Do Drama Ao Fragmento
Do Drama Ao Fragmento
Do Drama Ao Fragmento
DO DRAMA AO FRAGMENTO:
A questo da forma na dramaturgia
contempornea em So Paulo
VOLUME I
So Paulo
2005
Agradecimentos
Cssio Pires
Julho de 2005
Sumrio
Introduo ..................................................................................................................
09
16
27
39
4. A mo alheia ..........................................................................................................
54
62
84
109
Introduo
Desde o incio dos anos 90, produzir nova dramaturgia voltou a ser uma das ambies
da cena paulistana. Para muitos, aquele que certamente foi o grande fenmeno do teatro
dos anos 80, o chamado espetculo de encenador, j havia atingido seu limite. Ao
mesmo tempo, a escrita cnica produzida ao longo do perodo ditatorial comeava a
soar datada, quase sempre incapaz de transcender as necessidades do perodo histrico
em que foi produzida. Os velhos clssicos do repertrio universal foram e continuam
sendo um porto seguro para alguns, mas para outros era necessria uma nova escrita
capaz de dar conta de uma nova sensibilidade, gerada em um pas que iniciava uma
nova era democrtica e em mundo que, aproximando-se de um final de milnio,
questionava-se sobre o sentido das grandes utopias.
Assim, uma nova escrita teatral tornava-se necessria. Entre as companhias que
surgiram ao longo da dcada passada, por mais diferentes que tenham sido as maneiras
com as quais lidaram com a questo, o fato que a ambio de produzir nova
dramaturgia foi um denominador comum a aproxim-las. Ao mesmo tempo, concursos,
workshops sobre escrita cnica, ciclos de leituras e mostras dedicadas encenaes de
novos textos, eventos incomuns ao longo dos anos 80, tornaram-se rotineiros dentro do
universo de atividades da produo teatral contempornea. Novos autores puderam
encontrar algum espao para apresentar seus trabalhos. Dramaturgos oriundos de
momentos anteriores voltaram a ser representados, emergindo de um perodo que para
alguns ficou conhecido como a era do vcuo.
Introduo
Esta retomada pelo interesse por nova dramaturgia trouxe consigo uma srie de radicais
transformaes do lugar do texto teatral no espetculo e do dramaturgo no processo de
criao. J no se podia desconsiderar as j conhecidas notcias sobre a morte da
literatura dramtica e sobre a crise da palavra em nosso tempo. Produzir nova
dramaturgia implicou questionar-se, a todo momento, at mesmo sobre o sentido de
produzi-la. Esse questionamento colocou sob suspeita a pertinncia de antigos modelos
de criao e a vigncia de paradigmas de construo textual que por muito tempo
pareceram indiscutveis.
O dramaturgo foi reposicionado dentro do processo de criao espetacular ou, antes,
deixou de ser o ponto de partida obrigatrio de uma montagem, o que implica dizer que
sua posio foi dessacralizada. Por vezes, ainda o texto previamente escrito que inicia
o processo. Por outras, no raras, o dramaturgo integra-se ao coletivo criador, em um
processo que vem notabilizando-se sob a denominao de processo colaborativo. Em
outras, um dramaturgo escreve especialmente para uma companhia e tem suas criaes
alteradas pelas intervenes de seus colabores, sejam eles atores ou o encenador. Por
fim, existem ainda algumas iniciativas em que se produzem novos textos concebidos
atravs de criaes coletivas, em que todos os integrantes do processo interferem na
criao do texto sem que haja algum exclusivamente preocupado em constituir a
dramaturgia final do espetculo. H, dessa forma, espao para os dramaturgos de
gabinete, para os dramaturgos de sala de ensaio e para textos que dispensam a figura do
dramaturgo.
A rigor, nada de novo de termos de processo. Transformao e revoluo, aqui, no se
confundem. No h processo contemporneo de criao cnica e dramatrgica que no
tenha algum tipo de matriz em algum momento pregresso da histria do teatro. Nem
mesmo as iniciativas de estmulo nova dramaturgia so originais. Martins Pena e Joo
Caetano, Alencar e os romnticos, Oswald, Mrio de Andrade e os modernistas ou os
seminrios de dramaturgia do Arena, para que fiquemos apenas em exemplos mais
conhecidos, fizeram, cada qual a seu modo e em seus diferentes momentos histricos,
tentativas mais ou menos bem-sucedidas em prol da escrita cnica contempornea no
Brasil. O que certamente trao diferencial de nossa poca a questo da variedade de
possibilidades de insero do dramaturgo no processo e do texto teatral no conjunto de
elementos do espetculo. Por vezes, o texto apenas pretexto. Em outras, o centro
Introduo
luminoso daquilo se leva cena, em outras ainda, integra-se da maneira harmnica com
os demais elementos que fazem do teatro uma arte plural.
A perspectiva de produzir nova dramaturgia em uma era em que a prpria noo de
literatura dramtica v-se em crise, a variedade de processos de criao e a aceitao
das diversas possibilidades de posicionamento do texto no conjunto de elementos do
espetculo compem um quadro que nos estimulou a pensar na questo da variedade de
formas na dramaturgia paulista contempornea. Que se produz em um momento em que
a diversidade formal uma prerrogativa, isto j no se discute. A variedade formal, em
nosso tempo, decorrncia das transformaes estticas que se estabeleceram na
modernidade teatral, na passagem do sculo XIX para o XX 1. Trao comum a estas
transformaes foi a aceitao do carter histrico da forma: a matria do texto teatral
no precisaria mais adequar-se forma a-histrica do Drama, como aconselharam
durante sculos a poticas apoiadas em Aristteles. Desse modo, a forma passou a ser
articulada em relao dialtica com o contedo, de sorte que o contedo no nada
mais que a converso da forma em contedo, e a forma no nada mais que a converso
do contedo em forma2. Isto posto, nos perguntamos sobre como a contemporaneidade
tem pensado a relao forma/contedo e quais so as proposies formais que vm
sendo investigadas com maior vigor pelos criadores de nossa poca.
Este questionamento levou a leitura de cinqenta e cinco textos teatrais de dez autorias,
escritos entre 1991, incio da dcada de noventa, e 2004, ano em que foi concluda a
pesquisa para a formao deste corpus. Alm deste recorte temporal, foram
estabelecidos trs outros critrios para que chegssemos a estes textos. Procuramos
levar em conta apenas textos j encenados e/ou publicados. A encenao e a publicao,
na maioria das vezes, implica no fim do trabalho de alterao ou reescrita do texto por
parte de seu autor, o que obviamente uma premissa indispensvel para uma pesquisa
acadmica. No consideramos as adaptaes de obras literrias, textos dirigidos ao
pblico infantil e textos escritos para espetculos musicais. Essas produes exigiriam
comentrios especficos que certamente no caberiam nos limites deste estudo. Por fim,
procuramos priorizar autorias que tiveram um mnimo de continuidade de produo de
textos ao longo das duas dcadas em pauta.
1
2
Introduo
Partindo desses critrios, chegamos as obras das seguintes autorias: Aimar Labaki,
Alcides Nogueira, Bosco Brasil, Fernando Bonassi (que em algumas vezes escreve em
parceira com Victor Navas), Lus Alberto de Abreu, Mrio Bortollotto, Mrio Viana,
Newton Moreno, Samir Yazbek e a dupla de dramaturgos da Companhia do Lato,
Srgio de Carvalho e Mrcio Marciano. Outros autores certamente poderiam integrar
essa relao, mas, por diversos fatores, no pudemos acessar seus textos. De qualquer
forma, o conjunto de onze autorias bastante representativa da produo paulista
contempornea.
Nesta srie de leituras, nos perguntamos como cada texto expressa o que se pretende
dizer. Partimos de perguntas simples. Todas elas versavam sobre cinco aspectos
estruturais do texto teatral: personagem, ao, tempo, espao e meio lingstico. Como
se organiza a ao do texto? H uma intriga? Se h uma intriga, como disposta? Como
organizam-se espao e tempo? existe unidade espao-temporal, existem saltos? Qual o
meio lingstico fundamental para a expresso de contedos? O dilogo, a narrao, o
verso lrico?
A primeira percepo foi a de que, ao menos em suas linhas-mestras, dois grandes
grupos podem ser considerados. Um deles, composto por peas que se aproximam de
tessituras que Anatol Rosenfeld3 chamou de fechadas ou rigorosas, por estarem
mais prximas do ideal de pureza do gnero dramtico. Tratam-se, a rigor, de
aproximaes ao ideal do gnero dramtico que surgem, em larga medida,
transformadas pela crise do Drama no fim do sculo XIX, momento em que Peter
Szondi inicia a srie histrica de sua obra sobre o drama moderno.
Nestas peas, ainda que certos referentes picos sejam decisivos, o cerne das
experincias suscitadas expresso principalmente por dilogos que decorrem de um
conflito a ser resolvido por meio de uma intriga onde est pressuposta uma dinmica
causal.
O segundo grupo formado por textos em que os recursos formais de natureza pica (e
por vezes lrica) so prioritrios para a expresso da experincia em pauta. As
3
Introduo
Introduo
10
nesta direo fornecer subsdios para a construo desta histria. Ainda que modesta,
esta a motivao maior deste estudo.
1.
O dedo do gigante
Vermouth4, de Aimar Labaki, trata de uma realidade conhecida. A violncia urbana, que
se instaura nas periferias das grandes metrpoles, ultrapassa o limite mximo de
qualquer nvel de controle, ao invadir a escola, aquela que , por excelncia, o espao
destinado educao, o lugar onde a sociedade projeta o ideal da justia social. Abrindo
mo de parbolas ou alegorias, Labaki nos lana ante a representao naturalista de um
problema que conhecemos seja pela experincia real, seja pelos noticirios. Tendo sua
ao movimentada por um motivo trgico clssico, o da vingana, a pea, no entanto,
no se pretende um novo olhar sobre as imutveis paixes humanas. Seu dilogo com
uma questo contempornea, com um estado de coisas vigente, em que a prtica da
barbrie sobrepe-se inapelavelmente ao ideal de civilizao.
A pea opta por uma situao-limite. Trata de um episdio envolvendo alunos e corpo
docente durante uma rebelio de estudantes de uma escola pblica da periferia da Zona
Leste de So Paulo. Tudo se passa em uma noite, no gabinete de Roberta da Silva, a
diretora da escola, conhecida como Berta. Num dado momento, ela surpreendida pela
entrada de Clarice, uma das professoras da instituio, que, transtornada, denuncia a sua
superiora que acabara de ser molestada em plena aula, por um grupo de alunos liderados
por um aluno conhecido como Gugu. Da sua janela, ela v os alunos denunciados no
ptio, compartilhando uma garrafa de vermouth. Imediatamente, Berta liga para uma
delegacia, comunica o ato violento e solicita uma viatura policial. Pouco depois, os
policiais chegam a escola mas, contra os princpios e as expectativas da diretora, entram
4
O texto, de 1998, teve sua estria no mesmo ano, em 17 de abril, no Teatro Itlia, sob direo de Gianni
Ratto. No elenco estavam Graa Berman (Berta), Suia Legaspe (Clarice), Mauricio Xavier (Alemo) e
Milhem Cortaz (Gugu). A cenografia e a iluminao foram criadas pelo diretor e os figurinos, por Fbio
Namatame.
