Psicologia
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A maioria das pessoas que estão lendo este livro provavelmente é reli- giosa;
algumas, sem dúvida, são ateias ou secularistas. Há uma pergunta sobre a qual eu
gostaria que você pensasse nesta parte do livro – seja você religioso ou ateu – e da
qual, por vezes, descuidamos em função das pressões da vida moderna: a sua visão
de mundo é razoável? A visão de mundo com que você e, talvez, sua família
concordam, ou com base na qual você constrói sua família – essa visão de mundo,
em suma, pela qual você regula suas crenças, valores e comportamentos –, é uma
visão de mundo razoável? E, igualmente importante, como você a defenderia ou
argumentaria em favor dela se fosse provocado a fazê-lo por alguém que a
rejeitasse por considerá-la irracional?
Essa é uma pergunta com que os membros de todas as visões de mundo devem se
preocupar, e também é uma questão que os crentes religiosos, em particular,
muitas vezes tendem a menosprezar ou mesmo ignorar. Estes, às vezes, têm-se
preocupado mais com vivenciar e promover sua visão de mundo do que refletir
sobre a razoabilidade dela ou sobre as diferenças entre ela e as outras visões de
mundo em termos de racionalidade geral. Mas os filósofos da religião geralmente
insistem em que a pessoa deve se preocupar com a racionalidade de sua visão de
mundo, que esse assunto é de grande importância, principalmente se a pessoa vive
de acordo com essa visão e propõe que os outros também o façam, pelo menos em
parte. Não é necessário, é claro, que cada membro de determinada religião seja
capaz de defender a sua visão de mundo com sofistica- ção filosófica ou teológica.
Essa seria uma expectativa fora da realidade.
A maioria das pessoas não tem tempo, formação nem segurança para assumir essa
tarefa, mas é necessário que alguém em uma determinada tradição religiosa –
filósofos, intelectuais e outras pessoas interessadas – seja capaz de fazer alguma
tentativa de explicar por que aquela visão de mundo específica é razoável.
Eu gostaria de ilustrar essa questão com o exemplo da Abominable Snowman
Worship Society, uma sociedade que presta culto ao Abominável Homem das
Neves. Os membros dessa sociedade querem que você seja membro do grupo e
podem lhe fazer condições especiais, porque, seguindo as boas práticas
empresariais do Ocidente, você veio na semana de recrutamento, na qual há uma
oferta especial! Contudo, ao participar de sua primeira reunião (exploratória) na
Sociedade, você provavelmente irá querer saber por que os membros adoram o
Abominável Homem das Neves. Mas suponha que ninguém no grupo consiga
responder a essa pergunta, que ninguém jamais tenha pensado nela de verdade,
que ninguém esteja mesmo interessado nela e que, para ser bem sincero, essas
pessoas não querem ter no grupo qualquer pessoa que levante essa pergunta! Tudo
isso iria deixá-lo questionando se a crença e o culto ao Abominável Homem das
Neves são racionais, e você provavelmente recusaria o con- vite para participar. O
mesmo acontece, eu afirmo, com qualquer visão de mundo. A questão da
racionalidade de uma visão é essencial para saber se as pessoas devem aceitá-la,
praticá-la, considerá-la respeitável em comparação com outras, e se podemos
contribuir aos debates públicos com base nessa visão de mundo. É necessário que
alguém de cada visão de mundo se preocupe com a racionalidade dessa visão e
preste muita atenção às razões e provas para sustentá-la, mesmo que a maioria
não o faça. E aqueles que prestam atenção a essa questão podem ajudar a formular
e defender a visão para benefício de outras pessoas que a apoiem, bem como para
quem é de fora.
UM POUCO DE TERMINOLOGIA
Antes de avançar nas principais questões do livro, será útil esclarecer alguns
termos e conceitos fundamentais, para que tenhamos claro do que se está falando.
