David Lyon
David Lyon
David Lyon
DAVID LYON
SOCIOLOGIA E FÉ CRISTÃ
A revolução
1
Ver R. Aion, The Main Currents in Sociological Tought (Penguin, 1969). O desejo de mudar ou controlar
a sociedade deu origem a diferentes sociologias.
determinar a vontade do povo e como envolver as massas no
processo decisivo? Estes problemas deram origem a uma vaga de
teorizações sociais sem precedentes.
A "soberania popular" trouxe consigo um novo sentido de
identidade (um grande número de pessoas a viver num território
comum sob a mesma bandeira) e uma nova ideologia - o
nacionalismo. Não devemos esquecer que tanto a Itália como a
Alemanha, por exemplo, são Estados-nação com mais de um século
de existência. Este novo sistema é algo de invulgar que teve de ser
primeiro compreendido e depois explicado. O Estado penetra na vida
de todos os membros da sociedade e é capaz de manipular e
influenciar largamente a vida do indivíduo, da família e de outros
grupos sociais. A burocracia necessária para gerir ou governar um
Estado-nação era algo de novo e o sociólogo alemão Max Weber
(1864-1920) realizou estudos tão profundos sobre o assunto que
ainda hoje é citado no início de qualquer discussão sobre burocracia.
Poderíamos dizer com segurança que o pensamento que teve origem
nos Estados-nação teve continuidade na ideia de "sistemas sociais",
que é a grande preocupação de muitos sociólogos em geral e dos
sociólogos americanos em particular. Mas penso que nos estamos a
adiantar.
A industrialização
2
Ver, por exemplo, J. D. Halloran, The Effects of Television (Panther, 1970)
Falar estritamente do império da máquina sobre o ser humano
é, evidentemente, contar apenas uma parte da história. Uma das
consequências da industrialização foi a criação de uma sociedade de
trabalhadores urbanos. Este facto, por si só, contribuiu para o
desenvolvimento da sociologia muito mais do que qualquer outro
estudo realizado por sociólogos nos últimos anos. A divisão
acentuada entre "casa" e "trabalho", por exemplo, foi registada pela
primeira vez pouco depois do aparecimento do "sistema fabril". Isto
significou uma divisão entre "a família" e "a economia", ou seja, a
família tornou-se uma célula consumidora em vez de produtora.
Alguns notaram que, a partir desta altura, a família perdeu
gradualmente as suas funções primordiais. Como cristãos, devemos
examinar e testar este tipo de afirmação, que é uma das principais
causas de controvérsia hoje em dia. Em ligação com tudo isto, a
sociologia tomou também sob a sua égide temas como a sociedade
"pré-industrial" (e agora, evidentemente, a sociedade "pós-
industrial"!), a teoria das organizações, as relações industriais e uma
série de outros aspectos, quase sempre ligados ao efeito social da
industrialização e da urbanização.
Pensadores da estatura de Owen, na Grã-Bretanha, e de
Toqueville, Fourier e Comte em França, abordaram estes problemas
com teorias que vão do realismo à pura utopia. Robert Owen (1771-
1858), por exemplo, tentou fazer experiências no domínio do
socialismo industrial no seu célebre "New Lanark Mills", enquanto
Fourier (1772-1837) sonhava com a criação de "falanges" de 440
famílias cada, que seriam comunidades cooperativas baseadas na
divisão do trabalho. No seu projeto (que nunca chegou a ser posto
em prática), as crianças de cinco anos teriam mesmo um papel na
recolha do lixo, aproveitando assim a sua tendência para se sujarem!
Mas foi provavelmente a influência de Marx que teve o maior e
mais profundo impacto neste domínio. Foi ele que se apercebeu de
muitas características da sociedade industrial que tinham escapado
à atenção de outros ou que tinham sido simplesmente mal
compreendidas. Estava convencido de que, no sistema de produção
"capitalista", os homens eram meros escravos assalariados, uma vez
que tudo o que podiam fazer era vender o seu trabalho ao patrão.
Não tinham qualquer controlo sobre as horas que trabalhavam nem
sobre o que produziam. Isto conduzia a uma alienação ou indiferença
em relação ao que era produzido, em relação aos patrões e, como
consequência do efeito diretivo de transformar uma única tarefa
numa série de pequenas tarefas repetitivas, a uma indiferença em
relação aos seus colegas de trabalho. O equivalente mais próximo
da palavra que utilizou para se referir a este alheamento é
"alienação". Embora o próprio Marx nunca tivesse subscrito um
"determinismo econômico" completo, muitos dos seus seguidores
negligenciaram outros aspectos mais "humanistas"3 da sua obra,
propagando nas suas teorias socioeconómicas uma visão
desanimada do homem. Dito isto, o "fator" económico continua a ser
a componente de importância vital no "evangelho" de Marx. Este fator
levou-o a afirmar, em 1847, perante um punhado de sindicalistas
perplexos, que a história da humanidade era, nem mais nem menos,
do que a história da luta de classes entre o trabalhador alienado e o
seu patrão, ou o servo e o seu senhor - o resultado do conflito entre
diferentes formas de gerir uma economia.
A industrialização teve muitas outras consequências. Foram
reunidos sob o mesmo teto mais trabalhadores do que em qualquer
outra economia anterior. A especialização e a mecanização tiveram
lugar. Os trabalhadores atingiram um nível de convivência entre si
nunca antes visto (como companheiros de trabalho, como
trabalhadores perante o capataz ou como gestores perante o patrão
ou proprietário) e experimentaram uma nova relação com as
máquinas. Os interesses contraditórios degeneraram muitas vezes
em conflitos, e a solução destes conflitos e a melhoria das condições
gerais conduziram frequentemente à catalisação de um pensamento
sociológico4.
Na Grã-Bretanha havia uma tradição de "investigação social e
legislação", ligada a nomes como Sidney e Beatrice Webb (e a
sociedade Fabianista), Charles Booth (1840-1916) e Seebohm
Rowntree (1871-1954). Todos eles utilizaram material recolhido a
partir de estatísticas sobre as dificuldades físicas e morais de
determinados bairros de lata para fazer pressão para que a
legislação respondesse às exigências de emprego, habitação e
cuidados de saúde. A combinação desta tradição com uma tradição
mais filosófica levou à criação da London School of Economics, a
pioneira da sociologia na Grã-Bretanha.
A sociologia desenvolveu-se devido às convulsões sociais
provocadas pela revolução e pela industrialização no século XIX.
3
Humanista: é a única vez que este termo aparece no sentido de "reconhecer a dignidade e a humanidade
intrínseca do homem". Mais tarde será utilizado exclusivamente para designar a filosofia que coloca em
primeiro lugar os interesses puramente humanos, rejeitando o sobrenatural.
4
O teólogo e sociólogo francês Jacques Ellul escreveu sobre a mecanização em El siglo XX e a técnica,
Editorial Labor. Barcelona, 1960.
Mas porque é que tomou as formas que hoje utilizamos e como é que
acabou por alcançar uma posição tão privilegiada?
Do Iluminismo à Evolução
5
Os “filósofos” franceses humanistas franceses acreditavam que possuíam o “iluminismo” porque
tinham substituído a revelação pela razão.
mais adiante que esta nova abordagem não é menos "religiosa" do
que a anterior. Trata-se simplesmente de uma mudança de crença.
Ao observar as mudanças que ocorriam na Europa, o homem
apercebeu-se de que a ciência desempenhava um papel importante
na formação dos novos Estados-nação, especialmente no domínio
das inovações tecnológicas. Eram tempos de crise e de convulsão, e
era necessário explicar coerentemente aquilo em que se estava a
entrar. Pensou-se que, se a ciência tinha sido a arquiteta deste
mundo mecanizado, talvez fosse também capaz de o tornar
compreensível. Além disso, à medida que o mundo era
progressivamente domesticado pela ciência, aumentava a obsessão
de ser "científico". A esta fé na ciência como portadora de soluções
para todos os problemas chamaremos "cientismo".
