Coragem Hoje Abracos Amanha 1
Coragem Hoje Abracos Amanha 1
Coragem Hoje Abracos Amanha 1
Coragem hoje, 1
abraços amanhã
O concurso de contos, promovido pelo Museu
do Aljube Resistência e Liberdade, tem como objeti-
vo estimular a escrita criativa e sensibilizar jovens e
adultos para a cidadania ativa através da partilha de
projetos literários.
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Coragem hoje, 5
abraços amanhã
MUSEU DO ALJUBE RESISTÊNCIA E LIBERDADE
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CORAGEM HOJE, ABRAÇOS AMANHÃ
Concurso de Contos 2021
EducAljube
Coordenação
Rita Rato e Elisabete Inácio
Design gráfico
Eduardo Ferreira
Ilustração da capa
Patrícia Guimarães
Edição
EGEAC
Lisboa, Outubro de 2022
museudoaljube.pt / [email protected]
Rua de Augusto Rosa, 42
1100-059 Lisboa • Telef. 215 818 535
Coragem hoje, 7
abraços amanhã
Inquietação 13
8 LUNA GAMANHO
Falsas esperanças 29
DUARTE DA MOTA GOMES
Tão frágil 35
MANUEL ABRANTES
A caixa de música 43
CLELIA BETTINI
Coragem 51
FRANCISCO MOURA RÚBIO
Coragem hoje, 9
abraços amanhã
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1.º PRÉMIO / ESCALÃO JOVEM
Inquietação
Inquietação
LUNA GAMANHO 11
Luna Gamanho
Os primeiros sinais da minha rebeldia manifestaram-se
tinha eu oito anos, havia um ano que fora obrigada a entrar na
Mocidade Portuguesa.
Minha Mãe recorda-se de tudo. Conta-me como as mi -
nhas pequenas pernas encontraram força para subir a uma ca-
deira, como os meus pequenos braços se esticaram duas e v zes
o meu tamanho e que, de alguma maneira, alcancei o retrato
de Oliveira Salazar e o deixei despedaçar-se no chão da sala de
aula. Conta-me que me desz em prantos quando o professor
me bateu com a régua, que os meus pés descalços marcavam
o chão de escarlate quando cheguei a casa, e que meu Pai me
espancou ao som das suas súplicas agudas É “ só uma criança,
não sabe o que faz.”! Meu Pai respondia-le h com uma bofeta -
da de ev z em e
v z, C
“ riaste uma criança mal-educada, mulher”.
Minha Mãe conta-me que ofendi o nosso líder, mas que me ar -
rependi e aprendi.
E eu guardo para mim que não foi bem assim. Guardo
para mim que adorei e v r o quão frágil era a vidraça que protegia
o retratofeio. Guardo para mim que soube bem escutar o tinido
dos vidros a estilhaçarem-se. Guardo para mim que me senti
vigorosa, poderosa ao presenciar o que as minhas pequenas
mãos podiam fazer. Guardo para mim que apreciei ver a cara
rechonchuda de meu Pai virar um balão vermelho, quando re-
Inquietação
Inquietação
inquietos e absortos sobre a mesa, procurando por entre as ra-
nhuras da memória.
Aos treze anos, o meu corpo era o de uma mulher, e 13
Luna Gamanho
rastava-se, chorosa, pela casa, depois de o meu irmão mais ve-
lho, o Manel, ter partido para uma guerra que mal começara.
E murmurava que era eu o seu único consolo: “Minha Aurora!
Tão bela... uma Mulher feita. Dará ao marido os filhos mais lin-
dos!”. Claro que, por mim, não haveria nem marido, nem filhos.
Eu vivia pelas palavras proibidas da Sra. Amélia: “Qual «Deus,
Pátria, Família», qual quê!”.
