CAMARGO BARRETO Thiago. Na Minha Casa Não PDF MONOGRAFIA
CAMARGO BARRETO Thiago. Na Minha Casa Não PDF MONOGRAFIA
CAMARGO BARRETO Thiago. Na Minha Casa Não PDF MONOGRAFIA
Belo Horizonte
Dezembro de 2018
1
Thiago Camargo Barreto
Belo Horizonte
Dezembro de 2018
2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
3
“NA MINHA CASA, NÃO”:
(MICRO)POLÍTICA, GÊNERO E FAMÍLIA ENTRE PESSOAS LGBT EM
BELO HORIZONTE
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Leandro de Oliveira (Orientador)
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG
_______________________________________________
Profa. Dra. Érica Renata de Souza
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG
_______________________________________________
Profa. Dra. Sabrina Deise Finamori
Departamento de Antropologia e Arqueologia / Fafich / UFMG
4
À MAMÃE,
Maria Aparecida,
5
AGRADECIMENTOS
À Érica Renata de Souza, amiga quem prontamente me ajudou nas formulações iniciais
desta pesquisa. Obrigado por suas aulas e pelas conversas em sala, horários agendados
e de corredores – sempre producentes.
À Sabrina Deise Finamori, cujas aulas são exemplos da maestria de uma pesquisadora
que é também docente engajada.
Às professoras Karenina Vieira Andrade, Ana Beatriz Vianna Mendes e Mariana Petry
Cabral; e aos professores Andrei Isnardis Horta, Carlos Magno Guimarães e Emmanuel
Almada: suas aulas se tornaram inspirações.
A Rogério Diniz Junqueira pelas conversas que – mesmo à distância – contribuíram para
abordagem e análise dos projetos mencionados nesse trabalho, em especial, àqueles que
tocam ao “Escola sem Partido”.
À uma doce amiga de momentos bons e de desabafo, Graciela Sperduti Rezende, quem
me deu grande apoio no início de minha jornada dentro da ciência antropológica.
À Jucinéia Oliveira, ou simplesmente Ju, que em outras épocas soube exigir de mim
aquilo mesmo que ela sabia que eu era capaz. Devo a ela muitos dos ensinamentos que
me fizeram crescer fora e dentro dessa área do conhecimento.
6
Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump) e Programa Minas Mundi pela bolsa
de intercâmbio; Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) pela bolsa de monitoria.
À Universidade do Porto por ter me acolhido como estudante. Agradeço ainda a meu
orientador nesse período, Francisco José de Jesus Topa, pelo acolhimento estudantil em
um país distante, pelas reflexões possibilitadas e amizade que daí nasceu. E às
professoras Natália Maria Azevedo Casqueira, Cristina Clara Ribeiro Parente e Maria
Isabel Correia Dias, cujas aulas e diálogos possibilitaram novas perguntas.
À uma pessoa especial, Maria Aparecida de Camargo Barreto. Sem seu apoio integral e
suas múltiplas ajudas, impossíveis de descrever aqui – faltariam folhas e palavras – eu
não poderia ter o privilégio de estudar e de chegar até aqui – e de ir para a próxima fase
desse percurso. Obrigado por todos os incentivos, por estar sempre a meu lado e,
principalmente, por me amar como sou.
7
RESUMO
8
ABSTRACT
In the recent controversies over "gender ideology", the ‘family’ has become a contested
category at the macropolitical and micropolitical levels. Confrontations at the first level
permeate the legislative bodies, in the form of proposals such as the "School without
Party" project and the "Family Statute". In the daily life of LGBT people, conflicts and
negotiations of another order mark their interaction with their original families, often
associated with emotional discourses. Dialoging with the debates in the field of the
Anthropology of Emotions, I suggest that the discourses of emotions on the family
update, at a micropolitical level, the political processes that are under way in a
macrostructural plane. Adopting the methodological strategy of “following the conflict”,
I sought to draw attention to how the 'gender' is now at the heart of these processes,
directly related to the 'fantasies of power' and 'gender expectations' in the conflicts in
which the family appears.
9
LISTA DE FIGURAS
10
LISTA DE SIGLAS
11
CONVENÇÕES
• Itálico: para nomes de obras autorais, palavras estrangeiras e termos oriundos dos
contextos dos interlocutores;
• Aspas simples: para termos acadêmicos e categorias de análise;
• Aspas duplas: para citações literais;
• Parênteses: para siglas e referências;
• Colchetes: para intervenções do autor dentro de citações;
• Travessão: para orações intercaladas.
12
“(...) Não há pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os seres é
que são os pontos de vista.”
Judith Butler
(2003, b: 161)
Leona
(travesti que foi expulsa de casa aos 12 anos e uma das
interlocutoras dessa pesquisa)
1
Destaques do autor.
13
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 16
3.1.2. “Para ele ainda é um pouco complicado. (...) [Mas] estou satisfeita”:
revelação, tempo e transformação na trajetória de uma lésbica ......................... 62
14
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 80
ANEXOS .............................................................................................................................. 88
15
INTRODUÇÃO
Leona2
No casso dessa instituição, 128 mães e/ou pais questionaram a escola sobre a
pertinência de se abordar temáticas que envolvem gênero e sexualidade com turmas do
6º ao 9º ano. Segundo relatos, em uma das aulas, houve exploração de um caso na Suécia
onde jovens meninas e meninos teriam sido criadas sem diferenciação de gênero.
Acusando o colégio de doutrinação, sob falas de que o conteúdo não seria adequado à
faixa etária e que seria melhor trabalhar tais questões apenas no Ensino Médio, os
reclamantes realizaram abaixo assinado de forma a evitar que a unidade continuasse
com essas abordagens.
2
Leona, uma travesti atuante no movimento LGBT de Belo Horizonte, foi uma de minhas interlocutoras.
Sua história de vida é abordada no capítulo 3 dessa monografia. Esta fala ocorreu assim que cheguei a sua
residência para entrevistá-la, quando decorria sobre o projeto de pesquisa no qual eu era bolsista. Na
análise e na escrita dessa monografia são omitidos os nomes das participantes e demais informações que
possam identificá-las diretamente, de modo a proteger sua privacidade.
3
Maiores informações sobre o início dessa controvérsia podem ser encontradas em Mansur (2018).
16
para com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Estudantes da escola
escreveram uma nota pública repudiando a situação e negando que tenham sido
doutrinados por supostas “ideologias de gênero”. Eles reafirmaram que o conteúdo
abordado explorava noções do corpo e informações sobre reprodução e infecções
sexualmente transmissíveis (IST), além de promover a igualdade e o respeito à
diversidade sexual e de gênero.4 No escrito, eles afirmaram estar abertos para o dialogar
com as mães e os pais que expuseram sua discordância, evidenciando que podem expor
aos interessados, suas experiências e vivências durante as aulas e no período em que
ficam no colégio.5
***
4
Além da carta ser aberta para assinaturas de apoio, ex-estudantes da instituição também se manifestaram
pelas redes sociais e deram apoio ao colégio.
5
Nascimento (2017) reporta informações sobre a nota dos estudantes. O documento ainda está disponível
no anexo A desse estudo.
6
Lovisi (2018).
7
Durães (2018).
17
‘família’ está diretamente posta em pauta, uma vez que as justificativas destas acusações
se respaldam na ideia de que a abordagem de temas que englobam o ‘gênero’ e a
‘sexualidade’ seriam de responsabilidade do núcleo familiar do estudante, não devendo
ser contemplada nos programas das instituições de ensino. É com a intenção de explorar
as repercussões desse cenário que esta monografia versa sobre tais contextos de disputas
em torno da família no cenário público e na esfera micropolítica.
8
O sentido aqui aplicado é aquele proposto por Wirth (1941: 415) de ‘minoria’ como um grupo composto
por pessoas que, “por causa física ou social e cultural recebe tratamento diferenciado (...) [sendo] excluídos
de certas oportunidades, ou excluídos da participação plena em nossa vida nacional” – minha tradução.
Da versão em inglês: “(...) those who because of physical or social and cultural differences receive
differential treatment (…) (and) are debarred from certain opportunities or are excluded from full
participation in our national life”. Ou seja, são grupos com representação minoritária e com acesso restrito
ao poder.
9
Utilizo aqui o termo LGBT tendo em mente as modificações recentes no âmbito brasileiro. O abandono
do termo GLS: gays, lésbicas e simpatizantes; a passagem pela sigla GLBT: gays, lésbicas, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros; e finalmente o uso da sigla atual. Ressalto, no entanto, que esta não
esgota o campo plural de identidades associadas a essas letras, como queers, assexuais, intersexuais,
pansexuais, não-binários, fluídos, abolicionistas, dentre outras e outros.
