A Transição Da Idade Média para A Idade Moderna: Uma Análise Crítica
A Transição Da Idade Média para A Idade Moderna: Uma Análise Crítica
A Transição Da Idade Média para A Idade Moderna: Uma Análise Crítica
RESUMO
Este artigo tem por objetivo questionar o fim da Idade Média defendido pela historiografia
tradicional - situado entre os séculos XV e XVI e marcado por quatro grandes movimentos: o
Renascimento, a Reforma Protestante, a Centralização Política e os Descobrimentos. Através
de revisão bibliográfica, pretende-se demonstrar que esse período foi mais marcado por
continuidades que por rupturas e que o fim do Medievo pode ser melhor compreendido dentro
da perspectiva da Longa Idade Média, postulada por Jacques Le Goff.
ABSTRACT
This article intends to question the end of the Middle Ages defended by traditional historiography
- placed between the 15th and 16th centuries and marked by four major movements: the
Renaissance, the Reformation, the Political Centralization and the Age of Discovery. Through
literature review, it is intended to demonstrate that this period was marked more by continuities
than by ruptures and that the end of the Middle Ages can be better understood from the
perspective of the Long Middle Ages, postulated by Jacques Le Goff.
Considerações Iniciais
A Idade Média foi definida pela historiografia do século XIX como o período entre
o fim do Império Romano do Ocidente, em 476, e o fim do Império Bizantino, em 1453.
Sua origem é mais remota, contudo. Seu nome foi utilizado pela primeira vez pelo poeta
italiano Francesco Petrarca, no século XIV, para se referir aos séculos que julgava de
barbárie entre a Antiguidade Clássica e seus dias (LE GOFF, 2014; FRANCO JÚNIOR,
2001).
1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Este artigo é fruto das discussões
realizadas no grupo de estudos e leitura “História Medieval: Perspectivas Historiográficas”, atividade integrante do
projeto de extensão “Para Além da Graduação” – PROEXT – UNEAL, coordenado pelo professor Gladyson Stelio
Brito Pereira (Mestre em História pela UFF, Doutorando em História pela UFPE).
2
Criticada pelos iluministas – para os quais era uma era de trevas - e idealizada
pelos românticos, a Idade Média foi, talvez, o período histórico que mais passou por
reavaliações e ressignificações, ilustrando a afirmação de Michel de Certeau (apud
NUNES, 2011, p. 17) de que:
Fried (2015) afirma, com ironia, que o que a define é a escolha arbitrária das
universidades, em seu caso alemãs, de atribuir o período entre os anos 500 e 1500 aos
professores da disciplina. Escancarando sua natureza de construto teórico, muitas
vezes mal interpretado, Amalvi (apud ALMEIDA, 2010, p. 2) declara que:
A Idade Média não existe. Este período de quase mil anos, que se estende da
conquista da Gália por Clóvis até o fim da Guerra dos Cem Anos, é uma
fabricação, uma construção, um mito, quer dizer, um conjunto de
representações e de imagens em perpétuo movimento, amplamente difundidas
nas sociedades, de geração em geração, em particular pelos professores do
primário [...].
2
Hilário Franco Júnior prefere o termo Primeira Idade Média.
3
Porém, essa visão nuançada não foi estendida para o final da Idade Média. Os
limites foram alterados, mas pouco flexibilizados. Removeu-se a Queda de
Constantinopla, fixou-se o Renascimento, a Reforma Protestante, a Centralização do
Poder Monárquico e os Descobrimentos como o ponto de entrada nos Tempos
Modernos.
Há quem discorde, contudo. Jacques Le Goff, inspirado pela longa duração de
Fernand Braudel, desenvolveu o conceito de Longa Idade Média, que se estenderia do
século IV ao século XVIII. “As mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente
em todos os setores e em todos os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média
que – em certos aspectos de nossa civilização – perdura e, às vezes, desabrocha bem
depois das datas oficiais”. (LE GOFF, 2005, p. 66).
Para o célebre historiador francês, somente a Revolução Industrial e a
Revolução Francesa marcariam definitivamente o fim do período medieval. Em sua
última obra, A História Deve Ser Dividida em Pedaços?, Le Goff, falecido em 2014,
discutiu profundamente o tema da periodização, analisando a dinâmica entre Idade
Média e Renascimento e defendendo a Longa Idade Média com a erudição de uma das
maiores autoridades do gênero.
De acordo com José D’Assunção Barros (2013, p. 143), “[...] uma característica
importante do pensamento teórico e historiográfico de Jacques Le Goff é a sua
capacidade crítica de se adaptar às novas demandas, de redefinir caminhos a serem
seguidos”. É nesse espírito de redefinição que serão analisados aqueles quatro
momentos-chave tidos como condicionadores da passagem do medieval para o
moderno.
Renascimento
Essa visão do Renascimento, percebido como uma nova era de luz e esperança
– um verdadeiro alvorecer da humanidade – após um longo período de caos e trevas,foi
criada por Michelet e popularizada por Burckhardt no século XIX.
