Cap. 13 Editorado

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TEORIA E PRÁTICA DO TEATRO

Theater theory and practice

Santiago Garcia
Tradução: Narciso Telles1

Da tradução

Os textos aqui traduzidos, publicados originalmente no volume 2 do livro


Teoria e Prática do Teatro, apresentam um recorte do vasto pensamento do autor
sobre o teatro latino-americano e sua relação com os espectadores. Composto
por três volumes, a publicação reúne um conjunto de reflexões realizadas por
Santiago Garcia a partir de suas práticas no Teatro La Candelária (Bogotá –
Colômbia), como diretor, dramaturgo e ator. Considerado grande mestre da
prática de criação coletiva na América Latina, nestes textos, ele reflete a relação
do teatro com os espectadores dentro do nosso contexto. Trata-se, assim, de um
modo de pensar a cena latino-americana em suas dimensões política e poética,
em diversos processos de criação coletiva. A publicação deste material, inédito
em português, abre a possibilidade de que muitos outros artistas-pesquisadores
possam conhecer e desejar adentrar nos escritos de Santiago Garcia, ainda pouco
conhecido no Brasil.

1
Teatreiro, ator e diretor. É professor do Curso de Teatro (licenciatura e bacharelado), do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas e Mestrado Profissional em Artes, na Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Pesquisador do CNPq e do GEAC/UFU. Membro do Núcleo 2 Coletivo de Teatro,
Uberlândia (MG). @narcisotelles.
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Sobre o TEATRO do futuro...2

Há algo que permanece na arte através dos séculos e até em milênios. São
características fundamentais de cada gênero que, apesar dos avanços e
mudanças tecnológicas, continuam subsistindo. No Teatro, esses elementos são
muito simples. Basta um ator e um espectador para que o fundamental da arte da
representação brote, apareça e se faça realidade. A ação é o fundamento. Esta
observação vem de Aristóteles como também do teatrólogo mais notável do
século XX, Bertolt Brecht, que seguiu postulando que a ação (ou a sequência de
ações) é a base de toda a sua reflexão e prática teatrais. Este pensamento,
expomos em vários ensaios e escritos3. Em seu Pequeno Organon para o Teatro4,
Brecht concorda com Aristóteles no fato de que a fábula (Aristóteles chama de
mito) é que é a “alma” do teatro, e nela está precisamente a ação como uma
sequência de acontecimentos. Então, hoje, no limiar do século XX e de um novo
milênio, continuamos postulando o mesmo princípio fundamental, porém não sem
perguntarmos o que nos é apresentado de renovador na dramaturgia ou na
relação entre o ator-espectador por meio da ação neste momento?
Na perspectiva latino-americana, e no meu contexto colombiano, necessito
fazer várias considerações. A primeira é a ausência de confiança que temos no
surgimento de elementos novos ou renovadores na arte como condições
peremptórias para desenvolvimento de uma nova estética. Esta atitude de
desconfiança na renovação, ou nos famosos “ismos” que caracterizavam grande
parte da arte moderna do século XX, já foi tema de reflexão profunda por
pensadores como Lyotard5, Habermas, entre outros. Apesar de não compartilhar
totalmente com esse ponto de vista, o Teatro que imagino para o nosso futuro,
certamente, não buscará formas de uma pretensa nova estética “internacional”.
Mas, como eu acho que aconteceu até agora, trabalhará no desenvolvimento de

2
GARCIA, Santiago. Teoría y Práctica del Teatro. Vol. 02. Bogotá: Teatro La Candelária, 2002. pp.152-158.
3
Cf. GARCIA, Santiago. Teoria e Prática do Teatro. SP: Hucitec, 1988. (N. do T.)
4
Cf. BRECHT, Bertolt. Escritos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2005.
5
LYOTARD, J. F. La condición pós-moderna. México: Ed. Rey, 1990.

