Livro - Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável

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Lucimara Rocha de Souza

Juliana Porto Machado


Tiago Anderson Brutti
Solange Beatriz Billig Garces
(Organizadores)

DIREITOS HUMANOS E
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
NA PERSPECTIVA DAS PRÁTICAS
SOCIOCULTURAIS

Editora Ilustração
Cruz Alta – Brasil
2024
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons
https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0

Editor-Chefe: Fábio César Junges


Revisão: Os autores

CATALOGAÇÃO NA FONTE
D598 Direitos humanos e desenvolvimento sustentável na
perspectiva das práticas socioculturais [recurso eletrônico]
/ organizadores: Lucimara Rocha de Souza ... [et al.]. -
Cruz Alta : Ilustração, 2024.
158 p.

ISBN 978-65-6135-015-0
DOI 10.46550/978-65-6135-015-0

1. Direitos humanos. 2. Práticas socioculturais. I. Souza,


Lucimara Rocha de (org.).

CDU: 37
Responsável pela catalogação: Fernanda Ribeiro Paz - CRB 10/ 1720

Rua Coronel Martins 194, Bairro São Miguel, Cruz Alta, CEP 98025-057
E-mail: [email protected]

www.editorailustracao.com.br
Conselho Editorial

Dra. Adriana Maria Andreis UFFS, Chapecó, SC, Brasil


Dra. Adriana Mattar Maamari UFSCAR, São Carlos, SP, Brasil
Dra. Berenice Beatriz Rossner Wbatuba URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Dr. Clemente Herrero Fabregat UAM, Madri, Espanha
Dr. Daniel Vindas Sánches UNA, San Jose, Costa Rica
Dra. Denise Tatiane Girardon dos Santos FEMA, Santa Rosa, RS, Brasil
Dr. Domingos Benedetti Rodrigues SETREM, Três de Maio, RS, Brasil
Dr. Edemar Rotta UFFS, Cerro Largo, RS, Brasil
Dr. Edivaldo José Bortoleto UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil
Dra. Elizabeth Fontoura Dorneles UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil
Dr. Evaldo Becker UFS, São Cristóvão, SE, Brasil
Dr. Glaucio Bezerra Brandão UFRN, Natal, RN, Brasil
Dr. Gonzalo Salerno UNCA, Catamarca, Argentina
Dr. Héctor V. Castanheda Midence USAC, Guatemala
Dr. José Pedro Boufleuer UNIJUÍ, Ijuí, RS, Brasil
Dra. Keiciane C. Drehmer-Marques UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Dr. Luiz Augusto Passos UFMT, Cuiabá, MT, Brasil
Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil
Dra. Neusa Maria John Scheid URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Dra. Odete Maria de Oliveira UNOCHAPECÓ, Chapecó, SC, Brasil
Dra. Rosângela Angelin URI, Santo Ângelo, RS, Brasil
Dr. Roque Ismael da Costa Güllich UFFS, Cerro Largo, RS, Brasil
Dra. Salete Oro Boff IMED, Passo Fundo, RS, Brasil
Dr. Tiago Anderson Brutti UNICRUZ, Cruz Alta, RS, Brasil
Dr. Vantoir Roberto Brancher IFFAR, Santa Maria, RS, Brasil

Este livro foi avaliado e aprovado por pareceristas ad hoc.


Sumário

Apresentação�����������������������������������������������������������������������������13
Lucimara Rocha de Souza
Juliana Porto Machado
Tiago Anderson Brutti
Solange Beatriz Billig Garces

Capítulo 1 - O envelhecimento na contemporaneidade:


características e preceitos desta dinâmica populacional ��������������19
Camila Kuhn Vieira
Solange Beatriz Billig Garces
Marcelo Cacinotti Costa
Adriana da Silva Silveira

Capítulo 2 - Identidade e diferença: os dois lados de uma mesma


moeda���������������������������������������������������������������������������������������29
Fernando Martins Ferreira
Vânia Maria Abreu de Oliveira
Vaneza Cauduro Peranzoni

Capítulo 3 - Projeto Profissão Catador: as associações de catadores


como instrumento de transformação social e desenvolvimento da
cidadania�����������������������������������������������������������������������������������49
Daniela da Silva
Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces

Capítulo 4 - Velhos problemas em um novo cenário: uma


discussão sobre as fake news nas democracias atuais��������������������61
Bianca Tito
Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Capítulo 5 - A necessária análise e reflexão sobre os discursos


discriminatórios enraizados na sociedade brasileira por meio da
herança colonial portuguesa �����������������������������������������������������79
Cátia da Silva Herter
Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces

Capítulo 6 - Direitos humanos: colonização da sociedade e


opressão das mulheres negras idosas�������������������������������������������95
Iara Sabina Zamin
Solange Beatriz Billig Garces
Sirlei de Lourdes Lauxen
Marcelo Cacinotti Costa

Capítulo 7 - Direitos humanos e políticas públicas: uma breve


reflexão acerca da igualdade social�������������������������������������������107
Denise da Costa Dias Scheffer
Daiane Caroline Tanski
Diego Pascoal Golle

Capítulo 8 - Transtorno do Espectro Autista (TEA) na população


idosa: uma análise discursiva����������������������������������������������������115
Giácomo de Carli da Silva
Solange Beatriz Billig Garces
Denise Tatiane Girardon dos Santos
Maria Aparecida Santana Camargo
Marcelo Cacinotti Costa
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Capítulo 9 - A aplicabilidade da pesquisa fenomenológica nos


estudos feministas negros e a relação com a linguagem������������127
Dandara Roberta Soares Conceição
Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces
Carla Rosane da Silva Tavares Alves

Capítulo 10 - As diferentes vertentes teóricas do Movimento de


Mulheres Negras: breves considerações a respeito do Mulherismo
Africana e do Feminismo Negro����������������������������������������������141
Dandara Roberta Soares Conceição
Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces
Carla Rosane da Silva Tavares Alves

Sobre os autores�����������������������������������������������������������������������155
Apresentação

A coletânea “Direitos Humanos e Desenvolvimento


Sustentável na Perspectiva das Práticas Socioculturais”
reúne dez capítulos sobre os temas-chave relacionados no título
da obra, escritos por professores e discentes do Programa de Pós-
Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social,
da Universidade de Cruz Alta, e por convidados de vários centros
de pesquisa que têm comunicado suas pesquisas em eventos
promovidos pela instituição. As temáticas dos Direitos Humanos
e do Desenvolvimento Sustentável e das relações entre sociedade
e cultura estão no centro de gravidade das complexas questões
apreciadas pelos grupos de trabalho no âmbito dos eventos
organizados pelo Programa.   
Os textos veiculados neste livro decorrem das pesquisas
comunicadas e discutidas no Simpósio de Práticas Socioculturais
ocorrido no ano de 2022. A obra permite uma imersão nos
complexos objetos de pesquisa explorados pelo PPG, que se ancora
na interdisciplinaridade, na ecologia dos saberes e nas práticas
socioculturais, discutindo as conexões entre os Direitos Humanos e
o Desenvolvimento Sustentável. Cada um dos dez capítulos é fruto
da colaboração de alunos, professores e convidados que partilham
suas visões de mundo e provocam reflexões capazes de inspirar
mudanças qualitativas na sociedade e no meio cultural.
O primeiro capítulo, intitulado “O envelhecimento na
contemporaneidade: características e preceitos desta dinâmica
populacional”, escrito por Camila Kuhn Vieira, Solange Beatriz
Billig Garces, Marcelo Cacinotti Costa e Adriana da Silva Silveira,
analisa as principais características do envelhecimento populacional
na contemporaneidade. O envelhecimento populacional é marcado
por acontecimentos históricos de relevância mundial. Ao longo
da evolução histórica da humanidade, o envelhecimento vem
redesenhando a curva demográfica devido às transformações da
14 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

sociedade moderna na contemporaneidade.


O capítulo segundo, “Identidade e diferença: os dois lados
de uma mesma moeda”, escrito por Fernando Martins Ferreira,
Vânia Maria Abreu de Oliveira e Vaneza Cauduro Peranzoni,
aborda o conceito de identidade e de diferença, cujas faces,
aparentemente díspares, apresentam singularidades e, ao mesmo
tempo, comungam de certas especificidades. Os autores analisam a
construção social e cultural das relações de identidade e diferença,
considerando os sujeitos como agentes de formação e construção
desde uma internalização inicial até uma progressiva apropriação
de cada realidade, por um viés local ou global. Os pesquisadores
buscam demonstrar, além disso, que tanto a identidade quanto a
diferença não se constituem como o resultado final de um processo,
senão que se referem ao próprio processo pelo qual ambas estão
sendo continuamente produzidas.
No texto “O Projeto Profissão Catador: as associações
de catadores como instrumento de transformação social e
desenvolvimento da cidadania”, o terceiro capítulo, escrito por
Daniela da Silva, Sirlei de Lourdes Lauxen e Solange Beatriz Billig
Garces, são abordadas as associações de catadores e como elas
impactam a vida dos profissionais a ela vinculados. De acordo
com as autoras, os catadores geralmente passaram por condições
de exclusão social/marginalização. As associações, nesse contexto,
viabilizam o retorno dessas pessoas ao mundo do trabalho. A
pesquisa examina se há e como ocorre a transformação da vida
desses trabalhadores a partir de sua organização em associações.
O texto apresenta, também, uma reflexão a respeito do trabalho
dos catadores e sobre quais são os impactos gerados por eles na
sociedade e no meio ambiente. O Projeto Profissão Catador tem
auxiliado na organização dos trabalhadores e contribuído para a
mudança de suas vidas em termos de dignidade.
Em seguida, o quarto capítulo, “Velhos problemas em um
novo cenário: uma discussão sobre as fake news nas democracias
atuais”, escrito por Bianca Tito e Jéssica Pereira Arantes Konno
Carrozza, propõe uma discussão sobre as fake news e os problemas
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 15

por ela gerados para o Estado Democrático de Direito. Conforme as


autoras, direitos como a liberdade de informação e de manifestação
do pensamento devem ser assegurados para todos. O objetivo do
capítulo é analisar se as fake news constituem ou não um limite
legítimo ao exercício do direito à liberdade de expressão.
As autoras Cátia da Silva Herter, Sirlei de Lourdes Lauxen e
Solange Beatriz Billig Garces escreveram o quinto capítulo, intitulado
“A necessária análise e reflexão sobre os discursos discriminatórios
enraizados na sociedade brasileira por meio da herança colonial
portuguesa”, no qual examinam o livro “Casa Grande & Senzala:
formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal”,
do sociólogo Gilberto Freyre. Freyre busca explicar a formação do
povo brasileiro a partir de uma visão eurocêntrica colonialista: a
dos senhores de engenho. As pesquisadoras identificam nessa obra
discursos discriminatórios enraizados na cultura política brasileira,
ressaltando a importância de uma formação crítica e humanizadora
para a desconstrução dessas ideias.
O sexto capítulo da obra é “Direitos humanos: colonização
da sociedade e opressão das mulheres negras idosas”, escrito por
Iara Sabina Zamin, Solange Beatriz Billig Garces, Sirlei de Lourdes
Lauxen e Marcelo Cacinotti Costa. O texto aborda os direitos
humanos relacionados às mulheres idosas a partir de uma revisão
crítica da colonização do Brasil pelos portugueses, evidenciando
que as mulheres negras idosas acumulam subordinações seja pela
questão de gênero, de raça/etnia ou de ciclo da vida. Persistem,
infelizmente, as condições de opressão, pobreza e discriminação
enfrentadas pelas mulheres negras e idosas no Brasil. As autoras
advogam que as diferenças sejam compreendidas como pluralidade
que agrega valor à vida e às condições culturais e sociais das
mulheres negras e idosas, em respeito ao direito humano de viver
com dignidade.
O sétimo capítulo, intitulado “Direitos humanos e políticas
públicas: uma breve reflexão acerca da igualdade social”, escrito por
Denise da Costa Dias Scheffer, Daiane Caroline Tanski e Diego
Pascoal Golle, examina o tema da dignidade da pessoa humana
16 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

frente aos avanços globais conquistados com a modernidade e à


busca constante por respeito e igualdade de oportunidades por
intermédio das políticas públicas. De acordo com as autoras, o
objetivo do texto é analisar a relação entre os direitos humanos, as
políticas públicas e a concretização da igualdade social.
Em seguida, o texto “Transtorno do Espectro Autista
(TEA) na população idosa: uma análise discursiva”, escrito por
Giácomo de Carli da Silva, Denise Tatiane Girardon dos Santos,
Solange Beatriz Billig Garces, Maria Aparecida Santana Camargo
e Marcelo Cacinotti Costa, discorre sobre as características do
Transtorno do Espectro Autista (TEA) na fase adulta e na velhice.
Com isso em mente, os autores buscam entrelaçar uma coleção
de fontes bibliográficas com os saberes do autor principal do
capítulo, um adulto com autismo. Os pesquisadores referem que
têm como propósito desmitificar o tabu do autismo na velhice.
Concluiu-se que os autistas idosos podem conviver “normalmente”
em sociedade, contudo, faz-se necessário que as pessoas com quem
eles convivem conheçam e exercitem o bom senso.
O nono capítulo, escrito por Dandara Roberta Soares
Conceição, Sirlei de Lourdes Lauxen, Solange Beatriz Billig Garces
e Carla Rosane da Silva Tavares Alves, intitula-se “A aplicabilidade
da pesquisa fenomenológica nos estudos feministas negros e a
relação com a linguagem”. A fenomenologia, segundo as autoras,
é a ciência que estuda os fenômenos, visando compreender de
que modo a consciência age diante do mundo. O Feminismo
Negro é um movimento social liderado por mulheres negras que
reivindicam as demandas do grupo, buscando combater a opressão
de raça e gênero que estigmatiza seus corpos. A problemática do
texto é sobre a forma como a pesquisa fenomenológica poderia ser
aplicada aos estudos feministas negros. As pesquisadoras destacam
que um de seus objetivos é conceituar a fenomenologia e descrever
as ideias que constituem a base filosófica dessa corrente de
pensamento. Depois de ponderarem sobre o Feminismo Negro, as
pesquisadoras, ao final, argumentam sobre como pode ser aplicada
a pesquisa fenomenológica a esses estudos.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 17

O último capítulo, “As diferentes vertentes teóricas do


Movimento de Mulheres Negras: breves considerações a respeito do
Mulherismo Africana e do Feminismo Negro”, escrito por Dandara
Roberta Soares Conceição, Sirlei de Lourdes Lauxen, Solange
Beatriz Billig Garces e Carla Rosane da Silva Tavares Alves, enfatiza
que o Movimento de Mulheres Negras é formado por um grupo
heterogêneo de pessoas, que se filiam a variadas vertentes teóricas.
As autoras abordam o Mulherismo Africana, que destaca a imagem
da mulher preta como africana em diáspora. Outra teoria engloba
o Feminismo Negro, que busca visibilizar as pautas da mulher
negra frente ao contexto, estruturalmente, patriarcalista e racista.
A problemática do texto está relacionada aos principais pontos
que diferenciam o Mulherismo Africana e o Feminismo Negro. O
objetivo, segundo as pesquisadoras, é discorrer sobre o Mulherismo
Africana e o Feminismo Negro a partir de seus pressupostos teóricos,
apontando as diferenças entre essas vertentes teóricas. A principal
diferença do Mulherismo Africana para o Feminismo Negro está
na maneira como é analisada a situação social da mulher preta. O
primeiro examina, sobretudo, aspectos relacionados à raça, enquanto
que o segundo investiga, inicialmente, a questão de gênero.
Acreditamos que esta coletânea proporcionará aos
leitores uma imersão nos complexos temas abordados de forma
interdisciplinar pelo Programa de Pós-Graduação em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social – Mestrado e Doutorado.
A obra reflete sobre os Direitos Humanos e o Desenvolvimento
Social em sua relação com a sociedade e a cultura. O conteúdo dos
textos é da responsabilidade dos autores, a quem os organizadores
agradecem pela gentileza de cederem os direitos de publicação. Aos
leitores desejamos uma excelente viagem pelas páginas do livro.

Lucimara Rocha de Souza


Juliana Porto Machado
Tiago Anderson Brutti
Solange Beatriz Billig Garces
(Organizadores)
Capítulo 1

O envelhecimento na contemporaneidade:
características e preceitos desta dinâmica
populacional

Camila Kuhn Vieira


Solange Beatriz Billig Garces
Marcelo Cacinotti Costa
Adriana da Silva Silveira

1 Introdução

O envelhecimento populacional é uma das maiores


conquistas da humanidade, marcado pelos avanços
biomédicos (fármacos, vacinas), descobertas científicas, melhores
condições de saúde e saneamento básico. O processo de
envelhecimento tem ocorrido de maneira acentuada, desde 1960,
com crescimento nos índices de envelhecimento populacional em
consequência do declínio nos indicadores de fecundidade pelos
casais e expansão da longevidade e sobrevida, redesenhando a
dinâmica populacional brasileira e mundial (CAMARANO, 2014;
SIMÕES, 2016).
O contingente populacional contemporâneo decorreu
de alguns acontecimentos marcantes da humanidade, tais como:
a transição demográfica (diminuição da natalidade e aumento
da longevidade), a urbanização (êxodo rural), o capitalismo e a
inserção da mulher no mercado de trabalho (CAMARANO, 2014;
SIMÕES, 2016; ERBATTI; BORGES; JARDIM, 2015).
Nesta perspectiva, o objetivo deste estudo é refletir e analisar
as principais características do envelhecimento populacional na
20 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

contemporaneidade. Como percurso metodológico, este estudo


utilizou um estudo reflexivo do tipo de revisão de literatura
oriunda do Grupo Interdisciplinar de Estudos do Envelhecimento
Humano – GIEEH e Programa de Pós-Graduação em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social da Universidade de Cruz
Alta – UNICRUZ, especialmente por meio da disciplina eletiva
Cidadania e Inserção Social da População Idosa.

2 O envelhecimento e suas características na contempo-


raneidade

O envelhecimento na contemporaneidade decorre


consequentemente por três razões principais: a transição
demográfica, o presentismo e a urbanização causada pelos
movimentos migratórios (GARCES, 2012; 2014).
Estas características podem ser observadas a partir da própria
história da população, abordadas a seguir a partir do que trazem
alguns autores. Camarano, Kanso e Fernandes (2014) descrevem
a história populacional em quatro fases. A primeira, corresponde
ao final do século XIX até 1930, nesta etapa os indicadores de
natalidade e mortalidade eram significativamente elevados, porém,
entre 1870 a 1930, houve um aumento imigratório internacional,
consequentemente, ocasionou um crescimento populacional.
A segunda fase ocorreu a partir de 1940, caracterizada
pela redução da mortalidade em todos os grupos etários, mas
especialmente na mortalidade infantil. “A queda da mortalidade
se tornou responsável pela variação no ritmo de crescimento da
população brasileira até 1970, levando a que este crescimento
atingisse o seu ápice nas décadas de 1950 e 1960 (taxas médias
anuais em torno 3%)” (CAMARANO; KANSO; FERNANDES,
2014, p. 82). Os movimentos migratórios internos (êxodo rural)
se intensificaram nesta fase, marcando este período por intensos
deslocamentos internos, crescimento populacional e industrial.
Contemplando com o exposto, a terceira fase teve influência
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 21

destes movimentos migratórios, ou seja, os deslocamentos da


população rural para as grandes metrópoles, denominado assim,
uma característica marcante do envelhecimento, a alta urbanização.
Ainda, a terceira fase contrabalançou o declínio da taxa de
fecundidade com a diminuição dos indicadores de mortalidade
(CAMARANO; KANSO; FERNANDES, 2014).
Já, a quarta fase é definida pela redução significativa da
população, pela fecundidade e mortalidade, e pelo fenômeno do
superenvelhecimento (CAMARANO; KANSO; FERNANDES,
2014), acelerado avanço da população idosa, com relação à
população jovem. Camarano (2013, p. 3446) destaca que:
O Brasil não é mais um país de jovens. É provável que o Censo
de 2030 encontre o número máximo de brasileiros que se
pode vislumbrar, cerca de 208 milhões, dos quais 20% serão
idosos. A partir daí, mantidas as mesmas tendências, esse
contingente começará a diminuir e o formato da pirâmide
etária se inverterá. Os babys boomers estão envelhecendo e
se transformando nos elderly boomers. A preocupação com o
‘excesso’ de crianças está dando lugar para o ‘excesso’ de idosos.
O presentismo é explicado nesta última fase, pelo fato,
que a população, especialmente a idosa, está vivendo mais, e quer
presenciar/descobrir/consumir/viver o presente, o agora, não
deixando para o depois (GARCES, 2012, 2014). Visto como a
consagração do presente, a revolução do cotidiano (LIPOVETSKY,
2004) e o hedonismo do aqui e agora:
Sensível presentificado [...] o que quer se tornar lugar-comum
é a cultura da auto-imagem e o hedonismo do aqui e do
agora cotidiano – estetizado, informado e personalizado -, em
contraposição aos processos de burocratização e racionalização
da organização social tecnocrática e programada. O importante
é consumir, e consumir por consumir, sem céu, sem história,
sem revolução, sem projetos culturais e sociais previamente
conexos e unificados, nos moldes da já consolidada civilização
industrial. O importante são os signos, as imagens, o lazer
(lazer e tempo livre), a libertação do corpo e das fantasias (sem
construções e representações sociais), o viver o cotidiano, o
ecletismo, o pacifismo, esperar a próxima novidade, enfim,
viver a espontaneidade e a sedução (TEDESCO, 2003, p.163-
22 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

164).
Este efeito do presentismo é explanado nas ciências sociais,
em uma sociedade que se modificou ao longo da história, de uma
sociedade rígida para uma sociedade líquida, visto que, a sociedade
está constantemente pronta às mudanças (BAUMAN, 2001).
A obra Modernidade Líquida de Bauman (2001) discute essa
mudança demográfica, de descobertas científicas, de conquista dos
direitos sociais, de hiperconsumismo, de vivenciar o tempo presente
(presentismo) marcado pelo hedonismo e pelo individualismo
imposto pela globalização e capitalismo.
Baseado nestes fatores, a sociedade contemporânea presencia
o processo de envelhecer, visto que o segmento populacional que
mais cresce é a população idosa, conforme dados do IBGE (2015,
p. 146):
[...] com taxas de crescimento de mais de 4% ao ano no período
de 2012 a 2022. A população com 60 anos ou mais de idade
passa de 14,2 milhões, em 2000, para 19,6 milhões, em 2010,
devendo atingir 41,5 milhões, em 2030, e 73,5 milhões, em
2060. Espera-se, para os próximos 10 anos, um incremento
médio de mais de 1,0 milhão de idosos anualmente. Essa
situação de envelhecimento populacional é consequência,
primeiramente, da rápida e contínua queda da fecundidade
no país, além de ser também influenciada pela queda da
mortalidade em todas as idades.
Esse fenômeno demográfico ocorre de uma mudança na
estrutura etária da população, diminuindo assim, a proporção da
população mais jovem. Contudo, a predominância de mulheres idosas
se tornou mais expressiva no decorrer das décadas, configurando-se
mais uma característica contemporânea, a feminização da velhice,
ou seja, maior longevidade feminina (CAMARANO, 2002).
Conforme os dados do processo de feminização da velhice, “[...]
as mulheres representam 56% da população brasileira com 60 anos
ou mais. As estimativas do IBGE são de que as mulheres vivem, em
média, quase sete anos a mais que os homens” (LINS; ANDRADE,
2018, p. 440/441).
Tal fato, também é atribuído pela resistência masculina
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 23

mediante a procura dos serviços de saúde e exposição de agravos


à saúde, como: o uso abusivo do álcool e tabagismo. “[...] A
prevalência de dependentes de álcool também é maior para o
sexo masculino: 19,5% dos homens são dependentes de álcool,
enquanto 6,9% das mulheres” (BRASIL, 2008, p. 13). Sabe-se que
“[...] o uso abusivo do álcool é responsável por 3,2% de todas as
mortes e por 4% de todos os anos perdidos de vida útil” (BRASIL,
2008, p.12). Além dos homens também terem maior envolvimento
em casos de violência física e acidentes de trânsito, ocasionando sua
morte precocemente.
Neste âmbito, fica explícito a expansão da longevidade,
principalmente de idosos mais velhos (80 anos ou mais), decorrente
da acelerada transição demográfica corroborada com a transição
epidemiológica, visto que houve transformação nos parâmetros
de saúde e doença, passando de doenças infecciosas para doenças
crônicas não transmissíveis (DCNT). Para Giddens (2008, p.160)
essa transição epidemiológica é chamada de transição de saúde:
Antigamente, as doenças principais eram doenças infecciosas
como a tuberculose, a cólera, a malária ou a poliomielite.
Doenças que tomavam com frequência proporções de
epidemia e podiam ameaçar uma população inteira. Hoje em
dia, nos países industrializados estas graves doenças infecciosas
tornaram-se uma causa de morte menor, algumas foram
substancialmente erradicadas. Nesses países, as causas de morte
mais comuns são atualmente doenças crônicas não-infecciosas,
como o cancro, as doenças cardíacas, a diabetes ou doenças do
aparelho circulatório. Chama-se a esta transformação transição
na saúde.
Embora, vivenciamos atualmente uma pandemia com o
retorno de uma doença infectocontagiosa, denominada como
Covid-191 (Coronavírus SARS-CoV-2), tendo surgido em Wuhan
(Província de Hubei) na China e se expandindo rapidamente

1 O modo de transmissão da COVID-19 é de pessoa para pessoa por meio de gotículas


respiratórias, quando uma pessoa infectada espirra, fala ou tosse através do contato
direto com outra pessoa, e também na forma indireta, ou seja, se uma pessoa tocar
na superfície infectada e conduzir as mãos aos olhos, nariz ou boca (MCINTOSH;
HIRSCH; BLOOM, 2020).
24 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

em outros países (MCINTOSH; HIRSCH; BLOOM, 2020).


Fato este, excepcional, que refletirá nos dados demográficos pelo
quantitativo de pessoas, adultos de meia idade e mais velhos
(idosos) com comorbidades clínicas2, mais comumente afetados
pelo Covid-19 na forma mais grave, necessitando assim, utilizar
os serviços de hospitalização nas Unidades de terapia intensiva
(MCINTOSH; HIRSCH; BLOOM, 2020).
Porém, a transição epidemiológica, predomínio das doenças
crônicas e degenerativas, traz novas demandas aos serviços de
saúde, no que tange às doenças crônicas e incapacidades funcionais,
ou seja, maiores utilizações destes serviços (MORAES, 2012).
Chaimowicz (1987, p. 189) já considerava esse efeito nos serviços
de saúde, como demonstra abaixo:
[...] modifica-se o perfil de saúde da população; ao invés de
processos agudos que se ‘resolvem’ rapidamente através da cura
ou do óbito, tornam-se predominantes as doenças crônicas e
suas complicações, que implicam em décadas de utilização de
serviços de saúde.
A transição demográfica e epidemiológica, o fenômeno da
feminização na velhice, o superenvelhecimento (CAMARANO,
2014), o presenteísmo (GARCES, 2012; 2014), a urbanização
acelerada e a modernidade líquida (BAUMAN, 2001) (globalização,
capitalismo, individualismo) são denominadas como as principais
características do envelhecimento populacional contemporâneo.
Deste modo, essas transformações da sociedade ao longo das
décadas impulsionaram para essa atual dinâmica populacional
do envelhecer, tornando-se assim, uma evolução demográfica
inevitável e que necessita ser abordada de forma multidimensional
envolvendo questões de saúde-doença, de políticas públicas, sociais,
cultural, econômicas, dentre outras.

