é
lentamente abandonado e substituído pelo saber científico. Ao longo das
décadas ocorre a inversão do senso comum com as ciências. Elas é que
passam a inventar e propor muitos dos objetos, conceitos e analogias a
que recorremos para lidar com os desafios cotidianos.
Assim, Moscovici (1968) postula que a questão natural não se res-
tringe ao universo material, sendo ele apenas uma de suas manifestações
específicas. O significado da natureza precisa ser moldado por nós. Ele
não existe pronto, aguardando ser decifrado. Por isso, o autor considera
que a Ecologia Social tem aqui uma importante oportunidade de desen-
volvimento. Moscovici sugere que situemos “o governo da natureza no
coração das relações entre os homens e das relações desses com o mundo
exterior, para definir o sentido e fazer disso uma necessidade”6 (Moscovi-
ci, 1968, p. 18).
O entendimento da natureza como um universo material externo à
sociedade, e que deveria ser dominado pelo homem, se deve em parte à
contribuição da obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Entretanto,


6
Tradução das autoras para o trecho “situer le gouvernement de la nature au cœur des rela-
tions entre les hommes et des rapports de ceux-ci avec le monde extérieur, pour en fixer le
sens et en faire une necessite ».

181
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Moscovici nos relembra que a natureza outrora havia sido o lugar privile-
giado de onde se originavam as soluções para os problemas que afligiam
os homens, mas, que agora, a natureza deixou também de justificar o pre-
sente e inspirar o futuro. Segundo Moscovici, a partir da obra de Rousse-
au, toda a necessidade se concentrou na sociedade, e toda contingência
se refugiou na natureza. A sociedade passou a aparecer como inteiramen-
te reservada ao reino do sujeito, e a natureza exclusivamente concedida à
dominação do objeto (Moscovici, 1968).
Rousseau se opôs ao pensamento segundo o qual a ordem social
era uma fase ou grau da ordem natural. Para ele, o ser social se opunha ao
ser natural, e a sociedade humana era a sua própria obra (Vidal-Naquet,
2001). Assim, em obra, publicada em 1762, Rousseau propõe a necessi-
dade do contrato social se sobrepondo a ideias de retorno à natureza e ao
estado natural do homem. “A ordem social, porém, é um direito sagrado
que serve de base a todos os outros. Tal direito, no entanto, não vem da
natureza: funda-se, portanto, em convenções. Trata-se, pois, de saber que
convenções são essas” (Rousseau, 1999, pp. 54-55).
Moscovici analisa que a cisão com a natureza permitiu à sociedade
humana acreditar que era ela mesma obra do homem, o que o fortaleceu:
“O pensamento humano se sentiu dotado de uma energia desconheci-
da que o transportava para além dos limites dentro dos quais havia sido
confinado”7 (Moscovici, 1968, p. 20). E, em decorrência, o social passou
a ser entendido como gerador do próprio social, e a história passou a re-
presentar a anti-natureza. A natureza, por sua vez, passou a ser entendi-
da como super objeto a-histórico, separado da humanidade. Os humanos
afirmaram sua particularidade e se projetaram fora do mundo natural,
que passou a ser visto como “massa opaca e heterogênea, sem comuni-
cação imediata com os nossos desejos, sem uma linguagem comum com
o nosso espírito, a natureza assim concebida é o círculo do qual estamos
constantemente tentando escapar e de onde nós somos constantemente
expulsos”8 (Moscovici, 1968, p. 22).


7
Tradução das autoras para o trecho “La pensée humaine se sentit dotée d’une énergie incon-
nue qui la portait au delà des limites dans lesquelles on l’avait enfermée ».

8
Tradução das autoras para o trecho “Masse hétérogène et opaque, sans communication im-
médiate avec nos désirs, sans langage commun avec notre esprit, la nature ainsi conçue est le
cercle dont nous tentons constamment de nous évader et dont nous sommes constamment
expulsés ».

182
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Sendo assim, Moscovici propõe uma forma de continuidade entre


natureza e cultura, que leva a uma proposta de desconstrução da moder-
nidade mediante questionamentos filosóficos que convidam o homem a
rever seus determinismos (Jacob, 1999).
Moscovici (1968) aponta que não é possível estabelecer divisão rigo-
rosa entre a natureza do homem e a natureza das coisas. Os entendimen-
tos que temos do mundo são construídos em função do conhecimento de
que dispomos em determinada época, dos modos de ação característicos
em determinado grupo social e da imagem de mundo então constituída.
A partir disso, entende que a essência do homem é criar a si mesmo, para
combinar com os outros seres e criar seu estado natural. As intervenções
humanas evidenciam a renovação da natureza, que é simultaneamente
dado e obra. Os homens são agentes de transformação em ordens suces-
sivas e constituem uma realidade objetiva.
Assim, o estado de natureza proposto por Moscovici (1968) engloba,
em seus elementos, tanto as capacidades bio-psíquicas da espécie, como
também os fatores sociais. “O que é natural – no sentido estabelecido nes-
te presente ensaio – reverte uma expressão social, subentende-se obriga-
toriamente aos princípios econômicos, éticos, políticos, etc.”9 (Moscovici,
1968, p. 554).
Moscovici (1968) alerta que os modelos da natureza hegemônicos na
sociedade ocidental são baseados em metáforas antropocêntricas: “a terra
é povoada por humanóides”; “o ordenador do cosmos grego é um arte-
são”; “no universo de Newton os corpos se movem como uma bala de ca-
nhão ou um relógio”; “Deus realiza a sua missão como o faria um fabricante
de instrumentos matemáticos”. E observa que diferentes modelos de natu-
reza traduzem manifestações de uma evolução, uma história. De maneira
que nossas próprias fronteiras se expandem sempre que a natureza, decidi-
damente humana, atinge uma nova fase, expressa uma nova constituição.
Para o autor, pensar que o homem é criador e sujeito da natureza
nos leva a reconhecer que existe uma história humana da natureza, in-
dependente da história social; e assim conclui que a história humana da
natureza é o local de nossas ações e é a verdadeira “questão natural”.

9
Tradução das autoras para o trecho “Ce qui est naturel — au sens établi dans le présent essai
— prend une expression sociale, en se soumettant obligatoirement aux principes économi-
ques, éthiques, politiques, etc. ».

183
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Dibie (2007) explica que Moscovici dirimiu o dilema sociedade ou


natureza e a oposição sociedade/cultura.
Ele nos fez tomar consciência de que a natureza nos fabrica tanto quanto
nós a fabricamos; de que era necessário que nós retornássemos à concep-
ção porosa do mundo, ‘um sistema aberto’ no qual se poderia considerar
a natureza como natureza histórica, que contivesse o homem, o homem
como um dos fatores determinantes; de que a nossa natureza é certamente
histórica e de que em cada período da história nós nos constituímos em um
estado da natureza. (p. 10)

A evolução da humanidade teria ocorrido de certo tipo de relação


bio-natural para outro, de uma situação dominada pela seleção natural
para outra. São esboçadas novas relações com o mundo material, por
parte de cada conjunto social, de modo que se interferem e se condicio-
nam reciprocamente. Mas teria ocorrido uma confusão entre a realidade
e uma de suas figuras, de forma que o desaparecimento de um modo
natural de existência da nossa espécie foi considerado como o desapa-
recimento de toda a existência natural. Teria sido assim o surgimento da
necessidade de justificar o aparecimento da vida social, que teria origem
diversa da ordem natural.
Considerando a história humana, é possível reconhecer que a socie-
dade é continuamente oriunda da natureza. Moscovici afirma que “ne-
nhuma parte da humanidade, em momento algum, está mais perto ou
mais afastada de um estado de natureza, nem no passado primitivo nem
no futuro evoluído”10 (Moscovici, 1968, p. 556). A relação da sociedade
com a natureza articula a ordem social e a ordem natural em cada período
de movimento histórico, de tal modo que é possível afirmar que a socie-
dade e a natureza se sobrepõem.
Sobre a questão do “governo da natureza”, Moscovici propõe a cria-
ção de uma nova ciência, que teria como objeto a nossa ordem natural e
os processos pelos quais ela se estabelece. A “tecnologia política” foi por
ele definida como um saber que permite aos homens tanto dirigir o seu
destino coletivo, concebendo com antecedência a sua evolução, para pro-
vocar as suas fases sucessivas.

Tradução das autoras para o trecho “Aucune partie de l’humanité, à aucun moment, n’est plus
10

proche ni plus éloignée d’un état de nature, ni dans le passé primitif, ni dans l’avenir évolué”.

184
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Ela poderia se relacionar com a evolução simultânea das forças materiais


e da espécie humana considerada nas suas relações com essas forças. Ela
abraça também os aspectos interiores, qualitativos, tais como eles se mani-
festam na vida cotidiana e os grupamentos de disciplinas organizadas, jun-
tamente com os aspectos exteriores, quantitativos, do comércio contínuo
do homem com o universo11. (Moscovici, 1968, p. 668)

As repercussões dessa obra são numerosas, pois não apenas ela


trouxe o tema “natureza” para ser objeto de estudo nas ciências humanas,
como inaugurou a possibilidade de participar de movimentos sociais que
constituíram o que hoje conhecemos como movimento ambiental.

Sociedade contra natureza?

A obra seguinte, La société contre nature12 (Moscovici, 1972), com-


pleta a obra anterior de Moscovici, na medida em que explora a história
do homem, desde antes do surgimento do artesanato, e conclui por pro-
blematizar o retorno do homem na natureza, distinguindo este do mítico
“retorno à natureza”. Para isso, colocou e procurou resolver uma questão
fundamental: a oposição “natureza-sociedade” em diversas culturas.
Para compreender o valor de tal oposição em cada cultura, Moscovi-
ci recorre à etnologia, buscando uma apreciação analítica e comparativa.
Através de pesquisa minuciosa remontando às origens da humanidade,
buscando encontrar o ponto de fratura entre a natureza e a sociedade,
Moscovici conclui que, por mais longe que voltemos na história humana
e mesmo na sociedade dos primatas, estamos na presença de sociedades
organizadas. Ele mantém o argumento que sustenta ao longo de toda a
obra, de que a sociedade não é contra a natureza, mas está dentro da
natureza (Vidal-Naquet, 2001).
Assim, identificou que, na Grécia clássica, encontravam-se ao lado
da natureza ou da selvageria - o barbáro, a mulher, a criança, o escravo;
11
Tradução das autoras para o trecho “Elle aurait trait à l’évolution simultanée des forces ma-
térielles et de l’espèce humaine envisagée dans ses relations avec ces forces. Elle embrasse
ainsi les aspects intérieurs, qualitatifs, tels qu’ils se manifestent dans la vie quotidienne et
les groupements de disciplines organisées, à côté des aspects extérieurs, quantitatifs, du
commerce continu de l’homme avec l’univers ».
12
Publicada no Brasil em 1975 com o título Sociedade contra natureza.

185
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

e do lado da “cultura” o grego, os homens adultos e o cidadão. Já o índio


da América era, para Montaigne (1533-1592), um homem natural, e o ne-
gro da África era, para muitos estudiosos do século XVIII, um animal mais
próximo do macaco do que do homem. Entretanto, na compreensão atual
fazem parte da espécie humana, ou seja, são considerados “homens” –
mulheres, negros, tribos indígenas ou africanas. Moscovici reúne indícios
que mostram quão frágeis são as bases artificiais da cisão sociedade e
natureza. Para ele, as ciências se recusaram a transgredir certos princípios
filosóficos (Jacob, 1999).
Com a publicação de La Société contre nature são lançadas as bases
para uma filosofia política ambiental. Em sua argumentação, a sociedade
se afirmou gradualmente a partir da oposição com a natureza. Desde Hob-
bes (1588 - 1679), o entendimento concebido é de que o homem construiu
a sociedade para escapar das leis cruéis da natureza. A sociedade, obra
do homem, oferece paz e segurança. Assim, na formulação de uma visão
antropocêntrica, o estado de natureza passa a ser visto como estado de
guerra. A natureza é atrelada à desvalorização, e as manifestações da na-
tureza são depreciadas. O homem é entendido como um ser que merece
mais do que o que a natureza pode oferecer. Assim, com a promessa de
dias melhores, teria ocorrido uma passagem irreversível do animal para o
homem e da natureza para a sociedade, resultando em restrições pesadas.
Já que a sociedade “luta” contra a natureza, foi necessário lutar contra ela
em todos os lugares, de modo a expurgá-la. A natureza era inclusive vista
como um oponente temível que habitava cada homem. Por isso, era ne-
cessário romper com tudo o que lhe dizia respeito: o animal, o espontâneo
e o instinto, bem como enaltecer seu oposto: o ordenado, o codificado.
Moscovici identifica então, em um extremo, o homem selvagem, natural,
e o homem doméstico, civilizado, em outro. Para ele, o homem passa a ser
domesticado através do controle de tudo o que é natural, dentro e em vol-
ta dele. Assim, esse homem doméstico, pseudo-universal, é instalado ao
topo da civilização e posto como modelo a ser seguido; e o estado de natu-
reza passa a ser visto como parte de um passado já superado pelo homem
e a sociedade passa a ser vista como o seu presente e o seu futuro. O re-
torno à natureza passa a ser visto como retrocesso histórico (Jacob, 1999).

Moscovici destacou nessa obra a relação de exclusão e negação en-


contrada na base da ciência, que moldava e organizava as nossas condutas

186
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

políticas, econômicas e ideológicas. Ele se opôs à ideia de linearidade da


história e suas sociedades, além de defender o divergente, o inventivo e o
novo. Congregou-nos a um desaprender geral de nossa leitura de mundo,
chamou-nos a conhecer as ciências novas e ao que pudesse trazer uma
nova luz sobre as nossas origens. Mostrou que a natureza era rejeitada
pela antropologia, em favor do polo oposto, a cultura.
Anteriormente, quando se pretendia situar o lugar de nascimento
da sociedade na natureza, o ponto de partida era o devir social do hu-
mano. Moscovici, ao contrário, propõe como objeto “o devir humano do
social” (Moscovici, 1975, p. 27). Ele argumenta que a sociedade existe em
toda a parte, não surgiu com o homem e não irá desaparecer com ele.
Em oposição às teorias que defendem a descontinuidade entre natureza
e sociedade, Moscovici propõe uma natureza que decorre das mudanças
nela introduzida pelos homens; propõe a passagem de uma natureza que
nos fez a uma natureza que engendramos. Em suas palavras, “a sociedade
não é algo fora da natureza e contra a natureza, mas na natureza e pela
natureza” (Moscovici, 1975, p. 28).
Serge Moscovici implanta uma visão histórica do homem cujo desti-
no se inscreve nas relações com a natureza e evolui através das diferentes
formas de organização social. Tanto o livro Essai sur l’histoire humaine de
la nature quanto o livro de La société contre nature inspiraram o movi-
mento ambientalista emergente, bem como propuseram um conceito da
ciência que só agora está começando a ser compreendido por um número
mais amplo de pessoas.

Homens domésticos, homens selvagens...

Moscovici em Hommes Domestiques et Hommes Sauvages13 (Mosco-


vici, 1974) avança no delineamento da “questão natural” ao argumentar
que a ruptura do homem com a natureza consagra o mundo como exclusi-
vamente humano na sociedade, na cultura, no seio do qual o conhecimen-
to, a comunicação e no trabalho. E advoga por uma abordagem heterodo-
xa que propõe o “asselvajamento” tanto do homem como do social, num
naturalismo que é ao mesmo tempo força de subversão e de descoberta.
Publicado em Portugal com o título Homens Domésticos, Homens Selvagens, pela Livraria
13

Tempo Aberto em 1976.

187
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Essa obra de Serge Moscovici repercute como uma crítica ao mate-


rialismo e ao economicismo marxista, no qual a dimensão selvagem do
homem, é ligada a tudo o que remonta aos afetos, às pulsões e ao desejo,
à emoção e à sensibilidade. O autor recusa o dualismo subjacente e todas
as formas de dualismo que opõem o homem doméstico ao selvagem.
Moscovici (1976) inicia sua argumentação analisando a ruptura en-
tre natureza e cultura e aponta que isso se deu por meio de violência e da
coação, onde separar os homens de todas as outras criaturas foi lançá-los
numa aventura sem volta. Nessa forma ortodoxa de pensar, a natureza
subsiste, portanto, como ameaça de desordem e de opacidade. Assim,
para debelar tal ameaça e assegurar uma base às nossas ciências, ocorre
a ruptura com “a antiga aliança animista do homem com a natureza”. Essa
ruptura seria a condição de um “conhecimento objetivo”, a “condição” e
“o ideal” da ordem, da sociedade e da ciência.
Entretanto, argumenta o autor, existem imensas divergências en-
tre os grupos humanos quanto ao mundo a construir, ao saber parti-
lhar, às relações coletivas a instruir, etc. “O dilema ‘e’, ‘ou’ são os polos
de um antagonismo cujos caminhos e soluções correm o coração das
nossas sociedades com a tenacidade de um mal incurável” (Moscovici,
1976, p. 21).
Dessa forma, Moscovici organiza essa obra subdividindo-a em três
partes: a primeira trata do naturalismo, que é tido como força de subver-
são e de descoberta, nas palavras de Moscovici (1976, p. 9): “É a principal
corrente antagônica a partir da qual se erguem as grandes muralhas das
nossas filosofias, religiões ou ciências”.
A segunda parte do livro trata do papel de base do naturalismo no
desenvolvimento da teoria marxista, os vínculos orgânicos do natura-
lismo e do socialismo. A polêmica comum aos dois refere-se aos meios
pelos quais os homens são domesticados: desigualdades e coações dissi-
muladas nas relações sociais; divisão de trabalhos físicos e intelectuais;
o pendor de uma vida individual e a proliferação das interdições que
isolam e opõem; a ruptura da ligação com a natureza, com a exuberância
do mundo sensível e aos excessos do corpo, mortificados e recalcados
para a zona do passado, do perigoso, do inferior. Para Moscovici, os te-
orizadores da razão têm como objetivo eliminar o naturalismo. Ele é re-
legado ao ostracismo, apresentado como o contraste, como um mundo

188
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

às avessas, porque o seu entusiasmo, sua inquietação e suas iniciativas


perturbam a máquina geral do jogo social. Associado à derrota ou à de-
gradação, eliminado da memória, da vida prática dos movimentos so-
ciais, priva-os dos seus elementos mais enraizados. O naturalismo é uma
força efetiva que tem sido negada nessa fase das ciências, das técnicas
e dos progressos.
A terceira parte do livro trata da reunião de elementos para uma an-
tropologia naturalista. Onde havia o hábito de ver uma ruptura de evolu-
ção, Moscovici propõe uma evolução de rupturas. Onde anteriormente o
pensamento hegemônico colocava um “ou”, propõe colocar um “e”; onde
se erguiam barreiras, o autor propôs levantar pontes entre o primitivo
e o civilizado - seja entre o normal e o anormal; entre a sociedade e a
natureza; entre o homem e o animal. Admitir a diversidade de possibilida-
des leva à busca de um novo estilo de compreender e de viver, um estilo
considerado por Moscovici (1976) como mais justo, e a natureza sendo
considerada como mais humana. Dessa maneira, Moscovici propõe que
a antropologia tenha como tema não apenas a cultura, mas também a
natureza; propõe que as separações rígidas entre as ciências biológicas
e as ciências sociais passem a ser permeáveis, no sentido de abertura e
hibridização das ciências.
Em sua crítica, Moscovici advoga:
Uma nova ciência, mais apta para apreender uma rede de fenômenos ao
mesmo tempo social e biológico, trabalhando em condições que exigem
maior aproximação, maior lucidez sobre a interferência daquele que co-
nhece com o que ele conhece, que realizará a composição das ciências
atualmente de comunicação e permitirá apagar o conceito em questão.
(Moscovici, 1976, p. 14)

Para ele, a relação sociedade e natureza pode ser compreendida por


meio de duas grandes correntes: a ortodoxa e a heterodoxa, sendo a cor-
rente ortodoxa visível, estruturada, dominante, segura da sua influência
sobre as instituições ideológicas, religiosas, científicas. Moscovici avalia
que nessa corrente a hominização equivale à domesticação e correspon-
deria a um movimento inicial da humanidade, uma ruptura irreversível
na qual o homem se separa da desordem, do variável, do promíscuo e
instaura a ordem, o invariável e o codificado.

189
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Assim, para a corrente ortodoxa, a educação e as instituições são os


meios de desenvolver a capacidade de recusar os impulsos biológicos e
finalizar o que seria realmente a essência humana e a missão da humani-
dade: aperfeiçoar o homem.
Ele afirma que as ciências humanas teriam sido criadas para resolver
o dilema de qual dos dois – selvagem ou doméstico – é o humano. Assim,
poderíamos compreender o homem a partir da herança comum a todos
e a partir da essência a realizar. A herança comum a todos se refere ao
homem selvagem ou natural, sem família, sem ciência, sem religião, sem
lógica – com pensamento selvagem – possuidor de conhecimento mítico,
mágico, cumpridor das práticas sociais e técnicas limitadas. Enquanto a
essência a se realizar através da educação e das instituições pode levar
o homem à plena posse dos seus poderes intelectuais, sociais, técnicos,
científicos – o homem doméstico – forma um modelo superior da razão,
da cultura e do requinte.
Uma definição análoga está presente na distinção entre as nações
desenvolvidas e as subdesenvolvidas, entre os diversos sistemas sociais
existentes. É também a base que define as relações do homem com o
homem – uma relação de dominação. O homem selvagem é considerado
criatura negativa, ignóbil, selvagem, bruta, subdesenvolvida, abandonada,
enquanto o homem doméstico é considerado criatura positiva, civilizada,
desenvolvida, autônoma. No entender de Moscovici, “cada época cria es-
ses homens selvagens (bárbaros) declarados e os seus homens domésti-
cos afirmando-se como tais” (Moscovici, 1976, p. 25).
O princípio da diversidade e da gradação que as relações subenten-
dem é, portanto, o princípio da domesticação. Entre os humanos, destaca-
-se um grupo que, devido a certas qualidades, encontra-se afastado do
passado bruto, orgânico. Isso coloca-o na posição de saber, atuar, ajudar,
e obrigar grupos a atuarem frente às carências dos outros que precisam,
de tal modo que o grupo carente, ao final de um processo, torne-se como
o grupo superior. Para o homem doméstico, o mundo humano é estru-
turado na divisão e na hierarquia, fechado em proibições, regulado pela
carência.
Moscovici identifica ainda que domesticação envolve duplo contro-
le: interior e exterior. O controle interior refere-se ao orgulho pela re-

190
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

núncia do selvagem que nos habita e por sua domesticação. O controle


exterior alude ao fato de o homem tornar-se senhor e possuidor da natu-
reza, de direito divino, legitimado pela religião judaico-cristã e pela ciên-
cia racional. Nesse sentido, o homem doméstico, urbano, animal racional
afastado da natureza e sobrecarregado por tarefas mecânicas e hábitos
artificiais, perdeu o contato com o real e com ele próprio.
Para o autor, a corrente heterodoxa sempre foi definida em oposi-
ção, e, por isso, não possui continuidade, coerência ou capacidade con-
veniente. Essa corrente retrata “fugitivos quebrando a marcha regular da
sociedade e do progresso, o avanço da modernidade” (Moscovici, 1976,
p. 31).
Tal contracorrente se apoia na força do “asselvajamento”, que se re-
fere a permanecer perto da natureza ou aproximar-se dela em busca de
um homem diferente. Refere-se a “salvar o homem”, redescobrir o ho-
mem no homem, não mais “aperfeiçoá-lo”, já que a humanidade enuncia-
-se no plural, portanto, cada uma chama de barbárie o que não é de seu
uso, aquilo que se afasta de sua ordem comum.
Na argumentação de Moscovici,
A relação que é necessário reconstruir é uma relação de proximidade e de
associação. Não é a união de um sujeito positivo e de um sujeito negativo,
nem de um sujeito e de um objeto; cada um deseja e pode ser sujeito, inter-
locutor e exemplo para o outro. Donde a procura apaixonante de contatos
com as sociedades da América, da Ásia ou da África, os empréstimos que
lhes fazem, a curiosidade que lhes testemunham, o desejo de partilhar sua
vida. Nostalgia de outrora, de outro lugar, na verdade: todavia, comunica-
ção, troca e mistura no presente e nos atos. Apagar os contrastes, levantar
a hipoteca do antagonismo do doméstico e do selvagem, procurar os reen-
contros entre a facções variadas da espécie, as grandes viagens preparam
isso. As únicas viagens que contam: através da diversidade aceite das socie-
dades, das obras, do meio, indo em direção aos homens reconhecidos iguais
em dignidade, particulares na sua diferença. Acima de tudo, respeitando-se
enquanto ser vivo entre outros seres vivos. (Moscovici, 1976, p. 34)

Moscovici (1976, p. 33) observa ainda: “enquanto a razão e a cul-


tura separam, o corpo e a natureza unem”. Há semelhança entre a re-
conciliação com os modos de vida, as sociedades, os povos considera-

191
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dos mais próximos de uma existência simples, orgânica e a reconciliação


com o próprio corpo, com o que é simples e orgânico na sua própria
sociedade.
Esse autor sugere liberar de qualquer controle o corpo e a natureza
tanto interna quanto externa, e defendê-la das destruições operadas pela
técnica, pela violência do conhecimento metódico, das expectativas de
uma civilização embriagada pelos seus sonhos de possessão. E questio-
na: quem, senão os que instauraram a dualidade e decidiram seu sentido,
provou a razão de ser das subordinações do não reflexivo ao reflexivo, do
apercebido ao concebido, do ideal ao real, do inconsciente ao consciente,
do presente ao futuro, do simples ao complexo, do evidente ao oculto, do
corpo ao espírito?
O asselvajamento se rebela contra o conhecimento domesticado e
seus preceitos. Ele propõe que cada um possui um saber aprofundado
daquilo que lhe é indispensável ou daquilo que lhe agrada, e que nin-
guém é senhor do conhecimento, delegado a pensar pelos outros. Assim,
ele advoga pela alternativa de que cada um pode pensar “por si” e “com”
os outros.
Dessa forma, a corrente heterodoxa procura esquecer a ruptura e
fortalecer a aliança com a natureza, objetivando retomar o diálogo julga-
do impossível. Ela “asselvaja” e pede aos homens que o façam: “o assel-
vajamento serve para destruir o curso ordinário das coisas, para se fami-
liarizar com os termos de uma alternativa considerada como impossível,
o que é a estratégia própria de toda criação, seja qual for o domínio”
(Moscovici, 1976, p. 47).

Natureza: para pensar a ecologia

Em 2002, Moscovici publicou na França o livro De La Nature: pour


pensée l´Écologie14, que constitui um manisfesto à Ecologia. Trata-se de
um livro composto de artigos e entrevistas, no qual o autor faz um ba-
lanço de sua contribuição ao movimento ecológico mundial e qualifica
como “fantástica” sua experiência como um dos fundadores do movi-
Livro publicado no Brasil, com o título de Natureza – Para Pensar a Ecologia, pela editora
14

Mauad X, Rio de Janeiro, em 2007, traduzido por Marie Louise Trindade Conilh de Beyssac e
Regina Mathieu.