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expressões que promovam um retorno às fontes do passado, de linguagens


renovadoras, de experimentações que não se caracterizam por um desejo
vanguardista, mas pela própria necessidade de um modelo próprio que signifique,
às vezes, voltar às fontes e rituais originários de nosso continente. Acredito em
uma arte de pesquisa que, em última análise, é a condição fundamental de
qualquer processo de criação artística. Ao realizarmos estes processos, temos
que colocar em primeiro lugar a busca da invenção cênica (o mito), com suas
múltiplas possibilidades e meios de expressão.
Neste momento, parece-me que o problema tem sido o fato de que muitos
de nós confundimos estes meios, que não são nada além de pontes e acessórios
com um propósito final transcendente pautado precisamente na ação. Estamos
vendo uma boa quantidade de espetáculos que esvaziam a importância da ação
e abrem caminho para que a cena se torne um espaço exclusivamente formal, e,
no melhor dos casos, pretendem romper ou tensionar com o aspecto central da
dramaturgia que é o encadeamento das ações. Quero dizer que a ação, no teatro,
é o lugar fundante do tema, do conteúdo e da forma.
Em segundo lugar, está o espectador, seu grau de receptividade e a
mudança na qual ele deve passar pela experiência de uma ‘realidade’ complexa
e desconcertante como é esta em que vivemos e a partir da qual nos perguntamos:
quais as mudanças que deve passar a obra artística para que mude efetivamente
a sensibilidade ou a maneira de percepção do espectador? São extremamente
oportunas as observações de Patrice Pavis6, quando formula sua teoria da
recepção, a qual tenho repetido em diversas ocasiões. Pavis declara que a
verdadeira tomada de decisão da arte frente a sociedade é sua capacidade de
transformar profundamente as maneiras do espectador ver e perceber a realidade,
propondo uma estética na qual esse grau de recepção seja de interesse tanto do
teórico quanto do artista.
A Arte, mesmo que não pretenda transformar a realidade, modifica nossa
conduta de observação da sociedade e seu impacto sobre os modos de percepção

6
PAVIS, Patrice. El teatro y su recepción. Havana: Ed. Uneac, 1994.

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das relações sociais é fundamental e determina, portanto, as possíveis


transformações do homem em relação a uma dada realidade, por mais
imprevisível que seja o futuro. Se apenas entretêm ou promove transformações
‘brandas’ ou toleráveis, é uma arte menor; a arte que aceita o poder não
transforma, e deste modo, não transcende.
No caso da América Latina, o teatro deve ser partícipe na transformação do
pensamento do novo homem americano, expressando com uma linguagem
própria, quero dizer, uma linguagem cênica que promova um verdadeiro impacto,
que renove e transforme as formas tradicionais de ver e sentir. Porém, não deve
ser qualquer verdade, não se trata da verdade científica ou filosófica, mas a que
professava Artaud: “o objeto fundamental da arte teatral é expressar
objetivamente certas verdades secretas”7.
A diferença entre o pensamento de Artaud e o de Brecht está na distinção
da ‘verdade’ no teatro. Porém, essa questão, de enorme importância nos anos 60,
atualmente, tem maior importância no campo filosófico do que aos artistas. A
verdade para Brecht se expressaria nas maneiras de divertir o espectador: “a
tarefa do teatro, como de todas as artes, consiste sempre em divertir as pessoas”8,
e logo depois esclarece: “podem proporcionarmo-nos prazeres fracos (simples) e
prazeres intensos (complexos). Os últimos surgem-nos nas grandes obras
dramáticas e desenvolvem-se até alcançarem um apogeu, do mesmo modo que
o ato sexual, por exemplo, alcança sua plenitude no amor; são mais diversificados,
mais ricos em poder de intervenção, mais contraditórios e de consequências mais
decisivas”9.
Penso que para um Teatro do futuro, com o qual sonhamos, as
consequências serão, precisamente, as transformações do olhar ou da
sensibilidade que o público tem das relações humanas, como também as
transformações no espírito criador dos artistas. Penso em uma diversão que
comova profundamente, num movimento de vai e vem entre a sensibilidade do

7
ARTAUD, Antonin. El teatro y su doble. Espanha: Edhasa, 1978.
8
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.
9
Idem.

