Cap. 13 Editorado
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Santiago Garcia
Tradução: Narciso Telles1
Da tradução
1
Teatreiro, ator e diretor. É professor do Curso de Teatro (licenciatura e bacharelado), do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas e Mestrado Profissional em Artes, na Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Pesquisador do CNPq e do GEAC/UFU. Membro do Núcleo 2 Coletivo de Teatro,
Uberlândia (MG). @narcisotelles.
João Pessoa, V. 12 N. 1, jan-jun/2021
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Há algo que permanece na arte através dos séculos e até em milênios. São
características fundamentais de cada gênero que, apesar dos avanços e
mudanças tecnológicas, continuam subsistindo. No Teatro, esses elementos são
muito simples. Basta um ator e um espectador para que o fundamental da arte da
representação brote, apareça e se faça realidade. A ação é o fundamento. Esta
observação vem de Aristóteles como também do teatrólogo mais notável do
século XX, Bertolt Brecht, que seguiu postulando que a ação (ou a sequência de
ações) é a base de toda a sua reflexão e prática teatrais. Este pensamento,
expomos em vários ensaios e escritos3. Em seu Pequeno Organon para o Teatro4,
Brecht concorda com Aristóteles no fato de que a fábula (Aristóteles chama de
mito) é que é a “alma” do teatro, e nela está precisamente a ação como uma
sequência de acontecimentos. Então, hoje, no limiar do século XX e de um novo
milênio, continuamos postulando o mesmo princípio fundamental, porém não sem
perguntarmos o que nos é apresentado de renovador na dramaturgia ou na
relação entre o ator-espectador por meio da ação neste momento?
Na perspectiva latino-americana, e no meu contexto colombiano, necessito
fazer várias considerações. A primeira é a ausência de confiança que temos no
surgimento de elementos novos ou renovadores na arte como condições
peremptórias para desenvolvimento de uma nova estética. Esta atitude de
desconfiança na renovação, ou nos famosos “ismos” que caracterizavam grande
parte da arte moderna do século XX, já foi tema de reflexão profunda por
pensadores como Lyotard5, Habermas, entre outros. Apesar de não compartilhar
totalmente com esse ponto de vista, o Teatro que imagino para o nosso futuro,
certamente, não buscará formas de uma pretensa nova estética “internacional”.
Mas, como eu acho que aconteceu até agora, trabalhará no desenvolvimento de
2
GARCIA, Santiago. Teoría y Práctica del Teatro. Vol. 02. Bogotá: Teatro La Candelária, 2002. pp.152-158.
3
Cf. GARCIA, Santiago. Teoria e Prática do Teatro. SP: Hucitec, 1988. (N. do T.)
4
Cf. BRECHT, Bertolt. Escritos sobre Teatro. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2005.
5
LYOTARD, J. F. La condición pós-moderna. México: Ed. Rey, 1990.
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6
PAVIS, Patrice. El teatro y su recepción. Havana: Ed. Uneac, 1994.
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7
ARTAUD, Antonin. El teatro y su doble. Espanha: Edhasa, 1978.
8
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005.
9
Idem.
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artista e do público; num jogo, no qual cada um com sua função no espetáculo
transforma o outro, não de uma maneira determinista, mas permitindo a
necessária alternância de “quem transforma quem”.
Posso afirmar que as minhas práticas de teatro têm transformado minha
relação com o público, e me atrevo, inclusive, a afirmar que contribuo também
para a transformação dos espectadores. Nós artistas, nesse momento, podemos
dizer que as imagens que produzimos em nossas obras pretendem desenvolver
uma maior sensibilidade social de uma maneira e qualidade diferente das imagens
produzidas pelos meios massivos da comunicação com todo o seu aparato
tecnológico que influencia sobremaneira o público.
Porque as imagens, por exemplo, que diariamente recebe um telespectador,
por mais que sejam variadas e de impacto instantâneo, não são só isso: muitas
são superficiais e não atingem a consciência profunda de quem as consome. Ao
contrário, a arte que pretendemos fazer necessitada sensibilidade do público e a
relação é mais potente quando mais complexa, mais preenchida de sentidos, mais
polifônica. Retomando Brecht o prazer que produz a comoção ou o choque, e em
acordo com a concepção de teatro da crueldade de Artaud, deve competir com
outros prazeres da vida cotidiana, como saciar a fome ou o sexo.