Reforma Protestante
Almeida (2010, p. 13), ao estudar o fim da Idade Média dentro da longa duração,
argumenta que:
[...] mesmo entre os medievalistas atuais, sobretudo, entre aqueles ligados à
História da Igreja, como, por exemplo, Guy Lobrichon, há grande resistência ao
prolongamento da Idade Média para além do século XVI. Segundo tais
historiadores, a Reforma Protestante deve ser vista como uma grande ruptura,
uma vez que produziu modificações profundas na Igreja e também forçou tal
instituição a lidar com a existência de outras Igrejas, rompendo assim um dos
pressupostos da Igreja medieval, ou seja, o da sua inserção universalista.
De fato, a Igreja medieval foi destronada de seu posto de senhora única, mas é
necessário lembrar que seu domínio não foi absoluto durante todo o Medievo: a
conversão das populações da Escandinávia só se consolidou no século XII, e a
Cruzada da Livônia converteu os Prussianos à força no século XIII. Na Península
Ibérica, que teve vastos territórios dominados pelos sarracenos durante a maior parte
da Idade Média, o último bastião islâmico, Granada, só foi tomado em 1492. No âmbito
da Cristandade, foram inúmeras as heresias a questionar a ortodoxia oficial, como os
Cátaros no Languedoc, mesmo que duramente perseguidas.
Nas palavras de Hilário Franco Júnior (2001, p. 156):
O Protestantismo [...] foi em última análise apenas uma heresia que deu certo.
Isto é, foi o resultado de um processo bem anterior, que na Idade Média tinha
gerado diversas heresias, várias práticas religiosas laicas, algumas críticas a
um certo formalismo católico. Nesse clima, a crise religiosa do século XVI
comprovou ser inviável para a Igreja satisfazer aquela espiritualidade mais
ardente, mais angustiada, mais interiorizada. Foi exatamente nesse espaço que
se colocaria o Protestantismo. E sem a possibilidade de ser sufocado pela
ortodoxia católica (ao contrário do que ocorrera com as heresias medievais),
por ele atender às necessidades profundas decorrentes das transformações
socioculturais verificadas desde os últimos tempos da Idade Média.
Centralização Política
3
Cf. JONES, Dan. The Plantagenets: The Kings who Made England. London: HarperPress, 2012.
4
Cf. POWER, Daniel. Who Went on the Albigensian Crusade?. English Historical Review, Oxford, v.
128, n. 534, p. 1047-1085, out. 2013
9
Para eles, um ‘país’ é um modo de viver, sentir, falar, comer, que une entre si
as pessoas aproximadas também pelo serviço de um mesmo senhor, pelas
relações de homem a homem, familiares ou de vassalagem, que lhes dão
coesão. É, no fundo, uma noção mais real, ligada ao sangue, à antiga
concepção tribal, clânica, mais profunda e mais profundamente ancorada que
uma espécie de ‘direito do solo’, demasiadamente jurídico e abstrato para essa
época em que o contato físico, pela visão, pelo tato, conta mais que a
declaração abstrata de um escrito. (FLORI, 2005, p. 56-57).
Essa visão, prevalente até a Idade Média Central (séculos XI-XIII), é ligada ao
instituto da vassalagem, e vai aos poucos se transformando, à medida que os
suseranos transformam-se em soberanos e as línguas vernaculares – que estão na
origem dos sentimentos nacionalistas - se consolidam (FRANCO JÚNIOR, 2001).
O Absolutismo não marcou o fim da Idade Média, mas sim da feudalidade, em
crise a partir do século XIV, e compreendido aqui como as relações estruturais de poder
internas da nobreza: lealdade e serviço do senhor guerreiro em troca de benefícios e
proteção pelo suserano. O domínio exclusivo do monarca sobre o território do reino –
que aqui começa a se confundir com nação – se dá pela posse da terra, e pela sujeição
daqueles que nela vivem e trabalham. Essa relação tipicamente medieval, o senhorio5,
permanecerá prevalente até o século XVIII (FOURQUIN, 1970).
Ao abordar o Antigo Regime, inserido pela historiografia tradicional na Idade
Moderna, Franco Júnior argumenta que:
Enquanto a formação dos Estados Nacionais é mais difícil de precisar, ela passa
necessariamente pelo período medieval. Prova disso é, segundo Hilário Franco Júnior
5
O feudalismo, na concepção de Guy Fourquin (1970), não existiu em toda a Europa, nem durou toda a Idade
Média. O senhorio, ou dominium, por outro lado, foi uma de suas características essenciais.
10
Descobrimentos
Jérôme Baschet estima que, sejam quais forem as diferenças entre a Europa
6
medieval e a América colonial do século XVI, o essencial do feudalismo
medieval volta a ser encontrado na América: o papel dominante e estruturador
da Igreja; o equilíbrio de tensão entre monarquia e aristocracia modifica-se, sem
que se rompa, no entanto, a lógica feudal; as atividades cada vez mais
importantes dos homens de negócios, comprometidos com o comércio atlântico
ou com a exploração dos recursos minerais e agrícolas do mundo colonial,
permanecem dentro dos marcos corporativos e monopolistas tradicionais, e
estes homens seguem orientando seus ganhos para a propriedade da terra e a
aquisição de estatuto de nobre.