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artista e do público; num jogo, no qual cada um com sua função no espetáculo
transforma o outro, não de uma maneira determinista, mas permitindo a
necessária alternância de “quem transforma quem”.
Posso afirmar que as minhas práticas de teatro têm transformado minha
relação com o público, e me atrevo, inclusive, a afirmar que contribuo também
para a transformação dos espectadores. Nós artistas, nesse momento, podemos
dizer que as imagens que produzimos em nossas obras pretendem desenvolver
uma maior sensibilidade social de uma maneira e qualidade diferente das imagens
produzidas pelos meios massivos da comunicação com todo o seu aparato
tecnológico que influencia sobremaneira o público.
Porque as imagens, por exemplo, que diariamente recebe um telespectador,
por mais que sejam variadas e de impacto instantâneo, não são só isso: muitas
são superficiais e não atingem a consciência profunda de quem as consome. Ao
contrário, a arte que pretendemos fazer necessitada sensibilidade do público e a
relação é mais potente quando mais complexa, mais preenchida de sentidos, mais
polifônica. Retomando Brecht o prazer que produz a comoção ou o choque, e em
acordo com a concepção de teatro da crueldade de Artaud, deve competir com
outros prazeres da vida cotidiana, como saciar a fome ou o sexo.
Assim supomos que, num futuro próximo, nossos espectadores serão mais
desconfiados, céticos, despojados ou desprovidos de muitas das verdades
eternas que têm sido sustentadas até hoje pelos meios de comunicação. A este
público, teremos a oportunidade de nos dirigirmos, comovê-los ou sensibilizá-los
a outras verdades “não eternas”, com as nossas imagens artísticas, enfrentando
o risco de encontrarmo-nos com um receptor que não se deixa enganar. Alguém
poderia dizer que vai ser um público insensível, presumo que não, mas será difícil
de ser sensibilizado. E isso é bom porque nos obrigará a produzir uma arte
complexa, afiada e, o mais importante, rica em estratégias de recepção.
Esta última reflexão me leva a um terceiro aspecto. É claro que a influência
de outras culturas e práticas artísticas tem sido importante no desenvolvimento da
arte latino-americana, especialmente o diálogo com as teorias artísticas euro-

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americanas. O Teatro, apesar dos persistentes esforços para encontrar seu


próprio caminho, sentiu o peso da “colaboração” que as teorias e práticas teatrais
“estrangeiras” aportadas em nosso teatro pelos mestres e/ou seus discípulos tem
influenciado nossos processos artísticos. Não se trata de negar todas essas
contribuições, mas saber assimilá-las e que, com ou sem elas, podemos encontrar
as nossas próprias formas expressivas, partindo de nosso contexto e por nossos
próprios meios. O fato de que esses meios estão “contaminados” de outras
experiências não é um problema que impeça o que é tão importante e quase
definitivo na arte, que é a invenção. Por outro lado, esse caráter híbrido, criollo10
e bastardo, é precisamente o que tem caracterizado as expressões mais
significativas da arte latino-americana do passado e do presente.
A este respeito, vale a pena considerar o pensamento do filósofo cubano
Emilio Ichikawa Morín, em seu ensaio El pensamiento agónico: “diante dessa
situação, aparecem dois caminhos diferentes. Pode-se abordar a modernidade
(ou a pós-modernidade) conhecendo de antemão as objeções a ela, aceitando-a
como um thelos histórico que assumimos sem otimismo, ou, pelo contrário,
podemos buscar modos disjuntivos como genuína utopia”11. Embora as reflexões
de Ichikawa se refiram à filosofia, eu irei pensá-las no teatro para falar de utopia,
que, na arte teatral, não poderia ser outra coisa, que encontrar por nossos próprios
meios as novas relações entre a criação das obras artísticas e seus espectadores.
É nesta relação que eu venho me dedicando neste momento, na busca de formas
relacionais que não cumpram apenas as contribuições teóricas vindas do discurso
pós-moderno, mas encontrem “qualidades disjuntivas” que tenham maior relação
com nossa própria prática e pensamento.
Se pudéssemos encontrar elementos diferenciais e identificadores para
futura prática artística latino-americana seria precisamente a capacidade de rápida
assimilação de outras propostas e seu posterior reprocessamento gerando novas
respostas artísticas, com características óbvias de invenção e, ao mesmo tempo,

10
Termo que significa os descendentes de espanhóis nascidos na América. Nas artes, este termo é
utilizado para refletir o caráter multicultural existente na arte latino-americana. (N. do. T.)
11
MORÍN, Emilio Ichikawa. El pensamiento agónico. Havana: Ed. Ciencias Sociales, 1966.

