CAMARGO BARRETO Thiago. Na Minha Casa Não PDF MONOGRAFIA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Departamento de Antropologia e Arqueologia

Graduação em Bacharelado em Antropologia


Habilitação em Antropologia Social

Thiago Camargo Barreto

“NA MINHA CASA, NÃO”:


(MICRO)POLÍTICA, GÊNERO E FAMÍLIA ENTRE PESSOAS LGBT EM
BELO HORIZONTE

Belo Horizonte
Dezembro de 2018

1
Thiago Camargo Barreto

“NA MINHA CASA, NÃO”:


(MICRO)POLÍTICA, GÊNERO E FAMÍLIA ENTRE PESSOAS LGBT EM
BELO HORIZONTE

Monografia apresentada ao Departamento


de Antropologia e Arqueologia da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título
de Bacharel em Antropologia, com
habilitação em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Leandro de Oliveira

Belo Horizonte
Dezembro de 2018

2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

3
“NA MINHA CASA, NÃO”:
(MICRO)POLÍTICA, GÊNERO E FAMÍLIA ENTRE PESSOAS LGBT EM
BELO HORIZONTE

Thiago Camargo Barreto


Orientador: Prof. Dr. Leandro de Oliveira

Monografia apresentada ao Departamento de Antropologia e Arqueologia da


Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais,
como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Antropologia, com
habilitação em Antropologia Social.

Aprovada em 07 de dezembro de 2018.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________
Prof. Dr. Leandro de Oliveira (Orientador)
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG

_______________________________________________
Profa. Dra. Érica Renata de Souza
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG

_______________________________________________
Profa. Dra. Sabrina Deise Finamori
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG

4
À MAMÃE,
Maria Aparecida,

quem me apresentou o incrível mundo das


humanidades quando me presenteou
com um velho exemplar de
Genealogia da Moral de
Nietzsche.

Tudo isso começou naquele dia.

5
AGRADECIMENTOS

A meu orientador, Leandro de Oliveira, que possui um dom: ensinar/provocar –


possibilitar a seus estudantes as mais genuínas reflexões. Foram essas que me ajudaram
a todo instante em suas aulas e nos momentos de interlocução. Obrigado pelas
conversas, orientações e amizade.

À Érica Renata de Souza, amiga quem prontamente me ajudou nas formulações iniciais
desta pesquisa. Obrigado por suas aulas e pelas conversas em sala, horários agendados
e de corredores – sempre producentes.

À Sabrina Deise Finamori, cujas aulas são exemplos da maestria de uma pesquisadora
que é também docente engajada.

Às professoras Karenina Vieira Andrade, Ana Beatriz Vianna Mendes e Mariana Petry
Cabral; e aos professores Andrei Isnardis Horta, Carlos Magno Guimarães e Emmanuel
Almada: suas aulas se tornaram inspirações.

A Rogério Diniz Junqueira pelas conversas que – mesmo à distância – contribuíram para
abordagem e análise dos projetos mencionados nesse trabalho, em especial, àqueles que
tocam ao “Escola sem Partido”.

À professora Tânia Aretuza Ambrizi Gebara pelos primeiros ensinamentos e desafios na


fase inicial de minha formação.

À Angela Murakami, quem sempre nos atendeu prontamente no colegiado do curso.


Obrigado pela atenção, disponibilidade e paciência.

À uma doce amiga de momentos bons e de desabafo, Graciela Sperduti Rezende, quem
me deu grande apoio no início de minha jornada dentro da ciência antropológica.

À Jucinéia Oliveira, ou simplesmente Ju, que em outras épocas soube exigir de mim
aquilo mesmo que ela sabia que eu era capaz. Devo a ela muitos dos ensinamentos que
me fizeram crescer fora e dentro dessa área do conhecimento.

Aos amigos que indiscutivelmente contribuíram. À querida Michelle Oliveira pelos


diálogos e pelas preocupações; a Aníbal Godoy, pelas discussões que agregaram
significativamente; a Esdras Cordeiro pela convivência e pela ajuda em momentos longe
de casa; à Karen Nascimento, Geraldo Pereira Júnior e à Isadora Senra que se juntaram
ao grupo mais tarde e tornaram os momentos de descontração mais alegres; à Kelly
Morato, Lucas Emerick, Emílio Garcia, Natália Abreu, Gabriel Barbosa e a tantos outros
que trilharam comigo alguns momentos dessa jornada.

À todas as agências, instituições e programas vinculados ou não à Universidade Federal


de Minas Gerais que contribuíram para minha formação e realização dessa pesquisa:
Pró-Reitoria de Extensão (Proex) pelas bolsas de extensão; Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) pela bolsa de iniciação científica;

6
Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump) e Programa Minas Mundi pela bolsa
de intercâmbio; Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) pela bolsa de monitoria.

À Universidade do Porto por ter me acolhido como estudante. Agradeço ainda a meu
orientador nesse período, Francisco José de Jesus Topa, pelo acolhimento estudantil em
um país distante, pelas reflexões possibilitadas e amizade que daí nasceu. E às
professoras Natália Maria Azevedo Casqueira, Cristina Clara Ribeiro Parente e Maria
Isabel Correia Dias, cujas aulas e diálogos possibilitaram novas perguntas.

À uma pessoa especial, Maria Aparecida de Camargo Barreto. Sem seu apoio integral e
suas múltiplas ajudas, impossíveis de descrever aqui – faltariam folhas e palavras – eu
não poderia ter o privilégio de estudar e de chegar até aqui – e de ir para a próxima fase
desse percurso. Obrigado por todos os incentivos, por estar sempre a meu lado e,
principalmente, por me amar como sou.

Finalmente, meu mais sincero agradecimento à organização e às pessoas a ela vinculadas


que me permitiram realizar esse estudo: Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de
Minas Gerais, Anyky Lima, Thiago Costa e Munish Prem. À todas as travestis, lésbicas,
transexuais, queers, viados, bichas, gays, transviados, assexuados, bissexuais, pansexuais,
fluídos, não-binários, pocs e demais minorias sexuais com quem me encontrei nesse
percurso. Em especial agradeço à Leona, Cristina, Dionny e a todos os interlocutores,
diretos e indiretos, desta pesquisa pela disposição, interesse e por compartilhar
comigo/conosco algumas passagens de suas histórias de vida e de luta.

7
RESUMO

Nas recentes controvérsias sobre “ideologia de gênero”, a ‘família’ se tornou uma


categoria sob disputa em níveis macropolítico e micropolítico. Enfrentamentos no
primeiro nível perpassam instâncias legislativas, sob propostas como o projeto “Escola
sem Partido” e o “Estatuto da Família”. Já no cotidiano de pessoas LGBT, negociações e
conflitos de outra ordem marcam sua interação junto a suas famílias de origem,
frequentemente associados a discursos sobre a emoção. Dialogando com debates do
campo da Antropologia das Emoções, sugiro que os discursos emocionais sobre a família
atualizam, em um nível micropolítico, processos políticos que se encontram em curso
em um plano macroestrutural. Adotando a estratégia metodológica de “seguir o
conflito”, busquei chamar a atenção para como o ‘gênero’ se encontra hoje no cerne
desses processos, diretamente relacionado com ‘fantasias de poder’ e ‘expectativas de
gênero’ nos conflitos em que a família comparece.

Palavras-chave: Família; direitos LGBT; micropolítica das emoções.

8
ABSTRACT

In the recent controversies over "gender ideology", the ‘family’ has become a contested
category at the macropolitical and micropolitical levels. Confrontations at the first level
permeate the legislative bodies, in the form of proposals such as the "School without
Party" project and the "Family Statute". In the daily life of LGBT people, conflicts and
negotiations of another order mark their interaction with their original families, often
associated with emotional discourses. Dialoging with the debates in the field of the
Anthropology of Emotions, I suggest that the discourses of emotions on the family
update, at a micropolitical level, the political processes that are under way in a
macrostructural plane. Adopting the methodological strategy of “following the conflict”,
I sought to draw attention to how the 'gender' is now at the heart of these processes,
directly related to the 'fantasies of power' and 'gender expectations' in the conflicts in
which the family appears.

Key words: Family; LGBT rights; micropolitics of emotions.

9
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Página inicial do programa “Escola sem Partido” ........................................... 42


Fonte: <http://www.programaescolasempartido.org/>. Acesso em 11 out. 2017.

Figura 2 – Página inicial do movimento “Escola sem Partido” ....................................... 42


Fonte: <http://www.escolasempartido.org/>. Acesso em 11 out. 2017.

Figura 3 – Deveres do professor segundo o programa “Escola sem Partido” ................. 44


Fonte: <http://www.programaescolasempartido.org/>. Acesso em 12 out. 2017.

10
LISTA DE SIGLAS

Cellos – Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais.

IST – Infecções sexualmente transmissíveis.

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação

LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e demais minorias


sexuais.

MPMG – Ministério Público de Minas Gerais.

ONG – Organização não governamental.

PNE – Plano Nacional de Educação Básica.

STF – Supremo Tribunal Federal.

11
CONVENÇÕES

São adotadas neste trabalho as seguintes convenções:

• Itálico: para nomes de obras autorais, palavras estrangeiras e termos oriundos dos
contextos dos interlocutores;
• Aspas simples: para termos acadêmicos e categorias de análise;
• Aspas duplas: para citações literais;
• Parênteses: para siglas e referências;
• Colchetes: para intervenções do autor dentro de citações;
• Travessão: para orações intercaladas.

12
“(...) Não há pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os seres é
que são os pontos de vista.”

Eduardo Viveiros de Castro


(2015: 117)1

“O desejo de determinar o sexo conclusivamente, e de determiná-


lo como um sexo em vez de outro, parece assim advir da
organização social da reprodução sexual, através da construção de
identidades claras e inequívocas dos corpos sexuados em relação
uns aos outros.”

Judith Butler
(2003, b: 161)

“(...) A travesti além de construir seu próprio corpo ela constrói


sua família, pois ela conhece outras pessoas, os amigos, que são
mais família que a própria família. E eu fui construindo a minha
por aí, na favela, em outros lugares [...]. Hoje minha irmã fala para
mim, ‘sua família é a gente’, mas quem sabe disso sou eu! Porque
na hora em que eu precisei [pausa na fala]. Tem certas coisas que
eu não gosto nem de lembrar. É muito triste você estar nas ruas e
você chegar na casa das pessoas para comer! Sabe?! Para dormir!
[Leona chora nesse momento]. Eu prefiro não falar sobre isso.

Leona
(travesti que foi expulsa de casa aos 12 anos e uma das
interlocutoras dessa pesquisa)

1
Destaques do autor.

13
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 16

CAPÍTULO 1 – EXPLORAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS:


um sobrevoo ......................................................................................................... 21

1.1. O ANTROPÓLOGO/EU E SUA/MINHA ETNOGRAFIA:


notas iniciais sobre (ess)a pesquisa antropológica ............................................... 23

1.2. LOCALIZANDO O DEBATE ANTROPOLÓGICO:


a antropologia redescobre a sexualidade, a família e a política ............................ 28

CAPÍTULO 2 – POLÍTICAS E CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS:


disputas em torno da família ............................................................................... 34

2.1. “IDEOLOGIA DE GÊNERO”:


uma controvérsia global e local ............................................................................. 35

2.2. A PALAVRA PROIBIDA:


gênero e a Emenda n. 3 da Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte ....... 45

2.3. A SOCIEDADE EM PÂNICO:


conflitos, emoções e cismogêneses ....................................................................... 49

CAPÍTULO 3 – MICROPOLÍTICAS EM FAMÍLIA:


emoções, cismogêneses e outras disputas .......................................................... 53

3.1. “NA MINHA CASA, NÃO”:


Leona, Cristina, Dionny e suas histórias de vida .................................................. 55

3.1.1. “Marcada por toda vida”:


família, afastamento e conflito na trajetória de uma travesti ............................. 56

3.1.2. “Para ele ainda é um pouco complicado. (...) [Mas] estou satisfeita”:
revelação, tempo e transformação na trajetória de uma lésbica ......................... 62

3.1.3. “Ele disse para eu não chegar perto”:


angústia, ameaça e expectativas na trajetória de um gay .................................... 67

3.2. “SÓ NÃO VÁ ME APARECER DE SAIA!”:


micropolítica das emoções, fantasias de poder e expectativas de gênero .......... 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 78

14
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 80

ANEXOS .............................................................................................................................. 88

15
INTRODUÇÃO

“O cenário está desfavorável (...). A luta nunca termina.”

Leona2

Em julho de 2017 o Colégio Santo Agostinho, rede educacional privada com


unidades na região metropolitana de Belo Horizonte, recebeu diversas acusações de
“ideologia de gênero” por parte das mães e dos pais de estudantes da instituição. Eles
afirmaram que os professores abordam em sala conteúdos sobre gênero e sexualidade
que estão no âmbito ideológico, indo contra a educação familiar. Iniciou-se, assim, uma
controvérsia em torno dos temas presentes no ensino dessa rede como mais um capítulo
da onda de conflitos que emergiram no Brasil nos últimos anos no que se refere à questão
da promoção de “ideologias” no sistema educacional.3

No casso dessa instituição, 128 mães e/ou pais questionaram a escola sobre a
pertinência de se abordar temáticas que envolvem gênero e sexualidade com turmas do
6º ao 9º ano. Segundo relatos, em uma das aulas, houve exploração de um caso na Suécia
onde jovens meninas e meninos teriam sido criadas sem diferenciação de gênero.
Acusando o colégio de doutrinação, sob falas de que o conteúdo não seria adequado à
faixa etária e que seria melhor trabalhar tais questões apenas no Ensino Médio, os
reclamantes realizaram abaixo assinado de forma a evitar que a unidade continuasse
com essas abordagens.

A mantenedora do colégio, educadores da região e professores de universidades


se posicionaram em defesa da abordagem, reafirmando que tais conteúdos estão de
acordo não apenas com a filosofia e pauta da instituição mas também em consonância

2
Leona, uma travesti atuante no movimento LGBT de Belo Horizonte, foi uma de minhas interlocutoras.
Sua história de vida é abordada no capítulo 3 dessa monografia. Esta fala ocorreu assim que cheguei a sua
residência para entrevistá-la, quando decorria sobre o projeto de pesquisa no qual eu era bolsista. Na
análise e na escrita dessa monografia são omitidos os nomes das participantes e demais informações que
possam identificá-las diretamente, de modo a proteger sua privacidade.
3
Maiores informações sobre o início dessa controvérsia podem ser encontradas em Mansur (2018).

16
para com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Estudantes da escola
escreveram uma nota pública repudiando a situação e negando que tenham sido
doutrinados por supostas “ideologias de gênero”. Eles reafirmaram que o conteúdo
abordado explorava noções do corpo e informações sobre reprodução e infecções
sexualmente transmissíveis (IST), além de promover a igualdade e o respeito à
diversidade sexual e de gênero.4 No escrito, eles afirmaram estar abertos para o dialogar
com as mães e os pais que expuseram sua discordância, evidenciando que podem expor
aos interessados, suas experiências e vivências durante as aulas e no período em que
ficam no colégio.5

Recentemente, algumas mudanças ocorreram nesse cenário. No final de


novembro deste ano, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) instalou um
inquérito e decidiu por abrir ação contra a instituição, exigindo indenização por danos
morais coletivos. Contudo, em seguida, o próprio MPMG pediu a suspenção da ação
civil pública. Sua alegação foi de que tal ação não seria atribuição do órgão que a iniciou,
a Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, mas da
Promotoria de Educação.6 O pedido, que até a escrita desse texto não foi julgado,
repercutiu também dentre os familiares dos alunos. Em apoio à instituição e reiterando
a solicitação da suspensão da ação, foi realizado ainda no final de novembro um “abraço
coletivo” em uma das unidades do colégio, onde pais e alunos se abraçaram
simbolicamente embalados por falas como “liberdade na educação”. Eles ainda
realizaram uma volta ao quarteirão onde se localiza a unidade. Além disso, cerca de 400
ex-alunos e familiares assinaram uma nova carta de apoio.7

***

O caso do Colégio Santo Agostinho descrito acima é um exemplo das


controvérsias públicas que perpassam as acusações de “ideologia de gênero” que vêm
ocorrendo no Brasil nos últimos anos. A partir dessa polêmica temos que a noção de

4
Além da carta ser aberta para assinaturas de apoio, ex-estudantes da instituição também se manifestaram
pelas redes sociais e deram apoio ao colégio.
5
Nascimento (2017) reporta informações sobre a nota dos estudantes. O documento ainda está disponível
no anexo A desse estudo.
6
Lovisi (2018).
7
Durães (2018).

17
‘família’ está diretamente posta em pauta, uma vez que as justificativas destas acusações
se respaldam na ideia de que a abordagem de temas que englobam o ‘gênero’ e a
‘sexualidade’ seriam de responsabilidade do núcleo familiar do estudante, não devendo
ser contemplada nos programas das instituições de ensino. É com a intenção de explorar
as repercussões desse cenário que esta monografia versa sobre tais contextos de disputas
em torno da família no cenário público e na esfera micropolítica.

Cenários macropolítico e micropolítico não estão aqui, com efeito, divididos. Um


é intrínseco ao outro, não existindo separação a priori entre eles – daí a expressão
(micro)política presente no título dessa monografia. A literatura antropológica ressalta
que os grandes divisores são fabricados (GOLDMAN, 1999), que toda perspectiva,
implique ciência, teoria feminista ou estudos referentes às demais minorias sexuais8 é
“localizada” (HARAWAY, 1995), e que o ‘outro’ só existe em relação para com o ‘nós’.
Aqui, da mesma maneira, trata-se de um percurso antropologicamente elaborado,
relacional e vinculado ao particular (ABU-LUGHOD, 1991). Portanto, considerei para a
presente pesquisa dois nichos de exploração: no debate público, o âmbito do Estado e
das controvérsias em torno dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e transgêneros (LGBT)9. No campo micropolítico, as experiências
vivenciadas por pessoas que aderem à identidades LGBT, mais ou menos próximas do
ativismo e do movimento social organizado, e suas famílias de origem.

Antes de adentrar a essas temáticas, no capítulo 1, realizo algumas considerações


sobre a pesquisa etnográfica multissituada, exploro parte de meu próprio percurso nas
ciências humanos e nessa pesquisa, e esboço um breve histórico teórico sobre estudos
antropológicos que abordam a família, a política, o gênero e a sexualidade. Dentre os

8
O sentido aqui aplicado é aquele proposto por Wirth (1941: 415) de ‘minoria’ como um grupo composto
por pessoas que, “por causa física ou social e cultural recebe tratamento diferenciado (...) [sendo] excluídos
de certas oportunidades, ou excluídos da participação plena em nossa vida nacional” – minha tradução.
Da versão em inglês: “(...) those who because of physical or social and cultural differences receive
differential treatment (…) (and) are debarred from certain opportunities or are excluded from full
participation in our national life”. Ou seja, são grupos com representação minoritária e com acesso restrito
ao poder.
9
Utilizo aqui o termo LGBT tendo em mente as modificações recentes no âmbito brasileiro. O abandono
do termo GLS: gays, lésbicas e simpatizantes; a passagem pela sigla GLBT: gays, lésbicas, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros; e finalmente o uso da sigla atual. Ressalto, no entanto, que esta não
esgota o campo plural de identidades associadas a essas letras, como queers, assexuais, intersexuais,
pansexuais, não-binários, fluídos, abolicionistas, dentre outras e outros.

18
tópicos explorados estão considerações étnicas, questões etnográficas e apontamentos
teóricos que me ajudaram a pensar os contextos aqui abarcados, como a noção de
“etnografia multissituada”, a concepção do “Estado em ação”, as discussões queer e a
possibilidade de considerar os discursos emocionais e sobre a emoção a partir da
Antropologia das Emoções.

No capítulo 2, partindo do panorama político nacional, abarquei as ações que


visam o estabelecimento de dois projetos de lei, os denominados “Escola sem Partido” e
“Estatuto da Família”, ambos em processo de tramitação no Congresso Nacional e
Senado Federal respectivamente. Pouco após a proposição dessas legislações no âmbito
federal – talvez até como efeito do debate público suscitado por elas – começaram a
aparecer propostas semelhantes nos níveis estadual e municipal. Acionando a apologia
à “ideologia de gênero”, usando o argumento de que certos temas educacionais devem
ser tratados no âmbito da família e não na escola, alguns Estados e municípios também
aderiram a essa controvérsia. Isso pode ser constatado no contexto belo-horizontino,
onde existe proposta em tramitação para modificação da Lei Orgânica do Município.
Integrando esse debate público, organizações não governamentais (ONGs) e os
movimentos LGBT de várias regiões nacionais – incluindo Belo Horizonte – tem
replicado essa mobilização conservadora nas paradas do orgulho LGBT e em outros
eventos.