Minha abordagem à tarefa de explorar os conceitos fundamentais da crença
religiosa se baseia em um exame da questão recém-mencionada sobre se a visão
religiosa do mundo é razoável ou não. Mas o que queremos dizer com visão religiosa
do mundo? Nossa resposta a essa pergunta também servirá como nossa definição
de religião. A religião já foi definida de muitas formas, e muitas dessas definições
se sobrepõem, como era de se esperar. Alguns pensadores oferecem uma definição
ampla; outros, uma mais restrita. O teólogo norte-americano Vergilius Ferm definiu
a religião da seguinte maneira: “Ser religioso é realizar, de alguma forma [...] um
ajuste vital a tudo a que se reage ou se considera implícita ou explicitamente digno
de preocupação séria e mais profunda”. O filósofo norte-americano William James
chamou a atenção para uma dimensão moral quando definiu a religião como “a
crença de que há uma ordem não vista, e que nosso bem supremo reside em se
ajustar harmoniosamente a ela”. Ninian Smart apresenta uma definição mais
elaborada: a religião é “um conjunto de rituais institucionalizados, com tradição, e
que expressam e/ou evocam sentimentos sacros dirigidos a um foco divino ou
transdivino, visto no contexto do ambiente fenomenológico humano e, pelo menos,
parcialmente descrito por mitos ou por mitos e doutrinas”.1 É óbvio que é difícil
obter uma definição que funcione, que capte todos os aspectos importantes que
são exclusivos da visão de mundo religiosa, mas essas são definições interessantes
que nos dão uma noção das características de que precisamos para termos uma
ideia geral funcional sobre o que é a religião.
Nossa definição só precisa incluir os pontos principais sobre a visão religiosa da
realidade; não precisamos de uma definição exaustiva que cubra todos os tipos de
religião e atividade religiosa. Assim, a religião pode ser entendida como um sistema
(geralmente) complexo de crenças (sobre a realidade, a pessoa humana e a
moralidade) que regulam a vida (influenciam o modo como vivemos), que são
expressas em certos tipos de rituais e práticas, e que se baseiam, em grande parte,
na crença em uma realidade sagrada e transcendente (invisível). Geralmente, há
uma crença em Deus ou pelo menos em um Ser Supremo de algum tipo, que criou
toda a vida, e também uma crença em vida após a morte que é significativamente
melhor do que esta e que muitas vezes é nosso destino final. As religiões também
costumam defender que os seres humanos consistem em corpo e alma, e que duas
das nossas qualidades mais importantes são o nosso intelecto (capacidade de
raciocínio) e nosso livre-arbítrio (somos agentes morais). A maioria das religiões
também aceita que é possível se comunicar com Deus por meio da oração. Esse é
o sentido que darei à palavra religião, ou a visão religiosa de mundo, neste livro.
Meu objetivo principal é discutir as questões que normalmente surgem sobre a
razoabilidade dessa forma de encarar a realidade. Não estou tão interessado em
investigar diferenças doutrinárias ou morais específicas entre as várias
denominações religiosas, embora discuta algumas de- las no capítulo sobre
pluralismo religioso. Porém, em termos gerais, quero investigar algumas questões
filosóficas básicas sobre a crença religiosa: Deus existe? Qual é a natureza de
Deus? Por que Deus permite o mal? O que é uma experiência religiosa? A religião e
a ciência são compatíveis ou estão essencialmente em conflito (como alguns
acreditam)? A teoria científica da evolução é uma evidência contrária à existência
de Deus? O que devemos entender do fato de existirem muitas religiões diferentes
no mundo? Essas são as principais perguntas que os filósofos fazem sobre religião.
Depois de se ter formulado uma abordagem para respondê-las, pode-se começar
a pensar filosoficamente sobre questões específicas de doutrina e as várias
diferenças e divergências entre as denominações religiosas específicas. Mas esta
última não é tarefa deste livro.
Abordarei essas questões principalmente a partir do ponto de vista do teísmo
clássico. O teísmo clássico é a visão tradicional de Deus encontrada na maioria das
religiões ocidentais e também em algumas orientais. Remonta, pelo menos, a
Platão e Aristóteles e era totalmente dominante na Idade Média, chegando até a
época moderna. Ele sustenta que Deus existe como ser transcendente, acima e
além do mundo, que é onisciente, onipotente e onibenevolente, que criou o mundo
e toda a vida segundo um plano determinado, que tudo o que existe depende de
Deus e que ele não pode mudar, entre outras crenças importantes. As religiões do
judaísmo, do cristianismo e do islamismo, em geral, têm essa visão de Deus. O
teísmo clássico é monoteísta, o que significa que seus proponentes sustentam que
só existe um Deus. Essa tem sido a visão predominante na cultura ocidental, com
o politeísmo – a visão de que existem vários deuses – sendo mais comum no
Oriente. Em nossas discussões neste livro, vamos abordar inicialmente as várias
questões que estamos analisando – como a existência ou não de Deus – do ponto
de vista do teísmo e do monoteísmo clássicos, mas também vamos examinar
outras abordagens (principalmente no capítulo sobre a natureza de Deus, no qual
exploraremos detalhadamente vários pontos de vista sobre Deus). Como
mencionado, eu gostaria de enfatizar perguntas mais gerais que os filósofos fazem
so- bre religião, sobretudo as principais: Deus existe? A crença religiosa, em geral,
é uma visão racional de mundo? Os filósofos estão mais interessa- dos em
perguntar se a visão religiosa do mundo em geral é razoável ou não, em vez de
examinar controvérsias doutrinárias específicas entre as religiões (embora isso
venha mudando um pouco nos últimos tempos).
