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INTRODUÇÃO: a questão de Deus

SWEETMAN, Brendan; SWEETMAN, Brendan (null). Religião: conceitos-chave em filosofia. 1. Porto


Alegre: Penso, 2014. Páginas 8-20

A religião é um assunto fascinante, como concordará mesmo quem não é


religioso. Evoca o reino do transcendente que parece apelar a todos nós, porque
somos seres humanos finitos; aponta ao infinito e oferece uma maneira de se
chegar a um entendimento dos vários mistérios da existência humana. A crença em
Deus (ou em uma Realidade Suprema) e na vida após a morte geralmente é uma
parte importante da visão religiosa de mundo, assim como a oração, diversas
práticas ritualísticas e uma determinada perspectiva da moralidade. Além disso, a
visão de mundo religiosa, em suas várias formas, tem sido incrivelmente influente
na história. A grande maioria das pessoas que já ́ viveram ou vivem teve e tem fé́ ,e
as visões religiosas, pelo menos até pouco tempo, moldaram decisivamente nossa
abordagem sobre moralidade e sociedade, direito e política. A visão religiosa de
mundo e da vida humana tem sido predominante na história. Muitas pessoas
descobriram nela uma filosofia de vida extremamente profunda, satisfatória e
realizadora, apesar dos vários problemas, erros, pecados e abusos muito evidentes
no decorrer da história da religião.
No entanto, a religião foi alvo de muitas críticas, de várias origens, tanto no passado
quanto, principalmente, no mundo contemporâneo. Essas críticas são de dois
tipos. Primeiro vêm as críticas a crenças, doutrinas e ensinamentos específicos de
determinadas religiões, como a crítica à posição da Igreja Católica sobre a
ordenação de mulheres ou à ênfase do protestantismo na centralidade da Bíblia.
Porém, em segundo lugar, também há críticas mais fundamentais. Alguns
argumentaram que a visão religiosa do mundo em geral não é racional, que
nenhuma pessoa razoável, educada, esclarecida, principalmente no mundo
moderno, deve aceitar essa visão de mundo, apoiá-la publicamente ou tentar
influenciar a sociedade de acordo com ela. Essa crítica se baseia, em particular, na
alegação de que Deus não existe, e, assim, todas as religiões, não importando o
quanto possam ser antigas ou influentes, estão, em certo sentido,
fundamentalmente equivocadas. E, como Deus não existe, a maior parte das
crenças doutrinárias da maioria das religiões também estaria equivocada em um
sentido importante. A religião, esse argumento prossegue, pode ter valor prático
como forma de proporcionar conforto às pessoas, talvez para lidar com a realidade
ou organizar e motivar as pessoas a fazer o bem, mas não se baseia na verdade
factual e pode ser até perigosa para a humanidade a longo prazo. Esse segundo tipo
de crítica de que a visão religiosa de mundo é equivocada em termos gerais – é um
dos nossos principais interesses neste livro ao explorarmos os principais
problemas, questões e temas envolvidos em qualquer análise filosófica da crença
religiosa.
Essa abordagem crítica moderna pôs o crente religioso de hoje na defensiva, apesar
de a esmagadora maioria das pessoas permanecer tendo fé ́ religiosa. No entanto,
atualmente há tendência a questionar as crenças religiosas de uma pessoa de
maneira com que talvez não se questionassem as crenças de um secularista ou de
um marxista, por exemplo. Pode- se discordar de um secularista ou de um marxista,
é claro, não apenas em uma ou duas questões, e sim rejeitando essa visão de
mundo como um todo, mas não chegar a dizer que a visão de mundo secularista ou
marxista não é racional, que nenhuma pessoa razoável deveria ter uma visão de
mundo secularista, que essa visão é uma superstição irracional e não é digna de ter
influência na sociedade. Mas é assim que mais e mais pessoas no mundo moderno
veem a crença religiosa. Sem dúvida, para alguns, essa atitude não é bem pensada,
deve-se à pressão dos pares ou talvez seja motivada pelo contexto cultural e,
portanto, por todas essas razões, pode ser descartada. Entretanto, há uma
tendência no mundo de hoje a colocar um ponto de interrogação na visão religiosa
de mundo de uma forma que deixa os crentes na defensiva, ao passo que, na maior
parte da história, eles estavam na ofensiva! Podemos ver essa tendência repre-
sentada de diversas formas: um crente pode relutar em se referir a suas crenças
religiosas na discussão pública de uma questão moral profunda; os veículos da
grande mídia podem ignorar rotineiramente a abordagem religiosa quando se
discutem as questões atuais; governos podem não incentivar a contribuição
religiosa em debates sobre suas várias políticas; crenças religiosas e valores
podem ter influência geral menor nas vidas cotidianas das pessoas.
Tudo isso traz ao primeiro plano a questão da racionalidade da crença religiosa,
mais especificamente, a racionalidade da crença em Deus e da visão de mundo
religiosa, e também a questão de como a racionalidade dessa crença se compara
com a racionalidade de outras visões de mundo que competem com ela,
principalmente o secularismo. O objetivo deste livro é explorar esses temas do
ponto de vista do que os filósofos têm a dizer sobre eles e, ao fazê-lo, explorar as
muitas perguntas e questões relacionadas que estão envolvidas em qualquer
discussão sobre os conceitos fundamentais da crença religiosa.

A SUA VISÃO DE MUNDO É RAZOÁVEL?

A maioria das pessoas que estão lendo este livro provavelmente é reli- giosa;
algumas, sem dúvida, são ateias ou secularistas. Há uma pergunta sobre a qual eu
gostaria que você pensasse nesta parte do livro – seja você religioso ou ateu – e da
qual, por vezes, descuidamos em função das pressões da vida moderna: a sua visão
de mundo é razoável? A visão de mundo com que você e, talvez, sua família
concordam, ou com base na qual você constrói sua família – essa visão de mundo,
em suma, pela qual você regula suas crenças, valores e comportamentos –, é uma
visão de mundo razoável? E, igualmente importante, como você a defenderia ou
argumentaria em favor dela se fosse provocado a fazê-lo por alguém que a
rejeitasse por considerá-la irracional?
Essa é uma pergunta com que os membros de todas as visões de mundo devem se
preocupar, e também é uma questão que os crentes religiosos, em particular,
muitas vezes tendem a menosprezar ou mesmo ignorar. Estes, às vezes, têm-se
preocupado mais com vivenciar e promover sua visão de mundo do que refletir
sobre a razoabilidade dela ou sobre as diferenças entre ela e as outras visões de
mundo em termos de racionalidade geral. Mas os filósofos da religião geralmente
insistem em que a pessoa deve se preocupar com a racionalidade de sua visão de
mundo, que esse assunto é de grande importância, principalmente se a pessoa vive
de acordo com essa visão e propõe que os outros também o façam, pelo menos em
parte. Não é necessário, é claro, que cada membro de determinada religião seja
capaz de defender a sua visão de mundo com sofistica- ção filosófica ou teológica.
Essa seria uma expectativa fora da realidade.
A maioria das pessoas não tem tempo, formação nem segurança para assumir essa
tarefa, mas é necessário que alguém em uma determinada tradição religiosa –
filósofos, intelectuais e outras pessoas interessadas – seja capaz de fazer alguma
tentativa de explicar por que aquela visão de mundo específica é razoável.
Eu gostaria de ilustrar essa questão com o exemplo da Abominable Snowman
Worship Society, uma sociedade que presta culto ao Abominável Homem das
Neves. Os membros dessa sociedade querem que você seja membro do grupo e
podem lhe fazer condições especiais, porque, seguindo as boas práticas
empresariais do Ocidente, você veio na semana de recrutamento, na qual há uma
oferta especial! Contudo, ao participar de sua primeira reunião (exploratória) na
Sociedade, você provavelmente irá querer saber por que os membros adoram o
Abominável Homem das Neves. Mas suponha que ninguém no grupo consiga
responder a essa pergunta, que ninguém jamais tenha pensado nela de verdade,
que ninguém esteja mesmo interessado nela e que, para ser bem sincero, essas
pessoas não querem ter no grupo qualquer pessoa que levante essa pergunta! Tudo
isso iria deixá-lo questionando se a crença e o culto ao Abominável Homem das
Neves são racionais, e você provavelmente recusaria o con- vite para participar. O
mesmo acontece, eu afirmo, com qualquer visão de mundo. A questão da
racionalidade de uma visão é essencial para saber se as pessoas devem aceitá-la,
praticá-la, considerá-la respeitável em comparação com outras, e se podemos
contribuir aos debates públicos com base nessa visão de mundo. É necessário que
alguém de cada visão de mundo se preocupe com a racionalidade dessa visão e
preste muita atenção às razões e provas para sustentá-la, mesmo que a maioria
não o faça. E aqueles que prestam atenção a essa questão podem ajudar a formular
e defender a visão para benefício de outras pessoas que a apoiem, bem como para
quem é de fora.
UM POUCO DE TERMINOLOGIA

