A Nossa Melodia - Zoraida Cordova

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A NOSSA

MELODIA
Kiss the girl
Copyright © 2023 by Disney Enterprises, Inc.
© 2024 by Universo dos Livros

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610


de 19/02/1998.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por
escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida
sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos,
mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Diretor editorial Revisão


Luis Matos Nilce Xavier
Nathalia Ferrarezi

Gerente editorial Diagramação


Marcia Batista Nadine Christine

Produção editorial Arte


Letícia Nakamura Renato Klisman
Raquel F. Abranches

Tradução Ilustração da capa


Marcia Men Stephanie Singleton

Preparação Design da capa


Alessandra Miranda de Sá Marci Senders

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
C827n

Córdova, Zoraida
A nossa melodia / Zoraida Córdova ; tradução
de Marcia Men. –– São Paulo : Universo dos
Livros, 2024.
368 p. (Série Meant to be ; vol 3)

e-ISBN 978-65-5609-662-9
Título original: Kiss the girl

1. Ficção norte-americana I. Título II. Men,


Marcia III. Série

24-1371 CDD 813

Universo dos Livros Editora Ltda.


Avenida Ordem e Progresso, 157 — 8º andar — Conj. 803
CEP 01141-030 — Barra Funda — São Paulo/SP
Telefone: (11) 3392-3336
www.universodoslivros.com.br
e-mail: [email protected]
ZORAIDA CÓRDOVA

A NOSSA
MELODIA
Para todas as Sereias que ainda
estão encontrando suas vozes.
Cantem.
PRÓLOGO

ARIEL
21 de junho
Estádio Arthur Ashe, Nova York

Ali, de pé no centro do palco, cercada por 23 mil


pessoas, Ariel se encontrava mais próxima do que nunca
de um mar de estrelas.
Fãs devotados acenavam com varinhas de led
piscantes em formato de conchas e barbatanas. O palco
ainda estava completamente escuro, e a contagem de
sessenta segundos entre músicas havia começado. A
última canção não precisava de outra troca de figurino,
acessórios ou dançarinos de apoio. Não, a última música
da turnê mundial “Goodbye Goodbye” terminaria da
mesma forma como tudo havia começado. Apenas elas.
Ariel e suas irmãs.
A única coisa mais alta do que as batidas do coração
de Ariel era a plateia. Todos os “eu te amo” e gritos
chegavam até o teto, fundindo-se em uma poderosa
tempestade de som que podia ser sentida até mesmo
por aqueles assistindo à transmissão mundial via
streaming em salas de estar, bares, vagões lotados de
metrô e nos telões da Times Square. Ariel imaginou que
aqueles fãs também estavam ali com ela.
Afastando-se por um momento de suas seis irmãs, Ariel
aproximou-se da beira do palco. Nunca se sentia mais
próxima de seus fãs e de sua própria música do que
quando estava se apresentando. Depois de 276 shows ao
longo de dois anos, Ariel havia tentado se preparar para
as apresentações de despedida das Sete Sereias. Queria
se agarrar àquele momento. Lembrar-se de que ela
esteve ali. Saber que tinha entregado seu máximo. Ter
certeza de que tinha valido a pena. Não tinha?
Ela era famosa desde que tinha dez anos de idade e,
aos 25, estava pronta para recomeçar. Ainda não tinha
imaginado como seria esse “recomeçar”. Havia
patrocínios, papéis em filmes, acordos para livros e
casamenteiros, todos esperando pelos próximos passos
de Ariel. O pai delas tinha prometido a todas um
descanso dos holofotes, mas, pela primeira vez na vida,
ela não sabia qual seria o próximo passo, e isso era
empolgante. O mundo podia esperar, contanto que ela
cantasse mais uma música. Uma última música.
Quando os sessenta segundos acabaram, Ariel inclinou
a cabeça em direção ao holofote e tentou recobrar o
fôlego. A plateia rugiu. O brilhante cabelo vermelho-
escarlate caía em ondas sobre os ombros. Suor
acumulava-se em sua nuca e penetrava no body violeta
iridescente. A cintura alta de seu short ousado estava
deixando uma marca quase permanente contra seu
umbigo. O ar fresco da noite acariciava seu joelho ralado,
onde ela havia rasgado as meias finas durante a última
canção. Mas Ariel apenas deu o seu melhor sorriso e
acenou, girando sem esforço em seu salto plataforma
verde-esmeralda. O holofote iluminava seu caminho
através do palco, e a mais jovem das irmãs Del Mar
juntou-se mais uma vez a suas irmãs. Esperando atrás de
uma fileira de pedestais de microfones cravejados de
cristais, Ariel posicionou-se no centro da formação como
se fosse a líder, o coração.
— Vocês são incríveis! — O soprano vibrante de Ariel
ecoou através do estádio Arthur Ashe.
— É claro que sou! — respondeu Thea, dando um
tapinha travesso com os dedos em seu cabelo fúcsia.
— Eu me referia a eles, obviamente — disse Ariel,
apontando o dedo para a plateia e lançando um olhar de
repreensão fingida para a irmã.
Após uma onda de risos, Thea piscou e soprou um
beijo.
— Acabei de perceber que vou sentir muita saudade
disso — fungou Stella, que, em geral, chorava por
qualquer coisa, principalmente filhotinhos de cachorro.
— Só agora? — disse Alicia, esticando o pescoço no fim
da fila.
— Ah, você sabe o que eu quis dizer! — Stella disse, na
defensiva.
As bochechas de Ariel doíam de tanto sorrir. Era a
última vez que fariam esta brincadeira de final de show.
— Eu disse para mim mesma que faria isso sem chorar.
O final de sua frase se embargou com a emoção que
ela passara duas horas tentando controlar. Mas como
poderia não ficar emocionada neste momento? Suas
vidas seriam divididas para sempre em dois períodos:
Antes das Sete Sereias e Depois das Sete Sereias. Tudo o
que elas fizeram, o programa de TV, seus discos, seriam
referidos como “uma era”, se tivessem sorte. Ou “o
auge” se não tivessem.
Mesmo Sophia, que era a mais velha e nunca chorava,
franziu o nariz como se tentasse conter lágrimas
inevitáveis.
— Vamos, garotas, recomponham-se. Levantem a
cabeça, princesas — disse, enquanto alisava o rabo de
cavalo que parecia de seda negra, toda durona.
— Então cadê a minha coroa com rubis? — perguntou
Elektra, sarcástica, e o baterista delas soltou um ba-dum-
tss.
— Mas falando sério por um minutinho — disse Ariel.
Ela não conseguia discernir direito os rostos na plateia,
com exceção de algumas pessoas na primeira fila e
aqueles que eram iluminados por um holofote móvel. No
entanto, tirou um momento para erguer os olhos para os
assentos mais altos nas seções mais distantes do
estádio. Queria que os fãs ali soubessem que ela os
enxergava.
— Então, era para eu ter escrito algumas palavras —
ela confessou, culpada. — Mas, cada vez que eu tentava,
eu falhava. Parecia ensaio, e, rapaz, como a gente já fez
isso. Acho que percebi que eu não estava pronta. Como
nos despedimos depois de quinze anos?
Sophia apertou a mão de Ariel enquanto os fãs
gritavam, aplaudiam e assoviavam, encorajadores.
— Minhas irmãs e eu fomos abençoadas — ela
continuou. — Nós sabemos que todo mundo diz isso, mas
eu não sei de que outra forma descrever a sorte de ter
todos vocês aqui esta noite. Somos apenas uma família
pequena do Queens, Nova York, e isto parece um sonho.
Nós vimos o mundo. Nós nos apresentamos em estádios
e premiações.
— Ganhamos alguns prêmios também — Marilou
interveio com uma piscadela.
— Tocamos em festinhas de aniversários e em bares
sujos nos quais definitivamente éramos jovens demais
para sequer termos permissão de entrar. Lemos as cartas
de vocês e assistimos aos vídeos. Temos uma sala, uma
sala inteira, onde guardamos as artes e os presentes que
vocês nos dão. Minhas irmãs, e todos vocês, me lembram
de sonhar todos os dias com o impossível. Sonhem até
que se torne realidade. Possível. Seu.
Ondas de gritos encheram o palco enquanto tinham
início as notas do primeiro single delas, “Your Once Upon
a Dream Girl”. Ariel não poderia ter cronometrado
melhor.
— Então, eu decidi que, na verdade, não vamos dizer
adeus. — Ela pressionou a mão trêmula contra o peito. —
Somos uma família. Vocês são nossa família. E família é
para sempre! Agora, batam palmas. Precisamos de uma
ajudinha nesta música!
A bateria começou, seguida por sinos de percussão, o
teclado como base e, então, todo o estádio cantando
com Ariel o primeiro verso. Ela se lembrou da primeira
vez em que se espremeram nas cabines apertadas
daquela salinha de gravação. Como seu pai as fez cantar
repetidas vezes até que suas harmonias estivessem
impecáveis, a melodia perfeita que lançaria as Sete
Sereias como uma banda de verdade. Relembrou quando
pegava sua caneta de gel roxa favorita e reescrevia
trechos, a maneira como o pai franzia a testa para suas
alterações e depois lhe dava aquele sorriso teimoso
quando a música se encaixava. Ela se lembrou de como
se sentiu na primeira vez em que estavam atravessando
a ponte de Queensboro e a música tocou no rádio. Ariel
recordou e se agarrou às irmãs até as Sete Sereias
pararem de cantar e ficar apenas a multidão, 23 mil
pessoas gritando o último verso. Essa parte, mesmo
depois de tantos anos, nunca envelhecia.
Quando acabou, os canhões de glitter e confete
banharam o estádio e fogos de artifício dispararam em
direção aos céus de Nova York. A banda emendou solos
mais longos, as luzes do palco pulsando e girando, até se
tornarem um uivo coletivo de alegria.
As irmãs de Ariel gritaram suas despedidas primeiro.
— Obrigada a todos!
— Nós amamos vocês!
— ¡Adiós, adiós!
— Boa noite, Nova York!
— Até mais, peixinhos!
— Vocês são tudo! Tudo!
Embora as irmãs tivessem saído correndo do palco,
Ariel ficou. Como poderia ir embora tão rápido? Os fãs
ainda gritavam seu nome. Eles acenavam com suas
varinhas coloridas. Dançavam na chuva de confete no
formato de estrelinhas. Ela pegou um punhado delas.
— Eu amo vocês — Ariel disse e ficou lá, mesmo
quando todas as luzes se apagaram.
CAPÍTULO UM

ARIEL
21 de junho
Estádio Arthur Ashe, Nova York

Os bastidores estavam agitados com seguranças,


assistentes e os organizadores do evento. Ariel tinha
quase certeza de que havia chefes de Estado com uma
equipe de segurança menor do que a dela. Se podia
apontar uma coisa de que não sentiria falta no ano
sabático longe dos palcos era o frenesi pós-show. Isso e
os corredores bege iluminados por luzes fluorescentes
que transformavam cada área marcada com somente
pessoal autorizado em algo saído de um filme de terror.
Chrissy Mahilal, uma guianesa arretada que mal
passava de um metro e meio, abriu caminho com o
próprio corpo pelo monte de gente que cercava Ariel e
acelerou o passo para acompanhá-la. Chrissy ofereceu à
chefe um copo plástico reciclável cheio de isotônico
sabor romã, do qual Ariel tomou goles sedentos.
— As resenhas dos fãs já estão aparecendo — disse
Chrissy, um trinado exuberante embelezando as vogais
da assistente. — Você está em evidência nas redes
sociais no mundo todo, e os apliques oficiais de pedraria
das Sete Sereias acabaram de ficar indisponíveis. Temos
um convite do dono da Ma Chérie. Ele está dando para as
Sete Sereias a principal área vip da danceteria.
— As gêmeas vão adorar. — Ariel riu.
— Trevor Tachi está de volta na sua caixa de
mensagem… — continuou Chrissy, deslizando a tela com
o dedo indicador.
Ariel olhou para Chrissy. Pedras azul-turquesa
brilhavam nos cantos de seus olhos, mechas do cabelo
tingido com hena escapavam de seu coque. Se ela
sorrisse mais, Ariel poderia contar todos os seus dentes.
Isso era um mau sinal.
— Você sabe que Trevor arruinou a chance que tinha
comigo quando mentiu para a Entertainment Daily! sobre
o que aconteceu nos bastidores do Festival Wonderland.
O que você não está me contando?
— Por que acha que tem algo que não estou contando?
Elas pararam diante do camarim de Sophia, onde as
outras assistentes lidavam com o caos pós-show.
— Eu te conheço faz dez anos — disse Ariel, arqueando
uma sobrancelha astuta. — Você sorri quando está
nervosa e apruma o corpo como se estivesse de volta à
escola de balé.
— Maldita senhora Doroshinskaya — Chrissy
resmungou, bufando.
— O que foi? — perguntou Ariel, paciente, apesar de
ferver de ansiosidade por dentro. No show passado, Thea
tropeçou no refrão da “Heartbreak Island” e virou meme.
Antes disso, Stella foi fotografada beijando uma estrela
de Hollywood em uma festa pós-evento, o que enfureceu
o pai das garotas porque ela havia quebrado o toque de
recolher e a regra de “relacionamentos não
sancionados”. E, antes disso, sete fãs zelosos entraram
nos bastidores, vestidos da cabeça aos pés como as
irmãs Del Mar, e passaram despercebidos pela
segurança. Eles tinham ficado à espera no camarim e
foram pegos cheirando as roupas sujas da banda.
— Eu já conjurei vários cenários catastróficos nos
últimos trinta segundos, Christina Mahilal. Desembucha.
Chrissy entregou seu celular para Ariel.
— Houve um vazamento que eu acho que você deveria
ver.
A ansiedade em seu estômago se transformou
naqueles bonequinhos feios de Troll que Sophia
colecionava. Eles sussurravam seus piores medos de
volta para ela, gritando: Eles te odeiam. Você é uma
impostora. Sua tosca sem talento. Graças aos deuses da
música acabou pra você. Ariel respirou fundo e olhou o
artigo que a Voltage Sound postou enquanto ela ainda
estava no palco. Estava escrito: ariel del mar: princesa se
lança em carreira solo.
A princípio, a manchete não parecia tão ruim assim.
Carreira solo para cada uma das irmãs não era uma
novidade. Corriam rumores de que Ariel se separaria do
grupo desde que ela era adolescente. Agora que as
cortinas se fecharam pela última vez, suas irmãs tinham
novos empreendimentos e aventuras esperando por elas.
Ariel havia passado a turnê “Goodbye Goodbye” inteira
negociando uma pausa de um ano com o diretor da
gravadora, conhecido também como seu pai. Depois de
ralar, fazer turnê e gravar por quinze anos ininterruptos,
ela merecia, ou melhor, precisava de uma pausa. Estava
com 25 anos e tinha uma longa lista de coisas mundanas
que nunca havia feito. Queria aprender uma nova língua,
fazer aulas de culinária, caminhar pela livraria sem o seu
robusto, embora gentil, segurança lhe esperando do
outro lado da prateleira. Queria ter um dia sem horário
para ligações, sem entrevistas ou prazos. Ariel queria
entender quem diabos ela era sem as Sete Sereias.
De certa forma, ela estava saindo em carreira solo. O
artigo poderia ter sido outro rumor, uma em um milhão
de presunções da parte de pessoas que não a
conheciam. Mas, conforme analisava o texto, algo a fez
hesitar.
“Uma fonte dentro do círculo dos Del Mar afirma que
um grande anúncio ocorrerá nesta terça”, ela leu alto o
suficiente para que Chrissy ouvisse. Às vezes, essas
manchetes eram pura invencionice ou mal-entendidos,
como da vez em que ela interagiu dando like em uma
foto sem camisa de um dos Chris famosos e no dia
seguinte havia centenas de artigos documentando cada
interação do “casal”. Mas, às vezes, os vazamentos
vinham de dentro da própria casa delas, quando a equipe
queria controlar a narrativa. A data relatada coçava no
fundo de sua mente.
— O que está programado para a semana que vem?
Chrissy tinha o calendário compartilhado pronto para
visualização. Ela engoliu em seco.
— Dia 25 de junho. Tempo em família. Seis e meia da
manhã.
— Quando é que o tempo em família foi cedo desse
jeito?
A adrenalina de Ariel pós-show deu lugar para as dores
pós-show. Ela estava faminta. O corte em seu joelho
ardia e seus pés pareciam ter sido esmagados por uma
prensa, o que meio que foi o caso. Só queria tomar um
banho escaldante e rastejar para a cama. Não queria
pedir uma explicação para o pai.
Com certeza era um mal-entendido. Outra manchete
que afirmava conhecer a verdade por trás da fachada
perfeita das irmãs Del Mar. Então ela sorriu e manteve a
cabeça erguida. Não podia fechar a cara ou demonstrar
frustração em seu rosto. Havia muitas pessoas em volta
e ainda mais gente esperando para ver se Ariel ou suas
irmãs terminariam igual à mãe delas.
De canto de olho, flagrou uma faxineira levantando o
celular. Ariel sorriu e acenou para a foto. Por mais que
estivesse cansada, o sorriso era sincero. Ela sempre
valorizava seus fãs. Sem eles, não teria nada.
Ariel agradeceu e entrou no camarim de Sophia, onde
as irmãs estavam em várias fases de desalinho. Stella
abaixava o zíper de seu shortinho azul-turquesa furta-
cor, sua bandagem ensanguentada saindo no processo.
Marilou trançava os cabelos cor-de-rosa em marias-
chiquinhas. Elektra já estava com o enorme fone de
ouvido azul-elétrico que combinava com o cabelo dela, o
que significava que já ouvia seu podcast de meditação
de quinze minutos. Enquanto isso, as gêmeas, Alicia e
Thea, devoravam macarrão direto da embalagem de
comida chinesa para viagem.
Por um segundo, Ariel absorveu tudo isso. Memorizou a
longa penteadeira com lâmpadas glamorosas expostas,
garrafas de champanhe e bichos de pelúcia. Uma caixa
de cartas dos fãs, que ela gostava de ler nas noites em
que não conseguia dormir. Os sons de baleia que Marilou
sempre deixava tocando ao fundo. Roupas cintilantes,
perucas e tanto glitter que seriam necessários
profissionais de limpeza de cena de crime para se livrar
de cada pedacinho. Claro, no contrato, eram garantidos
camarins individuais para as Sere Sereias, mas, desde
que eram garotinhas, elas se amontoavam no espaço de
Sophia porque ela era a mais velha e nenhuma das irmãs
gostava de ficar sozinha.
Sophia estava sentada no centro da penteadeira,
tirando seus típicos brincos de argola dourados e
soltando o rabo de cavalo negro. Os olhos dela
encontraram os de Ariel no espelho.
— Ei, passarinha, você não vai começar a ficar
sentimental com a gente, né?
— Óun! — Alicia entrou na conversa. — É nossa última
sessão de relaxamento no camarim!
— A gente disse que não chamaria assim! — falou
Elektra, arrancando os fones de ouvido e franzindo a
testa.
— Eu não prometi nada — Alicia resmungou com a
boca cheia de macarrão.
— O que você tem na mão? — Thea perguntou.
— Ah, é só esse cantor supergato — respondeu
Marilou, dando zoom em uma foto no Pixagram. — Eric
alguma coisa. A banda dele é muito boa.
— Você não — disse Thea, apontando para a mais
jovem das garotas Del Mar. — Você.
— Que seja, vou mandar essa música no chat do grupo
mesmo assim — disse Marilou, jogando uma trança rosa
por cima dos ombros para mostrar que não estava
incomodada.
Ariel olhou para o punho cerrado que ainda segurava
os confetes em forma de estrela que ela havia pegado.
Era bobo, mas aqueles pedacinhos de plástico brilhante
pareciam sua despedida de boa sorte para a próxima
fase de sua vida.
— Não é nada. Cadê o papai?
— Eu o vi nos bastidores com o tio Iggy — disse
Elektra, passando as longas unhas pelas raízes azuis,
retirando os grampos de cabelo um por um.
— Por quê? — Stella perguntou, erguendo uma
sobrancelha curiosa.
Ariel encaminhou o artigo via mensagem de texto.
Todas as seis irmãs pararam o que estavam fazendo e
rolaram a tela enquanto ela despencava na cadeira vazia
na frente da longa penteadeira. As raízes castanho-
escuras de seu cabelo apareciam por baixo da peruca
vermelha. Embora sua maquiagem tivesse permanecido
intacta, as escamas brilhantes que decoravam suas
maçãs do rosto estavam se soltando, fazendo-a se
parecer menos com uma sereia glamorosa e mais com
um dragão trocando de pele.
— Peraí. Eu pensei que você e o papai tivessem
deixado de lado esse negócio de carreira solo — disse
Stella. Um de seus cílios postiços se soltara e descansava
em sua bochecha.
Ariel bufou e estendeu a mão para arrancá-lo. Estava
prestes a dizer para Stella fazer cinquenta pedidos
quando foram interrompidas.
Teodoro del Mar em pessoa, pai amoroso de sete filhas,
produtor de hits e ceo e cofundador da Atlantica Records,
valsou porta adentro seguido por seu vice-presidente e
irmão, Ignacio Sebastián del Mar. As meninas o
chamavam apenas de tio Iggy.
Teo era alto, imponente, e ainda mantinha o físico
encorpado de seus tempos de jovem lutador. Ele usava
um de seus ternos italianos favoritos adornado por um
broche de ouro em forma de S. Sua barba ficou branca
nos últimos dois anos de turnê e seu cabelo estava
perfeitamente penteado em ondas grisalhas.
Os irmãos ostentavam sorrisos satisfeitos em seus
rostos. Sorrisos que rapidamente se dissolveram quando
cada uma das sereias os encarou.
— Mis amores, cadê a comemoração? — tio Iggy
perguntou. Ele era o oposto do irmão em todos os
sentidos, tinha cachos curtos e pretos, pele marrom-clara
e um terno ousado e ajustado em seu corpo esguio.
Ariel levantou seu telefone, e os dois homens espiaram
a tela. Ela assistiu ao rosto de seu pai passar de surpreso
para irritado, exasperado e enfim sério. Não se podia
dizer que ele não tinha variedade de expressões.
— O que é isso, papai? — Ariel perguntou, num
contralto rouco. A voz com que falava normalmente não
era a voz de princesinha subaquática que o mundo
estava acostumado a ouvir.
— Nós íamos conversar com você quando
chegássemos em casa — disse Teo, daquele seu jeito
determinado, mas conciliador, como se ela estivesse
tendo um chilique e ele precisasse se manter firme.
— Alguém da sua equipe claramente não recebeu o
recado — Marilou o cortou.
Ariel sentiu um nó na garganta. O pai sempre mudava
os planos sem discutir com elas. Acrescentava um show
na turnê aqui, uma visita surpresa a alguém da realeza
ali, um patrocínio que ela não aprovava. Por que pensou
que desta vez seria diferente?
— Isto demandou planejamento — disse Ariel.
— E dissemos que seguraríamos qualquer plano ou
anúncio até depois da turnê — Sophia acrescentou,
erguendo suas longas unhas negras.
— Tecnicamente, já é depois da turnê. — Tio Iggy
levantou as mãos, como se o gesto pudesse protegê-lo
das palavras de suas sobrinhas.
— Qual é, tio Iggy — bufou Elektra. — Você só está
aliviando a barra dele, como sempre faz.
— Não use esse tom de voz conosco, Elektra! — Teo
ameaçou a sala com o dedo indicador e o estrondo de
seu barítono.
— E você não mude de assunto, pai — retrucou Ariel,
frustrada.
De uma vez só, as irmãs se uniram. Ariel sempre se
sentia mais forte com elas a seu lado, mesmo odiando
confronto. Detestava ver o pai ficando quieto e chateado.
Detestava o fato de ter 25 anos e ainda querer, precisar
da aprovação dele. Mesmo com seu corpo tremendo, ela
se forçou a encarar o pai nos olhos, verde-claros como os
de Sophia e Thea.
— Então isto é um motim? — Teo del Mar fechou a
cara.
— Por favor — Ariel implorou. — Dá para você, pelo
menos uma vez, nos incluir em suas decisões sobre as
nossas vidas?
Após um lampejo de surpresa pelas palavras dela, Teo
endireitou o corpo e cerrou a mandíbula, rápido para se
irritar.
— O que você quer que eu diga? Quinze anos! Mais, se
contarmos os anos que levou para vocês conseguirem o
primeiro contrato. O que mais posso dizer além de que
minhas filhas trabalharam duro todos os dias de suas
vidas e para quê? Para fazer uma pausa? Perder o
embalo para fazer um mochilão pela Europa? Passar
férias em um santuário de pandas?
— Ei! — Marilou gritou. — Não faça pouco dos meus
sonhos com os pandas.
— Eu não estou… — Teo apertou a ponte de seu nariz à
medida que sua raiva perdia intensidade. — Queridas.
Minhas amadas garotinhas. Tudo o que eu sempre quis
foi o melhor para vocês. Eu trabalhei…
— Desde que tinha dezesseis anos de idade — Ariel
completou a frase que conhecia melhor do que a maioria
de suas letras.
Sophia então continuou o discurso.
— Desde que a mãe de vocês e eu chegamos a este
país com trezentos dólares e nada além dos nossos
sonhos e milhares de portas fechadas em nossas caras.
— A gente entende — disse Alicia. — Nós sabemos.
O pai as encarou como se elas o tivessem apunhalado,
tal qual César.
— Nós tínhamos um acordo, pai — Ariel o lembrou. —
Um ano sem mídia. Sem entrevistas. Sem exclusivas.
Sem gravações. Apenas uma pausa para fazermos o que
quiséssemos. Então eu torno a perguntar. Do que este
artigo está falando?
— Poe Marlowe quer escrever e produzir seu álbum
solo, Ariel — disse Teo, levantando as mãos, derrotado.
— Uau, eu mataria para trabalhar com ele — cochichou
Marilou, deslumbrada.
Todas as garotas a repreenderam com um olhar que
dizia Agora não.
— Viu? — disse Teo, motivado pela reação de Marilou.
— Mas ele só tem tempo na agenda neste verão. Se
entrarmos em estúdio agora, podemos lançar sua
carreira solo até dezembro. Ele trabalha apenas com os
melhores dos melhores e quer trabalhar com você, Ariel.
— Dezembro? — disse Ariel, meio caçoando, meio
rindo.
— Nós não queríamos que fosse assim — disse tio Iggy.
— São apenas seis meses antes do ano sabático que
você planejou.
— Ah, e isso é tudo? — Ariel deveria ter previsto isso.
Ela desanimou um pouco.
— O plano era que suas irmãs fizessem participações
em faixas individuais — Teo explicou. — Para fazer uma
transição com a banda, em vez de fazer parecer uma
separação.
Bastou. Essa foi a gota d’água que levou as mulheres
Del Mar ao limite. A sala se encheu de gritos. As irmãs
queriam respostas. O que mais ele estava mantendo em
segredo? Onde encaixariam a gravação na agenda delas?
Sophia já havia se matriculado em uma universidade.
Marilou só queria ter paz com os pandas. Nesse ínterim,
tio Iggy tentava se desculpar, enquanto Teo mandava
que qualquer subordinado que tivesse vazado a notícia
para a imprensa fosse demitido.
Ariel não podia se sentar de novo. Se sentasse, não
conseguiria se levantar. Mesmo com os pés doendo como
se pisasse em cacos de vidro, ela deslizou pelo camarim
e ficou cara a cara com o pai.
Ele envolveu o rosto de Ariel com as mãos enormes.
Sua testa se franziu, marcada por rugas profundas na
pele marrom-clara e bronzeada. Quando foi que ele
envelheceu tanto?
— Ariel, minha amada. Minha vida. Querida… — Ele
dizia isso para todas elas com frequência. Querida,
adorada. Amada. — Nós temos a chance de fazer algo
que acontece apenas uma vez na vida. Eu sei, eu sei que
deveria ter te contado desde o começo, mas eu também
sei o quanto você ama seus fãs. O quanto você ama
cantar. Você é música. E não aguentaria ficar um ano
inteiro sem ela.
Ariel tinha que reconhecer que o que ele disse era
verdade. Mas não era ela que deveria tomar essa
decisão? Não era ela que deveria escrever o álbum? E se
estivesse péssima quando o ano acabasse, teria sido
porque havia escolhido isso, pela primeira vez, sem
continuar a seguir exatamente o que era esperado dela.
Mas as palavras de seu pai sempre conseguiam se
esgueirar para dentro de seus pensamentos. Poe
Marlowe era um figurão. Ele havia ajudado a lançar mais
músicos do que qualquer outra pessoa no ramo. Não era
uma sorte? Sorte por ser a garota de ouro de seu pai,
uma de suas joias mais estimadas. Sorte por ser uma
extensão do sonho dele. Sorte por poder se conectar com
milhões de pessoas que adoravam Ariel e suas irmãs.
E se tudo isso fosse embora?
E se ela desse as costas para uma oportunidade que
outros matariam para ter?
— Tudo bem — disse ela, olhando para baixo,
brilhantes estrelas de confete ainda firmemente presas
em seu punho suado.
Teo e Ignacio bateram palmas. Suas irmãs
murmuraram, confusas.
— Com uma condição — acrescentou Ariel.
— Você puxou ao pai — disse Teo sorrindo, depois de
fazer uma careta.
— Todas as outras vão ter o ano de folga prometido.
Elas gravarão os vocais apenas se e quando quiserem.
— Não! — disse Sophia, furiosa. — Você não pode.
As outras ecoaram o sentimento, mas, quando se
tratava de suas irmãs, Ariel faria qualquer coisa. Nunca
vencera uma discussão com o pai, mas isso não se
tratava mais apenas dela.
— Estes são meus termos.
— Seus termos são razoáveis. — Teodoro del Mar
passou a palma da mão pela barba prateada e bem
cuidada. — Ganharemos disco de platina, filhinha.
Ariel permitiu-se ser puxada para um abraço apertado
enquanto o pai e o tio listavam todas as grandes coisas
que eles fariam. Mas as irmãs dela não celebraram. Elas
compartilharam sorrisos cansados, e todo mundo voltou
a juntar suas coisas, indo rapidamente para o
estacionamento onde os carros as esperavam.
Consertaram suas expressões para os paparazzi mais
persistentes e os fãs que as viam partir.
Enquanto corriam pela ponte de Queensboro em
direção à área chique de Manhattan, Ariel abriu a janela
e deixou que a brisa fresca do fim de junho a refrescasse.
E daí que seus planos seriam um pouco diferentes do
que pretendia? Ela tinha suas irmãs. Tinha sua família.
Trabalharia com um dos maiores nomes da indústria
musical. Esticou o braço para fora da janela e abriu a
mão, deixando que os confetes brilhantes fossem
carregados pelo vento.
Ela era Ariel del Mar, e toda sua vida esperava por ela.

TUTTLE, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Episódio 1.365:
As Sete Sereias: do começo humilde à realeza da música
(Introdução)

Transcrição:
O último show da família real do pop finalmente
chegou, e, apesar de eu estar PROFUNDAMENTE
DEVASTADO, mal posso esperar para ver quais serão
os próximos passos das minhas garotas. Por ora,
quero retroceder com uma série em várias partes
destacando a história das Sete Sereias.

Meu teste decisivo para amigos sempre foi qual


álbum das Sete Sereias os transformaram em um dos
Sete Sortudos. Para mim, tudo começou com As
Pequenas Sereias, o programa de televisão que
seguia um grupo de princesas sereias enquanto elas
salvavam sozinhas os oceanos da poluição, tudo isso
enquanto se apaixonavam por marinheiros e salva-
vidas no processo. Nunca esqueçamos meu primeiro
crush adolescente, #PríncipeNick.

O famoso “papai” Del Mar, no comando de um


império midiático, tomou a decisão controversa de
sair por cima e encerrar o programa no auge de sua
audiência, transformando as sete irmãs nas sereias
cancioneiras dos palcos.

E assim nasciam as Sete Sereias. Mais glitter. Mais


maquiagem. Saltos plataforma maiores. Mesmas
perucas indefectíveis. Ninguém pode negar que
Teodoro del Mar é um produtor de sucesso por bons
motivos, e suas filhas são as joias de seu reino —
digo, gravadora —, Atlantica Records.

Agora, o maior grupo feminino da atualidade se


despediu com uma turnê mundial de dois anos. Uau!
Seu garoto aqui acumulou muitas milhas, mas cada
momento valeu a pena.

Segundo rumores para algumas delas, a festa não vai


parar. Fontes extremamente confiáveis me dizem
que um grande anúncio está por vir no programa
Acorda! Nova York, e pode apostar que deixarei
vocês inteirados primeiro.

Não se esqueça de se inscrever, contar suas teorias e


dar uma passada no meu TipJar$$ @Scott.Tuttle.7,
para que eu possa continuar trazendo o melhor
conteúdo sobre as Sete Sereias.

Aqui é o Tuttle dando tchau!


CAPÍTULO DOIS

ERIC
24 de junho
Ponte do Brooklyn, Nova York

Na noite de seu aniversário de 28 anos, Eric Reyes


estava preso no engarrafamento. Até onde ele pôde
entender, havia um enorme acidente bloqueando todas
as pistas da Ponte do Brooklyn e, apesar do som de
sirenes e buzinas em volta, uma hora e meia mais tarde,
eles não estavam nem perto de se mover.
O carregamento foi feito duas horas antes, e ele
colocou o telefone no modo silencioso porque a agente
deles, Odelia, já tinha ligado uma dúzia de vezes para
gritar sobre como havia trabalhado duro até agendar a
Desafortunados para fechar a Batalha das Bandas. Sem o
trânsito, o Aurora’s Grocery, onde eles estavam na
iminência de ter que subir no palco, ficava a apenas
quinze minutos de distância.
E, no entanto, apesar do estresse da situação, Eric
ainda estava com um bom humor irritante. Nova York
espalhava-se ao redor dele em toda sua glória. Claro, ele
estava do lado errado da ponte, e, num utilitário
beberrão cujo ar-condicionado se encontrava, sem
trocadilhos, por um fio e pelo odor repentino, estava
quase certo de que sua baterista acabara de soltar uma
bufa, mas não havia mais ninguém com quem ele
preferiria estar. Abriu as janelas.
Eleanor Grimsby, que era a equivalente humana do
emoji de nuvem de chuva, aproveitou a oportunidade
para esticar o longo pescoço para fora da janela do
passageiro e soltar um grito aterrorizante de banshee
para o tráfego.
— Tenho quase certeza de que as cabras em Long
Island podem te ouvir — Carly resmungou do banco de
trás. Seus cachos estavam empilhados no topo de sua
cabeça como um abacaxi, e, embora fossem só oito da
noite, ela usava sua máscara ocular de seda. Eric e o
resto da banda tinham aprendido com os anos que,
quando a máscara de dor de cabeça estava em uso,
ninguém deveria nem tentar puxar assunto com Carly.
— É a Max quem está com o volume no talo vendo
aquela porcaria de série de tv — disse Grimsby,
apontando lentamente com o polegar para a baterista
deles.
Max, cujos olhos estavam colados na tela do celular
enquanto ela roía a unha do indicador até sangrar, tirou a
franja castanha desgrenhada da frente dos olhos. A
franja voltou exatamente para o mesmo lugar.
— Eu claramente amo porcaria, já que ainda sou amiga
de todos vocês! — resmungou ela.
— Ah, eu adoro um prazer culpado — disse Eric, sua
voz baixa e calma. — Quanto mais culpado e
despudorento, melhor.
— Primeiro, despudorento não existe — disse Carly,
removendo a máscara dos olhos e jogando-a no porta-
treco que era o chão da suv. Ela virou-se para Max e
provocou: — Segundo, você não está um pouquinho
velha demais para ainda gostar das Sete Sereias?
Max estalou a língua contra os dentes e resmungou um
xingamento em tagalo que todos eles sabiam de cor.
— É um resumo da turnê de despedida delas, então
considero isso como lição de casa. Além do mais, nossa
geração precisa de nostalgia para aguentar a ansiedade
generalizada, portanto me deixa viver, tá?
Carly deixou quieto, mas começou a bater a cabeça na
parte de trás do banco de Eric.
— Aaaaargh, por que isso está acontecendo?
Eric inclinou-se adiante para se afastar, mas não havia
para onde ir, a não ser que ele quisesse ficar de pé na
ponte engarrafada.
— Você está tentando estourar meus tímpanos?
— Você não vai ter mais tímpanos quando Odelia
acabar conosco — Carly resmungou.
— E quem liga? — Grimsby perguntou, descansando os
cabelos loiros pálidos na janela meio aberta, como se
tivesse desistido da vida. — Isso é o que eu chamo de
uma sina desgraçada. Desgraçada mesmo.
Carly socou o teto do carro, e Max começou a batucar
em toda superfície disponível. Eric sabia que suas
companheiras de banda, apesar de um pouco
dramáticas, tinham que lidar com o estresse à maneira
delas. Entretanto, tais maneiras não podiam envolver
danificar o carro dele.
— Calma! — disse Eric, alisando o interior do veículo
com a mão. — Pode não ser muito, mas minha neném já
nos levou a 101 shows intacta.
O utilitário era antigo e nem de longe lembrava os
carros vintage que seu pai colecionava na Colômbia. Mas
tinha sido o primeiro carro que ele comprou quando
chegou a Miami aos 18 anos com suas economias, um
violão e um sonho. Milhares de quilômetros e uma
década depois, Eric estava muito perto de realizar esse
sonho. Tão perto que conseguia sentir, tangível como o
cheiro do escapamento dos carros ao redor.
— Tudo bem. Só porque é seu aniversário — disse
Carly, mostrando o dedo do meio e lhe mandando um
beijo ao mesmo tempo.
Eric sorriu, deixou que mais uma ligação de Odelia
caísse na caixa postal. Esfregou o nó de tensão na parte
de trás do pescoço.
— Ah, droga! Vamos perder esse show bem no seu
aniversário. Nossa primeira grande turnê começa
amanhã de manhã e já é um caos. Não estamos
condenados. Estamos amaldiçoados — disse Max,
batendo com as mãos na cabeça.
— Qual de vocês, idiotas, quebrou um espelho? —
perguntou Grimsby, levantando a cabeça lentamente.
— Não estamos condenados nem amaldiçoados — Eric
enfatizou. —E peguem leve com minha neném, pode ser?
— Amaldí-suadôs — Max repetiu, arrastando a última
sílaba.
— Amaldí-suadôs, em francês — acrescentou Grimsby
concordando lentamente.
— Definitivamente não é francês. — Eric não pôde
deixar de rir. — Devo admitir que as coisas não
começaram da melhor forma.
— Melhor forma? — Carly perguntou, enfiando o torso
entre os bancos da frente. — Vamos conferir os recibos
de nossa maldição, sim? Só na semana passada, uma de
nossas bandas de abertura pegou uma virose. Quem
pega virose?
— Duzentas e sessenta e poucas mil pessoas — disse
Grimsby.
— Por que você sabe disso? — Eric balançou a cabeça.
— Deixa pra lá. Além disso, a Odelia já contratou uma
banda substituta.
— O motorista do nosso ônibus sofreu um acidente de
carro — disse Grimsby, levantando a cabeça, piscando
uma vez.
— Ele está se recuperando. — O sorriso de Eric tornou-
se forçado. — E temos um novo cara. Vamos superar
isso. Não podemos deixar alguns contratempos...
— E... o cara do merchand acabou de pedir demissão
— Max anunciou, mostrando o telefone. — Odelia está
postando um anúncio de vaga urgente e também disse
que, se você ignorar a ligação dela mais uma vez, nossa
grande turnê vai ser um velório. O seu velório,
especificamente.
Eric soltou um suspiro exasperado. Não era ideal, mas
não havia espaço para se preocupar com a contratação
de um novo promotor de merchandising quando tinha
problemas maiores. Como o trânsito. Ele queria poder ver
mais de sua posição na ponte. Vários helicópteros de
notícias circulavam à frente com holofotes. O carro do
casal à esquerda deles estava com as janelas
embaçadas, e alguns executivos deixaram seus táxis
para gritar ao telefone. Pela primeira vez em tantas
horas, Eric permitiu que os tentáculos do fracasso se
enrolassem em seu coração: e se... e se eles não
conseguissem?
Não. Tinham que conseguir. A banda precisava disso.
Ele precisava disso. Faria todas elas irem a pé até o local
com os instrumentos nas costas se ficasse desesperado
e, embora estivesse calmo agora, estava talvez a quinze
minutos do desespero. Por mais que não deixasse
transparecer e definitivamente não contribuísse para o
mau humor que surgia entre suas companheiras de
banda.
— Temos que nos preparar para o pior — disse Grimsby.
Seus grandes olhos cinza estavam vidrados.
— Se o Aurora’s Grocery achar que somos
irresponsáveis, o Hazy Underground também vai achar, e
aí jamais conseguiremos tocar no Red Zone! — disse
Carly, coçando a garganta, como fazia quando estava
nervosa e achava que estava tendo uma reação alérgica.
— Está bem. Já chega. — Eric abriu a porta do
motorista. — Todo mundo para fora. Agora.
— Que diabos você está fazendo? — Max se aprumou.
— Vocês sabem que eu tenho medo de ser atropelada
em uma ponte — disse Carly.
— Na verdade, preciso dar uma esticada —
acrescentou Grimsby, com seu tom lento e irônico.
Eric abriu o porta-malas e, depois, as travas do case de
seu violão. Esse violão era o objeto mais valioso que ele
possuía no mundo inteiro. Ele o acompanhara em todos
os momentos difíceis que enfrentou em sua vida. Agora
não era diferente. Eric prendeu a alça, para que o corpo
do instrumento ficasse apoiado na parte de trás, depois
pegou impulso no para-lama para o capô, até que suas
botas estivessem firmemente plantadas no topo do
veículo.
— Isso é o que você queria dizer com tratar essa
porcaria com respeito? — perguntou Carly, apoiada
contra o capô.
— Isso é o que eu chamo de ser o melhor animador
que você poderia pedir. — Eric dedilhou os acordes
iniciais da primeira música que eles haviam escrito
juntos, “Adiós to My Old Love”. Foi a primeira vez em que
teve certeza de que tinham algo especial. Suas vozes em
harmonia, os instrumentos como extensões de si
mesmos e uns dos outros. Algo que o mundo inteiro
precisava ver. — Olhem onde estamos.
— Presos num engarrafamento? — Max resmungou.
— Estamos suspensos sobre o rio East. Estamos na
melhor cidade do mundo. Carly, você lembra o que disse
quando escrevemos esta música? — perguntou Eric após
murmurar a melodia de abertura da canção.
Os braços de Carly estavam cruzados sobre o peito,
mas o cenho franzido se desfez em um sorriso tímido.
— Eu disse que fizemos magia.
Ele dedilhou o refrão e bateu o pé uma vez. Uma
multidão de pedestres no nível acima tinha parado para
assistir. Eric piscou na direção deles antes de se virar
para Grimsby. O delineador preto dela estava mais
borrado do que o normal, mas mesmo sua gótica favorita
não pôde deixar de sorrir quando ele se ajoelhou e tocou
as notas graves que normalmente era ela quem tocava.
— Você pegou um ônibus de North Sunshine, Montana,
até aqui, até esta cidade, para quê, Grimsby? — Ele
inclinou a cabeça na direção dela, pois não conseguia
ouvi-la por causa da conversa dos pedestres e das
buzinas estridentes. — Desculpa, o que você disse?
— Eu vim aqui para tocar em uma banda incrível, tá
bom? — gritou ela, sacudindo os punhos e dando o braço
a torcer.
Finalmente, ele se levantou, equilibrando-se no teto, e
encarou Max.
— E você?! Você não libertou mil cobaias e largou o
emprego em uma grande empresa farmacêutica só para
achar que estamos amaldiçoados, né?
— Nem ferrando! — disse Max, batendo com as mãos
nas laterais do carro.
— Nunca pensamos que seria fácil — ele cantou,
fazendo um longo dedilhado que o levou até a ponte da
música. — Acreditem em nós só mais um pouco.
— Seu otimismo ingênuo está me dando dor de dente
— disse Carly, mas ela cantou na ponte com ele mesmo
assim.
O primeiro verso que escreveram juntos.
— Acreditem em nós só mais um pouco.
Eles não se importavam com quem estava olhando ou
gravando. Os quatro cantavam a plenos pulmões,
envolvidos pelo trânsito e pela brisa quente do verão.
Quando terminaram, um leve aplauso veio de alguns
carros ao redor e de observadores na passarela de
pedestres. Foi seguido por buzinas agressivas, que
chamaram a atenção deles para os carros em
movimento.
— Quebramos a maldição! — Max gritou.
Eles comemoraram, e Eric sentiu a alegria delas em
seus ossos. Entregou seu violão para Grimsby e tirou um
último momento para olhar as luzes brilhantes da cidade.
Um momento final que foi interrompido por um carro que
passava.
— Anda logo, idiota! — gritou um homem careca e
bigodudo colocando a cabeça para fora da janela.
— Eu amo Nova York. — Eric deslizou pelo para-brisa e
pelo capô, aterrissando em pé.
Depois de todos estarem acomodados no SUV,
começaram a avançar lentamente. Claro, era a dez
quilômetros por hora, mas estava acelerando a cada
minuto. Ele olhou para o relógio. Eles realmente iam
conseguir.
—Então — Max começou —, íamos guardar isso para
depois do show. Mas acho que você merece agora.
Ela apresentou um cupcake gigante ligeiramente
amassado, empalado por uma vela torta.
— Viu? — Eric sorriu, acelerando um pouco mais o
carro conforme o trânsito se dissipava. — Vocês são
todas umas românticas melosas.
— Retire o que disse — avisou Grimsby enquanto
acendia um fósforo. — Retire o que disse agora mesmo.
A vela de faísca ganhou vida, provavelmente um perigo
dentro do SUV, mas eles cantaram uma versão rápida em
portunhol da música “Parabéns pra você”.
— Faça um pedido — disse Carly.
Eric sorriu. Fazer pedidos era fácil, acreditar é que era
difícil. Havia feito mil, dez mil pedidos ao longo dos anos.
Alguns eram superficiais: uma bicicleta, um conjunto
completo de Lego, um contrato de gravação na casa dos
seis dígitos. Quanto mais velho ficava, mais complicados
eram seus desejos. Ele desejava que a dor de sua mãe
tivesse alívio. Desejava um visto de estudante. Desejava
a aprovação de seu pai. A chance de virar alguém. Agora,
cercado por suas melhores amigas atravessando a Ponte
do Brooklyn, sabia que eles conseguiriam. Por isso, em
vez de desejar um contrato de gravação e toneladas de
dinheiro, Eric fez o desejo mais simples que alguém
poderia fazer.
Meu desejo é ela, pensou.
Ele ainda não a conhecia. A garota dos seus sonhos. A
garota sobre a qual vinha escrevendo todas as músicas
desde que pôde criar melodias e letras cativantes. Ele
sempre teve sorte com as mulheres, mas todos os seus
amores eram passageiros. Eric queria algo duradouro.
Alguém para se apegar. Algo real. Talvez porque fosse
seu aniversário, ou porque suas companheiras de banda
o surpreenderam ou talvez porque houvesse algo no ar,
mas ele tinha um bom pressentimento sobre o que o
aguardava mais adiante.
E, assim, Eric Reyes apagou a vela de seu aniversário e
deu uma grande mordida no cupcake recheado de
caramelo, deixando o restante para as garotas se
deliciarem.
— Apertem os cintos — disse ele, pisando no
acelerador enquanto cada veículo na ponte buzinava em
direção à liberdade. — Sem parar até Brooklyn.

SE LIGA NO VISUAL!
EDIÇÃO AS SETE SEREIAS

ARIEL
Cor: Vermelho-rubi
Não pode faltar: Glitter, glitter, glitter! Aplicações de
pedras
no rosto, botas plataforma... Não existe isso de roupa
casual
para esta princesa sereia.
Atitude: Garota glamorosa da casa ao lado!

MARILOU
Cor: Ouro-rosé
Não pode faltar: Brincos de panda, camiseta vintage dos
anos 1980,
botas deslumbrantes, calças de lamê em ouro-rosé.
Atitude: A Garota de Rosa-Shocking, com uma pitada de
rebeldia!

STELLA
Cor: Turquesa-brisa-do-mar
Não pode faltar: Vestido boêmio ético-responsável,
pulseiras feitas com
plástico reciclado dos oceanos, sandálias de couro
vegano.
Não se esqueça do cristal no bolso.
Atitude: Apenas boas vibrações!

ELEKTRA
Cor: Azul-elétrico
Não pode faltar: Tudo em azul-elétrico, saia volumosa
estilo anos 1950,
brincos de raio.
Atitude: A alma da festa!

ALICIA
Cor: Violeta-sonhador
Não pode faltar: Presilhas de borboleta violeta, colete
branco fofo,
leggings brilhantes.
Atitude: Você é a musa dos sonhos de todos!

THEA
Cor: Fúcsia-atrevido
Não pode faltar: Jeans artisticamente surrado, top reto
costurado à mão,
parca oversized. Não se esqueça do toque de rosa
vibrante.
Atitude: O mundo está em suas mãos!
SOPHIA
Cor: Pretinho básico
Não pode faltar: Rabo de cavalo alto matador, unhas
stiletto,
preto arrasador, como uma verdadeira nova-iorquina.
Atitude: Seja a rebelde que você quer ver no mundo!
CAPÍTULO TRÊS

ARIEL
24 de junho
Upper West Side, Nova York

Alguns dias após o último show da turnê “Goodbye


Goodbye”, Ariel ainda não conseguia ter uma boa noite
de sono. Ela assombrava os cômodos da luxuosa
cobertura da família no Upper West Side.
Durante a turnê, seu corpo tinha se acostumado a
dormir em ônibus de luxo, no jato da família, nos
ocasionais camarins e até mesmo em uma cabine de
banheiro (não pergunte). Com os pés firmes no chão,
porém, ela estava inquieta. Tinha tentado dormir nas
espreguiçadeiras da varanda, mas acordou com um
pombo tentando fazer ninho em seu cabelo. Teve menos
sorte ainda na sala de estar, com o aquário no pilar de
vidro cheio de peixes curiosos. Inevitavelmente, ao
amanhecer, voltava para seu quarto, onde apenas a
exaustão extrema funcionaria.
Na noite anterior ao grande anúncio da carreira solo de
Ariel, Marilou invadiu seu quarto e disse:
— Chega de lamentação!
— Não estou me lamentando. Estou olhando as redes
sociais. — Ela estava no celular por tanto tempo que
sentia a ponta de seu polegar esquerdo dormente.
— Chame como quiser — Marilou fechou a porta atrás
de si. Seu cabelo estava enrolado em uma toalha, e ela
ainda vestia seu favorito robe felpudo cor-de-rosa.
Chutou suavemente um dos bricabraques espalhados
pelo chão. — Você nem sequer tomou banho? Este lugar
está uma bagunça.
— Estou limpinha e, ao contrário de você, eu não deixo
uma centena de embalagens de bombom debaixo da
minha cama — Ariel brincou, na defensiva.
Não admitiria nenhuma reclamação sobre seu quarto.
Era o seu santuário. Cada detalhe cuidadosamente
selecionado para fazer parte de seu lugar favorito no
mundo. O pé-direito alto pontilhado de constelações
douradas — as Plêiades, as Sete Irmãs, eram as mais
proeminentes. Janelas de ponta a ponta mostravam
vistas urbanas impossíveis. A cabeceira da cama era
feita de madeira de deriva reaproveitada. A coleção de
guitarras estava fixada em uma parede, e havia uma
área de lounge dedicada ao seu toca-discos e à sua
coleção de vinis.
Marilou se dirigiu à parede de prateleiras que iam do
chão ao teto e apontou para fileiras de livros e
bugigangas que Ariel havia coletado de todas as cidades
que já visitaram. Rodas de bordados feitos à mão,
bonecas personalizadas que os fãs tinham feito dela,
ingressos, prêmios, caixas antigas cheias de cartas
manuscristas. Suas irmãs a chamavam de
“acumuladora”, mas havia alguns tesouros dos quais
Ariel simplesmente não conseguia se separar. Claro, ela
não tinha uso para um tênis com lantejoulas faltando o
outro pé, mas aquele tênis era uma lembrança dos dias
de filmagem de As Pequenas Sereias, quando sua
personagem se disfarçava de “garota comum” na terra.
Anos depois, Ariel descobriu que, na verdade, não podia
ficar com objetos do set.
— Por que você guarda essas coisas? Você nem joga
Palavras Cruzadas — Marilou zombou, pegando uma
única peça de Palavras Cruzadas, a letra Q, e depois o
tênis.
Ariel se levantou e pegou o sapato, colocando-o de
volta ao lado do retrato emoldurado de sua família, a
última foto dos nove antes do acidente de sua mãe.
— Eu não entro no seu quarto e reclamo que você
nunca ouviu falar de um cesto de roupa suja.
Marilou franziu os lábios, as sardas agrupadas como
farelinhos de chocolate em sua pele clara.
— Tudo bem, mas você entendeu o que eu quis dizer.
Você tá parecendo um fantasma vagando por aqui. — Ela
tirou um caderninho do bolso de seu robe. — Ah,
Fantasma na cobertura seria uma ótima série de tv.
— Eu não posso exatamente sair de casa até a
entrevista de amanhã, para não estragar a revelação do
meu “novo visual” — disse Ariel, jogando-se num pufe.
— Falando em novos visuais… — Marilou puxou a
toalha da cabeça e mexeu as sobrancelhas. — Gostou?
A cor era um castanho suave com um efeito ombré que
ia clareando até as pontas em tom de rosa. Ariel enrolou
uma das ondas da irmã ao redor do dedo.
— Adorei.
— Eu queria voltar ao natural, mas tenho sido a Marilou
del Mar há tanto tempo que quase fiquei com medo de
abandonar o rosa, sabe? — Ela balançou a cabeça. — É
bobagem.
Ariel olhou para a própria peruca vermelha, exibida na
prateleira mais alta. Sabia exatamente como a irmã se
sentia.
— Não tem nada de bobo. Você merece um tempo para
entender as coisas.
— Você também, Ariel. — Marilou se enfiou no pufe
enorme ao lado da irmã mais nova, suspirando de
frustração. — Agradecemos o acordo que você fez com o
papai, mas você é a caçula. Uma bebezona de 25 anos.
Ainda. Nós é que deveríamos estar cuidando de você.
— Também não é obrigação de vocês. É do papai. —
Ariel ainda não conseguia falar sobre isso, então mudou
de assunto. — Por que eu me sinto mais cansada agora
do que quando estamos embarcando em um avião às
três da manhã?
— Porque você realmente ama aquilo. Mais do que
qualquer uma de nós. Provavelmente mais até do que o
papai. Você ama ser musicista. Só nunca teve a chance
de fazer isso nos seus próprios termos.
Ariel não podia negar.
— Você viu as simulações que o tio Iggy enviou?
— Sim... tenho que admitir, você não fica bem loira —
disse Marilou, fazendo uma careta.
— Não quero ficar loira. Mas tenho usado uma peruca
vermelha desde os dez anos, então o papai acha que é
esse o caminho.
— Então não fique. Se você vai ser a Ariel del Mar 2.0,
seja você mesma.
— Você sabe como ele é quando enfia algo na cabeça.
Estou fazendo isso pelo bem maior.
— Sim, mas nós não nos importamos. De toda forma, o
papai nos deixaria seguir nosso próprio caminho. É de
você que ele precisa para o selo. Você tem o poder aqui.
A maneira como Marilou disse isso partiu o coração de
Ariel. E então sentiu raiva do pai, do tio. Ariel sempre foi
o centro das atenções. E a questão era que as irmãs
nunca ficavam com ciúme. Elas cumpriam seu dever.
Aguentavam firme para que a família permanecesse
unida. Ariel podia fazer o mesmo, só mais um pouquinho.
Não podia?
— Bem, se esta for a minha última noite de liberdade
— disse ela —, então vamos aproveitar com estilo.
— Você tem minha atenção — disse Marilou erguendo a
sobrancelha.
— A Chrissy vai para essa Batalha das Bandas hoje à
noite no Aurora’s Grocery. Aquela banda que você me
mandou vai ser a banda principal. Já ouvi a música nova
deles umas cem vezes.
— Adoro a Ariel rebelde. Você deveria deixá-la sair
mais vezes — disse Marilou, agitando os punhos,
animada.
Um plano começou a se formar na mente dela.
— Papai e o tio Iggy têm aquele evento beneficente
Salve a Música hoje à noite, não é?
— Vou mandar mensagem para as meninas para ver se
alguém quer vir — disse Marilou com um sorriso
cúmplice, já saindo do quarto.
Pela primeira vez em dias, Ariel tinha algo que a
empolgasse, mesmo que fosse apenas uma noite fora.
Ela se vestiu e se dirigiu a seu banheiro particular para
se arrumar. Quando as câmeras não estavam filmando,
ela só usava um gloss rosa, blush e protetor solar com
cor, que realçava os tons quentes de pêssego de sua
pele.
— Você está parecendo uma Barbie Hipster latina —
disse Marilou após bater na porta aberta e olhar para
Ariel.
Ariel vestia uma camiseta rosa justa e shorts
combinando que realçavam suas curvas em formato de
ampulheta. Completou o visual com uma jaqueta jeans
vintage, óculos quadrados transparentes, sua pulseira de
amuletos da sorte e um colar de placa de ouro onde se
lia o nome que ela compartilhava com a mãe, seu nome
de batismo.
— Obrigada — disse Ariel e acrescentou: — Acho...
Marilou estava pronta para sair. Seu disfarce civil
incluía um boné de beisebol com um emoji de pêssego
costurado no centro e uma jaqueta de couro emprestada
de Ariel por cima de um vestido preto.
Elas saíram pela cozinha. Suas irmãs ainda estavam de
pijama, várias garrafas de vinho abertas na mesa.
Deliciando-se com uma variedade de guloseimas
apetitosas, as outras tinham recusado o convite para sair
de casa. Ariel pegou alguns cookies para comer no
caminho enquanto ela e Marilou escapavam pelo
elevador dos fundos.
— Desativem seus serviços de localização! — foi a
última coisa que Sophia gritou enquanto as portas de
metal se fechavam.
Ariel estava acostumada a usar o beco da lixeira por
dois motivos: o porteiro era informante do tio Iggy e a
entrada da frente estava isolada pela segurança, porque
os fãs gostavam de acampar do lado de fora na
esperança de terem um vislumbre delas. Os fãs sempre
fizeram parte da vida cotidiana do bairro quando ela
estava em casa, mas não era normal ter gente
esperando na frente da sua casa ou paparazzi se
escondendo nos arbustos do Central Park, do outro lado
da rua.
Misturando-se enquanto passava pela multidão, Ariel
seguiu a irmã até a estação da rua 81. Marilou, que
estava mais acostumada a sair furtivamente do que
Ariel, foi rápida para conseguir os passes de metrô.
— Acabei de perceber que nunca comprei um passe de
metrô — Ariel admitiu, pegando o seu.
— E você se diz nova-iorquina. — Marilou piscou e
empurrou a catraca com o quadril.
Foram necessárias duas tentativas para Ariel conseguir
passar.
Quando o trem chegou, Ariel deixou a brisa quente do
metrô levar embora seu nervosismo. Estava fora da
cobertura Del Mar. Estava quebrando o isolamento de
três dias. Iria a um show onde haveria centenas de
pessoas e nenhuma delas a reconheceria. Isso e a ideia
da energia da multidão a fizeram pular nas pontas dos
pés calçados com tênis enquanto ambas se acomodavam
em dois assentos no vagão com ar-condicionado.
Elas já haviam perdido a primeira hora da Batalha das
Bandas, mas o lineup era longo. Ariel navegou pela
página do Pixagram do Aurora’s Grocery. Ela queria
especialmente ver uma banda do Equador que chamava
seu som de “techno andino”. Quando chegou na última
foto, deu zoom na banda principal, Desafortunados. Só o
nome a fez sorrir. Já tinha memorizado a música e agora
cantarolava o refrão contagiante, encantada, enquanto
as estações de metrô passavam rapidamente.
Ariel ouvia tudo ao seu redor. O ronco do túnel do
metrô sob a terra, a campainha das portas, o sibilar
quando abriam e fechavam, a conversa das pessoas indo
e vindo, dezenas de vidas se cruzando e correndo,
paralelas, em direções diferentes. Nova York era sua
própria música. Sua mente girava pelas origens de novas
letras, imaginava detalhes das vidas de cada pessoa. Era
um jogo que fazia com as irmãs desde que se lembrava,
mesmo que as palavras não entrassem em todas as suas
músicas.
Quando sua atenção se fixou em um grupo de meninas
carregando sacolas de compras e copos altos de bubble
tea, Ariel se virou para Marilou.
— Você acha que seríamos iguais se tivéssemos
crescido como meninas normais?
— Somos meninas normais — disse Marilou a ela. —
Mas, por acaso, também somos pop stars milionárias
com identidade secretas de super-heroínas.
— Sim — Ariel riu. — Supernormal ser uma pop star.
Uma hora depois, estavam no Aurora’s Grocery, um
armazém que existia desde os anos 1980. Encontraram
Chrissy na longa fila serpenteando ao redor do quarteirão
e foram alvo de resmungos quando cortaram a fila para
ficar com ela. Um dos caras atrás delas usava uma
camiseta das Sete Sereias com o rosto de Elektra. Ele
olhou na cara de Ariel e reclamou alto para os amigos.
Ariel riu da ironia, mas se sentiu fortalecida pelo fato de
o Fanboy Rabugento não a ter reconhecido.
— Aposto que se dissermos ao segurança que estamos
com a Atlantica Records...
— Não — Ariel interrompeu a irmã. — Vamos esperar
na fila. Somos pop stars normais, lembra?
— Eu odeio esperar — Marilou choramingou, mas
cedeu.
Enquanto Chrissy distraía Marilou com perguntas sobre
seu cabelo, a atenção de Ariel foi atraída pelo barulho
agudo de pneus cantando. Um utilitário que já vira dias
melhores acelerava na direção delas. As rodas da frente
pularam na calçada, assustando o Fanboy Rabugento
enquanto a van derrapava até parar.
Uma porta lateral do armazém foi aberta, quase
atingindo o nariz de Ariel e a separando de Marilou e
Chrissy. Antes que Ariel pudesse protestar, uma jovem de
cabelo preto e roxo saiu apressada. Ela bloqueou o
caminho enquanto quatro pessoas pulavam do SUV como
se o interior estivesse pegando fogo.
— Foi por pouco, Reyes — disse a garota de cabelo
preto e roxo.
— Pela primeira vez, concordo com você, Vanessa. — O
cara do quarteto sorriu de lado enquanto abria o porta-
malas.
Reyes.
Eric Reyes.
Ariel o reconheceu imediatamente. O vocalista da
Desafortunados começou a descarregar os instrumentos,
cada membro da banda repassando-os de um para o
outro e para dentro do local. Ariel fez careta ao perceber
como eles deviam estar atrasados para descarregar o
equipamento. Uma vez, bem no início, antes de as Sete
Sereias se tornarem uma máquina bem azeitada, Sophia
tinha saído com o assistente para explorar a cidade e
aparecido minutos antes de subirem ao palco. Teo del
Mar demitiu o assistente na hora e fez Sophia ficar de
fora do show. Ninguém nunca mais chegou atrasado
depois disso.
Agora, Ariel sentia a apreensão conforme a banda
retirava as últimas peças da bateria e batia a porta do
porta-malas. Uma garota gótica pulou no banco do
motorista e consertou a péssima manobra de
estacionamento, movendo o veículo para a frente de um
monte de saco de lixos.
Enquanto isso, Eric colocou o case de seu violão no
chão e piscou como se tivesse se assustado. Ariel sentiu
um frio na barriga quando ele virou na sua direção, uma
sensação seguida por uma pontada de decepção quando
se deu conta de que ele não estava olhando para ela,
mas observando a fila de pessoas esperando para entrar
no Aurora’s Grocery. Ariel reconheceu o brilho nos olhos
escuros. A compreensão de que todas aquelas pessoas
estavam ali para ouvi-lo cantar.
Eric passou os dedos pelos fartos cabelos pretos. A luz
suave da rua bronzeava sua pele, destacava as linhas
definidas de seu maxilar, o bíceps musculoso ao pegar
uma caixa que parecia ser de merchandising. Ele
entregou a caixa para a linha de montagem. Apesar da
ansiedade daquela corrida maluca, seu sorriso era
contagiante. Uma sensação terna e reconfortante se
espalhou de seus pés até os cantos de seus lábios, que
se abriram em um sorriso que correspondia ao dele.
Seu devaneio foi interrompido por um cutucão forte em
seu ombro.
— Hm, oi? — disse o Fanboy Rabugento atrás dela,
impaciente. — Suas amigas estão te chamando.
Ariel piscou e percebeu que o caminho estava livre, e
Marilou e Chrissy acenavam para ela se apressar e fechar
o vão na fila.
— Desculpe — murmurou Ariel, correndo para alcançá-
las.
Embora fosse ver Eric lá dentro, não conseguiu impedir
seu corpo traidor de dar mais uma olhada por cima do
ombro. Ele estava ajudando sua colega de banda a
arrumar a van, enquanto a mulher que ele chamou de
Vanessa gritava para eles se apressarem.
Ariel notou outro movimento. Um homem com tufos de
cabelo verde aparecendo por baixo do capuz de um
moletom parou para acender um cigarro. Ele olhou para
cima e para baixo na calçada, observando todos na rua
movimentada. Esperando alguém? Olhando o tumulto?
Então se abaixou como se fosse amarrar o sapato, mas,
em vez disso, pegou o case do violão.
Por um breve momento, Ariel se perguntou se ele era
um funcionário do local. Um técnico de guitarra
preparando o instrumento. Mas, quando o homem
continuou andando na direção oposta, ela entendeu o
que realmente estava acontecendo.
— Pare! — ela gritou, agitando os braços no ar. Ela
apontou, mas a rua estava muito lotada, muito
barulhenta por causa agitação dentro do local. Apenas o
ladrão de guitarra a ouviu. Ele olhou ao redor da quadra,
avaliando a melhor rota de fuga.
Ignorando cada grama de bom senso e
autopreservação, Ariel foi possuída. Disparando.
Correndo. Diminuindo a largura da calçada, ela derrubou
o ladrão quando ele começou a correr. O ímpeto da
colisão fez os dois caírem na montanha de sacos de lixo
na esquina. A adrenalina fez seu coração bater forte nos
ouvidos enquanto ela tentava ficar em pé sobre o lixo
que estalava e escorregava sob seus pés.
— Sai de cima de mim, sua lunática! — gritou o ladrão.
Francamente, a audácia. Ariel não entendeu que
estava tentando se levantar usando o torso dele como
apoio até que ele conseguiu empurrá-la e ela caiu para
trás, batendo o cóccix com força.
Enquanto tentava recuperar o fôlego e se erguia
apoiada nos cotovelos, Ariel percebeu que havia alguém
ajoelhado ao seu lado. O tumulto permitiu que só
distinguisse fragmentos borrados. Camisa branca. Cabelo
preto. Olhos castanhos, surpresos e focados nela. Eric
Reyes.
— Você está machucada? — perguntou ele, ajustando
com gentileza os óculos levemente tortos sobre o nariz
dela. — Quantos dedos estou mostrando?
— Eu não achava que as pessoas realmente
perguntavam isso. — Ela riu baixo.
Eric deu um sorriso largo. Ele tinha o tipo de sorriso
que era, ao mesmo tempo, amigável e travesso.
— É um método testado e comprovado. Agora, vamos
lá… — Ele mexeu os dedos, estreitando os olhos para ler
seu colar. — Melody.
Outro frio na barriga quando ele a chamou assim. Era
seu nome, mas nem mesmo sua família a chamava
dessa forma. Ariel limpou pedaços de cascalho e uma
bituca de cigarro amassada que estavam grudados em
suas palmas. Apesar do lodo da calçada borrando uma
das lentes de seus óculos e uma pequena rachadura na
outra, ela o enxergava perfeitamente.
— Três — Ariel balançou a cabeça. — Mas seu violão...
— Está a salvo. A segurança está cuidando dele — ele
a tranquilizou, descansando uma mão reconfortante em
seu ombro. — Caramba, você foi incrível! E incrivelmente
imprudente. Mas principalmente incrível.
Ela tirou os óculos e os limpou com a bainha da
camiseta. Uma sensação calorosa borbulhava em seu
peito. Incrível e incrivelmente imprudente. Já tinham lhe
dito que era incrível mais vezes do que ela podia contar.
Mas “incrivelmente imprudente” era algo novo. E, sim,
definitivamente não deveria ter se colocado em perigo
daquela maneira nem se exposto de forma tão
descuidada a um possível vídeo viral, mas, pela primeira
vez em muito tempo, ela não pensou. Apenas fez o que
parecia certo.
— Tem certeza de que está bem? — disse Eric a
ajudando a ficar de pé, sua pegada tão forte quanto a de
um salva-vidas.
— Estou bem, eu juro. — Ela tinha passado por coisas
piores durante os ensaios brutais das Sete Sereias. —
Meu orgulho e minha nádega esquerda estão um pouco
doloridos, mas vou sobreviver.
Ele pressionou os lábios como se tentasse não rir.
— Reyes! Vamos! — gritou alguém atrás dele.
A atenção dele foi atraída para a porta lateral, onde
Vanessa batia em seu smartwatch. Eles trocaram
palavras rápidas e alguns palavrões em espanhol, até
que ela jogou as mãos para o alto, frustrada, e voltou
para dentro.
— Desculpe — disse Eric para Ariel enquanto a soltava,
hesitante entre deixá-la ali e ir fazer seu show, que já
estava em cima da hora. — Estamos...
— Atrasados. Eu sei.
De repente, Ariel se lembrou da multidão curiosa de
fãs. O malogrado ladrão que se debatia e a xingava
enquanto os seguranças o arrastavam para longe.
Flashes de câmeras cegando Ariel na escuridão. Se
alguém a reconhecesse... se seu pai descobrisse...
Felizmente, estava o mais longe possível da glamorosa
Ariel del Mar.
Marilou e Chrissy passaram pelo guarda severo que
afastava todos de volta à fila e foram para o lado dela.
Ambas olharam para Eric com uma alegria indisfarçável.
— Talvez isso seja um sinal de que eu deveria ter ficado
em casa — disse a elas.
— Esta definitivamente não é a lição aqui — disse
Marilou, envolvendo a irmã mais nova em um abraço
esmagador.
— Exatamente — disse Eric para Ariel. — Você me
salvou. Eu nunca toquei sem aquele violão. Por favor,
deixe-me encontrar algum jeito de te agradecer.
Ariel pensou no que a esperava no dia seguinte. O
acordo que fez com o pai. Ela tinha vindo até aqui, não
tinha? Não podia voltar atrás agora. Pegou a mão que
Eric oferecia. O polegar dele deslizou suavemente sobre
os nós de seus dedos num movimento lento que ela
sentiu até os dedos dos pés. De jeito nenhum ia voltar
para casa.
— Bem — disse Ariel, maliciosa —, nós perdemos nosso
lugar na fila...
— Para a sua sorte, eu conheço alguém — disse ele,
piscando.
— Ah, todas nós, bonitão — Marilou acrescentou. —
Somos um pacote completo.
Eric deu um sorriso estonteante e as conduziu para os
bastidores.
CAPÍTULO QUATRO

ERIC
24 de junho
Dumbo, Nova York

O corpo de Eric vibrava com a adrenalina. Ele nem


percebeu que ainda segurava a mão de Melody até
serem separados pela confusão nos bastidores. Ele
conduziu as três jovens pelos corredores movimentados,
subindo dois lances de escadas e passando por uma
porta lateral que dava para a área vip do mezanino.
Melody havia literalmente derrubado um idiota que
tentou roubar Pedro, o violão de Eric. Ela não tinha ideia
do que aquele violão significava para ele. O mínimo que
podia fazer era levá-las para a sala vip, onde poderiam ter
um bartender particular e outras regalias.
— Eu sempre quis vir aqui. — Melody sorriu
nervosamente, sentada no braço de uma poltrona de
couro desgastada.
Eric achou muito fofo o jeito como ela observava a
madeira arranhada da varanda, o alvo de dardos antigo,
a tinta suja da parede marcada por cem bandas que
haviam grafitado seus nomes, a confusão de cabos e
luzes de palco penduradas nas vigas.
— Um monte de lendas do rock foram descobertas aqui
— disse ele.
— Eu sei! — Ela começou a contar nos dedos. — Las
Rosas, The Waysiders, Saint Valentine...
— Cof, cof. — Uma das amigas de Melody limpou a
garganta.
Eric e Melody se afastaram depressa, e ela
rapidamente apresentou Mari, sua irmã de cabelo rosa, e
a amiga Chrissy.
Normalmente, Eric era um anfitrião melhor, mas,
depois do dia que teve, estava feito de açúcar e
adrenalina. Disse a si mesmo que esse era o motivo de
só ter olhos para Melody.
— Aqui é muito maneiro — disse Mari, ficando à
vontade em uma poltrona e colocando seus pés calçados
com botas de caubói na beirada de uma mesa.
Chrissy balançava a cabeça ao som da banda atual,
que ainda terminava sua apresentação.
— Você toca aqui com frequência?
Eric teve vontade de rir, mas percebeu que era uma
pergunta séria.
— Quisera eu! Não, esta é a nossa primeira vez no
palco. Mas eu fui o técnico de guitarra da casa por alguns
anos, então este lugar é como uma segunda casa.
Fiquem bem aqui e eu vou pegar algumas pulseiras vip
para vocês.
Ele as deixou no camarote e foi em busca do gerente
do Aurora, Willie Molina, que o abraçou e o xingou ao
mesmo tempo.
— Essa passou muito perto. Quer me dar um ataque
cardíaco, moleque? — Willie perguntou. Seu forte
sotaque misturava o sotaque porto-riquenho e o nova-
iorquino e era mais pronunciado quando estava
estressado. O que era praticamente sempre.
— Você não faz ideia — disse Eric, explicando sobre a
ponte, o ladrão, a garota. Willie o olhou com
cumplicidade, observando Melody de relance. — Não é
nada disso que você está pensando.
— Claro. Nunca é. — Willie riu e tirou três pulseiras VIP
verde--neon. — Vai pensando que é ligeiro. Eu já fui
jovem, tá?
— Estou apenas agradecendo. — Eric levantou as mãos
em um gesto de inocência.
— Por salvar o violão do seu abuelito? — Willie
assobiou. — Case-se com ela.
— Esse é seu conselho para tudo.
— E olhe só para mim. Sou um homem feliz. — Willie
apontou para o peito, seu anel de ouro cintilando nas
luzes pulsantes do camarote. — Só estou dizendo que
você escreve todas essas músicas de amor para uma
garota dos sonhos e ignora a cidade cheia de garotas
reais.
— Só me dê sua bênção e eu ficarei feliz, ok? — disse
Eric, pegando as pulseiras.
A bênção de Willie, ou sua bendición (como ele preferia
chamar), era incomum. Era uma superstição da cena
musical de Nova York que Eric testemunhara nos anos
em que trabalhara no Aurora. Willie segurou o rosto de
Eric com as mãos calejadas. Em seguida, deu-lhe um
tapa. Foi um tapa suave, amoroso, leve. Entre os músicos
que passavam por esses corredores, era uma bênção —
literalmente, a mão da sorte. Os artistas que a
receberam conseguiram contratos de seis dígitos, vídeos
virais, show de aberturas para os maiores músicos. Eric
esperou anos, e agora era o seu momento.
— Obrigado, Willie. Por tudo.
— Tudo bem, tudo bem — disse o grandalhão com
lágrimas nos olhos. — Vai lá e arrebenta.
Eric voltou até Melody. Claro que o nome dela era
Melody. Sua mente já estava tentando organizar
progressões de acordes e um padrão de palhetadas, tudo
por causa do doce contralto da voz dela. Ele também
precisava voltar aos bastidores, até o camarim, antes
que sua banda e sua empresária viessem procurá-lo. E,
ainda assim, não conseguia se afastar. Eric disse para si
mesmo que não era por outro motivo além de terminar
de retribuir o ato heroico dela. Que Melody estava
vasculhando a multidão para observar as pessoas, não
porque tentava encontrá-lo. Mas, à medida que se
aproximava, ela se animou visivelmente, e o modo como
sorria quase o fez tropeçar nos próprios pés idiotas.
Ele distribuiu as pulseiras verde-neon. Mari e Chrissy
pegaram as suas em um segundo. Quando Melody pegou
a dela, as pontas dos dedos de ambos roçaram. Uma
sensação selvagem e desconhecida o atingiu novamente,
bem na boca do estômago. Sentira isso antes quando ela
se levantou na rua e concentrou-se nele. Os longos cílios
emoldurando grandes olhos castanhos. Aqueles lábios
rosados e carnudos que ela persistia em morder, como se
estivesse nervosa. Eric não estava acostumado a essa
sensação. Como se estivesse lutando para recuperar o
fôlego.
— Tenho cerca de dois minutos para ir para os
bastidores ou sou um homem morto — disse ele, embora
permanecesse plantado a centímetros dela. Sua boca o
traiu: — O que você vai fazer depois do show?
Eric sabia o que deveria fazer: dar o seu melhor no
palco, tomar uma cerveja pós-show e dormir oito horas
completas. Sairia em turnê logo de manhã. Precisava se
concentrar no prêmio — o sucesso da banda. Seu futuro.
— Eu tenho que…
— Nada! — interromperam as amigas de Melody assim
que ela começou a falar.
— Posso te pagar uma bebida? Ou uma pizza. Quem
sabe até os dois. — Quem sabe até os dois? Quem ele
pensava que era? Atrasado. Era o que ele estava. Olhou
para trás e viu o rabo de cavalo roxo e preto de Vanessa
chicoteando enquanto ela o procurava na área VIP. Ele
deveria agradecer por sua manager ter enviado a filha e
não ter vindo buscá-lo em pessoa, porque Odelia Garcia
não era brincadeira. Quando ela o avistou, Vanessa
mostrou as unhas longas e pretas como uma ameaça. Ele
começou a andar para trás, braços abertos, esperando a
resposta de Melody.
— Uma bebida ou uma pizza, quem sabe os dois, me
parece ótimo — disse Melody rapidamente.
— Encontre comigo lá fora depois do show. — Eric abriu
um sorriso enorme.
Ele acenou mais uma vez, depois disso Vanessa o
puxou pela gola da camisa e os dois correram escada
abaixo.
— Você é inacreditável — ela disparou.
— Já me disseram isso. — Ele riu, o que foi um erro.
Ela parou pouco antes das portas dos bastidores,
pressionando uma das unhas compridas no peitoral
esquerdo dele. Ela tinha o mesmo olhar mortal da mãe.
— Fala sério! Você trabalhou tão duro para estar aqui
hoje. Dá pra voltar pro jogo?
— Eu não saí do jogo, Van.
— Se estiver querendo relaxar antes de sairmos em
turnê, tem centenas de pessoas que adorariam dormir
com você. Mas não vai deixar sua banda esperando —
disse ela, franzindo os lábios.
Eu estava controlando o tempo, ele quis dizer, mas não
disse. Vanessa não reagia a desculpas. Então, desviou a
atenção flertando.
— Por quê, está oferecendo?
— Nojento! — Ela fez uma careta.
— Ai — disse ele, batendo a mão sobre o coração,
prendendo a mão dela lá.
— Você é tão bonito que me dá vontade de vomitar.
Além disso, nós dois sabemos que você não é o meu tipo.
Ele sabia, é claro. Anos atrás, quando a mãe dela
tentou juntar os dois em um jantar, foi a primeira coisa
que Vanessa disse antes mesmo da chegada do
aperitivo. Eles eram amigos desde então. Nem conseguia
ficar bravo com a sinceridade dela, porque Vanessa
estava certa. Havia pessoas dependendo dele e
esperando-o. Eric se deixara levar pelo momento.
— Estou aqui — ele a tranquilizou. — Estou bem.
Satisfeita, ela retraiu as garras e abriu as portas dos
bastidores.
— Nós organizamos o equipamento e minha mãe está
se certificando de que os técnicos tenham a lista de
músicas e o cronograma das luzes. Vamos só colocar o
microfone. Vocês entram em quinze minutos.
Nos bastidores, o resto da banda estava subindo pelas
paredes. Elas queriam saber tudo sobre o quase roubo.
Não havia segredos entre eles, mas, por alguma razão
que ele ainda não entendia, queria manter os detalhes
de Melody para si um pouco mais. Especialmente quando
o nervosismo pré-show inundou seu organismo.
Depois de microfonado, Eric foi até as laterais do palco
para assistir à última banda promissora terminar sua
música. Ele assistira a dezenas de Batalhas de Bandas.
Antes de conhecer suas garotas, fracassara
espetacularmente em algumas também. Sabia como
aqueles músicos deviam estar se sentindo, como se todo
o seu mundo dependesse do rugido da multidão.
Mesmo com as luzes brancas ofuscantes nos olhos,
observou a área vip, esperando pegar um vislumbre de
sua salvadora. Melody. Estava tão ocupado olhando para
lá que perdeu o apresentador anunciando a banda
vencedora. Eles vieram correndo dos bastidores,
abraçando-se. Eric aplaudiu, mas também observou a
banda perdedora sair do palco derrotada. Ele segurou o
ombro do baterista.
— Ei, você arrasou lá. Essa não foi sua única chance —
disse Eric.
O garoto só deu um sorriso dolorido e continuou
andando.
— Você é tão sentimental — disse Grimsby em seu
ouvido.
— Debaixo dessa aparência gótica, você também é. —
Ele deu um beijo na bochecha dela, o que a fez revirar os
olhos.
— Uau. — Max penteou os cabelos sobre os olhos com
os dedos. — Acho que vou vomitar.
— Não há vômito no rock and roll — disse Carly,
estalando os dedos.
— Isso não é verdade. — Os olhos de Grimsby se
estreitaram.
— Ok, juntem-se — disse Eric, dando os braços para
suas companheiras de banda em um círculo apertado,
enquanto as luzes se apagavam. — Hoje foi a semana
mais longa de nossas vidas. Mas conseguimos. Estamos
aqui. Estamos juntos. Sabemos quem somos. Então,
vamos mostrar para eles.
Elas empilharam as mãos sobre as dele e soltaram um
grito, só entre eles.
Eric pegou seu violão com o técnico. Alisando a palma
ao longo das curvas do corpo dele, prendeu a alça ao
redor do pescoço. Assumiu seu lugar no escuro. Max deu
um toque rápido em um de seus pratos, fazendo-o
ressoar. A multidão se animou e assobiou. Ele se
perguntou — torceu — para que um daqueles gritos fosse
de Melody.
Um holofote o iluminou lentamente. Eric sorriu para a
multidão, ansioso, animado, abençoado. Inclinou-se para
perto do microfone e esperou por uma pausa nos
aplausos.
— Uma salva de palmas para todas as bandas que
arrasaram esta noite, especialmente os Plutos, pela
grande vitória. — Ele olhou para o mezanino novamente
e seu coração pulou. — O Aurora’s Grocery é muito
especial para mim. Quando eu tinha dezenove anos, era
falido e faminto, este lugar me deu meu primeiro
emprego, limpando os banheiros. As coisas que eu vi… —
Ele deu um sorriso, porque isso sempre arrancava uma
risada. Então iniciou o riff de abertura. — Quando mostrei
a eles o que eu podia fazer — continuou —, subi na
hierarquia. Dez anos depois, estou neste palco pela
primeira vez. Engraçado como a vida funciona. Num
minuto você está reabastecendo o papel higiênico e,
então, tudo muda. Amanhã começamos nossa primeira
turnê nacional e estamos voltando ao ponto de partida,
bem aqui. Então, se você gostar do que ouvir, temos
mais. Chegue perto! Não seja tímido.
Ele sentiu a multidão se movendo e se agitando,
aproximando--se do palco. Olhou para cima novamente,
as luzes abrindo espaço suficiente para que pudesse vê-
la. Melody inclinada sobre a sacada, sorrindo para ele.
Ali, e então desapareceu nas sombras.
— Eu sou Eric Reyes. Somos a Desafortunados e vamos
tocar o novo single do nosso álbum homônimo. Com
vocês, “Love Like Lightning”.
Max entrou com a bateria, o ritmo rápido combinando
com a maneira como o coração de Eric acelerou até a
garganta. O baixo de Grimsby atingiu as notas perfeitas,
e então Carly assumiu o destaque com seu domínio da
guitarra. Ele fechou os olhos e cantou, mas, mesmo
assim, continuou a vê-la, calorosos olhos castanhos e
lábios rosados, e ele sabia, sabia que, tão impossível
quanto certeiro, tinha escrito cada palavra de suas
músicas antes de conhecê-la, mas agora cantava para
ela.
A Desafortunados não parou. Partindo direto para
“Sunset Hearts”, Eric fez o que fazia de melhor. Ele se
apresentou. Quando estava no palco, tudo o que tinha
dado errado desaparecia. Só existiam a música, suas
amigas dando tudo de si e os corpos se movendo ao
ritmo que ele ditava. Seu violão era uma extensão de si
mesmo, como se tivesse sido esculpido da mesma
madeira, pedaços dele esticados e apertados para criar,
para entoar seu coração mais íntimo. Deslizando
naturalmente para os sons melancólicos de “Montana
Snowfalls”, ele observou a multidão ondular ao som do
baixo de Grimsby, dos acordes de Carly, do bumbo
constante da bateria de Max. Se havia um sentimento
melhor do que este, Eric ainda não o havia encontrado.
Quando terminou, a multidão pediu bis. Ele se virou
para a banda, e cada uma delas assentiu
entusiasticamente. Eles nunca tinham recebido esse tipo
de rugido antes.
— Acho que hoje é uma boa noite para primeiras vezes
— disse ele, ao microfone. — Esta é para a garota que
salvou minha vida hoje.
Eric mordeu o lábio inferior e olhou para cima. As luzes
eram muito brilhantes, obscurecendo tudo. Ele esperava
que ela ainda estivesse lá. Que estivesse olhando para
ele e sorrindo de volta.
Eles repetiram a música de abertura, indo direto para
“Love Like Lightning” mais uma vez.
À medida que as luzes se apagavam, eles foram para
os bastidores e para o camarim. Se a energia pré-show
era frenética, as vibrações pós-show eram cinéticas.
Odelia, que não era fã de demonstrações públicas de
emoção, abraçou-o antes de ir buscar o cachê de atração
principal. Willie e toda a equipe que o conhecia há anos
pararam para uma despedida. Cervejas acabaram
encontrando o caminho para as mãos de cada um deles.
— Acho que foi o nosso melhor show até hoje — Max
anunciou para a sala. Ela deu um gole em sua bebida e
Eric pegou a garrafa da mão dela. Ela ficou tão confusa
que seguiu a espuma que escorria até estar fora de seu
alcance. — Opa, opa, opa!
— Eu preciso de um favor — disse ele, fazendo uma
expressão suplicante, ridícula e de pura adoração que o
livrou de cada multa por excesso de velocidade, cada
repreensão de sua mãe, cada nota e encontro ruim. —
Por favor. Mi amor. Mi vida.
— Não venha com essa coisa de “pópi chulo” pra cima
de mim, Eric Reyes — Max advertiu.
— Você sabe que é papi chulo — Eric disse, estreitando
os olhos. Embora não se importasse em ser lembrado de
que era atraente, ele se arrependia de ter tentado
ensinar um espanhol rudimentar a suas colegas de
banda.
— O que você quer? — Max perguntou, impaciente.
— Preciso que você dirija esta noite. Eu meio que tenho
um encontro — disse, dando um gole em sua cerveja
roubada.
— Você realmente vai nos abandonar por um encontro?
— Carly perguntou.
— Na verdade, estou pedindo para que vocês me
abandonem — esclareceu Eric.
— Não dá pra esperar pra afogar o ganso na estrada,
Eric Reyes? — Grimsby resmungou.
Ele passou os dedos pelo cabelo. Precisava de
desodorante. E chiclete.
— Não é isso. Eu não sei explicar. Eu… juro pelo meu
carro.
— Seu carro são quatro rodas mantidas juntas por fita
adesiva e pela misericórdia do menino Jesus dos latinos
— disse Max, apontando a baqueta da bateria para ele.
— Então eu juro pelo Pedro. — Eric soltou um suspiro
exasperado.
Pegou seu violão e o segurou como se fosse um antigo
cavaleiro apresentando sua espada. As garotas sabiam
que era sério quando ele jurava pelo Pedro. Seu avô
havia feito o violão com madeira de jacarandá tropical.
Foi o último violão que ele fez, e fez para Eric.
— Uau — disse Carly, esfregando o queixo
pensativamente.
Max gemeu, mas estendeu a palma aberta para as
chaves. Ela era a única além de Eric com uma carteira de
motorista válida.
— Tudo bem. Mas só porque é seu aniversário.
— E — acrescentou Grimsby — acho bom você não me
aparecer com um filho secreto daqui a nove meses pra
gente criar.
— Eu juro, vocês três juntas têm mentes mais sujas do
que toda a minha família, e olha que...
— Somos colombianos — as três terminaram por ele.
— Preciso de novos amigos — admitiu, tirando a
camisa para trocá-la por uma branca limpa, embora
amassada, que mantinha no case de seu violão.
Seu telefone se iluminou com uma ligação do pai
ausente. Sem querer estragar o que restava de seu
aniversário, Eric deixou a chamada cair na caixa postal.
Pegou sua jaqueta de couro marrom e se despediu de
todas com um beijo. Grimsby, como sempre, fez uma
careta e esfregou a bochecha.
— Boa sorte! — elas cantarolaram, muito sugestivas.
— Com certeza preciso de novos amigos — disse,
balançando a cabeça, mas soltando uma risada.
Ao sair para a noite fresca do Brooklyn, ele verificou a
carteira, o celular, a chave de casa. Quando verificou
outra vez, Eric Reyes se deu conta de que estava
nervoso. Quando estava prestes a começar um show,
pisando no palco escuro em uma sala cheia de
desconhecidos, ele não ficava exatamente nervoso. Era
um frio na barriga antes do show, aquele lampejo de
excitação lhe dizendo que estava prestes a se conectar
com uma plateia. Isso era diferente. Era como caminhar
por uma prancha em direção a um mar desconhecido em
busca de uma sensação que ele só experimentava ao
fazer música.
Eric tinha duas regras, e a primeira era que não
chegaria a lugar algum sem paciência. A segunda era
que a música era tudo. Sua vida, a razão pela qual não
falava com o pai há dez anos. Estava em seu sangue,
entranhada profundamente em seus ossos, costurada em
seus nervos. Era seu futuro.
Ele havia abolido relacionamentos reais e todas as
tentativas de envolvimentos românticos no último ano
para se concentrar no novo álbum da banda e na
primeira grande turnê. Os resultados haviam gerado
algumas das melhores músicas que ele já havia escrito.
Além disso, Grimsby gostava de dizer que reputações são
conquistadas, e, ao longo dos anos, Eric havia
conquistado a reputação de paquerador. Alguém que
deixava as mulheres o levarem para casa por uma noite,
mas não para um relacionamento sério. Um caso de uma
noite, não um para sempre.
Mas não queria que fosse assim com Melody. Mesmo
que ela sentisse o mesmo, ele não podia começar algo
com ela e depois desaparecer. Sairia do estado dali a
doze horas, pelo amor de David Bowie!
Então, o que estava fazendo?
Quando a viu, esperando por ele na esquina da quadra,
Eric soube. Era simples. Puro. Eletrizante. Era tudo. Ele ia
encontrar uma garota.