O exemplo mais claro de cientismo na teoria sociológica é o
trabalho do homem que cunhou o termo "sociologia", Auguste Comte
(1798-1857). Comte via a história como um todo unificado, mas
dividido em etapas. Estava convencido de que vivia numa época em
que uma fase, a fase "teológica e militar", estava a desaparecer e
outra, a fase "científica e industrial", estava a nascer. Comte chamou
à segunda fase "positiva", o que significa que a ciência produzia
resultados "positivos" com base em "factos e nada mais". Afirmou que
o homem da fase positiva não podia de modo algum acreditar na
"revelação", mas que precisava de uma religião na mesma. Assim,
Comte fundou a estranha e ritualista "Religião do Humanismo". Hoje
tenta-se minimizar o facto como uma excentricidade do século
passado, mas a verdade é que a religião do humanismo estava
intimamente ligada à sua sociologia. Comte pensava que a sua
sociologia era racional e empírica, mas ignorava a base metafísica
(ou religiosa) subjacente tanto à sua "religião científica" como à sua
sociologia. Era uma institucionalização do processo que o apóstolo
Paulo descreve em Romanos 1:25, onde o homem vive "honrando e
adorando as criaturas e não o Criador".
Só nos últimos anos6 é que um grande grupo de pensadores
aceitou finalmente o facto de que, por detrás de cada "ciência", existe
uma "metaciência" e que, por detrás de cada hipótese científica,
existe um "paradigma" ou um quadro de pressupostos (conhecidos
como "pressuposições") que são tomados como certos. Na altura,
Comte pressupunha certas "verdades", que considerava evidentes,
como a falsidade da religião sobrenatural, a inevitabilidade do
6
Sobretudo desde a publicação, em 1962, da obra de T. Kuhn Kuhn's ,The Structure o f Scientific
Revokitions (University of Chicago Press, 2ª e 3ª ed. 1970).
progresso moral e tecnológico e a eficácia do seu próprio método
para produzir resultados fiáveis.
Comte é um elo importante entre a filosofia positiva e a filosofia
social. A sua filosofia positiva foi sucedida no nosso século pelo
"positivismo lógico"7, uma disciplina que tomou a sua doutrina de que
o homem só pode obter conhecimento dos fenómenos através de um
estudo que determina se certas afirmações básicas fazem sentido ou
não. A caraterística comum é que a categoria da "revelação"8 como
fonte de conhecimento autêntico é eliminada desde o início. O
significado disto para nós é que a lógica positivista está intimamente
ligada ao empirismo, que por sua vez afirma rejeitar todo o
conhecimento "a priori" e basear-se exclusivamente na
experimentação (com base nos fenómenos). Estes opositores da
"revelação" afirmariam, portanto, que a Bíblia não pode ter nada a
dizer sobre a natureza do homem ou da sociedade.
Tanto o positivismo como o empirismo tiveram uma grande, se
não a maior, influência no desenvolvimento da sociologia no século
atual. Este fato é ainda mais evidente no dogma contido no conceito
de "liberdade-valor", interpretado como "neutralidade ética", que foi o
tema principal da sociologia empírica (especialmente na América do
Norte) dos anos 40 aos anos 50 e seguintes. A ideia original veio do
wert-frei de Max Weber, mas com o tempo tornou-se a desculpa
sociológica para a ignorância de problemas ou questões sociais
vitais. Numa altura em que se verificava uma grande agitação em
torno da igualdade entre negros e brancos, havia uma notória falta
de interesse pela sociologia da raça no seio da Associação
Americana de Sociologia. Assim, paradoxalmente, a sociologia ficou
isolada da própria sociedade que era suposto estudar.
Mas voltemos por um momento ao século XIX. A relação entre
religião e ciência foi provavelmente a mais importante fonte de crise
no espírito da época e, enquanto "crise", tornou-se o objeto de estudo
de muitos pensadores sociais importantes. Todos eles queriam ser
considerados cientistas, pois o pensamento científico parecia-lhes
ser o único sistema exato e válido. Durkheim (1858-1917), por
exemplo, que era professor de filosofia, queria que a sociologia
estabelecesse uma moral não religiosa, uma vez que a religião
7
Esta filosofia, que procura julgar se certas afirmações fazem sentido ou não, rejeita categoricamente a
linguagem religiosa como "sem sentido".
8
Ver A. J. Ayer, Language, Truth and Logic (Penguin, 1971), para mais esclarecimentos sobre esta
posição.
tradicional estava em descrédito. Naqueles tempos de otimismo, a
ciência parecia ter a resposta para todos os problemas da vida.
Seria insensato ignorar, nesta fase, o impacto que as ideias
evolucionistas9 tiveram no pensamento do século XIX. A Origem das
Espécies foi publicada em 1859. Teria sido lógico esperar que, à
medida que a ideia de que o homem poderia estar de alguma forma
relacionado com os macacos tomasse forma na sociedade, o homem
tivesse sido temporariamente destituído do seu trono. Longe disso, a
fé otimista dos vitorianos no homem não pôde ser reprimida por muito
tempo, e logo se sugeriu que o homem poderia alterar o curso da sua
chamada "evolução" numa direção progressiva. Esta ideia veio a ser
conhecida como "darwinismo social" e Herbert Spencer (1820-1903)
foi o seu principal expoente10.
O sistema de Comte, evolutivo na sua essência, conduziu,
como seria de esperar, à Religião do Humanismo, e o "Estudo de
Sociologia" de Herbert Spencer, publicado em 1874, completou o seu
trabalho sobre um sistema de filosofia social evolutiva que substituiria
todo o pensamento anterior, incluindo, naturalmente, a teologia11. Os
acontecimentos estavam a confirmar a velha máxima do poeta Pope:
"Não pretendas examinar Deus; o estudo adequado da humanidade
é o homem". Chegar a uma compreensão da condição humana
tornou-se o principal objetivo, e a abordagem evolutiva progressiva
reforçou a crença de que o homem é basicamente bom, possuindo o
potencial para se melhorar a si próprio e para se governar sem
qualquer ajuda ou autoridade externa - exceto, claro, a da própria
ciência.
A atitude científica-positivista, que ainda prevalece em grande
parte da sociologia, é uma das principais raízes humanistas da
disciplina. Esta atitude conduziu a uma forte ênfase na observação e
nos dados, especialmente entre aqueles (muitas vezes na psicologia
social) que se definem como behavioristas na sua abordagem. Esta
atitude, que surgiu, se não me falha a memória, da crença de que a
ciência estava a substituir a religião, contribui provavelmente para a
aparente arrogância e autoritarismo de alguma da sociologia atual.
Ainda há sociólogos que dão a impressão de serem os sumos
sacerdotes da sua religião, pela forma como transmitem a sua
sabedoria, com unção e certeza profética, modulando os mantras
sagrados da "gentrificação" ou da "etnometodologia"!
9
Ver J. W. Burrow, Evohition and Society (Cambridge, 1965).
10
Ver e R. Hofstadter, Social Darwinism in American Thought (Beacon, 1955).
11
Ver D. Lyon, “Sociology and Secularizaron”, Faith and Thought, 102.1,1975
A sociologia na atualidade
12
Por exemplo, A. Gouldner, For Sociology (Alien Lañe, 1973), ou R. Friedrichs, A Sociology o f Sociology
(Free Press, 1970).
lugar, temos de perceber quais são e onde estão as discrepâncias
entre o pensamento cristão e o sociológico. Temos de compreender
que grande parte da sociologia, tanto histórica como contemporânea,
discorda nos seus pressupostos da mundividência cristã, e é aqui
que temos de confrontar as ideias dominantes. A sociologia
relativista, para dar mais um exemplo, cria teorias imponentes sobre
a família e o Estado, mas não conhece nenhum ponto de referência
fora desses núcleos. Os sociólogos podem, para fins analíticos,
escolher pontos de referência arbitrários, dentro da própria
sociedade, e podem chegar a conclusões muito reveladoras; mas o
que não podem pretender fazer é dotá-los de um significado último.