Antes de avançar nas principais questões do livro, será útil esclarecer alguns
termos e conceitos fundamentais, para que tenhamos claro do que se está falando.
Minha abordagem à tarefa de explorar os conceitos fundamentais da crença
religiosa se baseia em um exame da questão recém-mencionada sobre se a visão
religiosa do mundo é razoável ou não. Mas o que queremos dizer com visão religiosa
do mundo? Nossa resposta a essa pergunta também servirá como nossa definição
de religião. A religião já foi definida de muitas formas, e muitas dessas definições
se sobrepõem, como era de se esperar. Alguns pensadores oferecem uma definição
ampla; outros, uma mais restrita. O teólogo norte-americano Vergilius Ferm definiu
a religião da seguinte maneira: “Ser religioso é realizar, de alguma forma [...] um
ajuste vital a tudo a que se reage ou se considera implícita ou explicitamente digno
de preocupação séria e mais profunda”. O filósofo norte-americano William James
chamou a atenção para uma dimensão moral quando definiu a religião como “a
crença de que há uma ordem não vista, e que nosso bem supremo reside em se
ajustar harmoniosamente a ela”. Ninian Smart apresenta uma definição mais
elaborada: a religião é “um conjunto de rituais institucionalizados, com tradição, e
que expressam e/ou evocam sentimentos sacros dirigidos a um foco divino ou
transdivino, visto no contexto do ambiente fenomenológico humano e, pelo menos,
parcialmente descrito por mitos ou por mitos e doutrinas”.1 É óbvio que é difícil
obter uma definição que funcione, que capte todos os aspectos importantes que
são exclusivos da visão de mundo religiosa, mas essas são definições interessantes
que nos dão uma noção das características de que precisamos para termos uma
ideia geral funcional sobre o que é a religião.
Nossa definição só precisa incluir os pontos principais sobre a visão religiosa da
realidade; não precisamos de uma definição exaustiva que cubra todos os tipos de
religião e atividade religiosa. Assim, a religião pode ser entendida como um sistema
(geralmente) complexo de crenças (sobre a realidade, a pessoa humana e a
moralidade) que regulam a vida (influenciam o modo como vivemos), que são
expressas em certos tipos de rituais e práticas, e que se baseiam, em grande parte,
na crença em uma realidade sagrada e transcendente (invisível). Geralmente, há
uma crença em Deus ou pelo menos em um Ser Supremo de algum tipo, que criou
toda a vida, e também uma crença em vida após a morte que é significativamente
melhor do que esta e que muitas vezes é nosso destino final. As religiões também
costumam defender que os seres humanos consistem em corpo e alma, e que duas
das nossas qualidades mais importantes são o nosso intelecto (capacidade de
raciocínio) e nosso livre-arbítrio (somos agentes morais). A maioria das religiões
também aceita que é possível se comunicar com Deus por meio da oração. Esse é
o sentido que darei à palavra religião, ou a visão religiosa de mundo, neste livro.
Meu objetivo principal é discutir as questões que normalmente surgem sobre a
razoabilidade dessa forma de encarar a realidade. Não estou tão interessado em
investigar diferenças doutrinárias ou morais específicas entre as várias
denominações religiosas, embora discuta algumas de- las no capítulo sobre
pluralismo religioso. Porém, em termos gerais, quero investigar algumas questões
filosóficas básicas sobre a crença religiosa: Deus existe? Qual é a natureza de
Deus? Por que Deus permite o mal? O que é uma experiência religiosa? A religião e
a ciência são compatíveis ou estão essencialmente em conflito (como alguns
acreditam)? A teoria científica da evolução é uma evidência contrária à existência
de Deus? O que devemos entender do fato de existirem muitas religiões diferentes
no mundo? Essas são as principais perguntas que os filósofos fazem sobre religião.
Depois de se ter formulado uma abordagem para respondê-las, pode-se começar
a pensar filosoficamente sobre questões específicas de doutrina e as várias
diferenças e divergências entre as denominações religiosas específicas. Mas esta
última não é tarefa deste livro.
Abordarei essas questões principalmente a partir do ponto de vista do teísmo
clássico. O teísmo clássico é a visão tradicional de Deus encontrada na maioria das
religiões ocidentais e também em algumas orientais. Remonta, pelo menos, a
Platão e Aristóteles e era totalmente dominante na Idade Média, chegando até a
época moderna. Ele sustenta que Deus existe como ser transcendente, acima e
além do mundo, que é onisciente, onipotente e onibenevolente, que criou o mundo
e toda a vida segundo um plano determinado, que tudo o que existe depende de
Deus e que ele não pode mudar, entre outras crenças importantes. As religiões do
judaísmo, do cristianismo e do islamismo, em geral, têm essa visão de Deus. O
teísmo clássico é monoteísta, o que significa que seus proponentes sustentam que
só existe um Deus. Essa tem sido a visão predominante na cultura ocidental, com
o politeísmo – a visão de que existem vários deuses – sendo mais comum no
Oriente. Em nossas discussões neste livro, vamos abordar inicialmente as várias
questões que estamos analisando – como a existência ou não de Deus – do ponto
de vista do teísmo e do monoteísmo clássicos, mas também vamos examinar
outras abordagens (principalmente no capítulo sobre a natureza de Deus, no qual
exploraremos detalhadamente vários pontos de vista sobre Deus). Como
mencionado, eu gostaria de enfatizar perguntas mais gerais que os filósofos fazem
so- bre religião, sobretudo as principais: Deus existe? A crença religiosa, em geral,
é uma visão racional de mundo? Os filósofos estão mais interessa- dos em
perguntar se a visão religiosa do mundo em geral é razoável ou não, em vez de
examinar controvérsias doutrinárias específicas entre as religiões (embora isso
venha mudando um pouco nos últimos tempos).
Abordarei as questões do livro principalmente a partir de uma perspectiva
ocidental, já que é a perspectiva com a qual estou mais familiarizado e me sinto
mais confortável, e provavelmente é o ponto de vista da maioria dos leitores. Não
obstante, a perspectiva oriental, principalmente no que é diferente e contrastante,
não será ignorada, e vou me referir a ela de tempos em tempos.
Ao fazermos perguntas destinadas a examinar a visão religiosa de mundo, também
será útil ter em mente, de modo geral, esta visão que hoje é mais crítica da crença
religiosa, a visão de mundo do secularismo. É verdade que o secularismo
atualmente é uma visão de mundo relevante na cultura moderna e um fator
importante em questões sociais, morais e políticas, bem como no debate cultural
que define o futuro da sociedade. O secularismo é a visão segundo a qual toda a
realidade é de natureza física e consiste em alguma configuração da matéria e da
energia, e que a ciência é a chave para compreender essa realidade (às vezes, essa
visão também é chamada de naturalismo pelos filósofos). Na segunda metade do
século XX, essa visão passou a ser apresentada como uma tese positiva, ou seja, o
secularista não começa dizendo que Deus não existe, e sim fazendo essas
afirmações positivas sobre a realidade. A visão de que Deus, alma e vida após a
morte não existem é consequência dessas afirmações, ou é concluída a partir
delas. Os secularistas afirmam que o universo e toda a vida na Terra, inclusive a vida