18
tópicos explorados estão considerações étnicas, questões etnográficas e apontamentos
teóricos que me ajudaram a pensar os contextos aqui abarcados, como a noção de
“etnografia multissituada”, a concepção do “Estado em ação”, as discussões queer e a
possibilidade de considerar os discursos emocionais e sobre a emoção a partir da
Antropologia das Emoções.
10
Bolsa vinculada ao projeto Construção da pessoa, família e sexualidades: um estudo comparativo sobre
convenções culturais, individuação e mudança, no qual fui colaborador de 2017 a 2018, sob orientação do
professor Leandro de Oliveira, do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal
de Minas Gerais. Os dados etnográficos apresentados foram parcialmente coletados nesse período, sendo
aqui analisados com autorização do professor responsável. Destaco que meu contato para com os
interlocutores se deu de maneira prolongada para além do período de campo destinado à essa pesquisa.
Mesmo as informações acessadas durante minha atuação como bolsista ainda não se confundem com o
relatório final da iniciação científica, uma vez que a análise realizada neste é de outra ordem e o
documento entregue ao final da bolsa contou ainda com o material coletado pelos demais bolsistas e
voluntários do projeto em outros contextos etnográficos.
19
algumas lideranças do movimento e, durante os eventos, empreendi interlocução com
ativistas. Acessei ainda colaboradores através de contatos estabelecidos na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Realizei
entrevistas em profundidade visando explorar as relações desses sujeitos com suas
famílias de origem.
Entendo que a reflexão esboçada nessa monografia pode ser pensada como uma
espécie de experimento etnográfico baseado em pesquisa multissituada. Inspirado pelo
procedimento de “seguir o conflito”, identificado por Marcus (1995) como uma das
alternativas possíveis de pesquisa no sistema mundial capitalista contemporâneo,
procurei nesse trabalho ‘seguir a família’: traçar embates globais e locais, macro e
micropolíticos nos quais a família comparece.
20
CAPÍTULO 1
Mariza Peirano
(2014: 377)
Essa senhora, travesti como faz questão de reiterar e a quem chamo aqui de
Leona, me acomodou no sofá, sentou-se em uma confortável cadeira de computador,
me apresentou brevemente a outras meninas11 que vivem em sua residência – momento
onde pediu a uma delas que levasse para a cozinha um bolo que eu levara para nosso
café da tarde – e me pediu que falasse um pouco mais sobre o que eu estudava antes de
11
A expressão menina é bastante comum entre travestis e transexuais, especialmente quando uma mais
velha se refere à outra mais nova. Uma exploração mais atenta sobre as experiências de travestis pode ser
encontrada, dentre outros, no trabalho de Oliveira (2017), que aborda temas como envelhecimento,
relações geracionais e as relações sociais no contexto da região metropolitana de Belo Horizonte.
21
iniciarmos nossa conversa – e entrevista.12 Ali estava posto o cotidiano, uma cena da
“ação vivida” da qual nos fala Peirano (2014: 386) e para qual devemos nos atentar
durante o registro do estudo. A escrita, ainda que constitua uma técnica limitada, pode
e deve abarcar detalhes no que diz respeito à maneira como as informações foram
acessadas. Nesse caso, contemplando o reflexo da história de vida que seria comigo
compartilhada, nas atitudes, na casa e no corpo dessa senhora educada.
Ora, o que busquei foi justamente “seguir” essas disputas em torno da família no cenário
político e das relações familiares no campo micropolítico. A pesquisa de campo, as
aproximações para com os interlocutores e as entrevistas em profundidade se deram
com o intuído de compreender, antropologicamente, os debates que tematizam a família
no contexto de pessoas LGBT, mas também de estranhar esses discursos. Ainda que não
tenha efetivamente participado junto daquilo de que me fala Leona, as informações
partilhadas me colocam diante desta outra possibilidade: considerar seu relato e sua
história de vida como possibilidade para compreensão de questões e discursos que se
apresentam nesse complexo cenário. Uma exploração que parte de sua narrativa sobre
12
As entrevistas foram preferencialmente registradas em áudio, mediante autorização das interlocutoras,
e posteriormente decupadas. Ao longo do trabalho de campo, na realização das entrevistas e na execução
da pesquisa como um todo, foram observados os preceitos estabelecidos pelo Código de Ética do
Antropólogo e da Antropóloga – elaborado pela Associação Brasileira de Antropologia (ASSOCIAÇÃO,
2012) – anexo B.
13
“(...) rastrear las diferentes partes o grupos em un conflicto define otra forma de crear un terreno
multilocal en la investigación etnográfica (...). En las esferas públicas y más complejas de las sociedades
contemporáneas, esta técnica es mucho más relevante como principio organizador para la etnografia
multilocal” – minha tradução.
22
as experiências que viveu mas que, talvez, outras pessoas também tenham vivido ou
estão vivendo.
Roy Wagner
(2010: 66)
14
Subtítulo inspirado na obra O antropólogo e sua magia, de Wagner Gonçalves da Silva (2006).
15
Me formei em Matemática antes de cursar Antropologia.
23
Foi um trabalho contínuo me desvincular de antigos vícios de linguagem e de um
sistema muito padronizado que poderia conferir à minha escrita. Não apenas lutei
contra a ideia de me colocar como figura relevante no texto, tendo de me vigiar com
relação a prática de me ocultar por presumir que isso daria uma maior credibilidade ao
estudo, como também me pareceu um pouco estranho assumir um posicionamento
diante da própria pesquisa, não atuando como agente neutro.16 Realizando uma ponte
para com minha área de atuação anterior e pensando até mesmo em possíveis críticas
para as chamadas ciências exatas, busquei (re)lembrar a todo instante da seguinte
constatação: “nenhum pesquisador de campo pode ser um observador totalmente
neutro, imparcial, independente e externo aos fenômenos observados”17. Lembrei-me,
ao contrário, de que “posicionar-se é, portanto, prática chave, (...) implica em
responsabilidade (...) [e] em consequência, a política e a ética são a base das lutas pela
contestação a respeito do que pode ter vigência como conhecimento racional”
(HARAWAY, 1995: 27).
16
É fundamental localizar e identificar o antropólogo na cena e no texto, uma vez que o contexto possui
influência sobre as colocações e ações dos atores envolvidos. Emerson, Fretz e Shaw (2013) também
salientam que, de fato, o pesquisador não é invisível e nem simplesmente decorativo em campo, embora
sua atuação não necessariamente transforme negativamente as interações e muito menos signifique um
problema.
17
(POLLNER; EMERSON, 1988 apud EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013: 358).
18
De acordo com a definição e exploração feita por Lévi-Strauss (2012).
24
posicionamento próprio? A conclusão a que cheguei, é que essa neutralidade absoluta –
e que por vezes é tão exaltada em alguns campos de pesquisa – é simplesmente
impossível. Como destacaram Emerson, Fretz e Shaw (2013), ao selecionar aquilo que se
quer pesquisar, essa ação já está impregnada de um posicionamento parcial – ponto
também explorado por Haraway (1995). As teorias que darão base ao estudo e mesmo os
recortes de campo, ou as falas selecionadas dos interlocutores, passam pela minha
seleção, ou seja, já não são mais desvinculadas de posicionamento. Disso, dois tópicos
me vieram a mente: contextualização e metodologia. O primeiro considerando não
apenas meu lugar no campo, mas os atores e suas falas, e o segundo não apenas como
alicerce para sustentação de meu estudo, mas também como forma de caracterizá-lo e
dar coerência à pesquisa.
25
entrave, ou seja, o referente ao meu posicionamento diante das questões abarcadas pelo
estudo, me surgiu um novo desconforto: como lidar com a pesquisa frente a uma
realidade que lhe é próxima?
De fato, a antiga ideia de que “uma das mais tradicionais premissas das ciências
sociais é a necessidade de uma distância mínima que garanta ao investigador condições
de objetividade em seu trabalho” (VELHO, 1978: 73) já foi superada, e como salienta o
próprio Velho (1978), essa proximidade para com o objeto de pesquisa de forma alguma
é um defeito ou ponto fraco da metodologia. Segundo ele “(...) existem aspectos de uma
cultura e de uma sociedade que não são explicitados, que não aparecem à superfície e
que exigem um esforço maior, mais detalhado e aprofundado de observação e empatia”
(VELHO, 1978: 37). Trata-se de apontamento sobre a imediação similar à “imersão”
discutida por Emerson, Fretz e Shaw (2013). Segundo estes:
19
Velho (1978) também discute o acesso dos interlocutores à pesquisa etnográfica, dando como exemplo
seu trabalho com relação a drogas em comunidades de classe média alta.
