Quanto Mais Rezo, Mais Aparece Assombração

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“QUANTO MAIS REZO, MAIS APARECE ASSOMBRAÇÃO”: UM ESTUDO DOS


CONTOS POPULARES DE CALDAS, MINAS GERAIS, SOB A ÓTICA DO MEDO E
DA RELIGIOSIDADE.

MARCELO ELIAS BERNARDES1

RESUMO: Este artigo propõe o estudo da cultura popular vivenciada em Caldas, município
localizado no sul de Minas Gerais, a partir de uma prática antiga e presente até os dias de
hoje. As religiosidades híbridas e os mecanismos do medo aliados aos códigos morais de
comportamento exercem diversas influências na vida cotidiana da população, fornecendo
elementos para a compreensão do universo mental das pessoas, das experiências coletivas, do
dinamismo e da perpetuação de práticas tradicionais da cultura popular. Assim, sob os
preceitos teóricos da história cultural, o objetivo principal é realizar a análise das narrativas de
um grupo de “contadores” de histórias com a intenção de discutir o medo, a religiosidade e a
permanência da oralidade na reprodução do modo de vida do grupo.
PALAVRAS-CHAVE: Contos de Assombração. Medo. Religiosidade. Oralidade.

INTRODUÇÃO
O local onde este estudo foi conduzido é Caldas, pequeno município do sul de Minas
Gerais. Seu passado remonta ao século XVIII, em uma região onde habitavam os índios
kaiapós2, que em face do contato com portugueses e africanos geraram as raízes étnicas e
culturais da referida cidade.
O tema que procuramos desenvolver ao longo deste artigo é um estudo das representações da
população em cima de uma prática cultural cristalizada no seu cotidiano e que de certa forma
exerce influência no meio social: os contos de assombração.
O nome deste artigo provém de um antigo ditado popular muito lembrado na cidade,
que apesar de ser citado em diversas ocasiões do cotidiano da população, está atrelado à ideia
da religiosidade presente nos contos de assombração.
Esses contos possuem um lugar especial no imaginário coletivo e na memória seletiva da
população, em que várias histórias e personagens vivem no cotidiano, ultrapassando muitas
vezes as barreiras do tempo e do espaço. Isso pode ser observado ao se analisar diferentes
mitos, de tempos distintos, que convivem juntos no mesmo espaço no mundo das

1
Graduando em Ciências Sociais/UNESP Marília, pesquisa financiada pela modalidade Iniciação Científica
através da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.
2
PIMENTA, Reynaldo. O povoamento do planalto da Pedra Branca. São Paulo: Rumograf, 1998. Obra
póstuma.
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representações.
A forte presença da religião católica e sua tradição no município é um elemento a ser
considerado para entender todo esse emaranhado que envolve as histórias de assombração e
sua profunda ligação com a forte religiosidade.
Ao estudar a cultura popular, enxergamos novos horizontes que se mostram fundamentais
para a compreensão de uma determinada sociedade, que tende a moldar-se segundo as
práticas sociais exercidas. A vida individual ou de um grupo pode sofrer impactos
significantes em sua estrutura (Le Goff, 1989).
O que se procura discutir neste trabalho é o complexo cultural que envolve os contos
de assombração caminhando ainda pela diversidade de seus usos, como a vigília e a punição,
sempre imersos em uma mistura de ritos que são instrumentos presentes na identidade
coletiva da população.
Assim, não nos prendemos ao antigo debate ciência versus misticismo e como as
práticas mágicas se declinaram diante da racionalidade e do ceticismo. Tampouco buscamos
encontrar veracidade nos contos de fantasmas e nas teorias de explicação sobre o
sobrenatural. Longe disso. O foco do trabalho é apenas analisar e refletir sobre esses “causos”
enquanto instrumentos capazes de nortear a estrutura da própria sociedade e como eles podem
nos auxiliar no entendimento de diversos pontos da teia da cultura brasileira.
Desta forma, procuramos seguir os preceitos de uma história “vista de baixo”, que
busca caminhos que legitimam a perspectiva dada à esfera popular. Propomos um estudo em
cultura popular que caminhe no sentido de coletar narrativas, dando voz a sujeitos pouco
lembrados pela narrativa escrita.

