Texto III Etnocentrismo e Relativismo Cultural

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PENSAR A DIFERENÇA CULTURAL

Etnocentrismo
Além da fome, da miséria, das doenças, da desigualdade, um dos graves problemas que
o mundo contemporâneo enfrenta é a intolerância entre os povos e culturas. Por que temos
tanta dificuldade de entender e aceitar o diferente? Uma das explicações consiste na
maneira como nos relacionamos com a nossa própria cultura. Como enxergamos o mundo
e vivemos a vida através da “lente” da cultura de nosso grupo, temos a propensão de
considerar o nosso modo de vida particular como o mais “correto” e “natural”. A maioria
das pessoas tendem, portanto, a considerar sua própria cultura como um dado da natureza,
como algo natural, normal, pois nossos costumes, crenças, hábitos, valores, nos parecem
completamente “racionais” e “normais”. Por conta disso, raramente pensamos sobre a
nossa cultura.... como uma cultura, isto é, uma forma de vida social entre milhares de
outras culturas e formas de vida possíveis. Em outras palavras, os outros são que seriam
diferentes de nós, e não nós diferentes deles.

A dificuldade em encarar a diversidade humana conduz à negação dos valores culturais


alheios e a supervalorização do “grupo do eu”, de nosso grupo cultural. É a esta visão e
atitude que chamamos de etnocentrismo, ou seja,

Uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de
tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual,
pode ser visto como a dificuldade de pensar a diferença; no plano afetivo, como
sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. (ROCHA, 1994, p. 7)

Portanto, o etnocentrismo é a atitude de julgar uma cultura diferente ou aspectos dela


(rituais, crenças, hábitos) com base nas concepções culturais do próprio
observador/julgador. Por exemplo, seria como brasileiros, amantes de churrasco,
praticantes da pecuária em larga escala e de outras atividades econômicas baseado na
criação de gado, tomassem o culto religioso de adoração das vacas pelos camponeses
hindus, que se recusam a matar e comer sua carne, como uma prática absurda, sem
sentido, irracional, equivocada. Enquanto para nós, brasileiros, a vaca é simplesmente um
animal, um mamífero ruminante, e que utilizamos economicamente para saciar a nossa
fome ou para ganhar dinheiro com seus derivados (leite, couro), para os camponeses
hindus a vaca possui um significado social completamente diferente do significado
zoológico e econômico que os brasileiros e demais ocidentais atribuem.

Para os hindus, a vaca é um símbolo religioso porque ela seria a montaria de um dos seus
principais deuses, Shiva. Por isso se trata de um animal sagrado. Cada parte do corpo da
vaca é habitado por outra divindade. Seu próprio pêlo é inviolável. Seus excrementos são
santificados. Nem uma única partícula deve ser jogada fora como impura. Pelo contrário,
a água que a vaca verte deve ser guardada como a melhor das águas bentas – líqüido
destruidor dos pecados, que santifica tudo o que toca, ao passo que nada purifica tanto
quanto o esterco de vaca: mesmo o local mais imundo que tenha recebido estes
excrementos torna-se imediatamente limpo e isento de poluição. Em determinadas
ocasiões, as vacas recebem honras divinas e são tratadas como se fossem divindades reais
e presentes: adornadas com guirlandas, lavam-lhes os pés com água e perfumam-lhes as
partes do corpo.
Aquele que comer, matar, maltratar ou permitir o sacrifício de uma vaca está condenado
a padecer “tantos anos quantos forem os fios de cabelo de seu corpo” e houve tempo em
que a morte de uma vaca era passível de pena capital. Mesmo hoje, aquele que ofender
uma vaca será expulso da comunidade – exceção feita a algumas castas de intocáveis que
podem comer carne de vaca que tenha tido morte natural. Aos que, por imperícia ou
negligência permitam a morte de uma vaca, uma das penitências reservadas consiste em
abandonar a própria casa e passar algum tempo mugindo, sem fazer uso da palavra. É
compreensível, assim, que a simples idéia de sacrificar uma vaca seja evocadora de
emoções fortíssimas, muito distantes e mais “complexas” de tudo o que possamos
imaginar. A exemplo da vaca, outros animais contam com a adoração dos indianos, como
o rato, que é o veículo do deus Ganesh, ou búfalo, que é o meio de transporte do deus.