20
Trata-se, nesse contexto e considerando minha atuação, de uma proximidade relativa. Apoio e possuo
interesse direto em diversos tópicos da pauta LGBT, contudo, fica evidente certo ‘distanciamento’ ao
considerar, a exemplo, a realidade de travestis, transexuais, transgêneros e as histórias de vida de vários
de meus interlocutores.
26
quais tal modo de viver está sujeito. (EMERSON; FRETZ; SHAW, 2013:
356)
21
(DAMATTA, 1974 apud VELHO, 1978: 37).
22
Usando as expressões de Haraway (1995: 16), trata-se de uma objetividade “corporificada” e localizada.
23
É o Wagner (2010: 29) chama de “relatividade cultural”.
27
contextualizando-os e pontuando-os no tempo situacional. Pretendi partilhar as
diversas vozes que compunham o campo e abordar as perspectivas das situações que
presenciei. Trata-se, assim como coloca Strathern (1997: 47) ao refletir sobre o seu lugar
e posicionamento na pesquisa antropológica na Melanésia, de uma “instância” das
diversas possíveis e que sem dúvida alguma “jamais se equivale ao todo da realidade
percebida”. Ao contrário, é uma leitura realizada a partir da interseção – também
presente na reflexão stratheriana – de um pesquisador que é homossexual e, desde o
início da iniciação científica que me possibilitou entrar em campo, também um
interessado e atuante na causa LGBT.
24
Pertinente apontamento feito por meu orientador.
25
Título do artigo de Vance (1995).
28
da consanguinidade, de suas classificações e concepções. Em seguida, após os estudos
centrais de Malinowski (2018 [1922]), antropólogos como Radcliffe-Brown (1973) e Lévi-
Strauss (1976 [1949]), e àqueles pertencentes a perspectivas alternativas que surgem a
partir dos anos de 1960, como Schneider (2016) e Viveiros de Castro (1995),
empreenderam um esforço etnográfico a fim do melhor entendimento desse campo. No
cenário recente, outras questões aparecem e demandam renovada atenção, como as
novas tecnologias reprodutivas, a visibilidade de arranjos familiares alternativos e os
direitos das pessoas que aderem a identidades LGBT.
Como lembra Fonseca (2003) foram as discussões feministas dos anos de 1970 que
trouxeram o debate sobre família ao terreno de nosso próprio contexto e sociedade,
possibilitando um reavivamento da obra de Schneider (2016 [1968]). Após esse período,
ocorre uma relativa ausência de estudos que tematizem o tema no cenário
antropológico, o que viria a mudar apenas nos anos de 1990. Carsten (2014) destaca
como, neste período, a tecnologia, as concepções biológicas e o material de laboratório
realizaram uma série de discussões pautadas na “substância” do parentesco. Nesse caso
a antropologia deixa um pouco de lado as antigas explicações sobre sistemas e
formulações genealógicas de sociedades indígenas e distantes para (re)descobrir o foco
iniciado anteriormente do estudo da família no mundo contemporâneo urbano. Mais
recentemente, autoras como Strathern (1995) e Butler (2003, a) problematizaram,
respectivamente, as configurações familiares a partir das já mencionadas novas
tecnologias de reprodução e da perspectiva queer26 das concepções heteronormativas.
26
Em inglês esse termo significa ‘estranho’, sendo originalmente uma designação ofensiva a pessoas LGBT
que posteriormente, em algumas realidades, tomaram para si essa designação como identidade e
empoderamento. A teoria queer ou, de maneira mais abrangente, os estudos queer, surgem nos contextos
europeu e americano a partir das identidades sexuais subalternas – em geral, a partir da classe média e
branca – em uma reação à ordem política heterossexual vigente no mundo, espalhando-se para outras
localidades e, de alguma maneira, para outras classes sociais, raças e identidades. Algumas autoras centrais
nesse debate são Rubin (2017), Butler (2003, a), Foucault (2014, a, b, c), Preciado (2017), Sedgwick (2007),
dentre outras e outros. No contexto brasileiro, autoras como Bento (2017) – que abandona o conceito
inglês e cunha a palavra “transviado” – e Miskolci (2015) se dedicam ao tema.
29
no espaço doméstico e da vida cotidiana. Nesses discursos emergem concepções
divergentes sobre o que a família é ou deveria ser. Algumas dessas concepções são
defendidas por atores que se apresentam publicamente como “conservadores”. Outras,
que denomino aqui de maneira relativamente impressionista como “progressistas”,
emergem a partir de um discurso de defesa dos direitos das minorias sexuais.27 No
primeiro caso, as concepções são acionadas por defensores da “família tradicional
brasileira”, seja no âmbito da política ou na vida cotidiana. No segundo, trata-se de
discursos que visam a garantia dos direitos das novas famílias.
27
Certos políticos são tratados na mídia e, eventualmente, se auto-identificam como progressistas.
Convém sinalizar que os referidos discursos podem não ser facilmente redutíveis a modelos dualistas
desse tipo. Há integrantes da chamada ala conservadora que não apoiam o casamento LGBT, mas se
posicionam a favor de políticas de saúde voltadas à essa população. Há pessoas que aderem a identidades
LGBT e se colocam contra itens da pauta do movimento organizado. Devido às limitações inerentes a um
trabalho de monografia não explorarei esse tema a fundo, ainda que tenha entrado em contato com alguns
interlocutores que sustentam posicionamentos dessa ordem.
30
Nesse aspecto, o estudo de Oliveira (2013) é referencial. O autor evidencia em seu
trabalho as relações entre pessoas que aderem a identidades LGBT e suas famílias de
origem no contexto brasileiro da primeira década do século XXI, considerando em sua
análise a centralidade que assume o momento de revelação dessa identidade – questão
propícia ao abordar a história de vida de alguns de meus interlocutores. Tem-se que
família, gênero e também a sexualidade – além da (micro)política – configuram-se como
questões tangentes na construção dessa pesquisa.
Kuschnir (2007, b) assinala que o interesse por esse tema aparece nos estudos
antropológicos desde suas origens, uma vez que o estudo das sociedades implica
diretamente nas relações de poder. Dificilmente alguém negaria hoje o aspecto político
do ritual do kula entre os trobiandeses. Como pode ser visto na obra de Malinowski
28
A obra de Câmara (2002) evidencia essa inflexão. A autora explora o percurso histórico do grupo
denominado Triângulo Rosa, no Rio de Janeiro, em meados dos anos de 1980.
31
(2018), o ato de troca de presentes – colares, pulseiras e adornos outros – entre os grupos
da Papua Nova Guiné e seus regulamentos constituem não apenas os mecanismos de
interação entre esse povo, mas configuram-se fundamentalmente como um aspecto
intrínseco do poder – a economia política. Aspecto que, aliás, já estava presente nos
estudos antropológicos anteriores.
Esses autores e suas obras passam a focar não mais a estabilidade, mas os
processos de mudança dentro do corpo social. As experiências vivenciadas pelos nuer
em um contexto de colonização, para com grupos rivais e para com o poder do Estado
que agora se faz presente (EVANS-PRITCHARD, 1999); e as formulações sociais
29
“A estrutura social não se considera estática, mas como uma condição de equilíbrio que só persiste por
meio de uma renovação contínua (...)” (RADCLIFFE-BROWN, 1980: 22).
30
De fato, esse autor expressa que ao se estudar a organização política deve-se lidar com a manutenção
ou estabilidade da ordem social.
32
complexas dos kachin que percorrem campos diversos da divisão territorial e da posse
ao status de poder e da autoridade política (LEACH, 2014); são exemplos que evidenciam
a amplificação da concepção política nos estudos antropológicos posteriores –
amplificação essa que não ocorreu sem sofrer críticas. Segundo Vincent (1996), pode-se
considerar algumas fases da antropologia política: inicialmente tratou-se de estudos
evoluídos dos demais interesses. Em seguida, a partir dos estudos do funcional-
estruturalismo e do grupo de antropólogos influenciados por essa corrente, a disciplina
cria corpo e passa a se configurar como conhecimento sistematicamente estruturado –
o que Thomassen (2008) chama de uma “politização” da antropologia. Ocorre, então,
uma amplificação das noções de ‘política’ e ‘poder’ na antropologia social, que se
tornaram generalizadas e passíveis de se encontrar em qualquer estudo ou contexto;
momento onde esse campo acaba por ficar um pouco esquecido.