Assim supomos que, num futuro próximo, nossos espectadores serão mais
desconfiados, céticos, despojados ou desprovidos de muitas das verdades
eternas que têm sido sustentadas até hoje pelos meios de comunicação. A este
público, teremos a oportunidade de nos dirigirmos, comovê-los ou sensibilizá-los
a outras verdades “não eternas”, com as nossas imagens artísticas, enfrentando
o risco de encontrarmo-nos com um receptor que não se deixa enganar. Alguém
poderia dizer que vai ser um público insensível, presumo que não, mas será difícil
de ser sensibilizado. E isso é bom porque nos obrigará a produzir uma arte
complexa, afiada e, o mais importante, rica em estratégias de recepção.
Esta última reflexão me leva a um terceiro aspecto. É claro que a influência
de outras culturas e práticas artísticas tem sido importante no desenvolvimento da
arte latino-americana, especialmente o diálogo com as teorias artísticas euro-
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10
Termo que significa os descendentes de espanhóis nascidos na América. Nas artes, este termo é
utilizado para refletir o caráter multicultural existente na arte latino-americana. (N. do. T.)
11
MORÍN, Emilio Ichikawa. El pensamiento agónico. Havana: Ed. Ciencias Sociales, 1966.
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sua própria linguagem. É nesse processo, que vejo onde podemos encontrar
novos caminhos para o teatro em nosso continente.
Para isso, dialogamos com dois movimentos: a relativa aceitação da
modernidade, por um lado, e a chegada da pós-modernidade, por outro. Entrar na
discussão do pós-moderno sem uma necessária reflexão, especialmente na
Colômbia, onde não podemos falar de uma ‘superação do moderno’ nas artes, nos
colocaria ingenuamente na posição para aceitar nossos atrasos tecnológicos ou
culturais como virtudes e não como problemas que necessitam de superação.
Eu acredito em um teatro para um determinado público, o nosso público,
desconfiado, inconformado, descrente, mas com uma grande disposição para a
credulidade. Eu acredito no público para o meu futuro teatro, como Brecht sonhou,
um grupo de conhecedores fervorosos do que acontece na cena; a audiência que
imagino hoje é a mesma que enchiam os teatros na época de Shakespeare:
marinheiros, prostitutas, mercadores, malandros e obscenos; um público que faça
com que o ator, antes de entrar em cena, sinta suas entranhas, como um toureiro
na arena.
Não sonho para o meu teatro um público sério, solene, culto, engravatado.
Creio, pois sem profetizar, mas lendo no céu do meu país os signos de presságio
de um teatro que não só se recria em sua linda plumagem, mas que a ação de
seu voo atravessará com tranquilidade a imensidão dos espaços longínquos.
Creio em um teatro que se defina pelo que passa e acontece no palco. Como dizia
Einstein: dinâmico na precária quietude da cena, por virtude e magia da relação
entre a ação e o cronotopo. Pela delicada relação entre o que acontece e as
tensões no espaço e no tempo.
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Texto apresentado no Encontro de Dramaturgos Latino-americanos, na cidade do Rio de Janeiro, em
1988. (pp. 159 - 166)
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o ovo, embora os adultos dissessem que era impossível resolver o enigma. Esse
segredo eu nunca contei a ninguém. Porque para mim era impossível decidir pela
galinha, que era muito completa, cheia de penas, pronta; enquanto o ovo, em sua
absoluta simplicidade, era potente em suas possibilidades futuras: se tornando um
galo ou galinha; ou terminar frito no almoço; ou ainda poderia ser misturado com
outros ingredientes servindo de colaborador em algum novo produto. Além disso,
tinha a forma e cor. Impossível comparar com a galinha. Tinha que ser ele o
primeiro. Hoje confesso com total clareza aquela atração pelo ovo, por sua
simplicidade e potência, aconteceu comigo o mesmo quando escolhi o teatro
como meu ofício e profissão.