Religiosidade, oralidade e hibridismo cultural


Ao longo do tempo, a vivência do sobrenatural no imaginário só foi possível devido à
transmissão oral. Diante disso, é necessário ressaltar um ponto específico, que será trabalhado
mais detalhadamente à frente: a mitificação de alguns personagens dentro do inconsciente
coletivo, conceito esse adaptado por Philippe Áries (1990), para demonstrar que algumas
estruturas mentais que permeiam as sociedades são passadas despercebidas por suas
populações, mas afetam seu modo de agir sem que elas tenham plena consciência.
Ao se trabalhar com a cultura popular quando esta é absolutamente oral, é necessária
muita cautela porque não existe precisão3. No contexto desta pesquisa, é impossível apontar
exatidão sobre os contos em diversos aspectos. Um determinado “causo” circula por um

3 DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de
Janeiro: Graal, 1986, 2ª edição.
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número incontável de pessoas, e todo esse processo que envolve recepção e transmissão tende
a modificar o conto. Essa dinâmica pode ser encaixada na proposta de Carlo Ginzburg em seu
ensaio “O queijo e os vermes (2006)”, em que ele discute a existência de uma visão original
de cultura popular que não está ligada a uma imposição cultural vinda das classes superiores e
nem a uma cultura original que resistiu ao processo de massificação. A intenção do autor
segue o caminho de que as ideias circulam pelas classes sociais, onde tal circulação representa
uma forma de reciprocidade entre dois níveis que absorvem elementos vindos de fora. Nesse
ponto, Ginzburg foge da proposta elaborada por Bahktin, que se preocupa mais com a
oposição das classes do que com a permeabilidade cultural.
A circulação dos contos permite, em um primeiro momento, analisar sua recriação a
partir da oralidade, produzindo assim novas narrativas, que por vezes podem ser bastante
diferente umas das outras. Nesse contexto, elas podem ganhar novos sujeitos e significados,
podendo assim existir diversões versões sobre uma mesma história, que pode ser modificada
até mesmo em seu espaço e tempo histórico, como definido por Vansina (1982) “A origem
das tradições pode, portanto, repousar num testemunho ocular, num boato ou numa criação
baseada em diferentes textos orais existentes, combinados e adaptados para criar uma nova
mensagem” (p. 159).
A partir dessa discussão sobre a circularidade cultural, considerando a priori a
imprecisão em se analisar o imaginário coletivo, é possível entender a cultura como algo em
constante transformação (Arantes, 1998).
Essa prática é bastante difundida no município, sobretudo na parte rural, onde a
preservação das tradições é mais acentuada pelo fato de seus moradores serem mais fechados
e apegados à religião.
A religiosidade é uma problemática ligada ao tema, dentro da compreensão das
representações coletivas, por entendermos que as assombrações são enxergadas como atores
de uma dimensão ligada ao profano. Essa dualidade cristã faz com que as pessoas se apeguem
mais à religião, vendo nela a proteção contra as forças do mal.
A recorrência à religião não ocorre apenas na procura de um padre. É possível
observar a aproximação de católicos aos terreiros de Umbanda, ou a outras práticas que
possuem traços da religiosidade africana, o que nos permite elucidar a existência de um
hibridismo cultural.
O hibridismo cultural é visível no dia a dia da sociedade, quando elementos de
diversas religiões se mesclam e convivem, produzindo novas concepções de mundo e até
mesmo cosmogonias (Souza, 1986, p.153-156). Demônios, encostos, espíritos da natureza,
almas penadas e exus são exemplos da combinação cultural presente no imaginário coletivo.
55

V.T.C. ainda conta sobre um espírito de uma mata no bairro rural da Santana4:
Aí tevi um dia que nóis tava vindo e, era di noite não é? Távamos voltanu, tinha ido
na Santana e estava voltando. Aí eu peguei e falei (...), tava eu e meu primo, peguei
e falei, que tem um pedaço de matu lá, qui si passar, tem um vento lá, que não tem
quem seguri. É uma curva qui tem, qui tem para baixo da casa lá, aí é que nem eu
falei para ele, que acho muito estranho porque, nosso patrão não inventou nada, aí
quando foi um pouco para frente, começou a fazer tipo, tipo uns ranger.