33
2. CAPÍTULO II
Rita Segato
(2006: 228)
Com a decisão favorável do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do união civil
e igualitária entre pessoas do mesmo sexo (LOPES, 2011)31 e a partir do veto referente à
distribuição do material didático escolar que promoveria o respeito à diversidade sexual
e de gênero, denominado de “kit anti-homofobia”32, a pauta dos direitos LGBT ganha
destaque na mídia e entre o grande público, trazendo à cena propostas de lei que são, a
partir de então, acionadas no debate. É o caso do Projeto de Lei (PL) 867/2015,
denominado de projeto “Escola sem Partido” e o PL 6583/2013, conhecido como
“Estatuto da Família”. O primeiro estabelece orientações de conduta aos professores,
tendo a pretensão de se tornar um movimento nacional por parte de seus adeptos33. O
segundo trata da proposta de definição do conceito de família como sendo a união entre
um homem e uma mulher, ou apenas um dos dois e sua prole, desconsiderando as
famílias LGBT e mesmo os núcleos familiares onde não esteja presente um dos
progenitores.
31
Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF n. 132 do Estado do Rio de
Janeiro, e Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI 4.277 (RIOS, 2011).
32
Também chamado por conservadores de “kit gay”. A presidenta Dilma Rousseff, cedendo às pressões de
alas políticas que se colocaram contra a proposta, vetou o projeto em 2011.
33
A proposta original foi desenvolvida pelo advogado Miguel Nagib em São Paulo e posteriormente virou
projeto de lei de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF). Estão em tramitação em alguns
estados e municípios projetos similares. Tal cenário é amplamente coberto pela mídia (TENENTE;
FAJARDO, 2016).
34
Pautados nesses dois PL os organizadores e adeptos desse movimento tomam
para si a defesa dos valores morais da “tradicional família brasileira” e se colocam não
apenas contra determinadas posturas em sala de aula, atacando diretamente os
professores e dirigentes escolares, mas também exigem que eixos até então
contemplados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, como
Sexualidade e Educação Sexual, sejam retirados do conteúdo oficial.34 Os envolvidos
respaldam-se em uma categoria acionada ao abordar-se ambos os projetos e em suas
variações no nos cenários locais, a chamada “ideologia de gênero”. Essa categoria vem
sendo utilizada desde então como forma de deslegitimar as políticas públicas voltadas
à população LGBT, tanto no que diz respeito a possível criminalização da homofobia, ao
acesso a políticas sociais e de saúde e a ações no âmbito educacional de promoção do
respeito à diversidade sexual e de gênero (JUNQUEIRA, 2017, b). As origens dessa
categoria, sua relação para com o “Escola sem Partido” e o “Estatuto da Família”, bem
como suas implicações no cenário brasileiro e belo-horizontino é o que abordei nesse
capítulo.
34
O objetivo é alterar o artigo segundo do Plano Nacional de Educação (PNE) que trata do respeito à
diversidade.
35
conceito – recentemente posta em pauta – considerando especialmente os debates
gerados a partir da concepção limitada dessa categoria proposta pelo denominado
‘Estatuto da Família’, já aprovado no Congresso Nacional.35
Além disso, outro fator de relevância é que o atual “Estatuto da Família” foi
composto como projeto terminativo, ou seja, não precisou ir à plenário na Câmera dos
Deputados no Congresso Nacional para seguir em tramitação no Senado Federal. Apenas
35
Alegretti e Oliveira (2015).
36
Vargas governou o país em regime provisório de 1930 a 1934. Após uma nova constituinte, de 1932,
através do voto – secreto – continuou no poder entre 1934 e 1937. Em seguida, através de um golpe, ele
governou em regime ditatorial de 1937 a 1945, período denominado de Estado Novo. Posteriormente ele
voltaria ainda ao poder pelo voto popular direto, governando o Brasil de 1951 até a data de sua morte,
ocorrida em 24 de agosto de 1954.
37
O decreto ainda regulava o matrimônio de colaterais de terceiro grau e dava respaldo financeiro para a
geração de filhas e filhos.
36
a sua aprovação na comissão especial designada para seu pleito – que ocorreu em 24 de
setembro de 2015 – já garantiu a continuidade do processo. Isso foi tomado como uma
vitória inicial por parte dos que apoiam o relator desse projeto de lei, Diego Garcia (PHS-
PR) – como a chamada bancada evangélica38 – e como uma violação dos direitos
humanos e da Constituição Federal pelos opositores, em destaque, àqueles que apoiam
a causa LGBT, como Érica Kokay (PT-DF) e Jean Wyllys (PSol-RJ).
De fato, o que me chamou a atenção foi esta ligação dúbia, quase dialética, que
se pode estabelecer para com o Estado: precisa-se dele para operar ações legítimas e
conseguir a garantia de direitos, mas também, por outro lado, ele próprio pode ser o
agente de exclusão – ou, dito de outra forma, de não inclusão – que retira esses direitos.
Não há novidade aqui. É destacada essa visão do poder estatal, e ainda, que ele – o Estado
–, tendo aspecto colonialista, presta-se justamente para essas ações, especialmente em
relação às minorias. Mas nesse contexto, me aproximo de algo já apontado por Das
(2007) sobre como essas relações, entre Estado e determinado grupo, acaba se moldando
de acordo com acontecimentos e ações específicas. Refiro-me à sua análise sobre a série
de desordens e o massacre que ocorreu em Sultanpuri, na Índia, após o assassinato da
Primeira Ministra, Indira Gandhi. Nesse contexto, a autora explorou, dentre outras
situações, como se dava o processo de registro de boletins de ocorrência sobre bens
furtados durante o caos instalado na região, que colocava as vítimas frente a uma
situação, no mínimo, pouco confortável: esse registro era uma necessidade e visava
garantir direitos e ressarcimentos futuros, mas, ao mesmo tempo, os familiares tinham
de buscar a polícia, mesmo sabendo que eles estavam diretamente ligados às ocorrências
que resultaram na desordem ali desembocada.
Das (2007), nesse caso, se ateve justamente à essa relação ambígua da qual falo,
sendo que sua análise só foi possível por se considerar um Estado em movimento, que
não se encontra fixado nem acabado, mas que a todo instante se molda e se transforma
– ponto de vista partilhado por Peirano (2006). Ora, se é o Estado o regulador dos
direitos que cada cidadão detém (PEIRANO, 2006), é possível – se não óbvio – que
existam falhas nesse processo, mas para além disso, pode ocorrer algo ainda mais grave:
38
Grupo de deputados e de senadores que estão ligados, de alguma maneira, a igrejas cristãs evangélicas.
37
um estabelecimento arbitrário por força de lei39 onde o Estado, em seu imperativo,
impõe uma ordem ou configuração pautada em certos fundamentos morais à sociedade
de maneira hegemônica e, consequentemente, pode não apenas ser omisso à própria
constituição que o dirige, onde se postula o princípio de igualdade, como pode acabar
promovendo e decretando a perda dos direitos de um grupo ou minoria.
***
39
Considerando aqui a concepção de ‘lei’ em Derrida (2010), onde direito e justiça estão descolados, ou
1desconstruídos1. Nesse sentido, eles não devem ser tomados a priori como conceitos similares ou
intrínsecos, pois a existência de um, de fato, não garanto o outro.
40
Deputados que se colocam contra o estatuto entraram com pedido para que o projeto seja votado no
Senado, mas que volte para votação em plenário no Congresso Nacional (SALCEDO, 2015; ALEGRETTI;
OLIVEIRA, 2015). Até o momento a solicitação não foi acatada.
38
individuais dos sujeitos,41 os organizadores e adeptos do “Escola sem Partido”, se
colocam contra determinadas posturas em sala de aula – atacando diretamente os
professores – bem como exigem que determinados eixos educacionais deixem de ser
contemplados no conteúdo oficial.42 Eixos estes que compõem a chamada “ideologia de
gênero”, que associada a outros itens, como o posicionamento político – especialmente
marxista – formam um conjunto de “ideologias” que não devem ser abarcadas pela
escola.
41
O projeto prevê ações conjuntas de órgãos públicos, bem como outros atendimentos específicos à
família, não apenas no campo social, mas também médico – com destaque para questões psicossociais da
“unidade familiar”. Isso inclui ainda a pretensão de se criar “conselhos de família” voltados ao estudo de
políticas públicas que defendam a família e seus direitos conquistados.
42
Nesse caso, especialmente quando se fala da orientação sexual e da identidade de gênero.
39
ele ganha cunho científico, sendo respaldado por lideranças políticas alinhadas ao
pensamento conservador, por pastores e demais envolvidos através de uma certa
concepção da ciência, constituindo um discurso de legitimação que não pode ser
refutado sob o viés da crença ou do Estado laico. Para esses envolvidos, a outra ponta do
debate implica diretamente as crianças: proibir a “ideologia de gênero” visa resguardar
o direito da família em educar seu filho levando em consideração seus princípios e
valores morais. Para os integrantes dos movimentos que se colocam contra – e me incluo
entre eles – trata-se não só de uma postura e ação inconstitucional, como um ataque
direto à democracia, à liberdade de atuação docente e aos direitos das minorias sexuais.
43
Tenente e Fajardo (2016).