Baschet (2006) argumenta que mesmo a febre de ouro dos espanhóis que
conquistaram o México não pode ser confundida com um desejo de acumulação
material capitalista. Pelo contrário, o ouro é carregado de simbologia e significados
místico-espirituais, como objeto de dignidade e prestígio. O autor revela também a
mentalidade medieval que impregna os conquistadores, representados aqui por
Colombo:
[...] se Colombo está preocupado até a obsessão com o ouro, é notadamente
porque este deve servir para financiar a expansão da cristandade e, em
particular, o projeto da cruzada destinada a retomar Jerusalém dos otomanos,
do qual ele espera convencer Fernando de Aragão. (BASCHET, 2006, p. 29).
6
Alain Guerreau considera o senhorio parte do feudalismo. É essa a utilização do termo em Baschet, que Le Goff
toma emprestado (ALMEIDA, 2010).
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profundamente impregnados pelo Medievo europeu, e levarão muito tempo para que
adquiram feição própria.
Considerações Finais
mais diferenças entre os séculos XVI e XVII e os séculos XI e XIII do que entre estes e
a Alta Idade Média”.
No que pesem as mudanças trazidas pelos séculos XV-XVII, muito permaneceu
igual, no imaginário, nas práticas sociais, nas formas de trabalho e mesmo na
economia:
[...] no início do século XVI e mesmo além dele, subsiste na Europa uma
economia rural de longa duração. Essa ruralidade, então, até mesmo se
reforça, dado que aqueles que enriquecem graças ao comércio e ao banco
nascente reinvestem grande parte de seus benefícios nas terras. É o caso, na
Itália, dos banqueiros genoveses e florentinos [...]. (LE GOFF, 2014, p. 99).
Por isso mesmo, a periodização tradicional herdada do século XIX, com sua
fixação pelos grandes eventos, não se adequa à realidade da pesquisa histórica
contemporânea e acaba por forçar ao passado conceitos e distinções que lá não se
encontravam.
Quais seriam, então, os elementos definidores da passagem do Medievo aos
Tempos Modernos dentro da longa duração?
“[...] estimo que a mudança de período, ao final da longa Idade Média, se situa
em meados do século XVIII. Ele corresponde aos progressos da economia
rural, apontados e teorizados pelos fisiocratas; à invenção da máquina a vapor,
imaginada pelo francês Denis Papin em 1687 e realizada pelo inglês James
Watt em 1769; o nascimento da indústria moderna que, da Inglaterra, vai se
disseminar por todo o continente. No campo filosófico e religioso, a longa Idade
Média se encerra com a obra que introduziu o pensamento racional e laico, a
ciência e a tecnologia modernas: a Enciclopédia, da qual Voltaire e Diderot são
os mais brilhantes participantes. Por fim, o término do século XVIII corresponde,
no plano político, ao movimento anti-monarquista decisivo da Revolução
Francesa.” (LE GOFF, 2014, p. 123-124).
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Ana Carolina. Pensando o Fim da Idade Média: A Longa Idade Média de Le
Goff e a Colonização da América de Baschet. Revista Tempo de Conquista, v. 7, p. 1-
15, 2010.
BARROS, José Costa D’Assunção. Jacques Le Goff: Considerações sobre Contribuição
para a Teoria da História. Cadernos de História, Belo Horizonte, v. 14, n. 21, p. 135-
156, 2013.
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano Mil à Conquista da América. São
Paulo: Globo, 2006.
FLORI, Jean. A Cavalaria. São Paulo: Madras, 2005.
FRANCO JÚNIOR, Hiláro. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. 2 ed. rev. e
ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001.
FRIED, Johannes. The Middle Ages. Cambridge: Harvard University Press, 2015.
FOURQUIN, Guy. Senhorio e Feudalidade na Idade Média. Lisboa: Ed. 70, 1970.
GIOVANAZZI, Maria Cristina P. M. Renascimento: Uma Ruptura Medieval ou
Continuidade Moderna? História, Imagem e Narrativas, n. 18, p. 1-12, 2014.
LE GOFF, Jacques. A História Deve Ser Dividida em Pedaços?. São Paulo: Editora
Unesp, 2015.
______________. Em Busca da Idade Média. Com a Colaboração de Jean-Maurice
de Montremy. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
______________. Heróis e Maravilhas da Idade Média. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
NUNES, Daniela. Pesquisa Historiográfica: Desafios e Caminhos. Revista de Teoria da
História, Goiânia, ano 2, n. 5, p.15-25, jun. 2011.
SCHAUB, Jean-Fréderic. A Europa da Expansão Medieval: Séculos XIII a XV. In:
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). O Brasil Colonial v. 1: 1443-
1580. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.