2 Doença cardiovascular, Diabetes mellitus, Hipertensão, Doença pulmonar crônica,


Câncer, Doença renal crônica (MCINTOSH; HIRSCH; BLOOM, 2020, p.04).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 25

3 Considerações finais

Diante da evolução da sociedade ocorreram várias


transformações e descobertas em campos distintos do conhecimento
(social, cultural, jurídico, econômico, biomédico, entre outros).
Tais evoluções resultaram na mudança do cenário populacional
mundial da atualidade, denominada pelo aumento da população
idosa, o envelhecimento.
O processo do envelhecimento contemporâneo está
relacionado com a própria evolução da sociedade ao longo das
décadas. Porém, alguns acontecimentos históricos da sociedade
colaboraram para essa dinâmica do envelhecer: a transição
demográfica/epidemiológica, o superenvelhecimento, o êxodo
rural, a urbanização acelerada e a modernidade líquida (presentismo,
hedonismo, globalização, capitalismo, individualismo).
Logo, é necessário repensar sobre esse fenômeno demográfico
contemporâneo diante da inserção destes idosos na sociedade de
forma ativa, ou seja, o Brasil e o mundo precisa se adaptar a esse novo
cenário populacional, para que as todas as pessoas idosas possam
viver o hoje (presentismo) com qualidade de vida e dignidade.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio


Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE
ATENÇÃO À SAÚDE. Política nacional de atenção integral
à saúde do homem (princípios e diretrizes. Brasília – DF, 2008.
Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
politica_nacional_atencao_homem.pdf. Acesso em: 19 nov 2022.
CAMARANO, Ana Amélia. O novo paradigma demográfico.
Ciências & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.18, n.12, p.3446-
3446, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232013001200001&lng=e
26 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

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Capítulo 2

Identidade e diferença: os dois lados de uma


mesma moeda

Fernando Martins Ferreira


Vânia Maria Abreu de Oliveira
Vaneza Cauduro Peranzoni

1 Considerações iniciais

A identidade e a diferença apresentam facetas que –


aparentemente – parecem quedar-se de uma fonte
antagônica e de diâmetro oposto, como se uma viesse de um lado
totalmente diferente do lado de onde surgisse a outra.
No entanto, a identidade e a diferença comungam raízes
e apresentam especificidades, em especial, enquanto entidades
independentes, autorreferenciadas e remontadas a si próprias.
A identidade e a diferença, em que pese encontrar-se em
lados antagônicos, possuem uma relação estreita de dependência
entre si, pois a forma afirmativa da expressão identidade visa a
esconder a existência de outros elementos que não dispõe daquela
condição, seguindo, portanto, caminhos que não são os mesmos,
mas andam de forma paralela.
A identidade pode ser vista como uma espécie de tentativa de
explicação do per si ou do si mesmo, intermediando, diuturnamente,
as identidades assumidas e as visadas, encontrando-se em estado de
alerta para suscetíveis mudanças que possam ocorrer, admitindo as
[trans]formações advindas de outros fatores residentes nas opções
acolhidas.
Pode-se dizer que a identidade é a célula mater ou a gênese
30 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

de onde se define a diferença, tomando a padronização enquanto


parâmetro para avaliar tudo aquilo que difere dessa condição.
Inobstante a isso, outro aspecto que comungam a identidade
e a diferença é que ambas são resultados de atos de criação linguística,
razão pela qual, não podem ser compreendida fora dos sistemas
de significação, haja vista que a própria linguagem também se
constitui, de per si, uma estrutura instável.
Aliás, na medida em que a identidade e a diferença são
definidas em parte, por meio da linguagem, trazem consigo as
marcas da indeterminação e da instabilidade quanto à linguagem
da qual dependem. Da mesma forma que a identidade e a diferença,
a sociedade, a cultura e a linguagem também estão sempre aptas a
mudanças.
Os atos linguísticos que, em seu bojo, contribuem para
definir ou reforçar a identidade descrita, depende de incessante
repetição, vez que uma sentença linguística de identidade, de modo
único, não produziria nenhum efeito significante, pois é da sua
repetição ou – ainda – da possibilidade dessa repetição que o ato
linguístico cria força no processo de produção de identidade.
Em assim sendo, verifica-se que a linguagem marca bem
a diferença e a identidade, justamente por seus traços comuns
de incompletudes, instabilidades, especialmente porque ambas
também são marcadas pelo resultado de atos de criação linguística,
social e cultural.
A identidade e a diferença também são constituídas
pelas relações sociais e culturais, desde a primeira infância, com
a internalização de valores e absorção de papéis e, na sequência,
de forma progressiva, o sujeito apropria-se da realidade e passa a
atribuir um sentido pessoal às significações socioculturais.
Entretanto, é na atividade social que ocorre a materialização
do processo identitário, enquanto que no viés cultural, o objeto
se dá na sua durabilidade e não na funcionalidade. Assim, uma
cultura resta ameaçada, quando todos os objetos e coisas seculares
produzidas pelo passado e pelo presente são considerados como
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 31

instrumentos de funcionalidade para o processo vital da sociedade,


ou seja, sua existência é somente para satisfazer alguma necessidade.
A própria condição de homem, faz o indivíduo identificar
a si mesmo como algo mais amplo, reconhecendo-o como seu lar,
razão pela qual as culturas nacionais se denotam como uma fonte
poderosa de significados para as identidades culturais modernas.
Porém, a contestação dos contornos estabelecidos da
identidade nacional, expondo seu fechamento às pressões das
diferenças, da alteridade e da diversidade cultural, tem ocorrido
em diferentes graus e culturas nacionais ocidentais, levantando
discussões sobre a questão da identidade nacional e da “centralidade”
cultural ocidental e provocando um alargamento do campo das
identidades, proliferando novas posições identitárias, aumentando
a polarização e levando à possibilidade de um fortalecimento de
identidades locais ou à produção de novas identidades.

2 A identidade e a diferença na sua(in)completa (in)de-


finição

Parece simples fazer a diferenciação entre identidade e


diferença, dada a [aparente] autonomia conceitual que as define,
caracterizando-se, respectivamente, com características de ser aquilo
que é, em contraponto àquilo que o outro seja. Nessa perspectiva,
exemplifica-se a independência ou um fato autônomo pelo ser, em
oposição ao [também] ser, mas diferente.
Nessa linha, mencionam Hall e Woodward (2007, p.74):
Em uma primeira aproximação, parece ser fácil definir
“identidade”. A identidade é simplesmente aquilo que se
é: “sou brasileiro”, “sou negro”, “sou heterossexual”, “sou
jovem”, “sou homem”. A identidade assim concebida parece
uma positividade (“aquilo que sou”), uma característica
independente, um “fato” autônomo. Nessa perspectiva,
a identidade só tem como referência a si própria: ela é
autocontida e autossuficiente.
Sobre a semelhança ou convergência existente entre
32 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

a identidade e a diferença, complementam os autores Hall e


Woodward (2007, p.74):
Na mesma linha de raciocínio, também a diferença é concebida
como uma entidade independente. Apenas, neste caso, em
oposição à identidade, a diferença é aquilo que o outro é: “ela
é italiana”, “ela é branca”, “ela é homossexual”, “ela é velha”,
“ela é mulher”. Da mesma forma que a identidade, a diferença
é, nesta perspectiva, concebida como auto referenciada, como
algo que remete a si própria. A diferença, tal como a identidade,
simplesmente existe.
A identidade se mostra como algo positivado, ou seja,
aquilo que se define pelo que é, com referência inerente em si
mesma, comungando semelhanças com a diferença, haja vista sua
independência e também autorreferenciada e remontando a si
própria.
Em que pese apresentem-se em lados antagônicos, identidade
e diferença possuem uma franca e estreita relação de dependência,
pois a forma afirmativa da expressão identidade, tende a esconder
essa relação, pois quando se utiliza a expressão “sou brasileiro”, está
se afirmando que existem outros seres humanos que não dispõem
dessa mesma nacionalidade. Basta atentar-se para um comparativo
com a existência de um mundo imaginário, onde todos fossem
“brasileiros”, essas afirmações de identidade perderiam o total nexo
de existência (HALL e WOODWARD, 2007).
O antagonismo da diferença e da identidade servem como
referencial para antagonismos. Todavia, não se pode olvidar que
ambas podem não confluir mas seguem caminhos paralelos em
estreita e recíproca posição de dependência.
A identidade constitui-se como uma espécie de tentativa de
explicação do conceito de si, fruto de uma construção psicológica,
denotando-se um processo em construção, intermediando
constantemente as identidades assumidas e as identidades visadas
(DUBAR, 1996).
Assim como o “pertencimento”, a “identidade” não tem a
solidez de uma rocha, conforme Bauman (2005, p.17-18):
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 33

[...] não são garantidos para toda a vida, são bastante


negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio
indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como
age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são
fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a
“identidade”.
Verifica-se que [tanto] a identidade quanto o pertencimento
estão sempre e absolutamente suscetíveis à mudanças, tornando-
se algo que admite as [trans]formações advindas de vários fatores
cuja preponderância reside nas opções acolhidas pelo indivíduo,
desde as estradas que percorre, a maneira pela qual anda e a leal
designação de manter-se fiel à esse propósito.
Contudo, a conceituação de identidade não se reveste da
simplicidade aparente, segundo Candal (2016, p. 25):
No caso da identidade, a tentativa de depuração conceitual
é mais difícil. No que se refere ao indivíduo, identidade
pode ser um estado – resultante – por exemplo, de uma
instância administrativa: meu documento de identidade
estabelece minha altura, minha idade, meu endereço, etc,
-, uma representação – eu tenho uma ideia de quem sou – e
um conceito, o de identidade individual, muito utilizado nas
Ciências Humanas e Sociais.
Não se pode olvidar que a conceituação depurada de
identidade não se mostra como tarefa absolutamente fácil de
se realizar. A identidade pode ser um estado e um conceito. A
construção da própria identidade não se queda inerte ou acabada,
mas diuturno desafio capaz de encontrar o equilíbrio entre o que
se é e – justamente – aquilo que os outros esperam do ser dos
outros, como um espelho social capaz de permitir que o indivíduo
se reconheça, avalie-se e aprove-se, com a perspectiva de que o eu
somente passa a existir em interação com os outros (WHETTEN
E GODFREY, 1998).
Não há que se falar sobre a existência de um rigorismo
conceitual estagnado sobre identidade, pois nunca se mostra
acabada, completa, pronta para se tornar definição, está sempre
buscando o equilíbrio entre o que se é, e o que os outros o pensam
34 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

ser.
Nesse diapasão, a identidade reflete e, ao mesmo tempo,é
refletida na construção identitária, conforme Ciampa (2012, p.
59):
Identidade se (trans)forma porque considera-se que ela é
construída a partir de um processo de metamorfose, o que
significa dizer que a identidade do sujeito está em constante
transformação e construção. Ela se modifica na vida cotidiana,
refletindo e servindo de reflexo na construção identitária dos
que estão ao nosso redor: “a identidade do outro reflete na
minha e a minha na dele (afinal, ele só é meu pai porque eu
sou filho dele).”
O dia a dia se encarrega de auxiliar na transformação e
construção identitária de cada indivíduo, cuja identidade serve
como objeto que reflete e é refletido, e sofre uma espécie de
transformação ou mesmo metamorfose que não se completa,
tampouco acaba, mas sempre se transforma.
O fenômeno da identidade possui pressupostos que atingem
ou afetam a todos, mesmo antes do nascimento, em virtude
das expectativas criadas sobre a criança, o que irá influenciar no
desenvolvimento do feto. Não se pode relevar, posteriormente, que
a identidade também possui pressupostos advindas das relações
em sociedade, como a classe social, o trabalho, gênero, religião,
entre outros que findam por completar e/ou complementar a
individualização de cada sujeito. Ademais, a identidade é uma
metamorfose. Um fenômeno social e não natural (PACHECO e
CIAMPA, 2006).
Segundo Hall e Woodward (2007, p.84), o processo de
produção da identidade oscila entre dois movimentos:
[...] de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e
a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem
a subvertê-la e a desestabilizá-la. É um processo semelhante
ao que ocorre com os mecanismos discursivos e linguísticos
nos quais se sustenta a produção da identidade. Tal como
a linguagem, a tendência da identidade é para a fixação.
Entretanto, tal como ocorre com a linguagem, a identidade
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 35

está sempre escapando. A fixação é uma tendência, e, ao


mesmo tempo, uma impossibilidade.
Aliás, a identidade não surge da plenitude identitária
habitável em cada ser humano, todavia de uma falta ou espaço
preenchido a partir do exterior cuja imaginação permite acreditar,
por determinada maneira, assim ser visto por outros (HALL, 2006).
Nas lições do autor (2006, p.38-39), sobre a formação da
identidade:
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do
tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato,
existente na consciência no momento do nascimento. Existe
sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade.
Ela permanece incompleta, está sempre “em processo”, sempre
“sendo formada”. As partes “femininas” do eu masculino, por
exemplo, que são negadas, permanecem com ele e encontram
expressão inconsciente em muitas formas não reconhecidas, na
vida adulta. Assim, em vez de falar da identidade como uma
coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como
um processo em andamento.
Segundo Machado (2003, p. 53), essa distância havida entre
os tipos de identidades é o espaço da construção da identidade:
Essa distância existente entre tais tipos de identidades é
exatamente o espaço de conformação do eu, ou seja, da
construção da identidade. É sob esse espaço que vão se
processar as interações sociais e ocorrerá a participação dos
outros na construção da própria identidade.
No entanto, a questão da “identidade” aparece como algo
a ser inventado, e não descoberto, como uma espécie de objetivo,
algo a partir do zero ou de escolhas já concebidas, com continuidade
de luta e proteção, ainda que a precária e a eterna condição de
inconclusividade da identidade deva ser e tenda a ser suprimida e
oculta com labor (BAUMAN, 2005).
A identidade, no dizer de Bauman (2005, p.83), pode ser
vista como uma faca brandida em duas direções:
[...] e cortando dos dois lados nos períodos de “construção
nacional”: em defesa de línguas, memórias, costumes e hábitos
36 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

locais, menores, contra “os da capital”, que promoviam a


homogeneidade e exigiam uniformidade – assim como na
“cruzada cultural” organizada pelos defensores da unidade
nacional que pretendiam extirpar o “provincianismo”, o
paroquialismo, o esprit de clocher das comunidades ou etnias
locais. O próprio patriotismo nacional distribuiu as suas tropas
em duas frentes: contra o “particularismo local”, em nome do
destino e dos interesses nacionais compartilhados; e contra o
“cosmopolitismo sem raízes”, que via e tratava os nacionalistas
da mesma forma que os nacionalistas viam e tratavam os
“provincianos grosseiros de mente limitada” devido à lealdade
a idiossincrasias étnicas, linguísticas ou ritualísticas.
Nesse viés, a identidade é a célula mater de onde se define
a diferença, refletindo-se a tendência de tomar o parâmetro tido
como padrão para avaliar aquilo que destoa desta condição (HALL
e WOODWARD, 2007).
Contudo, as identidades tornam-se desalojadas de
especificidades, no dizer de Hall (2006, p.75):
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado
global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens
internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de
comunicação globalmente interligados, mais as identidades
se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares,
histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”.
Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades
(cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a
diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer
uma escolha.
Na concepção identidade-diferença, utilizando-se de uma
visão mais radical, pode-se dizer possível vir a diferença em primeiro
lugar e, para tanto, seria preciso considerar a diferença não como
resultado de um processo, mas como o processo mesmo pelo qual
tanto a identidade quanto a diferença são produzidas (HALL e
WOODWARD, 2007).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 37

3 A linguagem na comunhão da identidade e da diferen-


ça

Além da característica de interdependência existente entre


diferença e identidade, estas comungam de outra importante
singularidade, qual seja, elas são o resultado de atos de criação
linguística. (HALL e WOODWARD, 2007).
Em assim sendo, fora dos sistemas de significação, a
identidade e a diferença não podem ser compreendidas, pois a
linguagem, lato sensu, constitui-se, por si mesma, uma estrutura
instável (HALL e WOODWARD, 2007).
Há que se consignar a existência de uma estratégia,
denominada terapêutica, que aceita ser a diversidade considerada
“natural” e boa, em que pese atribua a rejeição da diferença e do
outro a distúrbios psicológicos, segundo Hall e Woodward (2007,
p.98):
Para essa perspectiva, a incapacidade de conviver com a diferença
é fruto de sentimentos de discriminação, de preconceitos, de
crenças distorcidas e de estereótipos, isto é, de imagens do outros
que são fundamentalmente errôneas. A estratégia pedagógica
correspondente consistiria em “tratar” psicologicamente essas
atitudes inadequadas. Como o tratamento preconceituoso e
discriminatório do outro é um desvio é um desvio de conduta,
a pedagogia e o currículo deveriam proporcionar atividades,
exercícios e processos de conscientização que permitissem que
as estudantes e os estudantes mudassem suas atitudes.
A indeterminação fatal da linguagem decorre de uma
característica fundamental do signo, nos dizeres de Hall e
Woodward (2007, p.78):
O signo é um sinal, uma marca, um traço que está no lugar
de uma outra coisa, a qual pode ser um objeto concreto (o
objeto “gato”, um conceito ligado a um objeto concreto (o
conceito de “gato” ou um conceito abstrato (“amor”). O signo
não coincide com a coisa ou o conceito.
Na medida em que identidade e diferença são definidas,
em parte, por meio da linguagem, elas não podem deixar de ser
38 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

marcadas, ainda, pela indeterminação e pela instabilidade, sendo


ambas indeterminadas e instáveis quanto à linguagem da qual
dependem (HALL e WOODWARD, 2007).
Nessa esteira, complementam os autores (2007, p.109):
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e
não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como
produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no
interior de formações e práticas discursivas específicas, por
estratégias e iniciativas específicas.
Sinale-se, por oportuno, que a sociedade, a cultura e a
linguagem mantém a sua distinção, mas não resta estagnada por
muito tempo, permanecendo sempre apta a mudanças. A cultura,
sincronicamente, não admite o “agora” separado do passado,
nem autossustentada quando se ignoram suas vistas ao futuro
(BAUMAN, 2012).
Ao dizer-se algo referente a determinadas características
identitárias de algum grupo cultural, por exemplo, tem-se a
impressão de que o que se diz, simplesmente descreve uma situação
existente, um “fato” do mundo social. No entanto, ao contrário
dessa aparente simplicidade, manifestam-se Hall e Woodward
(2007, p.93):
O que esquecemos é que aquilo que dizemos faz parte
de uma rede mais ampla de atos linguísticos que, em seu
conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que
supostamente apenas estamos descrevendo. [...] A eficácia
produtiva dos enunciados performativos ligados à identidade
depende de sua incessante repetição. Em termos da produção
da identidade,a ocorrência de uma única sentença desse tipo
não teria nenhum efeito importante. É de sua repetição e,
sobretudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a força
que um ato linguístico desse tipo tem no processo de produção
de identidade.
Verifica-se, portanto, que a repetição é o que caracteriza
determinado objeto como sendo aquele dito objeto, vez que apenas
uma sentença única em relação ao objeto, não geraria nenhum
efeito, pois a tautologia ou repetição, bem como da possibilidade
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 39

dessa repetição é que surge o ato linguístico forte no processo de


produção de identidade.
Essa repetitividade pode [re]significar outra possibilidade: a
interrupção das identidades hegemônicas. A ruptura dessa repetição
é o que vai caracterizar os atos performativos que reforçam as
diferenças instauradas, tornando admissível pensar na produção de
novas e renovadas identidades (BUTLER, 1999).
A identidade e a diferença necessitam ser ativamente
produzidas, conforme Hall e Woodward (2007, p. 76):
Além de serem interdependentes, identidade e diferença
partilham uma importante característica: elas são o resultado
de atos de criação linguística. Dizer que são o resultado de
atos de criação significa dizer que não são “elementos” da
natureza, que não são essências, que não são coisas que estejam
simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou descobertas,
respeitadas ou toleradas.[...] Elas não são criaturas do mundo
natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo
cultural e social, Somos nós que as fabricamos, no contexto
de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são
criações sociais e culturais.
A linguagem marca a diferença, bem como a identidade,
justamente por suas comuns características de incompletudes,
indeterminações, instabilidades, especialmente porque ambas
[identidade e diferença] são marcadas pelo resultado de atos de
criação linguística, criações sociais e culturais.
Por esse prisma, a identidade social constitui-se pela
interação dos mecanismos psicológicos e dos fatores sociais,
enquanto processo social dinâmico, evolutivo, construído tanto
por semelhança quanto por oposição (MACHADO, 2003).

4 A construção sociocultural pelas relações de identida-


de e diferença

As relações sociais constituem, já na primeira infância, a


identidade de cada sujeito, internaliza valores e absorve papéis que
40 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

lhes são apresentados. Isso denomina-se socialização primária e,


ressalvando eventual exceção, ocorre no próprio âmbito familiar,
quando à criança são apresentados os primeiros papéis e conceitos
que serão, por ela, internalizados (PAULINO-PEREIRA, DOS
SANTOS e MENDES, 2017).
De forma progressiva, cada indivíduo finda por apropriar-
se da realidade e atribui um sentido pessoal às significações sociais,
passando a identidade a um constante vir-a-ser, dada às condições
objetivas, às expectativas [tanto] da sociedade quanto daquelas
que já mantém internalizadas. Desde o dia de seu nascimento,
diuturnamente, novos acontecimentos e significados agregam-se
ao cotidiano existencial, atribuindo ao ser humano e ao mundo,
diversos predicados, para o bem e para o mal (PAULINO-
PEREIRA, 2006).
Todavia, é na atividade social que ocorre a objetivação,
findando pela realização da materialidade do processo identitário
(CIAMPA, 2005).
No tocante à questão cultural, insta mencionar que a
cultura é um fenômeno do mundo, relacionando-se com pessoas,
enquanto que o entretenimento diz respeito à pessoas, sendo um
fenômeno da vida, nas lições de Arendt (2016, p.260-261):
Um objeto é cultural na medida em que pode durar; sua
durabilidade é o contrário mesmo da funcionalidade, que é a
qualidade que faz com que ele novamente desapareça do mundo
fenomênico ao ser usado e consumido. O grande usuário e
consumidor de objetos é a própria vida, a vida do indivíduo
e a vida em sociedade como um todo. A vida é indiferente
à qualidade de um objeto enquanto tal; ela insiste em que
toda coisa deve ser funcional, satisfazer alguma necessidade. A
cultura é ameaçada quanto todos os objetos e coisas seculares,
produzidos pelo presente ou pelo passado, são tratados como
meras funções para o processo vital da sociedade, como se aí
estivessem somente para satisfazer a alguma necessidade – e
nessa funcionalização é praticamente indiferente saber se as
necessidades em questão são de ordem superior ou inferior.
Assim sendo, a durabilidade de determinado objeto é o que
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 41

o concebe na condição de objeto cultural e não a sua qualidade


existencial como função de uso e consumo para desaparecer do
mundo fenomênico, denominado de funcionalidade. Dessa forma,
ameaça-se uma cultura, quando todos os objetos e coisas seculares
produzidas pelo passado e pelo próprio presente são considerados,
apenas, como instrumentos de funcionalidade para o processo
vital da sociedade. Ou seja, existe, somente para satisfazer alguma
necessidade.
No tocante à identidade cultural, Hall (2006, p.47), assim
se manifesta:
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos
se constituem em uma das principais fontes de identidade
cultural. Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos
ingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente,
ao fazer isso estamos falando de forma metafórica. Essas
identidades não estão literalmente impressas em nossos genes.
Entretanto, nós efetivamente pensamos nelas como se fossem
parte de nossa natureza essencial.
A própria condição de homem faz com que o indivíduo,
em que pese exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente
porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo como algo
mais amplo, reconhecendo-o como seu lar (SCRUTON, 1986).
Em assim sendo, as culturas nacionais constituem-se como
forma moderna, segundo Hall (2006, p. 49):
A lealdade e a identificação que, numa era pré-moderna ou
em sociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo, ao povo,
à religião e à região, foram transferidas, gradualmente, nas
sociedades ocidentais à cultura nacional. As diferenças regionais
e étnicas foram gradualmente sendo colocadas, de forma
subordinada, sob aquilo que Gellner chama de “teto político”
do estado-nação, que se tornou, assim, uma fonte poderosa de
significados para as identidades culturais modernas.
Insta mencionar que os atos de identificação e lealdade que
eram dedicados à comunidade e aos costumes pertencentes à região
foram migrando, de forma gradual, nas sociedades ocidentais à
cultura nacional, onde diferenças regionais e/ou étnicas foram se
42 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

subordinando sob o amparo político do estado-nação, tornando-se


uma fonte poderosa de significados para as identidades culturais
modernas.
É possível que os integrantes de uma mesma sociedade
compartilhem as mesmas maneiras de estar no mundo, advindas de
sua socialização primeira e de outras sequencialmente decorrentes,
que contribuem a defini-los e que memorizam sem ter consciência,
o que é o princípio mesmo de sua eficácia. Nesse diapasão, até é
possível atribuir nuances às concepções situacionais de identidade,
sem rejeitá-las, considerando a existência de um núcleo memorial,
um fundo ou um substrato cultural compartilhado por uma maioria
dos membros de um grupo e que confere a este uma identidade
dotada de uma certa essência (CANDAL, 2016).
No entanto, essa afirmação encontra-se absolutamente
suscetível à críticas, por duas razões, segundo menciona o autor
(2016, p.26-27):
De um lado, parece-nos abusivo utilizar as expressões
“identidade cultural” ou “identidade coletiva” para designar
um suposto estado de um grupo inteiro quando apenas uma
maioria dos membros desse grupo compartilha o estado
considerado: de fato, mesmo que nos limitássemos a um estado
exclusivamente “protomemorial”, descarto a possibilidade de
que todos os membros do grupo compartilhem esse estado. Por
outro lado, é reducionista definir a identidade de um grupo
a partir unicamente da protomemória, pois as estratégias
identitárias de membros de uma sociedade consistem em jogos
muito mais sutis que o simples fato de expor passivamente
hábitos incorporados.
Essas teses são convincentes, pois sustentam que as
identidades são produzidas e se modificam ante as relações, reações
e interações sociossituacionais, ou seja, situações, contexto e
circunstâncias que fazem eclodir sentimentos de pertencimento, de
“visões de mundo” identitárias ou étnicas, ao contrário da ideia a
partir de uma construção estável e definida como “traços culturais”
(CANDAL, 2016).
Precisa-se, no entanto, vincular as discussões voltadas
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 43

à identidade aos processos e práticas que têm se mostrado


perturbadores do caráter relativamente “estabelecido” da maioria
das populações e culturas, os quais, conforme Hall e Woodward
(2007, p. 108):
[...] coincidem com a modernidade (Hall, 1996), e os
processos de migração forçada (ou “livre”) que têm se tornado
um fenômeno global do assim chamado mundo pós-colonial.
As identidades parecem invocar uma origem que residiria em
um passado histórico com o qual elas continuariam a manter
uma certa correspondência, com a questão da utilização
dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a
produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual
nos tornamos.
A formação de uma cultura nacional contribuiu para criar
padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua
vernacular como dominante, criou uma cultura homogênea e
manteve instituições culturais nacionais (HALLS, 2006).
Há também a possibilidade de uma interação geral
entre regiões, etnias e classes, findando por interessar ao aspecto
comunitário e ao aspecto da diferença da identidade cultural,
conforme aduzido por Debrun (2006):
Não há mais, apenas, generalização do Carnaval, do samba,
do futebol por justaposição, por exemplo, de inúmeros
microcarnavais através da imensidão brasileira, mas a
transformação, mediada pela TV, do Brasil em imenso
auto espetáculo. A nova transparência do espaço permite
a todos presenciarem todos, pularem com todos. Parece
que o privatismo da sociedade brasileira não é, nessa área,
incompatível com o da expansão universal, da esfera pública.
Cada um pode, ficando no seu lugar, participar de tudo com
todos. Não há dialética tensa de público e de privado, que
vigora, ou deveria vigorar, na área política. Mas uma transição
e uma oscilação suaves entre os dois pólos.
Todavia, a homogeneização cultural finda por ser uma
espécie de grito daqueles que sofrem angústias por convencerem-se
de que a globalização ameaça solapar as identidades e a “unidade”
das culturas nacionais, conforme Hall (2006 p.77):
44 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Pode-se considerar, no mínimo, três qualificações ou


contratendências principais: A primeira vem do argumento de
Kevin Robin e da observação de que, ao lado da tendência
em direção à homogeneização global, há também uma
fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e
da “alteridade”, Há, juntamente como o impacto do “global”,
um novo interesse pelo “local”. A globalização (na forma da
especialização flexível e da estratégia de criação de “nichos” de
mercado), na verdade, explora a diferenciação local. Assim, ao
invés de pensar no global como “substituindo” o local seria
mais acurado pensar numa nova articulação entre o “global”
e o “local”.
Não parece crível que a globalização reste por destruir
as identidades nacionais. Possivelmente, a globalização busque
produzir, simultaneamente, novas identificações “globais” e novas
identificações “locais” (HALL, 2006).
A contestação dos contornos estabelecidos da identidade
nacional, expondo seu fechamento às pressões da diferença,
da alteridade e da diversidade cultural, tem ocorrido em
diferentes graus, em todas as culturas nacionais ocidentais e, por
conseguinte, fez com que toda a questão da identidade nacional
e da “centralidade” cultural ocidental fosse objeto de discussão,
provocando uma espécie de alargamento do campo das identidades
e uma proliferação de novas posições-de-identidade, acrescido
do aumento de polarização entre elas, levando à possibilidade de
um fortalecimento de identidades locais ou à produção de novas
identidades (HALL, 2006).
As identidades locais tiveram esse fortalecimento pela reação
defensiva de grupos étnicos dominantes, ameaçados pela presença
de outras culturas. No tocante às novas identidades, a globalização
apresenta-se com efeito pluralizante sobre as identidades,
produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de
identificação, tornando-as mais: posicionais, políticas, plurais e
diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas (HALL, 2006).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 45