TUTTLE, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Episódio 1365:
As Sete Sereias: do começo humilde à realeza da música
(Parte I)

Transcrição:
Aqui está tudo o que você precisa saber sobre
Teodoro del Mar. Ai, eu simplesmente adoro dizer o
nome inteiro dele. Não é de agora que Teo, ou
“Papai” del Mar, como os Sete Sortudos o chamam,
conhece o sucesso. Antes de criar as Sete Sereias, o
magnata da música esteve nos holofotes com seu
duo de glam pop dos anos 1980, Luna Lunita, com
sua falecida esposa, Maia del Mar.

Como Luna Lunita, o duo de marido e mulher fez


sucesso na América Latina e na Europa, mas nunca
cruzou totalmente para os Estados Unidos. Eu
consegui desenterrar alguns vinis usados com
colecionadores ridiculamente obscuros na Suécia.

Embora Luna Lunita tenha tocado por apenas dois


anos, eles conquistaram dois singles de ouro e um de
platina para “Amor de Mi Vida” e “Solo Tu Amor”,
com “Luna Mia” sendo o maior sucesso. As três
renderam a Teo del Mar Grammys consecutivos de
Melhor Álbum de Pop Latino. Mas, uma vez que o
casal engravidou da rebelde Sophia, Luna Lunita
pendurou suas jaquetas de couro com paetês e focou
na família. Eles ficaram ocupados, gente.

E ah, minhas sereias, estou aqui para dizer o quanto


Luna Lunita era bom. Sinceramente? O primeiro
álbum deles era absolutamente incrível. Minha mãe
me pegou ouvindo e mesmo ela disse que se lembra
das letras até hoje. Se você é membro do meu chat
privado, vamos transmitir um pouco do Luna Lunita
esta noite. #dj.

Agora, as grandes notícias. Estou ansioso pelo


grande anúncio amanhã. Se você me vir na multidão
da Times Square, estarei usando minha jaqueta
bomber de cetim customizada das Sete Sereias.
Agora, o SimonSays69 acha que teremos um filme
das Sete Sereias. Eu morreria. Literalmente morreria.
S7SuperFan3452 está torcendo para que as notícias
sobre o término tenham sido uma farsa. Ah, lamento
muito, querida. Todos nós lamentamos.
Pessoalmente, estou torcendo apenas pelo melhor
para nossas lindas, lindas garotas.

Vejo vocês na Times Square amanhã!

Inscreva-se, curta, siga, diga que me ama ♥


CAPÍTULO CINCO

ARIEL
24 de junho
Dumbo, Nova York

— Acredito que prometi pizza.


Quando Ariel del Mar reconheceu a voz, virou-se tão
rapidamente que quase trombou com ele. Sorte que era
ágil. Já havia treinado futebol americano o bastante por
uma noite.
— E eu acredito que era uma bebida ou quem sabe até
os dois.
Um pouco sem fôlego, Eric penteou os cabelos escuros
para trás. Ele havia trocado de camisa e, quando a brisa
mudou, Ariel pegou o agradável aroma de uma colônia
de bergamota e o cheiro doce de suor. Ela se lembrou de
como ele segurava seu violão. Como, no final de uma
transição vibrante, ele o levantava e apoiava a base
contra sua pélvis. Nunca, em toda a sua vida, ela quis
tanto ser um violão. Aquele violão, especificamente, se
isso significasse ser segurada por ele. Uma sensação de
calor se espalhou por seu torso, subiu pelo pescoço e
chegou à ponta de suas orelhas. Seria um ataque
cardíaco? Ela era jovem demais para ter ondas de calor
pelo corpo inteiro, não?
— Melody — disse ele, oferecendo-lhe o braço.
Sua atração inicial por Eric Reyes havia quadruplicado
em intensidade após vê-lo se apresentar e agora se
aprofundava com esse pequeno gesto gentil. Enquanto
entrelaçavam os braços, Ariel se percebeu como uma
garota dando um passeio com um cara que era a
combinação perfeita de bonito e meigo. Uma garota
normal indo tomar um drinque e comer uma pizza. Uma
garota, cercada por pessoas, a quem ninguém dava
atenção especial. Era glorioso.
— O que achou do show? — Eric perguntou, depois de
andarem um quarteirão em silêncio. — Por favor, minta
para mim.
— Nesse caso, foi terrível. Sério, o pior show a que já
fui.
Ela inclinou a cabeça para trás para vê-lo sorrir, os
olhos se enrugando nos cantos.
— Essa é a coisa mais gentil que alguém já me disse.
— E digo cada palavra com sinceridade.
Eric bateu a mão sobre o coração e Ariel sentiu um
leve tremor passar por ele, como se estivesse liberando
todo o nervosismo e o estresse acumulado que vêm com
uma apresentação.
— Bem, é um elogio para alguém que supostamente
está condenado.
— O que você quer dizer?
— Ah, é só que minha banda inteira acredita que
estamos condenados... — Ele fez uma pausa para pensar.
— ... ou amaldiçoados. Talvez ambos. Vou te contar sobre
isso, mas primeiro preciso de sustância.
Cerca de quinze minutos depois, eles estavam em uma
pizzaria lotada, a Laucella. O primeiro instinto de Ariel foi
esconder o rosto com a palma da mão, mas, mesmo que
tenha percebido as cabeças se virando na direção de
Eric, ela passou completamente despercebida. Ariel não
se sentia como uma pessoa diferente. Sim, sua persona
no palco era superextravagante. Mas era como se ela
estivesse funcionando no volume máximo, não como se
fosse outra pessoa. Pelo menos, costumava pensar
assim. Sem a peruca vermelha característica, os cílios e
as camadas de maquiagem, ela ainda era Ariel? Se
ninguém a reconhecia, como podia ser a pessoa que
sempre achou que fosse?
Ela decidiu que uma pizzaria próxima à Ponte do
Brooklyn não era o lugar para uma crise existencial.
Os dois se acomodaram em uma cabine vazia num
canto. A jukebox tocava bandas farofa dos anos 1980, e
uma garçonete com cara de cansada deixou os cardápios
e uma jarra de água da torneira, prometendo voltar para
anotar o pedido.
— O que você vai pedir? — ele perguntou.
— Metade das minhas irmãs têm obsessão por pizza
com massa de couve-flor, então definitivamente isso não.
Que tal abacaxi e presunto?
— Você é uma dessas? — disse Eric sorrindo, mas
torcendo o nariz.
— Uma dessas o quê? — Ariel sorriu para ele.
— Uma dessas criaturas que acha que abacaxi
combina com pizza — disse ele, brincalhão.
Tudo nele era brincalhão, o jeito como batia os nós dos
dedos na superfície da mesa, como os dentes brancos e
retos mordiam o lábio inferior carnudo e como olhava
para ela por trás da franja preta de seus cílios. Tudo.
— Existem dois tipos de pessoas neste mundo. Aqueles
que amam pizza havaiana e aqueles que estão errados —
disse Ariel, fingindo-se ofendida e aparentando analisar o
cardápio.
Eric riu tanto que as pessoas se viraram para olhar
para eles. A súbita atenção a fez se encolher. Coçou o
lado da cabeça, mesmo que não coçasse, apenas para
cobrir o rosto.
— Eu tive uma ideia — disse ele. — Confia em mim?
Ele formulou como uma pergunta, mas poderia
facilmente ter sido um pedido. Sophia sempre a alertara
sobre pessoas que eram rápidas demais em pedir
confiança, especialmente em uma situação romântica.
Mas isso era algo inocente.
— Nada de anchovas. — Ela levantou um dedo, depois
outro. — E nada de cogumelos.
— Você tem a minha palavra.
A garçonete voltou e ele pediu uma combinação que
parecia ser o melhor dos dois mundos: uma pizza grande
de linguiça com alecrim, abacaxi e pesto. Ela pediu uma
sidra.
— Pode trazer duas — disse ele.
— Então, Eric Reyes, conte-me sobre essa maldição. —
Ariel se debruçou ligeiramente para ele no assento de
couro sintético barulhento.
E ele contou o que parecia ser um dia saído de um
pesadelo. A cada palavra, ela percebia como as mãos
dele eram animadas, a maneira como seus cachos
grossos e negros continuavam caindo sobre a testa, não
importava quantas vezes ele os penteasse para trás.
Queria estender a mão e tocar numa mecha grossa, mas
ficou mexendo em seu colar em vez disso.
— Uau! Além de sair de Jersey City com o tanque vazio,
um congestionamento de duas horas, sua equipe caindo
feito moscas, alguém ainda tenta roubar seu violão! Acho
que você precisa de um banho de sal grosso. Minha
irmã… — Ela mordeu a língua antes de dizer Thea, que
não era um nome muito comum. Precisava ser
cuidadosa. — Minha irmã Tee provavelmente tiraria a sua
roupa e te enfiaria numa banheira de sal grosso cheia de
pétalas de flores e cristais na lua minguante.
Só de pensar nessa imagem, Ariel sentiu o rosto
esquentar. O olhar de Eric escureceu por um momento ao
se concentrar nos lábios dela e então se desviar.
— Do que está falando? — ele perguntou, divertido. —
Faço isso toda sexta-feira à noite.
— Bem, então você precisa de um novo amuleto da
sorte. Para quebrar a maldição e tudo mais.
— É mesmo?
Ela puxou a pulseira de amuletos no pulso. Uma fina
trança roxa com uma estrelinha dourada pendurada no
centro. Tirou a pulseira e pegou a mão de Eric. A pele
dele era surpreendentemente macia em todos os
lugares, exceto nas calosidades permanentes nas pontas
dos dedos. A pulseira não tinha elasticidade e mal cabia
em torno de seu pulso, mas, quando ela ajustou os
cordões, ficou perfeito.
— O que é isso? — ele perguntou.
Ariel engoliu o nó em sua garganta. Não queria mentir,
mas não podia contar toda a verdade. Porém, a verdade
parecia diferente sob certo ponto de vista. Do ponto de
vista dela, sentia como se estivesse se equilibrando à
beira de um estranho abismo.
— Minhas irmãs e eu compramos uma cada em nosso
primeiro desfile em Coney Island. Foi uma das primeiras
vezes que saímos em público depois que nossa mãe
morreu, e passamos por uma lojinha minúscula e as
compramos. Cada uma escolheu um amuleto diferente.
— Eu não poderia aceitar. Você tem certeza?
A culpa a corroía pelos detalhes que deixou de contar
na história. Sim, elas estiveram no Mermaid Parade, mas
foram a atração principal no baile no aquário. Desde
então, Ariel e suas irmãs só tiravam as pulseiras quando
estavam no palco. Talvez porque seus dias como as Sete
Sereias tivessem ficado para trás ou porque queria que
Eric se lembrasse dela depois dessa noite, mas Ariel
assentiu.
— Tenho certeza. — Ela passou o dedo pela pulseira
roxa, roçando a pele sensível do pulso interno de Eric,
sentindo a pulsação acelerada. — Está na hora de a sorte
dele passar para outra pessoa.
— Melody — disse ele, e sua voz grave quase tremeu
ao dizer seu nome.
Ela teve certeza, naquele momento, de que Eric Reyes
estava prestes a beijá-la.
Em vez disso, chegou a pizza deles. A garçonete
colocou a bandeja de metal em um suporte e serviu suas
sidras com um sorriso de desculpas.
— Essa pizza é uma obra de arte — proclamou Eric.
E era mesmo, coberta com muçarela fresca, linguiça
com alecrim, abacaxi caramelizado e uma espiral de
pesto. Ariel percebeu que não tinha jantado, e Eric
provavelmente estava com aquela fome intensa pós-
show. Ambos começaram a segunda fatia sem nem
respirar quando terminaram a primeira.
— Eu deixaria você escolher os ingredientes da minha
pizza a qualquer momento — disse ela, lambendo molho
de tomate do canto da boca.
— Promete? — Eric sorriu, limpando uma migalha do
lábio.
Ela estendeu o mindinho, e ele entrelaçou o seu com o
dela. Ficaram assim pelo tempo de uma batida do
coração, até que o telefone dele tocou. O nome Max
apareceu. Ariel quase cuspiu a bebida quando percebeu
que a garota na foto estava usando uma camiseta das
Sete Sereias de algumas turnês atrás.
Quando ele pediu licença para atender à ligação, ela
quase se sentiu aliviada. Seu passado era um campo
minado pelas Sete Sereias. Fingir que não era uma
cantora mundialmente famosa tinha sido emocionante no
início da noite, mas não havia pensado em como manter
a farsa. Gostava de conversar com Eric. Gostava muito.
As únicas outras pessoas com quem se sentia tão à
vontade eram suas irmãs e Chrissy. Queria ser tão
sincera com ele quanto ele estava sendo com ela.
Talvez, e mal podia acreditar que estava considerando
tal possibilidade, talvez devesse contar a verdade. Era
presunçoso de sua parte sequer pensar que ele se
importaria. Então, lembrou-se de como era bom ter uma
noite normal, compartilhando pizza com um cara meigo,
sexy e gentil. Conhecendo-o sem se perguntar que
boatos de tabloides ele acreditava serem verdadeiros.
Teria que ser Ariel 2.0 pela manhã. Poderia ser ela
mesma, Melody, por mais algumas horas.
— Desculpe — disse Eric. — Meu carro precisa de um
pouco de amor e carinho, e a Max é como um touro em
uma loja de porcelanas.
— Vocês todos parecem bem próximos — disse ela,
aceitando mais uma rodada de sidra da garçonete. —
Como se conheceram?
Os olhos de Eric se iluminaram enquanto ele retirava o
abacaxi de sua terceira fatia.
— Ah, cara, você provavelmente nunca acreditaria em
mim.
— Tenta a sorte, Eric Reyes.
— Desafio aceito. — Ele ficou confortável, apoiando-se
no banco acolchoado, esticando o braço ao longo do topo
como se estivessem em sua sala de estar. Se Ariel se
movesse um pouco para a esquerda, estaria
aconchegada contra ele. Mas continuou perfeitamente
quieta enquanto ele levantava um dedo em aviso. —
Prepare-se para uma série ridiculamente inacreditável de
eventos.
Ela ergueu a sobrancelha, cética, mas fez sinal para
que ele continuasse.
— Quando me mudei para cá vindo de Miami, não
conhecia ninguém na cidade. Nos dias em que não
estava trabalhando no Aurora, estava me apresentando
na rua, na Union Square. Algumas semanas depois, essa
garotinha filipina se aproxima de mim e diz: “Preciso
levar esses porquinhos-da-índia para o abrigo de animais,
mas, se você ainda estiver aqui quando eu voltar, quero
te pagar uma bebida”.
— Por que ela tinha porquinhos-da-índia?
— Ela trabalhava para uma empresa farmacêutica, mas
essa é outra história. Eu achei que não a veria de novo,
mas, uma hora depois, Max me levou para almoçar e
disse que deveríamos começar uma banda.
— Ela te encontrou — disse Ariel. — Adorei. E as
outras?
— Fomos a várias danceterias, colocamos diversos
anúncios nos classificados e distribuímos muitos
panfletos, mas encontramos a Carly na festa de
debutante de uma das primas da Max. É tipo uma
quinceañera, mas de 18 anos. Enfim, a Carly estava
tocando com aquela banda e simplesmente arrasando.
Tão boa. Muito boa. Fazia o resto da banda parecer
amador.
Ariel tentou desgrudar as coxas do assento, mas isso
só a aproximou um pouco mais dele.
— É uma pena que não tenha porquinhos-da-índia
envolvidos nesse — disse ela, rindo levemente.
— Vai achando que não.
— Você tá brincando — disse ela, estreitando os olhos
de forma cética.
— Alguém tinha embrulhado um hamster de presente,
mas ele roeu o papelão e escapou. Pegamos o bichinho.
Salvamos o dia. Somos basicamente heróis dos animais.
— E a baixista?
— Grimsby? — Eric sorriu, e Ariel percebeu que essa
devia ser sua história favorita de contar. — Na verdade,
eu estava comprando um disco em St. Mark e uma
garota vestida toda de preto, mas, assim, preto no nível
de gargantilha de spikes, munhequeira e tudo mais, está
ouvindo música, e eu só dou uma espiada para ver o que
ela está ouvindo, e é ABBA.
— Minha irmã diz que gótico é uma questão de atitude
— disse Ariel.
— Qual irmã, Mari ou Tee?
— Outra. — Ela acenou com a mão como distração. —
Eu tenho muitas irmãs. Continue.
— Então, eu simplesmente me apresentei para
Grimsby e ouvi suas teorias musicais e como ela sonhava
em escrever uma música que tivesse um equilíbrio
perfeito entre alegria e ennui.
— E ela conseguiu?
— Na verdade, eu ainda não pesquisei o que significa
ennui —disse Eric, inclinando-se para a frente, como se
estivesse contando um segredo.
— Tá, mas essa não tem porquinho-da-índia, tem?
As bochechas de Ariel doíam de tanto sorrir.
Eric pegou preguiçosamente sua sidra e deu um gole.
Ela ficou hipnotizada pelo movimento de seu pomo de
adão enquanto ele engolia, então percebeu o que seu
silêncio implicava.
— Não! Sério, como assim? — ela perguntou. — Não
tem como.
— Vai achando que não. Grimsby tinha um porquinho-
da-índia de estimação, embora só tenhamos descoberto
quando ela se mudou para a nossa casa. Adivinha onde
ela o adotou?
— Não!
— Sim... No mesmo abrigo onde a Max deixou aqueles
porquinhos-da-índia — disse Eric, batendo sua garrafa na
mesa para enfatizar.
— Vocês estavam predestinados. — Ela estendeu a
mão e deu um toque na estrela que enfeitava o pulso
dele. Gostava de ver a pulseira nele. — E essa história
contém uma quantidade improvável de porquinhos-da-
índia.
— Ótimo nome de banda. — Eric estalou os dedos.
Falando nisso, havia algo que ela estava curiosa desde
que Marilou compartilhou sua música com ela.
— Como vocês escolheram o nome Desafortunados?
— Sinto que monopolizei a conversa — disse Eric,
balançando o dedo no ar.
— Eu já te contei coisas — disse ela, defensiva, mas o
nervosismo dava um nó em sua barriga.
— Até agora, tudo o que sei é que você é incrivelmente
corajosa. — Seus lábios se curvaram em um sorriso. —
Mas um pouco tímida. E ridiculamente bonita.
Ariel tinha sido adorada de muitas maneiras e com
muito exagero, mas, quando Eric Reyes a chamou de
bonita, ela se sentiu um pouco tonta. Mas ele era ligeiro
e não fez uma pausa — seguiu em frente como se
afirmasse um fato, em vez de buscar um agradecimento,
e continuou listando o que sabia sobre ela.
— Você tem pelo menos três irmãs. — Ele puxou sua
nova pulseira da sorte. — É sentimental. — Ele
gentilmente tirou os óculos dela e os colocou na ponte do
próprio nariz. E piscou, ajustando-se ao grau da lente. —
Ligeiramente míope?
— Continue.
— E você ama música.
— Você esqueceu as minhas incríveis papilas
gustativas — disse, dando de ombros e apontando para a
bandeja de pizza vazia.
— Aprecio o mistério. Eu perguntaria se poderíamos
repetir esse encontro, mas estou saindo em turnê daqui
a... — Ele olhou para o relógio — ... dez horas.
— Nesse caso, obrigada por esta noite. Eu nunca fiz
isso antes.
— Ai, meu Deus, é a sua primeira vez comendo pizza?
— Ele fixou aquele olhar travesso nela. — Foi bom pra
você?
Ela lhe deu um empurrão brincalhão por provocá-la,
mas estava radiante por dentro e por fora.
— Quero dizer isto. Ficar fora até mais tarde
espontaneamente. Eu tenho 25 anos e há mil coisas que
as pessoas da minha idade provavelmente já fizeram e
eu não. É só que... nosso pai é muito, muito
superprotetor mesmo.
— Dois muito e um mesmo. — Algo o fez ficar sério,
seu sorriso vacilando pela primeira vez desde que se
sentaram. — Eu posso entender.
Ariel queria saber mais, mas a garçonete se aproximou
da mesa deles e colocou a conta.
— Desculpem, pombinhos. Fechamos há uns dez
minutos.
Ariel alcançou sua pequena carteira, mas Eric balançou
a cabeça.
— Esta é minha pizza de agradecimento, lembra?
— Ah, isso? Não foi nada — disse ela, esfregando o
ombro que estava um pouco dolorido pela queda.
— Melody — disse ele, olhando no fundo dos olhos
dela. — Foi tudo.
Os dois se olharam por tanto tempo que a garçonete se
abaixou entre eles lentamente. Seus cachos grisalhos
estavam se soltando do coque.
— Espero uma gorjeta generosa — sussurrou e sorriu,
apesar de sua irritação.
— Mi vida, eu não sonharia com nada menos que isso.
— Eric deu à mulher mais velha aquele seu sorriso típico,
impossível de ignorar.
A garçonete pegou o dinheiro e se afastou rindo.
— Você é escorregadio — disse Ariel.
Eric deslizou para fora da cabine e ofereceu a mão, que
ela aceitou como se tivessem dado as mãos cem vezes
antes.
— É meu nome do meio.
Quando saíram da pizzaria, a noite estava tranquila.
Tão tranquila quanto as noites na cidade conseguiam ser.
Restaurantes ao longo da rua já haviam baixado as
portas, mas retardatários continuavam conversando ou
chamavam os táxis verdes dos distritos externos. Ariel
podia ver a Ponte do Brooklyn, as luzes piscantes de
Manhattan. Ouvia o zumbido constante do tráfego.
— Onde é sua casa? — Eric perguntou. — Posso chamar
um táxi para você ou pegar o metrô contigo, se estiver
indo para a cidade.
— Na verdade, me dê só um segundo.
Os dedos de Ariel tremiam enquanto desbloqueava o
telefone. Tinha dezenas de mensagens e ainda mais
notificações. Ela as percorreu enquanto se afastava o
suficiente para estar fora do alcance da audição.
Chrissy:
como está indo?

Marilou:
Entre em contato, vadia. O pai tá em casa.

Chrissy:
Então, eu tô no seu quarto, nada de mais...

Chrissy:
Mas tive que fingir ser você e me enfiar debaixo
das cobertas porque seu pai bateu na porta, então,
quando você chegar, não surte por eu estar na sua cama.

Marilou:
Não esquece de pegar um táxi amarelo!

Chrissy:
Além disso, gostaria de conversar sobre um aumento

Ariel apertou o botão de chamada e Marilou atendeu


antes do primeiro toque.
— Melody Ariel Marín Lucero — ela sussurrou alto. —
Era para você ter ligado.
— Uau, usando o nome completo. — Ela sorriu para
Eric, que estava conversando com os caras da pizzaria
em espanhol. — Acabamos de jantar.
— Você está indo para casa com ele? — Marilou
suspirou. — Já faz, o quê, um ano desde o Trevor?
— Só estou ligando para dizer que estou viva antes de
arranjar uma desculpa para ir embora. — Ariel decidiu
ignorar o outro comentário da irmã.
— Aww, você é um boa peixinha.
— Você é a pior. Te amo, tchau. — Ariel desligou o
telefone e voltou para perto de Eric.
— Tudo bem? — perguntou ele.
— Minha irmã. Somos próximas. Algumas pessoas
acham isso estranho.
— Não é. Eu não falo com minha família há... sei lá
quanto tempo.
Ariel não conseguia imaginar não falar com as irmãs
nem por algumas horas. Sabia que famílias eram
complicadas, mas não queria pensar nisso agora. Queria
estar nesse momento, aproveitar o máximo que pudesse
antes de o sol nascer.
— Sabe mais uma coisa que nunca fiz? — Ela deu um
passo mais perto e ajeitou a gola da jaqueta de couro
marrom dele.
Eric deu uma leve sacudida com a cabeça e, sob a luz
amarela do poste, ela pôde ver as sombras ao longo de
sua garganta enquanto engolia, uma única palavra quase
sem fôlego.
— O quê?
— E se eu te mostrar?
Desta vez, ela começou a andar e não precisou
levantar a cabeça para saber que ele estava bem ao seu
lado.
CAPÍTULO SEIS

ERIC
25 de junho
Nova York, Nova York

— Como você nunca atravessou a Ponte do Brooklyn a


pé? — Eric perguntou a Melody.
— Eu também nunca estive no topo do Empire State. É
coisa de turista — disse ela, franzindo o nariz.
— Então acho que eu sou um turista — disse ele,
batendo com a palma da mão no lado esquerdo do peito.
— Estou brincando. — Melody o empurrou gentilmente,
sem força. Era só pela sensação da palma da sua mão
contra o ombro dele, como se estivessem testando os
limites. — Tem muita coisa na cidade que eu ainda não
vi. Sempre aparece algum compromisso. E então, bum,
você tem 25 anos e se sente uma estranha na própria
cidade. Eu nem sei se a ponte é segura a essa hora da
noite.
— Espero que sim, já que você, uma renomada
heroína, está aqui para me defender — ele provocou,
embora não houvesse a menor possibilidade de Eric
colocá-la em perigo propositalmente. — Nah, quando me
mudei para cá, minha mãe me ligava comentando cada
caso de assassinato que ela via nos noticiários. Eu tinha
que explicar que Jersey City e Texas não eram nem um
pouco próximos.
Melody gargalhou na noite. Quando começaram a
caminhada atravessando a passarela de pedestres,
caíram em um silêncio confortável. Eric normalmente
gostava de andar. Quando era pequeno, os jantares em
família eram bem tensos. Seu pai lendo o jornal ou
deixando a refeição esfriar enquanto atendia a uma
ligação em seu escritório. Sua mãe sofria de ansiedade e,
quando ela ficava estressada demais para comer, o filho
limpava a cozinha e cantava para ela suas músicas
favoritas. Ele preenchia o silêncio porque às vezes a
ausência de barulho era mais alta, intolerável.
Com Melody, ele simplesmente caminhava e estava
feliz em se acomodar na calma reconfortante dela. Era
como se ela estivesse apreciando cada momento, por
menor que fosse. De vez em quando, as mangas de seus
casacos se tocavam, e ele não sabia se era porque ela
estava caminhando em sua direção ou se ele estava
tentando esbarrar nela novamente.
— Meu pai é meio assim — disse Melody, depois de um
tempo. — Paranoico com coisas que não pode controlar.
Desconfiado com pessoas novas. Ele sempre dizia que
estaríamos mais seguros juntos como família, mas, ao
longo dos anos, ele foi piorando.
— Se seu pai é superprotetor — disse Eric, enfiando as
mãos nos bolsos —, quanto devo temer por minha vida?
Quero dizer, seja lá o que ele tente, vale a pena. Só
quero estar preparado.
— Você já foi perseguido por muitos pais?
Eric esfregou a cicatriz no cotovelo que havia
conseguido quando tinha dezesseis anos e pulou pela
janela da namorada depois que o pai da garota os flagrou
no quarto dela. Ele não era mais esse homem, mas as
cicatrizes de batalha eram um bom lembrete.
— Pode-se dizer que sim — ele admitiu.
A risada de Melody era um som brilhante e doce, muito
diferente do timbre rouco de contralto de sua voz ao
falar.
— Sou eu quem precisa se preocupar. Na verdade,
nunca o desobedeci. Minhas irmãs, com certeza. Até nas
pequenas coisas.
— Então você é a boazinha? — Como filho único, ele
não conseguia se identificar. Tinha que desempenhar
todos os papéis para seus pais. O bom filho. O filho bem-
sucedido. O filho orgulhoso. De alguma forma,
conseguira falhar em todos.
— Eu não sou a boazinha — ela protestou. Então,
franziu os lábios de um jeito que fez Eric querer parar,
puxá-la para perto, enfiar os dedos nos bolsos de seu
shortinho rosa, sentir a pressão de suas curvas contra si.
— Bom, talvez eu seja. É complicado.
— Eu sou o prefeito da Complicadolândia.
— Ah, vá — disse ela, toda cética. — Eu sou a
presidenta da Complicadolândia.
— Tá bom, Senhora Presidenta. Conte lá.
Podia sentir que ela estava se segurando. Eric nunca
admitiria ser convencido, mas geralmente conseguia
fazer com que as mulheres revelassem seus segredos,
sonhos e desejos. Gostava de ouvir as histórias. Cada
pessoa com quem ele se conectava o fazia se sentir
inserido na grande tapeçaria do mundo, menos sozinho.
Melody tinha barreiras ao seu redor, e tudo o que ele
queria era derrubá-las. Ver a pessoa por baixo de tudo,
porque não conseguia imaginar não conhecer Melody
após esta noite.
— Meu pai quer muito que eu continue no negócio da
família — disse ela, após uma pausa pensativa. — Passei
minha vida toda fazendo e sendo tudo o que ele queria
de nós. Horários terríveis. Vesti a camisa. E ele prometeu
que, depois de todo esse trabalho árduo, um dia eu
poderia seguir meu próprio rumo. Mas, então, ele mudou
de ideia e diz que é pelo bem da família. Por mim.
— E agora você está questionando toda a sua vida na
companhia de um músico extremamente bonito e
talentoso. — Eric foi recompensado com o sorriso dela.
— Algo assim.
Pessoas lotavam a ponte, noites terminando ou apenas
começando. Caminhos de dezenas de estranhos se
cruzando sem prestar atenção uns aos outros. Esses
eram a beleza e o defeito de Nova York. Você podia gritar
seus medos, esperanças e sonhos, e as pessoas podiam
simplesmente fingir que não te ouviram. Mas Eric a
ouviu.
— Deixe-me adivinhar — disse ele. — Ele está tentando
viver através de você.
Melody franziu a testa.
— Antes eu do que todas as minhas irmãs. Assim,
apenas uma de nós tem que lidar com isso.
— Por que tem que ser você?
Ela olhou para cima, através de seus óculos quebrados.
— Porque eu sou a boazinha, lembra?
Eles tinham chegado à metade da ponte num ritmo
tranquilo. Eric nunca quis que a ponte se estendesse
magicamente antes. Caminharia até Nova Jersey ou até o
centro da cidade, só para poder prolongar o curto tempo
que tinham juntos.
Ele parou e encarou a água escura, sentiu cheiro de
chuva no ar úmido.
— Quando saí de Medellín, fui contra a vontade dos
meus pais. Eu queria ser músico, e meu pai queria que
eu fosse um empreendedor imobiliário, como ele. Às
vezes, eu lamento ter saído de casa. Sinto falta da minha
mãe, mas por anos ela não podia falar comigo ou corria o
risco de deixar meu pai zangado. Eu me ressentia disso.
Sinto saudade da Colômbia, especialmente no inverno. A
neve é horrível.
— Você só precisa de um bom casaco — disse ela,
encostando o ombro no braço dele.
— Talvez. Mas eu tinha que me lembrar do que eu
queria. Não é uma questão de ser bom ou ruim. Trata-se
de abrir o seu próprio caminho.
— Acredite em mim — disse ela, virando, pensativa,
em direção ao rio. — Eu tentei.
— O que você quer, Melody?
Ela olhou para ele, desenrolando aquele sorriso
misterioso. Seu pulso acelerou. Ele se relembrou de
respirar enquanto esperava sua resposta.
— Vamos lá — ele encorajou. — Somos só eu e toda
Nova York. Nós não julgamos.
— Eu quero ser compositora — disse ela, finalmente,
depois de respirar fundo.
A resposta despertou o interesse dele.
— Para você mesma ou para os outros?
— Para os outros. Nunca disse isso em voz alta antes.
Nem mesmo para minhas irmãs.
— Canta para mim? — pediu ele, baixinho.
— Eu disse escrever, não cantar.
— Eu tenho um ouvido bom. — Eles se encararam,
aquele lindo bico teimoso dela prevalecendo. — Tudo
bem. Sou um homem paciente.
Quando o telefone dela apitou, Melody olhou
rapidamente para a tela antes de guardá-lo no bolso da
jaqueta jeans.
— Você está com fome? Eu estou com fome — disse
ela.
Eric se perguntou se seria possível sentir fome da
presença de alguém. Nesse caso, estava faminto por ela.
— Você gosta de empanadas?
— Sim, por favor. Vamos fazer isso. — Melody soltou
um pequeno suspiro animado que ele não deveria ter
apreciado tão profundamente.
Enquanto a guiava pelo restante da ponte, sentiu
algumas gotas de chuva. Ela começou a contar sobre
suas muitas irmãs enquanto pegavam o trem e só
terminou quando emergiram no Lower East Side. Por um
momento, ele a invejou; então pensou em Carly,
Grimsby, Max e até Vanessa. Ele se mudara para um
novo país e escolhera uma nova família que o escolheu
de volta. Ele tinha irmãs.
Quando chegaram ao restaurante, estava chovendo.
Apesar de todo seu esforço para cobri-los com sua
jaqueta, Eric e Melody estavam molhados. Três lances de
escada acima, chegaram ao Julio’s, um restaurante sul-
americano que se transformava em boate após o serviço
de jantar e depois em um bar secreto após a última
chamada. Palmeiras falsas de cera decoravam todos os
cantos, e as luzes neon roxas e amarelas lançavam um
brilho ambiente. Eles atravessaram em meio aos foliões
dançantes e embriagados, encontrando dois lugares
escondidos no canto do bar.
Melody pulou no banco giratório. Eric ocupou o assento
ao lado dela, e estava tão lotado que seus joelhos
tiveram que se entrelaçar para que pudessem se encarar.
Ao tocá-la dessa maneira, ele sentiu um puxão forte na
boca do estômago. Mesmo através das camadas de suas
roupas, ele a sentia irradiar como a luz do sol.
— Como você encontrou este lugar? — perguntou
Melody.
— Eu costumava passar muitas noites fora. — Eric
acenou para o barman. — Muitas.
— Costumava?
— Alguns anos atrás, senti que a banda estava
estagnada, então decidi me concentrar em escrever o
melhor álbum que pudesse. Isso significava nada de
boates, nada de encontros, apenas música.
— Eu te contei o que queria — disse Melody,
observando-o com olhos curiosos. — E você? Quer ser
um astro do rock?
— Essa é a ideia — admitiu ele. — Já fizemos turnês
pequenas, regionais, a maior parte em qualquer lugar
duvidoso que conseguíssemos reservar. Não consigo
explicar, mas esta parece diferente.
— Turnês nacionais geralmente são — disse ela. — Pelo
menos é o que ouvi dizer. Digo, estou supondo.
— Turnê grande. Álbum grande. Ônibus grande. Esse
vai ser o verdadeiro teste de amizade.
— Passei a maior parte da minha vida na estrada com
minha família — disse ela, mexendo em um arranhado no
balcão do bar. — Nós nos mudamos de um lugar para
outro. Na verdade, fui educada em casa durante toda a
minha vida.
— Você não faz parte de uma daquelas seitas, faz? —
Ele riu, embora ela tenha ficado momentaneamente
séria.
— É mais como uma irmandade — disse ela, com uma
leve careta.
Eric não sabia muito bem o que fazer com essa
informação, mas, diabos, por Melody, ele provavelmente
se juntaria a uma seita, sociedade secreta, o que fosse, e
entregaria todos os seiscentos dólares em sua conta
bancária.
Alguém incorporando o espírito dançante de Rita
Moreno esbarrou nele, empurrando-o para perto de
Melody. Ela agarrou sua coxa para se equilibrar e a
pressão de seu toque ali o deixou sem fôlego. Melody
não tinha ideia do que estava fazendo com ele. Como a
proximidade dela desbloqueava algo que Eric tinha
enterrado há meses... talvez anos.
— O que é o Julgamento do Bartender? — perguntou
Melody, pegando um dos cardápios e apontando para a
opção no topo.
— Ah, isso é quando o Julio olha para você e faz o seu
drinque perfeito. Ele é literalmente um mago.
— Um brujo, na verdade — veio uma nova voz.
Julio, um ex-dançarino, era um chileno magro com
unhas pintadas de preto que se vestia quase
exclusivamente como se os anos 1980 nunca tivessem
ido embora. Ele olhou para Melody, depois para Eric e
começou a jogar garrafas, gelo e coqueteleiras ao redor.
— Obrigada por me trazer aqui, Eric Reyes — sussurrou
ela, inclinando-se para o lado dele.
— De nada, Melody... Heroína do Violão. Desculpe. Você
não me disse seu sobrenome.
— Marín.
— Melody Marín — disse ele. — Que quer ser uma
compositora, mas não gosta de cantar.
— Não quer cantar — corrigiu ela. — No momento.
De repente, ele estava incrivelmente curioso para ouvir
uma das músicas dela. Para saber se estava certo, se os
registros suaves e profundos de sua voz soariam tão
bonitos como quando ela dizia o nome dele.
Julio voltou com as bebidas. Para ela, um coquetel em
um tom claro de lavanda com um garfinho dourado, uma
cereja marasquino espetada em seus dentes, e um
tequila sunrise para Eric com um flamingo cor-de-rosa de
plástico pendurado na borda.
— Um garfo? — Ela riu.
— Um tridente — corrigiu Julio, como se fosse óbvio, e
depois se moveu pelo bar para verificar outros clientes.
— Um tridente é apenas um garfo gigante — disse
Melody mordendo a cereja e apontando o pequeno
tridente dourado para ele.
— Julio tem uma bolsa gigante de brinquedos em
miniatura lá atrás. Da última vez que estive aqui, peguei
um tubarão, um duende e uma enorme berinjela de
plástico que tenho certeza que era para a despedida de
solteira que estava rolando naquela noite.
— Ao que devemos brindar? — perguntou Melody,
corando e erguendo o copo para ele.
— Ao ladrão que nos uniu. — Com o joelho preso entre
as coxas dela, Eric mal conseguia pensar direito.
Melody fez uma careta de desgosto.
— À sua turnê. Você já é um astro para mim.
As palavras o surpreenderam. Não apenas porque eles
tinham acabado de se conhecer, mas porque ela era tão
sincera, tão radiante. Quase todas as pessoas que ele
conhecia estavam desiludidas, arranhadas como um
disco pela agulha da vida. Eric brindou seu copo contra o
dela e bebeu para ocupar a boca, porque queria
desesperadamente beijá-la. Queria provar o brilho que
ela irradiava, sentir as curvas suaves de sua boca, seus
quadris. Ele bebeu um pouco rápido demais para saciar
uma sede que nunca havia sentido antes.
— Hum, isso é delicioso. Parece açúcar queimado e
abacaxi alcoólico — Melody murmurou de prazer após o
primeiro gole.
— Viu? Um brujo. — Eric sabia que tinha que acordar
cedo e ainda precisava voltar para Nova Jersey. Mas
acenou para o barman e pediu mais uma rodada, além
de uma variedade de empanadas, que devoraram
desavergonhadamente.
— Minha vez — disse Melody, entregando a Julio um
maço de notas.
— O que mais você tem nessa bolsinha pequena? —
Eric perguntou.
— Todos os apetrechos essenciais. — Ela derramou o
conteúdo no balcão do bar. — Vejamos. Curativos. Gloss.
Absorvente interno de emergência. Um chiclete. Um
passe de metrô. E agora meu confiável garfo dourado.
Sua vez.
Ele esvaziou os próprios bolsos, onde tinha sua carteira
de motorista de Nova Jersey, uma palheta de guitarra,
uma caneta da última visita ao dentista e seu cartão de
débito.
— Eu viajo com pouca bagagem.
— Estou vendo.
Melody observou curiosamente o drinque dele e Eric o
empurrou para perto dela. Ela trocou o seu pelo dele.
Ele pegou o copo dela e inalou o aroma de açúcar
queimado, lavanda e frutas. Deu um gole. O rum
combinava bem com abacaxi. Ele engoliu e soube que,
durante toda a sua turnê, pensaria nela sempre que
sentisse o cheiro de qualquer um desses aromas.
Quando Melody devolveu o coquetel, deixara uma
impressão perfeita de seu gloss rosa na borda. Quase
ansioso demais, Eric pegou o copo, gotículas de
condensação revestindo seus dedos. Ele pressionou os
lábios no contorno do gloss pegajoso dela e bebeu.
As luzes de neon acima do bar a banhavam em um
brilho roxo suave. Melody se balançava no ritmo da salsa.
A cada momento que passava, parecia se soltar um
pouco mais, desvencilhar-se do casulo que a protegia. Ela
era tão inesperada. Como diabos ele sairia dessa noite
intacto? Claro, os dois poderiam trocar mensagens. Mas
ele já tinha feito isso. Alguém sempre ficava entediado.
Alguém sempre seguia em frente. Geralmente, ele. E se
lembrou das palavras de Vanessa mais cedo. Precisava
manter a cabeça no jogo, e isso significava focar na
banda.
Centenas de letras para descrever sentimentos, e ele
não conseguia verbalizar o que sentia naquele momento.
Só podia agir. E assim, Eric Reyes fez a coisa mais
imprudente que já fizera em sua vida.
— Você deveria vir — disse ele.
— Para onde? — disse Melody, inclinando a cabeça
para o lado.
— Na turnê. Na nossa turnê. Nosso promotor de
merchandising se demitiu porque ficou noivo. Acho que a
noiva dele é do tipo extremamente ciumenta. Estou feliz
por eles, mas queria que tivessem resolvido isso antes.
— Talvez eu devesse. Tudo pode acontecer em uma
turnê. Pelo menos foi o que ouvi. — Ariel apoiou o queixo
na mão e lhe lançou um sorriso malicioso.
Com a ideia firmemente plantada em sua mente, Eric
insistiu um pouco mais no assunto.
— Basicamente, você venderia o merchandising, faria o
inventário, mas teria tempo para trabalhar em suas
próprias músicas. Ganharia alguma liberdade da sua
família, se quiser. — Você estaria comigo, ele pensou.
Poderia me conhecer de verdade. Mas não conseguiu se
forçar a dizer isso. — Você estaria nos ajudando, de
verdade. Não que precise me salvar duas vezes num dia
só.
Ela o encarou como se estivesse realmente
considerando. A tentação estava lá, na forma como ela
mordia o lábio inferior. No jeito como mantinha a mão
firmemente na coxa dele, como se para se equilibrar.
— Eric...
Ele ouviu a rejeição na voz dela e decidiu fazer um
último apelo.
— Você deveria fazer o que te faz feliz. Eu só te
conheço há algumas horas, e até eu posso ver que não é
o que seu pai quer que você faça. Às vezes, a única
maneira de encontrar o que você realmente quer é
deixar seu mundo antigo para trás.
Melody fechou os olhos contra as luzes neon pulsantes.
Ele percebeu que ela estava ouvindo a música. Uma
música antiga que o fazia lembrar de casa, de noites
úmidas, de festas de rua que duravam até o sol nascer.
Ela sorriu e depois olhou para ele. Olhou para ele de
verdade, como se pudesse vê-lo por dentro de uma
forma que nem seus melhores amigos conseguiam. O
medo sob sua coragem, a insegurança sob seu charme. A
esperança que o mantinha inteiro.
— Vamos apenas aproveitar esta noite. Por favor?
Eric sabia talvez melhor do que qualquer outra pessoa
como era difícil perseguir um sonho, partir,
especialmente quando se tinha um senso de dever. A
família de Melody parecia ainda mais complicada que a
dele. Tudo o que podia fazer era oferecer a ela uma
tábua de salvação e esperar que seus caminhos se
cruzassem outra vez.
— Claro. Mas primeiro… — Ele foi compartilhar o
anúncio de emprego com ela, mas percebeu que seu
telefone estava descarregado. Então pegou um
guardanapo coberto de flamingos pequenos da mesa.
Escreveu o endereço deles, seu telefone e o horário da
partida. — Caso você mude de ideia.
— Tudo bem — disse ela, embora parecesse mais um
adeus.
Melody dobrou o guardanapo e o enfiou em sua
bolsinha. Então entrelaçou os dedos nos dele. Ele notou
que seus dedos tinham calos que combinavam com os
que ele tinha por tocar violão.
Quando chegaram ao centro da pista de dança, a
música passou da batida eletrônica forte, mais adequada
a uma festa em Ibiza, para os assovios do acordeão e as
batidas de uma cúmbia.
Melody guiou a mão dele para sua cintura e Eric a
puxou para perto. Ele se inclinou para descansar a testa
contra a dela. Eles dançavam como duas pessoas que
conheciam os ritmos um do outro. Quando a música se
transformou em uma salsa rápida, o salão inteiro
irrompeu de gente, empurrando Eric e Melody, ainda
mais juntos. Ele a girou em seus braços, exibindo os
rodopios e as voltas que aprendera nas ruas de Medellín.
Julio serviu mais uma rodada para os dois, e Eric sabia,
ele sabia que precisava estar em algum lugar. Precisava
dormir. Não podia começar o dia exausto, mas não
conseguia se afastar dessa mulher, exceto quando
estavam dando goles em suas bebidas geladas ou
tirando seus casacos.
Quando Melody dançava, ela mudava. Seu rosto se
tornava radiante, seu sorriso, despreocupado. Ela
envolveu os braços ao redor do pescoço dele e o deixou
conduzir, as mãos firmes na cintura dela, acariciando
lentamente com os polegares onde os quadris se
destacavam. Eles se seguravam tão firmemente que ele
se sentia tenso. Delirante de desejo por ela.
Em algum momento, não sabia quando, o bar se
esvaziou. Havia uma garota dormindo em uma rede, um
homem chorando com a letra da música, um garçom
varrendo brinquedos de plástico e purpurina aos montes.
— Eu amo essa música — sussurrou Melody. — Minha
mãe adorava boleros.
Eric afastou o cabelo dela para trás da orelha. O tempo
passado quando ela falava da mãe fazia sua referência
soar como algo terminado. Queria perguntar o que
aconteceu. Queria beijá-la e fazer tudo ficar bem. Mas,
quando ela descansou a cabeça contra seu coração, ele
não quis se mexer, com medo de quebrar o encanto sob
o qual se encontravam.
À medida que a música chegava ao fim, alguém abriu a
porta do pátio do terraço e deixou entrar o sol.
Melody arfou.
— Que horas são?
Ele tirou o telefone. Lembrou que estava descarregado.
Verificou o relógio e sentiu uma pontada de ansiedade.
— Sete. Droga, a Odelia vai me matar.
— Eu tenho que ir — ela disse, aflita, procurando a
jaqueta pelo salão. Tentou olhar seu telefone. Também
descarregado.
— Eu posso te levar para casa — ofereceu ele.
Ela não estava ouvindo. Vestiu a jaqueta jeans, girando
até encontrar a saída.
— Melody.
Eric sabia que a noite havia acabado. Ele também tinha
que ir, mas tudo estava acontecendo rápido demais.
Ela girou para encará-lo, os longos cílios tremulando
como se estivesse acordando de um sonho. Passou os
dedos pelo rosto dele e depois se pôs em movimento.
— Eu tenho que ir. Desculpe — disse ela, já saindo pela
porta.
Eric virou-se para Julio, que estava fechando seu caixa.
O bartender olhou para Eric como se seu próximo passo
devesse ser óbvio. Ele encontrou sua jaqueta. Desceu as
escadas instáveis correndo e saiu para o amanhecer de
Nova York. O sol brilhava, mas estava garoando, e não
importava para onde ele se virasse, Melody tinha sumido.
Eric permaneceu ali, perdido na memória da noite deles
como um romântico incurável, um tolo na chuva.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS:
PRINCESA POP ARIEL DEL MAR SURTA.
The Daily New Yorker
Após um anúncio muito aguardado, apenas seis das irmãs Del Mar
fizeram uma aparição no programa Acorda! Nova York. Enquanto as
irmãs cantoras revelavam novos visuais e empreendimentos
totalmente novos, Ariel, a caçula, não deu as caras.

Mas onde está a irmã mais nova? Teodoro del Mar assegurou ao
público que tudo estava como deveria. Será que o capitão perdeu o
controle de seu navio? Algumas fontes dizem ser um truque
publicitário para um novo álbum. Outras, próximas às irmãs,
especulam uma ida em segredo para a reabilitação. Talvez a pressão
finalmente tenha rachado o verniz no que pode se tornar um
declínio inesperado.

O último namorado de Ariel, Trevor Tachi, sugeriu em seu Pixagram


que Ariel está com o coração partido por sua traição e está disposto
a ficar ao lado dela para reparar o término deles.

Os fãs que se reuniram na Times Square para o grande anúncio


ficaram arrasados com a ausência, com os mais fervorosos até
tentando registrar queixas de pessoa desaparecida em delegacias
locais e fora do estado. A segurança pediu reforço para controlar as
multidões crescentes do lado de fora do prédio dos Del Mar, no
Upper West Side.

Uma coisa é certa: todos os olhos estão em Ariel del Mar.


CAPÍTULO SETE

ARIEL
25 de junho
Upper West Side, Manhattan

A cobertura estava vazia. O coração de Ariel batia


acelerado. Podia praticamente sentir a pulsação na ponta
da língua quando entrou esbaforida na sala de estar. O
aquário do pilar piscava uma luz azul suave, e ela se
aproximou dele, pressionando a palma da mão suada
contra o vidro frio. Vários peixes coloridos nadaram até
ela.
Ela ligou a televisão e passou para Acorda! Nova York.
Um banner vermelho passava pela parte inferior da tela,
detalhando sua ausência. E dizia: princesa pop cede com a
pressão. Tornou a desligar o aparelho e conectou o celular
no carregador mais próximo, na cozinha.
O que dizer? O que fazer? As perguntas giravam em
sua mente, mas cada minuto se estendia, e ela
simplesmente continuava ali, fitando as paredes de vidro
do piso ao teto. Sempre achara que era o conceito mais
lindo: um lugar no topo do mundo, de onde se podia ver
a cidade inteira. Mas não passava mais essa sensação.
O elevador apitou.
As portas se abriram.
Ela deu meia-volta quando ouviu os passos pesados
familiares que sempre faziam Ariel e as irmãs se
sentarem mais eretas.
— Papai — começou Ariel.
Ele levantou a mão para silenciá-la e apontou para seu
escritório, no segundo andar. As irmãs dela, tio Iggy e
Chrissy se derramaram do segundo elevador. Todos
olhavam para ela com uma mistura de compaixão e
temor. Em vez de adiar o inevitável, Ariel aprumou a
coluna e marchou para o escritório do pai.
A sala sempre cheirava a mogno polido, limão e
charutos, apesar de o pai jurar que tinha parado de
fumá-los anos atrás. Cada centímetro das paredes era
recoberto de prêmios, discos de ouro, platina e diamante,
cartazes emoldurados das maiores apresentações das
meninas e capas de discos. No coração disso tudo, um
retrato da mãe delas. Maia Melody Lucero Marín.
Teo del Mar estava sentado à sua mesa, emoldurado
pelo horizonte da parte chique de Manhattan. Sua
cadeira girou, sibilando, quando ele a encarou, os olhos
verde-claros sombreados pelo cume pronunciado de sua
testa e pelas sobrancelhas pretas e hirsutas.
— Papai, me desculpe.
Dez segundos e ela já começara a se encolher,
abaixando a cabeça como se estivesse na presença de
um rei. Mas ele não era um? O soberano de seu império
musical.
— Desculpar por quê?
Ele juntou os dedos formando um arco, inclinando a
cabeça de lado num movimento preciso.
Ariel podia sentir que estava se metendo numa
armadilha, então era melhor ser honesta.
— Por perder o anúncio.
— Você faz alguma ideia do que passamos para
conseguir esse horário? Sabe o quanto é humilhante
garantir a um estúdio de executivos, agentes e fãs que
você estava atrasada? Sabe o quanto foi embaraçoso
não saber onde a minha própria filha estava? Com quem
ela estava? O que estava fazendo?
Ariel engoliu seco.
— Eu saí para jantar com alguém e depois fomos
dançar. Eu perdi a noção do tempo.
Os lábios dele se espremeram em desagrado.
— Quem era esse alguém?
Assim como acontecia com os figurinos e os itinerários
das Sete Sereias, até amigos e relacionamentos eram
aprovados por ele. Ariel não queria dizer o nome de Eric.
O tempo que tinham passado juntos ficava entre eles.
— Ninguém da sua lista pré-aprovada — disse Ariel, a
voz cortante.
Ela nunca falou com o pai desse jeito. Nem quando
estava exausta e ele continuava forçando e pressionando
as filhas para ensaiarem, cantarem e dançarem. Nem
quando ele mudou a letra que ela havia escrito para
“Goodbye Goodbye” sem avisar. Nem quando ele a
forçou a terminar uma amizade porque a outra pop star
adolescente tinha uma imagem “perigosa”.
O choque no rosto dele durou por um instante longo
demais.
— Nós tínhamos um trato, Ariel. Você concordou com o
anúncio da carreira solo. Agora estou com Poe Marlowe
me ligando, perguntando se seria melhor ele passar para
a próxima.
— Nós tínhamos um trato antes disso, ou o senhor já se
esqueceu, porque não era o que o senhor queria? — A
voz dela embargou de emoção, as fissuras se espalhando
no vidro, toda a emoção reprimida dos últimos quinze
anos escapando de súbito. Mas ela não ia recuar.
— Você me respeite, Ariel — disse Teo, a voz áspera
como cascalho.
— Por quê? O senhor não respeita a gente. — Ela
pousou os punhos sobre a mesa dele para conter seus
tremores. — Se respeitasse, não me manipularia para
sair em carreira solo. Teria mantido seu trato com todas
nós. Tudo o que nós sempre fizemos foi sermos as suas
bonequinhas perfeitas. Já fizemos o bastante.
Ele se recuperou do choque da explosão dela e ficou de
pé para olhar nos olhos de Ariel.
— E o que você vai fazer no seu ano de
vagabundagem? Estou perguntando honestamente,
porque sei que não pensou nisso. Você nunca viveu no
mundo real, Ariel. — Ele bufou. — Você não sobreviveria
um dia sem tudo isto. Não sobreviveria sem poder fazer
música.
— Existem outros jeitos de fazer música. — Por um
instante, ela fechou os olhos. Estava de volta à Ponte do
Brooklyn, confessando seu desejo. Eu quero ser
compositora. — E tudo isso, tudo o que você tem é por
nossa causa. Você não chegou lá por sua conta, então
teve que pressionar suas filhas a serem estrelas. Você
mesmo não conseguiu chegar lá.
Ariel tapou a boca com as mãos. Tinha ido longe
demais. Queria engolir as palavras, mas sabia que já era
tarde.
Teo batucou o anel de ouro da família na mesa e
assentiu. Sua raiva silenciosa e pétrea era um milhão de
vezes pior do que quando ele gritava.
— Se você não vai falar comigo como seu pai, então
talvez fale como seu chefe. Você tem um contrato com a
Atlantica Records.
Os lábios de Ariel tremeram. Algo irreparável estava se
partindo, e ela não conseguia impedir. Não conseguia
voltar atrás.
— Que terminou com a turnê de despedida. Ou o
senhor acha que não lemos nossos contratos? Somos
apenas seus soldadinhos obedientes, certo? Bom, eu não
vou assinar mais nada.
— Enquanto você morar sob meu teto, vai seguir as
minhas regras.
— Então talvez eu não vá morar sob o seu teto.
Teo del Mar tornou a se sentar. Ele acenou, como se a
dispensasse.
— Com que dinheiro?
Tudo o que Ariel e suas irmãs haviam recebido estava
na conta da família — e, é claro, no nome dele. Quando
ela tinha dez anos, fazia sentido. Agora? Ariel teve
vontade de rir, de gritar. Dinheiro. Fama. De que valiam,
quando ela sentia que todo o poder para usufruir disso
lhe era arrancado?
— Eu vou...
— Como vai viver sem alguém fazendo tudo para você?
Você nunca esteve por sua conta. Quer tanto ser uma
garota normal, mas você é mimada. Nunca teve que se
virar. Nunca teve que contar as moedinhas do bolso para
confirmar se podia pagar por algo para comer. Você não
sobreviveria nem um dia sequer sem todos os luxos à
sua disposição.
Ariel engoliu a raiva. Ele sempre desviava do assunto
assim. Ela olhou de esguelha para o retrato da mãe.
Tinha vergonha de gritar na presença dela. Mais
vergonha ainda de seu pai.
— Eu vou dar um jeito — disse ela, com uma bravata
fingida.
— Então vá! Vá embora! — ele gritou outra vez em
espanhol enquanto Ariel fugia e descia as escadas
correndo. O som de objetos se quebrando ecoou atrás
dela, junto com um último aviso: — Você estará de volta
antes que se dê conta.
Seu pai sempre fora severo, mas nunca violento. Teo e
Ariel se incitavam até os limites um do outro, mas, antes,
ela sempre cedera sob a pressão. Ariel entrou em seu
quarto marchando. Seu coração estava na garganta
quando abriu o armário e encontrou a única mochila que
não tinha o logo da banda por todo lado.
Puxou do armário camisetas, jeans, roupas de baixo,
sapatos, sem se importar se combinavam ou se estavam
com seu par. Depois de anos em turnê, fazer a mala era
quase uma memória muscular e, apesar de sua mente
estar entorpecida, as mãos sabiam quais eram as coisas
básicas de que ela precisava. Encontrou outro par de
óculos, uma duplicata daqueles que haviam quebrado. Já
estava com sua gargantilha. Por um momento, assustou-
se quando colocou a mão no pulso exposto. Lembrou que
Eric estava com sua pulseira.
Quando não conseguiu encontrar seu passaporte,
pegou o celular para mandar uma mensagem para
Chrissy. Tudo o que pôde ouvir em sua mente foi: Você
não sobreviveria nem um dia sequer sem todos os luxos
à sua disposição.
Não fazia nem dez minutos e ela já estava pedindo
ajuda.
Não, não deixaria que o pai invadisse sua mente como
fizera um milhão de vezes até então. Não havia nada de
errado em pedir ajuda. Mas, quanto mais ela olhava para
o quarto ao seu redor, mais acuada se sentia, a despeito
da parede de vidro. Estendeu a mão para pegar seu livro
preferido e acabou derrubando uma prateleira toda de
suas bugigangas e seus objetos.
Ariel se agachou e pegou o zoológico de vidro que ela
colecionara ao longo dos anos. O cavalo-marinho tinha se
quebrado.
— Ariel? — chamou uma voz baixinho. Marilou.
Uma por uma, suas irmãs e Chrissy foram entrando no
quarto, fechando a porta ao passar.
— Quanto vocês ouviram? — perguntou ela.
— Tudo? — disse Chrissy.
— Uma cobertura de zilhões de dólares... — disse Thea.
— Com paredes de papelão — acrescentou Alicia,
completando a frase de sua gêmea.
Sophia apertou o ombro de Ariel.
— Aquilo foi incrível, demais! Divônica.
— É, a gente não fazia ideia que você guardava tudo
isso — acrescentou Elektra.
— Foi tudo o que queríamos dizer, só que você foi, tipo,
você não pode mais me dizer o que fazer, Pai — disse
Stella, já interpretando.
Todas a encararam e Stella riu.
— Desculpem. Cedo demais.
— Você vai embora mesmo? — perguntou Marilou.
— Tenho que ir.
Ariel chacoalhou a cabeça.
Houve um suspiro coletivo.
— Foi o que eu pensei — disse Sophia. — Vocês dois
são teimosos demais.
— Ei! — disse Ariel, ressabiada. E pescou o guardanapo
no qual Eric anotara toda a informação de que ela
precisava. — Eu tenho uma oferta de emprego.
Explicou sobre Eric e a turnê. Se saísse logo, ainda os
alcançaria antes da partida.
— Eu sei o que vocês vão dizer.
— Tudo isso por um cara? — disse Elektra, revirando os
olhos.
— Não — respondeu Ariel, firme. — Não é. Tudo isso é
por mim. Quero dizer, eu nunca conheci ninguém como o
Eric, mas é mais como se ele tivesse deixado a porta
aberta, e eu quero ver o que tem do outro lado.
Marilou empurrou uma mecha do cabelo de Ariel para
trás.
— Tem certeza? Sair em turnê com alguém que você
está a fim complica as coisas.
Alicia jogou um travesseiro na irmã de cabelo cor-de-
rosa.
— Só porque o papai demitiu o assistente do
coreógrafo com quem ele te pegou dando uns amassos,
não quer dizer que Ariel vá cometer os mesmos erros.
Ariel soltou uma risada cansada.
— Como eu posso ser a próxima versão de mim
mesma, quando nem sei quem eu sou sem todas vocês?
Sem as Sete Sereias? — Ela reuniu forças do orgulho que
viu nos olhos das irmãs e respirou fundo. — Quando
peguei aquele táxi hoje cedo, eu cheguei na Times
Square com alguns minutos de sobra.
As irmãs ficaram chocadas e boquiabertas ante essa
confissão.
— Eu podia ter desembarcado — disse Ariel. — Teria
chegado atrasada e sem o “novo visual” que o papai
queria, mas podia ter entrado, dançando naquele palco.
Só que num momento eu pensei: tenho uma chance de
deixar de ser a Ariel del Mar e descobrir o que eu quero.
— Tem certeza do que está fazendo? — perguntou
Marilou. — Você nem conhece esse cara. E se o ônibus da
banda já tiver saído?
— Daí eu vou me virar. — Ariel sorriu pela primeira vez
desde que deixara Eric no bar. Não seria capaz de
explicar para as irmãs. Tudo o que precisava era que
confiassem nela. — Vou estar com meu telefone. Vou
estar no nosso chat.
— Não com esse celular, não vai, não. — Sophia lhe
entregou um envelope de couro. Dentro, vários
montinhos de notas de vinte e um novo smartphone,
vários modelos mais antigo do que a versão atual. — Eu
tenho uma mochila de fuga desde que a mamãe morreu.
Só não fui tão corajosa quanto você.
A compreensão de que Sophia chegara tão perto de
partir atingiu Ariel como uma marreta. Quantas delas
tinham pensado em partir, mas acabaram ficando? Um
dia, todas teriam que conversar a respeito, mas, por
enquanto, ela precisava seguir seu caminho.
— Eu não posso aceitar — disse Ariel, empurrando o
envelope de volta para a irmã mais velha.
Sophia apontou uma unha preta afiada.
— Não faça isso. Esse dinheiro é nosso. Além do mais,
você vai precisar de dinheiro em espécie para que o tio
Iggy e o papai não consigam rastrear seus cartões. Não
se preocupe, estou trabalhando num jeito de separar
nossas contas da do papai.
— Aqui. — Stella ofereceu o cristal de ametista da sorte
que ela sempre guardava no sutiã. — Pra te proteger das
bad vibes.
Ariel franziu o nariz.
— Obrigada... Acho...
Alicia a fez levar um vestido que ela desenhara para
sua recente linha de moda com Thea, apesar de Ariel
insistir que não precisava de roupas chiques numa turnê
de rock indie. Marilou colocou seu boné de beisebol
preferido na cabeça de Ariel. Era rosa-claro e tinha um
emoji minúsculo de caranguejo. Thea ofereceu seu
bichinho de pelúcia antiestresse, que era um tubarão de
trinta centímetros de comprimento, e Elektra lhe
presenteou com um caderno novo — de sua coleção de
101 cadernos em branco. Cada presente valia um mundo
e era uma despedida para a qual Ariel não estava
preparada. Pensou que elas a impediriam, mas ninguém
a entendia melhor do que as irmãs.
— Sinto como se estivesse saindo numa missão —
disse Ariel, e sua voz oscilava de emoção.
— Espera! — disse Chrissy. Ela atravessou o quarto,
abriu um cofre e tirou de lá uma pasta de plástico. —
Aqui, todos os seus documentos.
Ela puxou Chrissy para um abraço.
— Obrigada. Eu vou me certificar...
— Ah, eu sei. Levanta, meu bem.
Uma por uma, Ariel se despediu de todas com um
abraço. Colocou a mochila no ombro. Tinha mais de um
milhão de lembranças em seu quarto. Metade de uma
vida de objetos que havia colecionado. Pela primeira vez,
porém, deixaria tudo isso para trás. Provaria que o pai
estava enganado. O jeito dele não era o único que havia.
Ela precisava acreditar que podia criar seu próprio rumo.
E havia uma pessoa que podia ajudá-la. Se ele estivesse
disposto a esperar.
— E a multidão lá fora? — perguntou Marilou. — Eles
cercaram o prédio.
Thea, que tinha a estrutura e a altura mais próximas
das de Ariel, pegou a peruca vermelho-rubi da irmã na
penteadeira e olhou para si mesma no espelho. Seus
lábios tomaram a forma de um sorriso malicioso.
— Eu tenho uma ideia.
CAPÍTULO OITO