Adorava ser testemunha daqueles protestos só permi-
tidos entre quatro paredes, longe dos bufos da PIDE, “Julgam
que somos umas desgraçadas desobedientes. Pois ora, eu posso
ser desobediente. Mas desgraçada é coisa que não sou, muito
menos por não estar presa a um homem! Mal tenho dinheiro
para comer, mas sou senhora de mim!” Eu bebia as suas pala-
vras tristes, como se fosse aquilo de que necessitava para viver
e agraciava-me por saber que meu desejo por algo além, minha
inquietação, qual nunca soubera rastejar invisível por minha
pele, estivera correta.
A esta altura, já acumulava em baixo dos cobertores de-
zenas de livros, jornais e revistas – que agora sei serem ilegais
–, e tornava-se cada vez mais difícil esconder a minha sede por
mais do que uma vida presa a um trabalho indigno, com um
salário miserável, uma casa para cuidar e um marido a quem
devia obediência. As minhas visitas à Sra. Amélia foram-se
tornando ainda mais frequentes, mais esclarecedoras. Amélia
conseguia imaginar um mundo que ainda não tinha vivido,
mas ansiava um dia viver “Acredito que um dia, a justiça irá ser
feita por todas as mulheres... por todos”. E eu punha-me a so-
Inquietação
nhar com esse dia. Punha-me a sonhar que podia votar numa
mulher para a presidência, e que, quando olhasse para o seu re-
14 trato pendurado na parede, veria aquele brilho nos seus olhos.
Quando fiz catorze, a minha irmã Margarida casou.
Luna Gamanho
Inquietação
do marido, encontrei-me sozinha, encarregada de uma criança
de três anos — quase quatro — e uma casa para manter. Dir-se-
-ia que poderia ter-me feito dona de casa... Mas não, não. Odiei 15
Luna Gamanho
Um dia, depois da escola, encontrei um bando de aves de
rapina a espreitar pelas varandas das casas, em cochichos pela
rua, numa confusão de gritos e aflições, foi quando vi a minha
maior amiga, a minha maior inspiração, ser arrancada da sua
própria casa à força, pelos esbirros da PIDE. A Sra. Amélia sorriu
para mim; um sorriso triste, um sorriso de despedida. Duran-
te um mês não saí do quarto, não fui à escola, não li; sabia que
Sra. Amélia já não estaria na sala, em frente a um chá, com uma
história pronta, um livro guardado algures na confusão do seu
xaile e aquele brilho revolucionário nos olhos.
Anos passaram, até que minha Mãe recebeu a notícia que
a levou a juntar-se a meu Pai, de tanto que foi o seu desgosto:
o seu filho mais velho morrera na guerra, lá longe, em África.
Eu já esperava. Manel começou por escrever todos os meses,
depois as cartas chegavam mais espaçadas, mais curtas, até não
chegarem mais. Assim, o meu irmão mais novo foi viver com a
nossa irmã Margarida e a casa degradada sobrou para mim. Não
a queria, mas lá me fui mantendo durante alguns anos. Certas
noites, consumida pela saudade, lá espreitava pelo buraco da
fechadura para dentro da casa da Sra. Amélia, mas via o espa-
ço entregue aos ratos, ao pó e ao abandono. Todavia, nem tudo
correu mal. Eu, que nunca abandonara a escola, ingressei no
ensino superior. Não fui bem aceite no curso de Direito, como
é óbvio, mas que podiam eles fazer? Matar-me? Desconfio que,
mesmo assim, nem isso me poderia parar. Quando decidi co-
meçar a minha revolta, tinha dois inimigos: o patriarcado e o
colonialismo. Pintei murais, distribuí panfletos, participei e or-
Inquietação
Enquanto as crianças...
Enquanto as
crianças brincam 19
Santiago Quinonez
SANTIAGO QUINONEZ
a leitura.
“La la li lala, ela ele eles elas, alto, altar, altura. Lusitos!
Lusitas! Viva Salazar! Viva Salazar!” Era a tarefa para casa de
Miguel e Leonardo. Sem gaguejar, declamavam as frases em
Português. A seguir, teriam de recitar o “Pai Nosso” sem errar,
na ordem correta, com entoação limpa e clara, saberem o tem-
po de colocação de cada frase e projetar a voz alto e com bom
tom. Os rapazes sabiam que seria uma chatice, mas caso não
aprendessem com Sara, teriam de aguentar a régua da Sra. Tor-
res ou até pior, o ralhete da Mãe.
