A Transição Da Idade Média para A Idade Moderna: Uma Análise Crítica

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A TRANSIÇÃO DA IDADE MÉDIA PARA A IDADE MODERNA:


UMA ANÁLISE CRÍTICA

Ives Leocelso Silva Costa1

RESUMO
Este artigo tem por objetivo questionar o fim da Idade Média defendido pela historiografia
tradicional - situado entre os séculos XV e XVI e marcado por quatro grandes movimentos: o
Renascimento, a Reforma Protestante, a Centralização Política e os Descobrimentos. Através
de revisão bibliográfica, pretende-se demonstrar que esse período foi mais marcado por
continuidades que por rupturas e que o fim do Medievo pode ser melhor compreendido dentro
da perspectiva da Longa Idade Média, postulada por Jacques Le Goff.

Palavras-chave: Periodização. Continuidade. Fim da Idade Média.

ABSTRACT
This article intends to question the end of the Middle Ages defended by traditional historiography
- placed between the 15th and 16th centuries and marked by four major movements: the
Renaissance, the Reformation, the Political Centralization and the Age of Discovery. Through
literature review, it is intended to demonstrate that this period was marked more by continuities
than by ruptures and that the end of the Middle Ages can be better understood from the
perspective of the Long Middle Ages, postulated by Jacques Le Goff.

Keywords: Periodization. Continuity. End of the Middle Ages.

Considerações Iniciais

A Idade Média foi definida pela historiografia do século XIX como o período entre
o fim do Império Romano do Ocidente, em 476, e o fim do Império Bizantino, em 1453.
Sua origem é mais remota, contudo. Seu nome foi utilizado pela primeira vez pelo poeta
italiano Francesco Petrarca, no século XIV, para se referir aos séculos que julgava de
barbárie entre a Antiguidade Clássica e seus dias (LE GOFF, 2014; FRANCO JÚNIOR,
2001).

1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Este artigo é fruto das discussões
realizadas no grupo de estudos e leitura “História Medieval: Perspectivas Historiográficas”, atividade integrante do
projeto de extensão “Para Além da Graduação” – PROEXT – UNEAL, coordenado pelo professor Gladyson Stelio
Brito Pereira (Mestre em História pela UFF, Doutorando em História pela UFPE).
2

Criticada pelos iluministas – para os quais era uma era de trevas - e idealizada
pelos românticos, a Idade Média foi, talvez, o período histórico que mais passou por
reavaliações e ressignificações, ilustrando a afirmação de Michel de Certeau (apud
NUNES, 2011, p. 17) de que:

Toda pesquisa histórica se articula com um lugar de produção sócio-econômico,


político e cultural... Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios,
enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram
os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos
e as questões, que lhes serão propostas, se organizam.

Fried (2015) afirma, com ironia, que o que a define é a escolha arbitrária das
universidades, em seu caso alemãs, de atribuir o período entre os anos 500 e 1500 aos
professores da disciplina. Escancarando sua natureza de construto teórico, muitas
vezes mal interpretado, Amalvi (apud ALMEIDA, 2010, p. 2) declara que:

A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se estende da
conquista da Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos Cem Anos, é uma
fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de
representações e de imagens em perpétuo movimento, amplamente difundidas
nas sociedades, de geração em geração, em particular pelos professores do
primário [...].

Essa complexidade tornou a Idade Média terreno fértil para pesquisadores e


teóricos do século XX, especialmente da Escola dos Annales, que lhes conferiram
atualidade. Nas palavras de Franco Júnior (2001, p. 13), “Sem risco de exagerar, pode-
se dizer que o medievalismo se tornou uma espécie de carro-chefe da historiografia
contemporânea, ao propor temas, experimentar métodos, rever conceitos, dialogar
intimamente com outras ciências humanas”.
O início do Medievo tornou-se ponto pacífico na historiografia com o
desenvolvimento de um conceito hoje consagrado: o de Antiguidade Tardia2, que
rompeu com a visão eventualista da periodização clássica e abandonou a ideia de
ruptura com o fim do Império Romano, enxergando, em seu lugar, uma série de
continuidades e lentas transformações, que vão do século III ao século VIII.