ARIEL
25 de junho
Jersey City, Nova Jersey

Ariel emergiu da estação ferroviária em Jersey City com


cinco minutos para chegar ao ponto de encontro da
Desafortunados. Tentou ligar para o número que Eric
rabiscou no guardanapo, mas não teve resposta. A única
parte legível do rabisco era o endereço, então ela deve
ter errado ao tentar decifrar os números.
Tinha ido longe demais para não aproveitar essa
chance. Anos de vida na estrada a condicionaram a
recarregar a energia com um punhado de horas de sono.
Orientando-se pelo mapa, correu pela rua movimentada,
a mochila batendo no quadril, o mais depressa que seus
pés podiam carregá-la.
Quando dobrou a esquina, passou pelo portão
vermelho de uma estação de bombeiros, uma fileira de
sobrados reformados e lá estava, estacionado diante de
uma casinha azul que parecia acolhedora, mas deslocada
na rua em mutação: um gigantesco ônibus verde de
turnê.
Ela reconheceu duas integrantes da Desafortunados do
show, mas, depois de ouvir as histórias de Eric, sentia
que já as conhecia. Lá estava Max, com a franja
desgrenhada tapando os olhos enquanto carregava duas
malas enormes para as entranhas do ônibus. A gótica
alta, Grimsby, colocava seu baixo no trailer de carga
engatado à traseira do ônibus.
Conforme Ariel se aproximava, Carly saiu da casa azul.
Seus cachos pretos estavam presos num lenço de seda e
ela ainda calçava pantufas fofinhas enquanto arrastava
uma mala gigante degraus abaixo. Quando notou Ariel do
outro lado da rua, ela travou.
— Eric! — gritou Carly, abrindo um sorriso confuso para
Ariel. — Arrasta a sua bunda pra cá. Agora!
O estômago de Ariel deu pulos enquanto ela pensava
nos piores cenários possíveis. Ele não contara às colegas
de banda que tinha lhe oferecido a vaga. Ela teria que ir
para casa com o rabo entre as pernas. Teria que dizer ao
pai que ele tinha razão. Que ela era ingênua e tola por
confiar na palavra de um cara que acabara de conhecer.
Por apostar em si mesma.
Um Eric Reyes seminu saiu trôpego da casa, e a
pulsação de Ariel, já frenética, atingiu um pico. Sua pele
bronzeada era lisa e macia sobre os músculos esguios.
Ela havia traçado com os dedos as linhas retas e duras
dos antebraços dele, a ondulação de seus bíceps onde
desabrochavam flores tatuadas. Uma trilha de pelos
escuros formava uma seta de seu umbigo até o elástico
branco de sua boxer, aparecendo por cima da calça
jeans. Ela sentiu um gemido visceral começar no fundo
de sua garganta e o transformou numa tosse-pigarreio.
Foi então que ele a viu. De uma vez só, ele vestiu a
camiseta branca e lisa amassada que tinha nas mãos e
desceu os degraus da entrada apressadamente. Ariel se
deliciou com o jeito como os olhos dele se arregalaram,
surpresos. Como Eric parou, impaciente com a explosão
de tráfego que pareceu resolver, de súbito, acelerar pela
Mercer.
— Você veio — disse ele.
Quando o último carro passou, eles foram para o meio
da rua.
— Eu mandei uma mensagem de texto, mas sua
caligrafia de bêbado é horrível — disse ela, pronta para
pleitear seu caso. — Acabo de ter uma briga imensa com
meu pai e disse um monte de coisas que não tenho como
voltar atrás e... Bem. Sou sua promotora de
merchandising, se a vaga ainda estiver disponível.
Eric parecia igualmente atordoado e aliviado. Estendeu
a mão e tomou a mochila dela.
— Bem-vinda a bordo, Melody Marín.
Ariel sentiu vontade de se jogar nele, de envolver seu
pescoço em seus braços, como tinha feito quando
estavam dançando. Mas se lembrou do que as irmãs
haviam dito. Qualquer crush que tivesse por Eric Reyes
precisaria esperar. Mesmo que suas pernas ficassem
bambas quando ele a olhava daquele jeito, como se ela
fosse seu presente-surpresa de aniversário.
— Odelia vai te amar. — Enquanto suas colegas de
banda os encaravam, Eric apontou com o queixo na
direção do ônibus de turnê aberto. — Ela está na Fera.
Ariel riu.
— A Fera?
— É. Grande, verde, barulhento. Foi a primeira coisa de
que Grimsby o chamou quando o motorista encostou
hoje cedo.
Ele a convidou a bordo com um aceno.
Ariel subiu os degraus, pronta para conhecer a
manager de que Eric tanto falava. Já tinha estado numa
boa quantidade de ônibus de turnê ao longo dos anos
antes de usar exclusivamente o jatinho da Atlantica
Records. O ônibus de Eric era de um modelo mais antigo.
Os painéis eram de plástico brilhante, feito para parecer
madeira, com bancos de couro gastos e cortinas que
provavelmente foram alaranjadas nos anos 1970, mas
tinham sido descoradas pelo sol para um amarelo
enferrujado. O veículo tinha todos os itens básicos, que
Eric apontou. Ariel precisava relembrar a si mesma que a
Melody que ele conhecia nunca estivera num ônibus de
turnê.
— Esta é a sala da frente — disse Eric, batucando com
o dedo no pequeno painel de tv na parede atrás do banco
do motorista. — Não temos tv a cabo, mas Grimsby está
trazendo seus dvds favoritos. Espero que você goste de
horror.
Ela riu.
— Na verdade, sou uma molenga no que diz respeito a
horror.
— Finalmente, alguém para votar comigo nos filmes. —
Eric lhe deu uma piscadela, depois deu dois passos
adiante até a cozinha. — Refrigerador, micro-ondas. Não
encoste nos flans de caramelo da Max, a não ser que
queira perder um dedo. — Ele apertou um botão e uma
porta se abriu deslizando, revelando a área de dormir:
doze beliches divididas dos dois lados. — Se você não vir
um bilhetinho grudado numa das camas, pode ficar com
ela.
Quando as Sete Sereias explodiram, as irmãs
compartilhavam um ônibus de turnê de luxo, com
beliches em dois níveis e uma área de festa, que era
onde Elektra gostava de praticar suas habilidades como
dj. Elas tinham frigobares cheios de mais petiscos do que
conseguiam comer e uma tv de tela plana enorme que as
gêmeas dominavam para fazer maratonas de Guerra nas
Estrelas.
E, no entanto, havia algo na Fera que lhe dava as boas-
vindas. As polaroides que a banda já utilizara para
decorar o espaço nas paredes entre as beliches. A fieira
de luzes roxas e almofadas de veludo na sala dos fundos.
Eric entrou primeiro, e uma mulher imponente levantou a
cabeça de uma mesa cheia de papelada para olhar para
ele.
— Esta é Odelia Garcia, nossa manager e uma deusa
em meio a mortais — disse Eric, muito obviamente
tentando puxar o saco dela.
Odelia tinha cabelo preto num corte curto e elegante,
sobrancelhas arqueadas matadoras e um batom
escarlate que contrastava vivamente com a pele
marrom-acetinada. Com o glamour de uma pin-up, mas,
ainda assim, natural, sua blusa de seda com estampa de
oncinha abraçava curvas amplas e se afilava na cintura,
onde se enfiava na calça cigarrete de seda preta. Unhas
compridas, vermelhas e em formato de caixão estalavam
na superfície da mesa enquanto ela media Ariel de cima
a baixo, e não parecia impressionada. Havia algo
levemente irritado em suas narinas infladas e no sorriso
forçado que ela ofereceu a Eric.
— Que desgarrada você trouxe para mim hoje? —
perguntou Odelia, a voz lembrando veludo amassado.
— Apresento-lhe Melody Marín. A moça de quem eu te
falei.
Ariel se perguntou o que, exatamente, ele dissera, mas
se concentrou em Odelia para não ruborizar. Isto é, mais
do que já tinha ruborizado.
— Certo — disse Odelia, com um reconhecimento
desconfiado. — Sente-se.
Eric apertou o ombro de Ariel, confiante.
— Tenho que terminar de carregar as coisas, mas você
está em boas mãos.
Retesou-se de nervoso quando Eric a deixou sozinha
com Odelia. Ela se deu conta de que isso era real. Estava
acontecendo mesmo. Pela primeira vez na vida, seu pai
não tinha controle sobre ela. Não fazia ideia de onde ela
estava. Relaxou no assento em frente à manager da
turnê e tirou o boné. Abriu o zíper da mochila e tirou de
lá o envelope de couro que continha seu dinheiro e
documentos. Ela nunca se candidatara a um emprego e
não sabia muito bem o que fazer. Devia entregar seu
passaporte? Sua identidade?
— Não — disse Odelia.
Ariel congelou.
— Você não precisa do meu documento?
— N-a-o-til. — Odelia debruçou adiante, cravando as
unhas na mesas. De perto, Ariel notou a pintinha igual à
de Marilyn Monroe tatuada logo abaixo da maçã do rosto
dela. — Não sei que tipo de joguinho você está fazendo...
— Não estou fazendo joguinho nenhum.
— Como é o seu nome?
Ariel não pôde evitar. Abaixou a cabeça, olhando para o
próprio colo, e disse:
— Melody Marín.
Era a verdade. Del Mar sempre tinha sido uma variação
de Marín, que o pai dela adaptara para os palcos antes
mesmo de sair do Equador. Até o tio Iggy tinha adotado
esse nome.
Odelia estreitou os olhos, como se pudesse desintegrar
Ariel com aquele olhar.
— Você é igualzinha a ela. É a cara dos dois, na
verdade.
O coração de Ariel saltou de ansiedade.
— A cara de quem?
Odelia ficou imóvel, como se surpresa por ela ter dito
aquilo em voz alta.
— A cara dos seus pais. Não minta pra mim, Ariel del
Mar. Eu sei exatamente quem você é.
Ariel del Mar.
Como essa mulher, que ela nunca tinha encontrado na
vida, sabia quem Ariel era, quando ninguém mais tinha
olhado duas vezes para ela? Por outro lado, estava tão
cansada que mal podia se lembrar do caos da semana
passada, quanto mais cada pessoa que havia conhecido.
Além disso, seus pais tiveram o próprio momento sob os
holofotes, mesmo que isso tivesse ocorrido quase
quarenta anos antes.
— Quem é você? Como conheceu os meus pais?
Ao ouvir isso, Odelia desviou o olhar. Para lá das
janelas com insulfilme, a banda ainda carregava caixas
da casa para o ônibus.
— Não vem ao caso. O que vem ao caso é que você
achou seu caminho para cá, para o meu ônibus de turnê.
Eu não quero ter nada a ver com a sua família.
Especialmente com o seu pai.
Ariel sacudiu a cabeça. Era como se bombas
minúsculas estivessem explodindo ao seu redor. Será que
essa mulher realmente tinha conhecido os pais dela?
Teodoro del Mar enfurecera muita gente na sua época.
Ele tinha um complexo de salvador, lutando contra
executivos das redes de comunicação e sua gravadora
antiga, até se tornar o homem no topo. O rei de seu
próprio palácio. Ainda que esse palácio tenha sido
construído por Ariel e suas irmãs.
— Eu também não quero ter nada a ver com meu pai —
disse Ariel, sem fazer qualquer movimento para ir
embora. — É por isso que estou aqui. É o motivo pelo
qual eu tenho que fazer isso.
— Por quê? — A expressão séria dos lábios carnudos de
Odelia fizeram Ariel entender por que Eric admirava
tanto sua manager. Era como se ela pudesse enxergar
através de mentiras e desculpas. — Eric parece achar
que você é uma aspirante a compositora fugindo de uma
situação ruim, quando a verdade é que você pode ter
tudo e todos que quiser. Então por que uma princesinha
mimada precisa se humilhar num ônibus de turismo
depois de socializar pelo mundo inteiro num avião
particular de 60 milhões de dólares?
Ariel se encolheu. Cada palavra de Odelia transbordava
de raiva e ressentimento. O que sua família fizera contra
ela? E por que Ariel nunca tinha ouvido falar disso?
— Meio rude — disse Ariel, frustrada e confusa. Bem,
ela queria que as pessoas a tratassem como uma garota
normal, e Odelia, definitivamente, não a tratava melhor
por ela ser uma Del Mar. — Mas você tem razão. Eu podia
entrar na turnê de alguma outra pop star. Exceto pelo
fato de que, tirando minhas irmãs, eu não tenho amigos.
Eu podia mexer uns pauzinhos e escrever uma música
para qualquer selo que quisesse só para irritar meu pai,
mas essa música seria esquartejada por uns seis
produtores e executivos até ser lançada.
Odelia chacoalhou a cabeça, claramente insatisfeita
com aquela resposta.
— Você espera que eu lamente por sua causa? Você é
uma adulta. Brigue com a sua família quando quiser, mas
me deixe... Deixe Eric fora disso.
Eric. Eric, de coração sonhador e sorriso encantador.
Ela jamais o magoaria.
— Se você conhece mesmo o meu pai — disse Ariel —,
sabe como ele é. Ele planejou minha vida inteira. A série
As Pequenas Sereias. As Sete Sereias. Eu venho usando
um disfarce desde que tinha dez anos. E agora ele quer
que eu troque uma máscara por outra. Eu simplesmente
não podia fazer isso. Não de novo. Ao longo dos últimos
dias, percebi que não sei quem sou quando não estou no
palco ou com a minha família. Só sei que amo música.
Posso abrir mão de todas as coisas materiais em meu
mundo, mas disso, não.
A raiva de Odelia murchou enquanto ela pousava uma
unha sobre o queixo.
— Se você quer desplugar e buscar o
autoconhecimento, por que não se joga na Europa para
“comer, rezar e amar”? Não use aquele rapaz para
consertar seja lá o que estiver quebrado aí.
— Eu não o estou usando — Ariel garantiu. Será que
não estava? Ainda que não fosse por maldade, estava
usando a tábua de salvação oferecida por Eric.
— Não, é? Então o que você vai fazer se eu te pedir
para ir embora?
Ariel tinha que se preparar para essa possibilidade.
— Ainda assim, não irei para casa. Vou dar um jeito.
— Rapaz, eu pagaria um bom dinheiro para ver isso. —
Odelia riu e depois apontou para o coração de Ariel. — Eu
sei o que a sua família faz. Vocês arruínam vidas. Aquele
rapaz passou pelo inferno, e pior, para lutar por sua
carreira. Ele pode ser vaidoso, pode ser ingênuo, pode
trazer o coração sempre aberto. Mas há um bom homem
por baixo de todo aquele condicionador leave-in. Ele é
leal e trabalha duro. Não vou permitir que você estrague
essa chance dele. Nem a de qualquer uma das minhas
meninas.
Ariel sorriu com tristeza.
— Você realmente gosta deles.
— Você sabe o que o sobrenome Garcia significa? —
Sem esperar uma resposta, Odelia dobrou as mangas de
sua camisa para revelar os braços cobertos por duas
tatuagens iguais de cima a baixo: enguias ao estilo
tradicional, cercadas por estrelas brilhantes... Uma
constelação. — Significa “a ursa”. Como a Ursa Maior.
Então, sim, eu sou a mamãe ursa aqui, e esses são os
meus filhotes.
Teodoro del Mar tinha o mesmo tipo de ferocidade. O
mesmo instinto protetor. Mas seu amor era sufocante,
exigente e rígido. Ariel engoliu as emoções
desconhecidas que subiam por sua garganta.
— Eu juro. Não farei nada que possa magoá-lo. Somos
amigos.
Odelia desviou o olhar.
— Eu já vi o que os Del Mar fazem com amigos.
— Não sei o que aconteceu entre você e meus pais —
disse Ariel —, mas eu não sou o meu pai. Por favor. Eu
sou boa com números. Meus tutores diziam que, se
minha carreira na música não fosse para a frente, eu
sempre poderia ser uma contadora.
— Segundo minha experiência, quando as pessoas são
bem pagas, elas te dão todo tipo de elogio. — Odelia
suspirou profundamente. Manteve os dedos indicador e
médio esticados como se houvesse o fantasma de um
cigarro ali. Ariel podia ver que ela estava amolecendo, só
um pouquinho. — Você já teve algum emprego?
— Eu sou uma salva-vidas com certificação...
Ela arriscou um sorriso ao qual Odelia não
correspondeu.
— Como se eu fosse confiar em você para me salvar
numa piscina infantil. Então, basicamente, sua
experiência é nada, com estágio em coisa nenhuma?
Ariel sabia que essa mulher estava dificultando a
entrevista de propósito. Mas não tinha saído de casa
porque seria fácil. Ela simplesmente teria que provar que
não era parecida em nada com seu pai e daí descobrir o
que, exatamente, seus pais tinham feito para causar uma
reação tão visceral.
— Isso não é verdade. — Ariel não teve um emprego
tradicional, mas os resultados de ter um “empaisário”
significavam que ela tinha muita experiência. — Isso é
uma turnê musical. Eu tenho quinze anos de experiência.
Conheço cronogramas de turnê por dentro e por fora. E,
antes que você diga, sei que minha experiência é
diferente da de outras pessoas. Mas a vida na estrada é
exaustiva. Miserável, às vezes. Esta é a primeira turnê
nacional da banda? Eu transformarei em meu objetivo
garantir que tudo corra com tranquilidade. E, pelo que
Eric me contou, vocês tiveram uma onda de má sorte. Se
e quando algo der errado, eu não serei mais uma pessoa
surtando, porque já passei por tudo isso. — Ela relaxou
na cadeira e se forçou a não desviar o olhar dos olhos de
predador de Odelia. — Além do mais, eu sei que vocês
vão partir daqui a, tipo, cinco minutos e seu tempo é
mais bem aproveitado discutindo com diretores de palco,
não vendendo merchandising, então eu sou tudo o que
você tem à mão.
Ambas as mulheres não se mexeram. Parecia o
concurso de encarada mais importante da vida de Ariel.
— Aproveitando-se de um momento de desespero —
disse Odelia, impressionada. — Você é mais parecida
com seus pais do que imagina.
Não era um elogio e só aguçou a curiosidade de Ariel.
Quem era essa mulher?
Odelia folheou uma pilha de pastas.
— Teremos trinta e um shows, terminando no Aurora’s
Grocery no fim de julho. O salário é de setecentos por
semana, mais uma diária de cinquenta dólares nos dias
de apresentação.
Ariel nunca tivera que se preocupar com dinheiro antes
e ficou envergonhada ao se dar conta de que não fazia
ideia se esse salário era bom ou ruim. Mesmo antes de
ela e suas irmãs pisarem nos palcos, quando moravam
na casa pequena e apertada em Forest Hills, Queens, ela
nunca sentira que lhe faltavam bens materiais. Isso era
apenas temporário, até Sophia separar as contas das
garotas das do pai, e ela finalmente estaria livre.
— Algum problema? — perguntou Odelia.
— Eu vi no anúncio da Gregslist que havia um bônus de
contratação de última hora.
Mais uma vez, Ariel defendeu sua posição.
Odelia sorriu.
— Isso tem mesmo.
— Então, eu aceito.
Ariel sufocou o impulso de erguer o punho no ar. É
melhor celebrar algumas vitórias em particular.
— Bem-vinda à turnê — disse Odelia, pegando os
papéis que Ariel precisaria preencher. — Aqui está o
contrato para entrar na equipe e um cheque no valor do
bônus. Tenho certeza de que você está familiarizada com
acordos de confidencialidade. Preciso da sua identidade.
— Espere — disse Ariel, o coração martelando. — Eu
tenho duas condições.
— Ah, tem, é?
— Eu preciso receber em dinheiro. Todas as nossas
contas estão sob o nome do meu pai.
Ariel não pôde sustentar o escrutínio de Odelia ao
admitir isso.
A manager lambeu o dente canino. Pareceu querer
dizer alguma coisa, mas só chacoalhou a cabeça e seguiu
adiante.
— E você não quer que ele te encontre. Eu quero ouvir
essa segunda condição?
— Você não pode contar meu nome real para ninguém.
— Eu conto tudo para a minha filha — disse Odelia.
Quando Ariel franziu a testa, ela acrescentou: — Vanessa
G. Ela é minha assistente, mas está substituindo uma das
bandas de abertura que precisou sair. Só que não é isso
que te incomoda, né? Você não quer que Eric saiba.
— Eu vou contar para ele — disse Ariel. — Mas quero
entender algumas coisas antes.
— Nesse caso, eu também tenho duas condições. Se eu
sequer desconfiar que você está prejudicando essa
banda ou a turnê, e eu me refiro ao mínimo detalhe que
nos coloque em risco, vou te largar na beira da estrada
sem olhar para trás. Estamos entendidas, Melody?
Ariel assentiu. No mínimo, tinham um trato. Ecoando o
tom que Odelia usara antes, ela perguntou:
— Eu quero ouvir essa segunda condição?
— Eric está proibido pra você. — Odelia estendeu a
mão, a tatuagem preta aparecendo em seus pulsos
marrons. — Ele é autêntico. Essa turnê pode ser café
pequeno pra você, mas, pra ele, para o resto da banda,
essa é a grande chance. Eu posso sentir. Não importa o
que ele diga a si mesmo, Eric tem uma queda por um
rostinho bonito, e eu não vou deixar um crush passageiro
e a sua busca por autoconhecimento estragarem tudo
para ele. Estamos entendidas?
Esse era outro tipo de contrato. Um que não exigia
tinta no papel. Exigia a palavra dela. E o que era ela se
não podia nem cumprir com a própria palavra? Lembrou-
se de como Eric a abraçara quando eles dançavam,
algumas horas atrás. Ainda podia sentir o roçar dos
dedos dele em sua cintura, nas maçãs do rosto. Era só
um crush. Não era? Ela já tivera uma centena de crushes.
Ariel superaria isso. Até Eric havia admitido que não
namorava porque a música era o mais importante em
sua vida, e Ariel não estava em posição de se abrir por
completo para ele sem revelar tudo de si. Essa turnê,
essa oportunidade, era uma corda bamba delicada, e ela
precisava se manter atenta para conseguir chegar ao
outro lado.
Esta era sua grande fuga de seu mundo antigo, sua
chance de experimentar coisas novas por si mesma. Este
era o seu momento, e ela ia aproveitá-lo.
Ariel apertou a mão de Odelia Garcia com toda a
confiança que pôde reunir.
— Trato feito.

@ArielDelMarReal

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Meus Sete Sortudos. Eu tenho muita coisa a explicar, mas primeiro devo
a todos vocês um pedido de desculpas. Sei que muitos estavam
empolgados para me ver no “Acorda! Nova York” e esperavam um
grande anúncio. A verdade é que eu não estou pronta. Não estou pronta
para o próximo estágio da minha vida. Talvez eu nunca estarei, mas,
pela primeira vez, estou me afastando para entender algumas coisas.
Isso não é uma despedida. Eu os verei de novo. Mas vocês não me
verão.

Com amor,

Ariel <3
CAPÍTULO NOVE

ERIC
25 de junho
Filadélfia, Pensilvânia

Eric armazenou sua mala nas entranhas da Fera. Odelia


conseguira um preço bom no aluguel do massivo ônibus
de turnê verde-limão e laranja, já que ele não recebera
uma nova demão de tinta depois que uma banda cover
de rock dos anos 1970 o vendeu na primavera.
Por que a papelada de Melody estava demorando
tanto? Parecia que as duas estavam lá dentro há horas!
Pelo menos Odelia era detalhista, motivo pelo qual era a
melhor em sua função.
Eric fechou a porta do compartimento de carga e
espanou as mãos. Em seguida, era a hora de prender os
instrumentos no trailer. Ele afivelou seu case de violão no
suporte correspondente.
— Grim! Você precisa mesmo trazer o seu bandolim?
Quando levantou a cabeça, deu um pulo. Carly,
Vanessa, Max e Grimsby o cercavam como leoas
famintas.
— O que você acha que está fazendo? — exigiu saber
Max.
— Guardando minhas coisas?
— Você contratou a menina do show? — perguntou
Grimsby, bagunçando o cabelo platinado e repicado
como fazia quando estava preocupada. — Além do mais,
você está trazendo dezessete potes de pomada, então
eu posso trazer meu bandolim, sim.
Eric deixou para lá. Estava exausto e empolgado. Dois
sentimentos que não combinavam muito bem. Passara as
poucas horas em que deveria estar dormindo lembrando
e relembrando seus momentos com Melody. Não tinha
dúvidas de que a banda iria adorá-la. Como podiam não
adorar? Claro, não esperava que ela fosse aparecer. Mas
com ela aqui... Eric não sabia explicar, porém agora a
turnê parecia completa.
— Eu sei o que vocês estão pensando.
Carly estreitou os olhos.
— Sabe, é?
Eric olhou de esguelha para a frente da Fera, onde o
motorista fazia o que ele chamara de “ioga da estrada”.
Seja lá o que isso fosse. Encarou suas melhores amigas
— e suas maiores críticas.
— Estávamos em apuros e eu resolvi um problema.
Não é melhor ter alguém que já conhecemos do que um
aleatório qualquer da Gregslist?
Vanessa apontou para o ônibus.
— Ela é uma aleatória!
— O que você sabe sobre ela? — perguntou Max.
— Sei que ela é uma de nós. Ela mandou o velho dela
pastar e precisa desse emprego. E... — Eric se conteve
para não dizer ela é a mulher mais linda que eu já
conheci. — E ela sonha em ser uma compositora. Vocês
não podem simplesmente confiar em mim? Eu tenho um
bom radar para pessoas. Encontrei todos nós, não foi?
Vanessa, por sua vez, não parecia muito convencida.
— É, mas não era uma de nós que você queria pegar.
— Tem certeza?
Ele não queria, e eles sabiam disso. Mas ele odiava o
fato de que ela estava certa.
Grimsby apontou para o ônibus.
— Odelia é a melhor para julgar caráter, então, se ela
topar, sabemos que está tudo bem.
— Ou que estamos desesperados — acrescentou Max,
sombria. Seus olhos castanhos, mal visíveis em meio à
cortina da franja, deslizaram na direção dele. Ela
murmurou: — Condenados.
— Amaldí-suadôs — completou Grimsby.
— Tenho certeza de que ela é ótima — disse Carly. —
Mas estamos prestes a pegar a estrada para 33 shows
em cinco semanas. Se você Eric Reyesar essa situação,
vai fazer nossa turnê desandar.
Eric levantou um dedo.
— Desculpe, essa é a minha segunda língua, mas foi
isso mesmo, você acabou de usar meu nome como
verbo?
Grimsby mordeu a unha do indicador, arregalando os
olhos cinzentos cheios de acusação.
— Você Eric Reyesou a babá do meu hamster.
— E nossa bartender preferida — acrescentou Carly. —
Agora não podemos voltar ao Clayton’s Saloon.
Max acenou para alguém atrás dele e disse:
— E a viúva Lopez, da casa ao lado.
Eric não podia acreditar nisso. Ele virou e acenou para
um de seus antigos casinhos, que pegava o jornal em seu
gramado vestindo nada além de um robe de seda. Ter
seu passado jogado na cara desse jeito não era
exatamente gostoso. Precisava que suas melhores
amigas no mundo todo, sua família, acreditassem nele.
Caso contrário, quem acreditaria?
— Isso faz mais de um ano.
— Encare, camarada — disse Max. — Você é um
cafajeste. Um sem-vergonha. Um mulherengo que tem
paixonites, e com frequência.
— Você está matando a poesia toda — resmungou Eric,
esfregando as palmas das mãos no rosto. — Vivemos
bem juntinhos e as paredes são praticamente de papel,
mas vocês sabem que eu deixei isso tudo para trás. Não
tem nada mais importante para mim do que nossa
música.
— É o que você diz — zombou Vanessa. — Você é um
romântico sentimental. Literalmente ama estar
apaixonado. Você espera que a gente acredite que
consegue manter as coisas no nível platônico com a sua
garota dos sonhos logo ali?
— Estou de ressaca demais para isso. — Eric percebeu
que tinha vestido a camiseta do avesso. Ele a retirou e
corrigiu a situação. — Certo. Vamos tratar disso em
termos que todas vocês compreendam.
Carly se animou.
— Uma aposta?
— Sou totalmente capaz de manter o controle sobre
um simples crush. Um crushzinho inocente. — Mesmo
enquanto dizia isso, sabia que não tinha nada de
inocente no jeito como a abraçara na danceteria. — E se
eu não mantiver... Se eu pisar na bola e ferrar com tudo
durante a turnê... — Ele afastou as ondas indomadas do
rosto. — Então eu deixo vocês me segurarem e rasparem
minha cabeça.
As quatro ficaram imóveis, piscando. Cada um dos
sorrisos delas foi comicamente demoníaco. Carly fez uma
careta.
— Você deve curtir uns baratos esquisitíssimos.
— Cabelo cresce — Vanessa apontou.
— Já sei — disse Max, estalando os dedos enquanto
uma ideia a fazia arregalar os olhos. — Se você Eric
Reyesar a menina do merchand, vai ter que concordar
em fazer uma cover de uma música das Sete Sereias no
último show.
As garotas pareceram extasiadas com a ideia. Não é
que ele odiasse uma das maiores sensações pop do
mundo; simplesmente não entendia o apelo. Claro,
quando criança, ele tivera crushes nelas. Havia se
esgueirado para dentro de um estádio de futebol com os
amigos para beber no estacionamento quando elas
fizeram sua turnê pela América do Sul. Mas isso não
queria dizer que gostasse de ouvir aquele pesadelo com
excesso de sintetizadores, de saturação, de glitter. Ele
tinha seus padrões. Não ia macular seu violão com uma
das músicas delas.
— Fechou — concordou. — Mas se eu ganhar... E eu
vou ganhar, porque tenho autocontrole... Daí eu escolho
a nossa tatuagem de banda.
Ao longo dos anos, eles tinham feito um pacto de que
quando uma de suas músicas entrasse nas paradas de
sucesso e eles conseguissem um contrato vistoso com
uma gravadora, todos eles, integrantes da banda, fariam
uma tatuagem combinando. A arte era altamente
disputada, então, se ele tivesse esse poder, a habilidade
de escolher, poderia evitar, sobretudo, a ideia de
Grimsby, que muito provavelmente envolveria um
porquinho-da-índia.
Todos eles pareceram deliberar. Eric sorriu.
— Ah, vá! Se vocês têm tanta certeza de que vão
ganhar, então não têm com o que se preocupar, certo?
Eu é que deveria estar preocupado.
As portas do ônibus se abriram, e Melody desceu com
Odelia logo atrás. A expressão no rosto da manager era
contente, até mesmo divertida. A última vez que a vira
daquele jeito foi quando ela demoliu todos eles na noite
de pôquer.
Em seguida, ele focou em Melody. Ela empurrou os
óculos novos para cima no nariz, e ele sentiu o coração
tropeçar.
Droga.
Tinha que ser forte. Tinha que se comportar melhor.
Eram cinco semanas na estrada. Ele podia ter uma
amizade platônica com Melody e superar seu crush nesse
ínterim. As colegas de banda lhe diziam com frequência
que todas tinham superado a aparência dele depois de
uma semana de convivência, o que ele começava a
perceber que era mais um insulto do que uma afirmação
sobre a força do elo entre eles.
Eric abriu um sorriso para as lindas, ridículas e
enfurecedoras mulheres de sua vida, dizendo,
entredentes:
— E então?
Cada uma sussurrou fechado, bem quando Melody e
Odelia os alcançaram.
— Oi, gente — disse Melody, estendendo a mão para
apertar a delas. — Eu me chamo Aaah... Melody.
— Aaah Melody? — repetiu Vanessa, e Carly fungou,
rindo.
Eric sentiu a necessidade protetora de defender sua
garota. A garota do merchand. Mas ela era uma
integrante da equipe. Teria que encontrar seu equilíbrio
com todos a bordo. Além do mais, ela parecia deixar a
zombaria passar sem que a perturbasse.
— Desculpe, eu não dormi, já que Eric me manteve
acordada a noite toda. — Melody pareceu entender o que
havia sugerido quando todo mundo riu, e suas bochechas
coraram tão vermelhas quanto o batom de Odelia. Até
Eric ficou agitado, um calor se acumulando em seu peito
enquanto imaginava aquilo. — Digo, ficamos acordados
dançando, e havia uns brinquedos. Nos drinques! Tá, eu
vou calar a boca agora.
— Enfim, estamos atrasados no cronograma — disse
Odelia, batucando a caneta cravejada de pedras em sua
prancheta. — Mas é uma viagem curta até a Filadélfia, e
esse bando de corujas pode tirar sonecas. Não posso
deixar meu vocalista com cara de quem acabou de voltar
de uma farra em Las Vegas, né?
Ela pegou Eric pelo queixo e lhe deu um tapinha
carinhoso na bochecha. Ele estava cansado, ou aquele
tapinha pareceu mais um tabefe mesmo?
— Não se preocupe comigo. Eu tiro o meu soninho de
beleza.
Max fungou, rindo.
— É, nós sabemos que você está cansado quando não
posta sua selfie matinal.
— Hola, migles! Acordei assim — dizem Carly e
Vanessa, engrossando a voz para imitar Eric.
Ele não falava daquele jeito, mas era homem suficiente
para aguentar as provocações delas. O que não
aguentava era a maneira como Melody mordeu o lábio
para se impedir de tirar sarro dele. Ele quase beijara
aquele lábio inferior. Horas antes, tinha sido fisicamente
incapaz de se separar dela depois de ela cair com tudo
em sua vida. Pensou nela no caminho de volta para casa
e logo que acordou, pronto para que aquela noite tivesse
sido apenas uma daquelas noites nova--iorquinas em que
tudo é perfeito e possível até o sol nascer. Agora ela
estava aqui. E ele não podia Eric Reyesar a dinâmica
deles. Era um profissional. Eles podiam ser amigos... Não
podiam?
— Vamos apresentar todo mundo — disse Eric, um
pouco alto demais, acenando para chamar o motorista.
O cara se aproximou correndo de leve. Ele tinha um
rosto redondo, cabelo curto e encaracolado e pele de um
tom marrom médio. Uma corrente de carteira com uma
criaturinha peluda pendia de seu bolso, e ele chamava a
criaturinha de seu Pé Grande da sorte. Já tinha
derramado café na camisa polo azul-clara.
— Apresentações — disse Odelia. — Pessoal, este aqui
é Osvaldo Florian, o motorista do nosso ônibus de turnê.
— Podem me chamar de Oz — disse ele. Odelia estava
para continuar, mas Oz a interrompeu e continuou
falando. — E preferimos ser chamados de operadores de
transporte de entretenimento agora, em vez de
motoristas de ônibus. Vejamos... Eu tenho 26 anos. Essa
é minha primeira turnê. Passei por todos os meus testes
de licença na semana passada.
Ele cruzou os dedos para simbolizar boa sorte.
Carly levantou a cabeça na direção de Eric e lhe disse,
sem voz: amaldí-suadôs. Ele desviou o olhar para não
cair na risada.
Odelia assentiu, conciliatória, e abriu a boca para
prosseguir. Seus olhos quase caíram da cara quando Oz,
muito inocentemente, continuou falando enquanto
alongava as coxas.
— Minhas criaturas imaginárias preferidas são o Pé
Grande e o Monstro do Lago Ness. Eu amei muito o
álbum de vocês, então isso é um ponto positivo. E sou
alérgico a morangos, à maioria dos animais
domesticados, a abacaxi e poeira.
— Obrigada, Oz — disse Odelia, mais alto do que o
habitual, enquanto tentava conter sua irritação. —
Seguindo adiante...
— Ah, e sou de Leão.
Odelia acenou com a prancheta e sorriu, como se
estivesse a uma interrupção de explodir.
— Fico feliz por você estar conosco. Temo que este seja
todo o tempo de que dispomos. Vocês conhecerão
Melody depois. Regras do ônibus! Número um: nada de
comida nas camas. Não queremos nenhuma infestação.
Número dois: o banheiro não está disponível para uso. Se
você precisar utilizar, avise Oz para podermos parar no
posto de gasolina ou na parada mais próxima.
— Por que você olhou para mim quando disse isso? —
resmungou Max, indignada.
Odelia ignorou a pergunta com um aceno dramático.
— Número três: limpeza. Ninguém aqui é sua
empregada para ficar atrás de vocês limpando. Vocês
manterão o ônibus e a si mesmos limpos ou vão descer
na próxima parada da turnê.
— Por que olhou para mim quando disse isso? —
indagou Eric, piscando para Melody. O sorriso dela
compensava o suspiro exasperado de Odelia.
— Quatro: não temos equipe para carga e descarga,
então todos colaboram. — Odelia conferiu o relógio
estreito de ouro em seu pulso. — Cinco: embora vocês
sejam todos adultos e possam fazer o que quiserem, eu
preciso de exatamente sete horas de sono ou serei o pior
pesadelo de vocês, então, por favor, mantenham as
portas da cabine fechadas quando estiverem na sala da
frente. E, por último, não é uma regra, mas uma...
Sugestão. Nada de confraternizar no ônibus.
Mais uma vez, ela olhou para Eric, depois passou
rapidamente seu olhar furtivo sobre Melody. Ele ficou
muito orgulhoso de si mesmo por não morder a isca.
— Tirando isso... — A fachada entediada de Odelia caiu,
dando lugar a um de seus raros sorrisos genuínos. —
Estou muito orgulhosa de todos vocês. Não importa o
que o mundo jogue para vocês, vocês tornam a se
levantar. É isso o que os torna diferentes. Vamos fazer
dessa uma turnê da qual jamais nos esqueceremos.
Com isso, Eric deu uma última olhada na pitoresca
casinha azul deles e, então, entrou na Fera.
Conforme o ônibus chiava para fora de Nova Jersey,
Odelia desfilava até a sala dos fundos, que tinha
declarado como seu escritório. Grimsby sumiu para sua
cama, já que preferia dormir durante o dia, como a
vampira que era. Eric deveria ter se juntado a Carly, Max
e Vanessa na sala da frente, mas queria ter certeza de
que Melody estava bem instalada. Disse a si mesmo que
teria feito isso por qualquer recém-chegado ao grupinho
deles.
— Deixe eu ajudar com isso aí — disse ele, e ela sorriu
enquanto Eric colocava a mochila no ombro. — Estou
impressionado por você ter trazido tão pouca coisa.
— Eu meio que agarrei qualquer coisa que coubesse.
Acho que, se eu esqueci de algo, então não precisava de
verdade disso comigo.
Melody se enfiou no corredor apertado da área de
dormir e pendurou a jaqueta jeans no espaço estreito
que fazia as vezes de armário.
— Uau. Você já sabe se virar por aqui.
Ele precisara de várias tentativas para entender como
funcionavam as travas dos armários na primeira vez em
que embarcou no ônibus.
Será que ele tinha imaginado um traço de pânico nos
olhos sonolentos dela?
— É intuitivo.
Quando ele ajustou a mochila dela, reparou numa cara
fofinha espiando pelo zíper aberto. O tubarãozinho de
pelúcia já estava metade para fora, então ele o ajudou a
percorrer o resto do caminho.
— É da minha irmã — ela correu para se explicar,
pegando o bichinho e o aninhando contra o peito. — Ela
achou que seria bom eu ficar com o tubarão antiestresse
dela.
— Acho que seria bom para todos nós — disse Eric. —
Que bom que as suas irmãs te apoiam, mesmo se...
Ele deixou o resto da frase pendente. Sabia, mais do
que muita gente, como era ter um pai que não
acreditava no filho. Talvez esse fosse o motivo pelo qual
se sentia tão protetor em relação a Melody. Porque queria
poupá-la de tudo o que ele próprio havia passado.
— Obrigada.
Melody apertou o antebraço dele uma vez e, então,
escolheu sua cama.
Doze camas, e a mulher por quem ele estava tentando
não ter um crush escolhia, por um acaso, a cama de
baixo na beliche bem do lado da dele. Ela não tinha como
saber, já que o post-it com o nome dele tinha se soltado
e se encontrava agora colado em seu sapato.
— Somos vizinhos — disse Eric, levantando o pé e
soltando o quadradinho de papel com seus garranchos
nele.
Melody colocou o cabelo atrás da orelha.
— Obrigada. De verdade. Você não faz ideia do quanto
eu precisava disso.
Uma sensação espremeu o coração dele ao ouvir a
suavidade nas palavras dela. Queria lhe oferecer
conforto. Partir era assustador, mesmo se a situação dos
dois fosse diferente. Mas não podia fazer isso, porque
sabia que abraçar Melody outra vez não era a atitude
mais inteligente a tomar. Não que algum dia ele tivesse,
de fato, tomado a atitude mais inteligente no que dizia
respeito a seu coração ridículo e traiçoeiro.
Queria dizer algo que se equiparasse ao sentimento
que ela havia compartilhado, mas nada parecia
adequado. Nós é que deveríamos te agradecer soava
condescendente. Por nada não parecia o bastante. Você
ainda está pensando naquela música que dançamos? era
demais.
Ele, Eric Reyes, um sujeito que certa feita convenceu
uma vencedora do Miss Universo a ir para casa com ele
depois de ter entrado de penetra numa festa da
indústria, tinha perdido completamente a pose.
— Vou deixar você descansar um pouco.
Ele estava mais animado do que normalmente estaria
quando de ressaca, mas enfiou a mochila dela no
pequeno compartimento ao lado da cama e recuou até
sair do corredor.
Com a porta da cabine fechada, Eric se apoiou no
painel de madeira plástica, esfregando o peito para se
livrar da sensação de aperto. Um sorriso repuxava seus
lábios, mas aí ele se deu conta de que a banda inteira e
Vanessa também o observavam com o sorriso do gato
que comeu o canário.
No mesmo instante, Eric se endireitou, como se tivesse
sido flagrado fazendo algo errado, e forçou seu rosto
numa expressão severa e desinteressada. Apanhou seu
notebook. Era isto o que ele precisava fazer. Focar. Havia
mil coisas para fazer. Deixas automáticas das luzes para
aprimorar. Um website para atualizar. Como Odelia
dissera, todo mundo tinha que colaborar. Essa turnê era
o momento do ou vai ou racha para eles, e ele tinha que
se manter com a mente firme.
Quando seu telefone apitou uma dúzia de vezes
consecutivamente, ele levantou a cabeça para olhar para
Max.
— Por que você está me mandando mensagens de
texto?
— Ah, estou só te mandando minhas músicas
preferidas das Sete Sereias.
Carly e Vanessa deram risadinhas, enquanto Oz
aumentou o volume de um podcast falando sobre
avistamentos de alienígenas.
Seriam duas longas horas até Filadélfia, então Eric
abaixou a cabeça e mandou ver. Já tinha feito mais coisas
com menos tempo de sono e trabalhou duro agora, sem
parar, até as manobras hesitantes de Oz para estacionar
chamarem sua atenção.
Aquele entusiasmo inebriante que sentia antes de uma
apresentação tomou conta dele. Era isso o que Eric
Reyes havia nascido para fazer. Reuniu sua banda e
equipe, e todos saíram do ônibus em fila para o
estacionamento dos funcionários da casa.
O Adam’s Grove Music Hall era um armazém
convertido na curva entre Chinatown e seções da Cidade
Velha da Filadélfia. Enquanto Odelia falava com a equipe
que atendia ao público, ele e a banda descarregavam o
equipamento e ajudavam Melody com as caixas de
merchandising. Eric se apresentou para a equipe dos
bastidores. Conferiu três vezes as deixas das luzes,
afinou o violão, confirmou com o manager de palco as
mudanças no cenário.
Tudo estava perfeito. Distraído, ele puxava a pulseira
com pingente, que não tinha tirado desde que Melody o
colocara ali. Quando ela brotou em sua mente, afastou-
se do palco, atravessou a pista vazia e foi até o saguão
para se certificar de que ela estava bem instalada. Uma
visita amistosa. De amigos.
A mesa de merchandising estava escondida ao lado
das brilhantes barraquinhas de vendas. Melody remexia
num estilete, virando-o para lá e para cá. Mais uma vez,
teve o ímpeto de ajudá-la, seu corpo todo alarmado ao
pensar que ela ia cortar as mãos, mas daí ela entendeu
como a ferramenta funcionava. Quando notou a presença
dele e sorriu, seu rosto todo se iluminou. Apenas por um
instante. E, então, ela se ocupou arrumando os
contêineres plásticos de pins esmaltados e adesivos da
banda.
— Você acredita nas bandas que já tocaram aqui? —
perguntou Eric, inclinando a cabeça bem para trás para
ter uma visão melhor do saguão cavernoso. Cartazes de
alguns dos maiores nomes da indústria estavam
emoldurados e chumbados pelas paredes.
— É incrível — disse ela. — Uma acústica ótima. Digo,
provavelmente, pelo tamanho.
Do outro lado do saguão, Max tirava uma foto com o
cartaz das Sete Sereias, depois se arrastava para os
bastidores. Membros da equipe faziam a limpeza,
montando os caixas. Cada pedacinho daquilo era uma
canção, uma sinfonia de mundanidade. O estalo dos
walkie-talkies dos seguranças, a risada cortante dos
atendentes nos banheiros, os bartenders entrando para
trabalhar. Eric adorava isso.
— Eu tenho tudo sob controle — Melody garantiu,
pressionando botões aleatórios no tablet que servia
como ponto de venda, como se estivesse evitando olhar
diretamente nos olhos dele. Acelerando sua saída.
Ele não teve muito tempo para se preocupar, pois
Vanessa já corria para ele, as pontas roxas de seu rabo
de cavalo preto-azeviche balançando para acompanhá-
la. Havia algo rígido nela, uma tensão incomum em seus
lábios e na testa.
— O apoio direto ainda não chegou.
Eric sabia que a segunda banda de abertura estava
atrasada.
— Louie, do Le Poisson Bleu, postou no Pixagram deles
que estão presos no tráfego, mas estão por perto — ele a
tranquilizou. — Quer fazer a passagem de som primeiro?
Vanessa soltou um gemidinho e assentiu. Ela estava
nervosa? A bem da verdade, essa era a primeira vez que
ela se apresentaria para uma plateia real, mas ele nunca
a vira agir assim antes. Vanessa era feita de aço, como a
mãe dela.
— Bem, seu notebook fica travando, apesar do fato de
que estava funcionando bem até dois segundos atrás.
Eric assentiu lentamente, analisando a situação. Não
era ideal, mas não era nada digno de um surto.
— Tá tudo bem, eu conferi o backup. Você tá bem?
— O que te faz pensar que eu não estaria? — disparou
ela.
Eric sabia que era melhor não responder.
— Tanto faz, eu tenho que ensaiar.
Ela girou sobre os saltos pretos e pontudos, e se
afastou, marchando.
Ele se virou para Melody, que rapidamente arrumou as
camisetas nas araras de arame.
— Quer assistir ao ensaio da Van? Ela...
— Ela está voltando.
Melody apontou para Vanessa.
— Eu não consigo — anunciou sua artista de abertura,
passando por ele com tudo e saindo pelas portas duplas.
Eric levou um segundo para entender o que estava
acontecendo. Olhou em torno procurando Odelia, mas ela
não estava no saguão. Será que tinha conseguido perder
as duas bandas de abertura em menos de 48 horas?
Amaldí-suadôs — a palavra veio, indesejada.
Não. Não colocaria nenhuma fé numa superstição
besta.
— Eric — Melody falou o nome dele como se estivesse
se repetindo. — Nós vamos buscá-la.
Juntos, ambos saíram pelas portas duplas e seguiram
por um longo corredor, que se abria em duas direções.
Melody gesticulou para a direita.
— Por aqui.
Ele estava preocupado demais com Vanessa para se
perguntar como ela podia saber disso. Mas Melody
estava certa. Andando de um lado para o outro diante de
um elevador de carga, Vanessa olhou de relance na
direção do guincho que os tênis de Melody fizeram contra
o linóleo do piso.
— Van, vamos conversar — disse Eric.
— Não. Apenas diga para a minha mãe que eu não
consigo.
Ela abriu o portão de metal e entrou no elevador. As
dobradiças de ferro gemeram.
— É só nervosismo — implorou ele. — Todos nós
sentimos isso.
— Eu preciso tomar um ar.
Ela chacoalhou a cabeça e apertou botões no painel. A
coisa toda tentou se fechar, estertorando, e Eric
pressionou o corpo contra a porta em movimento.
— Tem ar lá fora — sugeriu Melody.
Vanessa não respondeu.
Eric praguejou. Ele precisava segui-la. Empurrou até
entrar. Melody se esgueirou atrás dele quando metal se
chocou contra metal. Foi só aí que Eric reparou no aviso
preso entre os portões deslizantes enquanto o elevador
subia, estremecia e finalmente emitia um ruído triturado
até parar.
elevador com defeito.

Para divulgação imediata: A Desafortunados inicia sua primeira


turnê nacional em 25 de junho. Combinando rock clássico, pop punk
e um aceno para as origens pop latinas do vocalista, a
Desafortunados desafia categorizações. O álbum autointitulado
segue o inesperado sucesso indie de “Love Me Again” e “Gray Skies
Over Montana”. A banda francesa Le Poisson Bleu deve abrir as
apresentações, ao lado de Vanessa G., estreando na cena.

No Pixagram da banda, o vocalista Eric Reyes escreveu: “Não


consigo acreditar que isso está acontecendo. Da Colômbia para o
mundo, bebê! Vejo vocês na estrada”.

A trupe foi reunida na cidade de Nova York. Odelia Garcia, a


manager, diz que “Músicos precisam mostrar do que são capazes.
Então venham e confiram. Vocês não vão se decepcionar”.

Os ingressos já estão à venda.

25/06 • Filadélfia, PA • Adam’s Grove Music Hall


26/06 • Baltimore, MD • The Intrepid Live
27/06 • Asheville, NC • River Valley Club
28/06 • Nashville, TN • The Nashville Bowl
29/06 • Atlanta, GA • Revel Nightclub
30/06 • Savannah, GA • Gator Music & Grill
01/07 • Jacksonville, FL • The Fountain Club
02/07 • Orlando, FL • House of Blues
04/07 • Miami, FL • Jesse’s Live
05/07 • Nova Orleans, LA • The Road House
06/07 • Dallas, TX • Linda Belle Blues
07/07 • Austin, TX • Vanguard Hall
09/07 • Albuquerque, NM • First Contact Live
10/07 • Tucson, AZ • The Return of Saturn
11/07 • San Diego, CA • Rodgers Theater
12/07 • Los Angeles, CA • The Walter Estate Theater
15/07 • Las Vegas, NV • Vegas Bowl
16/07 • Portland, OR • Howling Rock
17/07 • Seattle, WA • Seattle Rock Live
18/07 • Missoula, MT • The Norma
19/07 • Salt Lake City, UT • The Canyon
20/07 • Denver, CO • Alpine Cavern
21/07 • Tulsa, OK • River Styx Crossing
23/07 • Manhattan, KS • The Little Apple Music Hall
24/07 • St. Cloud, MN • Cloud Nine
25/07 • Chicago, IL • House of Blues
26/07 • Cleveland, OH • Tenderloin Tavern
27/07 • Rochester, NY • River Run Works
28/07 • Burlington, VT • The Barn
30/07 • Boston, MA • Hunter’s
31/07 • Nova York, NY • Aurora’s Grocery
CAPÍTULO DEZ

ARIEL
25 de junho
Filadélfia, Pensilvânia

Ariel não tinha medo de muita coisa. Claro, assistia a


filmes de terror por entre os vãos dos dedos e temia cair
numa das grades da calçada da cidade, mas perder mais
alguém da família era a única coisa que realmente a
apavorava.
Até hoje, quando ficar presa num elevador de carga
com defeito que provavelmente não era inspecionado
desde a construção do armazém subiu voando para o
topo da lista.
Enquanto Vanessa se agarrava ao portão de ferro e o
sacudia, Ariel apanhava o antigo telefone vermelho de
emergência acima do painel dos botões. Ela o aninhou
contra o peito.
— Está mudo.
Eric apertou o alarme, mas, se ele estava conectado a
algum sistema, esse sistema não disparou. A única
lâmpada no teto estava queimada. Ele respirou fundo,
tirou o celular do bolso de trás e praguejou.
— Por favor, por favorzinho, me digam que uma de
vocês tem sinal.
— Meu telefone ficou no estande — disse Ariel.
Vanessa levantou sua tela acesa. Sem sinal.
Por um momento, os três ficaram se encarando. Não
tinham avisado a ninguém para onde tinham ido e
estavam escondidos numa parte antiga do edifício.
Ninguém precisava mencionar que o show estava para
começar muito em breve.
Vanessa soltou uma fieira de xingamentos que deveria
ser audível até do espaço sideral, depois escorregou para
o piso, sentando sobre os calcanhares.
— Alguém virá atrás de nós.
Eric apertou a ponte do nariz.
— Ninguém nos viu saindo.
Foi aí que Ariel se deu conta de que estava
espremendo as mãos em punhos, esperando que ele
gritasse e ficasse aborrecido. Percebeu que ainda não o
vira aborrecido, mas, em contrapartida, eles só se
conheciam há um dia. Por que ela esperava que ele fosse
esmagar alguma coisa, ou pior, jogar a culpa pela
situação nela ou em Vanessa? Imagens de seu pai
lampejaram diante de seus olhos. As oscilações de
humor dele, que pareciam os vários estágios de um
furacão — o vendaval uivando, a imobilidade no centro,
os mares turbulentos.
Em vez disso, Eric bateu palmas e uma nova expressão
determinada raiou em seus olhos.
— Certo. Nós vamos sair daqui. Não esquentem. Vou
passar pelo alçapão no teto e escalar até o próximo
andar para conseguir ajuda.
Ariel não achou que aquilo fosse funcionar do jeito que
Eric imaginava, mas ele estava tão confiante e se
empenhando tanto para permanecer calmo por elas que
não quis acabar com suas esperanças.
Ele levantou as mãos na direção da parede.
— Vanessa, faz escadinha pra mim?
— Não deixe isso subir à sua cabeça, mas você tem
noventa quilos de puro músculo — disse Vanessa,
colocando-se de pé outra vez. — Poupe-me desse
cavalheirismo de merda e faça você escadinha pra mim!
Eric apontou para o teto.
— Se você acha que eu não estou deixando você subir
ali por causa de cavalheirismo, subestima imensamente
o quanto eu tenho medo da sua mãe.
Enquanto eles discutiam, Ariel segurou a grade. O
elevador era como uma imensa gaiola de metal. Ela ficou
grata pelos anos de musculação e ioga que a deixaram
forte o bastante para dançar por três horas direto sobre
botas plataforma sem se cansar. Não tinha imaginado
que o treinamento seria útil para se agarrar às laterais de
um elevador de carga, mas tanto melhor.
Eric e Vanessa finalmente repararam nela e gritaram
para que descesse.
— Eu dou conta — ela garantiu a eles, subindo até as
barras no teto e enfiando a ponta do tênis num vão para
firmar seu ponto de apoio.
Ferrugem se soltou em flocos quando ela agarrou a
maçaneta que marcava o alçapão do teto. Chacoalhou a
maçaneta, mas estava presa.
— Agora, isso, sim, é impressionante — murmurou
Vanessa.
Quando o elevador emitiu um grunhido dos bons, Eric
cantarolou, cheio de nervosismo.
— Está travado de ferrugem. Melody, desça daí.
— Só mais um pouquinho.
Ela precisava mudar o jeito como segurava a
maçaneta, mas, na tentativa seguinte, algo afiado
espetou o centro da palma de sua mão. A dor a
atravessou, e Ariel, por instinto, soltou.
Ela sabia como cair quando isso acontecia no palco ou
durante a filmagem de algum vídeo, mas aquele tipo de
queda era diferente. Estava preparada para elas. Não
estava preparada, contudo, para o que fazer quando Eric
a pegou.
Ele soltou um uffs enquanto seus braços se apertavam
ao redor dos quadris dela, logo abaixo da curva de seu
traseiro. A posição de ambos deixava pouco espaço para
o que o pai dela chamava de el Espíritu Santo. Ela sentia
o nariz dele em seu umbigo, preso na barra de sua
camiseta. Ela e Eric oscilaram enquanto ele mantinha
ambos de pé, e ela se agarrou aos ombros dele em busca
de equilíbrio. Colocando-a no chão com cuidado, ele
manteve a mão firme na parte de trás da cintura dela,
cada centímetro do corpo de Ariel roçando contra o dele
até que seus pés estivessem firmemente plantados no
piso de metal corrugado.
— Você tá bem? — ele perguntou, imediatamente
pegando a mão dela para examinar o ferimento.
Durante aqueles dez segundos, Ariel se esquecera da
dor. Sangue se acumulava em torno de um corte
minúsculo. Ela endireitou a camisa e tentou não ofegar.
Mesmo sob a luz fraca, será que estava imaginando o
rubor no rosto dele?
— Isso não é nada. — Ela fechou o punho. — Eu tive
uma fratura espiral quando tinha quinze anos.
— É, bom, você não precisa tomar uma vacina
antitetânica para uma fratura espiral. Você precisa de um
curativo.
Eric cavoucou no bolso em busca de um curativo, mas
voltou com as mãos vazias, assim como Vanessa.
Ariel acabava de desejar estar com sua bolsinha
quando Eric rasgou a camiseta nas costuras e arrancou
uma faixa comprida que deixou à mostra seu caminho da
felicidade. Como alguém podia parecer ridículo e
extremamente gostoso ao mesmo tempo? Ela decidiu
encarar o rosto dele em vez de seu abdômen exposto e
se focar no vinco de concentração entre as sobrancelhas
dele e na franja espessa de seus cílios, que piscavam
enquanto tratava gentilmente do ferimento dela.
— Prontinho — anunciou ele, orgulhoso.
O sangue ainda ensopava a bandagem improvisada,
mas a pressão amorteceu a dor.
— Eu te devo uma camisa nova.
— Talvez eu lance uma tendência.
Ele riu, ainda aninhando a mão machucada dela na
sua. E, por um instante, Ariel teve aquela sensação de
novo. Acontecera quando eles estavam na pizzaria, na
ponte, dançando. Como se eles fossem as duas únicas
pessoas no local. No mundo todo.
Obviamente, não eram. Vanessa fez um ruído de que ia
vomitar.
— Ai, meu Deus. — Ela agarrou o portão e chacoalhou
com força, gritando por ajuda. — Tirem-me daqui, antes
que esses dois comecem a...
— Vanessa! — Eric avisou.
Ariel sentiu uma pontada de ansiedade, lembrando-se
de seu acordo com Odelia. Eric está proibido pra você. A
turnê mal tinha começado e ela já abandonara seu posto
e ficara presa num elevador com dois dos astros. Ainda
que não fosse culpa sua, ela era culpada por associação.
Colocou a distância de um braço entre Eric e ela mesma,
o que a deixou de costas contra uma das paredes do
elevador.
— Talvez se todos nós gritarmos, faremos barulho
suficiente para alguém ouvir...
Eles tinham esgotado suas opções. Gritaram e gritaram
até a voz rachar. Até o elevador grunhir precariamente e
eles escorregarem em três poças humanas contra as
paredes metálicas. Decidiram se revezar usando a
lanterna dos celulares para que as baterias não
acabassem ao mesmo tempo.
Ariel parou de olhar para seu relógio depois dos
primeiros vinte minutos. Em seguida, a risada grave de
Eric vibrou na escuridão.
— O que é tão engraçado? — perguntou Vanessa.
— Pelo menos aquela banda do peixe finalmente
apareceu.
Os ecos suaves do Le Poisson Bleu fazendo sua
passagem de som filtrou-se pelo armazém até o elevador
encalhado. Eric bateu a nuca contra a parede e fechou os
olhos. Nenhum deles precisava dizer: os portões se
abririam em breve, e eles estavam completamente
ferrados.
Ariel sabia muito bem a rapidez com que as coisas
podiam dar errado numa turnê. Tinha vivido uma
variedade delas: dançarinos com fratura nas pernas, um
vírus estomacal devastando a equipe, alarmes de
incêndio disparando no meio de uma música, aquela vez
que ela teve laringite. Ficar presa num elevador era
novidade, e ela odiava não poder fazer nada além de
sentar e esperar.
— Não posso acreditar que isso esteja acontecendo. —
Vanessa suspirou em seu canto. — No primeiro dia.
Amaldiçoados.
Eric se debruçou, sentado no chão.
— Você não podia ter ido tomar um ar do lado de fora
do térreo?
— Ninguém pediu para vocês me seguirem.
— Se você não quisesse que alguém te seguisse, não
teria anunciado seu surto.
— Eu não surtei!
— E o que é isso aqui? — perguntou Eric, a voz severa,
mas compreensiva. — É sério, Van. O que tá pegando?
Ariel observou enquanto a confiante Vanessa se
recolhia para dentro de si mesma. Ela estava pronta.
Tinha tirado um tempo para se aprontar cedo. Uma
legging preta pintalgada com centenas de cristaizinhos
brilhantes. Uma regata combinando, exibindo um decote
na medida certa. Olhos bem desenhados com um
delineador retinto e polvilhados com um roxo cintilante.
Naquele momento, Vanessa lembrava tanto Sophia que
aquilo fez algo doer no coração de Ariel, com saudades
da irmã. Por anos, Sophia teve ataques de pânico antes
de se apresentar, quase sem exceções. Às vezes, nada
que Ariel ou as irmãs fizessem ajudava. E então Teo del
Mar surgia do nada e a relembrava com severidade do
que estava em jogo ali, como ela era um modelo para as
irmãs mais novas, como todos contavam com ela.
Inevitavelmente, Sophia voltava ao palco.
— Minha irmã — disse Ariel, baixinho. — Ela tinha esses
ataques de pânico antes de... sair em público. E, quando
eu era pequena, pensava que ela superava porque
queria ser corajosa por nós. Só que agora, quanto mais
eu penso nisso, mais me pergunto se ela superava
porque não queria decepcionar nosso pai. Tipo, não tinha
a ver com a gente. Tinha a ver com a pressão que ele
fazia sobre a gente.
— Minha mãe não é assim — disse Vanessa, numa
rápida defesa de Odelia Garcia. — Mas eu não espero
que você entenda.
— Eita, Van — alertou Eric. — Isso não é justo.
Pelo olhar que Vanessa lançou para ela, Ariel pôde
perceber que ela sabia exatamente quem Ariel era.
Claro, não esperava que Odelia fosse guardar segredo da
própria filha por muito tempo. Talvez isso facilitasse se
fazer entender pela outra cantora.
— Não, ela tem razão. — Ariel soltou uma risadinha
autodepreciativa. — Eu não entendo. Mas sei como é
sentir que você está a um passo de decepcionar todo
mundo. Um passo de arruinar tudo o que seus pais
trabalharam tanto para conseguir. Minhas irmãs e eu
sentimos isso todos os dias. Nós só ficamos boas em
ignorar essa sensação. Até eu ceder.
Mesmo nas sombras, Ariel podia sentir o olhar de Eric
sobre ela. Estava grata por só conseguir ver a vaga
silhueta dele, porque a compaixão em seus olhos seria
demais.
— Minha mãe passou por tanta coisa — disse Vanessa.
— Ela teve tantos empregos para garantir que eu tivesse
tudo o que queria... Mesmo quando eu era uma idiota.
Mesmo quando estava cansada, ela voltava para casa e
me ajudava a cantar. Quando cantávamos, quando
compúnhamos juntas, era fácil como respirar. Daí eu subi
no palco essa noite. Abri a boca, e tudo soou errado. Eu
desafinei na minha primeira nota.
— Você fez um aquecimento? — Ariel perguntou, com
suavidade.
Vanessa franziu a testa e chacoalhou a cabeça.
— Não costumo fazer. Eu estava ocupada demais
pensando que ia vomitar. Deus do céu, estou estragando
tudo.
Eric estendeu a mão. Vanessa olhou teimosamente
para ela, mas acabou aceitando.
— Você não estragou nada. Pensei que Max daria pra
trás antes de você.
Vanessa riu, soltando o ar numa fungada.
— Vou contar pra ela que você disse isso.
— Tá, então eu espero que nunca encontrem a gente —
disse Eric, obstinado.
Vanessa pousou a testa nos joelhos levantados.
— Lamento muito, Eric.
Ele ignorou a preocupação dela com um aceno.
— Sua mãe vai dar um jeito. Provavelmente vai dar um
set mais longo para o Poisson. Ou talvez Oz abra o
espetáculo com uma apresentação de slides de criaturas
imaginárias e uma boa trilha sonora.
Vanessa caiu na risada, mas Ariel perguntou:
— Como é que você faz isso?
— Faço o quê? — perguntou ele, inclinando-se adiante
de um jeito que fez suas ondas rebeldes caírem nos
olhos.
Ariel gesticulou para a situação deles.
— Como se mantém tão calmo?
— Ah, eu estou tendo um piripaque — admitiu Eric. —
Acho que as pessoas surtam de maneiras diferentes. Meu
pai, por exemplo, batia portas e insultava todo mundo
que estivesse na casa. Minha mãe surtava deixando de
falar, mesmo quando deveria dizer alguma coisa.
— Não se deixe enganar — disse Vanessa. — O Señor
Raio de Sol aqui tem um lado sombrio e melancólico que
ele guarda para suas letras emo.
— Eu adoro as suas letras emo — desembuchou Ariel.
Eric sorriu para ela. A expressão no rosto dele a levou
de volta para as horas da madrugada. A música, as luzes
neon, os lábios dele tão próximos dos seus. O quanto a
noite deles teria sido diferente se eles tivessem se
beijado? Era uma trilha perigosa para seguir até o fim.
Precisava mudar de assunto para que Eric parasse de
fitá-la como se ela fosse uma estrela cadente para a qual
ele pudesse fazer um pedido.
— Eu acho... — começou Ariel — que, já que Vanessa
compartilhou algo assustador, nós devíamos fazer o
mesmo.
Eric nem vacilou.
— Odelia, antes de tomar seu cafecito e comer seu pan
caliente?
— Vou contar pra mamãe também.
Ariel deu um peteleco com as unhas nas tatuagens de
rosas no bíceps dele.
— Você entendeu o que eu queria dizer.
Eric esfregou o ponto onde ela havia lhe tocado. Ariel
podia senti-lo irradiando calor. Mesmo depois das sessões
de carga e descarga, ele ainda cheirava a protetor solar e
algo cítrico. Lutou contra o impulso de agarrá-lo pela
camisa e literalmente farejá-lo. Em vez disso, pressionou
o centro da palma da mão. A dor nítida da ferida a
lembrou de que precisava manter sua libido sob controle.
— Bom, nesse caso... — Eric deslizou os dedos por suas
ondas escuras. — Sabem o que eu pensei quando fiquei
de pé naquele palco para nosso primeiro ensaio?
Ariel e Vanessa chacoalharam a cabeça.
Ele suspirou, como se essa confissão lhe custasse tudo,
e disse:
— “Até parece que você vai lotar estádios”.
— Oi? — perguntou Ariel, depois de um período de
silêncio.
— Essas foram as palavras que meu pai me disse no
dia em que deixei Medellín para vir para Miami. Nos
últimos dez anos, eu ouvi essas palavras todos os dias. E,
quando olho no espelho, porque, apesar de todos os
pesares, essa aparência devastadoramente linda eu
herdei dele...
A garganta de Ariel se apertou com tudo o que queria
dizer para consolá-lo. Ela, uma garota que havia de fato
lotado estádios e salas de espetáculos. O que podia dizer
para ele sem soar condescendente, mesmo que Eric não
soubesse da verdade? Colocou sua mão na dele,
esfregando o polegar na pele macia ali. Disse a si mesma
que estava apenas reconfortando um amigo. Repetiu
esse pensamento quando Eric virou a mão para baixo,
para que seus dedos pudessem se entrelaçar, e
encontrou conforto na pressão do toque dele.
— Mas aí — disse ele, sem a soltar —, eu vou em frente
mesmo assim. Subo no palco. Eu me lembro de que,
ainda que o sangue do meu sangue não acredite em
mim, tenho uma família de esquisitonas maravilhosas
que acredita. Sou um cara simples. Isso é tudo de que eu
preciso. Bem, isso e alguns fãs apaixonados.
Ariel sorriu muito com isso.
— E você? — perguntou-lhe Vanessa, um leve desafio
em sua voz.
— Acho que filmes de terror estão fora de cogitação,
né? — Ariel mordeu o lábio inferior. — Digo, eu fui isolada
do mundo durante a vida toda. Em certos sentidos, meu
pai me protegeu do pior.
Ariel tinha medo de que as pessoas a julgassem. De
que seu pai tivesse razão e ela não fosse capaz de
sobreviver no mundo real. De ser uma zé-ninguém, boba
e mimada.
— Eu tenho medo...
O elevador sacudiu e, pelo segundo mais longo da vida
de Ariel, eles caíram. Quando pararam num tranco, Eric
agarrou o braço dela para impedir que caísse de lado.
— Estamos em movimento! — gritou Vanessa enquanto
lentamente eles voltavam para o térreo.
A luz encheu os vãos no portão metálico quando um pé
de cabra se enfiou ali. Vários conjuntos de mãos
enluvadas arrombaram a porta com o som terrível de
metal entortando.
Um grupo de bombeiros esperava do outro lado. Atrás
deles estavam o gerente da casa, extremamente
descontente, e Odelia, muito séria.
Ariel se desvencilhou de Eric e aceitou a mão que um
dos bombeiros oferecia. Depois de agradecer
profusamente à equipe de resgate, voltou-se para Odelia.
— Desculpe, desculpe mesmo.
A manager estufou o peito. Ariel se preparou para ser
demitida. Ser mandada de volta para Nova York antes
mesmo de começar seu primeiro turno. Mas a bronca não
chegou. Odelia abriu os braços. Houve um milésimo de
segundo em que Ariel pensou que elas fariam as pazes
com um abraço. E então se deu conta de que os braços
abertos eram para a filha dela. Um embaraço
involuntário a percorreu.
— A culpa é minha — disse Vanessa, olhando para Ariel
por cima do ombro da mãe, enquanto contava uma
versão abreviada de como eles tinham acabado dentro
daquele elevador. — Se eles não tivessem me seguido...
— Não vamos nos preocupar com isso agora — disse
Odelia, tirando os cabelinhos esvoaçando no rosto de
Vanessa.
— Desculpe — cochichou Vanessa.
Enquanto um paramédico limpava e cuidava de seu
corte, Ariel observava a reação de Odelia. Esperava que
a manager fosse surtar pelo fato de que Vanessa tinha
dez minutos antes de precisar estar no palco, mas ela
parecia focada apenas em se assegurar de que a filha
estivesse a salvo. Ariel sufocou o desconforto que sentia.
Teodoro del Mar teria mandado condenar a casa de
shows, depois dado uma reprimenda severa em Ariel
sobre responsabilidade e, então, relembrado a ela que
havia centenas de pessoas trabalhando, pessoas que
dependiam dela.
— Eu ouvi tudo. — Odelia olhou de relance para Ariel e
Eric, dando uma risadinha sombria. — A acústica daqui
realmente é ótima.
Vanessa chacoalhou a cabeça.
— Sei o que você vai dizer e eu quero fazer isso. Estou
pronta.
— Não faça isso por mim, minha menina. Eu não quero
que você sinta que me deve alguma coisa, nunca.
Jamais. Mesmo que os seus sonhos e objetivos mudem,
eu mudarei com você. Entende?
Vanessa anuiu e abraçou apertado a mãe.
— Eu sei. E tenho certeza.
Ariel desviou os olhos daquela exibição de afeto.
Apertou seu colar e pensou na mãe enquanto o
paramédico que a atendia terminava e guardava tudo.
— Odeio interromper um momento tão bonito — disse
o gerente da casa, uma veia pulsando no centro de sua
testa —, mas preciso que alguém suba naquele palco
daqui a três minutos.

Ariel e os outros correram de volta pelo caminho por


onde tinham vindo. Eric disparou um sorriso de desculpas
na direção dela antes de se apressar para os bastidores
para colocar o microfone e trocar de camisa. Ariel
assistiu até a parte de trás daquele cabelo glorioso
desaparecer. Tinha que se lembrar do que ele dissera
naquelas confissões do elevador em ruínas. Os sonhos
dele eram tão puros, e ele era tão talentoso... Ela tinha
toda a intenção de cumprir o trato que fizera com Odelia,
porém, até aquele momento, as consequências para Eric
não pareciam reais. Sonhos eram coisas frágeis. Talvez
mais até do que amor, esperança e felicidade. Precisava
manter Eric à distância. Nada de olhares fofinhos e mãos
se tocando, se ela pudesse evitar. Ainda que, no começo,
doesse.
Quando deu meia-volta, encontrou Oz cuidando do
merchandising, escondendo-se atrás da mesa enquanto
uma longa fila de fãs ansiosas saltitava no lugar,
impaciente. Ele podia muito bem estar segurando uma
bandeira branca ali.
— Ai, que bom — disse ele, um soluço aliviado na voz.
— Eu não consegui entender como o negócio funciona, e
Odelia me mandou ficar até que te encontrassem, mas
não sou pago o bastante pra isso aqui.
Ariel riu, e foi gostoso soltar toda aquela emoção
acumulada. Ela lhe entregou uma nota de vinte dólares e
disse:
— Daqui por diante, pode deixar comigo. Por que não
vai buscar uns petiscos e bebidas para nós?
Outro tipo de adrenalina a empurrava quando abriu a
mesa de merchand e começou a atender pedidos. Havia
uma energia brilhante emanada pelos fãs de música, e
ela adorava aquilo. O jeito como elas amassavam as
mãos em punhos e transbordavam de felicidade por
estar perto de seus cantores preferidos. Ela retirou
camisetas das amostras. Esgotou os pins esmaltados na
primeira meia hora. Pediu a Oz para abrir outra caixa de
bonés de beisebol.
Quando a fila terminou, Ariel se deu conta do quanto o
tempo tinha passado depressa. O set de Vanessa estava
quase no fim. Ela vinha assistindo ao vídeo numa tela
plana atrás do bar vizinho. A luz púrpura na frente lavava
o palco, onde Vanessa G estava sentada num banco de
madeira sem nada além de seu violão preto e um
microfone. Seu soprano suave enchia cada canto da
casa.
— Você tem alguma coisa dessa cantora? — perguntou
o último cliente da fila, uma garota bonita com um halo
de cachos ruivos.
— Ainda não. — Ariel sorriu e empacotou a camiseta e
os adesivos holográficos da fã. — Mas você pode segui-la
no Pixagram para atualizações!
Odelia deu a volta no estande, as sobrancelhas
destacadas quase tocando a linha do cabelo. Deu uma
risada rouca. Será que ela estava impressionada?
— Como foi estar do outro lado?
— Esquisito — respondeu Ariel, honestamente,
sentindo que Odelia farejaria qualquer coisa que não a
verdade. — E bom. É como se eu fosse invisível.
— É isso o que você quer? Ser invisível?
Ela pensou a respeito por um instante.
— Não exatamente. Mas, considerando-se que eu
nunca fui capaz nem de caminhar num parque sem
paparazzi e desconhecidos me seguindo, é um alívio.
— Hum. — Odelia se remexeu, desconfortável. —
Melody, eu queria te agradecer. Pelo que você disse a
Vanessa. — O sorriso de Ariel era triste. — Quando você
disse para ela que não precisava subir ao palco... Estava
falando sério?
— Eu não falo à toa. — Ariel não sabia se ria, se
chorava ou ambos. — Meu pai jamais diria aquilo. Eu
entendo como você se sente sobre ele. Não tenho muitos
adultos com quem comparar.
A atitude cortante de Odelia se suavizou.
— Bem, nós somos pessoas diferentes.
— Vai me contar o que aconteceu entre você e meus
pais? — indagou Ariel.
— É melhor deixar algumas histórias no passado. —
Odelia apontou uma unha vermelha e comprida para o
“caixa”. — Não se esqueça de colocar aqueles recibos na
bolsa. E talvez vista uma das camisetas, assim as outras
meninas podem ver como fica em você. Aqui, coma. Você
não almoçou, e pipoca não é uma refeição.
Odelia deixou uma barra de proteína na mesa e saiu
desfilando para conversar com o gerente da casa, sem
dizer mais nada.

Após o show, depois que as bandas assinaram


autógrafos e tiraram fotos com os fãs, após carregarem o
ônibus e tomarem banho na casa de shows, Ariel voltou
para o ônibus vestindo seu pijama para a curta viagem
até Baltimore.
Eric desaparecera na sala dos fundos para conversar
com Odelia. As outras ainda estavam elétricas por causa
da apresentação e tocavam música a todo volume,
enquanto se esparramavam pelos sofás. Ariel afastou a
cortina para sua cama e começou a se instalar para
poder escrever em seu caderninho e fechar a noite.
— Está cedo, Melody — chamou Vanessa. — Vem ficar
com a gente.
— Sério? — Ela não pretendia soar tão entusiasmada.
— Sério, sim.
Vanessa revirou os olhos e apontou para o sofá
desocupado na frente do dela e de Carly. Como ela
conseguia soar tão irritada, mesmo quando estava sendo
simpática?
Max estava com as baquetas nas mãos, batucando na
beira da mesa como se ainda estivesse no palco. Carly
espalhava hidratante com perfume de lavanda em sua
pele marrom e macia. Grimsby escovava os dentes com
a porta do banheiro aberta, e Oz colocava o ônibus em
movimento.
Ariel se sentou, pousando o caderninho em seu colo.
— O que você tem aí? — perguntou Max, apontando
uma baqueta para ela.
— Ah... — Ariel juntou o cabelo num coque frouxo e
desleixado. — Sabe como é. Querido diário, hoje eu fiquei
presa num elevador e tive que mandar uma mensagem
de texto pra minha irmã mais velha para ver se minha
antitetânica está em dia.
Todas elas riram, e Vanessa tornou a dizer:
— Desculpa!
— Um presentinho antes de eu ir embora.
Ariel passou a palma da mão sobre o caderninho preto
e simples.
— Eric disse que você quer ser compositora —
resmungou Grimsby, com a boca cheia de pasta de
dente, saindo do banheiro estreito. Os alojamentos eram
apertados, mas lidar com espaço limitado era algo
familiar para Ariel, como estar no camarim de Sophia
depois de um show.
— Neste momento, é só uma lista de coisas que eu
quero fazer enquanto estou na estrada — disse Ariel.
Carly jogou sua loção para Vanessa, que tirou seus
vários anéis prateados e os entregou para a guitarrista
solo da banda guardar. Talvez elas pensassem que
ninguém estava olhando, mas Ariel flagrou um momento
em que os olhares das duas se cruzaram e elas
compartilharam um sorriso muito particular.
Carly notou Ariel observando e desviou o assunto.
— Eric também disse que você estava numa seita e
que fugiu de lá.
Como se o tivessem invocado, a porta da cabine se
abriu deslizando, e Eric Reyes entrou na sala da frente.
— Eu não falei isso — disse ele, na defensiva.
Ariel não ligava. Estava ocupada demais o encarando.
Ela piscou rapidamente e tentou convencer seu corpo a
parar de reagir tanto toda vez que ele chegava perto,
porque, mesmo quando a aparência dele era ridícula, era
também perfeita.
Eric vestia apenas um robe de seda vermelho com
estampa de oncinha. A barra mal chegava ao meio das
coxas musculosas. Pelos escuros se espalhavam por suas
pernas compridas e poderosas. Seus cabelos ainda
estavam levemente úmidos. Ele deu uma volta completa,
bem devagar, para que as garotas pudessem ver cada
ângulo seu. A curva de seu derrière firme, as panturrilhas
de jogador de futebol, o V de seu peito exposto pela seda
fina.
Max assoviou e ele deu um aceno, convidando mais
provocações.
— Mas de que banda farofa dos anos 1980 você tirou
isso? — Carly mal conseguiu perguntar, uma vez que ria
tanto que Vanessa precisou segurá-la para impedir que
caísse do sofá.
Vanessa também não se aguentou e as duas
tombaram, gargalhando.
— Isso é o robe da minha mãe?
— Tá, talvez eu tenha esquecido meu pijama em casa,
e Odelia disse que não queria me ver seminu logo cedo.
Grimsby, com os dentes recém-escovados, juntou-se a
Max na mesa.
— Não é como se não tivéssemos visto você andando
pela casa pela...
— Além disso — Eric disse para Ariel, incisivamente —,
eu não falei que era uma seita. Falei que era como uma
seita.
— Não tem problema, juro — Ariel disse para todos na
sala. Vários pretensos jornalistas já tinham se referido ao
fandom e à família dela assim. Ela podia muito bem usar
isso. — Lembra mesmo uma seita.
— Tipo o quê? — indagou Max, fascinada. — Estamos
falando de algum culto de virgindade? Ah! Seita do Juízo
Final? Não, espera... Extraterrestres!
Do banco do motorista, Oz gritou:
— Eu já estive num acampamento de verão que
venerava abelhas.
Grimsby assentiu daquele seu jeito lento feito bicho-
preguiça.
— Eu vicejaria numa seita vampírica.
— Nenhuma das respostas acima — disse Ariel,
deliciada com a diversão e o afeto deles. — Era mais
como se meu pai tivesse escrito o manual dos pais
superprotetores. Nós fomos muito resguardadas. Tem
algumas coisas que eu só fui fazer quando tinha, bem...
Hoje.
— E então, o que tem na sua lista? — perguntou
Vanessa, depois voltou a rir. — Desculpe, é só que... Ai,
meu Deus, Eric, senta, eu não aguento olhar pra você no
robe da minha mãe!
O único lugar vago no ônibus era ao lado de Ariel. Eric
olhou para o lugar, depois para ela, que se espremeu no
canto para abrir espaço para ele. Bem quando tinha
passado um minuto inteiro sem olhar para Eric, lá estava
ele, totalmente no espaço dela. O calor que irradiava de
seu corpo coladinho no dela. O cheiro nítido de sabonete
e eucalipto inundava seus sentidos. Eric agarrou uma
almofada e a colocou no colo, onde a seda vermelha
tinha subido. Ariel sentiu o impulso de se recostar na
lateral do corpo dele, no vão entre seu ombro e o
pescoço, onde havia suspirado até deixar para trás seus
problemas quando eles dançaram.
— Desculpe, Melody — disse Vanessa, enxugando
lágrimas de riso dos cantos dos olhos. — O que está na
lista?
— Porque não há limites para desejos sexuais —
acrescentou Carly.
— Sem desejos sexuais — disse Ariel, incisiva. Por que
as pessoas sempre iam para esse lado? — Eu sou
resguardada, não inocente.
Ela sentiu Eric se retesar a seu lado e precisou de cada
grama de seu autocontrole para não olhar para ele. Por
sorte, o som deliciado de gritinhos e assovios das garotas
foi uma boa distração.
— O que tem, então? — perguntou Carly,
genuinamente curiosa.
— Coisas pequenas. Coisas normais que não dá para
fazer com um pai rigoroso que nunca te deixa sair de
casa.
Ou com mil pessoas acampadas do lado de fora do
trailer ou do aeroporto. Ariel visitara um hospital certa
vez, e alguns paparazzi feriram a si mesmos de propósito
para poder entrar no PS. Os únicos lugares seguros eram
a cobertura ou o estúdio. A cada evento e saída, ela era
acompanhada de uma equipe de segurança. Cada
momento espontâneo tinha que ser roubado. E era isso o
que ela estava fazendo. Roubando sua vida de volta,
num milhão de momentos. Era difícil explicar para a
maioria das pessoas, às vezes até para algumas de suas
irmãs, tudo o que ela nunca vivenciara sem ser em séries
de tv ou filmes. Todas elas já eram mais velhas quando
as Del Mar ficaram famosas. Com os novos amigos
ouvindo, Ariel finalmente tinha essa oportunidade.
— Eu nunca andei de trem até a última parada — disse
Ariel. — Nunca me perdi na cidade. Nunca atravessei a
Ponte do Brooklyn com um desconhecido — disse ela,
girando a caneta com os dedos médio e indicador.
Nisso, olhou para Eric e descobriu que ele já a estava
encarando. Olhos castanhos e meigos... então era isso
que as pessoas queriam dizer quando falavam que os
olhos faiscavam. Ela tinha cantado músicas a respeito,
mas nunca vira isso nos garotos com quem já saiu. Isso
porque Eric Reyes não era um daqueles garotos. Ele era
um homem e tudo o que ela jamais imaginara que podia
querer.
— Pelo menos esse você já pode riscar da lista — ele
cochichou para ela.
E ela riscou. Folheou as primeiras páginas de sua lista
crescente. Anotou a frase e, em seguida, riscou-a.
— Ah, então você quer fazer coisas que vão te fazer
aparecer nos créditos de abertura da série Lei & Ordem
— provocou Max, afastando a franja com a baqueta.
Ariel soltou o ar numa risada, depois corou.
— Tenho outras. Sair estrada afora. Ficar sentada num
café. Passear numa loja de livros usados. Andar de
bicicleta. Dirigir...
— Você nunca andou de bicicleta?
Ariel franziu o nariz com a lembrança. Quando as Sete
Sereias filmaram o videoclipe de “Our Perfect Summer”,
todas as irmãs teriam que andar de bicicleta na praia,
mas só as três mais velhas sabiam. O pai delas mudou o
cenário inteiro para um estúdio e fez a produção montar
bicicletas ergométricas na frente de uma tela verde.
— Não exatamente — confessou, animada pelo
interesse encorajador deles. — Mas, enfim, são só coisas
entediantes, comuns.
— Não é entediante — disse Eric, a voz baixa e
adoravelmente sonolenta.
— Bom, não se preocupe — disse Carly, formando uma
cúpula com os dedos. — Nós vamos te ensinar a viver.