Um outro exemplo de etnocentrismo seria considerar uma sociedade indígena atrasada ou


inferior por ela não possuir tecnologias que a nossa sociedade, a ocidental moderna,
usufrui. Smartphones, notebooks, tablets são tecnologias que somente fazem sentido em
nosso contexto sociocultural de intensa comunicação e velocidade de informações. Tais
artefatos em sociedades tradicionais, baseadas em outras formas de comunicação e
necessidades sociais, não fariam sentido, pelo menos o sentido que nós atribuímos a esses
artefatos.

Uma história pode nos ajudar a entender melhor esse ponto.

Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias
para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito
generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou
para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes,
fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa,
infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-
se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação.
Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os
lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do
barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava
freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu
relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.

A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente
para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de
uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem
dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio.
O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele
novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por
cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma
função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o
relógio.

Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte
era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na
comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre
evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no
relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de
última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas,
tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e
sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou
e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio.

Neste choque de culturas, os personagens de cada uma delas fizeram, obviamente, a


mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de
objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que seriam principalmente
técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que
causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada um
“traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido
original foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um
julgamento do valor da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”. Tomar
como parâmetro tecnologias e seus usos em nossa formação social e cultura para entender
uma outra sociedade e cultura é um completo equívoco sociológico.

A lógica do etnocentrismo consiste fundamentalmente em isolar uma característica da


própria cultura e elevá-la à condição de definidor de “natureza humana”, parâmetros ao
qual os demais seres humanos deverão se ajustar (ou não), com graus diferenciados de
desconforto. Tal operação se faz sempre de modo a reservar para a cultura classificadora
o lugar mais confortável e superior, pois a característica isolada, considerada universal e
inevitável, está acima de qualquer discussão. Não é assim que fazemos com critérios
como a escrita, a religião monoteísta, a tecnologia, a alimentação, os costumes sexuais,
as regras de higiene e assim por diante?

Nesse sentido, pode haver coisa mais característica de “natureza humana” do que fazer
refeições pela manhã, pelo meio-dia, à tarde e à noite, ou dormir durante a madrugada?
Mas que pensariam disso os índios bolivianos que dormem apenas algumas horas,
levantam-se para comer alguma coisa, voltam a dormir, levantam-se para nova refeição,
dormindo e comendo toda vez que acham necessário? Será mais “natureza humana”
apontar com o dedo “indicador”? Ou esticando os lábios, à maneira de alguns índios
norte-americanos? Trabalhar com afinco para acumular e enriquecer, para “progredir”?
Ou apenas na medida do requisitado, para “manter” tudo como sempre foi?

É preciso esclarecer que o etnocentrismo é fruto do desejo de preservar os valores do


“grupo do eu” a fim de manter suas diferenças em relação aos outros, salvar sua
identidade cultural. A base do etnocentrismo é ideológica, toma como parâmetro o
comportamento, a língua, o gosto alimentar, a religião do “meu grupo” etc.; O
etnocentrismo toma a diferença como critério de julgamento, de modo que o outro passa
a ser considerado: estranho, nojento, ridículo, esquisito, absurdo, engraçado ou
desajeitado. Dito de outro modo, o etnocentrismo tem como pano de fundo a experiência
de um choque cultural:

De um lado, conhecemos um grupo do “eu”, o “nosso” grupo, que come igual,


veste igual, gosta de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo,
acredita nos mesmos deuses, casa igual, mora no mesmo estilo, distribui o
poder da mesma forma, empresta à vida significados em comum e procede, por
muitas maneiras, semelhantemente. Aí, então, de repente, nos deparamos com
um “outro”, o grupo do “diferente” que, às vezes, nem sequer faz as coisas
como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como
possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira,
gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.
(...)
O grupo do “eu” faz, então, da sua visão a única possível ou, mais
discretamente se for o caso, a melhor, a natural, a superior, a certa. O grupo do
“outro”, o grupo do diferente fica, nessa lógica, como sendo engraçado,
absurdo, anormal ou ininteligível (ROCHA,1994, p. 8-9).

Este choque gerador do etnocentrismo nasce, talvez, na constatação das diferenças.


Grosso modo, um mal-entendido sociológico. A diferença é ameaçadora porque fere
nossa própria identidade cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um
caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar?
Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou
tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é
selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!