192
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

mento ecológico, cujas ideias e sensibilidade se disseminaram para pra-


ticamente todas as pessoas.
Por ser uma obra ao mesmo tempo de síntese e de retrospectiva, nela
Moscovici (2007) retoma a proposição de ações que questionem a convic-
ção de que a sociedade e a natureza se opõem, retornando ao princípio
segundo o qual os homens são atores biológicos e sociais da natureza, e
que a natureza é parte de nossa história, assim como somos parte dela. Re-
toma também o entendimento de “natureza histórica” e sua relação com
a sociedade é, até certo ponto, orgânica. Ele retraça a argumentação de
como as sociedades modernas formaram-se contra a natureza, no sentido
do uso da violência para dominá-la, combatê-la ou forçá-la. Moscovici ava-
lia a trajetória do movimento ecológico e propõe que toda verdadeira po-
lítica ecológica deveria ser feita visando uma sociedade pela natureza, que
redefinisse as necessidades e as produções de determinada sociedade, em
função de seus três tipos de recursos: os que consumimos e jamais serão
esgotados; os que consumimos mais rapidamente do que estes podem se
reproduzir; e os que supõem alguma regeneração, reciclagem.
Assim, para Moscovici, o sentido da ecologia política deveria ser
enfrentar os problemas que decidem a existência, colocá-los no cerne de
nossa sensibilidade, de nossas preocupações e de nossas consciências.
E isso é diferente da preocupação no desenvolvimento de tecnologias
verdes. Trata-se, por outro lado, de abordar profundas preocupações a
respeito do Homem e da espécie.
Moscovici preconiza que a valorização do desenvolvimento, como
forma de expressão do modo de vida atual, tem estado atrelada à destrui-
ção do passado – a um desenraizamento sistemático – para a construção
do futuro. O autor alerta que as coisas que duram deveriam nos interes-
sar mais do que aquelas de pouca duração; isso incluiria tanto os objetos
como as tecnologias e práticas do viver, que ele chamou de savoir-faire
e savoir-vivre. É por isso que Moscovici afirma que a “questão natural” é
fundamental, já que produzir um avanço técnico que destrói a vida, como
a bomba atômica, é algo muito grave.
Nessa obra, Moscovici reafirma seu pensamento naturalista e pro-
põe o “reencantamento do mundo”, subvertendo a metáfora de Max We-
ber (1864-1920) do “desencantamento do mundo” aplicada em sua obra
clássica da sociologia da religião A Ética Protestante e o Espírito do Capita-

193
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

lismo15 (2004), publicada pela primeira vez em 1904. Sem citar Weber di-
retamente, Moscovici aponta que, com o “desencantamento do mundo”,
a natureza desapareceu do pensamento moderno, propulsor da racionali-
dade instrumental da modernidade e da ciência moderna. Esse processo
se deu mediante a eliminação no animismo, da racionalização sistemática
dos fatos e da aniquilação do antropomorfismo, que, para Moscovici, fez
do homem um usuário e sobrevivente do mundo.
Pois, para ele, a partir do momento em que se desencanta o an-
tropomorfismo, o homem deixa de estar em seu lugar na natureza do
mundo. Torna-se um usuário do mundo, passa a ter que se adaptar a um
mundo visto como distante e estranho. E, para evitar a morte, torna-se
um sobrevivente.
Entretanto, Moscovici alerta que, com o avanço da racionalidade
instrumental, não apenas a natureza desapareceu, mas também as pai-
xões, as crenças e as tradições, assim, o mundo tornou-se racional, niilista,
desencantado. Assim, a racionalidade científica foi se consolidando como
única via de acesso à verdade, desqualificando todos os demais saberes.
Nesse processo, o homem deixou de se conceber como parte integrante
da natureza, passou a estranhá-la e a buscar sobreviver a ela, coisifican-
do-a e explorando-a de modo abusivo. Além disso, com o avanço de tal
racionalidade, as máquinas e o mercado se sobrepuseram aos homens,
produzindo uma “sociedade sem homens”.
Para Moscovici, a negação radical de todos os valores, tradições e
instituições, fundados numa crença ou numa ideia-força, nos leva a uma
sociedade sem qualidades, que forma um homem sem qualidades, num
mundo em que nada mais existe a não ser a máquina e o mercado. Tal-
vez seja esse o grande mal da civilização moderna: a produção de uma
“sociedade sem homens”, a partir do desencantamento do mundo nos
nossos tempos.
Moscovici (2007, p. 85) recorre ao filósofo Nietzsche (1844-1900)
para argumentar que “a ciência nos ensinou que o universo é uma má-
quina e que não precisa de nós”. Desse modo, desencantar o mundo é
desencantar os saberes do mundo. Tal desencantamento submete toda a
razão em busca da verdade, de modo que a razão acaba por contrapor-se
a todos os demais “erros” do entendimento humano.
Em alemão, “Die Protestantische Ethik und der ‘Geist’ des Kapitalismus”.
15

194
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

O autor aponta que, no final do século XX, a degradação dos recur-


sos naturais torna evidente que a vida depende da natureza e forçosa-
mente, depois de ter sido desprezada, a natureza reaparece no cenário
de preocupações humanas. O autor argumenta que a maneira de viver é
fruto da compreensão que temos das relações, e elas são fruto do pen-
samento e da cultura. Portanto, para enfrentar a crise ecológica, Mosco-
vici propõe uma nova maneira de viver, que assegure maior liberdade na
compreensão das relações que estabelecemos com a natureza e com a
história, e por isso, propõe a solução da “questão da natureza” por meio
do pensamento e da cultura.
Para tal, Moscovici distingue “sociedade concebida” de “socieda-
de vivida”, mostrando como a segunda constituiu, aos olhos da primeira,
um obstáculo à racionalidade. A sociedade concebida é imposta pela
racionalidade prudente e instrumental (rigor e eficiência). É indiferente
sobre os fins e neutra acerca dos valores. Ergue-se sobre a possibilidade
de eliminação dos sentimentos, dos entusiasmos individuais e dos caris-
mas coletivos, buscando tornar tudo uma rotina segundo procedimentos
comprovados. Por outro lado, a “sociedade vivida” encontra-se nas pai-
xões da alma, que exacerbam a intensidade dos nossos sentimentos e de
nossas crenças, fazendo com que os homens creiam e desejem, sofram e
se alegrem. A paixão é indispensável a toda ação humana e à ação cole-
tiva particularmente.
Para ele, o problema na atualidade é a discrepância entre a “socie-
dade concebida” (dirigida pela razão instrumental) e a “sociedade vivida”
(dirigida pelas paixões). A sociedade moderna entendia que a sociedade
vivida constituía um obstáculo à racionalidade, assim aceitou a perda das
tradições e o desaparecimento dos estados de efervescência, fez o luto
da sociedade vivida e instituiu em seu lugar a melancolia. É dessa discre-
pância que decorre o que Moscovici chamou de “a concepção apocalíp-
tica do mundo”, onde não existem mais alternativas para o progresso;
uma concepção que deixa a vida feia, as relações frias e constituindo um
aspecto anti-humano da riqueza advinda desse progresso, pois é uma ri-
queza que empobrece.
Para Moscovici, os movimentos naturalistas se opõem frontalmente
ao desencantamento da natureza, daí o autor propor a inversão da metá-
fora, o “reencantamento do mundo”, em seu lugar. Se no século XX lidou-

195
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

-se com desdém e indiferença para com os movimentos do homem em re-


lação à natureza, considerando-os retrógrados e à margem da sociedade,
hoje, isso já não é mais possível no século XXI.
Segundo Dibie (2006), o pensamento naturalista subversivo de Mos-
covici influenciou diversos intelectuais, a exemplo de Edgar Morin, Ilya
Prigogine, Isabelle Stengers e Junger Habermas. Para esse autor, a obra
de Moscovici pretendeu abrir as ciências humanas e desenvolver os pen-
santes, para que entendessem o homem em sua totalidade, incluindo a
dimensão da natureza. O naturalismo é a face escondida da humanidade,
que Moscovici buscou redescobrir e reabilitar, mesmo tendo que enfren-
tar a intensa força antagônica de uma cultura dominada pela razão.

Discussão

O objetivo do presente capítulo foi situar a proposição da “questão


natural” de Serge Moscovici como objeto de estudo das ciências huma-
nas e refletir sobre a contribuição do autor em tal empreendimento. Para
tanto, as autoras percorreram a obra ecológica de Moscovici em confor-
midade com a sequência das publicações na França: Essai sur l’histoire
humaine de la nature, La Société Contre Nature; Hommes Domestiques et
Hommes Sauvages e De La Nature: Pour Penser L´Écologie.
Moscovici, assim como a sua geração, foi fortemente impactado
pelas consequências devastadoras da Segunda Guerra Mundial e pela
ameaça de destruição que a bomba atômica representava para o proble-
ma do conhecimento e da natureza. Em entrevista a Maciel em Paris em
200816, Moscovici destaca que a bomba de Hiroshima teve consequências
duradoras e eternas, sendo um marco divisório em todos os aspectos e,
em especial, para as ciências humanas e sociais no século XX, dividindo o
mundo em antes e depois desse acontecimento.
Por isso, procurou mostrar a relação de exclusão e negação encon-
trada na base da ciência, apontar que tal relação moldava e organizava
as condutas políticas, econômicas e ideológicas da sociedade e como a
sociedade estava acrítica a tudo isso. Moscovici aponta para o fato de te-
Partes desta entrevista foram disponibilizadas em vídeo. Ver D´Avila Neto, Maciel e Figueire-
16

do (2014).

196
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

mos nossa percepção norteada por preceitos externos, por leituras que
tomamos como nossas, mas que são externas à nossa experiência, como
conteúdos veiculados pela mídia e pela ciência. O saber do senso comum,
decorrente da linguagem, da sabedoria acumulada pelos grupos sociais,
foi substituído pelo saber científico, de tal modo que ele (o saber científi-
co) é que passa a inventar e propor muitos dos objetos, conceitos e analo-
gias a que recorremos para lidar com os desafios cotidianos.

A sociedade teria rompido assim com a natureza, como se não fos-


sem historicamente entrelaçadas. Moscovici mostra que a sociedade é
continuamente oriunda da natureza, e que a relação da sociedade com
a natureza articula a ordem social e a ordem natural em cada período de
movimento histórico, de tal modo que é possível afirmar que a sociedade
e a natureza se sobrepõem. Para ele, a história humana da natureza é o
local de nossas ações e é a verdadeira questão natural.

Moscovici demonstrou que, para além das ciências da natureza em


seu sentido estrito, a contribuição das Ciências Sociais para a ecologia
é fundamental, chamando atenção para a gravidade do domínio e sub-
missão da natureza pelo homem. Ele explorou a concepção de cisão so-
ciedade/natureza, tal que a natureza era entendida como um universo
material externo; afirmou também que essa concepção constituía um
fenômeno recente, e teve suas bases em obras de filósofos como Jean-
-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes, que compõem o ideário iluminista
que teria permitido à sociedade humana acreditar que era ela mesma
obra do homem.
Moscovici subverte tal “obviedade” e propõe desconstrução da mo-
dernidade mediante questionamentos filosóficos que convidam o homem
a rever seus determinismos: somos parte da natureza; constituímos socie-
dades organizadas assim como os primatas o fazem.
Moscovici defendeu o divergente, o inventivo e o novo. Propôs um
desaprender a leitura de mundo hegemônica, chamando-nos a conhecer as
ciências novas e aquilo que pudesse trazer nova luz sobre as nossas origens.
Ele propôs a compreensão da relação sociedade e natureza, por meio da
corrente heterodoxa, que procura esquecer a ruptura e, portanto, fortale-
cer a aliança com a natureza para retomar um diálogo julgado impossível.

197
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Através da ecologia política, Moscovici propôs colocar os problemas


que decidem a existência no cerne de nossa sensibilidade, de nossas pre-
ocupações e nossas consciências.

Referências

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Rio de Janeiro: Zahar Editores. (Original publicado em 1961)
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Amarante, Trad., Coleção EICOS, Série Memória Cultural). Rio de Janeiro:
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198
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Moscovici, S. (2007). Natureza – Para pensar a ecologia (Coleção EICOS. Sé-


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de Serge Moscovici (pp.  509-543). Paris: Les éditions de la Maison des
sciences de l’homme.
Weber, M. (2004). A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras.

199
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Desastres e interdisciplinaridade: diálogos para a


transdisciplinaridade
Alisson Tiago Gonçalves Vieira
Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro
Mariana de Moraes Duarte Oliveira

Introdução

Buscamos discutir a interdisciplinaridade1 como instrumento de


construção do conhecimento e intervenções em situações complexas,
apresentando os conhecimentos de profissionais de diferentes áreas ad-
vindos de suas experiências em pesquisas e ações, viabilizados pelo Fó-
rum Interdisciplinar sobre Desastres. Para isso, foram realizados recortes
das falas dos palestrantes com o objetivo de identificar os enunciados
alusivos à definição de desastres e às formas de intervenções no âmbito
da prevenção.
O Fórum Interdisciplinar sobre Desastres foi um evento propos-
to pelos estudantes e pela tutora do grupo do Programa de Educação
Tutorial (PET) de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas e teve
como norte a interdisciplinaridade que se configurou na formulação do
projeto do evento, nos eixos temáticos, na escolha dos profissionais e no
seu desenvolvimento.
Utilizamos o conceito de gêneros do discurso proposto por Bakhtin
(1992) para a articulação e discussão da interdisciplinaridade como instru-
mento possível de ampliação e configuração de um saber transdisciplinar
sobre o tema dos desastres, a partir dos diferentes campos de saber, for-
mas de conceber e intervir sobre esse fenômeno.
1
Este texto foi elaborado a partir da apresentação realizada no grupo de trabalho denomina-
do Políticas públicas como práticas sociais: a contribuição da Psicologia no enfrentamento
das vulnerabilidades associadas às questões ambientais, durante o XVII Encontro Nacional
da ABRAPSO, em 2013.

200
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Desastres
Situamos a princípio a definição de desastres apresentada pelas
Nações Unidas como uma “ruptura séria no funcionamento de uma so-
ciedade envolvendo perdas e impactos humanos, materiais, econômi-
cos e ambientais extensos que excedem a capacidade da comunidade
afetada de se recuperar utilizando seus próprios recursos” (UN - United
Nations, 2009, p. 9).
Nos últimos anos, temos presenciado na mídia repercussões sobre
desastres ocorridos no Brasil. Desse modo, representando a ciência, pro-
fissionais de múltiplos campos de saber têm sido convocados para refle-
tir sobre os eventos, com o objetivo de elaborar estratégias, técnicas e
tecnologias para a prevenção, controle das causas e reparo dos efeitos
produzidos pelos desastres.
Durante muito tempo verificou-se uma preocupação das comunida-
des mundiais voltada ao pós-desastre. Ações e investimentos para comba-
ter os efeitos de catástrofes depois de terem ocorrido e um sério desequi-
líbrio entre os gastos despendidos com a resposta aos desastres e aqueles
despendidos com prevenção, mitigação, treinamento e preparação. Res-
salta-se que as intervenções no âmbito da prevenção são relativamente
recentes, sendo influenciadas pelas mudanças econômicas e sociais que
ocorreram ao longo do século XX, especialmente a expansão das áreas ur-
banas e as migrações desordenadas, que consequentemente acarretaram
o aumento das áreas de risco e da ocupação destas pela população. Os
altos custos econômicos na mitigação e na prevenção de desastres e a re-
volução da tecnologia da informação favoreceram a criação de novas for-
mas de enfrentamento e gerenciamento dos eventos (Alexander, 1997).
Alguns movimentos, no Brasil, ocorreram para uma mudança de
perspectiva, da ênfase no pós-desastre para a prevenção. Em 2010, foi re-
alizada a I Conferência Nacional de Defesa Civil e Assistência Humanitária,
cuja temática foi discutida por 1.179 municípios brasileiros que fizeram
suas conferências nos âmbitos municipal, intermunicipal ou regional,
quando foram aprovadas 104 proposições para reformular o Sistema de
Defesa Civil no país. (Ministério da Integração Nacional, 2012).
A partir daí, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNP-
DEC), outorgada no ano de 2012 com o objetivo de gerenciar os desas-

201
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

tres, deu ênfase à prevenção, que norteou as demais diretrizes presen-


tes no Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil articulada nas cinco
fases dos desastres: prevenção, mitigação, preparação, resposta e re-
construção (Martins, 2013).
Em um dos artigos do Decreto Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012,
que normatiza a PNPDEC, institui-se como competência da União, dos Es-
tados e dos Municípios desenvolver uma cultura nacional de prevenção
de desastres, destinada ao desenvolvimento da consciência nacional acer-
ca dos riscos de desastre no país.
De acordo com os conceitos estabelecidos no Decreto Lei nº 7.257,
de 4 de agosto de 2010, conforme o artigo 1º, parágrafo único, prevenção
está definida como o “conjunto de ações preventivas, de socorro, assis-
tenciais e reconstrutivas destinadas a evitar ou minimizar os desastres,
preservar a moral da população e restabelecer a normalidade social” (Mi-
nistério da Integração Nacional, 2012).
No contexto da Psicologia, a atuação do psicólogo pode ocorrer des-
de a fase da prevenção. Em uma matéria publicada pelo CRP-RJ, Coêlho
(2010) expõe que uma situação de emergência e desastres atravessa di-
versas áreas da Psicologia e o profissional pode se inserir no âmbito da
prevenção por meio de atividades em escolas, em Unidades Básicas de
Saúde, nos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS). Ela também
entende que o psicólogo deve discutir o que é de interesse da comunida-
de, por meio de metodologias participativas e enfatiza que
O profissional deve favorecer uma situação grupal no sentido de discutir
todas as possibilidades e abandonar essa visão diagnóstica, de vitimização,
mostrando que as pessoas, como protagonistas, podem juntamente com os
psicólogos trazer conhecimentos para que se descubram novos caminhos
para prevenção. Além disso, é necessário o desenvolvimento de políticas
públicas eficientes que garantam que o psicólogo atue considerando a pers-
pectiva subjetiva das pessoas afetadas pelos desastres. (CRP-RJ, 2010, p. 10).

Gêneros do discurso

Para definir gêneros discursivos, Bakhtin (1992) parte do princípio


de que toda forma de comunicação humana se dá por meio da lingua-
gem. E que o emprego da língua é regido por formas de enunciados em

202
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

diversas modalidades, sejam elas orais e escritas, utilizadas por diferen-


tes integrantes da atividade humana. Os enunciados refletem as condi-
ções específicas e finalidades de determinados campos e diferencia-se
em seus recursos lexicais, fraseológicos, gramaticais e por sua construção
composicional.
Os gêneros do discurso são definidos como o conjunto relativamen-
te estável de enunciados, cujos elementos estão ligados indissoluvelmen-
te ao todo dos enunciados e são determinados por campos específicos do
conhecimento. Embora os enunciados sejam individuais, cada atividade
de comunicação elabora um gênero discursivo (Bakhtin, 1992).
Cada campo da atividade humana desenvolve uma multiplicidade,
riqueza e diversidade de gêneros do discurso. Tornam-se inesgotáveis e
infinitas as possibilidades de sua ampliação, de acordo com o desenvolvi-
mento e complexidade de determinado campo do conhecimento. A for-
mação desses gêneros discursivos efetua-se por meio de processos primá-
rios (simples) e secundários (complexos) pela articulação e reelaboração
dos enunciados. Os gêneros do discurso secundário são considerados os
romances, dramas, artigos científicos e gêneros publicitários que reela-
boram e incorporam os primários em seu processo de formação. Esses
gêneros surgem na comunicação imediata e perdem o vínculo com a rea-
lidade concreta e os enunciados reais, quando são integrados pelos com-
plexos, tornando-se uma materialidade nova (Bakhtin, 1992).
Ressaltamos a importância do estudo da diversidade de formas de
gênero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana, apon-
tada por Bakhtin (1992), ao considerar que todo trabalho de investigação
de um material linguístico concreto opera inevitavelmente com enuncia-
dos concretos (escritos e orais) relacionados a diferentes campos da ativi-
dade humana e da comunicação, tais como anais, tratados, textos de leis,
documentos de escritório e outros, diversos gêneros literários, científicos,
publicísticos, canais oficiais e comuns, réplicas do diálogo cotidiano (em
todas as suas diversas modalidades) e etc., em que os pesquisadores bus-
cam os fatos linguísticos de que necessitam.
Os gêneros do discurso apresentam diferentes estilos, relacio-
nados a diversas esferas do conhecimento, sejam eles artísticos, polí-
ticos, oficiais ou científicos; concebe-se que cada enunciado se torna
individual na escrita ou na fala do emissor. No entanto, os enunciados

203
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

possuem uma historicidade linguística e cultural e nenhum recurso fo-


nético, léxico ou gramatical surge sem experimentações e formações
de gêneros e estilos anteriores. Portanto, em cada campo do conheci-
mento são acionados enunciados e estilos próprios, delimitando o cam-
po discursivo, a historicidade e as práticas de uma atividade humana
(Bakhtin, 1992).

Interdisciplinaridade
O movimento da Interdisciplinaridade surgiu por volta de 1960, na
Europa, com o objetivo de conceber uma nova forma de ensino, na qual
o conhecimento não seria mais compartimentalizado, estabelecendo as-
sim uma relação entre disciplinas distintas. Dessa forma, a interdiscipli-
naridade permite a produção de um conhecimento mais completo ou até
mesmo um conhecimento novo, possibilitando a construção conjunta de
novas significações, sendo todos os saberes agentes dessa produção (Dias
& Moura, 2009).
A interdisciplinaridade é aqui focalizada no campo da linguagem,
enfatizando os gêneros discursivos na perspectiva bakhtiniana. Seguindo
essa argumentação, podemos considerar que a análise dos gêneros dis-
cursivos possibilita identificar o caráter interdisciplinar da linguagem oral
ou escrita dos diversos campos do saber, visto que a linguagem está pre-
sente em quaisquer atividades, sejam elas científicas, culturais ou sociais.
O autor ainda defende que a compreensão se dá, então, no diálogo
entre os discursos. “O conhecimento tecido por fios advindos de inúme-
ros lugares, de diferentes campos do saber e de diversas naturezas, que
se entrelaçam em um constante movimento, tecendo-se e destecendo-
-se, de modo a formar uma rede hipertextual” (Dias & Moura, 2009).
A hipertextualidade, então, possibilita o desenvolvimento de uma rede
de conhecimentos de forma horizontal, descartando uma possível hierar-
quia entre eles.
A interdisciplinaridade foi debatida numa mesa redonda da ANPEPP,
na qual Spink (2012)2 discute a inserção desta nomenclatura nas instâncias
de fomento à produção científica como a CAPES. Considera que este movi-


2
Spink, M. J. -Interdisciplinaridade na Produção e Divulgação do Conhecimento Científico. XIV
Simpósio da ANPEPP, Belo Horizonte, 6 a 9 de junho de 2012.

204
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

mento se deve à produção de novas formas de conhecimento resultantes


de trocas teóricas e metodológicas, gerando novos conceitos e disciplinas,
em função dos estudos de fenômenos complexos. Entretanto, ao analisar
as possibilidades de divulgação desses conhecimentos, depara-se com a
dificuldade do reconhecimento do campo interdisciplinar pelas revistas
científicas. Propõe a análise da interdisciplinaridade na perspectiva da co-
municação, levando em conta a longa história da segmentação do saber
em áreas de conhecimento.
É nesse sentido que o Fórum Interdisciplinar sobre Desastres foi pro-
posto. Um espaço de diálogo entre profissionais de diversas áreas, onde
seria possível circular as linguagens sociais e os enunciados desses diver-
sos campos de saber e produzir novos conhecimentos sobre uma situação
complexa como os desastres.

Método

O Programa de Educação Tutorial de Psicologia (PET-Psicologia) ela-


borou o projeto do Fórum e apresentou-o em um evento interno realizado
por todos os PETs da Instituição de Ensino à qual pertence denominado
INTERPET. Esse evento é realizado trimestralmente e seu objetivo é pro-
mover o intercâmbio e a integração entre os grupos através das apresen-
tações das atividades realizadas pelos grupos, de discussões sobre aspec-
tos pedagógicos, políticos e administrativos.
O projeto do Fórum foi apresentado aos dez programas PETs da Ins-
tituição, informando os elementos constitutivos do evento, sendo eles:
princípios, objetivos, método e resultados esperados. É importante ressal-
tar que a proposta apresentou possibilidades para sugestões dos outros
grupos e eventuais mudanças no decorrer do desenvolvimento do proje-
to. Logo, cinco grupos escolheram participar da organização do evento,
distribuindo-se em cinco comissões: infraestrutura, comunicação, científi-
ca, cerimonial e financeira.
Os PETs da IES elegeram as comissões que lhes interessaram e fi-
caram responsáveis pelas atribuições descritas em cada uma delas, as
comissões foram coordenadas por integrantes do PET-Psicologia orienta-
dos pela tutora. Os estudantes discutiram com seus respectivos tutores
e os diálogos estabelecidos entre os grupos ocorreram por meio de reu-

205
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

niões, e-mails e mensagens em redes sociais para elaboração do método


das atividades e planejamento das etapas de execução do projeto. Cada
grupo convidou profissionais para enriquecer e ampliar o debate e a di-
nâmica discursiva sobre o tema.
Foram convidados profissionais com experiência no tema dos desas-
tres em suas respectivas áreas, sendo elas: Psicologia, Assistência Social,
Meteorologia, Defesa Civil, Medicina, Enfermagem, Economia, Letras, as-
sim como um integrante do movimento cultural da cidade. As atividades
desenvolvidas consistiram em um Grupo de Discussão (GD) sobre a rela-
ção de desastres e violência na literatura e mesas redondas com temas
norteados pelos quatro (dos cinco) eixos da Lei nº 12.608, de 10 de abril
de 2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, sendo
eles: prevenção, preparação, resposta e recuperação.
As mesas redondas e o GD foram registrados por meio de mídias
audiovisuais, posteriormente transcritas, para produção de documentos
técnicos, registro documental da história dos PETs na IES e trabalhos aca-
dêmicos. O evento foi realizado em um auditório da Universidade, duran-
te dois dias, com ampla divulgação na mídia local, aberto à comunidade
acadêmica e à sociedade.
A interdisciplinaridade, como um princípio filosófico, político e ad-
ministrativo do programa, permaneceu na realização do Fórum, seja na
formulação dos objetivos, que foi o de ampliar o conhecimento dos estu-
dantes e profissionais de diversas áreas sobre o tema dos desastres, nos
eixos temáticos propondo discutir os modos de atuação profissional e nas
(inter)ações dos palestrantes, tutores, estudantes e sociedade civil.
As informações obtidas por meio das falas dos diversos profissionais
foram analisadas, neste trabalho, sob o foco dos gêneros do discurso pro-
posto por Bakhtin. Os recortes das falas constituíram-se pelos enunciados
que se referiram à definição de desastres e às intervenções relacionadas à
prevenção. Foram analisadas as formas de apresentação dos enunciados,
os campos de saber imbricados nas falas e a relação entre os conhecimen-
tos. Discutiu-se a partir dessas relações a possibilidade de articulação,
ampliação e produção de um saber transdisciplinar que contribuiria para
a formulação de políticas públicas de prevenção dos desastres no âmbito
da Defesa Civil.

206
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Resultados

O palestrante da Engenharia Civil se refere a desastres como um fe-


nômeno natural, proveniente dos fenômenos climáticos, tais como chuvas
intensas, que provocam o aumento do volume de água, respectivamente
nas cabeceiras, vertentes e calhas dos rios. Define desastres da seguinte
forma: “Então, pessoal, as inundações são fenômenos naturais, ocorrem
frequentemente, né? Em qualquer lugar do planeta”.
Quando esse volume não consegue mais ocupar a calha do rio prin-
cipal, extravasa pra uma área maior, de várzea ou também chamada de
planície de inundação. Esses fenômenos se ampliam quando tem ocupa-
ção urbana nas áreas de várzea, cujas atividades antrópicas, nas margens
ribeirinhas, tais como o uso da terra e dos solos, provocam o assoreamen-
to dos rios e intensifica o processo de inundação.
A inundação, ela ocorre em um sistema, o sistema chamado bacia hidro-
gráfica. Então, aqui eu tenho essa bacia hidrográfica e eu tenho a vizinha,
que vai formar a fluente dos rios menores, dos rios de cabeceira e que vão
formar também o rio principal dessa bacia hidrográfica ... Bom, mas pra en-
tender o fenômeno da inundação em si, a gente precisa entender sobre um
aspecto, uma variável que seria a vazão dos rios. (Engenheiro civil)

A psicóloga, cuja tese de doutorado analisa o tema dos desastres,


definiu esse fenômeno como um acontecimento humano e social, con-
siderando necessário despojá-lo de seu caráter natural, a fim de impe-
dir que se compreenda que são inevitáveis. Ressaltou a importância da
compreensão e reflexão sobre as ações humanas acerca do uso do meio
ambiente e do espaço geossociopolítico. Trouxe o tema da vulnerabilida-
de para entender os desastres ao abordar que “o desastre é uma lupa,
que faz enxergar uma situação de vulnerabilidade que antes ninguém via”.
Destacou a importância do trabalho transdisciplinar, propondo que os di-
versos atores de diferentes disciplinas e comunitários se articulem para a
prevenção e intervenção em desastres.
Apontou que para isso é imprescindível a compreensão do contexto
comunitário e compartilhamento de informações pelas equipes de profis-
sionais articulados com a comunidade para que sejam efetivadas as ações,
sejam elas no âmbito da prevenção ou intervenção. Considerou que o tra-

207
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

balho das equipes e do psicólogo devem articular-se intersetorialmente


com os profissionais que atuam nas políticas do SUS e SUAS, pois são essas
pessoas que conhecem o território e a comunidade.
Concomitantemente, considerou a importância de capacitações
desses profissionais nas equipes para que eles possam intervir de forma
responsável e com segurança. Dessa forma, o trabalho com a comunidade
deve estar voltado para o acolhimento, sensibilização e potencialização
dos sujeitos afetados para que, articulados com eles, possam ser realiza-
das as ações de prevenção e intervenção.
O profissional de Meteorologia explica que há uma diferença entre
fenômeno natural e desastre; considera as implicações da sociedade e dos
técnicos para a sua ocorrência, mas, apesar dessa imbricação, mantém a
nomeação dos desastres como um fenômeno natural.
Em meteorologia a gente pensa em desastre natural ou um fenômeno na-
tural que é uma chuva intensa. Esses fenômenos naturais não vão causar
um desastre natural, vai depender  da intensidade, vai depender do preparo
da sociedade e de uma equipe que vai tentar mitigar os efeitos de um fenô-
meno natural. (Metereologista)  

Adverte para a multiplicidade de eventos que podem ser considera-


dos como desastre:
O desastre natural não é ocasionado simplesmente por inundações, fura-
cões, tornados, e todos esses eventos amplamente conhecidos; terremoto
também está incluído, tsunami também, seca; seca prolongada também é
um causador de desastres naturais. (Meteorologista)

Considerou a realização de um trabalho multidisciplinar, em que são


articulados diferentes conhecimentos e disciplinas para o desenvolvimen-
to de tecnologias, planejamento de ações e realização de intervenções
preventivas. Dessa forma, compreende o desastre como um evento emi-
nentemente climático e físico com intervenções da sociedade civil e equi-
pe de profissionais de prevenção e resposta.
Explicitou que as ações de prevenção estão voltadas para o desen-
volvimento de tecnologias e conhecimentos que busquem monitorar os
níveis de água na atmosfera e prever o acontecimento e intensidade de
chuvas nas áreas de ‘alerta’. Assim, cita várias áreas de conhecimento

208
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

(hidrologia, geografia, geofísica), técnicos (modelos atmosféricos e hidro-


lógicos) e tecnologias (radar meteorológico, pluviômetros). Reconhece a
necessidade de múltiplos saberes.
O representante da Defesa Civil aborda os desastres como efeito de
intervenções humanas sobre o ambiente, sejam de forma direta ou in-
direta. Compactua com a desnaturalização do fenômeno proposta pela
psicóloga, durante sua fala. Propõe que o desastre seja entendido como:
Resultado de efeito adverso, natural ou provocado pelo homem, em um
ecossistema vulnerável, que provoca danos e prejuízos. O conceito que a
professora (psicóloga) colocou já é uma ideia discutida dentro da Defesa
Civil. [o desastre] não é tão natural assim, nós temos uma parcela de contri-
buição muito grande. (Representante da Defesa Civil)

Aponta para a necessidade de articulações entre as pessoas da co-


munidade e dos gestores públicos para o acompanhamento das ações
diante dos desastres. Considera imprescindível a articulação e potenciali-
zação da população tanto para as ações de prevenção quanto de recupe-
ração, após os acontecimentos.
A prevenção precisa que alguém dentro das comunidades, dentro dos muni-
cípios que levante essa necessidade, pois manda um alerta para o município
e não ligam. Precisamos mobilizar as comunidades, a gente não vai ter pre-
venção ou resposta se a gente não tiver uma comunidade preparada para
receber aquilo, caso contrário não terá como avançarmos. (Representante
da Defesa Civil)

A psicóloga, que trabalha na Defesa Civil (DC) da cidade do Reci-


fe, explanou sobre o trabalho executado pela Defesa Civil, focalizando
as ações de caráter preventivo. Informou que atualmente, em Recife,
há técnicos analistas da DC trabalhando diretamente com a questão
dos desastres; eles são das seguintes áreas: Arquitetura, Serviço Social,
Engenharia, Geografia, Geologia e Psicologia. Há, ainda, técnicos em
edificação e uma equipe de apoio responsável pela instalação de lonas
plásticas - um paliativo para evitar que a água das chuvas umedeça as
encostas dos morros e elas deslizem. Falou sobre o Programa Guarda-
-Chuva, desenvolvido pela CODECIR, um órgão permanente da Prefeitu-
ra do Recife que atua no combate à minimização e erradicação de riscos
nas regiões de morros e planícies alagáveis. A psicóloga ressaltou tam-

209
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

bém que esse programa realiza a intersetorialidade entre os diversos


órgãos da Prefeitura.
Porque como foi reforçado aqui sempre nas mesas anteriores, a Ângela falou
muito bem isso ontem, que não é uma preocupação que é pra um órgão só.
É uma preocupação que é da saúde, que é da assistência, que é da Secretaria
de Educação, então esse programa procura fazer essa interligação. (Psicóloga)

Além disso, a palestrante destacou como são realizadas as atividades


no âmbito das ações preventivas: o plano de localidades, que trabalha com
a documentação e a sistematização de todo esse conhecimento; identifi-
cação dos pontos, dos PSFs [Programa Saúde da Família] e quais os profis-
sionais que já estão atuando naquela área; as vistorias multiprofissionais,
executadas por engenheiros, assistentes sociais e psicólogos e às vezes ge-
ólogos, quando são feitos os cadastros sociais das pessoas, com foco nas
questões de risco; as vistorias da estrutura do imóvel cuja responsabilidade
fica a cargo dos engenheiros; e o estudo das barreiras, a fim de identificar
a probabilidade de ocorrer deslizamentos, devido ao tipo de terra do local.
Entre as ações também estão aquelas de caráter informativo, vol-
tadas à entrega de materiais, de casa em casa, com números de telefone
emergenciais; informações sobre pequenos cuidados que a população
pode ter a fim de amenizar acidentes; e procedimentos indicados para
que eles possam identificar os primeiros sinais de deslizamento de terra,
de uma enxurrada, por exemplo. Há também a realização de oficinas com
crianças, geralmente, de 3ª e 4ª séries, que tratam sobre a questão do lixo
como elemento que propicia desastres.
A assistente social, também palestrante do Fórum, que trabalha
no Serviço de Emergências e Calamidade Pública, informou que a pre-
ocupação com a prevenção de desastres no Estado de Alagoas tornou-
-se efetiva, a partir das enchentes ocorridas em 2010 em alguns muni-
cípios alagoanos. Apesar de este serviço estar previsto na Tipificação
Nacional dos Serviços Socioassistenciais, ela ainda encontra desafios
ao lidar com os profissionais que trabalhavam na Secretaria Municipal
de Assistência Social de um dos municípios afetados. Os profissionais
julgavam ser uma responsabilidade apenas da Defesa Civil as condições
do município pós-desastre e as ações que estavam sendo tomadas para
amparar as vítimas.

