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PARA ATUAÇÃO
EM EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL
JOÃO LORANDI DEMARCHI UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL
Graduando (bacharelado e licenciatura) em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa de Iniciação Científica com fomento da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial.
Santos, SP, Brasil. E-mail: [email protected]
DOI
http://dx.doi.org/10.11606/issn.1980-4466.v0i22p267-291
RESUMO
Este artigo, em um primeiro momento, traz uma revisão bibliográfica
sobre a educação patrimonial brasileira. Com a contribuição dos autores
analisados, fica evidente a necessidade de se constituir uma sistemática
reflexão sobre o tema e propor novas possibilidades de atuação. Analisando
o crescente e grande número de atividades educativas que têm o patrimônio
como mediador, estas pesquisas apontam para o problema da falta de subsí-
dio teórico para as ações que acabam por confundir educação patrimonial
com divulgação ou promoção do patrimônio, ou, ainda, fetichizam o bem
cultural transformando-o em uma mercadoria. A educação patrimonial pela
qual se argumenta neste artigo, além de ser uma temática de constante refle-
xão, deve considerar as pessoas da comunidade com que se trabalha como
sujeitos históricos, legitimando as suas visões de mundo, seus símbolos e
significações. Assim, e só assim, será possível uma educação patrimonial
dialógica, que conte com a participação de todos desde a definição de re-
cursos até a concretização de ideias, desde a identificação do patrimônio até
como agir para preservá-lo. Será uma educação patrimonial problematiza-
dora e politizadora, que partirá de questões difíceis para propiciar a vinda
de sujeitos únicos. Esta educação patrimonial, portanto, está estritamente
ligada à nossa concepção de ser humano e do mundo que queremos.
PALAVRAS-CHAVE
Educação Patrimonial. Patrimônio Cultural. Políticas Públicas.
ABSTRACT
This article first brings a literature review on Brazilian Heritage Education.
These authors highlight how it is necessary to systematically reflect on
the subject and propose new possibilities for action. Analyzing the large,
and growing, number of educational activities that include heritage as a
mediator, these studies point to the lack of theoretical subsidy for these
actions, which end up confusing Heritage Education with the dissemination
or promotion of heritage, or even fetishize cultural properties, turning
them into commodities. The Heritage Education for which we argue in this
article, not only should be the subject of constant reflection to be renewed,
should also consider people in the community in which it works as historical
subjects, legitimizing their worldviews, their symbols and meanings. That
is the only way a dialogic Heritage Education that includes everyone from
defining resources to achieving ideas, from the recognition as heritage to
actions to preserve it, will be possible. A questioning and political-minded
Heritage Education based on difficult questions to make unique subjects
possible and, therefore, closely linked to our conception of human beings
and the world we want.
KEYWORDS
Heritage Education. Cultural Heritage. Public Policy.
educação patrimonial, a despeito da existência de críticas a ele, é o material com patrimonio material nas
escolas.
mais utilizado nas práticas educativas por todo o Brasil como referencial.
Alguns dos fatores que podem justificar esse uso são: o fácil acesso a ele
pela internet; a chancela estatal, que lhe confere credibilidade; sua narra-
tiva didática, com sugestões de tabelas a serem preenchidas e de exemplos
concretos a serem seguidos; e a falta de outros materiais que proponham
diretrizes às práticas. No entanto, como alerta Simone Scifoni (2014), é
preciso considerar este documento como fruto de sua época, tal qual todo
tipo de conhecimento e que, portanto, deve ser superado. Além da crítica
já mencionada tecida por Mário Chagas, de que o guia forja um “marco
zero”, Cléo Oliveira (2011) critica a cartilha por ela enquadrar a educação
patrimonial como uma “metodologia específica” (HORTA et al., 1999), ao
que propõe que deve ser mais do que isso, seja “uma ação que dispõe de
várias metodologias para atingir seus propósitos” (op. cit., p. 11, grifo nosso).
Percebendo a dimensão do desafio enfrentado pelos educadores que
usam como intermédio o patrimônio cultural, Bezerra e Silveira (2007)
sociais – nas quais eles são efetivamente gerados – para os artefatos, criando-se
a ilusão de sua autonomia e neutralidade”. Hannah Arendt (2013, p. 264)
alerta, ainda, para o perigo dessa sociedade de consumo “que condena tudo
à ruína”. Mais detida no caso patrimonial, Choay (2006, p. 211) detecta dois
tipos de apropriação do bem patrimonial, “obras que propiciam saber e prazer,
postas à disposição de todos; mas também produtos culturais, fabricados,
empacotados e distribuídos para serem consumidos”.