A partir de pesquisa de campo iniciada em 2017 para uma bolsa de iniciação


científica10, ao longo de três meses atuei como colaborador na organização da 20ª Parada
do Orgulho LGBT e 4ª Jornada pela Cidadania LGBT de Belo Horizonte. Participei ainda
das reuniões da organização responsável pelos eventos, o Centro de Luta pela Livre
Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos). A partir dessa aproximação fiz contato com

10
Bolsa vinculada ao projeto Construção da pessoa, família e sexualidades: um estudo comparativo sobre
convenções culturais, individuação e mudança, no qual fui colaborador de 2017 a 2018, sob orientação do
professor Leandro de Oliveira, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal
de Minas Gerais. Os dados etnográficos apresentados foram parcialmente coletados nesse período, sendo
aqui analisados com autorização do professor responsável. Destaco que meu contato para com os
interlocutores se deu de maneira prolongada para além do período de campo destinado à essa pesquisa.
Mesmo as informações acessadas durante minha atuação como bolsista ainda não se confundem com o
relatório final da iniciação científica, uma vez que a análise realizada neste é de outra ordem e o
documento entregue ao final da bolsa contou ainda com o material coletado pelos demais bolsistas e
voluntários do projeto em outros contextos etnográficos.

19
algumas lideranças do movimento e, durante os eventos, empreendi interlocução com
ativistas. Acessei ainda colaboradores através de contatos estabelecidos na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Realizei
entrevistas em profundidade visando explorar as relações desses sujeitos com suas
famílias de origem.

No capítulo 3, trago desse material, três entrevistas e um conjunto de informações


vinculadas à organização da parada e à essa realidade política. Busquei evidenciar as falas
de Cristina, Leona e Dionny de forma a construir uma narrativa a partir de suas histórias
de vida considerando, em parte, que cada uma delas representa uma construção
identitária distinta entre as possibilidades cobertas pelas comunidades abarcadas na
sigla LGBT. Em parte, ainda, porque cada caso revela diferentes experiências vivenciadas
no âmbito familiar, quais discuto a partir da óptica da antropologia da emoções
(REZENDE; COELHO, 2010; CLARK, 2018).

Entendo que a reflexão esboçada nessa monografia pode ser pensada como uma
espécie de experimento etnográfico baseado em pesquisa multissituada. Inspirado pelo
procedimento de “seguir o conflito”, identificado por Marcus (1995) como uma das
alternativas possíveis de pesquisa no sistema mundial capitalista contemporâneo,
procurei nesse trabalho ‘seguir a família’: traçar embates globais e locais, macro e
micropolíticos nos quais a família comparece.

Em minhas considerações finais busco chamar a atenção para a centralidade que


o ‘gênero’ ocupa nessas disputas e controvérsias. A noção de família, no contexto
macropolítico, se encontra em um processo que pode ser pensado a partir de uma
higienização, que visa qualificar certas categorias familiares e desqualificar outras. O
gênero aparece nesse cenário como forma de desqualificar certas lutas e a busca por
direitos, colocado sob a categorização de “ideologia”. No contexto micropolítico, as
‘emoções’ nos ajudam a pensar a forma como esse debate se atualiza nas experiências
vivenciadas por pessoas LGBT em seu núcleo familiar de origem. Nesse ponto, entendo
que a sexualidade, embora compareça atrelada a certos enfrentamentos, perde
centralidade, emergindo com protagonismo nos conflitos a categoria ‘gênero’.

20
CAPÍTULO 1

EXPLORAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS:


um sobrevoo

“Etnografia não é método.”

Mariza Peirano
(2014: 377)

Era uma tarde de domingo. Desci do Uber em um bairro da periferia de Belo


Horizonte. Uma senhora com cerca de 60 anos, avisada por mim sobre minha chegada
minutos antes via WhatsApp, saiu ao portão de sua simples residência e ficou me
esperando acertar com o motorista. Já tinha conversado anteriormente com ela, sempre
em eventos onde disputava sua atenção com outros interessados. Me espantei com
tamanha receptividade. Como figura conhecida da cena LGBT da capital mineira
esperava que ela já estivesse cansada de receber ativistas, estudantes, políticos e
pesquisadores. O que se deu foi de outra ordem. Ela me recebeu, a meu ver, como se eu
fosse um amigo pessoal. Me perguntei se, de fato, ela realmente se lembrava de mim
como disse por telefone e por Facebook, afinal, não são poucas as visitas que recebe nem
poucos os contatos que faz nos diversos eventos em que participa. Em minhas primeiras
abordagens eu era apenas mais um dentre as muitas pessoas que a interpelavam, seja na
Parada LGBT de 2017 ou nos eventos promovidos pelo Cellos na UFMG e em espaços
espalhados pela cidade.

Essa senhora, travesti como faz questão de reiterar e a quem chamo aqui de
Leona, me acomodou no sofá, sentou-se em uma confortável cadeira de computador,
me apresentou brevemente a outras meninas11 que vivem em sua residência – momento
onde pediu a uma delas que levasse para a cozinha um bolo que eu levara para nosso
café da tarde – e me pediu que falasse um pouco mais sobre o que eu estudava antes de

11
A expressão menina é bastante comum entre travestis e transexuais, especialmente quando uma mais
velha se refere à outra mais nova. Uma exploração mais atenta sobre as experiências de travestis pode ser
encontrada, dentre outros, no trabalho de Oliveira (2017), que aborda temas como envelhecimento,
relações geracionais e as relações sociais no contexto da região metropolitana de Belo Horizonte.

21
iniciarmos nossa conversa – e entrevista.12 Ali estava posto o cotidiano, uma cena da
“ação vivida” da qual nos fala Peirano (2014: 386) e para qual devemos nos atentar
durante o registro do estudo. A escrita, ainda que constitua uma técnica limitada, pode
e deve abarcar detalhes no que diz respeito à maneira como as informações foram
acessadas. Nesse caso, contemplando o reflexo da história de vida que seria comigo
compartilhada, nas atitudes, na casa e no corpo dessa senhora educada.

A autora brasileira fala ainda da tarefa de comunicar na pesquisa antropológica a


partir da etnografia e, ainda que esse trabalho não se configure tal como posto no
contexto clássico, como mencionei, tento aproximá-lo do empreendimento
multissituado (MARCUS, 1995). Para este autor:

(...) rastrear as diferentes partes ou grupos em um conflito define outra


forma de criar um terreno multissituado na investigação etnográfica.
(...) Nas esferas públicas e mais complexas das sociedades
contemporâneas, esta técnica é muito mais relevante como princípio
organizador para a etnografia multissituada. (MARCUS, 1995: 121)13

Ora, o que busquei foi justamente “seguir” essas disputas em torno da família no cenário
político e das relações familiares no campo micropolítico. A pesquisa de campo, as
aproximações para com os interlocutores e as entrevistas em profundidade se deram
com o intuído de compreender, antropologicamente, os debates que tematizam a família
no contexto de pessoas LGBT, mas também de estranhar esses discursos. Ainda que não
tenha efetivamente participado junto daquilo de que me fala Leona, as informações
partilhadas me colocam diante desta outra possibilidade: considerar seu relato e sua
história de vida como possibilidade para compreensão de questões e discursos que se
apresentam nesse complexo cenário. Uma exploração que parte de sua narrativa sobre

12
As entrevistas foram preferencialmente registradas em áudio, mediante autorização das interlocutoras,
e posteriormente decupadas. Ao longo do trabalho de campo, na realização das entrevistas e na execução
da pesquisa como um todo, foram observados os preceitos estabelecidos pelo Código de Ética do
Antropólogo e da Antropóloga – elaborado pela Associação Brasileira de Antropologia (ASSOCIAÇÃO,
2012) – anexo B.
13
“(...) rastrear las diferentes partes o grupos em un conflicto define otra forma de crear un terreno
multilocal en la investigación etnográfica (...). En las esferas públicas y más complejas de las sociedades
contemporáneas, esta técnica es mucho más relevante como principio organizador para la etnografia
multilocal” – minha tradução.

22
as experiências que viveu mas que, talvez, outras pessoas também tenham vivido ou
estão vivendo.

A realização de entrevistas com esse tipo de abordagem, histórias de vida,


possibilita a compreensão desses cenários amplos, uma vez que o pesquisador pode
considerar focos específicos e direcionamentos que são negociados com o interlocutor
diretamente (BECKER, 1999). A ênfase na família também está pautada nesse campo
metodológico. Trata-se da possibilidade de centrar a entrevista no campo do parentesco
e das relações percebidas pelos sujeitos, o que Pina Cabral e Lima (2005: 357) chamam
de “histórias de família”. O que considerei para esse percurso a nível teórico,
metodológico, e quanto à minha própria jornada nas ciências humanas, bem como a
maneira como “estranhei” as cenas que foram surgindo é o que busquei tratar
brevemente nesse primeiro capítulo.

1.1. O ANTROPÓLOGO/EU E SUA/MINHA ETNOGRAFIA14:


notas inicias sobre (ess)a pesquisa antropológica

“Enquanto a invenção de outras culturas não puder reproduzir, ao


menos em princípio, o modo como essas culturas inventam a si mesmas,
a antropologia não se ajustará à sua base mediadora e aos seus objetivos
professos.”

Roy Wagner
(2010: 66)

Esse trabalho é o primeiro empenho antropológico que realizo em meu percurso


acadêmico dentro da Antropologia Social – e fora dela. Enquanto estudante de
Matemática15 tive contato com a escrita da academia, no entanto, era um escrever
vinculado à tipologia do que podemos chamar de ciência formal, ou de maneira mais
ampla, ciência exata, que difere bastante da escrita de um trabalho no campo das
ciências sociais e, diria ainda, da escrita de uma etnografia.

14
Subtítulo inspirado na obra O antropólogo e sua magia, de Wagner Gonçalves da Silva (2006).
15
Me formei em Matemática antes de cursar Antropologia.

23
Foi um trabalho contínuo me desvincular de antigos vícios de linguagem e de um
sistema muito padronizado que poderia conferir à minha escrita. Não apenas lutei
contra a ideia de me colocar como figura relevante no texto, tendo de me vigiar com
relação a prática de me ocultar por presumir que isso daria uma maior credibilidade ao
estudo, como também me pareceu um pouco estranho assumir um posicionamento
diante da própria pesquisa, não atuando como agente neutro.16 Realizando uma ponte
para com minha área de atuação anterior e pensando até mesmo em possíveis críticas
para as chamadas ciências exatas, busquei (re)lembrar a todo instante da seguinte
constatação: “nenhum pesquisador de campo pode ser um observador totalmente
neutro, imparcial, independente e externo aos fenômenos observados”17. Lembrei-me,
ao contrário, de que “posicionar-se é, portanto, prática chave, (...) implica em
responsabilidade (...) [e] em consequência, a política e a ética são a base das lutas pela
contestação a respeito do que pode ter vigência como conhecimento racional”
(HARAWAY, 1995: 27).

Após a incursão a campo, ou antes, quando já pensava em como escrever essa


pesquisa, me vieram à mente diversos problemas e desafios que enfrentaria nesse
processo. O mais evidente deles, e qual considerei de maior magnitude, é justamente o
que acabei de fazer aqui ao selecionar esse problema em específico e ao considerá-lo “um
problema”: o juízo de valor. Como eu poderia me propor a realizar uma pesquisa de
cunho social, pautada na qual considero sim uma ciência, a Antropologia, cujos objetos
de estudo são as culturas18 - ou, dito de outra forma, a alteridade – sem abrir margem
para realização de diversos juízos de valores ao tratar desses grupos e de seus
integrantes?

Ora, eu abarquei temas bastante complexos e que causam sempre discussões e


muita polêmica quando são abordados. De que forma eu poderia tratar desses de
maneira que fizesse sentido e que possuísse o rigor necessário à pesquisa, sem tomar um

16
É fundamental localizar e identificar o antropólogo na cena e no texto, uma vez que o contexto possui
influência sobre as colocações e ações dos atores envolvidos. Emerson, Fretz e Shaw (2013) também
salientam que, de fato, o pesquisador não é invisível e nem simplesmente decorativo em campo, embora
sua atuação não necessariamente transforme negativamente as interações e muito menos signifique um
problema.
17
(POLLNER; EMERSON, 1988 apud EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013: 358).
18
De acordo com a definição e exploração feita por Lévi-Strauss (2012).

24
posicionamento próprio? A conclusão a que cheguei, é que essa neutralidade absoluta –
e que por vezes é tão exaltada em alguns campos de pesquisa – é simplesmente
impossível. Como destacaram Emerson, Fretz e Shaw (2013), ao selecionar aquilo que se
quer pesquisar, essa ação já está impregnada de um posicionamento parcial – ponto
também explorado por Haraway (1995). As teorias que darão base ao estudo e mesmo os
recortes de campo, ou as falas selecionadas dos interlocutores, passam pela minha
seleção, ou seja, já não são mais desvinculadas de posicionamento. Disso, dois tópicos
me vieram a mente: contextualização e metodologia. O primeiro considerando não
apenas meu lugar no campo, mas os atores e suas falas, e o segundo não apenas como
alicerce para sustentação de meu estudo, mas também como forma de caracterizá-lo e
dar coerência à pesquisa.

A contextualização se mostra não apenas relevante para compreensão dos


posicionamentos e falas dos diversos interlocutores, como é fundamental ao analisar os
recortes e as notas realizadas em campo, de maneira a lembrar durante esse processo
analítico e em quaisquer futuras ligações com teorias que se pretenda fazer, de que o
espaço, os diálogos e o tempo discriminado para a ocorrência do momento em que se
realiza determinada fala, influi diretamente no posicionamento realizado – questão
bastante discutida com meu orientador. Em outras palavras, não se pode transformar a
fala que ocorre em momento específico e em um determinado contexto, em um discurso
categórico como se ele fosse único e fixado, afinal “(...) ‘aquilo que aconteceu’ é um
relato, feito por uma pessoa específica a outra pessoa específica, em um lugar e tempo
específicos, com propósitos específicos” (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013: 377).

No que se refere à metodologia, trata-se de um ponto que merece maior destaque


e atenção na pesquisa antropológica, não somente no que diz respeito à necessidade de
coerência para com os métodos e teorias adotadas, mas principalmente no tocante aos
percursos tomados, aos imprevistos e às necessidades de mudança para dar conta de
determinando acontecimento não considerado anteriormente. Ou seja, em suma,
referente ao que é pesquisar, com todas as questões, problemas e desvios que podem
surgir. Tal ponto é abordado e salientado por Foote Whyte (2005), que reafirmou a
importância e constatou a falta dessas descrições nos trabalhos publicados até a
realização de sua pesquisa em North End nos anos de 1930. Passado esse primeiro

25
entrave, ou seja, o referente ao meu posicionamento diante das questões abarcadas pelo
estudo, me surgiu um novo desconforto: como lidar com a pesquisa frente a uma
realidade que lhe é próxima?

Trata-se de uma preocupação despertada justamente a partir da leitura de Foote


Whyte. Esse antropólogo americano discute em seu texto algumas de suas considerações
acerca das implicações de sua obra no bairro que foi alvo de seu estudo, e salienta
questões que vão para além da concordância ou não por parte das pessoas, como o relato
de ações ilícitas e possíveis desavenças entre pares devido a suas análises de hierarquias
(FOOTE WHYTE, 2005). Ou seja, são questões a serem consideradas a partir do
momento que se pretende realizar um trabalho na área da Antropologia Urbana. Em
outras palavras, quando se vai fazer pesquisa em uma sociedade que lhe é próxima19 ou
que é a sua própria, onde – retomando o termo de Peirano (2014) – se vai estranhar o
que supostamente lhe é familiar (VELHO, 1978).20

De fato, a antiga ideia de que “uma das mais tradicionais premissas das ciências
sociais é a necessidade de uma distância mínima que garanta ao investigador condições
de objetividade em seu trabalho” (VELHO, 1978: 73) já foi superada, e como salienta o
próprio Velho (1978), essa proximidade para com o objeto de pesquisa de forma alguma
é um defeito ou ponto fraco da metodologia. Segundo ele “(...) existem aspectos de uma
cultura e de uma sociedade que não são explicitados, que não aparecem à superfície e
que exigem um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia”
(VELHO, 1978: 37). Trata-se de apontamento sobre a imediação similar à “imersão”
discutida por Emerson, Fretz e Shaw (2013). Segundo estes:

A imersão na pesquisa etnográfica, consequentemente, confere ao


pesquisador acesso à fluidez da vida de terceiros e melhora sua
sensibilidade para processos e interações. Além disso, a imersão
possibilita que o pesquisador experimente por si mesmo, direta e
forçosamente, as rotinas ordinárias e as condições em que as pessoas
conduzem suas vidas, assim como os constrangimentos e as pressões aos

19
Velho (1978) também discute o acesso dos interlocutores à pesquisa etnográfica, dando como exemplo
seu trabalho com relação a drogas em comunidades de classe média alta.
20
Trata-se, nesse contexto e considerando minha atuação, de uma proximidade relativa. Apoio e possuo
interesse direto em diversos tópicos da pauta LGBT, contudo, fica evidente certo ‘distanciamento’ ao
considerar, a exemplo, a realidade de travestis, transexuais, transgêneros e as histórias de vida de vários
de meus interlocutores.

26
quais tal modo de viver está sujeito. (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013:
356)

Ora, a proximidade para com meu objeto de pesquisa pode se constituir de um


ponto positivo ao considerarmos essa necessária aproximação, porém essa oportunidade
de transformar o “exótico em familiar e o familiar em exótico”21 carece de um atenção
em especial, pois é relevante ter em conta que nem tudo é o que parece ser. Em outras
palavras:

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar mas não é


necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser
exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre
supondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou
desconhecimento, respectivamente. (VELHO, 1978: 39)

Além disso, a partir da obra de Wagner (2010), considerei ao longo do percurso


etnográfico e ainda durante as análises que sou um igual perante meus interlocutores,
afinal, eu possuo a minha própria cultura e ontologia – tão singular quanto qualquer
outra – assim como eles possuem a deles – que pode ser mais ou menos próxima da
minha nesse contexto. Consequentemente meu estudo se deu a partir dessa perspectiva:
eu o realizo a partir de meu próprio posicionamento, logo é parcial e limitado
(HARAWAY, 1995); sendo essa a primeira vez que experimento uma cultura em um
estudo fora da “abstração acadêmica” (WAGNER, 2010: 31). Busquei tomar ciência de que
minhas colocações estão no âmbito de uma objetividade relativa22, afinal, ao ir a campo
não posso me desprender totalmente da cultura que já interiorizei. A percepção do outro
também é coerente e deve ser respeitada – daí o vínculo fundamente para com a
alteridade; afinal, “todas as culturas são equivalentes” (WAGNER, 2010: 29) 23.

Perpassado esse trajeto de questionamentos e reflexões acerca do trabalho


antropológico, pretendi durante essa monografia evidenciar e me manter fiel a meu
posicionamento, mostrando-o não como o cerne relevante da pesquisa ou em uma
perspectiva de superioridade, mas como uma das diversas facetas que aqui contrastam.
Explorei minhas referências teóricas bem como descrevi o percurso da pesquisa de
maneira detalhada, especialmente ao tratar dos pontos que considerei relevantes,

21
(DAMATTA, 1974 apud VELHO, 1978: 37).
22
Usando as expressões de Haraway (1995: 16), trata-se de uma objetividade “corporificada” e localizada.
23
É o Wagner (2010: 29) chama de “relatividade cultural”.

27
contextualizando-os e pontuando-os no tempo situacional. Pretendi partilhar as
diversas vozes que compunham o campo e abordar as perspectivas das situações que
presenciei. Trata-se, assim como coloca Strathern (1997: 47) ao refletir sobre o seu lugar
e posicionamento na pesquisa antropológica na Melanésia, de uma “instância” das
diversas possíveis e que sem dúvida alguma “jamais se equivale ao todo da realidade
percebida”. Ao contrário, é uma leitura realizada a partir da interseção – também
presente na reflexão stratheriana – de um pesquisador que é homossexual e, desde o
início da iniciação científica que me possibilitou entrar em campo, também um
interessado e atuante na causa LGBT.