5 Considerações finais

A partir das considerações aportadas, verifica-se a


importância da reflexão sobre o fenômeno da identidade e diferença,
especialmente, por parecerem surgir de uma fonte antagônica, com
todas as características, gêneses e demais atributos diametralmente
opostas, mas na verdade apresentam especificidades independentes,
autorreferenciadas que remontam a si mesmas.
A diferença e a identidade são frutos, dentre outros,
dos resultados de atos de criação linguística, não podendo ser
compreendidas externamente aos sistemas de significação, pois a
linguagem também constitui, por si própria, uma estrutura instável.
Sinale-se, por oportuno, que a identidade, a diferença, a
linguagem, acrescendo-se da sociedade e da cultura encontram-se
a todo o instante suscetíveis a mudanças, em virtude de seus traços
comuns de incompletudes e instabilidades.
A identidade e a diferença também são constituídas de
relações sociais e relações culturais, onde desde a primeira infância
internalizam valores e papéis, apropriando-se, na sequência
progressiva da vida, da realidade em que vive, passando a atribuir
um sentimento pessoal às significações socioculturais.
É na atividade social que acontece o fenômeno da
materialização do processo de identidade. Contudo, é no viés
cultural, que o objeto se dá na sua durabilidade e não na sua
funcionalidade.
Dessa forma, uma cultura pode ser ameaçada quando todos
os seus objetos passam a ser considerados como instrumentos
de funcionalidade para a sobrevivência da sociedade, servindo,
portanto, apenas para satisfazer alguma necessidade social.
O homem, enquanto indivíduo, é capaz de se identificar
com seu lar, razão pela qual as culturas nacionais constituem-se
como uma poderosa fonte de significados para as identidades
culturais de cunho moderno.
No entanto, a contestação ao fator identidade nacional,
46 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

tem ocorrido em diferentes graus e culturas nacionais ocidentais,


questionando a questão da identidade nacional e da “centralidade”
cultural ocidental, proliferando novas posições identitárias, a
polarização, o fortalecimento de identidades locais e a produção de
novas identidades.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de


Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2016.
BAUMAN, Zigmunt. Ensaios sobre o conceito de cultura.
Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,
2012.
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do “sexo”. In: LOPES LOURO, Guacira (org). O corpo educado.
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Letícia Ferreira. 1.ed. São Paulo: Contexto, 2016.
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nacional brasileira. In: Institutos de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo, 2006.
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University Press, 1986
CIAMPA, A. A estória do Severino e a história da Severina: um
ensaio de psicologia social. São Paulo: Editora Brasiliense. (2005).
Capítulo 3

Projeto Profissão Catador: as associações de


catadores como instrumento de transformação
social e desenvolvimento da cidadania

Daniela da Silva
Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces

1 Introdução

O catador é aquele profissional que faz o recolhimento


de materiais recicláveis, seja de forma autônoma ou
vinculado a associações, cooperativas e, até, prestando serviços para
alguma empresa desse ramo. A seguinte pesquisa busca identificar
qual o papel das associações para esses trabalhadores e qual a
importância de essas pessoas estarem inseridas nesses ambientes. A
realização da pesquisa partiu da hipótese de que as associações de
catadores são uma ferramenta de inclusão social para esse público
que, muitas vezes, enfrenta uma situação de vulnerabilidade e
encontram nesse meio uma forma de sobrevivência e retorno ao
mercado de trabalho.
O objetivo principal da pesquisa é verificar se os catadores
ganham maior visibilidade participando das associações e se há um
desenvolvimento e transformação social quando inseridos nestes
ambientes. Além disso, os catadores exercem um papel muito
importante no que diz respeito à sustentabilidade, pois auxiliam
na manutenção da limpeza urbana. Entretanto, para que haja êxito
em seu trabalho, a comunidade precisa contribuir com a separação
correta dos materiais. Por conta disso, essa pesquisa também busca
50 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

analisar se as associações possuem maior força para atingir o objetivo


de levar o seu trabalho até a comunidade, para que conheçam o
projeto e passem a fazer essa contribuição.
Para se chegar aos resultados desejados, utilizou-se a
pesquisa bibliográfica, com análise de documentos de instituições,
trabalhos e citações de outros autores já realizados sobre a
temática do Projeto Profissão Catador, um projeto que contava
com o fomento da Universidade de Cruz Alta, Banco do Brasil
e patrocínio da Petrobrás, e que contribuiu com a organização
de diversos grupos de catadores e associações na região, além de
pesquisa sobre as associações como instrumento de transformação
social. Esta pesquisadora também traz relatos aprendidos sobre o
Projeto enquanto bolsista do Programa Institucional de Bolsas de
Extensão- PIBEX e Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
Científica- PIBIC na graduação de Jornalismo na Universidade de
Cruz Alta.

2 Desenvolvimento

Os catadores são profissionais que trabalham com a coleta


de materiais recicláveis e fazem, consequentemente, a sua venda
para empresas que vão reverter o material em matéria-prima,
possibilitando a sua utilização em outros produtos que voltam a ser
comercializados.
Esse processo engloba todas as operações referentes ao
reaproveitamento de produtos, tais como: reciclagem, recuperação
de matéria-prima, reforma e revenda de itens que foram devolvidos
ou retornaram ao fabricante chama-se logística reversa. Portanto,
podemos compreender que os catadores são agentes dessa
modalidade. Além disso, a logística reversa é uma alternativa para o
problema do entulhamento de lixo nos aterros sanitários.
O conceito de logística reversa vem sendo bastante
comentado atualmente por conta da compreensão acerca
da sua importância para o meio ambiente. Além disso, uma
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 51

preocupação presente na sociedade é em relação ao descarte do lixo,


principalmente pelo aumento populacional e globalização. Dessa
forma, as questões que rondam a sociedade é até quando teremos
espaço e recursos suficientes para conseguir gerenciar todo esse
material que produzimos e jogamos fora.
A logística reversa compreende os processos do recolhimento
do material reciclável até a sua venda para alguma empresa
especializada na realização da reciclagem deste, permitindo que vire
matéria-prima, seja utilizado na confecção de um novo produto
e retorne ao mercado para a sua comercialização. Portanto, é o
processo contrário do que estamos acostumados: produção a partir
da matéria-prima, venda e descarte. Besen conceitua o que é a
logística reversa:
Instrumento de desenvolvimento econômico e social
caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios
destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos
ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em
outros ciclos produtivos, ou outra disposição final ambientalmente
adequada. (BESE et al., 2017. p. 15)
Nesse sentido, a logística reversa surge como uma alternativa
para esse problema do descarte de lixo, podendo auxiliar a diminuir
a quantidade dos materiais que vão para os aterros sanitários e,
assim, evitar um grande problema social e ambiental. Como reforça
Campos (2014):
Os catadores de materiais recicláveis podem ser considerados
os grandes protagonistas da indústria de reciclagem no
país, mesmo antes da definição de políticas públicas claras
para a gestão de resíduos no país, veem realizando um
trabalho de grande importância ambiental, contribuindo
significativamente para o retorno de diferentes materiais para
o ciclo produtivo, gerando economia de energia e de matéria
prima, e evitando que diversos materiais sejam destinados a
aterros. (CAMPOS, 2014, p. 80).
Sobre o aumento populacional e problemas de consumo
causados pela globalização, Fortuna e Foschiera (2015), destacam
52 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

que há uma exploração dos recursos naturais e entulhamento de


resíduos, que promovem o colapso energético apenas para satisfazer
o desejo do consumo de quem compra e lucro de quem vende.
Sendo assim, o descarte desses resíduos realizado de forma incorreta
poderá ocasionar em problemas ambientais, que serão um desafio
social a longo prazo.
Nesse sentido, o que, para muitas pessoas, é lixo, transforma-
se em fonte de renda para esses profissionais. Alguns catadores atuam
de forma autônoma. Mas, uma alternativa que visa a organização
dessas pessoas são as associações de catadores.
De uma maneira geral, conforme Pinhel (2013), a
organização dos catadores, que atuam em grupo, é importante
para a inserção social e eles vêm estabelecendo seus deveres como
profissionais e conquistando seu direito ao emprego, renda, respeito
e vida mais digna.
Historicamente, os catadores de materiais recicláveis sofrem
alguns preconceitos relacionados a sua atividade. Os autores Fontão
e Oliveira explicam essa discriminação para com as pessoas que
prestam esse serviço:
A figura do catador de materiais recicláveis sempre foi vista
de forma discriminatória por parte da sociedade, dado o
caráter do seu trabalho, que o obriga a viver em meio ao lixo,
coletando resíduos para serem vendidos para, assim, garantir o
sustento de seus familiares (Fontão; Oliveira, 2020, n/p).
Dessa forma, além de encontrarem dificuldades econômicas
e sociais que os fazem ingressar nessa atividade para conseguirem
sobreviver, ainda precisam lidar com a discriminação que encontram
depois de já estarem exercendo as suas atividades.
Conforme Miura (2004, p.7), as pessoas acabam ingressando
na atividade de catação por motivos que englobam exclusão do
mercado de trabalho por fatores sociais: “Conclui-se que tornar-se
catador, principalmente se participante de um grupo organizado, é
uma possibilidade de potencialização da vida para aquele que se via
excluído do mercado de trabalho e sem opções, prejudicado no que
se refere à escolaridade e à preparação técnica”. Então, essas pessoas
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 53

acabam atuando de forma autônoma ou, até, em associações.


Um desses exemplos de organização dos catadores nas
associações ocorre por meio do Projeto Profissão Catador. Esse
projeto existiu até o ano de 2021, seu papel era dar oportunidade
para que as pessoas pudessem ter acesso a uma ocupação através da
catação de materiais, permitindo que eles estivessem inseridos no
mercado de trabalho e, dessa forma, consigam renda por conta da
venda dos materiais recicláveis. Dessa forma, o valor adquirido por
meio da venda, era distribuído entre os catadores participantes do
projeto.
Entretanto, o Projeto Profissão Catador foi encerrado no
ano anteriormente citado e as associações que eles ajudaram a
montar agora atuam de forma autônoma. As associações instauradas
por meio do Projeto têm sede nos municípios de Ibirubá, Salto do
Jacuí, Cruz Alta e Tupanciretã.
Então, o Projeto Profissão Catador deixou um legado através
da formação das associações, que permitem que os catadores de
materiais recicláveis desempenhem as suas funções em conjunto.
As associações também são importantes para que os catadores
tenham força de grupo não apenas no trabalho, mas nas lutas e
reivindicações trabalhistas e, dessa forma, realizem manifestações
de suas exigências e consigam atingir mais pessoas, com o intuito
de conseguir apoio da comunidade, visto que dependem da
colaboração da sociedade, que precisa realizar a separação correta
do lixo. De acordo com IPEA (2013), a organização de catadores
é importante, pois lhes propicia maior capacidade de mobilização
para negociar com o poder público e outros setores da sociedade.
Os autores Besen, et al. (2017, p.20), listaram algumas
vantagens das organizações dos catadores de materiais recicláveis e
como estar em grupo pode contribuir para o trabalho realizado por
essas pessoas:
Melhoria das condições de trabalho e da qualidade de vida dos
membros das organizações quando comparadas às do trabalho
informal;
54 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Maior diversificação dos tipos de materiais separados e


qualidade da segregação, quando comparado com centrais
mecanizadas;
Capacidade de comercialização conjunta (em rede);
Mobilização e sensibilização da sociedade sobre a realidade dos
catadores, bem como sobre a necessidade da minimização de
resíduos que leva à preservação ambiental e redução de danos;
Captação de recursos por meio de projetos, em editais e linhas
governamentais de crédito específicos;
Contratação das organizações pelos órgãos públicos,
sem necessidade de licitação; Autonomia para negociar a
comercialização de materiais recicláveis;
Defesa dos direitos dos Catadores;
Possibilidade de investimentos que beneficiam todos os
integrantes, como cursos de alfabetização, técnicas de
reciclagem, contabilidade etc.
Então, as pessoas que realizam essas atividades não são
apenas as que passam fazendo o recolhimento nas ruas, mas começa
a ser reconhecido como um negócio, uma profissão, não apenas
como algo feito para a subsistência. De acordo com Medeiros e
Macêdo:
Embora a catação seja tal como a atividade de vendedor
ambulante, realizada informalmente, a partir de 1980, os
catadores começaram a se organizar em cooperativas ou
associações, na busca pelo reconhecimento dessa atividade
como profissão. (MEDEIROS e MACEDO, 2007, p. 81)
O Projeto Profissão Catador também possui um papel
social importante no que diz respeito à formação de quem está
inserido no Programa. Vale destacar que, antes de iniciar ativamente
o trabalho, os catadores recebiam um treinamento sobre como
executar as funções, além de aprenderem sobre quais materiais são
recicláveis, as condições que esses devem possuir, o que garante um
preparo e otimização do serviço.
Mas, não são apenas ações voltadas para a atividade técnica
de catação. As Associações pertencentes ao Projeto Profissão Catador
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 55

também realizam ações voltadas para a divulgação e aprimoramento


da comunicação entre os catadores e a sociedade. Essas ações são
palestras, participação em eventos, feiras, distribuição de materiais
sobre o projeto, dentre outras, que destacam o trabalho realizado
por esses profissionais inseridos nas associações. Enquanto bolsista
PIBEX e PIBIC, esta pesquisadora pôde acompanhar algumas
dessas ações realizadas.
Como registrado na página do Projeto Profissão Catador,
no site da Universidade de Cruz Alta, na seção “sobre nós”, o Projeto
também tinha o intuito de realizar essa formação cidadão, para
além da formação trabalhista:
Outro aspecto importante é a formação política dos
participantes do projeto, por meio da participação em instâncias
representativas, como audiências públicas, reuniões, fóruns,
encontros e seminários, apresentando seus posicionamentos
em defesa da atividade de catação de materiais recicláveis e dos
seus direitos sociais. (UNICRUZ, s.d)
Isso permite que o catador seja protagonista social e que
possa levar os seus relatos e experiências para as pessoas, a fim de
ganhar engajamento e maior contribuição da comunidade para com
o projeto, buscando o aumento de sua renda. É fundamental que as
pessoas que estão de fora do projeto compreendam como poderão
ajudar e nada melhor que o próprio catador leve essa mensagem
para a comunidade, pois terão capacidade de causar comoção ou
sensibilização nas pessoas para as quais estão falando.
Portanto, de um modo geral, a inserção dos catadores em
associações é importante para garantir que esses tenham seguridade
financeira e atinjam um público que não conseguiriam atuando
de forma autônoma. Além disso, participando das associações,
recebem o aporte necessário para a execução de suas funções e
conseguem adquirir conhecimento e visibilidade.
56 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

3 Considerações finais

Após a análise dos materiais sobre a temática do Projeto


Profissão Catador, assim como o seu papel social, pode-se concluir
que todas as pesquisas apontam que a inserção dos catadores nas
associações garante uma maior qualidade de trabalho para esses
profissionais, que recebem um suporte para a execução de suas
funções, aprendem como realiza-las de maneira correta e, também,
de maneira mais rápida, já que conseguirão identificar os materiais
recicláveis e em condições de comercialização para as empresas que
realizam esse procedimento, por exemplo.
Como os catadores dependem da colaboração da
comunidade para conseguirem o material de que precisam para
vender e, consequentemente, obter a renda necessária para a sua
subsistência, também é preciso atingir esse público de alguma
forma. De acordo com a pesquisa realizada, foi possível perceber
que as associações de catadores garantem maior força e visibilidade
de divulgação e esses adquirem mais capacidade de negociação com
outros setores da sociedade.
Inclusive, é muito importante que as associações de
catadores consigam dialogar com os setores públicos, como a
Prefeitura Municipal, pois esse órgão poderá ser um grande aliado
no que diz respeito a divulgação dos trabalhos realizados pelos
catadores do Projeto Profissão Catador e, acima de tudo, pode
realizar ações coletivas para que os trabalhadores das associações
consigam aumentar a sua renda. Por exemplo, a Prefeitura pode
intensificar as campanhas sobre coleta seletiva para os munícipes e,
até espalhar lixeiras com recipientes separados de acordo com cada
material. Outra sugestão para melhorar ainda mais o trabalho e
rendimento dos catadores é buscar parcerias com empresas, para que
essas repassem os materiais em condições de serem reciclados para a
associação. As empresas geralmente produzem bastante material e
isso poderá aumentar significativamente o volume comercializado
e o valor recebido pela venda.
Vale lembrar que o Projeto Profissão Catador não é
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 57

importante apenas para os trabalhadores que estão inseridos nele.


O trabalho feito pelos catadores também possui uma contribuição
para o meio ambiente, já que todo e qualquer material que vai para
a reciclagem deixa de ir para os aterros sanitários. Dessa forma,
além de auxiliar na manutenção da limpeza das cidades, contribui
para um problema que poderemos vir a ter a longo prazo, que são
as lotações dos aterros. Nesse sentido, também, contribui com a
economia do poder público, pois os aterros demandam de verba
para a sua manutenção e, quando ocorre a lotação desses espaços de
descarte de resíduos, é preciso a criação de mais um aterro. Portanto,
além da necessidade de gastos monetários, também requer a busca
por um espaço afastado que possa abrigar um novo aterro.
Além disso, as associações de catadores são muito
importantes para que essas pessoas possam ter mais oportunidades,
visto que, historicamente, possuem uma condição social que as
exclui do mercado de trabalho. Então, é uma chance de conseguir
renda e sobreviver no sistema capitalista, mas com mais condições
de reivindicar melhorias do que se tivessem atuando de forma
autônoma.
Por fim, esta pesquisadora pretende continuar os estudos
acerca do Projeto Profissão Catador e da importância das associações
para esses profissionais, assim como as mudanças que essas pessoas
já tiveram em suas vidas após o ingresso na associação de catadores
pertencente ao Projeto. Mas, agora, realizando um estudo de campo
na Associação de Ibirubá, a fim de verificar essas questões a partir
do próprio relato de quem está inserido e trabalhando ativamente
no Projeto.

Referências

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de organizações de catadores: indicadores e índices de
sustentabilidade. Fundação Nacional de Saúde; Universidade de
São Paulo. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública/USP, 2017
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CAMPOS, Vanessa Escobar de. Gestão de resíduos sólidos


urbanos: contribuições socioambientais de duas cooperativas
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Capítulo 4

Velhos problemas em um novo cenário: uma


discussão sobre as fake news nas democracias
atuais

Bianca Tito
Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza

1 Introdução

A invenção da internet representa um dos momentos


de maior impacto no desenrolar da história mundial.
Surgida no século XX, nos Estados Unidos da América, os seus
efeitos e consequências estão ficando cada vez mais evidentes
nessas primeiras décadas do século XXI, o que, conforme pode
ser observado em âmbito global, se dá não só naquele país, mas
em todo o mundo, ainda que em graus distintos. Entre os frutos
advindos de uma criação como essa, que cotidianamente realiza
alterações na sociedade civil, está a sua influência na forma como as
pessoas hoje se relacionam umas com as outras (EMPOLI, 2019).
Sobre isso, as pessoas cada vez mais se comunicam através
das plataformas e vias digitais, redes sociais, fóruns de discussões
etc., e como resultado disso nos vemos inseridos em um novo
mundo, uma outra realidade, em que novos desafios, muito mais
complexos do que aqueles que antes conhecíamos, passam a ser
introduzidos e precisam ser enfrentados com o devido cuidado e
urgência. Aqui o que se fala é da percepção, que vai ficando cada
vez mais evidente nas sociedades modernas e democráticas, do
quão vulnerável o nosso direito à democracia pode ser – isto é, do
quão indefeso o nosso Estado Democrático de Direito pode ser
(MACEDO JÚNIOR, 2018).
62 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Ainda, por trás da aparente simplicidade na definição do


fenômeno das fake News, existe uma série de complexidades que
merecem ser discutidas a fundo, para entender a sua relação com o
Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão e as novas
tecnologias. Há duas maneiras de encarar a questão: por um lado,
busca-se compreender e conceituar o termo fake News como algo
absolutamente novo e nunca antes observado, e, por outro lado,
tende-se a compreender fake News como uma nova representação
de um fenômeno social antigo, ou seja, algo que já existia, mas que
se apresenta a partir de novos elementos.
Considerando isso, o presente artigo propõe uma discussão
acerca da questão das fake news e dos problemas que por elas
são trazidos no/para o Estado Democrático de Direito, em que
garantias como as de liberdade de informação e de manifestação do
pensamento devem ser asseguradas para todos. Evidente que esse
fenômeno traz questões importantes a partir de distintos aspectos
que não só o das liberdades, no entanto, dada a inviabilidade de
abordarmos todas elas, há a necessidade deste recorte temático, o
qual nos permite um melhor desenvolvimento do assunto.
Portanto, traz como objetivo geral analisar se as fake news se
constituem, ou não, em um limite legítimo ao exercício do direito
à liberdade de expressão. Para concretizá-lo foram traçados alguns
objetivos específicos, como: I) discutir o problema das fake news
enquanto um problema que se refere a uma questão “velha” e não
atual, mas renovada pelo meio como hoje elas são propagadas;
II) depois, compreendido melhor o conceito de fake news e sua
problematização na modernidade, analisar a sua relação com
a garantia do direito à liberdade de expressão, bem como com a
adoção da democracia enquanto regime político.
A metodologia adotada é a da pesquisa bibliográfica,
eis que nessa são utilizados materiais que já foram previamente
elaborados por outros pesquisadores e que abordam o objeto de
estudo. São utilizados principalmente livros e artigos científicos de
publicação periódica, se constituindo em fontes importantes para a
coleta de dados necessários ao desenvolvimento desta investigação
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 63

(SEVERINO, 2017). Ainda, destaca-se para a importância de um


estudo como esse, dada a sua atualidade e relevância, podendo
contribuir positivamente para a análise do tema.

2 Discutindo o problema das fake news no estado demo-


crático de direito

Aristóteles (2019), em sua obra “Política”, faz referência a


um governo democrático com a participação popular em oposição
ao sistema monárquico, que se configura por estar centralizado nas
mãos de uma única pessoa. Historicamente, a Democracia surgiu
na Grécia Antiga, em Atenas, e se consolidou como uma forma
de organização política das cidades-Estados gregas (as polis), mas a
democracia no sentido real não existia porque a maioria das pessoas
não eram consideradas cidadãos (pessoas que podiam participar da
vida pública), como os escravos, mulheres, crianças e estrangeiros.
Nesse sentido, a palavra “democracia” é de origem grega, definida
como governo (kratos) do povo (demo), que é quem deve tomar as
decisões políticas, de forma direta, quando todos participam das
tomadas de decisão, indireta ou semidireta, em que decisões são
tomadas por representantes eleitos que, nesse caso, falam em nome
daqueles que os elegeram (ARISTÓTELES, 2019).
O Estado democrático moderno tem sua origem nas
revoluções dos séculos XVII e XVIII, quando a burguesia adquire
força econômica e passa a reivindicar mais autonomia diante do poder
soberano absoluto. A Revolução Inglesa, a Revolução Americana
e a Revolução Francesa são as expressões máximas desse período.
Nesse momento histórico, o valor de direitos como a liberdade
passou a ocupar o centro da discussão filosófica, em contraposição
ao antigo Estado absolutista (COMPARATO, 2001). A a liberdade
pessoal antecede o reconhecimento das liberdades civis e políticas,
pois é o “primeiro dos direitos a ser reclamados pelos súditos de
um Estado” (BOBBIO, 2004, p. 112). Assim, a democracia foi
construída com a linguagem da liberdade, com os anseios da nova
burguesia (AMORIM; GUIMARÃES, 2013).
64 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Dessa maneira, a liberdade se revela importante não só no


sentido de que as pessoas a possuam para expressar as suas ideias,
pensamentos e opiniões (direito à liberdade de expressão), mas, da
mesma forma, para outras atividades que exercem ao longo de suas
vidas, como, por exemplo, a liberdade para decidirem com quem
desejam se relacionar e/ou se casar; a escolha de em quem votar;
onde viver; com o que trabalhar etc. Isso significa que cada um dos
cidadãos possui a liberdade para decidir o que fazer com sua vida,
bem como a forma que optará por colocar seus planos em prática
(BINENBOJM, 2020).
Assim, especificamente no que se refere à liberdade de
expressão, essa é fundamental para a construção e aperfeiçoamento
do Estado democrático. Isso porque ela constitui não apenas um
direito fundamental, mas também é necessária diante da realidade
que é a convivência em sociedade. Isto porque os princípios sobre
os quais se funda a democracia moderna são a preservação da
liberdade e da igualdade de direitos. Ou seja, é necessário que o
Estado capte a vontade autêntica do povo e “que os mecanismos
de aferição da vontade popular não deem margem à influência de
fatores criados artificialmente”. (DALLARI, 2007, p. 310).
Nas palavras de Pinto Ferreira, “o Estado Democrático
defende o conteúdo essencial da manifestação da liberdade, que
é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da
exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à
proibição da censura” (apud MORAES, p. 45). Assim, é evidente
a importância da participação do povo nos Estados democráticos,
fundada no conceito de soberania popular. A opinião pública deve
influenciar as decisões políticas, mas a sua formação, enquanto
elemento social, depende da manifestação individual, e, nesse
cenário, um momento de grande impacto no desenrolar, tanto da
história mundial, quanto da manifestação pública, foi o surgimento
da internet no século XX.
Os efeitos e as consequências trazidos por esse novo medium
são sentidos, não somente nos Estados Unidos da América, mas em
todo o mundo. Entre os frutos deixados pela tecnologia, que cada
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 65

vez mais realiza alterações na sociedade civil, está a sua influência na


forma como as pessoas hoje se relacionam (EMPOLI, 2019). Nesse
contexto de artificialidade, trataremos brevemente do caso recente
de como a internet pode ter influência direta sobre a política e, mais
especificamente, sobre pleitos eleitorais, como foi o caso da empresa
Cambridge Analytica, uma organização privada e de origem inglesa,
e que esteve por trás de campanhas como a do Brexit, no Reino
Unido, e da eleição do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald
Trump. A empresa também esteve sob os holofotes às custas de um
escândalo envolvendo o Facebook e os dados pessoais de milhões de
usuários.
Segundo matéria publicada pelo jornal El País (GUIMÓN,
2018), a Cambridge Analytica teria utilizado irregularmente os
dados de cerca de oitenta milhões de usuários da rede social para fins
eleitorais, ao obter informações proveitosas para a disputa política
e vendê-las, assegurando aos clientes maior possibilidade de vitória
por meio de tais análises. Os resultados eram convertidos em ações
de manipulação nas redes sociais e direcionados aos eleitores que se
mostravam mais sujeitos à mudança de opinião. Devido ao uso não
autorizado de dados pessoais dos internautas, tanto a Cambridge,
quanto o Facebook, responderam perante a justiça norte-americana
por possível influência irregular nas eleições presidenciais de 2016
no país.
A eleição para a presidência dos Estados Unidos da América,
que deu a vitória a Donald Trump, se tornou emblemática, pois
ficou marcada pelas revelações a respeito da utilização - de maneira
irregular - de análise de dados de usuários das redes sociais para
promover estratégias de campanha eleitoral e ataques a adversários,
sobretudo, à candidata Hillary Clinton. Esse episódio gerou
apreensão e expectativas, especialmente nos países nos quais existem
eleições livres e acentuado uso da internet pelos cidadãos, como o
Brasil, nas eleições de 2018.
Segundo a conceituação proposta por Allcott e
Gentzkow (2017), pode-se afirmar que as fake news são notícias
comprovadamente falsas, comunicadas com a possibilidade de
66 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

enganar os receptores de maneiras diversas. Ou, ainda, as notícias


falsas procuram enganar, criar uma outra realidade, produzir um
novo tipo de conteúdo intencionalmente falso e com objetivo de
explorar as circunstâncias do universo online, onde são encontrados
o anonimato, a rapidez de disseminação da informação, a
fragmentação das fontes de informação e da atenção do usuário da
internet, e o apelo às emoções e ao sensacionalismo (GROSS, 2018.
p. 157). Ademais, uma vez que esse tipo de notícia é disseminado,
é pouco provável que se reverta todo dano causado, e existem pelo
menos três fatores que imediatamente prejudicam o combate à fake
news.
O primeiro deles é a dificuldade de identificá-las, tendo em
vista que muitas delas não são dadas como óbvias, pois há uma
ação deliberada para ocultar as partes falsas da notícia por meio
de diferentes técnicas (confusão de datas; notícias parcialmente
verdadeiras; nomes de pessoas e instituições trocados; caracterização
ou denominação semelhante a portais de notícias com credibilidade
etc.). O segundo diz respeito à dificuldade de se chegar à fonte
propagadora original, que frequentemente se esconde por trás
de identidades falsas e computadores protegidos (CALDAS;
CALDAS, 2019).
O terceiro e último ponto diz respeito aos meios pelos quais
as fake News são propagadas. Além da volubilidade provocada pelas
redes sociais no que se refere à propagação de notícias, de acordo
com o que mostram estudos recentes, as fake News começam a ser
difundidas principalmente no aplicativo de troca de mensagens
instantâneas WhatsApp, para só então se espalharem pelas redes
sociais como Facebook e Twitter, o que dificulta ainda mais a busca
pela fonte original (CALDAS; CALDAS, 2019).
Contudo, de acordo com a proposta de discussão deste
artigo, o problema das fake news não é novo. Os Estados totalitários
da Alemanha Nazista e da União Soviética tinham técnicas para
manipular o público e promover sua ideologia de ódio. Lênin
se especializou em oferecer soluções simples para problemas
complexos, e em identificar “bodes expiatórios” chamados de
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 67

“inimigos do povo” (SEBESTYEN, apud KAKUTANI, 2018, p.