Se é verdade que o nosso conhecimento é limitado pela nossa
condição de criatura, também não devemos esquecer que o nosso
Criador revelou a verdade - incluindo a verdade sobre o homem na
sociedade - verdade que não está sujeita a determinismos
situacionais - incluindo a verdade sobre o homem em sociedade -
verdade que não está sujeita a determinismos situacionais.
Trataremos deste assunto na próxima secção do livro.
É preciso ter uma palavra de cautela. Embora, como cristãos,
tenhamos muitas vezes de discordar dos sociólogos em questões
básicas, isso não significa que toda a teoria sociológica seja
automaticamente inválida. Pelo contrário! A sociologia alcançou uma
série de excelentes resultados através do trabalho de não-crentes,
resultando em melhorias sociais significativas que são inteiramente
agradáveis a Deus. Há certas reformas sociais, resultado direto do
trabalho dos sociólogos, que só podem ser descritas como ajudando
o homem a viver como ele foi originalmente destinado a viver. Mas
há ainda um longo caminho a percorrer. Até porque a sociologia da
sociologia revela que a nossa compreensão da sociedade está ainda
a um nível muito elementar e porque nós, cristãos, temos agora uma
nova oportunidade de contribuir a partir de uma perspectiva
decididamente bíblica.
III.
QUEM DIZ?
"O sociólogo é o tipo que passa a vida a perguntar: Quem é que diz isso?" -
Peter L. Berger.
13
Não atesto a veracidade desta interpretação!
argumenta o sociólogo, a sua falsidade só pode ser demonstrada
através da análise do contexto social em que se manifestam.
Atualmente, está na moda incluir no estudo da sociologia do
conhecimento tudo o que passa por conhecimento na sociedade. Ou
seja, qualquer manifestação de senso comum ou de sabedoria
tradicional que sirva para orientar as nossas ações cotidianas torna-
se importante para o sociólogo, que tentará encontrar as suas
origens e explicá-la (ou mesmo destruí-la?) em termos do seu
enquadramento social.
É, pois, impossível evitar o escantilhão de conhecimentos do
sociólogo. Nada escapa ao seu escrutínio, e a religião é um dos seus
primeiros alvos (consequência direta da situação descrita no capítulo
anterior, em que a "ciência", durante o século passado, acreditava
que tudo podia ser explicado de forma científica). O estudante de
sociologia que é cristão pode ficar perplexo e desnorteado ao
descobrir que as suas crenças religiosas podem aparentemente ser
explicadas sem refutação possível, tanto em termos do contexto
social das origens da sua religião, como em termos das forças sociais
que levaram ao seu próprio empenhamento.
O sociólogo do conhecimento pode recorrer à opressão romana
sobre o povo judeu na época de Cristo e ao facto concreto de os
judeus já terem um "mito messiânico", que facilitou o caminho para a
adesão à figura carismática de Jesus. O infeliz episódio que terminou
com a crucificação de Jesus como um revolucionário que ameaçava
a estabilidade do domínio imperial em Jerusalém foi logo
compensado pelo engenhoso "mito da ressurreição", que serviu para
unificar os seus seguidores, até então heterogéneos, sob uma
bandeira emocional comum.
Seguindo esta linha de raciocínio, poder-se-ia também explicar
a "conversão" em termos de mimetismo ou de conformidade com o
grupo no seio da família ou da escola, ou em termos de uma procura
de reconhecimento ou de estatuto social condicionada por
necessidades sociais particulares. Uma vez "convertida", a
frequência da igreja é vista como uma simples resposta à ideologia
da "comunhão fraterna", fomentada pelo uso comum do pequeno
sinal na lapela: "Jesus vive hoje".
No entanto, a maior parte dos ingleses vive num mundo que
tomam por garantido, um mundo que, embora possa conter alguns
fundamentos cristãos, está fundamentalmente longe do cristianismo
bíblico. É esta visão do mundo, que tem um certo número de
pressupostos evidentes, que os sociólogos estudam. Mas o
sociólogo do conhecimento insistirá que a visão do mundo é
socialmente determinada. Por outras palavras, este mundo assumido
da "realidade" é socialmente construído e, portanto, é
exclusivamente um produto de uma dada sociedade. Ironicamente,
porém, os próprios sociólogos descobrem frequentemente que não
têm qualquer ponto de referência fora da sociedade; tudo o que
conseguem é fazer com que as pessoas se apercebam daquilo que
eles (sob a forma de sociedade) ensinaram a si próprios! Na prática,
tentarão sempre fazer mais do que isso, porque, de facto, se agarram
a certos valores que, embora muitas vezes implícitos, dão o tom à
sua investigação.
A sociedade diz
14
A. R. Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society (Cohén, 1952), p. 180.
15
R. K. Merton, Social Theory and Social Structure (Free Press, 1957).
nela, obscurecer a intenção ou, eventualmente, a responsabilidade.
Pode também levar à desvalorização, por exemplo, do ensinamento
cristão sobre a família. Pode dizer-se que o casamento tem (entre
outras) uma função sexual. No entanto, o sociólogo pode constatar
que muitas pessoas solteiras têm ou se entregam a relações sexuais,
e depois dizer que, uma vez que a maior parte dos recasamentos
antes do casamento é praticada por casais que tencionam casar de
qualquer forma16, e que a maioria dos divorciados volta a casar17, o
casamento como instituição continua a ser tão popular como sempre.
Não vale a pena notar que Jesus Cristo não estava a referir-se ao
casamento de direito comum, ou à monogamia repetida, quando
apelou à ordem instituída na criação relativamente ao casamento em
Mateus 19!
É precisamente o relativismo da sociologia que denuncia a
existência de uma distorção da verdade sobre o homem e a
sociedade. Partindo do pressuposto de que tudo, mesmo o
conhecimento, é socialmente relativo, o sociólogo lança-se em
afirmações surpreendentes e ousadas. Ele pode dizer, por exemplo,
que um conceito ou um certo comportamento só se torna "humano"
pela repetição e pela familiarização. Será isto apenas uma prova
palpável da sua cegueira perante os absolutos e os determinantes
dados? O sociólogo cristão gostaria, pelo contrário, de assumir a
realidade do conhecimento verdadeiro - e, com base nisso, afirmar a
existência de conceitos permanentes e intrinsecamente humanos,
como a vontade e a responsabilidade. Mas, nesta altura, que direito
tem o cristão de desafiar as afirmações dos sociólogos? Como é que
os cristãos se atrevem a fazer afirmações categóricas de qualquer
tipo?
Deus diz
16
M. Schofield, The Sexual Behaviour o f Young People (Penguin, 1965).
17
5 R. Fletcher, Family and Marriage in Britain (Penguin, 1969), p. 143
Lucien Coletti, por exemplo, que defende o marxismo como
uma ciência social, afirma: "Ele (o marxismo) é a análise da realidade
do ponto de vista da classe trabalhadora"18. Da mesma forma,
devemos explicitar bem o nosso ponto de vista cristão exato.
O que é que acreditamos ser verdade e porque é que
acreditamos que certas coisas são verdadeiras? Que fique claro que
não é pelo fato de as teorias cristãs serem socialmente aceitáveis - a
grande maioria não acredita nelas! Os ensinamentos de Jesus
contêm uma série de palavras duras que vão contra as tendências
da cultura moderna. É completamente impossível dar uma explicação
detalhada em termos sociológicos para uma mudança nas crenças
pessoais de alguém, especialmente num caso como o do apóstolo
Paulo. Tudo o que lhe tinha sido ensinado na sua rigorosa seita
judaica impedia-o de se tornar um seguidor do "Caminho" e, além
disso, ele estava ativamente empenhado em tentar exterminar os
primeiros cristãos. Paulo era um homem muito inteligente,
perfeitamente racional e, segundo todos os relatos, normal, tanto
antes como depois do encontro na estrada de Damasco. O grupo a
que pertencia nessa altura era "anti-moderno", mas depois desse
encontro, porém, mudou radicalmente. A sua visão do mundo e, por
conseguinte, o seu modo de vida mudaram completamente, mesmo
que as suas novas crenças dificilmente pudessem ser descritas como
socialmente aceitáveis!