Constato, finalmente, que ainda que o percurso considerado, os excertos, as falas


dos interlocutores, o trajeto em campo e o aparato teórico apresentados tenham passado
pela minha própria seleção – ponto constatado por Clifford (2008) – não cabe a mim
chegar a apontamentos absolutos, mas sim ao leitor tirar suas conclusões,24 afinal de
contas, “(...) a tarefa do etnógrafo não é determinar ‘a verdade’, mas revelar as múltiplas
verdades evidentes na vida dos outros.” (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013: 359).

1.2. LOCALIZANDO O DEBATE ANTROPOLÓGICO:


a antropologia redescobre a sexualidade25, a família e a política

“Os antigos gramáticos hegemônicos – incluindo os sexólogos –


perderam o controle sobre o gênero e suas proliferações.”

Donna Haraway apud Paul B. Preciado


(2018: 351)

Desde a constituição da antropologia como disciplina o tema da família e do


parentesco são pautados. Antropólogos evolucionistas exploraram comparativamente as
categorias de parentesco em diferentes sociedades a fim de compreender as regras que
estavam por de trás dessas associações. Posteriormente, autores como Kroeber (1969
[1909]) e Rivers (1991 [1910]) se debruçaram à compreensão dos sistemas de parentesco,

24
Pertinente apontamento feito por meu orientador.
25
Título do artigo de Vance (1995).

28
da consanguinidade, de suas classificações e concepções. Em seguida, após os estudos
centrais de Malinowski (2018 [1922]), antropólogos como Radcliffe-Brown (1973) e Lévi-
Strauss (1976 [1949]), e àqueles pertencentes a perspectivas alternativas que surgem a
partir dos anos de 1960, como Schneider (2016) e Viveiros de Castro (1995),
empreenderam um esforço etnográfico a fim do melhor entendimento desse campo. No
cenário recente, outras questões aparecem e demandam renovada atenção, como as
novas tecnologias reprodutivas, a visibilidade de arranjos familiares alternativos e os
direitos das pessoas que aderem a identidades LGBT.

Como lembra Fonseca (2003) foram as discussões feministas dos anos de 1970 que
trouxeram o debate sobre família ao terreno de nosso próprio contexto e sociedade,
possibilitando um reavivamento da obra de Schneider (2016 [1968]). Após esse período,
ocorre uma relativa ausência de estudos que tematizem o tema no cenário
antropológico, o que viria a mudar apenas nos anos de 1990. Carsten (2014) destaca
como, neste período, a tecnologia, as concepções biológicas e o material de laboratório
realizaram uma série de discussões pautadas na “substância” do parentesco. Nesse caso
a antropologia deixa um pouco de lado as antigas explicações sobre sistemas e
formulações genealógicas de sociedades indígenas e distantes para (re)descobrir o foco
iniciado anteriormente do estudo da família no mundo contemporâneo urbano. Mais
recentemente, autoras como Strathern (1995) e Butler (2003, a) problematizaram,
respectivamente, as configurações familiares a partir das já mencionadas novas
tecnologias de reprodução e da perspectiva queer26 das concepções heteronormativas.

A família se tornou, desde então, uma categoria em debate, disputada por


diversos atores sociais que não apenas a discutem, mas a constroem como um objeto
político. No campo macropolítico ela tem aparecido nos meios de comunicação de massa
tematizando, dentre outras questões, as novas configurações familiares e as experiências

26
Em inglês esse termo significa ‘estranho’, sendo originalmente uma designação ofensiva a pessoas LGBT
que posteriormente, em algumas realidades, tomaram para si essa designação como identidade e
empoderamento. A teoria queer ou, de maneira mais abrangente, os estudos queer, surgem nos contextos
europeu e americano a partir das identidades sexuais subalternas – em geral, a partir da classe média e
branca – em uma reação à ordem política heterossexual vigente no mundo, espalhando-se para outras
localidades e, de alguma maneira, para outras classes sociais, raças e identidades. Algumas autoras centrais
nesse debate são Rubin (2017), Butler (2003, a), Foucault (2014, a, b, c), Preciado (2017), Sedgwick (2007),
dentre outras e outros. No contexto brasileiro, autoras como Bento (2017) – que abandona o conceito
inglês e cunha a palavra “transviado” – e Miskolci (2015) se dedicam ao tema.

29
no espaço doméstico e da vida cotidiana. Nesses discursos emergem concepções
divergentes sobre o que a família é ou deveria ser. Algumas dessas concepções são
defendidas por atores que se apresentam publicamente como “conservadores”. Outras,
que denomino aqui de maneira relativamente impressionista como “progressistas”,
emergem a partir de um discurso de defesa dos direitos das minorias sexuais.27 No
primeiro caso, as concepções são acionadas por defensores da “família tradicional
brasileira”, seja no âmbito da política ou na vida cotidiana. No segundo, trata-se de
discursos que visam a garantia dos direitos das novas famílias.

Ademais, é curioso notar uma característica nos estudos de parentesco e mais


recentemente no que tange à família: dificilmente poder-se-á abordá-los sem a
realização de análises que também englobem o gênero e a sexualidade. Se retomar a
breve revisão bibliográfica que iniciei na introdução, podemos citar as diferenças entre
as linhagens – matrilinear e patrilinear – que aparecem nos estudos de Kroeber (1969) e
Rivers (1991); as relações marcadas que se dão entre pai, filho e o irmão da mãe nos
estudos africanos de Radcliffe-Brown (1973); a troca de mulheres, o tabu do incesto e a
fundação do próprio parentesco em Lévi-Strauss (1976); e mesmo as diferentes
expectativas e percepções dos papéis de parentesco em Schneider (2016).

Tão pouco podemos desconsiderar totalmente a família ao se abordar o gênero e


a sexualidade no mundo contemporâneo. Desde Engels (1987 [1884]) é evidenciada na
teoria social a centralidade que a família assume no mundo moderno. No contexto LGBT
isso remete às experiências que se dão no contexto do núcleo familiar, quais não são
destituídas de poder, daí a micropolítica, sobre a qual Clark (2018: 6), afirma:

se a desigualdade é onipresente, a micropolítica também o é.


“Micropolítica” é a conduta orientada para obter, manter e
eventualmente conceder poder interpessoal através de atividades como
reivindicar lugares, negociar e disputar posições.

27
Certos políticos são tratados na mídia e, eventualmente, se auto-identificam como progressistas.
Convém sinalizar que os referidos discursos podem não ser facilmente redutíveis a modelos dualistas
desse tipo. Há integrantes da chamada ala conservadora que não apoiam o casamento LGBT, mas se
posicionam a favor de políticas de saúde voltadas à essa população. Há pessoas que aderem a identidades
LGBT e se colocam contra itens da pauta do movimento organizado. Devido às limitações inerentes a um
trabalho de monografia não explorarei esse tema a fundo, ainda que tenha entrado em contato com alguns
interlocutores que sustentam posicionamentos dessa ordem.

30
Nesse aspecto, o estudo de Oliveira (2013) é referencial. O autor evidencia em seu
trabalho as relações entre pessoas que aderem a identidades LGBT e suas famílias de
origem no contexto brasileiro da primeira década do século XXI, considerando em sua
análise a centralidade que assume o momento de revelação dessa identidade – questão
propícia ao abordar a história de vida de alguns de meus interlocutores. Tem-se que
família, gênero e também a sexualidade – além da (micro)política – configuram-se como
questões tangentes na construção dessa pesquisa.

Contudo, o debate sobre a sexualidade não é recente na literatura antropológica.


Como evidencia Vance (1995) esse tema já estava presente na antropologia antes do
surgimento da discussão contemporânea, sendo abordada indiretamente nas pesquisas
de antropólogos como Malinowski (2018; 1983) nos anos de 1920. Surgem em seguida,
nos Estados Unidos, as perspectivas que tratam da sexualidade sob o viés da influência
cultural, sendo Mead (1969) uma das representantes desse período que desemboca, a
partir da década de 1960, nas concepções construtivistas. Após um período de relativa
ausência de estudos nessa temática, a partir das discussões sobre saúde e sexualidade
que se seguiram e se debruçaram consideravelmente sobre a população LGBT em função
da epidemia de HIV/Aids e das organizações que começam a se formar politicamente –
visando resistência à ditadura militar no contexto brasileiro – ocorre uma inflexão em
direção a estudos sobre políticas e direitos nas décadas subsequentes.28 A partir da
politização dos movimentos sociais em prol da causa LGBT no cenário nacional desde o
final do século passado (FACCHINI, 2002) até a intensificação do ativismo que se deu
nas últimas décadas durante os governos do Partido dos Trabalhadores, ocorreram no
cenário público ações e reações sob a forma de protestos no que tange a luta por direitos
humanos para a população LGBT e à legitimação destes. Refletir sobre esse contexto nos
convida a olhar para uma biografia mais abrangente no campo da antropologia política.

Kuschnir (2007, b) assinala que o interesse por esse tema aparece nos estudos
antropológicos desde suas origens, uma vez que o estudo das sociedades implica
diretamente nas relações de poder. Dificilmente alguém negaria hoje o aspecto político
do ritual do kula entre os trobiandeses. Como pode ser visto na obra de Malinowski

28
A obra de Câmara (2002) evidencia essa inflexão. A autora explora o percurso histórico do grupo
denominado Triângulo Rosa, no Rio de Janeiro, em meados dos anos de 1980.

31
(2018), o ato de troca de presentes – colares, pulseiras e adornos outros – entre os grupos
da Papua Nova Guiné e seus regulamentos constituem não apenas os mecanismos de
interação entre esse povo, mas configuram-se fundamentalmente como um aspecto
intrínseco do poder – a economia política. Aspecto que, aliás, já estava presente nos
estudos antropológicos anteriores.

Desde as já citadas classificações do evolucionismo, onde estudiosos buscaram


analisar e comparar os sistemas de poder nas sociedades chamadas de “primitivas” até
ganhar centralidade a partir do funcional-estruturalismo britânico, a política esteve
presente nos estudos antropológicos ainda que não fosse protagonista. A temática era
encontrada nas entrelinhas das pesquisas – como no caso do kula – mas ainda sem
ganhar categorização própria. É justamente a partir de 1920 e de um grupo de
antropólogos influenciados por Bronislaw Malinowski, como Radcliffe-Brown (1973) e
Evans-Pritchard (1999), e as incursões de estudos na África colonizada que isso começa
a se transformar. A política passa a tomar corpo e a configurar-se como uma categoria
na disciplina.

Ocupa lugar de destaque nesse processo histórico a obra de Radcliffe-Brown


(1973; 1980), quem por vezes é considerado como o principal fundador da antropologia
política e, embora abarque certa possibilidade de mudança em sua formulação teórica29,
é circunscrito na perspectiva do estrutural-funcionalismo onde os estudos focam a
estabilidade dos sistemas e formulam concepções mais fixadas no tocante à análise
social30. A relevância dessa perspectiva se dá, como afirma Kuschnir (2007, a), devido ao
impacto das formulações teóricas desse autor sobre pesquisadores posteriores, como
Leach (2014) e Gluckman (2010).

Esses autores e suas obras passam a focar não mais a estabilidade, mas os
processos de mudança dentro do corpo social. As experiências vivenciadas pelos nuer
em um contexto de colonização, para com grupos rivais e para com o poder do Estado
que agora se faz presente (EVANS-PRITCHARD, 1999); e as formulações sociais

29
“A estrutura social não se considera estática, mas como uma condição de equilíbrio que só persiste por
meio de uma renovação contínua (...)” (RADCLIFFE-BROWN, 1980: 22).
30
De fato, esse autor expressa que ao se estudar a organização política deve-se lidar com a manutenção
ou estabilidade da ordem social.

32
complexas dos kachin que percorrem campos diversos da divisão territorial e da posse
ao status de poder e da autoridade política (LEACH, 2014); são exemplos que evidenciam
a amplificação da concepção política nos estudos antropológicos posteriores –
amplificação essa que não ocorreu sem sofrer críticas. Segundo Vincent (1996), pode-se
considerar algumas fases da antropologia política: inicialmente tratou-se de estudos
evoluídos dos demais interesses. Em seguida, a partir dos estudos do funcional-
estruturalismo e do grupo de antropólogos influenciados por essa corrente, a disciplina
cria corpo e passa a se configurar como conhecimento sistematicamente estruturado –
o que Thomassen (2008) chama de uma “politização” da antropologia. Ocorre, então,
uma amplificação das noções de ‘política’ e ‘poder’ na antropologia social, que se
tornaram generalizadas e passíveis de se encontrar em qualquer estudo ou contexto;
momento onde esse campo acaba por ficar um pouco esquecido.

Esse panorama é significativo no contexto atual se considerarmos as


transformações políticas que ocorreram a partir dos anos de 1960 e 1970 que
reacenderam esse campo de pesquisa, como o surgimento da contracultura e a
consolidação do movimento LGBT. Tal como aponta Vincent (2012), críticas oriundas da
teoria feminista e da teoria crítica também impactaram nas pesquisas em antropologia
política e, com isso, surge o interesse pelos próprios processos políticos – estabelecendo
a noção de antropologia da política (KUSCHNIR, 2007, b).

Além disso, a recentemente formação das novas configurações de protestos onde


o corpo e a identidade ganham centralidade no contexto político (BUTLER, 2018),
impactaram consideravelmente essa temática nos dias atuais. São exemplos os
movimentos pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos e Europa; no Brasil, as
marchas das vadias; a organização de movimentos LGBT em diversas cidades e Estados
nacionais; os protestos políticos ocorridos em Brasília e demais cidades brasileiras em
2013. No contexto dessa pesquisa considerei a 20ª Parada LGBT de Belo Horizonte, a 4ª
Jornada pela Cidadania LGBT do mesmo município e a atuação de ativistas LGBT na
região metropolitana da capital mineira – questões que desenvolvo melhor no próximo
capítulo.

33
2. CAPÍTULO II

POLÍTICAS E CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS:


disputas em torno da família

“No caso do direito, o Estado nacional começa a render-se às


modificações impostas pelas novas juridicidades legitimadas no
interior das nações e se expõe ao impacto de uma nova concepção
pluralista de nação. No caso da educação, as escolas e
universidades, cada vez mais, abrem-se ao acesso dos outros da
Nação, já não mais para transformá-los em sujeitos dóceis ao
Ocidente e de mentalidade branqueada, mas para que eles
retroalimentem e transformem as instituições educativas (...).”

Rita Segato
(2006: 228)

Com a decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do união civil
e igualitária entre pessoas do mesmo sexo (LOPES, 2011)31 e a partir do veto referente à
distribuição do material didático escolar que promoveria o respeito à diversidade sexual
e de gênero, denominado de “kit anti-homofobia”32, a pauta dos direitos LGBT ganha
destaque na mídia e entre o grande público, trazendo à cena propostas de lei que são, a
partir de então, acionadas no debate. É o caso do Projeto de Lei (PL) 867/2015,
denominado de projeto “Escola sem Partido” e o PL 6583/2013, conhecido como
“Estatuto da Família”. O primeiro estabelece orientações de conduta aos professores,
tendo a pretensão de se tornar um movimento nacional por parte de seus adeptos33. O
segundo trata da proposta de definição do conceito de família como sendo a união entre
um homem e uma mulher, ou apenas um dos dois e sua prole, desconsiderando as
famílias LGBT e mesmo os núcleos familiares onde não esteja presente um dos
progenitores.

31
Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF n. 132 do Estado do Rio de
Janeiro, e Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI 4.277 (RIOS, 2011).
32
Também chamado por conservadores de “kit gay”. A presidenta Dilma Rousseff, cedendo às pressões de
alas políticas que se colocaram contra a proposta, vetou o projeto em 2011.
33
A proposta original foi desenvolvida pelo advogado Miguel Nagib em São Paulo e posteriormente virou
projeto de lei de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF). Estão em tramitação em alguns
estados e municípios projetos similares. Tal cenário é amplamente coberto pela mídia (TENENTE;
FAJARDO, 2016).

34
Pautados nesses dois PL os organizadores e adeptos desse movimento tomam
para si a defesa dos valores morais da “tradicional família brasileira” e se colocam não
apenas contra determinadas posturas em sala de aula, atacando diretamente os
professores e dirigentes escolares, mas também exigem que eixos até então
contemplados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, como
Sexualidade e Educação Sexual, sejam retirados do conteúdo oficial.34 Os envolvidos
respaldam-se em uma categoria acionada ao abordar-se ambos os projetos e em suas
variações no nos cenários locais, a chamada “ideologia de gênero”. Essa categoria vem
sendo utilizada desde então como forma de deslegitimar as políticas públicas voltadas
à população LGBT, tanto no que diz respeito a possível criminalização da homofobia, ao
acesso a políticas sociais e de saúde e a ações no âmbito educacional de promoção do
respeito à diversidade sexual e de gênero (JUNQUEIRA, 2017, b). As origens dessa
categoria, sua relação para com o “Escola sem Partido” e o “Estatuto da Família”, bem
como suas implicações no cenário brasileiro e belo-horizontino é o que abordei nesse
capítulo.

2.1. “IDEOLOGIA DE GÊNERO”:


uma controvérsia global e local

“O confronto entre a disposição ‘liberal’ e a disposição ‘moral’


nunca foi hegemônico (...). Cada sociedade nacional, cada classe
social, cada grupo dominante, cada segmento de status, cada
igreja hegemônica, estabelecem marcas e fronteiras significativas
para o jogo entre esses valores – propiciando uma história intensa,
variada e inquietante para ambos os lados.”

Luiz Fernando Dias Duarte


(2009: 21)

Partindo do tema da 20ª Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte, Famílias e


Direitos: nossa existência é singular, nossa resistência é plural, decidi abordar a temática
da família focando as discussões levantadas pela pretendida definição legal de seu

34
O objetivo é alterar o artigo segundo do Plano Nacional de Educação (PNE) que trata do respeito à
diversidade.

35
conceito – recentemente posta em pauta – considerando especialmente os debates
gerados a partir da concepção limitada dessa categoria proposta pelo denominado
‘Estatuto da Família’, já aprovado no Congresso Nacional.35

Trata-se de um projeto de lei que prevê em seu texto a definição do conceito de


família como sendo a união entre um homem e uma mulher e sua prole – se existirem;
ou então, como o grupo formado por qualquer um dos pais junto de seus filhos. Ou seja,
além de ir contra as formações familiares dissidentes, como no caso de filhos que são
criados por outros membros familiares, não estão incluídos nessa concepção as famílias
homossexuais. Isso resultaria às famílias dissidentes a perda de direitos que estariam
resguardados juridicamente apenas àqueles que se encaixam nos termos do referido
estatuto, como por exemplo, a inclusão do cônjuge – masculino ou feminino – em planos
médicos, divisão patrimonial, composição de renda para busca por financiamentos ou
empréstimos diversos e o recebimento de heranças. Além, é claro, de dar respaldo à
estereótipos e preconceitos sociais que já são amplamente acionados contra a população
LGBT, e de fundamentar outras ações no âmbito do Estado, engendradas de maneira tal
que acabam por impedir diálogos e a discussão sobre questões de orientação sexual e
identidade de gênero em outras esferas. Tal empreitada, contudo, não é recente. Ainda
que não tematizasse o contexto LGBT, Schwartzman (1981) destacou em seu texto como
o decreto-lei n. 3.200 de 1941, uma espécie de estatuto da família proposto durante o
regime do Estado Novo de Getúlio Vargas36 que incentivava o casamento alinhado à
religião cristã católica, chegou a ser posto em pauta, trabalhado e articulado, mas não
foi promulgado justamente por seu caráter polêmico e excludente.37

Além disso, outro fator de relevância é que o atual “Estatuto da Família” foi
composto como projeto terminativo, ou seja, não precisou ir à plenário na Câmera dos
Deputados no Congresso Nacional para seguir em tramitação no Senado Federal. Apenas

35
Alegretti e Oliveira (2015).
36
Vargas governou o país em regime provisório de 1930 a 1934. Após uma nova constituinte, de 1932,
através do voto – secreto – continuou no poder entre 1934 e 1937. Em seguida, através de um golpe, ele
governou em regime ditatorial de 1937 a 1945, período denominado de Estado Novo. Posteriormente ele
voltaria ainda ao poder pelo voto popular direto, governando o Brasil de 1951 até a data de sua morte,
ocorrida em 24 de agosto de 1954.
37
O decreto ainda regulava o matrimônio de colaterais de terceiro grau e dava respaldo financeiro para a
geração de filhas e filhos.

