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Os rituais religiosos Pankararu e a influência afro-brasileira

Valmir dos Santos Batalha1

Resumo Este pretende analisar a tradição dos rituais do povo Pankararu


e a influência cultural e religiosa africana, dentro de uma perspectiva
etnográfica. A etnia Pankararu guarda uma cultura própria cercada de
mitos e magia: declaram-se católicos, porém, não abandonaram as
práticas religiosas dos seus ancestrais, como por exemplo, o Menino do
Rancho, a Corrida do Imbu, a Mesa de Cura, e o Toré. Com o passar dos
anos, a cultura agregou valores e práticas religiosas de matriz africana,
causando intolerância por parte da sociedade urbana que os rotulam
como “macumbeiros”. A fé Pankararu está centralizada na força
Encantada representada pelo Praiá.

Palavras-chave: Pankararu; intolerância religiosa; rituais.

1
Doutorando em Ciências Sociais (Antropologia) pelo programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências Sociais PUC SP. Professor na Faculdade de Filosofia e Teologia
Paulo VI – Mogi das Cruzes. Contato: [email protected] Orientadora: Dra.
Dorothea Voegelli Passetti.
Introdução

O objetivo deste é apresentar uma reflexão sobre a identidade


cultural e religiosa do povo Pankararu que, através das práticas
religiosas procuram superar os preconceitos voltados para esse povo ao
longo da história. Com o passar o tempo, os índios Pankararu, para
defender a etnicidade através da articulação política e social
objetivaram desenvolver relações sociais não só no meio indígena, mas
também na sociedade como um todo.

O povo Pankararu teve suas terras tradicionais demarcadas em

1987. A aldeia mãe está localizada às margens do rio São Francisco no

município de Jatobá no Estado de Pernambuco, a 453 km da capital

(Recife).

À primeira vista, os moradores parecem fazer parte de uma


comunidade rural do sertão pernambucano, que vive da agricultura
familiar e da criação de pequenos rebanhos de cabras e bois.

O descompasso histórico e social existente na sociedade não


afugentou os índios de lutar pelos seus direitos e nem de abandonar
suas práticas religiosas que remetem aos seus ancestrais. Essas
práticas despertam na sociedade “civilizada” preconceitos, pois não ela
vê as práticas ritualísticas como sendo sagradas e sim, como algo
voltado para o mal. Nessa perspectiva o preconceito se faz presente
entre os que não são índios.

O preconceito em si traz crenças sem antes ter feito uma reflexão


do direito do outro, agindo de forma que o diferente seja obrigado a
pensar e agir como “o que eu penso, ou o meu grupo”. Essa visão
transmite culturalmente “valores” culturais e crenças de um grupo
social que geralmente professa outra fé ou ideologia. A não aceitação de
outros grupos ou povos revela a intolerância cultural, religiosa e social,
causando um fechamento para com os valores dos outros. A não
abertura para os valores do diferente revela uma visão ingênua
transmitida ao longo do tempo e justificada por crenças que buscam
diminuir o que não está dentro do “meu pensar”.

O pensamento reflexivo procura desmascarar os preconceitos de


qualquer natureza e revelar a falsidade que busca desqualificar o povo
ou o grupo que pensa diferente, ou que discorda do padrão tido como
verdadeiro.

A pluralidade cultural e religiosa se faz presente em todas as


sociedades, sejam elas com uma longa história, ou um passado recente.
As posições diferentes e até mesmo divergentes são ricas para uma
longa reflexão a respeito da sociedade, no entanto, os valores são
respeitados. As diferenças entre os povos são princípios de liberdade
que oferecem as condições de tolerância de uma convivência pacifica,
não se colocando como superior ou inferior. Culturalmente não há
civilização superior ou inferior, o que existe é um povo que vive no seu
meio e que é capaz de desenvolver mecanismos para a sua
sobrevivência, fazendo uso do que está ao seu alcance.

Metodologia

Para atingir os objetivos expressos no presente artigo, optei por


compreender os hábitos culturais e religiosos dos índios Pankararu, que
residem na Aldeia do Brejo dos Padres, município de Jatobá, no Estado
de Pernambuco, distante da capital Recife a 453 km. A aldeia faz parte
de um sistema religioso condicionado à realidade dos sujeitos sociais.