A violência do etnocentrismo
Podemos dizer que a dificuldade de convivência entre os povos remonta aos primórdios
do homem. A história nos revela em todos os seus períodos exemplos da percepção
negativa de um povo diante de outro. Independente de sua origem, africanos, americanos,
asiáticos ou europeus, esta sempre foi uma atitude comum. Os gregos, por exemplo,
chamavam de bárbaros aos povos que não partilhavam da cultura helênica; os europeus
denominavam os nativos africanos e americanos de selvagens e posteriormente de
primitivos. O povo judeu, a maior vítima da intolerância entre os povos na modernidade,
também designava de gentios outros povos numa referência depreciativa a quem não fazia
parte do grupo dos “eleitos de Deus”.

O etnocentrismo hierarquiza sociedades e pessoas, atribuindo superioridade moral,


intelectual, social, biológica às pessoas de nosso grupo/sociedade/cultura/raça ao passo
que atribui inferioridade moral, intelectual, social, biológica a todos aqueles que não
fazem parte de “nós”, de nosso grupo. Essa visão hierárquica e inferiorizadora do outro
produz distorções, preconceitos, agressividades, equívocos, hostilidades, intolerância e
preconceitos variados, do racismo à xenofobia. A história contemporânea nos revela
inúmeros acontecimentos cruéis que foram motivados por esta impossibilidade de
respeito à diferença. O antropólogo Darcy Ribeiro, em seus estudos sobre os índios, no
final da década de 1960, investigou como estes eram vistos pela população não indígena
da Amazônia brasileira.

A constatação é que os indígenas autênticos nem eram vistos como pessoas dignas, os
demais habitantes da região os viam como “(...) perversos, vingativos, covardes,
traiçoeiros, desconfiados, dissimulados, brigões, violentos, preguiçosos, ladrões,
mendigos, estúpidos, ignorantes, infantis, mal agradecidos, nojentos, cachaceiros,
indecentes, dissolutos, etc”.

Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering,
diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por estes serem
um empecilho ao desenvolvimento econômico e à colonização das regiões do sertão que
eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros
lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada
“civilização ocidental” e as sociedades tribais.
Desse modo, podemos dizer que a visão etnocêntrica do outro pode formular distorções,
ao ponto de se construir imagens preconceituosas, completamente deturpadoras. Essas
visões distorcidas tendem a gerar a supervalorização da própria cultura e a demonização
ou inferiorização da cultura do outro, o que, mais do que simplesmente um “equívoco
intelectual”, um “erro sociológico”, pode conduzir a ações violentas e destrutivas na
medida em que o etnocentrismo ajuda a justificar projetos de dominação de um povo
sobre o outro: a escravização dos povos africanos, a dizimação das populações indígenas
nas Américas, o extermínio dos judeus pela Alemanha nazista, a perseguição e restrição
dos direitos dos homossexuais e de minorias religiosas.

O etnocentrismo está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do


“eu”. Possui, no caso particular da nossa sociedade ocidental, aliados poderosos. Para
uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo se
conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da
riqueza, com a crença num estilo de vida que exclui a diferença. E isso pode ser muito
perigoso e danoso para a vida de milhões de pessoas.

Relativismo
Se é um equívoco perigoso utilizar critérios e valores de uma cultura particular para julgar
outra cultura, como então devemos pensar atos, práticas, crenças de culturas diferentes?
Como estuda-los e explica-los? O conceito de relativismo cultural pode nos ajudar nessa
difícil questão.

A busca da superação do etnocentrismo toma como pressuposto dois fatos, que são a base
do conceito de relativismo: primeiro, a pluralidade humana, a diversidade de modos de
ser e pensar traduzido em culturas e sociedades diferentes; segundo, a ideia de que cada
sociedade humana construiu para si um modo próprio de vida particular, conforme a sua
própria história, meio ambiente, instituições, uma cultura, a qual deve ser compreendida
e explicada a partir dela mesma.

As diferenças entre as sociedades derivam das formas diferentes encontradas ou criadas


socialmente pelo ser humano para se relacionar com a natureza, o mundo a sua volta, e
com a própria vida coletiva, de modo que, por isso, cada cultura possui características que
são especificamente suas e tais peculiaridades tornam cada cultura um universo particular
diferente de outros.

A partir do relativismo, as práticas culturais passaram a ser percebidas como parte de uma
imensa variabilidade, tornando o comportamento humano algo plural, diverso.
Conseqüentemente, existem comportamentos aceitáveis para um grupo humano que são,
não apenas inaceitáveis para outros, como totalmente inconcebíveis.