36
a sua aprovação na comissão especial designada para seu pleito – que ocorreu em 24 de
setembro de 2015 – já garantiu a continuidade do processo. Isso foi tomado como uma
vitória inicial por parte dos que apoiam o relator desse projeto de lei, Diego Garcia (PHS-
PR) – como a chamada bancada evangélica38 – e como uma violação dos direitos
humanos e da Constituição Federal pelos opositores, em destaque, àqueles que apoiam
a causa LGBT, como Érica Kokay (PT-DF) e Jean Wyllys (PSol-RJ).

De fato, o que me chamou a atenção foi esta ligação dúbia, quase dialética, que
se pode estabelecer para com o Estado: precisa-se dele para operar ações legítimas e
conseguir a garantia de direitos, mas também, por outro lado, ele próprio pode ser o
agente de exclusão – ou, dito de outra forma, de não inclusão – que retira esses direitos.
Não há novidade aqui. É destacada essa visão do poder estatal, e ainda, que ele – o Estado
–, tendo aspecto colonialista, presta-se justamente para essas ações, especialmente em
relação às minorias. Mas nesse contexto, me aproximo de algo já apontado por Das
(2007) sobre como essas relações, entre Estado e determinado grupo, acaba se moldando
de acordo com acontecimentos e ações específicas. Refiro-me à sua análise sobre a série
de desordens e o massacre que ocorreu em Sultanpuri, na Índia, após o assassinato da
Primeira Ministra, Indira Gandhi. Nesse contexto, a autora explorou, dentre outras
situações, como se dava o processo de registro de boletins de ocorrência sobre bens
furtados durante o caos instalado na região, que colocava as vítimas frente a uma
situação, no mínimo, pouco confortável: esse registro era uma necessidade e visava
garantir direitos e ressarcimentos futuros, mas, ao mesmo tempo, os familiares tinham
de buscar a polícia, mesmo sabendo que eles estavam diretamente ligados às ocorrências
que resultaram na desordem ali desembocada.

Das (2007), nesse caso, se ateve justamente à essa relação ambígua da qual falo,
sendo que sua análise só foi possível por se considerar um Estado em movimento, que
não se encontra fixado nem acabado, mas que a todo instante se molda e se transforma
– ponto de vista partilhado por Peirano (2006). Ora, se é o Estado o regulador dos
direitos que cada cidadão detém (PEIRANO, 2006), é possível – se não óbvio – que
existam falhas nesse processo, mas para além disso, pode ocorrer algo ainda mais grave:

38
Grupo de deputados e de senadores que estão ligados, de alguma maneira, a igrejas cristãs evangélicas.

37
um estabelecimento arbitrário por força de lei39 onde o Estado, em seu imperativo,
impõe uma ordem ou configuração pautada em certos fundamentos morais à sociedade
de maneira hegemônica e, consequentemente, pode não apenas ser omisso à própria
constituição que o dirige, onde se postula o princípio de igualdade, como pode acabar
promovendo e decretando a perda dos direitos de um grupo ou minoria.

De maneira a observar implicações e levando em conta que “para estudar o


Estado, precisamos deslocar nosso olhar dos lugares óbvios nos quais se espera que o
poder resida, para as margens e recônditos recessos da vida cotidiana" (DAS, 2007: 2),
considerei algumas controvérsias sociais referentes à temática da família, não apenas a
própria que se oriunda a partir dessa concepção tradicional proposta pelo referido
estatuto, mas também a discussão que gira em torno de temas como liberdade, gênero
e sexualidade no âmbito educacional a partir do chamado projeto “Escola sem Partido’.
Considerei, para tanto, as informações do próprio site do programa e reportagens sobre
seus desdobramentos.

***

O “Estatuto da Família”, que se encontra na fila para votação no Senado Federal,40


para além das problemáticas já salientadas, acaba ainda por propiciar uma forte
retomada de discursos tradicionais que se pretendem salvaguardas não somente da
família, mas também da educação e do futuro da nação. Um exemplo disso é outro
projeto de lei, o “Escola sem Partido” que, embora anterior ao “Estatuto da Família”,
tornou-se um movimento – que tem a pretensão de ser nacional – e ganhou maior
destaque, e força, com a proliferação da discussão sobre família e a garantia de seus
direitos.

Pautados nos parágrafos do “Estatuto da Família”, que determinam não só a


concepção de família, mas também, que cabe ao Estado e a todos os órgãos públicos
garantirem os direitos superiores da entidade familiar, que diferem dos direitos

39
Considerando aqui a concepção de ‘lei’ em Derrida (2010), onde direito e justiça estão descolados, ou
1desconstruídos1. Nesse sentido, eles não devem ser tomados a priori como conceitos similares ou
intrínsecos, pois a existência de um, de fato, não garanto o outro.
40
Deputados que se colocam contra o estatuto entraram com pedido para que o projeto seja votado no
Senado, mas que volte para votação em plenário no Congresso Nacional (SALCEDO, 2015; ALEGRETTI;
OLIVEIRA, 2015). Até o momento a solicitação não foi acatada.

38
individuais dos sujeitos,41 os organizadores e adeptos do “Escola sem Partido”, se
colocam contra determinadas posturas em sala de aula – atacando diretamente os
professores – bem como exigem que determinados eixos educacionais deixem de ser
contemplados no conteúdo oficial.42 Eixos estes que compõem a chamada “ideologia de
gênero”, que associada a outros itens, como o posicionamento político – especialmente
marxista – formam um conjunto de “ideologias” que não devem ser abarcadas pela
escola.

O termo “ideologia de gênero” tem sua origem no Conselho Pontifício para a


Família, em textos do final do século XX e início do século XXI que promoviam uma
teologia da família sob a autoria de Karol Wojtila, o Papa João Paulo II (JUNQUEIRA,
2017, a). Na mesma época, tanto Wojtila quanto o cardeal Joseph Ratzinger, que viria a
se tornar o Papa Bento XVI, professavam uma concepção do corpo que reiterava um
caráter naturalista respaldado no traço divino – especialmente em relação à mulher – o
que se expandiu em seguida para a família e para a sexualidade e o gênero (JUNQUEIRA,
2017, b; MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Trata-se de um período de formulação de teorias
antigênero. A partir dessas formulações ambos os papas e diversos teóricos e teólogos
vinculados à igreja começam a atacar o que chamam de “modernidade” (MISKOLCI;
CAMPANA, 2017), marcada pela perda dos valores cristãos professados pela Santa Fé e,
no campo das identidades, por “puras abstrações” (ibid., 27) – concepções que se
espalharam desde então para outras partes do globo. No entanto, dois apontamentos são
pertinentes ao se considerar a chegada e apropriação desses discursos na América Latina
e, especialmente, no Brasil.

Por um lado as apropriações desses discursos antigênero se deram de maneira


acentuada por parte da religião cristã evangélica e não pela igreja católica onde teve
origem – o que contrasta fortemente com a atuação da bancada evangélica no campo
político. Como destaca Junqueira (2017, a), no cenário nacional o discurso passa por uma
descolonização, perdendo em parte seu viés religioso e de profissão de fé. Ao contrário,

41
O projeto prevê ações conjuntas de órgãos públicos, bem como outros atendimentos específicos à
família, não apenas no campo social, mas também médico – com destaque para questões psicossociais da
“unidade familiar”. Isso inclui ainda a pretensão de se criar “conselhos de família” voltados ao estudo de
políticas públicas que defendam a família e seus direitos conquistados.
42
Nesse caso, especialmente quando se fala da orientação sexual e da identidade de gênero.

39
ele ganha cunho científico, sendo respaldado por lideranças políticas alinhadas ao
pensamento conservador, por pastores e demais envolvidos através de uma certa
concepção da ciência, constituindo um discurso de legitimação que não pode ser
refutado sob o viés da crença ou do Estado laico. Para esses envolvidos, a outra ponta do
debate implica diretamente as crianças: proibir a “ideologia de gênero” visa resguardar
o direito da família em educar seu filho levando em consideração seus princípios e
valores morais. Para os integrantes dos movimentos que se colocam contra – e me incluo
entre eles – trata-se não só de uma postura e ação inconstitucional, como um ataque
direto à democracia, à liberdade de atuação docente e aos direitos das minorias sexuais.

De fato, existe uma parcela de igrejas de correntes cristãs evangélicas que se


colocam contra os direitos conquistados nos últimos anos pelos movimentos LGBT, bem
como defendem seus próprios valores frente às políticas públicas que visam garantir os
direitos desses sujeitos. Como bem salientam Natividade e Oliveira (2013), ocorreram
nos últimos anos ataques diretos a essa pauta progressista não apenas em cultos de
igrejas evangélicas, que configuram o “homossexualismo” como um dano à sociedade e
que se incentivado por representantes do poder público, acaba por tornar-se “perverso”;
mas também por certa parte da mídia, que destacou os trâmites de leis de interesse LGBT
de maneira negativa, como a criminalização da homofobia – evidenciando os “perigos”
dessa lei e seus impactos sociais.

Além disso, a partir do movimento inicial do “Escola sem Partido” de Miguel


Nagib, surgiram ainda outros projetos de lei, a níveis estadual e municipal, que se
assemelham – e se inspiraram – nesse PL, a saber, nos Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, Goiás, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Paraná, Alagoas e no Distrito Federal.43
Destes, o caso de Alagoas recebeu grande destaque da mídia, especialmente porque o
projeto “Escola Livre”, aprovado por unanimidade e que prevê, assim como o projeto
nacional, posturas que não podem ser tomadas pelos professores, fora vetado pelo
governador do Estado, mas posteriormente voltou a vigorar quando os deputados
conseguiram derrubar o veto44.

43
Tenente e Fajardo (2016).
44
Nesse caso, o ministro Luís Roberto Cardoso, do STF, suspendeu provisoriamente os efeitos da referida
lei (MINISTRO, 2017).

40
Além desse, outro projeto que deve ser citado, pois contrasta fortemente com a
proposta de exclusão da temática da Sexualidade e Educação Sexual das Diretrizes
Curriculares Nacionais, é o de autoria da deputada Sandra Faraj (SD-DF), aprovado por
17 votos contra 7, que inclui como conteúdo transversal na grade de escolas públicas do
Distrito Federal, o tema “valores de ordem familiar”, cujo objetivo é trabalhar questões
de educação moral e religiosa. Da mesma maneira que o “Escola sem Partido”, as
orientações e valores trazidos de casa – repassados pela família – estão acima dos
promovidos na escola e devem ser inteiramente respeitados pelos professores.45
Destaque para o fato de que, considerando-se as polêmicas envolvendo projetos
similares e o veto de propostas como essa, especialmente quando tratam de “valores
tradicionais”, a deputada argumenta que esse caso não se enquadra em tal situação, uma
vez que a constitucionalidade dos “temas transversais” já está superada, e cita outros
temas como “cidadania e leitura de jornais” já aprovados e em vigor há tempos para
fundamentar sua fala.

Observo, portanto, que existe um grande movimento em direção a projetos e


ações similares ao “Escola sem Partido”, em uma rede que se desenvolveu para além do
referido projeto de lei (figura 1).46 O PL se constituiu também, com o respaldo de
apoiadores, em um movimento que atua a níveis nacional, local e na internet, 47 onde
são publicados artigos de apoiadores e de críticos a propostas que vão contra os
interesses dessa parcela conservadora, além de ser um local para atacar políticas públicas
que defendem a inclusão e mesmo propostas pedagógicas que são “subversivas”, como
as vinculadas ao pensamento marxista ou à pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Além
disso, qualquer cidadão que tenha acesso pode “colaborar” ativamente enviando
comentários – em “Depoimentos”; relatos de casos – em “Defenda seu filho” – e mesmo
denunciando, afim de expor publicamente os envolvidos na “doutrinação” de estudantes
– em “Corpo de delito” (figura 2)48. Dentre os relatos, um dos mais recentes trata

45
PROJETO, 2016.
46
Cujo site oficinal é: http://www.programaescolasempartido.org/.
47
Cujo site oficinal é: http://www.escolasempartido.org/.
48
Existem, nessa sessão, não apenas relatos, mas também vídeos que foram gravados por estudantes em
sala de aula, bem como prints de redes sociais contendo comentários de professores que se posicionam
contra o golpe que levou ao cargo de presidente o então vice-presidente Michel Temer – destacados como
exemplo de como os professores “doutrinam” os alunos nas escolas a serem adeptos de certas “ideologias”.

41
justamente de ações pedagógicas no campo da orientação sexual e identidade de gênero
(relato 1).

FIGURA 1: página inicial do programa “Escola sem Partido”.

Fonte: <http://www.programaescolasempartido.org/>. Acesso em 11 out. 2017.

FIGURA 2: página inicial do movimento “Escola sem Partido”.

Fonte: <http://www.escolasempartido.org/>. Acesso em 11 out. 2017.

(Relato 1)

Em Florianópolis, onde meu filho frequentou a sétima série em 2012, na


mesma escola municipal que teve problemas com a família da criadora
do Diário de Classe, convidaram os alunos (meu filho recusou
participar) a trocarem os gêneros das vestimentas, entrar em todas as
turmas (crianças de 7 anos indo para casa assustadas com o choque da
cena), enquanto uma professora de ciências (não deveria ela ensinar

42
sobre fórmulas, reações químicas do que agir como militante da
consciência social?) explicava sobre transfobia, lesbofobia, e expuseram
no álbum da escola dezenas de fotos.

A pedido de mães (e com o apoio de minha esposa, professora de


educação infantil em instituição privada) que não tinham coragem de se
expôr e reclamar, consultei o Ministério Público e o conselho tutelar, e
orientado por eles fui à direção e fiz vários questionamentos, inclusive
sobre o fato de não terem enviado aos pais nenhum aviso ou solicitado
assinatura permitindo o que foi chamado de "gincana", avisando que se
o abuso se repetisse eu levaria o material que salvei da própria página da
escola para o MP. Aqui abaixo uma das fotos que extraí do álbum da
escola antes dele ser excluído na época, onde devidamente borrei as
faces das crianças, coisa que não tiveram cuidado. (12 dez. 2015)49

É proposta central do “Escola sem Partido” que em toda instituição escolar sejam
estabelecidas e publicizadas através de cartazes e de ações que as divulguem aos alunos,
alguns deveres inerentes à condição docente, quais devem ser seguidas
“impreterivelmente”. Colegas de profissão, pais e alunos se tornam os “fiscais” para que
tais deveres não sejam descumpridos (figura 3). Tudo em prol de uma educação que não
promova “ideologias”, sejam políticas ou de gênero, que são – especialmente a segunda
– um risco à família tradicional brasileira e a seus valores.

Tem-se, portanto, que longe de ser uma iniciativa única de um indivíduo público
que conta com amplo apoio de políticos e estão, a partir do Estado, objetivando
estabelecer certos valores tradicionais como superiores a outros, o “Estatuto da Família”
e o “Escola sem Partido” possuem respaldo de uma boa parte da população brasileira,
justamente nessa retomada – qual já mencionei – de discursos tradicionais que se
pautam em valores morais cristãos. Trata-se, no entanto, de uma ação que possui
reações: de políticos que apoiam a causa LGBT, como já assinalado, mas especialmente
a partir da forma mais comum de protesto no mundo moderno, a dos movimentos
sociais (JASPER, 2016). Vários movimentos organizados vêm tematizando em suas ações
– no caso dessa causa específica – a importância de se trabalhar a temática do gênero e
da sexualidade nas escolas para quebra de preconceitos e paradigmas, bem como a
urgência de se discutir as consequências desses projetos de lei.

49
Fonte: http://www.escolasempartido.org/defenda-seu-filho-categoria/572-mensagem-enviada-por-
anderson-da-silva-em-12-12-2015. Todos os materiais aqui citados podem ser encontrados no site oficinal
do programa.

43
Dentre as ações que tematizaram essa discussão, destaca-se o tema da 20ª edição
da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro50, a primeira a se posicionar diretamente
contra o “Estatuto da Família”, destacando o caráter inconstitucional do estatuto, bem
como suas consequências, que para além de “simples palavras”, fundamentariam ainda
mais a intolerância e a violência contra pessoas LGBT. Outras ações que tematizaram
essa discussão mais recentemente, é a 20ª edição da Parada do Orgulho LGBT de Belo
Horizonte e a 4ª Jornada pela Cidadania LGBT,51 que além do movimento político da
própria parada – que abordou as questões acerca da concepção de família e dos direitos
de famílias LGBT – organizou diversos eventos ocorridos mês de julho de 2017, onde
foram abordados diversos temas, como saúde, visibilidade de travestis, transgêneros e
transexuais e as políticas públicas e direitos humanos e da população LGBT.

FIGURA 3: Deveres do professor segundo o programa “escola sem partido”.

Fonte: <http://www.programaescolasempartido.org/>. Acesso em 12 out. 2017.

50
Milhares (2015).
51
Cellos (2017).

44
Essa configuração se estrutura como um grande impasse a nível nacional –
considerando as ações globais e locais – onde trata-se não apenas, a meu ver, de
relacionar direitos humanos – universais – à particularidade e singularidade de cada
cultura – questão já suficientemente complexa e da qual discorre Almeida (2012). Isso,
porque, se fosse essa a maior questão de toda a problemática, penso que, de fato, a
proposta do antropólogo português, de um “diálogo intercultural”, onde “(...) as pessoas
e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito
a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”52, poderia ser um ponto
pertinente da renovação dessa discussão,53 o que ajudaria a relacionar a justiça à
diferença, e a colocar a lei como mediadora e administradora do “convívio de costumes
diferentes”, como propõe Segato (2006: 212).

No entanto, ainda há um ponto mais específico no caso brasileiro, que em minha


concepção agrava a situação e que deve ser considerado ao se tratar da temática da qual
decorri até aqui. Trata-se de algo que já salientei inicialmente, e se estabelece quando o
Estado promove uma determinada política, lei ou concepção jurídica pela qual ele
próprio não inclui, ou exclui, não indiretamente, mas diretamente um grupo e/ou
minoria do acesso a seus direitos, que não apenas retiram direitos da população LGBT
como também silenciam suas vozes e impedem o avanço de sua luta contra violência e
exclusão.

2.2. A PALAVRA PROIBIDA:


gênero e a Emenda n. 3 da Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte

“(...) Ninguém faz seu gênero isoladamente, secretamente. Ou


seja, não existe gênero em si, absoluto. O gênero é sempre para si.
Você precisa do olhar do outro para se produzir no gênero. Isso é
válido para todos nós. Daí a força regulatória do gênero.”

Berenice Bento
(2017: 129)

52
(SOUZA SANTOS, 1997 apud ALMEIDA, 2012: 968).
53
Como o próprio Almeida (2012) argumenta.

45
Durante as reuniões iniciais do projeto de pesquisa no qual fui bolsista de
iniciação científica, o professor orientador considerou alguns campos a serem
explorados pelos integrantes.54 Constavam no planejamento algumas igrejas inclusivas
e o movimento social organizado. Este último seria acessado a partir de contato anterior
estabelecido entre Leandro e uma das lideranças do Cellos. Acabei optando, em comum
acordo com meu orientador, em realizar pesquisa de campo nesse centro, que havia
começado a realizar encontros para organização da Parada LGBT do ano de 2017.

Através do grupo do Cellos no Facebook tive acesso à agenda das reuniões, que
eram abertas a voluntários. No final de abril daquele ano, no fim de tarde de domingo,
fui à um desses encontros realizado em um prédio na região central da cidade. Sendo o
primeiro “voluntário” a chegar naquele dia, fui recebido por uma das figuras mais ativas
do movimento na capital mineira, a quem chamo aqui de Orlando. Me apresentei como
estudante da UFMG e bolsista de um projeto que visava estudar o ativismo LGBT e as
relações familiares dos envolvidos. Logo em seguida conheci outra liderança do centro,
Marcos, com quem meu orientador havia feito contato. Ao me apresentar, de imediato,
ele se lembrou das conversas que teve com Leandro. Ressaltou, ainda, que “era muito
bacana” o interesse do professor em realizar essa pesquisa a partir do movimento social.