Após alguns minutos, Márcia chama a família para a
mesa. À mesa, Miguel e Leonardo contam excitados como foi
seu dia na escola. Márcia parece ouvi-los com atenção, contudo
anda perdida nos seus próprios pensamentos: “Escola Primá-
ria Fontes Pereira de Melo. Escolhi esta escola pela localização,
organização e estrutura, o nome limita-se a homenagear mais
um político. Por mais que queiram restaurar o auge, de outros
tempos, no nosso país, Portugal nunca esteve mais avançado
nem mais seguro. Como se sete milhões de notas de cem es-
cudos pudessem ser guardadas num cofre, secreto, escondido
e vigiado 24 horas por dia, para que nada saísse do lugar, para
que todas as janelas, todas as chaves e portas estivessem sob sua
ordem e controlo”.
— Mãe, como foi o teu dia hoje?
Enquanto as crianças...
— Normal. Introduzi os Descobrimentos e tive de ensi-
nar um pouco além do prog…
Ouve-se um bater violento na porta. Sara e os gémeos
assustam-se com a interrupção anormal, mas Márcia procura
manter a sua posição de chefe da casa. Vai abrir, serenamente, a 21
Santiago Quinonez
da casa.
O oficial, à frente, pergunta se pode falar com o homem
da casa. Márcia responde que é ela quem se encarrega da fa-
mília, que já vive ali há muito tempo. O homem apresenta-se:
“— Capitão Manuel Noronha. PVDE. Recebemos uma denúncia
de atos ilegais contra o Estado e queremos revistar a casa antes
de a prender...”
— Márcia Helena Garcia Tavares! – exclama o oficial.
— Espere, não é a filha do Coronel Garcia Tavares? – per-
gunta um dos oficiais.
— Ex-Coronel, aposentado. Eu sou professora, pertenço
ao Ministério da Educação.
O Capitão espanta-se pela origem da denúncia, mas in-
siste em revistar a casa. A mulher pede para retirar primeiro as
crianças. O oficial analisa a situação da suspeita, caso acertas-
se na denúncia poderia receber uma promoção e tornar-se-ia
inesquecível, “uma filha comunista de um oficial respeitado,
presa pelo grande Capitão Manuel Noronha!”. Mas se errasse,
“eu poderia perder o emprego, seria perseguido pelos agentes
do Estado Novo, o meu país, que tanto amo, voltar-se-ia contra
mim. Não temo estar enganado, esta mulher não pode assus-
tar um agente do Estado!”- o oficial reflete. Após calcular bem
os seus próximos passos, o Capitão Noronha inicia a busca por
provas concretas na casa.
Márcia traz as crianças para a rua e o oficial oferece-se
Enquanto as crianças...
Enquanto as crianças...
do que precisas?
Márcia explica o seu plano arriscado para salvar os filhos.
O seu irmão estará de visita a Portugal, chegará num barco da
companhia, na madrugada de domingo, e poderia esconder as
crianças entre as cargas com discrição e levá-las para o Brasil. 23
O problema maior era ela não poder embarcar, uma vez que o
Santiago Quinonez
seu pai, e os seus contactos no Estado, não iriam permitir que
ela fugisse. Precisava de alguém para tomar o seu lugar, com do-
cumentos falsificados. As crianças teriam um futuro sem a mãe
verdadeira, mas com liberdade e segurança, longe das disputas
políticas e deste regime castrador. Uma das Rosas, Rita, ofe-
receu-se para acompanhar as crianças nessa viagem perigosa.
Garantiria a sua segurança, mas nunca as deixaria esquecer
a mãe e o sacrifício que fazia por elas.
No fim da reunião, Márcia, banhada em lágrimas, agra-
dece à jovem Rita, encerrando a reunião e despedindo-se da
organização secreta das Rosas Vermelhas – “Coragem hoje!