humana, são ocorrências aleatórias. Eles também acreditam que precisamos de
explicações da moralidade e da política, e que a visão de mundo secularista deve
ser a principal influência sobre a sociedade ao avançarmos no século XXI. Para
efeitos do debate geral entre religião e secularismo, também precisamos
considerar o secularismo como uma maneira geral de ver o mundo, ao mesmo
tempo que reconhecemos que existem muitos tipos diferentes de secularismo,
cada um com seus próprios defensores, temas e ênfases.
Ao identificar de antemão a visão de mundo secularista, quero cha- mar a atenção
para a questão central de que muitos dos temas da filosofia da religião devem ser
entendidos atualmente no contexto de um debate entre as visões de mundo
religiosa e secularista. Isso porque, se a visão religiosa acaba por não ser verdadeira
ou não ser razoável, alguma outra visão deve ser verdadeira ou mais razoável, e
geralmente se supõe que seja a visão secularista. Assim, qualquer crítica feita à
visão de mundo religiosa de hoje deve ser considerada cada vez mais como uma
afirmação de que a visão secularista é a correta. Isso significa que precisamos levar
em conta as alegações e os argumentos secularistas mesmo quan-
do debatemos a racionalidade da crença religiosa. Essa também é uma questão
crucial quando estamos examinando a racionalidade da nossa visão de mundo e
suas diferenças para com outras visões de mundo que estão competindo com as
nossas no âmbito político em uma sociedade pluralista.
Antes de concluir esta parte, há vários conceitos cujo esclarecimento seria útil. O
termo teísta é usado por muitos filósofos da religião para descrever alguém que
acredita em Deus (da palavra grega para Deus, theos). A filosofia da religião pode
ser definida como a tentativa feita por filósofos de investigar a racionalidade das
afirmações religiosas básicas. Geralmente, mas nem sempre, os filósofos da
religião têm crenças religiosas. É por isso que a filosofia da religião difere da
apologética, que pode ser entendida como a tentativa de defender as afirmações
de uma determinada religião, incluindo as afirmações doutrinárias, contra obje-
ções intelectuais apresentadas por pessoas de fora. É claro que há alguma
sobreposição, mas uma maneira de mantê-las distintas é lembrar que um filósofo
da religião pode ser ateu, mas o apologista de uma determinada religião
normalmente não o seria. Tampouco filosofia da religião é o mesmo que teologia. A
teologia é uma disciplina que geralmente pressupõe a razoabilidade de uma
determinada tradição religiosa e, talvez, a confiabilidade de alguns textos
religiosos. Os teólogos evangélicos, por exemplo, pressuporiam que a visão de
mundo cristã é razoável e que a Bíblia é um texto de autoridade religiosa, e
trabalhariam dentro desse quadro. Já a filosofia da religião tenta não considerar
coisa alguma como inquestionável no início da investigação (principalmente o que
for controverso) e procura abordar as questões fundamentais da religião a partir do
zero, por assim dizer, para ver o que se pode alcançar ao se refletir sobre essas
questões somente pelo raciocínio filosófico.
Também é interessante distinguir as várias formas de ateísmo. Meu antigo professor
de literatura costumava fazer uma distinção entre o ateu de igreja e o ateu de Deus.
O ateu em relação à igreja é uma pessoa que, quando se pergunta, diz que não
acredita em Deus, mas, examinando-o mais de perto verifica-se que seu verdadeiro
problema é com sua igreja. Ele pode expressar isso dizendo coisas como “bom, eu
não gosto do código moral da minha religião”, “eu não suporto os bispos” ou “não
fale de religião comigo”. Ele não tem bem clara, em sua própria mente, a distin- ção
entre rejeitar a crença em Deus e rejeitar ou estar insatisfeito com a sua própria
denominação religiosa – uma distinção que todos reconhecemos em teoria, mas
que costumamos esquecer quando se trata de prática religiosa. Esse tipo de ateu
deve ser diferenciado do ateu de Deus. O ateu de Deus é alguém que realmente não
acredita em Deus, que acha que Deus não existe. Ele não está cometendo o erro de
confundir insatisfação com sua igreja específica com uma descrença em Deus. É
provável que muitas pessoas que soam como ateias de Deus sejam realmente
ateias de igreja, mesmo que não se deem conta (principalmente as que tenham-se
afastado de sua religião de nascimento). Nossa preocupação neste livro não é com
o ateísmo em relação à igreja, mas com o ateísmo em relação a Deus.
Isso nos leva a uma distinção importante entre ateísmo negativo e ateísmo positivo,
a qual se coaduna com a discussão feita anteriormen- te sobre laicidade e
naturalismo. Até o século XX, o ateísmo era quase sempre apresentado como uma
tese ou posição negativa. Era negativa de três maneiras. Primeiro, o ateu definia sua
visão em termos do que ela não era, em vez de em termos de o que era. Assim, no
passado, ao ser questionado sobre em que acreditava, o ateu poderia dizer que
achava que Deus não existia, que rejeitava a moral religiosa ou que não seguia os
ensinamentos de sua religião – todas afirmações sobre aquilo em que não acredita,
e não sobre suas crenças. Em segundo lugar, muitas vezes ele se considerava
negativamente do ponto de vista psicológico, porque costumava estar em minoria
e, talvez, não pudesse evitar ver sua identi- dade em termos do que não era (um
crente religioso), e não em termos do que era (ateu)! Terceiro – e este é o mais
importante –, o ateu também defendia o seu ponto de vista de forma negativa,
atacando a religião e os argumentos para a fé religiosa, e o fazia em vez de
apresentar argumentos positivos em favor do ateísmo.
No entanto, no século XX, tudo isso mudou, o que marca a transição geral do
ateísmo negativo ao ateísmo positivo (ou secularismo). Os ateus perceberam que
era necessária uma abordagem mais cultivada. Originalmente, eles eram como
cientistas que defendiam a teoria do Big Bang sobre a origem do universo
constantemente atacando a teoria do estado estacionário. Com o tempo, esses
cientistas tiveram que decidir a respeito daquilo em que acreditavam com relação
à origem do universo (no sentido positivo) e começar a defender a teoria do Big Bang
com provas positivas, e não apenas atacando seus rivais. Hoje, é muito mais
provável que um secularista apresente o secularismo como uma tese positiva que
identifica aquilo em que ele acredita, e não aquilo em que não acredita. Como
mencionado, os secularistas dirão que acreditam que a vida humana seja resultado
de um processo puramente aleatório, naturalista (evolução), e que toda realidade
seja física. E, muito importante, a sua defesa dessas reivindicações não consiste
atualmente apenas em atacar os argumentos em defesa da crença religiosa: eles
tentam oferecer argumentos positivos que justifiquem essa opinião. Onde vão
obter esses argumentos? Como muitos pensadores que lutam para formular uma
posição, recorrerão ao que estiver disponível no momento para ajudá-los com seus
argumentos, e muitos deles recorreram à ciência moderna, principalmen- te
evolução, genética e neurologia. Tudo isso gerou a impressão, em grande parte da
cultura popular, de que a ciência moderna está realmente do lado do ateísmo. Isso
não é verdade e é uma questão que retomaremos em várias das discussões a
seguir.