44
Nesse caso, o ministro Luís Roberto Cardoso, do STF, suspendeu provisoriamente os efeitos da referida
lei (MINISTRO, 2017).
40
Além desse, outro projeto que deve ser citado, pois contrasta fortemente com a
proposta de exclusão da temática da Sexualidade e Educação Sexual das Diretrizes
Curriculares Nacionais, é o de autoria da deputada Sandra Faraj (SD-DF), aprovado por
17 votos contra 7, que inclui como conteúdo transversal na grade de escolas públicas do
Distrito Federal, o tema “valores de ordem familiar”, cujo objetivo é trabalhar questões
de educação moral e religiosa. Da mesma maneira que o “Escola sem Partido”, as
orientações e valores trazidos de casa – repassados pela família – estão acima dos
promovidos na escola e devem ser inteiramente respeitados pelos professores.45
Destaque para o fato de que, considerando-se as polêmicas envolvendo projetos
similares e o veto de propostas como essa, especialmente quando tratam de “valores
tradicionais”, a deputada argumenta que esse caso não se enquadra em tal situação, uma
vez que a constitucionalidade dos “temas transversais” já está superada, e cita outros
temas como “cidadania e leitura de jornais” já aprovados e em vigor há tempos para
fundamentar sua fala.
45
PROJETO, 2016.
46
Cujo site oficinal é: http://www.programaescolasempartido.org/.
47
Cujo site oficinal é: http://www.escolasempartido.org/.
48
Existem, nessa sessão, não apenas relatos, mas também vídeos que foram gravados por estudantes em
sala de aula, bem como prints de redes sociais contendo comentários de professores que se posicionam
contra o golpe que levou ao cargo de presidente o então vice-presidente Michel Temer – destacados como
exemplo de como os professores “doutrinam” os alunos nas escolas a serem adeptos de certas “ideologias”.
41
justamente de ações pedagógicas no campo da orientação sexual e identidade de gênero
(relato 1).
(Relato 1)
42
sobre fórmulas, reações químicas do que agir como militante da
consciência social?) explicava sobre transfobia, lesbofobia, e expuseram
no álbum da escola dezenas de fotos.
É proposta central do “Escola sem Partido” que em toda instituição escolar sejam
estabelecidas e publicizadas através de cartazes e de ações que as divulguem aos alunos,
alguns deveres inerentes à condição docente, quais devem ser seguidas
“impreterivelmente”. Colegas de profissão, pais e alunos se tornam os “fiscais” para que
tais deveres não sejam descumpridos (figura 3). Tudo em prol de uma educação que não
promova “ideologias”, sejam políticas ou de gênero, que são – especialmente a segunda
– um risco à família tradicional brasileira e a seus valores.
Tem-se, portanto, que longe de ser uma iniciativa única de um indivíduo público
que conta com amplo apoio de políticos e estão, a partir do Estado, objetivando
estabelecer certos valores tradicionais como superiores a outros, o “Estatuto da Família”
e o “Escola sem Partido” possuem respaldo de uma boa parte da população brasileira,
justamente nessa retomada – qual já mencionei – de discursos tradicionais que se
pautam em valores morais cristãos. Trata-se, no entanto, de uma ação que possui
reações: de políticos que apoiam a causa LGBT, como já assinalado, mas especialmente
a partir da forma mais comum de protesto no mundo moderno, a dos movimentos
sociais (JASPER, 2016). Vários movimentos organizados vêm tematizando em suas ações
– no caso dessa causa específica – a importância de se trabalhar a temática do gênero e
da sexualidade nas escolas para quebra de preconceitos e paradigmas, bem como a
urgência de se discutir as consequências desses projetos de lei.
49
Fonte: http://www.escolasempartido.org/defenda-seu-filho-categoria/572-mensagem-enviada-por-
anderson-da-silva-em-12-12-2015. Todos os materiais aqui citados podem ser encontrados no site oficinal
do programa.
43
Dentre as ações que tematizaram essa discussão, destaca-se o tema da 20ª edição
da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro50, a primeira a se posicionar diretamente
contra o “Estatuto da Família”, destacando o caráter inconstitucional do estatuto, bem
como suas consequências, que para além de “simples palavras”, fundamentariam ainda
mais a intolerância e a violência contra pessoas LGBT. Outras ações que tematizaram
essa discussão mais recentemente, é a 20ª edição da Parada do Orgulho LGBT de Belo
Horizonte e a 4ª Jornada pela Cidadania LGBT,51 que além do movimento político da
própria parada – que abordou as questões acerca da concepção de família e dos direitos
de famílias LGBT – organizou diversos eventos ocorridos mês de julho de 2017, onde
foram abordados diversos temas, como saúde, visibilidade de travestis, transgêneros e
transexuais e as políticas públicas e direitos humanos e da população LGBT.
50
Milhares (2015).
51
Cellos (2017).
44
Essa configuração se estrutura como um grande impasse a nível nacional –
considerando as ações globais e locais – onde trata-se não apenas, a meu ver, de
relacionar direitos humanos – universais – à particularidade e singularidade de cada
cultura – questão já suficientemente complexa e da qual discorre Almeida (2012). Isso,
porque, se fosse essa a maior questão de toda a problemática, penso que, de fato, a
proposta do antropólogo português, de um “diálogo intercultural”, onde “(...) as pessoas
e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito
a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”52, poderia ser um ponto
pertinente da renovação dessa discussão,53 o que ajudaria a relacionar a justiça à
diferença, e a colocar a lei como mediadora e administradora do “convívio de costumes
diferentes”, como propõe Segato (2006: 212).
Berenice Bento
(2017: 129)
52
(SOUZA SANTOS, 1997 apud ALMEIDA, 2012: 968).
53
Como o próprio Almeida (2012) argumenta.
45
Durante as reuniões iniciais do projeto de pesquisa no qual fui bolsista de
iniciação científica, o professor orientador considerou alguns campos a serem
explorados pelos integrantes.54 Constavam no planejamento algumas igrejas inclusivas
e o movimento social organizado. Este último seria acessado a partir de contato anterior
estabelecido entre Leandro e uma das lideranças do Cellos. Acabei optando, em comum
acordo com meu orientador, em realizar pesquisa de campo nesse centro, que havia
começado a realizar encontros para organização da Parada LGBT do ano de 2017.
Através do grupo do Cellos no Facebook tive acesso à agenda das reuniões, que
eram abertas a voluntários. No final de abril daquele ano, no fim de tarde de domingo,
fui à um desses encontros realizado em um prédio na região central da cidade. Sendo o
primeiro “voluntário” a chegar naquele dia, fui recebido por uma das figuras mais ativas
do movimento na capital mineira, a quem chamo aqui de Orlando. Me apresentei como
estudante da UFMG e bolsista de um projeto que visava estudar o ativismo LGBT e as
relações familiares dos envolvidos. Logo em seguida conheci outra liderança do centro,
Marcos, com quem meu orientador havia feito contato. Ao me apresentar, de imediato,
ele se lembrou das conversas que teve com Leandro. Ressaltou, ainda, que “era muito
bacana” o interesse do professor em realizar essa pesquisa a partir do movimento social.
Uma sugestão feita por meu orientador foi a de que eu participasse ativamente
no Cellos, me voluntariando a ajudar na organização da parada e nos demais eventos
que estavam sendo promovidos na época. Foi o que fiz. Marcos concordou prontamente
e, naquele mesmo dia, foi adicionado aos grupos oficiais da organização no WhatsApp e
fiquei incumbido de colaborar em algumas ações: publicizar os eventos na redes sociais
e distribuir, a partir da semana seguinte, os folders de divulgação em espaços da UFMG.
Ao longo dos meses que participei dessas reuniões, ajudei ainda na divulgação
dos eventos da 4ª Jornada pela Cidadania LGBT, edição que, diferente dos anos
anteriores, não se estendeu por uma semana, mas por um mês. Constitui-se de palestras,
oficinas, sessões de filmes e debates, rodas de conversas e outras ações que tematizavam
54
Na época o projeto contava com 2 bolsistas e 2 voluntários.
46
e visibilizavam a comunidade LGBT. Foi em um desses nesses eventos que conheci uma
de minhas principais interlocutoras, Leona.
Outra questão que se articula a esse debate é uma PL local similar ao “Escola sem
Partido” que se encontra em tramitação na câmara de vereadores. Ele visa proibir a
implementação de políticas educacionais que tematizem a igualdade de gênero e o
respeito à diversidade sexual. Sob a justificativa da “ideologia de gênero”, o artigo 158 da
Proposta de Emenda à Lei Orgânica n. 3 do Município afirma:
55
O projeto foi protocolado em março de 2018. É de autoria de Jair DiGregário (PP-MG) e de outros 13
vereadores (BELO HORIZONTE, 2018: sem paginação).