Abraços amanhã.”
veu, nos últimos dois anos, três livros que comprovam, através
de dados históricos, que o governo de Salazar foi o melhor que já
existiu. Seus filhos foram deixados à guarda dos avós maternos,
sendo o avô o responsável pela criação, educação e afastamento
de Miguel e Leonardo da mãe, sem nunca saberem da verdade
sobre o horrível domingo de 1937, pois tinham apenas seis anos.
Leonardo seguiu a paixão da avó, tornou-se filósofo.
Escreveu poemas e livros sobre o amor a Portugal. Reescreveu,
também, os antigos livros de sua mãe para salientar o papel do
regime na atualidade. Contribuiu tanto na propaganda intelec-
tual do Estado Novo, que Salazar enviou uma carta endereçada
para Leonardo Tavares Cunha, a agradecer pela genialidade,
grande suporte ao regime Salazarista e progresso de Portugal.
Miguel cresceu e continuou seus estudos no Colégio Mi-
litar de Lisboa e entrou para o exército. Sempre desejou “lutar
pelo seu país e governo”, só não participou na Segunda Grande
Guerra pois não tinha idade suficiente na altura. Em 1962 foi
designado para a sua missão mais importante, Guiné-Bissau
(África). Miguel Tavares Cunha saiu de casa cheio de sonhos,
pensamentos, espírito, treino e estudo, muitos anos de esforço
e dedicação. Da Guiné, em vez dele, apenas regressou, em 1964,
uma medalha, polida, em ouro, pousada sobre uma almofada
de cor forte, com uma mensagem emblemática, que milhares
de outros povos receberam na última década. Milénio talvez…
Hoje, Sara Rosa Tavares Cunha responde à sua neta sobre
Enquanto as crianças...
o que foi a censura:
— A avó já está muito velha, mas há algo nela que nunca
envelheceu e que aprendi sobre a vida, principalmente na mi-
nha juventude. Deves ter sempre consciência de quem és, nun-
ca deixes que mudem o teu íntimo, o teu ser, ninguém pode 25
Santiago Quinonez
centou em lágrimas.
— És corajosa como a tua bisavó, mesmo que não a tenhas
conhecido, ela vive em mim enquanto eu me lembrar dela.
A jovem Bruna, confusa, pergunta sobre sua antepas-
sada, uma vez que nunca tinha ouvido o seu nome na família,
apenas nas orações de seu bisavô. Sara, a enxugar seu desgas-
tado rosto, sorri, pois a sua felicidade vinha de memórias no-
turnas (sombrias e obscuras pelo tempo e traumas), mas assim
como a mais densa das noites, a lua que foi Márcia brilhava
e acendia-lhe o coração.
— Minha mãe teve uma vida difícil, sua família era com-
plicada, dividida e falsa, como era de se esperar por aquilo em
que fingiam acreditar. Ela foi professora, era dura como rocha e
transmitia um pouco disso na vida materna, mas foi ela quem
preparou aqui a tua avó para todas as dificuldades que tive de
enfrentar. Foi ela quem me ensinou a ler os livros, não para re-
citá-los, pois era bonito aquilo que diziam, mas com sentido
crítico. Ensinou-me a falar, para transmitir as minhas ideias
e pensamentos, não para recitar aquilo que queriam que eu
pensasse. E sempre que eu e meus irmãos tínhamos problemas
hercúleos, ela confortava-nos com uma frase muito simples
e prática – a senhora ri.
— Qual era?
— “Coragem hoje, abraços amanhã.”
26
3.º PRÉMIO / ESCALÃO JOVEM
Falsas esperanças
Falsas esperanças
DUARTE DA MOTA GOMES 27
Falsas esperanças
-me dos riscos, mas eu estava disposta até a morrer. Sei que a
minha família se iria desenvencilhar sem mim. O meu filho já
tinha tomado a posição de homem de família e, tendo todos
crescido neste mundo, sei que tudo iria correr bem para eles. 29
Falsas esperanças
esperar que outros tentem acabar o nosso trabalho de rebelião.