MUSA DE BALTIMORE
Como eu me apaixonei pela
Desafortunados
por Gabi Morataya
Na segunda parada de sua turnê, a banda mais quente da cena no
momento — Desafortunados — é tudo que eu não sabia que
precisava em questão de música. Não se deixe enganar pelo
rostinho bonito de Eric Reyes. O front man canta muito. Vindo de
Medellín, na Colômbia, Reyes tem uma voz encantadora,
reminiscente de astros de pop latino que vieram antes dele. O som
dessa banda deixará todos os millenials nostálgicos o bastante para
colocar suas gargantilhas de plástico preto outra vez.

O primeiro single do álbum homônimo transformará qualquer cético


numa fangirl inveterada. Enquanto a maioria do set é composta de
um indie rock animado e onírico, eles desaceleram o ritmo com uma
ocasional balada acústica de derreter o coração. Eleanor Grimsby,
vinda de Montana, entrega uma melodia grave com seu intrépido
baixo. Carly Toles, a guitarrista solo, vem do Queens, Nova York, e
sua presença de palco rivaliza com a de Reyes, e Max Chin nunca
deixa o ritmo falhar na bateria.

Estou viciada e meio que tentada a acompanhá-los no resto da


turnê. Agora sou uma Apaixonada & Desafortunada!
CAPÍTULO ONZE

ERIC
27 de junho
Asheville, Carolina do Norte

— “Os vocais encantadores são reminiscentes dos astros


de pop latino que vieram antes dele” — leu Carly na
resenha na seção de música da revista Musa de
Baltimore.
Grimsby sorriu, sonolenta.
— É a nossa melhor resenha.
— É a nossa primeira resenha — acrescentou Carly.
— A primeira de muitas! — Max estava praticamente
quicando, batucando com os punhos em toda superfície
disponível na sala da frente, mas parou quando a
próxima superfície disponível era a própria Odelia.
Eric se encheu de orgulho. Todo sangue, suor e
lágrimas que derramaram estava começando a ser
recompensado. Tudo o que ele perdera e sacrificara tinha
que ter algum significado. Fechou os olhos por um
segundo e mandou um agradecimento silencioso ao avô.
Eric tinha que admitir, quando Odelia disse que uma
repórter viria para fazer uma resenha do set deles,
tentara manter a compostura pelo bem das outras, mas
se sentia uma pilha de nervos. Agora podia respirar e
desfrutar das horas de folga em Asheville, Carolina do
Norte.
— Pode repetir o trecho em que ela diz que eu sou
extremamente bonito? — pediu Eric.
Ele podia praticamente sentir todos os olhos se
revirando. Vanessa propôs a elas que o jogassem na
estrada em que estavam passando. Mas Melody... Melody
lhe oferecera um sorriso que lhe dizia que ele era
ridículo, mas que ela gostava. Pelo menos, torcia para
que gostasse.
A viagem para Asheville no terceiro dia de turnê foi a
mais longa até então — dez horas, graças ao trânsito. Ele
ainda não conseguia dormir a noite inteira. Cada rangido
do ônibus, cada buzina na estrada, o concerto dos roncos
de Max e Odelia, e aquele guincho baixinho das rodas o
mantinham acordado. Isso e cada parte de seu corpo
ciente de que Melody estava a um braço de distância,
com apenas duas cortinas verde-ácido separando-os.
Embora ela tivesse sido a primeira a acordar e colocar o
café para passar nas duas primeiras manhãs, a luz em
sua cama tinha ficado acesa até longas horas na
madrugada. Eric se perguntava se ela estava
escrevendo. Se estava ouvindo música. Se estava com
saudade de casa. Ele se perguntava muita coisa e dormia
pouquíssimo. Era por isso que não se sentia muito
culpado pelo fato de que logo teria um quarto só para si.
Talvez aí conseguisse parar de pensar em Melody. Na
maneira como ela segurara sua mão naquele elevador.
Na maneira como seu rosto esteve enterrado no calor
perfeito do corpo dela, quando ele a pegou. No alarme
que o percorrera quando ela se machucou, como se a
mão dele tivesse se espetado no metal enferrujado. Eric
Reyes já tivera centenas, milhares de crushes. Por que
este estava tão difícil de esquecer?
— Terra à vista! — anunciou Oz pelos alto-falantes.
Eles adentraram o estacionamento do Hotel Château
de Chillon e esperaram Odelia no saguão, enquanto ela
resolvia tudo. Melody se debruçou sobre o ombro de Oz,
olhando as fotos do acampamento em busca do Pé
Grande de que ele tinha participado no verão anterior.
Ela parecia genuinamente entusiasmada, rindo daquele
jeito dela, como se tudo fosse novo e excitante, mesmo
quando era só uma máquina de chiclete numa parada
rodoviária.
Eric sentiu uma estranha pressão no peito. Seria
ciúme? Ou o burrito do café da manhã tinha caído mal?
Esfregou o pendente dourado de Santo Antônio, um
presente de sua mãe para que ele estivesse protegido
em suas viagens longe de casa, mas não tinha certeza se
existia algum santo que cuidasse de azia.
— Certo, todo mundo aqui — ordenou Odelia.
— Por que você está com sua cara de más notícias? —
perguntou Carly.
O olhar perfeitamente delineado de Odelia recaiu sobre
a guitarrista solo.
— Eu tenho uma cara de más notícias?
Carly olhou fixamente para os próprios pés e deu um
passo para trás. Vanessa deu tapinhas no ombro da
amiga, e todos seguraram uma risada enquanto a
manager continuava.
— Escapou da minha lembrança que Robbie ia dividir o
quarto com Eric. — Os olhos de Odelia fitavam os
recessos mais profundos da mente de Eric. — Então
precisamos reajustar nossos arranjos para dormir.
Um fiapo de pânico o atravessou, mas ele forçou o
rosto a se manter neutro.
— Quem é Robbie? — perguntou Melody, puxando para
baixo o boné de beisebol cor-de-rosa com um caranguejo
vermelho-vivo no centro.
— O cara do merchand que se demitiu — disse
Grimsby.
As maçãs do rosto de Melody ficaram ruborizadas.
— Ah...
— Tem uma convenção acontecendo essa semana, e o
hotel não tem mais colchonetes sobrando — explicou
Odelia, voltando aquele olhar fixo de advertência para a
promotora de merchandising. Será que ele também
estava imaginando o alerta ali? — E o meu quarto só tem
uma cama. Senão, eu sugeriria que você ficasse comigo.
A menos que alguém queira trocar de lugar.
As amigas traidoras bateram na ponta do nariz com os
dedos, sorrindo como se pudessem sentir o gostinho de
sua vitória. Oz percebeu e fez o mesmo, apesar de, como
motorista do ônibus, ter seu próprio quarto garantido por
contrato e não ter ideia da aposta. Elas realmente
subestimavam Eric. Bem, ele provaria que estavam todas
enganadas. Manteria seu cabelo perfeito. Manteria a
dignidade quando elas perdessem e ele fosse poupado
de aprender uma música das Sete Sereias. Ele escolheria
a porcaria da tatuagem da banda — algo que nenhuma
delas poderia mostrar nem para a própria mãe.
Os lábios rosados de Melody se curvaram num sorriso
tímido.
— Eu sou praticamente uma coruja, mas vou garantir
que você tenha o seu sono da beleza.
De súbito, a língua de Eric parecia grande demais para
a própria boca. Por sorte, a manager continuou a dar
instruções.
— É isso, então — murmurou Odelia, prática. — O
check-in é só daqui a três horas. Vocês vão se trocar na
casa de shows, e eu estarei com as chaves dos quartos
de vocês prontinhas. O hotel nos deu ingressos gratuitos
para a convenção, por causa do inconveniente.
— Que tipo de convenção é? — perguntou Melody.
— Alguma coisa em taxidermia? Sei lá, Melody, eu
tenho cara de que vou a alguma convenção?
Oz, contudo, estava sem fôlego de tanta empolgação.
Odelia entregou as entradas para o motorista, que
parecia ter ganhado um milhão de dólares e um filhote
de Pé Grande.
Com isso, eles foram dispensados e liberados para
passear por Asheville. Todos pareceram formar pares.
Carly e Vanessa saíram correndo, e Grimsby e Odelia
ficaram para trás para trabalhar no conceito do
videoclipe deles. Max e Oz ansiosamente se dirigiram
para a convenção de taxidermia.
O que deixou Eric com Melody. As longas ondas
castanhas dela caíam sobre seus ombros. Ele percebeu
que estava contando as pintinhas dela — uma sob o olho,
uma no queixo. Xingou-se mentalmente e apontou numa
direção qualquer com o polegar.
— Eu devia...
Ir. Ele devia ir. Mas aí lembrou que Melody não fora a
muitos lugares sozinha. Ela mesma havia dito isso.
Estava sempre com a família ou trancada em casa, feito
uma princesa de contos de fadas. Seria um escroto total
se fosse embora. Reparou que ela segurava seu caderno
preto. Dois adesivos tinham sido acrescentados: um
caranguejinho de Maryland e um da banda de abertura
deles, Le Poisson Bleu.
Eric silenciou a parte racional de seu cérebro que lhe
dizia para colocar distância entre Melody e ele.
— O que tem na sua lista para hoje?
Em Baltimore, ela tinha ido num passeio gastronômico
com Oz enquanto a banda preparava os instrumentos
para a apresentação. Não que estivesse de olho nela. É
só que ela tinha trazido uma marmitinha, que eles
devoraram depois de ensaiar durante o almoço.
— Brechó e museu do fliperama — disse Melody, com
tanto deleite que ele pensaria que era sarcasmo se
viesse de qualquer outra pessoa. Ela partiu no sentido da
Main Street, e ele acompanhou o ritmo de seus passos.
— Eu já fui a brechós, mas não trouxe jaqueta, e Grimsby
disse que vou precisar de uma quando chegarmos a
Montana, mesmo estando em julho.
— Eu vou com você — disse ele. — Preciso de uma
camisa da sorte nova.
Isso, e ele precisava de alguma roupa para dormir que
não pertencesse a uma venezuelana glamorosa de 55
anos. Eles passearam pelo centro da cidade, cercada
pelas montanhas Blue Ridge nubladas, e encontraram
um brechó muito kitsch ao lado de um café.
O sino da porta tilintou quando eles entraram. Os olhos
de Melody se acenderam ao ver as fileiras de botas de
caubói, bolsas representando todas as décadas
penduradas no teto e manequins vestidas em blusas de
lantejoulas com ombreiras gigantescas.
Uma idosa pequenina — Ruby, era o que dizia o broche
com seu nome — veio ajudá-los e conduzir Melody até as
jaquetas.
— Eu tenho aqui exatamente o que você precisa. Seu
broto pode ficar dando uma olhada.
Eric e Melody se entreolharam, e ela soltou uma
risadinha fungada. Nunca tinha sido chamado de broto
de alguém. Namorado, amante, ficante e, na única vez
em que trabalhara como bartender, uma loba o chamara
de “peguete”. O negócio é que nenhum dos dois tentou
corrigir a dona da loja. Ruby não falou com segunda
intenção, e era um passeio vespertino inofensivo. Eric
tinha certeza de que era por isso que eles não falaram
nada.
Eric deu uma olhada em camisetas antigas de bandas
e encontrou uma camiseta vintage de Selena & Los Dinos
no seu tamanho. Teve o impulso de mostrar a peça para
Melody e atravessou a loja que cheirava a sálvia para
procurá-la na área do provador.
Quando ela o viu, seus olhos brilhavam, maliciosos.
— Encontrei o pijama perfeito pra você.
Eric não estava muito a fim de experimentar ceroulas
usadas, mas faria a vontade dela.
— Vejamos esse pijama perfeito.
Melody apontou para o provador. Escolher roupas de
dormir era algo que amigos faziam? Bem, ele tinha
comprado pantufas das Sete Sereias para Max em certo
Natal, mas aquilo era um presente de brincadeira. Sua
própria curiosidade o fez entrar na cabine estreita.
Fechou a cortina e encarou um macacão adulto em
flanela xadrez vermelha e verde, tão vivo que seus olhos
começaram a doer. Tinha certeza de que só vira algo
assim em desenhos animados. E, no entanto, meteu-se
na peça, ouvindo Melody rir do outro lado da cortina.
Eric saiu para o tapete antigo da loja e caminhou num
círculo. Escrito precisamente sobre o painel nas nádegas,
lia-se elfo sacana.
— E aí?
Melody franziu o nariz e mostrou o polegar virado para
baixo. Ruby, por sua vez, deu um joinha. Ambas não
fizeram esforço algum para esconder sua alegria. Eric
beberia a risada de Melody, se pudesse. Só se sentira
assim, como se quisesse submergir num mar de som, a
respeito de algumas músicas específicas. A voz dela era
perfeita e poderosa para ele.
— Eu tenho outras opções — disse Ruby.
Eric chacoalhou a cabeça, bem-humorado.
— Não, acho que já estou satisfeito.
Depois de trocar de roupa, ele encontrou uma calça de
flanela ainda com a etiqueta original e um novo pacote
de camisetas brancas. Melody provara todas as jaquetas
da loja, mas acabou escolhendo uma bomber amarelo-
girassol com pares de cerejas bordadas por todo lado.
Era horrível. E, no entanto, ele nunca vira ninguém mais
linda.
Quando foi pagar, ela se atrapalhou com um bolo de
dinheiro retirado de um fólio de couro. Juntou seu troco e
sorriu para Ruby enquanto vestia a nova jaqueta vintage.
— Você roubou algum banco? — brincou ele, segurando
a porta tilintante aberta.
A princípio, Melody pareceu alarmada.
— Soph... Digo, hã, minha irmã. Eu não...
— Você não precisa explicar.
— Não, eu quero tentar — disse ela. — Tudo pelo que
trabalhei na vida está preso em contas que meu pai abriu
para nós. Quando éramos pequenas, ele disse que era
um jeito de garantir que nosso dinheiro estivesse a salvo.
— Meu pai fez isso comigo — disse Eric.
— Sério?
Odiava pensar nisso, mas sentia que ela tinha se
aberto, então ele também se abriria.
— Meu pai era um incorporador imobiliário. Ele
construiu sua empresa do zero e, por décadas, foi um dos
homens mais ricos da minha cidade. Eu tive tudo.
Internato na Suíça, um carro para quando fosse para
casa nas férias, meu próprio cavalo.
— Você não tinha um cavalo, vá.
— Tinha, sim. O nome dele era Aquiles. — Eric se
lembrou da vida privilegiada que tivera. — E aí tudo foi-
se embora. Ele fez um investimento ruim atrás do outro.
Nós nos mudamos para uma casa menor. Eu terminei de
estudar em Medellín. Foi quando meu avô foi morar com
a gente, e nós passávamos todos os dias... E eu estou
falando sério, todos os dias mesmo... Tocando violão e
cantando.
— E aí você veio para cá — disse ela.
Ele anuiu devagar.
— Quando parti, meu pai me deserdou. Eu queria ter
percebido antes que este era o jeito dele me controlar.
De me moldar naquilo que ele queria que eu fosse.
Melody ficou pensativa por tanto tempo que Eric sentiu
vontade de passar o braço em volta dela. De transmitir a
ela que não estava sozinha. Que talvez ele soubesse
exatamente como ela se sentia.
— Ficou mais fácil? Estar longe da sua família?
— Eu estou com a minha família — disse ele, sem
hesitar.
Ela pareceu matutar sobre aquilo enquanto eles
chegavam no museu do fliperama. Eric abriu a porta e
ela sorriu.
— Você não precisa ficar se essa não for a sua praia,
tudo bem?
— Está brincando? — Como se ele pudesse se afastar
dela quando Melody o olhava com aqueles olhos
castanhos brilhantes. — Sinto que alguém precisa
documentar essa era na sua vida.
A visita em si ao museu levou dez minutos, mas a
seção com um salão de jogos o fez se sentir como um
menino. Dúzias de máquinas chiavam e apitavam com
luzes e música. Grupos de crianças corriam pelo carpete
laranja, pulando de jogo em jogo. A maioria dos adultos
eram pais enrolando perto do balcão do caixa, mas havia
um único motoqueiro veterano jogando Ms. Pac-Man.
— É como se um cassino e um circo tivessem um filho
— maravilhou-se Melody.
Ela ofegou e passou correndo por ele, indo para um
estande chamado Seahorse Madness. Era um daqueles
jogos de corrida movidos por pistolas d’água. Ela
desapareceu por um segundo, depois voltou com um
saco de fichas coloridas e inseriu algumas na máquina.
Eric seguiu o exemplo dela e escolheu uma das pistolas
d’água de plástico neon. A dele era azul, e a dela, roxa.
— Preparada?
— Se você entregar o jogo para mim, eu vou mudar
meu despertador para o som mais irritante do mundo —
alertou ela.
— Tá bom — disse ele, mirando. — Mas já vou avisando
que passei vários verões na fazenda do meu avô sendo
acordado por galos malucos e tarados, então consigo
dormir com qualquer ruído.
Melody apertou o botão de início e lá foram eles. Um
calipso de som metálico tocava, e rajadas de bolhas
irrompiam de alguma máquina automática. Ele não era
rápido no gatilho assim desde... Bem, um bom tempo.
Olhou de relance para Melody, o rosto dela franzido
numa concentração tão fofinha que ele ficou
francamente tentado a deixar que ela ganhasse naquele
mesmo instante. Mas estavam cabeça a cabeça, e ele
precisava provar para si mesmo que podia tratá-la como
uma amiga. Nunca deixava Max vencer em disputas de
bebida nem Carly ganhar no braço de ferro bêbado. Por
que a ideia da decepção de Melody, só o pensamento de
que ela se sentisse desapontada sequer por um segundo,
corroía-o assim?
Ele sabia por quê, mas não podia se permitir a
confissão. Não ali; ainda não.
Quando estavam quase no fim, o cavalo-marinho verde
dele na vantagem por um fio de cabelo, ele
simplesmente não conseguiu evitar. Não pôde. Errou um
clique e valeu a pena, só pela dancinha feliz que ela fez.
— Nerd — resmungou ele, brincalhão.
— Espera aí. — Ela virou a pistola d’água para ele. Suas
sobrancelhas se ergueram, desconfiadas. — Eric!
Ele levantou as mãos.
— Meu dedo deu câimbra! Você sabe o quanto seria
catastrófico se eu desenvolvesse síndrome do túnel do
carpo porque jogamos Seahorse Madness?
Melody revirou os olhos e o acertou bem no peito com
um esguicho de água morna. Aquilo não podia ser lá
muito higiênico.
Depois disso, ele não a deixou ganhar. De verdade.
Venceu dela no pebolim, no hóquei de mesa e no
motocross virtual. O salão de jogos também ostentava a
máquina de fliperama Guerra nas Estrelas mais rara do
país, com apenas seis tendo sido produzidas.
Melody se instalou e tentou fazer a bola metálica
passar por entre os grupos de caças tie. Começou a ficar
cada vez mais frustrada quando não conseguiu uma
pontuação alta.
— Contaria como entregar o jogo se eu te ensinasse
um truque? — perguntou ele.
Melody se postou ao lado da máquina, abrindo lugar
para ele. Eric inseriu um par de fichas e mexeu nos
botões com a almofadinha logo abaixo do polegar. Ela
estudou os dedos dele e a forma como a máquina
acendeu, zumbindo com todos os efeitos sonoros dos
filmes.
— Eu fiz isso! Espera, me mostra de novo.
Ele deu um passo para trás, convidando-a para a área
entre ele e o fliperama. Quando ele inalou o cheiro de
rosas do shampoo dela, cerrou os dentes e colocou outro
passo entre eles.
— Aqui.
Ela posou os dedos nos painéis laterais. Ele moldou
suas mãos ao redor das dela, o que exigiu que ajustasse
sua postura por causa da altura dela. Eric fechou os olhos
e pensou nas coisas menos românticas possíveis: aquele
macacão ridículo que ele havia provado, Max roncando
no ônibus, ele mesmo roncando no ônibus. O ônibus.
Melody no ônibus. Melody.
Bem, aquilo não estava funcionando.
— Aperte duas vezes rápido, uma com força, quatro
mais rápido ainda — disse ele, batendo nos dedos dela
para mostrar onde pressionar. — Daí desse jeito, com a
palma da mão. Mas bem rápido. Mais.
— Dois. Um. Quatro. Entendi. — Ele sentiu o peito dela
se expandir. Seu hmmm de entendimento. Ela empurrou
as mangas amarelíssimas para cima. Com a mão do
curativo, usou apenas os dedos. Com a palma boa, fez
exatamente como ele havia ensinado.
Eric apertou o botão de início para ela, e Melody
disparou. Dois. Um. Quatro. Dois. Um. Quatro. Dois. Um.
Quatro. A máquina zumbia e urrava com os alarmes, os
pew pew e o chiado estalando das espadas espaciais, até
que ela conseguiu.
Melody deu meia-volta e saltou nos braços dele. Eric
levou um susto com o impacto e, para impedir que
caíssem, segurou-a pela cintura. Ela chutou o ar por um
segundo antes que ele a colocasse no chão de volta.
— Vou dividir meu prêmio com você — disse ela,
seguindo pelos corredores em busca de outro jogo.
Quando dobraram uma esquina, congelaram. Havia
uma menina de uns seis anos sentada no chão. Ela tinha
dois pufes de cabelo cacheado presos com lacinhos cor
de rosa e lágrimas enormes rolavam por seu rosto.
— Você precisa de ajuda? — perguntou Eric.
Ele não tinha ideia do que fazer perto de crianças,
quanto mais crianças chorando. Freneticamente, olhou
ao redor em busca de um adulto, depois se deu conta de
que ele era o adulto.
— Ninguém quer dançar comigo — a menininha disse
em sua voz aguda.
Melody olhou para o jogo com um leve horror. Era uma
monstruosidade temática das Sete Sereias, cheia de
azuis faiscantes. Sete versões em desenho animado das
cantoras dançavam numa tela, e criaturas marinhas
saltavam da água, incentivando vítimas desavisadas a
dar um passo à frente e exibir seu molejo. Dois conjuntos
de pegadas pulsavam no ritmo da música animada.
— Uma pena que Max não esteja aqui — disse ele.
Melody ofereceu a mão para a menina.
— Eu danço com você.
A criança se animou no mesmo instante, e ela e Melody
subiram na plataforma acesa, colocando os pés nos
lugares. Fizeram uma contagem regressiva e seguiram a
coreografia do vídeo na tela pixelada. Pontos extra e
peixinhos minúsculos explodiam num arco-íris de cores a
cada passo correto. A música, embora melosa, fez até a
cabeça dele se mover, acompanhando. Bem, ele tinha
desejado a coisa menos romântica possível e conseguira.
E, no entanto, vendo o quanto Melody foi paciente com
a criança chorando quando tudo o que ele tentara fazer
era encontrar outra pessoa para quem transferir o piti, o
quanto ela era gentil em compartilhar um momento de
seu tempo e garantir que a menininha não se sentisse
sozinha... Eric a achara linda desde o momento em que
pusera os olhos nela. Ele a julgava corajosa, engraçada,
fofa, tímida. Paciência era algo diferente. Era algo que
raramente lhe fora dado — nem por seus pais, nem por
seus professores. Apenas seu avô e Odelia tinham
demonstrado paciência com ele.
Esfregou seu pendente de ouro e sorriu conforme o
jogo desligava. A irmã adolescente da menina veio
procurá-la, e Melody voltou para ele. Eric aplaudiu e ela
fez uma mesura brincalhona.
— Estou morrendo de fome — anunciou Melody.
— Bom. Eu tenho certeza de que você está cansada de
perder para mim.
Ela parou, mas contou suas tiras de bilhetes
vermelhos.
— Suba naquela plataforma. Isso foi um desafio.
— Nem com você me pagando eu danço essa porcaria
— disse Eric. — Melody inspirou num ofego. Será que
estava ofendida? Será que estava fingindo? — Não me
diga que você escuta as Sete Sereias. — Ele pressionou
as mãos como se em oração. — Você, que gosta de
música de verdade?
— Está vendo, eu não julgo o gosto musical dos outros.
Melody ignorou a reação dele e levantou um ombro.
Suas bochechas coraram, e ela nem olhou nos olhos dele
enquanto lhe segurava o braço e o levava para o balcão
do caixa.
— Não estou julgando.
Ela espremeu os olhos para ele.
— Está, sim.
— Tá, estou. Talvez só um pouquinho. — Ele deu a volta
nos displays de bichos de pelúcia, borrachas, molas
malucas e todo tipo de prêmio barato e colorido. —
Nunca foi a minha. Max me enche tanto o saco por causa
disso...
Melody mordeu o canto da boca, analisando-o com
aqueles olhos impossivelmente castanhos.
— Talvez você precise ouvir de verdade.
— Talvez — disse ele, debruçando sobre uma prateleira
de ursinhos de pelúcia. — Talvez você devesse me fazer
uma playlist. Para eu poder ouvir de verdade, sabe?
— Você quer fazer uma playlist comigo? — convidou
ela, tímida.
Eric engoliu um rosnado que começara a se formar no
fundo de sua garganta. A voz dela. Será que ela tinha
alguma ideia do que fazia com ele?
Por sorte, um funcionário adolescente com a cara cheia
de espinhas que estava por ali pigarreou.
— Vocês dois vieram pegar os prêmios ou se pegar?
Melody riu, fungando, mas juntou os bilhetes de
prêmios que tinha guardado nos bolsos.
— Pegar os prêmios.
— Espera — disse Eric. — Qual é o próximo item da
lista?
— Você tem ensaio — respondeu ela. — Eu vou
almoçar.
Como se alguém a tivesse invocado, Odelia enviou
uma mensagem de texto perguntando onde ele estava. O
telefone de Melody tocou ao mesmo tempo, e ele a viu
rejeitar a chamada, percebendo que a chamada estava
identificada como número desconhecido.
Eric hesitou. Pela primeira vez em anos, cogitou faltar a
um ensaio só para ter mais uma hora com Melody. E esse
pensamento bastou para jogá-lo de volta à realidade. Ele
tinha ensaio. Ele tinha um show.
Entregou todos os seus bilhetes para ela e sorriu.
— Nada de borrachas.
— Não prometo nada.
Melody sorriu de volta.
E então Eric foi embora do salão de jogos e precisou de
toda a sua força de vontade para não olhar para trás.

Naquela noite, eles lotaram o River Valley Club. O palco


era tão baixo que a multidão estava quase perto o
bastante para tocá-los. Eles dançaram e cantaram e
gritaram, e cada grama de energia que receberam
mandaram de volta. Quando Eric cantou “Love Like
Lightning”, sentiu cada vibração da massa dançante, a
batida frenética de seu coração sincronizando com o
ritmo, como se estivesse cantando aquela música pela
primeira vez.
O rugido da plateia era tudo o que ele queria, e sentiu-
se compelido a dizer Gracias, Pedro quando as luzes se
apagaram.
Depois do show, tiveram um demorado jantar num
restaurante japonês ao lado da casa de shows. Os
moradores da área que tinham ido à apresentação os
abordaram, e a banda teve uma síncope quando lhes
pediram para assinar guardanapos e tirar selfies.
Quando voltaram ao hotel, Eric já tinha quase se
esquecido de que dividiria o quarto com Melody.
Quase.
Eles pegaram suas bolsas de pernoite nas entranhas da
Fera e retiraram os cartões que serviam como chaves
com Odelia. Por causa da convenção, não estavam todos
no mesmo andar. Espremendo-se no elevador, todos
subiram. Melody e Eric desembarcaram primeiro. Carly e
Vanessa assoviaram enquanto as portas se fechavam, e
ele deu boa-noite com um gesto grosseiro antes de abrir
a porta do quarto.
— Zerinho, eu tomo banho primeiro — anunciou
Melody, largando a bolsa na entrada.
Ela tirou os sapatos e abriu a porta do banheiro com
um cuidado extremo.
Ele desamarrou o cadarço de suas botas e reprimiu
uma risada.
— Está esperando que um gremlin vá sair pulando daí
ou o quê?
— Ah — disse Melody, corando de vergonha. — Ah, eu
li que havia ursos por aqui.
— Eu não sou especialista em vida selvagem, mas acho
que estamos a salvo. Ursos ficam apenas em hotéis cinco
estrelas. — Ele abriu os braços para apontar o quarto. O
papel de parede dos anos 1980. A cortina medonha que
combinava com o carpete vertiginoso. A cama tamanho
queen, a qual ele ia se convencer de que estava com
lençóis fresquinhos. — Duas estrelas.
Espera aí.
Ambos se voltaram para a única cama tamanho queen
ao mesmo tempo, depois olharam um para o outro.
— Eu posso dar um jeito nisso — disse Eric.
Com o coração trovejando, ele ligou para a recepção.
Levou cerca de dois segundos para a mulher do outro
lado da linha lhe dizer que aquele era o último quarto
disponível e que não havia nada que ela pudesse fazer
para acomodá-los.
Eric lentamente devolveu o receptor ao gancho.
— Pelo visto, a Convenção de Taxidermia de Asheville
atrai muita gente.
Melody batucou os dedos na parede atrás dela,
distraída.
— Isso é esquisito?
— Não precisa ser — disse ele. — Eu quero garantir que
você esteja confortável. Vou dormir no ônibus.
— Se eu não me sentisse confortável com você, estaria
dormindo no chão do quarto da Odelia agora mesmo —
disse Melody. — E não teria me unido à sua turnê de sete
semanas. Somos amigos, certo?
Ele anuiu, a garganta seca.
— Certo.
— Devo avisar, já me disseram que eu roubo as
cobertas.
Ela riu e desapareceu para dentro do banheiro.
O primeiro pensamento de Eric foi quem? Quem te
disse isso?, seguindo por uma pontada de ciúme. Ele não
era um homem ciumento. Nunca tivera motivos para ser.
Mas ali estava ele, sem pensar com a cabeça de cima e
se prendendo em pensamentos que o faziam desejar ser
descuidado. Seu segundo pensamento foi a banda. Ele
tinha um trabalho a fazer.
Enquanto esperava Melody terminar o banho, repassou
a set list, encaminhou pedidos de entrevistas para
Odelia, ignorou mensagens de texto picantes de suas
amigas e ligou a tv no jornal da noite. Com certeza devia
haver um assassinato sangrento em algum lugar que o
distrairia de Melody, que estava tomando um banho a
dez passos de onde ele se encontrava sentado numa
cadeira feia que já tinha sido branca um dia. Algo para
conter a prensa aferrolhada em torno de seu coração
quando ela saiu do banheiro para o quarto ínfimo, vapor
soprando a seus pés. Vestida numa camiseta solta
dizendo eu amo narvais e shortinhos minúsculos.
— Sua vez.
Eric foi para o chuveiro num pulo e se ensaboou
debaixo de uma água escaldante. Ele fazia suas
melhores composições no banho, embora as colegas de
banda e de casa com frequência reclamassem quando
chegava a conta de água. Agora, enquanto se lavava da
apresentação, descobriu que não havia letra alguma.
Havia apenas um carrossel de emoções que nunca
sentira com tanta intensidade, girando e girando até ele
se libertar da própria negação.
Enquanto se enxugava e usava o secador de cabelo
preso à parede, ele teve uma iluminação. O que sentia
por Melody não era um crush passageiro. Ele gostava
dela, de verdade. E tinha que parar. Sim, havia a aposta,
a banda, seu futuro. Mas, mais do que isso, ele não
colocava seu coração em risco há tanto tempo que não
sabia nem por onde começar.
Incapaz de dormir no banheiro (embora tivesse
cogitado, caso houvesse uma banheira de fato), vestiu
seu pijama do brechó e foi para a cama.
Melody tinha pegado um cantinho do colchão, do lado
mais perto da porta. Seu caderno estava aberto no colo.
Ele sorriu quando notou que ela estava usando o garfinho
dourado do bar do Julio para tirar um nó das pontas do
cabelo.
— Então, fique à vontade para não responder, se não
quiser — disse Eric, dando a volta na cama e sentando
no lado reservado para ele. — Mas o seu pai era tão
severo que não te deixava ir nem a um fliperama?
Melody fechou seu caderno, enfiando o garfo no centro
para guardar a página, e colocou-o na mesa de
cabeceira. Ela se virou de frente para ele, os dedos dos
pés escondidos sob as cobertas.
— Nós não tínhamos permissão para brincar com
outras crianças. Pelo menos minhas irmãs e eu tínhamos
umas às outras.
— Então você nunca teve amigos, tirando sua família?
— perguntou Eric, enfiando-se debaixo do edredom.
— Alguns poucos — disse ela. — Amigos. Namorados.
Mas meu pai precisava aprová-los, e ele podia mudar de
ideia com facilidade, o que acontecia mesmo.
Será que seu pai me aprovaria?, perguntou-se ele.
Uma voz que soava como a de seu próprio pai
respondeu: não.
Eric franziu o cenho, tentando imaginar como podia
existir alguém mais controlador do que o próprio pai.
— Isso é terrível.
— Meu pai tinha lá suas razões.
Melody enfiou a mão por baixo das cobertas e tirou de
lá aquele tubarãozinho de pelúcia. Ele se lembrou de ela
ter dito que uma de suas irmãs o dera de presente.
— Quais razões ele poderia ter?
— Minha mãe morreu quando eu era pequena —
explicou ela, e ele se sentiu um grosseirão. — Acidente
de carro. Foi há muito tempo, mas às vezes parece que
foi ontem. Depois disso, ele se tornou muito cuidadoso.
Como se, caso ficasse de olho em nós, nos mantivesse
resguardadas e longe dos outros, então estaríamos a
salvo. Eu sempre o defendi. Não sei quando foi que
aconteceu, mas cheguei a um ponto em que eu via que
existia todo um mundo fora do nosso e que nós vivíamos
de forma paralela a ele, mas não nele. Entende?
Eric queria se estapear.
— Caralho, Melody, me desculpa. Eu fico fazendo essas
piadas de seita e nem sabia...
Ela estendeu a mão e colocou o tubarão de pelúcia no
peito dele.
— Aqui. Minha irmã abraça o Tibby quando se sente
estressada ou emocionalmente comprometida. Ela finge
que é durona, mas é uma maria-mole.
— Emocionalmente comprometida — conjecturou ele.
Podia se identificar com isso. — Tibby? Diminutivo de
Tibothée?
Melody riu, depois cobriu a boca com a mão quando se
lembrou de que já passava da meia-noite e as paredes
eram superfinas.
— Tiburón — disse ela, depois contorceu as mãos numa
interpretação em garras das mandíbulas de um tubarão.
— Essa coisa é quase da minha idade.
— Ele também vai nos proteger dos ursos que vêm
dormir em hotéis duas estrelas?
Ela se escondeu debaixo de um dos travesseiros.
— Ah, o que é isso...
Eric virou de lado e colocou o tubarão entre eles.
— Falando em animais de pelúcia de apoio emocional,
que prêmios você pegou com todos aqueles bilhetes que
eu ganhei?
Melody afastou as cobertas com os pés, as pernas
fortes e beijadas pelo sol como algo saído diretamente
das fantasias mais delirantes dele. Ela vasculhou sua
mochila e jogou para ele um brinquedo plástico de usar
na banheira. Ele o pegou no ar. Um gato-unicórnio.
Apertou o brinquedo e se arrependeu ao ouvir o terrível
grasnado.
— Acho que encontramos um mascote para a turnê.
Ele o colocou na mesa de cabeceira e deitou de barriga
para cima. A adrenalina do dia se esvaía conforme ele se
ajeitava na cama. Enquanto Melody fazia o mesmo, ele
se permitiu uma olhadela. Só uma, para ter certeza de
que ela estava bem. Confortável e segura dividindo o
espaço exíguo com ele.
Seu cabelo escuro e comprido se derramava sobre o
travesseiro. Ela dobrou as mãos sobre a barriga e
suspirou antes de apagar a luz.
Por algum tempo, ele pôde ouvir o zumbido do silêncio,
como se o espaço entre as coisas — as paredes, a cama,
a placa de compensado que chamavam de mesa, os
animais de brinquedo — tivesse um som.
— Sabe o que é esquisito? — cochichou ela.
Ele se virou para o som de sua voz, os olhos se
ajustando ao escuro. A luz vermelha do despertador do
lado dela lançava um brilho misterioso. Uma onda de
ansiedade o varreu.
— O que é esquisito?
Eric podia ouvi-la se mover contra o travesseiro,
virando de frente para ele. Viu os contornos de seu rosto
nas sombras quando ela disse:
— Isso não parece esquisito.
O desejo fervilhou na área inferior de sua barriga. Pela
honestidade, pela confiança na voz dela. Por ela.
— Eu sei — ele cochichou de volta.
E foi quando aconteceu. Um baque lento contra a
parede deles, como algo se chocando e empurrando e
batendo contra uma cabeceira. Ah, não... Ai meu deus. E
foi precisamente isso que ele ouviu os vizinhos deles
gritarem através das paredes.
— Tá, agora isso é esquisito — murmurou Melody.
Ele apertou o gato-unicórnio, que guinchou alto.
— É assim, é exatamente assim que eles soam.
Melody enterrou o rosto no travesseiro para abafar a
risada.
— Isso vai entrar para a lista.
— Ouvir duas pessoas fazendo ruídos iguais aos de um
jumento durante o sexo não é comum. Só avisando.
— Talvez haja um jumento mesmo, nós não sabemos.
— Tem razão, não sabemos. E houve mesmo uma
convenção de taxidermia aqui.
— Aí já foi longe demais.
Mas ela riu com ele, e Eric riu até seu abdômen doer,
até a tensão se soltar de seus ombros, de todo o seu ser,
e ele afundar no primeiro sono profundo que conseguiu
desde que saíra de casa.

Chat do grupo Sete A Pressão

Marilou:
Como vai o namoradinho?
Ariel:
Não é bem assim.
Ariel:
E tá tudo bem. Ele tá dormindo.
Sophia:
Eu não acredito que você tá de volta num ônibus de turnê.

Ariel:
Estamos num hotel essa noite.
Thea:
Espera, como você sabe que ele tá dormindo? vocês estão no mesmo quarto?!

Ariel:
Era para ele dividir o quarto com o cara do merchand. Ele também rouba as
cobertas.
Stella:
é u q?!?!

Alicia:
Uma cama só?!
Ariel:
Ele tá dormindo, eu já falei.
Eu tô escrevendo.
Sophia:
Você está tomando cuidado?
Ariel:
Vocês são terríveis.
Nós somos amigos. E só.
Ariel:
Ele não é como eu pensava.
Meigo. Gentil. Ele realmente quer muito isso.
Elektra:
Uma pena que você não pode ser mentora dele.
Marilou:
ou talvez possa. Mas discretamente.
Marilou:
Mentoria disfarçada!
Thea:
Eu acho que ela deveria beijá-lo e acabar logo com isso.
Sophia:
Não, Ariel não deveria beijá-lo para acabar com isso. Beijá-lo só vai deixar
tudo pior e mais complicado.
Stella:
Mas você já viu o Pixagram dele?
diliça.

Ariel:
Não sei por que eu conto as coisas pra vocês...
Alicia:
Por que nós somos as melhores e você tá com saudaaaaade...
Marilou:
Você sabe o que vai fazer quando voltar pra casa?
Sophia:
Ainda estou brigando com os advogados, inclusive.
Ariel:
Obrigada, detetive Sophia. Vocês descobriram alguma coisa sobre Odelia
Garcia?
Stella:
Nadica.
Sophia:
Eu revirei todos os registros da empresa.
Marilou:
Acho que eu consigo hackear o computador do papai...
Thea:
Ah vá, aquela coisa praticamente vive algemada no pulso dele.
Alicia:
Você acha que ela estava falando a verdade sobre conhecer a mamãe e o
papai?
Ariel:
É isso que eu quero descobrir.
CAPÍTULO DOZE

ARIEL
28 de junho
Nashville, Tennessee

Ariel del Mar acordou com uma música na cabeça e um


homem debaixo de si. Apenas um era motivo para
preocupação.
Sua cabeça repousava sobre o peito de Eric, subindo e
descendo com a respiração regular dele. Podia ouvir as
fortes batidas do coração dele e, por um momento, quis
ficar ali. O braço dele jogado em torno dela, a palma da
mão descansando com firmeza sobre a curva do quadril.
A perna dela esparramada por cima da parte inferior do
corpo dele. A mão pousada acima do peitoral.
Tentou se lembrar da noite passada. Eric pegara no
sono ouvindo os grasnados vindos do quarto vizinho,
depois ela trocara mensagens de texto com as irmãs até
não conseguir mais manter os olhos abertos. Em algum
ponto, eles devem ter rolado para junto um do outro. O
quarto estava frio, disse para si mesma. Embora seu
coração desse uma forte pontada de anseio, precisava se
desembaraçar do deus da música todo rijo em seus
braços.
Quando ela gentilmente moveu sua mão, Eric se
mexeu. Seus longos cílios tremularam como se estivesse
sonhando. Ele alisou o antebraço dela, esfregando para
cima e para baixo, e ela não conseguiu tirar os olhos
dele. Ninguém jamais a abraçara assim. Forte e suave ao
mesmo tempo, como se ela fosse algo para acalentar e
nunca abrir mão.
Daí vieram as batidas na porta. Os olhos dele se
abriram de súbito e os olhares de ambos se encontraram.
Ariel viu o pânico nos dele quando Eric percebeu os
membros de ambos entrelaçados. Eles se separaram
num pulo. Ela se jogou com um pouco mais de força do
que o necessário e quicou para fora da cama.
— Tô indo! — avisou ela.
— Não, espera, espera — sibilou Eric, juntando as
cobertas ao seu redor.
O rosto dela ardia, mas não havia escolha que não
fosse abrir a porta. Oz estava ali, usando um chapéu
pescador com o logotipo da convenção. As chaves
pendiam de uma fita e ele bebericava um café gelado
gigante. Seus olhos castanhos foram dela para onde Eric
estava, parecendo que tinha perdido uma briga com os
lençóis.
Oz abriu um sorriso malicioso, depois fez um gesto de
fechar os lábios com um zíper antes de dizer:
— Estou pegando os pedidos do café da manhã para
viagem, e vocês não atenderam aos celulares.
— Dois segundos! — gritou ela e depois fechou a porta.

Na estrada ao nascer do sol, quase todo mundo voltou a


dormir em suas camas. Ariel vibrava de tanta cafeína,
então se ajeitou confortavelmente na mesa da sala da
frente. Bebericou seu café sem açúcar numa caneca
onde se lia i heart coney island e assistiu à paisagem se
movendo pela janela enquanto anotava frases e
pensamentos com potencial para se transformarem em
letras de música. Escrevera muitas músicas assim, nas
horas entre a manhã e a noite.
Era estranho como as preocupações que ela tivera
numa turnê das Sete Sereias eram as mesmas que ela
havia tido como promotora de merchandising para a
Desafortunados. Será que seu pai estava num surto de
fúria? Suas irmãs estavam bem e felizes? Será que seus
fãs já tinham enjoado dela? Será que o blogueiro musical
que odiava as Sete Sereias tinha ouvido e feito a resenha
do último show delas, só de raiva? A única diferença é
que ela não tinha mais controle sobre os desfechos. Seu
pai sempre encontraria algo que não estava à altura de
suas expectativas. Suas irmãs estavam prontas para
levar as próprias vidas, mas ainda conectadas a ela, não
importava o que acontecesse. Os fãs e haters sempre
iriam querer mais. Talvez o motivo pelo qual ela ainda
tinha as mesmas preocupações era que ela nunca tivera
controle sobre os desfechos, para começo de conversa.
Ali, a bordo da Fera, enquanto a aurora iluminava seus
garranchos de tinta, ela respirou fundo e abriu mão
dessas preocupações. Sabia que elas voltariam, mas, até
lá, queria se sentir presente.
Grimsby se juntou a ela, enchendo as canecas de
ambas.
— Não imaginei que você tomasse café puro e sem
açúcar.
Ariel arqueou a sobrancelha. Estava acostumada
àquele comentário e ficava surpresa ao ouvi-lo, mesmo
sem usar maquiagem completa e uma peruca vermelha.
— O que você imaginou que eu tomasse?
— Sei lá. — Grimsby se largou em seu lugar, do outro
lado da mesa. — Um latte de baunilha, sem açúcar, com
canela e leite de aveia, algo assim...
— Uau — disse Ariel, quase inalando o lodo amargo em
sua caneca. — Não sei se deveria me sentir ofendida ou
não.
— Ah, eu não quis insinuar nada com isso. — Os olhos
cinza de Grimsby eram muito expressivos. Faziam Ariel
pensar numa coruja-da--neve piscando, surpresa. —
Desculpe, eu posso ser um pouco crítica.
— Vamos trocar primeiras impressões — disse Ariel,
abrindo um sorriso desarmante para a gótica.
— Você primeiro.
— Eu pensei: intimidante e séria.
Grimsby deu um sorriso preguiçoso.
— E agora?
— Atenciosa. Você sempre dá seu travesseiro extra
para Carly em trechos mais longos e repõe o café de todo
mundo sem que precisem pedir.
— Justo e correto. Agora você. — Grimsby batucou o
dedo comprido no queixo pontudo.
— Seja gentil.
Grimsby sorriu, envergonhada.
— Bem, tenha em mente que minha percepção foi
distorcida porque Eric voltou para casa depois de uma
noite com você agindo feito um tonto do caralho.
As bochechas de Ariel esquentaram.
— Continue.
— Eu te achei injustamente linda e demente.
Dessa vez, ela engasgou mesmo no café, só um pouco.
— Demente?
— Sei lá! — Grimsby deu de ombros, inocentemente. —
Quero dizer, alguma coisa deve ter te abalado para você
botar o pé na estrada por sete semanas com
desconhecidos. É como as pessoas que aceitam
empregos em cruzeiros marítimos. Você simplesmente
faz as malas e some, sabe?
— Não é o que você fez? — Ariel inclinou-se para perto,
impressionada por ouvir a baixista falar tanto de uma só
vez.
— É. Só que, quando eu fugi, não tinha para onde ir. Eu
tinha dezessete anos e odiava minha madrasta. Roubei o
carro do meu irmão de criação, fui para Seattle. Larguei o
carro estacionado em fila dupla para que alguém o
encontrasse, aí arrumei um emprego como passeadora
de cães. Então, é. Demente.
Ariel tentou imaginar essa gótica passeando com uma
dúzia de cachorros fofinhos. Combinava.
— Eu não acho que isso seja demente. Acho que é
corajoso.
— Talvez um pouco dos dois — disse Grimsby. — Para
ser honesta, eu estava com um pouco de medo de que
você fosse magoar Eric. Ele é um coração de manteiga e
já foi magoado antes, então a gente se preocupa com o
coração grande e tonto dele. Ele é, tipo, apaixonado pelo
amor.
Magoado como? Quando? As perguntas borbulhavam
em sua garganta, mas Ariel sentia que precisava
perguntar diretamente para ele.
Ela desenhou estrelas pequeninas em seu caderno
para manter os dedos ocupados.
— E agora? Qual é a sua segunda impressão?
— Bom, naquela mesma noite eu pensei: ela é legal
pra cacete e corajosa. Um pouco insegura. Você sempre
se olha no espelho e parece surpresa. Como se estivesse
se vendo pela primeira vez.
Ariel soltou a caneta. Não achou que ninguém fosse
notar.
— Acho que ainda estou me acostumando com essa
versão de mim mesma. Tipo, eu ainda sou a mesma
pessoa se deixar para trás todas as coisas que fazem de
mim aquilo que sou?
— Acho que vou precisar de mais café antes de
tentarmos responder a isso.
Ariel compartilhou a risada baixa de Grimsby.
— Você já voltou alguma vez?
Grimsby franziu o cenho para seu café.
— Nosso show em Missoula será a primeira vez em oito
anos. Tô meio que surtando. Ainda estou tentando decidir
se deveria convidar minha família. Suponho que todos
nós temos algo a provar com essa turnê.
Ariel se levantou para fazer mais café. Grimsby não
sabia o quanto estava certa.

O Nashville Bowl era parte pista de boliche e parte casa


de shows. Também tinha um estande para merchandising
que parecia um camarote. Era a maior casa da turnê até
então, e Ariel podia sentir o nervosismo da banda
enquanto eles se preocupavam com a capacidade do
local.
Ariel tirou uma foto do estande já organizado e a
publicou em sua nova conta privada no Pixagram. Era
chocante ir de cem milhões de seguidores para apenas
as cinco pessoas no ônibus, mas também era libertador
estar anônima. Ela deu instruções explícitas para as
irmãs não a seguirem, nem à banda, para que ninguém
reparasse. Além do mais, o novo feed de Ariel era cheio
de imagens completamente espontâneas de seu
caderno, o lodo que era seu café, placas de bem-vindo nas
estradas estaduais e do gato-unicórnio de brinquedo. Ela
também postava fotos da banda e seguia a nova hashtag
dos fãs, #Apaixonados&Desafortunados.
A cada apresentação, o perfil da banda crescia mais
algumas centenas de seguidores. Quando mais ela os
conhecia, mais orgulho sentia. Eles estavam construindo
algo, de maneira lenta, mas constante. Para ela, o
sucesso pareceu instantâneo. Gente na sua cara, fãs
querendo um pedaço seu. Sentia saudade de interações
pessoais, como em Asheville, quando dançou no joguinho
das Sete Sereias no fliperama com a menininha. Em
seguida, lembrou que seu pai jamais teria permitido que
algo tão espontâneo acontecesse, não sem uma dúzia de
fotógrafos em volta, mais a família para assinar um
termo de responsabilidade.
Quando Ariel notou Eric vindo para seu estande,
concentrou sua energia nervosa em ajeitar o display já
perfeito na mesa. Eles não tinham conversado sobre
aquela manhã nem reconhecido que tinham dormido nos
braços um do outro. Considerava que aquilo podia ter
mais significado para ela, alguém com uma lista
crescente de primeiras vezes, do que para um cara que
era “apaixonado pelo amor”, como dissera Grimsby.
Eric bateu na lateral do estande. Seu sorriso fácil fez o
coração dela tropeçar.
— Boliche. Está na lista?
Estava. As Sete Sereias tinham feito um vídeo numa
pista de boliche para a música “Strike to the Heart”, mas
o diretor gritou Corta! assim que ela assumiu a posição
para jogar de fato a bola, e Ariel e as irmãs foram
conduzidas para outro cenário.
Ela assentiu e pegou a mão que ele ofereceu para se
juntar aos outros no segundo andar. Le Poisson Bleu
também foi. Louie, o vocalista francês, parecia tão
espantado com o jogo, e com as imitações que Eric fazia
de O Grande Lebowski, que acabou desistindo e anunciou
que ia lá fora fumar.
— Quer ir comigo? — convidou ele, oferecendo a mão
para Ariel.
Ele tinha dedos esguios de quem tocava piano, dedos
que ela vira deslizar para cima e para baixo em seu
teclado.
— Eu não fumo — disse ela, franzindo o nariz com a
lembrança da primeira e última vez que ela e Marilou
tinham experimentado cigarro.
Louie deu uma piscadinha para ela e saiu flanando.
Max e Carly soltaram um assovio sugestivo, mas Ariel
as ignorou, já que era sua vez. Ela ondulou os dedos
sobre a abertura antes de levantar uma bola roxa
cintilante da prateleira.
Olhou de esguelha por cima do ombro para onde os
amigos a incentivavam. Eric batia palmas como se
assistisse a uma partida de futebol. O nervosismo
retesou seu estômago, mas ela usou aquela energia para
se focar. Para mirar. Para sentir o peso da bola e, então,
soltá-la.
Strike!
Ariel levantou os punhos no ar e Carly gritou:
— Sorte de principiante! Passe para o meu time.
O resto daquela hora foi cheio de bolas na canaleta e o
placar final a situou em penúltimo, na frente apenas de
Oz, mas ela enviou uma selfie brega para as irmãs.
Sophia:
Não me lembro da última vez que te vi sorrir tanto, minha
peixinha.

Marilou:
Que inveja!

Stella:
Buuuu! Me leva, por favor!

Ariel devolveu os sapatos, piscando para afastar a


emoção que veio com a saudade das irmãs.
Mais tarde, no almoço, devoraram um churrasco
suculento e delicioso. Da última vez em que visitara
Nashville para se apresentar no The Golden Grand,
Elektra e Sophia é que tinham escapulido para curtir
música ao vivo, disfarçadas com perucas neon e faixas
de despedida de solteira. Ariel era jovem demais, com
muito medo de ser pega.
— Alguém a fim de ir a uma loja de discos? —
perguntou Ariel quando eles saíram de Nashville Bowl.
Cada um deles, exceto Oz e Eric, recusou por causa do
quanto tinha comido. Ariel pediu um carro de aplicativo
até a PhonoGold, em Nolensville Road, com Oz
espremido entre ela e Eric feito um urso de pelúcia
humano que não parava de espirrar. Muito bem. Com a
companhia de Oz, parecia uma atividade em grupo, em
vez de um encontro. Mas, pensando bem, todos os
encontros dela tinham sido manobras publicitárias, até o
ano que passara achando que estava apaixonada por
Trevor Tachi. Logo, o que diabos ela sabia sobre
encontros reais?
Rapidamente anotou Ter um encontro de verdade em
sua lista para não se esquecer, aí fechou o caderno antes
que Eric ou Oz pudessem ver.
Tarde demais. Oz, com um olhar curioso, perguntou:
— Você nunca teve um encontro de verdade?
— Não exatamente.
O calor subiu por seu rosto quando Eric se debruçou
adiante, interessado.
Até o motorista do aplicativo se virou para lhe dar uma
olhada de cima a baixo.
— Não se preocupe, meu bem. Eu também desabrochei
mais tarde. Com esse rostinho bonito, logo vai ter uma
fila de candidatos.
— Eu tenho tantas perguntas — cochichou Eric.
Ariel olhou pela janela e usou sua melhor voz de
responder a coletivas de imprensa.
— Não responderemos a nenhuma pergunta hoje,
muito obrigada.
Eric riu enquanto o carro os deixava na calçada. Eles
escaparam do calor do Tennessee e entraram na
PhonoGold, que afirmava abrigar mais de quinze
quilômetros de álbuns. O edifício de tijolinhos à vista
tinha sido construído nos anos 1950 e cheirava a papel
antigo e incenso. Um par de clientes passava por fileiras
e mais fileiras de caixotes identificadas com etiquetas
escritas à mão e setas coloridas.
— Este lugar é um labirinto — disse Eric, os olhos de
um castanho quente passeando pelo espaço imenso
antes de pararem nela. — Você está procurando algo
específico?
Ariel foi atraída para um expositor pequeno de trilhas
sonoras raras de contos de fadas.
— Só vou saber quando ver. Eu só comprei vinis on-line
até hoje ou roubei da coleção do meu pai.
— Quando eu me mudei para Nova York, passava horas
procurando discos usados. — Ele se postou ao lado dela,
usando o indicador e o dedo médio para passar um
“pente-fino” na seção de rock clássico. Ela esfregou os
antebraços, onde aqueles dedos a acariciaram naquela
mesma manhã. — Encontrei uma cópia de Ziggy Stardust
que estava impecável.
— E você, Oz? — perguntou Ariel, um pouco alto
demais.
— Ah, eu tenho uma lista — respondeu o jovem
motorista, indo direto para o homem encorpado atrás do
balcão. Oz sacou seu telefone e revirou o aplicativo de
anotações. — Oi, olá. Você tem alguma coisa na área de
nature electronic?
Eric pareceu achar graça.
— O que é nature electronic?
O atendente se animou. Seus cachos espessos e os
óculos grandões lhe davam uma aparência de “Weird Al”
Yankovic samoano. O pin com seu nome dizia june.
— Ah, cara! É o que há! É como se você desse um
computador para a Mãe Natureza. Meus preferidos são
Zanzi, Lolatech, Pyrodyte. — Juno e Oz se encararam e
gritaram: — Malichor!
Ariel deu risada. Ela amava quando as pessoas se
conectavam assim por meio da música.
— Isso são bandas ou personagens de Sailor Moon?
— Não é?! Você captou a ideia — disse June,
abandonando os fones de ouvido.
Ariel não tinha muita certeza se havia mesmo “captado
a ideia”, mas já adorava June e a loja. June foi verificando
os álbuns que guardava atrás do caixa. Ariel não fazia
ideia de como ele conseguia encontrar qualquer coisa.
Era como procurar uma agulha numa pilha de agulhas, só
que de cores levemente diferentes.
O rosto redondo de June se partiu num sorriso satisfeito
quando encontrou o que estava procurando. Girou o vinil
entre as palmas das mãos, colocando-o gentilmente no
toca-discos e posicionando a agulha na primeira faixa.
— Olha só isso. Zanzi.
Uma faixa de edm com um baixo pesado começou a
tocar. Lentamente, como se as notas se espreguiçassem
depois de um longo sono. Em seguida, veio o som
inconfundível da música das baleias.
Eric se moveu lentamente entre as fileiras de vinis.
— Eu até que gostei.
— Muitos dos artistas são djs que encontram esses
documentaristas da natureza e fazem experiências com
as faixas perfeitas — explicou Oz. Ele movia os braços
acompanhando a música hipnótica, total e
desavergonhadamente em seu elemento. — Isso é como
as baleias soariam se vivessem no espaço sideral.
— Isso — disse June, oferecendo o punho fechado para
Oz bater, o que ele fez sem nem hesitar.
Ariel, por sua vez, viu-se andando pelos corredores.
Quando tinha sido a última vez que escutara uma música
que a fez ter aquela mesma sensação de devaneio?
Desde que conseguia se lembrar, ela podia ouvir
melodias em sua mente. Os pais sempre a encorajaram,
e ela queria apenas ver o orgulho deles quando cantava
rimas infantis improvisadas na mesa do jantar. Com as
Sete Sereias, ela se expressara, mas através de um filtro.
Uma persona. Uma que vinha com expectativas e pouco
espaço para se esticar e crescer. Não era assim para todo
mundo, mas Teodoro del Mar acreditava em não mexer
em time que está ganhando.
Caminhando pela loja labiríntica, ela se sentia incerta
sobre muitas coisas — o que aconteceria depois da turnê,
como seria o relacionamento com o pai quando voltasse
para casa, se algum dia ela teria uma carreira outra vez.
Seu amor pela música, porém... Isso era uma certeza.
Mas como soaria esta versão de Ariel del Mar? Ela não
sabia por quê, mas tinha um bom pressentimento de que
chegaria lá.
Os dedos de Ariel coçavam para sair explorando. Para
encontrar um som novo, mesmo que não gostasse dele.
A PhonoGold tinha uma parede de escuta, e ela ouviu
trechos dos discos mais recentes, saltando do pop para
R&B para country e para rock celta. Encontrou uma
pequena pilha de discos antigos de pop latino — Willie
Colón, Oscar D’León, Celia Cruz, Maná, Carlos Vives —,
cada um trazendo lembranças de sua mãe cantando na
cozinha, no carro, no chuveiro.
Mergulhou mais fundo na loja, intrigada com a cortina
cintilante onde se lia raros e, logo abaixo: liquidação
liquidação. A saleta provavelmente tinha sido, em algum
momento, um armário de despensa. Pegou um álbum
aleatório no caixote mais próximo. A capa mostrava uma
mulher num vestido de tafetá segurando um gato
sphynx. No vestido havia os dizeres milandra’s symphony.
Ariel riu, depois deu meia-volta. Tinha um impulso vívido
de mostrar a estranha descoberta para Eric.
Como se o tivesse invocado com seus pensamentos,
ele passou pela cortina. Ela podia sentir seu coração
saltando ao ver Eric. Eric Reyes, com sua boca num
sorriso malicioso permanente e olhos castanhos
encantadores. Aquele pestanejar de seus cílios pretos
quando ele abaixava os olhos antes de tornar a olhar
para ela. Com ele naquela minúscula salinha de
“liquidação liquidação”, tudo parecia mais apertado e
mais quente do que apenas alguns segundos antes.
Ela pigarreou e entregou o álbum.
— Olha só o que eu encontrei.
— Você vê, ninguém mais segura gatos pelados e
enrugados em vestidos de quinceañera — disse ele, num
lamento fingido. — Talvez eu devesse trazer essa moda
de volta no videoclipe de “Love Like Lightning”
— Os anos 1980 estão de volta com tudo.
— Pensei que os anos 1990 é que estivessem de volta.
Eric pegou a estrelinha pendurada no choker de veludo
preto de Ariel.
— Nem. Isso aqui é do começo dos anos 2000. Vintage.
Eu roubei da minha irmã mais velha.
Ela se virou e deu três passos inteiros para colocar
espaço entre os dois. Embora a presença dele fosse
calma, ela se sentia como um fio desencapado com ele
tão perto.
— Algum dia vamos conhecer mais algumas dessas
irmãs misteriosas? — Eric puxava discos de maneira
aleatória. — Elas deveriam vir para o show de Nova York.
— Talvez.
Ariel se ocupou folheando pilha atrás de pilha só para
não ter que dar uma resposta real para ele. É claro que
ela queria que suas irmãs vissem a Desafortunados tocar.
Estava habituada a dividir tudo com elas. Entretanto, isso
era diferente. Esta parte de sua vida era dela e só dela.
Por um instante, considerou contar tudo a Eric.
A propósito, nada de mais, mas meu nome completo é
Melody Ariel Marín Lucero. Aquela seita da qual você
presumiu que eu fazia parte é, na verdade, meu grupo
de música pop, as Sete Sereias, que você, pelo jeito,
odeia.
Será que ele aceitaria numa boa? Será que a
expulsaria da turnê? E se a reação dele ficasse no meio
do caminho? Ela sabia que a questão não era realmente
Eric gostar das Sete Sereias ou não. A questão era tudo o
que ela deixara que ele presumisse. Os bolsões de
verdade que deixavam espaço para mentiras. E, ainda
assim, ela se sentia mais como si mesma agora do que
quando deixara Nova York. Virou-se para dizer algo a ele,
qualquer coisa, mas se deu conta de que ele estava
chamando seu nome.
— Melody?
— Desculpa. Eu estava perdida em pensamentos.
Eric tornou a olhar para a cortina brilhosa, depois para
ela. Havia uma indecisão em seus olhos escuros. Ele
devia partir, sim. Ela devia partir, sim. Não, os dois não
deviam ficar a sós por muito tempo. Seja lá contra o que
ele estivesse lutando, acabou ficando. Eric deu um único
passo em sua direção, ficando a seu alcance.
— Aonde você vai? — perguntou, baixinho. — Quando
está perdida em pensamentos?
Ela suspirou, as mãos ainda vasculhando os discos.
— Só pensando nas escolhas que eu fiz e o que vou
fazer com o resto da minha vida. Nada de mais.
— Sei, sem pressão. — Ele exalou uma risada. — Sabe,
quando me perco em pensamentos, imagino meu
discurso no Grammy. Ou no Oscar.
— O Oscar — repetiu ela, brincalhona. E, no entanto,
não tinha dúvidas de que ele era capaz de chegar lá. —
Eu acho que você deveria tentar o circuito completo:
Emmy, Grammy, Oscar e Tony.
— Sonhar grande, né?
O rosto de Eric exibia suas emoções de forma tão
franca, tão sincera. Era fácil conhecê-lo e presumir que
ele era só mais um sonhando em se tornar um astro do
rock. Conhecera um bom número deles. Mas Eric era tão
fervoroso que Ariel queria acreditar com ele.
O disco seguinte que ela puxou de maneira fortuita era
um lp do abba, as cores levemente distorcidas. Ela ofegou
e ele apareceu a seu lado, para espiar por cima do
ombro.
— Um erro de impressão!
— Isso é um achado excelente — disse ele.
Se ela inclinasse a cabeça para o lado, ficaria a
centímetros da linha do maxilar dele. Por que maxilares
eram tão sexy? Ele tinha a barba por fazer de um dia,
que geralmente raspava algumas horas antes de um
show. Ela se permitiu imaginar, por um momento, como
seria beijá-lo ali. Levantar nas pontinhas dos pés para
encontrar os lábios dele, a suavidade com que eles
cederiam, como morder uma fruta madura. Seu suspiro
ofegante, tão semelhante ao crescendo de suas músicas.
Só que esse seria por ela e apenas por ela.
Em seguida, lembrou-se de seu trato com Odelia. As
sobrancelhas definidas e a encarada mais firme ainda da
manager substituíram o devaneio de Ariel com beijos.
Eric está proibido pra você, ecoava a voz.
Ariel recuou e se viu contra a parede. Cada parte sua
se retesou com o modo como os olhos dele
acompanharam sua boca, sua garganta, o ponto onde
sua gargantilha pousava acima das clavículas. Ele
desviou o olhar, e ela podia jurar que Eric tinha
murmurado uma praga.
— Melody...
— Vou comprar esse para a Grimsby — disse Ariel,
abraçando o disco contra o peito como um escudo contra
o próprio desejo violento.
Eric apertou a ponte do nariz, fazendo uma careta,
como se não pudesse acreditar no que ia dizer, mas falou
apenas o nome dela.
— Melody.
— Não precisamos conversar sobre hoje cedo — ela
disse para ele. — Não aconteceu nada.
Ele assentiu devagar.
— Certo. É, é verdade. Eu sei. Não foi nada. Estávamos
cansados. Mas não era disso que eu queria falar.
— Ah.
Ela esperou ele continuar.
— Falando em Grimsby — disse ele —, eu ouvi vocês
duas hoje de manhã no ônibus.
As bochechas dela arderam de leve.
— Eu devia me lembrar de que não existe privacidade
com oito pessoas num ônibus de turnê.
— Espero que ela não tenha te assustado com aquele
papo de eu ser um... Cê sabe...
— Um romântico inveterado que deixa todas as
emoções na cara? — sugeriu ela. E então, com mais
suavidade: — Ela disse que já te magoaram antes.
Eric suspirou, frustrado, passando dedos ansiosos pelos
cabelos.
— Não é... Bom, é uma longa história.
E eles não tinham tempo. Deveriam estar de saída para
terminar de pendurar o fundo do palco, e Ariel tinha um
trabalho a desempenhar. Mas Odelia não poderia culpá-la
por isso. Por ouvir Eric como amiga.
— Me conta. — Ela tocou no antebraço dele, onde
ondas agitadas de um mar tempestuoso estavam
tatuadas na pele dele. — Somos amigos.
Eric tocou o seu pendente dourado, pensativo. Houve
um momento em que Ariel achou que ele não ia
responder. E aí ele sustentou o olhar dela e explicou:
— Eu conheci alguém quando cheguei em Miami. Não
deu certo. Mas não foi do jeito que você imagina.
Ela riu.
— Eu nunca estive num encontro de verdade nem tive
um namorado real, então não tenho muita referência.
— Espera, namorado real? — Eric levantou uma única
sobrancelha, incrédulo.
— Não estamos falando de mim agora, estamos
falando do seu coração partido.
— Meu coração partido pode esperar — Eric disse e,
então, fez uma pausa. — Esse é um bom verso para uma
música... Mas eu só preciso esclarecer um negócio.
Ela inclinou a cabeça para cima.
— Tá bom.
— Você tinha um daqueles namorados canadenses de
mentirinha? Por que toda mulher que eu conheço já teve
um namorado canadense de mentira, quando a Colômbia
está logo ali?
Com isso Ariel riu, pressionando a palma da mão no
peito dele e lhe dando um empurrão de brincadeira.
Vindo de uma família grande, ela sentia falta de toques
bobos assim. Afetuosos, amorosos. Um lembrete de que
alguém se importava com você e te amava.
Quando ela não o soltou, porém, e Eric colocou sua
mão sobre a dela para que ela pudesse sentir seu
coração batendo forte, Ariel soube que era mais do que
isso. Viu o momento em que Eric brigou consigo mesmo,
depois acabou com a distância entre os dois. Com os
olhos fixos nos dela, ele murmurou:
— Foi alguma coisa, sim, Melody. Hoje cedo. Foi alguma
coisa.
Ariel agarrou a frente da camisa, puxando-o para si. O
calor na salinha era palpável, irradiando de Eric feito uma
aura. Ela inalou o sal adocicado da pele dele, a hortelã de
seu hálito, enquanto ele empinava o queixo dela com
seus dedos ásperos e calejados.
— Olááááá! — A voz de Oz cantarolou do outro lado da
cortina.
Eric rapidamente olhou por cima do ombro, depois de
volta para ela, como se estivesse contemplando se eles
tinham tempo para um beijo antes de o amigo deles
entrar.
— Não posso — disse Ariel, a voz rouca de desejo. Ela
soltou sua mão da dele.
Eric colocou espaço entre os dois e desfez a tensão
com um de seus sorrisos de partir o coração.
— Venha, antes que Oz decida comprar tudo nesta sala
também.
Ariel o seguiu, alisando a camiseta, o cabelo. Tinha
quase atravessado as cortinas quando notou que tinha
esquecido o disco do abba. Voltou correndo e foi então
que Ariel os viu.
Seus pais.
No último caixote em que Eric mexera, havia um lp da
banda de seu pai e sua mãe, Luna Lunita, bem ali. Ela
piscou o embaçado e a descrença de seus olhos. Eram
eles mesmo. Totalmente paramentados ao estilo dos
anos 1980, com roupas brilhantes e ombreiras, eles
estavam incríveis. Contudo, nunca vira aquele disco
antes, o que era estranho, porque seu pai tinha cada
peça de memorabília de seus dias iniciais emoldurada
por toda a cobertura.
Ela pegou um par de discos aleatórios em oferta para
cobrir o lp de seus pais e correu atrás de seus amigos.

Naquela noite, depois do show, de volta ao ônibus e


seguindo pela estrada em direção a Atlanta, Georgia,
Ariel deitou em sua cama, mas não pegou no sono.
Acendeu a luzinha de leitura no canto de sua cama e
cuidadosamente puxou o vinil de dentro da sacola de
papel pardo. Estivera ansiosa a noite toda, querendo ficar
sozinha para poder inspecionar melhor o disco de seus
pais. No escuro, tirou uma foto e enviou para as irmãs.
Segundos depois, Marilou, que estava sempre
acordada, respondeu primeiro.
Marilou:
Feliz Natal celta? Isso é irônico, por acaso?

Ariel conteve uma risada fungada e tirou uma foto do


disco correto.
Ariel:
Eu tô ficando maluca? Nunca vi esse disco do Luna Lunita antes no altar do
papai.
Elektra:
Talvez seja um erro de impressão?
Essas músicas estão no disco de estreia deles, mas com outra capa.
Marilou:
E também não tive sorte para entrar no computador dele.
Thea:
Mamãe está tão linda. Eu vejo traços dela em todas nós.
Alicia:
Envie pelo correio! Ou, melhor ainda, vem pra casa!
Sinto que essas coisas de autoconhecimento levam menos tempo nos
filmes.
Sophia:
Porque isso sempre entra naquelas montagens, besta.

Ariel desligou o celular quando o chat das irmãs,


#SeteAPressão, descambou para os xingamentos. Em
alguns sentidos, sentidos que ela nunca havia parado de
verdade para analisar, elas eram irmãs comuns.
Brigavam e pegavam as roupas umas das outras
emprestado e se amavam.
Teve o impulso esmagador de ouvir a voz da mãe.
Procurou uma playlist de músicas antigas do Luna Lunita
e ajustou seus fones de ouvido sem fio.
Sua mãe, Maia del Mar, tinha a voz mais linda. Anos
depois, Ariel ainda guardava a lembrança de estar na
casa antiga deles, em Forest Hills, no Queens. A mãe se
sentava no sofá espaçoso com Ariel no colo. Sophia,
ainda aprendendo a tocar violão, dedilhava sem prática.
As gêmeas desenhando sereias com canetas de gel com
glitter. Elektra e Thea brigando por causa de algum
brinquedo. Marilou usando o máximo de bijuteria da mãe
que conseguisse colocar em torno do pescoço delgado e
dos pulsos. Onde estava o pai delas? No escritório dele.
Com tio Iggy, reunindo-se com algum investidor, algum
produtor, alguém disposto a apostar numa família com
um sonho grande.
Um sonho que nunca fora o seu, não do jeito que seu
pai imaginava.
Um sonho que era de Eric.
Nunca havia pensado que ele lembrava Teo del Mar até
aquele momento. Esse pensamento, embora
profundamente inquietante, passou depressa. Eric não se
parecia em nada com o pai dela. Em nada.
Colocou a faixa “Luna mia” desde o começo outra vez.
Era a música que conquistara o primeiro Grammy para
seu pai e abrira as portas para o reinado musical que ele
construiria posteriormente com as filhas. Por meio das
filhas. Semanas antes, Ariel não teria feito essa distinção,
deu-se conta.
Ariel ouviu um arranhado. Tirou o fone de ouvido e
reiniciou a conexão, mas o ruído baixo de arranhado não
vinha da música. Ouvira esse barulho ali na primeira
noite, mas Ariel o arquivara como “sons misteriosos do
ônibus”. Ela se sentou agora, depressa demais, e bateu a
cabeça no teto. Soltou um palavrão em voz alta.
— Mel?
Mel. Uma sílaba de Eric, naquela voz deliciosamente
rouca que ele tinha quando acabava de acordar. Ela
ouviu o farfalhar da cortina dele sendo puxada e
rapidamente empurrou o disco de volta para a sacola de
papel pardo, enfiando-a sob seus pés.
— Melody?
A voz preocupada de Eric foi a última coisa que ouviu
antes de sentir algo se mover. Por entre as cobertas dela.
Roçando os dedos de seu pé. Garras pequeninas
correndo por suas panturrilhas. Não pôde evitar. Inspirou
fundo e gritou. Deve ter assustado Oz, porque o ônibus
oscilou, instável, de um lado para o outro. Um por um, os
outros começaram a se levantar, questionando o que
estava acontecendo.
Ariel tentou sair da cama, mas suas pernas estavam
enroladas nos lençóis e ela rolou para fora do colchão,
atingindo o piso com um uufs sem fôlego.
— O que está rolando aí atrás? — Oz gritou pelo rádio.
— Rato! — Ariel conseguiu dizer. — Tem um rato na
minha cama!
Ela chutou as cobertas e Eric cambaleou, tentando se
equilibrar ao ajudá-la. Ruídos meio grogues, mal-
humorados e sonolentos se somavam ao caos enquanto
o ônibus estremecia e dava um solavanco forte para a
esquerda. Carros na estrada àquela altura da madrugada
buzinaram muito, e eles ziguezaguearam enquanto o
ônibus tentava se aprumar.
— Atropelamos alguma coisa? — gritou Eric. — Oz!
Grimsby, cuja cama ficava acima da dela, disse Ah,
não, segundos antes que tudo — inclusive o colchão da
própria Grimsby, com ela ainda em cima dele —
tombasse de lado.
Ariel levantou os braços para proteger seu rosto e Eric
jogou o corpo por cima do dela. Apoiado nos antebraços,
ele formou uma gaiola de proteção enquanto Grimsby
caía sobre eles, seguida por itens difusos que se
espalharam pela cabine ao redor deles com um ruído
seco.
Odelia estava de pé agora, gritando para que Oz
colocasse o veículo sob controle. Ariel, porém, sentiu o
peso de mais uma pessoa caindo sobre eles. Eric se
empenhou para impedir que ela fosse esmagada feito
um bicho na estrada, e, se o coração dela não estivesse
desabando de medo que eles se encontrassem à beira de
um acidente, estaria beijando a cara dele toda. O trato
que se danasse. Tudo o mais que se danasse.
Mas aí a Fera sacolejou adiante, antes de parar
abruptamente. Devagar, todo mundo se levantou do
pavê humano que tinham formado no chão. Oz abriu a
porta da cabine, retorcendo seu chapéu de pescador
cheio de nervosismo.
— É, então... — disse ele. — Temos um problema.
— Tem um rato no ônibus! — Ariel se pôs de pé outra
vez. O corredor não era largo o bastante para todos eles.
— Ela não é um rato! — disse Grimsby, indignada, e
vasculhou a cama de Ariel freneticamente até achar a
fonte da comoção. Em suas mãos havia um porquinho-
da-índia branco e marrom.
Oz espirrou e estreitou os olhos para a criaturinha.
— Na verdade, eu ia dizer que bati numa placa lá fora.
O farol dianteiro já era.
— O que está dizendo? — perguntou Odelia, e Ariel
podia praticamente ver a fumaça escapando das orelhas
dela.
— Nessa escuridão, nós não vamos a lugar algum.

Meditações musicais de MusicMan929

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Arquivado em 4 de janeiro de 1998
Eu vou provar por que Teodoro del Mar é uma Fraude, com F
maiúsculo. Trabalhei com Luna Lunita por dois anos. Trabalhar com
um pioneiro do pop latino nos Estados Unidos era o meu sonho. Mas,
quanto mais conhecia Teo, mais eu percebia que o cara não tem
ideia do que está fazendo. Ele não tem um single que seja hit desde
“Luna mia”. E por um bom motivo!

Maia del Mar é o coração por trás da coisa toda, mas ela ficou em
segundo plano nos negócios. A mulher é uma deusa.