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Teoria e prática do teatro

sua própria linguagem. É nesse processo, que vejo onde podemos encontrar
novos caminhos para o teatro em nosso continente.
Para isso, dialogamos com dois movimentos: a relativa aceitação da
modernidade, por um lado, e a chegada da pós-modernidade, por outro. Entrar na
discussão do pós-moderno sem uma necessária reflexão, especialmente na
Colômbia, onde não podemos falar de uma ‘superação do moderno’ nas artes, nos
colocaria ingenuamente na posição para aceitar nossos atrasos tecnológicos ou
culturais como virtudes e não como problemas que necessitam de superação.
Eu acredito em um teatro para um determinado público, o nosso público,
desconfiado, inconformado, descrente, mas com uma grande disposição para a
credulidade. Eu acredito no público para o meu futuro teatro, como Brecht sonhou,
um grupo de conhecedores fervorosos do que acontece na cena; a audiência que
imagino hoje é a mesma que enchiam os teatros na época de Shakespeare:
marinheiros, prostitutas, mercadores, malandros e obscenos; um público que faça
com que o ator, antes de entrar em cena, sinta suas entranhas, como um toureiro
na arena.
Não sonho para o meu teatro um público sério, solene, culto, engravatado.
Creio, pois sem profetizar, mas lendo no céu do meu país os signos de presságio
de um teatro que não só se recria em sua linda plumagem, mas que a ação de
seu voo atravessará com tranquilidade a imensidão dos espaços longínquos.
Creio em um teatro que se defina pelo que passa e acontece no palco. Como dizia
Einstein: dinâmico na precária quietude da cena, por virtude e magia da relação
entre a ação e o cronotopo. Pela delicada relação entre o que acontece e as
tensões no espaço e no tempo.

Panorama Traçado na Imprecisão12

Desde muito cedo, na minha infância, quando eu levantei o famoso dilema:


“quem veio primeiro o ovo ou a galinha?!”, eu estava inclinado secretamente pelo

12
Texto apresentado no Encontro de Dramaturgos Latino-americanos, na cidade do Rio de Janeiro, em
1988. (pp. 159 - 166)

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o ovo, embora os adultos dissessem que era impossível resolver o enigma. Esse
segredo eu nunca contei a ninguém. Porque para mim era impossível decidir pela
galinha, que era muito completa, cheia de penas, pronta; enquanto o ovo, em sua
absoluta simplicidade, era potente em suas possibilidades futuras: se tornando um
galo ou galinha; ou terminar frito no almoço; ou ainda poderia ser misturado com
outros ingredientes servindo de colaborador em algum novo produto. Além disso,
tinha a forma e cor. Impossível comparar com a galinha. Tinha que ser ele o
primeiro. Hoje confesso com total clareza aquela atração pelo ovo, por sua
simplicidade e potência, aconteceu comigo o mesmo quando escolhi o teatro
como meu ofício e profissão.
Eu decidi pelo teatro um pouco mais tarde na vida. Já não era mais um ovo,
mas uma galinha. Porém, minha atração por projetos embrionários, pelas
possibilidades de realizar uma montagem a partir de quase nada, nem textos, nem
datas definidas para sua estreia ou cenografia, tem sido uma constante em todos
os processos criativos em que eu tenho participado. Sempre desconfiava, por
exemplo, dos textos de teatro, dos clássicos intocáveis ou, é claro, e com mais
razão, dos meus próprios escritos. Deixe-me explicar. Como ator, comecei a
perceber as possibilidades e potências do meu corpo e de minha imaginação, sem
estar muitas vezes apoiado em um texto literário. Comecei a perceber o texto
como algo secundário, o fundamental era o que ele podia potencializar em cena,
em um determinado tempo-espaço, frente ao público. Mais tarde, quando comecei
a dirigir espetáculos e a posterior fundação do Teatro La Candelária, no qual
trabalhávamos com distintas e variadas metodologias de criação coletiva, ou seja,
partíamos de um tema ainda sem forma definida como elemento disparador para
a criação. Até este momento já produzimos dezoito obras em 32 anos de
trabalho13.
No grupo de Teatro La Candelária, temos uma percepção compartilhada por
todos, somos um grupo que conquistou um espaço, uma notoriedade, mas o mais

13
Nota do Tradutor: Informações atualizadas do Teatro La Candelária podem ser encontradas no site:
<https://teatrolacandelaria.com>.