Nos casos de mercantilização do patrimônio, prática recorrente, o
interesse passa a ser angariar cada vez mais consumidores, não de cami-
setas ou relógios e bolsas, mas agora de souvenirs e ingressos. Nessa lógica,
grandes empresas se interessam por financiar projetos em que tutelam o
patrimônio para, assim, terem seus nomes vinculados a uma preocupação
pública de preservação do bem cultural. Como constata Luiz António
Custódio (apud GASTAL, 2003, p. 82) “a iniciativa privada brasileira desco-
briu a cultura como uma boa fonte de negócios, independente das questões
de sustentabilidade, memória ou identidade nela implícitas”. O problema
se agrava, como aponta Suzana Gastal, com a política de renúncia fiscal
instaurada pelo próprio Estado, por exemplo, com a Lei Rouanet, pela qual
“o governo transfere não apenas recursos financeiros, mas a própria gestão,
a prioridade e os objetivos dos assuntos e das políticas culturais para os
grandes grupos financeiros, por que serão eles, em última instância, que
escolherão quais produtos culturais ‘merecem’ apoio financeiro” (GASTAL,
2003, p. 83). A cultura é, por fim, gerida por diretores de marketing e, nesses
casos, o patrimônio perde seu principal caráter: o de mediador. Ele passa
a fazer parte de uma encenação. A educação patrimonial, aqui, assume a
enganosa função estritamente informativa e publicitária.
A outra problemática trata da noção de “conscientização” que costu-
meiramente confundem como sendo função da educação. Alguns projetos
educativos são concebidos com a ideia redentora de levar o conhecimento
sobre o patrimônio para a comunidade que detém o artefato em questão.
Segundo Silveira e Bezerra (2007), esta é uma relação paternalista que não
leva em conta os interesses dos envolvidos, os quais escapam à visão técnica.
Não percebe, portanto, o outro como sujeito das relações. Ainda segundo
os autores, é preciso reconhecer o uso do passado como um caminho para
podem ser um sujeito” (BIESTA, 2013, p. 181). Ainda escreve Biesta, “a minha
subjetividade só é possível na situação em que outros também podem ser
sujeitos” (op. cit., p. 177). Portanto, é na diferença que construímos nossa
subjetividade e propiciamos “oportunidades para que os indivíduos venham
ao mundo” (BIESTA, 2013, p. 48). É condição sine qua non valorizar e
afirmar a diversidade cultural e a copresença de outros sujeitos e de outras
culturas para “tornarmo-nos presença”, ou seja, começarmos “em um mun-
do cheio de outros iniciadores, de tal maneira que não sejam obstruídas as
oportunidades para que outros iniciem” (op. cit., p. 75).
A educação patrimonial que trabalha dessa forma acabará por criar Uma educação patrimonial que
questione o monopolio da cultura unica
tensões pois, segundo Arroyo (2012, p. 111), questionará “o monopólio da
cultura única, dos valores únicos e dos sujeitos únicos legítimos de produção
e de cultura”. Mas é justamente essa a intenção. As práticas educativas que são O que se percebe é isso, a educação
patrimonial acaba que reproduzi o
mediadas pelo patrimônio não devem ser reprodutoras de um status quo que status quo que privilegia algumas
camadas sociasi e legitima apenas
privilegia algumas camadas sociais e legitima apenas seus patrimônios e suas seus patrimonios e suas visões de
mundo.
nos quais deve ser depositado o conhecimento. Porque não veem os homens
como seres históricos, essas práticas antieducativas não propiciam a reflexão
problematizadora, não instauram projetos de mudança.
A educação bancária, nas palavras de Simone Scifoni (2012, p. 32) Permite que tudo fique como está, sem
propiciar uma transformação
“é vista como instrumental para a reprodução da sociedade enquanto tal,
reprodução do sistema e do status quo, ou seja, para que tudo fique como
está, perpetuando-se uma situação de desigualdade social”.
Para a superação desse tipo de educação deve-se ter real consciência
da concepção que se tem da realidade e da condição humana, como tem
sido explorada aqui. Para passar da educação do depósito para a educação
da problematização é necessário compreender que foi um processo histó-
rico que instaurou a adjetivação dos oprimidos como subumanos, como
ignorantes, logo, como passíveis de depósitos. Não é algo natural, nem
a-histórico. Compreendê-los detentores de saberes legítimos, de pedagogias
de resistência, da mesma forma que nos saberes opressores e detentores de
saberes ameaçados por erros e ilusões, é fundamental para entender que o
único método é o diálogo. Não é a sobreposição de visões de mundo ou de
4 CONCLUSÃO
Conforme explorado no começo do artigo, é evidente a necessidade de se
discutir as práticas educativas que são mediadas pelos patrimônios culturais.
Há um contraste entre o grande número de ações educativas e a insipiente
quantidade e qualidade de reflexões teóricas.
Educação patrimonial muitas vezes tem sido confundida com pro-
moção do patrimônio e confecção de cartilhas e panfletos. A educação
patrimonial aqui defendida ama as pessoas e o mundo. Por isso, reconhece
em todas as pessoas sujeitos históricos que podem mudar a realidade de
desigualdade social. Desigualdade refletida no reconhecimento seletivo dos
bens patrimoniais. A educação patrimonial aqui defendida problematiza
essa condição e trabalha para a valorização de todas referências culturais
e patrimônios, sendo eles tombados e registrados ou não. Cabe à educação
patrimonial, portanto, como busca Ecléa Bosi (2003, p. 18), “interpretar
tanto a lembrança quanto o esquecimento”.
A educação patrimonial libertadora, como define Scifoni (2012, p.
33), “é a busca da construção de uma nova relação entre a população com o
seu patrimônio cultural”. Para tanto, é preciso considerar “além do valores
estéticos e formais, os laços afetivos, sociais, simbólicos”. A valorização
do estilo e da estética não pode diluir as marcas sociais que são inerentes
ao patrimônio. O fetichismo, a transformação do bem cultural em uma
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