Considerando a extrema diversidade cultural da humanidade, pode-se


compreender cada grupo humano, seus valores definidos, suas exclusivas
normas de conduta e suas próprias reações psicológicas aos fenômenos do
cotidiano; e também suas convenções relativas ao bem e mal, ao moral e
imoral, ao belo e feio, ao certo e errado, ao justo e injusto etc. (MARCONI e
PRESOTTO, 1985, p. 36).

Dessa constatação, resulta que


(...) os padrões de certo e errado (valores) e dos usos e atividades (costumes)
são relativos à cultura da qual fazem parte. Na sua forma extrema, esse
conceito afirma que cada costume é válido em termos de seu próprio ambiente
cultural (HOEBEL e FROST, 1999, p. 22).

Por exemplo, para nós, ocidentais, são inconcebíveis práticas como o infanticídio,
gerontocídio ou a mutilação genital feminina, mas mesmo que tais ritos nos pareçam
absurdos e cruéis eles possuem significados culturais e razões sociológicas que o
explicam em seu sentido e causas. Da mesma forma, em contrapartida, muitos dos nossos
costumes e comportamentos do ocidente são considerados estranhos, esquisitos ou até
mesmo impraticáveis para outros povos, tais como a forma de conceber a morte, sepultar
os mortos, cumprimentar ou saudar as pessoas, hábitos alimentares.

É falso querer definir que existem sociedades superiores, mais avançadas e complexas do
que outras. Toda cultura é complexa nos seus próprios termos e condições. Se a nossa
divisão do trabalho, conhecimento científico e tipo de tecnologia nos parecem elementos
culturais complexos, o mesmo pode ser dito dos sistemas de parentesco, das cosmologias
religiosas, dos mitos de outras culturas. Que dizer, por exemplo, da “simplicidade”
daquelas sociedades africanas em que os membros são obrigados a se lembrar dos
ancestrais até a quadragésima geração ascendente? Ou, por exemplo ainda, da
“simplicidade” dos Krahó cujas genealogias são pouco profundas, mas em que o
indivíduo sabe enumerar as peculiaridades de temperamento de cada outro, identifica suas
habilidades e “até mesmo reconhece as pegadas de cada habitante da aldeia”? De modo
algum sociedades como essas são sociedades simples.

Cada povo deve ser entendido a partir do seu próprio modo de vida, de seus padrões - por
mais estranhos que possam parecer. O relativismo é um exercício intelectual e ético que
busca, por um lado, um distanciamento moral e cultural em relação à nossa própria
cultura, e, por outro, busca se colocar no lugar do outro para compreendê-lo, quer dizer,
entender o seu ponto de vista sobre o mundo a partir de sua própria visão, da visão da
cultura do nativo. Somente assim, entendendo as próprias bases culturais a partir das quais
determinados indivíduos vivendo em sua sociedade organizam e explicam suas relações
e instituições sociais é que podemos compreender uma cultura diferente da nossa e
explicar os comportamentos adotados nela.

O relativismo cultural é, portanto, uma postura metodológica de conhecimento que nos


ajuda a nos desvencilharmos do etnocentrismo, isto é, de escaparmos de nossa tendência
etnocêntrica diante da diferença cultural. É a postura segundo a qual você procura
relativizar sua maneira de agir, pensar e sentir, e assim se colocar no lugar do outro, pensar
com a “cabeça” dele, com a visão de mundo dele para melhor compreendê-lo e explicar
suas atitudes, valores e comportamentos. “Relativizar” significa que você estabelece uma
espécie de afastamento, distanciamento ou estranhamento diante de seus valores e cultura,
para conseguir compreender a lógica cultural e dos valores do outro, daquele cujo grupo
nós não pertencemos, cuja cultura não compartilhamos nem vivenciamos.

Os limites do Relativismo Cultural e da Tolerância


No entanto, não é nada fácil relativizar, o relativismo é um exercício intelectual difícil,
pois a relativização vai contra as tendências etnocêntricas espontâneas de tomarmos o
nosso pensamento, o pensamento de nosso grupo, como a regra e a medida de todas as
coisas.
Uma das principais dificuldades na análise das culturas é quando nos defrontamos com
práticas e costumes que, de nossa perspectiva, são atos violentos, opressores, torturantes,
cruéis. Se cada cultura, em seus hábitos, valores regras, é válida, isso significa que todos
os comportamentos e costumes culturais devem aceitos e tolerados? Vejamos.