Ainda não sei o que é, mas vou descobrir que Teo está escondendo
alguma coisa. Algo que eu vou expor para o mundo ver. Ele pode ter
me demitido simplesmente por ter discordado dele, mas sou eu
quem vai rir por último.
CAPÍTULO TREZE

ERIC
29 de junho
No meio do nada

Eric Reyes já vira sua manager flutuar entre contente e


descontente, mas nunca tinha visto o que ela chamava
de sua “fase de pesadelo”. Seus cabelos pretos estavam
enrolados em bobes enormes, presos com um lenço de
seda. Alguns tinham se desfeito durante o acidente e se
curvavam feito tentáculos de um polvo (não que ele
contaria isso a ela). Sem as indefectíveis sobrancelhas
pintadas e o batom vermelho impecável, Odelia parecia
quase vulnerável. Quase. Ainda vestida em seu robe e as
pantufas peludas que só usava no quarto, ela gritava ao
telefone enquanto caminhava de um lado para o outro na
estrada.
A mesma estrada que levava para Atlanta e se
encontrava numa escuridão total, totalmente vazia, e os
oito se juntavam na frente do ônibus como se fosse mais
seguro ficar amontoados no pequeno raio do facho de luz
do único farol.
Carly tinha a máscara de dormir sobre a testa. Os cílios
desenhados ali brilhavam no escuro. Ela balançou a
cabeça e fez uma careta.
— Não. Eu tenho pesadelos que começam assim.
— No filme Horrores de Halloween 17 — disse Max —, o
assassino sequestra o trailer da família, sai de baixo do
chassi e pá! Não sobrevive ninguém.
— Eu não gosto disso — murmurou Oz, escondendo-se
atrás de Melody, que tinha metade do tamanho dele.
Melody conteve uma risada, mas o tranquilizou:
— Vai dar tudo certo.
— Pra você é fácil dizer isso. — Carly cruzou os braços.
— Sua algazarra foi o motivo para ele quase nos tirar da
estrada e atropelar uma porcaria de placa.
— Algazarra? — perguntou Vanessa, esfregando as
costas da amiga. — Sério, cara?
Um sentimento de proteção brotou no peito de Eric, e
ele não pôde se conter. Não aguentava ver a culpa no
rosto dela.
— Melody não fez nada de errado. Não faz sentido
culpar ninguém. Monty não deveria estar no ônibus, para
começo de conversa.
Todos se viraram para Grimsby, que se postara a
alguns passos deles, aninhando sua porquinho-da-índia
idosa como um se fosse um recém-nascido.
— Desculpa! Eu simplesmente não podia deixá-la. E se
acontecesse alguma coisa?
Max jogou as mãos para o ar.
— Quase aconteceu... Com a gente. Além disso, Oz tem
alergia.
— Oz tem alergia a tudo — disse Grimsby.
— Isso é verdade.
O motorista assentiu e, de alguma forma, tinha se
tornado o único calmo entre eles. Esse normalmente era
o papel de Eric.
Ele respirou fundo e recuperou seu controle. Todo
mundo estava ansioso e assustado. Estavam no meio do
nada, às três da manhã, com um farol quebrado.
— Olha, lá vem Odelia — disse ele. — Vai ficar tudo
bem.
Mas a destemida manager chacoalhou teimosamente a
cabeça. Outro de seus bobes caiu e ela franziu os lábios
com desagrado.
— Toda vez que me passam para alguém por tempo
suficiente para pedir ajuda, cai a linha.
— Tinha um posto de gasolina alguns quilômetros atrás
— disse Oz, abraçando a si mesmo. — Com certeza eles
devem vender lâmpadas de reposição...
— Não dá para chegarmos até Atlanta com uma só? —
perguntou Max, entre mordidas nas cutículas.
Oz apontou para a estrada vazia.
— Quer ir você dirigindo por aquilo ali com apenas um
farol funcionando?
Todos fitaram, quietos e cabisbaixos, naquela direção.
Se fosse só Eric, ele arriscaria. Mas com sua equipe?
— Não — disse Eric, finalmente.
— E se formos bem devagarzinho? — perguntou
Vanessa. — Nós já perdemos tempo andando em círculos
na interestadual...
Odelia levantou as mãos para o céu noturno em prece.
— ¡Paciencia, Odelia, paciencia!
Sempre que a manager pedia paciência aos céus, ele
sabia que ela estava no limite. Eric tinha que consertar
isso. Esta era sua banda, sua família.
— Eu vou — disse Eric. — Temos uma lanterna
industrial no ônibus. Não vou demorar muito.
— Mano, a gente não pode se separar! — gritou Carly.
— É — disse Max, apoiando-a. — É assim que o
assassino nos pega.
— Eu não estou gostando disso — repetiu Oz —, nem
um pouquinho.
— Amaldí-suadôs — resmungou Grimsby, dando uma
uva para Monty comer.
— Você sabe que açúcar a deixa hiperativa — disse
Eric.
— Mas é natural! — Grimsby disparou em resposta.
— Todo mundo, acalmem-se, caralho! — estressou
Vanessa, murmurando em seguida: — Desculpa, mãe.
— Nós não vamos nos separar — disse Carly. — Vamos
todos caminhar até o posto de gasolina.
Oz lentamente levantou a mão.
— Eu, de novo, não gostaria disso.
— Vamos simplesmente esperar no ônibus até
amanhecer — sugeriu Max, encolhendo-se atrás de Carly,
quando algo farfalhou nos arbustos.
— Vou com você — disse Melody. No tempo em que
estavam todos discutindo, ela tinha recuperado seus
tênis e encontrado a lanterna de emergência. — Eu me
sinto parcialmente responsável e, se esperarmos o
amanhecer, atrasaremos o cronograma.
Melody não parecia nem um pouco preocupada
enquanto saía da cobertura do único farol e começava a
caminhar. Estava acertado. Eric sorriu, depois se deu
conta de que ela o estava deixando para trás e correu
para alcançá-la.
— Coloque seu celular no modo walkie-talkie! — berrou
Oz.
Max gritou:
— Não sejam assassinados num pântano!
A voz dela ficava mais distante a cada passo.
Melody riu, soprando ar pelo nariz.
— Acho que nem estamos perto de um pântano...
— Sabe, acho que é a primeira vez que elas
concordaram com alguém por unanimidade.
— Bem, quero dizer, quem é que quer caminhar três
quilômetros ida e volta às três da manhã numa estrada
no meio do nada... E de pijamas, ainda por cima?
— Nós, é óbvio. — Eric correspondeu ao sorriso
brincalhão de Melody com uma sacudida da cabeça. —
Não vou dizer que Max esteja correta, mas posso
entender por que ela acha que estamos amaldiçoados.
Digo, vamos repassar todas as coisas que deram
errado... — Ele começou a contar pelo polegar. — A
banda do nosso show de abertura ficou doente. O
promotor de merchandising deu pra trás, começamos a
turnê com um engavetamento enorme.
Ela abriu um sorriso tímido.
— Não se esqueça de que alguém tentou roubar seu
violão.
— Como eu poderia me esquecer? — Ele continuou
contando. — Ficamos presos no elevador. E agora, isso.
— Talvez vocês tenham mexido com alguma força
cósmica — sugeriu Melody.
Uma brisa úmida e fraca soprou seus cabelos em volta
dos ombros. Ele estalou os nós dos dedos para ocupar as
mãos.
— Mas também tem as coisas boas.
Melody virou a lanterna na direção dele.
— Coisas boas?
— Se aquele caminhão de sorvete não tivesse
quebrado, eu não estaria lá na calçada e não teria uma
mulher muito corajosa e impulsiva derrubando um
ladrão, e eu não teria passado a noite mais incrível da
minha vida... Bem, você já sabe o resto.
Eric se empenhou ao máximo para fitar a estrada
adiante, mas podia sentir o olhar de Melody sobre si.
— E isto aqui? — perguntou ela. — Onde está o
equilíbrio cósmico nisso?
— Ah. Eu posso pular meu treino matinal.
Melody riu, riu de verdade, até dar uma olhadinha na
silhueta da Fera sumindo. Ele não conseguiu entender o
lampejo de incerteza nos olhos dela. Será que estava
olhando para trás literalmente ou também de maneira
figurada? Às vezes, sentia que ela estava se contendo,
temerosa, só um pouquinho. Quanto mais compartilhava
sobre suas irmãs, seus sonhos, seu pai, mais as coisas se
tornavam abstratas.
Ela abriu os braços e deixou a brisa grudenta envolvê-
la. Eric imaginou deslizar por trás dela. Abraçá-la
apertado, como tinha feito no hotel no meio da noite.
Talvez ele se lembrasse daqueles eventos de maneira
diferente do que ela se lembrava, e definitivamente
diferente do que Oz talvez pensasse ter interrompido. Ele
havia acordado no meio da noite e percebeu que ela
estava resmungando, inquieta. Tomara um gole de água
e se perguntara se devia acordá-la. Aí se lembrou do que
ela havia dito sobre aquele tubarão de pelúcia
antiestresse, então gentilmente o colocou ao lado do
travesseiro dela. Melody o jogou para fora da cama,
rolando para junto do corpo dele. Eric tinha ficado
absolutamente imóvel. Tão angustiosamente imóvel,
enquanto ela o envolvia em seus membros... Ele estava
certo de ter visto um documentário da vida na natureza
falando sobre petauros e coalas se agarrando a árvores
do mesmo jeito que Melody se agarrava a ele. Após
alguns instantes, o sono o derrubara, e ele dormiu
profundamente, sabendo que ela se sentia a salvo com
ele.
Daí acordou de novo e seu primeiro pensamento foi:
Isso está correto. Está incrivelmente correto. Talvez fosse
porque ele havia ficado sozinho nos primeiros meses
depois de enfim sair de casa, mas sentia essa
necessidade primitiva de se certificar de que ela estava a
salvo. Quando o ônibus quase saiu da estrada, seu único
pensamento foi o de protegê-la com o próprio corpo.
Mesmo quando Grimsby caiu sobre a cabeça dele.
Agora Eric se concentrava no ruído que seus tênis
faziam ao esmagar o cascalho espalhado sobre o asfalto,
o frenesi das criaturas noturnas fazendo serenata para a
caminhada deles. Prrrrr. Chilreado. Uivo.
— Como você faz isso? — perguntou Melody. — Como
consegue se impedir de pensar que é o fim do mundo?
— Hum. Acho que a única outra opção é deixar que
tudo desmorone. Eu não posso me dar a esse luxo. Digo,
não sou loucamente otimista. Mas sei que, se eu surtar,
Max vai surtar ainda mais, e Carly é teimosa, mas se
machuca com facilidade, e Grimsby é secretamente uma
vampira, mas é uma vampira bem ansiosa.
— Elas dependem de você. — Ela colocava um pé na
frente do outro, equilibrando-se na faixa branca da
rodovia como se fosse uma corda bamba. Suas pernas
fortes eram elegantes como as de uma dançarina. — Mas
de quem você pode depender?
— Eu simplesmente grito quando não tem ninguém
olhando.
Melody estreitou os olhos.
— Você mora numa casa com mais três pessoas. Elas
não te ouvem?
— Eu faço caminhadas. Tá, eu provavelmente poderia
fazer isso no metrô e ninguém estranharia, mas é
libertador. Tipo uma catarse. Tente.
— É só gritar?
Eric parou ao lado dela para lhe dar espaço.
— É. Quem vai nos escutar?
Ela aprumou os ombros e girou no mesmo lugar. Ficou
na ponta dos pés, feito uma bailarina. (Ele anotou na
memória que devia perguntar se ela já tinha sido
dançarina.) Respirou fundo, inclinou a cabeça para trás,
para o céu noturno. Um milhão de estrelas, testemunhas
do momento quando ela se soltasse.
Mas ela não gritou. Balançou um dedo para ele, como
se soubesse que Eric estava aprontando alguma, e
continuou andando.
— Eu acho que você está apenas evitando minha
pergunta original — disse ela.
— Quando formos ricos e famosos, minha conta da
terapia será imensa.
— Eric.
— Eu gosto quando você diz meu nome desse jeito —
confessou ele, a voz áspera de emoção. Ele sabia, sabia
que não teria dito aquilo se não estivessem sozinhos no
escuro.
Melody reduziu o passo, os braços de ambos se
roçando conforme caminhavam lado a lado. Ela mexia
em sua gargantilha. Ele sabia que ela fazia isso quando
estava pensando profundamente, tomando cuidado com
o que queria dizer ou perguntar.
— Você não comprou nada na loja de discos... — disse
ela.
Ele pegou a deixa. Ela já não tinha murmurado eu não
posso pouco antes de eles se beijarem? Eric não deveria
nem estar contemplando a ideia. Vanessa tinha razão
desde o primeiro dia, porque, no que dizia respeito a
Melody, sua cabeça não estava focada, e ele não podia
ter uma reprise do que acontecera da última vez.
— Eu tenho uma coleção enorme em casa — disse ele.
— Na Colômbia. Deixei para trás.
— Você não voltou mais para lá?
Eric sacudiu a cabeça, a dor de uma lembrança antiga
tentando emergir. Antes que isso acontecesse, ele
mudou de assunto.
— Não pense que você se livrou.
Melody levou a mão ao peito.
— O que foi que eu fiz?
— Eu estou... — Ele procurou a palavra certa, mas
acabou optando por: — … curioso para saber como é que
você nunca teve um encontro de verdade nem um
namorado real.
Em vez de curioso, ele queria dizer desesperado. Mas a
dicção era tudo.
Melody riu, aquela muralha invisível se erguendo ao
seu redor. Contendo-se.
— Não é lá muito empolgante.
— Você disse, e eu cito diretamente: eu sou
resguardada, não inocente.
Ela apontou a luz para longe deles, como se Eric não
pudesse praticamente sentir o rubor no rosto dela. Ele se
lembrava, sim. Ele se lembrava de cada interação que
tiveram ao longo da última semana.
— Me conta — pediu ele, ecoando as palavras que ela
usara com ele na loja de discos em Asheville.
— Tá bom. — Melody direcionou a luz adiante, mas
estava tão escuro, tão sem lua, que até a luz da lanterna
potente era engolida depois de poucos metros. — Eu só
saí com caras que meu pai aprovava. E digo saí nos
termos mais vagos. Quando eu tinha quinze anos,
gostava de um menino e fomos a uma festa juntos. É
claro, minhas irmãs foram comigo. Todas elas.
— Sinto que tem uma série de tv sobre isso —
provocou ele.
Ela deu um empurrão de brincadeira nele e prosseguiu.
— Até para algo como um passeio no Central Park, o
assistente do meu pai ou meu tio ficavam por perto.
Quando eu namorei esse outro cara... Vamos chamá-lo
de Bob.
— Esponja?
Eric sabia que estava regredindo para a versão mais
tosca de si mesmo, aquela de treze anos, mas não
estava nem aí.
Ela fungou.
— Isso. O Bob Esponja.
— Legal.
— Eu fiquei com Bob por mais ou menos um ano. Eu
era tão a fim dele! Minhas irmãs estavam enjoadas de
mim. E eu pensei: Uau, até meu pai aprova. Talvez seja
isso mesmo. Talvez ele seja O Cara.
Eric sentiu um ciúme irracional, mas queria ouvir o
resto.
— E depois?
— Depois eu descobri que ele estava me usando —
disse ela. — Para se aproximar do meu pai. Para
trabalhar para meu pai, melhor dizendo. E eu me senti
tão tonta... Como se eu tivesse confiado cedo demais. Me
apaixonado depressa demais. Nunca mais quero me
sentir daquele jeito.
Eric não era uma pessoa violenta, mas tinha o súbito
impulso de enfiar o homem que a magoara no fundo do
mar. Em seguida, perguntou-se se era essa a razão para
a muralha dela.
— Você ainda sente alguma coisa por ele?
— Deus do céu, não — disse ela, sem hesitar. — Foi
como se algo se dissipasse. Seja lá qual fosse a névoa de
paixonite que me acometia, foi-se embora. Eu não sou
uma especialista, mas acho que o amor de verdade não
some fácil assim. Pelo menos, quero pensar que não. Mas
o que sei eu, né?
— Você sabe apenas o que sabe e aprende o resto no
caminho.
— Quem te disse isso?
— Não sei. Um cartaz motivacional num café. — Ele
abriu um sorriso travesso, porque a reação dela foi
empurrá-lo de brincadeira outra vez, embora não
houvesse muita força no gesto. Ele só queria sentir o
toque dela de novo. — Estou brincando. Odelia me disse
isso.
— Ela tem bons instintos.
— Sendo justos, “Melody Esponja” não soa bem.
— Eu escrevi algumas letras boas por causa disso, não
que elas tenham visto a luz do dia — confessou ela. —
Por isso os itens da minha lista.
De algum ponto à distância, eles ouviram o retumbar
do trovão. Ele conferiu o relógio; sabia que precisavam se
apressar, embora a parte menos razoável dele quisesse
que a estrada se estendesse ao infinito, que o sol
nascesse como tinha acontecido na primeira noite que
passaram juntos.
— Suponho que ambos sejamos compositores
românticos, criando nosso caminho pelo universo — disse
ele. — Mesmo que você ainda não tenha tocado para
mim nada do que escreveu.
— Eu não tenho um violão — disse Melody, embora até
ela soubesse que essa era uma desculpa esfarrapada.
— Pegue o meu emprestado. — Ele deu meia-volta e
começou a andar de costas para poder observar melhor
a reação dela. O modo como seus lábios se curvavam
com sorrisos que pareciam ser apenas para ele. — Temos
uma fartura de guitarras.
— Vou pegar, se você me contar uma coisa.
— Qualquer coisa.
— Todas as músicas que você já escreveu são sobre a
pessoa que partiu o seu coração?
Aquela era uma pergunta complicada. Eric foi parando
aos poucos. Os dois ficaram frente a frente, a lanterna
iluminando os pés de ambos.
— Sim e não.
Ele não conseguia encontrar as palavras certas.
— Me conta — murmurou ela, pegando no antebraço
dele, onde as ondas tatuadas chegavam às cristas. O
roçar do polegar dela o fez estremecer no calor sulista.
— Sim, porque eu passei mesmo por um coração
partido, só que não do tipo que todo mundo julga ser o
mais importante. Houve alguém logo que eu cheguei
aqui, mas não terminou bem.
Eric virou a mão e o toque dela acompanhou o
movimento, os dedos de ambos se entrelaçando. Queria
contar tudo para ela, o quanto tinha sido tolo, mas
também queria ficar assim: Eric e Melody e a noite.
— E não, porque toda música que eu já escrevi não foi
sobre ela nem sobre ninguém. Minhas músicas são sobre
um sentimento. Esse pressentimento que eu tive a vida
toda, como se eu estivesse procurando sem parar e não
a tivesse encontrado ainda. Mas tenho escrito para ela.
Melody fechou os olhos por um instante, como alguém
orando, fazendo um desejo. Quando tornou a olhar para
ele, Eric estava ouvindo a canção da noite ao redor deles
— aquele retumbar de trovão outra vez, mais próximo
agora. O zumbido arrebatador das criaturas no mato em
torno, a batida frenética do coração dele.
— Torço para que você a encontre — disse Melody,
sorrindo, enquanto um raio estrondava ao que parecia
apenas alguns metros deles, no campo aberto.
Por sorte ou azar — ele não conseguia decidir qual —, o
céu desabou. A chuva quente beijou a pele de ambos.
Melody ofegou, deliciada, e Eric absorveu o momento. A
terra úmida, o cheiro adocicado do mato. O sorriso
brilhante dela, sua alegria total. Queria se lembrar disso
para sempre.
Eles correram até que alcançassem o posto de
gasolina. Pingando, Eric vasculhou as prateleiras até
encontrar uma única lâmpada combinando com aquela
de que precisavam. Melody pegou uma braçada de
petiscos, lembrando-se das alergias de Oz e de quais
eram os chocolates preferidos de Carly. Ele adorava o
fato de ela pensar na “família” deles.
Na volta, pegaram uma carona com um casal mais
velho que estava dirigindo o dia inteiro para ir à festa de
aniversário da neta. Nos cinco minutos da carona, Melody
perguntou sobre a vida inteira deles, e eles anotaram o
nome da banda de Eric. Seus amigos gostavam de
brincar que ele era a pessoa do grupo capaz de fazer
amizade com qualquer desconhecido que se sentasse a
seu lado. Observando Melody, a maneira como ela ouvia
com aquele poço de paciência e sinceridade... Era
diferente para ele. Eric adorava receber atenção. Melody
gostava de dar atenção.
Quando desembarcaram perto do ônibus, empapados,
porém triunfantes, ele a encarou, sorrindo.
— O que foi? — perguntou ela, tocando o próprio rosto
como se houvesse algo ali, como se esse fosse o único
motivo pelo qual ele olharia para ela.
E o que ele podia dizer? Pela primeira vez em sua vida,
não havia palavras. Havia aquele sentimento. O cheiro de
petricor. A queda do raio. Havia Melody.
— Ah, é só que... aquele Oreo de recheio duplo é meu
— disse ele.
— Mas nem a pau.
As portas se abriram com um chiado e os dois subiram
a bordo. Todo mundo se amontoava na sala da frente.
Grimsby estava na mesa, abraçando a gaiolinha plástica
de Monty, protetora. Os outros estavam em silêncio,
como se fosse uma intervenção. Ele já tinha passado por
isso. Uma ou duas vezes.
— O que está pegando? — perguntou Eric.
— Não podemos ter um animal no ônibus — disse
Odelia, o que fez Grimsby abraçar ainda mais a gaiola,
Carly gritar sobre como elas tinham concordado que
Monty ficaria com a vizinha e Vanessa apontar para a
fonte de um guincho muito familiar.
— Olha, ela está mandando ver naquele brinquedo!
Melody ofegou baixinho quando se deu conta de que
Monty, a porquinho-da-índia, estava sarrando o gato-
unicórnio que tinham ganhado no fliperama. Eric tentou
não rir, mas rapidamente caiu no caos com todo mundo.
— Nada de slut shaming! — Grimsby se virou para
Melody. — Eu te arrumo um novo.
Melody suspirou. Eric teve o ímpeto de afastar o cabelo
dela e beijar-lhe a têmpora. De prometer ganhar outro
brinquedo, ganhar de tudo para ela. O impulso veio e se
foi, porque, enquanto todo mundo ria do bichinho de
estimação de Grimsby, Odelia o observava
minuciosamente. Era incrível o quanto sua manager
podia decifrá-lo com um único olhar.
— Está tarde — disse ele, aprofundando o grave em
sua voz. — Não vamos tomar nenhuma decisão de vida
ou morte essa noite. Vamos simplesmente seguir para
Atlanta e aí resolvemos o que fazer.
Finalmente, elas concordaram.
Depois de ajudar Oz a trocar a lâmpada, eles partiram.
A turnê da Desafortunados tinha que seguir adiante, com
porquinho-da-índia e tudo o mais.

REGISTRO DE CHAMADAS DO TELEFONE DE ARIEL


Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Chamada perdida de tio Iggy

Mensagem de texto de tio Iggy:


Minha queridinha, mi chiquitita, por favor, volta pra casa. Vamos
conversar.
(Lida: 13h43)

Mensagem de texto de tio Iggy:


Você já se divertiu. Já provou o que queria.
(Lida: 04h04)

Mensagem de texto de tio Iggy:


Seu pai está arrependido.
(Lida: 18h21)

Mensagem de texto de tio Iggy:


Ele está fora de si. Acho que não consigo impedi-lo de fazer o que
ele vai fazer agora.
(Lida: 00h13)

Mensagem de texto de tio Iggy:


Por favor.
(Read: 8:07)

Mensagem de texto de tio Iggy:


Pense no que esse sumiço vai fazer com a sua reputação.
(Lida: 02h14)
CAPÍTULO CATORZE

ARIEL
Atlanta Savannah Jacksonville Orlando
3 de julho
Miami, Flórida

Ariel del Mar sabia como os dias facilmente viravam um


borrão quando se estava na estrada. A Fera atravessou a
Geórgia com tudo. A essa altura, precisou comprar outra
mochila para ter espaço para as pérolas que encontrava
nos brechós e os presentes que vinha comprando para as
irmãs. Um cristal multicolorido para Thea. Um telefone
vintage cor-de-rosa dos anos 1990 para Alicia. Brincos
prateados no formato de espadas para Sophia, que
encontrara numa lojinha de coisas para bruxas em
Savannah.
Quase comprou um lindo violão para si mesma numa
loja de artigos musicais, mas não teve coragem. Pelo
menos, não antes que Sophia avisasse que as contas
delas estavam liberadas. Precisou se conformar em
pegar o violão de Vanessa emprestado entre as
apresentações. O Les Paul preto era um sonho de tocar e,
num trecho longo para Jacksonville, ela surpreendeu todo
mundo no ônibus tocando uma versão instrumental de
uma das músicas de Van.
Eric olhou para ela do mesmo jeito que tinha olhado
naquela noite, na estrada escura feito breu,
imediatamente antes de o raio cair. Ariel havia feito de
tudo para evitá-lo desde então. Por sorte, as agendas dos
dois estavam tão lotadas que ela tinha uma boa desculpa
e passava a maioria de seu tempo livre explorando
histórias esquisitas das cidades com o adorável e
excêntrico Oz. A única interação entre eles era a playlist
compartilhada à qual acrescentavam músicas o dia todo.
Era como um acordo silencioso, e Ariel sempre, sempre
pegava no sono à noite ouvindo essa playlist.
A cada parada da turnê, mais artigos e resenhas
surgiam falando da Desafortunados. Mais e mais artigos
brotavam falando dela também. Ariel del Mar, a sereia do
pop, havia se desgarrado. Quando chegaram à Flórida,
ela teve que desligar o celular por causa das chamadas e
das mensagens do tio. Não sabia como ele descobrira
seu número. Tinha certeza de que nenhuma das irmãs
daria seu telefone para ele, mas o tio Iggy tinha seus
esquemas. Estivera presente em cada rebelião de uma
das irmãs de Ariel. Havia abafado as consequências
quando Elektra foi flagrada se esgueirando de um hotel
em Reykjavik com a namorada secreta. Não sabia como
ele tinha apagado uma foto que um paparazzo tirara com
um drone de um raro jantar de Nochebuena na
cobertura. Com frequência, Ariel se perguntava se o pai,
o ceo, o fazedor de reis da Atlantica Records sequer
saberia como sobreviver sem seu irmão.
Esse era o problema em precisar das pessoas. Às
vezes, era difícil parar. Tarde da noite durante as viagens,
atravessando as fronteiras estaduais, Ariel se perguntava
se ela tinha deixado de depender de uma família para
depender de outra. Afastou o pensamento assim que o
conjurou, entretanto, porque, ainda que estivesse se
aproximando da turma, eles, sim, eram uma família. Ela
ainda era um mistério que Eric havia trazido. Mais como
uma ilha flutuando no litoral do continente deles.
Quando estavam a caminho de Miami, Flórida, onde
passariam o primeiro dia de folga total na casa da família
de Odelia, Ariel não suportou mais as ligações e as
mensagens de tio Iggy. As mais recentes diziam: Acho
que não consigo impedi-lo de fazer o que ele vai fazer
agora. Pense no que esse sumiço vai fazer com a sua
reputação.
Isso era tudo o que ela era para eles? Um nome a
manter. Uma boa filha. Uma boa irmã. A “garota
glamorosa da casa ao lado”.
Teo del Mar não podia ameaçá-la.
Embora seus dedos tremessem, ela digitou uma
mensagem para as irmãs.
Ariel:
Se o papai tá tão preocupado
com a minha reputação,
que seja.

Ariel:
Arruínem minha reputação.

Ariel encarou os pontinhos cinzentos aparecendo e


desaparecendo até alguém responder.
Sophia:
Pronto.

A Fera chegou à casa de Odelia ao pôr do sol. A


construção térrea tinha um quintal espaçoso e telhado ao
estilo espanhol. Lá dentro, Antonio, o tio setuagenário de
Odelia, recebeu-os com um banquete de café da manhã
— ovos fritos, feijão, bacon, arepas venezuelanas
recheadas de queijo, suco de maracujá e torradas.
O grupo se reuniu em torno da mesa e mandou ver,
enquanto Ariel admirava cada detalhe da casa. As cores
eram tão vibrantes! Tons laranja como o poente, azuis
caribenhos. Pássaros de madeira pintada pendiam do
teto na aconchegante sala de jantar. Vasos de plantas
luxuriantes balançavam sobre as janelas abertas e
trepadeiras verdes se derramavam do jardim. Um
ventilador oscilante no canto soprava, trazendo a
fragrância das flores. Havia paredes inteiras de fotos —
algumas em preto e branco, outras com cores
esmaecidas. Parecia um altar ao passado deles.
— Amei a sua casa — elogiou Ariel, servindo-se de
outra fatia de bacon. — É incrível.
O sr. Antonio sorriu, aprofundando as rugas de sua pele
marrom.
— Obrigado, Maia.
Ariel travou, o ar sumindo de seus pulmões. Maia era o
nome de sua mãe. Será que ele a confundira com a mãe?
Com o coração na garganta, ela se virou para Odelia, que
ficou imóvel, apenas piscando, durante esse deslize.
Ninguém mais na mesa pareceu reparar.
— Esta aqui é a Melody, tío — disse Odelia, passando
as mãos nos ombros dele para tranquilizá-lo.
Ele piscou com força um de seus olhos cinza e leitoso
com catarata. Deu uma risadinha, a mão enrugada
batendo nos cachos grisalhos em sua têmpora.
— Não me dê ouvidos. Eu esqueço meu próprio nome
de vez em quando. Aproveite sua vida agora, porque,
quando estiver com a minha idade, as lembranças
simplesmente... Zip. Vão embora.
Ariel riu, nervosa, e bebeu o suco azedinho.
— Certo — disse Odelia, folheando o que havia em sua
prancheta de estimação, apesar de mal ter tocado em
seu café da manhã. — Temos a entrevista na rádio após o
café. A casa tem dois chuveiros, então se revezem e
sejam rápidos.
Ela olhou feio para Eric, que sorriu com a boca cheia de
avocado e ovos.
— Depois disso, Oz e Melody vão se encontrar com a
gente na casa de shows. Tem uma repórter da revista
Miami Sound vindo para fazer uma entrevista.
Pernoitaremos aqui.
Odelia respirou fundo, como se buscasse paciência.
— Pois não, Oz?
— Tem espaço para mim aqui? — perguntou ele. — Eu
sei que tenho o hotel, mas não quero ficar sozinho nem
perder nada do caos inevitável desse grupo. Estou
vivendo pra assistir a isso, literalmente.
Max estendeu a mão e deu tapinhas no ombro dele.
— Claro, colega.
Odelia suprimiu visivelmente um sorriso.
— Você terá que ficar na sala de estar com Eric e
Melody, mas isso não deve ser um problema.
A despeito de todos os seus esforços, Ariel deu uma
olhadinha para Eric. Muito bem. Eles não ficavam
sozinhos há dias, e ela estava preocupada com aquela
noite. Entretanto, quando ele mandou uma piscadela,
Ariel se viu de volta no meio daquela estrada, na loja de
discos, no quarto do hotel...
— Melody? — disse Odelia, impaciente.
— Oi?
— Eu perguntei se fica bom para você assim.
Ariel não queria dar na cara que não estava escutando,
então disse:
— Fica, sim, claro. O que for preciso.
— Ótimo, então você vai ficar aqui e ajudar a lavar a
roupa e a cuidar da Monty.
Talvez não fosse o melhor momento para mencionar
que lavar roupa estava entre as coisas que Ariel del Mar
nunca havia feito.

Na lavanderia aberta, Ariel e Oz se sentaram


respectivamente em cima da lavadora e da secadora de
roupas, esperando os ciclos terminarem. Sentia-se
absurdamente ridícula enviando uma mensagem de
texto para Sophia perguntando: Ei, como é que se lava
roupas? Deixa pra lá, tem instruções on-line. Ah, espera,
tá em alemão. Deixa pra lá, eu achei um vídeo.
Não ajudava o fato de que a máquina, embora nova,
tinha um milhão de símbolos que não eram nada
intuitivos. Ignorou a sequência de emojis de risadas que
sua irmã mais velha enviou e sentiu vergonha de seu
próprio privilégio. As palavras de seu pai, você não
sobreviveria, ecoavam em seus ouvidos.
— E aí, qual é a sua? — Oz perguntou, bebericando a
limonada geladíssima que o sr. Antonio havia feito.
— A minha o quê? — perguntou ela.
— Quero dizer, você me contou sobre a sua criação
“não exatamente numa seita, mas meio que numa
seita”, mas sinto que tem mais coisa na sua história. Eu
sou muito bom em ler as energias.
Ariel queria muito confiar em Oz. No entanto, ele e Max
eram os únicos no ônibus que escutavam as Sete
Sereias. E se ele reagisse da mesma forma que reagira
quando pensou, erroneamente, que um jacarezinho em
Jacksonville era uma criatura imaginária? Além do mais,
não podia contar a ninguém antes de contar a Eric.
— Por que você não lê minha energia e me diz? —
desafiou ela.
Ele ligou a secadora e fechou os olhos por um segundo.
Então, acenou a mão no ar e disse:
— Estou captando princesa em fuga. Estou captando
alma errante. Estou captando muita luxúria por certo
vocalista.
Ariel não viu graça.
— Você está caçoando de mim.
— É uma turnê bem longa, e eu preciso de um jeito de
passar o tempo. Além do mais, eu sei o que vi.
As sobrancelhas dele subiram e desceram, sugestivas.
Ela sentiu um pico de calor e pressionou as mãos frias
nas bochechas.
— Não aconteceu nada no hotel.
— Não falei do hotel, minha coelhinha — disse ele,
abaixando a voz para um sussurro. — A loja de discos.
Não se preocupe, não vou contar a ninguém.
Ariel quis negar. Mas Oz acreditava em alienígenas e
monstros se escondendo em parques nacionais. Era fácil
conversar com qualquer um que tivesse a mente tão
aberta.
— Também não aconteceu nada por lá. É melhor assim,
francamente. Ele tem esse futuro todo planejado, e se
algo desse errado entre a gente... — Ela chacoalhou a
cabeça. Soaria mais séria se não estivesse praticamente
vibrando na superfície da máquina de lavar. — Eu não
posso ser o obstáculo que vai atrapalhar o caminho dele.
— Mas e se algo desse certo?
Ariel olhou para seu colo e puxou um fio do short jeans.
E se algo desse certo? Para alguém que tinha sido uma
eterna otimista a vida inteira, esta era a primeira vez que
ela só conseguia pensar no lado negativo. Porque não
estava sendo completamente honesta. Porque estava
escondendo uma parte imensa de sua vida. Porque tinha
cavado tão fundo em volta da sua verdade que o alicerce
estava desnivelado. Era mais fácil se preparar para o
pior.
— Quero dizer, nosso galã não está exatamente
recuando, e ele terá que raspar a cabeça se estragar as
coisas com você.
Ela quase soltou a limonada pelo nariz.
— Como é que é?
Oz fez uma careta.
— Ah, você não sabia? Acho que o pessoal não acha
que eu ouço quando eles estão falando. Eu tenho essa
vibe, sabe?
— Espera, volta um pouquinho.
Oz olhou ao redor. Do outro lado do pátio, o sr. Antonio
dormia numa cadeira de balanço na frente da tv, e todos
os outros tinham saído para a entrevista da rádio. Ainda
assim, ele abaixou a voz conspiradoramente e disse:
— Então, parece que as garotas fizeram uma aposta
com Eric que, se ele estragar as coisas com você e
desandar a turnê para todo mundo, elas estariam
autorizadas a raspar a cabeça dele e escolher uma
música das Sete Sereias para ele cantar num show. Ele
odeia a música delas.
Ariel fez uma careta.
— Foi o que ouvi dizer.
— Tanto faz, eu tenho bom gosto — disse Oz,
mascando seu canudo. — Vou compartilhar contigo
minha playlist definitiva das Sete Sereias.
Claro, doía que Eric menosprezasse tanto suas
músicas. Por que ela tinha milhões de pessoas
celebrando a música que fizera com suas irmãs, mas
esse detalhe a incomodava tanto? Porque era Eric.
Porque ela o respeitava como um criador. Porque seu
coração idiota não parava de saltar toda vez que ela o
pegava fitando-a.
— E se ele não arruinar a turnê?
— Daí ele pode escolher a tatuagem da banda para
todos. Design e local. — Os olhos de Oz faiscavam,
deliciados. — Eu não me surpreenderia se ele escolhesse
uma versão desenhada do próprio rosto para ser tatuada
no traseiro de todos. Talvez na virilha.
A bebida de Ariel quase subiu pelo nariz.
— Haja comprometimento.
— Mas espere, tem mais — acrescentou Oz, com um
floreio. — Eric não sabe que a banda e Vanessa
apostaram umas com as outras quando, mais ou menos,
vocês iam ficar juntos.
Ariel hesitou ao ouvir isso.
— Não sei se devo me insultar.
— Depende — disse Oz.
— Do quê?
— De você, obviamente. Aquele garoto está
apaixonado. Eu te disse. As vibes. Eu estou em sintonia
com elas. — Oz tomou o restinho de sua bebida
ruidosamente e chacoalhou o gelo no copo. — Viu? Esse
é o seu sorriso do Eric.
— Não é, não! — Mas era. Ariel tomava sua limonada
aos poucos, doce, azedinha e deliciosa no dia quente. —
Não acredito que elas estão apostando na gente.
— Devo dizer que meu tio também é um operador de
transporte de entretenimento e ele me contava histórias
horríveis sobre as bandas que conduzia. O clima podia
ficar feíssimo. — Oz lançou um olhar significativo para
ela. — Estamos apenas na primeira semana. Proteja seu
coraçãozinho delicado.
Ariel pensou em cada quase beijo. Será que Eric estava
sendo descuidado por causa dela? Estaria se
apaixonando pelo amor? Não era com o próprio coração
que ela se preocupava. Sabia que aquela paquera tinha
que terminar. Estava quase se preparando para o
impacto. Ariel também dera sua palavra para Odelia.
Quanto mais conhecia a manager da banda, mais certeza
tinha de que Odelia Garcia era uma mulher de palavra.
Ariel não podia ir para casa antes de estar preparada. A
questão era: como é que saberia que estava?
Não queria mais falar de tratos e apostas. A única
pessoa em quem estava apostando era em si mesma, e
conseguiria passar por essa turnê.
— Foi assim que você arranjou esse emprego? — ela
perguntou a Oz. — Por meio do seu tio?
Oz olhou para suas unhas curtas e pretas.
— Foi. Eu estudei design gráfico. Quero ser um artista e
pensei que esse seria um ótimo jeito de viajar e ganhar
dinheiro nesse ínterim. O bônus na contratação já valia a
pena por si só.
— Posso ver um pouco do seu trabalho?
Essas pareceram ser as palavras mágicas, porque Oz
abriu seu portfólio no celular. Ele era bom. Bom mesmo.
Quase tudo tinha relação com fantasia, desde imagens
de dragões até reinterpretações de pinturas famosas
como O grito, só que com a Chorona, lenda que havia
aterrorizado Ariel quando ela era pequena, no lugar da
figura pintada por Munch. Aí vinha um logotipo para a
banda, feito num prisma saturado de estrelas e luas.
— Isso aqui é incrível! Você deveria mostrar para
Odelia.
Oz sacudiu a cabeça, tímido.
— Talvez. Acha que ela ia gostar?
— O pior que ela pode fazer é dizer não.
Oz suspirou.
— As pessoas dizem isso, mas esquecem que um não
ainda é bem ruim.
— Claro, mas a possibilidade de um sim não
compensa? — Ela o cutucou com o pé e ele cutucou de
volta. — Pense nisso.
Naquele momento, as máquinas pararam. Ela desceu
num pulo e abriu a tampa. Não sabia muito bem para o
que estava olhando. Tudo era uma maçaroca cinza e
molhada.
— Tem alguma coisa errada.
Oz cerrou os dentes e sorriu, o que o deixou com a
aparência de um urso estressado. Ele deu uma espiada
na máquina e retirou uma camiseta preta que
reconheceu como uma das suas.
— Ah, meu bem, meu docinho, meu anjo.
— O que eu faço?
Ela não reconheceu sua própria voz estridente.
De trás deles veio uma risada baixinha. O sr. Antonio
estava lá, um sorriso aprofundando os vincos de seu
rosto. Ele apanhou o recipiente de alvejante.
— Às vezes, a solução é cometer o mesmo erro duas
vezes.
Enquanto as roupas ficavam de molho numa mistura
de água e alvejante e Oz trocava os lençóis no ônibus,
Ariel deu uma volta pelo jardim com o tio de Odelia.
Apesar de estar em casa, ele vestia uma camisa
guayabera de manga curta e calça social bem passada.
Havia fotos dele ainda jovem na parede, bem-vestido e
com uma mulher linda a seu lado. Agora, ele puxava
ervas daninhas e retirava galhos secos de arbustos de
hibisco, a pele desgastada pelo sol e pelo tempo. Ele
claramente estivera próximo de Odelia por toda a vida
dela. Talvez pudesse responder às perguntas a que a
sobrinha não respondia.
— O senhor me chamou de Maia — disse Ariel baixinho
e, então, hesitou. E se ele lhe dissesse algo que ela não
queria escutar? — O senhor a conheceu? Minha mãe?
Ele sorriu tristemente.
— Você se parece tanto com seus pais... Estou velho,
mas ainda não estou senil.
— Odelia disse que as coisas deveriam ficar no
passado. Mas isso é como dizer para alguém não fazer
alguma coisa. Só dá mais vontade de fazer.
O rosto de Eric veio-lhe à mente assim que terminou de
dizer isso.
— Então eu não vou te contar. — O sr. Antonio pegou
uma tesoura de jardinagem, cortou uma linda flor
vermelha de hibisco e a prendeu atrás da orelha dela. —
Vou te mostrar.
Ele seguiu a trilha irregular batida na terra macia que
levava a um galpão dilapidado. No interior, havia caixas
amolecidas pela umidade e caixotes de madeira cheios
de livros antigos inchados, alguns com a etiqueta doações.
Uma caixa estava completamente coberta de poeira.
Antonio passou a palma da mão pela superfície. Dentro
havia vestidos brilhantes de lamê e tafetá, perucas
frisadas e indumentárias dos anos 1980 que deveriam
estar num museu. Em seguida, ele lhe entregou um
disco. Uma cópia exata daquele que ela comprara na
PhonoGold, em Nashville. A banda de seu pai e sua mãe.
— Luna Lunita.
Ariel virou o disco de um lado para o outro, confusa.
Conforme prometido, ele não disse nada. Puxou o
envelope interno, aquele que protegia o vinil, ainda novo
e intocado, décadas depois de impressa. Embora a capa
mostrasse seus pais, o “power couple” perfeito de
tempos passados, a imagem do envelope interno pintava
outra imagem.
Três pessoas posavam para a câmera: Teo e Maia del
Mar, e Odelia Garcia.
Ariel demorou um pouco para reconhecer a mulher que
conhecia como manager de turnê, mãe, uma mulher de
arestas cortantes. No envelope do disco, a pele
imaculada era meio nebulosa, mas o batom vermelho
característico não mudara, assim como as unhas
vermelhas, embora estivessem mais compridas agora,
como se ela tivesse precisado cultivar suas garras contra
o mundo. Odelia dos anos 1980 vestia um blazer dourado
sobre um dos ombros e se apoiava na mãe de Ariel,
enquanto Teodoro del Mar parecia belo e assertivo.
— Odelia fazia parte do Luna Lunita? — Ariel soltou
como se fosse uma pergunta, mas ali estava a prova
cabal. Prova sólida. Ela repetiu a frase, agora como
afirmação. — Odelia fazia parte do Luna Lunita.
— Fazia — disse o sr. Antonio em sua voz rascante. —
Fazia sendo a palavra exata. Agora que você viu por si
mesma, posso dizer que não lhe contei. Tenho certeza de
que está familiarizada com meias-verdades. Não está,
Ariel?
Ariel piscou para afastar as lágrimas dos olhos.
— Eu não entendo.
Eu sei o que a sua família faz. Vocês arruínam vidas.
Essas foram algumas das primeiras palavras que Odelia
havia lhe dito. Era por isso que ela hesitara em trazer
Ariel na turnê. Era por isso que queria mantê-la longe de
Eric.
— Eu não entendo.
O velho segurou o ombro dela com compaixão. Ou
talvez com dó.
— Tudo o que eu sei é que eles partiram para Nova
York como unha e carne. Daí Odelia voltou para a porta
da minha casa sem nada além do porta-malas cheio de
roupas e discos devolvidos. Ela nunca falou sobre o que
aconteceu, e eu sabia que não adiantava cavoucar.
Talvez seja algo que você deveria falar com seu pai ou
talvez Odelia possa te contar o resto. Eu certamente
nunca pensei que ela deixaria outro Del Mar se aproximar
dela, mas eis você aqui.
A garganta de Ariel parecia apertada com um grito
reprimido.
— O senhor conheceu minha mãe?
O sr. Antonio assentiu uma vez só e enxugou uma
lágrima do rosto dela antes que terminasse de cair.
— Encontrei com ela uma vez só. Maia veio falar com
minha menina. Com Odelia. Mas algumas mágoas não
têm cura, e ela foi embora sem tornar a visitá-la.
Ariel tinha mais um milhão de perguntas, mas lá na
frente da casa soou uma buzina de carro anunciando o
retorno da banda. O sr. Antonio gentilmente tirou o disco
das mãos dela. Será que Odelia havia levado as caixas
ela mesma? Será que tinha se demitido? Pior, será que o
pai de Ariel a demitira? Se ela o confrontasse, será que
Teo sequer lhe contaria a verdade?
Ela tinha uma imagem tão nítida de quem tinham sido
seus pais, e essa história, esse disco, era uma peça que
não se encaixava. Não sem quebrar a imagem deles
antes. E, se fizesse isso, sabia que não teria conserto.

Rádio Z106, 3 FM
Transcrição:

Alexis Dee: Estamos ao vivo do centro de Miami trazendo a vocês o


melhor do rock and roll, desde flashbacks até o próximo sucesso.
Hoje, temos no estúdio a Desafortunados. Vocês podem não vê-los,
mas eles são uns fofos adoráveis! Eric Reyes, Carly Toles, Eleanor
Grimsby, Max Chin, sejam bem-vindos! Vocês parecem
absolutamente paralisados. Eu juro que não mordo.

Carly: Talvez a gente morda.

[risadas ao fundo]

Alexis: Mandou bem, Carly. Contem pra gente. Primeira vez na


estrada promovendo seu álbum também chamado Desafortunados.
Como estão se sentindo? Eric?

Eric: Sobrecarregados, mas de um jeito bom.

Grimsby: Tivemos a nossa cota de catástrofes.

Max: Mas toda noite subimos no palco e arrasamos. E eu quero


dizer matamos a pau mesmo.

Alexis: Fico feliz por vocês e por nós também. Agora, seu single é
“Love Like Lightning”, e tenho que dizer que é absolutamente um
sonho. Eric, quem é a pessoa felizarda? Ou devo dizer pessoas?

Eric: [rindo] Obrigado, Alexis. Eu achava que estava compondo


pensando numa emoção que eu não era capaz de explicar. Uma
pessoa que ainda não tinha conhecido, mas que sabia que estava
por aí, em algum lugar. Que um dia eu ia conhecê-la e esse seria o
final.

Alexis: Ah, rapaz, pelo olhar que suas colegas de banda estão
trocando entre elas, estou sentindo que você já conheceu essa
pessoa.

Eric: [ri de nervoso] Só o tempo vai dizer.

Alexis: Entãããão... Isso quer dizer que o resto de nós ainda tem
uma chance?

Carly: Eu acho que vocês todos deveriam vir para o Jesse’s Live
amanhã para descobrir.

Alexis: Eu estarei lá. Confiem em mim, amigos. Vocês não vão


querer perder o show de amanhã à noite! Os portões abrem às 19h.
Esta é a Desafortunados com seu single mais recente, “Love Like
Lightning”. Eu tenho um bom pressentimento com essa aqui!
CAPÍTULO QUINZE

ERIC
3 de julho
Miami, Flórida

Naquela noite, tío Antonio preparou um banquete.


Frangos assados, banana frita, montanhas de avocados
salpicados com sal marinho e limão. Arroz-amarelo e
feijões-vermelhos e gordos. Todo mundo tinha
colaborado. Eric pôde exibir suas habilidades matadoras
com a faca e Odelia fez seus perigosos coquetéis Escuro
e Sombrio. As melhores lembranças que tinha de seus
pais, de quando foram felizes, estavam todas na cozinha.
Às vezes, como agora, Eric sentia saudade deles. Da
mãe, principalmente. Mas eles tinham feito suas
escolhas, assim como ele fizera as dele.
As pessoas que o amavam tinham ficado e estavam em
volta da mesma mesa que ele agora. Parecia algo tão
pequeno a se pedir. Prometeu a si mesmo que, a
despeito do que mais mudasse e de quanto sucesso a
banda atingisse, isso não mudaria nunca.
Não conseguiu, no entanto, livrar-se da sensação de
que Melody estava chateada. Ela sorriu quando Carly
detalhou as entrevistas que eles deram de manhã, nas
quais cada um dos repórteres e radialistas tinha dado em
cima dele e enfiado cartões de visita em seus bolsos. E
ela riu com todo mundo quando tío Antonio detalhou o
acidente na lavanderia. O que mais tinha acontecido
enquanto esteve longe dela?
— Estou curioso — começou Oz, colocando na mesa
seu Escuro e Sombrio com três limões extra. — Como foi
que vocês todos descobriram que queriam ser artistas?
Tipo, vocês são um bando de foragidos e filhotes do caos,
mas escolheram a música. Como foi que souberam?
Tío Antonio riu e apontou para Odelia com o garfo.
— Ela já saiu do útero cantando. Todos os médicos
disseram que ela fazia serenatas para os outros bebês no
berçário.
Odelia estava se abanando, mas Eric podia ver que era
tudo bravata, quando seu sorriso sumiu. Ela olhou para
Melody de esguelha e ele não soube dizer muito bem o
que estava rolando ali. Talvez fosse ele quem estivesse
esquisito.
— Eu pensava que jamais iria querer algo além de
cantar. Mas isso foi há uma eternidade. Aí essa aqui
chegou e eu ganhei um novo amor imenso na minha
vida.
— Mãe! — Vanessa revirou os olhos, brincalhona,
depois pensou na pergunta. — Eu soube na primeira vez
que me apresentei num show de talentos no ginásio.
Cantei “No Me Queda Más”, da Selena, e bastou.
Grimsby, que achava que ninguém a via guardar
pedaços de comida no bolso para dar a Monty mais
tarde, disse:
— Fácil. Roubei o disco Mer de Noms, de A Perfect
Circle, do meu irmão. Tinha uma baixista, Paz Lenchantin.
Nunca me arrependi.
Eric sorriu; podia praticamente ouvir o álbum ainda
tocando num loop pela casa deles.
Max batucou com os dedos na borda da mesa.
— Não vou mentir. Foi quando minha prima contratou
uma banda cover do Hanson para o aniversário dela.
— Nada de músicas chiclete! — disse Carly, tirando um
pedaço de uma banana e jogando-o em Max, que se
inclinou para trás apoiada nas pernas da cadeira e
apanhou o pedaço com a boca. Todos tiveram que parar
para aplaudir. Carly balançou os ombros. — Eu? Desde
que o meu velho comprou minha primeira guitarra. Ele
gostava de todos os clássicos. Hendrix. Davis. Sister
Rosetta Tharpe. Prince. É difícil responder. Mas também
quando eu conheci todos vocês.
Eric levantou o copo para sua guitarrista solo.
— E vocês ainda dizem que eu é que sou o romântico
do grupo.
— Sua vez, perdedor — disse Carly, sorrindo.
— Para mim, ficou claro que eu queria ser músico
quando meu avô começou a me dar aulas de música. Era
tudo o que ele queria, e nunca rolou para ele, e eu
pensei: Eu vou conseguir. Por ele. Por mim. E agora, por
nós.
Eric cutucou Melody com o cotovelo.
— Vamos lá. Nós te ouvimos tocar. Quando você
soube?
Melody respirou fundo, pressionando a gargantilha para
baixo. Ela sorriu, como se só agora começasse a se dar
conta de sua resposta.
— Eu acho... Eu acho que nunca quis ser musicista.
Não a princípio. Digo, não sob os holofotes, acho. Não
estou me expressando direito.
— Não existe certo ou errado aqui — Odelia disse a ela.
— É, ninguém está julgando — disse Eric.
Melody esfregou as têmporas.
— Eu não acredito que acabo de dizer isso. Nunca foi
meu sonho ser musicista. Mas eu sempre, sempre quis
ser compositora. A música faz parte de mim. Está
costurada a tudo o que eu sou. Eu conheço o poder de
uma canção, como a música certa pode reviver a sua
memória. Como, mesmo quando o mundo odeia uma
música, sempre tem uma pessoa que vai ouvi-la e amá-la
porque a ouviu no momento certo, e ela foi tudo de que
essa pessoa precisava naquele momento. A música certa
pode te estimular ou te acalmar. Música é literalmente
tudo. Acho que não escolhi a música. A música que me
escolheu.
Eric se deu conta de que batia com os dedos na mesa
conforme ela falava, baixinho, tentando se lembrar de
onde tinha aprendido aquele ritmo. Dois, um, quatro.
Imaginando como cada palavra combinava com os
próprios sentimentos. As outras assentiram, sorrindo.
— Acho que você está no lugar certo — disse Odelia. —
E isso me lembra de algo.
A manager de Eric se levantou e sumiu no interior da
cozinha. Voltou com uma bandeja de cupcakes, uma
única vela de faíscas iluminando o bolinho no centro. Eric
olhou para a sala ao seu redor, mas não conseguiu
lembrar quem estava fazendo aniversário. Aí Odelia
colocou a bandeja na frente de Melody, que tentou
esconder o sorriso embaraçado com as mãos.
— Não precisava — disse ela.
— Eu quis. E é só amanhã, mas vamos começar desde
já — disse Odelia, que era sua forma de dizer por nada.
Eles irromperam numa versão altinha, bagunçada e em
portunhol de “Parabéns pra você”, e Melody deu uma
mordida enorme no cupcake, depois depositou um pouco
de cobertura na ponta do nariz de Eric antes de lamber o
próprio dedo para limpar.
— Se vocês espalharem chantili por todo lado... —
alertou Odelia.
Mais tarde naquela noite, depois que todos tinham
tomado banho, Eric se esticou num dos dois sofás e
deixou Melody ficar com o colchão de ar. A sala girava de
leve, e ele pensou no que a radialista havia perguntado.
Sobre quem “Love Like Lightning” falava? Estou sentindo
que você já conheceu essa pessoa, ela havia dito.
E ele respondeu: Só o tempo vai dizer.
Talvez. Talvez o tempo de saber estivesse mais próximo
do que ele imaginara.
Na noite seguinte, antes do show, Eric tinha uma
surpresa para Melody. Ele a encontrou no camarim,
experimentando alguns acordes no violão de Vanessa.
Quando o viu, ela arqueou as sobrancelhas. Ele estava
atrasado, mas decidira que isso era simplesmente parte
de seu processo.
— Você não devia estar se vestindo? — perguntou ela,
vendo a camiseta branca e simples dele, parte do pacote
que ele comprara naquele primeiro brechó.
— Bom, todas as minhas camisas da sorte ficam
rasgando ou sendo tingidas.
Ela enterrou o rosto nas mãos.
— Desculpa! Eu vou repor tudo, prometo.
— Eu tô brincando. Mal dá para perceber.
Ele definitivamente podia perceber, sim.
Ela colocou o violão no sofá.
— Carly discorda.
— Esqueça isso. Eu quero te mostrar minha coisa
preferida. — E então, percebendo que essas palavras
poderiam ser interpretadas de várias formas, ele
elaborou. — Digo, o motivo por que essa casa de shows é
importante para mim.
Melody mordeu aquele lábio inferior perfeito.
— Desde que você prometa que não tem nenhuma
relação com aniversários...
— Posso prometer que não tem relação com o seu
aniversário. Só... — Ele gesticulou na direção da porta. —
Por favor?
Ela cedeu e aceitou a mão que ele oferecia.
Eric abriu uma porta marcada com entrada exclusiva para
funcionários e a conduziu degraus acima.
— Sabia que eu não peguei um elevador numa casa de
shows desde a Filadélfia?
— Pensei que era só eu! O trauma!
Por sorte, o acesso ao terraço ficava a apenas três
lances de escada. Alguém já tinha deixado a porta aberta
e apoiada, e Eric certificou-se de que o tijolo pesado se
mantivesse no lugar. A última coisa que queria era ficar
trancado para fora antes do show.
Do terraço de Jesse’s Live, eles tinham uma visão
perfeita do pôr do sol preguiçoso de Miami. A faixa de
praia, as copas das palmeiras, uma explosão de cores
que ele nunca conseguia captar com precisão numa foto,
por mais que tentasse.
— Sei que a Flórida tem uma péssima reputação —
disse ela —, mas, até aqui, tem sido ótimo.
A brisa salgada vespertina os envolveu. Da mureta na
beira do terraço, eles podiam ver a fila de pessoas
entrando no prédio lá embaixo. Algo se retesou no fundo
do estômago dele. A banda ainda não tivera um show
esgotado, mas talvez esta fosse a noite deles. Eric estava
otimista.
Conferiu o relógio e então apontou para a praia.
Assistiu aos olhos de Melody acompanharem a primeira
rodada de fogos de artifício no céu. Candelas eram
espelhadas nas piscinas escuras dos olhos dela, e ela
arfou conforme cada onda de explosões ficava maior.
— Calculei que você já tivesse visto fogos de artifício
de 4 de Julho — disse ele, torcendo para não soar como
um tonto completo. — Mas nunca os viu deste terraço.
Ou comigo.
— Isso é perfeito, Eric — murmurou ela. Em seguida,
seu olhar se tornou astuto. Ela subiu na mureta para ficar
de frente para ele, sentada com os joelhos cercando o
corpo dele. — Então... Oz mencionou uma aposta ou algo
assim?
Não era o que ele esperava que ela fosse mencionar.
Exalou uma risada.
— Por favor, não fique brava. Isso não tem nada a ver
com você, mas comigo e com minha reputação.
Melody pareceu ficar tensa ao ouvir aquela palavra,
depois assistiu aos fogos por um tempinho.
— Me conta.
Duas palavras. Me conta. Parecia uma versão
abreviada de Confie em mim. Me conta, eu não vou te
julgar. Me conta, tá tudo bem. Pelo menos, ele torcia para
que fosse o caso.
— É justo. Você me contou seu histórico de namoros,
agora é a minha vez.
Eric pressionou as palmas das mãos na mureta, uma
de cada lado dela, porque não conseguia parar de
desejar abraçá-la outra vez. Ele respirou fundo e tentou
encontrar as palavras.
— Minhas amigas têm razão para se preocupar que eu
vá estragar tudo. Já fiz isso antes. De maneira épica. Eu
me abro. Eu me magoo. Magoo outras pessoas.
— Um cafajeste — provocou Melody.
— Cafajeste recuperado. — Ele a encarou com firmeza,
sem desviar. Precisava lhe mostrar que era sincero em
cada palavra que dizia. — Comecei a namorar quando
estava no primário. Namoricos fofos, flores colhidas no
jardim do vizinho, caminhar com a menina até a escola.
Eu nunca parei de buscar esse sentimento que criei na
minha cabeça. Culpo meu avô, Pedro, e sua história de
amor perfeita de doer, mas isso fica para outra noite.
— E esta noite?
— Acho que foi aqui que aconteceu — disse ele,
indicando a praia lá embaixo. — Eu era novo aqui em
Miami, pegava qualquer trabalho que conseguisse
arranjar. Conheci alguém depois de tocar numa dessas
noites de microfone aberto. Ela acreditava em mim. Ia a
todas as apresentações, até no boteco mais xexelento.
Até quando eu tocava nas ruas para os turistas. E eu
pensei, isso é amor.
— E era? — perguntou Melody, baixinho, curiosa.
— Bem, você mesma disse. Se fosse de verdade, não
teria passado tão depressa. Mas passou. Acho que o
glamour começou a se desgastar. Eu peguei menos
apresentações para ter tempo para nós. E o sucesso de
que eu tanto falava não vinha. Ela terminou tudo, e, tá,
eu fiquei um caco, mas por outro motivo.
Melody inclinou a cabeça para o lado, esperando
pacientemente ele prosseguir.
— Na noite em que ela terminou comigo, eu recebi
uma ligação da minha mãe. Ela nunca me ligava. Nunca.
Meu pai não permitia. Eu estava trabalhando no bar,
então deixei a chamada ir para a caixa postal.
Ele engoliu em seco. Tinha contado a história uma vez
para sua banda e nunca mais desde então. A culpa que
vinha junto sempre se renovava quando ele pensava a
respeito.
— Ela estava ligando para dizer que meu avô tinha
morrido enquanto dormia. — Ele passou os dedos pelos
cabelos. — Eu ouvi a mensagem centenas de vezes, e ela
não parecia real. Eu não podia ir para casa por causa dos
termos do meu visto nem tinha como pagar a passagem,
de qualquer maneira. Não podia nem estar lá. Ele nunca
chegou a ouvir eu me apresentar ou ver que eu estava
tentando e que eu tinha ido para Nova York e encontrado
o meu pessoal.
O sorriso de Melody era tão triste que Eric teve
vontade de bani-lo. Foi quando soube que ela entendia.
— Sou muito familiarizada com esse tipo de coração
partido.
Eric sentiu o nó do dedo dela roçar seu rosto
gentilmente. Isso logo passou. Ele continuou.
— Eu fiquei um caco. Pensei que, se tivesse me
esforçado mais, se tivesse simplesmente focado mais na
música, tudo teria acontecido antes e meu avô poderia
ter visto.
— Eric — disse ela, a voz num sussurro enquanto os
fogos de artifício ribombavam.
Ele fechou os olhos. Ela não tinha ideia do que fazia
com ele quando murmurava seu nome assim. Ele engoliu
o desejo que o inundava e fez uma cara bonita. Embora,
sendo justo, a cara dele fosse sempre bonita.
— É por isso que você o agradece antes de todo show
— disse Melody, afastando dos olhos dele as ondas
jogadas pelo vento. — E colocou o nome dele em seu
violão. Não parece que fez por merecer essa reputação.
— Bem — disse ele, deixando que os fogos de artifício
ao redor preenchessem o silêncio. — Aí eu fui para Nova
York, conheci a banda. Eu sabia que não queria mais
nada sério e deixava isso claro para toda mulher que
conhecia. Nunca quis magoar ninguém de propósito. Mas
as coisas têm uma tendência a explodir na minha cara de
forma espetacular. Shows perdidos. Pneus rasgados.
Hóspedes indesejados em casa. A banda se cansou.
— Viu? Cafajeste.
— Recuperado — corrigiu ele. — Um tempo atrás, eu
disse a mim mesmo: nada de relacionamentos. Nem
mesmo encontros. Não até estourarmos.
— Eu acho que vocês estão se saindo otimamente
bem.
— Não otimamente o bastante.
Melody desviou o olhar. Aquela muralha invisível se
formando em torno dela.
— Quando vai ser o bastante?
Antes que ele pudesse responder, eles giraram ao ouvir
o som da porta batendo no tijolo. Melody desceu da
mureta e ele foi para trás da coluna que os escondia de
vista. Ainda que fosse se apresentar naquela noite,
tecnicamente eles não deveriam estar ali em cima.
Eric tinha toda a intenção de explicar que eles só
queriam assistir aos fogos de artifício, mas a visão que os
aguardava do outro lado os deixou atordoados e em
silêncio.
Eram Carly e Vanessa.
Carly e Vanessa se beijando.
Carly e Vanessa se beijando enquanto uma nova rajada
de fogos de artifício subia, mais próxima da localização
deles do que as anteriores. Parecia extremamente errado
assistir; logo, ele deu meia-volta e colidiu com Melody. O
que chamou a atenção delas.
— O que diabos vocês estão fazendo? — gritou
Vanessa.
— Eu? — Ele se virou de frente para elas de novo. Carly
limpava o batom de Vanessa de seu rosto. — O que
diabos vocês estão fazendo?
Vanessa balançou o dedo como se o ameaçasse. Mas
mal caminhou alguns metros antes de tropeçar em
alguma coisa no escuro. O tijolo. Carly e Eric tentaram
segurá-la ao mesmo tempo, mas erraram por um fio de
cabelo e ela caiu de cara e com força.
— Ai, meu deus — ofegou Carly. — Você tá bem?
Vanessa gritou segurando o braço junto ao peito e
soltando uma fieira de palavrões que teria feito
marinheiros ruborizarem.
— Eu vou buscar ajuda! — Melody já estava metade
para fora da porta quando Vanessa a chamou de volta.
— Não! Eu tô bem.
Eric a pegou no colo.
— Não tá, não.
Carly guiou o olhar de Vanessa para o seu.
— Deixe eu ver.
Vanessa, por mais durona que fosse, espremeu os
olhos com força e manteve a mão aninhada ao peito.
— Não! Não, tá doendo!
— Eu vou buscar ajuda, fim de história — Melody
tornou a dizer, e dessa vez ninguém a questionou.
— Eu consigo andar, juro.
Vanessa tirou os sapatos de salto e os quatro se
esparramaram para fora do acesso ao terraço, descendo
pelos três lances de escadas.
No camarim, instalou-se o pandemônio. O gerente da
casa mandou alguém buscar gelo. Melody garantiu que
uma ambulância estava a caminho, Vanessa insistia que
estava bem, Max e Grimsby se preocupavam com os
amigos.
— Será que alguém pode me dizer o que aconteceu? —
trovejou Odelia.
Pela primeira vez desde a chegada deles, desde a
história da Desafortunados, fez-se silêncio no camarim.
— Estávamos assistindo aos fogos de artifício — disse
Eric.
— Sem a gente? — perguntou Max, gesticulando com
as baquetas na mão.
Grimsby chacoalhou a cabeça.
— Nada bacana, pessoal.
— Eu tropecei num daqueles tijolos enormes —
explicou Vanessa.
Odelia esfregou as têmporas e resmungou:
— Paciencia, Odelia, paciencia.
— Vocês não têm permissão para subir no terraço —
disse o gerente da Jesse’s Live. O bronzeado alaranjado
fazia seus dentes parecerem branco neon.
Ninguém voltou a falar até que os paramédicos
entrassem e cuidassem de Vanessa. Eles enfaixaram o
pulso dela, mas seria necessário tirar um raio-X para
determinar a extensão dos danos.
— Posso fazer isso depois do show? — perguntou
Vanessa. — É só uma hora.
— Bem, tecnicamente... — um dos paramédicos
entediados disse.
— Mas de jeito nenhum — disse Odelia. — Você não
pode nem tocar.
Vanessa e Eric se voltaram para Melody ao mesmo
tempo.
— Mas ela pode.

TUTTLE, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Episódio 1.371:
Notícias de última hora
Transcrição:
Tá bom, gente. Eu não ia fazer isso, mas precisamos conversar. Se
vocês têm acompanhado o que está rolando com a nossa garota,
Ariel del Mar, então sabem que alguma caca está acontecendo.
Primeiro, Ariel perdeu sua apresentação no Acorda! Nova York, daí
ela posta aquela mensagem enigmática dizendo que precisa de
espaço e que está deixando as redes sociais. agora apareceu esse
vídeo dela numa boate em Paris, agindo de um jeito totalmente
diferente do normal... Já houve muitas imitadoras ao longo dos anos
que colocaram a peruca dela e tentaram se passar pela superstar.

Fontes de dentro da boate, porém, dizem que ela estava com


algumas de suas irmãs, então realmente é ela. Ariel festejando em
público? Ariel indo a uma boate até as seis da manhã? Essa não é a
princesa que a gente conhece. Eu sei que ela foi alvo de críticas e
muitos de vocês estão chateados. Entretanto, estou aqui para dizer
que ela ainda é a nossa garota. Ela ainda é a mesma pessoa que
pagou pelas despesas hospitalares das pessoas afetadas pelos
incêndios florestais em Oregon. Que construiu um hospital em
homenagem à mãe na sua cidade natal. Que doou milhões em
bolsas de estudo para aspirantes a músicos.

Não deveríamos tirar conclusões precipitadas sem saber o que está


acontecendo de fato. Vou realizar um chat aberto para podermos
discutir a respeito.

Será que a nossa garota está pedindo socorro?


CAPÍTULO DEZESSEIS

ARIEL
4 de julho
Miami, Flórida

— Não — disse Ariel. — Eu não posso.


— Eu sei que você sabe as minhas músicas — implorou
Vanessa, agarrando a mão de Ariel com a sua mão
intacta. — Não estou pedindo para você cantar. Por
favor...
Ariel virou de Odelia para Vanessa e para Eric. Eric, que
tinha se aberto para ela momentos antes. Mal tivera
tempo de processar tudo o que ele lhe contara, imagine
isso. Ariel sabia, de fato, as músicas de Vanessa. Havia
aprendido na estrada, mas não podia subir no palco
agora. E se alguém a reconhecesse?
Em contrapartida, não havia dito a Odelia que seria um
trunfo na turnê? Aqui estava ela, no centro de outra
perturbação, e tinha a oportunidade de salvar o dia.
Ninguém nem sabia que Ariel del Mar sabia tocar. Certa
vez, ela usou uma guitarra como adereço durante uma
apresentação numa premiação e caçoaram dela on-line
porque a guitarra não estava ligada. Seu pai achava que
dar instrumentos a elas depreciava sua imagem de pop
star e as deixava “folk” demais. E, sim, ela confessara na
noite anterior que se tornar musicista não era seu sonho,
mas que a música a escolhera. Só que não no sentido
que seu pai havia imaginado.
Ariel não subia aos palcos há quase duas semanas. Não
sentia saudades do circo nem dos paparazzi. Das
entrevistas invasivas e condescendentes. Mas tinha
saudades da energia da multidão. Sentia falta de compor
em seu violão no intervalo entre as paradas da turnê, na
cobertura. Sentia falta das pessoas gritando suas letras
como se elas tivessem sido escritas sob medida para as
emoções delas.
Estava claro que não queria dar um tempo com a
música. Se quisesse, não teria saído numa turnê musical.
Ela queria dar um tempo de ser Ariel del Mar e a filha
perfeita de seu pai. Tinha esta oportunidade de ser uma
violonista contratada para tocar ao fundo. A ideia
começou a ficar mais atraente a cada segundo, e seus
dedos coçavam para pegar o violão.
— Eu não tenho nada para vestir — Ariel disse a
Vanessa.
— Eu tenho um vestido preto a mais. Pode ficar um
pouco largo na parte de cima, mas podemos ajustá-lo —
disse Vanessa, voltando-se para a mãe em busca de
apoio.
— Você não precisa fazer isso — disse Odelia, e Ariel
não saberia dizer quem ficou mais surpresa, se a filha
dela ou Ariel.
— Mamãe...
— Todos para fora! — mandou Odelia.
Um por um, Eric, a banda, a equipe exausta da casa e
os paramédicos (que fizeram Odelia assinar um termo de
responsabilidade antes de saírem) esvaziaram a sala até
que restassem apenas Odelia, Vanessa e Ariel.
— Ariel — começou Odelia, e Ariel se aprumou ao som
de seu nome. — Você foi embora porque não queria se
apresentar. Não vou pedir que faça isso de novo.
Ela observara a paciência com que Odelia tinha falado
com Vanessa depois do incidente no elevador e, no
entanto, receber aquele tratamento era diferente. Em
sua cabeça, podia ouvir a agitação do pai quando alguma
das irmãs estava doente, exausta ou tinha largado a
banda. Porque todas já tinham se demitido uma vez,
exceto ela. E daí, com algumas poucas palavras, Teo del
Mar sempre virava o jogo. Sempre consertava as coisas.
Sempre as relembrava do que estava em jogo. A primeira
e única vez em que Ariel havia se demitido foi no dia em
que saiu em turnê com Eric.
— Eu toco — disse ela. — Eu consigo. Tenho certeza.
Odelia abriu um sorriso suave, e Vanessa apertou sua
mão.
— Tenho algumas condições — disse Ariel. Estava fula
com o pai, mas ainda era filha dele. As Garcia esperaram,
atentas. — Não posso cantar em público.
Vanessa anuiu.
— As músicas não têm vocais de apoio.
— Era preciso confirmar — destacou Ariel. — Eu não
quero ser tagueada em nada.
— Não podemos passar a impressão de que não damos
o crédito a nossos músicos. Não cai bem — disse Odelia.
— Que tal usar “Mel”?
— Ou “M”? — sugeriu Vanessa, empolgada. — Ou um
símbolo!
— M está bom. Última coisa. — Ela focou seu olhar em
Odelia e pediu: — Eu quero saber o que houve entre você
e meus pais. Sei que você fez parte do Luna Lunita.
O olhar afiado da manager se encheu de raiva a
princípio, depois suavizou quando ela olhou para a filha.
— Não hoje à noite. Quando eu achar o momento certo.
— Mas antes do fim da turnê — acrescentou Ariel,
hesitante, como se caminhasse sobre vidro.
Odelia ofereceu a mão. Ela era o tipo de mulher para
quem a honra tinha toda a importância, então Ariel
aceitou.
— Trato feito, pequena sereia.
Ariel já fizera trocas inteiras de figurino em menos de
trinta segundos, então se vestir foi a parte mais fácil da
noite. Como Vanessa apontara com tanto tato, a silhueta
esguia em forma de ampulheta de Ariel não preenchia o
corpo do vestido preto de seda. Com alguns alfinetes de
Odelia, que arrancaram sangue enquanto elas a vestiam
correndo, o busto foi ajustado e uma fita preta foi usada
para cingir a cintura.
Ariel se virou, olhando-se no espelho. Usara macacões
e shortinhos curtos por anos, mas aquelas peças a
faziam se sentir jovem. Uma garota-criança em tamanho
adulto, coberta de lantejoulas e tanto glitter que ela
tinha certeza de que ainda encontraria grãozinhos
quando fosse uma velha de cabelos brancos. Esse
vestido, porém, passava uma impressão de algo íntimo, a
um passinho de ser lingerie, sexy de uma maneira que
nunca deveria fazer parte de sua “marca”. As gêmeas
diriam que todas as roupas eram fantasias, no fim das
contas. Este era o sentido da moda — mostrar quem
você era. Como a música, era uma expressão. Ariel vinha
comprando peças usadas há semanas, e toda vez sentia
como se vestisse uma nova pessoa. Isto, contudo, estava
a quilômetros da “garota glamorosa da casa ao lado”,
como as revistas a chamavam.
— Muito gata — disse Vanessa. — Mas cuidado para
não mostrar nada quando sentar. São seus fãs, não seu
ginecologista.
— Vanessa! — censurou Odelia, mas riu, soltando ar
pelo nariz atrás da prancheta. Ariel não tinha certeza se
já tinha realmente visto a mulher rir daquele jeito.
— Sem maquiagem — disse Ariel, quando Vanessa
iniciou um ataque de uma só mão com um pincel de
sombras.
— Ay, Melody! — protestou Vanessa, aplicando um
gloss cintilante em vez da sombra. — Você ainda está
bem diferente daquela palhaçada de sereia completa.
— Ei!
Vanessa espremeu os lábios, como se não fosse retirar
o que havia dito. Ariel teve certeza, naquele momento,
de que Vanessa definitivamente se daria bem com sua
irmã Sophia.
Odelia voltou segurando um chapéu fedora de aba
larga com uma fivela turquesa. Depositou-o sobre a
cabeça de Ariel.
— Onde você arrumou isso? — perguntou Vanessa.
— Comprei de um hipster no saguão — disse Odelia. —
Vai sair do seu pagamento.
— Obrigada.
Ariel ficou emocionada por Odelia ter pensado em
encontrar mais uma peça para seu figurino a fim de
deixá-la confortável.
Lembrou-se do que Grimsby dissera. Como ela se
olhava no espelho e sempre parecia surpresa. Era
mesmo surpreendente como Ariel era si mesma, mas
diferente. Ela, mas alguém novo. Talvez preferisse ser
Melody Marín à garota que tinha sido. Aquela não
conseguia se defender diante do pai e era acompanhada
praticamente até durante o sono e não podia nem arrotar
sem que o pai lhe dissesse que aquilo era ruim para sua
imagem. Melody Marín dançava com um homem lindo
até o amanhecer, sentava-se em cafés e escrevia as
músicas que quisesse.
Melody Marín estava empolgada para subir ao palco.
Antes de abrir a porta, Odelia apontou uma unha
vermelha para as garotas.
— Última coisa. Eu sei que vocês quatro não subiram
ao terraço para assistir aos fogos de artifício. Não
precisam me dar os detalhes, eu não quero saber. Mas
não mintam de novo para mim. Entendido?
Lá estava aquele olhar fulminante que paralisara Ariel
no dia em que as duas se conheceram. Repreendidas, as
duas anuíram e correram para os bastidores.
As luzes diminuíram, e a casa toda ganhou vida. Era
como nos velhos tempos e, no entanto, completamente
diferente. Havia menos gente do que ela estava
acostumada a se apresentar, mas mesmo cinquenta
pessoas entusiasmadas podiam dar a sensação de
centenas. Ariel não tinha a sensação agourenta de que
precisava agradar a todos, porque agora estava em
segundo plano. Podia simplesmente tocar. A adrenalina a
percorreu, deixando seus membros inquietos.
— Você tá bem? — perguntou Vanessa.
— Sim, é como andar de bicicleta.
— Pensei que não soubesse andar de bicicleta.
Ariel riu.
— Você sabe que é uma metáfora.
Vanessa parou pouco antes do limiar. Elas podiam ouvir
as conversas na grade mais adiante. O estalo dos walkie-
talkies e das botas pesadas atrás delas. Sorriu
timidamente para Ariel e disse:
— Obrigada. De verdade.
— Agradeça depois.
Vanessa entrou no palco primeiro, a multidão
transferindo sua atenção para ela. Ela sentou-se em seu
banco preto e ajustou o microfone. Houve um leve
murmúrio ao verem seu braço.
— Então, eu torci meu pulso hoje — Vanessa contou
para a multidão, sua respiração ecoando com um toque
de reverb. Ela realmente se transformava no palco,
criando certo ar de perigo e muito carisma. — Mas vocês
sabem o que dizem por aí. O show tem que continuar! —
A multidão urrou, aprovando. — Com a ajudinha de uma
amiga, claro. Uma salva de palmas para a minha amiga,
M.
Antes que Melody desse um passo à frente, ela o viu do
outro lado do palco, nas coxias. Eric. Seus olhos escuros
a percorreram desde as botas pretas emprestadas até a
barra do vestido beijando o topo de suas coxas. Mesmo
nas sombras, o olhar dele queimou a pele dela. Ela
gostou. Ela adorou.
Caminhou com confiança para a suave luz frontal lilás e
assumiu o lugar ao lado de Vanessa. Se alguém tivesse
dito a Ariel que ela estaria sentada ali, tocando violão de
apoio para Vanessa Garcia, não teria acreditado. Mas
começava a entender que talvez estivesse descobrindo
mais do que apenas a si mesma. Estava descobrindo
suas primeiras amizades reais. Teria que pensar mais em
como fazer essas amizades durarem depois.
Enquanto isso, elas criaram música.
Era como andar de bicicleta e era diferente. Ariel
dedilhou a introdução animada da canção de Vanessa,
“Storms and Silence”. As vibrações dos acordes
reverberaram por seus ossos. Ela mantinha a cabeça
voltada para baixo, observando os próprios dedos se
movendo e mudando de posição no braço do violão. Mal
reconhecia as próprias mãos, e era esmagadora a
sensação de que aquilo era correto. Se seu pai estivesse
na plateia, será que a reconheceria? Será que as irmãs a
reconheceriam?
De quando em quando, Vanessa se virava para ela e
abria um sorriso de incentivo. Uma vez, entre duas
músicas, Ariel procurou Eric e o encontrou de pé
exatamente onde estava no começo do set. Queria poder
tê-lo olhando para ela daquele jeito para sempre.
A cada nota, cada música, com os assovios e uivos da
plateia, Ariel retomava algo que vinha lhe faltando desde
o último show da turnê “Goodbye Goodbye” — a
conexão. Cordas salva-vidas tinham se desenrolado entre
ela e a audiência. Esse era o poder da música.
Quando o set terminou, entregou o violão para um
assistente de palco e foi procurá-lo. Precisava vê-lo.
Sabia que era complicado, que ambos haviam feito
promessas que pareciam cada vez mais frágeis quando
se aproximavam demais, mas, naquele momento, não
importava.
— Aquilo foi incrível! — Eric a puxou para um abraço,
levantando Ariel e girando no lugar.
— Você parece surpreso — disse ela. Embora ele a
colocasse no chão, ela ainda estava flutuando.
Assistentes de palco retiraram o equipamento e
abriram caminho para o Le Poisson Bleu assumir os
holofotes. No camarim, havia energia e caos. Odelia
levou a filha da casa de shows apressadamente para tirar
suas radiografias. Carly deu um soquinho no ombro de
Ariel e disse:
— Que outros talentos você anda escondendo, hein?
Ariel tinha dúzias de premiações e fãs incondicionais.
Não podia sair de um evento ou uma entrevista sem que
alguém proclamasse seu amor imortal por ela e por suas
irmãs. Guardava com carinho esses momentos e não
queria tomá-los como algo certo, mas isto — um set de
45 minutos num palco escuro em que ninguém a
conhecia como algo além de uma inicial fugaz — deu-lhe
a sensação de que havia chegado ali por seu próprio
mérito.
Carregou aquele sentimento até o estande de
merchandising e pôs mãos à obra. A casa estava lotada
de gente altinha, rindo, brilhando. Ela achou que nada
poderia derrubar seu ânimo, até conferir o celular. Tinha
dúzias de mensagens de Chrissy e das irmãs. Um
lampejo de ansiedade a percorreu quando viu as
manchetes e clicou nas imagens. Elas tinham feito o que
Ariel pediu. Que seja.
Ariel del Mar estava nos jornais.
CAPÍTULO DEZESSETE