O dedo do gigante
12
no ptio atirando para o alto. Inicia-se um confronto entre policiais e alunos. Momentos
depois, a sala invadida por Alemo, um dos alunos do colgio, que ali se apresenta
para uma tentativa de negociao. entrada do garoto, sucede-se a de Gugu, que, brio
e drogado, arromba a porta do gabinete, trazendo consigo a garrafa de vermouth e uma
arma. Supondo que a polcia disparara contra os alunos a pedido da diretora, Gugu entra
no gabinete disposto a uma vingana. O horror que as professoras testemunhavam pela
janela invade a sala: as tentativas de negociao por via do dilogo rapidamente cedem
lugar a um trgico episdio, que culminar no assassnio dos alunos pelas professoras.
O episdio trgico em Vermouth pe em questo o arsenal de posturas da sociedade
(tanto as entendidas como as de direita, quanto as de esquerda) ante o problema da
violncia gerada em um sistema que se divide entre includos e excludos. A cada
componente do quarteto de personagens caber uma perspectiva que, ao invs de
colaborar com a soluo, s faz agravar o problema. A tragdia, na pea, enredada
pelas atitudes dos solipicistas e as falhas dos bem-intencionados defensores da justia
social.
Clarice, individualista, conservadora, determinista, acredita que o homem no se
regenera. Para ela, o Estado bom porque paga em dia e seus alunos se resumem a
marginais que atiram nos ps dos funcionrios pra se divertir. Seu comportamento
caracteriza-se pelo medo e o acuamento. Seu tom de voz quase sempre alterado, suas
falas se dirigem fundamentalmente a classificar seus alunos como delinqentes
incorrigveis ou apelar por socorro. No final da pea, desesperada ao concluir que a
notcia de sua molestao poderia chegar aos ouvidos de seu marido, toma uma das
armas dos alunos rendidos e atira contra Alemo, justificando o disparo fatal com o
argumento de que estaria calando seu possvel testemunho.
Alemo, por outro lado, cr na transformao de sua realidade, fazendo do rap,
expresso artstica de seu mundo, seu meio exclusivo de contestao e denncia.
Valendo-se de suas composies musicais, quer expressar sua revolta em relao ao
universo de excludos ao qual pertence e quer fazer valer seu direito a igualdade. Ainda
que com uma arma escondida, invade o gabinete ingenuamente disposto a ter a ateno
da diretora preocupada com o levante, tentando fazer com que esta oua seus versos.
O dedo do gigante
13
O dedo do gigante
14
entanto, sua atitude sofrer uma transformao radical. Logo em seguida ao disparo de
Clarice contra Alemo, ela dir:
BERTA - Na Idade Mdia, algum idiota deve ter dito: a Histria acabou! Na Renascena, ou depois, mais
tarde, um iluminista qualquer deve ter dito: agora a Razo vai reger o Caos. Com a indstria, os
antibiticos, com a viagem Lua, algum luntico deve ter pensado: atravessamos o abismo! Nos Estados
Unidos, muitos gnios devem ter enlouquecido, tentando entender por que a violncia continuava...
continua... Esse pas... esse vermouth... (Pega a base da garrafa, quebrada, e toma um gole, mesmo
assim) ... esse abismo no precisa de jesutas como eu... ou voc... pra levar o Evangelho taba. O que
a Humanidade precisa de guerrilheiras, pistoleiras, xerifes... letradas, doces, cultas, mas preparadas,
violentas, armadas... pistoleiras que levem a Lei bala, serto adentro...
Em seguida, ela pega uma das armas de Gugu e o mata. De posse da arma, ela desdobra
em proposio gestual a metfora grotesca da xerife:
BERTA ampara CLARICE com um brao e com a outra segura a AR-15. Tira com um golpe a trava da
arma. Com o p abre a porta, como se abrisse a porta de um saloon.
BERTA - Agora, ns!
BERTA e CLARICE saem. A luz baixa em resistncia, at a cena ficar iluminada apenas pela luz da
fogueira no ptio. Nas caixas, o som dos Racionais. Escuta-se uma rajada, e depois, artilharia pesada.
Black-out.
Aps a trgica experincia a que foi submetida, Berta reconhece a inoperncia de suas
atitudes fundamentadas em um idealismo terico. Sem outro projeto a sua disposio,
ela se torna, na viso pessimista do autor, uma pistoleira a servio da barbrie, que passa
a entender o mundo a partir do princpio do cada um por si e que, ao invs de atirar
contra o poder, atira contra os excludos. A vitria de Berta sobre Gugu ,
paradoxalmente, a vitria da barbrie que dominara as aes do menino sobre o ideal
civilizante que balizava as aes de Berta.
Interessado em por em cena o embate de posturas ideolgicas diante do problema da
ascenso da barbrie, bem como a falncia destas posturas, Aimar Labaki faz uso
prioritrio de recursos de natureza dramtica para a construo de seu texto. No entanto,
estes recursos esto submetidos a um princpio maior que essencialmente pico, como
veremos.
O dedo do gigante
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De fato, a pea estabelece uma aproximao bastante estreita com o ideal do Drama. O
dilogo seu meio lingstico fundamental. As rplicas, na maior parte das vezes,
servem s tentativas dos personagens em fazer valer sobre os demais suas vontades e/ou
suas vises de mundo. Toda ao concentra-se num nico espao e em tempo real (isto
, o tempo da ao coincide com o tempo da encenao). H um conflito claramente
delimitado que estabelece uma intriga, que se desenrola atravs de um perfeito
encadeamento das aes, de modo a tornar uma parte dependente da outra e a excluir
qualquer possibilidade de interveno do acaso. Este encadeamento de aes ser
estabelecido
de maneira
gradativa,
projetando
uma
curva dramtica
clara.
O dedo do gigante
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exatamente nesta fratura que Brecht funda seu teatro pico, encontrando no uso de
recursos deste gnero o espao para a discusso das contradies sociais que no cabem
no modelo dramtico.
Assim, ainda que em uma perspectiva absolutamente diversa de Brecht, referentes
picos so solicitados para a composio da forma de Vermouth. O mais saliente deles
est na linguagem naturalista dos personagens. H um esforo no sentido de fazer com
que os registros de fala da diretora, da professora e dos alunos no se confundam e
representem as classes a que pertencem. O discurso de Berta pautado pela norma
culta, suas frases, construes gramaticais simples, no dispensam a conjugao de
verbos no imperativo (Faa, reclame, etc), fazem uso de colocaes pronominais
corretas, respeitam as regras de concordncia e regncia, evitam grias e palavres.
Clarice usa um portugus mais simples, tambm culto, mas concessivo a contraes
(pra em lugar de para, to em lugar de esto, etc) e a grias (meganha ao
invs de policial e bau-bau ao invs de fim). Alemo e Gugu trazem a variante
lingstica da periferia de So Paulo:
GUGU Tu que no sacou ainda que a casa caiu, mano. Quando tu cair na mo dos da estrela, eles
no vo querer nem saber: tu vai virar superstar do Notcias Populares... eles to cagando se tu inocente
ou culpado. Tu preto... ento culpado, sim! Se no cagou agora, cagou quando nasceu. Quem mandou
nascer dessa cor? Vai virar superstar do Notcias Populares, sim senhor!
O dedo do gigante
17
limites determinados pela forma absoluta do drama, se ele no aponta para nada alm deles: nem para a
empiria nem para o autor emprico. Portanto, podem-se denominar objetivos os alexandrinos de Racine
e de Gryphius, os versos brancos de Shakespeare e do classicismo alemo, ou ainda a prosa de Woyzeck,
de Bchner, na qual bem sucedida a transformao do elemento dialetal em linguagem potica. 7 (o grifo
meu)
Um segundo recurso de natureza pica est no dilogo com o mundo exterior sala da
diretora. Existem, por assim dizer, trs perfuraes no hui-clos onde se d a ao que
viabilizam esse dilogo. Porta, janela e telefone, mais que servirem como vos por onde
personagens podem entrar e sair de cena, se convertem em dispositivos por onde o
leitor/espectador pode acessar fragmentos das causas do problema que se desenrola no
cenrio nico. Desse modo, a pea mostra fragmentos da matria pica que converter
em drama. Logo na abertura da pea, Berta est ao telefone, protestando junto a um
superintendente da secretaria de educao em favor de melhorias nas condies
estruturais e de segurana de sua escola:
(...) Eu o estou alertando para uma situao que grave. Sem o apoio de uma radiopatrulha, eu no posso
garantir a segurana do corpo discente, e, muito menos, do docente. Sem uma reequiparao salarial, eu
no tenho como garantir a implementao do Projeto de Qualidade Mnima.
p. 83-84.
O dedo do gigante
18
id.ib., p.76
2.
O motivo do impostor
O texto, de 1998, estreou em 20 de agosto do ano seguinte, na sala Paschoal Carlos Magno do Teatro
Srgio Cardoso, com direo do autor e dramaturgismo de Maucir Campanholi. Gensio de Barros
(Amrico), Mariana Muniz (Amlia), Hlio Ccero (Pessoa/Jorge), Rejane Arruda (Henriqueta), Srgio
Carreira (Alberto Caeiro), lvaro Augusto (lvaro de Campos), Eduardo Semerjian (Ricardo Reis),
Andr Correia (Afonso) e Marcelo Dias (Miguel) compuseram o elenco.
O motivo do impostor
20
obras desses criadores e o desejo de converter o palco em uma espcie de arena ntima
servio do lirismo que parecem constituir a essncia da motivao desse conjunto de
espetculos. Muitos deles optam, com diferentes graus de acerto, por no tentar
converter a base lrica em material dramtico, o que acabou por gerar, entre ns, uma
pequena tradio de espetculos recitativos. Yazbek opta por uma via oposta, ao se
dedicar ao trabalho de fazer com que elementos do universo pessoano pudessem abrir
caminho para uma espcie de fbula em que intriga e dilogo constituem-se como
veculos fundamentais da experincia suscitada.
Marcada por acentos ora cmicos, ora poticos, sua ao, que abertamente glosa o
famoso Autopsicografia, um episdio ficcional sobre os ltimos dias de Fernando
Pessoa, inspirado no universo lrico e em dados biogrficos do poeta portugus. A
questo da mscara do artista e a dialtica dor fingida/dor vivida, cernes do poema, so
convertidas em um engenhoso argumento dramtico, irreal, na mesma medida que
verossmil: na Lisboa do ano de 1935, Fernando Pessoa, com a sade comprometida,
resolve candidatar-se vaga de datilgrafo oferecida por Jos Amrico, um renomado
crtico literrio. O estudioso est prestes a concluir um longo ensaio sobre a obra do
prprio Pessoa, ensaio este que ser apresentado em uma conferncia no Teatro da
Repblica. Preocupado em concluir seu trabalho a tempo, ele resolve contratar algum
para datilografar seus originais. O poeta, ento, apresenta-se na casa de Amrico como
Jorge Madeira, espcie de impostor e heternimo vivo, na expresso do prprio
personagem. Madeira, figura a um s tempo simplria, excntrica e cativante,
demonstra competncia em um teste de datilografia e acaba sendo aceito para ocupar a
vaga oferecida, passando a hospedar-se na casa de seu novo patro.