Uma sugestão feita por meu orientador foi a de que eu participasse ativamente
no Cellos, me voluntariando a ajudar na organização da parada e nos demais eventos
que estavam sendo promovidos na época. Foi o que fiz. Marcos concordou prontamente
e, naquele mesmo dia, foi adicionado aos grupos oficiais da organização no WhatsApp e
fiquei incumbido de colaborar em algumas ações: publicizar os eventos na redes sociais
e distribuir, a partir da semana seguinte, os folders de divulgação em espaços da UFMG.

Ao longo dos meses que participei dessas reuniões, ajudei ainda na divulgação
dos eventos da 4ª Jornada pela Cidadania LGBT, edição que, diferente dos anos
anteriores, não se estendeu por uma semana, mas por um mês. Constitui-se de palestras,
oficinas, sessões de filmes e debates, rodas de conversas e outras ações que tematizavam

54
Na época o projeto contava com 2 bolsistas e 2 voluntários.

46
e visibilizavam a comunidade LGBT. Foi em um desses nesses eventos que conheci uma
de minhas principais interlocutoras, Leona.

No tocante à Parada LGBT, a temática foi Famílias e direitos: nossa existência é


singular, nossa resistência é plural, atualizando o debate em torno das monções na
legislação que tocam à família e, em especial, aos direitos das novas configurações
familiares. Tais monções e o cenário de visibilidade conquistado pela comunidade LGBT
ainda se relacionaram a articulações entre movimentos sociais e as alas “progressistas”
da administração pública, possibilitando a abertura de departamentos específicos que
atuam no combate à discriminação e à violação de direitos. É o caso, no contexto de Belo
Horizonte, da Diretoria de Políticas para População LGBT, vinculada à Secretaria
Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, inaugurada na atual
gestão do prefeito Alexandre Kalil (PHS-MG).

Trata-se de um órgão destinado a formulação e implementação de políticas


públicas voltadas para pessoas LGBT, contemplando ainda, ações que buscam dar
visibilidade a esse grupo, estimular a denúncia de crimes que perpassam a LGBTfobia e
atender a solicitações de populares. Sua abertura, no entanto, desagradou a vereadores
conservadores que, dentre outras falas, acusaram a prefeitura de intensificar a “ideologia
de gênero” no município.

Outra questão que se articula a esse debate é uma PL local similar ao “Escola sem
Partido” que se encontra em tramitação na câmara de vereadores. Ele visa proibir a
implementação de políticas educacionais que tematizem a igualdade de gênero e o
respeito à diversidade sexual. Sob a justificativa da “ideologia de gênero”, o artigo 158 da
Proposta de Emenda à Lei Orgânica n. 3 do Município afirma:

Parágrafo único: Não será objeto de deliberação qualquer proposição


legislativa que tenha por objeto a regulamentação de política de ensino,
currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma
complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de
gênero, o termo gênero ou orientação sexual. (BELO HORIZONTE, 2018:
sem paginação) 55.

55
O projeto foi protocolado em março de 2018. É de autoria de Jair DiGregário (PP-MG) e de outros 13
vereadores (BELO HORIZONTE, 2018: sem paginação).

47
Um apontamento que enfatizo sobre o parágrafo supracitado envolve as
“desqualificações” de monções similares em outras cidades e Estados brasileiros. Em
casos ocorridos no Rio de Janeiro e em Goiás, PL similares foram vetadas sob a
justificativa de que a “ideologia de gênero” não estava definida ou, ainda, de que aulas
que tematizam o gênero, a sexualidade, o corpo e a identidade não configuram
“ideologia”. Entendo que foi visando impedir que a Emenda n. 3 seja desqualificada da
mesma maneira, que em sua proposição ela proíbe não apenas a própria “ideologia de
gênero” mas também a “aplicação” dos termos “gênero” e “orientação sexual” no
contexto escolar.

Integrantes do Cellos, vereadores pró-LGBT e a diretoria citada unem esforços


para impedir sua aprovação, chamando a comunidade a protestar nos plenários da
câmara em sessões que tratam desse PL. Da mesma maneira os vereadores
conservadores chamam figuras religiosas e a “família tradicional” a comparecerem em
plenário e exigir sua aprovação. Na última sessão ocorrida, no início de 2017 – na qual
não pude participar por estar em intercâmbio –, como me relata Orlando, os grupos em
favor da PL e contra tiveram de ser separados, pois alguns atos de violência ocorreram.

Entendo que a situação apresentada no contexto de Belo Horizonte,


possivelmente similar a outros municípios brasileiros, evidencia os enfrentamentos
atuais que se dão em torno da “ideologia de gênero” e da ‘família’. A primeira categoria,
de fato, está amplamente associada à segunda. Falar em “ideologias” no tocante ao
gênero, o que se vincula diretamente à essas monções, é falar da família e das disputas
em torno desta.

48
2.3. A SOCIEDADE EM PÂNICO:
conflitos, emoções e cismogêneses

“Pânico social é feito para causar medo!”

Leandro de Oliveira
(2018)56

Como se instala – ou se fabrica – o pânico moral? Miskolci e Campana (2017) nos


fornecem algumas pistas. Momento de instabilidade política são propícios para isso. Os
agentes envolvidos se valem de pequenos excertos reais e manipulam a informação,
disseminando distorções através de grandes veículos de comunicação em massa. É
escolhido um alvo, algo contra o qual deve se lutar. São evidenciados os “riscos” que esse
alvo oferece, momento no qual a população é chamada a reagir. Surge, então, um pânico
mais ou menos generalizado. Nesse contexto, o alvo do momento é a “ideologia de
gênero”.

Os autores supracitados assinalam como o pânico em torno do gênero se


instaurou no contexto brasileiro e de outros países latino-americanos. A atuação da
frente política alinhada à esquerda, que trouxe à cena pública o – necessário – debate
sobre os direitos da mulher e das demais minorias sexuais e propuseram políticas
públicas que toquem a estes temas, é fator central. Isso ainda coincidiu, de maneira mais
ou menos acertada,57 com eleições que colocaram o poder, mulheres e homens que
levantam bandeiras favoráveis em torno destas temáticas – da violência contra a mulher,
da pauta LGBT e da ampliação de políticas públicas que combatam o preconceito e a
violação de direitos.58 Atrelado a isso, mas não necessariamente em consequência, atores

56
Excerto das notas de aula da disciplina Antropologia das Emoções, ministrada entre julho e dezembro
de 2018 na Universidade Federal de Minas Gerais.
57
Esse apontamento se faz necessário uma vez que nem todos os atores associados a partidos de esquerda
defendem a causa LGBT e outros temas da ordem do dia, como o direito ao aborto e a adoção de crianças
por casais LGBT.
58
Isso não quer dizer, no entanto, que os sujeitos que entram em desacordo para com essa pauta sejam
favoráveis a tais violações e violências. O discurso, se assim posso assinalar, passa pela ideia da necessidade
de se abordar a violência como um todo, sem “diferenciação”. As colocações progressistas são
consideradas, sob certo prisma, como reinvindicações de “privilégios”.

49
sociais alinhados politicamente à direita empreenderam um esforço no combate à ações
progressistas, buscando deslegitimar as conquistas dessa parcela da população.59

Entendo que o conceito de “cismogênese” de Bateson (2008) nos ajuda a pensar


sobre isso. O antropólogo americano definiu essa expressão como “um processo de
diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação
cumulativa dos indivíduos” (BATESON, 2008: 223), tendo desenvolvido essa
conceitualização a partir de sua etnografia entre os Iatmul, um povo tradicional da
Papua Nova Guiné. Ele evidenciou como os atores sociais desse grupo diferenciam-se a
partir de seu ethos entre os afazeres e os modos de comportamento de homens e
mulheres.

Considerando as “reações dos indivíduos às reações de outros indivíduos”,


expressão que ele busca abandonar, Bateson (2008: 223) assinala que as relações, ainda
que postas em um plano social, implicam também na interação de sujeitos, e que estas
podem mudar ao longo do tempo mesmo sem qualquer interferência de ordem externa.
Trata-se de considerar não apenas as ações de um primeiro sujeito em relação a um
segundo, mas de compreender o comportamento do segundo a partir disso e seus efeitos
sobre o primeiro. Ele diferencia, então, a cismogênese entre duas categorias:
‘complementar’ e ‘simétrica’. A primeira, privilegiando comportamentos diferentes,
sobre a qual ele diz:

Muitos sistemas de relacionamento, seja entre indivíduos, seja entre


grupos de indivíduos, contêm uma tendência para a mudança
progressiva. Se, por exemplo, um dos padrões de comportamento
cultural, considerado apropriado no individuo A, é culturalmente
rotulado de padrão assertivo, enquanto de B se espera que responda a
isso com o que é culturalmente visto como submissão, é provável que
esta submissão encoraje uma nova asserção, e que essa asserção vá
requerer ainda mais submissão. Temos então um estado de coisas
potencialmente progressivo, e, a não ser que outros fatores estejam
presentes para controlar os excessos de comportamento assertivo ou
submisso, A precisará necessariamente tornar-se mais e mais assertivo,
e B se tornará mais e mais submisso; e essa mudança progressiva

59
Assinalo, ainda, que as definições de ‘esquerda’ e ‘direita’ não são bem claras. No contexto brasileiro, no
entanto, a partir do notório combate à ditadura militar (1964-1985), a esquerda ficou conhecida pela defesa
dos direitos humanos, alinhando-se a perspectivas progressistas. A direita, por sua vez, se vincula, na
maioria das vezes, a um discurso conservador.

50
ocorrerá, sejam A e B indivíduos separados ou membros de grupos
complementares. (BATESON, 2008: 223)

A segunda, a partir de comportamentos iguais – miméticos ou aproximados. Em relação


a esses, ele afirma:

(...) há um outro padrão de relacionamento entre indivíduos ou grupos


de indivíduos que contém igualmente os germes da mudança
progressiva. Se, por exemplo, encontramos a bazófia como padrão
cultural de comportamento em um grupo, e o outro grupo responde a
isso com mais bazófia, uma situação competitiva pode se desenvolver na
qual a bazófia leva a mais bazófia, e assim por diante. Esse tipo de
mudança progressiva pode ser chamado cismogênese simétrica.
(BATESON, 2008: 223-224)60

Se analisarmos as ações/reações e comportamentos dos “grupos” políticos


nacionais – da esquerda e da direita – podemos lê-los, ou entendê-los, a partir da
‘cismogênese complementar’. Ambas as alas buscam se diferenciar a partir de ações
similares: conflito público, pleitos legislativos, legitimação de discursos e atuação nos
trâmites legais e burocráticos do Estado. Cada qual, no entanto, ocupa um lugar
diferenciado na rede política brasileira, com alinhamentos específicos e
opiniões/posicionamentos que, muitas vezes, podem ser antagônicos.

Retomando um exemplo anterior, sobre o projeto “Escola Livre” formulado por


deputados estaduais de Goiás, podemos constatar e evidenciar que: por um lado, frentes
da esquerda alinhadas à pauta do movimento feminista e LGBT no Estado – como em
todo o Brasil – ganharam algumas lutas, trazendo visibilidade a esses grupos e pleiteando
políticos públicas. Ao mesmo tempo, a frente de direita, a partir do mesmo processo,
buscou aprovar a PL mencionada, o que conseguiu. Seguidamente ouve reações de
movimentos sociais e de políticos que, junto ao poder jurídico conseguiram vetar o PL.
Realizando o mesmo jogo – com o poder jurídico – partidos de direitas conseguiram
derrubar o veto. Até que, através de um Ministro do STF, a PL foi suspensa por ser

60
Bateson (2008: 224) ainda realiza outra exemplificação: “a diferença entre cismogênese complementar
e simétrica é estreitamente análoga àquela entre cisma e heresia, em que heresia é o termo para a
separação de uma seita religiosa na qual o grupo divergente mantém doutrinas antagônicas àquelas do
grupo original, e cisma, o termo usado para a separação de uma seita quando os dois grupos resultantes
têm a mesma doutrina, mas se distinguem e competem politicamente. Apesar disso, usei o termo
cismogênese para os dois tipos de fenômeno”.

51
considerada inconstitucional. Destaco, portanto, os processos cismogenéticos
complementares que ocorrem entre esses dois grupos e os sujeitos que os integram.

Em Família, moralidade e religião, Duarte (2009) realiza uma leitura conceitual


similar ao falar do gerenciamento do ‘ethos privado’ no contexto de famílias de classe
média. Tal incurso ao nível micropolítico desses embates – que, como assinalei no início
dessa monografia, não está separado do macrossocial – é o que busco explorar no
próximo capítulo.

52
3. CAPÍTULO III

MICROPOLÍTICAS EM FAMÍLIA:
emoções, cismogêneses e outras disputas

“Hoje eu não sinto ódio, mas não esqueço tudo o que aconteceu
comigo.”

Leona61

A visibilidade que a comunidade LGBT experimentou – e ainda experimenta – nas


últimas décadas não tiveram reverberações apenas no âmbito político nacional, mas
também nos cenários locais. Aliás, me pergunto se foi, de fato, essa evidência global que
intensificou – ou reconfigurou – as relações micropolíticas, ou se estas configurações já
existiam na rede de relações nucleares e apenas ganharam foco maior da produção
acadêmica e científica nos últimos anos?62

Independentemente da resposta à essa pergunta, o fato é que o ‘gênero’, a


‘sexualidade’ e, claro, a ‘família’, estão na ordem do dia nas discussões políticas e sociais
contemporâneas. Essas discussões, contudo, não ficam apenas nos âmbitos político e
legislativo – como explorado no capítulo anterior – mas fazem parte, de maneiras mais
ou menos evidentes, das experiências vivenciadas por pessoas LGBT em suas “vidas
vividas”63. Possíveis exemplos estão presentes em alguns relatos de meus interlocutores,
como o momento em que ocorre um beijo gay na novela das oito, ou quando uma
personalidade transexual se apresenta em um programa de auditório em um domingo à
tarde.

Uma possibilidade é pensar a forma como a recente controvérsia sobre “ideologia


de gênero” realçou os olhares à sujeitos LGBT – e mesmo em relação à heterossexuais –
que não se encaixam nos padrões sociais de gênero, como travestis, transexuais, lésbicas

61
Ainda sentados em sua sala, Leona faz esse relato no momento em que rememora falas de uma de suas
irmãs que busca reiterar seus laços de sangue.
62
Ressalto que mesmo na produção acadêmica essa questão foi abarcada, como no estudo pioneiro de
Guimarães (2004). A antropóloga explorou, em O homossexual visto por entendidos, as histórias de vida
de alguns interlocutores homossexuais que saíram de Minas Gerais e foram para a capital carioca de forma
a experienciarem sua orientação sexual. Ela ainda considerou em seu estudo as relações entre eles e suas
famílias de origem.
63
Etnografia não é método, Peirano (2014).

53
masculinas, gays afeminados e quaisquer outras e outros que não estejam alinhadas para
com a “presunção da heterossexualidade”64. Longe de vincular tais situações ao
macrossocial, o que busquei é explorar a maneira como elas – e outras cenas –
apareceram nas histórias de vida de alguns de meus interlocutores, empenho que realizei
a partir da perspectiva da antropologia das emoções.

Como exploram Rezende e Coelho (2010), as emoções atualizam no micropolítico


questões que se dão em outra ordem, a partir da contestação de hierarquias sociais
definidas e – até sua contestação – aceitas.65 Nessa óptica as emoções perdem seu viés
unicamente biológico. Não se trata, portanto, de reiterar sua biologização ou de
considerá-las universais. Trata-se justamente do contrário, de “tornar visíveis coisas que
para nós são tão naturais que se tornaram invisíveis” (DESPRET, 2011: 30). Sobre tais
contestações, Clark (1997) explora as ideias de ‘status’ e ‘lugar’, onde o primeiro é mais
rígido e menos passível de alterações e o segundo é instável. Termos que trouxe aqui de
maneira a nos ajudar a refletir sobre algumas situações. O momento de revelação da
identidade LGBT, a expulsão de casa que se concretiza ou permanece como ameaça e
situações de possíveis conflitos que são amenizadas sob a fala de que, apesar dos pesares,
“está tudo bem”, são alguns dos exemplos analisados a partir do material coletado.

Conheci minhas interlocutoras e interlocutor em diferentes circunstâncias ao


longo da pesquisa de campo – campo multissituado, se posso, assim, realizar analogia
para com o percurso desse empreendimento etnográfico. Conheci uma delas nos eventos
promovidos pelo Cellos. Outra, através de contatos na UFMG e o terceiro, com quem
tive breve contato anterior por meio de uma rede social, me aproximei efetivamente a
partir da Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte em julho de 2017. Os contextos
nos quais cada uma de suas histórias de vida se inserem são diversificados. Leona é
atuante no movimento LGBT, sendo bastante conhecida na região metropolitana de Belo
Horizonte. Cristina e Dionny ainda vivem com os pais, frequentando um ou outro evento
de movimentos organizados.

64
Termo tomado de empréstimo da obra Problemas de gênero, de Butler (2003, b).
65
Questão amplamente discutida com meu orientador.

54
Ainda que todos residam atualmente em Belo Horizonte, suas histórias de vida
percorrem diversos campos geográficos. Uma delas não é natural da capital mineira e,
mesmo em relação aos nascidos aqui, suas falas abarcam outros territórios – como as
cidades da região metropolitana. Assinalo que, ainda que tais relatos se circunscrevam
dentro de uma localidade particular e que sejam oriundos de sujeitos singulares que os
emitiram em momentos e tempos específicos, talvez, possamos aprender e apreender
algo com esses discursos. Uma possível projeção não visa, contudo, dar conta da
realidade, mas perceber ‘alegorias’66 dessas situações a fim de que elas possibilitem
reflexões sobre algumas ‘expectativas de poder’67 que podem se apresentar na ‘família’
em um possível cenário mais abrangente.

3.1. “NA MINHA CASA, NÃO”:


Leona, Cristina, Dionny e suas histórias de vida

“Quais compromissos, obrigações e relações de troca podem estar em


jogo, na ‘aceitação’ ou ‘não-aceitação’ de um membro da família (...)?”

Leandro de Oliveira
(2013: 101)

Em muitos dos contextos familiares de pessoas que aderem a identidades LGBT,


frases similares a “não minha casa, não” são, especulo a certo nível, bastante recorrentes.
Nesse caso, a frase foi proferida pela mãe de Cristina no momento em que a filha revela
sua orientação sexual. Como a mãe havia momentos antes defendido perante parte da
família uma pessoa lésbica, minha interlocutora decidiu contar pensando que ela não
“teria maiores problemas” em aceitá-la. Contudo, a indignação da mãe, seguida de um
retruco da filha, apareceu junto da afirmação: “na minha casa, não”.

Muitas vezes, como explora Oliveira (2013), o jogo de aceitação ou não-aceitação


de um membro da família que assume uma identidade LGBT pode envolver motivações

66
A experiência etnográfica, Clifford (2018).
67
Fantasias de poder e fantasias de identidade, Moore (2000).

55
distintas. Alguém pode não aceitar um ente transexual sob justificativas de que ela ou
ele irá “envergonhar a família”. Uma tia pode aceitar uma sobrinha lésbica, defendê-la
diante da família e mesmo acolhê-la em sua casa. Contudo, trata-se de uma relação onde
ela não é, efetivamente, a mãe. Ou, então, uma mãe pode aceitar o filho sob discursos
de que, embora gay, ele é uma pessoa maravilhosa que sempre trabalhou e quem sempre
a ajudou nos afazeres de casa.

Evidencio que as configurações são diversas, de maneira que não é meu objetivo
esgotar a pluralidade das experiências com essa monografia. Ao contrário. Justamente
como forma de explorar diferentes arranjos, que trouxe aqui as falas dessas 2
interlocutoras e desse interlocutor. Leona, Cristina e Dionny, ainda que singulares,
dentro da miríade plural abarcada sob a sigla LGBT, podem apresentar histórias
similares a tantos outros que vivem, cada qual, suas próprias particularidades.

3.1.1. “Marcada para o resto da vida”:


família, afastamento e conflito na trajetória de uma travesti

Leona, uma senhora com pouco mais de 60 anos, travesti, heterossexual, branca,
de classe popular e com ensino fundamental incompleto nasceu em outro Estado
brasileiro, tendo mudado para Minas Gerais há cerca de 30 anos. É ativista do
movimento LGBT conhecida na capital mineira e fora dela. A encontrei pela primeira
vez em um dos eventos promovidos pelo Cellos durante a 4ª Jornada pela Cidadania
LGBT, em junho de 2017. Em outra oportunidade troquei algumas palavras com ela em
evento realizado na UFMG, mas sem maiores delongas, dado que outras pessoas
disputavam sua atenção e ela logo se retirou do local. Essa espécie de assédio em algumas
situações é comum, mas ressalto sua educação em tratar com pessoas LGBT, jornalistas,
pesquisadores e outros que solicitem uma conversa ou entrevista para o jornal ou alguma
pesquisa.