Em face disso, observam-se algumas formas de combater as forças do mal tais como a
fixação de cruzes nas portas ou até cabeças de vaca colocadas nas entradas das fazendas, bem
como a realização de novenas. Essas percepções acompanham a população por várias
gerações e parecem servir de precaução para futuros acontecimentos. A constância desses
fatos, ao longo do tempo, permitiu enraizar os contos como algo próprio e permanente, tão
presente no cotidiano que pode ressignificar a vida de várias famílias.
A vida, individual ou em grupo, pode sofrer impactos significativos em sua estrutura e
modificá-la. A cultura é o meio responsável pelas mudanças sociais, como mediadora das
diversas práticas adotadas. Por meio de códigos e símbolos intrínsecos nas mentalidades, é
possível notar alterações de comportamento (Le Goff, 1989). Essas ressignificações que se
dão na vida das pessoas podem ser observadas, como nos conta a entrevistada sobre a
separação de uma família5:
(…) aqui na cidade, morava pertu da Tonha, uma casinha bem véinha. Ela tinha os
filhos dela e o marido era lobisomem e ela contava, já que vinha muito na minha
sogra na cidade (…) aí diz qui ela não sabia e eli saía, mas ela num sabia. Aí diz que
ele dormiu (…) aí diz que ela viu aqueles fiapos de pano na (…) nos dentes dele e
que (…) o tipo (…) não sei bem o jeito que era isso (…) aquelas saias de baieta, não
sei o jeito que era isso, diferente o tecido e diz que viu, meu deus do céu! E ela (…),
ele pulou para pegar a criança, que é filhu deli mesmo e ela subiu numa árvore di
medo. Aí diz que eli subia e arranhava. Olhava e via aquelis fiapos de pano nos
dentis deli, daqueli bicho ali, cachorro, mas no outro dia viu que era o marido dela.
Ela separô, nunca mais quis saber deli. Eu lembro até o dia que a véinha morreu ali,
perto da Tonha.

A partir da análise desta entrevista, é perceptível a grande transformação pela qual


passaram as pessoas presentes no conto e como suas vidas ressignificaram.
Consequentemente, tal bloqueio em relação ao divórcio, em décadas anteriores exerceu um
papel mais forte e acaba por dar mais ênfase à atitude tomada pela esposa ao abandonar o
marido, um lobisomem segundo sua interpretação, o que reforça a ideia da ação das
representações no mundo e como o fantástico está conectado com o real dentro do imaginário
popular.
A sustentabilidade da crença no fantástico se deve à memória coletiva que traz em si

4 Entrevista realizada com V.T.C no dia 20/03/2012. Natural de Caldas, atualmente mora na parte urbana do
município.
5
Entrevista realizada com S.R.B no dia 31/07/2012. Natural de Caldas, atualmente mora na parte urbana do
município.
56

“causos” muito antigos e que vem se renovando a cada geração pela tradição oral (Vansina,
1982, p.158). A memória representa a conservação do passado e das tradições locais de uma
população, permitindo que sua história não se perca com o tempo.
Assim, nos é permitido identificar a sobrevivência do passado e assim perceber a
transparência das representações de mundo implícitas e cristalizadas através da construção da
tradição, sempre adjetivando a memória como seletiva e fluída, onde o indivíduo
inconscientemente a altera, a partir de sua percepção do presente (Halbwachs, 1990; Bosi,
1994).
O forte cunho religioso da população, muitas vezes firmado em uma cultura oral,
norteia-nos na busca de sua identidade, tomando como base seu vínculo com o passado (Bosi,
2003). Assim, Thompson (1992) e Halbwachs (1990) mostram que a evocação da memória
social é fundamental nesse processo, em que essa identidade provém da oralidade e cada
lembrança de um sujeito social representa uma parte da teia da memória coletiva.
Portanto, compreendemos a religiosidade como um sistema cultural (Geertz,1989) que
trata essa temática como norteadora da vida das populações, a partir dos símbolos religiosos
que “... oferecem uma garantia cósmica não apenas para sua capacidade de compreender o
mundo, mas também para que, compreendendo-o, deem precisão a seu sentimento”(p. 120). A
religião ainda ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica já estabelecida e imaginada,
projetando imagens desta ordem no plano das experiências (Geertz, 1989).
A população de Caldas encontra na religião todas as explicações para os seres
fantásticos, de modo que não aceitam outras argumentações. Partindo desse pressuposto,
afirmamos que as pessoas não toleram uma ameaça às suas concepções de mundo (Geertz,
1989), logo elas se fecham em suas representações, o que nos permite afirmar que a religião é
um produto cultural. Portanto, trabalhar com o conceito de religiosidade enquanto cultura
popular e permeada por elementos de diversas doutrinas exige um trabalho bastante apurado
(Thompson, 1998).