Talvez, já que estamos a falar da conversão de Paulo, devamos
mencionar a famosa crítica "psicológica" da conversão no livro de
William Sargant "Battle for the Mind". Sargant argumentava que a
conversão nada mais era do que levar uma pessoa a um estado de
hipersugestão e depois fazer-lhe uma lavagem cerebral para que
aceitasse as crenças cristãs. A sua intenção era mostrar que aquilo
que algumas pessoas consideravam uma experiência espiritual de
natureza divina era meramente o produto da manipulação humana e,
por isso, falar de algo espiritual era equivalente a estar iludido. Ora,
como Martyn Baker salientou, "isto seria o mesmo que reduzir o
trabalho de Picasso ao comentário de que a tinta que ele usou era de
tal e tal matiz e tal e tal intensidade e que, portanto, as suas obras de
arte são um embuste, algo meramente material sem qualquer outro
valor19.
O sociólogo naturalista recorre exatamente ao mesmo tipo de
argumento que Sargant e, tal como ele, ignora (como o Dr. Lloyd-
18
R. Blackburn (ed.),Ideology in Social Science (Fontana, 1972)
19
Martyn Baker, “The Psychology of Conversión” , Faith and Spiritual Thought, 101.2,1974.
Jones corretamente assinala na sua crítica a Sargant20) os aspectos
históricos e sobrenaturais do cristianismo. Peter Berger recorre a
uma linguagem semelhante à de Sargant quando escreve que "a
possibilidade (de conversão) aumenta de acordo com o grau de
instabilidade ou desconti- nuidade da estrutura de plausibilidade
(pela qual a pessoa é governada em sua vida normal21)". Neste caso,
Berger não está a atacar a religião, mas é claro como, quando as
suas palavras são retiradas do contexto ou despojadas dos seus
atributos qualificativos, se pode chegar a compreender que os
cientistas sociais digam que a conversão não é mais do que um
fenómeno sociológico ou psicológico.
Estas qualidades são evidentes na crença cristã relativamente
à "conversão" e, mais diretamente relacionada com esta secção,
relativamente a Deus ser a autoridade final e o ponto de referência
para a nossa compreensão do mundo. Os cristãos acreditam que
Deus se manifestou ao homem de várias maneiras. Esta "auto-
revelação" é geral, na personalidade do homem e no mundo exterior,
e especial, em Jesus Cristo e na Bíblia. A revelação geral de Deus no
mundo aponta para o "eterno poder e divindade" de Deus (Romanos
1:20) e para a sua invisibilidade. O mundo (ou universo) reflete estes
atributos na sua racionalidade e realidade. É porque o mundo criado
por Deus é racional que o seu estudo faz sentido. Além disso, o facto
de ele o ter criado significa que as vidas individuais, como partes
significativas de toda a criação, fazem sentido. Tudo isto é do
conhecimento geral, embora possa ser negado ou deturpado por
alguns (na próxima secção trataremos da auto-revelação de Deus na
personalidade do homem).
O argumento pode até agora ter dado a impressão de ser
circular e, como tal, fechado e válido em si mesmo. A revelação de
Deus, porém, pretende ser a verdade do que é, de tudo o que existe.
Jesus, referindo-se à Palavra de Deus, afirma que ela é verdadeira:
"A tua palavra é a verdade". E não só isso, mas também afirmou ser
a Verdade. Isto convida à interrogação e ao estudo profundo. Jesus
era plenamente humano: suou, chorou por vezes, teve fome, raiva,
compaixão e amor. A sua vida estava de acordo com as suas
afirmações, a sua morte estava de acordo com as suas previsões e
a sua ressurreição foi tão devidamente atestada e registada como
facto histórico como qualquer outro acontecimento da época. Jesus
demonstrou de forma perfeita e consistente o carácter de Deus aos
20
D. M. Lloyd-Jones, Conversions: Psychological and Spiritual (1VP, 1959), pp. 21 ss.
21
P. L. Berger, The Social Reality o f Religión (Penguin, 1973), p. 58.
que o rodeavam, porque era plenamente Deus. Não se pode dizer a
qualquer pessoa, como Pedro disse a Jesus: "Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo”.
O mesmo método pode ser utilizado para avaliar a validade da
Bíblia. Devemos perguntar-nos: a Bíblia dá uma visão consistente
que está de acordo com a realidade histórica, dá respostas
adequadas a questões relativas à natureza do homem e aos
problemas com que nos deparamos diariamente na vida em
sociedade? A Bíblia é verbal e contém verdades comunicáveis sobre
Deus e a sua relação com a criação, pelo que podemos esperar
respostas. Só o Espírito Santo torna possível uma compreensão tal
que leva a uma mudança de vida através da verdade que é recebida,
mas há factos na Bíblia que sublinham a verdade do que já sabemos
e conhecemos sobre o mundo criado que nos rodeia - pelo que,
nesse sentido, a Bíblia pode ser posta à prova por uma pessoa não
"empenhada".
Por outro lado, a pessoa "empenhada", ou seja, comprometida,
obtém a sua certeza cristã do objeto da sua crença, o próprio Deus.
Essa pessoa acredita que Deus falou com autoridade e de forma
absoluta, e pode ver que os ensinamentos bíblicos estão de acordo
com a realidade circundante. A natureza humana, por exemplo, não
é algo socialmente relativo, mas algo universal e fundamentalmente
em oposição a Deus - e esta atitude religiosa determina todas as
outras. Ele vê as guerras que assolam o mundo, por exemplo, como
sintomas desta inimizade subjacente contra Deus (Tiago 4:1-4) - o
conflito social causado pela natureza do homem.
Além disso, a própria Bíblia contém os princípios pelos quais
deve ser interpretada. Ela pode ser estudada de forma holística, pois
tem uma coerência interna, e pode ser comparada texto a texto para
se obter uma perspectiva total. Há uma série de grandes temas que
atravessam toda a Bíblia e que, se forem tidos em conta, lançam
muita luz sobre a Bíblia como um corpus completo, de modo que o
plano de Deus para a humanidade, tanto histórica como socialmente,
pode ser visto claramente. Dois desses grandes temas são a
fidelidade de Deus e, em oposição, a inconstância pecaminosa do
homem.
Voltemos por um momento ao contexto da "sociologia do
conhecimento" para examinar a narrativa do Antigo Testamento e
perceber a inadequação da abordagem grosseira da "sociologia do
conhecimento" para explicar a história do povo judeu. Encontramos
sempre como pano de fundo do drama um ambiente cultural pagão.
Deus falou ao seu povo vezes sem conta, através dos seus profetas,
dizendo-lhe quem era, o que esperava dele em termos de fé e de
obediência, e o que eles, por sua vez, podiam esperar dele. Os dois
temas principais que observámos há algumas linhas atrás
reaparecem constantemente: Deus era fiel, o homem inconstante;
mas, apesar de séculos de exílio no meio de civilizações
estrangeiras, "o povo eleito" sobreviveu e houve sempre um grande
número de pessoas fiéis que continuaram a acreditar no mesmo
Deus!
Os mandamentos de Deus foram sempre muito mal recebidos
pelo povo, por isso, como é que o povo continuou a unir a sua fé
neles? O povo estava sob uma pressão tremenda para se conformar
com as crenças e práticas das civilizações vizinhas, mas só uma
certa dose de fé nelas foi aceite pelo povo. capitulou a essa pressão,
porquê? A resposta do cristão deve ser que os mandamentos dados
não foram determinados socialmente, mas sim concebidos
propositadamente por um Deus absolutamente livre que tinha
provado repetidamente a sua santidade e fidelidade. Mesmo que as
pressões sociais para nos conformarmos com as estruturas culturais
prevalecentes sejam muito fortes, como seríamos os primeiros a
admitir, o fato é que existe um poder externo superior que nos permite
resistir, tanto no tempo dos profetas do Antigo Testamento como
agora, como no tempo dos profetas do Novo Testamento.