Alguns grupos étnicos do norte da África, realizam a mutilação genital feminina, a


extração do clitóris em meninas de cerca de 12 anos, como um rito de passagem para vida
adulta. Essa extração, que não dá escolha as meninas e que é realizada pelas próprias mães
com facas feita de pedra, é certamente um ato extremamente doloroso. Sua justificativa
para os grupos étnicos que o praticam variam desde de rito de iniciação à vida adulta para
obtenção de direitos de casamento, controle da sexualidade para evitar o prazer feminino
e a “traição” conjugal à padrões de higiene. A mutilação faraônica, praticada na Etiópia,
é conhecida como uma das mais extremas. Nela se extrai quase toda genitália feminina,
resultando na infibulação, que é, após a mutilação, um espécie de costura do que resta da
genitália. As mulheres e meninas mutiladas nesse ritual ficam apenas com um orifício
para urinar, menstruar e mesmo para dar à luz, sendo ao fim do parto novamente
costurada.

Além da dor do ritual, as consequências sobre a saúde das mulheres são enormes, podendo
levar, inclusive, à morte. Primeiro, porque a extração é feita em condições de pouca
assepsia, fora de ambientes hospitalares, e as anestesias são geralmente gelo e casca de
laranja. Segundo, pelo fato de que, com a mudança na estrutura da genitália, durante o
ciclo menstrual, por exemplo, o sangue é retido numa espécie de depressão que se forma
na vagina, aumentando os riscos de infecção. Contudo, apesar de toda dor, da imposição
social e das consequências sobre a saúde e o risco de morte, muitas dessas mulheres
desejam o rito e defendem sua manutenção e direito de passarem pelo rito de mutilação,
inclusive protestando contra tentativas de governos locais de proibi-lo.

O que fazer então? Aceitar e tolerar? Reprovar e intervir? Pois bem, o relativismo cultural
não significa relativismo moral, de aceitar como legítima todas as formas de
comportamento humano. Nem significa que tenhamos de abrir mão de quaisquer valores
tomados como preferíveis de serem ética e juridicamente universalizáveis, tais como o
direito à vida, o direito à integridade física, à dignidade (Direitos Humanos), apesar de
sermos obrigados a reconhecer que o entendimento sobre o que é vida, integridade e
dignidade, direito não são os mesmos para todos, eles variam culturalmente.

O relativismo é uma estratégia metodológica, é um método de conhecimento e de


explicação científica, que nos permitir explicar e compreender os sentidos atribuídos a
determinada prática cultural, o que não significa que por isso tenhamos de aceitar e
concordar com ela. Ou seja, o relativismo serve para entender as razões culturais e
sociológicas da mutilação genital como um ritual sociocultural, ou seja, os significados
que ela possui nas culturas em que é praticada.

Compreender e explicar um comportamento não significa, também, ser neutro em relação


a ele. Nossa neutralidade deve ser no sentido de nossos valores não atrapalharem a análise
e o entendimento do comportamento que estudamos. Somos seres morais, portanto,
mesmo explicando e compreendendo os significados culturais da mutilação genital,
podemos criticar e reprovar moral e politicamente a existência desse rito. E, com isso,
respeitando ao mesmo tempo valores universalizáveis em nossa cultura (Direitos
Humanos) e o relativismo acerca da autonomia moral de toda cultura em relação a suas
práticas e comportamentos, podemos buscar mediações e aprendizagens transculturais
que permitam, através do diálogo, do debate, a transformação de costumes como o da
mutilação e um aprendizado mútuo.

Afinal, nenhuma cultura é intransformável nem está congelada no tempo. As culturas


mudam e podem pensar a si mesmas. Assim como nossa sociedade passou e continua a
passar por mudanças morais em relação à determinadas práticas e valores que já
cultivamos em nossa história, basta pensar na escravização, no racismo, na proibição de
casamentos e adoção entre homossexuais, na proibição da educação ou do voto às
mulheres, no fim das práticas de duelo, outras sociedades e culturas passam e podem fazer
o mesmo. E, nessa tarefa, os conceitos de relativismo cultural e etnocentrismo não são
obstáculos, mas ferramentas essenciais para esse processo de autorreflexão cultural e
diálogo intercultural.