2
Hilário Franco Júnior prefere o termo Primeira Idade Média.
3

Porém, essa visão nuançada não foi estendida para o final da Idade Média. Os
limites foram alterados, mas pouco flexibilizados. Removeu-se a Queda de
Constantinopla, fixou-se o Renascimento, a Reforma Protestante, a Centralização do
Poder Monárquico e os Descobrimentos como o ponto de entrada nos Tempos
Modernos.
Há quem discorde, contudo. Jacques Le Goff, inspirado pela longa duração de
Fernand Braudel, desenvolveu o conceito de Longa Idade Média, que se estenderia do
século IV ao século XVIII. “As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente
em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média
que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura e, às vezes, desabrocha bem
depois das datas oficiais”. (LE GOFF, 2005, p. 66).
Para o célebre historiador francês, somente a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa marcariam definitivamente o fim do período medieval. Em sua
última obra, A História Deve Ser Dividida em Pedaços?, Le Goff, falecido em 2014,
discutiu profundamente o tema da periodização, analisando a dinâmica entre Idade
Média e Renascimento e defendendo a Longa Idade Média com a erudição de uma das
maiores autoridades do gênero.
De acordo com José D’Assunção Barros (2013, p. 143), “[...] uma característica
importante do pensamento teórico e historiográfico de Jacques Le Goff é a sua
capacidade crítica de se adaptar às novas demandas, de redefinir caminhos a serem
seguidos”. É nesse espírito de redefinição que serão analisados aqueles quatro
momentos-chave tidos como condicionadores da passagem do medieval para o
moderno.

Renascimento

Seguindo a definição tradicional, Giovanazzi (2014, p. 6-7) afirma que:

O Renascimento marca o início da Idade Moderna. O desenvolvimento


comercial e a agitada atividade cultural no Ocidente, sobretudo, no século XV,
faz surgir o movimento intelectual centrado no Homem. Essa mudança de
mentalidade pode ser percebida nos humanistas, os quais buscaram na
Antiguidade recuperar a cultura greco-romana, a qual representava – para eles
– o ideário perfeito de civilização.
4

Essa visão do Renascimento, percebido como uma nova era de luz e esperança
– um verdadeiro alvorecer da humanidade – após um longo período de caos e trevas,foi
criada por Michelet e popularizada por Burckhardt no século XIX.

Definido por Michelet como uma ‘passagem ao mundo moderno’, o


Renascimento marca um retorno ao paganismo, ao gozo, à sensualidade, à
liberdade. Foi a Itália que ensinou isso às outras nações europeias – em
primeiro lugar à França, por ocasião das guerras da Itália, e depois à Alemanha
e à Inglaterra. (LE GOFF, 2014, p. 49).

Para Burckhardt, “Diferentemente da Idade Média, em que o indivíduo se


encontrava limitado pela religião, pelo ambiente social, pelas práticas comunitárias, o
homem do Renascimento pode, sem entraves, desenvolver sua personalidade.” (LE
GOFF, 2014, p. 54).
O Renascimento foi placo de inegáveis avanços, especialmente artísticos – na
pintura, na escultura, na arquitetura - mas também científicos e culturais. A criação da
imprensa pelo alemão Gutenberg revolucionou a produção do livro. O resgate da
Antiguidade Clássica manifestou-se na leitura e na poesia e um clima de florescimento
e erudição urbanos desenvolveu-se, principalmente entre a nobreza e a alta burguesia
das cidades italianas e alemãs. É a era de Lorenzo de’ Medici, Rafael Sanzio, Leonardo
da Vinci, Hans Holbein, o Jovem, e Maquiavel.
Porém, de acordo com Le Goff (2014, p. 72): “[...] por mais importante que tenha
sido, por mais que deva merecer uma individualização na duração histórica, o
Renascimento não representa, para mim, um período particular: ele constitui o último
renascimento de uma longa Idade Média”. Hilário Franco Júnior (2001, p. 156) justifica:
“As características básicas do movimento (individualismo, racionalismo, neoplatonismo,
humanismo) estavam presentes na cultura ocidental pelo menos desde princípios do
século XII”.
O Renascimento é melhor compreendido como uma síntese de inovações
medievais fruto de um longo processo de gestação, não como um período à parte,
muito menos como o inaugurador da Idade Moderna. Se, por um lado, nele houve uma
expansão do pensamento científico, através da observação racional da natureza,
manifestado no heliocentrismo e no desenvolvimento da autópsia, por outro, Hilário
5