Percorremos rapidamente um longo caminho nesta secção,
mas espero que a pergunta "quem o diz" tenha sido, pelo menos,
parcialmente respondida. Como cristãos, acreditamos que existe um
conhecimento que não é determinado por nenhum contexto social,
uma vez que foi dado, por assim dizer, de fora. Isto não significa,
evidentemente, que não haja um fator humano na Bíblia. Homens de
personalidade e estilo marcados escreveram a partir de contextos
sociais específicos. Mas o que eles escreveram foi sempre a palavra
de Deus e, como tal, revestida de autoridade infalível (sobre este
ponto, seria melhor ler a melhor introdução à Bíblia como tal; The
Book that Speaks for Itself de R. M. Horn22). O erro é pensar: "A Bíblia
foi escrita por homens, portanto é falível". Vale a pena recordar o que
Deus disse a Jeremias: "Eis que ponho as minhas palavras na tua
boca23". Outro erro muito difundido é pensar que, pelo fato de a
Palavra de Deus ter sido transmitida num determinado contexto
histórico-social, a sua mensagem já não é válida hoje. J. A. Motyer
22
R. M. Horn, The Book that Speaks for Itself (IVP, 1969).
23
Jeremias 01:09
deduz este equívoco no seu comentário à profecia de Amós, que,
aliás, poderia ser considerado o primeiro sociólogo bíblico24!
A auto-revelação de Deus fornece-nos critérios e princípios
suficientes para julgar e avaliar todas as ideias possíveis de natureza
social estritamente humana. Qualquer análise da realidade que tenha
um ponto de partida diferente pode conter certas características que
são verdadeiras e importantes para o bem-estar da sociedade (uma
vez que Deus revelou certas coisas de uma forma geral a toda a
humanidade), mas essa análise deve ser sempre julgada à luz da
Palavra de Deus.
Se o que digo é verdade, então, como cristãos, temos a
obrigação de estudar a Palavra de Deus de acordo com o padrão que
ele estabeleceu e de aplicar os princípios a situações e teorias
específicas. O nosso pensamento sociológico deve refletir a nossa
firme convicção de que nem o indivíduo nem a sociedade são o
árbitro final do conhecimento. Deus não deve ter apenas a última
palavra, mas também a primeira.
24
J. A. Motyer, The Day ofthe Lion (IVP, 1974).
IV.
HOMO SOCIOLOGICUS
25
Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo (Edições Leviathan, 1957).
26
Gibson Winter, Elements for a Social Ethic (Collier-Mac-millan, 1966).
27
A. Koestler, The Ghost in theMachine (Pan, 1967), p. 30
é a variabilidade de interesses e pontos de vista em função do
ambiente e, por vezes, o papel da luta na mudança social. Os valores
e interesses tornam-se socialmente relativos, dependendo da
sociedade ou parte da sociedade em que se encontram. Assim,
Weber, por exemplo, sugeriu que o espírito do capitalismo estava
mais profundamente enraizado em sociedades imbuídas da "ética
protestante".
Quais são as implicações destes pontos de vista? Se a
sociedade é responsável pela criação do homem, segue-se que é
responsável por tudo e não apenas pelo que é socialmente aceite.
Assim, a sociedade também deve ser responsável pelo crime e pelo
desvio. Verificamos que a noção de responsabilidade individual foi
abandonada a favor da responsabilidade social. Os "novos
criminólogos" contemporâneos, de tendência radical, vão ainda mais
longe e defendem uma sociedade que não tem o poder de "fazer
criminosos". Esta é a conclusão lógica a que se chega quando se
parte da ideia de que a natureza do homem é "neutra" e que ele só
se torna homem à medida que é moldado pela sociedade. Assim,
todos os valores se tornam histórica e socialmente relativos, e até a
liberdade cristã se torna inadequada.
Mas a taxa de criminalidade é alarmante do ponto de vista
sociológico. Vários estudos demonstraram que, por exemplo, a
criminalidade aumenta com a diminuição do nível de instrução28.
Alguns grupos sociais são praticamente arrastados para a iniciação
de práticas criminosas, e é muito difícil censurar ou elogiar o seu fácil
conformismo. Por outro lado, a ausência quase total de juízes nas
camadas populares explica o clima de incompreensão.
O pecado social, ou estrutural, é um fenómeno que tem sido
lamentavelmente negligenciado pela maioria dos cristãos nos últimos
anos, e a sociologia é prova da necessidade desesperada de uma
abordagem bíblica radical nesta área. Entre os sinais esperançosos
de uma nova perspectiva cristã neste campo deve ser incluído o livro
de Behm e Salley, Your God is Too White29. Os autores demonstram
que o papel do cristianismo foi firmemente estabelecido em relação
às forças opressivas institucionalizadas que negaram os direitos
humanos mais básicos aos negros nos Estados Unidos. Os negros
foram levados a sentir que o cristianismo é sinônimo de
desumanização e exploração dos negros pelos brancos e do
estabelecimento da supremacia branca. Neste caso particular, um
28
Por exemplo, L. Macdonald, Social Class and Deliquency (Faber, 1969)
29
Lion Publishing, 1973.
pecado social grosseiro foi apoiado, e por vezes até justificado, pelos
próprios cristãos. Voltaremos a este assunto mais adiante.
Existe, portanto, uma incidência estrutural de várias
manifestações de crime, delinquência e injustiça, uma incidência que
é mensurável e que deve ser compreendida se se quiser manter a
noção de "justiça" no sistema jurídico. No entanto, alguns sociólogos
trabalharam com uma noção subjetiva, e não objetiva, de desvio. São
os chamados interacionistas, que colaboram com a "nova
criminologia" acima referida. O seu objetivo é a classificação mútua
dos membros de uma sociedade à medida que "interagem" uns com
os outros. Por exemplo, a partir do momento em que um delinquente
juvenil começa a ser classificado como tal, ele reage tornando-se
cada vez mais semelhante a essa classificação. O "desvio" deixa de
ser um ato e passa a ser um processo, e a questão da
responsabilidade individual ou da responsabilização é descartada
como descabida. O que é preciso mudar, segundo os interacionistas,
é o "sistema" que, ao classificar, "produz" a criminalidade30.
A natureza do homem é então simplesmente plástica? O
indivíduo é apenas o palimpsesto das redes sociais em que vive? O
crime e o desvio são simplesmente uma rede social e a natureza do
homem é de algum modo neutra? Estas são frequentemente as
implicações de uma perspectiva sociológica que vê o homem "como
um ser maleável" e que, como tal, se opõe abertamente aos
fundamentos cristãos.
30
I. Taylor, P. Walton y J. Young, The New Criminology: For Social Theory o f Deviance (Routledge, 1973).
qual fomos movidos. Neste ato reside o primeiro passo para a
liberdade31".
Há, no entanto, uma variação deste tema que pode ser tão
perturbadora como o rígido determinismo social da velha escola
positivista. Segundo esta teoria, o homem só se pode libertar
juntando forças com outros para mudar o status quo. Amitai Etzioni,
que é um dos proponentes desta teoria, sugere que as ciências
sociais, que fornecem grande parte da "consciência", deveriam
também fornecer orientações sobre a direção da mudança social.
Outros falam de uma "ética sociológica" que forneceria uma
orientação para a investigação e a ação32.
Mais uma vez, é evidente que uma ética "sociológica" não é
suficiente. Há sempre um pressuposto "intelectual" ou "religioso" por
detrás de qualquer ética sociológica. Mesmo que seja satisfatório que
o sociólogo esteja consciente das implicações morais do seu
trabalho, seria útil saber onde é que ele encontra a sua "moralidade".