FÉ E RAZÃO

Nos Estados Unidos, mas nem tanto em outros países, é muito comum usar
o termo “fé” para descrever a crença religiosa, mas ele pode ser muito enganador.
A palavra “fé” tem conotações inadequadas, principal- mente hoje, e pode ser
usada para configurar uma distinção um pouco artificial entre fé, de um lado, e
razão, de outro. O termo costuma trazer consigo a conotação de que as crenças
religiosas estão fora da razão ou que os crentes religiosos não estão interessados
na racionalidade de seus pontos de vista, ou, pior do que tudo, que as crenças
religiosas não são sequer razoáveis. É assim que os secularistas podem usar o
termo muitas vezes, mas ele também pode ser usado dessa forma pelos próprios
crentes religiosos.
Do ponto de vista da filosofia da religião, o sentido mais importante do termo é o
sentido cognitivo ou propositivo, que se refere a ter uma crença cuja evidência é
menos de 100% certa ou definitiva. As crenças religiosas envolvem proposições
sobre Deus, sobre a relação de Deus com o mundo e os seres humanos, sobre
moralidade, entre muitas outras. O crente religioso não pode provar que essas
proposições são verdadeiras, no sentido de oferecer uma prova científica ou de
apresentar provas decisivas para elas, mas pode, pelo menos, tentar mostrar que
acreditar nelas é racional. Esse é o uso mais adequado do termo “fé” em filosofia
da religião e indica a melhor compreensão da relação entre fé e razão. Um crente
religioso baseia muitas coisas na fé, mas espera que seja uma fé racional (e não
uma fé irracional), e o trabalho da filosofia da religião, entre outras coisas, é tentar
investigar a racionalidade da crença religiosa.
A partir dessa compreensão do termo “fé”, todas as visões de mun- do – religiosas
ou seculares – envolvem fé nesse sentido cognitivo. Ou seja, todas as visões de
mundo têm crenças sobre a natureza da realidade, a natureza da pessoa humana e
a natureza da moralidade, com as quais os adeptos da visão de mundo se
comprometem, mas que não podem provar decisivamente. Embora se possam
sustentar algumas dessas crenças com argumentos e provas racionais, ainda é
necessário se comprometer com elas, uma vez que quaisquer argumentos que
tenhamos ficarão aquém da prova, em função do assunto envolvido.
O tema das visões de mundo, que envolve os três assuntos mencionados, não
admite prova científica. Isso vale para todas as visões de mundo, as secularistas e
as religiosas. Então, se alguém aceita várias crenças sobre a natureza da realidade,
da pessoa humana ou da moralidade, essa aceitação implica um compromisso
com essas crenças: um movimento da vontade, bem como do intelecto. Então, na
verdade, um crente religioso e um secularista estão no mesmo barco, nesse sentido
– uma questão que é negligenciada com frequência. Somos, muitas vezes,
inclinados simples- mente a aceitar como verdadeira, sem dar muita atenção, a
ideia de que apenas a crença religiosa envolve fé, e não o secularismo. Mas agora
que o secularismo é uma visão de mundo positiva em si e um fator de grande valor
cultural a se potencializar, já não se deve ignorar que ele é uma vi- são de mundo
com muitas crenças controversas que são objeto de debate polêmico e que seus
adeptos aceitam muitas dessas crenças, pelo menos parcialmente, com base em
fé. Na verdade, talvez precisemos de uma definição mais ampla de filosofia da
religião para o mundo moderno. Pode já não ser apropriado vê-la simplesmente
como uma subdisciplina que investiga apenas a ra- cionalidade da crença religiosa.
Isso porque há um sentido no qual investigar essa questão atualmente também
significa, automaticamente, investigar a racionalidade do secularismo. Uma vez
que se reconheça que o secularismo é hoje uma visão de mundo positiva, no
sentido descrito anteriormente, com suas teses e argumentos positivos, isso
parece mudar nossa compreensão do que está envolvido na filosofia da religião. Ao
se questionar, por exemplo, se é racional acreditar em Deus, também se está
automaticamente perguntando se é racional não acreditar em Deus – o que
significa simplesmente perguntar se é racional acreditar que toda a realidade é
física, uma crença fundamental do secularismo. Isso confirma o argumento que
apresentei antes de que a maioria das questões fascinantes de hoje deve ser
discutida contra o pano de fundo do debate sobre a racionalidade do secularismo
versus a racionalidade da crença religiosa, e não apenas em relação a saber se o
crente religioso é razoável ou não!
O filósofo medieval Santo Anselmo disse que sua motivação ao investigar a
racionalidade da crença religiosa era fides quaerens intellectum, a fé buscando o
entendimento. Anselmo e outros filósofos reconheceram que, embora exista um
grau de fé envolvido no compromisso com as reivindicações religiosas, a
razoabilidade dessas afirmações ainda é impor- tante, e o crente inteligente e de
visão filosófica deve abordar o assunto. Esses filósofos não estavam satisfeitos
com manter o ponto de vista de que, como suas crenças religiosas eram uma
questão de fé, não havia ne- cessidade nem espaço para uma discussão racional a
respeito delas. Eles estavam muito comprometidos com a disciplina da filosofia
como forma de questionar, esclarecer e sustentar as principais crenças e conceitos
da visão de mundo religiosa. E, assim, pensadores cristãos como São Tomás de
Aquino estenderam essa maneira de pensar para incluir o estudo dos pontos de
vista de estudiosos de outras culturas, muitos dos quais não eram cristãos, bem
como o estudo da ciência. Os filósofos medievais e, mais tarde, religiosos, ficaram
muito impressionados com o argumento de Santo Agostinho de que “toda a
verdade é uma só”, a visão de que muitas áreas de estudo, incluindo a ciência,
podem descobrir verdades sobre diversas áreas da vida e que a crença religiosa,
para ser racionalmente fundamentada, deve procurar receber e acomodar essas
verdades. Se uma afirmação for estabelecida como verdade em uma disciplina,
Agostinho disse, deve ser verdadeira em todas as disciplinas. Essa visão define a
abordagem da filosofia da religião hoje e será assumida neste livro.
Assim, com esses pontos introdutórios em mente, trabalharemos muitas das
questões estimulantes que são objeto da filosofia da religião. Faremos isso na
companhia da obra de pensadores famosos, tanto do passado quanto do presente,
que contribuíram para a nossa compreensão desses assuntos. Meu objetivo é
familiarizar os leitores com as principais questões e as principais linhas de debate
relacionadas vários aspectos, de uma forma que seja equilibrada, justa e
historicamente informada. Meus próprios pontos de vista – sou teísta de tradição
católica – virão à tona ocasionalmente, é claro, mas meu objetivo é apresentar os
argumentos mais fortes em ambos os lados do debate, de forma que o leitor tenha
uma compreensão global do tema, seja desafiado pelas questões filosóficas e
capaz de fazer julgamentos informados. O livro se destina ao estudante e ao leitor
em geral que estejam interessados em aprender mais sobre o que os filósofos têm
a dizer sobre religião. Não se pressupõe nem se exige qualquer conhecimento
prévio de filosofia. Também evitei usar vocabulário filosófico ou jargão técnico
especializado. Outras leituras podem ser encontradas nas notas no final do livro e
nas referências. O que eu espero é que os leitores, principalmente os estudantes,
sejam estimulados, durante esta jornada, a pensar por si mesmos sobre as grandes
questões da crença religiosa e sejam inspirados a buscar uma abordagem
filosoficamente rigorosa e historicamente informada. Espero que os leitores
também sejam tomados pelo fascínio que dá origem às questões filosóficas e às
religiosas, um fascínio sentido por muitos que se depararam com perguntas que
talvez sejam as mais interessantes que existem.
Várias pessoas me ajudaram enquanto eu trabalhava neste livro. Sou muito grato,
em particular, a Brian Davies, Edward Furton, Douglas Geivett e Curtis Hancock.
Agradeço também à equipe da Continuum Books e aos editores da série Conceitos-
chave em filosofia, por seu apoio e esforço. Por fim, gostaria de agradecer, acima
de tudo, à minha família, por toda a sua ajuda e todo o seu incentivo enquanto eu
trabalhava neste projeto. Sem o seu grande apoio e seu companheirismo, este livro
não teria sido possível.

Diversidade religiosa: há uma religião verdadeira?


SWEETMAN, Brendan; SWEETMAN, Brendan (null). Religião: conceitos-chave em filosofia. 1. Porto
Alegre: Penso, 2014. Páginas 152 - 167