173).
Inclusive, sobre isso, Hitler dedicou capítulos inteiros de sua
obra Mein Kampf (Minha Luta) ao tema da propaganda política.
Os seus discursos, assim como os escritos pelo seu ministro de
propaganda, Joseph Goebbels, acabariam formando uma espécie
de cartilha com ensinamentos como “apele para as emoções das
pessoas, não para o intelecto; use fórmulas estereotipadas, repetidas
várias vezes; ataque continuamente os oponentes e os rotule com
frases ou slogans distintos que provocarão reações viscerais do
público” (KAKUTANI, 2018, p. 173-174), dentre outros.
Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt (1989)
analisou o papel essencial que a propaganda política desempenhou
ao confundir e manipular populações da Alemanha Nazista e da
Rússia Soviética, escrevendo que “num mundo incompreensível e
em constante mudança, as massas chegaram a um ponto em que
acreditavam, ao mesmo tempo em tudo e em nada, achavam que
tudo era possível e que nada era verdade” (ARENDT, 1989, p.
431-432).
A velocidade com que a informação de baixa qualidade pode
circular e confundir no universo digital gera riscos para a proteção
de prerrogativas de expressão centrais em uma democracia, como
para o bom desempenho de incentivos ao debate público plural.
Ainda hoje é perceptível que tais problemas comprometem a
democracia e desacreditam os discursos de liberdade. A facilidade
com que certas propostas de contenção da circulação da falsidade
online ganharam espaço e adesão entre certos grupos da sociedade
civil é um sintoma da carência de debates mais estruturados acerca
das razões pelas quais se protege o direito à liberdade de expressão
(GROSS, 2018, p. 157-158).
68 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

3 O direito à liberdade de expressão e as fake news: um


debate necessário

Considerando o exposto, entendemos que as fake news


não se referem a um problema apenas da atualidade, mas um
fenômeno já existente há bastante tempo. Porém, o que ocorre
mais recentemente é que a invenção da internet possibilitou novas
formas através das quais essas podem ser perpetuadas. Isso faz com
que a sua presença em nossa realidade se torne algo cada vez mais
constante e, por causa disso, precisamos nos dedicar a encontrarmos
soluções que nos auxiliem a enfrentarmos os problemas por ela
trazidos. Entre esses, que são diversos, destaca-se a sua relação com
as liberdades individuais dos cidadãos.
Ou seja, as fake news podem ser discutidas a partir de
diversas frentes e uma delas é a de sua relação com o direito à
liberdade de expressão das pessoas – isso se dá pois é indispensável
que, ao tratarmos sobre o tema das fake news, essa liberdade seja
tomada em consideração, não podendo ser ignorada na discussão,
eis que ao falarmos em imposição de limites sobre esse fenômeno,
então estamos, como consequência disso, discutindo também sobre
limitações a liberdade que cada indivíduo possui para se expressar.
Assim ocorre, pois, ainda que seja por meio de uma fake news, há
alguém ali que deseja expressar algo.
Não se quer aqui defender a legalidade das fake news ou
mesmo uma ideia de liberdade de expressão absoluta – pois são ambas
propostas inviáveis – mas sim, como pressuposto indispensável
para o debate proposto, demonstrar que não há como dissociar o
debate sobre as fake news do direito à liberdade de expressão. Uma
discussão verdadeiramente comprometida em encontrar soluções
para essa problemática, precisa tomar em consideração o direito
à liberdade de expressão que, ao menos em tese, é garantido para
todos os cidadãos dentro de uma legítima democracia.
Diante disso, precisamos tomar bastante cuidado com
a forma como cuidaremos da questão e das soluções que serão
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 69

propostas para ela. Afinal, “como cuidarmos de algo tão urgente


de forma democrática? Podemos encontrar uma resposta que não
acabe, consequentemente, por ferir a nossa democracia? Esses
questionamentos precisam ser levantados em um debate que
envolve a proliferação das fake news” (TITO; FERREIRA, 2020,
p. 730).
Trazendo a discussão para o nosso contexto, da realidade
vivenciada no Brasil, diferentemente do que se dá em outros
países, especialmente nos Estados Unidos, para com a liberdade
de expressão, no cenário brasileiro o que nós podemos observar é
que ainda falta, tanto por parte da doutrina, como também pela
jurisprudência, uma verdadeira e forte tradição liberal quanto a
esse direito. E essa é uma realidade que indispensavelmente precisa
funcionar como um ponto de alerta ao discutirmos questões que
podem comprometê-la (MACEDO JÚNIOR, 2018).
Acerca disso, não existe ainda no Brasil uma compreensão
adequada do conceito de liberdade de expressão, o que é perceptível
especialmente quando comparamos esse com a produção teórica e
jurisprudencial existente em outros países, como Estados Unidos e
Inglaterra. Diferentemente do que ocorre nestes, no caso brasileiro
as discussões sobre a extensão e os limites do direito à liberdade
de expressão continuam sob uma perspectiva que ainda pode ser
entendida como pouco desenvolvida (MEDRADO, 2019).
Não obstante, a Constituição Federal de 88, nosso atual
texto constitucional, inovou ao trazer essa liberdade prevista como
um direito fundamental, tendo sido o primeiro texto constitucional
brasileiro que assim o fez (MEDRADO, 2019). Dessa maneira, o
art. 5º, IV, determina que é livre a manifestação do pensamento,
desde que essa não se dê por meio do anonimato, o qual está
vedado (BRASIL, 1988). Além dessa previsão específica quanto
a tal liberdade, é possível observar que a Constituição brasileira
traz também outros dispositivos que possuem relação direta com a
liberdade de expressão, de maneira que, juntos, “foram a estrutura
jurídico-constitucional que reconhece e protege a liberdade de
expressão em suas formas de manifestação” (TITO; FERREIRA,
70 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

2020, p. 68).
São poucas as hipóteses que possibilitam a imposição de
limites ao seu exercício e isso se deu dessa forma tanto à vista
do contexto histórico vivenciado na época, após os mais de 20
anos de Ditadura Militar no país, como também pelo fato de
que isso fez com que passasse a existir uma real preocupação, da
sociedade e refletindo isso no texto constitucional, com a proteção
dessa liberdade enquanto um direito que é indispensável para a
legitimidade e manutenção de nossa democracia, que estava ainda
sendo restaurada. Com isso, a CF/88 representa um enorme e
importante avanço da legislação brasileira na garantia e efetivação
daquelas liberdades que haviam sido suspensas, como a liberdade
de expressão (MEDRADO, 2019).
Nesse sentido, o que se quer aqui destacar é que, diante do
nosso objeto de estudo, as fake news trazem entre os problemas que
lhe são associados a questão do seu impacto para a democracia,
sendo este um dos principais deles. Isso pois existe uma relação
intrínseca entre a garantia da liberdade de expressão dos cidadãos
e a legitimidade de nosso regime democrático. Ainda, pois, como
vimos, esses são conceitos que não podem ser abandonados quando
nos dedicamos a discutir o fenômeno das fake news na atualidade.
Nas palavras de Clarissa Gross (2018, p. 155):
[...] uma chave importante para compreender algumas das
fontes de divergências acerca do que fazer sobre as Fake News
reside nas relações múltiplas entre o valor da liberdade de
expressão e a democracia. Em outras palavras, penso que a
formulação de concepções distintas do valor da democracia
e do papel que a liberdade de expressão desempenha em cada
uma dessas concepções ajuda a entender o dilema que as Fake
News nos colocam.
Por essa razão, é importante entendermos de qual
liberdade de expressão falamos e de qual é a democracia que nos
comprometemos a proteger. Para tanto, a filosofia do direito serve
como ferramenta importante para nos auxiliar nessa tarefa, vez que
há nesta uma longa trajetória de dedicação às liberdades individuais
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 71

das pessoas. No entanto, tendo em vista a impossibilidade de


realizarmos aqui uma abordagem mais abrangente de tal ramo, nos
deteremos sobre a análise da teoria de John Stuart Mill (2019),
filósofo inglês do século XIX e que mesmo hoje, já no século
XXI, continua a exercer uma importante influência nos debates
sobre as fake news, tendo muitos aspectos de sua teoria que podem
contribuir para esse. É considerando isso que se dá tal escolha pela
teoria milliana.
Em sua obra “Sobre a Liberdade” (On Liberty), ele defendeu
a tese de que a liberdade de expressão é um direito que deve ser
assegurado para todos os cidadãos indistintamente, pois seria
através dela que se tornaria possível que os indivíduos alcançassem
o que é a verdade sobre os mais variados assuntos. Ou seja, essa
liberdade configuraria como um instrumento do qual as pessoas se
utilizariam na busca da verdade. É justamente diante de uma tese
como essa que Stuart Mill (2019) se revela um autor importante
para a nossa pesquisa, haja vista que ele não só tratou sobre a
liberdade de manifestação do pensamento, mas porque ao realizar
isso ele abordou sobre os discursos falsos e verdadeiros que são
expressos na sociedade.
Em relação a esses, notadamente no que se refere aos
discursos compreendidos como ausentes de veracidade, Mill
(2019) argumentou que não seria papel nem do povo e nem da
sociedade limitá-los. Isto é, não seria legítima a restrição de tais
discursos, mesmo se forem eles minoria e, logo, diversos do que é
majoritariamente aceito. Para ele, a censura deveria ser evitada, não
tendo vez na sociedade, mas, pelo contrário, seria imprescindível
a existência de um espaço público aberto e irrestrito, de modo a
permitir que pontos de vista contrários entre si tenham a liberdade
para serem apresentados e, a partir disso, concorrerem de forma
livre.
Seria apenas dessa forma, com liberdade, que a verdade
poderia ser alcançada, pois o livre debate e a exposição de opiniões
permitiriam que a melhor ideia viesse a prevalecer entre os cidadãos.
Através de um argumento nesse sentido, o que ele buscava defender
72 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

é que os indivíduos são moralmente responsáveis e assim devem ser


tratados, não podendo o Estado, ou sequer os demais concidadãos,
assumir uma posição paternalista, que se coloca na função de
decidir a forma como cada um pode expor as suas ideias. Mesmo
que seja uma visão aceita pela maioria, essa não poderá ser imposta
aos demais de maneira forçada, como se fossem as únicas verdades
no mundo (MILL, 2019).
As pessoas, adultas e capazes, devem possuir a liberdade de
viver e se expressar conforme aquilo que entendem mais adequado
e melhor para as suas próprias vidas, sem o sofrimento de restrições.
No entanto, claro que deve ser observado um limite para tanto,
sendo este, segundo Mill (2019), o da autodefesa. Conforme
este, as pessoas, ao colocarem em práticas suas vontades e desejos,
manifestando-os, não podem causar prejuízos a outras, de modo
que, para esse autor, “o único fim pelo qual a humanidade está
autorizada, individual ou coletivamente, a interferir na liberdade
de ação de qualquer um de seus integrantes é a autodefesa” (MILL,
2019, p. 22).
Assim, sobre a liberdade de que dispõe as pessoas para
viverem as suas vidas como preferirem, a única justificativa para a
abertura de intervenções é no caso de elas, ao agirem dessa maneira,
causarem danos aos outros (WARBURTON, 2009). Para ele, o
que havia de mais importante era a possibilidade da controvérsia,
de que pessoas com diferentes visões e perspectivas pudessem
apresentá-las e debater, tendo umas convencerem as outras quanto
a veracidade de seus respectivos pontos de vista. É exatamente essa
controvérsia que manteria vivo o espírito de debate, afinal se todos
são obrigados a ter a mesma opinião, então não há motivos para
debater qualquer coisa.
Ao ter proibida uma opinião e, portanto, silenciada, isso
seria um prejuízo não só para a pessoa que sofre a censura, mas
também para todos os demais, que perdem a oportunidade de
debate e, se a opinião for falsa, de combatê-la e fazer com que
aquele que a adotava mude o seu pensamento por outro. Há,
ainda, a possibilidade de ser ela verdadeira e, assim, ao censurá-la se
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 73

privará as pessoas de trocarem o erro pela verdade. Ou seja, quer a


opinião esteja errada ou correta, Mill (2019) defendia ser um erro
a sua privação.
Nota-se que, segundo esse autor, não são apenas os discursos
verdadeiros que se inserem na liberdade de expressão, mas também
os discursos falaciosos fazem parte dela (MILL, 2019). Para ele,
“tanto a mentira quanto a verdade, mesmo que incompleta, têm
valor, pois é conhecendo a mentira que se desvenda a verdade,
por isso a liberdade de expressão é útil para o indivíduo, seja ela
constituída de uma ideia verdadeira ou falsa” (SÁ, 2020, p. 101).
Os argumentos desenvolvidos por esse autor, embora
tenham sido apresentados dentro de um outro contexto, diferente
do atual, colaboram com a nossa pesquisa uma vez que, não
obstante, continuam sendo extremamente relevantes e atuais. Isso
ocorre porque mesmo no século XXI é Mill (2019) quem continua
sendo referência para as discussões que envolvem os limites do
direito à liberdade de expressão. Com isso, ele nos auxilia na busca
por compreendermos por que até mesmo os discursos falaciosos
também devem receber proteção.
Porém, vale destacar que, conforme já apontado, a teoria
milliana impõe um limite a esse exercício: o dano causado por essa
manifestação. Nesse caso, discursos com potencial de causar danos,
devem restar restringidos. Dessa maneira, não há de sua parte uma
defesa da liberdade de expressão em caráter absoluto e, da mesma
forma, não é isso o que a pesquisa propõe. Mas sim que a tese do
autor nos ajuda na busca para que um limite possa ser traçado (e
assim divididas as fronteiras que os separam) entre essa liberdade
individual que é tão cara aos cidadãos e a democracia, do fenômeno
das fake news. Ou seja, o caminho traçado por Mill (2019) para
separar discursos protegidos dos não protegidos é uma fórmula
que pode nos ajudar a lidarmos com os novos problemas trazidos
cotidianamente pelas fake news (GROSS, 2018).
Ainda, a simples categorização e divisão dos discursos
em “fake news” ou não, já deixou de ser suficiente para justificar
74 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

quando um discurso deve ou não ser restringido. Tal fato não quer
dizer que essas sejam de menor importância ou simplesmente que
devem ser “liberadas”, ou sequer que não representem um risco
para a democracia, mas sim que ao lidarmos com os problemas
que elas nos trazem é indispensável que sejam formuladas respostas
mais adequadas com a proteção dada a liberdade de expressão dos
cidadãos (MACEDO JÚNIOR, 2018).

4 Considerações finais

As novas tecnologias e a internet alteraram sobremaneira


diversos aspectos da vida das pessoas na atualidade, o que se
observa não só no processo de acesso e produção de notícias, mas
também reforçaram a necessidade de estabelecermos algumas
regras na forma como as pessoas se relacionam através dessa. Nesse
contexto, a noção de liberdade de expressão tem passado por
intensa mutação desde o início do século XXI, o que ocorre com
o crescimento das redes sociais, assim também a dimensão de sua
proteção e a responsabilização de quem fala tem sofrido profundas
alterações, tanto legislativas e jurisprudenciais, quanto filosóficas e
hermenêuticas.
A democracia é fortalecida com a proteção do direito
de informação e da liberdade de expressão, ou seja, a proteção
à livre manifestação e exteriorização da opinião, rechaçando a
censura. O espaço público é um espaço de pluralidade de opiniões
para o crescimento e desenvolvimento do Estado no sentido de
qualificação e formação da vontade política do eleitor de forma
consciente e livre, e que resultará na estruturação de um Estado
realmente social, com proximidade da vontade do povo.
Nessa perspectiva, a análise proposta neste trabalho fornece
instrumentos analíticos para uma compreensão mais adequada da
relação entre as notícias falsas e a liberdade de expressão. Mediante a
teoria milliana, foi possível demonstrar que a liberdade de expressão
deve ser protegida, inclusive os discursos falaciosos, desde que
respeitado o limite imposto pelo autor, qual seja, a responsabilização
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 75

de quem fala e a restrição dos discursos que causaram danos,


restando demonstrado que o princípio da liberdade de expressão
não é absoluto.
De forma geral, enfrentar o problema das fake news
envolve a adoção de estratégias que permitam repensar novas
formas de proteger a democracia. Diversas propostas vêm sendo
implementadas e é provável que tragam algum tipo de resultado
em breve. Não obstante, a adoção de medidas incrementais não
deve afastar o foco central de qualquer análise comprometida com
o potencial democrático da internet, razão pela qual é necessário
insistir na discussão mais ampla sobre as redes sociais, os produtores
de conteúdo, a busca e o acesso à informação.

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Capítulo 5

A necessária análise e reflexão sobre os


discursos discriminatórios enraizados na
sociedade brasileira por meio da herança
colonial portuguesa

Cátia da Silva Herter


Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces

1 Introdução

O s discursos existentes advêm dos sujeitos sociais


que construídos nesse meio sociocultural, repetem
integralmente ou ajustam, pontualmente, suas ideias, embora
tragam uma ideologia pronta que é interpretada e vista de certo
ângulo, a partir da relação da linguagem, da história e dos
mecanismos imaginários (ORLANDI, 1996). De acordo com o
autor essas formações imaginárias são constituídas nas relações
sociais e pontuam quais seriam as posições sociais ou de significância
ocupadas no discurso pelos indivíduos, assim, o discurso vindo de
um presidente, seria muito mais valorizado do que o discurso de
um operário, por exemplo.
Nessa perspectiva, cabe refletir sobre as imagens sociais
formadas historicamente em torno dos povos negros e indígenas; da
mulher e da comunidade LGBTQIAP+ (que independentemente
de serem denominadas atualmente como Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais) não
se encaixam em uma ideia de heterossexualidade, bem como,
relacionar com a situação em que vivem atualmente.
80 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Assim, nesta pesquisa temos por objetivo identificar quais


seriam os discursos discriminatórios enraizados em nossa cultura em
torno desses sujeitos e propor uma solução para sua desconstrução.
Bem como, é a partir da consciência desses discursos, que podemos
nos autoeducar e rever nossas ações e palavras, para que aqueles
indivíduos em formação não continuem reproduzindo-os.

2 A visão colonial eurocêntrica apresentada em “Casa


Grande & Senzala”

Desse modo, não podemos deixar de trazer uma análise


sobre a obra “Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime da economia patriarcal” do sociólogo Gilberto Freyre
que explica a formação do povo brasileiro a partir de uma visão
colonial eurocêntrica, ou seja, a visão dos senhores de engenho.
Freyre expõe que os negros eram vistos como alegres, resistentes,
fortes e de fácil manipulação, ou seja, a mão de obra adequada para
trabalho subalterno e braçal.
Ao refletirmos sobre podemos perceber esse mesmo discurso
atualmente, influenciando nas posições sociais ocupadas no
mercado de trabalho pelo povo negro, dado que é raro encontrar
um médico ou um executivo negro. Em suma, realiza um trabalho
apenas para sobrevivência, não para mobilidade social.
Sobre isso, destaca-se a pesquisa realizada pelo IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística em 2021 e publicada
em 2022 (IBGE,2022) que reitera sobre a desigualdade social
fundamentada na cor ou raça em nosso país e reforça que a partir
da pandemia do coronavírus, a situação de pretos e pardos se
agravou ainda mais em relação aos brancos. Da escravidão, da
libertação, sem-terra, sem moradia, sem educação, se chegou ao
que temos hoje, novas configurações ainda mais profundas de uma
desigualdade racial e com novos adventos como a pandemia, se fez
ainda pior. Dessa maneira, Foucault (1999, p. 55) exemplifica que:
[...] A história, como praticada hoje, não se desvia dos
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 81

acontecimentos; ao contrário, alarga sem cessar o campo dos


mesmos; neles descobre, sem cessar, novas camadas, mais
superficiais ou mais profundas; isola sempre novos conjuntos
onde eles são, às vezes, numerosos, densos e intercambiáveis,
às vezes, raros e decisivos: das variações cotidianas de preço
chega-se às inflações seculares [...].

3 A discriminação, o preconceito e o racismo em relação


à população negra

Conforme o IBGE (2022), entre a população negra e parda


a taxa de informalidade se eleva em 12,5% em comparação aos
brancos. Dessa maneira, também se verifica que o rendimento
da população branca foi 42% maior que a da população negra
e parda, assim a taxa de pobreza destes se encontra superior em
18%. Ressalta-se aqui o subdesenvolvimento do nosso país, sendo
que a maioria da população brasileira é preta ou parda (53,8%),
e a falta de mobilidade social para essa população, já que foi
constatado apenas 29,5% destes ocupando cargos gerenciais. Nesse
seguimento, Arbache (2006, p. 212) infere que:
[...] mesmo considerando o trajeto histórico após a abolição
da escravatura, a república, o processo de urbanização e
industrialização e o desenvolvimento capitalista, poucos são os
negros que romperam com a barreira do trabalho subalterno
e proletário para alcançarem carreiras com nível superior em
nosso país.
Portanto, podemos afirmar que mesmo após a abolição da
escravidão, ainda existem escravos, afinal os negros foram libertos,
mas sem terras e sem trabalho. Não lhe foram dadas condições para
sua emancipação e mobilidade social, eles foram largados à margem
da sociedade sem direitos básicos, como trabalho, saúde, educação
e moradia.
Desse modo, para Castel (2000) o trabalho somente deixaria
de existir por meio de uma extrema revolução cultural, pois as
sociedades são constituídas com base nas relações de trabalho e ali
são construídas nossas identidades. Compreende ainda que o direito
82 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

a um trabalho digno é essencial e que este possui valor social, no


sentido de ter uma ocupação e viver de forma digna, não somente
para sobrevivência. Contudo, mesmo no século XXI, muitos são
os desempregados ou vivendo na informalidade, sem condições de
alcançar um nível mais alto na sociedade. Nessa perspectiva, Santos
(2017, p. 15-16) alega que:
[...] a população negra convive, mesmo após mais de um
século da abolição do escravismo no Brasil, com situações e
contextos marcados pela perpetuação do racismo, o que se
verifica no alto índice de trabalhadores informais, cuja nova
linguagem neoliberal têm ressignificado sua situação como a
de ‘empreendedores’.
Ou seja, em virtude do racismo e da intolerância em relação
a cor de pele temos altas taxas de informalidade e de pobreza,
além de uma dívida histórica que com a situação atual (período
pós-pandêmico) se tornou ainda mais significativa, aumentando a
desigualdade social entre aqueles de pele mais escura (pretos, pardos,
inclusive os indígenas) e os de pele branca. Na obra de Gilberto
Freyre, vemos que o mesmo descreve a suposta interferência das
glândulas pituitárias e suprarrenais no processo de pigmentação da
pele de acordo com alguns estudiosos da época na área da biologia
e medicina. Segundo W. Langdon Brown (1927 apud FREYRE,
2003, p. 374):
[...] Parece-lhe também estabelecida a íntima relação entre
as glândulas produtoras de calor e a pigmentação; de onde
se concluiria a melhor adaptabilidade dos morenos que dos
louros e albinos aos climas quentes. Brown cita a propósito
que o governo da França vem recusando empregar gente alva e
loura no serviço colonial nos trópicos, preferindo os franceses
dos Sul, ‘capazes de desenvolver pigmento protetor’.
Desta forma, Freyre justifica a escravidão alegando que
naquela época, o meio e as circunstâncias exigiram o escravo, já
que sendo um meio agrícola, eles precisavam de mão de obra, além
disso que esta não poderia ser branca e sim negra e indígena, já que
estes tinham a pele escura e por isso tinham um pigmento protetor,
no caso ele e outros estudiosos apoiavam o sentido fisiológico/
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 83

biológico e econômico para justificar a escravidão.


Este pensamento se exemplifica na atualidade, dado que
uma política pública criada no sentido de buscar maior equidade
entre brancos e não brancos são as cotas raciais, mas muitas são as
discussões em torno de sua implementação. Em estudos realizados
por Neves e Lima (2007) apurou-se que após a execução das cotas
sociais na Universidade Federal de Sergipe (UFS) as contestações
decresceram, mas após a implementação das cotas raciais, se
intensificaram, ou seja, mesmo os brancos reconhecendo a situação
injusta que os negros vivenciaram/vivenciam no Brasil; a partir da
efetividade das cotas raciais, os negros se tornaram uma ameaça
à sua hegemonia e, sobretudo aos seus privilégios; por isso eram
vistas como discriminatórias e eram repudiadas: “[...] nenhuma
dessas ações causa estardalhaço ou polêmicas sociais, pois envolvem
um tabu histórico da sociedade brasileira: a cor da pele” (NEVES;
LIMA, 2007, p. 24).

4 O mito da democracia racial: falsa justificativa para


manutenção das discriminações e preconceitos

Gilberto Freyre em sua obra, também traz uma visão


docilizada em relação a miscigenação ocorrida no Brasil, como
se as relações entre os povos (negros, indígenas e brancos) fossem
harmoniosas, mas considerando a perspectiva dos senhorios. Logo,
os brancos eram civilizados e superiores aos outros povos, por isso
estes deveriam ser gratos à hospitalidade fornecida pelos mesmos.
Da mesma forma, alegavam que havia mais escravos nas casas
brancas do que besta do trabalho. Nesse sentido, Freyre (2003, p.
435) afirma que:
A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais
íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos [...].
Espécie de parentes pobres nas famílias europeias. À mesa
patriarcal das casas-grandes sentavam-se como se fossem da
família numerosos mulatinhos. Crias. Malungos. Moleques
de estimação. Alguns saíam de carro com os senhores,
84 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

acompanhando-os aos passeios como se fossem filhos.


Havia também uma exaltação do povo português, pois em
função da sua colonização se teria chegado ao Brasil que temos
hoje, um país miscigenado, diversificado culturalmente. Mais uma
vez, como se a escravidão tivesse trazido mais benefícios do que
malefícios aos povos escravizados, e que os portugueses então eram
nossos superiores, nossos colonizadores e nós os colonizados. Por
conseguinte, Oliveira et al. (2009, p. 4) afirmam que:
A compreensão de si mesmo, a percepção dos outros, na
América Latina, requer olhar para a diversidade situando
contextos e espaços. Produzir conhecimentos na perspectiva da
América Latina exige nos libertarmos de referências dogmáticas,
construídas a partir de experiências alheias aos nossos valores
e culturas. A sobrevivência de nossas culturas, modos de ser e
viver, evidenciam nossa humanidade, contrariamente ao que
apregoaram e apregoam os colonizadores que nos ‘inventaram’
sem alma, inteligência, valores.
Ainda nessa visão romantizada da escravidão exposta na
obra de Freyre, os portugueses povoaram o Brasil e não mataram os
indígenas, o povo que vivia aqui como aconteceu em muitos países,
portanto, estes seriam bons colonizadores. Contudo, sabemos que
isto não é verdade, já que muitos indígenas morreram ao entrar em
contato com os brancos e suas doenças (como a sífilis) e também
houve mortes culturais, já que houve a imposição do cristianismo
ao indígena e generalização da cultura africana. Além desses povos
não poderem vivenciar sua cultura, muitos foram aculturados nesse
contexto, por exemplo o índio que passou a usar roupas e as usa até
hoje, além de perder suas terras e hoje estar lutando diariamente
pelo que é seu de direito, em movimentos como o Movimento
Brasileiro dos Sem terra e outras lideranças indígenas. Ademais, se
justificava que os povos colonizados foram educados igualmente
como os portugueses, então não houve segregação, contudo, é
justamente ao contrário já que suas culturas não foram respeitadas.
Nesse sentido, vemos a divisão dos povos em oprimidos
e opressores, e a existência de uma teoria antidialógica entre eles
(FREIRE, 1987) que tem por princípios a conquista, a divisão
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 85

para manter a opressão, manipulação e invasão cultural, que


oprime economicamente e culturalmente, tomando do indivíduo
conquistado a sua palavra, expressividade e cultura. Assim, a
escravidão dos negros, a catequização dos índios e o branqueamento
da população brasileira foram meios de dominação cultural,
exercidos pela colônia portuguesa.
Cabe ressaltar que em função dos indígenas resistirem à
escravidão agrícola, há um preconceito enraizado até hoje contra
o índio, como se este fosse lento, preguiçoso, que não trabalha e
assim como os negros se encontram em situação de vulnerabilidade
social. Paulo Freire também reforça em sua obra Pedagogia da
Autonomia que não há elementos justificáveis para o preconceito e
a intolerância (FREIRE, 1996, p. 31-32):
[...] O que quero dizer é o seguinte: que alguém se torne
machista, racista, classista, sei lá o quê, mas se assuma
como transgressor da natureza humana. Não me venha
com justificativas genéticas, sociológicas ou históricas ou
filosóficas para explicar a superioridade da branquitude sobre
a negritude, dos homens sobre as mulheres, dos patrões sobre
os empregados. Qualquer discriminação é imoral e lutar
contra ela é um dever por mais que se reconheça a força dos
condicionamentos a enfrentar. A boniteza de ser gente se
acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de
brigar. Saber que devo respeito à autonomia e à identidade do
educando exige de mim uma prática em tudo coerente com
este saber.
Evidencia-se ainda que essa “doçura” nas relações entre os
povos colonizados e colonizadores promoveu uma ideia errônea
que persiste até a hodiernidade: a de democracia racial no país,
como se os negros e indígenas tivessem a igualdade de condições
em relação aos brancos, mas como vimos até aqui, isto está longe
de ser verdade, dado que ambos esses povos vivem à margem da
sociedade, com pouca ou nenhuma condição e sem seus direitos
respeitados. Para Lima, Neves e Silva (2014) não há democracia
racial no Brasil e sim, um abismo social, econômico, político
e cultural entre brancos e negros, que se estrutura na concepção
eurocêntrica de mundo. Esta deixou marcas na sociedade brasileira,
86 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

desde a colonização europeia e permanece ditando como será


organizada a sociedade, até o momento atual.