Franco Júnior (2001, p. 166) afirma que “Observar e questionar a natureza é um


exercício religioso e intelectual gerador de um racionalismo medieval anterior mesmo à
redescoberta de Aristóteles no século XII”, e cita como exemplo o franciscano Roger
Bacon, grande defensor do empirismo que desenvolveu um telescópio primitivo já no
século XIII.
O que diferencia os intelectuais do Renascimento dos séculos XV-XVI, daqueles
do Renascimento Carolíngio e do Renascimento do Século XII, é que os primeiros “[...]
julgavam estar vivendo em um mundo novo (moderno), embora o passado greco-
romano devesse ser respeitado na construção desse novo mundo e do novo homem,
liberto do obscurantismo medieval”. (SILVA; SILVA apud GIOVANAZZI, p. 9). O que é
“moderno”, porém é relativo, e Le Goff (2011) percebe a modernidade da Idade Média
na permanência de heróis e lendas de seu imaginário na cultura contemporânea,
manifesta no cinema e nas histórias em quadrinhos. Por outro lado, o medievalista
francês destaca a ambiguidade do termo, que pode ter conotação negativa e foi
empregada deste modo pelo arquiteto florentino Filarete, no século XV, ao se referir às
práticas arquitetônicas de sua época. Para o renascentista, o que chamamos de
medieval era o “moderno” e deveria ser abandonado! (LE GOFF, 2014).
De qualquer maneira, independente dos renascentistas se considerarem
modernos ou não, isso não autoriza a fundação de um novo período da História com o
seu advento.
Muito se falou do brilho destes séculos, mas eles também trouxeram elementos
negativos, como “um aumento do obscurantismo – o obscurantismo dos alquimistas,
dos astrólogos, das feiticeiras e dos caçadores de feiticeiras”. (DELUMEAU apud
GIOVANAZZI, 2014, p. 10). A bruxa é uma figura dominante do Renascimento e foi a
partir dele que se intensificou sua perseguição.

É principalmente num momento em que o Renascimento já está bem


sedimentado, segundo seus partidários, que dois dominicanos alemães, Henry
Instioris e Jaques Sprenger, publicam, em 1486, o famoso Martelo das bruxas
(Malleus maleficarum), manual de repressão violenta. (LE GOFF, 2014, p. 93).
6

O próprio Burckhardt critica a decadência moral e o aumento do crime e da


violência que percebe no período, que de outro modo defende ardentemente (LE
GOFF, 2014).
Desta forma, acreditamos que o Renascimento não foi um ponto de passagem
para a Idade Moderna, pois tanto em seus aspectos louváveis quanto naqueles mais
sombrios, apresenta um forte elemento de continuidade com a Idade Média –
continuidade que não deve ser compreendida como estagnação, mas como um
conjunto de transformações sutis e graduais no inseridas em uma longa duração.

Reforma Protestante

Almeida (2010, p. 13), ao estudar o fim da Idade Média dentro da longa duração,
argumenta que:
[...] mesmo entre os medievalistas atuais, sobretudo, entre aqueles ligados à
História da Igreja, como, por exemplo, Guy Lobrichon, há grande resistência ao
prolongamento da Idade Média para além do século XVI. Segundo tais
historiadores, a Reforma Protestante deve ser vista como uma grande ruptura,
uma vez que produziu modificações profundas na Igreja e também forçou tal
instituição a lidar com a existência de outras Igrejas, rompendo assim um dos
pressupostos da Igreja medieval, ou seja, o da sua inserção universalista.

O impacto social da Reforma Protestante – e da Contrarreforma Católica – não


pode ser subestimado: ambas reconfiguraram o mapa político europeu e jogaram
continente em séculos sangrentos que culminaram com a Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648), o conflito mais destrutivo e em maior escala até então. Contudo, na raiz
destes conflitos – não desprezando fatores econômicos e nacionais - está a pretensão
universalista de cada segmento cristão.
Nesse contexto, afirma Le Goff (2014, p. 86, destaque nosso):

Como sabemos, a Idade Média é uma época profundamente religiosa, marcada


pelo poderio da Igreja, pela força de uma devoção quase geral. De fato o século
XVI traz a ruptura da reforma e conhece ferozes guerras motivadas por religião.
A fé cristã apresenta-se doravante sob ao menos duas formas, a católica
tradicional e a reformada nova, que também é chamada de protestante e que
compreende diversas orientações: anglicanismo na Grã-Bretanha, luteranismo
7

e calvinismo no continente, sendo que o primeiro se espalha preferencialmente


nas regiões germânicas e nórdicas, e o segundo nas de língua romana. Mas
trata-se sempre do cristianismo.