31
Tão frágil
Tão frágil
MANUEL ABRANTES 33
Manuel Abrantes
Tenho muita sorte. Bem sei que tenho. Há quem esteja
encerrado numa casa fria e ú h mida. Há quem esteja pior ain-
da. Há quem se apoquente com o emprego ou com a falta dele,
mais as crianças frenéticas a exigir atenção… Não digo que a
solidão seja fácil, nunca foi, mas permite-me pelo menos man-
ter uma certa ordem. Dá-me tempo para arrumar os objetos,
dá-me tempo para arrumar os pensamentos. Uma sensação de
segurança, que outra coisa procuramos? Se me sinto realmen -
te segura, não sei. As notícias na televisão causam arrepios.
Os números cravam-se na nossa mente, mesmo quando não te -
mos a certeza de os entender com precisão. Quantos milhares?
Quantos dias? Mas escuto as orientações e cumpro-as à risca.
Saio do apartamento uma ou duas e v zes por semana se tanto.
Faço as compras, dou uma o v lta ao quarteirão e pronto. Chego a
casa exausta. É da idade? É do medo? Fico sempre com pena de
não ter caminhado um pouco mais. E caminhar para quê? Não
o
v u deter-me no passeio para dois dedos de conversa. Não o v u
sentar-me no café a e v r passar a vida. Esquivom- e dos outros
transeuntes com os meus passos curtos de e v lha. Subo as esca-
das ofegante e dou-me por feliz de ter esta cama, este sofá, uma
cozinha, as plantas, um refúgio só meu.
Eles entravam sem aviso, entravam de rompante após
muitas horas de silêncio, escancaravam aquela porta tão de-
testada e mandavam-me comer, mandavam-me beber, pouco
Tão frágil
Tão frágil
Uma tarefa corriqueira na cozinha é o que me pode valer. Vou
preparar – uma sopa? Um bolo? Para quem? Só para mim não
vale a pena. Não vou desperdiçar o que tenho só para manter as 35
Manuel Abrantes
ram ainda. Tanto tempo pela frente. Até quando, ninguém sabe.
Por um momento, o futuro ergue-se esmagador diante de mim.
Anunciavam que era hora de me levar e metiam-me na
carrinha, eu queria ir pelo meu pé mas teimavam em segurar-
-me pelo braço à semelhança de uma pobre ensandecida que
pudesse desatar a correr a qualquer momento mas como senta-
da na carrinha entre os homens, mas como na escadaria estrei-
ta, mas como na assoalhada sem janelas, um compartimento
penumbroso no qual se discernia pouco mais que vultos, vultos
a tresandar a água de colónia e a cigarros, as mesmas perguntas
uma e outra vez e eu no mais profundo dos silêncios tentando
dominar os nervos para urdir uma estratégia, a primeira bofe-
tada na cara apanhou-me de surpresa, à segunda e à terceira
o que me espantou foi o crescendo de força com que me atin-
giam, tudo isto porque insistes em não falar, só nos fazes perder
tempo, grande puta, em vez de estarmos aqui devíamos estar lá
fora a resolver problemas sérios, escusas de te armar em mártir,
pensas que não nos contaram já quase tudo, a camarada que te
denunciou também se fez de forte ao princípio, não durou mui-
to, quando não se vai lá com palavras vai-se lá com os punhos,
bastou que lhe saltassem os primeiros dentes para começar a
vomitar nomes, vê lá tu, e eu calada até que um dos homens
perdia a paciência e puxava-me pelos cabelos e explicava que
não se tratava apenas de mim, havia mais em jogo, não pensava
eu porventura no meu filho, pois eles sim, pensavam, não lhes
custava nada ir buscar o miúdo à ama, sempre queremos ver o
que achas, o pai da criança sabemos que se está nas tintas, a esta
Tão frágil
Tão frágil
invencível, a voz reduzida a um gemido de desnorte, socorro,
socorro, o sangue a escorrer-me, o pânico de morrer sozinha
num cubículo infecto até uma das guardas surgir à porta e bra- 37
Manuel Abrantes