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Teoria e prática do teatro

importante e significativo foi ter conquistado um público. Não é enorme, mas é um


público que tem sido fiel por todos estes anos, acompanhando nossas obras, foi
formado e, ao mesmo tempo, nos transformando. Transformável e transformador
como diria Bertolt Brecht. Um público que nos acompanhou, por exemplo, durante
mais de mil apresentações de uma obra como Guadalupe años sin cuenta14.
Agora, para nós, como um grupo estável, nunca tivemos interesse em criar um
trabalho que poderia encantar os espectadores ou que poderia ter um sucesso
garantido. O que “descobrimos” com este público foi que o maior prazer era fazer
teatro e, no encontro com o público, apresentá-lo. E mais, que compartilhávamos
nas obras seus problemas, conflitos e sonhos que também são os nossos.
Por isso, e continuando a parábola do ovo, partíamos em nossos processos
de ideias imprecisas, histórias vagas, às vezes da intuição, mas nunca de obras
acabadas ou com enredos bem desenvolvidos ou de temas claramente expostos.
Procurávamos materiais “em semente”, que a partir das improvisações e análises
que sempre foram nossas ferramentas essenciais de trabalho, íamos teatralizando
com a finalidade de criar um espetáculo para o nosso público e que, só depois de
várias apresentações, teríamos um roteiro ou um texto que tivesse um
acabamento literário, e muito depois, para nossa surpresa, encontrávamos ali um
novo tema, diferente do inicial, quase como ponto final de todo processo. Nosso
texto dramatúrgico pode ser considerado como um testemunho da criação do
espetáculo.
Assim chegamos a ter um público, no qual o espetáculo permanece vivo em
sua memória, em sua própria história, aonde o tema, ao ser reformulado por nós
como ficção artística, poderia mudar suas atitudes e mexer nas profundezas de
sua sensibilidade. Além disso, ao transformar seus pontos de vista acerca da
realidade, nosso público descobria o prazer de tomar partido nos conflitos que ele
achava que eram impossíveis de mudança.

14
Espetáculo do Teatro La Candelária (Bogotá – Colômbia). Permaneceu no repertório do grupo de 1975
a 1988.

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Mais adiante, apareceram, muito comum no processo de desenvolvimento


de um grupo, as propostas individuais. Textos escritos pelos atores, que, em
virtude do trabalho coletivo, tornaram-se autores. Por exemplo, na obra
Guadalupe años sin cuenta, começamos com testemunhos e relatos de pessoas
que tinham participado de uma revolta dos anos 50 e com canções populares, que
permaneciam na alma dos antigos guerrilheiros do oriente colombiano, e
acabamos na última etapa do processo trabalhando com propostas e textos dos
atores. Tudo se tornou um conjunto de materiais que tomamos como ponto de
partida, como elementos motivadores, que não possuíam ainda uma forma
precisa. Sabíamos que eram o germe de algo, o qual não sabíamos nem o tema
definido. Mas ao final, alcançada a forma do espetáculo, descobrimos que o tema
estava escondido nos materiais; algo como o ovo dentro do ovo. O tema resultante
foi o da Entrega15, uma questão que ainda hoje continua a ser muito relevante
para os colombianos. A alternativa da paz na Colômbia continua sendo o tema da
entrega dos guerrilheiros para o Governo. Um tema que vem desde a Conquista,
do embate entre Athaualpa e Pizarro, entre Montezuma e Cortês, do nosso
cacique Bogotá e Gonzalo Jimenez.
Quero dizer que não partimos de uma ideia pronta para montar um
determinado tema, mas de uma proposta mais ou menos imprecisa. Um algo que
vai tomando forma no decorrer do processo de criação de um acontecimento
cênico. De modo que, em uma nova etapa, colocava-se o texto, não como
determinante, mas como um pretexto, como um projeto, como um embrião de um
futuro espetáculo que nos oferece a possibilidade de iniciar o trabalho a partir de
imagens, de um campo imaginário e fantástico, mas com certa imprecisão, a partir
de sugestões, ou seja, fomos deslocando a posição do texto. As propostas do
grupo nas improvisações são os materiais de partida que vão, em certos casos,
se opondo, numa relação dialética com o texto literário que aparece como antítese
do processo.

15
Traição. Delatar o inimigo ou fornecer uma informação que possa gerar sua prisão. (N. do T.)

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Esta dinâmica, no entanto, nos complicou a situação, mas não alterou o