210
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Outro desafio abordado pela assistente social refere-se à falta de es-


tabelecer medidas concretas para prevenção e controle permanente dos
riscos em consonância ao desenvolvimento humano, econômico, ambien-
tal e territorial.
A gente não leva essa discussão pra comunidade, essa discussão, ela fica
no espaço da academia e no espaço dos profissionais que estão formu-
lando Política Pública. A gente não tá fazendo esse processo de discus-
são. (Assistente social)

O médico palestrante aproximou-se da realidade dos desastres tam-


bém a partir das enchentes de 2010. A sua fala corroborou com a pontu-
ação da assistente social em relação à ausência de uma cultura voltada
à prevenção dos desastres, apontando em seu discurso para a falta de
solidariedade, a deficiência das políticas públicas, a falta de acolhimento e
cuidado com o outro, sendo estes fatores que prejudicam a efetivação de
práticas interventivas durante os desastres.
O médico enfatizou os cuidados com as crianças e os idosos, que, se-
gundo ele, são as populações que precisariam de uma atenção especial e
acabam sendo desassistidas. Denunciou a despreocupação do governo lo-
cal com as questões de saúde e do acolhimento das crianças, em especial.
Embora a preocupação em dar abrigo e comida às famílias desabrigadas
seja pertinente, o palestrante considerou a necessidade de atenção e afe-
to dessa população. Em função disso, a equipe se aliou ao Conselho dos
Direitos das Crianças, a fim de efetivar ações voltadas à reestruturação
não apenas de moradias, mas também dos vínculos familiares, afetivos e
comunitários.
A gente tem que entender que precisamos pensar em ter políticas de Es-
tado, políticas perenes; pensar não somente na política do governo local,
daquela região, né? E aí lembrar a importância da valorização da família e
em especial nas situações de catástrofe. (Médico)

Discussão

Os repertórios utilizados pelos palestrantes para falar de desastres


vem de diversas áreas da Ciência, articulam-se com conhecimentos de

211
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

múltiplas áreas com o objetivo de explicar os fenômenos de desastres e


respaldar as ações preventivas e interventivas.
O engenheiro civil fundamenta seus argumentos com enunciados
que podemos identificar em duas áreas de conhecimento, a Geografia e
a Hidrologia. Embora considere aspectos sociais (a ocupação urbana) em
sua explicação sobre os desastres, a sua ênfase é caracterizá-los como um
fenômeno natural. Em contrapartida, a psicóloga desnaturaliza o fenô-
meno enfatizando o caráter social e a implicação que esse entendimento
acarreta. Também propõe a transdiscisplinaridade como dispositivo de ar-
ticulação entre os diversos atores profissionais e comunitários, nas ações
de prevenção dos desastres.
O meteorologista explica o desastre como uma imbricação entre
aspectos humanos e não humanos. Além do conhecimento científico de
sua área, enfatiza a necessidade de múltiplos saberes, inclusive o uso de
tecnologias e procedimentos técnicos respaldados em estudos matemá-
ticos, físicos, climáticos e atmosféricos para a prevenção e intervenção
nos desastres e ressalta o aspecto multidisciplinar nesses estudos para a
compreensão da complexidade desse fenômeno, também considera que
só é possível planejar e intervir com o apoio dos diversos conhecimentos
e da sociedade.
O representante da Defesa Civil apresenta sua explicação dos desas-
tres num diálogo com a proposição da psicóloga sobre a sua desnaturali-
zação. Concorda com ela e admite que a intervenção humana é produtora
dos desastres. Em seus enunciados, utiliza-se de repertórios da Ecologia,
ao considerar a influência do fator humano dentro de um ecossistema,
que integra os aspectos bióticos e abióticos. Para a prevenção enfatiza
o preparo da sociedade, sendo fundamental para o avanço nesta pers-
pectiva. De certa forma, dialoga com a proposição do meteorologista em
relação ao uso de tecnologias para emissão de alertas e avalia que a co-
munidade despreparada não reage a estas comunicações.
A ênfase no papel comunitário para a realização das ações tanto pre-
ventivas como de respostas também é relatada pela psicóloga que traba-
lha na Defesa Civil e pelo médico. Consideram que, sem apoio, colabora-
ção e sensibilização dos moradores, as intervenções propostas podem ser
ineficazes e improdutivas.

212
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Os palestrantes da Engenharia Civil e Meteorologia recorrem a gê-


neros discursivos advindos da Física, Geografia e Meio Ambiente para
suas explicações sobre as ações e intervenções preventivas e de resposta
frente aos desastres. Além disso, ressaltam o papel da ciência no desen-
volvimento de aparatos técnicos e tecnológicos para a prevenção e o de-
senvolvimento de recursos humanos e sociais em ações de resposta.
A partir da explanação da Psicologia, Assistência Social e Defesa Ci-
vil compreende-se que as ações preventivas e interventivas necessitam
de articulações com as equipes que trabalham com as comunidades em
risco, seja no âmbito da prevenção ou intervenção, com o objetivo de ela-
borar um mapeamento dos programas multiprofissionais nas localidades,
residências, aspectos geográficos e ambientais.
A utilização de repertórios de diferentes saberes, mesmo que não
implicados nos estudos e intervenções sobre desastres, auxiliam na com-
preensão e definição do fenômeno, amplia o campo discursivo e (re)for-
mula repertórios acerca deles. É ressaltado pelos profissionais que a atu-
ação frente aos desastres necessita de articulações com a comunidade
implicada, conhecer o contexto sociocultural, econômico, o espaço geo-
gráfico e ambiental, os recursos dispostos e a rede de profissionais que
trabalham na região.
Os conhecimentos apresentados pelos palestrantes se articulam em
alguns pontos, formam materialidades novas a partir do uso de diferentes
enunciados originários de múltiplas disciplinas e produzem conhecimen-
tos e intervenções conectados em uma rede promotora de ações preven-
tivas e interventivas. Com isso, entendemos que o processo de comple-
xificação dos gêneros de discursos simples ocorre a partir de práticas e
linguagem cotidiana (Baktin, 1992), sejam elas advindas da ciência ou da
sociedade, e contribui para a formação de saberes transdisciplinares e fa-
zeres interdisciplinares.
A rede enunciativa dos discursos possuem unidades responsivas, ou
seja, cada enunciado emitido (escrito ou falado) exige do ouvinte ou fa-
lante um papel ativo de concordância, objeção, execução e outras ações.
Assim, cada falante não possui por si a exclusividade da emissão dos enun-
ciados, pois o objeto do discurso de um locutor já foi falado, controverti-
do, esclarecido e julgado de diversas maneiras, ele não é o primeiro a falar

213
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dele. O enunciado está voltado não só para seu objeto, mas também para
o discurso do outro acerca deste objeto (Baktin, 1992).
Assim, os diálogos proporcionados pelo Fórum mostram essa in-
terdiscursividade dinâmica na emissão e formação dos enunciados acer-
ca dos desastres, pois são trazidos nas falas dos profissionais diferentes
enunciados de outras áreas, sejam para lhes dar estabilização ou para oca-
sionar eventuais tensionamentos nas contradições de seus argumentos.
Além disso, a partir dessa possibilidade de se pôr em diálogo esses
diversos conhecimentos, foi possível produzir uma movimentação dos co-
nhecimentos em função do papel responsivo dos enunciados, proporcio-
nando respostas interdisciplinares sobre as ações frente às catástrofes.

Considerações

A interdisciplinaridade está presente nos gêneros discursivos dos


participantes. Não é possível falar de um fenômeno complexo a partir de
uma única área de conhecimento. A ênfase na naturalização do fenômeno
de alguns discursos foi contraposta com a desnaturalização de outros. Po-
demos considerar que estes espaços de diálogo são produtores de novas
formas de compreensão e possibilidade de novos fazeres.
A prevenção foi enfatizada como uma prática interdisciplinar e a ne-
cessidade do envolvimento da comunidade, fundamental para a efetiva-
ção de práticas preventivas e interventivas nos desastres.
O Fórum proporcionou diálogos e reflexões entre os diversos partici-
pantes nos levando a defender esses momentos como possibilidades para
a concretização de práticas interdisciplinares ou até transdisciplinares. Os
conhecimentos e intervenções dos palestrantes se mostram congruentes
na defesa de práticas que consideram as pessoas da comunidade como os
principais atores nas ações frente aos desastres, pois apenas articulados
com elas é possível prevenir e minimizar os efeitos dos eventos.
Os profissionais ressaltam a importância de uma reflexão crítica e
ponderada sobre a utilização e exploração humana dos recursos naturais,
espaço geográfico e meio ambiente. Nesse sentido, para que haja pre-
venção, faz-se necessário o cuidado e uso reflexivo desses recursos para
evitar a probabilidade de ocorrências e minimização de efeitos.

214
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Apesar da contraposição entre natural e social, os diálogos nos mos-


tram que a viabilidade e articulação entre os diferentes campos de saber
são imprescindíveis nas intervenções de fenômenos complexos, pois é a
partir da articulação entre os diferentes saberes que se (re)constroem prá-
ticas interdisciplinares e potencializam-se compromissos éticos, sociais,
políticos, econômicos e ambientais.
Consideramos que a realização do Fórum contribuiu para desenvol-
ver habilidades de trabalho em equipe, integração entre os grupos PET e
discussão interdisciplinar da temática dos desastres; possibilitou conhe-
cer, compreender e debater sobre os diversos saberes, ações e relatos de
experiências dos profissionais.
Dessa forma, entendemos que diálogos e intervenções interdisci-
plinares contribuem para reflexões críticas, uma visão global e sistêmica
sobre o fenômeno e, consequentemente, para a formação e o desenvol-
vimento do conhecimento. Logo, possibilita a formação de profissionais
capacitados para trabalharem de maneira mais ampla e integrada na ela-
boração e promoção de políticas públicas de meio ambiente, Defesa Civil,
saúde, assistência social e direitos humanos.

Referências

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215
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

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Genebra: Autor.

216
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Performances tecnológicas em gestão para a


prevenção de desastres: o caso dos pluviômetros em
comunidades paulistanas
Mário Henrique da Mata Martins
Mary Jane Paris Spink

Introdução

Nosso objetivo com este texto é discutir as ações de prevenção de de-


sastres, focalizando o uso de tecnologias pela gestão da capital paulista e seus
efeitos em relação aos moradores de comunidades situadas em áreas de risco.
Consideramos que os aparatos tecnológicos que nos circundam são
a materialização do esforço humano para expandir capacidades e exercer
controle sobre diferentes tipos de fenômenos, dentre os quais, os fenô-
menos ambientais. Todavia, muitos autores defendem que essas tecno-
logias não são apenas dispositivos mediadores que aperfeiçoam nossa
existência e fazem seu trabalho conforme nossos anseios: elas emergem
de sistemas sociais e, assim, necessariamente refletem, internalizam e
transformam as relações de poder e as suposições culturais (Allenby &
Sarewitz, 2011; Latour, 1991; Law & Mol, 1995).
Por tal razão, conhecer os efeitos que as tecnologias têm produzido
na vida das pessoas possibilita compreender modos de viver em uma so-
ciedade que é constantemente influenciada pelas inovações tecnológicas.
Dentre as referidas inovações, salientamos o crescente investimento em
tecnologias de monitoramento e alerta de desastres ambientais decorren-
te, sobretudo, da preocupação governamental com os efeitos da mudança
climática, do deslocamento de pessoas para áreas de risco, do desenvol-
vimento da tecnologia e dos meios de comunicação e das propostas das
organizações nacionais e internacionais de criar uma cultura global de
prevenção de eventos catastróficos (Alexander, 1997).

217
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Os dispositivos utilizados para a prevenção de desastres têm passa-


do por importantes transformações com o aprimoramento das técnicas de
obtenção de dados, análise de riscos e o enfoque crescente no controle das
variáveis exercido à longa distância. Os métodos de controle à longa dis-
tância dependem da criação de uma rede de atores diversos. Nessa rede,
a proposta é que a informação possa fluir de um modo que mantenha sua
estrutura e o equipamento mantenha sua durabilidade (Law, 1986).
Contudo, é ainda um desafio para os gestores associar esse desen-
volvimento tecnológico à participação comunitária e ao engajamento de
moradores na prevenção de riscos. Dessa maneira, tem sido uma tendên-
cia pensar em modelos de gestão nos quais a população participe como
sujeito de direitos e deveres com saberes próprios capazes de contribuir
para a ação local. A esse novo modelo tem-se denominado “governança
local” (Spink, Clemente, & Keppke, 1999).
O modelo da governança local defendido para a prevenção de de-
sastres tem se apresentado como uma alternativa à gestão hierárquica
e centralizada praticada pelos gestores das Políticas Públicas, nacionais e
internacionais, por proporcionar a expansão da rede de interessados no
processo de tomada de decisões. Porém, formas de operacionalização de
tal proposta ainda são escassas, o que mostra a necessidade de estudos
de caso nos quais a governança local possa ser, em maior ou menor grau,
exercida de forma eficaz (Hardoy, Pandiella, & Barrero, 2011).
Para discutir essas interlocuções da tecnologia, participação comu-
nitária e novas formas de gestão, analisaremos a perspectiva de um gestor
sobre as ações do projeto Pluviômetros nas Comunidades, de responsabi-
lidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, pautado na lei de
Proteção e Defesa Civil brasileira (Lei n. 12.608, 2012). O principal objetivo
desse projeto é implantar pluviômetros em comunidades situadas em áre-
as de risco de modo a possibilitar o monitoramento da incidência de chu-
vas e a emissão de alertas com a participação de técnicos, especialistas,
governantes e população. Em 2013, a gestão do município de São Paulo
recebeu os primeiros pluviômetros e aguarda outro tipo do mencionado
instrumento para complementar a malha de monitoramento e alerta de
desastres da cidade. Os diferentes tipos desse equipamento coproduzem
modelos de gestão diferenciados e agregam-se à malha já existente de
outros pluviômetros.

218
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

O funcionamento conjunto de todos esses pluviômetros pode ofe-


recer uma compreensão do modelo de gerenciamento desenvolvido nas
comunidades em áreas de risco e na futura incorporação de estratégias
de governança. Mas, para isso, é necessário conhecer o cotidiano das pes-
soas que moram nas comunidades situadas em tais áreas e como elas se
mobilizam em torno da tecnologia, para, então, encontrar alternativas. O
presente estudo não teve o objetivo de esgotar tema tão complexo, mas
apresentar possibilidades que o estudo de tecnologias pode oferecer para
um modo de gerenciamento no qual a população também esteja presente
e mobilizada para a ação.
Os resultados da pesquisa apontam importantes avanços para o es-
tabelecimento de estratégias de governança local de desastres ambientais
e as dificuldades desse empreendimento quando pautado na tecnologia.

Teoria

O referencial teórico que orienta a presente discussão é a Semiótica


Material, tradição das ciências sociais que condiciona a existência de en-
tidades à sua ligação com outras entidades em uma rede. De acordo com
Law e Mol (2008), é um movimento que propõe lidar com as entidades
do mundo como efeitos gerados continuamente em uma rede relacional
dentro da qual estão situados. Dessa forma, na perspectiva da Semiótica
Material, nada assume um lugar no mundo ou produz realidades fora des-
sas relações.
Nesse contexto, um pluviômetro é efeito de uma rede em que ele
também produz efeitos. A essa relação mútua e concomitante denomi-
nou-se enactment. Ou, para uma tradução aproximada, performance.
Tal termo significa que a identidade de um dado objeto pode ser com-
preendida por meio do modo pelo qual ele é produzido em relação às
atividades, eventos, rotinas, coisas e conversas em práticas particulares.
Embasados nessa premissa, consideramos que o pluviômetro, como apa-
rato tecnológico, é performado em uma relação mútua com os técnicos,
especialistas, governantes, território e, especialmente, com os morado-
res das áreas de riscos e que o tipo de gestão para a prevenção de riscos
a ser implantado e o tipo de tecnologia utilizada estão intrinsecamente
relacionados.

219
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Método

Esta é uma pesquisa qualitativa pautada em estudo de caso do tipo


descritivo- analítico, cujas principais características são a abordagem es-
pecífica e contextual de temas amplos e complexos a partir da circunscri-
ção de um caso que serve como objeto de estudo, a descrição minuciosa
do caso e dos fenômenos a ele atrelados e sua problematização frente
a novas teorias e referenciais analíticos. Tal tipo de estudo nos ajuda a
entender como se tomam decisões e se age em relação a determinado
assunto e os efeitos dessas decisões e ações (Yin, 2001).

Procedimentos

A principal técnica de produção de dados adotada no presente estu-


do foi uma entrevista, compreendida como uma prática discursiva na qual
a negociação de sentidos sobre a temática exige o posicionamento do in-
terlocutor. Esse posicionamento produz versões da realidade que susten-
tam argumentos e outras práticas (Pinheiro, 1999). Foi empregado como
instrumento de coleta de dados um roteiro de entrevista do tipo semies-
truturado, que possui um planejamento aberto por parte do pesquisador
e possibilitou a expressão dos pontos de vista do interlocutor.
A forma de realizar a entrevista se aproxima do que Flick (2004) de-
nominou de entrevista com especialistas, pois o enfoque são as atividades
desenvolvidas pelo entrevistado e suas opiniões como especialista sobre o
assunto. O roteiro construído para a realização da referida entrevista pos-
sui questionamentos acerca do processo de instalação de pluviômetros
em comunidades situadas em áreas de risco da cidade de São Paulo e os
efeitos dessas instalações no cotidiano institucional e comunitário.

Participante

Os critérios para a seleção do entrevistado foram a participação


relevante na gestão para a prevenção de desastres na capital paulista, o
conhecimento sobre o processo de instalação de pluviômetros em áreas
de risco da cidade e a disponibilidade para a entrevista. O interlocutor
mais estratégico para nos fornecer tais informações foi o Coordenador de
Ações Preventivas e Recuperativas da cidade de São Paulo, pertencente à

220
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Proteção e Defesa Civil, que acompanhou todo o processo e formulou os


planos para a continuidade dessas ações, o que o posiciona como infor-
mante privilegiado sobre o assunto. Foi solicitada autorização para a gra-
vação da entrevista e posterior transcrição. A entrevista foi realizada em
abril de 2013, em local da preferência do interlocutor e com sua anuência
formal, conforme os princípios da ética em pesquisa com seres humanos
estabelecidos na resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012.

Análise de dados

A partir da transcrição da entrevista, definimos categorias gerais, de


natureza temática, referentes ao objetivo da presente pesquisa: descrição
dos pluviômetros, a importância do lugar na instalação desses pluviôme-
tros, os efeitos da implantação dos pluviômetros, formas de gerenciamento
de desastres produzidas pela instalação de pluviômetros em comunidades
vulneráveis. Organizamos o conteúdo da entrevista em tais categorias, pre-
servando a sequência da fala. Posteriormente, contrapomos essa fala à pro-
dução científica sobre o assunto, palestras proferidas a respeito do tema e
sites de órgãos federais de monitoramento e alerta de desastres. Finalmen-
te, considerando este primeiro processo analítico, organizamos os citados
materiais de acordo com os tipos de pluviômetros aos quais se referiam.

Resultados e discussão

A explicitação dos resultados da pesquisa foi organizada segundo os


diferentes tipos de pluviômetros utilizados na gestão para a prevenção
de desastres em comunidades situadas em áreas de risco: o pluviômetro
automático, o semiautomático e o pluviômetro de garrafas pet1. Também
foram abordadas as decisões e ações do entrevistado em caso de falha da
rede ou inexistência de pluviômetros em área de risco. A discussão é pau-
tada na produção teórica e prática da área e enfoca a importância do lugar
na instalação de cada pluviômetro, os efeitos dessa implantação para os
moradores e as diferentes formas de gestão para a prevenção de desas-
tres durante a instalação e operacionalização de pluviômetros em comu-
nidades vulneráveis, o que caracteriza suas diferentes performances.

1
Pet é uma abreviação de “Politereftalato de etileno”, material utilizado sobretudo na forma
de fibras para tecelagem e de embalagens para bebidas.

221
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Tipos de pluviômetro
Um pluviômetro é por definição “um instrumento que mede a quan-
tidade de água da chuva que cai em determinado lugar ou época” (http://
houaiss.uol.com.br). Sua função é produzir dados sobre a incidência de
chuvas. Mas essa é a versão simplificada da história. Afinal, existe mais de
um tipo de pluviômetro, como fica evidente num dos trechos do diálogo
com o gestor.
Pesquisador: Diz uma coisa, agora é uma questão técnica de diferenciação.
O que muda dos pluviômetros pet, para os pluviômetros automáticos e para
o futuro dos pluviômetros semiautomáticos?
Entrevistado: Ó, os automáticos vão fazer parte de uma rede de monitora-
mento do Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) e da Defesa Civil.
Uma coisa mais institucional para balizar a operação do plano e sistemas de
alertas. Os semiautomáticos são, mais do que você ter o equipamento, pra
você mobilizar a população. Então ele tem um aspecto que vai juntar duas
coisas: te passar uma informação e, principalmente, mobilizar a comuni-
dade. Porque ele vai ter que ler, por isso que ele é semiautomático. Ele vai
ter que ter alguém lá pra ler. Então o que significa? Você fazer um morador
ler isso daí. Ele vai ser o detentor da informação. Ele vai, depois de todo
treinamento, decodificar um comportamento em uma tomada decisão. Ele
passa a ser parte do processo e não só uma pessoa que está vulnerável.
Não, ele é a pessoa que vai deflagrar. Então tem uma diferença muito gran-
de. Uma coisa sou eu tirar essa conclusão, que aquela área está em risco de
escorregamento para a subprefeitura, sentado nessa mesa, recebendo um
boletim do CGE. E aí, essa informação você não sabe se vai para o morador.
Com certeza não vai. Outra coisa é partir do morador. Primeiro, que ele vai
sentir muito mais feliz e contente por saber que ele está fazendo é impor-
tante para aquela comunidade e a comunidade também vai saber que é
importante para todos. E aí a gente só é avisado. Quanto tempo a gente não
ganha nisso? Essa é a grande diferença.
Pesquisador: Certo, então o que diferencia as duas tecnologias é que uma
tem participação comunitária (que é o semiautomático) e a outra é uma
gestão mais institucional.
Entrevistado: Para balizar nossas decisões em uma coisa macro da cidade.
Pesquisador: Mas por que é que não fica, por exemplo, com os de garrafa
pet, eles não serviriam nesse caso?

222
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Entrevistado: Serviriam, cara. Mas existe todo um cuidado no treinamento,


da leitura e esse semiautomático vai ser muito mais fácil.
Pesquisador: A leitura do semiautomático é mais fácil?
Entrevistado: É, é mais fácil. Porque do pet tem que olhar, tem que medir,
tem que tirar a água, pra não deixar a água por causa da dengue, enten-
deu? E eu acho que o próprio semiautomático vai motivar mais as pessoas
a ficarem monitorando. E sem falar que é uma tecnologia que está aí e tem
recurso pra isso, cara. Você tá entendendo? Tem recurso pra isso, então
vamos usar, e eu acho que tem que usar mesmo.

Nesse trecho da entrevista, o pluviômetro é apresentado como um


equipamento complexo. O entrevistado relata as diferenças entre três ti-
pos de pluviômetros que estariam disponíveis para uso. Inicialmente, cita
dois deles: o pluviômetro automático e o pluviômetro semiautomático.
Em seguida, inquirido pelo pesquisador, comenta também sobre os plu-
viômetros de garrafa pet. Esta preferência pelos dois primeiros tipos de
pluviômetro fica clara em sua fala e as razões serão discutidas a seguir.
Pluviômetros automáticos
Os pluviômetros que o município de São Paulo recebeu no início de
2013 do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Na-
turais (CEMADEN) funcionam como bases de informação de referência
para as instituições de monitoramento da Defesa Civil. Estes são os pluvi-
ômetros automáticos. Um pluviômetro automático é um instrumento de
alto custo. Aqueles que foram concedidos pelo CEMADEN não demandam
energia elétrica porque possuem uma placa de energia solar e a informa-
ção que coletam das chuvas é encaminhada para os órgãos governamen-
tais via celular. O local escolhido para implantar os pluviômetros automá-
ticos foram os Centros Educacionais Unificados (CEU), da Prefeitura de São
Paulo. O entrevistado nos explica a decisão.
Entrevistado: No nosso caso, em um primeiro momento, a gente vai receber
12 automáticos e, num segundo momento, 33 semiautomáticos. Então, o
que nós fizemos? Eu sentei com o CGE, nós marcamos os 22 pluviômetros
que o CGE tem na cidade, tá até ali [me mostra um mapa de São Paulo com
as marcações]. Depois, o que foi que a gente fez... Aonde é que tem vazio?
Aqui, aqui e aqui [aponta para os pontos periféricos do mapa]. E o que eu
cheguei à conclusão? Quando eu peguei o mapa dos CEUs, olha onde estão

223
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

os CEUs: eles estão nas áreas periféricas! Entendeu? E aí eu falei: “Puxa, é


aqui que nós vamos colocar!”. Então, os doze que a gente está colocando
estão pegando CEUs mais nas extremidades, pra primeiro criar um moni-
toramento dessas áreas que bordejam o limite da cidade, que é por onde
entram as chuvas, geralmente vem por oeste, e quando vier a segunda fase,
esses 33, nós vamos adensar essa malha a ponto de São Paulo ficar aí com
praticamente quase setenta equipamentos.

Em um primeiro momento, ocorre a escolha de algumas regiões


para a implantação do pluviômetro. O primeiro critério para a escolha de
um lugar é identificar os vazios na rede de monitoramento e alerta de
riscos. Há uma rede operando. O que se busca é preencher os espaços e
adensar a malha existente a fim de obter dados cada vez mais específicos
e locais. A primeira informação diante da visualização da rede atual é que
os vazios estão localizados em regiões periféricas.
Um segundo critério para escolher o lugar no qual os pluviôme-
tros serão inseridos é a região por onde entram as chuvas. Quais re-
giões são essas? Novamente, as regiões localizadas nas extremidades
do município. Ambos os critérios associados indicam que as ações de
prevenção pautadas no monitoramento pluviométrico não haviam fo-
calizado os principais afetados pelas chuvas em São Paulo até o pre-
sente momento: aquelas pessoas que habitam regiões precárias, pou-
co beneficiadas por ações de governo e principais afetadas pelo fluxo
das chuvas na capital.
Após a escolha de uma região, eminentemente precária, o segun-
do momento é marcado pela escolha de um lugar no qual possa ser im-
plantado o pluviômetro. De acordo com o entrevistado, os pluviômetros
automáticos serão então, colocados em CEU, equipamentos da própria
prefeitura localizados nessas regiões. Mas em que lugar dos CEUs? E aqui
vem uma questão interessante.
Entrevistado: Então tem CEUs, por exemplo, que é um CEU mais sossegado,
que dá para colocar na laje do prédio da gestão. Mas tem lugares em que
a questão de segurança é muito mais complicada e a gente está optando
por colocar na caixa d’água por questão de segurança. Ela é mais fechada,
é difícil de subir. E até porque está num ponto alto, quer dizer, a captação é
bem eficiente.

224
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Para a alocação e implantação desse instrumento, é necessário,


minimamente, um espaço “seguro”. A justificativa do coordenador é que
é um instrumento caro, que não pode ser colocado em qualquer local.
As comunidades em que se implantam tais pluviômetros são comunida-
des carentes e o furto de instrumentos é um problema enfrentado em
diversos âmbitos dos equipamentos que operacionalizam as políticas
públicas.
Temos aqui o pluviômetro posicionado a partir de um lugar. Ele é
uma tecnologia de alto custo que precisa de um lugar com proteção e que
possa captar e emitir sinais, (dados) para os celulares dos responsáveis
por seu gerenciamento. Os responsáveis pertencem à Prefeitura de São
Paulo. Logo, um pluviômetro automático exige uma prática de cuidado
para o seu correto funcionamento que faz existir uma tecnologia de pre-
venção. Em que ela está pautada? Ele é o centro no qual se mobilizam
atores para performar uma prática de controle a distância.
E qual o efeito da implantação de um pluviômetro automático? A or-
ganização de uma rede via celular, a mensuração de processos climáticos,
a produção de dados e transmissão de informações da periferia para o
centro de controle. Em outras palavras, a implantação de um pluviômetro
automático mantém os técnicos e gestores informados sobre o território
sem que precisem estar presentes no local. Não é necessário que um dos
gestores vá até o CEU em que se implantou um desses pluviômetros para
saber a quantidade de chuva que tem caído. O pluviômetro automático
produz, como efeito de sua instalação, a transposição de regiões e instau-
ração de redes (Law & Mol, 1994). Além disso, muito mais do que enviar
informações, ele coproduz um lugar. Estar no alto de uma caixa d’água
relaciona-se à eficiência técnica do equipamento, pois promove uma boa
captação, e à proteção para evitar furtos e destruições.
Quando se busca um lugar seguro para implantar o pluviômetro,
o equipamento exige um cuidado, tendo em vista que membros dessa
população podem furtar o instrumento. Eles podem, com isso, simples-
mente, desestruturar a rede. As medidas tomadas para a implantação do
referido instrumento levam como necessidade posicionar a população
como perigosa para o equipamento de alto custo. Desse modo, por meio
dos pluviômetros automáticos, é quase impossível pensar uma forma de
gestão compartilhada para a prevenção de riscos, já que é um modelo tra-

225
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

dicional feito por técnicos. A população, de um lado, está sendo protegida


pelo Estado, mas, de outro, pode roubar instrumentos de prevenção.
E aqui cabe mais uma ressalva. O equipamento não é bom ou ruim
porque protege ou culpa a população. O pluviômetro serve para um pro-
pósito e não serve para outro. Nessa rede, o pluviômetro automático for-
nece informações diretamente para os técnicos e gestores. Isso contribui
para ações internas. Entretanto, como fica a população? A produção de
tecnologias e redes que sustentam o pluviômetro automático não se pro-
põe e nem pode se propor a um diálogo com a população. Ela é unilateral.
Não há participação social. Este é um instrumento que integra uma políti-
ca de “Proteção” e “Defesa” de civis. “Proteger” e “Defender” são verbos
que indicam a existência de defendidos e protegidos, o que sugere passivi-
dade de tais atores. Afinal, o que estamos protegendo ou defendendo? A
população ou o instrumento? Enquanto nos questionamos, o pluviômetro
automático reina absoluto em seu trono no alto da caixa d’água.
Mas não só de pluviômetros automáticos vive um gerenciamento
de riscos a distância. Utilizar apenas pluviômetros automáticos não é uma
prerrogativa para o gestor. Eles são uma opção. Outra opção são os pluvi-
ômetros semiautomáticos. E estes, sim, pressupõem uma forma de geren-
ciamento participativo.