desgraçada não avisa nem nada, depois há de ser ela a limpar a
porcaria que fez, embora uns momentos depois, ou umas horas
depois, não sei com exatidão, a mesma mulher tenha reapare-
cido para averiguar se eu estava bem, uma mulher mais velha
que eu, trouxe-me água e papel higiénico, talvez debaixo da
selvajaria existisse uma réstia de humanidade mas uma pessoa
duvidava quando era levada para novo interrogatório e de novo
as perguntas, de novo as bofetadas, socos no estômago, socos
nas costas, nos intervalos uma guarda postada ao meu lado
para me impedir de adormecer, para me impedir de cair, para
me impedir de me acocorar a um canto, essa é que era boa, ficas
aqui sentada ao centro para te vermos como deve ser, eu a tatear
no escuro sem nada a que me apoiar, uma cotovelada nas coste-
las tirou-me o fôlego, a custo procurei recordar os motivos por
que nos faziam aquilo, por dizermos o que pensávamos, por es-
crevermos aquilo em que acreditávamos, por pensarmos livre-
mente, por termos esperança, sim, era a esperança que eles não
toleravam, e eu dava por mim a trautear uma toada da moda até
que recomeçava a litania horrenda, só depende de ti, isto aca-
ba quando quiseres, basta que nos expliques o que aconteceu,
quem te recrutou, onde ias buscar os folhetos, como tenciona-
vam usar os explosivos, basta que assines esta declaração com
a qual já te facilitámos o trabalho, se não te preocupas com o
teu filho preocupa-te contigo mesma, nós acabamos por chegar
a toda a informação dê por onde der, e a litania continuava e
continuava e continuava comigo a tombar e eles a levantar-me,
comigo a desfalecer e eles a despertar-me, anda lá, querida,
Tão frágil
A caixa de música
A caixa de música
CLELIA BETTINI 41
Clelia Bettini
Naquela manhã de Setembro de 1944, Carla levantou-se
cedo. Correu para a cozinha, ou melhor para aquilo que restava
da grande cozinha da e v lha casa rural, onde antes da sua che -
gada já tinham passado os Mauser e as metralhadoras nazis.
Quando entraram na primeira noite, encontraram os corpos
das crianças ainda estendidos no meio do chão, com as caras
devastadas. – Estes merdas não têm nem uma gota de u h mani -
dade, que o diabo os leve! – exclamara Carla, entre o o h rror e a
raiva, ao ev r aquelas pequenas pernas abandonadas, as meias
rotas, a carne que já carne não era. Ao lado daquela que parecia
ser a lha mais e v lha havia uma caixa de música. Carla pegara
nela com cuidado e dera-a ao miúdo, talvez para o distrair, ou
para se distrair a si própria, não saberia dizer.
— Toma, pequenino, olha que bonita!
Apesar dos esforços de Carla, a imagem daquela família
trucidada nunca a abandonava, povoava os seus sonhos agita -
dos, turbados pelo canto noturno dos noitibós, e as longas es-
peras às quais a guerra obrigava as quatro mulheres e o menino
já há cento e três dias: contara-os ainda na ésv pera, há cento e
três dias que estavam ali metidas, no meio da montanha, e o
Outono a começar. O Monte Sole, que as observava quieto do
outro lado do vale, cintilava de geada matinal.
A caixa de música
A caixa de música
massa, carne, ervilhas e queijo! Ainda tenho aquele cheiro deli-
cioso nas narinas...
— Senta-te Egle, não te canses, que logo à noite não vai
ser fácil. Temos que ir avisar o Lupo de que as colunas inimigas 43
Clelia Bettini
pamento. Bebe o teu café, toma. Não será grande coisa, mas
sempre é melhor do que a lavadura que comemos ontem à noi-
te. Juro que quando esta merda acabar, nunca mais vou comer
cebolas, nem tremoços! Amargos como o fel, sem o sal p’ra os
curar, como esta guerra maldita.
