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Dramaturgia do ator: os processos de criação na Fondazione Pontedera Teatro – A

busca pelo ator criador a partir dos pressupostos de Jerzy Grotowski

Letícia Maciel Leonardi


Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas – UNESP (Mestranda)
Estética e poéticas cênicas- Or. José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez
Atriz do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam e pesquisadora do Grupo Terreiro de
Investigações Cênicas: teatro, brincadeiras, rituais e vadiagens, coordenado pela professora
Dra. Marianna Monteiro.

Resumo:
O artigo prevê uma breve reflexão acerca dos processos de criação na Fondazione
Pontedera Teatro, Itália, hoje e ao longo de sua história. Como processo criativo entende-se
a dramaturgia viva elaborada pelo ator em um processo de montagem que o compreenda
como criador e, portanto também produtor de uma dramaturgia. Perpassaremos as
transformações sofridas na preparação de atores deste contexto e as influência de Jerzy
Grotowski que em 1986 a convite do Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatral,
atual Fondazione Pontedera Teatro, transfere-se para a cidade criando junto a Thomaz
Richards o Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards.

Palavras-chave: dramaturgia do ator, Fondazione Pontedera Teatro, Roberto Bacci, Jerzy


Grotowski

E se alguém tiver em mente


um dia, fazer um mapa deste itinerário;
de percorrer novamente os lugares,
de examinar os traços,
eu asseguro que será somente para encontrar um novo início
Antonio Neiwiller1

Pontedera é uma pequena cidade industrial localizada na região toscana da


Itália. Era é o nome do rio que batiza a cidade, sobre ele uma ponte, daí o nome Pontedera.
A história deste lugar distante, por algumas razões chega a nós, como se o rio Era e seus
afluentes ao desaguarem no mar, cruzassem o Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.

Os vestígios desta travessia são também resquícios que narram a história do


teatro no século vinte, a busca por um “outro” teatro, um novo ator, a procura por uma ética
no fazer teatral.Neste artigo não daremos conta de compreender a importância desta
pequena cidade no contexto teatral brasileiro, porém são aqui lançados os primeiros traços
dessa travessia, cientes da impossibilidade de conter as marés e o rio que continuam a
correr.

1
SCHINO, Mirella. Il Crocevia del Ponte D' Era -Storie e voci da una generazione teatrale 1974-1995.
Bulzoni Editore, 1996.p.249.
1
Para buscar entender o ator e as suas problemáticas em Pontedera hoje, nos
debrucemos sobre a história deste lugar. Nos anos setenta, influenciado pelos ideais do
Living Theatre, o Piccolo Teatro di Pontedera surge a fim de desenvolver um grupo de
pesquisa experimental. O Piccolo, traçou as primeiras linhas de uma história que hoje
ultrapassa trinta anos, dando origem, por iniciativa de Roberto Bacci, ao Centro per la
Sperimentazione e la Ricerca Teatrale- atual Fondazione Pontedera- que em 1986, passa a
abrigar Jerzy Grotowski e o Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards2.

Mirella Schino ressalta no livro II Crocevia Del Ponte D’Era que para poder
pensar o impacto sobre a cidade exercido por um grupo como àquele é preciso
compreender este fenômeno como um sintoma histórico de algo muito maior. Era uma
geração toda que através de revistas e livros se perguntava incessantemente sobre as
problemáticas do ator. “Então, a chegada de Grotowski neste período é sentida como a
força de um meteoro” (SCHINO,1996,p.21).

Silvia Pasello, ex-atriz da Compagnia Laboratorio diz em entrevista “que


devemos compreender que teatro de grupo nos anos 70 queria dizer, e ainda quer dizer,
muitas coisas, mas em primeiro lugar auto-pedagogia, uma maneira de evitar a escola”
(SCHINO,1996,p.114). O teatro vivia o momento da superação dos próprios limites. O
training era o signo de uma pesquisa técnica que devia transformar tanto o corpo, como o
espírito de quem o fazia, ou seja, o ator precisava expressar uma capacidade corporal
quase atlética, permitindo que pudessem ecoar através de si níveis de energia extra
cotidianos. Para ilustrar este momento, Schino traz um trecho de um artigo de Barba:
No nosso teatro não existem professores, não existem
pedagogos, são os próprios atores que têm criado o treinamento. Os
companheiros mais velhos dão conselhos, colocam a sua experiência a
serviço dos mais jovens. Orientado por um dos mais velhos, o jovem
começa a assimilar uma série de determinados exercícios que uma vez
padronizada lhe permite traduzi-la pessoalmente[...] nisso consiste o valor
essencial do treinamento: auto disciplina diária, personalização do trabalho,
demonstração de que se pode mudar. [...] O treinamento é um encontro
com a realidade que se escolheu: qualquer coisa que se faça, conversa com
todo seu ser. Por isso falamos de preparação, do training e não de uma
escola [...] para chegar a este ponto de liberdade precisamos de auto
3
disciplina.

