Texto III Etnocentrismo e Relativismo Cultural
Texto III Etnocentrismo e Relativismo Cultural
Texto III Etnocentrismo e Relativismo Cultural
Etnocentrismo
Além da fome, da miséria, das doenças, da desigualdade, um dos graves problemas que
o mundo contemporâneo enfrenta é a intolerância entre os povos e culturas. Por que temos
tanta dificuldade de entender e aceitar o diferente? Uma das explicações consiste na
maneira como nos relacionamos com a nossa própria cultura. Como enxergamos o mundo
e vivemos a vida através da “lente” da cultura de nosso grupo, temos a propensão de
considerar o nosso modo de vida particular como o mais “correto” e “natural”. A maioria
das pessoas tendem, portanto, a considerar sua própria cultura como um dado da natureza,
como algo natural, normal, pois nossos costumes, crenças, hábitos, valores, nos parecem
completamente “racionais” e “normais”. Por conta disso, raramente pensamos sobre a
nossa cultura.... como uma cultura, isto é, uma forma de vida social entre milhares de
outras culturas e formas de vida possíveis. Em outras palavras, os outros são que seriam
diferentes de nós, e não nós diferentes deles.
Uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de
tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,
nossos modelos, nossas definições do que é existência. No plano intelectual,
pode ser visto como a dificuldade de pensar a diferença; no plano afetivo, como
sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. (ROCHA, 1994, p. 7)
Para os hindus, a vaca é um símbolo religioso porque ela seria a montaria de um dos seus
principais deuses, Shiva. Por isso se trata de um animal sagrado. Cada parte do corpo da
vaca é habitado por outra divindade. Seu próprio pêlo é inviolável. Seus excrementos são
santificados. Nem uma única partícula deve ser jogada fora como impura. Pelo contrário,
a água que a vaca verte deve ser guardada como a melhor das águas bentas – líqüido
destruidor dos pecados, que santifica tudo o que toca, ao passo que nada purifica tanto
quanto o esterco de vaca: mesmo o local mais imundo que tenha recebido estes
excrementos torna-se imediatamente limpo e isento de poluição. Em determinadas
ocasiões, as vacas recebem honras divinas e são tratadas como se fossem divindades reais
e presentes: adornadas com guirlandas, lavam-lhes os pés com água e perfumam-lhes as
partes do corpo.
Aquele que comer, matar, maltratar ou permitir o sacrifício de uma vaca está condenado
a padecer “tantos anos quantos forem os fios de cabelo de seu corpo” e houve tempo em
que a morte de uma vaca era passível de pena capital. Mesmo hoje, aquele que ofender
uma vaca será expulso da comunidade – exceção feita a algumas castas de intocáveis que
podem comer carne de vaca que tenha tido morte natural. Aos que, por imperícia ou
negligência permitam a morte de uma vaca, uma das penitências reservadas consiste em
abandonar a própria casa e passar algum tempo mugindo, sem fazer uso da palavra. É
compreensível, assim, que a simples idéia de sacrificar uma vaca seja evocadora de
emoções fortíssimas, muito distantes e mais “complexas” de tudo o que possamos
imaginar. A exemplo da vaca, outros animais contam com a adoração dos indianos, como
o rato, que é o veículo do deus Ganesh, ou búfalo, que é o meio de transporte do deus.
Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se preparou durante dias
para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito
generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou
para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes,
fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa,
infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-
se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação.
Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os
lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do
barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava
freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu
relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente
para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de
uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem
dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio.
O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele
novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por
cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma
função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o
relógio.
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte
era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na
comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre
evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no
relógio novo, quinze para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de
última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas,
tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e
sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou
e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio.
Nesse sentido, pode haver coisa mais característica de “natureza humana” do que fazer
refeições pela manhã, pelo meio-dia, à tarde e à noite, ou dormir durante a madrugada?
Mas que pensariam disso os índios bolivianos que dormem apenas algumas horas,
levantam-se para comer alguma coisa, voltam a dormir, levantam-se para nova refeição,
dormindo e comendo toda vez que acham necessário? Será mais “natureza humana”
apontar com o dedo “indicador”? Ou esticando os lábios, à maneira de alguns índios
norte-americanos? Trabalhar com afinco para acumular e enriquecer, para “progredir”?
Ou apenas na medida do requisitado, para “manter” tudo como sempre foi?