Carla e Egle tinham-se encontrado por acaso, porque a
vida é uma questão de coincidências e responsabilidades, e cada
uma delas tivera as suas. Fora numa noite de Junho, no meio da
montanha. Havia centenas de pirilampos e parecia um milagre
no meio de toda aquela situação. Num primeiro momento cada
uma assustara a outra, vultos na noite fresca, ameaça permanen-
te, a Linha Gótica ficava a menos de 10 km. Carla matara quatro
soldados nazis naquela manhã, miúdos pele de porcelana dentro
de fardas que talvez nem quisessem vestir. Sentia-se pronta para
tudo, feita máquina, resquício de humanidade. Egle trazia gra-
vada na cabeça uma mensagem em código para a Brigada Stella
Rossa e o comandante Lupo, vinda dos camaradas das Brigadas
da Toscana. O Cão-Kesserling guiava as suas tropas de assassi-
nos em direção a Norte, não tardariam a chegar ao Appennino.
O inimigo preparava represálias, alerta máximo para a popu-
lação, cada vez que os cães-pardos apanhavam um desertor ou
um partigiano, era logo fuzilado em frente a todos os civis.
O encontro estava marcado ao lusco-fusco, debaixo de
uma grande rocha coberta de musgo. Após a inicial desconfiança,
abraçaram-se. Egle transmitiu de imediato a mensagem, como
se quisesse sacudir do corpo o risco de prejudicar o Lupo e os
A caixa de música
A caixa de música
mas os homens não quiseram que ficassem com eles, a Brigada
não era coisa de mulheres, diziam, e muito menos de crianças.
Refugiaram-se na Casa da Faia depois de várias noites
ao relento e vários dias passados a observar a casa de longe, 45
Clelia Bettini
né, perceberam que ninguém habitava a casa. Sepultaram os
mortos, arrumaram a desordem e gritaram de alegria quando
encontraram as reservas alimentares daquela família, que os
cães-pardos não tinham conseguido descobrir. Agradeceram
em silêncio à generosidade e à resistência daquela família do
Appennino, agricultores e pastores antigos como o mundo, que
mesmo depois de mortos continuavam a ser generosos. E foi
então que apareceu Sara.
Alta e esguia, a cara bonita, embora cavada pela fome.
Sara chegou numa manhã de Julho, um calor irreal assolava a
eira, e as três mulheres e a criança tinham-se refugiado à som-
bra da grande faia. Ninguém ouviu Sara a chegar: de repente
estava lá, como um fantasma. Por primeira coisa, pediu água.
A seguir desmaiou, mas antes de perder os sentidos, ouviram-
-na pronunciar claramente estas palavras: a Fábrica de Arroz.
Quando retomou conhecimento, Sara explicou que viera do
Norte, de Trieste, sempre caminhando. Não sabia como e por-
que ainda estaria viva, ao ponto que várias vezes, na longa jor-
nada que a tinha levado até aí, chegara a pensar que estaria
morta, que tudo aquilo que via e vivia era um engano. Eram
pensamentos blasfemos, ela sabia disso, mas onde estava o Se-
nhor nisto tudo?
Sara contava pouco da Fábrica de Arroz, mas Carla, Egle
e Anna perceberam que os rumores que tinham ouvido eram
verdadeiros. Algures havia campos de internamento criados
ainda pelo governo de Mussolini, onde juntavam judeus, opo-
A caixa de música
A caixa de música
assobiando baixinho a melodia da caixa de música.
47
Clelia Bettini
48
3.º PRÉMIO / ESCALÃO ADULTO
Coragem
Coragem
FRANCISCO MOURA RÚBIO 49
2.
Thanatos, gato escuro como as quatro e meia da manhã,
tinha escapado uma vez mais, antes de voltar. A última vez
tinha-o encontrado no meio do lixo perto de umas barracas
esquecidas. Estava agora à sua procura nos caminhos magros
da comunidade Paredes-de-Vidro, dedos entrelaçados com
Virgínia criando uma imagem digna de ser vendida numa pu-
blicidade da benetton, quando tropeçámos no polícia que nos
abordou, uma vez mais, Só quero os documentos de identifica-
ção dela, apontando para a Virgínia e esclarecendo-me que eu 51
3.
