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DRAMATURGIA: A ARTE DE ATOR EM PROCESSOS COLABORATIVOS

Laura Alves Moreira 1

Resumo: A dramaturgia contemporânea não se refere mais a um conceito


singular, a arte de escrever dramas, mas aborda todas as artes da cena e suas
articulações. Este fenômeno associado a profunda modificação no modo de se
fazer teatro que acontece nos anos 60, com a democratização dos processos
criativos, gera o conceito de dramaturgia do ator. Assim, a expansão do
conceito assinala um novo paradigma na criação artística, baseada na
desierarquização das artes e em novos protocolos de criação, onde o intérprete
se situa no centro do processo criativo. Nesta comunicação, proponho-me a
caracterizar e refletir sobre as inovações que este conceito gera na cena
contemporanea.

Palavras-chave: dramaturgia do ator, protocolos de criação, processo


colaborativo

A dramaturgia do ator é um conceito que vem sendo utilizado pelos


artistas e pesquisadores brasileiros para falar de um fenômeno relativamente
recente no qual o ator se configura como o centro do processo criativo. É um
espaço de grande autonomia, o que não significa necessariamente que será o
único a tomar decisões, ou seja, não significa que não se divida o poder de
decisão com um grupo, ou que não se reporte a um diretor. Significa
simplesmente que será responsavel por sua “invenção e composição, que tem
por objeto as ações físicas e vocais.”(DE MARINI in apud STELZER, 2010). Esta
composição normalmente deriva de um modo de produção associado ao teatro
de grupo e aos processos colaborativos, onde os protocolos de criação
normalmente são baseados em exercicios de treinamento de ator e em
improvisos, que posteriormente serão repetidos e codificados para a cena.
Assim, discutir este conceito significa abordar a questão sob dois aspectos:
primeiramente, analisar o processo que leva o conceito de dramaturgia a se
expandir; e, talvez principalmente, discutir os caminhos que nivelam a
hieraquia teatral e que induzem o ator a se colocar ativamente como criador e
não apenas no papel de interpretar a criação de outrem.

DRAMATURGIA E TEATRO DE GRUPO

Seguindo esse caminho, podemos dizer que o século XX assiste o conceito


de dramaturgia sofrer profundas modificações. O que antes era a arte de
construir dramas, mediado pelo diálogo e centrado na palavra, o pilar da

1 Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, a autora é poetisa e atriz.

Atualmente está elaborando sua dissertação de mestrado, no âmbito do Programa de Pós-


Graduação em Arte da Universidade de Brasília (UnB), sob a orientação do Prof. Dr. Marcus Mota.
[email protected]
telefone de contato 61- 81241863
construção artistica, vai lentamente mudando o seu formato, adicionando
técnicas líricas e épicas (Szondi, 2001), repensando o espaço, tempo, trama e,
por fim, dividindo sua autoria. Deste modo, chega ao final do século
completamente transformado, expandido, associado inseparavelmente à
encenação, muitas vezes apenas com leves semelhanças com conceito original.
Deste modo, a expansão do conceito de dramaturgia assinala uma nova
maneira de se pensar a cena e, principalmente, a sua autoria. Sobre esse fato
Jean-Jacques Roubine declara:

“O problema do lugar e da função do texto dentro da realização cênica é


menos recente do que se costuma imaginar e, além e acima das
considerações estéticas, ele representa um cacife ideológico. No fundo,
trata-se de saber em que mãos cairá o poder artístico, ou seja, a quem
caberá tomar as opções fundamentais, e quem levará aquilo que
antigamente se chamava “a glória” [...] (1982, p.45 – aspas do autor)”.