A violência do etnocentrismo
Podemos dizer que a dificuldade de convivência entre os povos remonta aos primórdios
do homem. A história nos revela em todos os seus períodos exemplos da percepção
negativa de um povo diante de outro. Independente de sua origem, africanos, americanos,
asiáticos ou europeus, esta sempre foi uma atitude comum. Os gregos, por exemplo,
chamavam de bárbaros aos povos que não partilhavam da cultura helênica; os europeus
denominavam os nativos africanos e americanos de selvagens e posteriormente de
primitivos. O povo judeu, a maior vítima da intolerância entre os povos na modernidade,
também designava de gentios outros povos numa referência depreciativa a quem não fazia
parte do grupo dos “eleitos de Deus”.
A constatação é que os indígenas autênticos nem eram vistos como pessoas dignas, os
demais habitantes da região os viam como “(...) perversos, vingativos, covardes,
traiçoeiros, desconfiados, dissimulados, brigões, violentos, preguiçosos, ladrões,
mendigos, estúpidos, ignorantes, infantis, mal agradecidos, nojentos, cachaceiros,
indecentes, dissolutos, etc”.
Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering,
diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por estes serem
um empecilho ao desenvolvimento econômico e à colonização das regiões do sertão que
eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em vários outros
lugares, a lógica do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre a chamada
“civilização ocidental” e as sociedades tribais.
Desse modo, podemos dizer que a visão etnocêntrica do outro pode formular distorções,
ao ponto de se construir imagens preconceituosas, completamente deturpadoras. Essas
visões distorcidas tendem a gerar a supervalorização da própria cultura e a demonização
ou inferiorização da cultura do outro, o que, mais do que simplesmente um “equívoco
intelectual”, um “erro sociológico”, pode conduzir a ações violentas e destrutivas na
medida em que o etnocentrismo ajuda a justificar projetos de dominação de um povo
sobre o outro: a escravização dos povos africanos, a dizimação das populações indígenas
nas Américas, o extermínio dos judeus pela Alemanha nazista, a perseguição e restrição
dos direitos dos homossexuais e de minorias religiosas.
Relativismo
Se é um equívoco perigoso utilizar critérios e valores de uma cultura particular para julgar
outra cultura, como então devemos pensar atos, práticas, crenças de culturas diferentes?
Como estuda-los e explica-los? O conceito de relativismo cultural pode nos ajudar nessa
difícil questão.
A busca da superação do etnocentrismo toma como pressuposto dois fatos, que são a base
do conceito de relativismo: primeiro, a pluralidade humana, a diversidade de modos de
ser e pensar traduzido em culturas e sociedades diferentes; segundo, a ideia de que cada
sociedade humana construiu para si um modo próprio de vida particular, conforme a sua
própria história, meio ambiente, instituições, uma cultura, a qual deve ser compreendida
e explicada a partir dela mesma.
A partir do relativismo, as práticas culturais passaram a ser percebidas como parte de uma
imensa variabilidade, tornando o comportamento humano algo plural, diverso.
Conseqüentemente, existem comportamentos aceitáveis para um grupo humano que são,
não apenas inaceitáveis para outros, como totalmente inconcebíveis.
Por exemplo, para nós, ocidentais, são inconcebíveis práticas como o infanticídio,
gerontocídio ou a mutilação genital feminina, mas mesmo que tais ritos nos pareçam
absurdos e cruéis eles possuem significados culturais e razões sociológicas que o
explicam em seu sentido e causas. Da mesma forma, em contrapartida, muitos dos nossos
costumes e comportamentos do ocidente são considerados estranhos, esquisitos ou até
mesmo impraticáveis para outros povos, tais como a forma de conceber a morte, sepultar
os mortos, cumprimentar ou saudar as pessoas, hábitos alimentares.
É falso querer definir que existem sociedades superiores, mais avançadas e complexas do
que outras. Toda cultura é complexa nos seus próprios termos e condições. Se a nossa
divisão do trabalho, conhecimento científico e tipo de tecnologia nos parecem elementos
culturais complexos, o mesmo pode ser dito dos sistemas de parentesco, das cosmologias
religiosas, dos mitos de outras culturas. Que dizer, por exemplo, da “simplicidade”
daquelas sociedades africanas em que os membros são obrigados a se lembrar dos
ancestrais até a quadragésima geração ascendente? Ou, por exemplo ainda, da
“simplicidade” dos Krahó cujas genealogias são pouco profundas, mas em que o
indivíduo sabe enumerar as peculiaridades de temperamento de cada outro, identifica suas
habilidades e “até mesmo reconhece as pegadas de cada habitante da aldeia”? De modo
algum sociedades como essas são sociedades simples.