Pluviômetros semiautomáticos

De acordo com a fala do entrevistado, o pluviômetro semiautomáti-


co é um aprimoramento tecnológico que integra a comunidade ao proces-
so de monitoramento e diminui a necessidade de manutenção constante
que outros tipos de pluviômetro exigiriam. Conforme o Programa Pluviô-
metros nas Comunidades, do qual fazem parte as iniciativas de concessão
desses instrumentos para as prefeituras:
O pluviômetro semiautomático a ser instalado próximo às áreas de risco de
deslizamentos realiza de forma automática a medida e o armazenamento
dos valores de intensidade e do acumulado de precipitação pluviométrica
que ocorre sobre o local. A leitura destes valores pode ser realizada direta-
mente em um visor digital (ou display), sendo que o sistema de armazena-
mento de dados (ou datalogger) apresenta funcionalidades que permitem
a conexão de um dispositivo externo para a retirada dos dados armaze-
nados, os quais poderão ser transmitidos manualmente, por equipes das

226
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

comunidades das áreas de risco, para os órgãos de monitoramento de de-


sastres naturais. (Cemaden, s/d)

Aqui temos um equipamento que, apesar de automático em sua co-


leta e armazenamento de dados, necessita de uma leitura por uma pes-
soa que tenha conhecimento para tal. Ele não encaminha diretamente a
informação. Logo, fica a pergunta: quem fará essa leitura e encaminhará
a informação? O entrevistado nos conta sua proposta: os moradores se-
rão capacitados para realizar a leitura das informações registradas pelo
equipamento e repassá-las aos órgãos responsáveis quando indicarem
que a quantidade de chuva ultrapassa os limiares de risco, sendo neces-
sário, portanto, emitir um alerta. Desse modo, mais do que um equipa-
mento que coleta dados que funciona por meio de controle a longa dis-
tância, o pluviômetro semiautomático é um instrumento que necessita
de um agente local para fazer funcionar a rede e promover a mobilização
comunitária.
Assim, o pluviômetro semiautomático não pode ficar no topo da
caixa d’água, como o pluviômetro automático. Ele não pode ficar isolado
da comunidade. Não podemos pressupor que a população lhe trará dano.
O seu cuidado não será ofertado pelo seu afastamento. Pelo contrário.
Todos os princípios necessários para a implantação do pluviômetro auto-
mático caem por terra ao tratarmos do pluviômetro semiautomático. Ele
precisa ficar em um local acessível. É o morador ou a moradora quem se
torna produtor ou produtora da informação. Eles serão responsáveis por
cuidar do instrumento. E, para isso, essa população precisa ser capacita-
da. Não mais a localização é o pressuposto do cuidado com o equipamen-
to, mas a capacitação oferecida pelos gestores e técnicos da Proteção e
Defesa Civil.
Ademais, o pluviômetro semiautomático deflagra um problema na
rede do pluviômetro automático: a dificuldade da informação ser acessa-
da pela comunidade. Um alerta de deslizamento emitido pela Coordena-
doria Municipal de Defesa Civil é encaminhado para a Coordenadoria Dis-
trital de Defesa Civil que deve encaminhar isso aos Núcleos de Defesa Civil
para que, dessa forma, seja emitido o alerta na comunidade. A informação
é verticalizada: sai da instância central e chega à periferia. Esse é o movi-
mento do sistema tradicional de controle a distância. Mas no pluviômetro
semiautomático, a ordem é alterada. O morador identifica a situação de

227
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

risco de desastres, mobiliza seus vizinhos para que tomem as ações neces-
sárias e avisa, posteriormente, a Proteção e Defesa Civil.
Uma coisa é o coordenador emitir o alerta de sua bancada. Outra
coisa é o morador tornar-se responsável pela emissão do alerta e mobili-
zar os demais membros da comunidade. Essa é uma prerrogativa para o
bom funcionamento de tais sistemas: a mensagem repassada por alguém
de confiança na comunidade é mais eficiente do que repassada por um
desconhecido (Breakwell, 2007). Dessa forma, há um pressuposto de que,
mantida a rede, feita a mobilização e a capacitação, os moradores pode-
rão tomar posse de um instrumento ou equipamento do governo e gerir,
eles mesmos, os riscos de desastre com base na leitura dos dados.
Porém, há uma polaridade da responsabilização nesse sistema.
Como nos questiona Mary Jane Spink (2009) com relação ao uso de ta-
baco e os estilos de vida saudável, esta seria uma questão de direitos ou
de deveres? De proteção ou de imposição? Seja nas campanhas para a
promoção da saúde, seja na implantação de um equipamento que exige
ação de membros da comunidade para a prevenção de desastres, há uma
ambiguidade no que tange às ações cabíveis, ora por parte da população,
ora por parte do Estado. Quando promovemos a ação da comunidade em
prol de manter vivos seus próprios membros em uma eventual situação
de desastres, até que ponto não obliteramos o sistema perverso que em-
purra essas pessoas para áreas inadequadas e o governo se priva de tomar
ações com vistas a melhorar sua qualidade de vida e evitar que outros
migrem para tais áreas?
Temos, portanto, com o pluviômetro automático e o semiautomá-
tico, uma polarização da ação. Enquanto na rede que sustenta o uso do
pluviômetro automático polariza-se a responsabilidade pela leitura e
emissão do alerta nas mãos do gestor – e não se pode garantir que tal
informação chegue à comunidade em virtude das interrupções no fluxo
- o uso do pluviômetro semiautomático polariza a responsabilidade pela
leitura e emissão do alerta para os moradores das áreas de risco, e assim,
o governo é apenas informado da situação e age com vistas a tomar me-
didas responsivas.
Seriam estas as únicas opções? Colocamos o grande peso sobre a
população ou sobre governantes? A reflexão a seguir levanta uma terceira
possibilidade. Não uma união das duas posições, mas uma proposta que

228
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

radicaliza uma delas e denuncia a outra. Os pluviômetros de garrafa pet


são uma alternativa parcial às polarizações. Por que razão? Ele toma par-
tido. Mas mostra as falhas. Para entendermos essa contraposição, talvez
seja necessário retomarmos um pouco o fio da meada: afinal, o que é
mesmo um pluviômetro de garrafa pet?

Pluviômetros pet
A imagem na Figura 1 é um pluviômetro de garrafa pet e nos foi
concedida pela Coordenadoria de Defesa Civil do município de São Paulo.
Pluviômetros de garrafa pet são feitos com recipientes de politereftala-
to de etileno, provenientes, em sua maioria, de garrafas utilizadas para
comercializar refrigerantes, água, sucos. Seu nome, carinhoso ou prag-
mático, foi institucionalizado como pet. O Pluviômetro é feito a partir do
corte e retirada da parte superior de uma garrafa pet, preferencialmente
incolor, e a colocação de uma métrica de milímetros em que se estabele-
cem limiares para atenção e alerta. A parte superior é então recolocada
de forma invertida no corpo da garrafa, produzindo um funil por onde a
água deverá escorrer.
Figura 1

Fonte: Fotografia concedida pela Coordenadoria de Ações Preventivas e


Recuperativas do município de São Paulo.

A prefeitura de São Paulo capacita e utiliza o registro de voluntários


para a implantação e o monitoramento por meio desses instrumentos. O

229
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

volume das chuvas é repassado para a gestão local, que toma decisões
sobre a antecipação de alertas e ações de preparação. As referidas ações
podem contemplar desde a relocação de móveis para espaços mais altos
na residência (no caso de inundação) ou mesmo a retirada dos moradores
da localidade (no caso de deslizamento). Tal equipamento é utilizado em
outros lugares e não apenas em São Paulo. No Fórum de Desastres ocorri-
do em Maceió, Ângela Coêlho nos conta sobre esses usos2:
Em Jaboatão dos Guararapes, Juliana [outra palestrante] pode confirmar,
eles fizeram um pluviômetro de garrafa pet. Então, os moradores da região
ribeirinha têm os líderes, eles sabem que se a água chegar a determinado
ponto durante certo tempo, eles saem tirando todo mundo da primeira rua
e já leva pra um local pré-estabelecido.

O funcionamento do pluviômetro de garrafa pet é muito similar ao


do pluviômetro semiautomático. Ele mantém, sem dúvida, grande parte
do peso da mobilização nas mãos da população pautada na lógica de pro-
ximidade territorial como confiança. No entanto, ele não faz apenas isso,
denuncia em sua própria estrutura, em seu próprio material, a escassez de
recursos e a falta de estrutura da rede de gerenciamento para a prevenção
de desastres. Um pluviômetro de garrafa pet é um material de baixo cus-
to. Os recursos que chegam às instituições, principalmente no âmbito da
prevenção local, são ainda irrisórios. É necessário criatividade para lidar
com tal problemática. E essa forma de lidar é por meio de uma reutilização
de materiais.
Apesar de integrar uma rede de gerenciamento em que a tecnolo-
gia é fulcral e na qual o desenvolvimento tecnológico de alto custo exerce
um papel preponderante, ao menos no mundo dos tecnicistas, tecnólo-
gos e cientistas, na prática, o pluviômetro de garrafa pet denuncia, por
meio de sua própria composição, o quão frágil era, e ainda é, essa rede
de emissão de alertas. Por essa razão, a opção por pluviômetros semiau-
tomáticos em oposição aos pluviômetros de garrafas pet é quase óbvia
por parte do entrevistado. Porque o pluviômetro de garrafa pet tem que
olhar, tem que medir, tem que tirar a água, pra não deixar a água por

2
Coêlho, A. (Locutora). (2012). Prevenção. [Digital áudio em .wave]. Maceió: Espaço Linda
Mascarenhas. (Fala em mesa redonda sobre prevenção no I Fórum de Desastres do Pro-
grama de Educação Tutorial do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas em
19/10/2012).

230
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

causa da dengue. E agora há outros equipamentos para isso. O pluviô-


metro de garrafa pet exige um cuidado constante. É preciso, sobretudo,
admitir que não seja o ideal: ele é sujeito a falhas. Principalmente em
sua implantação. De acordo com o entrevistado, esse equipamento só foi
implantado, de fato, por duas subprefeituras da cidade. E apesar do bur-
burinho provocado na mídia, tal alternativa não teve o efeito esperado.
Por isso, a implantação do pluviômetro de garrafa pet denuncia: a rede
também está sujeita a falhas.
A fala do coordenador é um vislumbre do futuro. Até o momento
da presente pesquisa, os pluviômetros semiautomáticos ainda esta-
vam para chegar à Coordenadoria Municipal de Defesa Civil. Mesmo
antes disso, ele espera que as coisas funcionem de um modo que ve-
nha a favorecer a população (que se engajaria na proposta e se torna-
ria ativa e participante) e também aos representantes da Defesa Civil
(que passariam a gerir as ações populares de prevenção ao invés do
desastre em si). Este é o sonho dos técnicos e dos gestores. O sonho da
tecnologia. “Os sonhos mudam a escala do fenômeno como o conhe-
cemos: eles permitem novas combinações e misturam propriedades”
(Latour, 1996, p. 29).
Entretanto, eventualmente, as coisas podem não dar muito certo:
pluviômetros podem falhar. Eles quebram. Eles caem. Eles tornam-se ino-
perantes por alguma razão. Seus dados não são totalmente confiáveis ou
mesmo não são suficientes. Ou, sua instalação é restringida a apenas duas
subprefeituras do município de São Paulo, como ocorreu no caso apresen-
tado. Como decidir, na ausência dessas informações pluviométricas, se há
a necessidade de evacuar a área? Há risco de uma catástrofe? Que outros
parâmetros serão tomados?

Sem pluviômetros

Por mais que os pluviômetros produzam diferentes formas de gerir


desastres a partir de leituras de dados também flexíveis, são instrumen-
tos que funcionam em redes que precisam manter a identidade de seus
aparatos. Todavia, no âmbito dos desastres, nem sempre é possível man-
ter essa forma. Como o pluviômetro de garrafa pet nos indica, este é um
modelo ocasionalmente falho. Técnicos e gestores são pessoas muito bem
intencionadas, mas também muito bem informadas sobre os limites de

231
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

seus instrumentos e de suas medidas. Eles sabem que nem sempre tais
informações serão suficientes.
Pesquisador: Hoje é você que emite o alerta para deslizamento?
Entrevistado: Para deslizamento e enchente.
Pesquisador: Certo... E como é que você chega à conclusão para emitir esse
alerta? São os limiares?
Entrevistado: Olha, é uma coisa meio de sentimento. Para escorregamen-
to, como é que funciona? Todo dia o CGE me manda um boletim em cima
das leituras de chuva, dos pluviômetros que tem nas subprefeituras. Cada
subprefeitura tem um pluviômetro antigo que é uma medida de mais de
quarenta anos que o DAEE que articula.
Pesquisador: O DAEE é o quê?
Entrevistado: Departamento de Águas e Energia Elétrica.
Pesquisador: Ah, tá.
Entrevistado: Você tem uma medida às sete da manhã, à uma da tarde, às
sete da noite e à meia noite. Então, na leitura da meia noite de ontem, o
CGE me manda um boletim em que eu vejo os acumulados. Então, hoje de
manhã, eu leio os acumulados e vejo que São Mateus continua alto. O que
é alto? É acima de 60 mm. Na Serra do Mar, trabalha com 100 mm, porque
nós trabalhamos com 60 mm? Primeiro, que a gente não tem muito claro
todas as áreas de risco, eu não tenho uma mobilização eficiente. Então va-
mos trabalhar com uma margem-margem de risco. Mas já aconteceu de
eu colocar uma vez MBoi Mirim com 30 mm e ter escorregado. Porque tem
situações de áreas tão vulneráveis que até com menos chuva pode escorre-
gar. Entendeu? E outra coisa, essa questão do escorregamento, ela também
ficaria muito mais eficiente. Por quê? Porque muitas vezes o aparelho que
me baseia para decretar tá numa área urbanizada onde está a subprefei-
tura. E a área de risco às vezes está em um lugar que choveu mais. Por isso
que a população, tendo esses pluviômetros de pet ou esses semiautomáti-
cos que a gente vai instalar, ela é que vai agilizar a decisão. Ela que vai falar:
estamos em atenção.

Limiares também têm seus limites. Há margens de erro, margens de


risco. E como nos informa o entrevistado, margem-margem de risco. No
percurso de implantação de um equipamento, há um modo de tecnologia

232
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

que se sustenta em protocolos e que eventualmente precisam tornar-se


flexíveis. Os números, por exemplo, não são estáticos. Eles mudam. E por
razões que não são tão racionais. Às vezes, é uma coisa de sentimento. Se
o lugar muda, afirmamos, os números mudam. Conforme Annemarie Mol
(2008), os números são adaptáveis e dependerão do tipo de prática que
permite sua obtenção. No caso apresentado pelo entrevistado, números
também são expressos a partir de sentimentos, experiências pessoais
com eventos anteriores, vivências. Ao tecnicismo do cálculo do risco se
associam outras formas de contabilizar que consideram as carências da
própria rede de monitoramento, o que gera uma última forma de geren-
ciamento: aquela pautada na experiência pessoal e na emoção.

Modelos de gestão e tecnologias


O pluviômetro automático, o semiautomático e o de garrafa pet,
bem como a total ausência desses equipamentos, coproduzem versões
diferentes do gerenciamento. Em um, a gestão é governamental, em ou-
tro, é eminentemente comunitária, a terceira é eminentemente sujeita a
falhas e, por isso, incômoda, e na ausência ou carência de pluviômetros,
experiência e sentimento são as únicas ferramentas de que se dispõe. Isso
significa que esses equipamentos se associam de forma a produzir outro
modelo de gestão que contempla a complexidade e multiplicidade dos
fenômenos e atores envolvidos.
De acordo com Law e Mol (2002), ser complexo é um processo. “Há
complexidade se as coisas se relacionam, mas não se somam, se os even-
tos ocorrem, mas não dentro do processo de tempo linear, e se um fenô-
meno ocupa um espaço, mas não pode ser mapeado em termos de um
único conjunto de coordenadas tridimensionais” (p. 1). Para eles, comple-
xidade não é sinônimo de lógicas excludentes, a história não significa a
continuidade de fatos e, sobretudo, não é possível uma visão panorâmica
da realidade: o que possuímos são versões múltiplas da realidade.
Tais versões não são apenas palavras, mas modos de reinventar e fa-
bricar coisas e pessoas. Essas múltiplas versões da gestão pautada nos pluvi-
ômetros se aproximam e se distanciam em diferentes pontos; elas estão lu-
tando constantemente umas com as outras, mas não se anulam (Mol, 1999).
Por esse motivo, pautados na Semiótica Material, defendemos que
todos os pluviômetros performam uma rede de gerenciamento de riscos

233
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

que se tem em comum a organização de métodos de controle a longa dis-


tância. Esses métodos colaboram para a gestão ao produzirem critérios
para o estabelecimento de situações de riscos de desastres. Eles tam-
bém produzem modos distintos de gestão, nos quais mobilizam atores
ou exigem práticas diferentes. A associação de diferentes pluviômetros
produz uma rede heterogênea, na qual a noção de gestão também se tor-
na múltipla e passível de incorporar o modelo de governança almejado
na contemporaneidade.

Conclusão

No presente capitulo, discutimos as ações de prevenção de desas-


tres com base no modo como a gestão de riscos de desastres da capital
paulista tem posicionado a tecnologia e seus efeitos em relação aos mo-
radores de áreas de risco. A partir de um estudo de caso, oferecemos
versões sobre a maneira como se tem lidado com tal problemática, tendo
como foco o uso de tecnologias no contexto do projeto Pluviômetros nas
Comunidades.
Concluímos que pluviômetros não são apenas instrumentos de me-
dição de chuva, mas tecnologias complexas que transformam o cotidia-
no das instituições, como o CEU, das comunidades e da gestão de riscos
de desastres. As diferenças de performance desses pluviômetros aponta
ainda para as transformações sociais que a instalação dos referidos equi-
pamentos requer.
Segundo nosso estudo, a tecnologia dos pluviômetros automáti-
cos é pautada na lógica de controle a distância e que precisa encontrar
meios de se aproximar ainda mais das comunidades. Os pluviômetros
automáticos cumprem uma função meramente técnica e performam co-
munidades como espaços carentes, perigosos e, necessariamente, pas-
sivos em relação ao gerenciamento dos riscos de desastres. Os pluviô-
metros semiautomáticos, por sua vez, indicam importantes avanços com
relação ao modo como o governo se aproxima das comunidades, em
uma concepção de governança local. Todavia, suprimem um histórico de
ocupação e estabelecimento de situações de vulnerabilidade, diminuin-
do a responsabilidade do governo em tal gerenciamento. O pluviômetro
de garrafa pet deflagra essa última dificuldade da estratégia em sua pró-

234
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

pria estrutura física e operacional, o que também acarreta a dificuldade


de sua aplicação.

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236
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Do movimento das águas ao movimento da vida


ribeirinha: mulheres em transformação
Zaira de Andrade Lopes
Vivina Dias Sól Queiróz
Gabriela Lopes de Aquino

Introdução

Este artigo apresenta elementos do cotidiano de pescadoras parti-


cipantes de uma pesquisa1 cujo objetivo foi analisar os processos psicos-
sociais, culturais e econômicos que envolvem a constituição das identi-
dades, as condições de trabalho e escolarização da população feminina
circunscrita às bacias hidrográficas dos rios Miranda e Aquidauana, no
Mato Grosso do Sul, tomando como eixo de análise as representações
sociais – RS – das mulheres ribeirinhas sobre trabalho, educação e rela-
ções sociais de gênero.
Estudos sobre a região têm destacado o panorama quantitativo das
condições de pobreza da região e, segundo os índices divulgados pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas - IBGE (2003), a região vem
apresentando leve crescimento no que se refere às condições de desen-
volvimento e melhoria nos indicadores de pobreza, no entanto, existem
lacunas quanto ao conhecimento ou dados sistematizados dos processos
inter e intrapsíquicos que configuram as subjetividades de homens e mu-
lheres que ali residem, bem como aos determinantes psicossociais que
envolvem a organização das relações sociais de gênero e que orientam
as práticas cotidianas das famílias para o atendimento de suas demandas
socioeconômicas e culturais.


1
Este artigo traz os resultados da primeira etapa da pesquisa: condições de vida, trabalho e
educação da mulher ribeirinha da bacia dos rios Aquidauana e Miranda em Mato Grosso do
Sul: sentidos e significados na construção das relações de gênero, com financiamento do
MCT/CNPq/SPM-PR/MDA.

237
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Para tanto, identificar o que as mulheres pensam e quais significados


atribuem às relações sociais e de gênero na constituição de suas identida-
des é fundamental para o desenvolvimento de ações e proposições para
a efetiva eliminação das desigualdades de gênero e da hierarquização de
poder entre homens e mulheres. Compreender a natureza das relações
familiares, de trabalho, dos processos de educação e de acesso à escola-
rização é substancial para garantir a real condição de desenvolvimento in-
tegral da população ribeirinha dos municípios de Anastácio, Aquidauana,
Dois Irmãos do Buriti e Miranda.
No estudo compreende-se como ribeirinha, a mulher pertencente às
comunidades localizadas nas margens dos rios. É uma trabalhadora rural
e suas atividades são marcadamente vinculadas ao movimento e ciclo das
águas e de seus derivados. Vive e garante a sua subsistência e de sua família
com os produtos que, de alguma maneira, estabelece relações com os rios.
Estudos, na perspectiva de gênero, têm apontado para a mobiliza-
ção da mulher rural como principal articuladora das questões ambientais
e de ações de desenvolvimento sustentáveis no campo, conforme discu-
tido por Machado (2007). As coordenações de ações e intervenções para
geração de renda buscam, cada vez mais, inserir a mulher como o elo que
promove a organização social e a eliminação da pobreza, proporcionando
melhoria da qualidade de vida das famílias.
Em relação às condições de vida e pobreza, fundamentando-se nos
estudos de Paugam (2003), entende-se que a pobreza não se refere ape-
nas à carência de bens materiais, ou a falta de dinheiro. Sua delimitação
conceitual vincula-se a outros aspectos que vão marcar fortemente a
identidade do sujeito, tais como a sua condição social, ou status social
específico de inferioridade e desvalorização.
Nessa perspectiva, nas sociedades modernas a pobreza não se de-
fine em si mesma, mas está vinculada às alterações das faixas de renda
correlacionadas às variações da riqueza. A pobreza é considerada muito
mais como um processo do que um estado perpétuo e imutável (Paugam,
2006). Para dar conta da compreensão do processo que envolve as con-
dições precárias de subsistência, Paugam desenvolveu o conceito de des-
qualificação social. Esta categoria conceitual refere-se ao movimento de
exclusão gradativa do mercado de trabalho de camadas cada vez maiores
de população.

238
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Para tanto, pobreza, segundo Paugam (2006), é uma categoria varia-


da, relativa e arbitrária, contudo, constitui uma propriedade da estrutura
das sociedades modernas, uma vez que consideram negativamente sua
existência e empreendem esforços no sentido de eliminá-la ou, na sua im-
possibilidade, dar assistência àqueles que merecem, preferencialmente,
aos que acreditam que a assistência é legítima.
O estudo de populações reconhecidas por sua situação de preca-
riedade econômica e vulnerabilidade social e que, de certo modo, sendo
seus membros identificados como beneficiários de políticas sociais de as-
sistência, requer conhecimento e análise das características que as defi-
nem e as classificam de acordo com as normas e diretrizes das instituições
de assistência. As relações sociais de gênero, de modo geral, têm se cons-
tituído em elementos que orientaram tais diretrizes.
Para melhor entender as questões relativas à vida das moradoras
das margens dos rios Aquidauana e Miranda inicia-se este artigo apre-
sentando um breve relato sobre o contexto e como se constitui a popu-
lação ribeirinha.

A constituição histórica das populações ribeirinhas das bacias dos rios


Aquidauana e Miranda: breves considerações

O município de Aquidauana apresenta-se como um importante polo


para a organização de atividades que podem proporcionar a melhoria das
condições de vida, saúde, trabalho e educação para distintos municípios
que circunscrevem as bacias hidrográficas dos rios Aquidauana e Miranda.
Os estudos sobre as condições de vida da população que com-
põem esse contexto territorial têm identificado crescimento quanto aos
indicadores sociais, como é o caso do Índice de Desenvolvimento Humano
- IDH. De acordo com Pereira et al. (2004), a maioria dos municípios da
região apresenta o IDH entre os níveis intermediário e o de alto desen-
volvimento, isto é entre 0,500 e 0,799, e superior a 0,8, respectivamente.
Quanto ao IDH referente à expectativa de vida, os pesquisadores
encontraram indicadores em torno de 0,750 na maioria dos municípios.
No âmbito da educação, os níveis situam-se na faixa dos 0,830, qualifi-
cados como alto. O IDH vinculado à renda apresenta índices mais baixos,

239
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

contudo, permanecem no nível intermediário, com índices em torno de


0,620. O município de Dois Irmãos do Buriti apresenta um dos índices
mais baixos, 0,588.
De acordo com os dados do Mapa de pobreza e desigualdade dos
municípios brasileiros divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, em 2003, os municípios de Anastácio, Aquidauana, Dois
Irmãos do Buriti e Miranda, que estão inseridos nas bacias hidrográficas
dos rios Aquidauana e Miranda, apresentam índices de pobreza em torno
de 40% e, quanto à desigualdade, o índice de GINI ficou próximo a 0,50%. A
leitura de tais informações indica que a população dessa região encontra-se
em condições não ideais para favorecer o pleno desenvolvimento humano.
Nesse sentido, é fundamental conhecer as particularidades históri-
cas, culturais e psicossociais que constituem as subjetividades das pessoas
da região com foco em um melhor delineamento de políticas públicas e
ações afirmativas que viabilize a eliminação da pobreza e das desigualda-
des e da hierarquização nas relações de gênero.
Ao longo da história, os agrupamentos humanos sempre procura-
ram se estabelecer próximos aos rios por esses fornecerem água potável,
alimentos, além de servirem como vias de transporte e comunicação. Des-
sa forma, a história da humanidade não pode ser dissociada da história da
água, objeto de estudo de Maneglier, segundo Bittencourt (2003).
A história da água foi objeto de estudo de Maneglier. É um estudo que per-
corre o uso das águas por diversas sociedades, iniciando pela importância
mitológica das águas sagradas com seus rituais, deuses, purificações, pas-
sando pelas primeiras formas de domesticá-las pelos sistemas de irrigação
e pela importância que os romanos atribuíam a esse recurso natural, com
o desenvolvimento de magníficas técnicas hidráulicas de aquedutos e as
construções para desfrutar os prazeres dos banhos termais. A obra trata
igualmente da sociedade urbana moderna e as formas de consumo de água
atuais após a canalização, criação de esgotos e desperdícios proporcionados
pelas torneiras, além de tratar da história da poluição das águas dos rios e
suas consequências. (Maneglier, 1991, citado por Bittencourt, 2003, p. 44)

Assim como as diversas sociedades do passado atribuíram às aguas


o seu valor em conformidade com seu momento histórico, cultural e eco-
nômico, as populações que residem às margens dos rios Aquidauana e

240
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Miranda também o fazem na atualidade. Retirar das águas desses rios


o seu sustento, bem como enfrentar as suas adversidades na época das
cheias, a escassez do pescado em decorrência da ação predatória humana
e também do turismo de pesca na região constituem-se em desafios a
este contingente populacional que se constituiu nessa localidade.
O rio Aquidauana nasce na Serra de Maracaju, é afluente pela mar-
gem direita do rio Miranda, possui 620 km de extensão, banha os distritos
de Camisão, Palmeiras e Piraputanga e os municípios de Aquidauana e
Anastácio, servindo de divisa entre as duas cidades. O rio Miranda, por
sua vez, tem extensão de 700 km, com 200 km navegáveis; faz divisa entre
os municípios de Aquidauana e Miranda, é afluente pela margem esquer-
da do rio Paraguai, desembocando suas águas nesse rio na altura do dis-
trito de Albuquerque, município de Corumbá.
Os municípios cujos rios têm seu traçado em suas divisas territoriais
têm em seus históricos de fundação a necessidade econômica de esco-
amento da produção dos grupos que dominavam a economia no local.
Aquidauana resultou do interesse de um grupo de fazendeiros que tinham
propriedades às margens dos rios Miranda e Aquidauana em estabele-
cer um posto comercial que facilitasse o comércio da região. A cidade de
Miranda, que pelos registros históricos é a segunda mais antiga do atual
estado de Mato Grosso do Sul, originou-se da preocupação com a defesa
da região dos constantes ataques pelas disputas de território durante o
período em que o Brasil foi Colônia de Portugal.
Após suas fundações, as cidades foram se desenvolvendo e, com o
crescimento da área urbana, a população que vive às margens desses rios
foi se constituindo como residentes na localidade e tem convivido com a
vulnerabilidade sócio-espacial no período das cheias desses rios.
A cidade de Aquidauana-MS, particularmente, retrata um quadro da pro-
blemática socioambiental, representada, sobretudo, nos aspectos do extre-
mo climático. Quando iniciou seu processo de urbanização em 1892, não
havia muitos registros relacionados ao excepcionalismo climático, uma vez
que o índice de crescimento populacional apresentava-se reduzido. Assim,
os “novos” habitantes instalavam-se em áreas vulneráveis, porém a densi-
dade de uso e ocupação do espaço apresentava suporte de carga. Com o
passar dos anos, houve a expansão urbana e áreas ribeirinhas com baixa
altimetria foram gradativamente ocupadas, contribuindo para o aumento

241
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

da vulnerabilidade socioespacial, especialmente por ocasião de eventos cli-


máticos extremos. (Artigas & Andrade, 2011, pp. 290-291)

Isto não significa que a urbanização seja a responsável pelos pro-


blemas enfrentados por essa população, mesmo porque as cidades são
produtos do desenvolvimento das forças produtivas e das formas de or-
ganização dos humanos em sociedade ao longo da história. Contudo, são
as ações humanas que geram o desequilíbrio na relação do homem com a
natureza, como o turismo de pesca na região desses rios que trouxe consi-
go não só diversos grupos de sujeitos em busca de lazer e diversão, como
também alavancou a compra de terrenos próximos aos rios onde foram
construídos imóveis que se transformaram em pesqueiros e hotéis com
o objetivo de oferecer os melhores serviços turísticos aos seus proprietá-
rios, hóspedes e visitantes, conforme o alerta de Artioli (2002).
Observa-se que o progresso ocorreu neste setor de maneira desorganizada
e obedeceu a ampliações sucessivas, sem critérios, em se tratando de ho-
téis, pousadas e áreas de camping. Os ranchos de pesca, em sua maioria,
têm por norteamento a ocupação com a modernidade e a sofisticação, não
sendo preocupação o fato de instalarem-se bem próximos às margens do
rio, em área de mata ciliar, despejando resíduos líquidos e sólidos nas águas
do Miranda, bem como depositando resíduos em lixões a céu aberto. (Ar-
tioli, 2002, p. 36)

Entre as consequências que o turismo de pesca trouxe para a região,


encontra-se a diminuição do pescado, afetando diretamente a atividade
laboral da população ribeirinha que se vê obrigada a buscar alternativas
de trabalho em outras frentes. “Contudo, ainda existem moradores da re-
gião que sobrevivem da pesca e relutam para que sua cultura não desapa-
reça” (Lopes et al., 2013, p. 248).
A população ribeirinha que convive com as frequentes enchentes
desses rios, a cada ano e até em épocas diferentes, enfrentam perdas
materiais, necessitam de ajuda de amigos, parentes e do poder público.
Todavia, quando as águas baixam, retornam aos seus lares e continuam
a lida diária para a produção de suas existências oriundas da pesca ou
de outras atividades, que, segundo Lopes et al. (2013, p. 248), “o que os
caracterizam como ribeirinhos é que historicamente, fixaram residências
às margens do rio”.