Se na primeira metade do século XX se encontra a ascensão do diretor,


que se confunde com a figura do encenador; na segunda metade se encontra a
ascensão de trabalhos de grupo, de trabalhos que assinam não só a encenação,
mas também a própria criação dramatúrgica. Sobre isso Carreira comenta:

“A predominância da direção foi paulatinamente deslocando a autoria do


texto dramático do centro dos processos de criação. A cena, não como
transcrição do texto dramático, mas como resultado da experiência
concreta criou o espaço no qual, atores de diretores tem uma presença
fundamental na hora da produção de sentidos do espetáculo. O próprio
fato de que se tenham multiplicado as acepções do termo ‘dramaturgia’,
surgindo inclusive expressões como “dramaturgia do ator”, indica que os
deslocamentos de sentidos que experimenta o teatro implicam na
transformação, não só de suas formas de criação, mas também da
própria noção de teatro onde talvez o diretor – aquele ser quase
onipresente – perca inevitavelmente espaço.” (Carreira, 2009, p. 8)

Após o dominio dos diretores, os anos 60 e 70 trazem a ascençao do


teatro de grupo, através do que foi chamado de o “Teatro Novo”, que
influenciou muito o teatro de grupo brasileiro dos anos 80 e 90. De acordo com
Oliveira:

“O teatro Novo se definiu a partir das atividades de grupos tais como o


Living Theatre, o Teatro Campesino, o Bread and Puppet Theatre, San
Frascisco Mime Troupe, e das propostas de Peter Brook, do Teatro-
Laboratório de Grotowski, do Open Theatre, e finalmente do Odin
Teatret de Eugênio Barba. Estes constituem os principais exemplos
europeus e norte americanos.(...) Os pontos comuns entre os grupos do
“Teatro Novo” foram:
a) Progressiva resistência ao texto dramático, em favor de uma
elaboração dramática que nasça, e se desenvolva no seio do grupo em
estreito contato com o desenvolvimento dos trabalhos cênicos realizados
para o espetáculo.
b) Crítica à figura, e ao papel do diretor, com o objetivo de conquistar
uma concepção cênica coletiva, ou seja, do grupo 8.
c) Resistência ao naturalismo como estilo teatral e, em particular, ao
chamado método stanislaviskiano como técnica de atuação.
d) Interesse crescente pelo trabalho do ator, para o qual se trata de
elaborar um novo método, mediante exercícios e sessões sistemáticas
de laboratório.
e) No plano dos conteúdos, os elementos comuns do “Novo Teatro”
estavam acerca, sobretudo, da área política cultural e da nova esquerda
americana e dos radicais.” (Oliveira, 2009, p.14)

Esse teatro se torna modelo para muitos grupos que buscam outros
paradigmas de produção, conforme também registra Oliveira:

”Na atualidade se tem entendido por teatro de grupo, manifestações


teatrais que se definem pelo uso do treinamento do ator, pela busca da
estabilidade do elenco, por um projeto de longo prazo e pela organização
de práticas pedagógicas.”(CARREIRA, OLIVEIRA, 2004)

Assim os principios de coletivização e a organização de práticas de longo


prazo são uma resposta à conformatividade estética e às praticas autoritárias
do teatro de diretor. Paradoxalmente, no teatro de grupo o ator se torna o
protagonista, mas diferentemente do teatro de grandes estrelas, essa
importância do ator não se dá pelo seu brilho individual, mas pela “possibilidade
de coletivização de suas ações dentro do grupo.”(OLIVEIRA, 2009, p.17.)