Cada povo deve ser entendido a partir do seu próprio modo de vida, de seus padrões - por
mais estranhos que possam parecer. O relativismo é um exercício intelectual e ético que
busca, por um lado, um distanciamento moral e cultural em relação à nossa própria
cultura, e, por outro, busca se colocar no lugar do outro para compreendê-lo, quer dizer,
entender o seu ponto de vista sobre o mundo a partir de sua própria visão, da visão da
cultura do nativo. Somente assim, entendendo as próprias bases culturais a partir das quais
determinados indivíduos vivendo em sua sociedade organizam e explicam suas relações
e instituições sociais é que podemos compreender uma cultura diferente da nossa e
explicar os comportamentos adotados nela.
Além da dor do ritual, as consequências sobre a saúde das mulheres são enormes, podendo
levar, inclusive, à morte. Primeiro, porque a extração é feita em condições de pouca
assepsia, fora de ambientes hospitalares, e as anestesias são geralmente gelo e casca de
laranja. Segundo, pelo fato de que, com a mudança na estrutura da genitália, durante o
ciclo menstrual, por exemplo, o sangue é retido numa espécie de depressão que se forma
na vagina, aumentando os riscos de infecção. Contudo, apesar de toda dor, da imposição
social e das consequências sobre a saúde e o risco de morte, muitas dessas mulheres
desejam o rito e defendem sua manutenção e direito de passarem pelo rito de mutilação,
inclusive protestando contra tentativas de governos locais de proibi-lo.
O que fazer então? Aceitar e tolerar? Reprovar e intervir? Pois bem, o relativismo cultural
não significa relativismo moral, de aceitar como legítima todas as formas de
comportamento humano. Nem significa que tenhamos de abrir mão de quaisquer valores
tomados como preferíveis de serem ética e juridicamente universalizáveis, tais como o
direito à vida, o direito à integridade física, à dignidade (Direitos Humanos), apesar de
sermos obrigados a reconhecer que o entendimento sobre o que é vida, integridade e
dignidade, direito não são os mesmos para todos, eles variam culturalmente.
O relativismo nos ajuda a compreender as formas diversas pelas quais cada grupo humano
em sociedade organiza o seu mundo e sua vida social. Mesmo conceitos aparentemente
tão “neutros” e “objetivos” como o tempo podem ser analisado culturalmente a partir das
formas de concepção deste conceito. Por incrível que possa parecer, muitas culturas e
sociedades ao redor do mundo não acharam a perspectiva histórica (nossa maneira de
pensar o tempo) suficientemente interessante para adotá-la. Para elas, o tempo e a sua
passagem não é a cadeia onde se entrelaçam os acontecimentos. Ou seja, possuem muito
pouco sentido no seu entendimento da existência.
Um exemplo pode nos facilitar muito aqui. O antropólogo brasileiro Roberto Da Matta
conviveu com e estudou um grupo de índios do Brasil central chamados Apinayés. Para
um Apinayé, diz ele, a unidade, o fluxo, a continuidade do seu mundo não é fruto de uma
noção de tempo, tipo causa e conseqüência. É, tentando explicar poeticamente, um jogo
de espelhos. Um no céu, outro no chão. O Apinayé concebe a existência de um “presente
anterior” onde o mundo se forma. Uma espécie de “tempo da aurora” universal onde o
homem adquiriu sua existência. Esse tempo se contrapõe, é espelho do “presente atual”
que procura reproduzi-lo.
Tudo o que foi realizado no “presente anterior” é o mesmo que se realiza no “presente
atual”. O passado é um tempo que se reflete no de hoje como um ciclo que
permanentemente oscila entre dois pontos – “presente anterior” e “presente atual” –, que
são como dois momentos fixos. O tempo não é, tal como para nós, um fluxo, uma
linearidade ininterrupta, mas, para um Apinayé, o tempo é sentido, pensado e vivido como
descontinuidade. Houve o tempo da aurora onde se fixou a existência e há o tempo do
agora onde se pratica aquela forma de existir.
Quando vemos que as verdades da vida são menos uma questão de posição:
estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua
dimensão absoluta mas no contexto em que acontece: estamos relativizando.
Quando compreendemos o “outro” nos seus próprios valores e não nos nossos:
estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma
relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma
transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a
verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não
transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores, ou em bem
ou mal, mas vê-la em sua dimensão de riqueza por ser diferença (ROCHA,
1994, p. 20).