A metodologia utilizada foi a revisão literária e etnográfica. No


trabalho etnográfico foram realizadas abordagens de identificação do
espaço geográfico, como por exemplo, os espaços sagrados (Terreiros)
onde são praticados os rituais religiosos. A segunda abordagem foi com
um olhar empírico, ao participar dos rituais do Toré, Corrida do Imbu, o
Menino do rancho, a Penitência e a Mesa de cura.
Pensar a humanidade como organização social é perceber que ela
é fruto da solidariedade e de conflitos sociais, políticos, econômicos e
religiosos. Os povos se organizam em sociedade porque dependem da
cooperação uns dos outros, mas mesmo nesta organização social estão
insatisfeitos: é na eterna busca da satisfação e das necessidades que as
transformações ocorrem no cotidiano mediante as necessidades da
sociedade em movimento, que busca descortinar o desconhecido. Nesta
busca constante está a “divindade”, que aos poucos vai sendo revelada
de diversas formas na história de um povo que busca compreender a
sua força e magia através dos ritos e ritmos próprios de cada
seguimento religioso.

Com a chegada dos europeus, as terras mais tarde se


convencionaram a serem chamadas de Brasil, mas já eram habitadas:
seus habitantes tinham seus próprios costumes, divindades e rituais O
primeiro contato foi amistoso conforme relata Pero Vaz de Caminha na
carta ao rei em 1500:

[...] E chegaríamos a este ancoragem às dez horas, pouco mais ou


menos. E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou
oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os
capitães das naus a esta nau do capitão-mor. E ali falaram. E o capitão
mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele
começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três,
de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já estavam dezoito
ou vinte.

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas


vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos
rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os depuseram. [...] E um deles lhe
arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma
copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outros lhe
deram um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem
parecer de aljôfar, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volve às naus por ser tarde e não poder haver
deles mais fala, por causa do mar (CAMINHA. 1500, p.02).

No encontro do europeu com o povo que habitava as terras de


Santa Cruz houve um estranhamento de cultura, língua, alimentação,
vestuário, crenças religiosas entre tantos outros comportamentos. O
europeu via nos nativos, comportamentos selvagens “inferiores” à sua
cultura. Neste cenário, os “civilizados” começaram a produzir
narrativas exóticas, não só do povo, mas também do novo mundo.

Os relatos procuravam exaltar a cultura européia e diminuir ao


máximo os nativos, que segundo alguns, praticavam a antropofagia Os
diários que relatavam tais fatos tinham como objetivos, diminuir os
índios e elevar a cultura européia, levando o leitor a fazer reflexão da
sua superioridade cultural. O que o europeu não sabia, é que o ser
inferior, não o faz realmente inferior. Por outro lado, vemos que não há
consenso entre os viajantes quanto aos hábitos de índios antropófagos:
essa ideia faz parte do imaginário dos viajantes, que a todo custo,
procuravam elevar sua “superioridade”.

[...] Não vejo nada de bárbaro ou selvagens no que dizem


daqueles povos e, na verdade, cada qual considera bárbaro o
que não pratica em sua terra. [...] Não me parece excessivo
julgar bárbaros atos de crueldade (o canibalismo), mas que o fato
de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos
nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que
o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre
suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a
cães e porcos, a pretextos de devoção e fé, como não somente o
lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e
isso em verdade e bem mais grave do que assar comer um
homem previamente executado [...] podemos, portanto, qualificar
esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à
inteligência, mas nunca se compararmos a nós mesmos, que os
excedemos em toda sorte de barbaridades (MONTAIGNE, 1978,
p.108).

Com a chegada do europeu, chegam também o racismo e as novas


manifestações religiosas que logo são introduzidas entre os índios: aos
poucos elas vão sendo absolvidas e os indígenas começam a abraçar
uma nova fé imposta pelos colonizadores. Com o passar dos anos, a
igreja católica organiza diversos aldeamentos com a finalidade de
facilitar a catequização dos bárbaros e de oferecer os sacramentos (na
visão da época tinha o objetivo de torná-los gente No entanto, os índios
não abandonaram as suas práticas religiosas por completo; práticas
essas, que resistiram à imposição cristã e ainda hoje são praticadas e
outros valores foram incorporados, entre eles, os de matriz africana.