47
Um apontamento que enfatizo sobre o parágrafo supracitado envolve as
“desqualificações” de monções similares em outras cidades e Estados brasileiros. Em
casos ocorridos no Rio de Janeiro e em Goiás, PL similares foram vetadas sob a
justificativa de que a “ideologia de gênero” não estava definida ou, ainda, de que aulas
que tematizam o gênero, a sexualidade, o corpo e a identidade não configuram
“ideologia”. Entendo que foi visando impedir que a Emenda n. 3 seja desqualificada da
mesma maneira, que em sua proposição ela proíbe não apenas a própria “ideologia de
gênero” mas também a “aplicação” dos termos “gênero” e “orientação sexual” no
contexto escolar.
48
2.3. A SOCIEDADE EM PÂNICO:
conflitos, emoções e cismogêneses
Leandro de Oliveira
(2018)56
56
Excerto das notas de aula da disciplina Antropologia das Emoções, ministrada entre julho e dezembro
de 2018 na Universidade Federal de Minas Gerais.
57
Esse apontamento se faz necessário uma vez que nem todos os atores associados a partidos de esquerda
defendem a causa LGBT e outros temas da ordem do dia, como o direito ao aborto e a adoção de crianças
por casais LGBT.
58
Isso não quer dizer, no entanto, que os sujeitos que entram em desacordo para com essa pauta sejam
favoráveis a tais violações e violências. O discurso, se assim posso assinalar, passa pela ideia da necessidade
de se abordar a violência como um todo, sem “diferenciação”. As colocações progressistas são
consideradas, sob certo prisma, como reinvindicações de “privilégios”.
49
sociais alinhados politicamente à direita empreenderam um esforço no combate à ações
progressistas, buscando deslegitimar as conquistas dessa parcela da população.59
59
Assinalo, ainda, que as definições de ‘esquerda’ e ‘direita’ não são bem claras. No contexto brasileiro, no
entanto, a partir do notório combate à ditadura militar (1964-1985), a esquerda ficou conhecida pela defesa
dos direitos humanos, alinhando-se a perspectivas progressistas. A direita, por sua vez, se vincula, na
maioria das vezes, a um discurso conservador.
50
ocorrerá, sejam A e B indivíduos separados ou membros de grupos
complementares. (BATESON, 2008: 223)
60
Bateson (2008: 224) ainda realiza outra exemplificação: “a diferença entre cismogênese complementar
e simétrica é estreitamente análoga àquela entre cisma e heresia, em que heresia é o termo para a
separação de uma seita religiosa na qual o grupo divergente mantém doutrinas antagônicas àquelas do
grupo original, e cisma, o termo usado para a separação de uma seita quando os dois grupos resultantes
têm a mesma doutrina, mas se distinguem e competem politicamente. Apesar disso, usei o termo
cismogênese para os dois tipos de fenômeno”.
51
considerada inconstitucional. Destaco, portanto, os processos cismogenéticos
complementares que ocorrem entre esses dois grupos e os sujeitos que os integram.
52
3. CAPÍTULO III
MICROPOLÍTICAS EM FAMÍLIA:
emoções, cismogêneses e outras disputas
“Hoje eu não sinto ódio, mas não esqueço tudo o que aconteceu
comigo.”
Leona61
61
Ainda sentados em sua sala, Leona faz esse relato no momento em que rememora falas de uma de suas
irmãs que busca reiterar seus laços de sangue.
62
Ressalto que mesmo na produção acadêmica essa questão foi abarcada, como no estudo pioneiro de
Guimarães (2004). A antropóloga explorou, em O homossexual visto por entendidos, as histórias de vida
de alguns interlocutores homossexuais que saíram de Minas Gerais e foram para a capital carioca de forma
a experienciarem sua orientação sexual. Ela ainda considerou em seu estudo as relações entre eles e suas
famílias de origem.
63
Etnografia não é método, Peirano (2014).
53
masculinas, gays afeminados e quaisquer outras e outros que não estejam alinhadas para
com a “presunção da heterossexualidade”64. Longe de vincular tais situações ao
macrossocial, o que busquei é explorar a maneira como elas – e outras cenas –
apareceram nas histórias de vida de alguns de meus interlocutores, empenho que realizei
a partir da perspectiva da antropologia das emoções.
64
Termo tomado de empréstimo da obra Problemas de gênero, de Butler (2003, b).
65
Questão amplamente discutida com meu orientador.
54
Ainda que todos residam atualmente em Belo Horizonte, suas histórias de vida
percorrem diversos campos geográficos. Uma delas não é natural da capital mineira e,
mesmo em relação aos nascidos aqui, suas falas abarcam outros territórios – como as
cidades da região metropolitana. Assinalo que, ainda que tais relatos se circunscrevam
dentro de uma localidade particular e que sejam oriundos de sujeitos singulares que os
emitiram em momentos e tempos específicos, talvez, possamos aprender e apreender
algo com esses discursos. Uma possível projeção não visa, contudo, dar conta da
realidade, mas perceber ‘alegorias’66 dessas situações a fim de que elas possibilitem
reflexões sobre algumas ‘expectativas de poder’67 que podem se apresentar na ‘família’
em um possível cenário mais abrangente.
Leandro de Oliveira
(2013: 101)
66
A experiência etnográfica, Clifford (2018).
67
Fantasias de poder e fantasias de identidade, Moore (2000).
55
distintas. Alguém pode não aceitar um ente transexual sob justificativas de que ela ou
ele irá “envergonhar a família”. Uma tia pode aceitar uma sobrinha lésbica, defendê-la
diante da família e mesmo acolhê-la em sua casa. Contudo, trata-se de uma relação onde
ela não é, efetivamente, a mãe. Ou, então, uma mãe pode aceitar o filho sob discursos
de que, embora gay, ele é uma pessoa maravilhosa que sempre trabalhou e quem sempre
a ajudou nos afazeres de casa.
Evidencio que as configurações são diversas, de maneira que não é meu objetivo
esgotar a pluralidade das experiências com essa monografia. Ao contrário. Justamente
como forma de explorar diferentes arranjos, que trouxe aqui as falas dessas 2
interlocutoras e desse interlocutor. Leona, Cristina e Dionny, ainda que singulares,
dentro da miríade plural abarcada sob a sigla LGBT, podem apresentar histórias
similares a tantos outros que vivem, cada qual, suas próprias particularidades.
Leona, uma senhora com pouco mais de 60 anos, travesti, heterossexual, branca,
de classe popular e com ensino fundamental incompleto nasceu em outro Estado
brasileiro, tendo mudado para Minas Gerais há cerca de 30 anos. É ativista do
movimento LGBT conhecida na capital mineira e fora dela. A encontrei pela primeira
vez em um dos eventos promovidos pelo Cellos durante a 4ª Jornada pela Cidadania
LGBT, em junho de 2017. Em outra oportunidade troquei algumas palavras com ela em
evento realizado na UFMG, mas sem maiores delongas, dado que outras pessoas
disputavam sua atenção e ela logo se retirou do local. Essa espécie de assédio em algumas
situações é comum, mas ressalto sua educação em tratar com pessoas LGBT, jornalistas,
pesquisadores e outros que solicitem uma conversa ou entrevista para o jornal ou alguma
pesquisa.
Viajei para realização de intercâmbio logo após esses eventos do Cellos, contudo,
me mantive ativo nessa rede de relações por intermédio do Facebook e do grupo oficial
da organização no WhatsApp. Retomei o contato com Leona por uma rede social no mês
56
seguinte ao meu retorno ao Brasil, em maio de 2018. Contei um pouco sobre a pesquisa
de iniciação científica da qual era bolsista e a convidei a participar, convite aceito
prontamente. Ela estava com a agenda apertada, então marcamos a entrevista para o
início de junho, momento no qual ela sugere que a “conversa” – como ela diz – seja em
sua própria casa.
Naquele dia havia apenas duas meninas em sua residência, quais Leona me
apresentou quando uma delas veio perguntar sobre algumas roupas que estava lavando.
Ela levou o bolo para a cozinha. Em seguida, Leona disse que eu podia me sentar no sofá
– improvisado com uma cama – enquanto ela se sentou na cadeira de escritório em frente
a seu computador. Me perguntou se me importava dela fumar e, obviamente, respondi
que não tinha problema algum.
Ressalto que, o que pretendi a partir daqui, nessa escrita, não apenas para o caso
de Leona mas para as histórias de vida de Cristina e Dionny, foi inspirado na exegese que
Das (2011) realiza em seu texto O ato de testemunhar. A autora, a partir de um excerto
68
Batalhar entre travestis e transexuais significa se prostituir. Digo “indiretamente” pois, ainda que já
tenha tido uma pensão cujo foco era esse na cidade, há anos Leona não trabalha mais com isso. No entanto,
sempre que alguma de suas meninas enfrenta problemas no ofício de batalhar ela as ajuda – como quando
uma delas sofre agressões ou é presa.