De fato, a Igreja medieval foi destronada de seu posto de senhora única, mas é
necessário lembrar que seu domínio não foi absoluto durante todo o Medievo: a
conversão das populações da Escandinávia só se consolidou no século XII, e a
Cruzada da Livônia converteu os Prussianos à força no século XIII. Na Península
Ibérica, que teve vastos territórios dominados pelos sarracenos durante a maior parte
da Idade Média, o último bastião islâmico, Granada, só foi tomado em 1492. No âmbito
da Cristandade, foram inúmeras as heresias a questionar a ortodoxia oficial, como os
Cátaros no Languedoc, mesmo que duramente perseguidas.
Nas palavras de Hilário Franco Júnior (2001, p. 156):

O Protestantismo [...] foi em última análise apenas uma heresia que deu certo.
Isto é, foi o resultado de um processo bem anterior, que na Idade Média tinha
gerado diversas heresias, várias práticas religiosas laicas, algumas críticas a
um certo formalismo católico. Nesse clima, a crise religiosa do século XVI
comprovou ser inviável para a Igreja satisfazer aquela espiritualidade mais
ardente, mais angustiada, mais interiorizada. Foi exatamente nesse espaço que
se colocaria o Protestantismo. E sem a possibilidade de ser sufocado pela
ortodoxia católica (ao contrário do que ocorrera com as heresias medievais),
por ele atender às necessidades profundas decorrentes das transformações
socioculturais verificadas desde os últimos tempos da Idade Média.

Vale recordar que entre países da Europa meridional, especialmente Itália,


França, Portugal e Espanha, a Igreja Católica prevaleceu com imensa autoridade ainda
por vários séculos – mesmo que houvessem contestações, como as Guerras Religiosas
na França na segunda metade do século XVI. Com a expansão marítima ibérica, a
Igreja também foi levada ao Novo Mundo. Para Jérôme Baschet (2006, p. 285), nessa
transição prevaleceram as permanências:

Fazer a lista de similitudes entre a Igreja colonial e a Igreja medieval significaria


descrever novamente esta última, quase em sua totalidade: riqueza material e
imensidão de terras possuídas, estruturação interna do clero, papel das ordens
8

mendicantes, doutrinas e rituais essenciais, formas de evangelização, pregação


e confissão como instrumentos de controle social, importância do culto dos
santos e das imagens...

Ainda que a Cristandade tenha se dividido, a religião permaneceu uma força


dominante na vida social, inseparável da política, aparecendo, por exemplo, entre as
causas da Guerra Civil Inglesa no século XVII. Somente no século XVIII com a
progressiva secularização e laicização do conhecimento e das instituições é que pode-
se afirmar que houve uma verdadeira ruptura.

Centralização Política

A Centralização Política é geralmente caracteriza através de dois elementos - a


formação dos Estados Nacionais e o surgimento do Absolutismo – e compreendida
como fator essencial de ruptura com a Idade Média. Questionamos essa proposição,
uma vez que os líderes desse movimento – os monarcas – são personagens
essencialmente medievais e sua luta para submeter e controlar seus vassalos e
estabelecer sua autoridade está intrinsicamente ligado ao Medievo.
Percebem-se tentativas de fortalecimento do poder real no desenvolvimento da
legislação e das instituições de chancelaria e administração da justiça régia durante o
governo de Henrique II da Inglaterra no século XII3. O mesmo ocorre na França no
início do século XIII, quando Filipe Augusto e seus sucessores utilizam a Cruzada
Albigense para submeter a nobreza rebelde do Languedoc, mais ligada ao Reino de
Aragão que à coroa francesa4.
Segundo Hilário Franco Júnior (2001, p. 156):

A Centralização Política [...] era a conclusão lógica de um objetivo perseguido


por inúmeros monarcas medievais. O Estado moderno, unificado, caracterizava-
se pelo fato de o soberano ter jurisdição sobre todo o país, poder de tributação
sobre todos os seus habitantes, monopólio da força (exército, marinha, polícia).