242
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Com essa constituição do cotidiano regulado pelo movimento das


águas, e considerando que na sociedade as ações da mulher são percebi-
das como elemento central para manutenção da vida diária da família, o
estudo das relações de gênero é fundamental para entender o movimen-
to da vida das populações ribeirinhas. Na sequência apresenta-se a con-
cepção de gênero e de ser humano que fundamenta a análise dos dados
nesse estudo.

As relações sociais de gênero e o desenvolvimento de vida das mulheres


ribeirinhas

Mesmo que muito se tenha avançado nas questões que envolvem as


relações de gênero e étnico-raciais, a atual organização social da realidade
ainda se encontra sob a égide da ideologia do patriarcado, ou da ordem
patriarcal de gênero, conforme aponta Saffioti (2004), configurando as
representações sociais de gênero de mulheres e homens. Esse contexto
social contribui para a manutenção de uma realidade marcada pelas desi-
gualdades nas relações de gênero, bem como nas questões étnico-raciais.
Nas áreas rurais, a divisão de trabalho ainda se apresenta marcada-
mente caracterizada pela relação entre o público e o privado. De acordo
com os estudos de Di Ciommo (2007), os homens, em sua maioria, estão
culturalmente vinculados ao setor produtivo, que envolvem a produção
de bens e serviços para o consumo ou venda. Às mulheres ainda são de-
signadas as atividades relativas à maternidade, reforçando os vínculos bio-
lógicos e criando os significados simbólicos de proximidade da natureza.
Hirata (1998), ao pesquisar sobre divisão social do trabalho sob o
enfoque de gênero, aponta que partir dos anos de 1970 houve um aumen-
to significativo da mão de obra feminina no mercado de trabalho no Brasil
e no mundo, no entanto, ainda se mantém uma distribuição marcada pe-
las desigualdades entre homens e mulheres.
Conforme Hirata e Kergoat (2007), os estudos desenvolvidos com
objetivo de realizar um balanço quanto à organização dos trabalhos mas-
culinos e femininos em nossa sociedade chegam sempre à mesma cons-
tatação paradoxal “nessa matéria, tudo muda, mas nada muda” (Hirata &
Kergoat, 2007, p. 597).

243
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A vinculação das mulheres à reprodução desencadeia uma varieda-


de de responsabilidades relativas ao bem-estar e sobrevivência da família.
Ela é responsável pela manutenção do lar por meio de tarefas como: cole-
ta de água e de lenha no campo, preparo dos alimentos, limpeza domésti-
ca, atenção e educação das crianças, bem como providenciar as compras
necessárias e ações referentes ao cuidado com a saúde dos membros da
família (Di Ciommo, 2007).
Lopes (2000) aponta que gênero deve ser compreendido em uma
dimensão ampla, no plano das relações sociais. Estas, sob o enfoque de
gênero, são compreendidas como construção histórica e social. Identifica-
-se, para tanto, o caráter cultural e sócio-histórico do referido conceito.
É importante salientar ainda que, para Scott (1991), gênero é uma forma
primordial de significar as relações de poder, aspecto que também pode
ser identificado nas discriminações e exclusões étnicas raciais.
A categoria gênero não deve ser vista na perspectiva da composição
da dualidade/dicotomia masculino e feminino, visto que o conceito pres-
supõe uma rede que interliga, além dos atores – homens e mulheres –, os
elementos políticos, culturais, étnicos e econômicos, que permeiam as re-
lações sociais e põem em evidência a hierarquia advinda desses elemen-
tos interligados. Estudos de gênero enfocando a questão da masculinida-
de têm se apresentado em uma perspectiva bastante positiva e crescente
para a compreensão das relações sociais, tal como os estudos de Nolasco
(1993; 1995), Gomes (2003; 2005), e Connel (1995; 2001).
Em se tratando de gênero como uma construção histórica e social, a
masculinidade é compreendida como um processo de construção social e
cultural que vai ter o sentido vinculado ao tempo e ao espaço nos quais se
configura. Compreender o masculino sob esse ponto de vista requer “des-
construir” o conceito de homem, calcado na perspectiva patriarcal, que
consiste na imagem da virilidade, força e poder e promover a “construção
social da masculinidade”.
Há que se romper com os padrões estabelecidos, mesmo porque
estes podem coibir ou obstar a livre expressão de homens e mulheres. En-
tretanto, isso não implica criar e preestabelecer novos modelos de identi-
dades masculinas e femininas. Estas pertencem a cada indivíduo que, no
contexto e tempo adequados, evidenciam-se conforme as necessidades.

244
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Pensar qualquer proposta de intervenção psicossocial em grupos ou


comunidades requer o conhecimento das relações e processos de consti-
tuição da subjetividade de seus integrantes.
Organizar e viabilizar projetos com objetivo de promover o desenvol-
vimento e qualidade de vida de pessoas que compõem uma comunidade,
ou sociedade, pressupõe o conhecimento dos aspectos sociais, histórico-
-culturais, econômicos, bem como a subjetividade individual e social que
configuram cada membro.
Subjetividade individual refere-se à constituição da história de rela-
ções humanas, do sujeito concreto em contextos sociais. O processo se
constrói a partir das experiências sociais e culturais, e permitem a atribui-
ção de sentido à realidade objetiva. Quanto à subjetividade social, diz res-
peito ao conjunto de representações subjetivas do grupo ou do indivíduo
e que possibilita as articulações nos diferentes níveis da realidade objetiva.

O trabalho feminino no campo e na pesca na bacia hidrográfica do Alto


Pantanal

As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por conquistas significa-


tivas na luta das mulheres do campo. Sales (2007) registra os avanços que
se seguiram após a promulgação da Constituição de 1988, na qual se reco-
nhece a igualdade de direitos entre homens e mulheres para a obtenção
de títulos de domínio ou concessão de uso de terras para fins de reforma
agrária. Ainda segundo Sales (2007), em 2003, por meio de Portaria do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, instituiu-se
a obrigatoriedade da titulação da terra em nome do homem e da mulher,
casados ou em união estável. Tais avanços se caracterizam como instru-
mentos que permitem o fortalecimento da mulher e a reorganização das
relações sociais de gênero, que alteram significativamente a consciência
de homens e mulheres.
Por outra perspectiva, Brumer (2002), em seu estudo que trata so-
bre a previdência rural, analisada sob o prisma do conceito de gênero,
salienta os percalços da trabalhadora rural para ser reconhecida como tal,
e as implicações para as garantias trabalhistas bem como a inclusão tardia
ao sistema de previdência social.

245
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Para tanto, este estudo possibilita conhecer as características so-


ciais, culturais e econômicas que permeiam a subjetividade das mulheres
ribeirinhas que definem suas necessidades, desejos e o seu fazer. Tais
conhecimentos podem subsidiar políticas e intervenções com vistas a
promover o “empoderamento” de mulheres pertencentes aos espaços
que compõe a microrregião Aquidauana e região do Alto Pantanal para o
processo de formação da consciência e transformação das condições ma-
teriais e reais de existência que, em última instância, permite materializar
o II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, principalmente quanto ao
capítulo que trata da mulher e sua relação com o desenvolvimento sus-
tentável no meio rural e com as garantias de justiça ambiental, soberania
e segurança alimentar. E, ainda, quanto ao direito à terra e moradia nos
meios rurais.

Movimentos e percursos metodológicos da pesquisa

O estudo é resultante de uma pesquisa social, de abordagem quali-


tativa, visto que busca identificar e compreender os múltiplos e comple-
xos processos histórico-sociais, culturais e econômicos que permeiam as
relações humanas e a configuração da subjetividade dos sujeitos sociais.
De acordo com Minayo (2004), a pesquisa social tem uma carga histó-
rica, e tal como as teorias sociais, refletem posições frente à realidade,
momentos do desenvolvimento e da dinâmica social, preocupações e
interesses de classes e de grupos específicos.
Caracteriza-se ainda como pesquisa explicativa, conforme definido
por Gil (2002), considerando que se pretendeu investigar a variedade de
fatores que determinam as relações de gênero e contribuem para mate-
rializar as ações e processos sociais da realidade que constituem o fazer
e as condições materiais de existência de homens e mulheres. Buscou-
-se analisar os elementos significativos e os sentidos atribuídos pelas
mulheres participantes do estudo que formalizam suas representações
sociais acerca das temáticas que envolvem a pesquisa.
As representações sociais (RS), definidas por Moscovici (1978) e
Jodelet (1989) e Moscovici (2003), são processos cognitivos construídos
e organizados pelos indivíduos decorrentes das experiências vividas e

246
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

das relações mantidas em seu grupo social. Essas elaborações cogniti-


vas determinam o modo de agir, a comunicação e as atitudes do sujei-
to frente à realidade. Assim sendo, orientam as práticas e a fala de tal
modo que sua análise proporciona o entendimento dos processos ou
fenômenos que ocorrem nos contextos sociais.
A identificação das RS permite perceber os caminhos e as diretrizes
a serem adotadas para a eliminação ou atenuação das desigualdades e
relações de poder hierarquizado entre o masculino e feminino. De certo
modo, torna visíveis as relações que perpetuam as condições de subju-
gação da mulher frente à realidade, constituindo contextos sociais de
opressão tanto de homens quanto das mulheres, bem como, de exclu-
são daqueles que não se enquadram nos ditames das normas sociais
padronizadas pela ordem patriarcal de gênero.
As representações sociais expressam, desse modo, as ideias, o
pensamento de um determinado grupo social, em uma determinada
época. São os significados e os sentidos que o grupo atribui à realidade.
Cada integrante do grupo vai internalizando tais significados e consti-
tuindo sua subjetividade. Os processos que as produzem estão o tempo
todo imersos nas comunicações e práticas sociais: diálogo, discurso, ritu-
ais, padrões de trabalho, arte, produção. Os estudos dessas elaborações
mentais levam à compreensão de que “a realidade é socialmente cons-
truída e o saber é uma construção do sujeito, mas não desligado de sua
inscrição social” (Arruda, 2002, p. 131).
Na compreensão da noção de gênero, bem como na análise dos
aspectos decorrentes da compreensão das relações sociais entre homens
e mulheres, este estudo orienta-se pela concepção de ser humano na
perspectiva histórico-cultural, representada principalmente por Vygotsky
(1989). Essa escola teórica permite a compreensão do sujeito em sua in-
tegralidade histórica e social e é capaz de responder às indagações con-
cernentes à constituição e à formação da subjetividade, bem como aos
processos que desencadeiam os comportamentos de cada ser humano,
em uma perspectiva integralizadora e dialética.
Para a coleta de dados nessa primeira etapa da pesquisa, desenvol-
veram-se as seguintes ações:

247
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

- Levantamento dos estudos teóricos sobre a região;


- Contatos com as instituições e organização de moradores, traba-
lhadores e colônia de pescadores dos municípios de Aquidauana e Anas-
tácio, que englobam a região delimitada para a pesquisa;
- Entrevistas individuais com quatorze (14) mulheres ribeirinhas e
que estão associadas à Colônia de Pescadores Artesanal de Aquidauana
de Mato Grosso do Sul - Z-07;
As entrevistas se realizaram conforme os princípios éticos preconiza-
dos na Resolução Nº196/1996 do Conselho Nacional de Saúde, portanto,
todas as entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido – TCLE.

A região das pescadoras entrevistadas

A região envolvida no estudo situa-se no oeste de Mato Grosso do


Sul, em plena Bacia do Alto Paraguai, contudo, a microrregião é deno-
minada de bacia do Alto Pantanal, que congrega os municípios de Aqui-
dauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Miranda, Corumbá e Ladário
(Figura 1). Nesse estudo, os municípios de Corumbá e Ladário não foram
contemplados devido à distância em relação ao Campus de Aquidauana,
o que dificultaria o acesso às alunas bolsistas para proceder às entrevistas
e contatos e, principalmente, devido aos rios Miranda e Anastácio não
alcançarem esses municípios.
Para delimitação do território da pesquisa, utilizou-se a organização
territorial estabelecida pela Secretaria de Planejamento e Ciência e Tecno-
logia do Estado de Mato Grosso do Sul, que, a partir de critérios de ordem
geográfica, econômica, histórica e social, para efeito de trabalho com o
desenvolvimento regional sustentável, estabeleceu uma nova divisão do
Estado de Mato Grosso do Sul2, em oito regiões: Alto Pantanal, Bolsão,
Central, Norte, Grande Dourados, Leste, Sudoeste e Sul-Fronteira.

2
Observa-se, no entanto, conforme o documento Plano Regional de Desenvolvimento Susten-
tável do Alto Pantanal (2005) (disponível em http://www.semac.ms.gov.br/controle/ShowFile.
php?id=4019>) que, além dessa divisão geopolítica organizada pela SEPLANCT, existem outras
divisões, como, por exemplo, a do IBGE, dividindo o estado em 11 microrregiões, e a do PDTUR,
com 7 regiões geopolíticas, partindo de um pressuposto dos corredores de turismo do Estado.

248
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Figura 1 - Localização da região do estudo

Fonte: Secretaria de Planejamento e de Ciência e tecnologia de Mato Grosso do Sul SEPLANCT


(2005) (adaptação das autoras)

A área do estudo envolve os biomas do Cerrado e do Pantanal. A pes-


ca, juntamente com a pecuária e a agricultura, é uma das principais ativi-
dades econômicas, sociais e ambientais realizadas no Pantanal e na Bacia
do Alto Paraguai, nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e é
exercida nas modalidades profissional-artesanal, amadora (ou esportiva) e
de subsistência.

Organização e análise dos dados


A coleta de dados realizada entre os meses de abril de 2012 a mar-
ço de 2013 deu-se por meio de entrevistas individuais realizadas com 14
(quatorze) pescadoras associadas à Colônia de pescadores de Aquidaua-

249
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

na, seguindo um roteiro semiestruturado organizado em cinco eixos: (a)


dados de identificação pessoal, familiar, escolarização e perfil socioeconô-
mico; (b) processo de escolarização e acesso à educação; (c) condições de
vida; (d) condições e processo de trabalho; (f) concepção de gênero.
As mulheres entrevistadas são pescadoras, pertencente às comuni-
dades localizadas nas margens dos rios que compõem as bacias hidrográ-
ficas dos rios Aquidauana e Miranda e suas atividades são marcadamen-
te vinculadas ao movimento e ciclo das águas e de seus derivados. Essas
mulheres vivem e garantem suas subsistências e de suas famílias com os
produtos que, de alguma maneira, estabelece relações com os rios.
Considerando que a região da pesquisa faz parte do ecossistema pan-
taneiro, optou-se por denominar as participantes com nomes de elementos
da fauna e flora pantaneira, especificamente aves, peixes, plantas e flores.
A identificação dos processos e elementos que compõem o pensa-
mento das ribeirinhas, expressos por meio da fala, bem como os signifi-
cados que elas atribuem às relações sociais, de gênero e de trabalho na
constituição de suas identidades é fundamental para o desenvolvimen-
to de ações e proposições demandadas pelas políticas públicas visando
eliminar as desigualdades de gênero e da hierarquização de poder entre
homens e mulheres.
Para a análise dos dados buscou-se organizar os núcleos temáticos
oriundos dos discursos das mulheres participantes. Posteriormente estes
núcleos formaram as categorias temáticas. Cada categoria foi constituída
por elementos que se evidenciaram como significativos para as entrevis-
tadas e se repetiram nas diversas entrevistas realizadas.
As categorias que se formaram a partir das falas das mulheres ribei-
rinhas são:
1. Condições de Vida e Relações de Gênero - neste núcleo reúnem-
-se os elementos que permitem identificar a rotina de vida no âmbito do-
méstico e familiar das mulheres entrevistadas, bem como suas represen-
tações sobre a mulher na sociedade.
2. Condições de trabalho – os elementos que envolvem a rotina diá-
ria e o processo de trabalho, as questões financeiras e de subsistência das
participantes.

250
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

3. Acesso à educação – o grau de escolaridade das participantes e


como foi o acesso e organização dos estudos.
4. Perspectivas de futuro – neste núcleo destacaram-se os elemen-
tos que para as pescadoras manifestam como desejos a serem realiza-
dos e aqueles que esperam para si e para os membros familiares.

No movimento das águas, o movimento da vida nos rios Aquidauana e


Miranda

Os elementos que se apresentam com sentido para as participan-


tes e os significados construídos ao longo das histórias vividas pelas
participantes são apresentados nesta seção, organizados conforme as
categorias ou núcleos temáticos constituídos.

Condições de vida das pescadoras e relações de gênero


As participantes da pesquisa são mulheres com idades entre 30 e
68 anos, a maioria delas possui escolarização entre o 2º e o 4º ano do En-
sino Fundamental. Conforme os dados de identificação coletados, o tra-
balho com a pesca permite a composição de uma renda familiar entre 2 e
4 salários mínimos. Apenas uma das entrevistadas não tem companheiro,
informou ser viúva, as demais convivem com seus parceiros, casadas ou
com união estável, algumas em segundo ou terceiro relacionamento ma-
trimonial. Treze delas têm mais de um filho ou filha. Apenas uma delas,
com 38 anos, informa que é solteira, mas tem filho.
De acordo com as informações das entrevistadas, elas são respon-
sáveis pela organização das atividades familiares como: alimentação,
educação dos/as filhos/as, gerenciamento e organização dos trabalhos
domésticos. Percebe-se que elas sentem essas atribuições como ine-
rentes à sua condição de mulher, fazem parte de suas atividades e não
questionam se existem outras formas de organização das atividades do-
mésticas. Conferindo significado ao papel e atribuições da mulher na
sociedade.
As relações de gênero no tocante à divisão de trabalho, sejam no
campo ou nos espaços urbanos, se caracterizam pela superioridade do
masculino em relação ao feminino, conforme registrados em estudos

251
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

como, por exemplo, o de Melo, Considera e Sabbato (2007) que, ao dis-


cutir a condição da mulher rural e seus papéis no contexto da divisão se-
xual do trabalho, ressalta como este é demarcado pela invisibilidade do
trabalho feminino. O debate na perspectiva de gênero sobre as relações
sociais e do trabalho no contexto rural possibilita apreender as desigual-
dades e se desenvolve como um de seus componentes analíticos centrais
a assimetria de poder e no desenvolvimento dos papéis masculinos e
femininos no mundo rural.
Nesse sentido, destaca-se também o trabalho de Barduni, Deles-
poste e Carvalho (2010), para os quais a forma de estruturação do traba-
lho no campo caracteriza-se pela participação de todos os membros da
família na produção dos produtos que garantem a subsistência da família,
contudo, é dada maior importância à figura do homem, que, ao longo da
história da humanidade, foi representado socialmente de modo pleno e
como o principal membro do grupo, ou seja, ele é quem sempre deteve
o conhecimento e domínio de todo o desenvolvimento de sua produção.
Nesse contexto, no estudo citado, o papel da mulher é demarcado como
coadjuvante na relação de produção e de entendimento, bem como na
apropriação das técnicas de produção. É evidente que tal fato está arti-
culado ao processo histórico, no qual a mulher foi relegada a espaços de
menor importância na sociedade.
Segundo Moura (1982), no trabalho familiar, a administração de
divisão de serviços do grupo está baseado na divisão sexual do traba-
lho, levando em consideração que certas tarefas são vistas como para os
homens e outras próprias às mulheres. Destaca-se também que a essa
divisão destinava-se para cada membro da família (pai, mãe e filhos).
Uma das entrevistadas, ainda que se identificasse como pescadora
profissional, relata que:
sou dona do lar... É, sou pescadora profissional, em casa. Como você vê,
minha casa fica em cima da barranca do rio (risos) não tenho outra coisa,
eu trabalho pescando, assim, em casa eu faço o dia a dia da mulher, né, aí,
quando sobra um tempinho, vou pescar.” (Pescadora Beija-Flor, 38 anos)

Quanto às relações sociais de gênero, elas relatam que as mulheres


de hoje conquistaram espaços na sociedade e que apresentam um tipo
de vida diferente de mulheres de períodos históricos anteriores.

252
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Uma das pescadoras, quando indagada sobre as relações entre ho-


mens e mulheres na sociedade, afirma que
Bom, o homem e a mulher vivem em espaços iguais e têm direitos iguais,
o homem não é mais quem mantém a casa e tem toda a autoridade; hoje
homens e mulheres estão no mesmo cenário ... Hoje a mulher ocupa grande
destaque na sociedade, bem diferente de antigamente que a mulher era sub-
missa ao homem ... A igualdade entre homens e mulheres está em evidência
principalmente no meu trabalho que é dito um trabalho masculino; eu faço
de tudo e não sou apenas uma dona de casa. (Pescadora Pirarara, 42 anos)

Outra pescadora traz a seguinte reflexão quanto à condição da mu-


lher na atualidade:
É bem diferente de antigamente. Hoje as mulheres têm seu espaço garan-
tido na sociedade, podendo fazer o que quiser e ser reconhecida ... Meu
trabalho é como ser uma dona de casa, mas nas horas vagas ajudo meu
esposo e trabalho com pesca, tenho bastante autonomia e cuido do dinhei-
ro de ambos, então posso dizer que sou independente diferentemente de
uma mulher que vivia em épocas anteriores. (Pescadora Arraia, 49 anos)

Tem-se então a naturalização do trabalho doméstico como femini-


no. Essa condição pode constituir barreiras para que as mulheres alterem
suas condições de vida e perspectivas de mudanças para outras formas de
viver e fazer em seus cotidianos. As transformações das mulheres e espe-
cificamente das pescadoras, necessariamente devem passar pela reflexão
sobre suas Representações Sociais do ser mulher e da identificação das
relações que envolvem as condições de trabalho; suas rotinas diárias e,
principalmente, daquilo que se espera das mulheres na sociedade.
Ainda que se sintam ou constituam o sentido de empoderadas e
como sujeitas de direitos, evidenciando inclusive esse poder ao ser res-
ponsável pelas finanças da família. No entanto, é possível atribuir que
esse poder ainda está vinculado aos fazeres relativos ao grupo familiar e
sua manutenção. As mulheres se envolvem em um conjunto diversificado
de tarefas que não aquelas voltadas, necessariamente, à produção de ren-
da. Assim, cabem a elas as atividades ligadas aos cuidados com a saúde
dos membros da família, cuidado com a criação de animais em seus quin-
tais, com a roça, transporte de água, lenha e de produtos oriundos das
hortas, dentre outras. Muitos desses fazeres se encontram intimamente

253
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

relacionados ao ambiente em que vivem, o que é mediatizado por suas


próprias culturas e sociedades.

Condições de trabalho e a lida das pescadoras


Em seus relatos, as mulheres afirmam que a jornada de trabalho é
intensa. As atividades da pesca se estendem ao longo do dia todo. Infor-
mam que saem muito cedo para rio e, por vezes, a depender do tipo de
pescado, o trabalho é realizado a noite inteira, em função do comporta-
mento e hábito do peixe a ser pescado.
Elas relatam que o rio hoje apresenta escassez de peixes, que já foi
muito melhor em outras épocas. Contudo, elas consideram que ainda é
possível garantir o sustento da família com o produto do peixe e outras ati-
vidades na região, tais como o trabalho de empregadas domésticas, lavar
e passar roupas nas casas da região. Já os seus maridos ou companheiros
trabalham em serviços nas fazendas da região, bem como em serviços
gerais de pedreiros, pintores, entre outros, na região urbana.
Em suas falas, fica evidente que a maior dificuldade na pesca está na
extinção do peixe dos rios.
A dificuldade que agora encontramos é que tá muito difícil a gente viver
pela pesca, porque tá difícil o peixe, às vezes passa um mês sem pegar nada.
(Pescadora Curicaca, 61 anos)

Outra adversidade relatada pelas mulheres entrevistadas refere-se


à instabilidade financeira, pois convivem com uma renda variável, pois o
trabalho com a pesca e outros afazeres na região não permite um valor
exato ou fixo no faturamento mensal.
Se a gente pega peixe, a gente tem renda, né, se a gente não pega, a gente
não tem. É (sic) uns quinhentos real, mil real, por aí. (Pescadora Aruanã, 55
anos)

Essa situação também foi relatada por outra pescadora que busca
nos movimentos das cheias do rio e na quantidade de chuva no ano ime-
diatamente anterior o índice e condições de piscosidade do rio.
Ah, tem, tem ano que a gente não ganha quase nada da pesca porque tá
ficando muito fraco, fracassando muitos os peixe (sic), tá muito ruim de

254
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

peixe, né, tem ano que a gente não ganha quase nada com pesca não, tem
ano que a gente, ano passado mesmo foi ruim de peixe e agora parece
que vai ser ruim de novo porque o rio tá baixando e nem tá subindo peixe
ruim de novo pelo jeito. Agora nóis (sic) tá pegando seguro desemprego
de pesca até abrir a pesca, tá pegando seguro agora né. Quando abrir a
pesca, aí já para, não pega mais não. (Pescadora Matrixã, 59 anos)

É importante registrar o paradoxo vivido pelas pescadoras. Elas se


consideram pescadoras, mas ao mesmo tempo se veem usurpadas des-
sa condição pelo próprio processo de diminuição da piscosidade do rio.
Esse processo indica que a atividade pesqueira se constituiu um trabalho
desvalorizado e com condições precarizadas. A mulher pescadora, con-
forme relatado pelas entrevistadas, em sua maioria, desenvolve a pesca
artesanal, sem a utilização de equipamentos e tecnologias mais elabora-
das, ao contrário dos homens que se utilizam de barcos e instrumentos
que permitem melhor desempenho nos resultados.
Duas das pescadoras entrevistadas relatam a dificuldades no de-
senvolvimento do trabalho por serem mulheres, evidenciando que ainda
hoje, apesar de conquistarem alguns espaços, sofrem processos discrimi-
natórios, como é ilustrado nas falas delas.
As dificuldades que eu encontro aqui... Muita dificuldade ainda é por eu ser
uma mulher pescadora, é lei que não tem por ser mulher pescadora, tanto
na saúde como no trabalho mesmo, porque fala: é uma pescadora. Acha
que não sabe fazer nada na pesca, né?! Eu sei fazer de um tudo. Então, é
muita discriminação pela mulher pescadora. É falta de plano de saúde pra
mulher pescadora, não só para mulher, mas para o homem também. Então
a gente tem muito pouca oportunidade, entendeu? Isso aí, “é” leis que fa-
vorecem mais o pescador ribeirinho, aquele artesanato tradicional também
que meu pai há mais de 50 anos na beira do rio que pesca e que eu me criô
na beira desse rio desde os 7 anos pescando, e criar leis que favoreçam essa
pesca regional mesmo natural, tradicional. (Pescadora Orquídea, 47 anos)

Outra pescadora relata que a dificuldade do trabalho da pescadora


também se evidencia no processo de negociação do produto da pesca.
As mulheres, de certo modo, passam por situações de desvalorização e
subjugação quanto à qualidade de seu trabalho. Com é possível perceber
nos relatos das entrevistadas:

255
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A dificuldade é que ainda tem muito descaso com os pescadores mais com
as mulher (sic). Já houve vez de gente não querer acertar o peixe comigo
por dizer que mulher não sabe fazer negócios. A facilidade é que ele faz a
gente ter um dinheirinho, ajudo em casa, mais não é aquela coisa de eu
depender de meu marido pra tudo. (Pescadora Bromélia, 48 anos)

A maioria das entrevistadas atribui a escassez do peixe à pesca pre-


datória e ao turismo na região. Segundo elas, o barulho e o movimento
dos turistas e de seus barcos fazem com que o peixe desapareça, além,
claro, da pesca que eles desenvolvem. Ainda que existam as leis de restri-
ção à pesca nos períodos de piracema ou controle do pescado no defeso,
consideram tais medidas insuficientes e ineficazes para a manutenção do
processo de reprodução dos peixes.
Várias pescadoras entrevistadas apontam que apesar do esforço fí-
sico exigido no desenvolvimento das atividades com a pesca, a vantagem
do trabalho reside no fato de ter autonomia em relação ao seu processo
de trabalho e organização da rotina e horários.
Como populações em situação de vulnerabilidade socioeconô-
mica, as entrevistadas são beneficiárias de políticas públicas que lhes
garantem um mínimo de assistência social, promovendo o combate à
fome e a pobreza extrema. Conforme estudos sobre a nova pobreza de
Paugam (2003) e Paugam (2006) os benefícios e recursos advindo das
políticas se configuram como mecanismos para garantir, ainda que pre-
cariamente, a inserção social de indivíduos ou populações em situação
de vulnerabilidade.
As pescadoras ampliam a renda familiar com o recebimento de be-
nefícios como o Programa Bolsa Família, um programa de transferência
direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extre-
ma pobreza em todo o país.
Com a inserção das ribeirinhas na pesca de modo formalizado, por
meio da associação à colônia de pescadores, elas também passam a ser
beneficiadas pelo Seguro-Desemprego destinado ao/à pescador/a. Esse
benefício é uma assistência financeira temporária para estes/as trabalha-
dores/as que pescam de modo artesanal, individual ou pelo regime da
economia familiar, e que têm suas atividades paralisadas no período da
piracema, quando a pesca fica proibida nas águas dos rios Aquidauana

256
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

e Miranda. Em grande parte dos rios, o período inicia em novembro e


termina em fevereiro. Existe um calendário identificando especificamente
cada região do rio e a época de suspensão das atividades pesqueiras de
acordo com as características definidas nos acordos entre entidades go-
vernamentais, de pescadores/as e subsidiados por institutos de pesquisas
do meio ambiente e da pesca.
A lei garante que o/a pescador/a receba o benefício em quatro par-
celas durante os meses do defeso3, conforme portaria fixada pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA). Cada par-
cela tem o valor de um salário mínimo.