5 Discursos e práticas socioculturais discriminatórias e


preconceituosas como heranças coloniais que precisam
ser descontruídas

Ou seja, essa marca social, cultural e histórica dita quais


serão os discursos e as práticas socioculturais enraizadas em nossa
sociedade; que precisamos discutir para desmitificá-las e tornar
o mundo um lugar melhor de se viver, começando pelo nosso
país e nossa cidade, onde as diferenças sejam valorizadas e não
mais discriminadas. Daqui que vem por exemplo, o machismo
como prática enraizada, o preconceito com negros e índios, a
discriminação em torno das comunidades LGBT entre outras
práticas socioculturais que perpetuam através dos séculos na
sociedade. Assim, Oliveira et al. (2009, p. 4) frisam que:
Práticas sociais decorrem de e geram interações entre os
indivíduos e entre eles e os ambientes, natural, social, cultural
em que vivem. Desenvolvem-se no interior de grupos, de
instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir
valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver, enfim,
manter a sobrevivência material e simbólica das sociedades
humanas.
Desse modo, não justificando de forma alguma as atitudes ou
ideias de Freyre e os demais colonizadores, mas naquela conjuntura
sócio-histórica, o comum e bem aceito era reconhecer o negro, em
maior ênfase, como um objeto e por isso, aplaudir aqueles que o
maltratavam, percebendo como um valor nacional que deveria
ser passado de geração a geração. “Aquele mórbido deleite em ser
mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo
menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata”
(FREYRE, 2003, p. 454).
Infelizmente, esse discurso de superioridade foi passado
com louvor de geração para geração, e percebemos isto a partir
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 87

do exponencial aumento de casos de violência contra a população


negra em relação aos brancos. De acordo com o IBGE em 2020, a
taxa de homicídios entre os habitantes da cor ou raça preta e parda
foi quase o triplo em relação à taxa observada entre as pessoas de
cor ou raça branca (IBGE, 2022).
Atualmente o preconceito e a intolerância está muito
presente em nossa sociedade, e este se manifesta a partir da
violência, seja ela física, psicológica ou verbal, não somente em
relação ao negro, mas à comunidade LGBT e as mulheres em geral,
mais ainda se forem negras. De acordo com o IBGE (2022) e a
sua Pesquisa Nacional de Saúde - PNS 2019, as mulheres são em
maior número vítimas de violência do que os homens e 5% a mais
correspondem às mulheres negras como vítimas.
Destaca- se que em 2017 foi realizado em Brasília na
Câmara dos Deputados – CTASP, o 14º Seminário LGBT do
Congresso Nacional com a intenção de discutir “LGBTfobia
e Racismo no Mundo do Trabalho”, contando com diversos
especialistas e convidados, e um destes era o presidente da União
Nacional LGBT, Andrey Lemos, que apontou em relação a esses
comportamentos violentos e suas origens (2017 apud CAPPI,
2017, p. 8): “machista, sexista, racista, LGBTfóbico da sociedade,
e o quanto os aspectos culturais enraizados no patriarcado e no
escravagismo tem violentado e tem ceifado vidas”. Bem como,
o documento reforça que muitos indivíduos da comunidade
LGBTQIAP+ acabam na prostituição de seus corpos como forma
de receber algum rendimento e se manter, pois mesmo tendo as
melhores referências ou formação isso não é o suficiente, pois a
resposta do mercado de trabalho geralmente é que não há vagas.
Cabe frisar que este discurso homofóbico também é
histórico e presente desde a colonização no Brasil. Em sua obra,
Gilberto Freyre apresenta que o homem não podia ser “donzelo”
ou “marica”, caso contrário tinha que ser exposto e caçoado pela
sociedade; preconceito este que continua enraizado até os dias de
hoje, contra todos aqueles que de alguma maneira vão contra a
heterossexualidade.
88 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Ainda, voltando ao racismo e preconceito pela cor da pele,


este discurso tinha interesse na época colonial, pois havia um
incentivo a ter escravos a partir de práticas socioculturais como as
sesmarias, porque assim recebiam terras da coroa Portuguesa, ou
seja, ter escravos representava o poder e influência na sociedade
da época, se excluindo assim aqueles que não eram senhores de
engenho e formando as oligarquias do mundo moderno. Nesse
seguimento, Freyre (2003, p. 461) infere que:
Não eram as negras que iam esfregar-se pelas pernas dos
adolescentes louros; estes é que, no sul dos Estados Unidos,
como nos engenhos de cana do Brasil os filhos dos senhores,
criavam-se desde pequenos para garanhões. Ao mesmo tempo
que as negras e mulatas para ‘ventres geradores’ [...] O mesmo
interesse econômico dos senhores em aumentar o rebanho de
escravos que corrompeu a família patriarcal no Brasil e em
Portugal corrompeu-a no sul dos Estados Unidos [...].
Dessa maneira, salienta-se a posse do corpo da mulher para
procriação que era vista em âmbito financeiro também, dado que
assim não se precisava importar escravos, o que consistia em menor
custo e maior mão de obra. Ademais, o tratamento das escravas
indígenas e negras como objetos de prazer, que por seu corpo
bonito, sua cor de pele sensual e sua pouca vestimenta, “deveria ser
estuprada”, colocando a culpa sobre a mulher ainda persiste e, tal
pensamento, discurso, machista e patriarcal perdura até os dias de
hoje onde as justificativas do agressor são basicamente as mesmas.
Frisamos ainda que todas as mulheres eram vistas como
objetos de posse dos homens, por isso serviam para parir os filhos
dos seus senhores e cuidar da casa. Felizmente, hoje a mulher
trabalha, estuda e casa-se, se este for seu desejo, mas ainda não são
todas que conseguem e mesmo aquelas que conseguem, recebem
menores remunerações em relação aos homens e dificilmente
ocupam cargos de gerência.
De acordo com o IBGE (2022) na política, há mais
candidatos homens do que mulheres, e o sucesso eleitoral dos
homens é maior, acredita-se que devido a barreiras nas candidaturas
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 89

de mulheres, principalmente as pretas e amarelas. Além disso, como


vimos anteriormente, as altas taxas de violência entre mulheres,
pode-se reafirmar o sentimento de posse que muitos homens
acham que possuem sobre os corpos femininos, por isso há muitos
relacionamentos abusivos e violações sexuais, que acontecem até
dentro da própria casa, a partir de familiares, em variadas faixas
etárias e contextos.

6 A educação dialógica como forma de reconhecimento


e respeito às diferenças

A partir do exposto até o momento, salientamos que a


obra do sociólogo Gilberto Freyre se tratou de uma narrativa
histórica: não se fazia análise, pois sua intenção não era intervir
na sociedade, dado que não havia críticas sobre seu modo de vida.
Desta forma, fomentamos a importância de compreender como
os discursos funcionam na sociedade, quem é o dono do discurso,
nesse caso, a oligarquia portuguesa, por isso não faz sentido o
reproduzirmos. Necessitamos em nosso país, de uma formação
crítica e humanizadora (FREIRE, 1996), para desconstruir esses
discursos enraizados em nossa cultura em função da colonização do
país e pela herança cultural portuguesa.
De acordo com Foucault (1999, p. 44) “[...] Todo sistema
de educação é uma maneira política de manter ou de modificar
a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo”. Contudo, a escola também é o lugar onde se usa
da língua, da socialização e da linguagem para a transmissão da
nossa cultura de geração a geração, embora haja discursos e práticas
socioculturais excludentes, isso não subjuga a riqueza da cultura
brasileira. Desse modo, devemos utilizar da escola não como
agência de domínio social, mas de libertação e de cidadania, a
partir de uma formação crítica e humanizadora. Nessa perspectiva,
Ferrigno (2016, p. 217) sugere que:
[...] A coeducação pode se dar entre diferentes, como a que
ocorre entre as gerações ou entre indivíduos de diferentes
90 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

etnias. Uma coeducação entre brancos e negros ou entre árabes


e judeus pode se constituir em um excelente antídoto a toda
uma história de preconceitos e intolerância recíproca. Mas
ainda há outras possibilidades de coeducação. Por exemplo,
experiências de coeducação de gêneros, cuja importância em
um mundo ainda marcado por atitudes discriminatórias em
relação à mulher dispensa comentários.
Logo, a partir do diálogo sobre/entre as diferenças nas escolas
possa se ter uma forma de libertação dessas referências dogmáticas
de superioridade e de dominação. É preciso que desde os primeiros
anos da Educação Básica as questões sociais apresentadas neste artigo
sejam abordadas com as crianças, adolescentes e jovens, para que no
futuro esses discursos preconceituosos se encontrem desconstruídos
e possamos viver em harmonia com todas as diferenças.

7 Considerações finais

A partir da exposição apresentada neste artigo,


compreendemos que o Brasil em sua herança portuguesa continua
reproduzindo discursos da época da escravidão e que estes estão
influenciando nas posições sociais ocupadas por negros, indígenas,
mulheres e comunidade LGBTQIAP+. Bem como, estão impedindo
a mobilidade e ascensão social destes indivíduos, e fomentando
a permanência destes em situações de violência, exploração e
vulnerabilidade social.
Em virtude disto trazemos a importância de discutir
quais são esses discursos, identificando-os e evidenciando a
imprescindibilidade de uma formação crítica e humanitária, com
base no diálogo e na coeducação entre os diferentes, para que estes
discursos sejam desconstruídos e possamos viver em um País menos
violento e inclusivo em relação às diferenças.

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implanta%C3%A7%C3%A3o%20de%20cotas%20
na%20universidade%3A%20paternalismo%20e%20
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Acesso em: 19 de nov. 2022.
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comissoes-permanentes/ctasp/publicacoes/especial-lgbtfobia-
racismo-no-mundo-do-trabalho/view. Acesso em: 17 nov. 2022.
Capítulo 6

Direitos humanos: colonização da sociedade e


opressão das mulheres negras idosas

Iara Sabina Zamin


Solange Beatriz Billig Garces
Sirlei de Lourdes Lauxen
Marcelo Cacinotti Costa

1 Introdução

D entre as pesquisas sobre o envelhecimento populacional,


um dos assuntos que está sendo deixado de ser analisado
é a questão das mulheres negras idosas, que trazem em sua história
a marca da colonização do Brasil pelos portugueses, quando estes
escravizaram os negros, junto da marca da discriminação de gênero
e o etarismo ou ageismo.
O presente estudo traz uma reflexão acerca dos direitos
humanos frente à situação atual das mulheres negras e idosas na
sociedade atual, relacionando condições de opressão, pobreza e
discriminação às heranças das hierarquias coloniais que estabeleceram
“modelos” idealizados a partir das condições europeias.
Estas condições fizeram com que a grande maioria das
mulheres negras e idosas permanecesse, até os dias atuais, à
margem da sociedade, sendo tratadas de forma desigual aos demais.
Essa herança histórica, resultante da colonização do Brasil pelos
portugueses, evidencia o fato de que essas mulheres são vítimas deste
processo, justamente por acumularem subordinações tais como: ser
mulher (sexismo), ser negra (racismo) e ser idosa (ageismo).
Nesse sentido, reconhecer que existem diferenças, que a
96 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

relação entre opressores e oprimidos está ligada ao período colonial


e que, portanto, os direitos humanos precisam ser aplicados de
forma equitativa quando a sociedade entender que as mulheres
negras idosas precisam de um tratamento desigual, para que estas
possam sentir-se iguais nas suas diferenças.
Para a escrita deste artigo foi realizada uma análise
bibliográfica, com abordagem qualitativa e que será apresentada em
três seções, sendo a primeira uma breve introdução sobre os direitos
humanos relacionados a inclusão da pessoa idosa, respaldada pela
Constituição Federal de 1988, bem como a Política Nacional da
Pessoa Idosa e o Estatuto da Pessoa Idosa, que constituem a Lei
Geral de Proteção à Pessoa Idosa; na segunda parte apresenta-se
uma análise da história contada a partir do viés crítico da obra Casa
Grande e Senzala, de Gilberto Freyre sobre a colonização do Brasil,
com enfoque para a mulher negra e idosa. E, na última parte,
analisam-se as questões opressoras que recaem, ainda hoje, sobre
as mulheres negras e idosas, ressaltando as desigualdades sofridas
ainda na atualidade, mesmo após diversas normativas acerca do
assunto.

2 Direitos humanos e a pessoa idosa

Os Direitos Humanos foram pronunciados através da


Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamado pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de
1948, visando reconhecer a dignidade de todos os seres humanos,
juntamente com os direitos iguais e inalienáveis de liberdade,
justiça e paz no mundo (UNICEF, 1948).
A partir da Declaração dos Direitos Humanos os direitos
e garantias dos brasileiros passaram a ser determinado pela
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em
1988, apresentando direitos e garantias a toda população, sendo
efetivada pela dignidade da pessoa humana, como um alicerce
fundamental da sociedade (BRASIL, 1988).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 97

Na Constituição Federal de 1988, a qual está em vigência


até os dias atuais, houve a inclusão da pessoa idosa no que tange à
prestação de assistência social, garantindo um benefício mensal no
valor de um salário mínimo àqueles que comprovarem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, descrito no artigo 203, inciso V (BRASIL, 1988).
Apesar da Constituição Federal de 1988 ter o capítulo VII
com a denominação de “Da Família, da Criança, do Adolescente,
do Jovem e do Idoso”, a única menção a pessoa idosa está prevista
no artigo 230, § 1º, quando diz que “os programas de amparo aos
idosos serão executados preferencialmente em seus lares”. Ou seja,
mesmo existindo um capítulo específico às pessoas idosas, jovens,
crianças e adolescentes, os idosos permanecem sem qualquer relação
direta aos seus direitos (BRASIL, 1988).
Sendo que as demais legislações não apresentaram nenhuma
inovação, mantendo os textos previstos na Carta Constitucional na
íntegra. Entretanto, em 1994, foi promulgada a Lei nº 8.842, a qual
está em vigência e dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, que
tem por objetivo assegurar os direitos sociais dos idosos (BRASIL,
1994).
Foi através da Lei de Política Nacional do Idoso, no
dispositivo do artigo 2º, que se determinou a idade cronológica
para definição de pessoa idosa, ou seja, no Brasil, “considera-se
idoso, para os efeitos desta lei, a pessoa maior de sessenta anos
de idade”, denominação anterior que não existia base legal e/ou
previsão legislativa (BRASIL, 1994).
Nesta normativa também se assegurou a criação de
Conselhos de Direitos à Pessoa Idosa, o que se efetivou com a
criação do Conselho Nacional dos Direitos dos Idosos, instituído
em Decreto nº 4.227, no dia 13 de maio de 2002, vinculado ao
Ministério da Justiça, tendo competência para avaliar as políticas de
direito do idoso, bem como outras funções relacionadas ao assunto.
Assim, a pessoa idosa, no Brasil, é considerada aquela com
60 anos ou mais, conforme a Lei nº 8.842/94 e Lei nº 10.741/03.
98 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Isso porque, existe um estudo sobre a divisão cronológica da idade,


que se diferencia em alguns países, como é o caso do Brasil, que
como um país em desenvolvimento tem o marco da idade para ser
considerada pessoa idosa a partir dos 60 anos, conforme também
previsto no Estatuto da Pessoa Idosa (BRASIL, 2003).
O Estatuto da Pessoa Idosa, que estabelece regras de direito
público, privado, previdenciário, civil, processual civil e penal, só
foi instituído através da Lei nº 10.741/2003 e entrou em vigor em
janeiro de 2004, consagrando as Políticas Nacionais de Proteção ao
Idoso (BRASIL, 2003).
Dessa forma, com o Estatuto da Pessoa Idosa houve
a consolidação dos direitos e garantias sociais do cidadão no
envelhecimento, trazendo especificamente a relação do idoso com
a sociedade, e é com esse microssistema jurídico que o direito
material e o direito processual passam a tornarem-se efetivos
perante as discrepâncias da sociedade em face à velhice.
Uma concepção de direitos humanos sociais mínimos é
defendida por Gosepath (2013), à luz do princípio da proteção
fundamental prioritária, de maneira a compreendê-los como
“compensação de determinados danos sociais, que devem ser
impedidos, isto é, compensados com base em razões morais
compartilhadas”. Dito de outro modo, os direitos sociais têm como
objetivo e limite a “eliminação dos prejuízos desiguais, em relação
aos quais o indivíduo não é responsável, e a produção de um estado
de chances iguais, para a realização de reconhecidas funções e
capacidades”.
Assim, deve-se garantir a toda pessoa o direito à segurança
básica e a um mínimo existencial, protegendo-se a integridade
física em todas as suas dimensões, oferecendo a todos a medida
de assistência social, em “situações de emergência para evitar
o prejuízo, que as impede de estar em condições de realizar, em
medida suficiente, todas as funções e capacidades reconhecidas em
geral como valiosas” (GOSEPATH, 2013, p. 79).
Em relação à atuação jurisdicional da Corte Interamericana
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 99

de Direitos Humanos - CIDH, ganhou notoriedade o caso Poblete


Vilches vs Chile1 remetido a julgamento naquele Tribunal, pela
primeira vez, sobre os direitos da pessoa idosa na área de saúde,
com base em Protocolos e Cartas internacionais, concluindo que o
Estado do Chile não ofereceu ao Sr. Poblete, um idoso de 76 anos,
o direito de Saúde sem discriminação2.
É de se salientar o pioneirismo da Corte Interamericana de
Direitos Humanos ao tratar de modo específico sobre os direitos
das pessoas idosas na área de saúde, destacando a relevância do
protocolo de San Salvador que contempla o direito de saúde aos
idosos, bem como a carta social europeia e o protocolo da carta
africana de direitos humanos e dos povos relativos aos direitos das
pessoas de idade da África.
No mérito, a CIDH ressaltou que a idade da vítima

1 Sentença de 08/03/2018. Disponível: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/


articulos/seriec_349_esp.pdf. Acesso em: 1 out. 2022.
2 O Sr. Vinicio Antonio Poblete Vilches, com 76 anos de idade, em 17 de janeiro
de 2001, deu entrada no Hospital público Sótero del Rio, localizado na Cidade
de Santiago, apresentando um quadro de insuficiência respiratória Grave, motivo
pelo qual foi transferido para Unidade de terapia intensiva. Após o quarto dia
de internação foi transferido para a terapia intensiva cirúrgica, sendo realizado
procedimento laparoscópico com janela pericárdica sem a solicitação de permissão do
Sr. Vinicio Poblete, vez inconsciente, ou de seus familiares, que alertaram os médicos
que ele sofria de diabetes e não poderia se submeter a intervenção cirúrgica. Em 02
de fevereiro de 2001, mesmo com febre alta e sem condições de se locomover, o Sr.
Vinicio Poblete recebeu alta, sendo necessário o aluguel de uma ambulância privada,
posto que o hospital não tinha nenhuma disponível. Em casa a febre e secreção
de pus continuaram. Em 05 de fevereiro de 2001, o Sr. Vinicio Poblete retornou
ao hospital Sotero del Rio, sendo atendido no serviço de urgência e diagnosticado
como uma broncopeneumonia, necessitando de respirador mecânico, aparelho
disponível naquele hospital apenas na unidade de terapia intensiva medica. Todavia,
o Sr. Vinício Poblete foi internado na unidade de terapia cirúrgica, sob o argumento
médico de que os leitos disponíveis na unidade de terapia intensiva medica deveriam
ser destinados a pessoas mais jovens, uma vez que o Sr. Pobleto já teve a oportunidade
anteriormente. No dia 07de fevereiro de 2001, o Sr. Poblete faleceu de choque séptico
e broncopeneumonia bilateral. Sendo solicitado por seus parentes uma autopsia, a
qual o hospital se negou a fazer, e não foi realizada até hoje, mesmo tendo os seus
familiares ingressado com duas ações criminais, uma em 13/02/2002 e outra em
07/10/2005, para apurar a causa mortis e os responsáveis pela morte culposa do
Sr. Vinício. Fonte: http://conpedi.danilolr.info/publicacoes/no85g2cd/o31p6p7b/
k3kU47VHz8pC2HlH.pdf - Acesso em 01/10/2022.
100 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

contribuiu como elemento limitador para o atendimento de saúde


adequado, tendo, portanto, o Estado do Chile deixado de oferecer
ao Sr. Poblete o direito à saúde sem discriminação, mediante serviços
necessários e urgentes em relação a sua situação de vulnerabilidade,
violando, assim, o artigo 26 Convenção Americana de Direitos
Humanos.
Contemporaneamente, na sociedade capitalista e neoliberal
em que se vive, as narrativas predominantes são de valorização de
homens jovens, brancos e ricos, ou seja, por consequência o que
predomina é o preconceito e discriminação sobre as pessoas idosas,
o sexismo em relação às mulheres e o racismo em relação a sua
cor, o qual tem herança estrutural. Entretanto, com conhecimento
e contra o desperdício da experiência, há de se ter a consciência
de que as mulheres idosas e negras possuem uma contribuição
fundamental à construção da sociedade brasileira.

3 Heranças da colonização portuguesa no Brasil

A sociedade brasileira foi construída a partir da colonização


dos Portugueses, utilizando-se da mão-de-obra escravizada
dos índios e negros, na qual a organização econômica e civil da
sociedade, no ano de 1532, estava fundamentada em um século de
exploração de outros povos e terras.
Gilberto Freyre (2003, p. 64), em sua obra “Casa Grande e
Senzala”, defendeu que se formou “[...] uma sociedade agrária na
estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida
de índio - e mais tarde de negro - na composição. Sociedade que se
desenvolveria defendida menos pela consciência de raça”.
A colonização, inicialmente, começou a ser feita com a
utilização e o desenvolvimento agrário pelo esforço particular da
monocultura, da sesmaria, dos latifúndios escravocratas, onde os
portugueses, inicialmente passaram a realizar o aproveitamento
da gente nativa (índios) para colonização, e, posteriormente com
a escravização do negro trazido à força da África. E aqui cabe
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 101

destacar, principalmente a mulher negra, não só escravizada como


instrumento de trabalho, mas como elemento de “formação da
família”, ocorrendo à miscigenação (FREYRE, 2003).
A escassez de capital-homem, supriram-na os portugueses com
extremos de mobilidade e miscibilidade: dominando espaços
enormes e onde quer que pousas sem, na África ou na América,
emprenhando mulheres e fazendo filhos, em uma atividade
genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte
do indivíduo quanto de política, de calculada, de estimulada
por evidentes razões econômicas e políticas da parte do Estado
(FREYRE, 2003, p. 69).
Embora se saiba que este processo foi extremamente
doloroso, desrespeitoso, machista e desigual para as mulheres,
especialmente as escravizadas negras, diziam os portugueses que a
miscigenação e exploração da mulher negra era realizada de forma
consensual e por motivos explícitos, uma vez que as índias e negras
utilizavam pouca ou nenhuma roupa, banhavam-se nos rios nuas
e detinham uma beleza única, que as diferenciavam as mulheres
brancas (FREYRE, 2003). Ou seja, o machismo do patriarcado
presente fortemente neste período e com seus resquícios ainda
presentes nos dias atuais, é o que se evidencia nesta paráfrase obtida
na leitura do livro Casa Grande & Senzala.
Já, as mulheres negras e idosas, mesmo em idade avançada,
eram obrigadas a continuar trabalhando nas casas grandes, com
os serviços do lar, como cozinheiras, lavadeiras, amas de leite e
até serviçais das senhoras do engenho. E a justificativa para tal
exploração era que estas possuíam conhecimentos inéditos, e que
auxiliavam o desenvolvimento da família portuguesa a sobreviver
no Brasil, conforme trecho descrito a seguir:
À mulher gentia temos que considerá-la não só a base física
da família brasileira, aquela em que se apoiou, robustecendo-
se e multiplicando-se, a energia de reduzido número de
povoadores europeus, mas valioso elemento de cultura, pelo
menos material, na formação brasileira. Por seu intermédio
enriqueceu-se a vida no Brasil, como adiante veremos, de uma
série de alimentos ainda hoje em uso, de drogas e remédios
caseiros, de tradições ligadas ao desenvolvimento da criança,
102 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

de um conjunto de utensílios de cozinha, de processos de


higiene tropical - inclusive o banho frequente ou pelo menos
diário, que tanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão
do século XVI (FREYRE, 2003, p. 161-162).
Ainda, as mulheres negras idosas detinham o conhecimento
de sementes e raízes, uma vez que eram vistas como domésticas
e trabalhadoras da agricultura, e, também em razão de que, em
algumas tribos, era dever da mulher a agricultura e o cuidado da
lavoura, com a plantação e colheita de mandioca, milho, amendoim,
mamão e outros, no qual eram reduzidas, justamente por serem
domésticas e proverem o sustento por meio das atividades agrícolas
(FREYRE, 2003).
Ou seja, apesar da história trazer o homem negro como base
da construção da sociedade colonial, deve-se atentar de que foi a
mulher negra idosa que forneceu a essência para as casas grandes
construírem suas famílias com cuidado e amor das amas de leite,
que supriam as necessidades maternas das senhoras brancas, mas
, ao mesmo tempo geraram um proletariado que foi descartado à
margem da sociedade quando este foi substituído pelo imigrante
branco europeu.
Analisando pela perspectiva de que não houve outra saída
para os povos escravizados da época, tem-se que refletir e valorizar
aquelas mulheres negras idosas que foram primordiais para a
construção da sociedade contemporânea, que deixaram seus filhos,
suas famílias, para doarem-se às famílias brancas na casa grande.
O que se observa atualmente é que após toda essa contribuição,
especialmente das mulheres negras e idosas, e mesmo com a
constituição de políticas públicas de proteção à dignidade da pessoa
humana, as mulheres, especialmente as negras e idosas, continuam
sendo vítimas dessa herança da opressão e da desigualdade, oriundas
do colonialismo e do patriarcado.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 103