A grande diversidade de religiões que existe no mundo dá origem ao que, na filosofia
da religião, costuma ser chamado de problema do pluralismo religioso. A existência
de ampla diversidade religiosa em várias culturas inevitavelmente nos obriga a
perguntar quais são as implicações dessa diversidade para a verdade da religião em
geral. Será que o fato de haver uma variedade de religiões no mundo significa que,
de alguma forma, uma religião é tão legítima quanto qualquer outra? Ou significa
que nenhuma delas pode pretender ser detentora da verdade? A diversidade
religiosa prejudica a confiança em nossa própria religião? Na verdade, na era
moderna, a presença de pontos de vista diferentes sobre ques- tões importantes da
vida gerou relativismo, até mesmo ceticismo, entre muitas pessoas, em termos de
descoberta da verdade sobre as questões fundamentais de moralidade, direito,
política e sociedade. Portanto, não deve realmente surpreender que esse
relativismo e esse ceticismo também tenham alguma influência sobre a religião.
É preciso ter em mente as muitas religiões do mundo quando se pen- sa sobre essas
questões. Embora o nosso foco neste livro tenha estado no cristianismo, também
devemos pensar sobre o islamismo, o judaísmo, o hinduísmo, o budismo, o
taoísmo, o confucionismo e assim por diante. É simplesmente impossível
ignorarmos outras religiões no clima cultural de hoje. As comunicações globais e a
facilidade de viajar colocaram as principais religiões mais em contato do que nunca
na história, e só esse fato já nos chama a enfrentar a questão do pluralismo
religioso. Hoje, é mais comum as pessoas de uma religião conhecerem e, na
verdade, trabalharem com pessoas de diferentes religiões. Em geral, os crentes
religiosos estão cada vez mais interessados e respeitosos para com outras
religiões. Contudo, é claro que há diferenças bastante significativas entre as reli-
giões, em muitos assuntos: a natureza de Deus ou da realidade última, a descrição
correta da revelação e dos textos sagrados, questões morais e, principalmente,
doutrinárias, como a Encarnação e a Ressurreição, que os cristãos afirmam, por
exemplo, mas os muçulmanos negam.
Não nos esqueçamos também de que as questões colocadas pelo plu- ralismo
precisam ser enfrentadas por membros de todas as religiões, e não são apenas
preocupações para os cristãos. Seguidores de cada visão religiosa de mundo
devem fazer perguntas críticas não apenas sobre as verdadeiras afirmações de sua
própria visão de mundo, mas também sobre como veem as afirmações de verdade
de outras religiões. Esse é um assunto de vital importância porque, embora estejam
de acordo em algumas questões, as religiões também discordam em relação a
muitas coisas. Às vezes, essas divergências podem ser graves e levar a discussões
sobre o correto entendimento da salvação e do caminho até ela. Na verdade, talvez
a salvação seja o conceito fundamental na discussão sobre pluralismo religioso. O
conceito de salvação deve ser entendido em um sentido bastante amplo, para se
referir ao caminho correto à vida eterna e à felicidade (se houver). Essa definição é
preferível em relação à mais estrita, que pode se concentrar em como o caminho à
salvação foi apresentado em uma determinada religião (por exemplo, pela morte e
ressurreição de Jesus no cristianismo). Embora o entendimento estrito seja muito
impor- tante – e o retomaremos mais tarde –, a questão mais ampla nos permite
pensar sobre o tema geral da salvação e como ele se aplica a todas as religiões do
mundo. Uma das questões centrais que dá origem ao debate acirrado entre
religiões é se os membros da religião A acreditam que os membros da religião B
podem ser salvos e vice-versa. E no que a religião C acredita em relação aos
membros de A e B? Existe apenas uma religião verdadeira, no sentido de que o
caminho para a salvação está disponível apenas em uma religião, ou a salvação
pode ser alcançada em muitas re- ligiões diferentes? Ou a pessoa responderia a
esse problema dizendo que a salvação não existe? Essas são as perguntas que
iremos explorar neste capítulo.1
Antes de entrar nessas questões, é interessante especular sobre se há lugar para a
visão de mundo secularista nesse debate. Como vimos, o problema do pluralismo
religioso sempre foi entendido na filosofia da religião como um problema
relacionado à maneira de entender e responder
ao fato de que há muitas religiões diferentes no mundo. No entanto, como sugeri na
Introdução deste livro, se entendemos que o secularismo é uma visão de mundo
importante em si mesma no mundo moderno, pode ser melhor ampliar a nossa
discussão de pelo menos alguns temas religiosos para incluir a posição secularista
em relação a eles. Na verdade, como eu disse anteriormente, muitas questões na
atual filosofia da religião se resumem a um debate entre visões do mundo religiosas
e secularistas, mas não é fácil ver como as questões levantadas pelo pluralismo
religioso poderiam facilmente ser ampliadas para também incluir as perspectivas
seculares. Isso porque a questão da salvação é central ao tema do pluralismo
religioso, e os secularistas afirmam que não existe Deus, nem vida após a morte,
nem alma e, portanto, tampouco salvação. Mas suponha- mos que, a fim de levar
mais a fundo esse experimento do pensamento, em vez de apelar à salvação como
conceito fundamental levantado pelo debate sobre diversidade (ou em vez de
compreendê-la de uma forma especificamente religiosa), recorramos ao conceito
de verdade última ou o caminho correto para a felicidade, ou algo nessa linha.
Sendo assim, poderíamos perguntar, em relação à diversidade de visões de mundo
– agora incluindo o secularismo –, se o secularista acredita que a sua visão de
mundo é a verdade última ou oferece o caminho correto à felicidade (seja qual for
a visão de felicidade que os secularistas desejem defender). Ou poderíamos
perguntar como um secularista responderia à questão da verdade no que diz
respeito à diversidade de visões de mundo em geral (religiosas e secularistas). Isso
seria o equivalente a perguntar, para uma religião particular, se os seus membros
sustentam que ela, sozinha, contém a verdade última ou o verdadeiro caminho à
felicidade. Embora continuemos a tratar o problema do pluralismo religioso neste
capítulo apenas como um problema para as religiões, pode ser útil não perder de
vista como as perguntas deste capítulo se aplicariam ao secularismo. Isso é
importante porque, uma vez que o secularismo é um impor- tante fator cultural em
si, hoje, principalmente em alguns países, já não é apropriado fazer perguntas sobre
como devemos lidar com a diversidade de visões de mundo no mundo moderno e
não considerar o secularismo como uma dessas visões. Ou, em outras palavras:
não cabe mais restringir essas perguntas aos crentes religiosos; devemos agora
fazê-las a todo aquele que tenha, pratique ou defenda uma visão de mundo.
Antes de seguir examinando as três principais respostas ao problema da
diversidade religiosa, é necessário levantar algumas questões preliminares. Em
primeiro lugar, em nossas reflexões, temos de nos concentrar
claramente na questão das reais afirmações de verdade de nossa própria religião.
Isso significa que é preciso pensar com cuidado sobre o que a nossa religião está
dizendo em relação a Deus, à realidade, à natureza dos seres humanos, à nossa
relação com Deus e à moralidade. Aquilo que a sua religião afirma é realmente
assim, é objetivamente verdadeiro em relação a esses assuntos (e não apenas uma
questão de convenção ou opinião)? Esses tipos de afirmações são frequentemente
chamados pelos filósofos de afirmações metafísicas ou ontológicas. É pelo fato de
as afirmações metafísicas de várias religiões costumarem ser bastante diferentes
que podemos dizer que algumas religiões se contradizem; por exemplo, os cristãos
acreditam que, quando morremos, provavelmente estabelecemos imediatamente
uma relação pessoal com Deus, ao passo que os hindus afirmam que
reencarnamos. Diante disso, essas afirmações não podem ser, ambas,
verdadeiras.
Em segundo lugar, o membro de uma religião também deve perguntar se as
afirmações metafísicas de sua religião são racionais. Como já enfatizei ao longo
deste livro, a racionalidade da visão de mundo que se tem é muito importante. Na
verdade, podemos pensar no problema do pluralismo religioso em termos de três
perguntas: 1) Quais afirmações metafísicas eu sustento em minha religião? 2)
Essas afirmações são racionais? 3) Qual é a minha resposta a outras religiões que
fazem afirmações metafísicas diferentes? Eu considero que essas outras
afirmações são falsas ou põem em questão as minhas próprias crenças religiosas,
que todas elas podem, de alguma forma, ser verdadeiras ou que nenhuma deve ser
verdadeira?
Terceiro, também precisamos ter em mente a diferença entre as afir- mações ou
crenças teóricas de uma religião e os efeitos práticos delas na vida de um crente.
Os argumentos teóricos se referem às crenças de uma pessoa religiosa sobre vários
tópicos (teológicos, doutrinários, morais e assim por diante); o foco nessas
afirmações traz à tona a questão da verdade dessas crenças, a questão de quais
são as crenças corretas nas quais se acreditar. O efeito prático das crenças na vida
do crente religioso se refere a como ele realmente vivencia a sua religião na sua vida
comum, cotidiana. Esse tema levanta a pergunta de qual é a maneira correta de se
viver moralmente, uma preocupação fundamental da religião em geral. A distinção
entre as afirmações teóricas de uma religião e o efeito prá- tico delas na vida do
crente é importante, porque, às vezes, embora os argumentos teóricos possam ser
bastante distintos entre as diferentes re-
igiões, os efeitos práticos de afirmações religiosas podem ser muito semelhantes,
pelo menos em alguns aspectos importantes. E esse fato pode ter algum
significado para a nossa compreensão do problema do pluralismo religioso e a
nossa resposta a ele.