nosso ponto de partida. O fato de começar com um texto proposto por um membro
do grupo, nos fez retornar à complexidade das relações grupais e aos processos
criativos com suas metodologias de trabalho, mas não derrubou o fundamental: a
atitude em relação a seu referente fundamental, o público, ou para ser mais
preciso, nosso público frequente, e nossa natural inclinação para ter, como ponto
de partida, algo relativamente indefinido.
Este novo tipo de relação dinâmica ainda não está tão claro no método de
criação coletiva, porém nosso desejo é sempre criar um espetáculo que, acima de
tudo, tenha como objetivo principal promover um encontro divertido e prazeroso
com os espectadores. Um profundo prazer que corresponda ao espectador de
nosso tempo. Esse prazer, edoné, como chamou Aristóteles16 que nos convoca
ao encontro daquele que está do outro lado da cena. Se tivermos sucesso,
especialmente com o público jovem, que é aquele que possui mais expectativas e
desejos ao assistir um espetáculo, que espera ter outra percepção do mundo,
teremos o nosso esforço recompensado.
Há algumas semanas, foi apresentada, em um grande banquete em Bogotá,
a programação da VI edição do Festival Ibero-americano de Teatro (1998), que se
apresenta como o maior do mundo, e no qual assistimos obras dos e das principais
figuras do teatro mundial, e sempre os organizadores privilegiam, como prato
principal, propostas oriundas do teatro europeu. Está claro que a curadoria, longe
de convidar o público a compartilhar os deliciosos aspectos do conflito humano,
arrasta-o para a soporífica contemplação de um conceito, uma ideia, um ovo,
asséptico e sem manchas.
São experimentos realizados na Europa há pelo menos vinte anos, mas
agora, já perderam sua dinâmica de inovação ou surpresa porque se tornaram
paradigmas modelares, exigindo aparatos técnicos para sua realização, que, em
nosso pobre terceiro mundo, nunca irão encontrar. Sem os caríssimos meios
eletrônicos e de multimídia que são exigidos, só irão comover um público elitista

16
Nos escritos da Poética, edoné é o objetivo principal da tragédia.

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ansioso para distrações “light” e não ávidos ao que convoca nossa arte, os
profundos e “grosseiros prazeres”, como diriam os mexicanos. Estou falando
sobre as performances de Bob Wilson, Tadashi Susuki ou de Carbono 14, entre
outros.
Uma arte que provavelmente começa pela galinha, com todas as suas
penas, asas, bico; acaba com a transparência e a pureza do ovo. É a imagem que
propusemos ao inverso.
Penso que a arte pode fazer uso da tecnologia e da ciência para atingir os
seus fins, mas não ser confundida ou equivocar-se com as técnicas, os meios,
distanciando de seus objetivos finais. A tecnologia que transforma a natureza, nos
impressiona porque nela percebemos e admiramos a inteligência e a capacidade
que o ser humano tem de encontrar meios de intervir e tentar controlar a mãe-
natureza.
García Bacca17, antropólogo, sociólogo e filósofo espanhol, fala da diferença
entre o que o homem inventa e seu referente natural. Deste modo, temos que
pensar a distância entre as mãos e o piano, entre o som do rádio e o ouvido ou a
boca, entre o carro e o pé, ou entre um míssil e a nave espacial e seu referente
na natureza, que é a águia ou o condor. O mesmo se aplica à arte, partimos da
natureza (ou realidade) como conceito, porém nos afastamos dela para inventar
outra realidade que nos permite viajar para as estrelas. Esse é o trabalho mais
nobre da arte, inventar novas realidades, invenção da qual deriva sua condição
de jogo e de prazer e não apenas as técnicas que utilizamos.
À noite, quando voava da Colômbia para o Brasil, depois de ter atravessado
a grande sombra escura da Floresta Amazônica, começaram a aparecer
pequenas manchas luminosas, meia hora antes de aterrissarmos em São Paulo,
as manchas foram pouco a pouco se multiplicando de modo que, no fim de alguns
minutos, víamos eram dezenas até as bordas do horizonte. Elas eram como joias
ou camafeus brilhantes azulados e alaranjados. Naquele momento, eu pensei: há
100 ou 150 anos elas não existiam e, que daqui a 200 ou 300 anos, no futuro, não

17
BACCA, Juan David García. Da magia a técnica. Espanha: Ed. Anthropos, 1989.

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Teoria e prática do teatro

haverá nenhum lugar na Terra onde elas não estejam. Será como um gigantesco
câncer que pouco a pouco vai carcomendo a terra com sua beleza aterrorizante.
Tenho a profunda convicção de que a arte não serve para nada pragmático,
por isso que venho praticando com toda a paixão e dedicação possível. Mas, se
servir para alguma coisa, deve ser o de contribuir para a convivência humana cuja
tarefa urgente para o novo milênio será a de salvar este planeta que habitamos
com apetite voraz dessa atrativa, porém, letal luminosidade.

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