Abordarei as questões do livro principalmente a partir de uma perspectiva
ocidental, já que é a perspectiva com a qual estou mais familiarizado e me sinto
mais confortável, e provavelmente é o ponto de vista da maioria dos leitores. Não
obstante, a perspectiva oriental, principalmente no que é diferente e contrastante,
não será ignorada, e vou me referir a ela de tempos em tempos.
Ao fazermos perguntas destinadas a examinar a visão religiosa de mundo, também
será útil ter em mente, de modo geral, esta visão que hoje é mais crítica da crença
religiosa, a visão de mundo do secularismo. É verdade que o secularismo
atualmente é uma visão de mundo relevante na cultura moderna e um fator
importante em questões sociais, morais e políticas, bem como no debate cultural
que define o futuro da sociedade. O secularismo é a visão segundo a qual toda a
realidade é de natureza física e consiste em alguma configuração da matéria e da
energia, e que a ciência é a chave para compreender essa realidade (às vezes, essa
visão também é chamada de naturalismo pelos filósofos). Na segunda metade do
século XX, essa visão passou a ser apresentada como uma tese positiva, ou seja, o
secularista não começa dizendo que Deus não existe, e sim fazendo essas
afirmações positivas sobre a realidade. A visão de que Deus, alma e vida após a
morte não existem é consequência dessas afirmações, ou é concluída a partir
delas. Os secularistas afirmam que o universo e toda a vida na Terra, inclusive a vida
humana, são ocorrências aleatórias. Eles também acreditam que precisamos de
explicações da moralidade e da política, e que a visão de mundo secularista deve
ser a principal influência sobre a sociedade ao avançarmos no século XXI. Para
efeitos do debate geral entre religião e secularismo, também precisamos
considerar o secularismo como uma maneira geral de ver o mundo, ao mesmo
tempo que reconhecemos que existem muitos tipos diferentes de secularismo,
cada um com seus próprios defensores, temas e ênfases.
Ao identificar de antemão a visão de mundo secularista, quero cha- mar a atenção
para a questão central de que muitos dos temas da filosofia da religião devem ser
entendidos atualmente no contexto de um debate entre as visões de mundo
religiosa e secularista. Isso porque, se a visão religiosa acaba por não ser verdadeira
ou não ser razoável, alguma outra visão deve ser verdadeira ou mais razoável, e
geralmente se supõe que seja a visão secularista. Assim, qualquer crítica feita à
visão de mundo religiosa de hoje deve ser considerada cada vez mais como uma
afirmação de que a visão secularista é a correta. Isso significa que precisamos levar
em conta as alegações e os argumentos secularistas mesmo quan-
do debatemos a racionalidade da crença religiosa. Essa também é uma questão
crucial quando estamos examinando a racionalidade da nossa visão de mundo e
suas diferenças para com outras visões de mundo que estão competindo com as
nossas no âmbito político em uma sociedade pluralista.
Antes de concluir esta parte, há vários conceitos cujo esclarecimento seria útil. O
termo teísta é usado por muitos filósofos da religião para descrever alguém que
acredita em Deus (da palavra grega para Deus, theos). A filosofia da religião pode
ser definida como a tentativa feita por filósofos de investigar a racionalidade das
afirmações religiosas básicas. Geralmente, mas nem sempre, os filósofos da
religião têm crenças religiosas. É por isso que a filosofia da religião difere da
apologética, que pode ser entendida como a tentativa de defender as afirmações
de uma determinada religião, incluindo as afirmações doutrinárias, contra obje-
ções intelectuais apresentadas por pessoas de fora. É claro que há alguma
sobreposição, mas uma maneira de mantê-las distintas é lembrar que um filósofo
da religião pode ser ateu, mas o apologista de uma determinada religião
normalmente não o seria. Tampouco filosofia da religião é o mesmo que teologia. A
teologia é uma disciplina que geralmente pressupõe a razoabilidade de uma
determinada tradição religiosa e, talvez, a confiabilidade de alguns textos
religiosos. Os teólogos evangélicos, por exemplo, pressuporiam que a visão de
mundo cristã é razoável e que a Bíblia é um texto de autoridade religiosa, e
trabalhariam dentro desse quadro. Já a filosofia da religião tenta não considerar
coisa alguma como inquestionável no início da investigação (principalmente o que
for controverso) e procura abordar as questões fundamentais da religião a partir do
zero, por assim dizer, para ver o que se pode alcançar ao se refletir sobre essas
questões somente pelo raciocínio filosófico.