EXCLUSIVISMO RELIGIOSO

A primeira visão que vamos examinar como resposta ao problema do pluralismo


religioso é conhecida como exclusivismo religioso. É a visão de que o caminho
correto para a salvação só pode ser encontrado em uma religião. É muito difundida
atualmente, entre todas as religiões, e também foi a principal abordagem à questão
do pluralismo religioso ao longo da história. A Igreja Católica, por exemplo, ensina
a doutrina do extra ecclesiam nulla salus, que significa “fora da Igreja, não há
salvação”, e, por muito tempo, isso foi entendido de forma exclusivista (apesar de
ter havido mudanças nas atitudes em relação ao tema dentro da Igreja Católica
depois do Concílio Vaticano II). Muitas denominações protestantes, mutatis
mutandis, têm uma visão semelhante. O teólogo protestante Karl Barth (1886-1968)
é um expoente bem conhecido dessa visão.2 O exclusivismo religioso é uma
posição que se pode adotar independente- mente da religião que se tenha.
Também é provável que se possa dizer que todas as principais religiões tenham tido
alguma versão do exclusivismo, ou ainda a tenham. Também é possível assumir
uma posição estreita ou uma posição ampla sobre o exclusivismo. Quem assume
a primeira sus- tentaria que é necessário ser membro de uma determinada
denominação religiosa para alcançar a salvação, enquanto os que subscrevem a
visão mais ampla podem afirmar que qualquer pessoa que seja, digamos, cristã (ou
qualquer religião de que falemos) será salva, independentemente da sua filiação
denominacional específica.
Os exclusivistas religiosos de hoje, por vezes, opõem-se ao termo “exclusivismo”
como rótulo para descrever a sua posição, porque argumentam que ele tem
conotação negativa, transmitindo a ideia de que essa visão é isolacionista, limitada
e intolerante. Eles contrapõem que “exclusi- vismo” é um termo politicamente
correto desenvolvido para isolar as suas opiniões sem realmente tratar delas.
Alguns, pois, preferem usar o termo “particularismo” (mais neutro), que, no atual
clima de correção política, tem mais probabilidade de obter um tratamento justo
para essa visão. Os exclusivistas religiosos defendem que pode haver verdades
profundas em outras religiões, mas a sua principal afirmação é de que não se pode
al- cançar a salvação seguindo a religião errada. Só porque uma religião está certa
em alguns pontos não significa que, em geral, contenha as crenças e ações
corretas que levariam à salvação. Para o exclusivista, julgar se a outra religião está
certa em algumas questões vai depender de ela concordar com a religião correta
nessas questões; por exemplo, um muçulmano que apoia o exclusivismo pode crer
que o cristianismo esteja certo ao acreditar que Deus é todo-poderoso, mas negar
que o cristianismo possa conduzir à salvação.
É evidente que, para os exclusivistas religiosos, o trabalho missioná- rio é muito
importante. Isso significa que o exclusivista religioso leva a sério e dedica muito
tempo e energia à tarefa de nutrir, explicar, defender, promover e difundir a sua
religião, com vistas a ganhar adeptos. Essa é uma tarefa urgente para a Igreja,
porque está em jogo a salvação das almas das pessoas. O trabalho missionário
pode ser realizado de várias formas e pode incluir o envolvimento direto de uma
religião na política, como forma de propagar a sua influência. Quaisquer objeções
a esse envolvimento seriam compensadas pelo fato de estarem em jogo as almas
eternas das pessoas.
Quais são os argumentos do exclusivismo? Os exclusivistas desenvolveram três
linhas principais de argumentação.3 A primeira é a do argumento filosófico e tem
quatro pontos principais. Inicialmente, é razoável acreditar que Deus existe usando
os argumentos da teologia natural, como aqueles que examinamos neste livro, o
que leva ao segundo ponto: uma vez que Deus existe, é razoável que esperemos
que revele o seu plano aos seres humanos. Assim, devemos olhar em volta, na
história, em busca das evidências dessa revelação. A terceira parte do argumento
envolve a análise das várias candidatas à verdadeira revelação na história e
argumentar que uma determinada revelação (para os cristãos, a Bíblia) é superior
às outras. Esse argumento específico implicaria recorrer às evidências histó- ricas,
à análise textual, à teologia moral, a argumentos filosóficos sobre interpretação
textual e assim por diante. A última parte do argumento filosófico é que a correta
explicação da revelação ensina que uma posição exclusivista sobre a salvação é
verdadeira – por exemplo, a Bíblia ensina que só há um caminho para a salvação (e
este é mais bem captado em uma determinada religião ou denominação).
O segundo argumento para sustentar o exclusivismo é de caráter mais diretamente
teológico e provavelmente foi o principal argumento a
que se recorreu na história da teologia e da filosofia. Essa visão simplesmente
começa apresentando uma dada revelação como verdadeira e afirma que ela
ensina que há apenas um caminho verdadeiro para a salvação. A revelação pode
ser sustentada com um recurso às evidências históricas e ao debate teológico, mas
geralmente não faz parte de um argumento filo- sófico, como considerado
anteriormente. Em suma, em cada comunidade religiosa, de tempos em tempos,
os estudiosos têm examinado a questão de por que a sua revelação seria melhor
do que as outras, mas geralmente não recorrem a argumentos do tipo da teologia
natural como parte desse processo geral, limitando-se à análise de um
determinado evento de revelação e a textos e tradições que surgiram dele.
O terceiro argumento por trás do exclusivismo religioso é lógico e diz que, por uma
simples questão de lógica, nem todas as religiões do mundo podem ser
verdadeiras. Mesmo que haja alguma verdade em todas elas, ainda há
contradições diretas, de modo que algumas dessas religiões logicamente devem
estar erradas em determinadas questões. Poderia ser o caso de que todas
estivessem erradas, é claro, mas o exclusivista, por acreditar que uma visão
religiosa do mundo é verdadeira em termos gerais, sustenta que é mais razoável
pensar que uma delas está mais próxima da verdade do que as outras (mesmo se
reconhecermos que nenhuma pode ter toda a verdade). Pelo menos pode-se saber,
sustenta o exclusivista, qual é o caminho correto para a salvação. O exclusivista
também rejeita frequentemente as críticas modernas ao exclusivismo, alegando
que elas não se baseiam em uma análise racional da questão de qual revelação
tem mais probabilidades de estar correta, e sim em uma falta de disposição para
enfrentar a questão e fazer um verdadeiro debate sobre os méritos de visões de
mundo diferentes – isso porque muitos estão hoje intimidados pelo
multiculturalismo e pelo politicamente correto, não fazendo perguntas difíceis
sobre pontos de vista diferentes, com medo de ofender os outros.
Apesar desses argumentos interessantes e desafiadores, existem problemas
significativos que enfrentam a posição do exclusivismo religioso. Uma objeção que
muitos levantam é a de que, embora a lógica por trás da posição exclusivista tenha
sentido, simplesmente não é possível fazer um julgamento preciso e razoável de
qual religião mundial é a verdadeira e, portanto, qual é o caminho correto para a
salvação. Há simplesmente de- masiados aspectos obscuros com relação a
evidências históricas, datação de textos, relatos de testemunhas, alegações sobre
o miraculoso, confli- tos relacionados à interpretação textual e ao conteúdo das
experiências religiosas para se fazer um julgamento. Portanto, a visão de que
apenas uma religião tem o verdadeiro caminho para a salvação não é realista. É
forçar demais, dizem os críticos, acreditar que o resultado desse debate seria
concluir que uma determinada religião oferece o único caminho ver- dadeiro à
salvação.
Uma segunda linha de argumentação contra o exclusivismo é que muitos não veem
dificuldade lógica nem teológica na visão de que Deus poderia ter-se revelado de
diferentes maneiras em diferentes religiões. Talvez Deus tenha-se revelado nas
formas adequadas a uma cultura, hora e local determinados. Os exclusivistas
rejeitam essa visão porque acreditam que é muito vaga e porque não veem
dificuldade para um Deus poderoso se revelar substancialmente da mesma
maneira em diferentes culturas. Revelar-se de maneiras diferentes simplesmente
geraria confu- são e teria o efeito de levar desnecessariamente as pessoas ao erro.
Além disso, uma coisa é Deus se revelar de diferentes maneiras, mas por que ele
revelaria mensagens diferentes em diferentes religiões? Alguns podem se perguntar
como podemos culpar as pessoas por participar e acredi- tar sinceramente na
religião dominante em sua cultura. Alguns sugerem que, se tivesse sido criado em
uma cultura diferente, digamos, cristã, um crente muçulmano sincero seria um
cristão sincero. Sendo assim, como se pode culpá-lo por ser sinceramente
muçulmano? Os exclusivistas aceitam esse argumento, mas não acham que seja
relevante para o debate; eles argumentam que o fato de se absorver a visão de
mundo da cultura que se tem não significa que essa visão de mundo seja
verdadeira. Eles também sustentam que a pessoa não é totalmente moldada pela
própria cultura, mas pode se manter independente o suficiente para obter uma
perspectiva crítica sobre ela, mesmo que isso às vezes possa ser difícil.
Uma das razões mais fortes para se rejeitar o exclusivismo, dizem os seus críticos,
é que ele parece muito injusto para os membros das re- ligiões equivocadas; isso
porque, embora talvez seja verdade que, em teoria, pode-se assumir uma
perspectiva crítica sobre a própria religião, fazê-lo na prática é mais difícil.
Juntando-se isso ao fato de que, para os crentes comuns, comparar as diferentes
religiões em termos de sua ver- dade é uma tarefa impossível, seria muito injusto
que Deus condenasse eternamente qualquer pessoa que não conseguisse se
converter e seguir a religião correta. Isso às vezes é expresso como uma objeção
moral ao exclusivismo – seria imoral da parte de Deus definir as coisas de forma tão
injusta. Como seria imoral da parte de Deus fazer isso, essa visão não pode estar
correta, e, além disso, é imoral da parte dos exclusivistas insis-
tir em que esteja correta. Uma extensão do argumento sobre a injustiça é que os
exclusivistas precisam pensar sobre o que aconteceria com as pes- soas que não
seguiram a religião correta porque nunca ouviram falar dela. Nesse caso, não seria
por culpa própria que elas não aceitam a religião verdadeira.
Alguns exclusivistas respondem a essas objeções desafiadoras sus- tentando que
essas pessoas terão outra oportunidade de responder a Deus após a morte. Outros
recorrem a uma doutrina complicada e muito controversa sobre o “conhecimento
intermediário” de Deus, conhecida como molinismo (por referência ao teólogo
jesuíta do século XVII Luís de Molina), para resolver esse problema. Essa visão
sustenta que, além do conhecimento sobre o passado, o presente e o futuro, Deus
também tem um tipo de conhecimento chamado de intermediário. Ele tem esse
tipo de conhecimento se sabe o que você teria feito se lhe tivessem sido
apresentadas as opções certas em sua vida, as quais, na verdade, não lhe foram
apresentadas (chamadas de escolhas contrárias à realidade, ou contrafactuais).
Assim, nessa visão, Deus sabe o que você teria feito se lhe tivesse sido apresentada
a visão religiosa correta da salvação. Ele sabe se você a teria aceitado ou não, e
concede ou nega a salvação de acordo com isso. Para muitos, essa é uma doutrina
especulativa e também incorre no problema da compatibilidade do conhecimento
de Deus sobre eventos possíveis e o livre-arbítrio humano, mas é uma doutrina
essencial para o exclusivista, pois é necessária para que ele tenha uma resposta ao
difícil problema de o que acontece com aqueles que nunca ouviram falar a ver-
dade, sem que tenham culpa disso.