Viajei para realização de intercâmbio logo após esses eventos do Cellos, contudo,
me mantive ativo nessa rede de relações por intermédio do Facebook e do grupo oficial
da organização no WhatsApp. Retomei o contato com Leona por uma rede social no mês

56
seguinte ao meu retorno ao Brasil, em maio de 2018. Contei um pouco sobre a pesquisa
de iniciação científica da qual era bolsista e a convidei a participar, convite aceito
prontamente. Ela estava com a agenda apertada, então marcamos a entrevista para o
início de junho, momento no qual ela sugere que a “conversa” – como ela diz – seja em
sua própria casa.

Na véspera da data marcada confirmei a realização da visita e da entrevista. Ela


me respondeu que estaria me aguardando. No dia seguinte, antes de pegar um Uber para
chegar a sua casa, passei na padaria e comprei um bolo para tomarmos café ao final da
conversa. Pouco antes de chegar ao local informei via WhatsApp que já me encontrava
no início de sua rua, de maneira que, ao acertar o pagamento com o motorista ela já
estava abrindo o portão. Era uma casa simples com vários cachorros, onde Leona aluga
quartos para “suas meninas”. Elas, as meninas, muitas vezes são jovens travestis e
transexuais que foram expulsas de casa ou sofreram outro tipo de violência. As relações
que se dão são bastante complexas, e embora não explore isso a fundo aqui, destaco que
Leona aluga esses quartos por um valor mais baixo, de maneira a ajudá-las e de forma a
ter alguma fonte de renda. Ela ainda auxilia suas meninas – indiretamente – na batalha68
e diretamente, quando possível, a “conseguir algum emprego com carteira assinada” –
usando sua influência e seus contatos para isso.

Naquele dia havia apenas duas meninas em sua residência, quais Leona me
apresentou quando uma delas veio perguntar sobre algumas roupas que estava lavando.
Ela levou o bolo para a cozinha. Em seguida, Leona disse que eu podia me sentar no sofá
– improvisado com uma cama – enquanto ela se sentou na cadeira de escritório em frente
a seu computador. Me perguntou se me importava dela fumar e, obviamente, respondi
que não tinha problema algum.

Ressalto que, o que pretendi a partir daqui, nessa escrita, não apenas para o caso
de Leona mas para as histórias de vida de Cristina e Dionny, foi inspirado na exegese que
Das (2011) realiza em seu texto O ato de testemunhar. A autora, a partir de um excerto

68
Batalhar entre travestis e transexuais significa se prostituir. Digo “indiretamente” pois, ainda que já
tenha tido uma pensão cujo foco era esse na cidade, há anos Leona não trabalha mais com isso. No entanto,
sempre que alguma de suas meninas enfrenta problemas no ofício de batalhar ela as ajuda – como quando
uma delas sofre agressões ou é presa.

57
da fala de uma de suas interlocutoras na Índia, faz uma longa exploração de informações
que se vinculam ao relato, as quais teve acesso durante sua pesquisa em campo e por
meio de outras conversas. Trata-se, no entanto, de uma inspiração, uma vez que
acrescentei outros fragmentos de fala. Contudo, assim como a antropóloga mencionada,
abordei ainda outras passagens que não estão transcritas nessa monografia, falas que me
foram feitas fora da entrevista e em outros momentos que não aquele dispensado para a
realização desta.

***

A conversa já corria há algum tempo, não sei bem ao certo. O gravador marcava
pouco mais de 15 minutos, contudo, muito conversamos antes do início da entrevista
propriamente dita. Ainda estávamos sentados na sala. Leona fala da época em que, com
pouco menos de 20 anos de idade, voltou a morar em sua cidade natal depois de passar
alguns anos em outro Estado brasileiro – após ser expulsa de casa pela mãe aos 12 anos.
Ela lembra, nesse momento, sobre os contatos iniciais para com sua família de origem
depois desse tempo distante.

(fragmento 1)

Leona Eu fiquei muito tempo sem dar notícias, uns 3 ou 4 anos.


Pessoal até achou que tinha morrido. Um dia apareceu uma
carta aonde eu estava morando e ficou circulando pela zona69.
Estava com meu nome biológico e ninguém me conhecia por
aquele nome. Mas a carta era do meu Estado natal, então
sabendo que vinha daquele Estado as meninas acabaram me
entregando. Era da minha família, diziam que estavam
preocupados, essas coisas. Fui atrás de um telefone, mas era
algo muito caro, tanto que em casa ninguém tinha um, era uma
vizinha quem tinha. Retomei o contato assim, falei com minhas
irmãs. Quando eu voltei a morar na minha cidade não voltei a
morar com minha família, com ela nunca mais eu morei. Eu
morava sempre com pessoas conhecidas. Quando eu voltei
minha mãe não falava comigo do mesmo jeito. Se eu passasse
em uma rua ela mudava de calçada, atravessava para o outro
lado. Quando ela estava perto de morrer que houve algumas
conversas. Mas me dou com todos os meus irmãos. Já vieram
aqui, ficaram em hotel no centro, levei eles para sair. Então
tenho relações com todas elas, ligo, tenho elas no Facebook.

69
O termo zona refere-se ao bordel onde Leona trabalhava nessa época.

58
Thiago Mas houve reaproximação na época em que você voltou?

Leona Sim. É, porque a gente vive em um bairro onde mora todo


mundo perto, e tem uma irmã que eu nunca deixei de falar com
ela. A gente sempre se deu. Passava na janela da casa dela, a
gente conversava. Na época meu cunhado era muito [faz uma
expressão facial de desdém] comigo, porque eu marginal,
travesti. Hoje ele diz que sente orgulho, hoje [diz ela em tom
de ironia] todo mundo tem orgulho de mim não é? Hoje eu não
sinto ódio mas não esqueço tudo o que aconteceu comigo. É
uma marca, você fica marcada para o resto da vida.

Leona decorre, provavelmente em função da minha pergunta e daquilo que disse


que buscava estudar, sobre como “a vida de uma travesti é difícil”. Violências, expulsão
de casa e a perda são recorrentes nos discursos que me possibilitou acesso nessa
entrevista. Considerando o fragmento 1, minha interlocutora “ficou anos sem dar
notícias” pois foi expulsa de casa aos 12 anos. Desde os 6, no entanto, ela já enfrentava
“problemas” em família. Ela nunca se identificou para com seu irmão, enxergando-se
como semelhante a suas irmãs, roubando roupas, calcinhas e adereços delas para seu
próprio uso.70

Situações de conflito foram se sucedendo, especialmente para com sua mãe. Após
um tempo vivendo com uma tia, fora devolvida ao núcleo familiar após o tio informar
que ela vinha apresentando comportamentos estranhos e inadequados. Com o passar
dos anos cada vez mais a situação foi se tornando “pior”. Ela dizia que era uma menina
como suas irmãs, continuava a vestir as roupas delas e a enfrentar conflitos com os pais.
Com isso, aos 12 anos foi expulsa da residência. Viveu na rua por quase um ano, até
mudar-se para uma cidade em outro Estado brasileiro. Nesse período batalhou em
alguns lugares e, após o recebimento da carta que mencionou, volta a fazer contato com
algumas – em especial uma – das irmãs.

Leona não se prolongou em sua cidade natal quando retornou. Após alguns anos,
acabou indo para o interior de Minas Gerais a trabalho. Em seguida muda-se para a
capital mineira. Nesse período, ela chegou a administrar uma pensão com cerca de 20

70
Uso o pronome feminino, “ela”, em respeito à identidade de gênero de Leona, contudo, em sua fala, ao
abordar as situações dessa época ela se refere a si mesmo usando o pronome masculino, “ele”.

59
meninas – onde quase todas batalhavam. Ela relata como, desde essa época, ajudava
“suas meninas” frente a situações de violências e em conflito com a polícia.
Posteriormente ela se estabeleceu como dona de uma pensão menor, tendo também
alguns apartamentos alugados como fonte de renda – o que perdura até os dias de hoje.
Ela relata que iniciou sua atuação no movimento LGBT de Minas Gerais através do
contato que estabeleceu para com um dos líderes do movimento, quem a ajudou à época
a solucionar alguns problemas que teve com a polícia.

“Mas me dou com todos os meus irmãos. Já vieram aqui, ficaram em hotel no
centro, levei eles para sair. Então tenho relações com todas elas, ligo, tenho elas no
Facebook”. Leona não cortou totalmente as relações para com sua família de origem e,
embora as relações sejam conflituosas, relata proximidade para com uma de suas irmãs.
No entanto, mesmo com este membro familiar surgem alguns enfrentamentos. Quando
alguma sobrinha ou sobrinho vem visitá-la, por exemplo, ela não gosta que eles
permaneçam por muito tempo. Não porque não se afeiçoe a eles, mas qualquer ação
deles que a mãe ou o pai reprove e, por ventura, venham a descobrir, acaba sendo
considerada como influência de Leona.

“(...) Hoje [diz ela em tom de ironia] todo mundo tem orgulho de mim não é?”.
Ela, que hoje é figura conhecida pela defesa dos direitos das pessoas LGBT,
especialmente pela defesa que faz de travestis e transexuais – a letra mais sofrida da sigla,
como menciona –, tem visibilidade, prestígio e aparece em diversos meios de
comunicação. Contudo, ainda que seus familiares – de sangue – afirmem seu orgulho,
ela não deixa de apontar a mágoa que sente em relação a eles devido ao passado. Insisti
nesse assunto com ela.

(fragmento 2)

Thiago Como é para você eles dizerem hoje que tem orgulho?

Leona Família nenhuma está preparada para ter uma pessoa trans,
estão para ter um gay, uma lésbica porque é um homem e uma
mulher. Um gay é um homem que gosta de um homem, e uma
lésbica é uma mulher que gosta de mulher. A trans não cabe
nessas caixinhas, a partir do momento que você muda seu
corpo você vai além de uma barreira, você é considerada
pecadora, é vista como símbolo de sexo, você vai contra toda a
sociedade. [...] A travesti além de construir seu próprio corpo

60
ela constrói sua família, pois ela conhece outras pessoas, os
amigos, que são mais família que a própria família. E eu fui
construindo a minha por aí, na favela, em outros lugares [...].
Hoje minha irmã fala para mim: “sua família é a gente”, mas
quem sabe disso sou eu! Porque na hora em que eu precisei
[pausa na fala]. Tem certas coisas que eu não gosto nem de
lembrar. É muito triste você estar nas ruas e você chegar na casa
das pessoas para comer! Sabe?! Para dormir! [Leona chora
nesse momento]. Eu prefiro não falar sobre isso.

Esse excerto da fala de Leona nos possibilita refletir sobre alguns pontos – quais
ainda retomarei na sessão 3.2 desse capítulo. “Família nenhuma está preparada para ter
uma pessoa trans”, nos remete diretamente à questão do gênero, que se encontra em
maior evidência na atualidade. Butler (2003, b) constata e formula teoricamente essas
experiências da vida vivida. A presunção da heterossexualidade, ainda que tenha sido
discutida sob diversas perspectivas na acadêmica e no movimento organizado, se
encontra em operação no contexto relacional e de vivência das pessoas LGBT. Uma
leitura possível dessa questão implica na relação entre gênero e expectativa. Quando
ocorre a não conformidade do agir e do ser diante das expectativas sociais sobre o gênero
de nascimento, ao menos no nível da visibilidade, o conflito se torna maior. Daí a fala de
Leona sobre o entendimento social do que é o homem gay e a mulher lésbica. Isso pode
ser pensado como um atrelamento da identidade de gênero ao corpo biológico e – como
ressalta Judith Butler – ao sexo. A pessoa trans, no entanto, foge dessas categorizações.

Leona ainda coloca em cheque a construção biológica do parentesco, momento


em que expressa algumas emoções: o choro ao falar da expulsão, a feição brava ao
contestar, para mim, a fala da irmã. O interessante é notar como ela lida com essas
‘emoções’. Posso me perguntar se o trabalho do tempo do qual nos fala Das (2011) não
tem efeitos sobre minha interlocutora. Seu sofrimento, qual poderia categorizar como
estando no limite do dizível, é amenizado por sua trajetória, pelas relações que construiu
nesse percurso e por seu atual estabelecimento – daí o fato das relações não terem sido
cortadas totalmente e, daí também, sua fala sobre não ter ódio, mas ‘mágoa’. O tempo e
o afastamento mudaram aquilo que ela sentia. Este apontamento, quanto a amenização
de seu sofrimento, no entanto, não se faz totalmente verdadeiro a depender de suas
rememorações. Ela diz que prefere não falar sobre a época em que passou fome,

61
momento de nossa entrevista onde chora de maneira contida. Ação – de chorar – que
viria a ocorrer mais uma vez em minha visita, na situação que se segue.

Leona me contou que, recentemente, as irmãs estavam repensando o que fazer


com o apartamento que todos herdaram após o falecimento da mãe. Atualmente moram
nele seu irmão e o filho dele. Cogitaram a venda, de maneira que cada um recebesse uma
parte do dinheiro. Após algum tempo de negociações e conversas a despeito do destino
do imóvel, a irmã ligou para ela e informou que decidiram não vender, afinal, “‘não
podemos expulsar nosso irmão e colocar ele na rua’”. Leona reitera: “concordo
totalmente, deixe ele morando lá. Expulsar nosso irmão querido não podemos, mas a
irmã travesti a gente pode, não é?!”71.

Trazer esse evento de sua vida que se liga também à história da irmã – que tinha
pouco menos de 20 anos na época da expulsão de Leona – pode ser lido como uma forma
de evidenciar o conflito. Ainda pode ser pensado como ‘liminar’ da passagem de uma
fala que ameniza certas situações, “não tenho ódio, mas mágoa”, para uma fala que traz
o evento novamente à tona, “expulsar [...] a irmã travesti a gente pode”. Algo que
certamente não foi esquecido, mas que é posto em falas e cenas específicas, a depender
da situação. Como ela lembra em várias passagens de sua entrevista, no tocante às
violências físicas e verbais que sofreu: “a gente nunca esquece”.

3.1.2. “Para ele ainda é um pouco complicado. (...) [Mas] estou satisfeita”:
revelação, tempo e transformação na trajetória de uma lésbica

Cristina, 22 anos, mulher cisgênero, lésbica, branca, de classe média com curso
superior completo, cursando sua segunda graduação na área de humanas, nasceu e
reside na região metropolitana de Belo Horizonte. Embora não seja literalmente ativista
do movimento LGBT, ela possui um discurso extremamente politizado e conseguiu
determinada visibilidade no Facebook por seus comentários políticos durante eleições
em sua cidade, chegando a ser convidada a dar opiniões públicas a alguns veículos de
comunicação. A conheci através de um grupo de WhatsApp dedicado a estudantes

71
O irmão de Leona mencionado é heterossexual cisgênero.

62
universitários da UFMG que realizariam intercâmbio. Como iriamos para mesma
instituição, acabamos nos aproximando e morando juntos – com outros colegas – nesse
período de nossas vidas.

A conheci pessoalmente apenas em nossa chegada na cidade de destino, tendo


morado com ela por 6 meses. Em sua cidade natal, Cristina reside com sua mãe, seu pai,
seu irmão 4 anos mais novo e sua irmã – poucos anos mais velha –, estando em um
relacionamento afetivo com outra mulher, Marcela, há mais de 5 anos. Por essa
configuração e pela nossa proximidade durante o intercâmbio que, ainda na viagem, falei
com ela sobre a pesquisa de iniciação científica da qual era bolsista e a convidei a
participar. Já de volta à Belo Horizonte, entre os compromissos rotineiros, em um de
nossos encontros nos corredores da universidade, a lembrei da pesquisa e pedi que me
concedesse uma entrevista. Ela estava um pouco atarefada devido às últimas matérias e
se preparando para sua formação na graduação, mas passadas algumas semanas
agendamos o encontro na própria universidade. Nos encontraríamos na cantina da
faculdade e iriamos para uma sala de aula vazia, contudo, como estava conversando com
meu orientador no momento da chegada de Cristina, ele acabou perguntando se poderia
acompanhar a conversa. A entrevistada não se opôs – já o conhecendo por nome devido
a nossas conversas durante o período em que moramos juntos. Subimos, portanto, até a
sala de Leandro, onde a entrevista ocorreu.

***

Estávamos sentados, Leandro, Cristina e eu em torno da mesa de meu orientador,


em seu gabinete. Pedi a interlocutora que explorasse um pouco a história de sua vida,
especialmente no tocante à sua orientação sexual e seu posicionamento como mulher
lésbica. A certo momento ela aborda sua cena de revelação, ocorrida nas vésperas de ano
novo.

(fragmento 3)

Cristina Foi em 2013 antes de entrar na universidade enquanto eu


namorava minha ex-namorada que eu me assumi para os meus
pais, na verdade em outubro de 2012 eu tive minha primeira
experiência sexual e em janeiro de 2013 depois de um discurso
que a minha mãe fez com as minhas tias preparando o jantar

63
de réveillon, que decidi me assumir. Minha mãe estava
discursando com algumas tias, uma delas tem uma filha que é
mais velha que eu, uma prima que todo mundo sabe que é
lésbica, mas ninguém da família falava sobre isso, o um
discurso sobre ela é velado e minha mãe sabia. Minha mãe fez
um discurso sobre essa minha prima, sobre aceitação, “cada um
é de um jeito, está certo, temos que deixar, que aceitar”, como
eu namorava desde outubro eu achava que minha mãe estava
dizendo isso para mim porque talvez ela já soubesse e estava
me dando um sinal. Encorajada sobre o discurso dela, mais
tarde no quarto, falei que estava namorando e a minha mãe
demonstrou surpresa, falei que estava namorando uma mulher,
mas ela achou um absurdo e disse que eu estava ficando doida
que isso não era possível. Aí eu a questionei porque ela estava
falando da minha prima, como assim ela tinha mudado de
opinião, e ela disse: “dentro da minha casa, não”, aí eu falei que
ela estava sendo hipócrita, ela disse que poderia chamar do que
quiser e se ela pudesse me colocaria dentro de um ônibus e “te
mandava pra bem longe pra você pensar sobre isso”, mas que
ela só não faria isso porque faltavam 12 dias para a prova da
UFMG, e que eu precisava estar aqui. Ela perguntou quem era
a minha namorada, eu falei que era a menina que vem aqui em
casa, ela ficou super incomodada dela conhecer essa pessoa e
frequentar a minha casa na condição de amiga, mas quando
disse que era a minha namorada as coisas mudaram, ela me
propôs que eu terminasse o namoro, aí ela me questionou sobre
eu ter falado que tinha ficado com um rapaz, mas eu falava
mesmo para encobrir, passados alguns dias dessa revelação eu
pedi à ela que não falasse para nenhum familiar, nem mesmo
com a minha irmã que tem uma proximidade e uma influência
muito grande sobre a minha mãe, mas que ela não falasse com
ninguém. Depois de alguns dias ela me perguntou e disse que
havia terminado e me fechei muito, estava visivelmente triste e
escondi isso, mas continuei namorando às escondidas ainda,
mas que agora que eu tinha revelado, eu tinha que fazer um
esforço maior em esconder, não podia mostra nem que aquela
amiga ainda era amiga. Meu irmão sempre soube, foi a primeira
pessoa a saber, tenho uma relação muito boa com ela e me
cobria para eu encontrar com ela, dizia que ia sair comigo, essas
coisas, mas um dia ela ficou cansado de ter de mentir por causa
disso e me disse para não contar mais com ele não.

Cristina tomou a fala da mãe em defesa da prima lésbica como um indicativo. O


discurso de ‘aceitação’ frente às queixas das demais tias da jovem foi entendido, se assim
posso ler, de dupla maneira: primeiro, como evidência de que a mãe não teria maiores
problemas para aceitar uma filha homossexual. Segundo, como possível assinalamento
de que ela já desconfiava de sua orientação sexual. Daí o apontamento da interlocutora:

64
“minha mãe estava dizendo isso para mim porque talvez ela já soubesse e estava me
dando um sinal”.