Acesso à educação
As pescadoras entrevistadas narram as dificuldades que tiveram
para obter os estudos ou dar continuidade ao processo de escolarização,
pois quando crianças não havia escolas em que pudessem estudar na área
rural, e também devido ao processo de trabalho da família no qual elas
precisavam auxiliar. Salientam que o trabalho da pesca foi impedimento
à educação formal. E relatam que seus pais não viam a necessidade de
estudo. Que bastava aprender a ler e escrever minimamente. Como pode
ser identificado na fala da pescadora abaixo
Quando era pequena, estudei muito pouco. Porque meus pais tinham que
sair para trabalhar, quando meu pai trabalhava em fazenda... Aí nós muda-
mos pra Miranda, fomos pescar, naquela época levava “tudo” os filhos, ti-
nha pouca chance de estudo porque não tinha todas as oportunidades que
se tem hoje em dia, né?! Então estudei pouco. Aí depois de casada, uns 4
anos atrás... 4,5 anos apareceu o Mova, aí fiz o Mova um pouco, aí terminou
porque a gente só estuda na época da piracema, é quando a gente tá em
casa. (Pescadora Orquídea, 47 anos)

Esse dado evidenciado pela pescadora é corroborado por outros


estudos que confirmam a negação dos estudos às mulheres ao longo da
história. Bezerra e Lopes (2011) relatam que as oportunidades de escola-
rização de mulheres e homens na maioria das sociedades se apresentam
de modo desigual. Conclusão também confirmada por Perrot (2007), en-
tre outros estudos.

3
Período de proibição da pesca para determinadas espécies, conforme estabelecido em por-
tarias governamentais.

257
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Por outro lado, as participantes do estudo consideram a vida no


campo e à beira do rio como boa e agradável. Expõem que se pudes-
sem ter estudado ou se voltassem para a escola fariam cursos que con-
templassem esse contexto ou espaço, como, por exemplo, profissões
nas áreas da biologia, do turismo, da agronomia, entre outras ligadas
ao campo. Uma delas afirmou que se pudesse estudar, gostaria de ser
médica.

Perspectivas de futuro
É interessante observar que na fala da maioria delas não se perce-
be um desejo de alteração da própria vida, não se veem em contexto e
processos diferentes do que vivem. Falam apenas em garantir uma boa
alimentação e melhor conforto em suas moradias. Por outro lado, para
seus filhos e filhas desejam que estudem e mudem de vida. Que tenham
uma boa profissão e com bons empregos. Essas mulheres salientam que
desejam uma vida melhor para seus descendentes do que aquela que
elas tiveram.
Esse fato é bem ilustrado na fala de uma entrevistada que traz a
preocupação com um dos filhos que não quer estudar
Ele não quer estudar, aí eu falo assim pra ele, né, que hoje em dia tá difícil
a vida do pescador , né. É difícil... É difícil a vida que a gente tem, não é
como a vida pra vocês, essa vida é pra mim e pro seu pai, nós não tamos
mais na idade de ir pra escola, mas vocês, não. Vocês têm uma vida inteira
pela frente ainda. Não quero você aqui na beira do rio. Falo pra ele: Vai
estudar. Mas ele só quer ficar na beira do rio, e só ele que não estuda em
casa, o restante “tudo” vai pra escola, “tudo” gosta da escola. Ele é o único
que não gosta de escola. Ahh, ele gosta da beira do rio. Eu falei: Ahh, esse
menino aí vai puxar à mãe, mais um pescador na família. (Pescadora Arara-
-Azul, 30 anos)

A perspectiva de vida está muito vinculada ao movimento das águas


do rio. Se tiver “cheia” do rio, tem peixe, por outro lado a “cheia” tam-
bém traz problemas ligados ao desconforto, pois as famílias ribeirinhas
acabam perdendo bens como móveis, roupas, eletrodomésticos.
A facilidade que a gente encontra é estar em contato com a natureza. Os
nossos rios são rios muito “bom” de pesca, tem muito peixe. Tem muita

258
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

gente falando que não, mas tem muito peixe... Que quando não tem bem
peixe é quando não tem chuva suficiente para nós, também esse ano a
gente tá vendo que não vai ter chuva suficiente pra gente. A água cor-
re tudo por aqui (aponta com o dedo o lugar onde estamos localizados,
em frente a algumas casas). A água entra dentro da minha casa, moro
ali atrás, agora tô morando em minha lancha na beira do rio. É... Mas a
água corre tudo aqui quando tem água suficiente tem muito peixe. Agora
quando o rio não enche aí pra gente a pesca é fraca (Pescadora Orquídea,
47 anos).

Algumas considerações sobre as mulheres ribeirinhas

Os resultados preliminares apontam para a existência de represen-


tações sociais que referendam a submissão feminina presente nas socie-
dades, revelam as dificuldades que as mulheres encontram para superar
as condições de trabalho precarizadas, a falta de acesso à escolarização
e manutenção das relações sociais de gênero moldadas na ideologia do
patriarcado.
As atividades exercidas para a pesca são caracterizadas como pre-
cárias e que favorecem o desgaste físico e o embrutecimento do corpo.
Em seus discursos, as pescadoras revelam que as mulheres, de certa for-
ma, estão ocupando espaços deixados pelo homem, uma vez que as ati-
vidades de pesca nos dias atuais já não apresentam os rendimentos de
décadas anteriores, e que os pescadores agora exercem outras atividades
remuneradas, tais como serviços na área da construção civil nos centros
urbanos e, no campo, em ocupações desenvolvidas nas fazendas. Tais re-
velações levam à evidência de que o espaço conquistado pelas mulheres
pescadoras já não são mais valorizados, contexto que referenda estudos
anteriores de desqualificações econômicas das atividades exercidas por
mulheres, e percebe-se que ainda se mantém uma distribuição marcada
pelas desigualdades entre homens e mulheres.
Quanto aos processos de escolarização, as entrevistadas eviden-
ciam as dificuldades de acesso, levando a grandes índices de evasão es-
colar e abandono dos estudos, visto que a região não oferece condições
de continuidade dos estudos. A maioria das entrevistadas possui apenas

259
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

os anos iniciais da educação básica, não ultrapassando o 4ª ano do En-


sino Fundamental.
Um dos achados marcantes da pesquisa revela a inexistência do
principal produto do rio, que é o peixe, fator que implica em deterioração
econômica da vida familiar. As pescadoras precisam lidar com a crescente
evidência de que no futuro podem não obter das águas a subsistência de
sua família. Tal perspectiva pode levar ao sentimento de insegurança, bem
como o desejo de promover outras formas de trabalho e vida para seus
filhos e filhas.
Por outro lado, elas relatam que gostam da vida que têm, pois na
cidade não conseguiriam as condições que têm às margens do rio, que é
um lugar bonito e sem o ruído dos carros e motos e a correria da cidade.
Afirmam também que com a renda advinda dos produtos do peixe e hor-
taliças de suas casas, na cidade estariam passando fome.
Conclui-se que as entrevistadas declaram que gostam das atividades
que exercem, no entanto, apresentam desejos de superação das condi-
ções de vida e trabalho que enfrentaram ao longo de suas histórias, com
o envio de suas filhas e filhos para as áreas urbanas para terem acesso ao
estudo e romper com as condições de vida, sem, contudo, apresentarem
mudanças nas RS de gênero.

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263
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Implicações socioafetivas do jovem com o local de


moradia
Dayse da Silva Albuquerque
Maria Inês Gasparetto Higuchi

Introdução

Partindo da perspectiva da Psicologia Ambiental, disciplina que se


propõe a discutir a relação pessoa-ambiente, este estudo direciona-se a
partir de uma abordagem psicossocial do ambiente, compreendendo que
a formação do ambiente é ao mesmo tempo a formação da pessoa e vice-
-versa (Fisher, 1994). Tal abordagem considera tanto a maneira como as
pessoas utilizam os lugares quanto o conjunto de sentidos e significados
atribuídos através das experiências.
O modo como se dão essas relações possuem implicações na cons-
trução identitária dos indivíduos, incluindo a socioafetividade, apontada
como aspecto constituinte da identidade social (Garcia-Mira, 1997; Kor-
pela, 1989; Proshansky, Fabian, & Kaminoff, 1983). Ao considerar a ligação
socioafetiva com os lugares, a Psicologia Ambiental reintroduz a concep-
ção de que a identidade de lugar é uma subestrutura vital da identidade
pessoal e social da pessoa (Mourão & Cavalcante, 2011). Essa concepção
enraizada no mundo físico tem sua origem no grau de satisfação das ne-
cessidades biológicas, psicossociais e culturais que a pessoa vivencia na
relação com esse meio.
Tendo o ambiente físico como aspecto constituinte na formação de
identidade social, considera-se relevante refletir sobre os aspectos da in-
tersubjetividade juvenil a respeito do local de moradia. O jovem, enquan-
to ser que se relaciona em busca de significados que contribuam com essa
identidade social, percebe e vivencia o seu entorno, em especial o lugar
onde mora, com cognições e sentimentos diferenciados (Fischer, 1994).

264
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Dessa forma, o ambiente físico é sinalizador para a constituição da per-


sonalidade do indivíduo e o define no grupo social em que está inserido
(Proshansky et al., 1983).
O lugar se constitui como resultado das relações e experiências
advindas da dimensão social do ambiente e possibilita tecer um emara-
nhado de sentidos e significados que refletem o contexto sociocultural e
constituem a identidade. Assim, não se pode desvincular espaço-lugar na
análise das relações sociais e atribuições de significados. Cria-se uma trí-
ade habitante-identidade-lugar que permite discutir o papel do ambiente
urbano como palco de vivência dos seres humanos através do sentir, pen-
sar e agir (Alencar, 2004; Carlos, 2007; Mourão & Cavalcante, 2011).
O lugar, com efeito, manifesta aspectos psicossociais e culturais de
seu ocupante, uma vez que por meio das práticas cotidianas produz e
sustenta características de si mesmo e, ao mesmo tempo, revela-as aos
outros. O ambiente físico é, por conseguinte, um fator muito presente
nas relações sociais, e marca de modo especial o jovem, que se encontra
em um momento no qual tais aspectos contam muito para se situar no
grupo desejado. A moradia se torna, dessa forma, importante no estabe-
lecimento de significados que são utilizados para distinguir os indivíduos
dentro de um grupo e situá-lo de alguma forma na estrutura social vigente
(Günther, Nepomuceno, Spehar, & Günther, 2003; Higuchi, 2003, 2008).
Considerando a sociedade em que vivemos, cujas estruturas sociais
têm na espacialidade elementos de status social, seja das vestimentas
usadas, da casa ou bairro de moradia, estariam os jovens observando es-
ses aspectos de distinção? Como os jovens percebem seus locais de mo-
radia? Que tipos de significados e sentimentos o lugar desperta no jovem,
e que pode estar de alguma forma atrelada ao processo de construção de
uma identidade social? Esses elementos do lugar e significados atribuídos
pelo habitante constituem aspectos passíveis de entendimento do com-
portamento juvenil, que não podem ser negligenciados pela psicologia.
Tais questionamentos permitiram um direcionamento focado no objeti-
vo principal deste estudo, que consistiu na investigação das implicações socio-
afetivas de jovens de Manaus/AM a respeito de seus locais de moradia atra-
vés da identificação de significados e sentimentos vivenciados e da atribuição
de aspectos de qualidade ambiental. Considera-se que esse tipo de investiga-

265
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

ção pode trazer à tona questões presentes na relação pessoa-ambiente e que


possam ser trabalhadas em processos socioeducativos, estimulando novos
olhares sobre os significados e sentimentos que envolvem as relações sociais
dos jovens no ambiente urbano nos seus mais variados espaços.

A apropriação do espaço

O espaço possui uma dimensão simbólica baseada na relação do in-


divíduo com o lugar, permitindo a construção de significados e sentidos
que advém da interpretação de cada ser que se relaciona com aquele con-
texto e o percebe de maneira distinta (Bonfim, 2010). Um desses elemen-
tos socioafetivos é a apropriação. A apropriação do espaço é percebida
como um processo dinâmico à medida que engloba tanto a ação do indiví-
duo sobre o meio, que se traduz em alterações físicas e simbólicas quanto
à abstração de conhecimentos, sentimentos e comportamentos proativos
que culminam na formação da identidade, ou seja, ação, cognição e afeto
são aspectos presentes no processo de apropriação do espaço e formação
de uma identidade de lugar (Valera & Pol, 1994). Esse processo de apro-
priação inclui os movimentos de ação-transformação e identificação sim-
bólica. A ação-transformação se dá através da intervenção individual ou
coletiva no espaço a fim de modificá-lo e reflete aspectos mais objetivos
da relação pessoa-ambiente, enquanto a identificação simbólica refere-se
à atribuição de sentidos e significados envolvendo dimensões subjetivas
presentes na construção da identidade (Bonfim, 2010; Moranta & Urrutia,
1994; Vidal, Pol, Guárdia, & Peró, 2004).
Esses aspectos afetivos são enfatizados por Corraliza (1998) na re-
lação pessoa-ambiente ao explicar a transformação do espaço físico em
espaço significativo. O autor define o significado do ambiente como con-
junto de conceitos que auxiliam o indivíduo na compreensão da represen-
tação do lugar. Bonfim (2010) discute ainda que a percepção do ambiente
como espaço significativo leva o sujeito à ação e auxilia na construção da
cidadania. Esse processo de desenvolvimento alude a uma identidade de
lugar, no qual o indivíduo pode perceber o espaço em que está inserido
como espaço apropriado ou apropriante, isto é, ele se apropria do espa-
ço e o espaço se apropria dele (Villela-Petit, 1976). O espaço apropriado
refere-se à transformação do espaço em lugar significativo, levando a uma

266
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

vinculação sadia com o entorno que auxilia na construção da subjetivida-


de. Em contrapartida, o espaço apropriante mantém imutável essa rela-
ção (Bonfim, 2010).
Para Valera e Pol (1994), o espaço apropriado leva à construção de
uma identidade de lugar definida a partir de um sentimento de pertenci-
mento e a uma valoração atribuída pelo indivíduo aos grupos dos quais faz
parte. O termo identidade de lugar baseia-se no conceito de identidade
social proposto por Tajfel e inclui o entorno como mais um aspecto a ser
considerado na construção da identidade. Nessa construção da identida-
de e apropriação do espaço, Carlos (2004) aponta que os sentidos e signi-
ficados vão se agregando a partir dos aspectos relacionais mais simples,
aqueles que fazem parte da rotina, dos lugares que frequentamos e que
refletem nosso cotidiano. São essas práticas, aparentemente banais, que
constituem a tríade habitante-identidade-lugar, pois elas estão na base
do espaço vivido. Estão presentes na vivência do espaço, dessa forma,
as dimensões psicológica, social e cultural apontadas por Fischer, (1994)
que discute a realidade exterior e interior, admitindo o espaço a partir do
mundo das ideias, em uma realidade abstrata que existe à medida que é
vivenciado e atrelado a uma experiência emocional.

O jovem no espaço urbano

Admitindo que a experiência socioafetiva no lugar inclua os proces-


sos de identificação, apropriação do espaço e apego ao lugar, a intensida-
de dessa experiência também influencia no modo como o indivíduo irá
atuar em seu entorno. Por isso, enfatiza-se a necessidade da compreensão
do significado simbólico do espaço pelos indivíduos, a fim de fortalecer as
vinculações pessoa-ambiente e, por fim, a participação cidadã (Bonfim,
2010; Corraliza, 1998). Ao pensar a participação cidadã de jovens inse-
ridos em um espaço urbano, há que se considerar os contrastes típicos
desse cenário, os quais em última instância compõem o rol de sentidos e
significados específicos à cidade.
O espaço urbano se manifesta através das inúmeras atividades que
nele ocorrem, por isso, é visto como uma construção social resultante
das relações entre as pessoas em determinada época e contexto, com
características culturais próprias. Também é resultante de uma dimen-

267
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

são psicológica que contribui para a formação da subjetividade de cada


indivíduo. Tal dimensão é influenciada pelos inúmeros contrastes que a
cidade apresenta e que exigem uma constante adaptação na relação pes-
soa-ambiente (Ramírez, 1998). Para Garcia-Mira (1997), perceber o meio
urbano também se constitui enquanto atividade cognitiva, o que auxilia
na compreensão do entorno e culmina na apropriação do espaço através
dos processos cognitivo-avaliativos, afetivos e interativos. O bairro é in-
cluído como categoria social urbana a ser analisada, considerando suas
características singulares e a relação estreita que os indivíduos constroem
com esse contexto.
Valera e Pol (1994) ressaltam que as categorias sociais urbanas se
diferenciam de acordo com o nível de abstração grupal. O bairro se mostra
como uma categoria social urbana relevante para a compreensão da rela-
ção indivíduo-ambiente, por se apresentar como um elemento primordial
na construção da identidade e por ser delimitado pela própria comuni-
dade, a partir do sentimento de pertencimento do grupo e sua percep-
ção do local. Ao conceber o bairro como entidade humana, Garcia-Mira
(1997) explica que ele se constitui enquanto local de moradia ao qual atri-
buímos sentidos e significados e concomitantemente construímos nossa
identidade e um sentimento de pertencimento ao lugar. Em relação aos
componentes objetivos, o autor aponta que o bairro se caracteriza pelas
ruas, casas, tipos de transportes, serviços oferecidos, entre outros compo-
nentes que fazem parte da comunidade e estão atrelados ao conceito de
identidade urbana.
A identidade urbana tem como base o sentimento de pertencimen-
to dos indivíduos às distintas categorias sociais urbanas e que auxiliarão
na diferenciação dos grupos. Esse sentimento de pertencimento define
que determinado indivíduo possui características próprias de determina-
do grupo e se diferencia dos demais. Nesse processo de diferenciação,
apresentar-se-ão elementos simbólicos como o nome do bairro, zona ou
cidade e espaços simbólicos urbanos que servem como facilitadores da
interação social (Günther et al., 2003; Valera & Pol, 1994).
Amérigo (1998) também pontua que o bairro se localiza entre a casa
e a cidade proporcionando ao citadino o desenvolvimento de sentimen-
to de pertencimento e de comunidade. Do ponto de vista psicossocial, o
bairro proporciona aos indivíduos que se relacionem uns com os outros

268
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

e que fortaleçam o sentimento de pertencimento ao lugar. O conceito de


bairro está incorporado em pesquisas que discutem ambientes residen-
ciais e pode ser definido como uma área que circunda a casa e no qual se
localizam os principais serviços para o estabelecimento dos indivíduos. O
bairro é visto como componente relevante na construção das representa-
ções sociais de uma cidade, principalmente por estar ligado à identidade
social (Vidal et al., 2004).
Sobre os ambientes residenciais, Fischer (1994) define que todo in-
divíduo vive em um espaço no qual estabelece sua moradia. Esse espaço
denominado habitat, remete-nos à relação das pessoas com o território
de intimidade e abrigo. Como já discutido, a habitação tem relação in-
trínseca com a identidade pessoal e social dos indivíduos, pois abrange o
sentimento de pertencimento e apego ao lugar. Habitar é sentir-se seguro
e manter uma orientação espaço-temporal a partir da relação construída
com o entorno. A casa, ambiente de habitação do ser humano, permite
a conexão entre as pessoas, os lugares e a historicidade do local (Améri-
go, 1998) e se constitui um espaço permeado de significados e conteúdos
simbólicos construídos ao longo do tempo como elemento de diferencia-
ção a partir das condições concretas da construção e do local de moradia
(Higuchi, 2003).
Segundo Toledano (2005)1, a partir da influência exercida pelo local
de moradia em seus ocupantes é que o indivíduo, enquanto habitante
desse espaço, também exerce influência sobre o seu habitat. Nesse sen-
tido, destaca-se a presença do jovem neste meio urbano enquanto ser
que se relaciona com o seu entorno em busca de significados que contri-
buam para a construção de sua identidade social urbana. Pensar sobre
uma identidade social urbana está relacionado à intenção de incluir o
meio urbano como mais uma categoria social envolvida na construção
da subjetividade.
A partir da identificação das implicações socioafetivas levantadas,
foram feitas análises para verificar as possíveis correlações entre as cate-
gorias manifestadas, características dos jovens e índices de vulnerabilida-
de socioambiental (IVSA) dos respectivos bairros de Manaus/AM onde os
jovens residem.


1
Toledano, L. C. (2005). Modos de ser, morar e viver. Trabalho de Conclusão de Curso de Psi-
cologia. Manaus: Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM/ULBRA.

269
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Método

A pesquisa de abordagem descritiva exploratória inclui aspectos


qualitativos e quantitativos.

Técnicas e instrumentos
Os dados qualitativos emergiram com o uso da técnica dos mapas
afetivos, conforme estudo realizado por Bonfim (2008). Os mapas afeti-
vos referem-se a uma técnica na qual são levantados aspectos decorren-
tes do ambiente físico, considerando-se, principalmente, o significado
que o indivíduo atribui àquele espaço e os afetos que permeiam as rela-
ções construídas nesses espaços. Investigar os sentimentos e emoções
que permeiam o espaço urbano é algo difícil, principalmente porque os
sentidos e significados atribuídos a esses espaços se desenvolvem inter-
namente, a partir de aspectos subjetivos. Segundo a autora, os mapas
afetivos permitem a categorização de sentimentos através do desenho
e da metáfora.
A técnica dos mapas afetivos, de acordo com Bonfim (2010), é com-
posta pelos seguintes itens: (a) o desenho que tem o intuito de deflagrar
os sentimentos e emoções atrelados ao local de moradia; (b) o significa-
do do desenho, no qual a interpretação é feita pelo próprio participante
da pesquisa que explica o que o desenho representa; (c) os sentimentos,
que descrevem os afetos evocados a partir do desenho, momento em que
o indivíduo mescla os sentidos atribuídos ao desenho com os sentimen-
tos e emoções atribuídas à representação do desenho. No item (d) das
palavras-síntese, ocorre o levantamento de palavras que resumam os sen-
timentos evocados pelo desenho, a fim de precisar o que foi apontado an-
teriormente pelo indivíduo. Podem ser utilizados adjetivos, substantivos,
entre outros termos que expressem de maneira clara as emoções. Além
desses itens, foram feitas adaptações para investigar a expressão do sen-
timento de pertencimento ao lugar.
A aplicação da técnica consistiu na distribuição aos participantes de
uma folha A4 em branco, sobre a qual foram solicitados a fazer um dese-
nho a lápis de seus locais de moradia, segundo suas próprias percepções.
Posteriormente, recebiam orientações para que respondessem algumas
perguntas relativas ao desenho no verso da folha. As perguntas versaram

270
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

sobre os significados, sentimentos sobre o local de moradia e possíveis


implicações na escolha de mudança do local atual de moradia.

Participantes
Participaram da pesquisa 161 jovens (87 F e 74 M) com idades entre
12 e 18 anos (Md = 15 anos; DP = 1 ano), estudantes do ensino fundamen-
tal e médio de cinco escolas públicas estaduais de Manaus/AM, localiza-
das em áreas distintas da cidade. A amostra foi aleatória tanto das escolas
quanto dos participantes.

Procedimentos de Análise
A análise dos mapas afetivos seguiu uma abordagem qualitativa. A
partir da análise de conteúdo (Bardin, 2004; Bauer, 2002), foram reali-
zadas as etapas apontadas por Bonfim (2010): pré-análise, codificação e
categorização.
Na fase de pré-análise, os objetivos da pesquisa nortearam a explo-
ração do material levantado. Dessa forma, a pré-análise manteve-se cen-
tralizada na identificação dos significados e sentimentos vivenciados pelos
adolescentes em relação ao local de moradia. As respostas dos participan-
tes foram transcritas em planilha de dados para transformação dos dados
brutos em dados utilizáveis. Tal processo constituiu a codificação e a partir
desta iniciou-se a categorização das respostas dos jovens, considerando,
os aspectos latentes e que foram apontados com maior frequência pelos
participantes (Bonfim, 2010).
Tal análise permitiu a construção dos mapas afetivos em um quadro
que englobou os seguintes fatores: identificação do participante, signifi-
cado atribuído ao desenho, sentimentos, palavras-síntese, motivos para
mudança e comparação.
As categorias de análise, após tratamento qualitativo, foram codifica-
das, de maneira a permitir a inserção em pacote estatístico SPSS (Statistical
Package for Social Sciences) para a verificação das possíveis associações
com outras variáveis como os índices de vulnerabilidade socioambientais
(IVSA) correspondente aos bairros dos respondentes. Tais dados foram
submetidos a tratamento quantitativo para análise de correspondência
entre categorias de significados e sentimentos apontados pelos jovens.

271
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

A pesquisa seguiu os trâmites éticos previstos pela RE 196 do MS


1996, sendo aprovada no CEP do INPA sob parecer nº. 53394. A pesquisa
teve apoio do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) através de bolsa de
iniciação científica no programa PIBIC/MCT/INPA/CNPq/FAPEAM.

Resultados

Significados atribuídos aos locais de moradia


Os significados apontados pelos participantes da pesquisa englobam
as dimensões discutidas por Fischer (1994) ao destacar o termo habitat e
seus aspectos psicossociais na teoria sobre ambientes residenciais. Os re-
sultados, advindos da análise de conteúdo, evidenciaram duas categorias
de significados distintas. Para a maioria dos jovens, ou seja, 82% deles, o
local de moradia representa um espaço social impregnado de lembranças
vividas desde sua infância e das relações com os familiares e vizinhos. Para
18% dos jovens esse habitat é apenas um lugar situado num ponto geo-
gráfico, um endereço onde estão morando.
A percepção do local de moradia como espaço social de segurança,
intimidade e privacidade que esses jovens possuem agrega os componen-
tes mais íntimos da relação dos indivíduos com seus locais de moradia.
Nesse sentido, a descrição do local de moradia inclui subjetividades que
envolvem relações de parentesco, de privacidade e proteção, tais como:
“significa a minha família”, “representa o meu conforto e a minha priva-
cidade” e “é como se lá não existisse perigo”. Tais componentes contri-
buem na formação da identidade ao incluírem as relações familiares, as
lembranças da infância e o sentimento de acolhimento propiciado nesse
território que amplia o seu bem-estar e pertencimento.
Esse significado de espaço social atribuído pelos jovens ao local de
moradia congrega valências afetivas positivas e negativas. Entre as valên-
cias positivas relatam-se as lembranças vividas, a sensação de segurança e
alívio por estar compartilhando esse espaço com pessoas que lhe são caras.
As valências negativas se manifestam no reconhecimento dos cuidados que
devem ter diante da recorrente violência urbana presente no âmbito de seu
local de moradia. Os jovens expressam essas dimensões dizendo, por exem-
plo: “[o lugar onde eu moro] representa um lugar onde eu sou feliz, um

272
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

lugar onde eu passo bons e maus momentos” e “representa um bairro legal,


no entanto tem muita marginalidade”. Observa-se que esses significados
são resultantes das relações com o ambiente e que são representativas das
vivências no lugar, as quais culminam em graus elevados de apropriação do
espaço e concomitantemente construção de apego ao lugar.
Em contrapartida, para os jovens cujo local de moradia se refere a
um lugar geográfico, este o faz como um endereço de localização física
assim expresso: [o desenho representa] “a minha rua e o local onde está
localizada”, e “minha casa e a de alguns vizinhos ao lado e próximo de
uma avenida”. Assim, evidenciam-se os aspectos de localização situando
a rua, o bairro ou os caminhos percorridos cotidianamente para ir à escola
e outros locais próximos. Nesse lugar geográfico onde reside, os jovens
reconhecem a existência de outros endereços de pessoas diferentes e
instituições distintas como a casa dos vizinhos, dos amigos, a escola e a
igreja, entre outros.
De certa forma o local de moradia se insere num ponto físico tal qual
Bourdieu (1997, p. 160) destaca que é inevitavelmente “onde um agente
ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. ... O lugar ocupado
pode ser definido como a extensão, superfície e o volume que um indi-
víduo ou uma coisa ocupa no espaço físico”. A ideia de lugar como loca-
lidade, em conformidade com o discurso dos jovens, traz a objetividade
presente nas relações. Ao pensar no significado do seu local de moradia
como endereço, expressa que ainda não iniciou o processo de apropria-
ção do espaço que culmina com a formação de uma identidade de lugar
(Valera & Pol, 1994). Esse momento ou estado seria equivalente ao que
os autores chamam de movimentos de ação-transformação, aspectos que
precedem uma identificação simbólica, que se manifestam na atribuição
de sentidos e significados envolvendo dimensões mais subjetivas presen-
tes na construção da identidade (Bonfim, 2010; Moranta & Urrutia, 1994;
Vidal et al., 2004).
Por outro lado, infere-se que os jovens que percebem seu local
de moradia como um espaço social destacam com saliência os aspectos
subjetivos das relações pessoa-ambiente, portanto, já em processo de
identificação simbólica. Nessa forma de perceber o local de moradia es-
tão presentes significados que englobam as dimensões psicossociais do

273
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

habitat levantadas por Fischer (1994) e corroboram as discussões teóri-


cas de diversos autores sobre construção da afetividade em ambientes
residenciais (Amérigo, 1998; Carlos, 2007; Corraliza, 1998; Garcia-Mira,
1997). Os significados apontados pela maioria dos jovens aludem à defini-
ção de habitat por apresentarem a percepção do local de moradia como
um espaço que mantém a privacidade e permite a construção de vínculos
significativos, de tal forma que estes reconhecem o lugar como “seu” ao
mesmo tempo em que é este “o seu lugar”. Particularmente, estes signi-
ficados contribuem para o desenvolvimento da identidade social. O atri-
buto de apego ao lugar é muitas vezes representado pela própria casa
(Fischer, 1994). Em pesquisa realizada por Günther et al. (2003) sobre os
lugares preferidos por jovens, mostrou-se bastante evidente a preferência
dos jovens pela casa, devido à sensação de segurança propiciada por esse
espaço e por ela ser o berço das relações sociais dos indivíduos, auxiliando
no processo de construção da identidade.
Na construção dos significados, os jovens associam sentimentos
despertados pelos locais de moradia que, por sua vez, reafirmam os sig-
nificados, mas que também clarificam a percepção destes ao revelar as-
pectos mais abrangentes das relações com o ambiente e suas implicações.