Eu decidi pelo teatro um pouco mais tarde na vida. Já não era mais um ovo,
mas uma galinha. Porém, minha atração por projetos embrionários, pelas
possibilidades de realizar uma montagem a partir de quase nada, nem textos, nem
datas definidas para sua estreia ou cenografia, tem sido uma constante em todos
os processos criativos em que eu tenho participado. Sempre desconfiava, por
exemplo, dos textos de teatro, dos clássicos intocáveis ou, é claro, e com mais
razão, dos meus próprios escritos. Deixe-me explicar. Como ator, comecei a
perceber as possibilidades e potências do meu corpo e de minha imaginação, sem
estar muitas vezes apoiado em um texto literário. Comecei a perceber o texto
como algo secundário, o fundamental era o que ele podia potencializar em cena,
em um determinado tempo-espaço, frente ao público. Mais tarde, quando comecei
a dirigir espetáculos e a posterior fundação do Teatro La Candelária, no qual
trabalhávamos com distintas e variadas metodologias de criação coletiva, ou seja,
partíamos de um tema ainda sem forma definida como elemento disparador para
a criação. Até este momento já produzimos dezoito obras em 32 anos de
trabalho13.
No grupo de Teatro La Candelária, temos uma percepção compartilhada por
todos, somos um grupo que conquistou um espaço, uma notoriedade, mas o mais
13
Nota do Tradutor: Informações atualizadas do Teatro La Candelária podem ser encontradas no site:
<https://teatrolacandelaria.com>.
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Espetáculo do Teatro La Candelária (Bogotá – Colômbia). Permaneceu no repertório do grupo de 1975
a 1988.
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Traição. Delatar o inimigo ou fornecer uma informação que possa gerar sua prisão. (N. do T.)
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Nos escritos da Poética, edoné é o objetivo principal da tragédia.
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ansioso para distrações “light” e não ávidos ao que convoca nossa arte, os
profundos e “grosseiros prazeres”, como diriam os mexicanos. Estou falando
sobre as performances de Bob Wilson, Tadashi Susuki ou de Carbono 14, entre
outros.
Uma arte que provavelmente começa pela galinha, com todas as suas
penas, asas, bico; acaba com a transparência e a pureza do ovo. É a imagem que
propusemos ao inverso.
Penso que a arte pode fazer uso da tecnologia e da ciência para atingir os
seus fins, mas não ser confundida ou equivocar-se com as técnicas, os meios,
distanciando de seus objetivos finais. A tecnologia que transforma a natureza, nos
impressiona porque nela percebemos e admiramos a inteligência e a capacidade
que o ser humano tem de encontrar meios de intervir e tentar controlar a mãe-
natureza.
García Bacca17, antropólogo, sociólogo e filósofo espanhol, fala da diferença
entre o que o homem inventa e seu referente natural. Deste modo, temos que
pensar a distância entre as mãos e o piano, entre o som do rádio e o ouvido ou a
boca, entre o carro e o pé, ou entre um míssil e a nave espacial e seu referente
na natureza, que é a águia ou o condor. O mesmo se aplica à arte, partimos da
natureza (ou realidade) como conceito, porém nos afastamos dela para inventar
outra realidade que nos permite viajar para as estrelas. Esse é o trabalho mais
nobre da arte, inventar novas realidades, invenção da qual deriva sua condição
de jogo e de prazer e não apenas as técnicas que utilizamos.
À noite, quando voava da Colômbia para o Brasil, depois de ter atravessado
a grande sombra escura da Floresta Amazônica, começaram a aparecer
pequenas manchas luminosas, meia hora antes de aterrissarmos em São Paulo,
as manchas foram pouco a pouco se multiplicando de modo que, no fim de alguns
minutos, víamos eram dezenas até as bordas do horizonte. Elas eram como joias
ou camafeus brilhantes azulados e alaranjados. Naquele momento, eu pensei: há
100 ou 150 anos elas não existiam e, que daqui a 200 ou 300 anos, no futuro, não
17
BACCA, Juan David García. Da magia a técnica. Espanha: Ed. Anthropos, 1989.
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haverá nenhum lugar na Terra onde elas não estejam. Será como um gigantesco
câncer que pouco a pouco vai carcomendo a terra com sua beleza aterrorizante.
Tenho a profunda convicção de que a arte não serve para nada pragmático,
por isso que venho praticando com toda a paixão e dedicação possível. Mas, se
servir para alguma coisa, deve ser o de contribuir para a convivência humana cuja
tarefa urgente para o novo milênio será a de salvar este planeta que habitamos
com apetite voraz dessa atrativa, porém, letal luminosidade.
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