Se, mais uma vez, a autoridade vem exclusivamente da própria
sociedade, estamos encurralados, condenados a uma "liberdade"
prescrita pela sociologia, que pode ir do totalitarismo à anarquia mais
absoluta. Uma ética sociológica, em última análise, é simplesmente
mais uma manifestação de uma tentativa humana de auto-mania que
tem as suas raízes no Paraíso, onde comer o fruto proibido
simbolizava a decisão do homem de ser o seu próprio árbitro.
A intencionalidade, portanto, ou "o homem como senhor e
mestre", dá origem à possibilidade de uma ação positiva como
consequência de valores-convicções, e permite uma existência
individual autêntica, em oposição à conformidade social. É claro que
não devemos esquecer que existem constrangimentos sociais ao
pensamento e à ação, que os papéis e a situação social são uma
componente da natureza humana, mas que o ponto de vista
intencionalista nos permite ver que o homem é mais do que os seus
papéis.
A sociologia marxista, em algumas das suas formas populares,
tende a unir as noções de homem "mau" e "autoritário" numa
combinação alarmante. De acordo com este credo, o homem é
"determinado, mas determinante por sua vez". "O homem, como
produto do mundo, deriva o seu aparelho conceitual da sua matriz
social; como força ativa no mundo, é capaz de remodelar, rejeitar e
31
P. L. Berger Jnvitation to Sociology (Penguin, 1970).
32
Por exemplo, , L. Sklair, The Sociology o f Progress (Routledge, 1974), o R. Friedrichs, A Sociology of
Sociology (Free Press, 1970).
refletir sobre o seu mundo e a sua consciência e, à medida que efetua
mudanças nesse mundo, altera também a realidade externa da qual
retira outras categorias de pensamento33". Trata-se de um marxismo
existencialista ou fenomenológico, mas não deixa de ser um sistema
fechado, parte de uma filosofia "total", que tem sempre a "sociedade"
no limite da percepção.
37
Abrahan Kuyper, Lectores on Calvinism (Eerdmans, 1931)
38
Por exemplo, Tito 01:15
39
G. C. Berkouwer, Man: the Image o f God (IVP, 1973).
responsabilidade uns pelos outros40. É apesar desta humanidade
comum, evidentemente, que o homem peca. Isto deve-se ao pecado
que consiste na atitude de rebelião contra Deus que caracteriza o
homem desde a queda. Esta alienação no mais profundo do seu ser
constitui a raiz de todas as outras alienações na sociedade.
O homem integral
A sociologia do pecado
42
João 08:32
43
Samuel Bolton, um escritor puritano, aborda o tema da liberdade cristã na sua obra The True Bounds
of Christian Freedom (Banner of Truth, 1965).
com grande parte da mais recente sociologia da indústria: mas, desta
forma, ele próprio implica que a moderna sociologia da indústria
pode, portanto, dispensar qualquer consideração sobre o interesse
económico próprio. Isto revela uma conceção religiosa subjacente de
que o mal não é inato, mas antes devido a fatores decorrentes do
ambiente social.
Há outras formas de minimizar o pecado na sociedade. O
famoso relatório Kinsey sobre o comportamento sexual masculino
americano não é um bom exemplo. Alguns padrões de
comportamento foram observados e passaram a ser classificados
como nomias sociais. Este fato, associado à teoria naturalista de que
não existem regras universais ou absolutas a cumprir, levou a uma
aceitação posterior da promiscuidade (por exemplo) como normal e,
portanto, correta. Todas estas noções foram incorporadas no relatório
e tornaram-se partes fundamentais do mesmo.
É irrealista afirmar que a sociologia "não pode" julgar a correção
ou a incorreção do comportamento social. Isso seria assumir que os
sociólogos são incapazes de um "distanciamento objetivo" quando
estudam a sociedade com a sua carga de valores preconcebidos.
Mas, na sociologia cristã, estará presente a ideia de que as pessoas
na sociedade são pecadoras e que os conflitos, os desvios e até
certas instituições sociais podem existir como consequência do
pecado. São mais do que menos do que o ideal; em termos da ordem
da criação, podem ser consideradas anormais. O que "é" não é
necessariamente o que "deveria" ser.
A essência do pecado é a desobediência a Deus. É a nossa
condição "natural" e, mesmo como cristãos, verificamos que os seus
efeitos não nos abandonam até à morte. Manifesta-se na nossa
tentativa de autonomia, nessa auto-determinação do que é certo e do
que é errado, e acaba sempre por se manifestar como uma
incapacidade de atingir os padrões de Deus, ou uma transgressão
deliberada dos limites da lei divina. Ao examinarmos a sociedade,
não devemos ignorar a tendência para o pecado, nunca esquecendo
que o nosso próprio estudo sofrerá do mesmo mal. O mal é subtil e
omnipotente, pode ser tanto individual como coletivo, e os seus
efeitos não só desagradam a Deus, como prejudicam o indivíduo e o
grupo. A norma de Deus não é apenas "correta" em si mesma, mas
é também a melhor.
Voltando mais uma vez ao exemplo do desvio: quem já leu
alguma coisa sobre o assunto sabe que o pomo da discórdia são as
definições. O que é "normal" e o que é "desviante"? O sociólogo
humanista só pode trabalhar com base na sua própria ideia de
humanidade comum, no "contrato social44" 2° ou em qualquer outra
definição dada pela sociedade.
É evidente que o desvio moral e o desvio estatístico são
diferentes. Os problemas surgem quando o "crime", por exemplo, é
reduzido a um "desvio social" que tende a minimizar a importância da
seriedade moral. O cristão tem todo o direito de tirar explicitamente
as suas próprias conclusões sobre a normalidade e o desvio, a partir
da sua perspectiva do homem, e de defender a sua posição com base
nessas conclusões. Um exemplo dos escritos de Paulo dar-nos-á
uma ideia geral. O tratamento dado por Paulo à mentira e ao roubo é
formulado em termos da ética da Criação, um argumento extraído da
estrutura social dada por Deus.
(E é por isso que a questão das "origens" é tão importante.)
Paulo exortava os crentes de Éfeso a "(afastar a falsidade e falar) a
verdade cada um com o seu próximo; porque somos membros uns
dos outros", e que "aquele que furtava não furte mais, mas trabalhe,
fazendo com as suas mãos o que é bom, para que tenha o que
repartir com aquele que tem necessidade". É verdade que se dirigia
à Igreja, mas recorria a argumentos extraídos da Criação (como a
necessidade de trabalhar com as próprias mãos) e, portanto,
aplicáveis a todos os homens. Outros princípios do Antigo
Testamento, como o conceito de "próximo", também se encontram
aqui, e a possível utilização de ideias neo-testamentárias, como
"membros de um só corpo", como ideal no mundo não cristão45 é
discutível.
Passemos então em revista algumas das abordagens cristãs
que temos vindo a assinalar. O homem "é" uma espécie de escravo
da sociedade, "não" porque seja maleável, "ou" porque seja um
instrumento social, mas porque é fundamentalmente escravo do
pecado e, portanto, de uma sociedade pecadora. É por isso que
Paulo exorta os cristãos romanos a não se deixarem moldar por este
mundo (ou sociedade ou cultura46). É o realismo bíblico. O homem
estaria a irradiar o mito da liberdade (liberdade não cristã, claro), tal
como Caim fez quando perguntou: "Sou eu o guardião do meu
irmão?". Por isso, o homem só alcançará a liberdade "formal".
Embora, como cristãos, devamos fazer pleno uso de uma perspectiva
44
Esta ideia, que teve origem em Rousseau, adquiriu uma certa notoriedade desde que se tornou parte
integrante do programa do Partido Trabalhista britânico. Um cínico poderia observar que isto serve para
demonstrar a sua perene futilidade.
45
Cf Efésios4:25,28.
46
Romanos 12:2.
não-determinista que tenha muito em conta a intencionalidade e
permita a liberdade de escolha, nunca devemos confundir esta
"liberdade" com a liberdade cristã. A perspectiva intencionalista dá
lugar à responsabilização e à responsabilidade: não pode "libertar".