3
Cf. JONES, Dan. The Plantagenets: The Kings who Made England. London: HarperPress, 2012.
4
Cf. POWER, Daniel. Who Went on the Albigensian Crusade?. English Historical Review, Oxford, v.
128, n. 534, p. 1047-1085, out. 2013
9

Obviamente, não existia na Idade Média concepção de Estado como a


contemporânea, por demais abstrata. Nas mentes medievais são as relações homem a
homem que compõe o tecido social, laços de sangue, amizade e lealdade:

Para eles, um ‘país’ é um modo de viver, sentir, falar, comer, que une entre si
as pessoas aproximadas também pelo serviço de um mesmo senhor, pelas
relações de homem a homem, familiares ou de vassalagem, que lhes dão
coesão. É, no fundo, uma noção mais real, ligada ao sangue, à antiga
concepção tribal, clânica, mais profunda e mais profundamente ancorada que
uma espécie de ‘direito do solo’, demasiadamente jurídico e abstrato para essa
época em que o contato físico, pela visão, pelo tato, conta mais que a
declaração abstrata de um escrito. (FLORI, 2005, p. 56-57).

Essa visão, prevalente até a Idade Média Central (séculos XI-XIII), é ligada ao
instituto da vassalagem, e vai aos poucos se transformando, à medida que os
suseranos transformam-se em soberanos e as línguas vernaculares – que estão na
origem dos sentimentos nacionalistas - se consolidam (FRANCO JÚNIOR, 2001).
O Absolutismo não marcou o fim da Idade Média, mas sim da feudalidade, em
crise a partir do século XIV, e compreendido aqui como as relações estruturais de poder
internas da nobreza: lealdade e serviço do senhor guerreiro em troca de benefícios e
proteção pelo suserano. O domínio exclusivo do monarca sobre o território do reino –
que aqui começa a se confundir com nação – se dá pela posse da terra, e pela sujeição
daqueles que nela vivem e trabalham. Essa relação tipicamente medieval, o senhorio5,
permanecerá prevalente até o século XVIII (FOURQUIN, 1970).
Ao abordar o Antigo Regime, inserido pela historiografia tradicional na Idade
Moderna, Franco Júnior argumenta que:

[...] superado o momento de transição e já dentro da Idade Moderna clássica


(séculos XVII-XVIII) – o chamado Antigo Regime -, é ainda essencialmente a
Idade Média que encontramos. Os três elementos que constituem o Antigo
regime (monarquia absolutista, sociedade estamental, capitalismo comercial)
tinham fundas raízes nos séculos anteriores. Mais uma vez, a essência é
medieval, a roupagem é moderna.” (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 157).

Enquanto a formação dos Estados Nacionais é mais difícil de precisar, ela passa
necessariamente pelo período medieval. Prova disso é, segundo Hilário Franco Júnior

5
O feudalismo, na concepção de Guy Fourquin (1970), não existiu em toda a Europa, nem durou toda a Idade
Média. O senhorio, ou dominium, por outro lado, foi uma de suas características essenciais.
10

(2001), o fato de a Alemanha a Itália, fragmentadas na Idade Média entre os poderes


particulares das cidades e ligas independentes, e os poderes universalistas do Papado
e do Império, só tiveram sua consolidação nacional no fim do século XIX.

Descobrimentos

A expansão marítima europeia, principiada por Portugal no século XV, teve


vastas consequências a longo prazo: conectou as nações e mercados globais e deu
início a uma era de supremacia político-econômica da Europa sobre o resto do mundo,
que só se encerrou no século XX. Tais mudanças, entretanto, demoraram a se fazer
sentir e em sua origem as viagens de exploração de portugueses, italianos e espanhóis,
mais do que inaugurar uma nova era, apresentaram-se como uma continuidade de
movimentos anteriores.
De acordo com Hilário Franco Júnior (2001, p. 156):

Os Descobrimentos [...] se assentavam em bases medievais nas técnicas


náuticas (construção naval, bússola, astrolábio, mapas), na motivação (trigo,
ouro, evangelização) e nas metas (Índias, Império de Preste João). Também
existiam antecedentes medievais nas viagens normandas ao Oriente e à
América (esta comprovadamente atingida pelos noruegueses por volta do ano
1000), italianas à China (Marco Polo, por exemplo) e ibéricas à África.