Medo
O medo é o grande fator de cristalização dessa prática, que unido à questão da
religiosidade nos auxilia a compreender toda a configuração desse sistema cultural. Os contos
carregam em si a incerteza e o medo, que se tornam maiores diante do desconhecido
(Delumeau, 2009). A força dessas narrativas cresce à medida que se ouve a história de alguém
que supostamente passou por uma situação real. O medo é um agente que possibilita que se
crie uma ideia de veracidade em cima dos contos de assombração por aqueles que os ouvem,
fazendo com que a transmissão ocorra de forma mais efetiva.
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Ao trabalhar com tal conceito, foi necessário utilizar “História do medo no ocidente
(2009)”, ensaio de Jean Delumeau que aponta como vários símbolos e mitos permaneceram
dentro do universo mental do ocidente desde a Idade Média e a Idade Moderna. O medo, nos
mostra o historiador “... inerente à nossa natureza, é uma defesa essencial, uma garantia contra
os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à
morte.” (2009, p. 23-24). Portanto, no contexto dessa pesquisa, normalmente os meios de se
defender das assombrações são fugir ou rezar. Os indivíduos relatam que tiveram tais reações
diante de algo que viram ou ouviram. Porém, diante das diversas possibilidades de reações,
considerando toda a subjetividade do homem, existem algumas que fogem às comuns, como
relata V. T.C, sobre um conto que ouviu de sua avó6.
Passadu poucu tempo depois, eles tavam rezano e começô a bater uma lata na sala,
que iria por milhos para os porcos. Aí bateu nela (...) minha avó era corajosa dimais
e ela foi lá, pegô a lata, levou, pois em cima du fugão i falou assim ‘bati agora’, não
bateu. E voltou a pegar de novo, e ele (tio) tava chorano de medo já. Aí elis pegaram
e voltaram a rezar. Quando vê, e o (...) a sela do cavalo ficava lá também
dependurada. Não si sabi o que aconteceu, qui algo montou na sela e começou a
galopar nela. Aí minha vó, di lá du quartu (...) e começou a galopar na sela do
cavalo. Aí minha vó pegou, de lá do quartu (...) ela falou ‘não to fazendo nada pa
ninguém e que... quero qui tiver de fazer alguma coisa que venha e faça aqui’. I ela
foi lá e pegou a sela do cavalo, levoô e pois im cima du fugão tamém.

A partir desse relato, podemos compreender um dos fatores em que possivelmente


pode-se aparecer uma assombração: estar agindo de forma contrária aos ensinamentos
cristãos. Assim sendo, é perceptível que o cristão tenha uma vigília em relação aos seus atos e
que a possível aparição poderia ser uma forma de punição divina ou pode ainda representar
um afastamento de Deus. Percebemos isso a partir da frase “não estou fazendo nada para
ninguém...”. Tal fato nos leva a refletir que segundo Vinícius, sua avó levava uma vida aos
moldes cristãos e que era inconcebível e incoerente que uma assombração atormentasse ela e
a sua família.
Não podemos ignorar a presença da moral, implícita nos contos de assombração.
Assim, articulamos a proposta deste artigo com o conceito de senso comum usado por Geertz
(1997). Podemos considerar, portanto, que os desvios morais no cotidiano da população
caldense é que fazem as assombrações ganharem sentido e viverem na materialidade. Elas
ganham uma configuração de agentes de uma moral cristã, como veremos no relato a seguir,
em que a assombração não atirava objetos no telhado do quarto de uma senhora aleijada, ao
passo que todo o resto da casa era alvejado por eles7.
Então tinha minha tia qui era aleijada, e (...), mais no quartu dela não caía nada. Aí