Também é interessante distinguir as várias formas de ateísmo. Meu antigo professor
de literatura costumava fazer uma distinção entre o ateu de igreja e o ateu de Deus.
O ateu em relação à igreja é uma pessoa que, quando se pergunta, diz que não
acredita em Deus, mas, examinando-o mais de perto verifica-se que seu verdadeiro
problema é com sua igreja. Ele pode expressar isso dizendo coisas como “bom, eu
não gosto do código moral da minha religião”, “eu não suporto os bispos” ou “não
fale de religião comigo”. Ele não tem bem clara, em sua própria mente, a distin- ção
entre rejeitar a crença em Deus e rejeitar ou estar insatisfeito com a sua própria
denominação religiosa – uma distinção que todos reconhecemos em teoria, mas
que costumamos esquecer quando se trata de prática religiosa. Esse tipo de ateu
deve ser diferenciado do ateu de Deus. O ateu de Deus é alguém que realmente não
acredita em Deus, que acha que Deus não existe. Ele não está cometendo o erro de
confundir insatisfação com sua igreja específica com uma descrença em Deus. É
provável que muitas pessoas que soam como ateias de Deus sejam realmente
ateias de igreja, mesmo que não se deem conta (principalmente as que tenham-se
afastado de sua religião de nascimento). Nossa preocupação neste livro não é com
o ateísmo em relação à igreja, mas com o ateísmo em relação a Deus.
Isso nos leva a uma distinção importante entre ateísmo negativo e ateísmo positivo,
a qual se coaduna com a discussão feita anteriormen- te sobre laicidade e
naturalismo. Até o século XX, o ateísmo era quase sempre apresentado como uma
tese ou posição negativa. Era negativa de três maneiras. Primeiro, o ateu definia sua
visão em termos do que ela não era, em vez de em termos de o que era. Assim, no
passado, ao ser questionado sobre em que acreditava, o ateu poderia dizer que
achava que Deus não existia, que rejeitava a moral religiosa ou que não seguia os
ensinamentos de sua religião – todas afirmações sobre aquilo em que não acredita,
e não sobre suas crenças. Em segundo lugar, muitas vezes ele se considerava
negativamente do ponto de vista psicológico, porque costumava estar em minoria
e, talvez, não pudesse evitar ver sua identi- dade em termos do que não era (um
crente religioso), e não em termos do que era (ateu)! Terceiro – e este é o mais
importante –, o ateu também defendia o seu ponto de vista de forma negativa,
atacando a religião e os argumentos para a fé religiosa, e o fazia em vez de
apresentar argumentos positivos em favor do ateísmo.
No entanto, no século XX, tudo isso mudou, o que marca a transição geral do
ateísmo negativo ao ateísmo positivo (ou secularismo). Os ateus perceberam que
era necessária uma abordagem mais cultivada. Originalmente, eles eram como
cientistas que defendiam a teoria do Big Bang sobre a origem do universo
constantemente atacando a teoria do estado estacionário. Com o tempo, esses
cientistas tiveram que decidir a respeito daquilo em que acreditavam com relação
à origem do universo (no sentido positivo) e começar a defender a teoria do Big Bang
com provas positivas, e não apenas atacando seus rivais. Hoje, é muito mais
provável que um secularista apresente o secularismo como uma tese positiva que
identifica aquilo em que ele acredita, e não aquilo em que não acredita. Como
mencionado, os secularistas dirão que acreditam que a vida humana seja resultado
de um processo puramente aleatório, naturalista (evolução), e que toda realidade
seja física. E, muito importante, a sua defesa dessas reivindicações não consiste
atualmente apenas em atacar os argumentos em defesa da crença religiosa: eles
tentam oferecer argumentos positivos que justifiquem essa opinião. Onde vão
obter esses argumentos? Como muitos pensadores que lutam para formular uma
posição, recorrerão ao que estiver disponível no momento para ajudá-los com seus
argumentos, e muitos deles recorreram à ciência moderna, principalmen- te
evolução, genética e neurologia. Tudo isso gerou a impressão, em grande parte da
cultura popular, de que a ciência moderna está realmente do lado do ateísmo. Isso
não é verdade e é uma questão que retomaremos em várias das discussões a
seguir.
FÉ E RAZÃO
Nos Estados Unidos, mas nem tanto em outros países, é muito comum usar
o termo “fé” para descrever a crença religiosa, mas ele pode ser muito enganador.