A Conquista e Colonização da América, evento mais destacado do período, foi


profundamente analisada por Jérôme Baschet, que a compreende como resultante da
expansão medieval europeia. É nessas linha também o pensamento de Schaub ( 2015,
p. 108), segundo o qual:
[...] os protagonistas dessa irrupção nos espaços americanos, os Colombo, os
Cabral, os Cortés, os Pizarro, ainda são medievais. As representações do
mundo, da sociedade, dos homens e de Deus de que são portadores ainda são
as do Ocidente medieval.

Almeida (2010, p. 11), ao analisar a obra de Baschet, afirma que:

[...] o autor relaciona o fim da Reconquista e a Conquista para o Oeste, as


navegações em busca de uma nova rota para as Índias com o prolongamento
das estruturas medievais na América. Para ele, esses dois movimentos,
acrescentados da expulsão dos judeus, estão relacionados a um mesmo
empreendimento de solidificação da unidade cristã, do qual os Reis Católicos
11

desejavam liderar. Assim, a Reconquista e a Conquista são dois movimentos de


um mesmo projeto de consolidação do cristianismo.

Não se deve de forma alguma importar acriticamente modelos europeus para


explicar as realidades coloniais do continente americano, mas paralelos podem ser
traçados, questões levantadas e similaridades discutidas. Segundo Le Goff (in
BASCHET, 2006, Prefácio, p. 18):

Jérôme Baschet estima que, sejam quais forem as diferenças entre a Europa
6
medieval e a América colonial do século XVI, o essencial do feudalismo
medieval volta a ser encontrado na América: o papel dominante e estruturador
da Igreja; o equilíbrio de tensão entre monarquia e aristocracia modifica-se, sem
que se rompa, no entanto, a lógica feudal; as atividades cada vez mais
importantes dos homens de negócios, comprometidos com o comércio atlântico
ou com a exploração dos recursos minerais e agrícolas do mundo colonial,
permanecem dentro dos marcos corporativos e monopolistas tradicionais, e
estes homens seguem orientando seus ganhos para a propriedade da terra e a
aquisição de estatuto de nobre.

Baschet (2006) argumenta que mesmo a febre de ouro dos espanhóis que
conquistaram o México não pode ser confundida com um desejo de acumulação
material capitalista. Pelo contrário, o ouro é carregado de simbologia e significados
místico-espirituais, como objeto de dignidade e prestígio. O autor revela também a
mentalidade medieval que impregna os conquistadores, representados aqui por
Colombo:
[...] se Colombo está preocupado até a obsessão com o ouro, é notadamente
porque este deve servir para financiar a expansão da cristandade e, em
particular, o projeto da cruzada destinada a retomar Jerusalém dos otomanos,
do qual ele espera convencer Fernando de Aragão. (BASCHET, 2006, p. 29).

Não se justifica, portanto, a inclusão dos Descobrimentos como elemento de


ruptura da Idade Média para a Idade Moderna. Tanto os homens que os realizam
quanto as sociedades que fundam no processo de Colonização da América são

6
Alain Guerreau considera o senhorio parte do feudalismo. É essa a utilização do termo em Baschet, que Le Goff
toma emprestado (ALMEIDA, 2010).
12

profundamente impregnados pelo Medievo europeu, e levarão muito tempo para que
adquiram feição própria.

[...] é o Ocidente medieval que fica o pé na América, com a chegada dos


primeiros exploradores e, depois, à medida que se consolida a colonização.
Uma Europa dominada ainda por longo tempo pela lógica feudal, com seus
atores principais, a Igreja, monarquia, e a aristocracia (os mercadores vindo em
posição subordinada), e não uma Europa saída transfigurada da crise do fim da
Idade Média e agora portadora das luzes resplandecentes do Renascimento e
do humanismo, da racionalidade e da modernidade, tudo isso suscitado pelo
desenvolvimento do jovem, mas já conquistador, capitalismo comercial!.
(BASCHET, 2006, p. 274-275).