NOVOS CONCEITOS PARA NOVAS PRÁTICAS

Novas práticas exigem novos conceitos. Quando os artistas ingressam nas


academias e, incentivados a escrever e descrever suas práticas artísticas,
buscam a conceituação e a publicação do que antes era disponibilizado quase
que somente em palestras, salas de aula ou na própria prática criativa,
percebem a necessidade de uma renovação epistemologica. Por exemplo,
quando deparados com a necessidade de conceituar espetáculos não mais
orientados pela palavra, não são mais amparados pelo conceito de dramaturgia
tradicional.
No Brasil, esse fenômeno se dá de modo contundente somente em 1970,
ano em que se inicia a pesquisa em Artes Cênicas, com o primeiro mestrado, e,
em 1980, com o primeiro doutorado na USP (BIÃO, 2009, p. 71). É a partir
dessa década também que se intensificam a tradução e a publicação de livros
da área escrito por artistas, espaço até então dominado por jornalistas, como
Décio de Almeida Prado, Bárbara Heliodora e Sábato Magaldi, que se
concentravam na analise textual de autores teatrais, dominados por uma
estética que senão conservadora, ao menos de logo centrada. Essas novas
publicações são de extrema importância, pois até então muito poucos artistas
estavam familiarizados com as novas proposições estéticas em
desenvolvimento em outros lugares.
Ainda assim é um processo lento. A preparação do Ator, de Stanislaviski
será publicada somente em 1964; Em busca de um Teatro Pobre, de Grotowski
em 1971; e somente em 1995 tem-se a primeira publicação de O Dicionário de
Antropologia Teatral Eugenio Barba e Nicola Savarese. A obra de Barba e a de
Grotowski são muito importantes para a construção posterior do conceito de
dramaturgia do Ator, uma vez que ambos situam a importância do ator no
processo criativo e produzem outros sentidos de dramaturgia. São publicações
que questionam os parâmetros do teatro convencional e que propõem uma
nova abordagem dos artistas diante da criação. O próprio conceito de
treinamento e laboratório serão fundamentais para a descoberta de novas
possibilidades cênicas.
Nos anos 70 no Brasil, essas influências geram o primeiro boom de teatro
de grupo que trabalha com técnicas de Criação Coletiva, como mostram os
grupos de teatro Asdrúbal que trouxe o Trombone, Ornitorrico e Mambembe e
outros (NICOLETE, 2002). Os Processos de Criação Coletiva são considerados
os antecessores do Teatro Colaborativo que, nos anos 90, vão trazer ainda mais
inovações para a cena Brasileira.

TEATRO COLABORATIVO E A DRAMATURGIA DO ATOR

Nos anos 90, ocorre o segundo boom de teatro de grupo que, além de
seus aspectos ideológicos, torna-se importante estratégia para a sobrevivência
artística, principalmente no teatro realizado fora do eixo Rio-São Paulo, de
grandes produções e patrocínios privados. Todos os trabalhos de um teatro de
grupo são munidos de grande interdependência. No entanto, entre os possíveis
modos de se trabalhar está o que foi chamado de Processo Colaborativo. Por
processo colaborativo, entendemos:

Processo contemporâneo de criação teatral (...) Surge da necessidade de


um novo contrato entre os criadores na busca da horizontalidade nas
relações criativas (...) Todos os criadores envolvidos colocam
experiência, conhecimento e talento a serviço do espetáculo, de tal
forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação deles
(...).(ABREU e NICOLETE, 2006, p. 253)

No teatro colaborativo todos participam da montagem em todos os seus


aspectos, ou seja, existem funções diferenciadas distribuídas pelas habilidades
e interesse; diretor, ator, figurinista, cenógrafo e dramaturgo, mas são funções
diluídas e sempre abertas a discussões e opiniões do coletivo, muitas vezes até
à participação direta. Isso gera no grupo um censo de autoria sobre o total da
criação, e mesmo que as assinaturas sejam diferenciadas em funções, em
ultima instância tudo pertence ao grupo.
No que tange à dramaturgia, o processo colaborativo tende à construção
dos próprios textos, a partir de discussões e exercícios. Não é difícil entender
que em um processo onde todos tem voz, um único texto não contemple todos
os participantes. Assim para a construção desse material, um dramaturgo
assiste aos ensaios e, a partir das propostas de cena e texto dos atores, um
texto começa a ser desenvolvido, texto que será escrito e reescrito de acordo
com as opiniões do grupo e das necessidades da cena.
É importante frisar que o dramaturgo também possui autonomia de
criação e está em pé de igualdade com os outros artistas do processo, ou seja,
se não é o único criador não significa isso que não seja criador também. Sobre
a função do dramaturgo Nicolete esclarece:
Tudo que é produzido em sala de ensaio é devidamente apreciado,
discutido e registrado pelo dramaturgo até um ponto que se julgue
‘satisfatório’ quanto aos propósitos originais. O dramaturgo, que pode ou
não estar presente em tempo integral, intervém com idéias,
encaminhamentos e sugestões de texto/cena, transforma as sugestões
dos atores – que, muitas vezes, podem não ter estrutura dramatúrgica –
em núcleos de ação; elabora a síntese de elementos que se repetem ou
que são similares; insere dados, promove a unidade textual, sem as
‘amarras’ da quase obrigatoriedade de conservar o material individual
criado pelos atores o que, veremos, é uma das principais características
da criação coletiva.(NICOLETE, 2002)