Apresentando-se um competente datilgrafo, Pessoa/Madeira rapidamente conquista a
confiana de Amrico. Essa confiana adquirida, faz com que o poeta decida-se a
arriscar em um jogo: ele escreve alguns poemas e os submete apreciao crtica de
Amrico como se fossem de autoria de Madeira. Amrico rejeita as obras, tomando-as
como meras criaes de um ingnuo datilgrafo. O jogo do poeta volta-se contra ele
mesmo. Ele entra em crise por desconfiar que a aceitao que sua obra tivera ao longo
de sua vida seria decorrncia de sua fama de grande poeta. Perturbado, desobedece uma
recomendao mdica importante e volta a beber. Em pouco tempo, torna-se
improdutivo e acaba sendo despedido por Amrico.
O motivo do impostor
21
De volta a sua casa, Pessoa resolve retornar uma solicitao de um amigo, Afonso
Camargo, editor da revista literria Presena, e envia-lhe alguns poemas inditos.
Alheio ao plano do impostor, Camargo deseja entregar esses textos a Amrico para que
sejam lidos em sua conferncia, na qual participa como apoiador. No dia da conferncia,
Amrico, em pleno palco, surpreendido ao deparar-se exatamente com os poemas que
alguns dias antes haviam lhe sido apresentados como de autoria de seu ex-datilgrafo.
Momentos depois, no saguo do teatro, Amrico, ainda sem resposta para o mistrio,
apresentado a Fernando Pessoa, de quem s conhecia a obra. O poeta tem a
oportunidade de revelar seu disfarce a Amrico e lhe esclarecer sobre o episdio do
poema, mas resolve silenciar, preservando o mistrio. Pouco depois, a trama leve e
movimentada em torno do poeta disfarado termina com sua morte, motivada pelo seu
retorno ao vcio.
A ao dividida em dois nveis de realidade. Um plano realista cobre a maior parte
das cenas e d conta do desenrolar da intriga. Alm de Pessoa, Henriqueta, Jos
Amrico e Afonso Camargo, nela esto tambm Amlia, a governanta da casa, e Miguel
Escudero, jovem sobrinho da governanta e colaborador da revista. O outro nvel,
chamado pelo prprio autor de territrio do imaginrio constitudo por cenas em que
Pessoa dialoga com seus trs mais conhecidos heternimos, Alberto Caeiro, lvaro de
Campos e Ricardo Reis. Esses encontros com os heternimos sucedem-se a medida em
que o episdios da intriga geram conflitos existenciais que perturbam o poeta.
No plano realista, a relao entre obra e crtica e a aproximao amorosa so os termoschave pressupostos no desenvolvimento da intriga. O contato com Jos Amrico e com
o jovem Miguel, tambm interessado na obra de Pessoa, abre caminho para o tema da
recepo crtica. Pessoa, sob disfarce, no renega sua curiosidade de investigar o olhar
daqueles que trabalham em favor de sua classicizao. Em Amrico, experiente,
renomado, de natureza prudente10, encontrar uma certa filiao crtica biogrfica:
Ningum me tira da cabea a idia de que a origem de tudo est na infncia de Pessoa.
A morte prematura do pai, a ausncia da me..., diz a certa altura. Incorrendo em
contradio quanto sua perspectiva, Amrico diz-se tambm o estudioso que separa a
10
A despeito da destreza com que Yazbek realiza o mecanismo dramtico da pea, a prudncia de
Amrico, que se evidencia tanto em seu cotidiano quanto em sua pesquisa, faz com que sua atitude de
permitir-se surpreender-se em pblico por poemas inditos de Pessoa nos soe inverossmil.
O motivo do impostor
22
arte da vida, o que de modo algum pode ser aceito por Pessoa. Jos Amrico, da mesma
maneira que no percebe o farsante, no percebe o essencial de seu objeto de estudo. A
deciso do poeta de jamais revelar sua verdadeira identidade ao crtico encontrar sua
justificativa exatamente na percepo de que aquele que tido como seu maior crtico
no capaz de compreend-lo: Ele no soube me reconhecer naquilo que eu tenho de
melhor, diz a sua irm.
Miguel, em meio sua inexperincia, surge como um oposto figura de Amrico. Sua
tese, rejeitada pelo crtico maduro, toma os heternimos, nas palavras de Afonso
Camargo, como a mxima aspirao do poeta. (..) Diz que foi a forma que Pessoa
encontrou de, no cabendo em si de tanto ser, ser ele mesmo. Sua constatao fruto
de um pensamento crtico que no estabelece horizontes rgidos entre arte e vida,
tomando uma como decorrncia da outra.
exatamente nesta indiferenciao entre arte e vida que o Pessoa de Yazbek encontrar
uma inusitada e contundente relao. Amlia, a governanta da casa de Amrico,
mostrar-se- o esprito desprovido de erudio, capaz de reconhecer a beleza dos versos
do poeta rejeitados pelo crtico. Numa noite, durante uma indisposio noturna que
acomete o poeta disfarado, ela acaba por descobrir sua verdadeira identidade, ao
encontrar um documento em sua mala. A descoberta da impostoria, no entanto, torna-a
cada vez mais cmplice de seu autor. Entre o poeta a governanta, aos poucos vai
surgindo um amor outonal, de dois seres que ambicionam menos a unio que a
proximidade. O prprio Pessoa definir Amlia como sua Oflia, aquela sobre a qual
pousa um amor de certa forma impossvel. Ao final, diante dela que morre, no quarto
de um Hotel no bairro do Chiado.
O enredo leve e potico e os dilogos graciosos de O Fingidor ocultam um verdadeiro
tour de force existencial a que o poeta se submete desde o momento em que adentra a
casa de Amrico. Ao mesmo tempo em que, hbil e por vezes cnico, Pessoa joga por
meio de seu disfarce, sofre com as descobertas advindas de seu jogo e encontra neste
sofrimento, pelo fato de voltar a bebida, um atalho para a morte, perspectiva que o
ameaa desde o comeo da trama e que se consuma como fato em seu final.
O motivo do impostor
23
O motivo do impostor
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Pelo menos mais duas passagens (cenas 9 e 16) estaro atentas ao que motiva a ao do
impostor. Em nenhuma delas seremos convencidos de que ele movido pela procura de
um novo amor ou pela consciente tentativa de investigao da intimidade dos que se
debruam sobre sua obra. O Pessoa de Yazbek quer mais: quer arriscar-se no encontro
com o outro, quer descobrir-se pela ao.
Trata-se de uma converso violenta. O poeta solitrio e introspectivo, animado pelo
anncio de Amrico, decide colocar-se em uma situao intersubjetiva. No incio da
pea, em outro dilogo com sua irm, dir:
HENRIQUETA Mas ontem... eu passei pela porta do teu quarto... E parecia que voc falava sozinho.
PESSOA Ainda no se acostumou? Voc queria que um poeta falasse com quem?
O sujeito que dialoga consigo prprio resolve arriscar-se no perigoso jogo com o outro,
procura de si. Se em seu idlio o Pessoa de Yazbek faz de Amlia a sua Oflia, em sua
motivao profunda ele faz-se um anti-Hamlet. Se o prncipe dinamarqus, diante da
exigncia da vingana titubeia e divaga sobre a possibilidade de agir, o poeta portugus,
sem nenhum imperativo, a no ser a prpria vontade, decide-se pela ao. O teatro
moderno, em um vetor contrrio, nos apresentou um novo tipo de protagonista: aquele
que no age, seja por no poder agir, seja por no acreditar no sentido da ao. o que
paralisa as trs irms Prosorov ou o par Vladimir/Estragon. Este Pessoa, criao de uma
sensibilidade de nosso tempo, resolve agir porque sabe que a experincia ativa o levar,
O motivo do impostor
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O motivo do impostor
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O motivo do impostor
27
3.
Captain Kirk e as oscilaes infinitas
A pea foi escrita em 1991 e teve sua estria em 10 de maro de 1994, no Piccolo Teatro Estdio, sob
direo de Emlio di Biasi. Os papis estiveram a cargo de Joo Vitti (Botelhinho), Lavnia Pannunzio
(Bastos), Jairo Mattos (Z Antnio) e Ariela Goldmann (Molinari).
12
Bosco Brasil, Paulistanos, posfcio Budro, p. 133.
29
lanadas cena para que sejam entendidas em conjunto, para que mergulhemos no nas
dores de um sujeito, mas na crise de uma classe, de uma gerao e de uma poca.Tendo
o dilogo como seu meio lingstico exclusivo, este no conseqncia de um conflito.
As sries dialgicas do texto no se prestam ao desenrolar de uma intriga. As seis cenas
no se ligam por uma dinmica causal. Trata-se de uma montagem pica em que seu
autor nos coloca diante de seis breves episdios relativamente autnomos do ponto de
vista do enredo, que, compreendidos em conjunto, do conta de representar o vazio
existencial do quarteto de personagens. Se Vermouth e O Fingidor plantam cada qual
uma semente que vinga uma nica rvore repleta de galhos, Budro esparge sementes
diversas em um solo vasto de onde surge um jardim de pequenas plantas que devem ser
observadas uma a uma, mas que s podem ser completamente compreendidas como as
partes mesmas de um jardim.
O decurso temporal estabelecido ao longo das seis cenas que delimitam o texto refora e
define a estagnao ante o vazio que caracteriza o movimento de seus personagens. A
progresso linear, mas ruma ao inespecfico. Somos informados que a segunda cena
acontece alguns dias depois da primeira, ocorrida em um sbado, e que a terceira se
passa em um outro sbado, quase dois meses aps a segunda. As trs cenas finais, no
entanto, no possuem qualquer referncia temporal. No possvel encontrar sinais a
precisar a passagem do tempo nem nas rubricas, nem prpria situao. ... o silncio
eterno desses espaos infinitos me apavora..., diz uma frase utilizada como epgrafe,
extrada da obra de Pascal. A indeterminao temporal neste caso sugere um tempo
infinito, um eterno retorno sala visita. O movimento do tempo de Budro causa e
conseqncia do movimento em falso, logo vazio e estagnado, de seus personagens.
O tematizao de uma gerao de estagnados exige um dilogo pouco ativo, pois leva a
cena personagens que no sabem exatamente o que querem e no sabem ao certo porque
sofrem. Trata-se daquilo que Szondi chamou de conversao: nesta, a rplica no
leva a outra coisa, no passa para a ao 13. No texto, fala-se, acima de tudo, para evitar
o perigo do silncio compartilhado e para que as dores sejam sufocadas. A conversao,
no texto, a soluo para presentificar personagens que no podem ou no querem
dialogar. Assim, ela no apenas um meio, mas o prprio tema da pea.