Considerações Finais

Uma vez que foram apresentados os argumentos que pretendem demonstrar a


inadequação da divisão clássica entre Idade Média e Idade Moderna, baseada nos
quatro eventos anteriormente analisados, resta tratar da perspectiva da Longa Idade
Média e das referências cronológicas que justificariam sua adoção.
Segundo Le Goff (2014, p. 129):

[...] um ‘verdadeiro’ período histórico é habitualmente longo: ele evolui, pois a


História jamais é imóvel. No decorrer dessa evolução, ele é levado a
experimentar renascimentos mais ou menos brilhantes, que amiúde se baseiam
no passado, fruto de um fascínio por este último, sentido pela humanidade da
época. Mas esse passado só serve como uma herança que permite o salto para
um novo período.

A longa duração não é, portanto, uma forma de homogeneizar um período, tão-


somente de reconhecer que transformações radicais e abruptas são raras e que entre
os extremos temporais de determinada era há mais permanências que rupturas. Isso
não quer dizer que não hajam mudanças, ou mesmo retrocessos, pois a História é
fluida e dinâmica, resultado das ações dos homens em sociedade. De acordo com
Baschet (2006, p. 44), “A longa Idade Média, em seu conjunto, é um período de
profundas transformações quantitativas e qualitativas e, quanto a esse aspecto, não há
13

mais diferenças entre os séculos XVI e XVII e os séculos XI e XIII do que entre estes e
a Alta Idade Média”.
No que pesem as mudanças trazidas pelos séculos XV-XVII, muito permaneceu
igual, no imaginário, nas práticas sociais, nas formas de trabalho e mesmo na
economia:
[...] no início do século XVI e mesmo além dele, subsiste na Europa uma
economia rural de longa duração. Essa ruralidade, então, até mesmo se
reforça, dado que aqueles que enriquecem graças ao comércio e ao banco
nascente reinvestem grande parte de seus benefícios nas terras. É o caso, na
Itália, dos banqueiros genoveses e florentinos [...]. (LE GOFF, 2014, p. 99).

Por isso mesmo, a periodização tradicional herdada do século XIX, com sua
fixação pelos grandes eventos, não se adequa à realidade da pesquisa histórica
contemporânea e acaba por forçar ao passado conceitos e distinções que lá não se
encontravam.
Quais seriam, então, os elementos definidores da passagem do Medievo aos
Tempos Modernos dentro da longa duração?

“[...] estimo que a mudança de período, ao final da longa Idade Média, se situa
em meados do século XVIII. Ele corresponde aos progressos da economia
rural, apontados e teorizados pelos fisiocratas; à invenção da máquina a vapor,
imaginada pelo francês Denis Papin em 1687 e realizada pelo inglês James
Watt em 1769; o nascimento da indústria moderna que, da Inglaterra, vai se
disseminar por todo o continente. No campo filosófico e religioso, a longa Idade
Média se encerra com a obra que introduziu o pensamento racional e laico, a
ciência e a tecnologia modernas: a Enciclopédia, da qual Voltaire e Diderot são
os mais brilhantes participantes. Por fim, o término do século XVIII corresponde,
no plano político, ao movimento anti-monarquista decisivo da Revolução
Francesa.” (LE GOFF, 2014, p. 123-124).

Esperamos ter demonstrado a utilidade e atualidade do conceito de Longa Idade


Média para a discussão sobre a transição entre o Medieval e o Moderno e mesmo para
a reinterpretação dessa época que, mesmo resgatada da visão de dark ages pelos
historiadores do século XX, ainda não está plenamente realizada, com sua luz e sua
escuridão, no imaginário coletivo.
Nas palavras de Le Goff (2005, p. 212): “[...] se toda época passada ainda vive
no presente, acredito que a Idade Média está particularmente viva e é fundamental na
sociedade de hoje. E estou certo de que inspirará mais fortemente ainda seu futuro”.
14

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Ana Carolina. Pensando o Fim da Idade Média: A Longa Idade Média de Le
Goff e a Colonização da América de Baschet. Revista Tempo de Conquista, v. 7, p. 1-
15, 2010.
BARROS, José Costa D’Assunção. Jacques Le Goff: Considerações sobre Contribuição
para a Teoria da História. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 14, n. 21, p. 135-
156, 2013.
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano Mil à Conquista da América. São
Paulo: Globo, 2006.
FLORI, Jean. A Cavalaria. São Paulo: Madras, 2005.
FRANCO JÚNIOR, Hiláro. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. 2 ed. rev. e
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