A palavra “fé” tem conotações inadequadas, principal- mente hoje, e pode ser
usada para configurar uma distinção um pouco artificial entre fé, de um lado, e
razão, de outro. O termo costuma trazer consigo a conotação de que as crenças
religiosas estão fora da razão ou que os crentes religiosos não estão interessados
na racionalidade de seus pontos de vista, ou, pior do que tudo, que as crenças
religiosas não são sequer razoáveis. É assim que os secularistas podem usar o
termo muitas vezes, mas ele também pode ser usado dessa forma pelos próprios
crentes religiosos.
Do ponto de vista da filosofia da religião, o sentido mais importante do termo é o
sentido cognitivo ou propositivo, que se refere a ter uma crença cuja evidência é
menos de 100% certa ou definitiva. As crenças religiosas envolvem proposições
sobre Deus, sobre a relação de Deus com o mundo e os seres humanos, sobre
moralidade, entre muitas outras. O crente religioso não pode provar que essas
proposições são verdadeiras, no sentido de oferecer uma prova científica ou de
apresentar provas decisivas para elas, mas pode, pelo menos, tentar mostrar que
acreditar nelas é racional. Esse é o uso mais adequado do termo “fé” em filosofia
da religião e indica a melhor compreensão da relação entre fé e razão. Um crente
religioso baseia muitas coisas na fé, mas espera que seja uma fé racional (e não
uma fé irracional), e o trabalho da filosofia da religião, entre outras coisas, é tentar
investigar a racionalidade da crença religiosa.
A partir dessa compreensão do termo “fé”, todas as visões de mun- do – religiosas
ou seculares – envolvem fé nesse sentido cognitivo. Ou seja, todas as visões de
mundo têm crenças sobre a natureza da realidade, a natureza da pessoa humana e
a natureza da moralidade, com as quais os adeptos da visão de mundo se
comprometem, mas que não podem provar decisivamente. Embora se possam
sustentar algumas dessas crenças com argumentos e provas racionais, ainda é
necessário se comprometer com elas, uma vez que quaisquer argumentos que
tenhamos ficarão aquém da prova, em função do assunto envolvido.
O tema das visões de mundo, que envolve os três assuntos mencionados, não
admite prova científica. Isso vale para todas as visões de mundo, as secularistas e
as religiosas. Então, se alguém aceita várias crenças sobre a natureza da realidade,
da pessoa humana ou da moralidade, essa aceitação implica um compromisso
com essas crenças: um movimento da vontade, bem como do intelecto. Então, na
verdade, um crente religioso e um secularista estão no mesmo barco, nesse sentido
– uma questão que é negligenciada com frequência. Somos, muitas vezes,
inclinados simples- mente a aceitar como verdadeira, sem dar muita atenção, a
ideia de que apenas a crença religiosa envolve fé, e não o secularismo. Mas agora
que o secularismo é uma visão de mundo positiva em si e um fator de grande valor
cultural a se potencializar, já não se deve ignorar que ele é uma vi- são de mundo
com muitas crenças controversas que são objeto de debate polêmico e que seus
adeptos aceitam muitas dessas crenças, pelo menos parcialmente, com base em
fé. Na verdade, talvez precisemos de uma definição mais ampla de filosofia da
religião para o mundo moderno. Pode já não ser apropriado vê-la simplesmente
como uma subdisciplina que investiga apenas a ra- cionalidade da crença religiosa.
Isso porque há um sentido no qual investigar essa questão atualmente também
significa, automaticamente, investigar a racionalidade do secularismo. Uma vez
que se reconheça que o secularismo é hoje uma visão de mundo positiva, no
sentido descrito anteriormente, com suas teses e argumentos positivos, isso
parece mudar nossa compreensão do que está envolvido na filosofia da religião. Ao
se questionar, por exemplo, se é racional acreditar em Deus, também se está
automaticamente perguntando se é racional não acreditar em Deus – o que
significa simplesmente perguntar se é racional acreditar que toda a realidade é
física, uma crença fundamental do secularismo. Isso confirma o argumento que
apresentei antes de que a maioria das questões fascinantes de hoje deve ser
discutida contra o pano de fundo do debate sobre a racionalidade do secularismo
versus a racionalidade da crença religiosa, e não apenas em relação a saber se o
crente religioso é razoável ou não!