13
30
salvador. O
texto
abre com
uma
conversao
descontrada,
31
32
33
temporal que define o quarteto. Botelhinho trabalha com Mercado Futuro. Sua esposa
proprietria de um stand de antiguidades no vo livre do Masp. Quanto ao cenrio:
Sala de apartamento da pequena burguesia dita progressista paulistana. A decorao elegante, na
moda, cool, mas revela as manias dos proprietrios, Botelhinho e Bastos: alguns aparelhos eletrnicos dos
anos 50 e 60 e antiguidades valiosas, relgio e armas antigas algumas com etiquetas bem visveis -;
estojos tambm so vistos. Um vaso gall faz parte da decorao cotidiana. Um janelo, mostrando as
luzes de So Paulo vistas de um andar alto, mostra um edifcio naquela fase de construo em que mais
lembra um runa. Ao lado, contgua, uma saleta de jogos onde est um pimball completa o cenrio.
34
Bastos resta tratar Botelhinho como um filho, acudindo-o em silncio a cada crise
nervosa do marido. Ele, acomodado, sabe de sua dependncia. Ela, por sua vez, no
sabe exatamente o que a mantm na relao.
BOTELHINHO Voc me despreza?
BASTOS Eu no me incomodo.
BOTELHINHO Eu no queria que fosse assim.
BASTOS No faz diferena.
BOTELHINHO Por que voc no me larga um dia desses na rua?
BASTOS No sei.
BOTELHINHO Voc me ama?
BASTOS ... eu acho que amo voc.
Bastos, mais que seus trs companheiros de sala de estar, regida pela apatia e pela
manuteno as aparncias. Ela a principal agente a estimular que os copos se encham
e que as histrias se contem e a responsvel por silenciar discretamente as exploses do
marido. No conjunto de vozes, ela que na maior parte da vezes assume o funo de
censurar a verbalizao da verdade, quando algum dos demais personagens resolve
express-la:
Z ANTNIO (pausa) Esta vida est ficando insuportvel...
BASTOS No! No diga essa palavra. uma palavra to gorda como presunto cru...
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36
E pouco frente:
MOLINARI Um ms. Eu no ouo a voz de Z Antnio h um ms. Mas tambm, do que que eu
estou reclamando? Eu prefiro assim. De qualquer jeito, melhor do que antes.
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Nada lhe restar, seno o desejo de fuga. Quer convencer Molinari a seguir com ele
rumo Esccia, ironicamente uma das manjedouras da esttica romntica. Frustrado em
sua tentativa, no desiste da idia de repetir a experincia do exlio de Budro.
Transtornado, define a ao central da ltima cena, implorando um emprstimo a
Botelhinho, que, no entanto, se recusa a ajud-lo. Desesperado, tenta agredir o anfitrio,
mas acaba levando um tombo e se cortando.
Z Antnio geme de dor quando Molinari passa o leno na ferida, tentando estancar o sangue.
MOLINARI Que isso, Zequinha. No doeu nada... Voc no pode mesmo ver sangue!
Z ANTNIO Acho que eu estou desmaiando. Estou vendo tudo ficar longe, Leo. As coisas esto me
deixando.
MOLINARI No vai desmaiar, hein?
Molinari continua limpando a ferida enquanto fala.
MOLINARI (pausa) S voc, mesmo... Pagou todas as dvidas, ficou sem um puto... E agora que
voc quer fugir? (um tempo) At pra fugir, voc escolheu a hora errada.
Silncio.
MOLINARI (um tempo) No pra de sangrar.
38
A queda lhe faz rir de seu devaneio escapista. O gracejo de Bastos encaminha a pea
para seus dilogos finais retomando o mesmo tema que encerra todas as anteriores. Os
seriados de TV so o nico ponto de equilbrio em que as quatro freqncias se ajustam.
o passado comum onde h identidade. o retorno infncia de uma gerao que
construiu seu imaginrio comum atravs contato com os produtos da indstria cultural,
do consumo de fico de entretenimento e que s pode entender a vida como uma
intriga que se encaminha para um happy end redentor.
BASTOS Vocs no querem ficar, conversar?
Z ANTNIO Voc no quer sair, Leo?
MOLINARI Eu vou gostar de conversar um pouco.
BASTOS Que bom!
MOLINARI De qualquer assunto, que no seja televiso.
Um tempo.
BASTOS Isso maldade sua, Molinari. A gente tinha muito assunto naqueles sbados.
MOLINARI timo... Ento eu fico.
BASTOS Vai ser to bom...
Baixa um silncio. Z Antnio fica esperando a conversa comear. Os relgios tomam conta do ambiente.
Silncio longussimo.
James West, os Thunderbird, Dr. MacQuoy, Capito Kirk, heris de Jornada nas
Estrelas... a gama de heris no apenas capaz de salvar o mundo, mas tambm so
os nicos capazes a salvar a classe mdia retratada do silncio que apavora Pascal.
4.
A mo alheia
Trs cigarros e a ltima lasanha14 no sobre tabagismo ou sobre a gula. Seu ttulo, de
maneira estratgica, esconde sua matria-prima, da mesma forma que seu protagonista
nos esconde o motivo que o faz narrar sua histria, como se ver. O texto de Fernando
Bonassi e Victor Navas trata de um episdio de mutilao, partindo de um mote retirado
de um fato verdico, ocorrido na Inglaterra. Seu enredo, recriao livre do fato real,
resume-se no caso de um sujeito que recebe um inusitado transplante de mo, logo aps
ter a sua decepada em um acidente.
Tudo o que sabemos nos dito pela prpria vtima, que conta sua histria dirigindo-se
diretamente ao pblico. A histria comea numa quinta-feira qualquer, na varanda de
um restaurante executivo, onde o sujeito almoa uma lasanha. O que o ttulo esconde
logo revelado pelo protagonista nas primeiras frases do texto: Eu perdi minha mo.
Num instante ela estava l. Depois sumiu. No fazia sentido. O terreno repugnante em
que se move a ao mostra-se, desde o incio, desinteressado em produzir repulsa pelo
simples prazer mrbido de produzi-la. O repulsivo aqui submete-se ao Absurdo,
impossibilidade de encontrar qualquer justificativa para a experincia trgica. Sobre o
que lhe causou a mutilao saberemos apenas um pouco mais do que nos informado
nas quatro primeiras frases do texto. Adiante, sugere-se um acidente, talvez
automobilstico, considerando a proximidade da varanda e a rua.
Me deitaram, me amarram guardanapos, fiquei ouvindo torniquete, 190, liga pro 190, aperta, aperta
mais, estancou... Ento o problema fica sendo me levar dali ou no. O problema seu, mas voc fica
esperando que as pessoas decidam. Voc precisa daquelas pessoas. Pro resto da sua vida. Algum disse
que aquilo era acidente com vtima. No podia mexer em nada. Outro falou que crime era negar
14
A pea estreou em 30 de maio de 2002, no Teatro Popular do SESI, durante a I Mostra de Dramaturgia
Contempornea, com interpretao de Renato Borghi e direo de Dbora Dubois.
A mo alheia
40
socorro. No havia mais separao entre a varanda do restaurante e a rua. O lugar cheio de gente,
assustada, curiosa, dando palpite.
Nada mais dito sobre o que faz com que o protagonista tenha sua mo decepada. No
h culpados, nem prenncios. A nfase recai no episdio em si, no em suas causas. De
repente, a tragdia irrompe, sem Deus, sem Orculo, sem origens sociais.
A vtima concebida nos termos exatos de um chiaroscuro. Diz muito sobre si, mas no
se apresenta. Trata-se de um solitrio, um annimo na metrpole, que se satisfaz com
pequenos prazeres, como a boa mesa e o hbito do fumo antes e depois das refeies:
Eu fumo um cigarro antes do almoo, com o aperitivo; fumo outro logo depois de
acabar de comer. a minha sobremesa. O ltimo acendo com o caf. Esses trs cigarros
so o grande prazer da minha vida. Seus pormenores, pouco a pouco, nos vo sendo
apresentados. Em contrapartida, ele jamais nos dir seu nome, o que faz, onde vive ou
de onde vem. A luz forte sobre suas pequenas idiossincrasias deixa s sombras seus
grandes traos. Assim, faz-se nos ntimo na mesma medida em que nos permanece
estranho.
Imerso em sua solido, seu comportamento obedece a rituais metdicos dignos de um
paranico.
Eu trabalho com o cigarro de uma maneira que ele possa durar durante todo o aperitivo e eu s tenha de
apagar no instante em que chega a comida. Se eu demoro pra acender, a comida chega e esfria... porque
eu no apago um cigarro sem acabar com ele. J se eu acendo muito cedo, corro o risco de precisar
acender um outro, o segundo, antes da hora. E tem mais: eu no penduro o cigarro no cinzeiro. Se uma
pessoa abandona um cigarro num cinzeiro, cai na expectativa... esperando quando vai pegar de novo.
Desconcentra. Por isso que cigarro meu, fica na minha mo. E o cigarro e a minha mo estavam l e eu
fumei aquele primeiro cigarro com o aperitivo. Tudo certo. No instante em que eu terminei o ltimo gole
do aperitivo, vi o garom chegando com meu prato. Ergui minha mo... o cigarro quase acabando na
ponta dos meus dedos... o garom, com a sua mo, pousou o prato... puxei, com a minha mo, o cinzeiro
pra perto de mim... o garom abriu o refrigerante e serviu um copo... esmaguei o cigarro no cinzeiro...
enquanto eu pegava nos talheres, o garom se afastava com o cinzeiro sujo e o copo de aperitivo vazio.
Sincronismo perfeito.
A mo alheia
41
annimo torna-se o centro das atenes. Ele no perde apenas a mo, perde tambm seu
modus vivendi. Isso, no entanto, no faz com que clame por nossa comiserao. No
momento em que narra, j relativamente distante do momento da mutilao, sua fala
irnica, com acentos de humor negro, sua postura fria, sua atitude comedida: ele no
quer nossa clemncia, quer nossa ateno.
A mo decepada o conduzir a duas decises. Pouco aps sua chegada ao hospital,
informado pela equipe mdica que o atende que o re-implante de sua mo, dado seu
grau de avaria, seria impossvel. A sugesto o transplante da mo de um homem
recm-falecido. Ele tem de escolher. As condies psicolgicas para uma deciso como
esta so nada favorveis. Mas ele tem de decidir. A hiptese de eu escolher que no,
que no aceitaria a mo do cadver, me pareceu uma ofensa quelas pessoas. Havia
tanta gente querendo me ajudar...: tendo em vista mais os outros que a si mesmo, ele
aquiesce.
Aps trs meses de recuperao, chega o dia em que ele tem as ataduras retiradas e
pode, enfim, ver o resultado do transplante:
(...) quando a tesoura terminou o servio todos puderam ver o resultado desastroso do implante. As carnes
do meu brao e da mo dele haviam mesmo se fechado. O problema foi uma descompensao mnima
entre a velocidade de regenerao de um dos ossos do meu brao, o meu osso rdio, e a do pedao
restante do osso rdio que pertencia a ele. Que partia da mo dele, quero dizer. Em conseqncia, ocorreu
um pequeno deslocamento entre um osso e outro. Essa sim foi a verdadeira causa do crescimento de um
calo que, por sua vez, provocou um desnivelamento entre o osso rdio do meu brao e o osso rdio que
sobrara na mo dele. Por isso, entre meu brao e a mo dele, h essa... protuberncia. Um degrau de mais
de um centmetro, meio para cima, meio para fora. A carne fina. A pele falta e fica esticada... O
resultado grosseiro tambm repercute aqui em baixo onde, simetricamente, sobram carne e pele.