A reação de espanto da mãe, com a subsequente réplica da filha, traz para cena a
já comentada fala: “dentro da minha casa, não”. É interessante notar como Cristina
questiona o ‘lugar’ qual ocupa. Ela não aceita o discurso que ouviu e afirma que a mãe
“está sendo hipócrita”. Essas respostas são, com base em Clark (1997), formas sutis de se
deslocar e não aceitar o papel social que lhe foi atribuído. Na minha interpretação,
Cristina renega o lugar subalterno no qual foi colocada a partir do momento em que
revelou que é lésbica. A orientação sexual, para ela, não é um fator depreciativo, daí sua
reação diante das falas da mãe. Reação, de enfrentamento, que viria a ocorrer novamente
em outro momento, quando ela foi “chutada para fora do armário”.

(fragmento 4)

Cristina Um dia eu esqueci meu Facebook aberto no computador lá de


casa e minha meu viu, na verdade ela invadiu minha
privacidade, mas ela viu, ela leu minhas mensagens e descobriu
que eu ainda estava namorando. Ela me ligou, eu não estava em
casa, perguntou onde eu estava e me mandou ir para casa.
Nesse dia que minha mãe redescobriu, ela aprontou uma
bagunça em casa, e entendo, ela não deve ter gostado das coisas
que leu, afinal, eram coisas intimas, ela me questionou e eu
afirmei que estava namorando mesmo, que não tinha
terminado. Meu pai e meu irmão estavam em casa, meu pai
estava na sala, ouviu e veio ver o que estava acontecendo, disse
que aquilo era um absurdo, depois meu pai ficou na sala
chorando, foi para o quarto depois, dizia que aquilo estava
errado e que na bíblia isso era pecado, eu falava que desde
quando amar uma pessoa seria pecado, me questionaram e
reafirmei que estava namorando e que não havia terminado, fui
para o quarto e me fechei. Depois minha irmã chegou, no meio
daquela bagunça, falou com minha mãe. Ela veio falar comigo,
ela foi a única que disse que estava tudo bem, mas eu sabia que
no fundo ela tem um discurso super conservador. Meus pais
disseram para que eu me consultasse com um psicólogo e
depois do ocorrido eles me levaram e inclusive foi uma péssima
experiência e nunca mais voltei e esses desdobramentos todos
dessa relação tão difícil com meus pais, deles me chutarem do
‘armário’, fez com que o meu relacionamento desandasse um
pouco, para além do fato dessa nova pessoa que eu conhecei,
de quem me aproximei mais ainda devido esse meu sair
abrupto [do armário]. Hoje em dia a minha relação sobre isso
com meus pais é muito boa, considerando minha mãe, o
convívio e aceitação dos meus pais com minha namorada, não

65
consigo nem imaginar em ser melhor, mas em relação a mim
quanto sujeito e quanto pessoa lésbica, enquanto mulher
lésbica, para o meu pai ainda é um pouco complicado, nunca
mais conversamos sobre isso, ela trata minha namorada super
bem como uma filha mesmo; a minha mãe a trata igualmente,
hoje sou assumida com foto e em redes sociais, minha família
sabe mas foi um processo para levar isso para o restante da
família, longo e gradual, mas hoje não me importo, levo ela a
todo lugar.

No fragmento 4 a interlocutora relata os desdobramentos da noite em que a mãe


viu seu Facebook aberto. “Redescobriu” aparece no excerto indicando a expectativa da
mãe de que a filha realmente tivesse terminado o namoro e que não se encontrava mais
com aquela menina ou outras. Com a briga, Cristina afirma ter sido “chutada para fora
do armário” diante do restante da família. Segundo Sedgwick (2007), o armário funciona
como dispositivo flexível de regulação da vida e da identidade, servindo, por vezes, ao
ocultamento identitário – e não apenas para pessoas LGBT. Minha colaboradora, se
pensarmos por esses termos, ainda que tivesse se revelado para a mãe, não queria, ao
menos naquele momento, ‘sair do armário’ diante do restante de seu núcleo familiar.
Ainda que no momento do escândalo protagonizado pela mãe tenha decorrido um
conflito que envolveu o pai, o irmão e sua irmã, Cristina demonstra ressentimento não
apenas com o fato dessa “expulsão”, mas também em relação à mãe ter contado para a
irmã sobre sua sexualidade. Ela descobre esse fato ao vasculhar as redes sociais e e-mails
da mãe – “ela fez comigo não é? Então fiz com ela também”.

“Depois minha irmã chegou, no meio daquela bagunça, falou com minha mãe.
Ela veio falar comigo, foi a única que disse que estava tudo bem, mas eu sabia que no
fundo ela tem um discurso super conservador”. Esse apontamento em relação à irmã nos
convida a pensar em outras situações. Cristina reafirma diversas vezes como a irmã é
“conservadora”. O mesmo ela diz em relação ao pai. Ainda que “as coisas tenham ficado
diferentes” com o passar do tempo, aparece em sua fala novos indicativos de
contestação. Hoje sua namorada frequenta sua casa e é tratada como “filha”, contudo,
ainda sim estão presentes comentários e falas que a desagradam.

Um exemplo citado por ela, é quando Pabllo Vittar aparece em programas de


televisão. O pai, especialmente se na presença de outro membro familiar – como um tio
– se queixa da visibilidade da cantora.

66
(fragmento 5)

Cristina Aconteceu uma vez quando meu padrinho estava na minha


casa aí ele falou algo sobre a Pabllo Vittar e os dois fizeram
chacotas sobre isso, que agora esses “viadinhos” estão na TV, e
meu pai concordando, “onde já se viu?”. E se estivesse sozinho
ele talvez não iria falar nada, mas na frente das pessoas ele
reforça isso, do meu lado e isso me incomoda, isso dói. Ou ser
conivente e apoiar políticos que são declaradamente contra a
comunidade LGBT de maneira geral.

Ainda que assinale a “dor” que sente ao presenciar a fala transfóbica do pai,
Cristina dá ênfase positiva para suas relações recentes em família. Mesmo ocorrendo
uma ou outra situação “desagradável”, ela afirma que “está tudo bem”. No meu
entendimento a comparação inevitável entre as experiências de 5 anos atrás – quando
foi proibida de namorar – e as vivenciadas de hoje – onde possui liberdade e sua
companheira é bem-vinda – é um fator central no relato que Cristina faz de suas
vivências.

Outro exemplo que corrobora minha interpretação pode ser identificado em sua
fala sobre como foi o momento em que sua mãe a chama para conversar e questiona,
curiosa, a forma como duas mulheres transam. A dúvida foi interpretada por Cristina
como algo positivo, ainda que tenha ficado com vergonha de responder. Mas tratou-se,
para ela, de um sinal evidente de transformação da relação. Agora, de acordo com ela, a
mãe a “aceita”, tanto que aborda certos assuntos sobre os quais jamais conversariam se
as experiências fossem as mesmas de 5 anos atrás.

3.1.3. “Ele disse para eu não chegar perto”:


angústia, ameaça e expectativa na trajetória de um gay

Dionny, 21 anos, homem cisgênero, gay, “moreno”72, de classe popular, cursando


graduação na área de biológicas, nasceu em Belo Horizonte. Vive atualmente com o pai,
a mãe e uma irmã – ainda em tenra idade. Por ter passado boa parte de sua vida
“escondendo” sua orientação sexual, nunca frequentou o movimento organizado ou suas

72
Trata-se da maneira como o interlocutor se identifica.

67
ações antes de 2017, ano em que decidiu acompanhar alguns amigos à Parada do Orgulho
LGBT. Eu já havia conhecido ele através de aplicativo meses antes e chegamos a trocar
WhatsApp, contudo, não nos falamos mais e nunca nos encontramos pessoalmente até
então. Foi justamente no evento de 2017 que acabamos nos conhecendo. Alguns amigos
e ele foram buscar camisinhas na barraca da saúde, na qual eu me encontrava como
voluntário. A partir disso retomamos o contato.

Decidi convidar Dionny a participar da pesquisa após um acontecimento. No dia


em que contou ao pai sobre sua orientação sexual e foi expulso de casa, ele me chamou
no Messenger – aplicativo vinculado ao Facebook – querendo desabafar. Não pude
oferecer um encontro presencial para que ele pudesse me contar, uma vez que eu estava
em intercâmbio, contudo, ficamos horas conectados madrugada adentro conversando.
Após meu retorno à Belo Horizonte e a configuração de novo vinculo para com a bolsa
de iniciação científica, perguntei se ele gostaria de colaborar para com a pesquisa. Ele
perguntou onde seria, afirmando que a UFMG era muito distante para ele. Sugeri, então,
o café do Palácio das Artes, onde havia entrevistado outro interlocutor da pesquisa –
Orlando, quem mencionei no capítulo 2. Dionny saiu do estágio no dia agendado e, ao
invés de ir mais cedo para a universidade, foi me encontrar no local marcado.

***

Estávamos no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Dionny e eu lidamos com


um pequeno imprevisto. O local estava em reforma, de maneira que havia muito
barulho. Sugeri que fossemos para outro lugar, mas ele preferiu ficar ali uma vez que era
próximo de seu ponto de ônibus. Sentamos, então, na mesa mais afastada de onde a
reforma ocorria. Ele começou a falar como se deram seus dois momentos de revelação,
o primeiro para a mãe e o segundo para o pai – embora já tenha comentado algumas
coisas sobre o assunto comigo, pedi que ele me contasse novamente com mais detalhes.

Ele havia se envolvido com um rapaz, para quem tinha escrito uma carta falando
de seus sentimentos e comentando momentos íntimos. De acordo com ele, a carta, que
não tinha sido entregue ainda, apareceu em suas coisas dobrada de outra maneira que
não a qual ele a deixou. A mãe começou a ficar quieta nos momentos em que dividia sua
companhia na cozinha, na sala ou nos corredores da casa. Dionny logo imaginou que a

68
mãe tinha encontrado e lido aquilo que escreveu. Por uma semana nada foi dito, até que
em uma tarde a mãe o chamou para conversar. O que se deu segue no fragmento 6.

(fragmento 6)

Dionny Minha mãe me disse: ‘quero te perguntar uma coisa muito séria
e quero que você seja totalmente sincero em tudo que falar’. Eu
disse ‘ok’. Ela me perguntou: ‘quem é Douglas?’. Douglas é o
nome do rapaz para quem eu escrevi a carta. Respondi que era
um amigo. Ela me perguntou qual a nossa relação, se éramos só
amigos mesmo. Disse que não queria discutir a fundo essa
questão e pedi que ela fosse mais objetiva. Ela me perguntou:
‘você é gay?’. Minha primeira negação foi negar, mas ela
pergunt0u de novo. Eu neguei algumas vezes mas ela insistia.
Me perguntei a razão de negar. Como ela já tinha lido a carta e
como não havia motivo para negar acabei confirmando. E ela
começou a chorar [...]. No meio do choro ela me perguntou se
eu sabia que era uma coisa errada? Perguntei a razão de ser algo
errado e ela começou a citar a bíblia. Disse que pessoas assim
vão para o inferno e que enquanto ela vivesse ela iria orar para
que eu saísse dessa vida. [...]. Não falamos mais disso, ela não
comentou nada com meu pai e penso que ela preferiu acreditar
que isso era só uma fase. Mas me senti mais leve sabe? Pensei,
bom, um já foi. Não estou escondendo nada. Mas me veio a
dúvida se ela poderia ter pensado que aquilo era só aquilo
mesmo, que eu mudei pelas suas orações. Mas eu estava de
consciência limpa, para ela eu disse! Não vou ter um
sentimento a mais para ter de dar conta. Passou um tempo. Eu
tive um relacionamento meio conturbado. Eu resolvi não levar
adiante por eu não ser assumido, pois os pais do meu ex-
namorado sabiam dele e sabiam que os meus pais não sabiam.
Fiquei mal de eu levar aquilo escondido. Não me sentia muito
bem com aquilo. Também não estava me sentindo bem com
meus pais, pois eu vivia com eles, então eles tinham esperança
de eu levar uma namorada, de ter filhos, essas coisas.

“Eu neguei algumas vezes mas ela insistia. Me perguntei a razão de negar. Como
ela já tinha lido a carta e como não havia motivo para negar acabei confirmando”. Dionny
me relatou algumas vezes sobre certa “angústia” que sentia ao esconder sua orientação
sexual dos pais. Para expressar o que sentia ele usou frases como: “não era justo com
eles”, “não é justo por causa das expectativas que eles têm”. Insisti com ela sobre essa
questão.

69
(fragmento 7)

Thiago Eles comentavam isso contigo? Sobre essas expectativas?

Dionny Sim! Falava. Sempre. Eu comentava qualquer coisa, perguntava


se ela achava mesmo que eu teria filhos um dia. Bom, mas me
arrependi de ter terminado e resolvi falar com o Felipe, meu ex-
namorado. Ele, no entanto, disse que não daríamos certo
mesmo e, um dos pontos nos quais ele tocou foi esse. De que
não daríamos certo por eu não ser assumido. Eu fiquei com isso
na cabeça. Juntei a fome com a vontade de comer. Pensei, bom,
realmente ele está certo. As coisas seriam mais fáceis se eu não
me fechasse tanto e me abrisse com minha família. Além disso,
seria justo com eles pois já estou com 20 anos, quase 21, e não
é justo que eles fiquem com essas expectativas de que eu leve
uma menina para casa. Qual seria a idade certa para contar? 30
anos?! Eu sabia que não seria algo fácil, que eles não me
receberiam de braços abertos, mas não pensei que as coisas
ficariam tão ruins.

Além disso, como aparece no fragmento 7, seu incômodo também estava atrelado
à sua vida amorosa. Mas não apenas. Após nosso encontro na Parada LGBT de 2017 ele
comentou que sua ida ao evento o fez refletir ainda mais sobre contar ou não para seus
pais. Não fica totalmente claro para mim se esse sentimento de angústia e de necessidade
de revelação está implicado mais em suas experiências ou ancorado na ideia de
‘sinceridade’ que ele aciona ao falar sobre seus pais: “tenho de ser sincero”.

O momento de revelação para sua mãe, embora tenha gerado um pequeno


conflito, não acarretou maiores “consequências”, como ele mesmo diz. Porém, a
revelação ao pai, que ocorreu cerca de 4 meses depois, tomou configurações diferentes.
Como ele afirma, “sabia que não seria um mar de rosas, mas não pensei que seria tão
ruim”.

(fragmento 8)

Dionny Eu aproveitei uma situação. Meu pai é mecânico, trabalha em


uma mecânica no meu bairro, nas horas vagas, sábado e
domingo, ele mexe com carros lá na garagem de casa mesmo.
Então ele começou a fazer um serviço lá embaixo e me chamou
para ajudá-lo. Nunca gostei mas fui. Eu aproveitei que

70
estávamos apenas nós dois, pois nunca fizemos nada juntos, de
sair juntos como pai e filho, nunca. Saio só com amigos e
quando muito com tios. Disse que depois que ele terminasse o
trabalho eu precisava falar com ele. Ele parou e disse que eu
poderia falar. Eu olhei para ele e disse: ‘eu sou gay’. Ele deu um
passo para trás, sabe quando você pega alguém no susto? Ele se
assustou. Me perguntou se eu estava brincando e disse que não.
Ele perguntou de novo e novamente disse que não. Os olhos
deles encheram de lágrimas e disse que não acreditava que o
único filho dele estava fazendo aquilo com ele, e começou a
chorar. Bom, eu fui homem o suficiente para falar aquilo para
ele então eu posso tomar a atitude e abraça-lo nesse momento.
E fui em direção a ele para dar o abraço. Mas ele quis que eu
me afastasse, disse para eu não chegar perto. Eu respeitei. Até
porque ele é uma pessoa nervosa. Ele me perguntou como sabia
que eu era gay e disse que era porque eu tinha atração e que já
tinha ficado com homens. Disse a ele que não precisava chorar
pois isso não era uma doença. Ele discordou de mim, me
questionou: ‘como não?!’. E me mandou subir, ele disse que
terminava o trabalho sozinho. Foi o que fiz. Subi e deixei ele na
garagem.

Constato que durante a entrevista Dionny falou o tempo de todo de maneira


bastante calma, sem realizar grandes gestos com o corpo ou expressar em demasia algum
ou outro sentimento em sua face. Ele falou o tempo todo de maneira bastante plácida.
Me pergunto se essas características, em geral vinculadas à uma ideia de que não se sente
nada acerca aquilo sobre o que se fala, não era, na verdade, uma forma de ‘sentir’ e
comunicar. O único momento onde alterou esse padrão foi quando falou sobre sua
primeira expulsão de casa. Ele abriu alguns sorrisos durante o relato dessa passagem,
quais li como sendo de extremo nervosismo – especialmente por me lembrar de seu
desespero quando me chamou na rede social no dia em que isso aconteceu. Ele mesmo
escreveu ao me chamar: “Thiago, estou desesperado!”.

(fragmento 9)

Dionny Eles levantaram questões religiosas, disseram que ia ter


impacto na família porque as pessoas iam falar de sim. Eles me
perguntaram a razão de eu não ter contado antes, uma vez que
se tivesse feito poderia ser reversível. Que eles poderiam ter
orado quando os desejos começaram. Eu olhei para eles e
pensei: ‘eles acham que tenho inúmeros demônios no corpo’,

71
mas não disse nada. Só falei para eles continuarem. Meu pai
achou que fui sarcástico e veio me dar um soco, eu ergui o braço
para me proteger, minha mãe entrou na frente e abraçou ele,
disse para ele não fazer aquilo. Os dois voltaram a chorar e eu
sai, fui para rua. Mas pouco antes eles me disseram: ‘você trate
logo de arrumar um lugar para você ficar! Você não tem muitos
amigos? Não sai bastante com eles? Então, quem sabe, um deles
também não te oferece um lugar para você ficar?’. Perguntei se
eles estavam me mandando embora de casa. Meu pai
respondeu que ela para eu dar um rumo na minha vida o mais
rápido possível. Eles ficaram sem falar comigo por uma semana.
Um dia, do nada, minha mãe puxou conversa comigo, como se
nada tivesse acontecido. Meu pai chegou do trabalho e falou
comigo também, fez questão de puxar conversas algumas
vezes. Tudo foi voltando ao normal. Eu sempre respondi o
básico, estava com muita mágoa.

O interessante no relato de Dionny, é que a ‘expulsão’ de casa não se concretizou.


Nos dias que se seguiram, como ele lembra no fragmento 9, tudo foi “voltando ao normal
(...). Passaram meses e tudo estava como se nada tivesse ocorrido”. Nenhum deles voltou
a tocar no assunto de sua orientação ou sobre qualquer questão homossexual
diretamente na rotina da casa, exceto quando algum tema vinculado à temática LGBT
aparecia na televisão. De acordo com Dionny, nesses momentos, o pai questiona aquilo
que ele está assistindo dizendo: “nossa, olha o que você está vendo! Que coisa feia!”.

Essa “normalidade”, contudo, é frequentemente perturbada. Diferente da ideia


sobre a qual decorrem Sedgwick (2007) e Butler (2003, b) acerca da “presunção da
heterossexualidade”, aqui, seu pai a todo instante presume a homossexualidade do filho,
ou sua prática homossexual. Dois eventos corroboram para com essa minha análise:
quando Dionny ganhou de uma amiga um celular usado e quando recebeu algumas
blusas de frio de uma colega de estágio.73 No primeiro caso, como seu celular havia
quebrado e ele estava usando um antigo da mãe que não era smartphone, ficando sem
acesso à redes sociais como WhatsApp, uma amiga oferece a ele um aparelho antigo dela
que, embora estivesse com a tela quebrada e a bateria viciada, permitiria que ele usasse
o aplicativo de mensagem instantânea. O pai, no entanto, ao ver o aparelho, questiona

73
As únicas fontes de renda de Dionny são seus pais e sua avó. O estágio que realizou é obrigatório para
seu curso e não remunerado.

72
quem foi que deu aquilo para ele. Dionny diz a verdade, mas o pai parece não acreditar
e o manda “ficar esperto”.