A morte tinha chegado tão súbita como quando ele dizia
– preta! – e num espanto o meu coração acelerava. O dele tra-
vou. Cândido teve apenas uma migalha de tempo para recordar
estar vivo. Num instante o sô doutor engoliu-lhe a esperança:
cancro intra- hepático nas vias biliares, e ele despreparado para
perder a guerra no ponto mais fulminante. Oh sangue do meu
sangue, o final horrível está prestes a chegar. Também já tinha
Coragem
4.
Cobriste-te de memórias ignorando a possibilidade fu-
tura. Embarcaste num santa maria, santa maria mãe de deus
rogai por nós, tffrrrrr páw pápápáw páww tpffrrr, cuidado os
pretos da senzala vieram espetar a catana na barriga do Abel,
o teu joelho está a tremer tanto, avô, a boca do Abel é agora
um caldeirão de sangue a borbulhar, soletras pon-ta-pés na
perna da mesinha de centro corroída pela repetição, avô, avô,
upa, upa, Angola é nossa, upa, bébe, upa, sai de baixo da mesa,
Cândido. E agora? Como escreveste as quadras depois de tudo
isto, avô? Dez dias no mar portuguez para rumar ao porto do
horror, não foi cândido avô? Surpreendeste-me com os teus
versos, lembrei- me depois que a folha de papel pode escon-
der tudo. Rimo a carvão sublinhado/ homem esforçado/ nasci
abandonado/ numa caixa de mercado/ deixada na igreja com o
Coragem
santo imaculado/ o país inteiro sufocado. Cândido. Miséria to-
tal até ao pescoço, até ao tremoço, até à catana, avô. Agradeces à 53
tropa saber todos os rios e serras, saber rezar, saber matar e se-
5.
54 A mãe, fechada em lágrimas, insiste que o cheiro do avô
continua preso ao sofá, sem se dar conta de que está ao lado do
Francisco Moura Rúbio
bar. A minha irmã fala sozinha com as insígnias do avô, fala com
o cão que ali não está, fala com o saco de plástico, está presa por
um fio de solidão. O primo afastado escutando as gargalhadas
silenciosas penduradas nas fotografias sépia de família, lembra
que amar é gostar de ouvir a forma do outro rir. O tio- avô, um
poeta burguês de estrufas inspiradoras permitiu-se sair da sua
toca de eremita viajante por umas horas e veio tratar dos as-
suntos de família à periferia, leva com ele o estojo para fazer a
barba do avô. A avó sentada, a avó perdida e com uma mão a
segurar o que resta da cabeça, tem o corpo num tremor. A casa
também. A família também. O país também. Ela esvazia aquela
casa cheia.
Afinal, estou sozinha. Demoro a mão percorrendo os
móveis lá de casa, lembrando os relevos de outros continentes,
o cheiro a madeira de décadas passadas até conseguir encontrar
um vazio onde encaixar aquela chave. Esquecia a morte do avô
lembrando a casa preenchida pelos vazios das visitas que não
costumavam ter, pelo cheiro do funge vindo da mão da avó que
serpenteava divisões, pelos lamentos servidos como iguaria
principal, Mas que raio de família é esta?, pergunta sem respos-
ta e um chuto para canto cruzando palavras ocas sobre o jogo
de futebol e o episódio da novela de ontem.
(A chave, por fim, encontra o baú.) Mergulhada no baú,
que entretanto mudara de tamanho enquanto crescia, encontro:
fotografias da guerra, dois contos: bilhetes, moedas, meda-
lhas: cartas sensuais de madrinhas de guerra: três balas e um
capacete: recortes de jornal, fotografias de uma mulher negra:
palavras sussurradas e imagens nunca ditas nem lidas pelo
Coragem
sargento-mor Cândido: uma farda áspera com um cheiro ver-
de-escuro: escavei mais fundo, encontro isto: 55
Falsas esperanças
DUARTE DA MOTA GOMES
Tão frágil
MANUEL ABRANTES
A caixa de música
CLELIA BETTINI
Coragem
FRANCISCO MOURA RÚBIO