A humanidade, nas suas diversas formas de pensar, faz uso de


várias expressões simbólicas que levam ao diálogo com a divindade na
qual acredita. No diálogo, busca respostas para seus questionamentos,
utilizando-se de elementos da natureza para cultuar o que acredita. Os
Pankararu utilizam-se da linguagem, de gestos corporais e de diversos
outros recursos da natureza para perpetuar a crença nos Encantados,
que atrelados ao catolicismo popular, sobrevivem a diversas
interferências culturais e religiosas.

O homem integrado à natureza constrói sua realidade entre os


seus que formam uma realidade como sociedade. Para o sociólogo
DURKHEIM (1858 -1917), “as representações religiosas são
representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos
são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos
reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou se refazer certos
estados mentais desses grupos” (DURKHEIM, 2008, p.38).

Conhecer as práticas religiosas das culturas é compreender a


forma organizacional do grupo: conforme a crença de cada sociedade
se compreende a forma de se organizar. As práticas religiosas nas
culturas se diferem ao longo da história. O certo é que o homem, desde
os primórdios, cultua as divindades, seja para a cura dos males, ou para
apaziguar os problemas presentes entre os homens. A religião religa a
humanidade às divindades, fazendo com que o crente aproxime-se do
deus que acredita e é através da fé que formam uma comunidade e nela
estabelecem normas morais.

Hoje é praticamente impossível pensar em um Brasil religioso, sem


considerarem-se as diversas manifestações religiosas com seus
diversos cultos e crenças que se misturam na sociedade. O Brasil é
portador de uma religiosidade plural, oferecendo garantias de
manifestações aos diversos cultos.

Em um passado recente não era assim: muitos cultos, de modo


especial os de matriz africana, eram proibidos e quando realizados,
eram escondidos. Os Pankararu por diversas vezes foram impedidos de
realizar seus rituais sagrados. Mesmo assim, os rituais eram realizados
no meio das matas escondidos da polícia.

Resultados e discussão

Ao longo do estudo etnográfico entre os Pankararu percebeu-se


que a sociedade humana está plasmada na natureza e que toda
sociedade é integrada a outras, sejam elas rurais ou urbanas, e aos
poucos vai absolvendo seus valores. Com o passar dos anos, as
mudanças culturais fazem parte de uma cultura regional. As mudanças
ocorrem em um passado histórico não observado: o tempo ao qual foram
integradas à cultura local. O processo cultural é evolutivo e dinâmico e
acontece com as trocas das culturas locais que posteriormente tornam-
se regional entre os povos.

A cultura entre os diversos povos é a soma das práticas que aos


poucos formam um sistema integrado no todo: as partes se somam
formando uma sociedade em movimento dinâmico voltando o olhar não
só para si, mas também para o cosmos e para as outras formas de vida
não humanas. O homem faz do seu conhecimento um instrumento capaz
de adquirir outros conhecimentos e de beneficiar-lhe de alguma forma.

Os rituais do povo Pankararu são complexos, não permitindo um


raciocínio lógico e evolutivo, porém é nos rituais que a sociedade se
fortalece de forma econômica, social, política e espiritual.

Neste contexto, compreender a trajetória de luta dos indígenas é


compreender a riqueza ritualística e a resistência por tornarem vivos os
costumes dos antepassados que lutaram pelo direito, não só da terra,
mas também de serem reconhecidos como indígenas e de
permanecerem nas terras tradicionais, mesmo incorporando outros
valores. Isso nos levou à reflexão sobre a conjuntura de expropriação,
do preconceito, dos conflitos e desigualdades que os cercam. Essa
comunidade luta por melhores condições de vida, pelo direito à saúde,
educação, moradia, saneamento básico, água potável e segurança, que
muitas vezes lhe faltam.

A intolerância religiosa sofrida pelos indígenas é uma forma de


racismo velado, que muitas vezes não é verbalizado, porém é praticado
de modo especial no campo religioso.