57
da fala de uma de suas interlocutoras na Índia, faz uma longa exploração de informações
que se vinculam ao relato, as quais teve acesso durante sua pesquisa em campo e por
meio de outras conversas. Trata-se, no entanto, de uma inspiração, uma vez que
acrescentei outros fragmentos de fala. Contudo, assim como a antropóloga mencionada,
abordei ainda outras passagens que não estão transcritas nessa monografia, falas que me
foram feitas fora da entrevista e em outros momentos que não aquele dispensado para a
realização desta.
***
A conversa já corria há algum tempo, não sei bem ao certo. O gravador marcava
pouco mais de 15 minutos, contudo, muito conversamos antes do início da entrevista
propriamente dita. Ainda estávamos sentados na sala. Leona fala da época em que, com
pouco menos de 20 anos de idade, voltou a morar em sua cidade natal depois de passar
alguns anos em outro Estado brasileiro – após ser expulsa de casa pela mãe aos 12 anos.
Ela lembra, nesse momento, sobre os contatos iniciais para com sua família de origem
depois desse tempo distante.
(fragmento 1)
69
O termo zona refere-se ao bordel onde Leona trabalhava nessa época.
58
Thiago Mas houve reaproximação na época em que você voltou?
Situações de conflito foram se sucedendo, especialmente para com sua mãe. Após
um tempo vivendo com uma tia, fora devolvida ao núcleo familiar após o tio informar
que ela vinha apresentando comportamentos estranhos e inadequados. Com o passar
dos anos cada vez mais a situação foi se tornando “pior”. Ela dizia que era uma menina
como suas irmãs, continuava a vestir as roupas delas e a enfrentar conflitos com os pais.
Com isso, aos 12 anos foi expulsa da residência. Viveu na rua por quase um ano, até
mudar-se para uma cidade em outro Estado brasileiro. Nesse período batalhou em
alguns lugares e, após o recebimento da carta que mencionou, volta a fazer contato com
algumas – em especial uma – das irmãs.
Leona não se prolongou em sua cidade natal quando retornou. Após alguns anos,
acabou indo para o interior de Minas Gerais a trabalho. Em seguida muda-se para a
capital mineira. Nesse período, ela chegou a administrar uma pensão com cerca de 20
70
Uso o pronome feminino, “ela”, em respeito à identidade de gênero de Leona, contudo, em sua fala, ao
abordar as situações dessa época ela se refere a si mesmo usando o pronome masculino, “ele”.
59
meninas – onde quase todas batalhavam. Ela relata como, desde essa época, ajudava
“suas meninas” frente a situações de violências e em conflito com a polícia.
Posteriormente ela se estabeleceu como dona de uma pensão menor, tendo também
alguns apartamentos alugados como fonte de renda – o que perdura até os dias de hoje.
Ela relata que iniciou sua atuação no movimento LGBT de Minas Gerais através do
contato que estabeleceu para com um dos líderes do movimento, quem a ajudou à época
a solucionar alguns problemas que teve com a polícia.
“Mas me dou com todos os meus irmãos. Já vieram aqui, ficaram em hotel no
centro, levei eles para sair. Então tenho relações com todas elas, ligo, tenho elas no
Facebook”. Leona não cortou totalmente as relações para com sua família de origem e,
embora as relações sejam conflituosas, relata proximidade para com uma de suas irmãs.
No entanto, mesmo com este membro familiar surgem alguns enfrentamentos. Quando
alguma sobrinha ou sobrinho vem visitá-la, por exemplo, ela não gosta que eles
permaneçam por muito tempo. Não porque não se afeiçoe a eles, mas qualquer ação
deles que a mãe ou o pai reprove e, por ventura, venham a descobrir, acaba sendo
considerada como influência de Leona.
“(...) Hoje [diz ela em tom de ironia] todo mundo tem orgulho de mim não é?”.
Ela, que hoje é figura conhecida pela defesa dos direitos das pessoas LGBT,
especialmente pela defesa que faz de travestis e transexuais – a letra mais sofrida da sigla,
como menciona –, tem visibilidade, prestígio e aparece em diversos meios de
comunicação. Contudo, ainda que seus familiares – de sangue – afirmem seu orgulho,
ela não deixa de apontar a mágoa que sente em relação a eles devido ao passado. Insisti
nesse assunto com ela.
(fragmento 2)
Thiago Como é para você eles dizerem hoje que tem orgulho?
Leona Família nenhuma está preparada para ter uma pessoa trans,
estão para ter um gay, uma lésbica porque é um homem e uma
mulher. Um gay é um homem que gosta de um homem, e uma
lésbica é uma mulher que gosta de mulher. A trans não cabe
nessas caixinhas, a partir do momento que você muda seu
corpo você vai além de uma barreira, você é considerada
pecadora, é vista como símbolo de sexo, você vai contra toda a
sociedade. [...] A travesti além de construir seu próprio corpo
60
ela constrói sua família, pois ela conhece outras pessoas, os
amigos, que são mais família que a própria família. E eu fui
construindo a minha por aí, na favela, em outros lugares [...].
Hoje minha irmã fala para mim: “sua família é a gente”, mas
quem sabe disso sou eu! Porque na hora em que eu precisei
[pausa na fala]. Tem certas coisas que eu não gosto nem de
lembrar. É muito triste você estar nas ruas e você chegar na casa
das pessoas para comer! Sabe?! Para dormir! [Leona chora
nesse momento]. Eu prefiro não falar sobre isso.
Esse excerto da fala de Leona nos possibilita refletir sobre alguns pontos – quais
ainda retomarei na sessão 3.2 desse capítulo. “Família nenhuma está preparada para ter
uma pessoa trans”, nos remete diretamente à questão do gênero, que se encontra em
maior evidência na atualidade. Butler (2003, b) constata e formula teoricamente essas
experiências da vida vivida. A presunção da heterossexualidade, ainda que tenha sido
discutida sob diversas perspectivas na acadêmica e no movimento organizado, se
encontra em operação no contexto relacional e de vivência das pessoas LGBT. Uma
leitura possível dessa questão implica na relação entre gênero e expectativa. Quando
ocorre a não conformidade do agir e do ser diante das expectativas sociais sobre o gênero
de nascimento, ao menos no nível da visibilidade, o conflito se torna maior. Daí a fala de
Leona sobre o entendimento social do que é o homem gay e a mulher lésbica. Isso pode
ser pensado como um atrelamento da identidade de gênero ao corpo biológico e – como
ressalta Judith Butler – ao sexo. A pessoa trans, no entanto, foge dessas categorizações.
61
momento de nossa entrevista onde chora de maneira contida. Ação – de chorar – que
viria a ocorrer mais uma vez em minha visita, na situação que se segue.
Trazer esse evento de sua vida que se liga também à história da irmã – que tinha
pouco menos de 20 anos na época da expulsão de Leona – pode ser lido como uma forma
de evidenciar o conflito. Ainda pode ser pensado como ‘liminar’ da passagem de uma
fala que ameniza certas situações, “não tenho ódio, mas mágoa”, para uma fala que traz
o evento novamente à tona, “expulsar [...] a irmã travesti a gente pode”. Algo que
certamente não foi esquecido, mas que é posto em falas e cenas específicas, a depender
da situação. Como ela lembra em várias passagens de sua entrevista, no tocante às
violências físicas e verbais que sofreu: “a gente nunca esquece”.
3.1.2. “Para ele ainda é um pouco complicado. (...) [Mas] estou satisfeita”:
revelação, tempo e transformação na trajetória de uma lésbica
Cristina, 22 anos, mulher cisgênero, lésbica, branca, de classe média com curso
superior completo, cursando sua segunda graduação na área de humanas, nasceu e
reside na região metropolitana de Belo Horizonte. Embora não seja literalmente ativista
do movimento LGBT, ela possui um discurso extremamente politizado e conseguiu
determinada visibilidade no Facebook por seus comentários políticos durante eleições
em sua cidade, chegando a ser convidada a dar opiniões públicas a alguns veículos de
comunicação. A conheci através de um grupo de WhatsApp dedicado a estudantes
71
O irmão de Leona mencionado é heterossexual cisgênero.
62
universitários da UFMG que realizariam intercâmbio. Como iriamos para mesma
instituição, acabamos nos aproximando e morando juntos – com outros colegas – nesse
período de nossas vidas.