A mo alheia
42
A mo alheia
43
Mas o fato que a narrao no bastar em si mesma. Ela um longo prembulo que
antecede ao breve e decisivo gesto que encerra o texto. A fala narrativa, em estrutura
linear, parte de um passado mais remoto (o momento em que o sujeito entra no
restaurante) e segue em direo ao momento da enunciao, ao agora, ao presente em
que est o narrador. A auto-mutilao a que se submete o protagonista a nica
passagem que no contada, mas mostrada. Eis o que nos escondia: sua histria ainda
no estava completamente acabada e nos cont-la para depois mutilar-se so os termos
finais de sua experincia.
Mostrar, ao invs de contar a passagem da auto-mutilao uma opo autoral que
proporciona ao texto a reproduo de uma tenso entre mesmo e outro que est no
cerne de sua narrativa. De fato, a experincia da primeira mutilao implica em uma
inesperada e ininterrupta exposio ante ao outro. Desde o momento em que aquele
meu terceiro cigarro foi roubado de mim, junto com a minha mo, estive sempre
cercado de gente. O sujeito annimo e solitrio torna-se a atrao de um circo de
horror ante os curiosos do restaurante e cobaia de um procedimento mdico incomum (o
transplante de membros externos). A certa altura, chega ao ponto de tornar-se uma
espcie procurador do morto que lhe doara o membro, quando recebe a inesperada visita
da viva do recm-falecido:
Uma mulher apareceu no batente. Parou. Olhou para trs e depois deu s um passo para dentro do quarto.
Olhava para mim. Chegou mais perto. Ento tive certeza de que era a viva. Era a mulher do homem cuja
mo direita eu usava. Tive a certeza na hora que vi ela olhando para as ataduras. Eu j no conseguia
fingir que dormia. Ela no ligou que eu estivesse consciente. At sorriu para mim ao pegar a mo dele.
Tive um desconforto... um calor no peito. Uma incompreenso.
O sujeito metdico obsesso que, para controlar todos os seus passos depende de certa
distncia do outro, torna-se, ironicamente, um mesmo que carrega o outro em si. O
embate espiritual com os outros que o cercam e com um outro que o completa destri
qualquer possibilidade de ordenao da vida, ao mesmo tempo que pe em risco sua
condio de se reinventar como sujeito, pois a mo, mais que um membro, para ele
uma outra existncia que rivaliza com a sua. Nunca consegui coordenar perfeitamente
os movimentos da mo dele: com essa expresso, a mo dele, ao invs de a minha
nova mo que ele constantemente se refere ao membro transplantado.
A mo alheia
44
Nesse sentido, a auto-mutilao a que se submete no final da pea tambm o corte que
separa-o do Outro, que o afasta do ele e o traz de volta ao eu original. Ao optar pela
condio de mutilado em desfavor da condio de transplantado, ele como que mata o
outro que nele passara a viver, na mesma medida em que rompe com o olhar dos
curiosos e dos mdicos que incessantemente o cercaram desde o momento do acidente.
Nessa leitura, atenta relao entre mesmo e outro que permeia o episdio, a
prpria forma do texto espelha o fato narrado. Se a narrao prev o embate entre as
partes em questo, esse embate se reproduzir no espetculo pressuposto no texto. Seu
protagonista ser o mesmo e a platia, o outro, vido por observar a experincia
repulsiva que se representa. Indicaes das rubricas apontam nesse sentido. O cenrio
sugerido no descreve nenhum espao especfico, apenas indica uma
Caixa Preta. Ao fundo, uma barra de metal com ganchos de aougueiro de onde pendem 5 ou 6 mos,
ordenadas da menor para a maior, e em estado crescente de deteriorao. Essas mos so ocas de forma
que o ator possa vesti-las como luvas ao longo do espetculo. A ltima, maior e mais deteriorada delas,
dever ser vestida pouco antes do final.
A mo alheia
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5.
Trs sagas para cinco narradores
17
15
A pea estreou em 8 de agosto de 2003, no Teatro Paulo Eir, sob direo de Ednaldo Freire e com o
elenco formado por Ali Saleh, Aiman Hammoud, Edgar Campos, Luti Angelelli e Mirthes Nogueira.
16
Alm de Borand: Eh! Turtuvia (2004), Auto da Paixo e da Alegria (2002), Sultfera Navis (A nau
dos loucos) (2002), Mastecl (2001), Till Eulenspiegel (1999), Iepe (1998), Sacra Folia (1996),
Burundanga (1996), O Anel de Magalo (1995) e O Parturio (1994).
17
www.fraternal-cia.com
47
A pesquisa no esconde sua base erudita. Ao lado da observao da vida, dos costumes,
do gestual e da fala do homem brasileiro, Bakhtin (especialmente em Cultura popular
na Idade Mdia e no Renascimento), Cmara Cascudo e Cornlio Pires, entre outros
estudiosos, so freqentemente proclamados como mananciais das investigaes
cnicas da companhia. Seria enganosa a idia de que a Fraternal Companhia de Artes e
Malas Artes tem se dedicado a fazer teatro popular. O que se pretende a criao de
obras inspiradas na cultura popular.
No cerne do projeto est um princpio que tem matrizes histricas. O Teatro do
Estudante de Pernambuco (O TEP), o Teatro Popular do SESI, de Osmar Rodrigues
Cruz (com quem Abreu, por sinal, trabalhou), o Centro Popular de Cultura (CPC) da
UNE e o Grupo Mambembe de Carlos Alberto Soffredini foram algumas das iniciativas
que vislumbraram no binmio nacional e popular uma necessidade e uma
provocao. A necessidade comum aos projetos era criar um autntico teatro popular no
Brasil. As provocaes, por sua vez, alternam-se em seus diferentes momentos
histricos. Se o TEP tentou provar a popularidade da dramaturgia cannica tida como
erudita (encenaram, entre outros, Shakespeare, Lorca e Ibsen), em atitude contrria a
uma certa e majoritria fatia intelectual da poca, e o CPC fez uso dos recursos do teatro
de agit-prop de base marxista em espaos como fbricas e favelas da poca do regime
militar, a Fraternal Companhia de Artes e Malas Artes, em proposta audaciosa, navega
contra certas perspectivas culturais de nosso tempo. O popular na Fraternal no
concebido como cultura de entretenimento, mas sim como resgate de razes em que
todos conseguem se reconhecer. Mitos nacionais (O Anel de Magalo), europeus (como
em Till Eulenspiegel e Iepe) ou religiosos (a Paixo de Cristo o tema do Auto da
Paixo e da Alegria), o caipira (tema do mais recente espetculo da companhia, Eh!
Turtuvia) ou o migrante, tema da pea em questo. Matrias-primas de ordens diversas,
aproximam-se por serem arqutipos da cultura brasileira. O resgate das origens, no caso
da companhia, significar a tentativa de compreenso de nossa identidade.
Quando se pensa nos propsitos do projeto da Fraternal, Borand, dentre todas as
criaes cnicas do Comdia Popular Brasileira, nos parece a mais radical experincia
de seu repertrio de peas. Seu assunto maior a migrao, tema seminal quando se
pensa em cultura popular no Brasil. No possvel pensar um pas e um povo com mais
de trs sculos de condio colonial, quase quatro de escravido e mais de cinco sculos
48
49
se esttica, silenciando ante aos apelos de reao vindos da parte daqueles que lhe
querem bem. Sobre as trs sagas recai um super-objetivo comum, j anunciado na
corruptela de Vamos embora andar, da qual se origina o ttulo da pea. Partir, andar.
As sagas dos migrantes so marcadas pelo deslocamento espacial. Nas trs histrias
repete-se a experincia da partida de um pequeno vilarejo sempre terra natal dos
protagonistas - rumo metrpole. Atravs da reiterada dinmica, o texto procurar dar
conta de um painel de experincias humanas colhidas ao longo e por conta do trnsito
migratrio.
Nesse movimento mesmo, na escolha do partir e do andar como gestus essenciais
que a dramaturgia assume sua principal busca temtica: investigar que estranha rvore
essa cujas razes esto fincadas muito longe e cujo tronco, cortado e separado delas,
estranhamente sobrevive, flora e frutifica, investigar, enfim, o que renasce na terra
erodida, nos termos de clea Bosi. Em Borand, a cultura popular brasileira resultado
do movimento desenraizante e do choque que a cultura dominante da metrpole causa
sobre os migrantes.
A saga de Tio Cirilo anuncia o que se far notrio em todo o texto. No interessar ao
autor a denncia poltica de uma tragdia social, ainda que a dimenso poltica dessa
aventura humana no seja negligenciada. O que interessa o mergulho na aventura
humana do migrante em seu trajeto de vida e de como, em meio a esta, seus valores ora
se mantm e ora se transformam.
Nesse sentido, sobressai-se a questo do choque cultural, do confronto entre a cultura do
grande centro urbano e a cultura do vilarejo. O tema impor-se- antes mesmo da partida
do migrante protagonista. Esta motivada pela improdutividade da terra. Sem meio de
vida, tirando da terra menos do que eu dava pra ela, um dia arvorei, com segredo e com
medo, um pensamento no fundo de mim: vou bornda!` , Tio dir ao pblico. O
solo improdutivo seria, por si s, uma grande justificativa para o abandono da terra
natal. No entanto, seu estmulo no apenas a necessidade, mas tambm a curiosidade
de conhecer o novo. Logo em seguida a constatao sobre a infertilidade da terra onde
produz, ele testemunha um episdio numa venda de sua cidade. Bi, migrante que
retorna terra natal, entra no estabelecimento com trajes da cidade grande e provoca
seus conterrneos: Vocs vo passar a vida no mesmo, dia nasce, dia morre e a vidinha
50
de vocs tal e qual! Isto aqui no mundo, no! o que caiu do fiof dele!. Nem
mesmo a chegada do Coronel desencoraja o provocador:
CORONEL Eita, que tem gente que s ir pro sul que volta tresmudado! Quando `tava aqui j no era
muito homem, quando volta vem fedendo perfume de mulher da vida!
BI Me diz c uma coisa, coronel: o senhor, por acaso, j comeu macarro espaghetti? Lazanha de
quatro queijo? Bife a milanesa? Chantili e maionese? O senhor precisa conhecer o mundo, coronel!
O testemunho do episdio faz com que Tio sinta-se seduzido pela metrpole. O desejo
de um dia na vida comer aquilo!, de, em termos gerais, conhecer o mundo,
encorajador. o que faz com que Tio resolva em definitivo abandonar sua terra. Bi, o
provocador insolente, traz notcias do mundo sedutor e salvador com o qual Tio podia
apenas sonhar. Em breve, a iluso do novo mundo se desfar. Na cidade, tudo s
estranhamento. Tudo novo e difcil: o frio, o lugar, a comida, os costumes e,
principalmente, a solido. Encontrando trabalho em uma obra, Tio torna-se alienado
de sua produo. Se antes plantava em uma terra sua, agora constri edifcios a mando
de gente que pouco conhece e para pessoas que jamais conhecer. Tio um dos
milhes que foram forados a trocar a identidade pela sobrevivncia em uma cidade que
precisava de braos para verticalizar-se.