O filósofo medieval Santo Anselmo disse que sua motivação ao investigar a
racionalidade da crença religiosa era fides quaerens intellectum, a fé buscando o
entendimento. Anselmo e outros filósofos reconheceram que, embora exista um
grau de fé envolvido no compromisso com as reivindicações religiosas, a
razoabilidade dessas afirmações ainda é impor- tante, e o crente inteligente e de
visão filosófica deve abordar o assunto. Esses filósofos não estavam satisfeitos
com manter o ponto de vista de que, como suas crenças religiosas eram uma
questão de fé, não havia ne- cessidade nem espaço para uma discussão racional a
respeito delas. Eles estavam muito comprometidos com a disciplina da filosofia
como forma de questionar, esclarecer e sustentar as principais crenças e conceitos
da visão de mundo religiosa. E, assim, pensadores cristãos como São Tomás de
Aquino estenderam essa maneira de pensar para incluir o estudo dos pontos de
vista de estudiosos de outras culturas, muitos dos quais não eram cristãos, bem
como o estudo da ciência. Os filósofos medievais e, mais tarde, religiosos, ficaram
muito impressionados com o argumento de Santo Agostinho de que “toda a
verdade é uma só”, a visão de que muitas áreas de estudo, incluindo a ciência,
podem descobrir verdades sobre diversas áreas da vida e que a crença religiosa,
para ser racionalmente fundamentada, deve procurar receber e acomodar essas
verdades. Se uma afirmação for estabelecida como verdade em uma disciplina,
Agostinho disse, deve ser verdadeira em todas as disciplinas. Essa visão define a
abordagem da filosofia da religião hoje e será assumida neste livro.
Assim, com esses pontos introdutórios em mente, trabalharemos muitas das
questões estimulantes que são objeto da filosofia da religião. Faremos isso na
companhia da obra de pensadores famosos, tanto do passado quanto do presente,
que contribuíram para a nossa compreensão desses assuntos. Meu objetivo é
familiarizar os leitores com as principais questões e as principais linhas de debate
relacionadas vários aspectos, de uma forma que seja equilibrada, justa e
historicamente informada. Meus próprios pontos de vista – sou teísta de tradição
católica – virão à tona ocasionalmente, é claro, mas meu objetivo é apresentar os
argumentos mais fortes em ambos os lados do debate, de forma que o leitor tenha
uma compreensão global do tema, seja desafiado pelas questões filosóficas e
capaz de fazer julgamentos informados. O livro se destina ao estudante e ao leitor
em geral que estejam interessados em aprender mais sobre o que os filósofos têm
a dizer sobre religião. Não se pressupõe nem se exige qualquer conhecimento
prévio de filosofia. Também evitei usar vocabulário filosófico ou jargão técnico
especializado. Outras leituras podem ser encontradas nas notas no final do livro e
nas referências. O que eu espero é que os leitores, principalmente os estudantes,
sejam estimulados, durante esta jornada, a pensar por si mesmos sobre as grandes
questões da crença religiosa e sejam inspirados a buscar uma abordagem
filosoficamente rigorosa e historicamente informada. Espero que os leitores
também sejam tomados pelo fascínio que dá origem às questões filosóficas e às
religiosas, um fascínio sentido por muitos que se depararam com perguntas que
talvez sejam as mais interessantes que existem.
Várias pessoas me ajudaram enquanto eu trabalhava neste livro. Sou muito grato,
em particular, a Brian Davies, Edward Furton, Douglas Geivett e Curtis Hancock.
Agradeço também à equipe da Continuum Books e aos editores da série Conceitos-
chave em filosofia, por seu apoio e esforço. Por fim, gostaria de agradecer, acima
de tudo, à minha família, por toda a sua ajuda e todo o seu incentivo enquanto eu
trabalhava neste projeto. Sem o seu grande apoio e seu companheirismo, este livro
não teria sido possível.
A grande diversidade de religiões que existe no mundo dá origem ao que, na filosofia
da religião, costuma ser chamado de problema do pluralismo religioso. A existência
de ampla diversidade religiosa em várias culturas inevitavelmente nos obriga a
perguntar quais são as implicações dessa diversidade para a verdade da religião em
geral. Será que o fato de haver uma variedade de religiões no mundo significa que,
de alguma forma, uma religião é tão legítima quanto qualquer outra? Ou significa
que nenhuma delas pode pretender ser detentora da verdade? A diversidade
religiosa prejudica a confiança em nossa própria religião? Na verdade, na era
moderna, a presença de pontos de vista diferentes sobre ques- tões importantes da
vida gerou relativismo, até mesmo ceticismo, entre muitas pessoas, em termos de
descoberta da verdade sobre as questões fundamentais de moralidade, direito,
política e sociedade. Portanto, não deve realmente surpreender que esse
relativismo e esse ceticismo também tenham alguma influência sobre a religião.