4 Opressão e desigualdade sobre as mulheres negras e


idosas

A luta pela liberdade, dignidade e igualdade é primordial


para a existência da crença no povo, por meio do comprometimento
de uma comunhão e de uma aproximação das classes, que geram
um renascer dos indivíduos. Entretanto, Freire (1987, p. 25)
ressalta que para os opressores:
[...] pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são
‘coisas’. Para eles, há um só direito – o seu direito de viverem
em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer
reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto
ainda, porque, afinal, é preciso que os oprimidos existam, para
que eles existam e sejam ‘generosos’.
Nestas palavras, fica evidenciado que os senhores do
engenho e suas famílias, viam as mulheres negras, e aí também,
incluídas as mulheres negras idosas, não como seres humanos, mas
como coisas que eram utilizadas para a exploração sexual, melhorar
o dia-a-dia da família, ajudar na criação dos filhos e ter os cuidados
com a casa, tarefas estas que as mulheres brancas não gostavam ou
não queriam fazer.
Dessa forma, a classe burguesa, quando estão em patamar de
superioridade, não possui a crença no povo, buscam não olhar para
aqueles que lhes auxiliam e não enxergam o seu valor, decretando
que estes são dispensáveis. No entanto, para que haja a mudança
na sociedade é preciso escutar e entender o povo, suas crenças e
culturas (FREIRE, 1987).
Nery Junior (1999, p. 42), apresenta o princípio da
igualdade, no qual aduz que “dar tratamento isonômico às partes
significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais,
na exata medida de suas desigualdades”, ou seja, subentende-se
que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de
forma desigual, com a finalidade de que estas estejam inseridas no
meio, com a busca pela igualdade.
Neste caso, tem-se que, de um lado está a burguesia e o
104 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

patriarcado, do outro lado estão as mulheres negas e idosas, sendo


que nessa dualidade, há a consequência de adquirir atitudes
vinculadas à religião, atitudes fatalistas, mágicas ou místicas, que
não permitem que haja a superação da visão autêntica do mundo,
ficando adstritos à crença inicial de submissão e hierarquia.
A libertação das mulheres negras idosas oprimidas só
acontece quando o opressor compreende que existe uma constante
luta, em forma de organização, para superar a convivência,
acompanhada por um processo reflexivo de sua condição atual
para, em seguida, transformar-se em ação de igualdade perante as
desigualdades.
Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos
oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos
pretendendo um jogo divertido em nível puramente
intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a
reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática (FREIRE,
1987, p. 29).
Nesse sentido, é necessária uma compreensão histórica da
realidade vivida pelas mulheres negras e idosas na construção da
sociedade, para entendermos as dores e dissabores tolerados por
esses seres humanos oprimidos, com a finalidade de trazer uma
reflexão e ação para a independência, uma vez que nenhum ser
humano se liberta sozinho, tampouco, uns são libertados por
outros, mas todos são libertos juntos.
Assim, a igualdade dessas mulheres negras e idosas deve ser
proporcional, uma vez que não se pode tratar igualmente situações
provenientes de fatos desiguais. Conforme Bulos (2002, p. 79), “o
raciocínio que orienta a compreensão do princípio da isonomia tem
sentido objetivo: aquinhoar igualmente os iguais e desigualmente
as situações desiguais”.
O caminho para uma igualdade para as mulheres negras
e idosas está no desenvolvimento prático de uma pedagogia
humanizadora, pela qual educador e educando, através das
lideranças e das classes sociais, buscam dialogar na posição de
sujeitos do ato revolucionário.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 105

5 Considerações Finais

O presente artigo buscou demonstrar a relação das mulheres


negras e idosas na história da colonização do Brasil, trazendo os
seus feitos como um marco social à sociedade, e que, o que elas
representaram como “identidade social” no período colonial precisa
ser revisto e modificado nos dias atuais.
Cabe ressaltar que as mulheres negras e idosas, as quais
foram obrigadas a abandonar os seus filhos e familiares, seja para
cuidar da família dos senhores do engenho, seja nos afazeres da
casa, como no cuidado com os filhos das senhoras brancas, a visão
sobre elas continua sendo abordada, nos dias atuais, a partir da
mesma forma opressora e como pessoas, em sua maioria à margem
da sociedade.
Ocorre que, o fato delas trazerem uma bagagem histórica
de menosprezo, desqualificação e imposição, o tratamento dessas
mulheres negras e idosas em nossa sociedade deveria ser diferenciado,
e por meio de ações e legislações, cabe um tratamento desigual
através das suas diferenças, para que estas entendam a importância
do feito realizado pelas suas antecessoras e sintam-se parte da
sociedade. Ou seja, são as pluralidades olhadas e vivenciadas a
partir das suas desigualdades, para que estas desigualdades vistas
como “problemas” sejam reconhecidas e respeitadas em suas
individualidades.
Portanto, a aplicabilidade dos direitos humanos para as
mulheres negras e idosas, mais do que nunca se faz necessário e
imprescindível, reconhecendo que há ainda formas opressoras
presentes, tais como o racismo, o sexismo e o ageismo. Há sim,
uma dívida social com a população negra e de forma especial, com
as mulheres negras e idosas.
106 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Referências

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Federativa do Brasil de 1988. Brasília- DF: Centro Gráfico,
1988.
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Política Nacional do Idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e
dá outras providências. Brasília-DF, 1994. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8842.htm. Acesso em: 13 nov.
2022.
BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003: dispõe sobre
o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Brasília-DF, 1994.
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Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 73 -79.
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São Paulo, 1999.
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1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-
universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 12 nov. 2022.
Capítulo 7

Direitos humanos e políticas públicas: uma


breve reflexão acerca da igualdade social

Denise da Costa Dias Scheffer


Daiane Caroline Tanski
Diego Pascoal Golle

1 Introdução

O contexto histórico da vida em comunidade perfaz


a trajetória da humanidade, seus costumes, valores,
anseios e normativas direcionadoras aos direitos e deveres, permeando
a evolução em diversas áreas, produzindo o melhoramento de
diretrizes que constroem os aspectos fundamentais, pautados na
garantia legal de direitos, na busca individual e coletiva em prol da
emancipação dos sujeitos. As diversas tratativas acerca da valorização
e dignidade da pessoa humana, os avanços globais no campo da
modernidade e das garantias elencadas na busca constante pelo
respeito e igualdade de oportunidades através de políticas públicas,
enfatizam o objetivo do artigo em analisar a relação dos direitos
humanos e das políticas públicas diante da vida em sociedade na
consolidação da igualdade social.
Advinda dos anseios da sociedade, as políticas públicas
permitem o debate no campo acadêmico. A partir do embasamento
bibliográfico, inicialmente cabe destacar o conceito elencado pelo
doutrinador Mead (1995), que aborda a política pública como
um campo dentro do estudo da política que avalia o governo
em relação às grandes questões públicas. Já na descrição de Lynn
(1980), a política pública é um conjunto de ações do governo que
produzirão efeitos específicos, conceito ainda complementado por
108 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Peters (1986), o qual menciona que a política pública é a soma


das atividades dos governos, que agem diretamente ou através
de representantes, influenciando desta forma, a vida de todos os
cidadãos.
Pertinente também ressaltar o conceito doutrinário
bibliográfico dos direitos humanos. Circunstanciado nas palavras
de Hannah Arendt (1979), os direitos humanos não são meramente
dados, mas sim um grande construído em constante processo de
(re)formulação. Dessa forma, a discussão acerca da racionalidade
igualitária, do tratamento digno e acessível diante da humanidade,
do respeito e do cumprimento de normas de direitos e garantias
constitucionais estão presentes no debate dos direitos humanos e
das políticas públicas para a igualdade dos sujeitos.
No que diz respeito à metodologia, destaca-se que
a pesquisa está delineada a partir do embasamento bibliográfico.
Para Appolinário (2011), restringe-se à análise de documentos e
tem como objetivo a revisão de literatura de um dado tema, ou
determinado contexto teórico, evidenciando ainda concepções
históricas na contemporaneidade, por meio da pesquisa
bibliográfica, diante do processo epistemológico da aprendizagem
na busca dos anseios reflexivos da pesquisa.

2 Desenvolvimento

Acerca da definição dos direitos humanos, estudos


doutrinários projetam a dignidade da pessoa humana como eixo
central e conceitual da temática, oriundo das tratativas históricas
igualmente evidenciadas na contemporaneidade. Historicamente, o
contexto produz a ligação dos direitos humanos à Segunda Guerra
Mundial, ainda a violência auferida designada como ofensa à
dignidade da pessoa humana, está presente em diversas convenções
e normatizada em declarações supra legais. Cabe destacar que a
premissa inicial no campo dos direitos humanos e seus objetivos
está pautada na igualdade, fraternidade e liberdade dos sujeitos.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 109

Pode-se compreender ainda que o contexto histórico dos


direitos humanos se consolida a partir da movimentação de lutas
e conquistas da humanidade, as quais, posteriormente conversam
com as legislações e reconhecimento normativos dos direitos à
dignidade e ao combate a atos de violência imbricados na sociedade,
buscando, dessa forma, a equidade dos valores humanos para todos
os sujeitos.
Enfatizados na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
de 1948, em assembleia geral da Nações Unidas, trazendo em seu
primeiro artigo a seguinte redação: “Todas as pessoas nascem livres
e iguais em dignidade e em direitos. São dotadas de razão e de
consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade”. (1948)
No enlace das premissas da liberdade, igualdade e
fraternidade, Bobbio traz:
Trata-se de um sinal dos tempos o fato de que, para tornar
sempre mais irreversível esta radical transformação das relações
políticas, convirjam, sem se contradizer, as três grandes
correntes do pensamento político moderno: o liberalismo, o
socialismo e o cristianismo social. (1991)
Cabe destacar que os direitos humanos a partir da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, onde os valores do
respeito, da dignidade foram delimitados e tratados diretamente
acerca da pessoa humana, é plausível ainda mencionar Piovesan
(2007, p. 8) “os direitos humanos, introduzida pela Declaração
Universal de 1948, é fruto da internacionalização desses mesmos
direitos”.
Acerca da conceituação dialética dos direitos humanos,
Piovesan explica:
De toda maneira os direitos humanos se inspiram nesta dupla
vocação: afirmar a dignidade humana e prevenir o sofrimento
humano. Lembro aqui Hannah Arendt, quando afirma que o
ser humano é ao mesmo tempo um início e um iniciador e que
é possível modificar pacientemente o deserto com as faculdades
da paixão e do agir. A ética dos direitos humanos trabalha com
o idioma da reciprocidade. É aquela ética que vê no outro
110 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

um ser merecedor de igual consideração e profundo respeito,


dotado do direito de desenvolver as suas potencialidades de
forma livre e de forma plena. (2009, p. 109).
A liberdade e o respeito enquanto fatores primordiais da
concepção dos direitos humanos constituem a conjuntura da
construção da igualdade social dos sujeitos através de mecanismos
que tornam possíveis a interligação das relações humanas, visto que
o Estado configura uma organização democrática e representativa
dos sujeitos. Portanto, o Estado deve produzir suas políticas para a
coletividade e a oportunidade igualitária de oferta e acesso a serviços
públicos fundamentais e responsáveis pelo desenvolvimento
humano.
Diante do enlace proposto como temática da pesquisa, faz-
se a continuidade da observação do conceito de política pública
atribuído a Vásquez e Delaplace (2011), os quais entendem que
a política pública objetiva buscar o bem-estar social e coletivo,
utilizando seus recursos públicos em prol dos sujeitos. Compreende-
se, portanto, que a política pública enquanto instrumento de
socialização da igualdade e da liberdade deve ser pautada no bem
estar social.
Interligada às constantes modificações normativas da
sociedade, no campo coletivo das diretrizes determinantes para
os regramentos direcionadores das boas práticas igualitárias dos
sujeitos, a igualdade social está presente ao contexto formativo dos
sujeitos na contemporaneidade, imbricado em diversas nuances,
como explana Dood, Lamont & Savage (2017), que apesar do
debate em prol da igualdade social perfazer predominantemente
o campo econômico (renda ou classe social) o tema emerge
atualmente aderindo outras temáticas ligadas ao gênero, raça ou
etnia, por exemplo.
De fato, debater os direitos humanos, as políticas públicas
e a desigualdade social enquanto mazelas da sociedade, produz
efeitos críticos-reflexivos em áreas coletivas, os quais precisam ser
dialogados constantemente na busca pela dignidade da pessoa,
pelo auxílio e contribuição ao melhoramento social e equidade
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 111

de direitos e deveres aos sujeitos. Cabe destacar que a temática da


igualdade social perfaz a contenda dos anseios sociais, combatidos
a partir dos direitos humanos e das políticas públicas, na tentativa
de restauração social da igualdade dos sujeitos para a vida em
sociedade.

3 Considerações finais

A vida em sociedade modifica-se ao longo do tempo, novas


nuances são exploradas em diversos campos, no intuito de evoluir
a humanidade e satisfazer anseios diante de crises existentes em
áreas como saúde, educação e ciência, produzindo efeito diante
da modernidade acerca da globalização, migrando modernidades
potencializadas em prol da coletividade, a indagação reflexiva é
constante, sob o olhar do novo e sua interação em grupo.
A pesquisa buscou refletir a partir da conceituação
doutrinária, o enlace dos direitos humanos enquanto dignidade
da pessoa humana, as políticas públicas para o estabelecimento
da superação dos anseios coletivos do funcionamento coletivo das
normativas oportunizadas aos sujeitos de direitos e deveres, para a
igualdade social emancipatória dos preceitos legais e coletivos das
vivências em sociedade.
Pertinente destacar, que os autores enfatizam a constante
construção das políticas públicas ao passo das mudanças ocorridas
na coletividade enfatizam uma necessidade de constante debate
alargado entre as temáticas emergentes situadas nos direitos
humanos e a igualdade social para o bem comum, elevando as
oportunidades coletivas aos espaços de convivências dos sujeitos.

Referências

APPOLINÁRIO, F. Dicionário de Metodologia Científica. 2.


ed. São Paulo: Atlas, 2011.
ARENDT, H. As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto
112 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Raposo, Rio de Janeiro, 1979.


BOBBIO, N. O modelo jusnaturalista” in “Sociedade e Estado
na Filosofia Política Moderna”, São Paulo, Brasiliense, 1991.
DUDH – Declaração universal dos direitos humanos. https://
www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm. Acesso em 12 de
maio de 2021.
DYE, T. D. Understanding Public Policy. Englewood Cliffs,
N.J.: PrenticeHall. 1984.
DODD. N., LAMONT, M., & SAVAGE. M. (2017).
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Sociology, 68(S1), S3-S10. doi:10.1111/1468-4446.12326.
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LYNN, L. E. Designing Public Policy: A Casebook on the Role
of Policy Analysis. Santa Monica, Calif.: Goodyear. 1980.
MEAD, L. M. “Public Policy: Vision, Potential, Limits”, Policy
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PETERS, B. G. American Public Policy. Chatham, N.J.:
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um estudo comparativo dos sistemas regionais europeu,
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Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/
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VÁZQUEZ, Daniel; DELAPLACE, Domitille. Políticas
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em Construção. In Revista Internacional de Direitos Humanos,
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Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 113

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domitille-delaplace.pdf. Acesso em maio de 2021.
Capítulo 8

Transtorno do Espectro Autista (TEA) na


população idosa: uma análise discursiva

Giácomo de Carli da Silva


Solange Beatriz Billig Garces
Denise Tatiane Girardon dos Santos
Maria Aparecida Santana Camargo
Marcelo Cacinotti Costa

1 Considerações iniciais

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) começou a


ser descrito ainda na década de 1940, nos Estados
Unidos da América. Naquela época, detectou-se o primeiro caso do
Autismo no mundo, o de Donald Grey Triplett, nascido em 8 de
setembro de 1933 e falecido em 15 de junho de 2023, aos 90 anos.
As pessoas com TEA, geralmente são consideradas um
problema, associado à doença, o que não é verdade. Para serem
consideradas pessoas doentes, as pessoas com TEA deveriam possuir
a ausência da saúde, como por exemplo, uma gripe ou quaisquer
outras viroses, por exemplo. Mas uma gripe e/ou outras viroses
qualquer pessoa sem TEA pode adquirir, não é mesmo?
Pessoas com TEA, não possuem a ausência da saúde. O que
elas possuem é um cérebro que age diferente diante das circunstâncias
da vida. Como exemplo, não conseguem compreender muito bem
sarcasmos, olhares, metáforas etc. Também podem apresentar alta
sensibilidade, demonstrada em comportamentos diversos, como
baixa tolerância para determinados ruídos, cheiros e texturas de
roupas e alimentos. Podem possuir uma mobilidade motora
diferente, como ficar levando o corpo para frente e para trás,
116 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

bater as mãos, não olhar nos olhos das pessoas, ficar andando em
círculos, repetir várias vezes a mesma fala. E nos casos mais severos
de Autismo, não falar, se bater com força e bater em outras pessoas
(durante algum movimento brusco e não com a intenção de luta
ou desferir um golpe), dentre outras características. É de se destacar
que a ansiedade é presente na vida dos autistas e suas estereotipias
com os seus membros corporais e/ou com objetos, os ajudam a se
acalmar durante um momento de crise.
Levando em conta tais características que podem apresentar-
se nas pessoas com autismo, tanto na infância como nas fases da
adolescência e adulta, pergunta-se: será que o autista idoso, por já
estar mais predisposto a ter um rendimento cerebral com algum
problema (raciocínio lógico, por exemplo), pode conviver em
sociedade? Com essa questão problema, tem-se como objetivo para
esse artigo a desmitificação do tabu Autismo na Velhice. Trata-se de
uma reflexão bibliográfica, com cunho teórico e empírico.

2 Transtorno do Espectro Autista (TEA) e envelhecimen-


to

Para iniciar nossa discussão científica sobre o Transtorno do


Espectro Autista (TEA) na fase adulta, traz-se aqui uma citação
(NAMUR; AMORIM, s/d, p.2).
Autismo e TEA são geralmente considerados como
transtornos graves do neurodesenvolvimento, com impactos
funcionais consideráveis e impactos financeiros ao indivíduo
e à sua família. A diminuição de recursos nos setores sociais
e de cuidados com a saúde necessários para atender às
crescentes, e ainda assim pouco conhecidas,necessidades
estão associados há uma ignorância considerável sobre as
atualidades sobre envelhecimento no TEA nas comunidades
de autismo. Desta forma, pessoas com TEA com deficiências
enfrentam os problemas resultantes de seus limites e do
processo de envelhecimento. Dentro do grupo de pessoas
com deficiências, pessoas com alto grau de dependência ou
problemas de comunicação tem uma dupla vulnerabilidade.
Pessoas com autismo que estão incluídas neste grupo especial
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 117

enfrentam problemas adicionais:de comunicação e interação;


acessibilidade de todos os tipos, problemas residenciais e
de moradia; falta de equipe apropriadamente treinada; e
falta de um ambiente de aprendizado durante toda a vida,
apoio financeiro e vários problemas de saúde (ex.:problemas
gastrointestinais, insônia, epilepsia, problemas auto-imunes
e doenças mitocondriais). Mais importante, a maioria dos
adultos com deficiências não tem mais os pais para tomar
conta deles e vocalizar suas necessidades.
A citação inaugural deste artigo retrata e define muito bem
a situação de muitas Pessoas Autistas na fase adulta. Nesta etapa
da vida, ou seja, após a completude da maioridade penal que é
de 18 anos de idade, o sistema, a sociedade propriamente dita,
esquecem dos autistas adultos. É como se o autismo tivesse um
prazo de validade, que se findasse quando a pessoa completa 18
anos de idade.
Transtorno do Espectro Autista ou como também conhecido
pela sigla TEA, é um dos transtornos globais do desenvolvimento e
que contém um número de registro no Cadastro Internacional de
Doenças (CID), embora não seja uma enfermidade, pois doença
significa a ausência da saúde. Ainda, no presente momento que se
escreve esse artigo (2022), o Autismo possui dois números de CID
válidos. São eles, o CID10 F84, onde o Autismo está dentro do
grupo dos Transtornos Globais do Desenvolvimento, e o CID11
6A02 que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2022 e que unificou,
ou seja, que colocou o Autismo como uma doença específica, e não
dentro dos Transtornos Globais do Desenvolvimento.
Embora o Autismo possa começar a ser detectado ainda na
infância, nos primeiros meses de vida, muitas pessoas conseguem
o seu diagnóstico apenas na fase adulta, muitas vezes pela falta
de testes e/ou por simplesmente sofrerem com preconceitos e
acharem que o problema são elas próprias. Isso prejudica muito
o desenvolvimento dessas pessoas, em especial, a interação e
comunicação social. A falta de diagnóstico ou diagnóstico errado
torna a vida dessa criança, adolescente e futuro adulto e idoso, uma
vida de muitos obstáculos a serem vencidos, pois sempre pensará
118 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

que ele ou ela não faz parte da sociedade, mas ele ou ela, é uma
das partes reais das ambiências sociais, e não uma dita “margem da
sociedade”.
Muitos adultos no passado e ainda no presente, não têm
o diagnóstico de TEA, mas o possuem, deixando assim, de buscar
tratamento e consequentemente uma melhor qualidade de vida,
visto que o Autismo, por mais leve que seja o seu grau (Leve,
Moderado ou Grave), causa grandes perdas para quem o possui,
sendo a principal delas, a interação social e depois, a própria
interação face a face com outra pessoa, pois uma das características
de quem apresenta TEA é a dificuldade em focar olhar na outra
pessoa com que esteja conversando. Sobre a quantidade de pessoas
autistas no mundo, referem Cavalcante, Lima Filho, Melo, Silva,
Cavalcanti e Gazzola (2021): “De acordo com o Conselho Nacional
de Saúde (2011), a Organização das Nações Unidas (ONU), por
meio da OMS, considera que aproximadamente 1% da população
mundial esteja dentro do espectro do autismo, a maioria ainda sem
diagnóstico” (p. 67-68).
Levando em consideração que a citação anterior é datada de
2021, mas faz menção ao ano de 2011, é importante observar que,
segundo matéria publicada pelo Portal do G1 (Mundo) em 17 de
agosto de 2011) a população mundial superará 7 bilhões em 2011
e deste montante 1% era Autista, ou seja, cerca de 70 milhões de
pessoas estavam, em 2011, dentro do Espectro Autista no mundo.
Sobre a maior incidência do Autismo do que outras
doenças, essas sim, letais, caso não tratadas, o Transtorno do
Espectro Autistatem uma maior incidência no mundo, segundo
a Organização das Nações Unidas (ONU), conforme descrição a
seguir dos autores Cavalcante; Lima Filho; Melo; Silva; Cavalcanti;
Gazzola (2021, apud Silva; Gaiato; Reveles, 2012): “Segundo a
ONU, o número de pessoas no mundo acometidas pelo transtorno
aumentou drasticamente, sendo até mais comum que o câncer,
a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) e o Diabetes
Mellitus, em crianças” (p. 68).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 119

Já no Brasil, um país com cerca de 210/220 milhões de


habitantes, estima-se que uma população aproximada da população
do tamanho da maior cidade da Região Sul do Brasil, Curitiba,
capital do estado do Paraná, somados os habitantes das duas
maiores cidades do estado do Rio Grande do Sul no Brasil, Porto
Alegre e Caxias do Sul, seja Autista. Ou seja, cerca de 2 milhões de
habitantes brasileiros, são portadores do Transtorno do Espectro
Autista Cavalcante; Lima Filho; Melo; Silva; Cavalcanti; Gazzola
(2021, apud Silva; Gaiato; Reveles, 2012): “No Brasil, mesmo com
poucos estudos sobre a prevalência do TEA pelo difícil diagnóstico,
estima-se que com 200 milhões de habitantes, cerca de 2 milhões
são autistas” (p. 67).
É importante deixar claro que milhares dessas pessoas (2
milhões) não possuem o diagnóstico, o que lhes causa uma grande
perda em sua qualidade de vida, pois, como já dito anteriormente,
tendem a pensar e/ou serem tachadas de pessoas preguiçosas,
desatentas, mais lentas, dentre outros adjetivos. Sendo que na fase
adulta e, posteriormente, na fase mais avançada da vida, o estresse
psicológico, ansiedade, depressão e o desemprego, podem ser
companheiros diários da vida dos adultos e idosos com TEA. Os
estudos de Namur e Amorim (s/d), constataram que:
Qualidade de vida e stress psicológico em adultos com
transtorno do espectro autístico:o artigo publicado sobre a
qualidade de vida e stress psicológico (Stuart-Hamilton et
al.,2010) mostra que 29 adultos com TEA (média de idade
de 47 anos) tinham uma qualidade de vida significativamente
pior do que a da população geral. Os níveis de desemprego,
ansiedade e depressão eram significativamente maiores do que
os da população normal em adultos mais velhos com TEA
similar aqueles em pessoas mais jovens com TEA, destacando
esses problemas durante a vida (p. 3).
As investigações sobre e envolvendo Autistas Adultos/
Idosos, são escassas ainda hoje. Entretanto, Namur e Amorim
(s/d), nos trazem as seguintes conclusões encontradas em algumas
das pesquisas envolvendo o Autismo na fase adulta e Idosa. Os
referidos autores (s/d, p. 3) destacam:
120 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Descobertas semelhantes foram confirmadas na campanha


Nacional da Sociedade de Autismo, ‘I exist’ 2009 (http://
www.autism.org.uk/iexist), na qual 34% dos entrevistados
tinham 40 anos de idade ou mais ( só 4% tinham mais de
65 anos), e 60% deles eram solteiros,viviam sozinhos e sem
apoio (35% e 38% para adultos e indivíduos mais velhos,
respectivamente). O que este levantamento também descobriu
é que os pais dos indivíduos com TEA estão igualmente
preocupados com o futuro de seus filhos independente de sua
idade. O predomínio de distúrbios afetivos também parece
ser alto em adultos e indivíduos mais velhos com TEA. Deste
modo, 68% e 69% dos adultos (entre 40 e 64 anos) e 51% e
65% dos indivíduos mais velhos ( mais de 65 anos) com TEA
relataram depressão e ansiedade, respectivamente(http://www.
autism.org.uk/iexist). Estas descobertas sustentam a crescente
necessidade de especialização na administração de necessidades
psiquiátricas dos adultos e indivíduos mais velhos com TEA.
Estudos predominantes sobre problemas comportamentais e
transtornos psiquiátricos no TEA adulto ainda estão em falta.
Preliminarmente, estudos sobre adultos estão surgindo e eles
mostram que adultos autistas com mais de 50 anos tem uma
extensão similar de comportamento problema e de sintomas
psiquiátricos gerais àqueles vistos sem deficientes intelectuais
(Totsika et al., 2010). Contudo, os baixos níveis de habilidade
dos adultos com TEA estão associados a deficiências
intelectuais, e isto tem como consequência resultados mais
pobres em medidas de comunicação social e não social,
reciprocidade social e comportamento estereotipado (Shattuck
et al., 2007) e acima de tudo, qualidade de vida inferior . Isto
contribui para a redução de habilidades adaptativas dos adultos
com TEA, justificando foco posterior na implementação de
métodos para melhorar as habilidades adaptativas, usando os
elementos de métodos já estabelecidos para modelagem de
comportamento na aprendizagem da população deficiente,
por exemplo, análise aplicada do comportamento e reforço
comportamental positivo.
A falta de habilidades em adultos e pessoas mais velhas com
TEA, como consta na citação anterior, está intimamente ligada a
alguma deficiência intelectual. Sabe-se que o TEA, nem sempre
ocorre sozinho, mas sim, acompanhado de alguma patologia,
com por exemplo o TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção e
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 121

Hiperatividade, DDA – Distúrbio do Déficit de Atenção, TAG –


Transtorno da Ansiedade Generalizada, etc; dentre transtornos que
sim, causam deficiência intelectual, como por exemplo, a Síndrome
de Down.
Sabendo disso, é importante observarmos que a qualidade
de vida , capacidade intelectual, desenvolvimento da linguagem
dos indivíduos idosos com TEA esteja prejudicada por vezes
associado à questões financeiras, familiares, engajamento social,
acompanhamento escolar (CAVALCANTE; LIMA FILHO;
MELO; SILVA; CAVALCANTI; GAZZOLA, 2021).