A saga de Tio Cirilo a saga de milhes. No por acaso posicionada como episdio de
abertura do texto, faz teatro de uma biografia trivial. Na metrpole nada aconteceu de
inusitado com Tio Cirilo, ler-se- no incio. Trata-se da histria de uma boa-alma, de
um sujeito tmido e franzino que se desloca do serto para a metrpole, encontra
emprego, sofre por desenraizar-se, rejeita a nova cidade e volta cidade natal quando
pode, s conseguindo identificar-se com So Paulo quando nela consegue constituir
famlia. A trivialidade de sua trajetria pressupe e almeja universalidade. Tio um
que ao mesmo tempo todo e qualquer migrante. No se trata de algum que possui em
sua histria uma passagem excepcional e que, por assim ser, torna-se reveladora de algo
sobre os homens. Sua experincia reconhecvel, no todo ou em grande parte, em
qualquer experincia migratria.
51
52
tempo. Aps experimentar uma srie de eventos trgicos, ela no v mais sentido na
ao. Nem mesmo os filhos lhe traro o entusiasmo necessrio para continuar seguindo.
Como Tio, Maria Dia migrara por conta da tragdia social e, ao contrrio dele,
migrara tambm pela srie de tragdias familiares causadas principalmente pelo marido
violento. O final da saga, invertendo a expectativa da eterna estagnao da protagonista,
constituir o termo definitivo desta espcie de sagrao da fora do migrante. Contra
toda expectativa Maria Dia levanta-se e segue sua caminhada. Ela, nos termos de um
dos narradores, no entende seu valor e no entende as origens da tragdia de sua vida,
da mesma forma que Tio, ao perceber que tudo passara rpido demais no tem tempo
para compreender tudo que se deu em sua vida. O sertanejo , antes de tudo, um forte:
a assertiva de Euclides da Cunha uma espcie de sntese do ethos comum a essas
personagens. Sem entender por que se movem, seguem se movendo, por que sabem que
no tm outra alternativa para continuar vivendo seno perseverar na luta.
Posicionada entre as sagas de Tio Cirilo e Maria Dia, Galata uma espcie de
intermezzo cmico a propor uma variao radical de gnero. O tratamento realista dado
aos personagens das sagas inicial e final agora contraposto ao universo mtico. Desse
modo, alternam-se as regras de verossimilhana na histria do pcaro que precisa
recuperar seu crebro roubado. O migrante, aqui, deixa de ser entendido como sujeito
histrico e torna-se um ser arquetpico, atemporal. O fenmeno da migrao passa a ser
visto como um presente eterno, que conclama nossa conscincia mtica e prope um
paralelo com a perspectiva histrica em que esto circunscritas as demais sagas.
Mito cmico e popular, a saga construda a partir de referentes da escatologia e do
grotesco, que em muito remetem aos fabliaux medievais e s narrativas de Rabelais.
nesses termos que est a gnese do anti-heri Joo de Galata. A histria de seu
nascimento comea com uma inesperada tempestade de fezes que assola Raso do
Gurguu. Mais que perturbar seus moradores, a incmoda ventania vinda com a chuva
ter tambm um inusitado carter fertilizante. Maria Milinga, nonagenria repulsiva,
tem sua saia levantada pelo vento, que a engravida. Joo, o filho deste vento e da velha
um tanto quanto indesejveis, trar em seu sobrenome a referncia explcita ninfa
grega por qual Polifemo apaixonou-se sem ser correspondido. O menino Galata, filho
das fezes e da velhice, o varo que traz em seu nome a feminilidade, em que sua me
deixa gravada a pista de uma profecia: Galata o homem que gestar crianas.
53
O terreno do mito, na
19
54
55
futuro superando todas previses de que gente como ele no teria futuro. Outros dizem ainda que Galata
s uma histria absurda. Galata ri dessa gente.
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A saga de Joo de Galata, por sua vez, ter como princpio o mito de seu nascimento.
Repete-se a estruturao do decurso temporal de Tio, com os episdios sucedendo-se
de maneira linear. No entanto, como saga mtica, a linearidade na sucesso dos fatos
acaba por constituir um tempo cclico. Joo de Galata termina exatamente como se
inicia: com o fim de uma gestao que resultado da cpula de um fenmeno da
natureza (o vento) com um ser a priori tido como incapaz de gestar (no incio, a velha
Milinga, no fim, Joo). J em Maria Dia, tudo comea com a informao de que a
protagonista no se move mais. Se em Tio Cirilo parte-se de um passado mais remoto
rumo a um passado mais recente, em Maria Dia d-se o contrrio. Sua infncia, sua
juventude e sua vida adulta so recuperadas em flash-back como forma de compreenso
do fato principal.
A variedade de disposies temporais sugere a preocupao da pea com a questo das
experincias fundadoras. Os relatos de vidas em Borand so por estas completamente
organizados e toda a trajetria de um homem germina de uma nica e decisiva
experincia. Uma saga tem incio com o momento em que um homem decide deixar
sua terra e tudo o que vir conseqncia desta opo. Outra comea com o nascimento
de um anti-heri. Na lgica do mito, o nascimento j traz em si a idia de um destino
inexorvel. A ltima saga inicia-se com o trauma de uma mulher. O que seria
conseqncia de uma srie de dores acumuladas ao longo da vida, torna-se causa do
resgate narrativo do passado.
Borand retoma uma forma de teatro narrativo com a qual Abreu vem lidando tanto
dentro como fora da Fraternal (em trabalhos como Um Merlin, de 2003). Se em
diversas manifestaes de teatro pico a ao dramtica estabelecida via dilogo cede
terreno para interferncias de ordem narrativa, aqui se d o contrrio. A conduo dos
acontecimentos feita prioritariamente pela palavra de teor narrativo, que em diversos
momentos cede espao a breves inseres de cunho dramtico.
AMOZ Quando se chega s estranhamento. Tudo novo e difcil: o frio, o lugar, a comida, os
costumes e, principalmente, a solido.
TIO o que di mais. Solido enlouquece. Eu odiava domingo e at hoje no gosto. Dia de semana
tinha os companheiros, peo de obra, o trabalho. Chegava sbado, sumiam todos dentro da cidade, iam
pra junto das famlias, dormir com as quengas. Eu amanhecia domingo sozinho na obra. Domingo tarde,
lembrana da me, dos amigos, do lugar de origem, cortava a coragem da gente. Vontade que sobrevinha
57
era de se danar, de morrer, de chorar. E o domingo o mais lerdo dos dias, acaba bem devagar e eu ali
naquela cidade-monstro quieta, na obra quieta, s eu e meu radinho de pilha, meu companheiro
58
59
60
Ciente de sua ascenso sobre o grupo, Abu intervm quando seus companheiros pem
em risco o distanciamento narrativo que deve se impor como tom geral do texto. Na
passagem acima, a figura da me de Tio Cirilo, representada por Benecasta, em sua
eterna angstia pela partida do filho, quer gritar, quer transpor os limites de uma cena
em que se deve sugerir a dor materna para mostrar com toda a plenitude o sofrimento
que tentou ocultar de seu filho. Abu, no entanto, interfere com um suficiente,
solicitando a interrupo do fragmento dramtico a fim de que a pea possa retomar sua
dinmica narrativa.
Se variam as naturezas e as funes de cada narrador, varia tambm a forma de narrar.
Cada saga tem uma orientao estilstica extrada da natureza e da viso de mundo do
narrador que assume o protagonismo. A saga inicial, em sua placidez, traz o bommocismo de Tio. Joo de Galata, subversora, fruto do esprito desordeiro de
Wllington. A exploso dos sentimentos em Maria Dia, por sua vez, projeo do
ethos de Benecasta.
Alm de narrar as sagas, o quinteto tambm discute o que e como narra. Tendo o olhar
focado na questo da migrante, Borand atenta tambm para sua prpria construo20.
Cada um dos trs episdios precedido por um prlogo. Em todos eles, mais do que
simplesmente anunciar ao pblico o que se representar, instauram-se discusses
cmicas de natureza metalingstica em que o que se discute a prpria comdia
popular. Assim, encerrada a saga de Tio Cirilo, certos pontos de vista sobre o tema
sero anunciados:
TIO CIRILO Emocionante a histria do Tio. Eu achei!
WLLINGTON Legalzinha. Faltou um pouco mais de comicidade, de fico.
BENECASTA L vem! L vem!
WLLINGTON Faltou alegoria, elementos grotescos, ao, lances absurdos e inesperados...
TIO CIRILO Pra que tudo isso?
WLLINGTON Pro povo apreciar! (Para o pblico) Histria tem de ter colorido, rendado, bordadura.
Tem de ter, sei l, gigantes, anes, coisas do avesso, como do gosto popular, no ?
20
A pesquisa da Fraternal Companhia de Artes e Malas Artes torna-se freqentemente tema de outros
textos. Um deles, Mastecl, corruptela que faz o aportuguesamento de Master Class, tem como tema
central exatamente seu gnero, ou seja, a comdia popular.
61
, pois, pela conceituao e pela defesa de um certo tipo de comdia popular que
Wllington apresenta a saga de Joo de Galata, que ele mesmo protagonizar, e faz a
transio de ambiente, preparando terreno para o grotesco e o mtico que marcaro a
saga intermediria.
A investigao do popular, do cmico e do nacional que define o projeto da Fraternal
tambm a busca pelo sentido do teatro narrativo em nossa poca. No caso do texto em
pauta, esse sentido aponta para a busca de uma arte totalizante, em que no est em
questo a possibilidade de o teatro reordenar uma experincia humana. Essa perspectiva
j est anunciada na prpria variedade de referncias lingsticas, estilsticas e estticas
solicitadas pelo texto. O resgate de culturas aqui no implica a colagem de dispersos a
sugerir a impossibilidade de compreenso holstica do real. Os limites que separam a
cultura erudita e a popular so implodidos e a fala popular e a linguagem sociolgica, os
fabliaux e princpios do teatro brechtiano so tomados como partes da histria da
Cultura, convocados a se renovarem em favor de uma unidade maior. Dessa forma,
histria e mito, documento e imaginao, erudio e popularidade no se excluem, mas
se completam.
Borand, ao contrrio de, por exemplo, Vermouth, no aponta uma pequena parte que,
representada, pode dar conta de revelar o todo da qual faz parte. A escolha pela narrativa
de trs episdios dissociados do ponto de vista narrativo e aproximados pelo tema uma
questo decisiva para a compreenso desta questo. A pea no se quer a grande
narrativa unificadora, plena de significados. Prefere, seguindo por outra via, decompor
trs trajetrias de migrantes (que so tambm trs experincias estticas distintas)
atravs de fragmentos dramticos unificados pelo fio condutor da palavra emanada pelo
conjunto de narradores para, ao fim, criar a sensao de que essa decomposio prestase a uma recomposio totalizante da migrao.
Essa busca pela experincia artstica totalizante exatamente a busca utpica que
moveu e organizou as estticas ligadas, em geral, modernidade e, em particular, ao
drama moderno. Essas estticas foram marcadas por um impulso demirgico no qual
62
21
6.
O Studio de Gertrude Stein
peraJoyce (1988), Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso (1996) e Plvora e
Poesia22 (2001) compem a trilogia do discurso moderno, de Alcides Nogueira.