6
Entrevista realizada com V. T. S. no dia 20/03/2012. Natural de Caldas, atualmente mora na parte urbana do
município.
7 Entrevista realizada com S.R.B. no dia 31/07/2012. Natural de Caldas, atualmente mora na parte urbana do
município.
58
diz que lá vinha e alguma coisa jogava as coisas, tipo sabugu, lá do chiqueiro, caía
nos outrus, na casa, mais nu quartu dela nunca caiu. E aí eles morriam de medo,
porque também os galhos das árvores vinham nas ‘cacunda’ deles. Foi feiú. A casa
era muitu grandi, aquelas antigas, então nessa casa num tinha quem parassi (...) Só
não caía no quartu dessa tia minha que era aleijada e ficava na cama.

O medo está firmemente presente e diante da possibilidade de se rezar, e observa-se


como ele é um instrumento que se liga à religiosidade, vendo nela uma forma de combate à
assombração. Contudo, ainda, o medo se faz presente não apenas à frente de uma situação
entendida pela população como de risco de morte e insegurança, que são os fantasmas ou
monstros. Ele se apresenta também no momento de transmissão dos contos,
independentemente se diretamente relacionado à pessoa que transmitirá ou não.
Logo, podemos entender o medo de duas formas intrinsecamente ligadas. Temos, em
um primeiro momento, o medo como inato a qualquer animal, relacionado ao seu instinto de
sobrevivência diante de algo que possa lhe provocar um sentimento de incerteza e
insegurança, e que certamente aumenta diante de algo desconhecido8 tais como assombrações,
lobisomens ou outras fantasias do universo mental.
Em outro ponto, entende-se o medo como uma prática social, por se tratar de um
elemento cultural promovido historicamente através dos séculos pela religião cristã e que
ainda é apropriado no município de Caldas. É possível refletir, partindo desse pressuposto,
que o medo, enquanto forma cultural, ativa a ideia de defesa que tem em seu interior a noção
de sobrevivência inata ao homem (Delumeau, 2009).
Atrelado ao medo, devemos destacar a importância da figura do diabo dentro desse
complexo cultural. Sua figura é um elemento fundamental para entender o processo de
construção do imaginário coletivo. A simbologia que gravita em torno de sua imagem e
coloca-o como um dos responsáveis pelo aparecimento de muitos desses fantasmas e
monstros. O entrevistado residente do distrito de São Pedro de Caldas diz ter visto algumas
coisas e ouvido muitas outras, e fala que essas aparições são provenientes do próprio
demônio9 “... essas coisas nunca são, essas coisas... assombração... nunca são por parti de
Deus né? Essas coisa são do diabo mesmo...”.
Essa figura controversa criada pela Igreja na Idade Média como mecanismo de
controle social e obediência religiosa possibilitou o aumento do seu poder simbólico.
Assinalada a partir do século XIV, trata-se de um período de mudanças na Europa, e a
concretização de sua iconografia não é um simples fato isolado em um campo de apenas
mutações religiosas (Muchembled, 2001).

8 DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
9 Entrevista realizada com W.C.G. no dia 19/03/2012. Natural de Caldas, atualmente mora no distrito de São
Pedro de Caldas.
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O diabo não desaparece com os pesados golpes da razão e da ciência e sobreviveu à