É preciso ter em mente as muitas religiões do mundo quando se pen- sa sobre essas
questões. Embora o nosso foco neste livro tenha estado no cristianismo, também
devemos pensar sobre o islamismo, o judaísmo, o hinduísmo, o budismo, o
taoísmo, o confucionismo e assim por diante. É simplesmente impossível
ignorarmos outras religiões no clima cultural de hoje. As comunicações globais e a
facilidade de viajar colocaram as principais religiões mais em contato do que nunca
na história, e só esse fato já nos chama a enfrentar a questão do pluralismo
religioso. Hoje, é mais comum as pessoas de uma religião conhecerem e, na
verdade, trabalharem com pessoas de diferentes religiões. Em geral, os crentes
religiosos estão cada vez mais interessados e respeitosos para com outras
religiões. Contudo, é claro que há diferenças bastante significativas entre as reli-
giões, em muitos assuntos: a natureza de Deus ou da realidade última, a descrição
correta da revelação e dos textos sagrados, questões morais e, principalmente,
doutrinárias, como a Encarnação e a Ressurreição, que os cristãos afirmam, por
exemplo, mas os muçulmanos negam.
Não nos esqueçamos também de que as questões colocadas pelo plu- ralismo
precisam ser enfrentadas por membros de todas as religiões, e não são apenas
preocupações para os cristãos. Seguidores de cada visão religiosa de mundo
devem fazer perguntas críticas não apenas sobre as verdadeiras afirmações de sua
própria visão de mundo, mas também sobre como veem as afirmações de verdade
de outras religiões. Esse é um assunto de vital importância porque, embora estejam
de acordo em algumas questões, as religiões também discordam em relação a
muitas coisas. Às vezes, essas divergências podem ser graves e levar a discussões
sobre o correto entendimento da salvação e do caminho até ela. Na verdade, talvez
a salvação seja o conceito fundamental na discussão sobre pluralismo religioso. O
conceito de salvação deve ser entendido em um sentido bastante amplo, para se
referir ao caminho correto à vida eterna e à felicidade (se houver). Essa definição é
preferível em relação à mais estrita, que pode se concentrar em como o caminho à
salvação foi apresentado em uma determinada religião (por exemplo, pela morte e
ressurreição de Jesus no cristianismo). Embora o entendimento estrito seja muito
impor- tante – e o retomaremos mais tarde –, a questão mais ampla nos permite
pensar sobre o tema geral da salvação e como ele se aplica a todas as religiões do
mundo. Uma das questões centrais que dá origem ao debate acirrado entre
religiões é se os membros da religião A acreditam que os membros da religião B
podem ser salvos e vice-versa. E no que a religião C acredita em relação aos
membros de A e B? Existe apenas uma religião verdadeira, no sentido de que o
caminho para a salvação está disponível apenas em uma religião, ou a salvação
pode ser alcançada em muitas re- ligiões diferentes? Ou a pessoa responderia a
esse problema dizendo que a salvação não existe? Essas são as perguntas que
iremos explorar neste capítulo.1
Antes de entrar nessas questões, é interessante especular sobre se há lugar para a
visão de mundo secularista nesse debate. Como vimos, o problema do pluralismo
religioso sempre foi entendido na filosofia da religião como um problema
relacionado à maneira de entender e responder
ao fato de que há muitas religiões diferentes no mundo. No entanto, como sugeri na
Introdução deste livro, se entendemos que o secularismo é uma visão de mundo
importante em si mesma no mundo moderno, pode ser melhor ampliar a nossa
discussão de pelo menos alguns temas religiosos para incluir a posição secularista
em relação a eles. Na verdade, como eu disse anteriormente, muitas questões na
atual filosofia da religião se resumem a um debate entre visões do mundo religiosas
e secularistas, mas não é fácil ver como as questões levantadas pelo pluralismo
religioso poderiam facilmente ser ampliadas para também incluir as perspectivas
seculares. Isso porque a questão da salvação é central ao tema do pluralismo
religioso, e os secularistas afirmam que não existe Deus, nem vida após a morte,
nem alma e, portanto, tampouco salvação. Mas suponha- mos que, a fim de levar
mais a fundo esse experimento do pensamento, em vez de apelar à salvação como
conceito fundamental levantado pelo debate sobre diversidade (ou em vez de
compreendê-la de uma forma especificamente religiosa), recorramos ao conceito
de verdade última ou o caminho correto para a felicidade, ou algo nessa linha.