Autnomas do ponto de vista do enredo e distintas em seus projetos formais, as peas se
aproximam pela tematizao de figuras absolutamente decisivas para a conformao da
esttica moderna e pelas suas respectivas situaes. Em todas as peas, essas situaes
prevm o encontro de figuras que, a um s tempo, impem-se como cones da histria
da arte e como personagens de conflituosas relaes amorosas.
Os trs argumentos so colhidos nas pesquisas do dramaturgo, leitor voraz, desde muito
jovem, da literatura ligada modernidade e das biografias de seus autores. Todos partem
de dados biogrficos mais ou menos conhecidos. A apatia e o furor sexual do casal
James Joyce e Nora Barnacle, conhecidos principalmente aps a publicao das
correspondncia ntima do casal23 a matria inspiradora de peraJoyce. Gertrude
Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso, como sugere o ttulo, parte da vida conjugal da
escritora e Alice, em Paris, e o contato das duas com o artista plstico andaluz. J
Plvora e Poesia traz ao palco a tempestuosa passagem do jovem Arthur Rimbaud
(1854-1891) pela vida de Paul Verlaine (1844-1896). Nos trs casos, o binmio
22
peraJoyce estreou em 09 de dezembro de 1988, no Espao Off, com elenco formado por Vera Holtz
(Nora Barnacle), Joo Carlos Couto (James Joyce) e Miguel Magno (Stephen Dedalus), sob direo de
Mrcio Aurlio. Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo Picasso estreou em 15 de maro de 1996, no Centro
Cultural So Paulo, sob direo de Antonio Abujamra e Mrcio Aurlio. O elenco foi formado por Nicette
Bruno (Gertrude Stein), Clarisse Abujamra (Alice Toklas) e Francarlos Reis (Pablo Picasso). Novamente
sob direo de Mrcio Aurlio, Plvora e Poesia estreou em 6 de julho de 2002, no teatro do Centro
Cultural Banco do Brasil da capital paulista, com elenco formado por Joo Vitti (Rimbaud) e Leopoldo
Pacheco (Verlaine).
23
James Joyce, Selected letters, Nova York, Viking, 1975, seleo de Richard Ellmann.
64
Os dois so, de fato, um. Ambos so os opostos de um conflito interno. Cada qual
representa uma poro do ethos do escritor irlands: de um lado, aquele que obedece a
uma educao catlica e que se enquadra na ordem burguesa. De outro, o homem que
rejeita os pressupostos morais de seu tempo e descobre no sexo e em sua mulher um
caminho para sua transcendncia.
O texto um libreto para pera contempornea24. As rias cedem espaos importantes
para passagens recitadas. No se trata de uma dramaturgia a ser desempenhada por
cantores lricos, mas por atores-cantores, corporalmente preparados e dispostos
representao teatral e no apenas ao canto lrico. O carter operstico desaparecer nos
demais textos da trilogia, mas peraJoyce d incio ao trabalho com dois recursos que
sero decisivos no projeto completo. O primeiro deles a colagem de citaes. A
trilogia do discurso moderno , sob certo ponto de vista, o resultado de um acurado
trabalho dramatrgico de montagem que tem como matria-prima fragmentos das obras
dos artistas tematizados, bem como passagens de registros histricos sobre os mesmos.
24
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66
momento, descobre a obra de Verlaine e comea a lhe enviar correspondncias nas quais
remete alguns de seus poemas. Fascinado pela poesia do jovem, o poeta de Paris
convida-o a mudar-se para aquela cidade e hospedar-se em sua casa.
Verlaine, dez anos mais velho que o poeta da provncia, ostenta a fama de poeta
maldito, apesar de trabalhar em um rgo do governo francs e ser casado com uma
jovem de dezessete anos, que aguarda o primeiro filho do casal. A chegada de Rimbaud
acabaria por desestabilizar a rotina comportada do anfitrio e desviaria em definitivo o
curso de sua vida. A interlocuo artstica transforma-se em um conturbado caso de
amor. No bastasse a radical transformao na rotina ntima de Verlaine, Rimbaud
tambm faria com que a imagem pblica de seu protetor fosse contestada. O
comportamento arrogante e muitas vezes impertinente de Rimbaud faria com que se
tornasse persona non grata at mesmo nos meios literrios parisienses, que pouco antes
haviam reconhecido o carter renovador de sua produo potica. Verlaine passa a ser
ridicularizado junto a Rimbaud. Entre os homens de letras que assistiram
representao da pea, via-se o poeta Paul Verlaine de brao dado com Mademoiselle
Rimbaud, uma encantadora jovem, publica um jornal, numa nota citada na pea.
Em 1872, Verlaine abandona sua esposa e parte com Rimbaud para a Blgica. Depois de
uma temporada em Bruxelas, seguem para Londres, onde conseguem sobreviver
ministrando aulas de francs. As brigas e rompimentos temporrios so sucessivos.
Numa ltima discusso, Verlaine atira duas vezes contra Rimbaud, que acaba tendo o
punho levemente ferido. Denunciado pela famlia do poeta de Charleville, Verlaine
levado a julgamento e condenado a dois anos de priso. Cumprida a pena, torna-se um
catlico fervoroso e procura o antigo companheiro, a fim de tentar convert-lo f
catlica. A tentativa frustrada de Verlaine marca o ltimo encontro dos poetas. Logo em
seguida, Rimbaud erra por diversos pases da Europa at seguir para a frica, onde
interromperia em definitivo sua produo literria e iniciaria uma carreira de
comerciante. Morre prematuramente, em 1891, acometido por um cncer que lhe
amputou uma perna. Verlaine, por sua vez, deixa o fervor catlico e, incapaz de retomar
sua vida conjugal, torna-se alcolatra, passando por uma srie de enfermidades que
acabariam culminando em sua morte.
67
s referncias aos escritos dos poetas acrescem-se outras, como trechos dos poetas
portugueses Fernando Pessoa e Eugnio de Castro. Essas, no entanto, ao contrrio de
peraJoyce, no chegam a produzir efeitos de anacronismo, pois integram-se de modo
mais orgnico tessitura potica do texto. Esse um dos elementos que faz de Plvora
e Poesia um texto mais sbrio que o texto de abertura da trilogia. A natureza deste
episdio e de seus personagens, de fato, exigem uma conteno mais rigorosa.
68
O segundo texto da trilogia foi precedido por uma verso bastante distinta, chamada O
Retrato de Gertrude Stein quando homem. Esteve em cartaz no Rio de Janeiro, em
1992. O trio de personagens era formado por Gertrude Stein, Alice Toklas e Hlene,
empregada do casal. Quatro anos depois, Alcides Nogueira viu-se movido pelo desejo
de re-escrever o episdio com a escrita de Gertrude Stein 25. A pensar no resultado do
novo texto, o anseio anunciado esteve certamente ligado inteno de glosar aspectos
do uso de um determinado presente contnuo 26 que marca boa parte da prosa da
escritora norte-americana, bem como a subverso da sintaxe tradicional, ao fazer uso de,
por exemplo, polilinguismo, repeties de vocabulares e pontuaes imprevistas. Assim,
Alcides Nogueira rebatizou e re-elaborou completamente o texto.
Sua mote a histria da relao entre Gertrude e Alice, judias norte-americanas que se
conheceram j na Frana e a casa em que viviam, na mtica Rue de Fleurus, em Paris.
Por ali, passaram um sem-nmero de artistas que criaram as bases plurais da
modernidade, como Francis Picabia, Juan Gris, Henry Matisse, Claude Debussy, Marcel
Duchamp, Tristan Tzara e, claro, Pablo Picasso. O studio da anfitri calorosa
conhecido como um dos espaos privilegiados de discusso sobre as novas diretrizes
estticas que surgiam naquele momento.
A questo do tringulo amoroso, seminal nos textos anteriores da trilogia, volta a ser
tematizada. Agora, no entanto, o amor que se estabelece entre Stein e Picasso est em
outro plano, trata-se de algo que nasce da interlocuo artstica e no quer transformarse em um relacionamento (ainda que em certos momentos a proximidade dos artistas
faa com que Alice padea de cimes). Esta interlocuo faria com que Gertrude Stein
escrevesse sobre Picasso e este, por sua vez, fizesse da amiga o tema de um de seus
mais conhecidos retratos.
O Retrato de Gertrude Stein, hoje integrante do acervo do Metropolitan Museum de
Nova York, foi pintado em 1906, um ano antes de Gertrude e Alice se conhecerem e no
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Em sua exposio, torna-se patente um procedimento que ficara sugerido na fala inicial
do pintor e que seguiu se estabelecendo nas rplicas sucedneas. Gertrude apresenta-se
como personagem que tem um passado, que entra j velha, de bengala e fala sobre si.
Mas apresenta-se tambm como se pairasse acima de seu tempo, como figura
canonizada. Essa tambm a Gertrude Stein posta na Histria, a que se tornou um
quadro de Picasso e um dos pilares da literatura moderna. a Gertrude Stein que viveu
em sua poca e a Gertrude Stein que vive em nosso tempo. Concluda sua
apresentao, ela rememora um episdio:
GERTRUDE - Uma noite ele [Picasso] chegou e disse baixinho no meu ouvido:
PICASSO Voc vai se sentar e posar para um retrato.
GERTRUDE Pintado por voc?
PICASSO Si.
GERTRUDE Est certo. E posei noventa vezes para ele.
Gertrude senta-se e Picasso comea a pintar o retrato de Gertrude.
Nesse momento, inicia-se uma dinmica de sucesso de fatos que organizar todo o
texto. As quatro rplicas e a rubrica referem-se a um instante determinado. Essa breve
fixao do tempo implica tambm no surgimento de uma nova ao: Picasso pinta o
retrato de Gertrude Stein, que lhe serve como modelo. At ento, as aes dos
personagens centravam-se na atitude de discursar sobre si mesmos e sobre o mundo em
que se inserem. A partir deste momento, suceder-se-o uma srie de instantneos que
reinventam a trajetria e os questionamentos de Gertrude e seus companheiros. To
logo instaurada a cena da pintura do quadro e Picasso pe-se a pintar, um foco de luz
desloca a ateno do espectador para Alice:
ALICE Eu era apenas dois anos mais nova do que Gertrude. Quando eu a vi pela primeira vez foi aqui
em Paris, na casa de Sarah Stein, que viria a ser minha concunhada. Gertrude era um ser iluminado pelo
sol da Toscana. Um brilho dourado no cabelo castanho e sedoso. Quando eu a vi, usava um terno de
veludo cotel marrom. Usava um broche de coral redondo, e, quando falava ou ria, sua voz parecia
emanar daquele broche.
GERTRUDE Eu no falei nada naquele dia!
ALICE Falou sim!
GERTRUDE No falei!
ALICE Falou sim!
PICASSO Alice! Naquele dia, Gertrude ficou sentada como um Buda em meditao.
74
ALICE Era uma voz diferente de qualquer outra; profunda, aveludada como uma voz de contralto,
como se houvesse dois timbres. Isaurinha e Elis cantando juntas. Suas mos eram delicadas e o formato
de sua cabea maravilhoso, nico.
Gertrude levanta-se, agitada. Picasso se irrita.