Além do pensamento presente no Piccolo e nos grupos dos anos 70, este tinha
uma característica que o diferenciava de outros grupos: seus atores eram homens e
mulheres de teatro, pois eram também responsáveis pelo trabalho burocrático do Centro de

2
Tem por sua base a prática de elementos técnicos da arte performativa e a sua relação com as tradições
culturais, ritualísticas e antigas tanto do oriente quanto do ocidente. O objetivo é transmitir práticas, técnicas
metodológicas e criativas , ligadas ao trabalho que Grotowski desenvolveu nos últimos trinta anos.
3
SCHINO, Mirella. Il Crocevia del Ponte d’Era. “Tradução nossa”, p. 68.

2
Pontedera. Aos poucos o Centro foi criando autonomia do grupo e cada vez mais tornava-se
um órgão independente. Em 1986 o Piccolo Teatro di Pontedera chega ao fim, dando
origem a Compagnia Laboratorio.

Stéfano Vercelli, François Kahn e Laura Colombo, eram atores oriundos do


projeto Teatro delle Fonti, guiado por Grotowski. O projeto envolvia pessoas de diferentes
culturas e compreendia aspectos dramáticos e ritualísticos ligados a tradições antigas. Estes
atores aliados a Bacci e mais tarde Silvia Pasello darão origem à primeira formação da
Compagnia Laboratorio. Como principais características deste grupo requer atenção a
busca por uma auto-pedagogia.O grupo que até então era estável, caracterizava-se por
utilizar-se de princípios rígidos de treinamento, e muitos processos de criação estiveram
voltados para espaços não convencionais que estabeleciam proximidade entre atores e
público.
Com o passar dos anos, pessoas mais jovens passaram a integrar o coletivo que
durante um período compreendeu indivíduos de gerações bastante diferentes. Em 2009 a
companhia, agora semi estável, era composta por oito atores jovens de diferentes regiões
da Itália. Eles encontram-se em momentos determinados para cursos, ensaios e criação de
espetáculos. A maioria dos integrantes tem uma formação acadêmica ou técnica na área,
além de experiências em outros grupos. A dramaturgia produzida por este coletivo está
centrada em espaços fechados, embora não necessariamente em palco italiano. Ora os
atores se utilizam de um texto, ora o produzem.Sobre este aspecto fala um dos
componentes:
4
No caso de espetáculos como “O Zurro do Asno” e Mutando
5
Riposa partiu-se de uma idéia base que levou a elaboração das ações
teatrais, sobre as quais, num segundo momento, experimentamos textos de
várias origens a fim de encontrar aquele que respondesse melhor a
natureza das ações ou do espetáculo que se construía.Os textos são
propostas dos atores, ou na maioria das vezes do diretor e do
dramaturgo.Quero deixar claro porém, que os textos são trazidos quando as
ações já estão muito bem estruturadas, são pequenas histórias sem fala,
6
mas absolutamente já muito estruturadas e claras.

O training não é mais utilizado coletivamente, embora alguns atores relatem


praticá-lo em outros grupos ou em seqüências individuais. Sobre este aspecto, o ator Tazzio
Torrini, revela um ponto de vista bastante crítico e embora esteja em oposição a esta

4
Espetáculo criado em 2003 a partir da obra O Idiota, de Dostoievski. Dramaturgia: Roberto Bacci e Stefano
Geraci. Direção: Roberto Bacci. Com: Compagnia Laboratorio di Pontedera (Elena Ciardella, Marco de Liso,
Andrea Fiorentini, Renzo Lovisolo, Silvia Pasello, Silvia Rubes e Tazio Torrini).
5
Espetáculo de 2009, criado a partir do tema do surgimento da consciência no ser humano. Com: Compagnia
Laboratorio di Pontedera (Savino Paparella e Tazio Torrini).Dramaturgia Stefano Geraci. Direção: Roberto
Bacci.

6
TORRINI, Tazio. Questionário aplicado por mim em 28/02/2009. Tradução nossa.
3
prática, sua fala trás em essência uma visão coerente com as pesquisas desenvolvidas em
Pontedera, pois refere-se principalmente a uma ética no fazer teatral e a compreensão de
que o ator é autor de sua formação:

Vivendo em Pontedera ouvi falar muito em training, quase se


tratando de uma específica doutrina teatral. Não tive nunca o prazer de
praticá-lo com quem falava sobre isso, faltando evidentemente e estes o
prazer de passar o seu saber. Para mim, o pouco que entendo e pratiquei
me parece, afinal de contas, uma forma de ginástica bastante forçada e
árida para a minha natureza, talvez esteja errado, mas não me foi permitido
saber.
[...] me preparo cotidianamente para o trabalho de ator como
me preparo para o “trabalho”de ser humano. É o mesmo trabalho e o
“como”se faz é que representa uma preparação. [...] Todas as atividades
que pratico, as pratico para “mim” e estão em plena consciência para o
“ator”que sou [...] A minha preparação humana foca-se sobre cultivar
atenção, presença e energia. À noite pratico um breve relaxamento, penso
como foi o dia e como será o dia seguinte, [...]procuro dormir pouco e bem,
para acordar de manhã com o corpo “limpo” e flexível e a mente livre.
Depois de levantar pratico alguns exercícios de energização derivados de
7
Qi Gong , [...]exercito atividades solitárias como andar de bicicleta e
caminhar que me colocam em contato com o meu corpo e o ambiente a
minha volta. Tomo sol. Leio tudo aquilo que me serve, conduzo grupos de
teatro, pra mim é muito útil porque me permitem verificar e colocar em
prática com outras pessoas a minha experiência resumida em
regras[...]Procuro basear me nos conceitos do livro “Para o Ator”de Michael
Chekhov[...]Se posso usar uma sala de ensaio, pratico exercícios de corpo
mais específicos, de aquecimento vocal ou de natureza psicofísica. Gosto
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muito de me preparar de acordo com o método de Ingemar Lindh .Também
existem exercícios de preparação mais específicos propostos para o
trabalho sobre cada espetáculo.Esta preparação acontece em grupo e
funciona para encontrar uma escuta e uma compreensão específica sobre o
espetáculo. [...]

Percebemos na fala do ator, um possível conflito de gerações entre os atores da


década de 70 e 80 que se utilizavam do training em oposição aos atores mais jovens de
diferentes formações que neste caso não receberam a tradição desta prática.Curiosamente,
é possível notar que em seu entendimento do ofício e também em sua preparação Torrine
usa-se de palavras que são justificáveis dentro de um mesmo contexto. Em sua fala, termos
como “limpo”, “flexível”, “a solidão”, “como se faz”, e principalmente os valores éticos do
ofício revelam que de alguma forma, houve uma transmissão deste saber. Não é de se
admirar, pois esta noção tanto de técnica como de ética do ofício foi um ideal amplamente
difundido no teatro do século XX e que teve como grande expoente Jerzy
Grotowski.Podemos pensar em Grotowski como uma nascente, Pontedera centralizou uma
genealogia de artistas, e encenadores que de alguma forma possuem um cerne comum,

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Suas diversas formas são originárias da China. Consiste de exercícios que envolvem práticas de respiração e
ou movimentos específicos, com o objetivo de aumentar e equilibrar o qi.O princípio básico envolve a meditação
em um centro de energia vital conhecido como dantian.

8
Diretor e pedagogo suéco, foi assistente de na escola de Etienne Decroux em Paris.
4
pois sua produção diz respeito à uma dramaturgia do ator. Artistas deste contexto
vislumbram enquanto ponto de partida para a criação o consenso de que o ator é o sujeito
criador de uma poética e, portanto, aquele que possui maior autonomia sobre o espetáculo.
Estas experiências em Pontedera nos permitem refletir sobre de que maneira
pode acontecer este processo de travessia Itália/Brasil. Percorrer esta história é confrontar
os paradigmas nos quais estão fundadas tantas de nossas verdades. Mas novamente,
percorrê-la só nos será válido se formos capazes de abandonar as certezas mais profundas,
voltarmos para casa duvidosos e traçarmos nosso próprio percurso. As nascentes são
sempre lugares de visitação, mas “a água corre sempre, a água cai sempre, acaba sempre
em sua morte horizontal”9.

Bibliografia:

ASLAN. Odete. O Ator no século XX.São Paulo, Perspectiva, 1994.


BARBA, Eugênio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral.
São Paulo: Hucitec; Campinas: Ed. da UNICAMP, 1995.

BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.BROOK, P. Grotowski, el arte
como vehículo. Máscara – Cuaderno iberoamericano de reflexion sobre escenologia: número
especial de homenaje a Grotowski, México: Escenología, ano 3, n. 11-12, jan. 1993.
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas. Editora da Unicamp,
2001.
FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, 1959 —
1969. São Paulo: Perspectiva, 2007. Tradução de Berenice Raulino.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de
Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 1989.
GERACI, Stefano- In cammino com lo spettatore. La Casa Usher. Firenze: Fondazione Pontedera
Teatro, 2008.GROTOWSKI, Jerzy – Holiday e teatro delle Fonti. La Casa Usher. Firenze:
Fondazione Pontedera Teatro, 2006. GROTOWSKI, Jerzy - Para Um Teatro Pobre, Forja Editorial,
1975. MOLINARE, Renata M. – Diario del teatro delle Fonti, Polonia 1980. La Casa Usher. Firenze:
Fondazione Pontedera SCHINO, Mirella. Il Crocevia del Ponte D' Era -Storie e voci da una
generazione teatrale 1974-1995. Bulzoni Editore, 1996.

9
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio de
Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p.07.
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