Os Pankararu atravessam os tempos com seus rituais tribais, que


praticados nas aldeias, guardam seus segredos ritualísticos mantendo-
se coesos na fé, nos Encantados e em seu líder maior, o mestre Guia,
que anualmente finaliza a Corrida do Imbu, que geralmente termina na
madrugada do domingo de páscoa, ou seja: o mestre Guia é o líder dos
demais Encantados que formam um batalhão, com seu comandante e
comandados, que se reúnem em seus terreiros manifestando seus
poderes não só religiosos, mas também sociais e políticos.

A pobreza, sendo um estado limitador da humanidade, também faz


parte do povo indígena Pankararu: com a vasta ideia de prosperidade no
meio evangélico alguns índios abandonam as práticas realizadas nas
aldeias para abraçarem uma nova fé, rejeitando toda uma tradição e
mergulhando na ideia mágica da prosperidade.

A pobreza, aliada à ignorância, entre outros fatores sociais são


determinantes no domínio e alienação do homem. Vemos que, apesar de
todas as transformações ocorridas nas sociedades e na humanidade, o
homem continua a buscar a divindade de forma diversa. A religião serve
para fazer a ligação do homem com o sagrado, não se esquecendo de
que ela é agasalhadora do desespero do homem, que busca nela um
conforto não só espiritual, mas também materialmente.

Podemos dizer que as religiões são boas, o que as tornam ruins


são as intenções dos seus líderes: muitas vezes fazem dos templos um
grande centro empresarial, tendo Jesus como sendo o empresário
chefe. Se o líder religioso atrai um grande número de fiéis seguidores, o
seu poder ecumênico cresce (Deus abençoa), aumentando assim, seu
patrimônio e para aumentar mais ainda o seu poder financeiro faz
pregações discriminadoras em relação aos que não pertencem ao seu
seguimento religioso e quando o fiel não consegue o que almeja logo se
sugere a resposta: “você não tem fé”.

No meio deste discurso de prosperidade, muitos fiéis abandonam


a crença no seguimento religioso e começam a fazer uma verdadeira
peregrinação em outras denominações e por último abandonam tudo,
com a possibilidade de se tornarem descrentes.

Cabe salientar que o povo em questão (Pankararu), contribui para


a construção de uma sociedade de pertencimento cultural, tendo nos
seus rituais e crenças uma identidade étnica, que aos poucos vencem
barreiras e se projetam nas tidas sociedades “civilizadas” sem perderem
suas raízes e conservando seus segredos mitológicos que em si não são
para serem compreendidos e sim, para serem vividos e respeitados.

A religião exerce funções religiosas, sociais, políticas e


econômicas. É uma atividade executada por todos os povos em todos os
tempos e é realizada através das manifestações coletivas e individuais.
É através das celebrações que a comunidade estabelece relações e
normas a serem vivenciadas. É nos cultos que as divindades são
caracterizadas pelas crenças tecendo relações entre os humanos e o
sagrado.

Na resistência cultural permanece viva a história de um povo, que


luta contra seus opressores e toda forma de discriminação e
preconceito para com os seguidores de uma fé que é perpetuada ao
longo da história.

Os elementos religiosos presentes nas manifestações religiosas


dos Pankararu conversam com os elementos das religiões de matiz
africana, seja pela forma de ser ou pelos elementos simbólicos que são
apresentados. Se entre os Pankararu temos a materialização dos
Encantados nos homens que vestem rompante ou farda que escondem a
verdadeira identidade, o mesmo acontece com as divindades de outras
denominações religiosas cujos deuses também não se revelam na sua
totalidade, porém não estão ausentes dos seus seguidores.

Referência bibliográfica.

CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha. p. 02.


Disponível em: <http://www.nead.unama.br>. Acessado em: 10 jun.2015.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios I. São Paulo: Abril cultura. 1978.

MURA, Claudia. Todo Mistério tem dono! Ritual, política e tradição de


conhecimento entre os Pankararu. Tese (doutorado em antropologia
Social) – UFRJ, PPGAS, Museus Nacional. Rio de Janeiro, 2012.
Orientação de João Pacheco de Oliveira.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema


totêmico na Austrália. 3.ed. são Paulo: Paulus, 2008.

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