Sentimentos despertados pelos locais de moradia


Os sentimentos levantados perpassam por aspectos positivos e ne-
gativos do local de moradia retomando as discussões sobre representati-
vidade do lugar e seu significado através de sentimentos de pertencimen-
to, apropriação e apego. É interessante o posicionamento dos jovens ao
atribuírem sentimentos, pois estes englobam sensações boas e ruins evi-
denciando que o local de moradia é eliciador de afetos e, por tais razões,
inconstante, flexível, de acordo com as experiências vividas e relações
construídas. Os sentimentos expressos pelos jovens em relação ao local
de moradia foram agrupados, a partir de análise de conteúdo, em duas
categorias distintas, a de agradabilidade e de desagradabilidade.
Os sentimentos de agradabilidade em relação ao local de moradia
foram expressos pela maioria (79%) dos jovens. A agradabilidade inclui
aspectos de conforto, tranquilidade e segurança correspondentes à sensa-
ção de bem-estar propiciada pelo lugar, como se observa nessas falas: “[o
lugar onde eu moro é] um local agradável, sem muito barulho...” e “me

274
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

sinto segura, feliz e abrigada”. Esses sentimentos estão na base do apego


ao lugar, ressaltado pela necessidade de fixar moradia e de percebê-la
como um espaço de convívio familiar e social, que gera nostalgia e desejo
de permanência.
Sentimentos de desagradabilidade estavam presentes numa pe-
quena parcela dos jovens (21%). A desagradabilidade inclui tristeza e
insegurança, o que denota sensação de mal-estar naquele local de mora-
dia. Os jovens expressam esse sentimento ao dizer, por exemplo, ”o lugar
onde eu moro é uma tristeza, violência constante” e “lugar perigoso e
sujo, pois muitas pessoas agora começaram a usar drogas”. A desagrada-
bilidade mobiliza sentimentos de desconforto e medo presentes no dia
a dia que levam ao desapego, caso em algum momento esse significado
tenha sido construído.
Os sentimentos descritos pelos participantes da pesquisa são simila-
res aos apontados por Bonfim (2010) em sua pesquisa com os mapas afe-
tivos das cidades de Barcelona e São Paulo. A autora discute que os indiví-
duos mesclam os sentidos com os sentimentos atribuídos à representação
do desenho e destaca que os sentimentos de agradabilidade referem-se a
palavras que incorporam aspectos positivos e refletem vinculação ao lugar
e os sentimentos de desagradabilidade aludem a aspectos mais negativos
e palavras que transmitem desconforto e insegurança.
Além dos sentimentos evocados pelo local de moradia, os jovens
foram instigados a pensar em motivos que os levariam a uma eventual
mudança do atual local de moradia, para que dessa forma se pudesse ter
acesso ao sentimento de enraizamento no lugar.

Motivos que fazem os jovens pensar em se mudar do local de moradia atual


Os resultados apontaram que 76% dos jovens teria algum motivo
para a mudança do atual local de moradia e apenas 24% deles não teria
motivo algum para pensar em mudança. Os jovens que alegaram não pos-
suir quaisquer motivos para mudar do local de moradia dizem que almejam
permanecer no local para sempre, o que denota um sentimento intenso
de pertencimento e apego ao lugar. Esse desejo de permanência aponta-
do pelos jovens alude ao conceito de identidade social urbana discutido
por Valera e Pol (1994), pois se baseia no sentimento de pertencimento
bastante fortalecido pelas condições do habitat. A inserção dos jovens em

275
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

determinado local de moradia implica a apropriação de aspectos culturais


que auxiliarão no desenvolvimento dessa identidade social urbana. O am-
biente físico atende às expectativas dos jovens e traz um sentimento de
satisfação, necessário para o bem-estar psicossocial e físico.
Entre os jovens que indicaram motivos para a mudança do local, fo-
ram categorizados os principais motivos com análise de conteúdo. Estes
se referem aos problemas sociais e em menor proporção às condições am-
bientais. Ao apontar motivos gerados pelas interações sociais, os jovens
citam as dificuldades nas relações de vizinhança e com os familiares. O pri-
meiro motivo inclui uma mudança do núcleo familiar quando os vizinhos
trazem problemas. Os jovens citam hábitos e atitudes que incomodam a
vida de quem mora próximo, como “o som alto” ou “desunião, brigas entre
vizinhos” ou “intrigas e discussões”. Esses acontecimentos, na percepção
dos jovens, implicam quase sempre em desrespeito e relações conflituo-
sas de vizinhança. Por considerar uma situação de difícil enfrentamento e
solução, a mudança de local de moradia parece ser uma solução, embora
não desejada. A falta de regras de convivência, ou a simples desobediên-
cia dessas regras comunitárias provoca respostas de desapego ao lugar.
Além disso, sentimentos de insegurança, medo, mal-estar e tristeza pro-
vocados pela violência presente no bairro ou região em que vive levam a
implicações que suscitam percepção de risco constante e incontrolável,
pois há “muita morte, muito galeroso, muita droga, muito roubo”. A falta
de assistência do poder público diante da violência urbana e o fato de ter
que viver em situações de risco, levam os jovens a acreditar que noutro
lugar da cidade teriam uma vida mais segura. A liberdade e conforto pro-
porcionado pelo território de moradia se choca com as macrorrelações
sociais provenientes da violência que impedem e tolhem qualquer priva-
cidade e segurança onde o seu lugar de moradia está incluso.
As dificuldades no âmbito familiar também podem, na percepção
dos jovens, levar à mudança, isto é, sair da casa, do seu local de mora-
dia mais elementar. Nesse caso, os jovens se veem como unidade distinta
do núcleo familiar com quem vive. A mudança de casa e o afastamento
da família ocorrem na busca de outro território que lhe permita relações
de acolhimento e intimidade, não presentes nesse território. Os conflitos
com os pais são apresentados como sentimentos que os desagradam e
que seria solucionado com a busca de um novo lugar para morar. Tais di-

276
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

ficuldades ficam evidentes quando os jovens relatam que mudariam do


local de moradia atual ao “brigar com familiares” e se “papai me expul-
sar, não cuidar da casa”. Estes motivos estão presentes nas possibilidades
que podem culminar no distanciamento de pessoas cujas relações so-
ciais fogem das expectativas e desejos reais ou imaginados pelos jovens.
Constatam-se aqui implicações em suas relações socioafetivas que levam
ao sentimento de vulnerabilidade e imaturidade para enfrentar as dificul-
dades, procurando o deslocamento como forma possível. Tais aspectos
atuam como integrantes de um processo de desenraizamento do lugar, e,
portanto, menor apego e menor cuidado com o lugar.
Ao se referir às condições ambientais, os jovens citaram a precarie-
dade no fornecimento de serviços básicos (água, energia, transporte, saú-
de, educação) e a falta de saneamento que geram desconforto e desejo
de buscar melhores condições de infraestrutura do bairro para habitar em
outros bairros. Estes problemas ambientais instauram um sentimento de
insatisfação, tendo em vista as dificuldades físicas e biológicas da perma-
nência no local atual. As dificuldades advindas da ausência dos serviços
básicos como “a falta de água, a falta de segurança e a distância de tudo”,
além da necessidade de “um local maior, de um lugar que fosse realmente
meu e da minha família” são percebidos como motivos que os levam a sair
do lugar atual. Não apenas a carência de serviços básicos, mas também a
falta do direito à propriedade são aspectos genuínos para se buscar me-
lhores condições que viabilizem fixar moradia em outros lugares.
Com as categorias assim definidas, foi necessária a codificação para
inserção no SPSS. Nesse processo, para cada categoria de significados e
sentimentos foi atribuído um código numérico que as representasse. As
motivações para mudança foram reduzidas às categorias de enraizamen-
to e desenraizamento para facilitar a análise de correspondência. Teve-se
como proposta verificar possíveis correlações entre as distintas percep-
ções dos jovens em relação aos seus locais de moradia e as implicações
destas nas relações socioafetivas com o lugar e o desejo de mudança.
Os significados atribuídos (espaço social; lugar geográfico) e senti-
mentos vivenciados (agradabilidade; desagradabilidade) apresentaram
uma associação significativa entre si (x² = 31,82, p < 0,001), demonstrando
que os sentimentos apontados pelos jovens podem ser explicados a partir
dos significados atribuídos aos locais de moradia.

277
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Os significados (x² = 8,993, p < 0,005) também apresentaram as-


sociação significativa com as motivações para mudança (enraizamento,
desenraizamento), assim como os sentimentos (x² = 11,572, p < 0,001),
demonstrando que o desejo de permanência (enraizamento) ou mudança
(desenraizamento) dos jovens está relacionado ao modo como eles per-
cebem o seu entorno e como o vivenciam enquanto eliciador de expecta-
tivas e afetos, sejam estes positivos ou negativos.
Destaca-se que o termo enraizamento reflete o discurso daqueles
que não apontaram motivos para mudança do local de moradia e o termo
desenraizamento abarca o discurso dos jovens que citaram algum motivo
para mudança, presente nas categorias apresentadas.
Os significados e sentimentos apontados pelos estudantes demons-
tram que a percepção do local de moradia traz implicações no que se re-
fere à transformação do espaço em lugar. À medida que são denotados
aspectos mais subjetivos nessa relação, os processos de apropriação e
apego ao lugar se fortalecem juntamente com o desejo de permanên-
cia e o sentimento de pertencimento e vinculação, o que denominamos
aqui de enraizamento, considerando aqueles que não apontaram motivos
para mudança do local de moradia. Em contrapartida, os sentimentos de
desagradabilidade, mal-estar e insegurança geram o desejo de mudança
e intensificam o desenraizamento dos moradores, trazendo implicações
quanto ao desejo de busca por melhores condições de moradia e vínculos
sociais mais significativos que permitam o desenvolvimento de sentimen-
tos de agradabilidade, conforto e segurança.
Verificou-se ainda ausência de correlação entre as variáveis de per-
cepção socioafetivas do ambiente apontadas pelos jovens com a locali-
dade e o tempo de moradia. Dessa forma, compreendemos que a apro-
priação do espaço e o apego ao lugar se configuram como fatores mais
significativos no processo de construção de identidade de lugar que crité-
rios como o período de residência em determinado local ou o local em si.
Os dados produzidos através de análise estatística corroboraram a
relação percebida entre os aspectos levantados nesse estudo. Contudo,
ao considerar os índices de vulnerabilidade socioambiental - IVSA - (baixa
vulnerabilidade socioambiental; alto risco ambiental com baixa vulnerabi-
lidade social e alta vulnerabilidade socioambiental) com o bairro onde os

278
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

jovens participantes da pesquisa residem, não apresentaram correlação


significativa com os aspectos discutidos nessa pesquisa. Tal resultado nos
leva a refletir sobre os fatores e as dimensões que perpassam as relações
pessoa-ambiente e a questionar se os critérios utilizados em determina-
das políticas públicas que criam índices objetivos de avaliação de lugares
incluem aspectos da subjetividade associada ao lugar.
Para verificar se os significados e sentimentos evidenciados pelos
jovens estariam associados às condições socioambientais apresentadas
pelos estudos que discutem índices de vulnerabilidade social, vulnerabi-
lidade geográfica e risco ambiental, dados os respectivos lugares de mo-
radia, procederam-se alguns testes estatísticos. As percepções apresenta-
das pelos jovens foram analisadas em função do lugar de moradia com os
índices apontados pelo Relatório de Vulnerabilidade Socioambiental das
Regiões Metropolitanas Brasileiras, desenvolvido pelo grupo de pesquisa
Observatório das Metrópoles - OM, para as respectivas áreas de Manaus.

Vulnerabilidade socioambiental
O conceito de vulnerabilidade socioambiental é discutido por au-
tores de diversas áreas como a Geografia, Sociologia, Serviço Social e
Psicologia Ambiental. Cartier, Barcellos, Hubner e Porto (2009, p. 2696)
a definem como “coexistência ou sobreposição espacial entre grupos po-
pulacionais pobres, discriminados e com alta privação (vulnerabilidade
social), que vivem ou circulam em áreas de risco ou de degradação am-
biental (vulnerabilidade ambiental)”.
O Observatório das Metrópoles realizou um estudo para evidenciar
as demandas sociais claramente percebidas no cotidiano da cidade de
Manaus/AM relacionadas principalmente à precariedade do fornecimen-
to de serviços básicos e o descaso do poder público para solucionar as
problemáticas apontadas pelos moradores. No Relatório de Vulnerabili-
dade Socioambiental das Regiões Metropolitanas Brasileiras, organizado
por Deschamps (2009), foram apontadas áreas da cidade com diferentes
índices de vulnerabilidade socioambiental.
A pesquisa realizada pelo OM partiu de algumas características po-
pulacionais relacionadas à estrutura familiar, ciclo de vida e aspectos de-
mográficos tradicionais para construção dos índices de vulnerabilidade
social e de aspectos ligados à precariedade do saneamento básico para

279
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

classificação do risco ambiental de regiões metropolitanas divididas em


áreas de expansão (AED), de acordo com dados disponibilizados pelo Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo 2000.
Para verificação das possíveis correspondências, os dados obtidos
neste estudo foram inseridos em programa estatístico SPSS juntamente
com os IVSA do Relatório do OM correspondentes às áreas informadas
pelos jovens em Manaus/AM. A partir de uma análise de correspondência
entre as variáveis, verificou-se relação significativa entre significados, sen-
timentos e motivações para mudança apontadas pelos jovens, contudo, os
índices de vulnerabilidade socioambiental não apresentaram correlação
com as variáveis de percepção socioafetivas do ambiente. Os dados foram
distribuídos de acordo com as categorias construídas através da técnica de
análise de conteúdo (Bardin, 2004) apresentadas nos tópicos anteriores.
É interessante destacar que os índices construídos pelo OM incluem
fatores apontados recorrentemente pelos jovens como possíveis motivos
para mudança do local de moradia e como eliciadores de sentimentos de
desagradabilidade, desconforto e insegurança. No entanto, a percepção
do ambiente destacada pelos jovens, é construída de maneira diferencia-
da dos fatores apontados pelos pesquisadores, pois estes definem o en-
torno a partir de indicadores baseados em critérios objetivos excluindo a
dimensão das vivências que estão inevitavelmente presentes na constru-
ção dos significados e valores do local de moradia. Os critérios levados em
conta pelo OM para mensurar a vulnerabilidade socioambiental podem,
dessa forma, ser distintos daqueles que os jovens participantes dessa pes-
quisa consideram ao atribuir significados ao seu local de moradia.

Considerações finais

Os significados atribuídos ao local de moradia e os sentimentos atre-


lados a esse habitat pelos jovens de diferentes bairros da cidade de Ma-
naus/AM nos mostram que o cidadão jovem é capaz de refletir sobre o
lugar em que reside e nele perceber aspectos constitutivos de sua relação
com o ambiente, no qual estão em processo as suas histórias pessoais. O
local de moradia, seja o bairro ou a casa, se mostra como uma categoria
social urbana relevante para a compreensão da relação jovem-ambiente,
por se apresentar como um elemento primordial na construção da iden-

280
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

tidade a partir do sentimento de pertencimento a esse espaço social. Ao


conceber o local de moradia como entidade humana, o jovem atribui sig-
nificados e sentimentos que estão presentes na construção da apropria-
ção e apego ao lugar, que em última instância cria base para que o lugar
seja um aspecto importante na identidade social desse indivíduo.
As demandas levantadas pelos jovens, principalmente em relação
às condições precárias de moradia e a sensação de insegurança decor-
rentes da violência urbana mostram-se como fatores preocupantes, não
apenas por serem critérios a serem considerados em políticas públicas,
mas principalmente pelo fato de que o lugar de moradia é um aspecto
fundamental da formação do indivíduo e, no caso dos jovens, é revelador
de sua situação identitária. Como já discutido, a formação do ambiente e
da pessoa é mútua e recíproca.
A mudança constante de lugar pode ser compreendida enquanto
busca por melhores condições sociais, mas implica em desenraizamento
e dificuldade no enfrentamento de vulnerabilidades socioambientais, de-
correntes da precariedade de políticas públicas voltadas para tais questões
e pela pouca mobilização comunitária para o cuidado do local de moradia.
É interessante refletir sobre a importância de estudos que conside-
rem as relações pessoa-ambiente no sentido de ampliar os conhecimen-
tos sobre os processos socioafetivos presentes na apropriação do espaço,
e como estes aspectos subjetivos são construídos ao longo do tempo por
seus ocupantes.
Salienta-se a importância dos vínculos significativos mantidos por
meio das inter-relações sociais concretizadas com os familiares, amigos e
vizinhos e a perspectiva do enraizamento no local de moradia por sentir-
-se vinculado ao lugar. Além disso, reafirma-se que a identidade social ur-
bana em constante construção e desconstrução corrobora para o efetivo
desenvolvimento da cidadania e de melhores condições de moradia.
A ausência de correlação percebida entre os índices de vulnerabi-
lidade socioambiental e os significados e sentimentos atribuídos pelos
jovens aos seus locais de moradia, coloca em pauta a necessidade da re-
alização de estudos que discutam aspectos mais subjetivos das relações
pessoa-ambiente a fim de expandir a compreensão dos fatores que per-
passam o afastamento ou a manutenção de grupos em determinados lo-

281
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

cais. Tais estudos poderão proporcionar ainda um melhor entendimento


dos elementos constituintes de um espaço de moradia que atua como
parte da identidade social do jovem.

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283
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Estimar os jovens é estimar a escola, o bairro e a


comunidade
Zulmira Áurea Cruz Bomfim
Ana Kristia da Silva Martins
Debora Linhares da Silva

Introdução

A relação afeto-lugar será desenvolvida neste estudo, tendo a esco-


la, o bairro e a comunidade como importantes espaços de expressão do
cotidiano da juventude em contextos vulneráveis. O Grupo de Trabalho
Políticas Públicas como práticas sociais é composto pela contribuição da
Psicologia no enfrentamento das vulnerabilidades associadas às ques-
tões ambientais.
Este trabalho apresenta um recorte mais amplo de uma pesquisa de
cooperação interinstitucional intitulada Adolescência e Juventude: estu-
do sobre situações de risco e redes de proteção em Fortaleza, realizada
pelo Programa de Pós-graduação de Psicologia da Universidade Federal
do Ceará (UFC) e o Programa de Pós-graduação do desenvolvimento da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS).
O estudo em questão ficou a cargo do Laboratório de Pesquisa em
Psicologia Ambiental - LOCUS, que foi um dos laboratórios participantes
da pesquisa geral com financiamento do Conselho Nacional de Pesquisa
- CNPq (Colaço, Cordeiro, Germano, Miranda, & Bomfim, 2011)1. Este estu-
do traz uma reflexão acerca da estima de lugar (Bomfim, Alencar, Santos,
& Silveira, 2013) e sua relação com os indicadores afetivos de proteção
social de jovens de escolas públicas de Fortaleza. Foram averiguadas as
correlações existentes a partir dos dados coletados por meio do questio-

1
Colaço, V. F. R, Cordeiro, A. C. F. Germano, I. M. P, Miranda, L. L, & Bomfim, Z. A. C. (2011).
Adolescência e juventude: estudo sobre situações de risco e redes de proteção em Fortaleza.
Relatório de pesquisa CNPq. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará.

284
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

nário “Juventude brasileira: comportamentos de risco, fatores de risco e


de proteção” (Koller, Cerqueira-Santos, Morais, & Ribeiro, 2006)2, utiliza-
do na pesquisa supracitada, entre a estima de lugar e os indicadores de
autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro dos jovens de escolas
públicas de Fortaleza em relação ao seu bairro e a outros espaços públicos
da cidade.
A estima de lugar (Bomfim et al., 2013) refere-se a uma avaliação
afetiva, positiva ou negativa, que uma pessoa faz de determinado ambien-
te, expressa por sentimentos e emoções gerados a partir de imagens, re-
presentações, que podem abarcar micro e macro ambientes como a casa,
a escola, o bairro, a cidade. A estima de lugar é uma categoria teórica que
emerge da afetividade, entendida por sentimentos e emoções, associa-
dos a um determinado lugar. Assim como as pessoas se estimam ou se
depreciam, os espaços e ambientes podem refletir aspectos positivos e
negativos do self.
Por meio de cinco categorias teóricas, a estima de lugar pode ser
compreendida pelos afetos em termos de sentimentos e emoções de:
Agradabilidade, Pertencimento, Destruição, Insegurança e Contrastes em
relação a um lugar específico. A estima de lugar potencializadora é com-
posta pelas categorias de Agradabilidade e Pertencimento e a estima de
lugar despotencializadora pelas categorias de Destruição, Insegurança e
Contrastes (Bomfim, 2003, 2010).
A imagem de Agradabilidade revela sentimentos e qualificações po-
sitivas dirigidas aos espaços dos bairros, cidades e outros que são senti-
dos como agradáveis por seus moradores e ocupantes. O fator Destruição
é compreendido como opositor ao fator Agradabilidade, ou seja, aquele
também tende a concentrar percepções externas ao sujeito, no ambiente,
mas diferencia-se por evidenciar as avaliações de experiências negativas
vividas a partir de um ambiente degradado e destruído.
Quanto ao Pertencimento (Proshansky, Fabian, & Kaminoff, 1983),
este é concebido em relação aos sentimentos e qualidades de identifica-
ção e apego ao lugar. Diferente das categorias de Agradabilidade e de Des-

2
Koller, S. H, Cerqueira-Santos, E., Morais, N. A., & Ribeiro, J. (2006). Juventude brasileira:
comportamentos de risco, fatores de risco e de proteção. Relatório Técnico da Pesquisa apre-
sentado ao Banco Mundial. Porto Alegre: UFRGS.

285
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

truição, onde há uma tendência a polarizar a avaliação num referencial


ambiental externo, o Pertencimento tende a conduzir a avaliações am-
bientais de um ponto de referência interno. No que tange à imagem In-
segurança, esta é compreendida como opositora ao Pertencimento. Nela
estão todos aqueles sentimentos e palavras que envolvem algo inespera-
do, instável e, às vezes, negativo. Tem por base os sentimentos de medo,
insegurança e ameaça.
Por fim, o fator Contrastes comporta sentimentos, emoções e pa-
lavras contraditórias em que há uma polarização positiva e negativa. Os
contrastes na cidade foram avaliados inicialmente nos estudos da Escola
de Chicago (Park, 1967).
A palavra estima denota avaliação e valoração ao mesmo tempo. As-
sim, a autoestima implica uma avaliação valorativa que o indivíduo faz de
si mesmo, isto é, ela expressa a forma como o sujeito aprova ou reprova
seus comportamentos, tendo como critérios de avaliação os seus valores
pessoais. Segundo Coopersmith (1967, citado por Gobita & Guzzo, 2002).
A autoestima desenvolve-se socialmente, sendo construída e re-
construída a partir das experiências sociais do indivíduo, que vivencia
diferentes interações nas quais é valorizado positiva e negativamente, in-
teriorizando essas avaliações a partir do conjunto de suas circunstâncias
(Mosquera & Stobäus, 2006). Vale salientar que a autoestima é uma valo-
ração dinâmica, que se altera ao longo da vida, conforme as experiências
do indivíduo, o qual atualiza sua avaliação de si mesmo de modo mais ou
menos realista. Mosquera e Stobäus (2006, p. 85) afirmam que ter con-
fiança em si mesmo, buscar a própria felicidade, ser capaz de admitir suas
características positivas e negativas com equilíbrio, sem subestimá-las ou
superestimá-las, ser aberto e compreensivo, manter interações sociais
saudáveis e superar fracassos com sobriedade são elementos que indicam
uma autoestima positiva.
O conceito de autoeficácia refere-se à avaliação que o indivíduo faz
das suas possibilidades pessoais de obter sucesso, mediante ao enfrenta-
mento de desafios que se lhe apresentam. Segundo Bardagi e Boff (2010,
p. 42), a autoeficácia corresponde a “percepções que os indivíduos têm
sobre suas próprias capacidades, a base para a motivação humana, o
bem-estar e as realizações profissionais”. Podemos dizer que uma auto-
eficácia elevada indica a confiança que a pessoa deposita em si própria

286
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

em se tratando de superar as situações de risco que se lhe apresentam.


Assim, a percepção de autoeficácia diminui a percepção de vulnerabili-
dade no indivíduo, bem como sua percepção de risco. A perspectiva de
futuro está comprometida com a avaliação que o jovem faz de si mesmo
no presente.
Autoeficácia é um conceito de destaque na teoria de Albert Bandu-
ra, e está diretamente ligado à motivação, à sensação de bem-estar e às
realizações profissionais. Bardagi e Boff (2010) mencionam que, de acor-
do com Bandura (1992), pessoas com percepção de autoeficácia elevada
estão menos suscetíveis ao estresse diante de tarefas e situações que de-
mandam um maior nível de empenho e esforço pessoal, pois são capazes
de manter-se motivadas a perseverar na tarefa e manejar habilmente sua
ansiedade. Ao considerar a crença acerca da autoeficácia como determi-
nante da ação (Bandura, 2007, citado por Bardagi & Boff, 2010), destaca-
-se a relevância de aspectos subjetivos na adoção de comportamentos. A
compreensão subjetiva de acontecimentos objetivos fornecerá material
para a formação de uma crença sobre a própria autoeficácia.
Como um construto pessoal e social, a autoeficácia pode desenvol-
ver-se coletivamente, sendo compartilhada pelos membros de um grupo.
Essa eficácia coletiva corresponde à crença dos membros de um determi-
nado grupo em sua capacidade de alcançar resultados e realizar ativida-
des (Pajares & Olaz, 2008, citado por Oliveira & Soares, 2011).
A autoeficácia relaciona-se com a formação de perspectiva de futu-
ro, pois atua como motivação para realizar e conquistar aquilo que o indi-
víduo considera-se capaz, interferindo diretamente em seu planejamento
de vida e em suas realizações. Este construto também influencia os re-
sultados obtidos pelo sujeito, funcionando como um elemento mediador
entre a capacidade real do indivíduo e os resultados por ele alcançados.
A perspectiva de futuro está comprometida com a avaliação que o
jovem faz de si mesmo no presente, equivalendo a uma antecipação do
futuro integrada ao momento atual. Esta relação entre presente e futuro
é dinâmica e interdependente, pois ao passo que o conhecimento e os es-
tados afetivos atuais influenciam suas construções acerca do futuro, estas
mesmas construções podem modificar e/ou direcionar ações presentes e
estados emocionais (Carvalho, Pocinho, & Silva, 2010, p. 555).

287
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Locatelli, Bzuneck e Guimarães (2007) afirmam que a construção de


um projeto de vida faz parte da formação da própria identidade pessoal,
sendo este composto pelas metas de vida ou tarefas de vida projetadas
pelo indivíduo em seu futuro. O estabelecimento de projetos futuros é
influenciado por fatores socioculturais, sendo a família, os colegas, a mídia
e a escola intervenientes nessa elaboração de modo positivo ou não, à
medida que podem atuar como elementos orientadores ou gerar confli-
tos e dúvidas. A idade, o nível socioeconômico e possivelmente aspectos
cognitivos também influenciam diretamente a concepção de um projeto
de vida (Locatelli et al., 2007).
Para compreender melhor a importância do lugar como uma dimen-
são que se relaciona com os aspectos protetores subjetivos de jovens em
situação de vulnerabilidade social, serão apresentadas algumas categorias
teóricas que baseiam a construção da estima de lugar como um concei-
to que emerge da afetividade e que dialoga de forma processual com as
perspectivas histórico-cultural na Psicologia Social e transacionalista na
Psicologia Ambiental.

Estima de lugar: uma construção dialética e psicossocial na Psicologia


Social e na Psicologia Ambiental

A Psicologia Ambiental é uma área interdisciplinar que busca com-


preender a interrelação pessoa-ambiente, colocando o lugar como impor-
tante critério de avaliação do bem-estar subjetivo, tanto nos ambientes
construídos como naturais. A Psicologia Social de base latino-americana
ressalta a importância da não dicotomia entre o indivíduo e o social e
concebe esta última dimensão como constitutiva do sujeito, e condição
essencial para sua emancipação.
A Psicologia Social latino-americana e a Psicologia Ambiental cons-
tituem as bases epistemológicas para a construção da estima de lugar.
Valoriza-se a mediação afetiva (Espinosa, 1996; Sawaia, 1999; Vygotsky,
1995), o simbolismo do espaço (Pol & Valera, 1999); topofilia Yi-Fu Tuam
(1983) e as Representações Sociais (Moscovici, 1978) para compreender a
subjetividade pela mediação do lugar nas dimensões psicossocial e mate-
rialista histórica dialética.