ERIC
5 de julho
Nova Orleans, Louisiana

Eles deixaram Miami logo após o show com o equivalente


a uma geladeira de sobras do tío Antonio e notícias de
que o looping de um vídeo de uma das apresentações da
banda tinha viralizado. No vídeo, Eric jogava a cabeça
para trás e mordia o lábio na seção de transição da
música. O vídeo tinha desacelerado o movimento, frame
por frame, e, embora ele soubesse que estava bonito ali,
todo mundo no ônibus, exceto Odelia e Melody, ficou
zoando com ele e reencenando o vídeo ao vivo.
Ele aceitou tudo naturalmente, rolando pelos
comentários. Tá, tá, todo mundo dizia para não ler os
comentários. Mas ele nunca tinha sido um assunto de
consideração pública. Entre os spams de “pr0m0vam a
música do g4tinh0” e “ele é uma droga”, havia aqueles
que eram puro amor. Amor pelo baixo de Grimsby, pelos
truques de Max entre os sets e pelos solos épicos de
guitarra de Carly.
Na metade da viagem de doze horas, eles
estacionaram numa parada rodoviária; só Oz e a banda
desceram para o café da manhã, enquanto Melody
dormia.
Eric pegou um sanduíche de bacon, ovos e queijo para
si, dois cafés (um puro e um adoçado) e um croissant
com manteiga e geleia, que era o que Melody
normalmente comprava nas paradas. Funcionando com
apenas três horas de sono, ele se espreguiçou sob o céu
crepuscular e virou seu primeiro café antes de se juntar
aos amigos em uma das mesas de piquenique na frente
da parada.
— Acho que vamos receber boas notícias hoje —
anunciou Eric.
Max jogou uma batatinha na boca.
— Lá vamos nós.
Eric sorriu.
— Tô falando sério. Eu sonhei com Pedro. Toda vez que
sonho com meu avô, recebo boas notícias.
Oz assentiu, como se não pudesse imaginar como
alguém podia duvidar de Eric.
— Definitivamente, tem coisa aí. Minha avó veio da
Guatemala para morar com a gente quando eu tinha dez
anos, e ela dizia que nossos entes queridos conversam
conosco nos sonhos. No dia seguinte à morte do meu
gato, ela apareceu para mim.
Os olhos cinzentos de Grimsby se arregalaram e ela
cochichou:
— Gato fantasma!
Eric deu tapinhas nas costas de Oz.
— Fico feliz por você, colega.
— Ou talvez — disse Carly — Miami seja um ponto
sensível para você e isso tenha trazido à tona algumas
memórias, então você sonhou com a única pessoa que
indubitavelmente te apoiou durante aquele período da
sua vida.
— Tão jovem — disse Eric, melancólico —, tão cínica.
Max batucou na mesa, mas se aquietou quando um
caminhoneiro próximo lançou um olhar feio de está cedo
demais para isso na direção deles.
— Acredito em você, Eric. Especialmente se isso
significar que o selo vai nos dar uma graninha para o
vídeo. Eu adoro o seu conceito, Grimsby, mas, nesse
momento, está um pouco fora do orçamento.
— Eu tenho uma visão e me recuso a comprometê-la —
a baixista gótica resmungou.
Eric sabia que Max tinha razão.
— É, bem, nesse momento é basicamente vídeos
reaproveitados e nós caminhando pelo deserto da
Califórnia.
— Talvez eu possa ajudar — disse Oz. — Sou muito
bom em artes gráficas e tenho especialização em
cinema.
O jovem motorista entregou seu celular e, em seguida,
recolheu-se visivelmente para dentro de seu moletom de
capuz. Era surpreendente que o homem pudesse falar
por horas sobre as teorias evolucionárias de centauros,
mas, quando era para falar de si mesmo, ele era tímido.
— Melody sabe tocar violão, Oz é um tremendo de um
artista — disse Carly, folheando o portfólio de Oz. Ela deu
um tapa, ou melhor, um soco nas costas de Eric. —
Droga, talvez os seus palpites esotéricos estejam certos.
— Eu não precisava de uma manobra de Heimlich a
essa hora da manhã. — Eric tossiu. — E adoro como Carly
se esquece da fase em que consultava as cartas de tarô
para decidir o que fazer para o jantar. Mas concordo.
Temos uma fartura de riquezas nesta turnê.
Max, Grimsby e Carly trocaram olhares. Eric conhecia
aquela expressão. Era a expressão da intervenção. No
primeiro mês em que moraram juntos e elas odiavam a
colônia que ele usava. A moça que apareceu para um
encontro certa vez e se recusou a ir embora, declarando
que tinha direitos de ocupante. A vez em que ele cultivou
uma barba de homem das cavernas.
— Que foi?
— Bem... — começou Grimsby. — Hmm, Max?
Max limpou migalhas de batata dos cantos da boca.
— Gostaríamos de te oferecer a opção de abandonar a
aposta.
Eric levantou um dedo de seu café e apontou de uma
colega de banda para a outra.
— O que vocês estão aprontando?
— Nada — disseram elas, as vozes adocicadas e
meigas.
— Vocês foram trocadas por alienígenas quando eu não
estava olhando?
— Isso acontece mesmo por essa área — disse Oz,
misteriosamente, drenando o resto de seu café gelado e
cheio de açúcar.
Carly cruzou os braços, aquele brilho teimoso nos
olhos.
— Olha, eu geralmente sou a última a admitir que
estou errada, mas eu estava errada.
— Sobre o quê? — perguntou ele, embora suas
entranhas se revirassem, ansiosas. — Use palavras. Eu
falo três ou quatro línguas, posso entender.
— Aff — disse Grimsby. — Talvez devêssemos deixá-lo
sofrendo.
— Nós não achamos que você vai estragar as coisas
com Melody — admitiu Carly. — Não queremos que
estrague.
— Nós queremos que você se case com ela! —
acrescentou Max, batendo palmas.
O gole do segundo café, esse adoçado e com leite,
desceu pela traqueia de Eric e ele engasgou. Punhos
bateram nas suas costas ao mesmo tempo. Carly até
falou para ele levantar os braços, como faziam com
bebês engasgados. Ele espantou todo mundo aos tapas.
Eric olhou para Oz, que respondeu sem voz:
— Alienígenas.
— Vocês estão me zoando. — Ele decididamente
ignorou a parte em que mencionaram casamento. — Que
dia é hoje?
— Sexta — informou Oz.
— Há uma semana e um dia, vocês estavam
convencidas de que eu ia estragar tudo. Encheram meu
saco por ajudar uma amiga, por ajudar a turnê.
— Calma lá, Don Juan — disse Carly. — Não comece a
corrigir o passado. Essas coisas foram bônus. Você
convidou Melody para esta turnê porque tinha um crush
nela. Estávamos apenas te mantendo na linha.
— Mas vimos que estávamos enganadas — disse
Grimsby.
Eric riu.
— Ah, entendo o que está acontecendo na real. Vocês
querem cancelar tudo porque estão vendo que eu vou
ganhar e estão preocupadas achando que não vão gostar
da tatuagem que escolhi para nós.
Oz bateu palmas, caótico.
— Mostra, mostra!
Eric não havia, de fato, escolhido a tatuagem deles,
mas, por sorte, Oz e seu portfólio estavam logo ali. Ele
pediu ao motorista que lhe emprestasse o celular e
passou pelas imagens até parar numa delas.
— Estou pensando que esse chupacabra punk pode ser
o que a gente precisa.
— Ele é um dos meus preferidos — disse Oz.
Carly abriu um sorriso maldoso, como fez quando Max
apagou uma playlist de Eric e a substituiu por remixes
das Sete Sereias, tudo porque ele teve uma lombriga
noturna e comeu a última fatia de cheesecake.
— Ah, não, não, não. Estou vendo o que tá rolando.
— O quê? — desafiou ele.
Carly virou para os outros, falando dele de propósito
como se ele não estivesse ali, porque sabia que isso o
deixava maluco.
— Ele tá com medo.
— Aaaaah — Max e Grimsby cantarolaram, e Oz
finalmente se juntou a elas.
— Odeio quando vocês fazem isso.
Eric pigarreou, a garganta ainda ardendo pela abrasão
de quase ter inalado seu cafecito.
— Isso não é sobre a gente, Señor Raio de Sol — disse
Carly. — Você está com medo de que vai mesmo ferrar
com tudo, agora que não tem mais a aposta como
desculpa.
— Mentira — disse ele e, então, repetiu em espanhol,
depois em português e francês. Ele se levantou. — Vocês
todos não querem admitir que eu tinha razão desde o
começo.
— Espera aí — disse Oz. — Então vocês todos
concordam que Melody é incrível e que Eric devia tentar
a sorte. Qual é o problema?
— O problema é que ele tá com medo. O que
aconteceu com o Capitão Otimismo?
Quanto mais Carly dizia isso, mais ele sabia que ela
estava certa.
Aquela aposta bobinha e inocente era como uma cerca.
Uma cerca baixa e frágil de madeira que uma brisa mais
forte pode derrubar, mas ainda marca um perímetro. Ele
já corria o risco de cruzar essa linha. A única coisa que o
impedia era Melody: não posso. Ela dissera isso, e ele
recuara. Mesmo quando ela olhava para ele daquele
jeito, quando arrumava desculpas para tocar nele;
quando ambos estavam realmente sozinhos, ela sempre
era a primeira a se afastar.
— Eu não estou com medo — disse Eric, sério o
bastante para seus amigos pararem de provocá-lo. Por
enquanto. — Ela está se segurando. E eu não vou
pressioná-la.
— Você tá caidinho — disse Max. — Não posso te
culpar. Ela é uma gata, adora música e é bacana. Se você
não fechar a fatura logo, Carly pode te roubar mais uma.
Carly ofegou e bateu com as mãos na mesa, os olhos
arregalados e incrédulos.
— Você contou pra elas?
— Não contei, não! — Eric se defendeu. — Eu juro!
— Ele não precisou contar — disse Grimsby.
— É. Era pra gente acreditar mesmo que a Vanessa
“tropeçou” assistindo aos fogos de artifício? Não. — Max
colocou os óculos escuros como se estivesse nos créditos
de abertura de sua série preferida de investigação
criminal. — Nada abala Vanessa. Ela deve ter tomado um
susto ou se espantado. E o que é mais assustador do que
subir escondido para o terraço e ser pega no ato? — Ela
estalou os nós dos dedos. — Estou enchendo seu saco,
Carly. Eu flagrei você e Van de mãos dadas durante o
jantar.
— Bem, detetive Chin — disse Eric. — Melody e eu
estávamos assistindo aos fogos de artifício, sim.
E se confessando de um jeito que ele nunca tinha feito
antes na vida. Nada de mais.
— Porque você a aaaaama. — Max fez um coração com
as mãos.
— Que seja, estamos falando de mim agora — disse
Carly.
Oz riu, fungando.
— Então, espera aí, como é que não tem nenhum aviso
sobre você e Vanessa?
— Porque não. — Carly deu de ombros. — Nós estamos
namorando há dois meses.
— O quêêê? — todos gritaram em uníssono.
— Olha, Vanessa e eu somos mais... Pragmáticas,
digamos, do que incuravelmente românticas. Nós nunca
deixaríamos um relacionamento interferir na banda ou na
carreira dela. Além do mais, namorar escondido é mais
gostoso, não vou mentir.
— Odeio vocês. A aposta ainda está valendo — disse
Eric, pisando duro por alguns metros para jogar seu lixo
fora. — Vamos lá. De volta para a estrada.
— Não se preocupe, grandão — disse Oz. — Eu acredito
em você.
— Sério?
Oz assentiu, enfático.
— Heróis românticos são as criaturas mais imaginárias
de todas.
Eric riu e tentou levar isso como um elogio.
— Estou falando sério sobre o design. Vou falar com
Odelia quando ela acordar, mas quero comprar aquele
logo e colocá-lo em uma parte do merchand.
Enquanto eles se amontoavam dentro do ônibus,
Melody saía do banheiro com a escova de dentes na
mão.
— Bom dia.
Ela sorriu para ele. Apenas isso. Só um sorriso,
sonolento e meigo. E foi o que bastou para que ele
sentisse que havia sido espancado por suas emoções.
Por que não queria se ver livre da aposta? Ele estava
tão seguro. Tão seguro que não faria nada para Eric
Reyesar um relacionamento com Melody. Ele sabia que
suas amigas o amavam, mesmo que aproveitassem
todas as chances que tivessem para caçoar de sua
vaidade. Elas o estavam incentivando a buscar
exatamente aquilo que ele queria. Ele estava mesmo
com medo? Se tudo desse certo e ele ainda estragasse
as coisas, daí a culpa seria exclusivamente sua. A
decepção não seria apenas dele, mas de todas elas.
Não. Eric Reyes era muita coisa, mas não era um
pessimista. Quando se sentou à mesa diante de Melody,
ela com bochechas coradas e olhos brilhantes, ele soube
que aquilo não podia girar apenas em torno dele e do
que ele queria. Ela estava nessa turnê para escapar de
uma situação ruim. Ela era reservada, protegia seu
passado. Ela havia dito: não posso. Quão egoísta seria de
sua parte mergulhar na busca de algo com ela, se ela
não estava pronta?
Eric podia esperar. E iria esperar. Pelo tempo que fosse
preciso. Eric podia esperar até ela estar preparada para
se abrir para ele. Melody valia todo o tempo do mundo.
— Max comprou seu café da manhã — disse ele,
empurrando o croissant para ela com sua finesse
habitual.
— Não comprei, não — resmungou Max.
Melody agradeceu Eric com um sorriso de quem sabia
de alguma coisa e bateu no acrílico da gaiola de Monty.
Ela havia sido o voto de desempate se deveriam
continuar com a porquinho-da-índia tarada com eles em
vez de deixá-la com tío Antonio.
Acesos demais para dormir, todo mundo se espalhou
pela sala da frente. Melody arrancava nacos de seu
croissant. Ela tinha uma migalha no lábio inferior. Os
dedos de Eric ansiavam por tirá-la de lá, mas podia sentir
o sorriso convencido de suas amigas, e ela tirou a
migalha antes que ele pudesse fazê-lo.
— Andei pensando — disse ela, abrindo seu caderno.
As páginas tinham sido preenchidas com sua caligrafia
inclinada e cheia de curvas e com desenhos pequeninos.
— Digo, fiquem à vontade para recusar, cem por cento.
As bochechas de Melody ruborizaram enquanto ela
chacoalhava a cabeça.
— Ah, deixa pra lá.
— O quê? — Ele se recostou no assento, batendo nas
laterais de seu copo de café. Dois, um, quatro. — Me
conta.
— Eu nunca fiz isso com outra pessoa.
Ele engoliu em seco e ficou absolutamente imóvel, o
que foi difícil quando o ônibus passou por um buraco.
— Tá bem.
— E eu estava pensando que talvez você pudesse
ajudar.
— Eu?
— Digo, sei que você é bom nisso. Gostei do que vi até
agora.
— Bem...
Espera. Do que, exatamente, ela estava falando?
— Eu sei que a turnê é bem apertada, mas encontrei
um parque perto da casa de shows.
Max engasgou e gargalhou, e as outras se juntaram a
ela.
— Você quer fazer sexo no parque?
— O quê? Não! — Melody escondeu o rosto nas palmas
das mãos. — Eu estava falando de escrever uma música.
— É, Max — disse Eric, pigarreando. — Essa sua mente
é um pântano!
Mas o corpo inteiro dele ainda irradiava calor. Precisava
submergir numa banheira de gelo. E aí uma olhada para
Melody o fez lembrar do que ela estava lhe pedindo.
Escrevera a maioria de suas músicas sozinho, mas,
quando formaram a Desafortunados, esse era sempre um
processo colaborativo. Era a segunda coisa de que mais
gostava, atrás apenas dos shows e, bem, aquele outro
tipo de “colaboração”.
Para Eric, fazer música com alguém era algo pessoal. O
fato de que Melody queria trabalhar consigo trouxe de
volta aquela sensação de aperto no peito.
— Eu adoraria — disse ele. — Temos algumas horas
para matar antes de carregar o equipamento para o
show.
— Ótimo.
— Muito bom.
Ele pensou que talvez ela fosse se levantar e voltar
para a cama. Tinham mais seis horas na estrada. Em vez
disso, ela apanhou o livro que Grimsby tinha acabado de
ler. Imaginou ficar sentado assim com ela em manhãs
preguiçosas. Outro ônibus. Um apartamento. Uma casa.
Não importava onde, mas seria cheio de livros,
instrumentos e café.
Eric flagrou Max o encarando. Ela não precisava nem
dizer. Talvez soubesse desde o começo. No exato minuto
em que Melody entrara em sua vida com uma colisão,
feito uma interferência dos próprios astros. Amaldiçoado
não a falhar, mas a encarar o inevitável. Porque era isso
que Melody era. Assim era se apaixonar por ela:
inevitável.

Chat do grupo Sete A Pressão

Ariel:
Viramos notícia! Paris pareceu divertida, @Thea. Obrigada.
Thea:
Foi quase libertador me vestir de você.
Todo esse escândalo só porque eu dancei uma de nossas músicas em cima
de uma mesa!
Elektra:
Isso e, sabe como é, aquela agressividade toda no quarto do hotel.
Thea:
Foi catártico. Mas eu preenchi um cheque para eles.
Ariel:
Como está o papai?
Sophia:
Fulo
Stella:
Meio que um caco
Marilou:
Lembra aquela vez em que não fomos indicadas para Vídeo do Ano, apesar
de termos o vídeo com mais streamings do ano?
Ariel:
Feio assim?
Sophia:
Não esquenta. Estamos com tudo sob controle.
Alicia:
É, minha vez de me fantasiar e ser a distração de peruca vermelha.
Ariel:
Eu fico devendo pra todas vocês.
Um montão. Embora seja uma merda ver o quanto foi fácil me arruinar.
Ariel:
Como se todo mundo estivesse só esperando para me odiar.
Marilou:
A fama é volúvel, meu bem.
Mais vale a gente se divertir com os papz.
Sophia:
Você tá pronta pra voltar pra casa?
Ariel:
Não
Ariel:
Mas
Ariel:
Tem outra coisa rolando.
Marilou:
AAAAAAH NENÉM! Eu estava
ESPERANDO
Ariel:

Alicia:
Aliás, todas nós vimos o clipe do Eric Reyes fazendo aquele negócio com a
boca. Gatíssimo.
Elektra:
Até eu tenho que concordar, e olha que nem gosto de
Sophia:
Olha aí, você assustou a Ariel e ela voltou pra dentro da concha.
Ariel:

Marilou:
Uaaaaaau.
Stella:
Talvez todas nós devêssemos sair em turnê com um desconhecido sexy.
Sophia:
Você está se precavendo?
Thea:
Acho que todas nós ainda temos pesadelos com suas aulas de como colocar
camisinha usando um pepino, Sophia.
Muito obrigada.
Ariel:
Não é bem assim!!! Apesar de eu ter uma certeza razoável de que ele
achou que eu estivesse fazendo uma proposta indecente agorinha.
Marilou:
A irmã errada está nessa turnê com o deus do sexo e da música, juro por
Deus
Stella:
Uma baita energia de papi chulo
Ariel:
Ele não é assim.
Elektra:
Vozeirão enorme, microfone pequeno?
Ariel:
Oi?
Thea:
Perdi tudo aqui kkkkk
Alicia:
Eu vou fazer xixi na calça
Marilou:
Nosso anjinho
Ariel:
Nós vamos só escrever uma música juntos!!!
Elektra:
É só a coisa mais romântica que dois compositores podem fazer.
Ceeeerto. Você tá esperando o quê?
Ariel:
Ele odeia as Sete Sereias.
E se ele odiar o meu eu real?
Sophia:
Você toda é a você real
Thea:
Era para você estar se divertindo.
Não passando pela crise dos 25 anos.
Se bem que a mudança climática do jeito que está pode bem ser sua meia-
idade agora.
Marilou:
Você está acabando com a graça, T.
Stella:
Tudo o que estamos dizendo é que ele é um gato. Ele tá em ascensão e não
é um cuzão como o Trevor. As entrevistas do Eric fazem parecer que ele é
tipo uma estátua grega, mas com personalidade. Mas talvez ele queira as
coisas que você quer deixar para trás.
Ariel:
Vocês estão acompanhando a gente?
Sophia:
ARIEL, VOCÊ TÁ DO OUTRO LADO DO PAÍS COM DESCONHECIDOS, É ÓBVIO
QUE ESTAMOS
Marilou:
É, você pode se rebelar à vontade contra o papai, mas nós ainda somos
uma coisa só.
Ariel:
Eu sei.
Ariel:
Amo vocês.
Sophia:

Mas olha, falando sério


CAPÍTULO DEZOITO

ARIEL
5 de julho
Nova Orleans, Louisiana

Nova Orleans tinha um calor pegajoso. Ariel não suava


assim desde o verão em que o pai as mandara para um
“acampamento de dança”. Sophia tinha gracejado que
aquele era o jeito dele de não saber lidar com o fato de
que o corpo delas estava mudando.
Ainda assim, sentada em uma manta sob uma árvore
retorcida no Audubon Park com Eric, Ariel não se
importava com o calor. Regozijava sob o sol da Louisiana
e estava grata por cada sopro de brisa e pelo imenso
café gelado preso entre seus joelhos.
— Tá, escuta isso — disse Eric.
Ele dedilhou a introdução que ela lhe mostrara.
Cantarolou o ritmo das palavras, tentando encontrar a
melhor forma entre a cadência e a melodia delas. Alterou
o compasso e ela estudou o padrão do dedilhado dele.
Dois, um, quatro. Dois, um, quatro.
— Deixe eu tentar.
Ela tinha saudade de suas guitarras e seus violões.
Cada um dos instrumentos que possuía em casa tinha
sido um presente — de seus pais, irmãs, tio Iggy, até da
própria Ibanez, depois de ela ter mencionado numa
entrevista o quanto achava bonitos os instrumentos da
marca.
Mais cedo, eles tinham passado por uma loja de artigos
musicais no French Quarter e Ariel se apaixonara pelo
violão mais lindo. Dissera a si mesma que voltaria lá e o
compraria.
Eric ofereceu sua palheta e Ariel a tirou de seus dedos.
Ela passou pela introdução, emprestando seu contralto
suave ao tenor da voz dele. Os dois estavam apenas
vocalizando os formatos das palavras, brincando com os
sons, mas sua própria voz lhe soou desconhecida. Ariel
ficara presa cantando soprano desde que tinha dez anos,
algo que o selo (seu pai) pensou que ajudaria a manter
sua juventude, embora já tivesse passado pela
puberdade. Manteria sua inocência. Manteria-a como
criança.
— Cante — disse Eric. — Esta é uma zona livre de
julgamentos.
Mas Ariel não podia cantar solo. Mesmo que ele não a
reconhecesse depois de uma alteração de oitavas, o risco
ainda era grande demais. Não era? A revista Voltage
Sound a chamara de “a voz de sua geração”, um som
que vem apenas algumas vezes num século. Aquela não
era mais a sua voz.
— Vou deixar o canto para você.
— Ah, vá — insistiu ele. — Posso ouvir que você canta
bem.
— Não estou dizendo que não sei cantar. Eu não quero
cantar. Quero compor músicas para outras pessoas. —
Ela tocou a corda algumas vezes, deixando o trinado se
estender e então sumir. — Eu disse isso pro meu pai uma
vez.
Eric inclinou seu corpo por cima da manta. Tocou a
mesma corda.
— Ele não aprovou?
Ariel fez que não, a culpa abrindo buracos ao redor de
sua verdade mais uma vez.
— Eu disse uma vez num jantar, e ele listou dez
motivos consecutivos porque isso era um desperdício do
meu tempo.
— Sinto que nossos pais se entenderiam bem. — Ele
pareceu ponderar aquilo. — Ou destruiriam um ao outro.
Ela riu, puxando a corda seguinte com o polegar.
— Foi mais ou menos um ano depois da morte da
mamãe, e ele ainda estava passando por crises de mau
humor. Como se fosse o único que a tivesse perdido.
Como se fosse o único que esperava que ela fosse passar
por aquela porta a qualquer hora. Acho que, por muito
tempo, deixamos passar várias coisas por causa disso.
— Vocês não deviam ter que fazer isso. Eram as
crianças.
Ouvir isso de Eric era diferente de murmurar para si
mesma, não soava como uma semente de dúvida que
parecia errada, como uma traição à família.
— Falando em pais decepcionados.
O telefone de Eric estava iluminado. O identificador de
chamada dizia el babaca. Ele apertou o botão vermelho
para mandar a chamada para mensagem de voz e tornou
a se deitar, os dedos batucando no peito.
Ariel guardou o violão no case e fechou seu
caderninho. Parecia a coisa mais natural do mundo
deitar-se ao lado dele, apoiada no cotovelo.
— Acho que nós dois temos questões mal-resolvidas
com nossos pais — disse Eric.
Ela franziu o nariz. Sophia sempre dizia que jamais
namoraria outro músico porque ele a faria pensar no pai
delas. Ariel concordara. Trevor Tachi, seu único trágico
ponto de referência, tinha sido um ator mirim que queria
virar cantor, e ela dissera a si mesma que nunca mais.
Mas aqui estava ela, a centímetros de Eric Reyes. Ambos
tinham a camiseta molhada de suor. A dele, de um
algodão cinza fininho, subiu um pouco quando ele jogou
os braços por trás da cabeça, o tecido úmido se
agarrando às planícies rijas de seus músculos, e mais
uma vez ela se viu fascinada pelo rastro de pelos
desaparecendo por dentro da calça jeans dele.
— Meus olhos estão aqui em cima — disse Eric com um
riso grave e rouco.
Ariel olhava fixamente. Tinha sido flagrada olhando
fixamente. Cobriu o rosto com a mão, mas, quando
espiou pelo vão entre os dedos, viu que ele estava
corando tanto quanto ela.
Para poupar mais embaraço, ele perguntou:
— Quando você aprendeu a tocar?
Ariel tomou um gole de seu café gelado, que já estava,
em sua maioria, derretido a essa altura.
— Humm... Eu devia estar com sete anos, acho... A
maioria das minhas irmãs tocava alguma coisa. Sophia,
violino. Stella e Ali, piano. Mari não tocava, exatamente,
bateria, mas gostava de batucar em todas as superfícies
disponíveis, até que meu pai cedeu e comprou um kit de
bateria para ela.
— E ela aprendeu?
— Não. — Ela riu. — Não era a mesma coisa com uma
de verdade. Mas eu adorava tudo. Guitarra e violão.
Minha mãe começou a me ensinar e, depois que ela
morreu, eu implorei por aulas, mas descobri que podia
simplesmente ouvir uma música e, então, tocá-la.
— Meu avô teria dito que este era o seu dom.
— Foi o que mamãe disse também. Ela tocava o cuatro.
— Odelia também toca isso, sabia? — perguntou Eric,
sorrindo com a brisa quente e preguiçosa que soprava
por entre as árvores. — Que coincidência.
O lembrete da conexão entre sua mãe e Odelia fez
Ariel parar. Ela escondia tantos segredos, era exaustivo.
Talvez fosse por isso que tinha dado o nome das irmãs,
apesar de Eric provavelmente não ser capaz de
identificar as sete numa fila, a menos que estivessem
todas “paramentadas”. Talvez ela quisesse que ele
adivinhasse. Que desfizesse todas as meias-verdades
dela, como o fato de estar com ele havia desfeito seu
coração.
— Eu tenho seis irmãs — confessou Ariel enquanto o
observava observá-la.
Ele era tão bonito que ela achava difícil olhar para ele
por muito tempo. Seus dedos inquietos tiravam as
bolinhas da manta antiga que eles tinham desenterrado
do ônibus.
— Então não o suficiente para um time de futebol, mas
talvez o bastante para uma banda.
A pulsação dela martelava na garganta. Nos ouvidos.
Conte logo para ele, pensou ela. Acabe logo com isso.
— Alguém nos sopros? — perguntou ele. — Meu avô
adorava aquelas grandes orquestras de salsa com seis
trompetes e uma fileira de tambores de conga.
Ariel riu, desafinada e ansiosa. Resolveu que não era
corajosa o bastante. Não estava pronta para arriscar
perder a possibilidade de estar perto dele quando ia
dormir ou ao acordar. De ouvir a voz dele enquanto
cuidava da mesa de merchandising todas as noites.
Entrar numa sala e saber que ele estava lá pelo ruído de
suas botas, pela alegria em seu riso. O jeito como tirava
fotos com todos os fãs que pediam. Eric estava apenas
começando uma vida da qual ela tentava se despedir.
Ariel precisava se lembrar disso toda vez que amolecia
quando ele pensava nela e lhe trazia o café da manhã.
— E você? — perguntou ela. — É filho único?
— Surpreendentemente, sou — disse ele. — Tenho mais
primos do que cheguei a conhecer. Meus pais tiveram
dificuldades para engravidar. Minha mãe me chamava de
seu bebê de milagre. Às vezes, eu queria ter tido um
irmão ou uma irmã. Daí talvez eu fosse só o irmão
músico, em vez de a decepção.
— Se minha opinião vale alguma coisa — disse ela —,
eu não estou decepcionada.
— Espero que não! Como eu disse — Eric sorriu para
ela —, sou um milagre, bebê.
— Uau...
Ariel estendeu a mão para pegar a mecha teimosa de
cabelo dele e colocá-la de volta a seu lugar. A mão dele
pegou a dela suavemente, deslizando os calos das
pontas dos dedos pelo antebraço dela.
— Eu quero muito te beijar, Melody — disse ele,
devagar feito mel.
Beijar Eric Reyes parecia uma certeza. Não era um se,
mas um quando. Toda vez, porém, Ariel se lembrava do
porquê não devia. Eles disseram que seriam amigos.
Odelia a avisou para não se envolver com ele ou a
enviaria de volta para seu pai. Eric não sabia da verdade.
Mas queria beijá-la — ela como Melody. Sophia lhe
dissera que ela estava sendo ela mesma, e Ariel podia se
convencer de que a única coisa que mudara nela tinha
sido a conta bancária e o número de seu telefone. E, no
entanto, como seria quando isso voltasse ao que era?
Os pensamentos zumbindo em sua mente esmaeceram
enquanto ela se permitia ser puxada por ele. Ariel apoiou
a palma da mão no peito dele, sentiu o ritmo frenético de
sua pulsação. Sentiu a respiração superficial dele, depois
o suspiro de alívio quando descansou ali, em seu ombro.
Ela podia fazer isso — ficar perto dele. Sentir a força dele
sob ela. A maneira como ele beijava o topo de sua
cabeça e inalava seu cheiro. Podia ficar ali por horas,
traçando um círculo em torno do coração dele com a
ponta do dedo. Assistindo ao peito de Eric subir e descer,
e, quando ela levantou a cabeça, a forma como ele
lambia o lábio inferior e depois o mordia de leve, como
se estivesse tentando se impedir de dizer algo para
interromper o momento.
O toque agourento do celular o interrompeu por eles.
— Desculpe, é a Odelia — disse Eric, atrapalhando-se
para pegar o telefone.
Ela encontrou o aparelho encaixado entre as páginas
de seu caderno. As notas iniciais da famosa canção de
Beethoven, cheias de suspense, repetiam-se num loop.
Ela riu.
— Sinfonia número 5?
— Também a Sinfonia da Vitória. — Eric deu uma
piscadinha e então atendeu, meio que virando de costas
para ela. — ¿Halo?
Ambos só precisariam voltar dali a algumas horas, mas
Ariel começou a guardar as coisas. Foi quando o viu,
sentado num banco do parque. Alguém que não deveria
estar ali, não podia estar ali. Ele não podia.
Torcendo para que, de alguma forma, ele não a tivesse
visto, Ariel virou de costas. Enfiou o caderno na mochila.
Guardou cuidadosamente o violão de Eric.
— Tá falando sério, caralho? — gritou Eric.
Ela girou sobre os calcanhares ante o estresse na voz
dele. Em vez de, contudo, encontrá-lo zangado, viu o
rosto de Eric se abrir no sorriso mais radiante. Ele fez um
joinha para Ariel, depois disse a Odelia que já estava
chegando.
— O que aconteceu?
— Nós esgotamos os ingressos — disse ele, os braços
abertos para ela.
Ela deu um passo para junto dele e o abraçou. O
orgulho a dominava de um jeito que não sentia há muito
tempo. Eles tinham lutado por isso. Eles mereciam isso.
— Que incrível!
— Ela quer que a gente faça alguns vídeos para as
redes sociais. Acho que quase desmaiei ali por um
segundo. Eu devia voltar.
Eric pressionou um beijo na têmpora dela, como se não
pensasse duas vezes para dar aquele tipo de afeição.
— Vá. — Ariel lhe deu um empurrãozinho na direção
certa. — Eu ainda preciso comprar uma roupa para o set
da Vanessa.
Ele hesitou, mas ela o apressou. Observou enquanto
ele corria por uma estrada pavimentada que dava voltas
debaixo de árvores antigas. Quando Eric saiu de vista,
Ariel se virou para encarar o homem esperando por ela
num banco do parque. Sentou-se ao lado dele. A pele
marrom-dourada dele brilhava na umidade.
— Oi, menina — cumprimentou o tio Iggy, parecendo
fazer parte de um thriller de espionagem, pronto para lhe
entregar documentos ilícitos. Ele retirou os óculos
escuros e os guardou no bolso da camisa branca
impecável.
Ariel deveria estar com raiva. Como ele a encontrara?
Como sabia? Ela deveria estar furiosa. Ela tinha ido
embora. Fizera sua escolha.
E, no entanto, ele era o mesmo tio Iggy que ficara com
ela a noite toda quando Ariel retirou o apêndice e seu pai
estava do outro lado do mundo, numa viagem de
negócios. Tinha sido ele quem lhe ensinara todos os
boleros e pasillos antigos que sua mãe amava ouvir. Teo
não queria que tocassem aquilo em casa porque o
machucava ouvir. Tio Iggy era seu confidente quando o
pai estava zangado. E, ainda que fosse seu único tio, ele
era seu tio favorito. Assim, em vez de gritar, ela o
abraçou.
Não tinha percebido que estava com saudades dele até
senti-lo tremer de alívio.
— Desculpe.
Por que ela estava pedindo desculpas?
Ele beijou-lhe a testa e deu uma boa olhada nela.
— Acho que nunca passei tanto tempo sem te ver.
— Você não deveria estar aqui.
Ela tentou enxugar os olhos ardidos.
— Você é que não deveria estar aqui. — Tio Iggy olhou
na direção que Eric havia pegado. — Especialmente, não
com ele.
— Por quê? Porque ele não está na lista pré-aprovada
de aproveitadores do papai?
Tio Iggy apertou a ponte do nariz. Sua pele marrom-
clara brilhava como se estivesse recém-esfoliada. O
cabelo escuro estava pintado de preto, ao contrário do
pai dela, que deixara o seu ficar grisalho.
— Porque você está mentindo para ele — disse tio Iggy.
Ariel abaixou a cabeça, olhando para o colo.
— Como me encontrou?
— Assisti a um vídeo que viralizou. — A voz dele estava
tensa. — Quem você acha que faz o scouting de talentos
para a Atlantica Records?
— Eu não estava no vídeo dele — disse Ariel.
— Não, mas está no de Vanessa Garcia.
Ariel olhou nos olhos dele. Em vez do olhar felino e
intenso de Teodoro del Mar, os olhos de Ignacio eram de
um castanho mais suave e bondoso.
— Então, quando você diz que eu não deveria estar
aqui com ele, quer dizer que é porque a manager dele é
Odelia Garcia, que já fez parte do Luna Lunita.
A despeito do botox de muito bom gosto, a testa dele
se moveu de emoção.
— Você sabe.
Ariel bufou.
— O que aconteceu entre eles?
— Tem algumas coisas que não são para o seu
conhecimento, Ariel.
— Essa é a sua resposta? Eu comprei o álbum
recolhido. Papai não se livrou de todos eles.
— Foi isso que ela te contou? — perguntou o tio.
— Ninguém me contou nada. Eu só quero a verdade.
— A verdade? — Tio Iggy murchou, soltando um
suspiro. — O que você acha que a sua verdade vai fazer
com aquele rapaz? Acha que ele vai querer saber a
verdade de quem você é?
— Não é a mesma coisa.
— Talvez. Talvez todos os segredos existam pra
machucar. Talvez você tenha se divertido e esteja na
hora de voltar para casa. — Tio Iggy esfregou a nuca,
frustrado. — Não estou dizendo que você tenha que se
mudar de volta para a cobertura. Eu encontro outro lugar
para você. Tem imóveis ótimos no East Side. Poderíamos
colocar um Central Park todinho entre você e Teo.
Podemos até adiar o álbum.
— Não existe álbum! — gritou Ariel.
Ela nunca gritava. As pessoas olharam de esguelha
para ela, que respirou fundo, acalmando-se.
— Você tem um contrato.
A voz dele nunca oscilou. Tio Iggy era a calma em
contraste com a tempestade de seu irmão. Era por isso
que os dois funcionavam tão bem juntos.
— Não tenho, não. Eu nunca assinei um contrato novo.
E, se meu pai quiser me processar, tudo bem. É ele que
tem acesso ao meu dinheiro. Diga a ele para pagar a si
mesmo.
— Ariel.
Ouvir seu nome nos lábios do tio era outro lembrete de
quem ela tinha sido. Quem ainda era. A bonequinha
perfeita do papai, cantando, atuando e dançando para o
mundo.
— Nunca foi o meu sonho — disse ela, finalmente.
Dissera isso em Miami, na noite antes de seu aniversário.
O primeiro sem as irmãs. Mas nunca dissera em voz alta
antes, não havia sequer se permitido admitir para si
mesma. — Esse nunca foi o meu sonho.
— Não se trata de sonhos. São negócios.
— Eu pensei que era uma família — zombou ela. — Não
dá para escolher um ou outro conforme for conveniente.
— Isso não vai terminar do jeito que você está
imaginando — disse Ignacio. — Você já pensou mais à
frente? Não estou perguntando para te aborrecer. Eu
realmente quero que pense nisso. E quando Eric quiser
conhecer a sua família? E quando o seu pai atacar?
Ariel respirou fundo.
— Você disse a ele onde estou?
Tio Iggy meneou a cabeça, indicando que não.
— Oficialmente, estou fazendo scouting de talentos
aqui em Miami. Merda, estou surpreso que Odelia já não
tenha contado para ele.
— Talvez você não a conheça tão bem quanto pensa.
— Nem você.
Algo na forma como ele disse aquilo a fez conter a
raiva.
— Vai me dedurar? — perguntou Ariel.
— Calma lá. Ainda sou seu tio. — Ele suspirou,
frustrado. — Eu odeio isso, Ariel. Diga, o que é preciso
para parar com tudo isso?
— Com que você está preocupado? Minha imagem? —
Ela olhou para o parque ao redor deles. Ninguém olhou
para os dois por mais do que alguns segundos. — Eu
nunca seria aquela Barbie descolorida que ele criou para
minha carreira solo. Não sou eu. Já falei para ele o que eu
queria, mas é tarde demais. Agora vou viver de acordo
com os meus próprios termos.
Ignacio pressionou os lábios, como se entendesse que
não ia chegar a lugar algum.
— Tenha cuidado, Ariel. Seu pai também acha que está
fazendo o que é melhor, e olha só aonde ele foi parar.
— Eu não sou como ele — disse ela.
Tio Iggy deu-lhe um beijo na testa, afastando uma
lágrima perdida, enquanto olhava para ela com todo
amor e orgulho com que um pai olharia.
— Talvez. Mas, pelo que eu vejo, está só trocando uma
fantasia pela outra.
— Tenho que ir — disse Ariel. — Você também deveria
ir. Tenho certeza de que ele vai enviar um belo grupo de
busca atrás de você em breve.
Tio Iggy franziu a testa ao ouvir aquilo.
— Você sabe onde me encontrar, Melody.
Ariel foi embora primeiro, andando até suas pernas
decidirem que ela precisava correr.

REVISTA MUSICAL LONE STAR

Priscilla Muñoz
Aaaah, rapaz, eu tenho uma recomendação e tanto pra vocês.
Assisti ao show dessa banda por um capricho com meu irmão e
minha cunhada no fim de semana em Dallas. A Desafortunados é a
nova banda que está fazendo barulho na cena. Eu geralmente
dispenso qualquer coisa com um frontman bonitão e tonto. Desde o
instante em que eles subiram ao palco, porém, eu comprei o álbum
deles e depois comprei o vinil na saída. Um pouco de pop, muito
rock, uma tonelada de melodias estupendas. Isso aqui é o que há.
Peguei muito Juanes, misturado com Paramore e uma pitadinha de
rock arena clássico.

Apresentando Vanessa G com a misteriosa “M” e Le Poisson Bleu,


esta é uma turnê em que até os shows de abertura são puro fuego.
É melhor vocês comprarem seus ingressos agora, porque eles estão
esgotando a parte sudoeste da turnê. Estou começando a achar que
sou uma dessas #Apaixonadas&Desafortunadas, no fim das contas.
De mim, eles recebem cinco estrelonas do Texas!

07/07 • Austin, TX • Vanguard Hall — ESGOTADO


09/07 • Albuquerque, NM • First Contact Live — ESGOTADO
10/07 • Tucson, AZ • The Return of Saturn — ESGOTADO
11/07 • San Diego, CA • Rodgers Theater — ESGOTADO
12/07 • Los Angeles, CA • The Walter Estate Theater — ESGOTADO
15/07 • Las Vegas, NV • Vegas Bowl — ESGOTADO
16/07 • Portland, OR • Howling Rock
17/07 • Seattle, WA • Seattle Rock Live
18/07 • Missoula, MT • The Norma
19/07 • Salt Lake City, UT • The Canyon
20/07 • Denver, CO • Alpine Cavern
21/07 • Tulsa, OK • River Styx Crossing
23/07 • Manhattan, KS • The Little Apple Music Hall
24/07 • St. Cloud, MN • Cloud Nine
25/07 • Chicago, IL • House of Blues
26/07 • Cleveland, OH • Tenderloin Tavern
27/07 • Rochester, NY • River Run Works
28/07 • Burlington, VT • The Barn
30/07 • Boston, MA • Hunter’s
31/07 • Nova York, NY • Aurora’s Grocery
CAPÍTULO DEZENOVE

ERIC
Dallas Austin
9 de julho
Albuquerque, Novo México

Durante o meet and greet vip, Eric estava exausto até o


tutano. O “dia de folga” de ontem consistira em
entrevistas emendadas uma na outra e segmentos de
rádio, mais ensaio e uma conversa promissora com o
diretor do selo deles. Sentia que o que o mantinha de pé
eram as doses de expresso, o creme para olheiras de
Melody e uma prece. E, no entanto, nunca estivera mais
feliz. A banda autografou cadernos, capas de disco,
camisetas. Uma garota queria que Eric autografasse seu
peito, e ele ofereceu uma selfie com ela em vez disso.
Enquanto os fãs saíam, Odelia praticamente desfilou
pelo salão cavernoso que era o First Contact Live. O
exterior era um hangar de aeroporto reformado, e os
proprietários o transformaram numa casa de shows com
a temática alienígena. Oz estava decididamente
extasiado, e era provável que já tivesse gastado um
salário todo em merchandising.
— Vocês são muito bons nisso — disse Odelia,
empoleirando-se ao lado de Eric na beira do palco. —
Quando eu tinha a idade delas, ainda estava tentando
fazer o vocalista do Maná suar em mim, na primeira fila.
Max franziu os lábios, surpresa.
— Tem tanta coisa que eu ainda não sei sobre você!
A manager piscou.
— Nunca entregue todos os seus segredos.
— Você está de bom humor — disse Carly.
— Estou sempre de bom humor. — Odelia voltou os
olhos multicoloridos para a guitarrista. — Mas, enfim,
tenho uma atualização do selo.
A Desafortunados se reuniu em torno dela. Eric
prendeu o fôlego e esfregou seu pendente com o santo.
Contrato. Contrato. Contrato.
Não era um contrato.
— Eles vão nos dar um orçamento para o videoclipe,
então podemos realizar a sua visão, Eleanor. — Odelia
era a única que chamava Grimsby por seu nome de
batismo. A manager levantou uma unha vermelha e
comprida, mas ficou quieta por tanto tempo que Eric
achou que ia sofrer um ataque cardíaco de tanta
ansiedade. — Eles conseguiram a Sol Terrero pra gente.
Levou um segundo para que aquelas palavras fizessem
sentido. Sol Terrero fizera todos os videoclipes relevantes
para os maiores astros do pop latino. E ia trabalhar com
eles. Tudo o que Eric conseguiu dizer a princípio foi Puta
merda.
Max, atrás de sua bateria, soltou uma pancadaria
ruidosa e alegre. Levantou as baquetas no ar. O resto da
banda se empilhou sobre Odelia, que permitiu talvez dez
segundos de abraço antes de começar a mandá-los
voltar ao trabalho.
Eric procurou Melody no hangar para compartilhar a
novidade. Encontrou-a com Vanessa. E Louie, o vocalista
de Le Poisson Bleu. Ele não achava Louie particularmente
engraçado, e toda interação entre os dois foi com o outro
desmerecendo tudo de que não gostava nas cidades que
visitaram. Mas, seja lá o que ele estivesse dizendo, tinha
feito Melody e Vanessa rirem.
Eric queria que ele fosse a pessoa fazendo Melody rir.
Queria ser a pessoa contando a ela sua boa notícia. Ela
estava numa camisa rosa neon transparente e uma
minissaia de couro preto que roçava o topo de suas
lindas coxas douradas. Eric viu Vanessa abrir um sorriso
malicioso e, então, viu Louie estender a mão para uma
mecha do cabelo de Melody. Ele enrolou a onda
castanho-escura em torno de seu dedo. Um desejo
irracional de proteção o dominou. O ciúme o mordiscava
como se ele fosse carne fresca.
Enquanto suas colegas de banda corriam pelo palco,
ele resolveu ir ver o que Louie dissera de tão hilário que
até Vanessa soltava risadinhas. Entretanto, uma força
intransponível bloqueou seu caminho: Odelia, braços
cruzados, sua figura voluptuosa acentuada pelas rosas
pretas e vermelhas espalhadas por seu peito.
— Ela já é bem grandinha — disse Odelia.
— Eu sei. — Eric soava petulante, muito diferente de
seu eu habitual. — Eu só ia dar um oi.
Odelia juntou as palmas das mãos como numa oração.
Ele podia ver que ela reunia forças para lhe dar sua
opinião implacável. Geralmente, ela era muito direta.
Não era de seu feitio hesitar.
— Estamos tão perto, Eric. Estamos com um embalo
ótimo. Números sólidos. Todos os dias nos saímos um
pouco melhor. Sol Terrero! Preciso saber que você ainda
está focado. Preciso que se concentre.
— Estou — ele repetiu, com muito mais ênfase. —
Estou.
— Então por que está prestes a marchar até ali feito
um babaca ciumento? Melody não te pertence.
Eric se doeu com aquelas palavras. Não podia negar:
Melody não era sua, não como ele queria que fosse.
Odelia o alertara sobre aquela complicação logo no
começo. Suspirou fundo.
— Eu nunca senti ciúme antes. Não é uma emoção
natural para mim.
Odelia riu, seca.
— Melody sorri até para a pessoa que corta a fila na
frente dela na Starbucks.
— É verdade.
— Aconteceu alguma coisa entre vocês dois? —
perguntou Odelia, e ele não pôde evitar o olhar
penetrante dela. Sim. Não. Sim e não. Sua manager
odiava indecisão.
— Não, não se preocupe.
— Esse é o meu segredo. Meu trabalho é me preocupar.
— Ela suspirou, frustrada. — Se for uma questão de ego,
você não tem com que se preocupar.
— É — disse Eric, cheio de bravata. — Ele dá pro gasto,
se você curte o tipo supermodelo europeu.
— Eu não acredito em afagar egos masculinos, mas
você atualmente é um... Como foi que Vanessa chamou?
Um vírus. Um meimei?
— Um meme viral. — Eric bufou e aceitou os tapinhas
dela em seu ombro com naturalidade. Precisava confiar
em alguém que lhe desse conselhos duros e reais. Talvez
por isso contou a Odelia: — Eu nunca me senti assim.
Quando estou acordado, penso nela. Quando estou
dormindo, sonho com ela. Ouço a voz dela em todo lugar,
mesmo quando sou eu que estou cantando. Eu sei que
ela gosta de mim, mas ela tem se afastado. Não sei o
que eu fiz, ou...
— Eric, eu quero que você tome cuidado.
Odelia disse isso sem nada de sua atitude de chefona,
nada da dureza da mulher em quem ele sabia que podia
confiar para guiá-lo por uma indústria que era grande e
confusa.
— Eu não vou machucá-la.
Ele estava quase na defensiva. Era só brincadeira com
suas amigas, até que deixou de ser. Agora era pra valer.
— Não é com ela que estou preocupada. É com você.
— Odelia desviou o olhar, conteve sua demonstração
incomum de emoção. — Isso tudo é excitante. O romance
intempestivo de uma turnê. É fácil se deixar levar por
alguém. Mais cedo ou mais tarde, porém, todos nós
vamos para casa.
Eric não entendia muito bem o que ela estava dizendo.
— Pensei que você gostasse da Melody.
— Isso não tem nada a ver. Apenas... Tenha cuidado
com o seu coração. Você é um bom homem. Não quero
te ver magoado.
— Eu vou ficar bem — disse ele, mas uma inquietude
que não estava ali até então começou a criar raízes
dentro de si. Ele não permitiria isso. — Vamos. Estou
morrendo de fome.

Eles se separaram na Central Avenue. Prédios novos


alteravam a paisagem urbana do deserto, antes
composta de uma arquitetura Pueblo Deco. Ele só havia
passado um tempo em Miami e Nova York, e sorvia o
calor das cores e das pessoas de cada cidade nova.
Melody encontrou um restaurante chamado Aloha
Mabuhay, que servia comida havaiana-filipina. Max
estava particularmente com saudade de casa, mas, no
minuto em que se sentaram, ela se animou.
— Como você descobriu esse lugar? — Max perguntou
a Melody entre bocados de seu frango adobo com arroz
branco.
Na primeira vez em que Eric se encontrara com Max,
ficou muito confuso com a forma como o adobo filipino
era tão diferente do adobo latino, mas igualmente
delicioso.
— Quando estamos chegando numa cidade, eu dou um
zoom no mapa procurando lugares para visitar e onde
comer, e os nomes vão surgindo para mim.
— Para a sua lista de “eu nunca”? — acrescentou
Vanessa, com uma sobrancelha arqueada. Ela se
debruçou para enxergar os rabiscos da moça do
merchand.
Melody fechou o caderno apressadamente.
— Acho que vocês todos também deviam ter uma
listinha de afazeres. Mesmo que seja só uma lista de
desejos.
— Tocar num show esgotado na minha cidade natal —
disse Carly, sem hesitar. — Levar meus pais para sair de
férias.
— Eu queria que meus pais nos vissem no show em
Missoula — acrescentou Grimsby. — Minha mãe foi quem
originalmente me matriculou na aula de bandolim
quando eu era pequena. Sei lá. Espero que ela vá.
Max passou para o halo-halo, doce como melado.
— Para ser honesta, gente, isso aqui é o que há pra
mim. Turnê. Meus amigos. Isso é o sonho! Embora eu
esteja ansiosa para derrubar a casa em Las Vegas.
— Posso ir junto? — pediu Oz. — Eu ia participar de
uma excursão em busca do chupacabra, mas nunca
estive no deserto antes e preciso de ar-condicionado 24
horas por dia.
— Nós podemos derrubar a casa — disse Max.
— Calma lá, tigrona — avisou Vanessa, enquanto Max e
Oz quase vibravam para fora de suas cadeiras por causa
do excesso de açúcar e da promessa de esquemas de
contagem de cartas. — Eu gostaria de encontrar um selo
de gravadora que me queira exatamente como sou. Até
aqui, todos com quem conversamos querem me
transformar numa diva ou mudar totalmente meu som.
Eu aprecio quando a pessoa tem uma visão, mas quero
me manter fiel a mim mesma.
— E você devia mesmo — disse Melody, e elas
compartilharam um sorriso tímido.
— A gente chega lá, minha menina — disse Odelia,
apertando o musubi entre as garras vermelhas. — Não
duvide nunca.
Eles se lançaram numa brincadeira de adivinhar itens
que Eric Reyes colocaria em sua lista de desejos: uma
estátua de ouro dele mesmo, entrar na parada da
Billboard, um selo de gravadora gigante, um harém de
modelos lindas e assim por diante. Todas elas se
voltaram para ele, esperando uma resposta.
Eric cruzou os braços sobre o peito.
— Eu não vou dizer.
Olhando para o seu pessoal, seu time, suas amigas, a
garota de seus sonhos, o que mais ele podia pedir?
Sempre poderia haver mais, mas, se não houvesse, ele
podia dizer que já tinha tudo.
— Tá bom — disse ele. — Um contrato de seis dígitos
com uma gravadora e compor um hino para a Copa do
Mundo da fifa.
Eles continuaram fazendo suas listas de desejos.
Embora Melody estivesse sentada ao seu lado o tempo
todo, era a primeira vez desde que se sentaram que ela
sorria unicamente para ele, o queixo apoiado na palma
da mão.
— Louie me perguntou uma coisa hoje.
Eric assentiu friamente.
— Foi, é? Eu não reparei.
— Ele perguntou se você estava solteiro.
— E o que você disse?
Ele se debruçou para perto, como se a mesa e o
restaurante tivessem desaparecido. Deus do céu, ele não
queria nada além de beijá-la.
— Eu disse a ele que só o tempo vai dizer.
As mesmas palavras que ele dissera naquela entrevista
quando fizeram a mesma pergunta. O tempo vai dizer. Os
olhos dela passaram rapidamente para a boca de Eric, e
Melody franziu um pouco a testa, como se se sentisse
culpada por olhar. Por flertar. Ele queria prender a
atenção dela, já que ela encontrava todas as formas de
colocar um espaço entre os dois desde Nova Orleans.
— Gostei da música que você acrescentou na nossa
playlist — cochichou ele.
Os lábios de Melody estavam brilhantes, o tom de rosa
das flores no jardim da mãe dele.
— Eu estava no pique de ouvir R&B dos anos 1990. É a
sua vez.
Parecia que todo o tempo livre dele, o pouco que tinha,
era passado procurando as músicas perfeitas.
— O que você está com vontade de ouvir?
As bochechas de Melody combinaram com os lábios
nesse momento, e ela estendeu a mão para seu chá
gelado com leite, deixando uma marca cor-de-rosa no
canudo branco e espesso.
— Humm... Algo... Que te lembre do seu melhor dia.
— Qualquer gênero?
— Qualquer gênero.
O estrondo da cadeira de Odelia chamou a atenção
deles. Eric pensou que ela tinha caído, mas a manager
estava de pé, o telefone na mão. Já vira Odelia zangada,
feliz, tão fula da vida que ele achou que ela entraria em
erupção como um vulcão, altinha, flertando. Mas nunca a
vira chocada. Os olhos dela se encheram de lágrimas, e
ela segurou o próprio peito.
— O que foi? Qual o problema? — A mente dele foi
direto para o tío Antonio.
— Amaldí-suadôs? — perguntou Max.
— O quê? — perguntou Vanessa. — Mamãe?
Lentamente, Odelia recuperou a compostura. Um
sorriso brincava em suas feições. Ele a deixava com uma
aparência mais jovem, a da garota que vira nas fotos em
Miami. Uma garota que sonhava tão grande, que nunca
permitira que corações partidos e obstáculos a fizessem
parar.
— Estamos na parada.
— Que parada? — ofegou Carly, virando-se para Oz
que, por sua vez, chacoalhou as chaves em seu bolso e
disse:
— Não fui eu!
Odelia entregou seu celular e todo mundo na mesa se
reuniu em torno dele. Eric leu e releu a mensagem para
ter certeza de que tinha lido corretamente. Que era
mesmo o nome deles.
“Love Like Lightning”, Desafortunados, #100.
Ele não sabia direito quem gritou primeiro, mas logo
todos tinham se juntado, gritando, abraçando-se e
pulando pelo restaurante. Odelia o abraçava ferozmente
e, por um momento, ele pensou que tudo o que queria
era um abraço de seus pais. De seu avô.
— Gracias, Pedro — sussurrou ele, beijando o polegar e
pressionando-o contra o coração, levantando-o para o
teto em seguida.
Eric tinha certeza de que havia abraçado todo mundo,
mas aí, lá estava ela. Melody Marín, de braços abertos
para ele. Eric a envolveu em seus braços. Estava se
acostumando com a sensação de tê-la ali. Com o jeito
como ela se agarrava em torno de seu pescoço e se
encaixava, como se ele tivesse sido esculpido para ela,
se ela quisesse.
Quando ele se sentou, teve uma ideia. Dali a alguns
dias eles gravariam o videoclipe de “Love Like Lightning”.
E Eric sabia exatamente quem ele queria no elenco.

TUTTLE, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Episódio 1.375:
As Sete Sereias: do começo humilde à realeza da música
(parte IV)
Transcrição:
Em 2016, seguindo os melhores anos das irmãs, a família se tornou
o centro de uma controvérsia quando Marilou deixou escapar numa
entrevista que o pai delas ainda controlava suas finanças. Quando
questionado a respeito, Teodoro del Mar assumiu a postura de não
fazer comentários. Vocês já sabem o que eu penso disso!

Jovens celebridades têm testado os limites impostos por seus pais.


Todos nós vimos astros despirocando e fracassando. Mas as Sete
Sereias continuaram fiéis à imagem de “boas meninas” que
cultivaram desde a época de sua série televisiva. O que está
acontecendo agora?

Ouvi boatos de que Sophia del Mar vai voltar para a faculdade e
planeja libertar as irmãs do controle rígido do pai. Será que foi por
isso que Ariel perdeu a linha?

Espero que você saiba, Ariel, onde quer que esteja e para onde quer
que vá em seguida, seus fãs estão torcendo por você.

Quanto ao Papai del Mar, que vergonha!

Empaisário Amoroso ou Tirano Superprotetor? Me contem o que


vocês acham nos comentários.

Aliás, o que todo mundo anda ouvindo? Eu estou curtindo essa


música “Love Like Lightning” depois que Marilou del Mar curtiu a
postagem da banda essa semana.

Tuttle desligando!
CAPÍTULO VINTE

ARIEL
Tucson San Diego
17 de julho
Los Angeles, Califórnia

Ariel del Mar tinha vivenciado os efeitos de distorção da


realidade durante uma turnê quando estava com as Sete
Sereias. Às vezes, não sabia que dia era ou em que
cidade estavam. Certa vez, em Tóquio, ela agradecera a
Toronto por ser uma plateia tão legal. Por sorte,
conseguira disfarçar e a multidão foi compreensiva.
Agora, com a Desafortunados, ela mal sabia onde
estava, mas se sentia mais presente. Ancorada de uma
forma que não acontecera quando metade de seu dia
incluía um esquadrão glam que havia assinado um
acordo de confidencialidade até para poder entrar na
mesma sala que uma das meninas Del Mar.
No ônibus, Ariel era a versão de fábrica de si mesma.
Assim como em casa, ela ainda era a primeira a acordar
e tinha uma tendência a ficar olhando para o céu e
procurando sua constelação — as Plêiades, as Sete Irmãs
da mitologia grega. Ainda tomava uma quantidade nada
saudável de ginger ale e passava todos os momentos
entre músicas e nos bastidores anotando letras,
pensamentos e sentimentos ou trabalhando em sua
playlist com Eric.
Ela era a mesma e não era. Estava diferente e não
estava. E por que deveria ter que escolher? Resolveu que
ia contar para todos eles. Enquanto iam de Albuquerque
para Tucson para San Diego e para Los Angeles, no
entanto, ela titubeou. A ansiedade que a atormentava
como Ariel del Mar também a atormentava como Melody
Marín.
Quando a Fera estacionou no estúdio antes do
amanhecer, Ariel foi, estranhamente, a última a sair da
cama. Vinha evitando a expressão desapontada no rosto
de Eric quando ela recusara a oferta para ser a garota no
seu videoclipe. Ela queria aceitar. Como não poderia
querer? O conceito de Grimsby era criativo e divertido,
mas não podia arriscar. Se as coisas dessem errado, se
tudo isso implodisse, ela sempre estaria conectada a um
dos momentos mais importantes da carreira dele. Já vira
isso acontecendo com outros artistas. Seria o equivalente
musical de fazer uma tatuagem do namorado e depois se
arrepender, só que sem a possibilidade de cobrir o
desenho. Eric não pressionou, mas Ariel podia ver sua
decepção quando ele achava que ela não estava
olhando. A questão é que ela sempre estava olhando.
Ariel rapidamente vestiu seus últimos achados de
brechó — calça de veludo azul e uma regata branca.
Sentia-se numa ressaca emocional por causa da própria
ansiedade, mas se recompôs e seguiu o restante da
equipe para fora do ônibus, indo para o estacionamento.
Quando um segurança que trabalhara ali por décadas
olhou uma segunda vez ao vê-la, ela manteve seu boné
puxado para baixo. Se funcionava com os Vingadores,
podia funcionar com ela.
— Como é estar de volta a seu antigo campo de
batalha? — cochichou Odelia quando as duas ficaram
para trás da banda empolgada.
— Estranho — disse ela, honestamente. — É quase
como caminhar pelas memórias de outra pessoa. Não sei
explicar. Foi a mesma coisa quando subi ao palco com
Vanessa, mas, ao mesmo tempo, é libertador.
— Você pensou no que vai fazer depois da turnê?
Ariel assentiu.
— Eric quer escrever algumas letras comigo. Mas você
já sabia disso.
Odelia fez um ruído cauteloso.
— Você quer contar para ele.
— Digo, estas são minhas duas opções: conto a ele ou
desapareço no ar. — Ela riu sem achar graça. — Posso
adivinhar qual você escolheria.
— Não sou a vilã, Melody. — A manager a censurou
com uma garra vermelha. — Você começou essa farsa.
Você que se vire. Queria estar no mundo real? Pois é,
aqui está ele.
As duas caminharam em silêncio por um instante. Ariel
se lembrou do que tio Iggy insinuara. Que ela não
conhecia Odelia. O que a outra diria se soubesse o quão
de perto sua família estava acompanhando a turnê? Os
Del Mar eram claramente um assunto delicado, mas
ninguém queria lhe contar o que havia acontecido.
— Não estou dizendo que você é a vilã — Ariel lhe
disse. — Só sei como você se sente sobre a minha
família. Isso deve influenciar como se sente a meu
respeito.
— Não presuma que me conhece, Melody. — Odelia
cumprimentou o próximo segurança com um gesto da
cabeça ao passar por ele. — Nas últimas semanas, eu vi
o quanto você é diferente do seu pai. Você é gentil.
Pensa nos outros primeiro. Você me faz lembrar de sua
mãe, na verdade. Eu nunca te disse o quanto lamentei
quando li sobre o acidente.
Ariel sentiu uma pontada de tristeza. Estava sempre
ali, ressurgindo em momentos estranhos. Quando
escovava os dentes e cantarolava a música preferida de
sua mãe, quando ria particularmente mais alto.
— Mas tem tanta coisa que você não compreende... —
Odelia soltou um suspiro exausto. — Você e Eric vêm de
mundos diferentes. Ele quer fama, turnês e a vida da
qual você está fugindo.
Ariel tinha pensado nisso por dias, desde que Sophia
tocou no assunto. Não pôde evitar rir diante da ironia.
— Minha irmã mais velha disse a mesma coisa.
Por que ninguém via que ela não estava fugindo da
música, mas, sim, correndo na direção de um futuro
construído por si mesma? Ela queria que aquele futuro
incluísse Eric e todos os seus amigos da turnê.
— Eric precisa focar — disse Odelia, como se Ariel
precisasse de um lembrete do trato delas. — Tem um
representante de um selo vindo para Las Vegas e um
scout para ver Vanessa. Seja lá o que você decidir, faça
isso quando a turnê terminar.
— Vou fazer — Ariel lhe garantiu. E então teve uma
ideia. Ela já vinha ajudando Vanessa como apoio em seus
sets. E se pudesse ajudar de outras maneiras? Jamais
sugeriria que trabalhassem com o pai dela, mas o nome
de Ariel ainda tinha seu peso, mesmo que as irmãs
estivessem fazendo um bom trabalho virando sua
imagem de cabeça para baixo. — Talvez eu possa ajudar.
Com scouts para Van.
Foi a coisa errada a dizer. Odelia a encarou com a
expressão fechada, mas elas não tiveram tempo de
continuar a conversa enquanto entravam no estúdio
atrás dos outros. Uma tela verde estava montada, junto
de uma piscina gigantesca que a fez se lembrar do set de
As Pequenas Sereias. Ariel tirou uma foto e mandou para
as irmãs.
Thea:
Aaawwwn!

Marilou:
Sabia que eu ainda não sei nadar?

Stella:
Você está perdendo a chance de ser a sedutora do vídeo!
Elektra:
Se ela não quer ser uma sedutora, não tem que ser!

Alicia:
Ele vai estar de sunguinha?
Manda fotos.

Sophia:
Hahaha engatilhada

Enquanto a filmagem acontecia, Melody se sentou em


uma das cadeiras altas designadas para os integrantes
da banda. Era surreal estar ali, ignorada por dúzias de
membros da equipe. O medo de voltar ao estúdio de
filmagem tinha sido assustador, mas ela ficou surpresa
com o quanto era revigorante, quase divertido, estar no
limiar da ação.
Sol Terrero, a diretora estadunidense de origem
mexicana, falava com as mãos, guiando os membros
muito nervosos da banda pelos vários cenários. Segundo
a visão de Grimsby, o vídeo apresentava Eric e uma linda
modelo chamada Adriana caminhando por várias
paisagens gloriosas. O deserto de Mojave. As montanhas
arco-íris no Peru. Os Alpes suíços. Uma praia em Malta.
Toda vez que o casal ia se aproximando um do outro, era
separado por um raio caindo.
Cada membro da Desafortunados era uma versão mais
polida de si mesmo. Grimsby lembrava um espectro num
vestido preto e longo de renda saído das suas fantasias
de Stevie Nicks. Max estava com as franjas recém-
cortadas e sua camisa havaiana da sorte. Carly era pura
pele marrom-acetinada e cachos brilhantes soprando sob
a máquina de vento, em botas plataforma que fizeram o
olhar de Vanessa se demorar ali. E Eric...
Eric.
O estômago de Ariel desabava cada vez que Sol Terrero
gritava Corta! e a equipe de maquiagem mexia nas
ondas que insistiam em cair sobre a testa dele. Os
pincéis espalhavam pó matte sobre sua compleição
acobreada. Ele estava numa camisa branca soltinha
desabotoada até o meio do peito, e a diretora e sua
assistente apontavam para ele como se fosse um boneco
Ken.
Ele fez uma careta para ela enquanto o figurinista abria
mais um botão. Daí a estilista trouxe outra calça para ele
vestir. Azul, agora.
— Ele parece um pirata — disse Vanessa, largando-se
ao lado de Ariel. Ela petiscava um salgadinho, pegando-
os de dentro do saco com as unhas compridas e
pontudas.
— Sinto que ele deveria estar na capa daqueles livros
antigos de romance.
— É, como pirata.
Vanessa riu e seu cabelo preto e roxo caiu sobre os
ombros. Ela lançou um olhar demorado para Ariel quando
a “sedutora do vídeo” tirou o robe. O vestido era simples,
esvoaçante, rosa. Cabelos pretos, luxuriantes e brilhosos,
mantidos no lugar com laquê. Ela era de tirar o fôlego.
Vanessa tirou uma foto de Ariel com o flash ligado.
— O que está fazendo?
— Apenas documentando o que foi provavelmente a
primeira vez em que você sentiu ciúme.
Ariel fez beicinho.
— Não tenho ciúme. É uma emoção feia. Além do mais,
eu recusei esse serviço.
— Não mesmo — disse Vanessa, jogando um
salgadinho nela, que se desviou com o cotovelo. —
Ciúme é sexy. Se for dentro do razoável.
Ariel pegou um punhado dos salgadinhos picantes e os
comeu, assistindo enquanto as câmeras rodavam. Eric e
Adriana entraram no barco de madeira lindamente
entalhado. Era algo saído de um conto de fadas, ainda
que, no momento, estivesse na frente de uma tela verde.
A música tocou, e as câmeras gravaram o barco
girando sem parar. Aconteceu tão depressa que ela
sentiu Vanessa reagir primeiro, ofegando enquanto
cobria a boca com as mãos. A diretora gritou Corta!, e
todo mundo foi para o set.
— Ela caiu na água?
Ariel já tinha passado por isso. A água estava sempre
congelante; não era algo que ela desejaria a ninguém
durante o primeiro take. Por sorte, a modelo não tinha
caído. Estava apenas vomitando pela lateral do barco.
— Você vai para o inferno por rir disso — Ariel disse
para Vanessa.
— Não posso evitar, eu rio quando fico desconfortável!
Eric, sempre um cavalheiro, carregou Adriana em seus
braços e, com cuidado, entregou-a para a equipe médica.
A equipe inteira de figurino e maquiagem então se
lançou sobre ele para limpá-lo. A alguns metros dali, a
diretora e Odelia conferenciavam, as cabeças abaixadas
em conspiração. De quando em quando, uma delas
olhava para Ariel, que as ignorava e olhava feio para
Vanessa.
— Como é que você ainda está comendo?
Vanessa não chegou a responder. Odelia e Sol Terrero
vinham numa linha reta até elas. Ariel tinha um
pressentimento muito ruim sobre o que estava prestes a
acontecer.
— O que houve? — indagou.
Odelia enxugou a testa com a manga da blusa.
— Adriana tem uma forma extrema de enjoo por
movimento. Ela nunca tinha estado num barco, então
não fazia ideia.
Ariel se arrependeu de seu ciúme e se sentiu péssima
pela modelo. Ninguém queria passar por aquilo com
câmeras gravando e dúzias de pessoas assistindo.
— Você terá que assumir, Melody — disse Odelia,
enquanto a diretora sorria agressivamente ao lado dela.
— Eu? — Ariel chacoalhou a cabeça. — Não, eu não
posso.
Sol pressionou as mãos uma na outra e respirou fundo
para se acalmar.
— Será apenas b-roll, filmado de costas e com ângulos
espertos. Nós usamos dublês para beijos o tempo todo
quando dois astros se odeiam. Tudo o que resta é o beijo
no barco e, neste momento, você é o mais próximo que
temos da Adriana.
— D-dublê para beijos? — repetiu Ariel.
— Mesmo que chamemos uma das alternativas, vai
levar tempo para chegar aqui com esse tráfego — disse
Sol, ainda com as mãos erguidas em posição de prece.
Segundo sua experiência, Ariel sabia que este era um
cenário tão enorme e caro que ninguém queria
desperdiçá-lo. Além do mais, eles tinham um show
naquela noite, então dispunham de hoje e apenas hoje
mesmo. Desde o começo, ela quis fazer o clipe, mas
ficara com medo. Precisava cultivar um pouco do eterno
otimismo de Eric. Precisava acreditar que as coisas
dariam certo entre eles, entre todo mundo.
— Quer fazer isso? — perguntou Odelia.
Embora a manager da banda estivesse séria, Ariel
entendeu que ela estava perguntando de fato, apoiando
não apenas a banda, mas Ariel também. Odelia Garcia
não a forçaria a subir no palco nem a dançar e cantar,
não se a resposta fosse negativa. Aquele apoio por si só
tornou mais fácil para ela responder.
— Sim. Digo, eu faço.
Porque você quer beijá-lo. Porque você quer beijá-lo há
dias, há semanas, e isso não vai quebrar nenhuma regra.
Sol Terrero se movia como se cada segundo fosse
contado e tivesse seu valor em dólar, o que certamente
era verdade. Ariel foi apressada para se trocar e aplicar
uma maquiagem leve, já que não precisariam usar seu
rosto real. O lindo vestido era num tom coral que a fez
sentir como se seu corpo todo estivesse ruborizando. O
corpete estruturado e o decote de coração acentuavam
sua cintura, e a saia de chiffon se avolumava ao redor
dela como algo saído de um sonho.
Os maquiadores a elogiaram por cuidar tão bem de
suas unhas, seu cabelo e sua pele, facilitando o trabalho
deles. Um deles empurrou os seios dela para cima e
apertou a fita ao redor de sua cintura até que ela mal
pudesse respirar. Ariel tirou um último momento sozinha
e escovou os dentes para tirar da língua o gosto
apimentado do salgadinho. Riu, sem se importar com
quem pudesse ouvir. Depois de tudo o que fizera, ali
estava ela outra vez.
— Aí está — disse ela para seu reflexo.
Dessa vez, porém, quando rodopiou sobre os pés
descalços, sentia-se ela mesma, mas completa. Melody
Ariel Marín Lucero. Duas partes de um só total. Se a lua
podia ter dois lados, ela também podia.
Conforme Ariel atravessava o estúdio, ouvia
distintamente assovios das amigas. Ela se aproximou da
piscina monumental, subiu os degraus e várias mãos a
ajudaram a subir no barco, onde Eric já estava à espera.
O pessoal do figurino deve tê-lo feito tirar a roupa suja,
porque ele estava com outro figurino agora. Uma
camiseta de manga longa com botões (ainda abertos até
onde era possível) cor de creme, que abraçava as curvas
dos músculos dele, e calças pretas com uma faixa
dourada nas laterais. As ondas pretas de seu cabelo
estavam cuidadosamente desalinhadas e, embora
tivesse sido retocado, ainda parecia Eric Reyes.
Ele ficou de pé quando a viu. O barco estava preso à
piscina por um aparelho de metal, mas ela o sentiu
oscilar. Ou seriam suas pernas cedendo sob o olhar
esbraseante dele?
— Você está...
Ariel colocou o cabelo atrás da orelha antes de lembrar
que devia parar de mexer nele. Eric não terminou a frase.
Podia ter dito “você está bem” ou “Você está com cara
de quem também vai vomitar em mim, mas, por favor,
evite”, e ela tinha razoavelmente certeza de que ainda
reagiria a ele da mesma forma: como se estivesse se
empenhando para imitar uma água-viva.
— Você é que está — disse ela, enquanto assumiam
seus lugares nos bancos. Frente a frente.
Mãos estranhas surgiram por todo lado e afofaram o
vestido dela, lançaram laquê sobre os cabelinhos curtos
e rebeldes, ajustaram o pendente dourado na camisa
dele. De algum jeito, alguém encontrou outro botão para
abrir naquela camisa. Com esse último detalhe, eles
caíram na risada.
— Você está se divertindo com isso — disse Ariel.
— Imensamente. — Ele assentiu, os ombros fortes
relaxando conforme ficava mais à vontade. Os joelhos de
ambos se encostaram, e Ariel sentiu aquela atração que
era impossível de resistir. Enquanto eles ajustavam as
luzes e Sol discutia ângulos com sua assistente de
direção, Eric murmurou: — Desculpa. Eu sei que você não
queria fazer isso, mas obrigado.
Ela percebeu o leve nervosismo no modo como ele
passava a mão pelo maxilar forte. E talvez fosse porque
se sentia um pouco mais ousada, um pouco mais
resolvida em sua própria pele, mas disse:
— Eu queria aceitar logo de cara. Só não queria que
você se arrependesse disso mais adiante.
— Tudo bem, pombinhos — disse Sol Terrero, jogando
algo que era uma balinha ou um antiácido na boca. —
Última filmagem do dia, mas é a mais importante. Eric,
você olha para ela como se, pra você, ela fosse a única
pessoa no mundo. Melody, você olha para ele como se
ele fosse um bufê de “coma à vontade” e você estivesse
em jejum há três dias.
Os olhos de Eric estavam arregalados, os lábios
fechados com força para tentar se impedir de rir. Ariel
teve que parar de olhar para ele, senão também riria, e
daí eles não começariam a filmar nunca.
— Entendi — disse Ariel, pigarreando. — Quando você
quer que, hã, que nós, sabe...
— Se beijem?
Droga, ela estava regredindo para seu primeiro
romance adolescente nas telas, quando teve que fazer
respiração boca a boca num galã semiafogado e mal
conseguia emitir uma palavra sequer.
— Façam o que parecer mais natural — disse Sol,
mastigando sem parar a balinha farinácea. —
Conversem, conversem, ajam como se estivessem num
papo profundo, e aí podem começar. Então tipo, sejam
vocês mesmos, mas num grau mais elevado. Natural,
mas sexy. Cinético, mas acessível. Doce, mas picante.
— Estamos sendo temperados aqui ou...? — perguntou
Eric, provocando.
— Gracinha — disse Sol, jogando outra balinha
misteriosa na boca. Ela girou o dedo no ar e gritou: —
Silêncio no set!
Depois de uma última afofada de tecidos e cabelo, a
diretora gritou:
— Ação!
Quando o barco começou a girar gentilmente, pareceu
que o estúdio todo estava prendendo a respiração,
esperando para ver se Ariel ia botar o almoço para fora.
(Não botou.) “Love Like Lightning” tocava ao fundo, e ela
batia os pés no ritmo grudento da guitarra.
— Então — começou Eric, neutralizando a estranheza
das câmeras com seu sorriso fácil. — Seja honesta.
— Pois não.
— Eu pareço um bufê?
— Cala a boca. Você sabe que parece.
Ariel cometeu o erro de olhar para o lado, onde Sol,
sem dizer nada, sinalizou para que ela voltasse a olhar
para seu parceiro de cena.
— O que você quis dizer mais cedo? — Eric perguntou
baixinho. — Quando falou que se preocupava que eu
fosse me arrepender disso.
— Ah, então vamos direto ao assunto?
— Quero dizer, somos só nós dois aqui e nossos amigos
mais chegados no set de filmagem.
Ariel estava grata por não precisarem de microfone
para essa cena. Mas ele tinha razão. Mesmo cercados por
amigos e desconhecidos, estar com Eric fazia com que o
resto do mundo fosse fácil de esquecer.
— Minha vida, antes de você me conhecer, é
complicada — explicou ela. — Eu tenho muita bagagem e
ainda há muita coisa que você não sabe sobre mim.
Sobre quem eu sou. Minha família.
— Seis irmãs e um pai tirânico — disse ele. — Já ouvi
falar dessa seita.
Ariel riu e a diretora gritou:
— Perfeito!
— Me conta — murmurou ele. — Do que você tem
medo? Você não chegou a responder aquele dia no
elevador.
— Acho que a minha resposta mudou desde então. Eu
teria dito que tenho medo de filmes de terror e de perder
minha família como perdi minha mãe. Eu teria dito que
tenho medo de ser eu mesma, porque passei a vida toda
tentando fazer todo mundo feliz e meio que... Me esqueci
no caminho.
Ele estendeu a mão. Virada com a palma para cima.
Uma corda salva-vidas. Ela a pegou e segurou com força.
— Me conta.
O coração de Ariel se acelerou.
— Agora, eu tenho medo de que quem eu sou de
verdade não seja o bastante. Que eu sempre estarei
correndo atrás de uma versão de mim mesma que talvez
nem exista. Talvez as coisas estejam sempre mudando, e
não faça sentido de verdade tentar se apegar a uma
versão de si que já passou.
— Eu posso estar sendo loucamente otimista, mas
tenho quase certeza de que vou querer todas as versões
de você, Melody.
— Você não tem como saber disso — disse Ariel, suas
palavras um pouco roucas pela intensidade com que
queria acreditar nele.
— Eu acho que tenho, sim.
Ele levou a mão direita de Ariel para o centro de seu
peito. Ela sentiu o ritmo frenético do coração dele, a
certeza firme em seus olhos. Sentia-se atraída por ele
como uma estrela solitária se rendendo à órbita de um
planeta. Era essa a sensação de estar perto de Eric.
Rendição.
De trás da luz cegante, a diretora berrou:
— Certo, pombinhos, beijem à vontade!
O sorriso de Eric se contraiu, achando graça demais.
— Posso te beijar?
Ariel não conseguia falar. As palavras estavam presas.
Não porque tivesse qualquer dúvida, mas porque sua
mente e seu corpo estavam em curto-circuito por tanto
querer. Pela perfeição total, surreal e ridícula que era o
fato de seu primeiro beijo com Eric Reyes ser num barco,
no set de um videoclipe.
Por estar em silêncio um pouco além do que seria
confortável, ela assentiu ao mesmo tempo que se
inclinava adiante. O único porém foi que ele também
estava se inclinando para a frente, e as testas dos dois
entraram em colisão. Houve um baque audível e ela riu,
soprando ar pelo nariz, junto ao peito dele, enquanto Eric
fazia o melhor que podia para manter a compostura.
— Suave — disse ele, rindo.
— Corta! — gritou Sol. — Melody, desta vez, vamos
tentar com Eric se aproximando primeiro.
Ela quis pular na piscina de tanta vergonha, mas tinha
certeza de que não haviam drenado a água por completo
depois do acidente da primeira modelo.
— Francamente, pensei que seríamos melhores nisso —
disse Eric, enxugando uma lágrima do canto do olho.
Eles deixaram para lá e, então, Ariel fez exatamente o
que Sol disse. Dessa vez, eles não conversaram, não
caíram na risada. Eric sorriu para ela, meigo, nervoso. Ela
tentou respirar como um ser humano normal em vez de
prender a respiração enquanto esperava. E esperava. E
bem quando achou que ele tinha mudado de ideia, o
olhar castanho de Eric abaixou rapidamente para os
lábios dela e ele se aproximou.
Ela sentiu a respiração dele falhar, o nariz dele roçar no
seu. Queria rir, porque pensara em beijá-lo dia e noite e
em todos os momentos entre os dois. E aqui estava ele,
tímido e cauteloso a princípio. O rosto dele tocando o
dela, as cócegas dos cílios encostando na pele corada.
Ele a estava provocando, aproximando-se, depois
recuando um milímetro.
Ariel tocou os lábios dele com os seus. Um desafio.
Sentiu o sorriso dele contra o seu, depois a pressão
aveludada da língua dele provocando-a a se abrir para
ele. Eric tinha gosto de bala de maçã--verde, doce e
azedinho. E então, rápido demais, ele se foi, recuando
para se recompor.
— Corta! — Sol caminhou pela prancha para se
aproximar deles. — Ótimo. Muito bom. Desta vez,
relaxem um pouco.
Eles repassaram a música, a canoa de contos de fadas
deslizando pela superfície da água em círculos
constantes. Eric era excelente beijador. Gentil, paciente.
Seus lábios eram firmes contra os dela. As mãos
deslizaram pelos seus braços, seus ombros nus. Ariel
ficou grata pelos ventiladores, porque sua pele parecia
pegar fogo em todo lugar que ele tocava. E, no entanto,
a cada novo take, Eric era o primeiro a se afastar, ficando
cada vez mais rígido. Sem saber direito como tocar nela,
como se ela fosse algo delicado e frágil.
— Eric — murmurou Ariel, quando eles voltaram do
começo e retocaram as roupas e os cabelos.
Seus lábios estavam grudentos de gloss, e ela
finalmente os lambeu até deixá-los limpos. Não era como
se o rosto dela fosse aparecer no vídeo.
— Melody — ele murmurou de volta.
— Me conta.
Esperava que ele entenderia o que ela queria dizer.
Fazia semanas que eles dançavam em torno um do outro,
tentando não se beijar. E, agora que tinham recebido
permissão, que estavam ensaiando o beijo várias e
várias vezes, ele demonstrava uma quantia incrível de
contenção. Podia ver no modo como ele esfregava as
palmas das mãos nas coxas, no jeito como um músculo
latejava em seu maxilar, na maneira como seus olhos
estavam quase turvos pelo autocontrole.
Ele se aproximou, a respiração junto ao ouvido dela
para que só Ariel ouvisse suas palavras.
— Se eu te beijar do jeito que eu quero, temo que esse
vídeo seja banido em vários países.
Uma sensação líquida deliciosa se acumulou no ventre
dela. Ariel engoliu, a língua seca, e pigarreou. Ela queria
isso. Queria muito isso.
— Me mostra — disse ela, num desafio.
Dessa vez, quando a diretora começou a filmar, não
havia câmera alguma. Não havia ninguém. O set podia
muito bem ser o mar aberto, apenas para Eric e Ariel.
Eles se encontraram no meio do caminho. A boca de Eric
pressionou com mais aspereza do que na primeira dúzia
de vezes. Ele mordiscou o lábio inferior, depois aliviou a
dor com beijos leves, sedosos. Seus olhos se fecharam
aos poucos, e a reserva inicial evaporou. Sua pulsação
rugia nos ouvidos, a língua dele fazia uma pressão firme.
Tonta de desejo, Ariel se agarrou a ele, puxando-o para
perto pela frente da camisa. Os calos duros nos dedos
dele subiram até os ombros dela. Uma das mãos pousou
na nuca de Ariel, a outra a prendeu pela cintura. Ela
sentiu a força e a solidez dele, e, embora estivessem
colados um ao outro, queria que ele estivesse ainda mais
perto.
— Eric.
Ariel suspirou o nome dele, apenas o nome dele,
porque beijar Eric Reyes não era como cair, como ela
tinha imaginado. Era mais como levantar voo, navegar
por uma sensação que ela tentara capturar em música,
mas nunca tinha sentido de verdade até aquele instante.
Era essa a sensação do amor real? Inebriante e quente,
como se ela fosse incapaz de fazer qualquer outra coisa
além de sentir e querer?
— Eu disse corta! — gritou Sol, provavelmente não pela
primeira vez, o feedback de seu megafone chamando a
atenção de Ariel.
Alguém no estúdio soltou um assovio admirado, e ela
tinha quase certeza de que tinha sido Vanessa.
Ariel e Eric voltaram para seus bancos na canoa, os
lábios inchados e rosados. Ele sorriu para ela e estava
tão dolorosamente lindo que ela soube que, não
importava o que acontecesse, ela se lembraria de cada
detalhe daquele momento.
Após alguns segundos de silêncio em que Ariel pensou
(torceu) que talvez tivessem que fazer outro take, a
diretora anunciou:
— Tudo bem, gente, terminamos “Love Like Lightning”!
Mais tarde naquela mesma noite, depois do show,
quando ela deveria estar dormindo em sua cama como
todo mundo, Ariel del Mar ainda estava com a cabeça
girando.
Seu telefone vibrou. O nome de Eric iluminou a tela.
Geralmente, era ela quem mantinha um horário
esquisito, mas sua pulsação acelerou outra vez ao saber
que ele estava acordado e pensando nela.
Eric:
Oi...