Revolução Francesa e a construção do homem moderno, sendo que a sua imagem continuou a
assombrar o imaginário ocidental e encontrou na Igreja um refúgio importante para as críticas
iluministas e racionais. Ele sobreviveu aos séculos, sempre se adaptando ao tempo e às
diferentes culturas. Podemos considerar que ainda hoje ele caminha na mentalidade das
pessoas, que o imaginam com os chifres e a cor vermelha, mas bem distante do seu auge em
termos de importância nos séculos XVI e XVII. E esse mito cristão da época que os homens
não tinham opção de religião, em que se perseguiam os hereges e queimavam as bruxas, tem
maior espaço no universo mental de culturas fortemente cristãs, como Caldas, onde a
iconografia do diabo se altera de pessoa para pessoa, permanecendo seus traços básicos e a
crença de sua ligação com os fatos negativos que possivelmente podem vir a acontecer na
vida das pessoas. Essa é uma mentalidade antiga que podemos observar no Brasil desde os
tempos coloniais, como mostra Laura de Mello e Souza (1986) em sua obra “O diabo e a terra
de Santa Cruz”10:
(...) se preparavam os inacianos para celebrar as primeiras missas “e tomar posse, de
parte de Deus, de gente que ele tantos mil anos tinha em seu poder”, Satanás fez
sentir sua força. O dia estava tranquilo, claro, bonançoso, mas quando consertando o
altar, os padres começaram os preparativos para a missa que se realizaria no dia
seguinte, não pode sofrer o desaventurado e ordenando uma tempestade de
relâmpagos, trovões, vento e chuva, parece que visivelmente andavam os
demônios... ( p. 68-69)

O historiador Robert Muchembled (2001) diz que:


... nos países dominados pela religião católica, em que se revaloriza o mito maléfico
banalizando-o, integrando-o em um vasto imaginário lúdico trazido pela literatura
popular, a publicidade, os filmes, as histórias em quadrinhos. (p. 288).

Podemos encaixar o município de Caldas dentro desse contexto, mas nos prender a
essa análise faz com que sejamos superficiais devido à forte presença dessas forças profanas
no universo mental da população, percebidas por meio dos contos de assombração. Nesse
sentido, podemos concluir que essa permanência na mentalidade das pessoas ultrapassa o
limite dos meios de comunicação e entretenimento.
A tradição oral possibilita que o diabo seja dinâmico, se transmute em diversos
momentos e acabe por se adaptar ao espaço, sendo gradativamente mais valorizado sem
qualquer tipo de banalização devido ao mecanismo do medo e da religiosidade. Contar
“causos” reafirma a existência do maligno, o que impede que a sua figura abandone o
imaginário coletivo e seja cada vez mais perpetuado dentro da cultura do município.
O escuro tem uma representação significativa dentro do imaginário coletivo. Podemos

10 SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras. São Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
60

entender que o homem teme aquilo que não conhece e não vê, e a noite entra nesse contexto
como um fator importante porque incita um sentimento de insegurança.
Segundo Delumeau (2009), a escuridão representa um dos mais antigos medos do ser
humano, desde quando os primeiros homens se tornavam presas fáceis de outros animais.
Esses medos se perpetuaram e sensibilizaram a humanidade a temer as armadilhas da noite.
No contexto desta pesquisa, o escuro pode ser analisado como um perigo subjetivo,
proveniente da imaginação dos indivíduos. Exatamente por representar um perigo, ele
promove grande inquietação, até mesmo nos adultos. Na verdade, o medo é capaz de
transformar o escuro em trevas onde habitam monstros, demônios e almas penadas.
Mesmo diante do crescimento do ceticismo e da racionalidade, as trevas ainda têm seu
lugar privilegiado no universo mental ocidental. Em Caldas, as pessoas muitas vezes
relacionam barulhos, principalmente quando estão sozinhas, ao mundo sobrenatural. Isso faz
com que se produzam novos contos que ganham complexidade à medida que circulam pela
cidade.