É preciso distinguir entre a ideia humana de liberdade (que é
originalmente uma pretensa autonomia em relação à lei de Deus) e
a liberdade cristã, para que seja possível realizar a "liberdade
gloriosa" que esta última comporta. E o último ponto é o seguinte: o
homem não é o árbitro do bem e do mal. Por mais que ele busque a
autonomia, só Deus é senhor e mestre, só Deus é rei. Esta é a raiz
dos conflitos de pressupostos da cosmovisão sociológica
(humanista) e da cosmovisão cristã.
A imagem de quem?
Um fenômeno social
47
O fascinante livro de Norman Cohn sobre o milenarismo intitula-se The Pursuit of the Mttlennium
(Paladino, 1970). Sobre o tema dos "cultos de dádiva", ler o livro de Peter Worsley
A Trombeta Soará (Páladin, 1970)
eficácia ou a inutilidade da religião. Como é de esperar, poucos
sociólogos tentam definir a religião em poucas linhas, pelo que é
necessário confrontar os diferentes sistemas de análise que circulam
no estudo da religião. Abordaremos aqui três dessas abordagens;
nenhuma delas exclui a outra ou é à prova de bomba, mas deve dar
uma ideia dos sistemas empregues pelos sociólogos na discussão
da religião. Recorreremos deliberadamente ao uso de exemplos
familiares e simples, porque esta ideia só nos interessa agora a um
nível elementar e direto. No entanto, são exemplos que devem
interessar a qualquer cristão que esteja a pensar na sua posição na
sociedade.
48
Ver, por exemplo, Alasdair Maclntyre, Secularization and Moral Change (OUP, 1967).
49
1 Coríntios 5:1
50
Romanos 1:16.
no uso das nossas pressuposições ao lidarmos com as mesmas
questões.
Dos exemplos dados até agora, poder-se-ia deduzir que a única
missão do cristão é a evangelização. No entanto, embora a
evangelização seja o método escolhido por Deus para aumentar a
sua família, o cristianismo não é o mesmo que a evangelização. A
vida cristã é para ser vivida, e a fé deve ser vista como afetando o
homem todo. Há outros domínios tocados pela sociologia da religião
que merecem também muita atenção. Poderíamos mencionar vários,
mas talvez um dos mais evidentes seja a questão prolífica do nexo
entre religião e família. Os ritos de iniciação ainda são
frequentemente realizados num contexto eclesiástico.
A maioria dos casamentos continua a ser solenizada nas igrejas
e, na Inglaterra, mais de metade dos recém-nascidos continua a ser
batizada na Igreja da Inglaterra. Mas qual é o significado destes ritos
hoje em dia, e será que ainda têm algum significado para os
participantes? Muitas questões continuam por resolver de forma
satisfatória, e o sociólogo cristão empenhado tem muito trabalho pela
frente antes de poder alcançar os outros sociólogos.
51
E. Durkheim, The Elementary Forms of Religious Life (Alien and Unwin, 1971).
Neste sentido, o trabalho de Berger e Luckmann (depois de
Durkheim e Weber52) é importante. Eles argumentam que a ênfase
positivista nas ciências sociais levou a um abandono do campo
subjetivo da realidade social (como discutimos em relação à
"intencionalidade"). Esta negligência foi tipificada anteriormente pela
negligência da "religião como crença". Berger gostaria de colocar a
sociologia da religião no contexto da sociologia do conhecimento,
que, como já observámos, inclui tudo o que a sociedade aceita como
conhecimento. As conclusões a retirar de uma tal abordagem
poderiam ser resumidas da seguinte forma.
As fórmulas sagradas e os rituais religiosos são repetidos em
tempos de crise para que o mundo (a nossa percepção dele) não
escape ao nosso controle53. Para formar uma imagem da realidade,
as pessoas precisam de um sistema de crenças, e a religião
desempenha um papel decisivo na manutenção e construção dessa
realidade. Uma vez construído, este sólido edifício tornar-se-á um
refúgio contra os graves problemas da vida. Na sua opinião, as crises
mais sentidas são a anomia e a morte. Nestes casos, é mais prático
recorrer a um conjunto de regras "dadas", que nos ajudam a
estabelecer prioridades e a tomar decisões ao mesmo tempo. Uma
doutrina como a da "imortalidade" dá esperança e alento aos
afetados, sobretudo quando é associada à ideia de um "céu" onde
um dia poderão reunir-se com os seus entes queridos, e desta forma
a crença pode ser socialmente "explicada".
Os sociólogos não se interessam apenas pelas crenças
existentes, mas também pelo declínio manifesto da crença religiosa.
O estudo da secularização é um tópico frequente nos estudos
dedicados ao fenómeno da religião e é, em si mesmo, um dos
principais pontos de controvérsia no campo da teoria. O sociólogo
pensará em questões como: "Se as instituições e os símbolos
religiosos têm cada vez menos impacto na sociedade, o que é que
está a preencher a lacuna?" ou "Qual é a causa específica do declínio
da frequência da igreja? Está relacionada com a classe social, a
cultura ou outra causa?" De fato, já existem vários livros sobre estas
questões54.
52
P. L. Berger, The Social Reality o f Religión, y Thomas Luckmann, The Invisible Religión (Macmfllan N.Y.,
1967)
53
Estes autores não distinguem imediatamente entre magia e religião, o que pode ter um impacto
desfavorável na abordagem pessoal deste último.
54
Ver, por exemplo, B. R. Wflson, Religión in a Secular Society (Watts, 1966), ou S. Budd, Sociologists and
Religión (Collier-Mac-millan, 1973).
É evidente que seria dever do cristão empenhar-se na
elaboração de respostas e soluções. É preciso lembrar que o
sociólogo incrédulo não pode, em última análise, libertar-se do seu
"determinismo social", e só pode oferecer respostas com base na sua
própria linguagem e ideias. As suas conclusões não têm de ser
erradas ou falsas, mas se o que está implícito na sua teoria é que a
religião é apenas algo semelhante à "auto-transcendência", então
verificamos que a disparidade entre as suas perguntas e as nossas
conduz a uma total impossibilidade de comunicação. O sociólogo
agarra-se à sua ideia de que toda a religião é uma mera invenção
humana e, portanto, uma esperança vã, uma miragem. De tudo isto
resulta que o estudo sociológico da religião como crença precisa de
ser urgentemente clarificado, e ninguém melhor do que o cristão para
apresentar uma nova abordagem graças às suas crenças e à sua
própria experiência.
Tentaremos agora descrever brevemente o que isto significa
em relação à "secularização". Se o que foi dito sobre a religiosidade
intrínseca do homem é verdadeiro (capítulo quarto, pp 66), então isso
deve afetar a nossa compreensão do processo de secularização.
Para o cristão, a secularização não significa apenas uma "perda de
fé", mas também um "tratado de crença". Era precisamente isto que
queríamos salientar no segundo capítulo, a propósito da história da
própria sociologia. Nesse caso, a crença do homem foi transferida ou
transferida para outro domínio: o homem e a sociedade. Este seria
então o ponto de partida da conceção cristã da secularização. Além
disso, ao mostrar a inter-relação com os outros tópicos discutidos, a
relevância e a coesão das observações do cristão no mundo da
sociologia tornam-se claras.
Por esta altura, deve ter-se tornado bastante claro que existe
uma abordagem cristã definitiva à sociologia, e igualmente claro que,
por enquanto, a voz do cristão é virtualmente inaudível no campo
sociológico. Espero que tenhamos também mostrado que não há
nada de censurável no facto de o cristão estudar sociologia e que,
pelo contrário, temos a obrigação de "(levar) todo o pensamento
cativo à obediência de Cristo56", e isto inclui o pensamento
sociológico! Alvin Gouldner, um sociólogo contemporâneo de grande
reputação, tendo rejeitado a ideia de que a informação sociológica é
neutra, defendeu uma sociologia deliberadamente moral cujo objetivo
é transformar a sociedade de acordo com o sistema de valores
explícito dessa mesma sociedade. Que vergonha para os cristãos! É
exatamente isto que deveríamos dizer e fazer. O eco do desafio ainda
está a reverberar no vale.