O relativismo nos ajuda a compreender as formas diversas pelas quais cada grupo humano
em sociedade organiza o seu mundo e sua vida social. Mesmo conceitos aparentemente
tão “neutros” e “objetivos” como o tempo podem ser analisado culturalmente a partir das
formas de concepção deste conceito. Por incrível que possa parecer, muitas culturas e
sociedades ao redor do mundo não acharam a perspectiva histórica (nossa maneira de
pensar o tempo) suficientemente interessante para adotá-la. Para elas, o tempo e a sua
passagem não é a cadeia onde se entrelaçam os acontecimentos. Ou seja, possuem muito
pouco sentido no seu entendimento da existência.

Um exemplo pode nos facilitar muito aqui. O antropólogo brasileiro Roberto Da Matta
conviveu com e estudou um grupo de índios do Brasil central chamados Apinayés. Para
um Apinayé, diz ele, a unidade, o fluxo, a continuidade do seu mundo não é fruto de uma
noção de tempo, tipo causa e conseqüência. É, tentando explicar poeticamente, um jogo
de espelhos. Um no céu, outro no chão. O Apinayé concebe a existência de um “presente
anterior” onde o mundo se forma. Uma espécie de “tempo da aurora” universal onde o
homem adquiriu sua existência. Esse tempo se contrapõe, é espelho do “presente atual”
que procura reproduzi-lo.

Tudo o que foi realizado no “presente anterior” é o mesmo que se realiza no “presente
atual”. O passado é um tempo que se reflete no de hoje como um ciclo que
permanentemente oscila entre dois pontos – “presente anterior” e “presente atual” –, que
são como dois momentos fixos. O tempo não é, tal como para nós, um fluxo, uma
linearidade ininterrupta, mas, para um Apinayé, o tempo é sentido, pensado e vivido como
descontinuidade. Houve o tempo da aurora onde se fixou a existência e há o tempo do
agora onde se pratica aquela forma de existir.

Talvez isto possa parecer extremamente complexo, estranho e ininteligível até. E é


mesmo, na medida em que esta concepção de tempo nos exige que relativizemos a nossa.
Muito mais simples seria dizer que o “outro” não sabe o que é o tempo ou que sabe, mas
de maneira errada. Mais fácil, enfim, seria aplicar ao “outro” a nossa concepção de tempo
pura e simplesmente. Porém, com tal gesto etnocêntrico nós não entenderíamos as razões
e os significados do tempo para os Apinayé.

Estes e outros exercícios de sair de si mesmo, de relativizar, foram realizados pela


Antropologia. A cada novo estudo antropológico que se realiza temos como que um
movimento no sentido de procurar conhecer o “outro” na forma como este “outro”
experimenta a vida. Em termos mais simples, o que se quer saber é como os Apinayé, no
caso, pensam o seu mundo, seu tempo, sua existência, e não explicar os Apinayé pelo
nosso mundo, nosso tempo, nossa existência.

O relativismo cultural nos ensina:

1) A compreender que a diferença deve ser tomada como sinônimo de


diversidade e nunca de desigualdade;
2) Não devemos usar os padrões da nossa própria cultura para julgar os padrões
culturais de outro grupo;
3) Perceber que o que caracteriza o ser humano “(...) é sua aptidão praticamente
infinita para inventar modos de vida e formas de organização social extremamente
diversas” (LAPLANTINE, 1994, p. 21).
4) Reconhecer a diversidade das culturas nos ajuda a compreendê-las como são,
não estabelecendo hierarquias de valores culturais. Assim,

Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de posição:
estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua
dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando.
Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos:
estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma
relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma
transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a
verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não
transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores, ou em bem
ou mal, mas vê-la em sua dimensão de riqueza por ser diferença (ROCHA,
1994, p. 20).

TEXTO ADAPTADO PARA FINS EDUCACIONAIS

RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e Comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro.


Ed. PUC-RJ, 2008.
ROCHA, Everardo P. O que é etnocentrismo? São Paulo. Ed. Brasiliense, 1998. NOVAES,
Regina (org). Direitos Humanos: temas e perspectivas. Rio de Janeio. Maud, 2001.
ASSIS, Cássia; NEPOMUCENO, Cristiane. Estudos contemporâneos de cultura: O
desencontro de culturas (aula 15): etnocentrismo e relativismo. Campina Grande: UEPB/UFRN,
2008.

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