Na semana seguinte ocorre a situação das blusas. Dionny comenta que só estava
com duas blusas de frio e que o tempo iria esfriar nas próximas semanas. “Acho que
minha colega ficou com dó de mim e falou com outra técnica cujo filho tinha crescido e
que tinha algumas roupas para dar. Dentre elas três blusas de frio. A técnica veio falar
comigo e pediu que eu não a levasse a mal (...). Aceitei o presente na mesma hora”. Com
isso, ao chegar em casa usando umas das blusas, ocorre um novo questionamento por
parte do pai. A cena continua:

(fragmento 10)
Dionny Meu pai me perguntou de novo sobre quem tinha me dado as
blusas. Disse novamente. Ele disse que eu estava mentindo, que
eu estava sendo falso. Tudo o que eu estava fazendo para ele
envolvia homens. Se eu saia para algum lugar era com homem,
se eu fazia alguma coisa era por causa de homem, se eu ganho
algo é de homem. Ás vezes eles [a mãe e o pai] acham que não
estou indo para faculdade, que eu estou mentindo. Eles dizem
que sabem que não estou indo para aula. Eles dizem que uma
hora vão me pegar, que vão descobrir. (...) Nesse dia, então,
após uma nova briga, ele me diz novamente: ‘dá um jeito de
traçar seu rumo logo!’.

Ainda que não enfrente o pai diretamente, usando falas como: “as coisas estão
indo bem, apesar dos pesares” e, mais recentemente, de que “tudo anda
surpreendentemente bom”74, Dionny se queixa dos acontecimentos, especialmente das
expulsões de casa e do modo como os pais o tratam – eles consideram que “há demónios”
dentro dele. Essas queixas, mesmo não sendo diretas como no caso de Cristina,
comunicam algo e, ainda que ditas para mim e não para a mãe e o pai, considero que se
tratam também de uma forma de questionar o ‘lugar’ qual ele ocupa. Diferente de
concordar c0m os pais sobre suas concepções de “pecado” e “demônios”, ele reitera que
sua orientação sexual não passa pelo crivo religioso e menos ainda pela ideia de “doença”.

74
Conversei novamente com Dionny no final de novembro de 2018.

73
Tendo como base uma leitura da obra de Moore (2000), um entendimento
possível é pensar a ‘expulsão’, ou melhor, expulsões de Dionny que nunca se
concretizaram, como uma espécie de fantasia de poder que o pai nutre sobre o filho. As
ameaças, talvez, apenas reforcem – ou tentem reforçar – uma ideia de controle que o pai
pensa ter sobre a agência do filho. A autora americana explora como, de maneiras
diferentes, as agências dos sujeitos estão implicadas e cercadas de fantasias de poder,
especialmente quando envolvem a identidade de gênero.

Nesse contexto, para Dionny, o que está posto em pauta é sua orientação sexual,
para o pai, contudo, de maneira acentuada – ao trazer em seus discursos algumas
inferências sobre vestimentas, modos de agir e os “homens” com quem o filho
possivelmente sai e de quem pode estar recebendo presentes – é o gênero que entra em
questão. As fantasias que este nutre sobre o filho, no entanto, não são correspondidas.
Ainda que, como mencionei, Dionny não o enfrente diretamente, entendo que seu
momento de revelação e o fato de assistir filmes com temática LGBT perto do pai, são
pequenos sinais de sua não conformidade e não aceitação em relação a essas “micro-
hierarquias” (CLARK, 1997) na relação.

3.2. “SÓ NÃO VÁ ME APARECER DE SAIA!”:


fantasias de poder e expectativas de gênero

“Mais tarde ele [o pai] me chamou no quarto e me disse: ‘você pode fazer
o que quiser da sua vida, só não quero, dado que está aqui dentro [de
casa], que mude seu jeito de agir, seu jeito de se vestir, que fique com
alguém aqui dentro ou no nosso bairro, ou que mude sua maneira de
ser!’. Como se eu fosse virar uma travesti! Acho que eles pensaram que
só porque disse que era gay eu iria virar travesti. Ele me disse: “só não vá
me aparecer usando shorts curto, falando fino ou de saia!”.

Dionny

Destaco que na construção qual realizei até aqui, o ‘gênero’ se configura como
questão central nas experiências familiares. Na história de vida de Leona ele é
evidenciado por ela ser travesti. No relato de Cristina, a partir das falas transfóbicas

74
expressas pelo pai. Com Dionny, em especial, a partir das expectativas que o pai tem
sobre ele, sobre sua sexualidade e, especialmente, a partir de uma leitura social do
‘gênero’. Partindo de um excerto do relato de Dionny, retomo essas considerações sobre
“fantasias de poder” e “expectativas de gênero”.

Após a discussão e o questionamento sobre quem presenteara Dionny com as


blusas de frio, o pai trancou-se no quarto. Pouco tempo depois chamou o filho para
conversar, momento onde se dá a fala exposta na epígrafe desta sessão. “Só não quero,
dado que está aqui dentro [de casa], que mude seu jeito de agir, seu jeito de se vestir,
que fique com alguém aqui dentro ou no nosso bairro, ou que mude sua maneira de ser!’.
Nessa passagem ele reforça uma espécie de fantasia de poder mais ou menos existente.
Como o filho mora debaixo de seu “teto” e depende financeiramente dele, ocorre uma
ênfase quanto a isso ao exigir as coisas que exige, todas circunscritas, em meu
entendimento, nas concepções de gênero.75

Dionny relatou a mim, em outras conversas, a forma como o pai reagia quando
estava assistindo televisão e via alguma cena de novela ou filme que insinuasse uma
possível relação homossexual. Ou fazia algum comentário depreciando a cena, a novela
e/ou o filme; ou então simplesmente mudava de canal. As reações, no entanto, se dão
em outro nível caso a cena envolva uma pessoa travesti, transexual, transgênero ou
qualquer outra identidade dissidente, como “gays muito afeminados”. Nesse momento
o pai chega a sair da sala, ou fica bravo com a “feiura” que está sendo mostrada no canal.

Chamo a atenção para dois apontamentos acerca das outras histórias de vida que
abarquei nesse estudo. Cristina relata como o pai faz comentários transfóbicos quando
assiste algum programa televisivo onde uma personalidade travesti ou transexual se
apresente. Leona expõe suas considerações sobre a não preparação da família em ter
entre seus membros uma travesti ou pessoa transexual. Esta assinala que hoje em dia,
socialmente, é mais concebível um gay e uma lésbica – afinal, é um homem que gosta de
homem e uma mulher que gosta de mulher – do que pessoas trans, que não cabem nas
“caixinhas”. Estas fogem totalmente das expectativas de gênero nas leituras sociais.

75
O fato de depender financeiramente do pai e da mãe é um apontamento que surge em vários momentos
da entrevista com meu interlocutor.

75
A “presunção da heterossexualidade” já citada, implica diretamente não apenas
no comportamento sexual dos sujeitos, mas também na ‘performance’ que eles realizam
em relação ao gênero nos quais foram conformados em seu nascimento e sob os quais
foram criados (BUTLER, 2003, b). Entendo que a situação agravada de conflito presente
nas falas dos interlocutores – especialmente nas de Leona e Dionny – se dão, justamente,
por causa dessas expectativas de gênero frustradas e, no caso deste último, temidas. A
visibilidade do gênero, diferente do ocultamento possível em relação à sexualidade,
reforça ainda mais esses embates.76

Retomando as concepções batsonianas (BATESON, 2008) propostas por Duarte


(2009), podemos entender que os processos sismogênicos aqui apresentados,
configuram-se como suplementares. Integrantes da família e sujeitos em questão
diferenciam-se a partir de posições e ações diversificadas. Se no contexto macropolítico
os embates entre esquerda e direita promovem uma diferenciação a partir das mesmas
ações, aqui, na relação entre pais, mães, filhas e filhos, eles se diferenciam a partir de
ações distintas: os primeiros buscando reiterar suas expectativas, os segundos,
contestando elas e os ‘lugares’ nos quais foram colocados.77

Nesse sentido, as ‘fantasias de poder’ estão novamente presentes. Poderia ler a


expulsão de Leona aos 12 anos de casa não apenas como resultado dos conflitos diretos
que se sucederam desde sua tenra idade, mas também pelo fato das ‘fantasias’ nutridas
por seus pais – e especialmente por sua mãe – não estarem sendo correspondidas. Nesse
conjunto micropolítico, expectativas de gênero e fantasias de poder estão diretamente
implicados. Em tempos de movimento HsH78 e de sexualidades mais libertas, a

76
Assinalo que o gênero, assim como a sexualidade, também pode ser ocultado, embora isso seja menos
frequente. Vide o caso de pessoas que não se expressam da mesma forma na frente da família e entre
amigos, ou casos de pessoas LGBT que têm de manter total anonimato quanto a sua identidade.
77
Uma exceção é o caso de Leona. Curiosamente, se lermos sua história de vida sob a óptica da
cismogênese, podemos identificá-la como um processo de diferenciação simétrico. Ao nível que a família
não a aceita por ser trans, ela também não aceita as reiterações dos laços sanguíneos presentes nas falas
da irmã.
78
Homens que transam com homens, mas que se consideram heterossexuais. Os também chamado g0ys,
com certa variação, sustentam seus discursos sob a fala de que não se envolvem afetivamente com o
mesmo sexo – o afeto é direcionado exclusivamente ao sexo oposto – apenas transam – sem penetração
anal.

76
visibilidade do gênero é que se encontra como problemática de maior magnitude. Tal
apontamento pode ser lido também no cenário macropolítico.

O já mencionado “Escola sem Partido” emerge justamente a partir das acusações


de “ideologia de gênero”. Professores, feministas e a população LGBT estão, nessa
perspectiva, alinhados e disseminando entre a comunidade de estudantes que “menina
pode ser menino, que menino pode ser menina e que eles podem ser o que quiserem
ser”. A acusação se respalda não apenas sob o viés religioso, mas também “científico”, de
que isso seria contra a “natureza humana” e causaria, retomando o pânico moral do qual
nos fala Miskolci e Campana (2017), a destruição da família e da própria humanidade.
Questões que perpassam alguns dos relatos sobre os quais decorri. Penso nestes como
exemplos das relações que se apresentam na vida vivida e nas quais, as emoções,
atualizam no particular aquilo que ocorre no plano social. São possíveis “alegorias” que
nos revelam algumas das facetas – provavelmente – presentes também na vida vivida de
outras pessoas LGBT.

As trajetórias que apresentei mostram distintas dinâmicas, processos, conflitos e


negociações vivenciadas na esfera das relações familiares, mas que também estão
atreladas a um contexto maior. A frase “na minha casa, não” aparece, sob certa
perspectiva, em ambos os campos – macro e micro. No cenário micropolítico envolve
um núcleo familiar específico e os “próprios filhos” e no campo macropolítico toma
configurações diferentes. Trata-se de não aceitar o seu próprio filho caso ele assuma uma
identidade LGBT, mas também, de não aceitar que isso ocorra na casa de outras pessoas.

Finalmente, ressalto que essas histórias de vida devem ser compreendidas como
peças de um mosaico mais abrangente de conflitos políticos, não como efeito ou mero
reflexo desse cenário, mas enquanto experiências locais que estão situadas contra o
plano de fundo desses processos mais amplos.

77
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em meu empreendimento etnográfico multissituado de ‘seguir o conflito’ nesse


cenário de controvérsias que tematizam a família, passei por alguns campos
abrangentes: parentesco e família; política; gênero e sexualidade. Além, é claro, de ter
explorado conflitos que se localizam no campo macropolítico e em contextos
microlocalizados.

No tocante à família, penso ter atingido meu objetivo de evidenciar e,


minimamente, compreender como ela se encontra em disputa nos dias atuais. Trata-se
de uma categoria que é pauta da ação política, especialmente se considerarmos os dois
PL citados, “Escola sem Partido” e “Estatuto da Família”, mas que também comparece
nas experiências vivenciadas pelos meus interlocutores em suas “vidas vividas”. Se em
um contexto a família está em disputa, sob o risco de uma “higienização”, em outro, os
discursos emocionais se fazem presentes e evidenciam as relações de poder que se
encontram no núcleo das relações dos sujeitos. Longe de esgotar o tema, penso que tal
cenário – de políticas públicas voltadas à família, das concepções de família que são
legitimadas e das “construções” das relações familiares – é, provavelmente, um dos mais
profícuos campos da antropologia social no panorama contemporâneo.

Esse cenário abarca, ainda, o âmbito político. Busquei evidenciar como o percurso
histórico desse campo foi se reconfigurando até achegar na percepção dinâmica do
Estado na atualidade. Penso em possíveis perguntas que podem ser levantadas a partir
do breve estado da arte que realizei nessa monografia sob a perspectiva política da
família: como o Estado comparece nessas controvérsias? O futuro dessa discussão estará
preso à legitimação do Estado, ou a sociedade está construindo outros mecanismos que
não atravessem esse campo? Como se dão essas relações, entre movimentos sociais, alas
conservadoras e o próprio Estado? Ou então, dito de outra maneira, onde estão
localizadas as ‘margens’ do Estado?

Em relação ao gênero, busquei explorar como ele comparece de forma mais


marcada no cenário contemporâneo, estando em evidência e ganhando maior
protagonismo nos conflitos – macropolíticos e micropolíticos. Trata-se, também, de um

78
campo renovado no âmbito da antropologia do gênero e da sexualidade que hoje,
diferente do que ocorreu há algumas décadas, não trata puramente dos ‘excluídos’ ou
‘subalternos’, mas evidenciam suas vozes e dão destaque à suas lutas.

Por último, gostaria de ressaltar o impacto que essa pesquisa e as histórias de vida
aqui contatas tiveram sobre mim. Cada qual me marcou de maneira única e, ainda que
eu atue em certa medida, no movimento organizado e esteja a par das situações
vivenciadas por outros LGBT, não deixo de me surpreender com as falas de meus
interlocutores. Ademais, imagino não ser necessário afirmar o quanto minha
aproximação para com a senhora travesti educada e suas meninas me impactou – os
excertos desse percurso etnográfico encontrados ao longo do trabalho, provavelmente
me denunciam. Ressalto que nenhuma tragédia é comparável, mas pensando em meu
‘lugar de fala’, enquanto gay que é aceito em seu núcleo familiar de origem, tendo a
concordar com o que me disse Leona: “a letra T é a mais sofrida da sigla LGBT”. Constato,
com efeito, que cada uma dessas histórias é singular. E confesso, fui ‘afetado’ por todas.

79
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87
ANEXOS

A. Carta aberta dos alunos do Colégio Santo Agostinho.79

Carta aberta dos alunos Agostinianos em resposta aos senhores pais redatores e
signatários da carta crítica ao ensino do Colégio Santo Agostinho

Não somos capazes de mensurar nosso espanto ao ler, há algum tempo, a carta
aberta extrajudicial – posteriormente transformada em um “abaixo assinado” – redigida
com o objetivo de criticar os ensinamentos do Colégio Santo Agostinho.

Há alguns dias, tomamos conhecimento desse documento, que apresentava


críticas ao ensino de assuntos relativos à sexualidade, à ideologia de gênero e à igualdade
de gênero. Pouco depois, buscamos tomar conhecimento dos textos aludidos na carta,
de forma que averiguamos o livro de Ciências do 6º ano e o livro de contos “As mentiras
que os homens contam”, de Luís Fernando Veríssimo. Ao contrário do que nos parecia
ao lermos a carta, o conteúdo dos textos citados (principalmente com relação ao livro
didático) nada apresentavam além daquilo inclusive defendido pela Unesco: o debate
sobre educação de gênero e sexualidade é, evidentemente, essencial para uma educação
mais inclusiva e de qualidade.

No que tange ao conto “O Dia da Amante”, de Luís Fernando Veríssimo, fez-se


parcialmente compreensível o sentimento de indignação apresentado por pais de alunos
da Instituição, já que esse texto apresenta uma abordagem muito complexa e densa para
pré-adolescentes. É importante, por outro lado, ressaltar que o conto em questão não
havia sido selecionado para leitura pela professora que requisitou a aquisição do livro.
Diante dessa perspectiva, surge a seguinte questão: até que ponto a escolha de um livro
de contos, onde os textos que deveriam ser lidos foram selecionados, realmente torna-

79
Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2017/07/13/interna_gerais,883484/alunos-
do-santo-agostinho-defendem-ensino-de-diversidade-sexual.shtml>. Acesso em: 28 nov. 2018.

88
se uma afronta à autonomia parental na escolha dos ensinamentos fornecidos a seus
filhos?

Em relação ao livro de Ciências, as críticas dos senhores pais são pueris e não
merecem qualquer crédito. Nesse livro didático, a orientação sexual, a sexualidade, a
identidade de gênero e o sexo biológico são abordados de maneira inteiramente coerente
com a mentalidade de um aluno do Ensino Fundamental II, a partir de textos que
exaltam a tolerância e a diversidade. O ensino ao respeito às diferenças é um dos
principais pilares que regem a educação tanto Agostiniana quanto de inúmeros colégios
que seguem a doutrina católica, tendo em vista a importância da família e da escola para
a formação moral do aluno.

Frente aos questionamentos feitos pelos pais, portanto, nós, alunos do Colégio
Santo Agostinho de Belo Horizonte concluímos que a discussão relacionada à
sexualidade e à identidade de gênero é fundamental na desconstrução dos incontáveis
tabus presentes na vida adolescente e, principalmente, na aceitação tanto própria
quanto externa quando se tratando da homossexualidade, bissexualidade e
transexualidade. A tentativa de impedimento das exposições acerca da realidade social
baseada na discordância quanto à abordagem aproxima-se até mesmo da censura.

Além disso, fica nosso apoio e agradecimento a todos aqueles professores do


Colégio Santo Agostinho que, preocupados com a formação de nosso caráter além de
nosso intelecto, nos possibilitou cruciais reflexões responsáveis por nosso crescimento e
amadurecimento como seres humanos altruístas.

Aos pais, fica a reflexão: com o que os senhores estão realmente preocupados?
Com a vontade de manter seus filhos isolados de tudo aquilo que diverge do que lhes foi
ensinado ou com o fornecimento de ensinamentos extremamente relacionados à
convivência em comunidade e respeito ao diferente?

Com o tempo, vocês descobrirão, como nós, que o Colégio Santo Agostinho e seu
corpo docente sempre estarão disponíveis para ajudar todos os que a eles recorrerem em
busca de evolução pessoal.

89
Alunos da Terceira Série do Ensino Médio do Colégio Santo Agostinho – Unidade de
Belo Horizonte.

90
B. Código de Ética do Antropólogo e da Antropóloga da Associação Brasileira de
Antropologia – ABA80.

Constituem direitos dos antropólogos e das antropólogas, enquanto


pesquisadores e pesquisadoras:

1. Direito ao pleno exercício da pesquisa, livre de qualquer tipo de censura no que diga
respeito ao tema, à metodologia e ao objeto da investigação.
2. Direito de acesso às populações e às fontes com as quais o/a pesquisador/a precisa
trabalhar.
3. Direito de preservar informações confidenciais.
4. Direito de autoria do trabalho antropológico, mesmo quando o trabalho constitua
encomenda de organismos públicos ou privados.
5. O direito de autoria implica o direito de publicação e divulgação do resultado de seu
trabalho.
6. Direito de autoria e proteção contra o plágio.
7. Os direitos dos antropólogos devem estar subordinados aos direitos das populações
que são objeto de pesquisa e têm como contrapartida as responsabilidades inerentes ao
exercício da atividade científica.

Constituem direitos das populações que são objeto de pesquisa a serem


respeitados pelos antropólogos e antropólogas:

1. Direito de ser informadas sobre a natureza da pesquisa.


2. Direito de recusar-se a participar de uma pesquisa.
3. Direito de preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais.
4. Garantia de que a colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o
intuito de prejudicar o grupo investigado.
5. Direito de acesso aos resultados da investigação.
6. Direito de autoria e coautoria das populações sobre sua própria produção cultural.
7. Direito de ter seus códigos culturais respeitados e serem informadas, através de
várias formas sobre o significado do consentimento informado em pesquisas realizadas
no campo da saúde.

Constituem responsabilidades dos antropólogos e das antropólogas:

1. Oferecer informações objetivas sobre suas qualificações profissionais e a de seus


colegas sempre que for necessário para o trabalho a ser executado.
2. Na elaboração do trabalho, não omitir informações relevantes, a não ser nos casos
previstos anteriormente.
3. Realizar o trabalho dentro dos cânones de objetividade e rigor inerentes à prática
científica.

80
Criado na gestão 1986/1988 e alterado na gestão 2011/2012. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/?code=3.1>. Acesso em: 11 jun. 2017.

91

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