É certo que o termo "sociologia cristã" não é novo: já em 1880
um bispo, sensível aos problemas sociais, se apercebeu da
necessidade de uma sociologia cristã de orientação bíblica! Desde
então, têm-se multiplicado as tentativas de lançar as bases de uma
sociologia cristã, com alguns contributos teóricos respeitáveis, mas
infelizmente nenhuma delas se concretizou. Na maioria dos casos,
estas tentativas foram desviadas para a ação social (que é a
companheira, e não o substituto, do pensamento sociológico) ou
foram comprometidas com um cristianismo "não bíblico". Apenas
algumas ficaram a lutar para serem aceites por crentes e não crentes.
Mas falar hoje de uma sociologia cristã é expor-se à
controvérsia e a uma crítica acutilante. Durante muito tempo e por
várias razões, os cristãos desconfiaram muito de qualquer "invasão"
acadêmica, mesmo que se tratasse de ideias cristãs. Engoliram o
engodo da "neutralidade" e acreditam que a "objetividade
desapaixonada" é possível, mesmo no domínio das ciências sociais.
Isto, a ser verdade, excluiria logicamente a sociologia cristã. Mas
outra razão, igualmente importante, é o fato de alguns terem
imaginado que a sociologia cristã pretenderia ser a única forma de
compreender a sociedade, algo comparável à Palavra infalível.
Embora seja impossível tentar aqui esboçar uma sociologia cristã,
devemos pelo menos mostrar que estas objecções são falsas, e
56
2 Coríntios 10:5
depois sugerir como tal sociologia poderia ser criada, e concluir
explicando por que razão deveria existir, mesmo que não se
enquadre nessa categoria.
Temos de compreender, como tentei mostrar, que o consenso
da sociologia moderna está em contradição, ao nível dos
pressupostos, com a nossa visão cristã da sociedade. A sociologia é
o produto de um mundo cujos valores e estruturas foram
relativizados. É o produto da rejeição, no século XIX, da cosmovisão
cristã, que se arrogou uma autoridade própria, recorrendo à
"sociedade" como único quadro de referência, eliminando assim a
possibilidade, por exemplo, de uma religião autêntica, ou a
possibilidade da existência de um padrão correto pelo qual o homem
se rege na sociedade. O sociólogo, por um lado, afirmará que não
tem o direito de se pronunciar sobre tais questões, enquanto, por
outro lado, dará a entender, pelo próprio estilo dos seus escritos, que
acredita que a sociologia explicou a existência de uma determinada
prática ou instituição na sociedade. O sociólogo não tem outra
escolha senão partir de pressupostos importantes sobre a natureza
do homem e da "vida social normal" para poder oferecer a sua
sociologia como uma disciplina académica viável. E é precisamente
a este nível de pressupostos que o debate deve ter lugar em primeiro
lugar.
A sociologia cristã nunca deve ser monolítica ou considerada
como o único meio de conhecer a verdade sobre a sociedade. A
sociologia escrita por incrédulos é sociologia, e muitas vezes contém
observações com as quais o crente deve concordar. (Afinal, os
incrédulos suprimem a verdade que existe, mesmo que distorcida57).
Portanto, os não-crentes não estão apenas a vender uma "falsa"
sociologia! É preciso não esquecer que o sociólogo cristão, mesmo
que faça tudo o que estiver ao seu alcance para evitar erros no seu
trabalho, cairá inevitavelmente em alguma falha, estragando assim o
seu testemunho devido à ação impeditiva dos últimos vestígios de
pecado na sua vida. Apesar disso, acreditamos que Deus nos deu a
sua Palavra e o seu Espírito para que possamos interpretar a
realidade de uma forma verdadeira e agradável a Deus.
Talvez seja necessário dizer aqui uma palavra sobre a forma
como a Bíblia deve ser lida, embora já tenhamos abordado este
assunto em capítulos anteriores. A sociologia cristã não é uma
sociologia "vulgar", polvilhada com citações apropriadas e adjetivos
retumbantes em triunfo! A Bíblia é a Palavra de Deus ao homem, e
57
Romanos 1:18.
deve ser considerada como uma palavra consistente, coerente e
intrinsecamente normativa. Devemos recorrer ao Espírito Santo para
nos iluminar na compreensão das Escrituras e, assim, aproximarmo-
nos da Palavra com humildade, dispostos a admitir a nossa falta de
preparação. É muito importante ter em conta o contexto de
determinados ensinamentos e ver, ao mesmo tempo, que o
ensinamento "vem de fora"; não tem origem no escritor, ou seja, no
ser humano. Acima de tudo, a Bíblia deve ser vista como uma obra
total e acabada, e os pormenores particulares devem ser
compreendidos de acordo com a perspectiva que nos é dada sobre
os temas centrais da criação, da redenção, do senhorio de Cristo,
etc. Só assim poderemos pôr em ordem os nossos próprios
pressupostos sobre o homem e a sociedade, para as podermos
utilizar mais tarde como base para a nossa sociologia.
Numa palavra, é preciso ter presente que por "sociologia cristã"
não se entende uma sociologia que ignora toda a sociologia não
cristã, mas antes uma sociologia que desenvolve os seus próprios
pressupostos sociológicos particulares e depois os utiliza para julgar
ou modificar outras sociologias. Há também lugar para uma teoria
sociológica com claras raízes cristãs. O perigo seria transformar a
sociologia num pretexto para o sectarismo - pois não é essa, de modo
algum, a intenção subjacente ao uso do termo. Do mesmo modo,
falar apenas de cristãos na sociologia seria implicar uma divisão de
papéis: cristão/sociólogo; uma divisão que, como vimos, é infundada
tanto do ponto de vista cristão como do ponto de vista sociológico.
Por um lado, nega que Cristo seja o Senhor da nossa mente
sociológica e, por outro lado, nega que os nossos pressupostos
cristãos tenham algo a dizer na nossa vida de sociólogos. Com tudo
isto em mente, justifica-se a nossa defesa da adequação do termo
"sociologia cristã".
Que bom seria se os cristãos se orgulhassem das Boas Novas,
não se envergonhassem da sua visão bíblica do mundo e estivessem
dispostos a lutar pelas suas convicções cristãs no campo de batalha
da sociologia! Como em qualquer outra atividade, devemos rezar
para que o Espírito de Deus nos acompanhe na nossa vida de
estudantes de sociologia. Precisamos urgentemente de ter uma
"mente cristã"58 ao estudarmos a sociedade em toda a sua
complexidade e na sua progressiva dissociação das normas e
valores quotidianos. A soberania de Deus não é uma doutrina
58
The Christian Mind (SPCK, 1963) é o título de um excelente livro de Harry Blamires, no qual o autor no
qual o autor exorta os cristãos a pensarem "cristianamente" em todos os momentos.
"teórica", mas um verdadeiro encorajamento para os cristãos
conquistarem novos "territórios" para o seu Senhor.
Com tato e autoridade benevolente, somos obrigados a expor
a inconsistência de qualquer teoria que não admita nada para além
do positivismo ou do naturalismo. Em última análise, as provas da
verdade da nossa visão do mundo não se encontrarão em teorias
complicadas (que, se mal utilizadas, poderiam simplesmente passar
por um dogmatismo condescendente), mas em vidas transformadas.
O sociólogo cristão deve distinguir-se pela humildade, honestidade e
integridade intelectual, tanto na sua vida como no seu trabalho
criativo.
O apóstolo Paulo resume: "Estai sempre prontos a apresentar
a vossa defesa com mansidão e reverência a todo aquele que vos
pedir a razão da esperança que há em vós, tendo uma boa
consciência, para que sejam confundidos os que falam mal de vós
como de malfeitores, que caluniam a vossa conduta em Cristo59".
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1 Pedro 3:15,16.
GLOSSÁRIO