Diferente daquele das criações coletivas, o processo colaborativo sente a


necessidade de um dramaturgo para alinhavar a dramaturgia. Afinal, a grande
critica que se fez às criações coletivas dos anos 70 era a falta de eixo, em que o
espetáculo perigava cair no caos, perder-se na falta de forma. De todo o modo,
a chave desse processo criativo se encontra em não mais distanciar cena e
texto, nao mais previlegiar um sobre o outro, mas principalmente associar sua
construção de modo a que não haja precedência, com um dramaturgo para
eliminar as arestas.
É a partir desse processo que se começa a entender o que hoje é chamado
de dramaturgia do ator

“Com estas novas experiências colaborativas, a concepção de


dramaturgia passaria a ser utilizada, a partir dos anos 1980, enquanto
processo de composição artística, que designaria não apenas as funções
do autor do texto, mas também as da constituição da ‘escrita cênica’, da
qual participaria o diretor e sua equipe de criação, incluindo o ‘ator-
criador’, um importante elemento deste processo, no que passou a se
denominar ‘dramaturgia do ator’.(FREITAS, 2010, p.4)

Pode-se ver que o termo dramaturgia do ator vem sendo utilizado em


espetáculos que pressupõem a autonomia do ator e forte colaboração no
processo de organização e criação da cena. O ator torna-se o elemento central
para a criação do espetáculo no momento em que ele relaciona a sua escritura
poética com os outros elementos teatrais. O importante é descobrir os
dispositivos de que o ator dispõe para criar teatralidade.
Eugenio Barba diferencia o que define como Montagem do Ator e
Montagem do Diretor. A montagem do ator não necessariamente depende da
presença de um diretor ou de um texto teatral, é um espaço livre onde o ator
utiliza-se do domínio de seu material pré-expressivo e de suas matrizes
codificadas para investigar variações dessas matrizes no tempo e no espaço e
diversas formas de conectá-las organizando e aprimorando seus códigos de
representação.
Mais tarde será função do diretor organizar esse material disponibilizado
pelo ator. Barba ainda define dramaturgia como o trabalho de ações ou,
sequência organizadas de ações (1995. P.68). A partir dessas definições
compreende-se que se um ator define o conjunto de ações de uma cena, sua
partitura contribui também para a dramaturgia do espetáculo, tornando-se ele
mesmo autor.
Indo talvez ainda mais longe, vemos que ao final este processo
denominado de dramaturgia do ator surge como consequencia direta da
ascenção do trabalho de grupo onde, com relações de poder flexiveis e atos
criativos divididos, cada participante pode se denominar autor, seja de um
texto, de uma cena, de uma partitura de movimentos. Assim, a dramaturgia do
ator surge de uma experiência de grupo onde todos assinam ao final a
responsabilidade artistica e criativa de compor um espetáculo.

Bibliografia

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Periódicos

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13 – 24. Rio de Janeiro, abril/junho 2010

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OLIVEIRA, Valéria Maria de.”Teatro de Grupo: pensamentos sobre este local de
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