Ela abriu a cortina da cama, o ruído do tecido alto


demais no silêncio do ônibus. Eric fez o mesmo, e eles
compartilharam um sorriso secreto no escuro. O brilho da
tela dele iluminava a expressão travessa em seu rosto
enquanto ele digitava. O celular dela vibrou de novo.

Eric:
Eu sei que tivemos um começo duvidoso, mas acho que o final foi forte.
Melody:
O beijo ou o seu set de hoje?
Eric:
Ai
Eric:
O beijo

Ele olhou para ela então, os olhos tão escuros que


devoravam tudo. Ariel queria perguntar se ele estava
falando sério. Se ele realmente iria querer todas as
versões dela. Se ele havia contado quantos takes eles
gravaram, como ela contou. Treze. Eles tinham se beijado
treze vezes.
Ele estava digitando outra vez e ela esperou a
mensagem aparecer.

Eric:
Eu quero de novo.
Melody:
Bom, você sabe o que dizem.
Melody:
A prática leva à perfeição.

A LISTA DA ARIEL MELODY PARA VIVER EM TERRA


FIRME
Andar de bicicleta

Ir ao cinema sozinha

Sentar num café e ler um livro

Me perder numa cidade

Ter um crush

Boliche?

Dar uma longa caminhada

Sair num encontro de verdade

Comer o que eu quiser

Me apaixonar

Fazer novos amigos

Arrumar um emprego que eu queira e ame

Comprar meu próprio violão

Arrumar um animal de estimação que não seja aquático

Lavar roupas?

Beijo épico

Escrever cartas à mão

Pegar o ônibus?

Tatuagem? Tatuagem

Aprender a dizer não


Sair de casa

Catarse
CAPÍTULO VINTE E UM

ARIEL
13 de julho
Em algum lugar na Rodovia de Las Vegas

Em alguma estrada poeirenta atravessando o deserto, a


Fera desabalava carreira para Nevada. Apesar de serem
as primeiras horas da manhã, todo mundo estava de pé.
Havia uma reserva esperando por eles no Van Luxen
Hotel e Casino e um fim de semana inteirinho de folga.
Como nunca ficavam sozinhos num ônibus de turnê, Ariel
e Eric trabalhavam na seção de transição da música
deles. Não haviam conversado sobre as mensagens de
texto da madrugada, mas estavam sentados, as pernas
coladinhas, no sofá da sala da frente. Ela corrigira a
posição do dedo dele no braço do violão. Ele tirara a
caneta de trás da orelha dela para anotar suas ideias.
— Estamos desacelerando? — perguntou Grimsby,
brincando com Monty, a porquinho-da-índia fêmea, e o
gato-unicórnio de brinquedo.
Eles pararam por completo e acompanharam o exausto
motorista até a estrada. A manhã fria do deserto e o céu
de algodão-doce eram incongruentes com a visão diante
deles. O motor estava fumaçando. Grandes nuvens de
fumaça cinza emergiam da frente da Fera. Oz cruzou os
braços atrás da cabeça e soltou um suspiro agudo.
Eric apontou para Max e avisou:
— Não diga.
Odelia estava à beira de sua fase de “pesadelos”.
— Oz, cadê a lista de telefones de emergência que a
empresa de ônibus te deu?
O motorista sumiu dentro do ônibus e retornou com
uma folha de papel que tinha sido roída por algo
pequeno e peludo.
Todos se voltaram para Grimsby, que segurava Monty
defensivamente.
— Não é culpa dela!
— Não é culpa de ninguém — disse Eric. — É um
ônibus velho. Oz, você não tem os números no seu
telefone?
Oz meneou a cabeça, o celular na mão.
— Estou tentando ligar para o meu tio, mas ele não
está atendendo.
— Espera, espera, eu achei um mecânico aqui perto —
disse Ariel, tentando exibir o número. — Se a página
terminar de carregar.
— Sinto que para mim já deu de natureza — murmurou
Carly.
— Onde é que estamos? — resmungou Max.
Eric apontou para uma plaquinha, o verde do metal
quase alvejado pelo sol.
— Paradise Palms.
— Aawwn! Parece bacana — disse Oz.
Mas quando o sol nasceu e escaldou o acostamento,
Vanessa apontou:
— O deserto não é bem a minha ideia de paraíso.
Ariel contou o mix de novidades para o grupo. Sim,
havia um mecânico local, mas a caixa postal dizia que
ele estava de folga para se casar. Outra mecânica estava
a caminho, mas a oficina dela ficava na direção de onde
eles tinham vindo. Esperaram no sol abrasador pelos
vinte minutos mais longos de sua vida num silêncio
descontente compartilhado, o calor azedando o humor
de todos.
A mecânica se chamava Glenda Sosa, uma mulher de
calça cargo manchada de óleo e camisa de denim por
cima de uma regata branca. Seus cabelos pretos
estavam presos num longo rabo de cavalo e sua pele
bronzeada tinha rugas profundas.
Ela olhou da Fera para a pequena trupe.
— Surpresa! É o motor. Posso substituir a peça com
facilidade, mas, ainda que eu peça de LA com entrega
em 24 horas, o mais depressa que consigo deixar tudo
pronto para vocês é na segunda-feira.
Ariel sentiu todos tomando ar. A banda tinha uma
apresentação no Vegas Bowl na segunda.
— Porém — disse Glenda, levantando as mãos como se
a pura força desse gesto pudesse impedir o surto
coletivo —, minha namorada vem me visitar hoje. Então
posso pedir a ela que traga a peça para mim. Posso
liberar vocês para saírem daqui amanhã cedo.
Odelia soltou um suspiro aliviado.
— Vou avisar o Le Poisson Bleu para seguirem caminho.
Glenda emprestou a eles uma picape surrada à qual
podiam atrelar o trailer com todo o equipamento e lhes
passou o endereço de um hotel próximo chamado
Paradisio. Depois de agradecer à mecânica com
promessas de lhe entregar seus primogênitos desde que
ela os tirasse do deserto a tempo, Oz, Odelia e Max se
espremeram na cabine da picape enquanto o resto subia
para a caçamba.
— Eu sempre quis comer poeira no café da manhã —
disse Eric, sorrindo com a situação precária. — Acho que
é a nova dieta das celebridades.
Carly sugou ar entredentes e espremeu os olhos sob o
sol inclemente.
— Na próxima turnê, Monty fica em casa.
— Monty não fez o ônibus quebrar — disse Grimsby, na
defensiva, o rosto coberto de protetor solar e parecendo
ter levado uma torta na cara.
Vanessa abaixou os óculos escuros na direção de Ariel.
— Porquinhos-da-índia não são uma iguaria no
Equador?
Ariel sorriu.
— É verdade. Quando eu era pequena, meu pai disse
que era por isso que não podíamos ter animais de
estimação normais, o que não fazia sentido. Só peixes.
— Peixes são péssimos bichos de estimação —
argumentou Grimsby, aninhando Monty protetoramente.
— Eles são cheios de segredos.
— Eu sempre quis uma píton de estimação, mas
mamãe sempre recusou — disse Vanessa.
— Eu me pergunto por quê — ponderou Ariel.
Eles continuaram nessa linha e, apesar do calor e da
aridez do ar, Ariel se deu conta de que não havia outro
lugar em que preferiria estar em vez de ali, sentada na
caçamba daquela picape com Eric segurando sua mão
como uma promessa silenciosa entre eles.

Paradisio era o tipo de hotel que devia ser lindo, três


décadas atrás. Era cheio de tons em azul, rosa e verde,
com palmeiras que tinham visto dias melhores e cactos
gigantes que quase pareciam estar retomando o
minicampo de golfe.
Havia uma piscina, um pátio grande preparado para
um evento e daí o prédio principal. O lugar estava lotado.
— Se for outra convenção de taxidermia... — Carly
alertou com uma careta.
— Casamento. — Vanessa apontou para a placa de
boas-vindas. — Não acho que vamos arranjar um quarto
aqui.
— Vamos ver — disse Odelia. — Vocês todos, tragam o
equipamento.
Ariel, que não tinha desejo algum de levantar pesos,
bateu no próprio nariz com o indicador e disse:
— Eu sou café com leite.
Ela os deixou, ainda atordoados, e seguiu Odelia até o
balcão.
Um homem esfalfado, com bochechas avermelhadas e
óculos grandes acenou para que se aproximassem.
— Fazendo check-in?
— Isso, gostaríamos de quatro quartos, por favor.
O homem, cujo crachá dizia CALE, riu na cara delas,
antes de perceber que estavam falando sério. Ele
pigarreou e digitou em seu teclado sem abaixar a
cabeça.
— Estão com sorte. Tenho dois duplos sobrando.
— Pode conferir outra vez? — Ariel piscou seus olhos e
abriu seu sorriso de comercial de pasta de dente. Por um
momento, Cale pareceu hipnotizado por ela. — Por favor?
Odelia revirou os olhos.
— Não posso fazer nada além disso — continuou Cale.
— Estamos lotados para o casamento. A única razão para
esses quartos estarem disponíveis é porque a banda
cancelou. Alguma coisa sobre tempestades no sul. Estou
mais preocupado porque estamos quase sem a cerveja
do open bar, e esse é só o primeiro dia.
— Ah, minha nossa — disse Ariel, comiserando-se com
ele.
— Ficamos com os quartos.
Odelia bateu o cartão de crédito no balcão de mármore
plástico.
— Maravilha! São quinhentos dólares por noite, mais a
taxa do resort. — Ele tomou um gole de sua cerveja e
aceitou uma guirlanda de flores que um dos padrinhos
distribuía, bêbado. — Por pessoa, por dia.
O queixo de Odelia caiu, e Ariel podia ver os números
pairando na cabeça dela. A banda não dispunha dessa
quantidade de dinheiro. Ela pensou que podia se oferecer
para pagar, mas será que Odelia aceitaria aquele tipo de
ajuda vinda dela? E, além do mais, Ariel já tinha gastado
metade do dinheiro que Sophia lhe dera. A solução lhe
ocorreu num instante.
— Na verdade... — Ariel sentiu Odelia observando-a e
sentiu a necessidade protetora de ajudar sua turma, não
importando o custo. Ela contara muitas meias-verdades
nos últimos dias, mas esta seria sua primeira mentira. —
Acho que tivemos um mal-entendido. Nós somos a
banda.
Odelia sorriu profundamente ao lado dela, bem quando
Eric e as outras entravam trôpegas no saguão aberto
com seus instrumentos. Os olhos dele pousaram sobre
Ariel, como se pudessem encontrá-la em qualquer
multidão, e ela teve aquela sensação de levantar voo
outra vez.
Ariel voltou-se para Cale, deixando sua voz subir para
aquele soprano claro que usara nos palcos por quinze
anos.
— Desculpe. Devíamos ter mencionado isso. Como
pode ver, foi uma jornada e tanto para chegar aqui.
Cale suspirou, aliviado.
— Ah, graças aos céus. Um desastre a menos! Ainda
preciso de um cartão para danos eventuais, mas seus
quartos já estão pagos.
— Nada mau, pequena sereia — murmurou Odelia,
enquanto Cale era chamado para resolver outra
emergência relacionada ao casamento. — Agora você só
tem que convencer os noivos que somos a banda que
eles contrataram.
— Eu dou um jeito.
Ariel estava pronta para o desafio. Deixou Odelia para
cuidar do check-in e procurou no saguão algum padrinho
ou madrinha.
O papel de parede tinha flores exóticas desbotadas, e
abajures de vidro verde salpicavam a maioria das
superfícies. As pessoas zuniam de um lado para o outro
com os preparativos da cerimônia. Ariel foi atraída pela
conversa de um grupo quando ouviu banda e cancelada.
Uma mulher com uma camiseta onde se lia dama de honra
em pedraria segurava um ventilador elétrico apontado
diretamente para o rosto da noiva.
— Oi! — disse Ariel, acenando para elas.
Uma das madrinhas e a mãe da noiva se viraram para
Ariel, que ainda se encontrava empoeirada e
desalinhada.
— Pois não?
— Estou aqui com a banda para o seu casamento.
Ariel apontou para os integrantes da Desafortunados.
Eric, com a cabeleira espessa levemente coberta com pó
da estrada. Carly, naturalmente descolada. Max, girando
uma baqueta numa das mãos e mexendo no celular com
a outra. E Grimsby, segurando sua porquinho-da-índia
fêmea numa coleira. Eles eram incongruentes, um grupo
heterogêneo, contradições entre si, mas, quando subiam
no palco, eram uma coisa só. Perfeitos.
— Espera, oi? — perguntou a dama de honra.
Ariel acenou para os amigos se aproximarem.
— Gente, eu estava acabando de dizer para o grupo da
noiva que somos a banda e que estamos fazendo o
check-in nos últimos dois quartos reservados para nós.
— Não são, não — disse a noiva.
— Bem, nós somos uma banda. — Ariel suavizou a voz
de novo e viu as mulheres amolecerem o coração para
ela. Inocente, acessível, meiga. Era sobrenaturalmente
melhor do que um truque mental jedi. — Como a outra
banda ficou presa por causa das tempestades, a agência
nos enviou.
Uma das madrinhas soluçou e perguntou:
— Vocês são uma banda country?
Antes que Ariel pudesse entrar em pânico, Grimsby
abriu um dos cases de instrumentos, menor do que seu
baixo e com um adesivo onde se lia eu ♥ montana, e tirou
de lá um banjo e uma gaita.
— Pode apostar — disse a baixista loiríssima, olhando
para Carly.
— Bem, eu sou do sul. — Eric abriu um sorriso
matreiro, ajoelhando-se na frente do grupo da noiva.
Atrás de Ariel, Carly tossiu no próprio punho,
resmungando:
— Da América do Sul.
— Eu posso tocar o que vocês quiserem — disse ele,
naquela voz. Aveludada, grave e tocando cada cantinho
das câmaras do coração dela. Houve suspiros e ofegos
audíveis, e Ariel soube que estavam perto de convencê-
las.
— Apresento a vocês a Desafortunados — disse Ariel,
usando sua melhor voz de Sete Sereias.
— Espera aí. — A cabeça de Max se virou com tudo na
direção dela, olhando com atenção. A baterista espremeu
os olhos, depois sacudiu a cabeça. — Deixa pra lá.
Quando notou a hesitação do grupo, Ariel acrescentou:
— Eles têm tocado o mês inteiro numa turnê com
ingressos esgotados e por acaso eram quem estava por
perto. Eles acabaram de entrar na parada das 100 mais
tocadas, então terão um show deles antes que fiquem
famosérrimos.
— Ai, meu deus — arfou a noiva, as lágrimas pesadas
secando completamente enquanto ela se abanava. — É o
destino!
— Destino — repetiu Ariel, olhando para Eric de
relance. — Exatamente o que eu estava pensando.

O tema do casamento parecia ser “pedrarias”, e Vanessa


tirou todo o proveito possível disso ao arrumá-los. Só a
garota mais descolada da turnê para viajar com uma
pistola de cola quente e um saco cheio de pedras falsas.
A banda tomou para si os quartos conectados que
haviam sido reservados para a banda de casamento
original. Até Odelia deu tapinhas de bom trabalho nas
costas de Ariel. Encaixar oito pessoas em dois quartos
duplos ficou apertado, mas eles estavam morando num
ônibus há semanas, e as acomodações eram gratuitas.
Odelia, Vanessa, Ariel e Max ficaram num dos quartos.
Oz, Carly, Grimsby e Eric no segundo. Eles mantiveram a
porta conectando ambos aberta, tanto para ventilação
quanto para facilitar o processo de se aprontarem.
Ariel não conseguiu achar uma tábua de passar em seu
quarto e foi para o adjacente procurar no armário deles,
sem muita sorte.
Carly colocou sua bolsa na cama mais próxima do
banheiro rosa-vômito.
— Eric chuta enquanto dorme, então vou dividir a cama
com Oz.
— O chuveiro é meu primeiro — anunciou Grimsby.
— Segundo! — gritou Oz, ao mesmo tempo que os
outros.
Grimsby espiou dentro do banheiro e fungou.
— Sem ursos, Melody, caso esteja se perguntando.
Ariel supôs que seria pedir demais que Eric deixasse
aquela história embaraçosa morrer só entre eles.
Oz tirou os sapatos.
— Não se preocupe, eu faria o mesmo. Ursos não são
nada confiáveis.
Por várias horas, os quartos ficaram um caos. Era a
camaradagem da qual ela sentia falta, de se aprontar no
camarim de Sophia, roupas, sapatos e artigos pessoais
por todo lado. Música tocando do celular de alguém. Oz
tinha quase zerado o conteúdo da máquina de venda
automática e Ariel conseguiu encontrar alguém da
equipe de limpeza e prometeu devolver o ferro e a tábua
de passar. Cuidadosamente, desembrulhou o vestido que
Alicia lhe dera de presente. Era um vestido de alcinhas
lavanda coberto em latejoulas furta-cor e cristais de
verdade. Delicado, mas pesado. Ela não achou que teria
alguma ocasião para vesti-lo, e as gêmeas ficariam em
êxtase por ter provado que ela se enganara.
— Onde você arranjou isso? — perguntou Max, parando
no limiar entre os dois quartos. Ela usava um vestido
bonito com estampa de arco-íris e botões nos quais
Vanessa colara pedrinhas.
— Um presente da minha irmã — disse Ariel.
Era a segunda vez naquele dia que Max olhava de uma
forma estranha para ela. E Ariel começava a suspeitar
por quê.
Max franziu a testa, mas assentiu e voltou para seu
lado do quarto, deixando Ariel tirar as rugas da barra e
das alças com vapor. Vanessa aplicava gel nos cachos de
Oz um por um, quando Carly voltou com uma lata de
laquê e uma caixa de grampos.
— Peguei com a dama de honra — disse ela. — Ah, eu
deixei meu telefone no banheiro.
— Eric ainda está lá dentro — disse Ariel, pegando um
punhado de grampos de cabelo.
— Mais uma hora, então. — Carly revirou os olhos,
encostando o ouvido na porta. — Ele está só se
barbeando.
Ela abriu a porta e entrou.
Ariel não sabia quem gritou primeiro, se Carly ou Eric,
mas a guitarrista solo emergiu de lá com a mão cobrindo
os olhos. Odelia e as outras se empilharam dentro do
quarto, buscando a fonte da calamidade.
— O que aconteceu? — perguntou Odelia.
— Eu pensei que Eric estava se barbeando! — disse
Carly, um sorrisão de credo emplastrado na cara. Os
olhos ainda cobertos.
Eric apareceu na porta do banheiro, o peito à mostra e
ofegante. Seu cabelo estava úmido e despenteado.
Segurava uma minúscula toalha listrada cor-de-rosa em
torno da cintura com força. A barriga dela se retesou ao
ver aquela pele lisa, aqueles músculos.
— Eu estava me barbeando — gritou ele.
— Pensei que era a do rosto!
Todos riram às custas de Eric. Oz deslizou até o chão,
batendo comicamente os punhos no piso.
— Viu? É por isso que usamos trancas — Grimsby disse
a Monty.
— Eu não entend... — começou Ariel, depois entendeu
e soltou um ofego pequenino. — Ah.
Os olhos de Eric encontraram os dela. Ele era tão forte,
tão bonito... E ridículo. Era isso que amava nele. Aquela
habilidade de ser cheio de riso, de alguma forma, mas
também incrivelmente sexy. Ele deu uma piscadinha para
ela antes de fechar a porta com um estrondo.
Todos riram ainda mais quando ouviram o clique da
fechadura.

Ariel terminou de se arrumar sozinha, já que a banda


precisava montar os equipamentos. Ela passou um gloss
cor-de-rosa nos lábios, escovou as sobrancelhas espessas
e escuras, e tentou forçar os cílios retos a fazerem algo
parecido com uma curva. De súbito, pôde apreciar muito
mais seu esquadrão glam.
Dessa vez, quando viu seu reflexo, não ficou surpresa.
Amava a leve curva de seu nariz pequeno que a
maquiagem sempre deixava reto. As pintas em seus
ombros e suas bochechas que a maquiagem costumava
cobrir. Deu uma última jogada no cabelo escuro, domado
em ondas em camadas longas. O vestido caía como uma
segunda pele, acentuando a cintura estreita, a curva de
seus quadris. Ela só notou a fenda profunda quando se
enfiou no tecido cintilante, mas, quando deu uma
voltinha na frente do espelho, adorou.
Aí estou eu, pensou ela, mais uma vez.
Odelia saiu do banheiro embrulhada no mesmo robe
que emprestara a Eric no início da turnê. Parecia exausta
e se largou numa das camas queen.
— Você realmente me faz lembrar dela.
Ariel respirou fundo. Tivera mais conversas sobre sua
mãe na turnê da Desafortunados do que com seu pai em
quinze anos, o que fazia algo dentro dela se revirar numa
mistura de tristeza e alegria.
— Podemos conversar?
— Foi um dia longo, Melody — disse Odelia, gemendo
ao se sentar na beira da cama. — Mas você se saiu bem
hoje. Acho que eu não teria conseguido fazer isso.
— Obrigada.
— Tá bom, desembucha.
Ariel torceu os dedos. Queria acreditar que sua relação
com Odelia havia crescido desde a primeira vez em que
se encontraram. A mulher não era menos intimidante de
pijama.
— Eu quero contar tudo ao Eric. E não quero esperar
até o fim da turnê.
Odelia anuiu, lambendo os lábios sem batom.
— Nós tínhamos um trato. Se me lembro direito, essa
era uma estipulação sua, não minha.
— Eu sei. Você disse que Eric estava proibido para mim
porque queria que ele focasse em tudo pelo que batalhou
tanto. Eu também quero isso. O que há entre nós... É
real.
— Como você sabe?
Ariel se encolheu ante a insinuação, mas entendia que
Odelia estava sendo protetora. Uma mamãe ursa com
seus filhotes. Mas não era essa a desculpa de seu pai
para manter as filhas isoladas?
— Porque eu estou me apaixonando por ele. Porque eu
acho que talvez ele sinta o mesmo por mim. — Ariel
sorriu, hesitante. — Algo que ele disse ontem me fez
perceber que nós vamos ficar bem. Pode ser certo
choque no começo, mas nós vamos superar isso.
Eu vou querer todas as versões de você. Sempre que
Ariel pensava nas palavras dele, era como se os deuses
da música cantassem para ela.
Odelia riu.
— O otimismo dele é contagiante, devo admitir. Por que
você veio falar comigo?
— Francamente? — Ariel esfregou os braços para
afastar o frio do ar-condicionado. — É meio difícil abrir
mão da necessidade de aprovação dos pais depois de
tantos anos. Sei que você não é substituta do meu pai e
que você não está procurando outra desgarrada, mas eu
disse que podia ser útil nesta turnê. Eu falava a sério.
— E certamente tem sido.
— Acho que se todos souberem sobre o meu passado,
eu poderia ser capaz de fazer ainda mais.
Uma linha fina vincou a testa de Odelia.
— Ah, é? E como seria isso?
— Eric e eu estamos compondo juntos. Eu não gostaria
de cantar em nenhuma das músicas, acho que essa parte
da minha carreira terminou, mas ainda tenho contatos na
indústria. — Ela viu a raiva e o medo de Odelia se
acumularem e se apressou a dar sentido a suas palavras:
— Não meu pai, claro. Jamais faria isso. Mas o nome Ariel
del Mar deve ter lá seu peso. Tenho certeza de que
poderia conectar vocês a um selo maior, a scouts para
Vanessa, a patrocínios...
— Não precisamos das conexões de Ariel del Mar —
disse Odelia, sua voz séria, porém controlada. — O
diretor de nosso selo atual está vindo assistir ao show da
Desafortunados em Las Vegas. Vários scouts virão assistir
a Vanessa se apresentar. Nós nos viramos bem sem o
seu nome.
— Mas você não acha que eles poderiam crescer ainda
mais...
— Eu disse que nos viramos bem sem isso.
Ariel se encolheu com o tom cortante na voz dela.
— Isso não deveria ficar para Eric decidir? Para
Vanessa?
Odelia riu com amargor.
— Nosso selo é pequeno, sim, mas você sabe quantos
contratos predatórios de gravadoras tivemos que recusar
para chegar a um ponto bom? Humm? Para Vanessa e a
Desafortunados. Você sabe o quanto foi difícil para mim
abrir caminho nessa indústria, para fazer com que as
pessoas me levassem a sério, especialmente depois...
— Não, eu não sei — disse Ariel, sabendo que Odelia só
respondia a demonstrações de força. — Por favor. Me
conte o que aconteceu entre você e meus pais para que
eu possa entender.
Odelia, parecendo tão vulnerável sem sua maquiagem,
suspirou. Ariel pensou na jovem que vira naquela capa
de disco — tão esperançosa e cheia de vida. Aqui estava
ela, décadas depois, e conseguira passar aquela
esperança para a próxima geração de músicos, muito
embora seu próprio sonho nunca tivesse se realizado.
Isso só fazia Ariel admirá-la ainda mais.
— Sua mãe e eu nos conhecemos em Miami —
começou Odelia, um sorriso triste levantando o canto de
sua boca. — Éramos garçonetes numa boate... Acho que
se chamava Parrot Social. Éramos jovens e eram os anos
1980. Foi lá que ela conheceu seu pai. Quando eu digo
que foi amor à primeira vista, falo sério. Estou dizendo,
era o tipo de amor que podia botar fogo no mundo.
Ariel tinha vagas lembranças dos pais juntos, mas
podia imaginar. Quado ouviu Odelia pigarrear, entregou-
lhe um copo com água.
— Nós três tínhamos o mesmo sonho. — Ela tomou um
gole e prosseguiu. — Fazer música. Gravamos uma demo
com a ajuda de um dos meus amigos. Fomos para Nova
York. “Luna mia” foi o nome que dei à música que
escrevi.
Ariel respirou fundo e não soltou o ar. Não podia ter
ouvido direito. A música era de Odelia?
— Ela inspirou o nome da banda. Quando terminamos o
LP, estávamos prontos para lançar. Mas a gravadora
queria a história de amor. Queriam o casal encantador
cujos olhos tinham se encontrado de cantos opostos do
salão e começado a fazer música juntos. A história
inspiradora de um casal vindo para cá de outro país,
surgindo do nada. O amor verdadeiro guiando a jornada.
— Os lábios de Odelia se retorceram com o amargor da
lembrança. — Embora eu tivesse a mesma história, vinda
de outro país, surgindo do nada... Eu era a perpétua vela.
Além disso, ainda era sexy demais, escandalosa demais,
tudo demais para combinar com o time meiguinho dos
sonhos.
Eu sei o que a sua família faz. Vocês arruínam vidas.
Ariel sentiu décadas de vergonha pelo que o pai, seus
pais tinham feito. Havia uma parte sua que não queria
acreditar. Revirou a mente em busca de justificativas
para provar que as palavras de Odelia eram falsas, mas
se sentia como alguém tentando escapar de um labirinto
e encontrando apenas becos sem saída. Tinha visto os
discos com os próprios olhos. Tio Iggy a avisara para ficar
longe de Odelia, e suas entranhas lhe diziam que era
porque ela não ia gostar do que descobriria.
— Eu não queria entregar meus direitos, então seu pai
disse ao selo que as músicas eram dele. Bem, você pode
imaginar o resto.
— Eu lamento muito, muito mesmo — disse Ariel. —
Talvez eu possa corrigir isso. Posso devolver seus
créditos.
— Deixa pra lá, Ariel. — Odelia levantou a mão pedindo
silêncio e ponto-final. — Eu deixei sua família no meu
passado, e daí você aparece e me relembra da pior
época da minha vida. E eu te digo para deixar Eric em
paz para que ele não passe pelo mesmo que eu passei, e
você não me dá ouvidos.
— Eu não sou meu pai.
— Eu quero acreditar nisso. Acho que acredito. —
Odelia pareceu exausta com o peso do passado voltando.
Ariel também sentiu esse peso, mas não sabia como
ajudá-la a carregá-lo. — Faça-me um favor. — Ariel
assentiu. — Antes de correr para ajudar Eric... Diabos,
para ajudar a todos nós... Certifique-se de que você saiba
o que quer de verdade. Coloque a sua máscara de
oxigênio antes. Eu aprendi da maneira mais difícil que
amor nem sempre é o bastante. — Odelia desplugou seu
celular do carregador na mesa de cabeceira. — Agora, vá
para o casamento. Eu me esqueci de ligar para a
mecânica outra vez. Vamos torcer para podermos sair
deste inferno desértico amanhã logo cedo.
Ariel calçou um par de sandálias que pegara
emprestado de Vanessa e deixou Odelia com sua
privacidade. Caminhava devagar como se num transe.
Estava aturdida demais para mandar mensagens para as
irmãs com todos os detalhes sobre o passado de seus
pais.
Assim, esta noite, Ariel del Mar voltaria seus olhos
apenas para seu futuro.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

ERIC
13 de julho
Paradise Palms, Nevada

Eric Reyes assistiu da última fila enquanto Carrie e Steve


Whalen se casavam com o pôr do sol do deserto atrás
deles. Para nenhuma surpresa de suas colegas de banda,
ele adorava casamentos.
Uma das primeiras vezes que cantou em público foi no
casamento de um de seus primos, quando tinha dez
anos. Com sua vozinha aguda, ele acompanhara o avô
Pedro num vallenato clássico. Quando Eric parava
realmente para pensar, todas aquelas músicas eram bem
trágicas para a ocasião. De qualquer maneira, foi talvez a
única ocasião em que seus pais o incentivaram
musicalmente.
Ali, no Paradisio Hotel, um lugar que até dez horas
antes ele nem sabia que existia, Eric sorriu enquanto o
casal se beijava e todos jogavam suas guirlandas
plásticas para o alto.
Eric se virou e procurou por ela. Melody.
Ela estava tirando uma foto do pôr do sol.
Provavelmente, enviando-a para uma de sua meia dúzia
de irmãs. Ele se perguntou se eram todas como ela.
Perguntou-se se ela voltaria para as irmãs sem ele. Se
ele era apenas uma parada numa estrada muito mais
comprida, que ele não podia acompanhar. Quando,
porém, ela o encontrou na multidão e seu rosto se
transformou com aquele sorriso perfeito, ele soube que
não tinha jeito. Eles estavam conectados, de alguma
forma.
Com que frequência o universo unia duas pessoas
como tinha feito com Eric e Ariel?
“Sempre” é a resposta.
Em todo lugar e a cada segundo, os caminhos das
pessoas se cruzam e elas nem reparam. Às vezes,
aqueles que prestam atenção no universo são capazes
de encontrar seu caminho um para o outro.
Eric atravessou o pátio com as pernas bambas. Mal
podia respirar ante a visão dela. Aquele vestido, sexy e
delicado. A fenda expondo a coxa a cada passo que ela
dava. Cintilante, refletindo cada luz, ganhando vida. Uma
joia no deserto.
— Você está... — ele começou. Podia se socar por não
conseguir nem formar uma frase completa. — Você está
maravilhosa.
Melody sorriu, mordendo o lábio inferior como se
estivesse nervosa.
— Alguém estava te procurando, na verdade. A
recepção, acho?
— É mesmo?
— Algo sobre um excesso de depilação masculina?
— Carly é uma má influência sobre você — disse ele,
mas, lá no fundo, amou.
Amava o fato de ela se dar bem com suas melhores
amigas. Amava que ela simplesmente se encaixava no
humor nonsense deles. Estava se apaixonando por ela.
Talvez já estivesse apaixonado mesmo. O pensamento
lhe ocorreu de súbito, do mesmo jeito que Melody
entrara em sua vida.
Ele beijou os nós dos dedos dela e ambos cruzaram a
grama falsa sob uma manta de luzes de Natal
multicoloridas. Ela pegou um lugar na mesa designada
para a banda, escondidinha na lateral. Ele achou quase
impossível se separar dela.
— Guarda uma dança pra mim? — pediu ele.
— Sempre.
Eric reuniu a banda num grupinho. Todos estavam
ótimos com roupas mais chiques.
— Certo, como estamos nos sentindo?
— Eu não quero estragar a nossa alegria — disse Carly
—, mas temos apenas uma hora para ensaiar.
Eric deu uma piscadela para a cara preocupada dela.
— Fomos uma banda de metal quando precisamos
pagar o aluguel, três anos atrás. E, não se esqueçam,
antes de tudo isso, tocávamos covers só para animar o
público. Vamos nos ater àquelas que o povo gosta e nos
apoiar pesado na Grimsby para o ritmo. A gente dá
conta.
Eles se incentivaram uns aos outros, uma roda de cinco
pessoas, e alteraram um pouco o lineup. Max continuou
na bateria, mas Carly trocou a guitarra pelo baixo e
Grimsby acrescentou o charme com seu banjo.
A primeira dança dos noivos era uma versão cover de
“Born to be my baby”, do Bon Jovi, e, para sorte deles, a
banda sabia praticamente todas as músicas pedidas
pelos membros bêbados e demais convidados da
deslumbrante festa de casamento. Quando não sabiam a
música, eles sorriam e tascavam algo que soava parecido
ou uma música original da Desafortunados. Eric
descobriu que gente feliz e meio bêbada só queria
dançar e cantar até o corpo não aguentar mais. Desde
que a banda mantivesse a música acelerada e animada,
os mais de cem convidados, que pareciam ter vindo para
Nevada de todos os cantos do país, ficavam felizes em
festejar a noite toda ao som de músicas de todas as
décadas.
Quando Vanessa assumiu o violão e os vocais no lugar
de Eric, ele afrouxou sua gravata e encontrou Melody já
pegando duas margaritas. Aquele vestido dela
despertava sensações indizíveis nele. Só conseguia
pensar nos treze beijos que eles trocaram e na
mensagem de texto dela gravada em sua mente. A
prática leva à perfeição.
— Parece que Oz foi adotado pelas madrinhas — disse
Melody.
Ele riu, aceitou o drinque que a garota oferecia e fez
tintim na taça dela, e um pouco de sal caiu em seu
polegar. Ele lambeu o dedo e olhou de novo para a banda
quando a Desafortunados irrompeu num cover country
de “Despacito”.
— E aí, cadê essa dança que eu estou guardando? —
perguntou Melody.
Havia um grão de sal no lábio superior dela, e Eric teve
o impulso de tirá-lo com a língua, mas ela tirou primeiro.
Não conseguia responder porque sabia que não podia
controlar sua boca. Sabia que a primeira coisa que sairia
dela seria acho que eu te amo. Então, colocou os copos
vazios na mesa e a levou para o centro da pista de
dança. Ele a rodopiou em seus braços, graciosamente se
esticando até que apenas as pontas dos dedos deles se
tocassem. Melody voltou para ele por conta própria.
Bem me quer, pensou Eric quando Melody pousou a
cabeça em seu peito, apesar de não ser uma música
lenta.
Mal me quer, pensou quando ela rompeu o abraço
deles para buscar mais drinques.
Bem me quer, pensou quando ela entrelaçou os dedos
com os dele.
Mal me quer, pensou de novo quando ela aceitou o
convite de um dos padrinhos para dançar.
Eric nunca havia se sentido tão irracionalmente
ciumento ou possessivo por causa de uma mulher. Sabia
que não se tratava dos outros homens, mas da incerteza
de em que pé Melody e ele estavam. Os dois tinham
começado bem, depois precisaram se afastar um pouco
pelo bem da turnê e pela aposta idiota com as amigas.
Ela tinha recuado por causa de seu passado, mas as
coisas vinham mudando. Não vinham? Talvez esta fosse a
noite para descobrir. Para acertar os ponteiros. Se não
agora, quando?
Trocou de lugar com Vanessa e fez o que fazia de
melhor. Cantou. Só que, dessa vez, cantava para Melody
e, apesar de ser uma balada rock ao som da qual a
maioria dos bebês nascidos em 1986 tinha sido
concebida, ele colocou tudo de si na música. E ela ficou
ali, dançando no lugar, reluzindo como sua Estrela do
Norte.
Quando o casamento acabou e só restaram parentes e
amigos totalmente embriagados dançando ao som da
playlist de alguém, a banda abriu caminho para a piscina
azul iluminada.
— Aí sim! — gritou Oz. — Temos ela toda para nós!
— Certo, eu acho que esta é uma primeira vez para
todos nós — disse Carly, sentando numa das
espreguiçadeiras.
— Então, quando alguém disser eu nunca entrei de
penetra num casamento no deserto, eu posso beber —
disse Melody, tirando as sandálias e massageando os
tornozelos.
— Vi que tem um traslado daqui para Vegas — disse
Max, levantando e abaixando as sobrancelhas. — Já
podemos dar a partida na dominação da cidade.
— Sabe o que mais eu nunca fiz? — perguntou
Vanessa. — Eric flagrou a olhadinha furtiva que ela
lançou para Carly. — Nadar pelada.
Max gargalhou.
— Eu topo. Não trouxe biquíni mesmo...
— Eu curto mais um ofurô — disse Oz, mas começou a
tirar a roupa como os outros.
Eric continuou vestido.
— Ele anda pelado pela casa faz cinco anos — disse
Grimsby —, e agora vai ficar tímido. Você mudou, mano.
Eric levantou o dedo médio para elas e, então,
começou a soltar a gravata. Todo mundo berrou. Ele
olhou de esguelha para Melody, que desviou os olhos,
adorável. Estava passando para os botões da camisa
quando Vanessa, Carly e Max pularam na piscina num
salto bomba, seguidas por Grimsby e Oz.
Melody afastou uma alça do vestido e ele sentiu a
necessidade de dar meia-volta. De costas um para o
outro, eles se despiram. A fivela do cinto tilintou, os
zíperes desceram e o tecido se amontoou aos pés deles.
Eric prendeu a respiração e pulou no lado mais fundo.
A água fria era gostosa contra sua pele quente quando
ele se deixou flutuar. Estava incrivelmente consciente do
último mergulho. De Melody dentro da água, suas curvas,
quando ele se virou debaixo da água, iluminada pela luz
azul-clara. Quando as bolhas sumiram, os dois estavam
frente a frente, sorrindo e olhando para a superfície lá no
alto.
Ambos nadaram para cima, onde o som dos amigos
rindo e brincando parecia ecoar pela noite. Não sabia
quem tinha sugerido uma corrida, mas Melody aceitou e
se jogou no desafio. Foi assim que durou o que
pareceram horas: Eric se esforçando para manter o
ritmo, sempre faltando pouco para ganhar dela. Ninguém
conseguiu. Melody deslizava pela água como se tivesse
nascido para aquilo.
Quando todos ficaram cansados, Max saiu da água e
encontrou boias infláveis e espaguetes. Oz foi buscar
toalhas para eles, e Carly e Vanessa se ofereceram para
buscar bebidas. Eles boiaram daquele jeito por um
tempão. Max e Grimsby usaram os espaguetes para uma
“luta de espadas” numa ponta da piscina, enquanto
Melody se agarrava à sua boia de flamingo. Eric tinha
acabado com um pato inflável, o que resultou numa
piadinha com o fato de ele ser um galinha, e foi preciso
jogar água em todo mundo.
— Acho que este é meu dia preferido da turnê — disse
Eric.
— Meu também. — Melody passou boiando.
— Você só diz isso porque ganhou de todos nós. Você é
secretamente uma nadadora olímpica?
Ela riu, descansando o rosto nos braços cruzados.
— Eu aprendi quando era pequena. Havia uma ymca no
Queens, pertinho de onde a gente morava. Minha mãe
disse que tinha que amarrar uma boia em mim quando
íamos para lá.
Eric queria lhe contar sobre nadar no lago com os
primos, sobre as pegadinhas que fizera em seus anos no
internato. Depois se deu conta de que as amigas
estavam incrivelmente quietas.
Não, não quietas. Elas tinham sumido. As velhas
espreguiçadeiras cor-de-rosa estavam todas vazias.
De tudo.
Inclusive as roupas deles.
— Aquelas filhas da... — Ele soltou uma fieira de
palavrões que fez Melody rir.
Ela empurrou seu flamingo para longe e nadou até o
meio da piscina, onde seus pés tocavam o fundo e a
água chegava-lhe aos ombros. Eric nadou até ela,
plantando os pés com firmeza nos azulejos de vidro
escorregadio.
— Acho que elas estão tentando aplicar uma Operação
Cupido na gente — disse ela.
— Sutil. — Ele tirou uma gota de água do queixo dela,
viu-a estremecer. — Vamos botar você lá dentro.
Melody agarrou o pulso dele, segurando-o debaixo da
água.
— Eric, eu tenho uma coisa pra te dizer.
Bem me quer. Mal me quer.
— Eu também tenho uma coisa pra te dizer.
Cada músculo no corpo dele se tensionou com
ansiedade, temor, delírio. Ela ia perder a coragem. Seu
coração engasgou, e então ele se moveu adiante.
— Você primeiro — Melody lhe disse.
Fuerza, seu avô teria lhe dito. Mas era mais fácil pensar
em ser forte do que ser, de fato, forte. Fisicamente.
Emocionalmente. No geral.
— Em geral, sou muito melhor nisso — admitiu ele.
Ela abriu um sorriso malicioso.
— Ficar pelado numa piscina? É a minha primeira vez.
— Isto aqui. Com você. Eu nunca me senti assim antes,
com ninguém. É...
— Novo?
— Aterrorizante. — Eric esperava que Melody visse em
seus olhos que ele estava sendo totalmente sincero. —
Eu pensei em te dizer isso quando a turnê terminasse, e
talvez todo vestido e não numa piscina, mas me dei
conta de muitas coisas esta noite.
— Como o quê? — perguntou ela, dando um passo para
perto.
Bem me quer.
— Como o fato de que eu queria socar o padrinho por
dançar com você. Por te abraçar.
— Por me abraçar assim? — Ela colocou as mãos nos
ombros dele. O calor assomou no ponto em que a pele
deles se tocava. Ela riu para ele. — Por dançar?
— Eu sou um tonto.
— Você não é um tonto — disse ela. — Tolo, talvez.
Mal me quer.
— Você estava falando sério? — Ela deixou as mãos
vagarem dos ombros dele para os bíceps, afastando o
frescor da noite. — Quando disse que iria querer todas as
versões de mim?
— Eu não ligo para o que veio antes, só para o que
vem depois.
Melody ainda desviou o olhar, as unhas subindo e
descendo por seus braços. Como ela podia duvidar dele?
Como ele podia deixar claro?
Se não agora, quando?
— Eu pensava que toda música que eu escrevia era
para uma garota dos sonhos que ainda não tinha
conhecido. É disso que “Love Like Lightning” fala. É disso
que tratam todas as minhas músicas. Mas aí eu te
conheci e percebi que nenhuma dessas músicas se
aplica. Elas falam de alguém sem nome. E então lá
estava você, virando tudo pelo avesso em mim. Você é
real e está aqui, e não se parece com nada do que eu
disse naquelas letras.
Melody ficou olhando para ele, seus cílios brilhando
com gotículas da piscina.
— Não?
— Não. — Ele aninhou o queixo dela, roçando o polegar
para acalmar o tremor de decepção que surgiu ali. — Mas
cada música que eu escrever daqui para a frente será
sobre você. O jeito como você olha para tudo como se
fosse novo e maravilhoso. Como olha assim para mim
também, e eu penso... Eu farei de tudo e qualquer coisa
para ser digno desse sentimento, porque estou
apaixonado por você. Estou tão apaixonado por você que
não consigo nem enxergar direito.
— Eric, eu... — Melody não terminou a frase. Ficou na
ponta dos pés e o beijou.
A surpresa fez ambos se moverem para trás,
vacilantes, mas nem a pau ia se separar dela. Passou os
braços em torno dela, sentindo o sal ainda na língua
enquanto ambos iam para debaixo d’água, presos num
abraço. Por um instante, não respirou, não abriu os olhos.
Havia apenas a batida de seu coração debaixo d’água e
os lábios de Melody pressionados contra os seus.
Quando subiram em busca de ar, rindo e limpando os
olhos, ele ouviu gritos por perto.
Saiu da piscina e notou alguns retardatários do
casamento correndo nus pelo campo de golfe.
— Estamos prestes a ter companhia — disse ele,
pegando o flamingo inflável cor-de-rosa para ela e o
patinho para ele.
Ambos dispararam pelo pátio, a equipe da limpeza
assoviando quando passaram correndo. Ao chegarem ao
quarto deles, encontraram suas roupas dobradas,
organizadas e deixadas no corredor. O cartão da chave
estava num envelope do hotel com um bilhete onde se
lia: Pegamos o traslado para Vegas depois da festa! Ele
volta de manhã. Não fiquem zangados!
Eric abriu a porta para eles, jogando o pato do outro
lado do quarto. Pegou um par de toalhas no banheiro e,
quando voltou, lá estava Melody, a própria Vênus de Milo,
emergindo de um dispositivo de flutuação cor-de-rosa.
Ela trancou a porta do quarto, depois o atravessou, seus
pés deixando pegadas molhadas no carpete.
Eric abriu a toalha para ela, mas ela a deixou cair no
chão e se aconchegou nos braços dele em vez disso. Os
beijos de Melody eram hesitantes, quase tímidos.
Ninguém nunca o beijara desse jeito, suave e com
cuidado. Como se ele é que precisasse de proteção.
Aquilo o acendeu por dentro, senti-la pressionar os lábios
em seu maxilar, na pulsação em sua garganta. Estava
tão perdido em seu desejo por ela que só percebeu a
cama quando a parte de trás de seus joelhos encontrou
com o colchão. A cama gemeu quando ele se sentou com
sua garota no colo.
— Tem certeza? — murmurou ele, olhando nos olhos
castanhos dela.
Melody encostou seu nariz no dele. Arrastou toques
leves como plumas sobre os lábios dele.
— Minha vida toda é incerta, Eric. A única coisa que faz
sentido para mim é você.
Quando Eric tornou a beijá-la, seu amor por ela
queimou em sua pele e mais fundo, gravando-se no
tutano de seus ossos, de modo que nada nem ninguém
poderia removê-lo.

@TeoDelMar

Eu lembro quando você era desse tamanhinho. Lembro quando você


olhava para mim como se eu tivesse te dado o mundo. Isso foi tudo o
que eu sempre tentei fazer. Sei que posso ser difícil e rígido com vocês,
meninas. Mas eu nunca, jamais, quero que passem pelo que eu passei.
Não quero que vocês não tenham nada. Por favor, minha pequena
sereia. Suas irmãs estão com saudades de você. Seus fãs estão com
saudades de você. Por favor, volte para casa.

#ArielVoltaPraCasa #SeteSereias #VidaSeteSereias


CAPÍTULO VINTE E TRÊS

ARIEL
14 de julho
Las Vegas, Nevada

A estrada para Las Vegas foi pavimentada com os


sorrisos secretos que ela trocava com Eric. A Fera estava
consertada e todos os integrantes da banda eram uma
mistura delirante de exaustos e energizados.
Eric se aconchegou na sala ao lado de Ariel,
acrescentando músicas à playlist deles enquanto ouviam
uma reencenação de como fora o passeio dos amigos na
avenida dos cassinos e os planos para o segundo dia de
folga. Apenas Odelia continuou na sala dos fundos. Ariel
se preocupava que ela ainda estivesse aborrecida pela
conversa que tiveram na noite anterior. Não daria mais
nenhuma sugestão de ajuda para a banda, a menos que
eles lhe pedissem primeiro. Além do mais, havia muita
coisa que Ariel precisava para corrigir a situação entre as
Garcia e os Del Mar. Antes, porém, precisava ficar a sós
com Eric.
Quando chegaram ao Van Luxen Hotel, Ariel percebeu
que eles voltariam à combinação normal nos quartos, o
que queria dizer que Eric e ela teriam um quarto só para
os dois. Ele devia estar pensando o mesmo, porque
pegou a mochila dela e a jogou sobre o ombro para
carregá-la. Ariel não perdeu a expressão de alerta da
sobrancelha arqueada de Odelia quando esta passou por
eles e entrou no saguão. Tudo ia ficar bem, Ariel disse
para si mesma. Tinha certeza do que queria — Eric, a
turnê, compor música. Nunca fora mais simples.
Oz sorriu para Ariel e Eric.
— Eu tenho um novo casal para shippar, gente. E ele se
chama Meloric. Ou Erody, talvez? Vou trabalhar no nome.
O telefone de Ariel vibrou pela centésima vez naquele
dia.
— É minha irmã. Eu preciso atender.
— Vou encontrar a Van na academia, mas te vejo lá em
cima depois?
— Tá bem.
Eric roçou um beijo terno na têmpora dela antes de
sumir no saguão lotado com Oz.
Ariel atendeu ao telefone. Marilou respondeu com um
uivo.
— Obrigada por estourar meu tímpano — disse Ariel,
afastando-se da entrada do Van Luxen. Por todos os
lados havia placas e outdoors que ainda reluziam
claramente sob a luz do dia.
— Eu podia estar mortinha agora e você se sentiria
uma babaca por me mandar para a caixa postal cinco
vezes.
— Você está mortinha?
— Dã! Você não pode simplesmente me mandar uma
fileira de emojis de berinjela, beijo, pêssego, fogos de
artifício e uma carinha feliz, e depois ficar em silêncio.
Ariel não conseguiria parar de sorrir nem se quisesse. E
definitivamente não queria. Sentia que estava
efervescendo, como a arrebentação batendo na praia.
— Posso, sim, se estou numa turnê com um milhão de
pessoas e não quero que ninguém escute.
— Você está sozinha agora? — perguntou Marilou,
soltando mais risadinhas do que já fizera antes falando
de um dos possíveis interesses amorosos de Ariel. Porque
Eric era mais do que isso. Eric era o cara.
— Foi bacana.
Ariel sorria tanto que as maçãs do rosto doíam e teve
que pressionar o celular contra o peito por um instante.
— Meu bem, salada é bacana. Aquele homem é um
cheeseburguer com todos os extras.
— Na verdade, ele é uma pizza havaiana grande.
Marilou fez um ruído confuso.
— Desculpe, você deixou passar minha insinuação. Mas
estou feliz por você. Sei que não deveríamos comparar,
mas você não teve a melhor sorte do mundo com os
caras.
— Eu o amo de verdade — ela disse para a irmã.
Era a primeira vez que dizia isso para sua família. Elas
tiveram que sobreviver a Trevor Tachi e a terríveis
manobras publicitárias antes dele. Eric não se parecia em
nada com aquilo.
— Você parece feliz de verdade, peixinha. Eu amo te
ver assim. — Marilou pigarreou. — Mas, olha...
— Posso te ligar mais tarde? Vou me encontrar com
Max, já que todo mundo está indo para seu canto até o
jantar.
— Não querendo te alarmar — continuou Marilou, e
Ariel ficou instantaneamente alarmada —, mas eu estava
te ligando para perguntar se você viu o Pixagram do
papai.
Ariel olhou para seu telefone. Carros entravam no
estacionamento com manobrista. Outdoors piscavam
com notícias e propagandas. Era como se a Times Square
fosse um oásis no deserto ao estilo Hotel California.
Seu coração engasgou.
— Não vi, não. Eu o bloqueei.
Marilou xingou e disse:
— Vou mandar um print pra você.
Ela disse para a irmã que ligaria de volta e, então,
abriu a imagem. Ariel prendeu a respiração o tempo
todo. Leu as palavras embaixo de uma foto antiga e de
repente estava debaixo d’água. Seus olhos ardiam.
Lágrimas zangadas escorriam por suas bochechas
enquanto lia e relia as palavras dele. Aquele
manipulador, filho de uma...
— Você!
Era Max. Ela olhava do celular para Melody.
Chacoalhava a cabeça como se estivesse imaginando
tudo.
Na foto, uma Ariel de sete anos se agachava numa
mesinha de centro com o pai. Ela era uma criança, mas
seu rosto não havia mudado. Seu bolo de aniversário
dizia melody em cobertura verde-água. Ela olhava para a
câmera com o mesmo sorriso de quando Eric lhe dissera
que a amava. O pai dela também não tinha mudado
muito, exceto pelo grisalho nos cabelos.
— Você... Você é ela. — Max agarrou o cabelo dela. —
puta merda! Eu sabia! Eu pensei que tinha imaginado
quando o sr. Antonio te chamou de Maia, e depois no
saguão, quando você mudou sua voz por um segundo,
mas fiquei tipo, de jeito nenhum. De jeito nenhum, porra.
Ariel ajeitou o boné de beisebol na cabeça. Olhou ao
redor enquanto as pessoas começavam a olhar
fixamente para a garota berrando. Estalou os dedos para
redirecionar o foco da amiga.
— Max! Max, me escuta.
A amiga estava em tamanho estado de choque que
Ariel não teve dificuldade para conduzi-la pela rua até
um café espalhafatoso lembrando Veneza. Ariel pediu
duas bebidas açucaradas e as levou até a mesa. Max
estava sentada em silêncio total, as mãos cruzadas como
uma aluna de escola católica. Gotículas de suor nervoso
brotavam em sua testa como orvalho. Ela fez um ruído
engasgado e bateu de leve a testa na mesa.
— Tudo aquilo que Eric falou sobre as Sete Sereias!
Bem na sua frente!
Ariel riu e quase inalou sua bebida. Quando exalou,
sentia-se um pouco mais livre. Uma pessoa a menos para
contar.
— Digo, é, magoou um pouquinho.
— Ele é tão hater. — Max se recuperou, sorvendo a
bebida para se reidratar. — Ele canta “Te amo, Je t’aime”
no chuveiro o tempo todo.
Uma sensação quentinha se desdobrou dentro de Ariel.
— Obrigada por dizer isso. Eu... Eu não queria que você
descobrisse assim.
— Não consigo acreditar. Você é Ar...
— Xiiiiu! — Ariel agitou os braços para lembrar Max
que elas estavam em público. — Por favor. Ninguém
sabe. Bom, Odelia e Vanessa sabiam desde o começo,
mas só elas.
— elas sabiam esse tempo todo? — Max fez uma pausa na
hiperventilação para tomar sua bebida. — Não posso
acreditar... não posso acreditar nisso. Eu fui tão maldosa
com você naquele primeiro dia e eu te amo tanto. Affff!
Digo, não como o Eric te ama. Caralho. Eric. Ele não
sabe?
— Uma coisa de cada vez — disse Ariel, pegando
emprestado o estilo de Sophia. A irmã mais velha era
geralmente a mais diplomática das sete. — A versão
mais curta é: Odelia fazia parte de uma banda com meus
pais e ela me reconheceu assim que me viu. Ela não me
queria no ônibus e só me deixou vir se eu ficasse longe
de Eric.
Max sorriu, sem graça, mas pareceu se acalmar
conforme bebia seu drinque com espuma tripla de
confete de sei lá o quê.
— Tá. Isso não funcionou.
— E, não, Eric não sabe. Eu queria contar para ele
ontem à noite, mas a gente se deixou levar. Toda vez que
eu tentava, ele dizia que não se importava com meu
passado, e eu ficava com medo. — Ariel mexeu a bebida
com o canudo. — E, sim, você foi maldosa comigo, mas
foi meio que bacana as pessoas me tratando como
alguém comum, em vez de fingindo e me bajulando.
Os olhos de Max se arregalaram.
— Eu jamais... Tá, tudo bem, eu teria morrido. Estou
mortinha, agora mesmo. — Ela ficou olhando para as
próprias mãos. — Talvez eu nunca tenha saído de Las
Vegas.
— Max — disse Ariel. — Ainda sou eu. Essa é só outra
parte de mim.
— Merda — disse a amiga. — Todo aquele negócio faz
muito sentido agora. É verdade que todas vocês
dormiam em aquários, tipo os tanques de Bacta de
Guerra nas Estrelas, para se manterem jovens?
Ariel riu, riu de verdade, de um jeito que dava a
sensação de soltar o ar.
— Não. Eu tenho uma cama. É de madeira de deriva
reaproveitada.
Max arfou.
— Que nojo, você transou com Trevor Tachi?
Ariel revirou os olhos.
— Claro, há mais de um ano. Eu o bloqueei. Presuma
que tudo é falso, a menos que eu confirme.
— Eric vai ficar maluco.
Ariel mordeu o interior da bochecha.
— No mau sentido?
Max fez que não.
— Eu o conheço há anos. A única vez que o vi com
raiva foi quando a Colômbia perdeu para o Chile num
jogo da Copa do Mundo. Isso e toda vez que o pai dele
liga lá pra casa, mas isso dura uns dois segundos. Acho
que ele vai ficar confuso, mas você tem que ser honesta
com ele.
— Eu sei — concordou Ariel.
— Você o ama? Tipo, de verdade, verdade mesmo?
— Amo. — Ariel não hesitou, nem por um segundo.
Então por que não disse as palavras na noite passada?
Ele se abriu por inteiro com ela, e ela havia se
comunicado com suas ações, mas as palavras eram tão
importantes quanto. — Eu tenho medo de perdê-lo. De
perder todos vocês. Mesmo que isso entregue a aposta a
vocês.
— Desculpe. — Max fez uma careta. — Nós demos a ele
uma chance de desistir da aposta. Mas acho que ele
precisava disso como incentivo para se certificar de que
não iria estragar tudo. Para garantir que você estava
pronta.
— Sou eu quem está estragando tudo.
— Não comigo por perto. — Max se levantou e ofereceu
sua mão. — Venha. Ele provavelmente está na academia
ainda... Espera um pouco aí. Isso significa que as suas
irmãs sabem quem eu sou?
Ariel abriu um sorriso matreiro.
— Sabem, e elas também adoram a banda. Marilou, de
fato, é a razão para eu ter ido ao Aurora’s Grocery, para
começo de conversa.
Max caiu de joelhos numa posição de prece, mas se
recuperou rapidamente.
— Se você não apresentar a gente, eu nunca vou te
perdoar.
Ariel queria dizer que apresentaria, mas não estava
pronta para fazer outra promessa. Não antes de se
confessar com Eric, viesse o que viesse.

Editora anuncia contrato


Chrissy Mahilal, assistente pessoal de Ariel del Mar, escreveu um
livro de memórias, A alga marinha é sempre mais verde, uma
coletânea de ensaios, tweets e conselhos sábios reunidos após uma
década vivendo à beira dos holofotes das Sete Sereias. Mahilal, que
esteve ao lado da irmã caçula das Del Mar por anos, diz que seguiu
sua verdade com a bênção da princesa do pop. O lançamento está
programado para sair bem a tempo para o fim do ano, com um
prefácio escrito por Ariel del Mar em pessoa. O contrato foi
negociado por Sally Herrera, da Townsend & Ramos.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

ERIC
14 de julho
Las Vegas, Nevada

Eric passou a tarde na academia, forçando seu corpo ao


limite, depois correndo três quilômetros para desaquecer.
Quando se sentou no banco e jogou água no rosto,
exalou lentamente.
— Pega leve — disse Vanessa, acertando-o com a
ponta da sua toalha. — Você não tem mais dezenove
anos.
Ele cruzou os braços atrás da cabeça para flexionar os
bíceps.
— Eu sou eterno.
Vanessa arqueou as sobrancelhas.
— A noite foi boa, então?
Eric não se gabava dessas coisas. Entretanto, não pôde
conter o sorriso. Sentia-se capaz de levantar um
caminhão com as próprias mãos. Em vez de responder,
lançou um olhar astuto para Vanessa.
— Está ansiosa para os scouts das gravadoras
amanhã?
— Belo jeito de mudar de assunto. — Ela pegou um par
de halteres e começou a fazer flexões de bíceps. — E não
estou ansiosa. Ou eu sou o que eles estão procurando ou
não sou.
— Você fala igual à sua mãe.
— Ela sabe melhor do que ninguém. — Vanessa passou
para uma série de supinos e Eric ficou como spotter. —
Eu tento não criar muita expectativa, sabe? Já tivemos
dúzias de scouts vindo ver minhas apresentações. Não
entendo por que, com tantas gravadoras por aí, não
consigo encontrar uma que queira meu som como ele é.
— Vai rolar — disse Eric. — Você é o pacote completo.
— O último scout disse que eu precisava melhorar
minha cara de brava.
— Eu amo a sua cara de brava.
Vanessa grunhiu na repetição seguinte.
— Pra você, é fácil falar. Pode escolher entre ser
rabugento ou príncipe encantado. E você? Empolgado
para o diretor do seu selo te ver tocar?
— Ficarei mais empolgado se ele nos oferecer um
adiantamento para um disco novo.
Os braços de Vanessa tremeram, e Eric tirou o peso de
suas mãos. Ela se sentou e jogou a toalha ao redor do
pescoço.
— Mamãe parece esperançosa.
— Você acha que algum dia Odelia voltará a cantar? —
Tudo o que Eric sabia sobre o misterioso passado de
Odelia era que ela teve um contrato que deu muito
errado. Tão errado que matou a habilidade dela de cantar
e compor por muitos anos, até Vanessa nascer. Ela,
então, passou a gerenciar turnês pequenas e publicidade
para selos independentes para representar Vanessa e
Eric, e depois a banda.
— Ela canta todo dia. No chuveiro. Quando está
cozinhando. Quando acha que todos estamos ouvindo
alguma coisa nos fones de ouvido. Tío Antonio me dizia
que estava no sangue dela.
— Eu me pergunto se posso convencer Melody a
cantar.
Eric olhou de relance para as TVs. O canal de
entretenimento exibia um comercial da temporada mais
recente de Antes da Meia-Noite — Max estava torcendo
por uma loira muito fofinha — e algo sobre as Sete
Sereias. Eric revirou os olhos e voltou a atenção para a
amiga.
Vanessa retomou o peso.
— Ela vai cantar quando estiver pronta.
— Eu ouvi Melody cantar no chuveiro — disse ele,
lembrando-se da primeira vez que dividiram um quarto.
— Foi o som mais lindo que já ouvi.
— Como é que é? — Vanessa apontou para si mesma,
indignada.
— Alhos e bugalhos.
A amiga perceptiva estreitou os olhos para ele.
— Você lançou a bomba “A”, né?
— ¿Qué? — Ele sorriu.
— Você me entendeu, sr. Eu Falo Quatro Línguas. Amor,
seu tonto.
Eric riu. Seu peito se apertou com a lembrança de
Melody em seus braços na noite anterior. A sensação
dela contra ele. O jeito ofegante como ela dizia o nome
dele.
— Lancei.
Vanessa se endireitou.
— Tenho que admitir, Eric. Você está diferente e nem
notou.
— No bom sentido?
Vanessa anuiu.
— Então, quando escolher nossa tatuagem, seja gentil.
Ele riu e então houve uma batida na porta de vidro.
Uma concierge do hotel acenava polidamente.
— Sr. Reyes?
Eric se irritou com o nome. Seu pai era o sr. Reyes, não
ele.
— Pois não?
— Sua presença é requisitada — disse a mulher.
Vanessa cruzou os braços.
— Quem está requisitando?
A concierge entregou um cartão para Eric. Ele
reconheceu o símbolo, um tridente no centro de um
cartão dourado feito de algum metal. Não podia ser
quem ele achava que era. Uma sensação agitada e
nervosa o invadiu.
— Agora mesmo? — Eric indicou suas roupas de treino
suadas.
A concierge sorriu.
— Não se preocupe. Se puder me acompanhar até o
restaurante no deque...
Eric se virou para Vanessa, que olhava para ele, como
se estivesse entrando numa van sem identificação na
Capitania dos Portos, e disse:
— Mande uma mensagem de texto para sua mãe e
diga para ela se encontrar comigo.
— Você deveria esperar por ela.
— Foi solicitado que o sr. Reyes viesse sozinho. Por aqui
— disse a concierge, interrompendo-a.
— Eu vou ver do que se trata, e você chama a Odelia.
Eric passou a mão pelos cabelos e cheirou a axila.
— Seu cheiro está ótimo — disse a mulher, quando
entraram no elevador. Ela apertou o botão que levava ao
deque panorâmico.
Quando, no futuro, Eric pensasse de novo naquele
momento, ele se indagaria por que não havia feito mais
perguntas. Por que foi correndo feito um cachorrinho
ansioso. Por que não tinha esperado Odelia ou sua
banda. Mas sabia que não se deixava um homem como
Teodoro del Mar esperando. Ele havia sonhado com esse
momento — e ser descoberto. Às vezes, esperava na
área depois de um set especialmente bom e pensava:
Hoje é o dia em que tudo vai mudar. Desafortunados,
Odelia — eles tinham trabalhado tanto para conquistar
cada seguidor, cada download, cada clique, cada entrada
para as apresentações. Tinham tocado para uma plateia
de duas pessoas e tinham tocado para casas com
entradas esgotadas. Tudo isso para compartilhar o som
deles com o mundo. Talvez o mundo finalmente estivesse
ouvindo.
Quando as portas do elevador se abriram e eles
entraram num restaurante todo de mármore e vidro, Eric
compreendeu que sua vida estava prestes a mudar.
Teodoro del Mar estava sentado num salão de jantar
privativo com vistas para a Las Vegas Strip. Um homem
num terno cor de vinho encontrava-se à sua esquerda, as
unhas cuidadosamente bem-feitas batucando numa
pasta preta. Por que ele parecia familiar?
Eric perdeu a habilidade da fala. Sua boca secou. A
língua parecia ter passado a manhã lambendo lixa.
— Ah, aí está ele.
Uma olhada para o terno preto bem cortado do
magnata musical, e Eric soube que deveria ter insistido
para tirar um segundo para se trocar. Tomar banho.
Parecer apresentável.
— Sr. Del Mar — disse Eric, oferecendo a mão. Quando
seus nervos travaram, seu cérebro apelou para sua
língua materna. — Es un honor.
Teo encarou a mão de Eric por um segundo além do
que era confortável, depois apertou com firmeza. Eric
apertou de volta, nunca deixando de sorrir. De súbito,
estava de volta à sua casa em Medellín, levando uma
bronca do pai. Ele largou a ponta de dúvida que se
espetara em sua coluna, deixando uma sensação gelada.
Voltou-se para o homem de vermelho.
— Eric Reyes.
— Ignacio — disse o homem, rapidamente devolvendo
a cortesia de Eric. — Você deve estar se perguntando por
que toda essa correria.
— Tenho certeza de que vocês são bastante ocupados.
Como eu disse, estou honrado...
— Então, deixe-me ser franco com você. — Teo
debruçou-se na mesa, as mãos cruzadas com força.
Eric agarrou os braços de couro de sua cadeira, já
conjurando a imagem de Teodoro lhe oferecendo um
contrato. O começo da próxima fase da Desafortunados.
Um álbum de estúdio. Turnê mundial. Premiações.
Videoclipes. Entrevistas nos programas de fim de noite.
— Preciso da sua ajuda — disse Teo, seu tenor como o
ribombar de um trovão.
— Minha? — Eric olhou entre os dois homens. Seria
uma piada? Não achava que um homem como Teodoro
del Mar fizesse piadas. — O que posso fazer por vocês?
— Pode me ajudar a convencer minha filha a voltar
para casa.
Eric vira algo naquela manhã no noticiário, mas nunca
prestava atenção, a menos que Max estivesse assistindo
em casa e ele estivesse com preguiça demais para
levantar do sofá.
— Como é?
Teodoro riu, mas suas feições se transformaram em
algo raivoso, impaciente.
— Eu não sei como Odelia convenceu minha Ariel a
fugir com você...
— O que meu irmão quer dizer — traduziu Ignacio, com
apenas uma leve careta — é que nós compreendemos os
impulsos da juventude. A excitação. A emoção. Contudo,
estamos preocupados que Ariel não esteja considerando
o que é melhor para o futuro dela.
— Ariel? — Eric se sentia anestesiado.
— Melody — disse Ignacio, enquanto Teodoro ficava
cada vez mais vermelho, numa fúria silenciosa. — Bem,
Melody Ariel.
Isso era um mal-entendido. Não era real. Lá no fundo,
porém, ele sabia que era verdade. Talvez soubesse desde
o minuto em que saíra daquele elevador. Talvez mesmo
antes disso... Não, não era possível que soubesse. Ele se
lembrou de respirar.
De uma só vez, Eric se lembrou. Eu me chamo Aaah...
Melody.
Melody olhando para ele. Eu tenho uma coisa pra te
dizer.
Melody, que escrevia músicas, sabia se virar nos
bastidores e havia lhe contado sobre as irmãs. Seis
irmãs. Sete Sereias.
Melody, que o beijara como se estivesse se afogando e
ele fosse sua única fonte de oxigênio.
Melody debaixo dele.
Melody dançando com ele no deserto.
Melody, que havia construído uma muralha entre os
dois depois daquela primeira noite, em que lhe contara
sobre o pai manipulador. Eric havia pensado que, se um
dia encontrasse o sujeito, diria a ele que tinha uma filha
incrível, forte e talentosa. Uma filha que ele não sabia
apreciar.
Mas ali estava ele, com esse mesmo sujeito do outro
lado da mesa, e Eric Reyes estava mudo e aturdido.
Como podia ter sido tão tolo?
Ignacio empurrou um copo de água para Eric. Ele o
apanhou. Bebeu. E bebeu. Ele bebeu até a última gota
num único gole longo e contínuo, e, quando terminou,
ainda estava com sede.
Tinha que sair dali.
Tinha que conversar com ela.
Teodoro tirou a pasta preta das mãos de Ignacio e a
empurrou para a frente de Eric.
— Ela é mimada. Não me dá ouvidos. Talvez, com o
incentivo certo, possamos chegar a um acordo.
— Do que diabos você está falando? — As palavras lhe
escaparam antes que ele pudesse segurar.
Teodoro arqueou uma sobrancelha, mas deixou o
insulto passar.
— Estou preparado para lhe oferecer o contrato da sua
vida.
O coração de Eric martelava quando ele abriu a pasta
para ler o memorando. Estava tudo ali: um adiantamento
de 750 mil dólares para gravar um álbum.
— Há os bônus, é claro — disse Teodoro, virando a
página para Eric. — Eu tornarei a Desafortunados tão
grande quanto as Sete Sereias. Começaremos com uma
mudança no nome. Eric Reyes e os Desafortunados?
Ignacio estalou os dedos.
— Eric Reyes, Apaixonados & Desafortunados. O
fandom já tem uma hashtag. Podemos capitalizar
bastante em cima disso.
Eric pensou nas palavras cruéis de seu pai. Pensou em
sua ex, tão decepcionada com ele por não ter atingido a
fama com que sonhava. Pensou em Melody, Ariel,
banhada no luar do deserto.
Era bom demais para ser verdade. Sabia que era. O
que Teodoro tinha dito? Um acordo. Ele estava
oferecendo a Eric tudo o que ele já desejara. Por quê? Por
que agora? Melody estava com eles há semanas.
— Nós assinamos isso e o que vocês ganham em troca?
— perguntou Eric.
— Uma banda quente em ascensão. Estou surpreso por
não ter ouvido falar de vocês antes de meu irmão
chamar minha atenção. Vocês são o pacote completo.
Você é bonito e, com o polimento certo, sua banda vai
brilhar de verdade. — O sorriso que Teodoro abriu para
ele era arrogante. — Claro, há duas cláusulas. — Eric
deixou seu silêncio falar por ele. — Primeira, a Atlantica
Records não faz negócios com Odelia Garcia. Você está
livre para encontrar outro manager ou um será
designado a você.
Eric engoliu em seco. Tinha a sensação de estar
separado de seu corpo, assistindo à cena abaixo de si de
outro plano de existência, porque isso não podia estar
acontecendo.
— E a segunda?
— Você demite Ariel e diz para ela voltar para casa.
Teodoro acenou para alguém que Eric não podia ver.
Eric piscou e três copos de um líquido âmbar
apareceram. Drinques de celebração. Afinal, como ele
poderia recusar? Como alguém poderia recusar seu
sonho sendo entregue de mãos beijadas numa folha de
papel caro? Um gênio concedendo desejos com uma
canetada.
— Por que tem tanta certeza de que ela vai me dar
ouvidos? — perguntou Eric, seu corpo voltando
lentamente a si. Flexionou os dedos em torno dos braços
da cadeira. Quem diabos era este homem que queria
mudar o nome da banda? Da sua banda?
Um fazedor de reis, era quem era Teodoro del Mar.
— Minha filha não sabe nada sobre o mundo real. Não
como você e eu sabemos. — Teodoro pegou seu copo,
virando-o para lá e para cá e admirando a coloração de
mel do drinque. — Somos iguais, você e eu. Eu já fui um
rapazote que saiu de casa e percorreu todo o caminho
até a cidade de Nova York. Caí de cara várias vezes.
Confiei nas pessoas erradas. Perdi tudo. Recuperei
multiplicado por dez. Quando você quer alguma coisa e
consegue obtê-la, faz de tudo em seu poder para se
agarrar a ela.
Eric olhava fixamente para o próprio colo. Não podia
dar as costas para uma oferta dessas. Não podia. Onde
estava Odelia? Precisava dela para explicar... Seja lá o
que isso fosse.
— Por que vocês não fazem negócios com Odelia?
Teodoro encolheu os ombros, desconcertado.
— E isso importa? Foi ela quem me ligou para vir
buscar minha filha rebelde.
Sua filha adulta, que fez as próprias escolhas, pensou
Eric. Então piscou.
— Odelia te ligou?
Eric tentou pensar numa ocasião em que ela pudesse
ter mencionado que tinha conexões com um dos maiores
nomes da indústria ou deixado passar algum sinal de que
sabia quem Ariel era realmente. Por que escondera isso
dele? E por que chamara Teodoro agora, não para a
banda, mas para se livrar da garota dele?
Será que ela ainda era sua garota?
— Ariel só está procurando um pouco de diversão.
Quinze anos dessa vida, ela precisava extravasar — disse
Teodoro.
Ao lado de Teodoro, Ignacio encarava sua bebida,
desconfortável, mas, se queria contradizer o irmão, não o
fez.
— O que está dizendo? — perguntou Eric.
— Estou dizendo que minha filha estava te usando.
Você foi uma maneira conveniente de ela provar o
mundo real com segurança. — Teodoro tomou um gole de
seu uísque, conferindo o telefone como se estivesse com
pressa. — Odelia ligou para mim e disse onde encontrar
minha filha. Mas ela andou te escondendo, não é?
Escondendo os seus talentos do mundo, quando você
pode ter muito mais.
Havia muito em que pensar. O que ele queria dizer com
“o polimento certo”? Sua banda não precisava de
“polimento”. E, no entanto, tudo o mais que ele dissera
estava correto. Eric e Teodoro tinham deixado seus
países. Tinham apostado em si mesmos. Seguido seus
sonhos. Eles eram iguais. Não eram?
Eric podia ver o homem que criara uma sensação
internacional, um homem com uma reputação impiedosa
a quem o mundo ainda venerava como um pai atencioso.
Tentou conciliar este homem com o pai emocionalmente
manipulador que Melody descrevera por semanas.
Meu Deus! Semanas. Estivera com ela por semanas,
mas tivera apenas metade dela. Ela mentira para ele
para proteger a si mesma.
Eu a amo, ele pensou. As palavras eram ferozes, uma
faca cortando sua habilidade de falar. Eric amava Melody.
Mas não conhecia Ariel. Fechou os olhos contra a
avalanche de memórias. Ele lhe dissera que a amava. Ela
não havia dito nada. Não respondera que também o
amava.
— Posso pensar a respeito?
— Esta oferta é por tempo limitado — disse Teodoro,
observando Eric atentamente. — Mas entendo que você
precisa conversar com sua banda. Meu voo sai ao por do
sol. Você tem até lá. Por enquanto, vamos brindar.
Ignacio levantou seu copo.
— A novos começos.
Eric repetiu as palavras, mas não as sentia. Não como
sentia quando cantava, quando declarava seu amor por
Melody.
Ariel.
Ariel.
Ariel.
O uísque desceu queimando sua garganta, caindo no
estômago vazio. Lembrou que deveria encontrar a banda
na casa de shows. O que elas diriam? Eric não tinha
como fazer isso. Não podia deixar Odelia para trás,
podia? Só de pensar, sua boca azedava de culpa.
Ele foi escoltado até o elevador por uma hostess do
restaurante. Quando as portas se fecharam, nunca se
sentiu tão sozinho. Agarrava a pasta junto ao peito,
distraidamente acompanhando o logo do selo com o
dedo. Deveria ser o melhor dia da sua vida. Aquela
manhã, ele tinha acordado com a garota dos seus sonhos
aninhada a seu lado. Tinha suas amigas. Seu mundo
inteiro estava num único ônibus. Agora, segurava o
futuro deles em suas mãos. Tudo o que precisava fazer
era magoar duas mulheres que ele amava.
Duas mulheres que vinham mentindo para ele há
semanas.
Idiota, tolo, ingênuo.
O que estava fazendo? Estava acontecendo de novo,
igual à última vez. Ele se deixara distrair daquilo que
importava. Desafortunados. Precisava provar ao seu pai
que ia chegar lá. Pela memória de seu avô. Por si mesmo.
Não precisava esperar até o pôr do sol para saber o
que era melhor para sua banda. Eles tinham trabalhado
duro. Cada apresentação em que não receberam cachê,
cada vez que tocaram numa casa vazia, cada porta que
se fechou atrás deles.
Eric voltou ao topo para dar sua resposta a Teodoro del
Mar.