3 Reflexões sobre envelhecer com TEA

Após a explanação sobre o que é o Autismo e suas


consequências nas fases adulta e idosa, é de extrema importância
se deixar claro que o diagnóstico precoce faz toda a diferença na
vida de um indivíduo com TEA. Dessa forma, o tratamento com
psicólogos, neuropediatras, psiquiatras e fonoaudiólogos desde
cedo poderá, com mais certeza e eficácia, retardar, não curar, pois
Autismo não tem cura, drasticamente os sintomas do transtorno.
Pessoas idosas que possuem TEA podem conviver em
sociedade? Sim. Claro que podem. Contudo, com conhecimento e
bom senso das pessoas que estão à sua volta. O Autista Idoso tem
plenas capacidades de viver uma vida “normal”. Podemos confirmar
isso com a própria história de Donald, o Caso nº 1 do Autismo no
mundo, em uma matéria jornalística sobre, em 2016 (PORTAL
G1, SP) quando Donald já tinha mais de 80 anos de vida. Segue-se
um trecho da matéria:
Ele é o retrato do aposentado feliz - bem distante da vida em
uma instituição à qual ele quase foi sentenciado e na qual ele
teria esmorecido sem ter feito nada do que realizou.O crédito
disso deve ser dado em grande parte à sua mãe. Além de levá-
lo para casa, ela tentou de forma incansável conectá-lo com o
mundo à sua volta, dar a ele uma linguagem para se comunicar
e fazer com que ele pudesse cuidar de si próprio.Algo neste
esforço funcionou, porque, quando chegou à adolescência, ele
122 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

conseguiu frequentar uma escola comum e, depois, ir para a


faculdade, onde se formou em Francês e Matemática. O crédito
deste resultado é do próprio Donald, por sua inteligência inata
e sua capacidade de aprendizado que permitiu realizar todo
seu potencial.
O pai de Donald também foi importante na descoberta
de seu Autismo. Foi ele quem descreveu em mais de 30 páginas,
as características de Donald ao Dr. Leo Kenner. Mais tarde essas
descrições sobre Donald feitas pelo seu próprio pai, seriam descritas
como sendo as características do TEA (DONVAN; ZUCKER,
2017).
Voltando ao Brasil, o Desembargador Federal do Tribunal
Regional da 4ª Região (TRF4), Rogério Favreto, ao se referir
em um Despacho/Decisão de um Agravo de Instrumento, sobre
a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com
Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), ocorrida
em 13/12/2006, ratificada pelo Brasil através do Decreto Lei nº
186/2008 e internalizado pelo mesmo país através 6.949/2009; e
sobre a Lei Brasileira de Inclusão – Lei nº 13.146 de 6 de julho
de 2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência;
sendo que ambos os documentos adotaram o modelo social de que
a deficiência está no meio e não na pessoa com deficiência, pois é o
ambiente o responsável pela produção da deficiência (FAVRETO,
2022). Podemos ler e entender isso através da citação direta do
autor (FAVRETO, 2022, p. 8-10):
Com efeito, o tema da proteção dos direitos e dignidade
das pessoas com deficiência possui caráter supranacional,
decorrente da Convenção Internacional sobre Direitos
das Pessoas com Deficiência (ONU - 13/12/2006), tendo
sido ratificada pelo Decreto Legislativo no 186/2008 e
internalizado formalmente pelo Brasil, no Decreto n°
6.949/2009, oportunidade que o país assume a obrigação de
promoção e proteção dos direitos humanos pelo exercício de
igualdade plena. Importa ressaltar que a força normativa da
incorporação das diretivas da Convenção Internacional sobre
os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de emenda
constitucional, remete a aplicabilidade imediata por se tratar
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 123

de direito fundamental de proteção e assistência do Estado.


Tanto a Convenção Internacional, internalizada pelo Brasil,
como a própria Constituição Federal, utilizam como escopo
maior os princípios da isonomia e igualdade, a fim de conferir
efetividade aos preceitos de respeito à dignidade da pessoa
humana e não discriminação ,mediante plena participação
na vida social, política e profissional, com igualdades de
oportunidades e instrumentos de inclusão social. Ainda,
cumpre anotar que no plano infraconstitucional a Lei
Brasileira de Inclusão no 13.146/15 (LBI), também conhecida
como Estatuto da Pessoa com Deficiência, reforçou a inclusão
da pessoa com deficiência, tendo como núcleo central o
direito à igualdade de oportunidades com os demais, sem
qualquer espécie de discriminação, como medida de proteção
do Estado em caso negligência ou tratamento desumano ou
degradante. Tanto a Convenção Internacional quanto a LBI
produziram mudanças significativas no ordenamento jurídico
brasileiro quando se trata de garantir direitos às pessoas com
deficiência. Ambos documentos jurídicos adotam o modelo
social de direitos humanos, o qual propõe que o ambiente é
responsável pela produção da deficiência, pois são as diversas
barreiras (urbanísticas, arquitetônicas, de comunicação, nos
transportes, atitudinais e tecnológicas) existentes na sociedade
que impedem o acesso e a inclusão de todas as pessoas, e por
isso devem ser removidas (art. 3o, inciso IV, alíneas a, b, c, d,
e, f da LBI).A perspectiva do modelo social - ponto de partida
para a elaboração da Convenção Internacional - determina
que a deficiência não está na pessoa como um problema a ser
curado, e sim na sociedade, que não é pensada e planejada para
a diversidade dos corpos humanos. Nesse sentido, a deficiência
deve ser compreendida enquanto resultado da interação entre
as características corporais do indivíduo - impedimento de
longo prazo - com uma ou mais barreiras (art. 2o da LBI).
Dessa forma, a deficiência somente existe na relação entre
o atributo corporal e o contexto social, tratando-se de um
produto relacional entre o sujeito e o meio, impossível
de existir “sozinha”, pois sempre inserida no ambiente.
O ambiente, portanto, tem um enorme impacto sobre a
experiência e a extensão da deficiência. Ambientes inacessíveis
criam deficiência ao criarem barreiras à participação e inclusão
(OMS, 2011 - Relatório mundial sobre a deficiência / World
Health Organization, The World Bank ; tradução Lexicus
Serviços Lingüísticos.- São Paulo: SEDPcD, 2012). Observa-se
124 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

que o direito fundamental à educação, direito social garantido


a todas as pessoas, visa o pleno desenvolvimento do indivíduo,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho, nos termos do art. 205 da Constituição
Federal. Em relação às pessoas com deficiência, o ordenamento
jurídico brasileiro determina que é responsabilidade do
Estado assegurar-lhes acesso à educação superior e à educação
profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e
condições com as demais pessoas, conforme art. 24, “5” da
Convenção Internacional e art. 28, caput e inciso XIII da
LBI. A fim de tornar possíveis tais direitos, ou seja, tornar a
educação efetivamente acessível às pessoas com deficiência, o
Estado deve assegurar a provisão de adaptações razoáveis (art.
24, “5” da Convenção Internacional), as quais são definidas
pelo Tratado como: modificações e ajustes necessários e
adequados que não acarretem ônus desproporcional ou
indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar
que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em
igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais. Nesse sentido,
é garantido às pessoas com deficiência sistema educacional
inclusivo em todos os níveis, além do aprendizado ao longo de
toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento
possível de talentos e habilidades físicas, sensoriais ,intelectuais
e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades
de aprendizagem, nos termos do art. 27, caput, da LBI.
Ainda, é dever do Estado, da família, da comunidade escolar
e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com
deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência,
negligência e discriminação, conforme parágrafo único, art.
27.Compete ao poder público assegurar o aprimoramento dos
sistemas educacionais, visando garantir condições de acesso,
permanência, participação e aprendizagem, por meio da
oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem
as barreiras e promovam a inclusão plena (art. 28, caput e
inciso II da LBI). Ou seja, o direito fundamental à educação
somente será concretizado para as pessoas com deficiência na
medida em que as barreiras que obstruem sua participação
plena e efetiva forem (1) identificadas para então serem (2)
eliminadas/removidas.
Dessa forma, não resta dúvidas de que o Autista Idoso pode,
sim, ter uma vida saudável e ativa. Cabe à sociedade ao meio se
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 125

adaptar aos Autistas, uma vez que a deficiência está no próprio


ambiente e não nos Autistas. Imagine que cuidar de uma pessoa
idosa sem Autismo, já tem que ter muito carinho e dedicação a ela,
devido as suas fraquezas físicas, ou seja, a própria vulnerabilidade
que a idade traz e, geralmente o processo de envelhecimento
associado à patologias adquiridas ao longo da vida e que se agravam
com a ampliação da idade. Imagine então, quando associado ao
Transtorno do Espectro Autista.
Desde criança, a pessoa com Autismo raramente terá
somente Autismo. Mas se por ventura chegar à velhice somente
com Autismo, possivelmente será acometida por mais alguma
comorbidade própria da idade. Deve-se lembrar que os idosos,
tanto os que não possuem Autismo, quanto os que possuem, não
são descartáveis e não merecem passar a velhice num asilo ou numa
instituição que cuida de problemas psíquicos como a que Donald
foi mandado na infância o Preventorium, e sua Mãe o tirou de lá
(DONVAN; ZUCKER, 2017).

4 Considerações finais

Nossa busca bibliográfica sobre o Transtorno do Espectro


Autista (TEA) e o envelhecimento demonstra que é possível
envelhecer com qualidade de vida. Mas é preciso que as pessoas
tenham conhecimento sobre e que ao mesmo tempo, aprendam a
respeitar e viver com as diferenças.
É preciso que saibamos aceitar as diferenças e, principalmente
conhecer, para evitar preconceitos, respeitar seus tempos e
características e preparar ambientes acolhedores, especialmente
em ambientes acadêmicos (estudantes, professores da Educação
Básica ao Ensino Superior e à Pós-Graduação), os quais estudam e
trabalham com processos de inclusão social, tanto de pessoas com
Transtorno de Espectro Autista quanto de pessoas idosas.
126 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Referências

CAVALCANTE, Juliana Lima; LIMA FILHO, Bartolomeu


Fagundes de; MELO, Maria Clara Silva de; SILVA, Amanda Carla
Matias Barros da; CAVALCANTI, Fabrícia Azevedo da Costa;
GAZZOLA, Juliana Mariana. Qualidade de vida de autistas
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Direitos Humanos, v. 23, n. 46, 2021. Disponível em: https://
www.metodista.br/revistas/revistas-ipa/index.php/EDH/article/
view/1148. Acesso em 05/05/2022
DONVAN, John; ZUCKER, Caren. Outra Sinfonia: A História
do Autismo. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
FAVRETO, Rogério. Agravo de instrumento Nº 502938-
59.2022.4.04.0000/RS, Tribunal Regional da 4ª Região,
2022. Disponível em https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.
php?acao=pagina_menu_listar&id_pai=261. Acesso em
19/11/2022
NAMUR, Victória Santos (Tradução); AMORIM, Letícia
Calmon Drummond (Revisão). Envelhecimento em pessoas
com Transtorno do Espectro Autístico. S/d. Disponível em:
https://www.ama.org.br/site/wp-content/uploads/2017/08/
EnvelhecimentoempessoascomTranstornodoEspectroAutstico.pdf.
Acesso em: 05/05/2022
Portal do G1 (Mundo). População mundial superará 7 bilhões em
2011, diz estudo. 17/08/2011. Disponível em: https://g1.globo.
com/mundo/noticia/2011/08/populacao-mundial-superara-
7-bilhoes-de-habitantes-em-2011-estudo.html. Acesso em:
12/05/2022.
Capítulo 9

A aplicabilidade da pesquisa fenomenológica


nos estudos feministas negros e a relação com
a linguagem

Dandara Roberta Soares Conceição


Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces
Carla Rosane da Silva Tavares Alves

1 Introdução

A fenomenologia, de maneira geral, compreende o estudo


dos fenômenos que ganhou notoriedade no início
do século XX, na Alemanha. Trata-se de uma ciência de caráter
descritivo que procura, entre outros pontos, entender como a
consciência se apresenta para o mundo, antes mesmo da formulação
de concepções sobre determinado objeto ou sujeito. Assim, acaba
se constituindo numa pesquisa mais flexível e menos tendenciosa
ao preconceito.
Nessa dimensão, o Feminismo Negro se mostra como um
movimento social liderado por mulheres negras, que alcançou
enorme destaque na década de 1970, ao discordar de discursos
universalizantes que apagavam as peculiaridades das experiências
desse grupo. As estudiosas e feministas negras, como Angela Davis
e Sueli Carneiro, trouxeram para o campo prático e teórico diversas
demandas, até então não debatidas no Movimento Feminista e
Movimento Negro, com a intenção de retirar o lugar secundário e
subalterno da imagem da mulher preta.
Logo, considerando a grande relevância científica e social
128 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

tanto da pesquisa de cunho fenomenológico, quanto do Movimento


Feminista Negro, esta investigação possui a seguinte indagação: de
que forma a pesquisa fenomenológica pode ser aplicada nos estudos
feministas negros?
A hipótese perpassa a noção de que a aplicação da pesquisa
fenomenológica nos estudos feministas negros pode abarcar a
investigação das vivências da mulher preta na sua origem, sem
qualquer influência de aspirações universais criticadas pelo próprio
Movimento Feminista Negro, no decorrer da análise das percepções
sobre um objeto/sujeito de pesquisa.
No mais, este trabalho objetiva conceituar a fenomenologia,
buscando algumas ideias da sua base filosófica, bem como os
conceitos indispensáveis para a sua compreensão. Em seguida,
possui a intenção de discorrer brevemente sobre a estrutura de uma
pesquisa fenomenológica e articular algumas ponderações sobre o
Feminismo Negro, e, ao final, vislumbrar como pode ser aplicada
a pesquisa fenomenológica nos estudos feministas negros, assim
como destacar a relação implícita com a linguagem.
Sublinha-se que este estudo está incluso na linha de
pesquisa de Linguagem, Comunicação e Sociedade do Programa
de Pós-Graduação Stricto Sensu em Práticas Socioculturais e
Desenvolvimento Social, da Universidade de Cruz Alta, uma vez
que relaciona a pesquisa fenomenológica e o estudo feminista negro
com a linguagem numa perspectiva global para o desenvolvimento
humano e social da mulher preta, no processo de externalização
de sua consciência subjetiva sem a interferência de noções sociais
preconceituosas.
Por fim, a metodologia adotada na pesquisa é a bibliográfica
e qualitativa de caráter exploratório, através da busca de artigos,
livros e materiais disponíveis no meio eletrônico, tendo como
aportes teóricos os autores: Collins (2019), Gil (2010), Kilomba
(2019), Leal (2020), Moreira (2002), entre outros.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 129

2 Desenvolvimento

A fenomenologia pode ser apreendida como o estudo dos


fenômenos que se refere a tudo aquilo que é explorado através da
consciência, ou seja, um tipo de meditação lógica capaz de excluir
incertezas (DINIZ; LOPES; SILVA, 2008). Esse estudo surgiu
no final do século XIX e início do século XX, na Alemanha, com
Edmund Husserl que teve como influências os pensamentos de
Platão, Descartes e Brentano (DINIZ; LOPES; SILVA, 2008),
numa época em que a ciência era, essencialmente, positivista e
rejeitava a experiência do sujeito (NANTES, 2020).
O adequado caminho seria oferecer um novo modo de
produzir conhecimento que identificasse e recuperasse o sentido
daquilo que torna de verdade o homem humano. A fenomenologia
preocupa-se com a constituição dos fenômenos e do mundo,
tendo como conclusões que o conhecimento está na aparência dos
fenômenos e não tão somente por trás deles (NANTES, 2020).
Contudo, é importante destacar que o conceito de
fenomenologia ganhou muitas variações ao longo dos anos, sendo,
constantemente, reinterpretado por pensadores que trabalham
neste campo de estudo, principalmente, na filosofia. Seguindo essa
linha, para o melhor entendimento do assunto, torna-se interessante
buscar a sua base filosófica, bem como os elementos essenciais que
permeiam o seu processo de compreensão (MOREIRA, 2002).
Na perspectiva filosófica da fenomenologia, o mundo seria
o fenômeno que se mostra por si mesmo e precisa ser desvelado
para se alcançar aquilo que a coisa é. A descrição possui um papel
fundamental nessa observação, já que o olhar habitual do estudioso
carrega suas experiências pessoais, não permitindo que o fenômeno
seja evidenciado em si mesmo. O pesquisador nessa abordagem
considera sua trajetória de vida e, com isso, se abstrai dela, lhe
permitindo interrogar o fenômeno que deseja compreender
(DINIZ; LOPES; SILVA, 2008).
Diante disso, apresenta-se notável assinalar alguns conceitos
130 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

essenciais atrelados ao estudo fenomenológico, os quais ajudam


na compreensão dessa ciência. Moreira (2002) aponta como
conceitos-chave para captar o método fenomenológico dentro e
fora da filosofia: a essência, a intencionalidade, o mundo natural e
a atitude natural, a evidência apodítica, a redução transcendental e
a redução eidética.
Acrescenta-se, ainda, o fenômeno como conceito
indispensável nesse processo de compreensão da fenomenologia.
O sentido de fenômeno envolve uma das grandes dificuldades da
área fenomenológica que, de modo geral, engloba todas as formas
de estar consciente de algo, desde os sentimentos até as vontades. O
fenômeno antecede as teorias e conceitos, sendo puramente o que
a coisa se mostra a si própria (MOREIRA, 2002).
Em relação ao conceito de essência, parte-se da concepção de
que a fenomenologia seria uma ciência que começa “do zero”, cujo
foco está no que é fornecido somente pela intuição, sem qualquer
apoio em outro conhecimento. A essência representaria a unidade
básica de entendimento comum do fenômeno (MOREIRA, 2002).
Acerca da intencionalidade pode-se colocar que na
fenomenologia ela versaria sobre uma característica da consciência
de ser consciente de algo. A premissa da intencionalidade é de que a
forma de solucionar um problema é intencional, sendo por causa dela
que o mundo aparece como um fenômeno. Enquanto ao conceito
de mundo natural e atitude natural se relaciona com a verificação das
vivências intencionais da consciência, para, posteriormente, notar
o sentido dos fenômenos. O estudo fenomenológico preocupar-se-
ia em aprofundar suas investigações na constituição do mundo e do
sujeito na consciência (MOREIRA, 2002).
No que diz respeito à evidência apodítica, entende-se que é
um saber certo e indubitável (MOREIRA, 2002), seria uma espécie
de termo que expressa a necessidade e não apenas um simples fato
empírico, se referindo à certeza de algo que precisa estar presente
(OLIVEIRA, 2018). Trata-se de uma verdade que impossibilita a
cogitação de dúvidas ou o cometimento de erros, tendo em conta
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 131

que a intencionalidade age na sua plenitude, em conformidade


com aquilo que se analisa (MOREIRA, 2002).
A redução fenomenológica ou transcendental, também
chamada de epoqué, seguiria o raciocínio de que o pesquisador deve
suspender suas crenças, tradições, opiniões relativas à existência
externa dos objetos, para examinar o conteúdo da consciência
como puramente dados, se detendo ao que consegue através da
percepção, intuição e recordação, por exemplo (MOREIRA, 2002).
Já a redução eidética abarca a maneira que o estudioso se
moveria da consciência de objetos individuais e concretos para o
domínio transempírico das essências puras, atingindo a intuição de
uma coisa (MOREIRA, 2002). O propósito é que a redução eidética
seja capaz de expressar a dimensão ideal do objeto da consciência
intencional, que passa despercebida pela consciência natural, para
que, no final, seja constituída a essência pura do objeto ou sujeito
(FURTADO, 2019).
Dessa maneira, no momento em que se juntam todos
esses conceitos associados à fenomenologia, verifica-se que esta
ciência propõe observar a realidade, a partir de um conhecimento
compreensivo e descritivo baseado nele mesmo, sem o envolvimento
de interpretações do mundo influenciadas pelas experiências
pessoais do pesquisador (NANTES, 2020). Nessa dimensão, é
pertinente discorrer brevemente sobre a estrutura de uma pesquisa
que segue o viés fenomenológico.
A pesquisa de cunho fenomenológico, em linhas gerais,
não tem um problema prévio definido, tampouco, hipóteses
estruturadas, haja vista que é difícil traçar previamente a extensão da
amostra, os instrumentos de coleta e os procedimentos analíticos.
Diferentemente das pesquisas que seguem os modelos positivistas,
os quais exigem a formulação de um problema consistente, amostras
proporcionais e representativas, instrumentos validados para a
coleta de dados e procedimentos técnicos de análise já definidos e
alinhados com as hipóteses formuladas (GIL, 2010).
No entanto, sinaliza-se que existem componentes
132 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

da pesquisa clássica que podem ser utilizados na pesquisa


fenomenológica, ao passo que o presente estudo somente foca
nos detalhes de seus elementos textuais. Gil e Yamauchi (2012)
agrupam os elementos textuais dessa pesquisa em seções específicas:
introdução, fundamentação teórica e trajetória metodológica.
A introdução costuma mostrar o tema, o problema,
os objetivos, o contexto e a justificativa para a realização da
investigação. O tema da pesquisa, normalmente, traz assuntos de
interesse do pesquisador que se relacionam à experiência vivida
pelos seres humanos, as quais se expressam em sentimentos, crenças,
aspirações e temores. Já o problema da pesquisa inicia, a partir de
uma insatisfação do pesquisador, que ainda não se constituiu num
conhecimento concreto (GIL, 2010).
Os objetivos na pesquisa fenomenológica são produzidos
sem maiores especificações, não se recomendando que estes sejam
determinados em objetivo geral e objetivos específicos. Ademais,
destaca-se que, nesse tipo de estudo, não há necessidade da
apresentação de hipóteses, já que o estudioso deve se abstrair de
tudo que conhece ou supõe sobre o fenômeno, para que consiga
efetivar a análise a que se habilitou (GIL; YAMAUCHI, 2012).
A contextualização acontece de acordo com o campo que
se pretende estudar, à medida que a limitação espacial e temporal
excessiva do fenômeno, não é ponto importante na pesquisa de
caráter fenomenológico (GIL; YAMAUCHI, 2012). Segundo Gil
(2010), a justificativa abrange a indicação do valor potencial da
pesquisa pretendida, mesmo que não exista uma estrutura fixa e
visível dos rumos do estudo.
No tocante à fundamentação teórica, a pesquisa
fenomenológica precisa apresentar fundamentos que esclareçam
o estudo desenvolvido. Sendo assim, em razão da característica
dinâmica desta forma de pesquisa, torna-se primordial a indicação
de aportes teóricos sólidos que expressem, minimamente, as
intenções do pesquisador (GIL, 2010).
A trajetória metodológica em outros modelos de pesquisa
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 133

pode receber o nome de materiais e métodos, metodologia,


métodos e técnicas ou simplesmente método, bem como se
subdividir em seções que tratam do tipo de delineamento, do
processo de amostragem, entre outros. Entretanto, na pesquisa
fenomenológica, nem sempre se recomenda tal subdivisão, uma vez
que o mais viável envolve trabalhar com uma única seção chamada
trajetória metodológica (GIL, 2010).
O estudo que tem como retrato a perspectiva
fenomenológica procura desvendar os fenômenos do mundo, por
meio da interpretação extraída da consciência do objeto/sujeito de
pesquisa. Busca-se investigar como aquele fenômeno se revela à
consciência, dispensando-se de pré-julgamentos ou outras cargas
sociais vivenciadas pelo pesquisador (NANTES, 2020).
No campo da linguagem, a fenomenologia auxilia o estudioso
a evitar eventuais equívocos advindos da fala dita e não dita. Ou
seja, assegura a autenticidade, adequação e objetividade dos dados
extraídos do objeto/sujeito de pesquisa. A fácil transitoriedade de
seus conceitos, faz com o diferencial dessa investigação esteja na
sua conexão com diferentes áreas do conhecimento, o que também
se relaciona com o perfil interdisciplinar da própria linguagem
(CASTRO, 2013).
Logo, o pesquisador que opta pela pesquisa fenomenológica
parte de experiências humanas vividas, a fim de entender a essência
de cada uma delas. Essa situação dificulta a estruturação da pesquisa
exatamente nos moldes positivistas, tendo em vista que não é
possível, num primeiro momento, imaginar de forma concreta seus
resultados, o que torna o processo investigativo mais enriquecedor.
Dessa forma, este trabalho também se propõe a articular
algumas ponderações sobre o Feminismo Negro, para em seguida,
vislumbrar a aplicabilidade da pesquisa fenomenológica nessa área
de estudo e sua relação implícita com a linguagem. Leal (2020)
fala que o Feminismo Negro é o termo usado para denominar o
movimento teórico, político, social e prático protagonizado por
mulheres negras, o qual objetiva visibilizar as demandas desse
134 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

grupo.
O Feminismo Negro ganhou maior impulso nas décadas
de 1970 e 1980, a partir da movimentação de feministas negras
norte-americanas, como Angela Davis e Patrícia Hill Collins que,
assim como, tantas outras mulheres pretas, passaram a reivindicar
suas próprias pautas. Considerando que a visão universalista do
Movimento Feminista não contemplava a realidade da mulher negra
entrelaçada pela opressão racial. Em contrapartida, no Movimento
Negro, havia pouco espaço para temas pertinentes ao gênero.
Por conseguinte, no Brasil, o Feminismo Negro ganhou
força no final da década de 1970, com o Movimento de Mulheres
Negras (MMN). As ativistas e pensadoras negras, como Sueli
Carneiro e Beatriz Nascimento, passaram a problematizar a falta
nos movimentos sociais de abordagens pautadas, conjuntamente,
nos aspectos de raça e gênero, similarmente, ao que as feministas
negras norte-americanas apontavam (LEAL, 2020).
Os anseios da mulher preta eram tratados como um
subitem da questão da causa feminina, mesmo num país em que
as afrodescendentes abrangiam, aproximadamente, metade da
população feminina (CARNEIRO, 2011). De igual modo, nos
espaços direcionados à pauta racial, a mulher negra, novamente,
ficava em segundo plano, considerando que não havia emergência
em se desconstruir a estrutura patriarcalista que centralizava o
poder nas mãos dos homens.
Nessa linha, a conscientização do grau de exclusão no
Movimento Feminista e no Movimento Negro foi determinante
para o surgimento de organizações de mulheres negras atentas ao
combate do racismo e sexismo. O Movimento de Mulheres Negras
formou-se com o objetivo de capacitar as diferentes mulheres pretas,
estimulando sua participação política com propostas concretas que
superassem a inferioridade social ocasionada pelas discriminações
de raça e gênero. Além disso, com a movimentação feminina negra,
houve a maior sensibilidade social para assuntos particulares que
atingiam esse grupo (CARNEIRO, 2011).
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 135

Na atualidade, o Feminismo Negro adquiriu diferentes


contornos, sobretudo, as suas reivindicações que passaram a ser
menos institucionais, por intermédio do aparecimento de coletivos
que não priorizam a estratégia do diálogo direto com o Estado,
como acontecia, na década de 1980. A militância das feministas
negras ultrapassou fronteiras ao adentrar nas redes sociais, cujos
repertórios discursivos se multiplicaram, permitindo a conexão de
mulheres pretas com histórias diversas (FREITAS; RODRIGUES,
2021).
Com isso, o Feminismo Negro possui o intuito de
descontruir o não lugar social da mulher negra, tendo em conta
que as suas particularidades não podem ser atendidas unicamente
pelo fato de ser negra ou mulher. Dessa forma, quando se pensa na
conjuntura social da figura feminina preta, é impossível visualizar
raça e gênero divididos. Igualmente, o racismo e sexismo se mostram
indissociáveis da linguagem, tendo em vista que a língua evidencia
as relações de poder constituídas na sociedade, bem como através
dela essas mulheres conseguem expor as suas experiências de vida,
segundo Ferreira e Fraga (2021).
Em outras palavras, o Movimento Feminista Negro traz,
por meio das vozes das mulheres negras, os anos do silenciamento
histórico de suas especificidades que estavam aprisionados pela
mentalidade colonial. A preocupação com a dupla opressão de raça
e gênero acaba por provocar vários questionamentos que perpassam
a vivência feminina preta, especialmente, aqueles estudos que
investigam suas dores, angústias e inquietudes.
A pesquisa fenomenológica insere-se nesse cenário, uma
vez que pode partir da experiência vivida pela mulher negra
para investigar um fenômeno próprio. Também, nessa direção,
se observa a relação implícita com e através da linguagem, uma
vez que é pela linguagem que tudo se exterioriza, se compartilha,
oportunizando aos sujeitos a relação “eu-tu-nós”, o intercâmbio de
todo o conhecimento, das vivências e experiências.
Esse estudo objetiva desconsiderar o processo de incorporação
136 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

das experiências de todas as mulheres no mesmo canal, já que a


continuidade dessa postura favorece a existência de abordagens
discriminatórias, que não contemplam de forma satisfatória as
vivências da mulher negra. Sob esta ótica, a universalização de sua
realidade resulta em reflexos nos muitos setores de sua vida social,
bem como na caminhada formadora de suas percepções sobre a
vida (MIRANDA; PORTILHO, 2018).
Acentua-se que as mulheres negras sofrem com as
consequências do racismo e patriarcalismo, desde o período
escravagista, fazendo com que a manifestação de sua consciência seja
distinta de outras mulheres não negras. A pesquisa fenomenológica
pode agir nessas condições como uma teoria que evita a reprodução
de afirmações absolutas ou universalistas sobre o mundo e as
relações sociais anteriores ao processo investigativo. Seria capaz
de suspender as concepções eurocêntricas e coloniais, para reunir
em requisitos pertinentes as informações atinentes à existência
feminina negra (MIRANDA; PORTILHO, 2018).
Portanto, a aplicabilidade da pesquisa fenomenológica nos
estudos feministas negros compreende a investigação da experiência
feminina negra, na sua origem primitiva, da busca da ancestralidade
deste grupo, conforme o modo em que a sua consciência se mostra
diante do pesquisador ou pesquisadora. A intenção é trabalhar
algum detalhe da presença feminina preta exteriorizada pela
consciência livre de preconceito, tendo a linguagem como um
conector implícito dessa pesquisa.