Sendo assim, poderíamos perguntar, em relação à diversidade de visões de mundo
– agora incluindo o secularismo –, se o secularista acredita que a sua visão de
mundo é a verdade última ou oferece o caminho correto à felicidade (seja qual for
a visão de felicidade que os secularistas desejem defender). Ou poderíamos
perguntar como um secularista responderia à questão da verdade no que diz
respeito à diversidade de visões de mundo em geral (religiosas e secularistas). Isso
seria o equivalente a perguntar, para uma religião particular, se os seus membros
sustentam que ela, sozinha, contém a verdade última ou o verdadeiro caminho à
felicidade. Embora continuemos a tratar o problema do pluralismo religioso neste
capítulo apenas como um problema para as religiões, pode ser útil não perder de
vista como as perguntas deste capítulo se aplicariam ao secularismo. Isso é
importante porque, uma vez que o secularismo é um impor- tante fator cultural em
si, hoje, principalmente em alguns países, já não é apropriado fazer perguntas sobre
como devemos lidar com a diversidade de visões de mundo no mundo moderno e
não considerar o secularismo como uma dessas visões. Ou, em outras palavras:
não cabe mais restringir essas perguntas aos crentes religiosos; devemos agora
fazê-las a todo aquele que tenha, pratique ou defenda uma visão de mundo.
Antes de seguir examinando as três principais respostas ao problema da
diversidade religiosa, é necessário levantar algumas questões preliminares. Em
primeiro lugar, em nossas reflexões, temos de nos concentrar
claramente na questão das reais afirmações de verdade de nossa própria religião.
Isso significa que é preciso pensar com cuidado sobre o que a nossa religião está
dizendo em relação a Deus, à realidade, à natureza dos seres humanos, à nossa
relação com Deus e à moralidade. Aquilo que a sua religião afirma é realmente
assim, é objetivamente verdadeiro em relação a esses assuntos (e não apenas uma
questão de convenção ou opinião)? Esses tipos de afirmações são frequentemente
chamados pelos filósofos de afirmações metafísicas ou ontológicas. É pelo fato de
as afirmações metafísicas de várias religiões costumarem ser bastante diferentes
que podemos dizer que algumas religiões se contradizem; por exemplo, os cristãos
acreditam que, quando morremos, provavelmente estabelecemos imediatamente
uma relação pessoal com Deus, ao passo que os hindus afirmam que
reencarnamos. Diante disso, essas afirmações não podem ser, ambas,
verdadeiras.
Em segundo lugar, o membro de uma religião também deve perguntar se as
afirmações metafísicas de sua religião são racionais. Como já enfatizei ao longo
deste livro, a racionalidade da visão de mundo que se tem é muito importante. Na
verdade, podemos pensar no problema do pluralismo religioso em termos de três
perguntas: 1) Quais afirmações metafísicas eu sustento em minha religião? 2)
Essas afirmações são racionais? 3) Qual é a minha resposta a outras religiões que
fazem afirmações metafísicas diferentes? Eu considero que essas outras
afirmações são falsas ou põem em questão as minhas próprias crenças religiosas,
que todas elas podem, de alguma forma, ser verdadeiras ou que nenhuma deve ser
verdadeira?
Terceiro, também precisamos ter em mente a diferença entre as afir- mações ou
crenças teóricas de uma religião e os efeitos práticos delas na vida de um crente.
Os argumentos teóricos se referem às crenças de uma pessoa religiosa sobre vários
tópicos (teológicos, doutrinários, morais e assim por diante); o foco nessas
afirmações traz à tona a questão da verdade dessas crenças, a questão de quais
são as crenças corretas nas quais se acreditar. O efeito prático das crenças na vida
do crente religioso se refere a como ele realmente vivencia a sua religião na sua vida
comum, cotidiana. Esse tema levanta a pergunta de qual é a maneira correta de se
viver moralmente, uma preocupação fundamental da religião em geral. A distinção
entre as afirmações teóricas de uma religião e o efeito prá- tico delas na vida do
crente é importante, porque, às vezes, embora os argumentos teóricos possam ser
bastante distintos entre as diferentes re-
igiões, os efeitos práticos de afirmações religiosas podem ser muito semelhantes,
pelo menos em alguns aspectos importantes. E esse fato pode ter algum
significado para a nossa compreensão do problema do pluralismo religioso e a
nossa resposta a ele.
EXCLUSIVISMO RELIGIOSO
PLURALISMO RELIGIOSO
INCLUSIVISMO RELIGIOSO
CONCLUSÃO
Concluindo, não nos esqueçamos de que todas as visões que abordamos neste
capítulo exigem algum trabalho missionário, porque os seus defensores precisam
converter os outros ao que consideram a posição correta sobre a questão da
diversidade religiosa, e, como vimos, essa tarefa parece exigir que se saiba o que é
verdade em matéria religiosa, pelo menos em algum nível. Esta última questão
ilustra mais uma vez por que o problema do pluralismo religioso é um assunto
fascinante, mas complexo, para as várias religiões do mundo moderno.