Quando Eric atravessou o saguão, estava em choque.


Não aguentava os rostos sorridentes ao seu redor.
Desconhecidos alegres, rindo, sorrindo, alheios ao fato de
que seu mundo tinha implodido. Não era uma sensação à
qual estava acostumado, mas tivera muitas primeiras
vezes naquele dia. Por que parar agora?
Foi quando a viu. Como se fosse a primeira vez.
Melody passou por ele correndo, tentando chegar ao
elevador antes de as portas se fecharem. Estaria
correndo para o pai? Ou procurando Eric?
Um grãozinho de dúvida lhe disse que havia uma
chance de que a última hora tivesse sido uma
alucinação. O ar nos hotéis de Las Vegas, brincando com
sua mente. Mutando as fibras de seu coração para algo
que ele não reconhecia.
Por favor, pensou ele. Por favor, não deixe que seja
verdade.
Ele gritou o nome dela. Sua voz se expandiu, forte e
ecoando pelo saguão de mármore frio.
— Ariel!
Não, pensou ele. Não.
Ela se virou.

@TeoDelMar

SeteSereias1
Que filha horrível!

Tink_w1sh
Não vamos julgar de maneira precipitada.

ZoeyCastile
Mais alguém pegou uma vibe de #FreeJessiLynneMears nisso
aqui?

YoSoyTheolinda
Sei lá, ela é adulta. Deixa ela em paz.

ZoeyCastile
@YoSoyTheolinda Se meu pai me atacasse na cara dura
assim, eu me arremessava pro sol.

PapiDelMarMandaBem
Eu serei sua pequena sereia, Papi del Mar.

MuuusicMan33
Eu tenho uma proposta de negócios pra você.
Olhe na sua pasta secreta.

RealSophiaDelMar
Papai, pare com isso.

Harharjinx
#ArielVoltaPraCasa
CAPÍTULO VINTE E CINCO

ARIEL
14 de julho
Las Vegas, Nevada

Ela ouviu seu nome. Foi pura memória muscular. Por


mais que se sentisse Melody, não podia negar quem
tinha sido por quinze anos.
— Ariel! — ele gritou.
Ela se virou. Não precisou procurar para encontrá-lo.
Eric estava firmemente plantado do outro lado do
saguão, alguns retardatários encarando, desviando da
perturbação que eles criaram no tráfego de pedestres.
Ele chacoalhou a cabeça uma, duas vezes. Olhava para
ela como se não a conhecesse. Como se ela tivesse
tirado algo dele, e ela sabia que tinha mesmo. Estava
acabado. Seja lá o que tivesse existido ou poderia existir.
Não havia sorriso disfarçando a mágoa no rosto dele.
Nenhuma centelha naqueles olhos castanhos que sempre
se iluminavam quando a encontravam.
— Eric — disse ela.
Ele saiu andando. Abrindo caminho aos empurrões pela
massa de gente e saindo do hotel. As pernas de Ariel
estavam pesadas, como se tentasse atravessar uma
correnteza. Eles passaram pelas portas giratórias e se
chocaram contra o calor seco do exterior.
— Eric, deixa eu explicar.
Ela agarrou o cotovelo dele e Eric deu meia-volta,
assomando sobre ela, alto e muito sólido. Nunca vira
aquela expressão em seu rosto. Mágoa. Tristeza. Ele
cerrou as mandíbulas, a raiva borbulhando em ondas
enquanto esperava e esperava que ela se explicasse.
— Me desculpe — disse ela.
— Pelo quê? — A voz dele era baixa, comedida. Fria. —
Por mentir para mim desde o instante em que nos
conhecemos? Por fingir ser uma de nós?
— Eu não menti — disse ela, e foi a coisa errada a
dizer.
— Balela. Não me venha com essa balela de meias-
verdades. — Ele se virou para sair outra vez, mas parou.
Encarou-a. — Foi engraçado pra você?
— Não! — Ela chacoalhou a cabeça. Não estava
entendendo. Como ele podia pensar isso?
— Foi engraçado fingir que era como nós? Que veio do
nada? Que não tinha nada nem ninguém nesse mundo,
quando você é literalmente uma riquinha mimada se
rebaixando por um verão?
Ariel recuou, trôpega. Pressionou a mão no plexo solar.
Não conseguia respirar. Ele não estava errado. Não
estava errado, e isso era o pior de tudo.
— Eu queria te contar, mas estava com medo de que
você reagisse como está reagindo agora.
— Porque você não me contou!
— Desculpe. Eu... — Foi aí que ela viu o que ele
espremia em suas mãos. Reconheceu o tridente na
pasta: o selo de seu pai. Seu selo. Ele estava aqui, em
algum lugar do hotel. Ele a encontrara. Ele encontrara
Eric. — O que ele te ofereceu?
Eric empalideceu, mas apenas por um momento.
Lambeu os lábios, teve o desplante de rir. Ele espremeu
a ponte do nariz e fez uma careta.
— Eu sou um tonto de marca maior.
— O que foi que ele te ofereceu? — repetiu ela, mais
grosseira, equiparando a raiva dele nota por nota.
— A verdade, para começo de conversa — respondeu.
— Então agora é a sua vez. Me conta.
Ariel não conseguia pensar. Queria arrancar a pasta
das mãos dele para ver quanto ela valia. Era isto o que
seu pai fazia: usava seu poder para fazer negociações.
Em seu coração, ela sabia que Eric jamais poderia, e
jamais faria, um acordo com Teodoro del Mar. Por outro
lado, o que ela sabia? Era só uma riquinha mimada se
rebaixando por um verão.
— Te contar o quê? — perguntou ela. — Claramente,
você já ouviu tudo o que queria ouvir.
Eric deu um passo para perto dela, e foi demais. Seu
cheiro, seu calor, sua mágoa. Ariel queria tomá-lo nos
braços e segurá-lo ali até que eles se desemaranhassem
da raiva. Eles podiam sobreviver a qualquer infortúnio.
Mas eis um detalhe sobre a raiva: ela não era razoável.
Não era gentil. Ela se prendia às suas inseguranças e as
ampliava, passando por uma metástase até que algo se
quebrasse.
— Eu fui uma maneira conveniente de você provar o
mundo real? — perguntou Eric.
Ariel ardia de raiva. Essas palavras não eram de Eric.
Eram do pai dela. Ela sabia como o pai podia ser, mas
isso era um nível baixo demais até para ele. Arrancou a
pasta da mão de Eric e viu a oferta, viu a assinatura do
pai. Ela a empurrou contra o peito dele.
— É impossível resistir, né? Você sequer pensou em
dizer não?
Agora Eric recuava. Ele apontou com a pasta.
— E por que eu deveria, Ariel? Ele me ofereceu tudo o
que eu sempre quis. Tudo pelo que eu trabalhei.
Aquele destaque nas palavras eu trabalhei, como se
ela não tivesse feito o mesmo. Como se ela não tivesse
quebrado seu corpo e seu espírito sendo a marionete do
pai. Como se não tivesse oferecido quinze anos de sua
vida pelo sonho de outra pessoa.
Ariel piscou para afastar as lágrimas, sabendo que isso
era culpa sua. Respirou fundo e disse:
— Espero que seja tudo o que você queria e mais um
pouco.
Foi quando notaram que não estavam mais sozinhos.
Max estava lá. Carly e Vanessa. Odelia e Grimsby. Não
tinha certeza de há quanto tempo elas estavam
observando.
— Vá embora, Ariel — Eric lhe disse. Não havia força
alguma na voz dele. As palavras soaram tristes,
cansadas.
Dessa vez, ele a encarou. Ariel amava quando ele
olhava para ela como se fosse a parte mais brilhante de
seu dia. Não havia mais nada disso. Ela era apenas a
garota que partira seu coração, mentira para ele,
escondera partes de si mesma quando ele se entregara
por inteiro para ela.
— Vá embora, Ariel — ele tornou a dizer. — Quando eu
voltar, quero você fora do meu quarto.
Dessa vez, quando Eric saiu andando, não olhou para
trás.

Chat do grupo Sete A Pressão

Ariel:
Acabou
Sophia:
O que rolou?
Marilou:
Quer que a gente vá te buscar?
Ariel:
Acho que preciso ficar sozinha
Thea:
Conferindo
Alicia:
É só dizer
Stella:
Do que você precisa?
Ariel:
Não sei bem. Eu aviso assim que souber.
Elektra:
A gente te ama, peixinha.
Sophia:
Mas eu tenho uma boa notícia.
Sophia:
Falei com nossa advogada
Ariel:
O que ela disse?
Sophia:
O papai tem guardado uma porção de segredos...
CAPÍTULO VINTE E SEIS

ARIEL
15 de julho
Grand Canyon West, Arizona

Ariel del Mar nunca estivera sozinha. Não no sentido


verdadeiro da palavra. Depois de pegar sua mochila e a
bolsa no quarto de Eric, andou para cima e para baixo
pela Las Vegas Strip até seus pés doerem. Até o sol
começar a se por. Até realmente ficar com medo pela
primeira vez, percebendo que não tinha para onde ir.
Isso não era verdade. Ariel podia voltar para a cidade
de Nova York. Havia uma cobertura com seu antigo
quarto lhe esperando. Subitamente, sentiu saudade de
suas coisinhas, do conforto de nunca ter que pensar de
onde seu alimento e seu abrigo viriam. Podia sentir a
atração de sua cama macia, dos bricabraques e das
bugigangas que guardara a vida toda. A piscina aninhada
na sacada, que lhe dava a possibilidade de nadar envolta
em vidro sobre a maior cidade do mundo. Seu próprio
aquário privativo, colocando-a em exposição.
Não estava distante há meses ou anos. Fazia dias.
Semanas. Podia voltar para casa com o rabo entre as
pernas, como seu pai previra. Ou podia encontrar algum
lugar onde dormir.
Ariel escolheu a segunda opção.
O hotel Trevo da Sorte ficava depois do fim da Strip,
onde as coisas eram mais desgastadas, as luzes menos
brilhantes. Seu quarto era limpo o bastante, mas o odor
de cigarros e vinho derramado se agarrava aos carpetes
surrados, e ela quase riu pensando no que Max e Oz
diriam. Os fantasmas de antigos reis dos cassinos fugidos
de Cuba ainda estão presos nessas paredes.
Quando desfez as malas, deu-se conta de que tinha
apenas algumas de suas peças de roupa, o fólio de couro
com seus documentos pessoais e algumas centenas de
dólares em dinheiro. E pronto. Seus discos, seu caderno e
Tibby, o tubarão, ficaram para trás. Até seu cristal da
sorte de colocar no peito. Nunca deveria tê-lo deixado
longe dela. Olha só o que aconteceu. O pensamento
gerou uma risada estrangulada que acabou virando uma
sessão de choro no chuveiro.
Depois disso, Ariel se esbanjou num cheeseburger com
fritas bem gorduroso e sabia que não podia culpar o
cristal. Dissera meias--verdades e meias-mentiras. Havia
escolhido deixar partes de si mesma para trás. Escolhido
o que dizer para Eric e seus novos amigos. Deixara seu
ressentimento pelo pai envenenar o relacionamento com
o rapaz que amava.
Porque ela o amava, sim.
Amar Eric Reyes não era como levantar voo. Era mais
como assistir a um asteroide descer da vastidão do
espaço sideral. Aquilo era o começo. Agora, era tudo o
mais. Amar Eric agora era a colisão, as consequências, os
destroços espalhados em todo lugar, pedaços e nacos de
si mesma que ela não sabia como tornar a unir — porque
a garota que tinha tudo, a garota que podia ser dona do
mundo, se assim o quisesse, nunca estivera apaixonada
antes.
Terminou sua refeição feita por dó e enfiou a mão na
mochila procurando o caderno, mas lembrou de novo que
o deixara no quarto de Eric. Será que ele estava lá agora,
deitado na cama? Nunca o vira zangado antes, então não
sabia como ele processava isso. Talvez estivesse com a
turma, rindo com Max ou ouvindo as teorias da
conspiração de Oz. Talvez estivesse bem sem ela.
Ariel se enfiou por completo debaixo das cobertas.
Tentou não pensar demais em vinho ou no fedor de
cigarro. Lamentou todas as letras que não conseguiria
recuperar, mas, depois de uma noite de sono inquieto,
resolveu deixar para lá.
Elas não lhe pertenciam mais.
Talvez Eric estivesse tão zangado com ela que jogaria o
caderno fora. Deixaria Monty se banquetear com seus
pensamentos esparsos, seus desejos bobos e suas
tentativas de ser normal.
Não havia normal. Não existia comum. Seu mundo
como Ariel del Mar, das Sete Sereias, era perfeitamente
normal para alguém como Trevor Tachi. Para as poucas
amizades que ela fizera pelo caminho. Para Marilou e as
gêmeas, que não queriam se esconder dos holofotes
como Ariel sempre quis. Tinha fugido para dar um jeito
em si mesma e percebeu, tarde demais, que nunca
houve nada de errado nela. Aquele fora o único modo de
se libertar do pai, e ele a encontrara mesmo assim.
Odelia provavelmente ligou para ele. Ariel devia ter
esperado por isso, embora não culpasse a manager.
Quando voltou a se logar em seu Pixagram na manhã
seguinte, viu as milhares de notificações que havia
perdido. Mais e mais chegavam a cada segundo. Deu
zoom na fotografia que seu pai postara dela.
Melody Ariel.
— Sua peixinha — disse ela para seu eu mais jovem. —
Você não faz ideia do que te espera...
Como não queria ir para casa, juntou suas coisas. Não
precisava fazer check-out, já que pagara em dinheiro na
noite anterior. A caminhada até a estação rodoviária
levou apenas vinte minutos e, depois de uma rápida
pesquisa da placa de destinos disponíveis, ela escolheu.
Algum lugar, qualquer lugar. Embarcou num ônibus que
ia para o leste, colocando o máximo de distância possível
entre ela e Eric.
Silenciou suas notificações quando seu coração
começou a disparar de ansiedade e encostou a cabeça
na janela. A mulher ao lado dela lia uma revista de fofoca
e ela notou uma foto da versão toda arrumada de si
mesma na capa. Um par de adolescentes assistia a
vídeos discutindo seus atos. A porcaria da estação de
rádio tocava “Goodbye Goodbye” e, quando eles saíram
do alcance de transmissão do município, Ariel ficou grata
pelos estalos da estação fora do ar. Quando o motorista
trocou de estação, estava tocando Desafortunados.
Aquele era um dos sonhos de Eric, mas ele ainda não
se deparara com isso. Claro, o universo estava brincando
com ela. Só podia ser.
Ariel abaixou o boné de beisebol e escondeu a
gargantilha sob a camiseta. Assistiu ao deserto passar e
se lembrou de vislumbres da viagem de Los Angeles a
Nevada. Do momento em que recebera o sol ardente do
corpo sólido de Eric a seu lado.
Sabia que levaria tempo para que seus sentimentos
esmaecessem, mas, pelas duas horas e meia que levou
para chegar a Grand Canyon West, castigou-se revivendo
cada momento que passaram juntos. Era um prisma de
luzes neon e música, de olhos castanhos e sorrisos
tortos, de beijos e promessas que nenhum dos dois
estava pronto para fazer.
Quando Ariel chegou ao seu destino, vagou pela
estação rodoviária. Queria ir para a passarela, ver o
Grand Canyon, mas se sentia estranha estando lá
sozinha. Ainda era de manhã, e ela simplesmente ficou
ali, sem direção, até sentir fome e encontrar um lugar
para devorar comida e café. Alugou um quartinho
minúsculo e passou o almoço e o jantar dormindo, e só
acordou quando o sol nasceu.
Ariel se decidiu e caminhou até o topo da passarela.
Nunca pensou que tinha medo de altura, mas seu corpo
estava entorpecido de medo. Enquanto o céu clareava,
ela chegou ao ponto mais distante que conseguiu, um
passo de cada vez. O cânion era arrebatador, alienígena
em sua beleza. Inalou o ar seco, deleitou-se no brilho
matutino. Apenas ela e alguns desconhecidos. Pensou
naquela estrada escura na Geórgia onde caminhara com
Eric na chuva. Um raio caíra a menos de um quilômetro
de onde estavam. Pensou em como ele havia lhe dito que
simplesmente caminhava até algum lugar e gritava.
Soltava tudo num grito. Catarse.
Ela não conseguira fazer naquele momento.
Compreendeu que havia entendido errado seus medos.
Tinha medo de filmes de terror, sim. E de perder sua
família. De não encontrar seu lugar num mundo
inclemente. Talvez, porém, tivesse apenas medo de estar
sozinha.
Ali, cercada por uma terra tão antiga quanto o tempo,
Ariel sorriu. Tudo mudava. A chuva erodia o chão sob
seus pés. A lua passava por seu ciclo. Caprichos
passavam.
Ariel se soltou e finalmente gritou.
Gritou mesmo enquanto as pessoas olhavam, enquanto
alguém parava para conferir como ela estava, e riu. Ela
sorriu pela primeira vez desde que saiu de Las Vegas e
convenceu uma família de turistas a se livrar de seus
problemas gritando com ela. Para abrir mão, porque às
vezes isso é tudo o que você pode fazer para salvar
alguns pedaços de si mesmo.
Queria contar a Eric que tinha feito isso e que tinha
sido gostoso.
Em vez disso, deu uma longa caminhada.
Entrou em outro ônibus e mais outro, fazendo seu
caminho de volta para casa, cidade por cidade, por conta
própria.
Fez uma lista nova, e dessa vez não era uma farsa de
ser alguém comum. Era tudo o que ela queria. Comidas
para provar. Estranhos com quem conversar. Músicas
para as quais dar uma chance. Eric não havia
acrescentado mais nenhuma música à playlist deles, mas
também não a deletara. Uma parte dela se acendeu com
esperança — pequena feito um vagalume, mas
esperança, mesmo assim.
Comprou um caderno novo e o encheu de músicas
novas, apesar de o tempo todo estar batucando o ritmo
dois, um, quatro, como se fosse um código morse que
Eric podia sentir do outro lado de tantas divisas
estaduais.
Ariel del Mar finalmente chegou de volta a Nova York.
Desembarcou na Capitania dos Portos e pegou o trem.
Não iria para a cobertura, mas estava indo para casa.
CAPÍTULO VINTE E SETE

ERIC
Denver Tulsa
22 de julho
Tulsa, Oklahoma

Uma semana após Vegas, Eric Reyes e sua trupe


estavam em Tulsa. O restante da turnê estava esgotado
em todo lugar, exceto Boston e na cidade de Nova York.
Eles tinham um contrato com uma gravadora. Mas ele
ainda não conseguia pensar em nada além dela.
Uma semana havia se passado.
Uma semana e ainda não tinha melhorado.
Os sete estavam amontoados no estúdio de tatuagem,
assistindo ao tatuador debruçado sobre a panturrilha da
manager da turnê. O zumbido da agulha era irritante,
mas uma distração bem-vinda para Eric.
— Nervosa? — Max perguntou a Grimsby.
— Nem um pouco — disse Grimsby, acarinhando a
cabeça peluda marrom de Monty.
— Eu sim, e muito — admitiu Carly, os joelhos bambos.
— Sei que finjo bem, mas na realidade eu sou uma
maria-mole.
Vanessa esfregou a coxa da namorada para tranquilizá-
la.
— Tudo bem, meu amor.
Uma semana de duas das suas melhores amigas
oficializando a relação.
Uma semana delas provando que podiam fazer um
relacionamento funcionar, enquanto ele estava preso no
loop do coração partido.
— E você, Eric? — perguntou Oz, hesitante.
Ele ouviu a pergunta. Ouvira todos eles, mas era como
se fizesse e não fizesse parte da conversa ao mesmo
tempo. Folheou o portfólio de um dos artistas para
manter a mente e as mãos ocupadas. (Não estava
funcionando.)
— Estou bem — disse Eric.
— Vamos lá, cara — disse Max, baixinho. — Nós
dissemos que faríamos essas tatuagens quando
conseguíssemos nosso contrato. Aqui estamos nós.
Eric abriu um sorriso fraco.
— É. Aqui estamos nós.
— Tem certeza de que não quer ver o desenho? —
perguntou Grimsby, como se ele fosse uma bomba-
relógio esperando para detonar.
Havia momentos em que ele se sentia nuclear. Seu
mau humor radiativo e derretendo tudo no perímetro. Era
por isso que começara a passar mais tempo em sua
beliche e a ir para a cama mais cedo. Fez aquela coisa
nada saudável de vasculhar a internet em busca de tudo
o que houvesse sobre os Del Mar, sobre Ariel, sobre as
Sete Sereias. O negócio é que, se tivesse prestado mais
atenção em Max durante o tempo em que moraram
juntos, já teria um mestrado em Ariel del Mar. A “garota
glamorosa da casa ao lado”. Ele fungou uma risada na
primeira vez em que viu o artigo, porque tudo o que
conseguia ver em sua mente era ela em calças de
moletom e croppeds. Aqueles achados de brechó
medonhos, mas adoráveis, que precisavam ser lavados
várias vezes até que parassem de cheirar a naftalina.
Uma semana de espirais insones.
Uma semana de fingir que não sentia saudades dela.
Ele passou outra página do portfólio. Tigres, dragões e
borboletas pareciam ser o auge da moda. Quando
chegou a uma página de uma linda sereia empoleirada
numa rocha com ondas explodindo a seu redor, fechou a
pasta. A tatuagem da banda era um pacto que eles
tinham desde sempre, e Eric não podia escapar. Mesmo
que tivesse perdido a aposta e não pudesse escolher a
arte.
Passou a mão pelo cabelo curto. Continuava
esquecendo que tinha passado a máquina. Depois que
Melody foi embora — depois que ele mandou Ariel
embora —, Eric se encontrou na Sunset Strip. Entrou
numa barbearia retrô, sentou e disse:
— Corta tudo.
O barbeiro, com um bigodão digno de qualquer
bangue-bangue à italiana, soltou uma risada.
— Que foi, perdeu alguma aposta?
— Na verdade, sim.
Voltara para a casa de shows horas depois, como se
nada tivesse acontecido. Não falou. Pendurou o violão no
corpo e passou pelo ensaio. Precisava sentir o violão, a
expiração profunda que vinha depois de cantar.
Então, e apenas então, foi que ele contou às amigas
tudo o que ocorreu com Teodoro del Mar. Eric havia feito
a escolha certa. A melhor escolha. Sabia disso. Quando
deu meia-volta naquele elevador, sabia que, não
importava o que acontecesse, não podia comprometer o
que sua banda defendia, nem Odelia.
Então por que não se sentia melhor?
Uma semana desde que recusara um contrato de seis
dígitos.
Agora, Odelia se levantava da cadeira do tatuador. Sob
a bandagem transparente, sua pele estava vermelha e
zangada. Mamoru, o tatuador japonês, sorriu para seu
trabalho, transferindo a arte customizada de Oz, mas Eric
desviou o olhar para ainda não ver o desenho. Não era
exatamente porque queria se surpreender, e tinha
certeza de que suas meninas não o chutariam quando
ele já estava caído — mas ele não quis ver o desenho.
Mesmo com a agulha penetrando pele a alguns metros
dele, a situação não parecia real. Perder Melody — Ariel
— não parecia real.
— Doido — disse Carly.
— Quem é o próximo? — perguntou Mamoru,
esterilizando e organizando seu espaço de trabalho.
Vanessa pegou a porquinho-da-índia fêmea de Grimsby
enquanto a baixista subia para a cadeira. Odelia tomou o
lugar diante de Eric, a perna da calça ainda levantada.
— Eu te amo, meu bebê — disse ela. — Mas você
precisa sair dessa. Você mandou Ariel voltar para casa e
recusou a Atlantica Records. Eu sei que está magoado,
mas, se tem algo para me dizer, diga.
Eric levantou a cabeça e olhou para as amigas. Vinha
descontando sua raiva nelas. Não era isso o que o
próprio pai tinha feito? Ele passara todos os seus
momentos fazendo tudo o que era possível para não ser
como o homem que o criara. À primeira visão de dúvida
real, ele se transformara na pior versão de Eric Reyes.
Olhou nos espelhos embaçados que forravam a parede
mais distante e mal se reconheceu. Embora, tinha que
admitir, o novo corte de cabelo o estava conquistando.
— Você devia ter me contado — disse Eric, lutando
para manter o ressentimento fora de sua voz. — Você
esteve ao meu lado quando eu não tinha absolutamente
ninguém. Eu ainda confio em você. Mas você devia ter
me contado.
— Não era meu segredo para contar e você sabe disso
— disse sua manager e amiga. — Mas eu me arrependo
de ter ligado para aquele homem.
Eric esfregou o rosto com as palmas calejadas.
— Mas por quê? Eu não entendo o porquê. Estava tudo
tão...
Bom. Perfeito. Um sonho. Uma mentira.
— Eu fiquei com medo — confessou Odelia. — Ariel me
procurou. Ela queria te contar a verdade, e eu pedi a ela
que esperasse. Ela queria acabar com o segredo na noite
do casamento. Parecia achar que poderia ajudar mais a
banda como Ariel del Mar.
Eric assentiu lentamente. Odelia lhe contara sobre a
rixa entre as famílias.
— De repente, eu estava revivendo o dia em que
Teodoro del Mar roubou tudo de mim. Eu disse a ela para
tomar cuidado com você, mas não confiei que ela
realmente fosse me ouvir. Entrei em pânico. Estava com
medo que Ariel fosse fazer com você o mesmo que o pai
dela fez comigo.
— Eu teria sido capaz de tomar a decisão — disse ele.
— A mesma que tomei quando recusei a oferta dele.
— Eu honestamente pensei que ele mandaria o irmão
vir buscar Ariel. — Ela bateu de leve no ombro de Eric. —
Mas ele viu algo de bom em você.
A questão é que, apesar de toda a sua glória de
“fazedor de reis”, Teodoro del Mar não o vira de verdade.
Não como Odelia via.
— Não importa. Terminou.
— Você não fala como se tivesse terminado — Vanessa
disse a ele.
— Eu não me arrependo de ter recusado a proposta de
Teo del Mar — esclareceu Eric.
— É — interrompeu Carly, fazendo uma careta —,
recusar quase um milhão é bem puxado. Mas não depois
de saber o que ele fez com você, Odelia.
— Pelo menos o nosso selo cumpriu o prometido.
Era um adiantamento modesto que lhes permitiria
gravar um álbum e manter sua própria contribuição
criativa. No final, era o que Eric queria de fato.
Max grunhiu, frustrada.
— Você não pode simplesmente perdoar Ariel?
Eric desviou o olhar. Esta era a pior parte. Ele a
perdoara no instante em que ela foi embora. No
momento em que a mandou ir embora. Não havia nada a
ser perdoado. Ele a amava então, e seu coração
deplorável ainda a amava agora.
— Eu deveria estar com raiva de todas vocês por
saberem e não me contarem antes?
Max puxou a franja para baixo para cobrir seus olhos
por completo.
— Eu descobri dez minutos antes de você. Fui eu que
falei para Ariel te procurar. Você por acaso sabe quanto
medo ela tinha de que você fosse fazer o que fez? Eu
pensei... — Ela se interrompeu e o deixou no suspense.
— Você pensou o quê? — perguntou ele, calmamente.
— Que eu sou um tonto do caralho que ia rir e dizer uau,
a garota que eu amo estava escondendo de mim uma
parte dela porque não confia em mim e simplesmente
seguir a vida?
Censuradas, as mulheres ouviram a agulha retomar e
Grimsby começar sua tatuagem.
— Ai, isso faz cócegas.
Eric se arrependeu do que disse para Max no mesmo
instante. Magoara suas amigas porque ele mesmo estava
sofrendo. Queria parar de se sentir assim, mas não sabia
como. Podia começar pedindo desculpas.
— Desculpe.
— Você ainda a ama? — perguntou Max baixinho.
Claro que ainda a amava. Não tinha volta. Havia
apenas antes de Ariel e depois de Ariel. E o depois era
desolador. O depois era dias com pôr do sol comuns e
noites insones.
— Ela parecia estar bem no Grand Canyon — disse Oz.
— Ela tem postado na sua conta particular.
Ariel devia tê-lo bloqueado ou removido de seus
seguidores. Não que ele a culpasse. Vá embora. Duas
palavras que o atormentavam todo dia e toda noite.
Eric inspirou com a revelação de que ela não tinha
voltado para casa. Será que estava sozinha? Estava a
salvo? Como estava se locomovendo? Ela não tinha carta
de motorista. Deixara metade de suas roupas, seu
caderno. A cama dela no ônibus ficou intocada e, quando
não havia ninguém olhando, ele agarrava Tibby, o
tubarão antiestresse, junto ao peito. Só aí conseguia
dormir de verdade.
— Eu pensei que ela voltaria para a cidade — admitiu
Eric.
— Você teria voltado? — bufou Odelia.
Tendo conhecido Teo del Mar, Eric sabia a resposta.
Não, não teria. Ele mesmo evitou ir para casa por tanto
tempo que até pensar nisso parecia impossível. O que
era sua casa? Um pai que não o respeitava? Uma mãe
que era a sombra de si mesma? Podia imaginar a
profunda decepção que seu pai teria sentido se soubesse
da oportunidade que Eric deixara passar. Mesmo que
tivesse sido a atitude certa a se tomar, a atitude leal.
Por um lado, seu pai tentava. Ele telefonava várias
vezes por ano e Eric simplesmente não atendia. O pai de
Ariel, por outro, trabalhava por meio de outras pessoas.
Ele tramava e manipulava.
— É isso, acho — disse ele, mas se virou para as portas
de entrada como se Ariel fosse chegar a qualquer
momento. Droga, queria não saber que ela estava
vagando pelo país sozinha. Tinha sido mais fácil pensar
nela de volta a seu castelo de vidro no céu, olhando para
eles lá embaixo. Uma princesa de regresso após uma
aventura sem sentido.
Uma semana desde que ele a acusara de “se rebaixar”.
Não era uma avaliação justa, mas ele estava ferido.
Não sabia como fazer para parar de doer.
— Liga para ela, mano — disse Carly, subindo na maca
em seguida.
— Você quer saber quais são as suas opções, Eric
Reyes? — perguntou Vanessa.
Ele lambeu seu canino.
— Não, mas tenho certeza de que você está prestes a
me informar.
— Ligar para ela e conversar como adultos. — Vanessa
levantou um segundo dedo. — Ou superar e canalizar
essa energia sorumbática para a sua era Alanis
Morissette.
Eric riu pela primeira vez em dias. Vanessa não estava
errada em nada. Ele queria ligar para ela. Todo dia no
ônibus batendo papo à toa com o novo promotor de
merchandising, Fergus, um quarentão conversador de
Los Angeles que tinha respondido ao anúncio deles na
Gregslit para substituir Ariel.
Daí ele revivia aquele momento no saguão do hotel
mais uma vez.
Ariel, ele tinha dito.
Ela presumira o pior dele. O que ele te ofereceu?
Foi esse o momento que acabou com ele. Ela sabia que
o pai ofereceria o mundo para ele, mas devia ter uma
opinião melhor sobre Eric. Devia saber que ele a
escolheria, por mais zangado que estivesse. Era a prova
de que ela não o conhecia nem um pouco. Não era?
Ele respirou fundo e só soltou o ar quando começou a
doer. Era assim a sensação de cada dia sem ela.
Finalmente, foi sua vez de subir na maca. Eric abriu o
cinto e empurrou a calça jeans e a boxer para baixo.
Vanessa revirou os olhos e Oz piscou depressa.
— Você tinha que escolher a nádega? — perguntou
Max. — Você sabe que podia tatuar em qualquer lugar.
Não achava que elas iriam forçá-lo a tatuar o desenho
do chupacabra de Oz ou o nome de Ariel, mas, só para
garantir, precisava que fosse num lugar onde não
pudesse ver, a menos que procurasse.
Eric encolheu os ombros e deitou-se de barriga para
baixo.
O primeiro contato da agulha foi uma dor muito nítida
e constante, que foi amortecendo conforme a adrenalina
inundava seu organismo. Era bom ter algo em que se
concentrar, mas aí seus pensamentos voltaram para
Ariel, como tudo fazia.
Onde ela estava? Estava a salvo? Será que precisava
dele?
Dissera a Ariel que seus pais eram iguais, mas, agora
que Eric conhecera o dela pessoalmente, sabia que não
era verdade. O pai dele era movido pelos próprios
medos, mas nunca manipularia Eric para fazê-lo voltar
para casa.
O que aconteceria se Eric entrasse em contato com
ele? Não mudaria o passado, mas talvez... Talvez
pudesse lhes dar um futuro. Foi isso o que ele disse para
Melody. Ariel. Que não ligava para o passado dela. Por
que não podia estender a mesma cortesia à sua família?
Quando a pele de Eric pareceu estar em carne viva e a
dor passou de agradável para insuportável e deu a volta
completa para amortecida, acabou. Levantou-se da maca
e estudou a tatuagem na frente de um espelho de corpo
inteiro. Oz tinha desenhado para eles um hamster num
traje de astronauta, cercado por uma constelação de
estrelas. Ele adorou a tatuagem, na verdade. Pela
primeira vez em dias, Eric sorriu para seus amigos.
Depois de ter a nádega direita besuntada num gel
resfriante e bactericida e coberta por uma bandagem
transparente, todos eles voltaram para a casa de shows.
Eric não se sentia melhor, mas estava mais leve, como
se um pouco de sua raiva tivesse sido drenada pelo
contato daquela agulha.
Liga para ela, insistia uma vozinha traiçoeira em sua
mente.
Ele não ligou. Em vez disso, Eric encontrou uma sala
tranquila e pegou seu celular. Fitou o número do pai por
um longo tempo antes de juntar a coragem para
finalmente ligar para ele.
@BandaDesafortunados Pixagram

Estamos cansados bagaray, mas estamos chegando, Maçãzinha!

Obrigado por todo o amor que vocês nos demonstraram pelo caminho.
Temos grandes notícias e estamos animados para voltar ao estúdio. Eric
está dando duro nas músicas novas.

Vemos vocês na estrada! #Apaixonados&Desafortunados


CAPÍTULO VINTE E OITO

ARIEL
26 de julho
Queens, Nova York

Ariel não estivera na casa em Forest Hills, Queens, desde


o dia em que a família se mudou. A casa não parecia em
nada com o que era antes. Os ocupantes anteriores
reformaram tudo. Não havia mais o papel de parede
desbotado com estampa de rosas que sua mãe adorava
tanto. Tampouco a cozinha medonha, marrom e verde-
limão, que provavelmente tinha sido o auge da moda nos
anos 1970. Agora pertencia a Sophia.
Ela largou a mochila na entrada, tirou os tênis e saiu
em busca de todo mundo.
— Aqui em cima! — gritou a irmã Del Mar mais velha.
Ariel as encontrou cobertas de tinta, com seções
manchadas de turquesa em todo canto, menos nas
paredes.
— Vocês realmente deveriam ter chamado um
profissional — disse Ariel, correndo para os braços
abertos de Sophia.
Ela não pretendia chorar. Sentira saudade das irmãs
desde o momento em que saiu de casa, mas elas nunca
deixaram de estar em contato. E, no entanto, ter suas
irmãs de volta fazia toda diferença.
— A filha pródiga ao lar retorna — disse Elektra,
virando-se enquanto fungava. Ela colocou o rolo de tinta
no chão.
— Você fez uma tatuagem! — Alicia apontou para a
delicada constelação decorando o interior do antebraço
esquerdo de Ariel. Em sua longa, longa viagem para
casa, ela havia parado num excêntrico estúdio de
tatuagem em Tulsa, recomendado por Oz.
— Somos nós — explicou. A constelação era as
Plêiades.
As irmãs a beijaram e abraçaram, atirando mais
perguntas nela do que Ariel tinha respostas. Onde
esteve? Tinha feito as pazes com Eric? O que todas
fariam em seguida? Onde estavam as lembrancinhas
delas?
— Vinho e pizza primeiro — disse Marilou, quase
tremendo de empolgação. Seu pincel respingou na
camiseta branca de Ariel e no seu jeans.
Em momentos, todas tinham vestido pijamas e se
amontoado no único cômodo da casa que estava
terminado. O quarto principal.
Sophia o decorara em madeira escura e suntuosos tons
profundos de azul e roxo.
Uma TV de tela plana tinha sido instalada na parede. A
massiva cama king size mal acomodou todo mundo, mas
elas se empilharam umas por cima das outras, como
faziam quando crianças.
Parte dela queria guardar seu tempo com Eric só para
si, mas, quanto mais suas irmãs insistiam, mais Ariel se
deixava levar pelas lembranças. Começou com aquela
noite no bar de Julio. A correria para pegar o ônibus. A
negociação com Odelia. O elevador. Tocando com
Vanessa. Escrevendo uma música com Eric que eles
jamais completariam. A primeira vez em que ele disse
em voz alta que queria beijá-la e quando eles finalmente
se beijaram na filmagem do videoclipe. Cada lembrança
caía na próxima, até chegar ao final feio e amargo.
Sophia afastou o cabelo de Ariel para trás.
— Lamento que não tenha dado certo.
— Eu deveria ter sido honesta desde o começo. — Ariel
bebia de um copo em formato de concha com um canudo
maluco. Tinha sido o presente de Stella para Sophia pela
mudança de casa. — Mas já chega de falar de mim. Não
acredito que você comprou nossa casa antiga!
— Eu não falei nada porque não queria que papai
descobrisse. Tem muita coisa que andei fazendo nos
últimos meses — disse Sophia, saindo da cama. O robe
preto fofinho se arrastava a seus pés. Ela abriu um
compartimento na parede e tirou de lá uma pilha de
pastas. — Agora que estamos todas aqui, posso começar.
As garotas se aprumaram e viraram para a irmã mais
velha. Desde que desfizeram as Sete Sereias, ela tinha
parado de alisar o cabelo e seus lindos cachos caíam
sobre os ombros como tentáculos pretos. Olhando ao
redor, Ariel se deu conta de que todas elas tinham
abandonado elementos de suas personas antigas. Até
Marilou mantinha apenas um toque de rosa em seu
cabelo, embora Elektra provavelmente teria cabelo azul-
elétrico até os noventa anos.
— Quando Ariel me perguntou sobre Odelia Garcia, eu
comecei a escavar. O selo que lançou o disco que Ariel
encontrou não existe mais, mas encontrei alguém da
produção que me contou a história toda.
Marilou bebeu de seu copo de concha.
— Ele simplesmente ofereceu a história de graça?
— Ela teve que ser cortejada com um belo jantar e meu
sorriso irresistível.
Sophia deu uma piscadinha e, em seguida, contou
tudo.
Foi assim: o selo tinha contratado Luna Lunita, a banda
dos pais delas. Mas, naquela época, eram três
integrantes. Teo e Maia del Mar e Odelia Garcia. Só
depois que eles já haviam gravado o álbum e
imediatamente antes de lançarem “Luna mia” como um
single foi que a gravadora decidiu que Luna Lunita teria
mais apelo como um duo de marido e mulher. Eles
podiam vender o romance. Podiam vender a história de
amor.
— Três é demais — disse Sophia. — Esse tipo de coisa.
Então eles demitiram Odelia, mas ela não aceitou quieta.
Ela lutou. Sem evidências sólidas de que a música era
totalmente dela, porém, não havia muito que Odelia
pudesse fazer. O contrato que ela assinara dizia que os
executivos podiam retirá-la do projeto a qualquer
momento.
— Papai ganhou prêmios por aquela música — disse
Thea, decepcionada e horrorizada como artista.
— E Odelia nunca recebeu o crédito — acrescentou
Ariel. Ela preencheu os buracos da história com os
detalhes que Odelia lhe dera.
Alicia chacoalhou a cabeça.
— Isso é horrível.
Sophia levantou um dedo.
— E não é a única coisa que eu encontrei.
— Por favor, diga que é aquele jeans meu que você
pegou emprestado em 2012 — disse Elektra, irônica.
— Aquela calça já era, Elektra. Tá bom?
Sophia voltou para a cama com a nova pasta. Ela a
entregou a Ariel, que folheou as páginas. Não sabia
muito bem o que estava lendo no começo. Parecia ser
uma fotocópia de outra fotocópia, datada de pouco mais
de quinze anos antes.
— Um contrato? — indagou ela.
— Nosso primeiro contrato — corrigiu Sophia. — O
dinheiro foi depositado em sete contas individuais que
mamãe abriu para nós. Mas...
Ariel olhou para os extratos das contas, comparando
com as datas que apareciam no contrato. Acompanhou
as porções destacadas que mostravam que o dinheiro
fora transferido para as contas. E então transferido de
novo, deixando um saldo zerado.
— Esse foi o ano... — Stella começou a dizer, e Alicia
completou:
— Que papai fundou a Atlantica Records.
— Com o dinheiro que ganhamos com As Pequenas
Sereias. —Sophia cruzou os braços em vitória. — Eu
estive conversando com nossa advogada e com um
professor de Direito das minhas aulas futuras. Ambos
concordam que temos base para um processo.
— Processo? — Ariel repetiu a palavra, mas sabia o que
Sophia estava pensando.
— Isso mesmo — disse Sophia, piscando para conter as
lágrimas triunfantes. — A Atlantica Records sempre foi
nossa.
15 de março de 1994

Querida Odelia,
Esta é a carta mais difícil que já precisei escrever. Deixe--me
começar dizendo que lamento muito. Eu não sei de que vale isso e
sei que não tenho direito algum. Sei que levei tempo demais para
tentar me redimir. Meu coração sempre ficou dividido entre minha
amiga mais querida e meu marido.
Quero que você saiba que eu tentei conversar com Teodoro
durante todos esses anos, mas você sabe como ele é. Quando enfia
algo na cabeça, é impossível fazê-lo mudar de ideia, e ele queria
isso demais.
Temos filhas agora. A número sete está a caminho. Ouvi dizer que
você também está grávida. Creio que estou escrevendo agora para
dizer que lamento muito pela morte de seu marido e, bem, num
sentido meio egoísta, porque comecei a imaginar como seria se
nossos filhos pudessem crescer como amigos. Como nós éramos.
Algumas coisas não são para acontecer, suponho eu.
Sei que isso não é nada comparado com o quanto eu te magoei,
mas espero que seja o capital inicial para você começar.

Com amor,
Maia Melody Lucero Marín
CAPÍTULO VINTE E NOVE

ARIEL
28 de julho
Nova York, Nova York

Ariel e as irmãs chegaram à Atlantica Records com certa


fanfarra. Sob ordens de Thea, todas usavam terninhos
pretos e elegantes. O conselho legal delas vinha logo
atrás, assim como Chrissy e algumas das outras
assistentes.
Alguns estagiários da Atlantica discretamente filmavam
e tiravam fotos. Muito bom. Elas queriam que
começassem a correr boatos. Um golpe. Uma
reorganização. Um acerto de contas.
Ariel abriu a porta da sala do pai. Nunca o vira tão
surpreso. Nem quando elas ganharam prêmios. Nem
quando elas chegaram a seu primeiro disco de diamante.
Nem mesmo quando ela anunciara que estava saindo de
casa. O rosto dele normalmente era calculista, e sua
expressão básica era a de observação com olhos de
águia.
— Ariel — disse ele. Depois se lembrou que estava no
telefone e desligou sem nem pedir desculpas. —
Meninas. O que estão fazendo aqui?
— Oi, papai.
Mesmo então, depois de tudo, uma pequena parte dela
ainda queria correr para os braços dele em busca da
proteção que ele sempre oferecera. A filhinha do papai,
suas irmãs a chamavam quando era pequena. Mas então
se lembrou do que ele havia feito com ela e com Odelia.
Em quem mais seu pai havia pisado para obter tudo o
que queria?
A advogada de Sophia adiantou-se e depositou a pasta
na mesa de Teo. Foi direto ao assunto, talvez sentindo
um momento de hesitação da parte de Ariel.
— Sr. Del Mar. Eu me chamo Annabel Ford. Estou
representando suas filhas.
— O que é isso? — perguntou Teodoro, rugindo feito um
leão que tinha sido cutucado. Ele folheou o conteúdo,
página por página.
Tudo o que Sophia descobriu por meio de suas
pesquisas estava ali. Cada prova de que precisavam para
mostrar que ele usara o dinheiro delas para fundar o
selo. Que ele ainda mantinha os ganhos legítimos delas
como reféns.
— E o que isso prova? — perguntou o pai. — Somos
uma família, e este é um negócio de família.
— Isso mostra uma péssima gestão dos ganhos de
minhas clientes, que eram menores de idade.
Teo estava estranhamente calmo.
— Por que vocês estão fazendo isso?
Teo falou diretamente para Ariel. Sabia que ela era a
que tinha um ponto mais fraco por ele.
— Estou fazendo exatamente o que você nos ensinou a
fazer — respondeu Ariel. — Pense grande, papai. A
Atlantica Records foi fundada com nosso dinheiro; logo,
estamos tomando a empresa.
Ele começou a tumultuar, as palavras raivosas e
engrolando tanto que ela não conseguia entender o que
o pai dizia. Mas ela continuou falando, cada vez mais
alto, até ele não ter outra escolha senão voltar a se
sentar e ouvir.
— Você receberá uma indenização e se retirará do
cargo de CEO, embora ainda continue listado como um
dos fundadores.
— Vocês não sabem nada sobre como administrar uma
gravadora — disse ele.
— Mas eu sei — disse tio Iggy, entrando na sala.
O lábio de Teo del Mar se curvou, a respiração
acelerada.
— ¿Y tu, Ignacio?
— Vou atuar como conselheiro — disse Iggy, olhando
de maneira significativa para as sete mulheres Del Mar
—, até que elas não precisem mais de mim.
Teo apontou um dedo robusto para Ariel.
— Você não queria ter nada a ver com isso até poucas
semanas atrás.
Ariel disse aquilo que sabia que o magoaria até o osso.
— Não, papai. Eu quero a música. Eu quero música nos
meus próprios termos. Você mesmo disse: eu sou a
música. O que eu não quero ter algo a ver é com você.
Não assim.
Teo tornou a se sentar, quieto, ferido. Subitamente, ele
parecia muito velho. Quando é que seu pai grande e
forte, seu escudo contra a feiura do mundo, ficara tão
velho?
— Tudo o que eu sempre quis foi dar a vocês o que nós
nunca tivemos — disse ele. — É isso o que todo pai quer.
— Nós nunca duvidamos disso — disse Sophia. —
Claramente temos questões a resolver como família. Mas
como você nos ensinou: isso são negócios.
Teo se apoiou no cotovelo, encarando-as como se as
visse pela primeira vez. As filhas que ele subestimara.
— Isso é tudo?
— Não — Ariel pressionou. — Eu sei sobre Odelia
Garcia. Você vai dar a ela o crédito pela música. Vai
contar a verdade sobre tudo.
— Não basta ter magoado seu pai? — perguntou ele,
rosnando de raiva, sentindo-se traído. — Quer me
arruinar, ainda por cima?
Ariel pressionou as mãos sobre a mesa, fortalecida
pelas irmãs e por saber que o que estava fazendo era a
única forma de se redimir.
— Você mesmo se arruinou.
— Não fale comigo...
— Respeito é conquistado, papai. Nada disso vale as
pessoas que você magoou. Nada.
— Você está me punindo por causa daquele rapaz? —
perguntou o pai, procurando algo a que se agarrar.
Ariel sacudiu a cabeça.
— Nós vamos honrar o contrato dele, a despeito da
transferência.
As sobrancelhas de Teo se levantaram.
— Que contrato?
— O contrato que você fechou com ele.
Teo ficou quieto por um instante enquanto eles se
davam conta ao mesmo tempo do que tinha acontecido.
— Eric Reyes não aceitou a oferta que eu fiz. Talentoso,
mas não muito ambicioso. Quando eu tinha a idade dele,
teria feito todo o possível por aquele tipo de oferta.
Eric havia recusado o contrato. Eric. Eric. Ariel sentiu
que estava se desfazendo. Mordeu o lábio inferior. Sentiu
uma das irmãs apertar-lhe o ombro. Ela precisava ir até o
fim com isso.
— Essa é a diferença entre vocês dois. Ele prefere ser
uma boa pessoa.
Teo riu sem humor.
— E um tolo.
— Eu cometi um erro enorme — Ariel murmurou
consigo mesma.
Virou-se para as irmãs, que assentiram. Elas cuidariam
disso. Podiam fazer qualquer coisa, desde que tivessem
umas às outras. Ariel sabia disso, agora mais do que
nunca.
Antes de sair, Ariel olhou para o pai. Nunca o vira com
uma aparência tão derrotada. Ela causara aquilo. Ela
destronara o fazedor de reis. E, no entanto, lá no fundo,
havia torcido para que, depois que conversassem com
ele, o próprio pai tomasse essa iniciativa, em vez de
forçar a mão das filhas. Teo fizera suas escolhas e,
finalmente, Ariel faria as dela.
Seu corpo vibrava de adrenalina, medo e incerteza.
Mas de uma coisa ela tinha certeza: agora tinha uma
página em branco. Um novo começo.
E estava pronta para ele ter início.

@ArielDelMarReal

4 milhões de likes

Esta mensagem já devia ter saído há muito tempo. Sei que vocês
ouviram coisas de meu pai e de pessoas que acham que me conhecem.
Mas não conhecem. Não quem eu sou de verdade. Então eu quero botar
os pingos nos Is. Quero contar tudo a vocês e vou precisar de uma
ajudinha. Fiquem ligados para um grande anúncio amanhã, 31/07.

TUTTLE, O CONTADOR DE HISTÓRIAS

Episódio 1.380:
Especial Ariel del Mar! Você não pode perder! Ao vivo! Ao
vivo! Ao vivo!
[Descrição da imagem: Scott Tuttle, vestindo um blazer
branco com um pin dourado das Sete Sereias na lapela. Ariel
del Mar numa jaqueta jeans, regata branca decotada e calça
jeans roxa.]

“Oi, gente. Eu sou literalmente um fantasma. Eu, Scott Tuttle, estou


falando com vocês do além-túmulo, porque estou sentado aqui com
ninguém menos que Ariel del Mar em pessoa! Vejo vocês nos
comentários. Deixem seu like, sigam o canal e não se esqueçam de
ativar a campainha!”

Ariel sorri para ele e aperta sua mão.

“Obrigada por me receber aqui. Eu sigo o seu canal há anos.”


Scott abre um sorriso brilhante para a câmera antes de se voltar
para ela.

“Tá bom. Uau! Deixa eu me recompor aqui... Quando você entrou em


contato comigo, pensei que fosse uma pegadinha.”

Ariel levanta a mão e conta.

“Ele desligou na minha cara três vezes!”

Scott cobre os olhos, envergonhado.

“Dá pra me culpar? Mas vamos direto ao ponto. Você está aqui para
se confessar, é isso?”

“Algo nessa linha”, diz Ariel. “Sei que tem havido muita especulação
desde nosso último show.”

“Conte pra gente, querida”, Scott a encoraja. “Mas, primeiro, deixe-


me fazer a pergunta que está na mente de todos. Você não é uma
ruiva natural?”

Ariel joga suas ondas castanho-escuras por cima do ombro.

“Surpresa!”

“Como está sendo?”

Ariel passa os dedos pelos cabelos.

“Foi uma adaptação. Passei tanto tempo da minha vida numa


fantasia. Eu amava aquela garota. Ela mudou a minha vida. Mas,
agora que as Sete Sereias se aposentaram, estou pronta para que o
mundo me conheça. Como eu sou por inteiro.”

“E então, quem é você agora?”

Ela abre um sorriso melancólico, olhando para a câmera, depois


para Scott.

“Eu pensei que seria totalmente diferente, mas não sou. Lá no


fundo, sou a mesma pessoa. Só não estou mais me escondendo, se
é que isso faz sentido. Não me entenda mal, eu amo o drama e me
enfeitar toda. Então, oi, mundo! Eu me chamo Melody Ariel Marín
Lucero. Mas ainda atendo por Ariel del Mar.”

“Não tem nada de errado em ter um pouquinho de ajuda”, diz Scott,


dando tapinhas na lateral de seu cabelo prateado. “Mas é um prazer
conhecê-la outra vez, Ariel. E os boatos de um colapso nervoso?”
Eles caem por cima um do outro, gargalhando. Ela acena em forma
de X na frente do corpo, gesticulando para voltar a falar a sério.

“Posso te contar um segredo?”

“Para mim e para alguns milhares de pessoas assistindo.”

Ele pisca para a câmera.

“Aquilo eram minhas irmãs usando minhas perucas antigas.”

Scott cobre a própria boca.

“Eu sabia! Eu tinha certeza!”

“Desculpem sobre as pistas falsas”, diz Ariel.

“Então, onde você estava?”

Ariel respira fundo e se recompõe.

“Eu estava encontrando a minha voz. E me apaixonando, na real.”

“Trevor?”

Os olhos dela se arregalam, alarmados.

“Deus do céu, não. Trevor e eu não éramos a pessoa certa um para o


outro. Pensei que já tinha deixado isso claro, mas o interesse dele
era se aproximar do meu pai, não de mim.”

“Se eu estivesse mais chocado agora, implodiria.” Scott fica


brincalhão e bate no joelho de Ariel. “Conta pra gente. Quem é esse
amor misterioso?”

“Bom, ele meio que apareceu quando eu menos esperava.” Ela volta
a olhar diretamente para a câmera. “Eric, eu quero te contar todas
as coisas que não falei quando tive a oportunidade. Se você ainda
sente o mesmo que eu, me encontre no meio do caminho. Estarei na
nossa ponte até o sol se por. Espero te ver por lá.”

[fim da transmissão ao vivo]


CAPÍTULO TRINTA

ERIC
31 de julho
Dumbo, Nova York

Eric nunca imaginou que guiaria seus pais numa visita a


uma casa de shows, mas ali estava ele. Seu pai, tão
antiquado que vestira terno e gravata para uma casa de
rock, e sua mãe, vestida para a missa, fizeram ruídos
adequados de admiração para tudo. Eles apertaram as
mãos de todo mundo, desde Willie, o gerente, até Jake, o
atendente do banheiro.
Eles se sentaram no lounge vip no mezanino do
Aurora’s Grocery. Vanessa estava repassando seu set
enquanto Odelia fazia pequenas alterações. A mãe dele
se preocupou com a quantidade de doce que ele estava
comendo e ficava passando os dedos pelas laterais
curtinhas do cabelo de Eric.
Durante as duas últimas semanas, ele teve que
continuar aparando o cabelo para dar um formato a ele.
Deixara a barba crescer, o que os fãs pareceram gostar,
embora desse uma sensação estranha.
A noite em que todos fizeram as tatuagens foi quando
Eric ligou para o pai. Depois de uma conversa
desajeitada e cheia de lágrimas, eles concordaram que
os pais visitariam Nova York e iriam a um dos shows dele.
Eles haviam fugido depois de seu show em Boston para
poder passar um dia juntos, e ele aprendeu mais sobre
os pais durante um único brunch do que descobrira na
vida toda. Dois anos depois de Eric partir, quando Pedro,
seu abuelo, faleceu, sua mãe ameaçara se divorciar do
pai dele se eles não começassem a fazer terapia de
casal.
Para duas pessoas da geração deles, sequer admitir
seus problemas parecia radical. Eric tinha suas reservas
quanto a terapia, mas vira as mudanças em seus pais.
Eles andavam de mãos dadas. Conversavam um com o
outro. Eles se ouviam. Eric mal os reconhecia e, embora
aquela velha mágoa ainda estivesse lá, enterrada em
seus músculos, ele descobriria um jeito de seguir
adiante. Queria seguir adiante.
Agora ele segurava a mão de sua mãe como se, caso
contrário, ela fosse desaparecer assim que ele desse as
costas.
— Quando você vai nos visitar? — perguntou o pai
dele.
Eric chacoalhou a cabeça. Ainda não estava neste
ponto. Talvez nunca chegasse a este ponto e sabia que
não precisava chegar. Mas também não estava
preparado para fechar essa porta.
— Acho que tem muito que preciso fazer aqui antes.
Quando o set do ensaio terminou, Oz correu até eles,
Max e as outras seguindo logo atrás.
— Qual é o problema? — perguntou Eric.
— Vídeo! — ofegou Oz, agarrando os próprios joelhos
para se apoiar. — Melody... Digo, Ariel. Mensagem. Olha!
Eric olhou para as amigas ao seu redor.
— O que ele tá dizendo?
Max agitou os braços como se estivesse tentando
organizar o tráfego aéreo.
— Ariel está te esperando, e você tem que ir até ela!
Um calor ardeu no centro do peito de Eric ao ouvir os
nomes dela. Melody. Ariel. Do que é que eles estavam
falando?
— Não, eu...
Foi quando Oz o derrubou. Os dois rolaram para o
tapete obsoleto da área vip. Eric ficou sem fôlego quando
Max saltou em cima deles em seguida. Ele xingou e
tentou empurrá-los.
— Isso é pro seu próprio bem — disse Grimsby.
— É pelo amor verdadeiro — acrescentou Carly,
ajoelhando e segurando o celular na frente dele. Eric
xingou e esperneou, mas não tinha para onde olhar, a
não ser para a tela.
Eric não sabia bem o que estava vendo até ler as
legendas. Ariel tinha feito uma transmissão. Como
Melody. Como ela mesma. A própria, em pessoa. Ele
sentia que não conseguia entender o que ela estava
dizendo porque olhava fixamente para o lindo rosto dela,
e fazia tanto tempo... Quando esperneou tanto que ficou
difícil ser contido, eles o soltaram. Ele tomou o telefone.
Seu dedo tremia quando apertou o replay e, dessa vez,
ele entendeu.
Ela estava esperando por ele, no meio do caminho.
— Quem é Ariel? — perguntou a sra. Reyes,
escandalizada pela cena ao seu redor.
Max, Grimsby, Carly e Oz se lançaram numa
reencenação comicamente humilhante de seu
sofrimento. E seu amor.
— Você vai? — perguntou o pai dele. — Você sabe o
que o seu avô diria.
Uma sensação que lembrava uma prensa espremeu
seu coração. Eric sabia. Mas seria a coisa certa a se fazer
para ambos? Quinze dias, seis horas, dez minutos e um
punhado de segundos haviam passado, e ele não parara
de sentir saudade dela. De desejá-la. De pensar nela.
— Que horas são?
— Você tem trinta minutos! — berrou Oz. — Eu dirijo.
Pela primeira vez, a vida inteira de Eric estava sob o
mesmo teto. Exceto por ela. Ariel estava faltando. Seja lá
o que eles precisavam dizer, precisavam fazê-lo cara a
cara. Ele tinha que ir até onde ela estava. Pelo que raios
estava esperando?
Ele correu, subindo os degraus num ritmo perigoso.
Saiu em disparada pela porta lateral, tropeçando até a
calçada. A fila de fãs esperando para entrar na casa já
dava a volta no quarteirão. Seu coração alçou voo. E
então ele percebeu que estava de pé exatamente no
mesmo lugar onde os dois colidiram pela primeira vez.
Onde ele havia lido a gargantilha dela. Melody. Onde ele
voltara para se encontrar com ela para uma noite que
mudaria sua vida.
Oz encostou o carro, dirigindo o utilitário surrado de
Eric, já que a Fera teve que ficar em Jersey.
— Nós também vamos — disse Max.
— Tenho certeza de que isso é uma infração de trânsito
— gritou Eric enquanto Grimsby se espremia no banco da
frente com ele. Seus pais, sua banda, estavam todos ali.
Ele olhou para baixo e viu uma mensagem de texto de
Vanessa: É melhor você estar arrastando seu traseiro
para a ponte ou eu juro que nunca mais vou te aturar.
Ele respondeu com um emoji rude e Oz saiu cantando
pneu.
Eric nunca havia tido enjoo por movimento antes
daquele instante. Uma combinação de nervosismo e do
medo de já ser tarde demais quase o fez vomitar pela
janela. Isso ou as terríveis habilidades de direção de Oz
ficavam mais perceptíveis num veículo menor.
— Segure-se quem puder! — gritou Oz.
O carro inteiro gritou.
E então parou no mesmo instante.
O tráfego estava travado em todas as direções.
— Só pode ser brincadeira, caralho — disse Eric,
batendo no apoio de cabeça.
Sua mãe o censurou, mas a voz dela foi afogada pelo
soar das buzinas. Eric olhou para a direita e sorriu.
Estavam bem na frente da pizzaria Laucella.
— Vou mandar uma mensagem de texto para ela e
avisar que você está a caminho — disse Carly.
— O número dela foi desconectado — admitiu Eric, sem
muita culpa. — Talvez eu tenha cedido e ligado para ela
na semana passada, quando cheguei num ponto mais
baixo ainda. Agora me deixem sair.
— Essa não é a hora certa para uma pizza! — gritou
Grimsby enquanto ele entrava correndo no restaurante.
— Eu vou conseguir chegar. Vou, sim. — Eric abriu seu
antigo sorriso. Finalmente se sentia como si mesmo outra
vez. Sabia, mesmo que tivesse se perdido um pouco no
caminho, que o universo estava a seu lado.
Eric Reyes conquistaria sua garota de volta.
CAPÍTULO TRINTA E UM

ARIEL
31 de julho
Ponte do Brooklyn, Nova York

Ele não vem, pensou Ariel.


O sol se punha no último dia de julho. Uma brisa morna
beijava seu rosto molhado. As irmãs insistiram em vir
junto, usando como desculpa o fato de que elas também
nunca tinham atravessado a Ponte do Brooklyn a pé. Isso
a pouparia de ter que reviver os detalhes mais tarde,
mas agora elas eram testemunhas de sua decepção e
sua humilhação.
O que ela esperava?
Ariel pegou o pior hábito de seu pai — magoar as
pessoas que confiavam nela.
Aquilo ia parar com ela. Tinha que parar.
Assistiu ao sol derreter no horizonte, aos azuis
profundos da noite tomando o lugar dele no céu.
Olhou ao redor. Havia gente demais. Alguns olhavam
na direção dela, tentando identificar de onde conheciam
seu rosto familiar, e então continuavam caminhando.
Outros que a reconheciam mesmo tiravam fotos e riam
com os amigos. Cansada daquilo, ela começou a marchar
de volta para suas irmãs. Elas tinham um conjunto
completo de sorrisos compassivos já à espera.
— Talvez você não devesse ter feito uma grande
comoção na noite do último show dele? — arriscou
Marilou.
Thea e Alicia beliscaram o braço dela, e as irmãs
irromperam num coro de desculpas.
— Viu, é por isso que eu não curto romance — disse
Stella, cruzando os braços.
Elektra gargalhou.
— Sei. Eu vi todos os livros que você guarda debaixo da
cama.
— E — acrescentou Sophia — eu sinto que isso podia
ter sido um e-mail.
Ariel sabia que as irmãs só estavam tentando fazê-la
rir. Funcionou. Lançou um último olhar para o horizonte:
uma nesga de dourado piscou para ela, o deus sonolento
do universo. Esse pensamento lhe deu saudade de Oz.
Foi quando ela ouviu. Um grito alto e desesperado que
atravessou o pior do tráfego na ponte.
— espera!
Ariel deu meia-volta. Viu Max, quase dobrada ao meio.
Grimsby, Carly e ele.
Eric estava sem fôlego, mas continuava avançando. Ele
olhou para a caixa de pizza em suas mãos, depois olhou
para ela. Assim que viu o sorriso maroto dele, Ariel quis
correr até lá. Foi preciso todo o seu esforço para esperar,
para ser paciente.
— Minha mãe disse que eu deveria ter trazido flores —
disse ele, abrindo a caixa. — Tenho quase certeza de que
baguncei tudo na corrida para cá.
Ariel olhou dentro da caixa. Uma pizza pequena de
linguiça e abacaxi. Parecia mesmo que ela tinha passado
pela centrífuga, mas Ariel nunca vira nada mais perfeito:
Eric Reyes segurando o coração dela em suas mãos. Ele
fechou a caixa e a entregou para Grimsby. Ariel acenou
para suas amigas e então encarou Eric.
— Me desculpe — disse ela.
Ao mesmo tempo, ele disse:
— Eu te amo.
Eles tentaram de novo.
— Eu que te amo — disse ela.
Ao mesmo tempo, ele disse:
— Me desculpe.
— Por favor, me beija — disse Ariel, ofegando, as mãos
já o procurando. — Por favor. Por favor.
Enquanto o dia dava seu último suspiro, desvanecendo
na noite, Eric envolveu Ariel em seus braços. Ele tocou o
nariz dela com o seu, roçou seus lábios sobre os dela,
depois recuou para olhar mais uma vez para ela. E então
a beijou como se fosse a primeira vez, devagar e com
ternura. Ariel sentiu o sal das próprias lágrimas de
felicidade e aquela doçura familiar que era puro Eric. Por
um instante, teve consciência de que os amigos deles, a
família dela, estavam assoviando e aplaudindo. Que
desconhecidos se juntavam a eles, e a cidade era ruidosa
e alegre. Mas então havia apenas Eric e ela, e a pressão
dos lábios dele contra os seus.
Ela se afastou primeiro e passou os dedos pelo cabelo
curto dele.
— Elas realmente cobraram a aposta?
— Eu fui voluntariamente, na verdade. É uma longa
história.
— Espera — disse Ariel, lembrando-se da segunda
parte do trato. — Eu quero ver a tatuagem.
Eric abriu um sorriso malicioso.
— Mais tarde.
Ariel mordeu o lábio. Ele definitivamente tinha sua
atenção.
Ele pousou a testa contra a dela. Beijou a ponta de seu
nariz. Seus lábios. Provou dela com tanta delicadeza,
com um amor tão gentil. Ariel poderia beijar Eric até o sol
nascer de novo. Quando ele se afastou, encaixou a mão
no rosto dela com suavidade.
— Eu não aceitei o contrato, Ariel.
Seu nome na boca de Eric era desconcertante e, de
alguma forma, perfeito.
— Eu sei — murmurou ela. — Tem tanta coisa que eu
preciso te contar. Eu...
Eles se viraram ao mesmo tempo. As irmãs de Ariel e a
banda estavam assistindo, todos com sorrisos tontos na
cara. Grimsby mordiscava uma fatia de pizza.
— Não liguem pra gente — disse Max, deliciada e,
também, com uma pontinha de irritação. — Só temos um
show para fazer.
— É verdade! — disse Ariel, dando um tapa na própria
testa.
— É um show esgotado — disse Eric, dando uma
piscadela para as irmãs Del Mar. — Mas eu conheço um
cara. E tenho uma surpresa.
— Que surpresa? — perguntou Ariel.
Eric dispersou o momento sentimental com um sorriso.
— Sabe como eu perdi aquela aposta?
Eles atravessaram a Ponte do Brooklyn de volta
correndo, duas estrelas ardendo lado a lado.

Ariel del Mar e suas seis irmãs entraram correndo no


Aurora’s Grocery e lotaram o mezanino vip enquanto Le
Poisson Bleu terminava sua última música. As pessoas
encaravam e cochichavam atrás das mãos em concha.
Outros tiravam fotos não tão discretas das garotas
tomando a seção inteira, junto de Oz, as mulheres Garcia
e os pais de Eric. Ariel olhava por cima do ombro e
acenava, o que usualmente incentivava aqueles
envergonhados demais para tirar fotos espontâneas sem
sua permissão.
Ariel del Mar não esconderia mais quem era. A peruca
vermelha em breve ficaria de lado, uma de muitas
lembranças queridas de seu passado, em novas
prateleiras. Isto é, assim que ela descobrisse onde queria
morar. Mas não se preocuparia com isso agora. Descobriu
que levar as coisas aos poucos estava funcionando.
Marilou passou o braço pelo de Ariel e ambas saíram
de seus assentos e se debruçaram no parapeito.
— Como é a sensação de ser uma garota normal? Bem,
uma normal vip, creio eu.
Ariel não ia responder àquilo. Segundos depois, as
luzes se apagaram. A pista lá embaixo gritou, e ela
sentiu até os ossos. Amava aquele som, aquela energia
de um grupo de pessoas compartilhando um momento,
uma música, uma noite.
As outras se juntaram a elas no parapeito para
enxergar melhor a Desafortunados. Uma luz azul no
centro lançava um brilho familiar sobre a banda.
Eric se aproximou do microfone, a mão no pescoço do
violão. Deu aquela risada baixa, grave e murmurante que
Ariel já havia sentido uma vez e tornou a sentir agora,
como se os lábios dele estivessem na garganta dela.
— É bom estar em casa.
Ele deixou os gritos e os aplausos terminarem, e Max
pisou no pedal do bumbo da bateria.
— Vamos fazer as coisas um pouco diferentes desta
vez — disse Eric, os olhos voltados para o mezanino. Ele
falava com o público como se todos eles fossem amigos,
participando da mesma história, que era o que o tornava
tão bom, tão bom naquela parte dos shows. — Eu quero
que todos vocês saibam que, bem no comecinho desta
turnê, eu fiz uma aposta. Ela envolvia uma garota. —
Houve o inevitável Aaaaawwwn da audiência. — A
mulher mais incrível, que caiu na minha vida como um
cometa. Então minhas amigas, muito gentis, muito
maduras, apostaram comigo que se eu “Eric Reyesasse”
as coisas entre nós, eu teria que tocar uma música que
odiava, de um grupo pop que eu subestimava.
Ele deixou o murmúrio levemente confuso passar pela
multidão. Grimsby tocou uma nota no baixo e Eric
continuou:
— Alerta de spoiler, eu Eric Reyesei a situação.
Enquanto todos riam, Marilou se virou para Ariel e
quase gritou:
— Ele te Eric Reyesou?
Ariel sorriu em resposta.
— Duas vezes.
— Durante as últimas duas semanas — prosseguiu Eric
—, andei ensaiando essa música, porque sou um homem
de palavra. Eu ouvi e toquei essa música várias e várias
vezes. Quanto mais tocava, mais eu ouvia a garota. Eu
pensei que sabia o que eram as Sete Sereias. Pensei que
era fácil rejeitar algo sem ver o que existia no coração da
coisa. E descobri que, no coração de uma música
chamada “Goodbye Goodbye”, existe a história de uma
pessoa abrindo mão de algo com graça e com amor. É
uma música sobre términos e começos. E eu quero pedir
desculpas para nossas amigas das Sete Sereias por não
ter visto isso antes. — Ele apontou para as irmãs lá em
cima, e a multidão ficou absolutamente insana. — Essa
música, na verdade, é um estouro, como dizem por aí.
Ariel sentiu as irmãs se apoiarem nela. Sentiu seu peito
subir e descer com emoção quando Carly começou a
tocar as notas da introdução na guitarra e Max entrou
com a bateria, Grimsby completando a melodia.
— Eu vou precisar de uma ajudinha — disse Eric, e,
dessa vez, Ariel sabia que ele falava com ela enquanto
estendia a mão. — Ariel, mi vida, mi amor. Preciso de
você.
Cabeças se ergueram na direção dela e as irmãs a
empurraram na direção de Willie, o gerente da casa. Ela
já conhecia o caminho, pegando a escada de serviço
para os bastidores.
Eric começou a música sem ela, e Ariel acolheu a
rodada de aplausos quando se juntou a ele, de pé junto
ao microfone dele, compartilhando o espaço dele. Não
sabia que era possível sentir tanta saudade de alguém
quando a pessoa estava a apenas centímetros de
distância.
Quando cantaram “Goodbye Goodbye”, Ariel mudou o
tom em que costumava cantar. Seu contralto se fundia
com a voz de Eric de um jeito que transformava a música
que ela havia composto, de um jeito que não se dera
conta de que precisava tanto. Não era melhor, apenas
diferente.
Eric tinha razão. Era uma música sobre abrir mão,
sobre recomeçar. Sobre ser um pouco diferente a cada
dia. Ela tinha as palavras esse tempo todo; só precisava
se perder um pouco para encontrar sua voz.
Quando a multidão cantou tão alto que assumiu o
controle, Ariel olhou para Eric. O crescendo da música
encheu cada centímetro da casa enquanto Ariel o puxava
para perto — seu passado, presente e futuro se
emaranhando num beijo que parecia um novo início.
AGRADECIMENTOS

A pequena sereia faz parte da história de minha origem.


É difícil me lembrar de uma época em que eu não
soubesse todas as letras ou tivesse as melodias em
minha mente. Quando eu tinha 3 anos, minha avó, que
imigrou para a cidade de Nova York antes de eu nascer,
mandou-me a fita vhs de presente. Na época, eu ainda
morava no Equador com meus pais e assisti àquela fita
várias e várias vezes. Assim que ela terminava, meu pai
ou minha mãe a rebobinava (gerações mais recentes
jamais conhecerão a agonia de esperar todas as fitas
reiniciarem) e nós assistíamos outra vez. Eu dizia para as
pessoas que foi assim que aprendi a falar inglês e,
quando foi minha vez de me juntar à família em Nova
York — eu estava no primeiro ano —, já tinha um bom
domínio do idioma.
Eu considero essa história parte do meu dna criativo, e
foi um privilégio escrever uma carta de amor à minha
princesa preferida da Disney.
Obrigada a Jocelyn Davis, por se arriscar comigo; a
Elanna Heda; por todo o seu trabalho neste projeto; e à
família Hyperion Avenue e Disney Books. Este livro não
seria possível sem todos vocês.
A Stephanie Singleton, por me ajudar a dar vida a Ariel
del Mar e Eric Reyes com essa linda arte da capa.
A Suzie Townsend, Sophia Ramos e à melhor equipe do
mundo — New Leaf Literary & Media.
Todo escritor precisa de uma bolha de apoio. A minha é
composta por Dhonielle Clayton, Adriana Medina, Sarah
E. Younger e Natalie Horbachevsky, que sempre são
minhas líderes de torcida quando sou uma pestinha e
que me alimentam quando estou na névoa do prazo final.
Eu amo todas vocês.
Às minhas parceiras de escrita no prazo final, Adriana
Herrera e Alexis Daria. Vocês duas me inspiram a ser
uma escritora melhor, a criar melhor. Não tenho como
lhes agradecer o bastante por nossas corridas diárias de
escrita. À minha comunidade de romance, por manter
minhas rodas girando e minha lista de leituras futuras
comprida — Tracey Livesay, Sarah MacLean, Priscilla
Oliveras, Mia Sosa, Sabrina Sol, Diana Muñoz Stewart e
mais.
Um agradecimento muito especial para Ben
Hutcherson, da banda Khemmis; Nick Ghanbarian, da
banda Bayside; e Danny Córdova (é, é meu maninho), da
The Dreamland Fire, por responderem a todas as minhas
dúvidas sobre músicos e bandas em turnê. Espero que
todo mundo que leia este livro vá ouvir as músicas deles
o mais rápido possível!
E por último, mas não menos importante, obrigada à
minha família: vocês aparecem em menções o bastante
para saberem de quem estou falando. Sou especialmente
grata aos meus tios Marcos Medina e Robert Laucella, por
me deixarem esboçar e editar este livro na casa deles,
em Porto Rico. Eu limpei tudo, juro.

Amor,
Zoraida
Conheça os outros títulos da série

MEANT TO BE
Conheça a mais nova comédia romântica de Julie
Murphy — autora best-seller do The New York
Times que já virou sensação na Netflix —,
inspirada em seu conto de fadas favorito!
Cindy ama sapatos. Seja com um laço no lugar certo,
seja um salto chique de madeira, é com eles que ela
consegue se expressar. Mas ser uma mulher plus size
obcecada por moda não é fácil. Ela nunca encontra
roupas de marca que funcionem em seu corpo — embora
um par de sapatos especial sempre lhe sirva
perfeitamente.
Com um recém-obtido diploma em design de moda,
mas nenhum emprego à vista, Cindy se muda de volta
para a casa da madrasta, Erica Tremaine, a produtora-
executiva do maior reality show de namoro do mundo, o
Antes da meia-noite. Quando uma das participantes da
nova edição desiste de participar do programa no último
minuto, Cindy é jogada sob os holofotes. Exibir sua
coleção matadora de sapatos em rede nacional parece
uma ótima maneira de impulsionar a carreira. E, já que
ela está ali, por que não aproveitar alguns encontros
luxuosos com um solteiro cobiçado?
No entanto, ser a primeira e única participante gorda
em Antes da meia-noite a transforma numa sensação
viral — e num ícone do movimento body positive — da
noite para o dia. E o mais inacreditável? Ela pode
realmente se ver apaixonada por esse Príncipe
Encantado. Para chegar até o final, além de encarar os
fãs, os haters e uma casa cheia de outras participantes
em quem ela não tem certeza se pode confiar, Cindy terá
de dar um salto no escuro e torcer para que seus saltos
— e seu coração — não se quebrem no processo.
Esta adaptação do conto de fadas que Julie Murphy
claramente ama é uma história encantadora sobre amor-
próprio e sobre acreditar no final feliz que cada um de
nós merece.
Nesta apaixonante releitura contemporânea de A
Bela e a Fera, a autora best-seller Jasmine Guillory
mostra mais uma vez sua maestria ao reimaginar,
para uma nova geração, um clássico tão antigo
quanto o tempo…!

Quando começou sua carreira no mercado editorial,


Isabelle tinha expectativas enormes. Anos depois,
sobrecarregada e mal remunerada, Izzy continua sendo
uma das poucas funcionárias negras em sua editora e
com frequência se divide entre se manifestar ou sufocar
sua voz. Todavia, quando por acaso escuta a reclamação
de sua chefe sobre Beau Towers, um autor notório, mas
uma pessoa horrível e que não cumpriu o prazo de seu
livro, ela enxerga a oportunidade de finalmente
conseguir reconhecimento.
Mas ela rapidamente descobre que a missão não será
tão fácil. Apesar da reserva e do cinismo de Beau, ela
precisa que ele cumpra com o prometido e, com o
encorajamento de Izzy, o trabalho passa a fluir. Não
demora até que ambos descubram que têm mais em
comum do que esperavam e, conforme o projeto se
encaminha para o fim, Izzy e Beau percebem que pode
ter surgido algo inesperado entre eles.

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