PICASSO Continua sentada.
GERTRUDE uma histria de amor, Pablito. Eu e Alice marcamos um encontro. Ela no veio.
PICASSO Vem posar!
75
Concluso
Ainda que as proposies formais analisadas nos ensaios que constituem o cerne
deste estudo devam ser entendidas como decorrncias particulares de relaes dialticas
com suas respectivas matrias, fato que os seis textos em questo, ao menos nas
linhas-mestras destas proposies, so representativos de quatro tendncias que vemos
reiterar-se de maneira significativa na produo de nova dramaturgia em So Paulo.
Em Vermouth, como vimos, o que notcia sobre o estado de coisas que aflige o
mundo exterior sala da diretora acaba se convertendo, conforme vo se dando as
entradas dos personagens, em matria dramtica a impulsionar a intriga em direo ao
trgico. A pea caracteriza-se pela representao naturalista de uma intriga
desencadeada por um conflito, intriga esta que se d em tempo real e em um nico
ambiente, encontrando no dilogo seu meio lingstico fundamental. Essa caracterstica
formal retomada em um outro texto de Labaki, MSTeso (2003) e bastante prxima
de diversos textos de outros autores contemporneos, como Preso entre ferragens, de
Fernando Bonassi (texto de 1990, encenado dez anos depois), Novas diretrizes em
tempos de paz (2002), Blitz (2002) e O Acidente (1996), de Bosco Brasil, A terra
prometida (2002), O regulamento (2002), de Samir Yazbek, Vestir o Pai (2001), de
Mrio Vianna e Getsmani (2001), de Mrio Bortolotto.
A reaproximao de parte da produo dramatrgica contempornea ao
paradigma do Drama, em desfavor dos recursos picos, j no parece estar associada a
busca pelo conceito de verossmil defendido pelos tericos desde o renascimento 27. Esse
esforo pelo verossmil, que justificava a busca pela pureza da Dramtica, era
27
sobre o assunto, cf. Jean-Jacques Roubine, Introduo s grandes teorias do teatro,p. 32-36 e Anatol
Rosenfeld, op. cit., p. 53-55.
Concluso
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fundamental para que o espectador pudesse identificar-se com o que via, pudesse crer
que o drama que est diante dele no a representao (secundria) de algo (primrio),
mas se representa a si mesmo, ele mesmo 28. Esse princpio da identificao, j h
muito tempo, sucumbiu ante diversas transformaes estticas e sociais que alteraram a
sensibilidade do espectador. De fato, j no se vai mais ao teatro para ver (vivenciar)
um personagem ou acompanhar um drama, mas para ver o teatro, um espetculo, uma
encenao. 29
Essas aproximaes contemporneas do Drama, afastadas das noes de
verossimilhana e identificao, esto certamente mais interessadas em um mecanismo
de natureza metonmica. Pela representao da parte pretende-se a compreenso do
todo. Essas aproximaes consistem, via de regra, em episdios curtos a alimentar no
mais que uma hora de encenao, centrados em uma ao nica disposta entre poucos
personagens, em um espao nico e em um lapso temporal bastante restrito, que muitas
vezes coincide com o tempo real. Nestes textos, as causas do fenmeno suscitado
interessam menos que as posturas dos que nele se envolvem, o que bastante evidente
em Vermouth. A experincia em si do personagem interessa mais que os comentrios de
natureza pica ou a expressividade lrica.
Em O Fingidor, Yazbek, valendo-se da perspectiva do outrar-se de Pessoa,
converte em drama uma matria, a priori, de natureza intrasubjetiva. Sua intriga
desenvolve-se por meio de saltos temporais e espaciais. H, por conta desses saltos e do
trabalho com dois nveis de realidade, maior liberdade no uso de referentes picos que
em Vermouth. De qualquer forma, o centro dramtico do texto se preserva, pois tudo se
encaminha ao dilogo e tenso intersubjetiva. Este dilogo como meio lingstico
predominante (quando no exclusivo), e o centro em intrigas dispostas por meio de
saltos espaciais e saltos temporais (quase sempre lineares) so caractersticas formais
tambm de textos como A boa (1999), de Aimar Labaki e Carro de Paulista (2003), de
Mrio Vianna e Alessandro Marson.
As aproximaes contemporneas ao gnero dramtico, seja no caso das peas
que tendem a optar pelas unidades de ao, tempo e espao, seja no das peas em que as
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29
Concluso
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Concluso
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vivenciam, ora narram suas prprias trajetrias. Este trabalho com a narrao em
primeira pessoa certamente favorece o acento lrico do texto.
A presena cnica do narrador requisitada por Abreu no apenas em Borand,
mas em todos os seus trabalhos desenvolvidos junto Fraternal Companhia de Artes e
Malas-Artes, bem como em textos produzidos em outros contextos, como o Livro de J
(1995) e Um Merlin (2003). Este narrador, por via de uma srie de dispositivos
fundados em um srio dilogo com o pico brechtiano, tambm decisivo nas
montagens dos textos criados em processo colaborativo pelos dramaturgos da
Companhia do Lato, como O nome do sujeito (1998), A Comdia do Trabalho (2000) e
O Mercado do Gozo (2004).
Lus Alberto de Abreu, em um de seus textos tericos, dedica-se defesa do
teatro narrativo com os seguintes termos:
Creio firmemente que o sistema narrativo um sistema de ganhos. um sistema complementar ao
sistema dramtico/representativo e no exclui nenhuma conquista desse ltimo. Ao contrrio, provoca,
lana desafios a todos os criadores e re-introduz o pblico como elemento construtor do espetculo
teatral. Sem a imaginao do pblico o teatro narrativo no existe. Ao propor a partilha imaginativa de
experincias humanas, o teatro narrativo solicita algo alm da mera geometria esttica. Prope e pede a
restaurao da antiga unidade entre o pblico e o privado, o indivduo e sua comunidade, a fora
progressista e de ruptura da imaginao individual e a solidez do imaginrio coletivo.31
31
Concluso
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Apndice
Sobre os autores
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Novas diretrizes em tempos de paz (2002), escrita originalmente para o evento gora
Livre Dramaturgias, do Teatro gora, tambm encenada por Goldmann, lhe deu seu
segundo Prmio Shell e teve reconhecimento internacional, sendo produzida na
Argentina e lida na Itlia. Sua obra at o momento se completa com o Dia do Redentor,
encenada no Rio de Janeiro.
Nos anos 90, foi editor da Caliban Editorial que, atravs da coleo Teatro Brasileiro
de Bolso publicou seis textos de dramaturgos contemporneos. Alm de textos teatrais,
escreve com regularidade para a televiso.
Fernando Bonassi (1962)
Nascido na cidade de So Paulo, graduou-se em cinema pela Escola de Comunicao e
Artes da Universidade de So Paulo. Escritor de mltiplas facetas, dedica-se ao teatro,
ao conto, ao romance, ao roteiro cinematogrfico e crnica jornalstica (atualmente,
colunista da Folha de S. Paulo).
Seu primeiro texto, As coisas ruins da nossa cabea (1989), foi adaptado para o cinema
(Latitude Zero, direo de Toni Venturi). A esta primeira experincia, seguiram-se Preso
entre Ferragens (escrita em 1990, encenada em 2001, sob direo de Eliane Fonseca),
Telefone (1991) e nibus (1991), ambas inditas e Um cu de estrelas, adaptao do
romance homnimo do prprio autor, vencedora da Jornada SESC de Teatro.
Com Victor Navas (nascido em Santos, em 1962), com quem mantm uma longa e
produtiva parceria na escrita de roteiros cinematogrficos, escreve Souvenirs (2002,
Teatro Popular do SESI, direo de Mrcio Aurlio) e Trs cigarros e a ltima Lasanha.
Bonassi foi ainda o dramaturgo responsvel pelo texto de Apocalipse 1,11, terceira parte
da trilogia bblica do Teatro da Vertigem, apresentada no desativado Presdio do
Hipdromo, em So Paulo, sob direo de Antonio Arajo. Este texto e Trs Cigarros e
a ltima lasanha foram indicados ao Prmio Shell de Teatro. Fez ainda duas adaptaes
de Bchner, dirigidas por Cibele Forjaz: Arena conta Danton e Woyzeck, o brasileiro.
84
Um levantamento completo de sua produo teatral foi realizada por Adlia Nicolete em O teatro de
Lus Alberto de Abreu at a ltima sbala, cf. Bibliografia.
85
ento, tem dividido seu tempo entre a escrita, a produo de seus textos e o ensino de
dramaturgia. Em 2001, estreou A terra prometida (Teatro SESC Anchieta, direo de
Luiz Arthur Nunes), no ano seguinte, teve O regulamento encenado na I Mostra de
Dramaturgia Contempornea do Teatro Popular do SESI, sob direo de William
Pereira. Seus textos mais recentes chegar aos palcos so de 2004: A Mscara do
Imperador (Sesc Belenzinho, 2004, novamente com direo de William Pereira) e A
Entrevista, (Teatro SESC Santo Andr, sob direo de Marcelo Lazzaratto). ainda
organizador de Uma cena brasileira (Hucitec, 2001), coletnea de depoimentos de
alguns dos mais importantes atores do pas.
86
Bibliografia
1. corpus da pesquisa
1.1. textos no publicados:
de Aimar Labaki: Vermouth; Cordialmente teus; MSTeso.
de Alcides Nogueira: peraJoyce; Florbela; Gertrude Stein, Alice Toklas e Pablo
Picasso; Ventania; Plvora e poesia; A ponte e a gua de piscina.
de Bosco Brasil: Atos e omisses; O acidente; Novas diretrizes em tempos de paz; Blitz.
de Fernando Bonassi: Preso entre ferragens.
de Fernando Bonassi e Victor Navas: Trs cigarros e a ltima lasanha; Souvernirs.
de Luis Alberto de Abreu: Iepe; Till Eulenspiegel; Mastecl; Stultfera Navis; Auto da
paixo e da alegria; Um Merlin.
de Mrcio Marciano e Srgio de Carvalho: O nome do sujeito; Auto dos bons tratos; A
comdia do trabalho.
de Mrio Viana: Natureza morta; Vestir o pai; Carro de paulista; Galeria metrpole.
de Newton Moreno: Deus sabia de tudo e no fez nada; Dentro; A cicatriz e a flor;
Agreste.
de Samir Yazbek: A terra prometida; A mscara do imperador; O regulamento; A
entrevista.
1.2. textos publicados
ABREU, Luis Alberto de. O livro de J; BONASSI, Fernando. Apocalipse 1,11,
CARVALHO, Srgio. O paraso perdido. in: Trilogia bblica. SP, PubliFolha,
2001.
ABREU, Luis Alberto de. Borand auto do migrante. SP, Fraternal, 2004.
_____. Lima Barreto ao terceiro dia. So Paulo, Caliban, 1996.
_____.Comdia popular brasileira. SP, Siemens, 1997 (contm as peas Burundanga,
O Anel de Magalo, Sacra Folia e O Parturio).
BRASIL, Bosco. Budro. So Paulo, Caliban editorial, 1996.
BORTOLOTTO, Mrio. Getsmani. In: Sete peas de Mrio Bortolotto. Londrina,
Atrito art editorial, 2003.
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