Considerações Finais
A cultura é um elemento que, segundo Arantes (1998), encontra-se em constante
transformação. Analisando essa maleabilidade, propondo um diálogo entre ela e o objeto de
estudo dessa pesquisa e considerando ainda o avanço de outras formas de cultura, entendemos
que a tradição de contar “causos” de assombração no município passa por um processo de
desuso entre os mais jovens, mas não ameaçam a existência dessa prática no marco temporal
da pesquisa.
Em face disso, apontamos alguns elementos como instrumentos ativos nesse processo
que rivalizam com os contos na dimensão do entretenimento tais como a televisão a cabo, os
vídeo games e a internet, acessíveis nesta última década e que ocupam um lugar central no
cotidiano desses jovens. Ainda, ao tomarmos essa prática como um desdobramento da
religiosidade, é necessário elucidar a racionalização da vida e a consequente descrença na
legitimidade da religião, que promove vários golpes na estrutura dos contos.
Portanto, o mundo onde foi construída essa tradição é ligado a um tempo mítico
atemporal, que está a todo momento em conexão com o mundo social, onde os seres
fantásticos tinham espaço garantido e eram legitimados pela religião. Contudo, com o avanço
do tempo histórico, o paradigma da centralidade religiosa na vida social é substituído pelo
pensamento moderno e na contemporaneidade emerge uma nova demarcação de valores
promovidos pela tecnologia e pelo consumo.
Nessa perspectiva, os contos de assombração e o pensamento mágico são
61

emblemáticos à medida que demarcam uma permanência de elementos da mentalidade


religiosa tradicional nos dias de hoje. Assim, esse declínio do fantástico, enquanto real no
imaginário coletivo, sofre impactos diretos em sua configuração na esfera social, de onde se
extrai a religiosidade com seus códigos morais de comportamento, o que indica um
esvaziamento de sentido diante do fato de que essa tradição também é partilhada até mesmo
por ateus e agnósticos.
O que se pode observar em relação a essa geração é a apropriação dos contos apenas
pela noite e em poucas oportunidades, tais como na quaresma, e isso se deve à ação do medo
enquanto elemento fundamental desse sistema. A própria cultura do medo é transmitida de
geração para geração, e é possível observar em várias oportunidades o prazer em senti-lo a
partir do uso dessas histórias como forma de diversão e revestidas pela religiosidade.
Portanto, concluímos que, tal qual exposto por Janice Theodoro (1992), as culturas são
viventes e não sobreviventes. Mas ainda há que se considerar que existem tentativas de
marginalização desses contos por parte de culturas provenientes de um âmbito maior, ou
procuram descartá-los, como afirmado por Stuart Hall (2003), ou globalizá-los, propondo
então uma combinação de vários elementos.
De todo esse complexo cultural, foi observado que a questão da oralidade foi a que
mais sofreu os impactos de uma possível imposição cultural vinda de cima. Os meios de
comunicação de massa, tais como televisão e internet, vêm ganhando cada vez mais espaço no
cotidiano noturno da população, lembrando que o costume de se contar histórias de
assombração é basicamente realizado à noite.
Percebeu-se ainda que a vivência dessa prática no cotidiano, apesar de ligada à
religião, não se demonstra hoje tão próxima assim, visto que a tradição de se contar histórias
de assombração é partilhada até mesmo por ateus e agnósticos.
Outro ponto observado foi a preservação maior dessa tradição nas partes rurais no
município. Isso se deve à religiosidade mais forte dessas populações, que além de se
mostrarem mais fechadas em suas tradições, pouco tiveram contato com elementos vindos de
fora, como a internet. Para essas comunidades, os contos ainda representam uma grande
forma de diversão, vigília, punição e aviso, ao passo que na cidade essas práticas não possuem
tamanha força, até mesmo porque o medo do sobrenatural não é tão presente quanto na zona
rural.

BERNARDES, Marcelo Elias. “The more I pray, the more ghosts I see”: a study of folk tales
in Caldas, Minas Gerais, from the perspective of fear and religion. Percursos, Marília, v. 1, n.
1, 2015, p. 52-63.
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ABSTRACT: This article proposes the study of popular culture experienced in Caldas, a city
located in southern Minas Gerais, from an ancient practice, but still present to the present day.
The hybrid religiousness and the mechanisms of fear allied to moral codes of behavior exert
various influences in the everyday life of the population by providing elements for
understanding the mental universe of people, of collective experiences, dynamism, and
perpetuation of traditional practices of popular culture. Thus, under the theoretical precepts of
cultural history, the main objective is to perform the analysis of the narratives of a group of
storytellers with the intention of discussing fear, religiousness, and the permanence of oral
reproduction of the way of life of the group.
KEYWORDS: Haunting Tales. Fear. Religiosity. Orality.

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Recebido em: 23.02.2014


Aceito em: 19.03.2014

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