PLURALISMO RELIGIOSO

Aqueles que defendem a posição conhecida como pluralismo religioso costumam


ser críticos do exclusivismo, especificamente, e desenvolveram o pluralismo como
posição alternativa. O pluralismo religioso é a visão de que há muitos caminhos
diferentes à salvação nas várias religiões do mundo, e, assim, todas elas têm certa
legitimidade. Um defensor forte, talvez mais extremo, desse ponto de vista é John
Hick. Como indicado em capítulos anteriores, Hick foi influenciado pela metafísica
de Kant e acredita que a distinção que este faz entre fenômeno e númeno nos pro-
porciona uma maneira de desenvolver um argumento plausível para de- fender o
pluralismo. Como observado no Capítulo 5, Kant distinguiu entre o mundo
fenomênico e o mundo numênico, entre o mundo como aparece a nós e o mundo
como ele é, e afirmou que só conhecemos o mundo fenomênico, que, embora se
baseie no mundo numênico, é modificado de forma significativa no ato do
conhecimento. Além disso, a mente humana não pode escapar a esses atos de
alteração com o objetivo de conhecer o mundo como ele é.
Hick aplica essas categorias ao problema da diversidade religiosa.5 Ele argumenta,
por exemplo, que a natureza da realidade de Deus ou Realidade Última é
equivalente ao mundo numênico. O Real, ou o Divino, como ele às vezes se refere à
Realidade Última, está além da compreensão humana; situa-se no reino do
numênico. No entanto, a partir de sua perspectiva limitada, os seres humanos
tentam descrever o numênico, o que fazem de diferentes maneiras, as quais dão
origem a diversas religiões do mundo. Cada uma das diferentes religiões representa
diferentes perspectivas fenomênicas sobre o numênico. Portanto, de acordo com
Hick, nenhuma delas detém toda a verdade sobre o Real, porque isso é impossível,
mas cada uma também tem uma perspectiva legítima sobre o Real, e por isso
nenhuma religião pode pretender ser mais verdadeira do que outra nem representar
o caminho único para a salvação. Isso é verdade, Hick argumenta, mesmo quando
as religiões se contradizem, um argumento que, segundo os exclusivistas, mostra
logicamente que nem todas as religiões podem ser verdadeiras. Hick trata do
problema da contradição dizendo que cada religião está tão distante de uma
descrição correta do Real que, embora as diferentes afirmações pareçam
contraditórias entre si – por exemplo, visões orientais e ocidentais da imortalidade
–, elas são mais bem descritas como “distorções” porque estão muito aquém da
verdade sobre esse tema, uma verdade que está além da compreensão humana.
Para ilustrar como isso pode funcionar, Hick e muitos outros plura- listas apelam
para a história dos cegos e do elefante. Um grupo de cegos tem que descrever um
elefante, um animal que nunca encontraram, mas cada um se aproxima dele a
partir de um lado diferente. Assim, o primeiro toca em uma perna e diz que é um
grande pilar vivo; outro toca a trom- ba e a descreve como uma cobra grande; outro,
ainda, toca em uma das presas e o descreve como uma relha de arado; e assim por
diante. Essas descrições estão todas corretas à sua maneira, mas, por causa das
respectivas abordagens limitadas de cada cego diante da majestade do elefante,
ficam muito aquém da descrição correta, que seria entender como o elefante
realmente é. Isso acontece com as várias religiões (representadas na história pelos
cegos) e o Real (representado pelo elefante). Assim como duas descrições feitas
pelos cegos parecem se contradizer, mas, na verda- de, estão ambas corretas à sua
maneira, o mesmo acontece com as várias contradições que surgem em uma
comparação das descrições do Real encontradas nas várias religiões do mundo.
A visão de Hick se mostrou atrativa a muitos e oferece uma solução para algumas
das dificuldades diante do exclusivismo. Ela se encaixa bem e é motivada por várias
ideias que são atrativas à mente moderna: a liberdade do indivíduo de escolher a
sua própria visão de mundo, a ascensão da mentalidade científica, a rejeição da
verdade literal das reivindicações religiosas, o aumento do relativismo moral, o
desejo de não ter uma postura de julgamento em relação às crenças dos outros. No
entanto, é uma visão que vem com sérios problemas próprios, que levam alguns a
argumentar que não é uma resposta plausível ao problema da diversidade religiosa.
Um problema é que ela muitas vezes é defendida recorrendo-se a uma
epistemologia antirrealista, como a de Kant, ou mesmo por meio de um ceticismo
em relação à possibilidade de os seres humanos jamais conseguirem conhecer a
verdade sobre qualquer coisa em sua experiência. Embora tenham popularidade
hoje, em várias disciplinas acadêmicas (e, consequentemente, tenham penetrado
na cultura popular), ambas as posições epistemológicas são cheias de problemas,
e os crentes religiosos, em particular, não importa qual seja sua denominação,
muitas vezes relutam em se comprometer com elas.
Um problema enfrentado pela visão kantiana é que ela parece contraditória, pois
está dizendo, por um lado, que, como ilustra claramente o exemplo do elefante, não
há perspectiva final a partir da qual possamos julgar qual religião mundial pode ser
verdadeira. Por outro lado, o próprio Hick está assumindo uma perspectiva maior,
pois nos apresenta uma descrição de como as coisas realmente são! Em outras
palavras, Hick está dizendo que a mente humana não consegue escapar do mundo
fenomenal para descrever como é o mundo numênico e, ainda assim, é capaz de
nos apresentar uma descrição supostamente verdadeira da realidade (e não uma
descrição modificada pela mente): a de que ela consiste dos mundos numênico e
fenomênico e de uma relação específica entre eles. Isso é uma contradição no
âmago de todas as teorias antirrealistas: a pessoa que propõe a teoria sempre
consegue escapar das estruturas relativizantes e da mente cognoscente, das quais
o autor defende que ninguém pode escapar! O pluralismo também flerta
abertamente com o ceticismo em relação ao conhecimento, porque se baseia na
visão de que não é possível examinar as religiões do mundo da forma defendida
pelo exclusivista – para ver qual delas tem mais probabilidade de ser verdadeira. Vai
mais longe, argumentando que as afirmações factuais diretas nas religiões
mundiais são todas falsas, como a de que Jesus ressuscitou dos mortos ou de que
o anjo apareceu a Maomé, e são mais bem entendidas como metáforas para
expressar o Real. Portanto, a literalidade da maioria das afirmações religiosas – que
está no centro de quase todas as religiões – teria de ser abandonada. Então, para
um cristão pensar que Jesus era Deus e realmen- te ressuscitou dos mortos para
salvar a humanidade e que devemos, por- tanto, orar a Deus, essas crenças não
devem ser consideradas literalmente verdadeiras, de acordo com Hick, e sim
“perspectivas” sobre o Real, que é, em si, incognoscível. E o mesmo acontece com
todas as religiões. É fácil ver como essa visão convida ao relativismo e ao ceticismo
sobre a religião em geral, e seria difícil de distinguir do ateísmo.
Os pluralistas, muitas vezes, respondem a essas críticas dizendo que, na religião, o
que importa não é tanto em que você acredita, mas como vive, ou, nas palavras de
Hick, o que importa é que a religião possa transformar a vida de uma pessoa, de
autocentrada a centrada em Deus. Se você seguir o código moral correto em sua
vida, vai encontrar a graça aos olhos de Deus, independentemente de suas crenças
metafísicas, teológicas e doutrinárias (e por isso essa abordagem pluralista
também teria espaço para secularistas e ateus). Essa é uma visão pela qual mesmo
quem não é pluralista tem alguma simpatia, mas parece que seria necessário que
soubéssemos qual é a maneira certa de viver (isto é, que saibamos o que significa
ter uma vida centrada em Deus). Contudo, parece que para saber qual é a maneira
certa de viver teríamos que ser capazes de fazer duas coisas que os pluralistas
acreditam não poder ser feitas. Primeiro, teríamos que conseguir julgar as várias
religiões de acordo com seus códigos morais, mas, se pudermos fazer isso com os
códigos morais delas, por que não poderíamos fazer o mesmo com suas
características teológicas, sociológicas e históricas? Em segundo lugar, de modo
mais geral, teria de ser possível saber qual é a verdade objetiva na moralidade, e, se
pudermos conhecer a verdade objetiva na moralidade, por que não podemos
conhecê-la em outras áreas do conhecimento, como história, teologia e descrições
da revelação?
O pluralismo, em suma, é “exclusivista” à sua maneira, no sentido de que o
pluralista quer que o exclusivista e o inclusivista aceitem a sua visão como
verdadeira, e não apenas em geral, mas também em relação ao que está envolvido
em viver uma vida centrada em Deus. O pluralista acredita que tem a resposta
correta a isso e que as outras respostas estão incorretas. Em outras palavras, na
história do elefante, o pluralista é o homem com visão, que consegue ver o quadro
inteiro, incluindo a natureza do Real (o elefante), mas todos os outros são cegos! Se
não fosse esse o caso, o pluralista não poderia saber que as descrições do Real
apresentadas pelos cegos eram distorções inadequadas. Esses problemas são
graves para o pluralismo e têm levado muitos a propor um meio-termo entre
exclusivismo e pluralismo.