3 Considerações finais

A fenomenologia pode ser descrita como o estudo dos


fenômenos que busca explorar de que forma a consciência se
manifesta no mundo. Essa ciência, ao contrário da vertente
positivista, preocupa-se com a subjetividade do ser humano, em
que pelo ângulo filosófico o mundo seria um fenômeno que se
evidencia por si mesmo, tendo a descrição como seu principal
instrumento.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 137

Assim, o complexo significado da fenomenologia denota


a necessidade da indicação de conceitos indispensáveis para o
seu processo de compreensão, quais sejam: fenômeno, essência,
intencionalidade, mundo natural e atitude natural, evidência
apodítica, redução transcendental e redução eidética.
Diante disso, a estruturação de uma pesquisa fenomenológica
não segue as orientações rigorosas do sistema positivista de outros
tipos de pesquisa, tendo em vista que não possui um problema,
tampouco, uma hipótese delineada de maneira concreta. Na
tentativa de estipular um modelo básico que contenha o mínimo de
informações que demonstrem os rumos da investigação pretendida,
verificou-se que os temas escolhidos envolvem as experiências
humanas expressas em sentimentos, temores, aspirações e crenças,
cujo problema terá origem na insatisfação de algum desses aspectos.
A pesquisa fenomenológica, no que tange aos objetivos, a
contextualização e justificativa, apresenta um perfil mais flexível,
moldando-se conforme a condução das tratativas investigativas.
Já a fundamentação teórica desse tipo de estudo precisa revelar
certa relevância científica e social, bem como as intenções do
pesquisador, por intermédio de sólidos argumentos. Quanto a
parte da metodologia pode ser estruturada numa única seção
chamada Trajetória Metodológica. Dessa maneira, a pesquisa
fenomenológica propõe-se a analisar sem pré-julgamentos situações
específicas, permitindo que os caminhos investigativos sejam mais
flexíveis.
Enquanto, o Feminismo Negro, trata-se de um movimento
social e teórico que objetiva divulgar as pautas das mulheres negras,
num contexto em que as questões de raça eram invisibilizadas pelo
Movimento Feminista, e os aspectos de gênero não tinham a devida
ênfase no Movimento Negro. O principal intuito do pensamento
feminista negro é trazer de forma conjunta os marcadores de raça e
gênero presentes nas especificidades da mulher negra.
Desse modo, a aplicabilidade da pesquisa fenomenológica
nos estudos feministas negros pode se encontrar na inquietude de
138 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

investigar a experiência feminina negra originária, sem qualquer


interferência da concepção colonial, ao longo da análise da
percepção de um objeto/sujeito de pesquisa. Frente a isso, o uso
da fenomenologia nos estudos feministas negros, possui uma
ligação implícita com a linguagem, considerando que exterioriza a
consciência livre de preconceitos e o intercâmbio de saberes.

Referências

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São Paulo: Selo Negro, 2011.
CASTRO, Fábio Fonseca de. Fenomenologia da Comunicação
em sua quotidianidade. Intercom: Revista Brasileira de Ciências
da Comunicação, v. 36, p. 21-39, 2013.
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conhecimento, consciência e política do empoderamento. São
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DINIZ, Normélia Maria Freire; LOPES, Regina Lúcia
Mendonça; SILVA, Jovânia Marques de Oliveira e.
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2008, p. 254-257.
FERREIRA, Aparecida de Jesus; FRAGA; Letícia. Linguagem
e Raça. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 60, n. 1, p.1-5,
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GIL, Antônio Carlos. O projeto na pesquisa fenomenológica. In:
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Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 139

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Capítulo 10

As diferentes vertentes teóricas do Movimento


de Mulheres Negras: breves considerações
a respeito do Mulherismo Africana e do
Feminismo Negro

Dandara Roberta Soares Conceição


Sirlei de Lourdes Lauxen
Solange Beatriz Billig Garces
Carla Rosane da Silva Tavares Alves

1 Introdução

O Movimento de Mulheres Negras pode ser considerado


uma movimentação, na qual o grupo oprimido pelo
racismo e sexismo encontra na união organizacional a possibilidade
de mudar sua realidade. Carneiro (2003) evidencia que a luta das
mulheres pretas desenha novos contornos para a ação política
feminista e antirracista, no que tange o enriquecimento das
discussões raciais e de gênero. Nesse movimento social existe uma
diversidade de autores que se dividem em variadas correntes teóricas.
Assim, torna-se importante que haja a abordagem de algumas delas,
como o Mulherismo Africana e o Feminismo Negro.
O Mulherismo Africana é o termo criado por Clenora
Hudson Weems, que estabelece um pensamento matriarcal
afrocêntrico, o qual visualiza que toda mulher negra é africana. A
terminologia “Africana” deriva do plural em latim, referindo-se ao
conjunto composto pela África e sua diáspora (WEEMS, 2000).
Ao passo que o Feminismo Negro trata-se de um movimento
social e teórico, no qual o protagonismo feminino preto promove
142 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

ações contra a conjuntura discriminatória de gênero e raça. Nessa


linha, este trabalho possui o seguinte questionamento: quais são
os principais pontos que diferenciam o Mulherismo Africana e o
Feminismo Negro?
Logo, o objetivo é abordar o Mulherismo Africana e o
Feminismo Negro, apresentando alguns de seus pressupostos
teóricos. Ainda, o intuito do trabalho abarca indicar a diferença
entre essas duas vertentes teóricas. Dessa forma, esta investigação
constitui-se por uma pesquisa bibliográfica, qualitativa e de caráter
exploratório, que utiliza-se de livros e materiais disponibilizados
no meio eletrônico, com base em autores como: Asante (2016),
Berth (2019), Carneiro (2003), Leal (2020), Weems (2000), entre
outros.

2 O retrato da mulher negra pela perspectiva do Mulhe-


rismo Africana

O Mulherismo Africana trata-se de uma teoria que aborda a


condição da mulher negra por uma ótica afrocêntrica norteada em
princípios ancestrais africanos. O conceito foi criado por Cleonora
Hudson Weems, em 1987, que introduz um pensamento matriarcal
afrocentrado, o qual segundo Hilário, Justino e Oliveira (2019)
preconiza a ideia de que toda mulher preta é africana em diáspora,
tendo um enorme papel na construção política, econômica,
filosófica e cultural da sociedade.
Diferentemente, do Mulherismo cunhado por Alice
Walker, no Mulherismo Africana propõe-se a apresentação da
África como o berço da humanidade, do qual advém vários saberes
utilizados pelo Ocidente (DOVE, 1998). Neste caso, a identidade
étnica da mulher está ligada aos seus ancestrais do continente
africano. Ou seja, o “Africana”, cuja partícula “a” ao final, em vez
da letra “o”, deriva do plural em latim, que procura nesta hipótese
remeter ao conjunto cultural da África e sua diáspora. Enquanto o
“Mulherismo”, segundo este contexto, diz respeito ao vasto legado
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 143

da feminilidade africana frente à luta contra a opressão colonial


(WEEMS,2000).
Outra explicação dada para a escolha da termologia
“Mulherismo” é que esta seria uma extensão da palavra “mulher”,
tendo em vista que seria um reconhecimento adequado para
nomear um grupo específico da raça humana. Em contrapartida, a
expressão “Feminino”, possui um sentido mais aberto, podendo se
referir a um membro pertencente ao reino animal ou vegetal, além
da concepção de humanidade (WEEMS,2000).
Ou seja, o Mulherismo Africana constitui-se como um
conceito teórico moldado para todas as mulheres afrodescendentes,
que possibilita o estabelecimento de critérios particulares alicerçados,
sobretudo, num viés racial, do qual avalia e promove mudanças
dos espaços ocupados por este grupo (WEEMS, 2000). Nessa
linha, depreende-se que esse pensamento perpassa três grandes
bases teóricas, as quais sejam, o Matriarcado, o Pan-africanismo e a
Afrocentricidade (DOVE, 1998).
O Matriarcado, de modo geral, compreende-se,
inicialmente, como um tipo de sociedade em que o poder
organizacional da comunidade era exercido, principalmente, pelas
mães desse núcleo social (CARVALHAL; MARTINS, 2016). As
mulheres em algumas sociedades africanas efetivaram o seu poder
que detinha certa conotação divina, além do ambiente doméstico,
ao contar com um forte destaque político em outros setores da
vida coletiva. Não se priorizava o cultivo de posturas individualistas
ou agressivas. Tampouco, havia a total exclusão dos homens na
participação funcional da sociedade (OLIVEIRA, 2018).
Partindo do ponto de vista afrocentrado, o Matriarcado
conecta-se com a valorização da história e cultura africana, bem
como a interpretação oposta daquela difundida pela lógica europeia
ocidental. O propósito não estaria em isolar homens africanos e
mulheres africanas, ou, separar as mulheres umas das outras, mas
que houvesse nos espaços sociais a predominância da solidariedade,
considerando que a figura feminina seria a unidade central, cujos
144 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

filhos são todos os indivíduos que fazem parte daquele povo


(OLIVEIRA, 2018).
No Mulherismo Africana o Matriarcado aparece por
meio do objetivo de se valorizar o papel das mães africanas na
reconstrução da integridade cultural harmônica, justa, recíproca e
equilibrada do povo afrodescendente diaspórico. Ainda, ressalta-
se a primordialidade da mulher preta de se autorreconhecer e
autodefinir, no ambiente familiar (OLIVEIRA, 2018).
Com isso, nota-se que o conceito de Matriarcado trazido
pelo Mulherismo Africana está associado à ótica afrocêntrica, a
qual evidencia o lugar de protagonismo do povo negro, centrado
na imagem da mulher negra no processo de desenvolvimento da
África. Os assuntos referentes ao gênero acabam por ser cobrados,
após se resolver os problemas relativos à raça.
O Pan-africanismo engloba um movimento social, filosófico
e literário que passou a ter mais força, no início do século XX,
quando o advogado negro Henry Silvester Williams utilizou, pela
primeira vez, este termo numa conferência de intelectuais negros
(NUNES, 2018). Este movimento aspira a unificação e a autonomia
dos povos africanos e afrodescendentes, a partir do questionamento
dos sistemas coloniais e escravagistas impostos ao povo negro, nas
diversas partes do mundo (CUNHA JÚNIOR; SILVA, 2014).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, se amplificou a
premissa de que a luta por independência de um povo estimulava
e reforçava a luta de outro povo. Consequentemente, o combate
ao regime colonial não deveria ser isolado (MUNANGA, 2016).
Nesse sentido, de forma complementar aponta-se a fala de Oliveira
(2022, p.30) sobre o Pan-africanismo:
[...] enquanto um movimento de ideias e ações concentradas,
buscava desenvolver-se na prática como um projeto de
autodefinição e auto-organização para os povos negros no plano
político, cultural e econômico. Em sua essência, o pensamento
pan-africanista no século XX esteve ancorado em três pilares,
a saber: a solidariedade racial, a unidade cultural e a redenção
africana. [...] Em seu sentido cultural, o pan-africanismo, se
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 145

configurou sob diversas frentes de luta, como associações de


escritores, institutos de pesquisa, imprensa negra, festivais
de arte e realização de encontros. No plano político fora
forjado a partir daquilo que Joseph Ki-Zerbo denominou de
“grupos motores” das independências africanas, formado por
sindicatos, movimentos de estudantes, intelectuais, igrejas
separatistas reafricanizadas, partidos políticos e a consequente
luta armada. Em seu sentido histórico, remonta aos debates
sobre as reparações pelos quinhentos anos de escravidão,
o legado das civilizações africanas para o desenvolvimento
humano, e o lugar do povo negro na sociedade contemporânea.
Diante disso, verifica-se que o Pan-africanismo, durante
o século XX, assim como, outras mobilizações teóricas africanas
e afrodescentes desejavam combater a mentalidade colonial que
se mantinha, desde a colonialidade, inferiorizando a capacidade
multifacetada de negros e negras. A título de exemplo Munanga
(2016) dizia que o Movimento da Negritude e o Movimento do
Pan-Africanismo convergiam na área da africanidade ativa, pela
qual todos tinham origens comuns, e, por isso, precisavam lutar
juntos.
O Mulherismo Africana se correlaciona com o Pan-
Africanismo, devido ao seu esforço de unificar o povo negro,
demonstrando a trajetória histórica silenciada pelos colonizadores.
Assume-se as mulheres negras como africanas em diáspora que
agem para acabar com as opressões que atacam, incisivamente, seus
corpos.
A Afrocentricidade é uma teoria que surgiu no começo da
década de 1980, através da publicação do livro “Afrocentricidade”,
de Molefi Kete Asante. Por consequência, seria a resposta à
supremacia branca, que atua entre outras formas mediante a prática
da violência contra os povos africanos e indígenas na América.
O plano afrocêntrico, está na afirmativa de que os afrodescentes
devem ser agentes autoconscientes que criticam a dominação
cultural eurocêntrica (MAZAMA, 2009).
Como ideia intelectual questiona as epistemologias
eurocêntricas particularistas e patriarcais ao exibir oportunidades
146 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

propositivas contra-hegemônicas que deslocam e orientam os


discursos para a análise, o exame e a investigação dos fenômenos.
Além disso, anuncia ser uma configuração ideológica antirracista,
antiburguesa e antissexista inovadora de reinterpretação do um
texto ou fala (ASANTE, 2016).
Os afrocentristas acreditam que a alma de um povo está
morta quando é impedida de praticar a sua cultura ou quando
as características culturais de outra são mais atraentes. Afirma-se
que a população africana que vive fora e dentro da África necessita
restaurar a posição de destaque na sua própria história. Nessa
dimensão, a Afrocentricidade obriga que a hegemonia europeia
libere a marginalidade dos negros. A teoria afrocêntrica insiste na
comunicação, no comportamento e nas atitudes africanas como
ferramentas modificadoras da conjuntura social (ASANTE, 2016).
Logo, na Afrocentricidade há esperança de que os diversos
grupos sejam capazes de habitar a mesma terra sem abandonar
suas tradições fundamentais. A cooperação, a comunhão, a
continuidade cultural, a justiça restaurativa e a memória das
massas sociais contribuem como elementos essenciais para o
avanço da comunidade humana (ASANTE, 2016). Igualmente ao
Mulherismo Africana, o pensamento afrocêntrico tem como meta
a luta contra qualquer opressão humana, tendo em vista que a
individualidade é irrelevante.
O Mulherismo Africana retrata as experiências vividas
pela mulher negra abarcadas na sua interação comunitária com
outros sujeitos sociais. Portanto, incorpora a matriz conceitual do
Matriarcado, Pan-Africanismo e Afrocentricidade, para justificar
o resgate das bases africanas perdidas com a progressão dos ideais
europeus, que inferiorizam determinados sujeitos. A força da
mulher preta passa a ser elucidada diante da dominação branca,
através de um pensamento coletivo do povo negro.
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 147

3 A teoria feminista negra: diferenças com o Mulheris-


mo Africana

O Feminismo Negro expressa-se como um movimento


social, teórico, político e prático liderado por mulheres negras,
cuja preocupação está em mostrar no mundo real as demandas
e angústias desse grupo (LEAL, 2020). É o movimento que luta
pelos direitos das mulheres negras, diante daqueles obtidos,
aparentemente, em benefício das mulheres brancas (KARLSSON,
2019). O Feminismo negro objetiva, basicamente, a igualdade da
mulher negra de acordo com as suas especificidades de gênero e
raça.
Caneiro (2003) registra que o Feminismo Negro traz um
novo olhar feminista e antirracista que ao integrar as reivindicações
do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres, inaugurando
uma identidade política inédita para a condição do ser mulher
preta na sociedade patriarcalista e sexista. Este movimento teórico
faz com que na cena política as contradições da independência da
raça, classe e gênero sejam vislumbradas numa bandeira única. A
estudiosa adiciona a esse raciocínio que a ideia de que o pensamento
feminista negro enegrece as pautas das mulheres e feminiza os
requerimentos dos negros.
Levando em conta que, no geral, a luta das feministas não
depende somente da sua capacidade de enfrentar as desigualdades
hegemônicas masculinas, outrossim, exige a superação de outras
lógicas opressivas, como a racista. O racismo estabelece um
contexto de inferiorização social dos vários segmentos do povo
preto, especialmente, dos corpos femininos negros, se operando
como mais um fator de divisão no movimento de mulheres
(CARNEIRO, 2003). Ou seja, o Feminismo Negro surge para
quebrar estes paradigmas excludentes, dos quais atingem com mais
frequência a vida das mulheres negras.
A teoria feminista negra reflete de forma especializada
variados temas presentes na vivência feminina negra, a exemplo,
148 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

do trabalho, da família, da política sexual, da maternidade e do


ativismo, todos baseados na averiguação das discriminações de
gênero e raça. No que tange, o seu aspecto intelectual investiga
e critica os padrões científicos usados para exprimir o papel do
grupo de mulheres pretas na produção do conhecimento mundial
(COLLINS, 2019).
Escolhe-se transcender o enfoque masculino, branco e
elitista para dar voz às dores e consequências devastadoras do
preconceito de gênero e raça. Contudo, frisa-se que o Feminismo
Negro possui um lado ativo e resistente, o qual torna inspiradora
a figura das mulheres negras. A ilustração heroica não confirma o
discurso racista de que as mulheres negras são fortes, e, em razão
disso, devem aguentar caladas a discriminação. Ao contrário,
na agenda feminista negra é o sinônimo do poder coletivo e
determinado contra os ideais eurocêntricos (COLLINS, 2019).
Nesse viés, o Feminismo Negro pode ser pensado como um
projeto de justiça social que desenvolve o complexo trabalho de
estimular o empoderamento dos sujeitos femininos pretos. Quando
inclui a questão do conhecimento percebe-se que o empoderamento
dessas pessoas está em rejeitar os atos que os objetificam como seres
desprovidos da capacidade de pensar e agir sozinhos (COLLINS,
2016).
Ainda, Berth (2019, p. 46) explica que como teoria o
empoderamento:
[...] está estritamente ligado ao trabalho social de
desenvolvimento estratégico e recuperação consciente das
potencialidades de indivíduos vitimados pelos sistemas de
opressão, e visa principalmente a libertação social de todo um
grupo, a partir de um processo amplo e em diversas frentes de
atuação, incluindo a emancipação intelectual.
Em síntese, existe no interior do Feminismo Negro outras
teorias que juntas auxiliam na sua plena execução transformadora
das vivências da mulher negra. O empoderamento é uma das teorias
mais adotadas no movimento feminista negro, haja vista que vê
no conhecimento um fator de fortalecimento da subjetividade
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 149

individual das mulheres pretas.


Dessa maneira, nota-se que os conceitos de Mulherismo
Africana e Feminismo Negro são distintos. Conforme Weems
(2000) o Feminismo Negro foca mais nas questões de gênero, já
o Mulherismo Africana prioriza os aspectos da raça ao verificar e
relatar a condição feminina negra.
Não obstante, a teoria do Feminismo Negro é visualizada
no grupo das acepções afrocentradas, que possuem características
eurocêntricas. Enquanto, o Mulherismo Africana diz que a
diferença entre homens e mulheres não é um problema, tendo em
conta que é habitual a designação de algumas tarefas aos homens
e outras às mulheres, visto que o poder está concentrado nas mãos
delas, responsáveis pelos alimentos que sustentam o núcleo familiar
(KARLSSON, 2019).
A filiação filosófica no nacionalista negro direciona a
centralidade da pauta do Mulherismo Africana para assuntos que
discutem a sobrevivência negra, com assento na solidariedade
racial, o que secundariza as temáticas globais das mulheres. Ao
mesmo tempo, o Feminismo Negro costuma encaminhar primeiro
para sua agenda política ações putativas relacionadas ao gênero
(COLLINS, 2017).
O empoderamento é outro item que diferencia essas
duas correntes teóricas do movimento de mulheres negras. No
Feminismo Negro, o empoderamento ajuda na autodefinição
e autoconhecimento da mulher preta como pessoa eficiente
no exercício da justiça social. Em outras palavras, fala-se num
empoderamento individual que segue para um coletivo. Por sua
vez, a teoria do empoderamento não faz parte da proposta do
Mulherismo Africana, considerando que o viés individualista
é incompatível com a sua ideia de unidade do povo africano e
afrodescente na luta contra a subjugação colonial, trazido pelas
mulheristas africanas (OLIVEIRA, 2018).
As distinções de uma teoria para a outra são inúmeras,
porém, é vital acentuar que ambas evidenciam a heterogeneidade
150 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

do Movimento de Mulheres Negras. Defendem, a seu modo, a


condição social das mulheres negras sem a presença de opressões
de qualquer natureza, sobretudo, aquelas oriundas do período
colonial.

4 Considerações finais

O Mulherismo Africana é uma teoria que visualiza toda


mulher negra como africana em diáspora, tendo três embasamentos
teóricos centrais, os quais sejam, o Matriarcado, o Pan-africanismo
e a Afrocentricidade. No Matriarcado a mulher ganha destaque
no sistema estrutural e organizacional nas comunidades africanas.
O poder acaba por ser exercido, além da vida doméstica, sob a
premissa da solidariedade. As mulheres e homens trabalham lado a
lado, porém estas se destacam nos múltiplos setores da sociedade.
Enquanto, o Pan-africanismo é um movimento que
visa a unificação do povo africano e afrodescendente. Objetiva
questionar o pensamento colonial imposto ao povo preto nas várias
partes do mundo. Além disso, conecta-se com outros movimentos
afrocentrados, através do resgate das origens ancestrais na África e
agindo ativamente na mudança das conjunturas sociais opressoras.
A Afrocentricidade é um conceito que coloca os africanos
como agentes autoconscientes, capazes de enfrentar e quebrar a
estrutura eurocêntrica de dominação cultural e física. Espera-se que
os grupos sociais tenham condições de conviver em harmonia na
mesma terra, sem ser obrigados a deixar de cultivar suas tradições
fundamentais.
Essas teorias revelam que o Mulherismo Africana exibe as
experiências da mulher negra, sob a ótica comunitária que procura
restaurar sua conexão cultural africana. O perfil forte e resistente
da figura feminina preta é manifestado como uma ação contra-
hegemônica frente à mentalidade discriminatória.
Outrossim, o Feminismo Negro é reconhecido como um
movimento social e teórico que mostra as demandas silenciadas
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 151

pelas discriminações de gênero e raça. Entre os fundamentos que


regem o pensamento feminista negro há o empoderado, cujo
intuito está em estipular o autoconhecimento e autodefinição da
mulher preta.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que o Mulherismo
Africana e o Feminismo Negro são teorias distintas dentro do
Movimento de Mulheres Negras, cuja maior diferença entre elas,
está na forma como analisam a situação social da mulher preta. A
ideia do Mulherismo Africana segue uma visão coletiva do povo
negro. Em contraponto, com o Feminismo Negro que estuda os
aspectos específicos das vivências das mulheres negras, tendo o foco
de fortalecer a individualidade delas.
Ainda, destaca-se que o Feminismo Negro questiona a
condição da mulher negra por meio de uma visão de gênero e raça,
ao falar do sistema patriarcal com maior evidência. Contudo, o
Mulherismo Africana preocupa-se mais com assuntos relacionados
à raça, em que não haveria essa distinção entre homens e mulheres.
Ou seja, o Feminismo Negro é visto dentro da acepção afrocentrada
como uma teoria eurocêntrica. Dessa maneira, quando se estuda
essas duas vertentes teóricas observa-se a heterogeneidade do
Movimento de Mulheres negras, em que, igualmente, lutam contra
as opressões que atingem o corpo da mulher preta, ao longo dos
anos, desde a colonialidade.

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Acesso em: 19 nov. 2022.
Sobre os autores

Adriana da Silva Silveira - Mestre em Práticas Socioculturais e


Desenvolvimento Social - PPGPSDS/UNICRUZ; Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e
Desenvolvimento Social e bolsista (CAPES) da Universidade de
Cruz Alta – UNICRUZ. E-mail: [email protected]

Bianca Tito - Doutoranda em Direito no Programa de Pós-


Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
– UFMG. E-mail: [email protected]

Camila Kuhn Vieira - Enfermeira. Mestre em Práticas Socioculturais


e Desenvolvimento Social – UNICRUZ. Doutoranda em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social na Universidade de Cruz
Alta – UNICRUZ. E-mail: [email protected]

Carla Rosane da Silva Tavares Alves - Doutora em Letras


(UFRGS). Docente do Programa de Pós-Graduação em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social – UNICRUZ. Primeira
Líder do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Linguagens
e Comunicação da UNICRUZ (GEPELC). E-mail: ctavares@
unicruz.edu.br

Cátia da Silva Herter - Egressa do curso de Pedagogia da


Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ e mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento
Social da UNICRUZ. E-mail: [email protected]

Daiane Caroline Tanski - Mestranda do Programa de Pós-


Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. Bolsista CAPES.
E-mail:[email protected]
156 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Dandara Roberta Soares Conceição - Mestranda do Programa


de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento
Social da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. Bolsista
CAPES. Integrante do GEPELC (Grupo de Estudos, Pesquisa
e Extensão em Linguagens e Comunicação da Unicruz) e do
Grupo de Pesquisa Jurídica em Cidadania, Democracia e Direitos
Humanos da Universidade de Cruz Alta (GPJUR/Unicruz).
E-mail: [email protected].

Daniela da Silva - Mestranda do Programa de Pós-Graduação em


Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Universidade de
Cruz Alta – UNICRUZ. Pós-graduanda em Comunicação Pública
pela Faculdade Dom Alberto - Santa Cruz do Sul/RS. Graduada
em Jornalismo pela UNICRUZ. E-mail: danieladasilvadds12@
gmail.com

Denise da Costa Scheffer - Doutoranda do Programa de Pós-


Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da
Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. Bolsista CAPES. E-mail:
[email protected]

Denise Tatiane Girardon dos Santos - Doutora em Direito pela


Universidade do Rio dos Sinos – UNISINOS. Mestra em Direito
pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – UNIJUÍ. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social - Mestrado e
Doutorado – UNICRUZ.

Diego Pascoal Golle - Biólogo. Especialista em Gestão de


Instituições de Ensino Superior pela UCS. Mestre e Doutor em
Engenharia Florestal – Silvicultura pela UFSM. Pós-Doutor
em Ciência do Solo pela UFSM. Docente do Programa de Pós-
Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da
Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. E-mail: dgolle@unicruz.
edu.br
Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável... 157

Fernando Martins Ferreira - Doutorando do Programa de Pós-


Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. E-mail: fferreira@
unicruz.edu.br

Giácomo de Carli da Silva - Mestrando no Programa de Pós-


Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento
Social da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. E-mail:
[email protected]

Iara Sabina Zamin - Mestranda do Programa de Pós-Graduação


em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social – UNICRUZ.
E-mail: [email protected]

Jéssica Pereira Arantes Konno Carrozza - Mestranda em Direito


no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Sul de
Minas – FDSM. E-mail: [email protected]

Marcelo Cacinotti Costa - Doutor em Direito Público pela


Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Mestre em
Direito pela URI – Santo Ângelo - RS. Advogado. Professor do
PPG em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social e do
Curso de Direito da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ.
E-mail: [email protected]

Maria Aparecida Santana Camargo - Doutora em Educação pela


UNISINOS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social – UNICRUZ. E-mail:
[email protected]

Sirlei de Lourdes Lauxen - Doutora em Educação pela Universidade


Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Docente e coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e
Desenvolvimento Social – UNICRUZ. E-mail: slauxen@unicruz.
edu.br
158 Direitos Humanos e Desenvolvimento Sustentável...

Solange Beatriz Billig Garces - Doutora em Ciências Sociais


pela UNISINOS. Mestre em Ciências do Movimento Humano
pela UDESC. Especialista em Educação – Teoria e Sistematização
do Ensino Superior pela UFSM. Docente do Programa de Pós-
Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social
– UNICRUZ. E-mail: [email protected]

Tiago Anderson Brutti - Doutor em Educação nas Ciências/


Filosofia pela Unijuí. Mestre em Educação nas Ciências/Direito pela
Unijuí. Estágio pós-doutoral em Filosofia pela Unioeste. Bacharel
em Filosofia e em Direito. Especialista em Artes e em Direito Civil
e Processual Civil. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social, na Unicruz. Vice-
líder do grupo de pesquisa jurídica em Cidadania, Democracia e
Direitos Humanos - GPJur/Unicruz. E-mail: tiagobrutti@hotmail.
com

Vaneza Cauduro Peranzoni - Pós-doutora em Educação pela


UFSM. Doutora e mestra em Educação pela UFSM. Docente
do Programa de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e
Desenvolvimento Social – UNICRUZ. E-mail: vperanzoni@
unicruz.edu.br

Vânia Maria Abreu de Oliveira - Doutora em História pelo


Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Docente do Programa
de Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento
Social da Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ. E-mail:
[email protected]

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