288
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

A categoria estima de lugar constitui-se como um saber interdiscipli-


nar, valendo-se dos saberes da arquitetura, geografia, sociologia etc., sem
deixar de dialogar com a Psicologia Social e Ambiental, visto que não se
perde da psicologia o foco na dimensão subjetiva do ambiente. É constitu-
ída dos elementos estima (sentimento/valor) e lugar (espaço apropriado),
sendo neste impossível separar pessoa e ambiente.
A estima de lugar é uma categoria socialmente construída sob uma base
dialética onde se articulam a representação social do lugar (composta
também da reputação e a imagem do lugar), o nível de apropriação do
espaço e, portanto, de identificação que o sujeito tem com este, o estabe-
lecimento de vínculos afetivos (enraizamento, pertença e apego ao lugar),
dentre outros. A construção da estima de lugar apoia-se, na avaliação da
qualidade de habitação e uso do ambiente, isto é, segurança, limpeza, or-
ganização, sofisticação, estética, preservação ambiental, legibilidade, sina-
lização, acessibilidade etc., na qualidade dos vínculos sociais de amizade
e boa convivência, na imagem social do lugar perante a sociedade e, prin-
cipalmente, no nível de apropriação do espaço do indivíduo que o estima.
(Bomfim, 2003, p. 222)

Como o ambiente é uma rede complexa constituída por muitos ele-


mentos, a estima de lugar trata-se de uma síntese simbólica construí-
da pela mediação da afetividade para com os lugares. Como fenômeno
subjetivo, depende de um método para sua objetivação: os mapas afe-
tivos. Este método articula sentidos e afetos e seu foco incide sobre o
emprego dos afetos como mediadores da relação pessoa-ambiente. É a
expressão gráfica, artística e metafórica das imagens e representações
que as pessoas têm de um determinado lugar. São geradas a partir de um
instrumento através do qual se articulam, na pessoa que o responde, a
elaboração de sentimentos e emoções, avaliações e identificações com
relação a este lugar.
Segundo Bomfim (2003. p. 212), “Os mapas afetivos são representa-
ções do espaço e relacionam-se com qualquer ambiente como território
emocional. Os mapas afetivos são instrumentos reveladores da afetivida-
de e indicadores da estima da cidade”.
O estudo dos mapas afetivos orienta-se pela busca de uma síntese
dos afetos, na qual se articulam os elementos afetivos presentes nas for-
mas de ver, representar e sentir o lugar. Por intermédio da investigação

289
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

das imagens cognitivas e metafóricas e dos processos de apropriação do


espaço e de identidade social urbana, pode-se avaliar a complexidade de
sentimentos, sentidos, significados, imagens e representações que per-
meiam a relação pessoa-ambiente. Essas imagens, por serem acompanha-
das de sentimentos, podem indicar uma estima positiva ou negativa com
relação ao lugar. A positividade (ou negatividade) da estima é intrínseca
aos sentimentos que a acompanham, e baseia-se na teorização de Agnes
Heller sobre os sentimentos orientativos. “Eles são orientativos porque a
sua função primária é a orientação, sua fonte também é a experiência, o
sistema de objetivação, os conhecimentos” (Heller, 1979, p. 45). Segundo
a autora, há sentimentos que orientam a ação do indivíduo na cidade,
fazendo-o implicar-se mais ou menos com esta.
Por meio da elaboração de um instrumento metodológico com função
de gerar nas pessoas seus mapas afetivos com relação a lugares, Bomfim
(2003) pôde conhecer as cidades de São Paulo e Barcelona, a partir da afe-
tividade de seus habitantes. Respondendo aos itens imagéticos, desenho e
criação de metáforas e às questões abertas do instrumento, os pesquisa-
dos revelaram suas formas de ver, representar e sentir essas cidades. Essa
complexidade simbólica presente no mapa afetivo foi analisada com vistas
a extrair imagens ambientais, indicadoras da estima de lugar, que comporta
uma análise de dados do tipo quali-quanti. O instrumento gerador dos ma-
pas afetivos é constituído principalmente por questões abertas, que propi-
ciam uma boa análise qualitativa dos dados, mas é também constituído de
uma escala Likert que auxilia numa análise estatística dos mesmos.
A escola tem sido o foco de nossas pesquisas porque abriga uma
comunidade representativa dos afetos do bairro no qual se localiza; é um
lugar do bairro para seus moradores; há a construção coletiva de sentidos
e significados; é um espaço para a dimensão educativa da pesquisa e abri-
ga grupos vulneráveis. A seguir será discutido o espaço da escola como
um lugar que pode proteger e apoiar ou um lugar que propicia o contexto
para a situação de vulnerabilidade social.

Vulnerabilidades e a escola como lugar de proteção

A escola na compreensão da Psicologia Ambiental é uma ambiência


formada por aspectos visíveis e invisíveis, que incluem as dimensões físi-

290
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

cas, culturais, de temporalidades e usos, que caracterizam a cotidianidade


e a identidade do lugar (Thibaud, 2004).
A Psicologia Ambiental preocupa-se com a qualidade dos ambientes
escolares e, por isso, busca compreender como a escola permite a criação
de um ambiente propício para otimizar o processo de ensino-aprendiza-
gem. Um espaço escolar pode tornar-se um lugar quando é dada a opor-
tunidade de construção de um ambiente interativo, que propicia proces-
sos de identificação, apropriação do espaço e emancipação humana. O
ambiente escolar não corresponde somente à sala de aula, mas ao pátio,
os corredores, a biblioteca, o bairro, como importantes locais de aprendi-
zagem e de proteção do jovem (Gilmartín, 1998).
A escola, dentro dos contextos de vulnerabilidade, pode ser pensa-
da como um aparato às redes de proteção à juventude. Entende-se aqui
por vulnerabilidades não apenas a questão econômica, como se pobreza
e vulnerabilidade fossem sinônimos, mas sim a falta ou a não condição
de acesso a bens materiais e serviços que possam suprir aquilo que pode
tornar o indivíduo vulnerável (Ayres, 1999).
Nesse sentido, a escola pública usualmente está em territórios con-
siderados vulneráveis, locais com elevados índices de violência, pobreza,
criminalidade, drogadicção, dentre outros. Porém, a escola em si aparece
como um lugar onde se estabelecem vínculos e onde os jovens, de algum
modo, constroem uma perspectiva de futuro.
Segundo Amparo, Galvão, Alves, Brasil e Koller (2008), “Outro im-
portante fator de proteção e promotor de resiliência no contexto de vida
de adolescentes em situação de risco psicossocial ... refere-se ao tipo de
envolvimento que eles têm com a escola”. Os adolescentes, em sua maio-
ria, vão para este lugar não apenas estudar, mas construir e manter re-
lações que lhe servem de apoio cotidiano para enfrentar adversidades e
mesmo para acreditar na construção de outros campos de possibilidades,
tendo minimamente projetos de vida a serem desenvolvidos. Neste mes-
mo estudo, os autores avaliam que, enquanto parte das redes de proteção
dos adolescentes, a escola equipara-se à família e aos amigos.
Na perspectiva das políticas públicas, a escola é o local agregador
de várias políticas, que não apenas as de educação. Nela, encontram-se
ações voltadas às políticas de cultura, saúde, segurança, tentando tornar

291
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

esse espaço uma possibilidade de mudança. Assim, a escola deveria ser o


foco de ação para se pensar como atuar junto aos adolescentes / jovens
que vivem em situações de vulnerabilidades, já que ela agrega diferentes
políticas, agrega diferentes vínculos e é também parte integrante do lugar
onde estes adolescentes vivem.
No caso da cidade de Fortaleza, pesquisas que vêm sendo desen-
volvidas pelo Laboratório de Pesquisas em Psicologia Ambiental – LOCUS3
mostram como a escola protege os jovens. Apesar da precariedade es-
trutural de muitas delas, de estarem inseridas em bairros considerados
perigosos, de nem sempre existir uma relação positiva entre professores e
alunos, estar inseridos na escola afasta estes jovens de situações como o
tráfico, a prostituição e a exploração do trabalho de menores de 18 anos.
O tempo dedicado a estar na escola, em seus diferentes espaços, retira
os jovens dos contextos que usualmente os tornariam mais suscetíveis às
situações de vulnerabilidade.
A temática da vulnerabilidade social e ambiental entre jovens no
Brasil tem sido pesquisada nos últimos anos, mostrando que um grande
contingente da população brasileira é de jovens, que representam em tor-
no de 20% da juventude da América Latina (Banco Mundial, 2007), vive
em situação de vulnerabilidade social e risco. Fortaleza representa uma
das capitais brasileiras que apresenta um dos maiores índices de vitimiza-
ção juvenil na faixa de 14 a 24 anos.
A vulnerabilidade social, fenômeno estudado nessa pesquisa, é um
conceito que vem ajudar na compreensão da desigualdade social e pode
ser vista como dificuldades de uma pessoa ou de grupo para resistir ou
fazer frente a uma determinada ameaça ou problema (Corraliza, 1998),
porém não de uma forma determinística. Há uma vulnerabilidade po-
sitiva quando se desenvolve, a partir das próprias experiências, formas
de resistência e de resiliência que permitem lidar com os obstáculos de
forma criativa (Castro & Abramovay, 2002), transformando vivências ne-
gativas em oportunidade de crescimento e aprendizagem.
Esta vulnerabilidade positiva foi identificada em pesquisa anterior
intitulada Transformando afetos: Jovens e adolescentes catadores de ma-

3
Estima de lugar e Indicadores de proteção afetiva de jovens estudantes de escolas públicas
de Fortaleza: Aportes da Psicologia ambiental para a compreensão da vulnerabilidade socio-
ambiental.

292
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

terial reciclável em busca de uma atividade produtiva (Bomfim, Martins


& Calabria, 2011)4, na qual foi desenvolvido um estudo qualitativo com
26 jovens na faixa etária de 18 a 27 anos, filhos de catadores de ma-
terial reciclável, que faziam reciclagem de lixo e que, no momento da
pesquisa, eram participantes de um projeto da fábrica de vassouras ori-
ginada da reciclagem de garrafas de plástico PET. Este grupo de jovens
caracterizou-se como vulnerável socialmente, entre outros aspectos,
por conter o perfil socioeconômico de baixa renda familiar, por terem
deixado de estudar para trabalhar e suas famílias receberem auxílio do
governo. Muitos deles já haviam tido experiência ou tinham sido usuá-
rios de drogas.
Os comportamentos de risco incluem atividade sexual precoce e ar-
riscada, uso de álcool e outras drogas, violência, desemprego, abandono
escolar e entrada precoce no mercado de trabalho. A pesquisa levantou
os fatores de risco e de proteção destes jovens no trabalho, além dos
dados sociodemográficos e de seus afetos relacionados à fabrica de vas-
souras PET.
A participação em comportamentos de risco, por sua vez, depende
de um conjunto de experiências negativas prévias, que incluem baixa au-
toestima, abuso físico, sexual ou psicológico, falta de confiança nas insti-
tuições locais, sentimento de mal-estar na escola e pobreza, entre outros
(Koller, Moraes, & Cerqueira-Santos, 2009; Bronfenbrenner, 2002; Castro
& Abramovay, 2002).
Confirmou-se nesta investigação, que as vulnerabilidades socioam-
bientais podem ser amortecidas a partir do incentivo a atividades pro-
dutivas e da criação de emprego e renda. Avaliou-se a afetividade (sen-
timentos e emoções) como uma importante categoria teórica para a
compreensão da subjetividade de grupos considerados vulneráveis e de
risco. As respostas apontaram que a criação de vínculos e de afetos com
o ambiente, no caso do trabalho, pode ser um caminho importante para
criação de resiliências e de potencialidades para reverter processos de
vulnerabilidades sociais e ambientais (Bomfim et al., 2011).


4
Bomfim, Z. A.C., Martins, A. S., & Calabria, R. C. (2011). Estima de lugar e Indicadores de
proteção afetiva de jovens estudantes de escolas públicas de Fortaleza: Aportes da psicologia
ambiental para a compreensão da vulnerabilidade socioambiental -1ª fase. Relatório Técnico
Universidade Federal do Ceará. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação. PIBIC 2011/2012.

293
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Além da criação de emprego e renda, a inserção na escola pode ser


vista como um caminho importante de proteção do jovem. Por exemplo,
na Política Nacional de Assistência Social, quando os serviços de Proteção
Social Básica5 delimitam algumas condicionalidades às famílias atendidas,
dentre elas, que crianças e adolescentes até 17 anos estejam regularmen-
te matriculados e frequentando a escola. Isto porque, em sua maioria,
as famílias atendidas por esses serviços vivem em situação de extrema
pobreza (vinculada ao desemprego, falta de acesso a alimentos etc.) e vul-
nerabilidades outras (violência intrafamiliar, drogadicção, tráfico etc.). Na
escola, estes jovens podem ter acesso a outros contextos, mesmo que
minimamente, e, assim, podem também desconstruir esse ciclo gerado
pelas vulnerabilidades e construir projetos de vida diferentes.
É preciso ainda ressaltar que a escola faz parte de um território. Ela
é um lugar pelos vínculos que nela são construídos cotidianamente, mas
é também parte de outros lugares: o bairro e a comunidade. Torna-se,
assim, imprescindível que a escola estabeleça um diálogo direto com estes
lugares, por integrá-los e por ter importância fundamental neles. Pensar,
então, a escola como potencializadora de afetos, de forma dialógica, é
pensar na transformação também das pessoas, dos bairros e/ou comuni-
dades onde estas estão inseridas.
Abre-se, desta forma, caminho para uma relação outra com o lugar,
com o “território” onde se vive: estimar o lugar é um dos processos de
transformação dele, e quando se modifica o lugar, modificam-se as rela-
ções, modificam-se as pessoas.
Pode-se dizer que a questão territorial influencia diretamente nas
formas de vulnerabilidade, pois a identidade com o lugar faz com que o
território se fortaleça, promovendo uma intensa mobilização de bens e
serviços necessários para um bem-estar social. Ou seja, não havendo vín-
culos fortalecidos, não havendo uma estima de lugar, maior a probabilida-
de de este território tornar-se suscetível às condições de vulnerabilidade.
O fortalecimento do capital e o processo de globalização, a partir
do “meio técnico-científico informacional” (Santos, 1985) contribuiu de
maneira direta para a perda de identidade cultural e consequentemente
a perda de territórios, fortalecendo o individualismo e favorecendo a pre-


5
Para mais detalhes, ver: http://mds.gov.br/

294
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

carização do trabalho, da habitação, dentre outros elementos, fatores que


favorecem o surgimento de vulnerabilidades sociais e ambientais.
Segundo Haesbaert (2006), “ninguém está excluído completamente
na sociedade, mas muitos estão incluídos precariamente. Ninguém pode
estar completamente destituído de território, mas pode estar precaria-
mente territorializado”. Esta situação de precarização é o que demonstra
o quanto uma comunidade/população pode ou não estar vulnerável e sua
capacidade de modificar essa realidade.
Foi pensando nas potencialidades de superação destas vulnerabili-
dades pelo jovem no contexto da escola e de seu território mais próximo,
o bairro e a comunidade, que se averiguaram possíveis correlações entre a
categoria estima de lugar com as de autoestima, autoeficácia e perspecti-
va de futuro de jovens de escolas públicas de Fortaleza, a partir dos dados
levantados na pesquisa Adolescência e Juventude: estudo sobre situações
de risco e redes de Proteção em Fortaleza (Colaço et al., 2011).

Correlação entre estima de lugar, autoestima, autoeficácia e perspectiva


de futuro

A partir do questionário adotado na Pesquisa adolescência e juven-


tude brasileira (Koller et al., 2006), aplicado e adaptado para as escolas
públicas de Fortaleza entre 2010 e 2011 (Colaço et al., 2011), averigua-
ram-se possíveis correlações entre a categoria estima de lugar e as de
autoestima, autoeficácia e perspectiva de futuro de jovens de escolas pú-
blicas de Fortaleza.
Foi aplicado um questionário composto por 77 itens, sendo 76 obje-
tivos e um descritivo, tendo 17 questões acerca dos dados biossociodemo-
gráficos e outras com temas de diferente natureza. As questões analisadas
foram: estima de lugar (questão 68), autoestima (questão 74), autoeficá-
cia (questão 75) e perspectiva de futuro (questão 76). Havia questões de
múltipla escolha e questões em formato Likert.
A estima de lugar foi avaliada nas questões: eu posso confiar nas
pessoas da minha comunidade/bairro; eu me sinto seguro na minha co-
munidade/bairro; eu posso contar com meus vizinhos quando preciso
deles; minha comunidade tem melhorado nos últimos 5 anos; eu sinto

295
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

que pertenço a minha comunidade/bairro; eu posso contar com alguma


instituição comunitária quando preciso.
A autoestima foi mensurada por meio de um modelo simplificado
da escala de Rosemberg (1965/1979), em que o respondente deveria as-
sinalar a frequência com a qual se sentia conforme as assertivas indica-
das, variando entre “nunca”, “quase nunca”, “às vezes”, “quase sempre” e
“sempre”, totalizando 10 frases a serem avaliadas.
Na questão 75, o tema abordado foi a autoeficácia, através da adap-
tação da escala de Schwarzer e Jerusalém (1995). Nesta questão, foram
apresentados 11 enunciados a serem assinalados conforme se relaciona-
vam ou não com pensamentos e crenças dos sujeitos.
A escala desenvolvida por Jessor, Donovan e Costa (1990) foi adap-
tada e compôs a questão 76 do instrumento de pesquisa, sendo seu ob-
jetivo avaliar a perspectiva de futuro dos jovens e adolescentes pesqui-
sados. Os 9 itens integrantes desta questão investigaram a probabilidade
que os sujeitos acreditavam ter de obter sucesso em áreas educacionais,
profissionais, econômicas, afetivas e de prestígio social.
A amostra foi composta por 1140 jovens estudantes de 43 escolas
públicas de Fortaleza (23 estaduais e 20 municipais), com idade entre
14 e 24 anos, que se encontravam dentro da faixa de baixo nível socio-
econômico e eram majoritariamente do sexo feminino (57,9%), solteiros
(92,8%) e distribuídos entre o ensino médio (56,9%) e o ensino fundamen-
tal (37,7%). A maior parte da amostra declarou-se parda (63,9%).
As análises apontaram que, apesar das condições de vulnerabilidade,
tais como baixo nível de escolaridade dos pais, precárias condições habita-
cionais, desvantagens socioeconômicas, os jovens pesquisados inclinam-
-se para uma autoestima positiva, com valorização de suas qualidades pes-
soais e satisfação consigo mesmos, como nos seguintes itens: Sou capaz de
fazer tudo tão bem como as outras pessoas (66,6%), Eu tenho uma atitude
positiva com relação a mim mesmo (60,0%), De modo geral, estou satis-
feito comigo mesmo (58,8%). Apesar destes valores serem relativamente
altos se comparados com os indicadores encontrados em outras cidades,
tais como Brasília e Belo Horizonte, percebe-se a discrepância negativa
que estes dados exprimem, demonstrando que a autoestima dos jovens
cearenses encontra-se bem abaixo daquela expressa pelos demais jovens.

296
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

No tocante à autoeficácia percebida pelos participantes da amostra,


os índices registrados demonstram que os jovens pesquisados têm um
nível elevado de crença em sua capacidade de solucionar situações difí-
ceis ou inesperadas. Foi registrada uma frequência de 73,0% a 85,4% de
respostas positivas aos itens da questão 75, relativa a este tema: Eu posso
resolver a maioria dos problemas se fizer o esforço necessário (85,4%); Te-
nho facilidade para persistir em minhas intenções e alcançar meus objeti-
vos (81,7%); Tenho confiança para me sair bem em situações inesperadas
(79,3%); Eu geralmente consigo enfrentar qualquer adversidade (73,0%).
Quanto à perspectiva de futuro, constatou-se que os jovens da
amostra apresentaram índices positivos de expectativa acerca do futuro,
o que também pode estar relacionado aos elevados indicadores encon-
trados em relação à autoeficácia. As porcentagens mais altas de crença
nas oportunidades futuras referem-se àquelas existentes no campo da
saúde e das relações interpessoais, tais como: ser saudável a maior parte
do tempo (83,6%), ser respeitado na minha comunidade (81,1%), ter uma
família (80,0%) e ter amigos que me darão apoio (79,5%).Vale salientar
que em relação aos aspectos educacionais, a porcentagem dos jovens que
acreditam que concluirão o ensino médio é mais baixo, embora ainda seja
alto (76,2%), contudo, quando se trata da possibilidade de ingressar no
ensino superior, apenas 51,7% dos jovens responderam positivamente.
Ao relacionar a estima de lugar com os demais fatores de proteção
discutidos até aqui, verificou-se que os resultados mostraram a existên-
cia de uma correlação positiva e significativa entre a estima de lugar e
a autoestima, a perspectiva de futuro e autoeficácia. Estas variáveis se
correlacionaram significativamente entre si. Assim, quanto maior os níveis
de estima de lugar, maiores serão os níveis de autoestima, autoeficácia e
perspectiva de futuro dos jovens.

Tabela 1. Correlatos da estima de lugar (n = 1.140)


1. Estima de lugar
2. Autoestima 0,20*
3. Perspectiva de futuro 0,17* 0,37*
4. Autoeficácia 0,14* 0,45* 0,32*
1 2 3

297
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Também é possível notar que a autoestima, a autoeficácia e a pers-


pectiva de futuro correlacionaram-se positivamente entre si. Tais dados
apontam para a compreensão da estima de lugar como um fator de pro-
teção à vulnerabilidade de jovens e adolescentes, conforme melhor dis-
cutido na sessão subsequente.

Estima de lugar e a escola: pesquisando e construindo uma intervenção


psicossocial

Os resultados apontaram que é possível compreender a estima de


lugar como um dos fatores importantes na avaliação da autoestima, da
autoeficácia e da perspectiva de futuro dos jovens avaliados. Contudo,
reconhece-se que, ao se tratar de fenômenos psicossociais, dificilmente
as explicações derivam de um único fator, observando sempre a teia de
relações que os compõem. Foram identificados caminhos comuns deste
estudo e investigações anteriores: a importância de investir no contexto
onde vive o jovem.
Concluí-se que a comunidade da escola não é somente o entorno
físico que a circunda. Os jovens criam simbolismos e significações com
o bairro, que vão variar em função da cultura, costumes, crenças, va-
lores, representações, visões de mundo, reforçados pela coletividade.
Um bairro degradado, violento, com altos índices de homicídio tem uma
péssima reputação, traz desconforto para o jovem e adolescente, que
também vê sua imagem e reputação de forma negativa, principalmente
quando não está implicado e vinculado com a comunidade.
O preconceito com o lugar foi o mais apontado pelos jovens das
escolas públicas de Fortaleza. Pode-se inferir que o lugar e o bairro
onde se encontra a escola podem ser um importante caminho para po-
tencializar indicadores subjetivos de proteção do jovem, e, consequen-
temente, promover a diminuição de riscos e de vulnerabilidades so-
cioambientais destes que se encontram em contextos de adversidades
sociais, culturais, econômicas e simbólicas próprias das escolas públicas
brasileiras.
As políticas públicas para a juventude precisam priorizar aspectos
subjetivos de apoio psicossocial que coloquem o espaço do bairro e da

298
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

comunidade vinculados à escola como prioritários, tais como o incentivo


à participação comunitária, a inserção de equipamentos comunitários de
lazer, cultura, de convivência e de apoio social. Estimar os jovens é esti-
mar a escola, o bairro e a comunidade e vice-versa.
Estas conclusões estão sendo corroboradas na 2ª e 3ª fase da pes-
quisa (Bomfim & Silveira, 2012)6 a partir do retorno a 5 escolas compo-
nentes da amostra geral onde se devolveram os resultados da parte qua-
litativa aos alunos a partir de grupos focais e de círculos de cultura. Novas
discussões e reflexões foram estabelecidas com estes grupos de jovens
dentro das escolas, confirmando que a estima de lugar destes alunos ten-
dem mais a uma potência de ação negativa mais do que positiva, a partir
da prevalência de imagens de destruição e de contrastes mais do que de
agradabilidade e de pertencimento.
No sentido de buscar priorizar uma produção de conhecimento que
seja compromissada com a realidade brasileira e regional, estamos em
fase de preparação de várias intervenções nestas escolas pesquisadas
nos últimos anos, tendo como base a afetividade e a estima de lugar nas
perspectivas psicossocial e dialética.
Priorizaremos a estima de lugar como extensão da autoestima dos
jovens por intermédio de atividades que fomentem no bairro espaços de
encontros e de processos de apropriação do espaço; o resgate da história
e da memória; o mapeamento de possibilidades de lazer e oportunida-
des, além de uma educação ambiental que promova maior pertencimen-
to ao bairro.
Outras atividades que promovam um maior reconhecimento, valor
e autoestima do jovem estão sendo planejadas, tais como atividades de
contato com eles mesmos, a partir da corporeidade e do esporte, conver-
sas e encontros individuais relacionados com o processo ensino e apren-
dizagem e grupos de reflexão com temas de interesse, e outras atividades
em que eles possam ser escutados e considerados em seus projetos de
vida atuais e futuros.


6
Bomfim, Z. A. C. & Silveira, S. S. (2012). Estima de lugar e Indicadores de proteção afetiva de
jovens estudantes de escolas públicas de Fortaleza: Aportes da psicologia ambiental para
a compreensão da vulnerabilidade socioambiental -2ª fase. Relatório Técnico Universidade
Federal do Ceará. Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação. PIBIC 2012/2013.

299
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Esperamos que, por intermédio destas intervenções, possamos mi-


nimizar processos de vulnerabilidade social e potencializar os aspectos
de proteção subjetiva tão preconizados e apontados pelas teorias de de-
senvolvimento de base psicossocial e ecológica. A resposta para conhecer
esta situação de vulnerabilidade e violência vivida nos bairros hoje onde
se encontram as escolas nós já temos e sabemos, o que precisamos agora
é intervir, universidade e políticas públicas com o fim de protegê-los.

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Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

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302
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Sobre os autores, organizadores e coordenadoras


 

Autores

Adolfo Pizzinato é doutor em Psicologia da Educação pela Universitat Au-


tònoma de Barcelona e professor da Faculdade de Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
E-mail: [email protected]
Alisson Tiago Gonçalves Vieira é graduado em Psicologia pela Universidade
Federal de Alagoas e egresso do Programa de Educação Tutorial em Psico-
logia (PET-Psicologia). Atualmente é residente do Programa de Residência
Multiprofissional de Saúde da Família na Universidade Estadual das Ciên-
cias da Saúde do Estado de Alagoas.
E-mail: [email protected]
Ana Kristia da Silva Martins é mestre em Psicologia pela Universidade Fe-
deral do Ceará.
E-mail: [email protected]
Ana Paula Martins é psicóloga pela Fundação Universidade Regional de
Blumenau - FURB, Santa Catarina.
E-mail: [email protected]
Cristiano Hamann é licenciado em História e mestrando em Psicologia
Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: [email protected]
Cristiano Santos Rodrigues é doutor em Sociologia pela Universidade Esta-
do do Rio de Janeiro, e professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Federal da Bahia.
E-mail: [email protected]
Dayse Da Silva Albuquerque é mestranda do Programa de Pós Graduação
em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: [email protected]
Debora Linhares da Silva é mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
E-mail: [email protected]

303
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Eduardo Augusto Tomanik é doutor em Psicologia Social pela Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo. Foi professor da Universidade Estadual
de Maringá, e atualmente é Professor Voluntário do Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: [email protected]
Elisa Harumi Musha é mestranda em Psicologia na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Erich Montanar Franco é doutor em Psicologia Social pela Universidade de
São Paulo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Fun-
dação Armando Álvares Penteado.
E-mail: [email protected]
Frederico Alves Costa é doutor em Psicologia pela Universidade Federal
de Minas Gerais. Atualmente é Professor Colaborador no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, no qual
realiza estágio pós-doutoral (PNPD/CAPES).
E-mail: [email protected]
Gabriela Lopes de Aquino é graduada em Psicologia pela Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
E-mail: [email protected]
Gláucia Tais Purin é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicolo-
gia Social na Pontifícia Universidade Católica de São paulo .
E-mail: [email protected]
João Pedro Cé é psicólogo e Produtor Cultural. Mestre em Psicologia Social
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
E-mail: [email protected]
Kátia Maheirie é doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo e com estágio pós doutoral na Universidade de Cam-
pinas. É Professora da Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: [email protected]
Lorena de Fátima Prim é doutora em Psicologia pela Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo e Professora Titular do Fundação Universidade
Regional de Blumenau.
E-mail: [email protected]

304
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Luis Guilherme Galeão-Silva é doutor em Psicologia pela Pontifícia Univer-


sidade Católica de São Paulo e professor de psicologia social do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Marcela de Andrade Gomes é doutora no Departamento de Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina e professora da Faculdade CESUSC
(Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina).
E-mail: marceladea’[email protected]
Marco Antonio Sampaio Malagodi é doutor em Psicologia pela Universida-
de de São Paulo e professor do Curso de Geografia na Universidade Fede-
ral Fluminense.
E-mail: [email protected]
Marco Aurélio Máximo Prado é doutor em Psicologia Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. É professor da Universidade Federal
de Minas Gerais.
E-mail: [email protected]
Maria Inês Gasparetto é doutora em Antropologia Social pela Brunel Uni-
versity. Atualmente pesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia.
E-mail: [email protected]
Mariana de Castro Moreira é doutora em Psicossociologia de Comunida-
des e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atual-
mente, trabalha como professora, pesquisadora e coordenadora de cursos
de graduação e pós-graduação presencial e à distância.
E-mail: [email protected]
Mariana de Moraes Duarte Oliveira é graduada em Psicologia pela Uni-
versidade Federal de Alagoas e egressa do Programa de Educação Tutorial
(PET-Psicologia) da mesma Universidade.
E-mail: [email protected]
Marie Louise Trindade Conilh de Beyssac é doutora em Psicossociologia
de Comunidades e Ecologia Social pelo Programa EICOS IP Universidade
Federal do Rio de Janeiro, e docente e pesquisadora em pós-doutorado no
Programa de Pós-Graduação da mesma universidade.
E-mail: [email protected]

305
Estado, Ambiente e Movimentos Sociais

Mário Henrique da Mata Martins é doutorando em Psicologia Social pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Mary Jane Paris Spink é doutora em Psicologia Social - University of London.
Atualmente é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Priscilla Maia Rangel é mestre em Psicologia Social pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e doutoranda em Psicossociologia de Comunida-
des e Ecologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profes-
sora da Universidade Estácio de Sá e Associação Educacional Dom Bosco.
E-mail: [email protected]
Rodrigo de Oliveira-Machado é mestre em Psicologia Social pela Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutorando em
Psicologia Social na Universitat Autònoma de Barcelona.
E-mail: [email protected]
Tania Barros Maciel é pós-doutora pelo L Institut d Etudes Politiques de Pa-
ris Sciences Po e doutora em Sciences de Leducation - Universite de Paris
V. Atualmente é Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]
Telma Regina de Paula Souza é doutora em Estudos Pós Graduados em
Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atual-
mente é docente da Universidade Metodista de Piracicaba.
E-mail: [email protected]
Vivina Dias Sól Queiróz é doutora em Educação, pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Atualmente é professora Adjunta da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
E-mail: [email protected]
Zaira de Andrade Lopes é doutora em Psicologia pela Universidade de São
Paulo e professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
E-mail: [email protected]
Zulmira Áurea Cruz Bomfim é doutora em Psicologia (Psicologia Social) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós doutorado em Psico-
logia ambiental na Universidade da Coruña, Espanha. É professora do Pro-
grama de Pós Graduação de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
E-mail: [email protected]

306
Coleção Práticas sociais, políticas públicas e direitos humanos

Organizadores

Frederico Viana Machado é doutor em Psicologia pela Universidade Fe-


deral de Minas Gerais. Professor do Bacharelado em Saúde Coletiva e do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
E-mail: [email protected]
Gustavo Massola é doutor em Psicologia Social pela Universidade de São
Paulo. Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
E-mail: [email protected]
Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro é doutora em Psicologia pela PUC São
Paulo com pós-doutorado em Políticas Públicas na Escola de Administra-
ção Pública e Governos da Fundação Getúlio Vargas/SP e na Universidade
Autónoma de Barcelona. É professora da Universidade Federal de Alagoas.
E-mail: [email protected]

Coordenadoras da Coleção

Ana Lídia Campos Brizola é mestre em Psicologia pela Universidade Federal


de Santa Catarina. Pesquisadora do INCT CNPq Brasil Plural - IBP. Editora
executiva do Núcleo de Publicações do Centro de Filosofia e Ciências Huma-
nas - CFH/UFSC e da ABRAPSO Editora.
E-mail: [email protected]
Andrea Vieira Zanella é doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professora do Programa de Pós-gradu-
ação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista em
produtividade do CNPq.
E-mail: [email protected]

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