INCLUSIVISMO RELIGIOSO

Muitos consideram graves os problemas identificados tanto no exclusivismo


quanto no pluralismo e, assim, gravitam em torno de uma visão que nos permita
dizer tanto que a salvação pode ser alcançada em muitas religiões diferentes, mas
que, no entanto, nem todas as religiões podem ser verdadeiras. Ainda pode haver
apenas uma religião verdadeira. Essa visão é conhecida como inclusivismo
religioso. Os inclusivistas afirmam que há apenas uma visão verdadeira de como a
salvação pode ser alcançada, mas que pessoas de religiões diferentes são salvas
por causa da natureza dessa visão de salvação. Por exemplo, um inclusivista cristão
acreditaria que a morte e ressurreição de Jesus Cristo tornam a salvação possível a
todos os seres humanos, que esse ato torna a salvação possível, não apenas para
os cristãos, mas também para os membros de outras religiões. Isso é verda- deiro
mesmo se os membros das outras religiões não reconhecerem Jesus ou o
cristianismo; é verdade mesmo se eles acharem que Jesus não foi Deus ou que as
principais afirmações do cristianismo são falsas. O teólogo católico Karl Rahner
(1904-1984) e o filósofo católico Jacques Maritain (1882-1973) tinham, ambos, essa
concepção. Essa posição, portanto, sustenta que a salvação depende de um ato
específico – a morte e ressurreição de Jesus, por exemplo – ser metafisica- mente
verdadeiro (realmente aconteceu na história e realmente teve determinado efeito),
mas não é necessário acreditar que esse evento tenha ocorrido, nem mesmo ser
membro da religião que tem a visão correta do que tinha que acontecer para a
salvação ser possível (metafisicamente). O que importa é que se viva uma vida
moral, o que é possível fazer em muitas visões de mundo diferentes (não
necessariamente em todas), e que se lute por estabelecer uma relação verdadeira
com Deus, que se revela em muitas religiões, em certa medida, mesmo que
imperfeitamente. A verdade das crenças doutrinárias de uma religião tem
importância secundária.
De acordo com os inclusivistas cristãos, são os principais fatos da religião cristã
que tornam a salvação possível, quer as pessoas reconheçam esses fatos, quer
não. O inclusivista muçulmano ou judeu adotaria exatamente a mesma visão em
relação às principais afirmações de sua respectiva religião.
Os inclusivistas afirmam que essa é a abordagem mais lógica ao problema da
diversidade religiosa por vários motivos. Primeiro, eles concordam com o
argumento exclusivista de que, logicamente, nem todas as religiões podem ser
verdadeiras. O inclusivista aceita essa questão, mas desenvolve uma visão em que
o debate sobre qual religião é realmente verdadeira é menos premente (ao contrário
de exclusivistas, para os quais ele é urgente). Em segundo lugar, essa posição
também reconhece a dificuldade de decidir (com certeza o suficiente para ser
exclusivista) qual das religiões do mundo provavelmente é verdadeira com base em
argumentos históricos, filosóficos e teológicos. Embora essa questão não seja
irrelevante para o inclusivista (como parece ser para o pluralista), não é urgente que
resolvamos isso. Em terceiro lugar, o inclusivismo está fundamentado na alegação
de que deve haver alguma visão da realidade que seja metafísica e factualmente
verdadeira e que torne possível a salva- ção. Essa parece ser uma exigência lógica
de qualquer religião, de acordo com o inclusivista, e assim o inclusivismo pode
preservar a integridade filosófica e lógica da crença religiosa ao se recusar a aceitar
o argumento pluralista de que as afirmações religiosas, embora aparentemente
literais, são, na verdade, metáforas.
Podemos usar uma analogia para ilustrar a posição inclusivista. Suponhamos que,
em uma determinada cidade, engenheiros coloquem flúor na água e que isso faça
todas as pessoas da cidade ter dentes saudáveis. O inclusivista afirma que o flúor
realmente está na água e é responsável pelos dentes saudáveis. Esses fatos são
verdadeiros não apenas para aqueles que acreditam que há flúor na água e que isso
leva a dentes saudáveis, mas mesmo para todos aqueles que negam um desses
fatos ou ambos. Tudo o que importa é que se beba a água! Isso é análogo à maneira
como o inclusivista cristão pensa que a morte e a ressurreição de Jesus tornam a
salvação possível para todos, desde que vivam o tipo certo de vida e realmente
busquem Deus. Não importa se acreditam no cristianismo ou se acreditam que
Jesus viveu, mas não ressuscitou dos mortos, ou o que quer que seja. O que importa
é que, metafisicamente, Jesus ressuscitou dos mortos, e esse ato tornou a salvação
possível para todos, independentemente de sua religião específica.
O inclusivismo é atrativo para a mente moderna, porque parece pre- servar os
pontos fortes das outras visões, evitando as suas fragilidades, mas não está isento
de críticos. Os exclusivistas o criticam por uma série de motivos. Primeiro, rejeitam
a ideia de que não podemos investigar quais as religiões do mundo provavelmente
sejam verdadeiras; segundo, consideram aviltante à integridade filosófica de uma
religião afirmar que não há necessidade de conexão real ou essencial entre a
doutrina e as crenças teológicas da religião e as suas crenças morais. O
inclusivismo, afirmam, é dificultado pelo mesmo problema do pluralismo – dizer
que, na maioria das religiões mundiais (exceto a correta), as crenças teológi- cas e
doutrinárias são falsas, mas as crenças morais podem não ser par- ticularmente
afetadas. Mas essa visão avilta as crenças de uma pessoa, o exclusivista
argumenta, do ponto de vista lógico. Em particular, deve levar inevitavelmente a um
enfraquecimento da posição geral da religião no debate com o secularismo,
principalmente na arena política. Os pluralistas também não são entusiastas do
inclusivismo, porque têm problemas com a ideia de que podemos descobrir qual
religião é verdadeira, o que precisamos fazer se quisermos ser inclusivistas,
embora reconheçam o valor pragmático do inclusivismo, no sentido de que, como
o inclusivista acredita que a salvação é possível por meio de muitas religiões, o
debate real sobre qual religião do mundo é verdadeira é bem menos premente e,
portanto, bem menos polêmico.
Outra dificuldade para o inclusivista é que, para dizer que as pessoas de outras
religiões podem ser salvas, deve-se apresentar alguma visão do que é a salvação
para que a visão inclusivista tenha qualquer conteúdo e não continue a ser uma
abstração vaga e impraticável. Isso vai envolver tanto uma visão teológica de
salvação quanto alguma visão da vida moral correta que é necessária para a
salvação. Também exigirá um argumento de que não é preciso acreditar na visão
teológica para ser salvo, que viver moralmente é suficiente, e que Deus é revelado
de forma imperfeita em várias tradições religiosas. Mesmo se não pudermos chegar
a um acordo sobre a visão teológica e, como vimos, mesmo que o debate teológico
seja menos urgente, a visão sobre a maneira correta de viver (o código moral
correto) parece ser urgente, caso contrário, cairíamos rapidamente no relativismo
moral.
Isso significa que o inclusivista deve ter uma visão bastante detalha- da da maneira
moral correta de se viver, e o problema disso, apontam os críticos, é que parece
exigir que tenhamos alguma perspectiva sobre qual visão teológica específica da
salvação é a verdadeira, porque certamente a visão moral é aquela que devemos
acreditar fazer parte do plano de Deus para a humanidade. Portanto, a fim de saber
qual é a visão moral correta, também precisamos saber qual a visão teológica
correta? Talvez uma ma- neira de contornar esse problema seja adotar uma
abordagem baseada no direito natural, em que tentamos formular, em bases
filosóficas independentes (sem possibilidade de recurso a uma tradição teológica
específica), uma visão sobre a maneira objetivamente certa de viver. Pelo menos
dessa maneira, todas as religiões poderiam se comunicar entre si em relação a essa
questão crucial. Em síntese, a visão correta da forma certa de viver é uma questão
importante para a posição inclusivista, e pode não ser possível apresentar essa
visão sem antes resolver a questão de qual religião mundial é verdadeira, o que
seria um golpe fatal ao projeto inclusivista.
A questão do estatuto do trabalho missionário é interessante para os inclusivistas,
e eles a têm enfrentado no mundo moderno. Por um lado, o trabalho missionário
não parece ser tão importante, pois pessoas de todas as religiões podem ser salvas;
e por outro lado, certamente se desejaria que as pessoas se convertessem e
acreditassem na verdadeira religião, se possível, e esse fato ainda pode levar o
inclusivista a apoiar o trabalho missionário. A tendência geral dos inclusivistas tem
sido de minimizar o trabalho missionário e salientar os pontos positivos de outras
religiões.

CONCLUSÃO

Concluindo, não nos esqueçamos de que todas as visões que abordamos neste
capítulo exigem algum trabalho missionário, porque os seus defensores precisam
converter os outros ao que consideram a posição correta sobre a questão da
diversidade religiosa, e, como vimos, essa tarefa parece exigir que se saiba o que é
verdade em matéria religiosa, pelo menos em algum nível. Esta última questão
ilustra mais uma vez por que o problema do pluralismo religioso é um assunto
fascinante, mas complexo, para as várias religiões do mundo moderno.

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