***
(fragmento 3)
63
de réveillon, que decidi me assumir. Minha mãe estava
discursando com algumas tias, uma delas tem uma filha que é
mais velha que eu, uma prima que todo mundo sabe que é
lésbica, mas ninguém da família falava sobre isso, o um
discurso sobre ela é velado e minha mãe sabia. Minha mãe fez
um discurso sobre essa minha prima, sobre aceitação, “cada um
é de um jeito, está certo, temos que deixar, que aceitar”, como
eu namorava desde outubro eu achava que minha mãe estava
dizendo isso para mim porque talvez ela já soubesse e estava
me dando um sinal. Encorajada sobre o discurso dela, mais
tarde no quarto, falei que estava namorando e a minha mãe
demonstrou surpresa, falei que estava namorando uma mulher,
mas ela achou um absurdo e disse que eu estava ficando doida
que isso não era possível. Aí eu a questionei porque ela estava
falando da minha prima, como assim ela tinha mudado de
opinião, e ela disse: “dentro da minha casa, não”, aí eu falei que
ela estava sendo hipócrita, ela disse que poderia chamar do que
quiser e se ela pudesse me colocaria dentro de um ônibus e “te
mandava pra bem longe pra você pensar sobre isso”, mas que
ela só não faria isso porque faltavam 12 dias para a prova da
UFMG, e que eu precisava estar aqui. Ela perguntou quem era
a minha namorada, eu falei que era a menina que vem aqui em
casa, ela ficou super incomodada dela conhecer essa pessoa e
frequentar a minha casa na condição de amiga, mas quando
disse que era a minha namorada as coisas mudaram, ela me
propôs que eu terminasse o namoro, aí ela me questionou sobre
eu ter falado que tinha ficado com um rapaz, mas eu falava
mesmo para encobrir, passados alguns dias dessa revelação eu
pedi à ela que não falasse para nenhum familiar, nem mesmo
com a minha irmã que tem uma proximidade e uma influência
muito grande sobre a minha mãe, mas que ela não falasse com
ninguém. Depois de alguns dias ela me perguntou e disse que
havia terminado e me fechei muito, estava visivelmente triste e
escondi isso, mas continuei namorando às escondidas ainda,
mas que agora que eu tinha revelado, eu tinha que fazer um
esforço maior em esconder, não podia mostra nem que aquela
amiga ainda era amiga. Meu irmão sempre soube, foi a primeira
pessoa a saber, tenho uma relação muito boa com ela e me
cobria para eu encontrar com ela, dizia que ia sair comigo, essas
coisas, mas um dia ela ficou cansado de ter de mentir por causa
disso e me disse para não contar mais com ele não.
64
“minha mãe estava dizendo isso para mim porque talvez ela já soubesse e estava me
dando um sinal”.
A reação de espanto da mãe, com a subsequente réplica da filha, traz para cena a
já comentada fala: “dentro da minha casa, não”. É interessante notar como Cristina
questiona o ‘lugar’ qual ocupa. Ela não aceita o discurso que ouviu e afirma que a mãe
“está sendo hipócrita”. Essas respostas são, com base em Clark (1997), formas sutis de se
deslocar e não aceitar o papel social que lhe foi atribuído. Na minha interpretação,
Cristina renega o lugar subalterno no qual foi colocada a partir do momento em que
revelou que é lésbica. A orientação sexual, para ela, não é um fator depreciativo, daí sua
reação diante das falas da mãe. Reação, de enfrentamento, que viria a ocorrer novamente
em outro momento, quando ela foi “chutada para fora do armário”.
(fragmento 4)
65
consigo nem imaginar em ser melhor, mas em relação a mim
quanto sujeito e quanto pessoa lésbica, enquanto mulher
lésbica, para o meu pai ainda é um pouco complicado, nunca
mais conversamos sobre isso, ela trata minha namorada super
bem como uma filha mesmo; a minha mãe a trata igualmente,
hoje sou assumida com foto e em redes sociais, minha família
sabe mas foi um processo para levar isso para o restante da
família, longo e gradual, mas hoje não me importo, levo ela a
todo lugar.
“Depois minha irmã chegou, no meio daquela bagunça, falou com minha mãe.
Ela veio falar comigo, foi a única que disse que estava tudo bem, mas eu sabia que no
fundo ela tem um discurso super conservador”. Esse apontamento em relação à irmã nos
convida a pensar em outras situações. Cristina reafirma diversas vezes como a irmã é
“conservadora”. O mesmo ela diz em relação ao pai. Ainda que “as coisas tenham ficado
diferentes” com o passar do tempo, aparece em sua fala novos indicativos de
contestação. Hoje sua namorada frequenta sua casa e é tratada como “filha”, contudo,
ainda sim estão presentes comentários e falas que a desagradam.
66
(fragmento 5)
Ainda que assinale a “dor” que sente ao presenciar a fala transfóbica do pai,
Cristina dá ênfase positiva para suas relações recentes em família. Mesmo ocorrendo
uma ou outra situação “desagradável”, ela afirma que “está tudo bem”. No meu
entendimento a comparação inevitável entre as experiências de 5 anos atrás – quando
foi proibida de namorar – e as vivenciadas de hoje – onde possui liberdade e sua
companheira é bem-vinda – é um fator central no relato que Cristina faz de suas
vivências.
Outro exemplo que corrobora minha interpretação pode ser identificado em sua
fala sobre como foi o momento em que sua mãe a chama para conversar e questiona,
curiosa, a forma como duas mulheres transam. A dúvida foi interpretada por Cristina
como algo positivo, ainda que tenha ficado com vergonha de responder. Mas tratou-se,
para ela, de um sinal evidente de transformação da relação. Agora, de acordo com ela, a
mãe a “aceita”, tanto que aborda certos assuntos sobre os quais jamais conversariam se
as experiências fossem as mesmas de 5 anos atrás.
72
Trata-se da maneira como o interlocutor se identifica.
67
ações antes de 2017, ano em que decidiu acompanhar alguns amigos à Parada do Orgulho
LGBT. Eu já havia conhecido ele através de aplicativo meses antes e chegamos a trocar
WhatsApp, contudo, não nos falamos mais e nunca nos encontramos pessoalmente até
então. Foi justamente no evento de 2017 que acabamos nos conhecendo. Alguns amigos
e ele foram buscar camisinhas na barraca da saúde, na qual eu me encontrava como
voluntário. A partir disso retomamos o contato.
***
Ele havia se envolvido com um rapaz, para quem tinha escrito uma carta falando
de seus sentimentos e comentando momentos íntimos. De acordo com ele, a carta, que
não tinha sido entregue ainda, apareceu em suas coisas dobrada de outra maneira que
não a qual ele a deixou. A mãe começou a ficar quieta nos momentos em que dividia sua
companhia na cozinha, na sala ou nos corredores da casa. Dionny logo imaginou que a
68
mãe tinha encontrado e lido aquilo que escreveu. Por uma semana nada foi dito, até que
em uma tarde a mãe o chamou para conversar. O que se deu segue no fragmento 6.
(fragmento 6)
Dionny Minha mãe me disse: ‘quero te perguntar uma coisa muito séria
e quero que você seja totalmente sincero em tudo que falar’. Eu
disse ‘ok’. Ela me perguntou: ‘quem é Douglas?’. Douglas é o
nome do rapaz para quem eu escrevi a carta. Respondi que era
um amigo. Ela me perguntou qual a nossa relação, se éramos só
amigos mesmo. Disse que não queria discutir a fundo essa
questão e pedi que ela fosse mais objetiva. Ela me perguntou:
‘você é gay?’. Minha primeira negação foi negar, mas ela
pergunt0u de novo. Eu neguei algumas vezes mas ela insistia.
Me perguntei a razão de negar. Como ela já tinha lido a carta e
como não havia motivo para negar acabei confirmando. E ela
começou a chorar [...]. No meio do choro ela me perguntou se
eu sabia que era uma coisa errada? Perguntei a razão de ser algo
errado e ela começou a citar a bíblia. Disse que pessoas assim
vão para o inferno e que enquanto ela vivesse ela iria orar para
que eu saísse dessa vida. [...]. Não falamos mais disso, ela não
comentou nada com meu pai e penso que ela preferiu acreditar
que isso era só uma fase. Mas me senti mais leve sabe? Pensei,
bom, um já foi. Não estou escondendo nada. Mas me veio a
dúvida se ela poderia ter pensado que aquilo era só aquilo
mesmo, que eu mudei pelas suas orações. Mas eu estava de
consciência limpa, para ela eu disse! Não vou ter um
sentimento a mais para ter de dar conta. Passou um tempo. Eu
tive um relacionamento meio conturbado. Eu resolvi não levar
adiante por eu não ser assumido, pois os pais do meu ex-
namorado sabiam dele e sabiam que os meus pais não sabiam.
Fiquei mal de eu levar aquilo escondido. Não me sentia muito
bem com aquilo. Também não estava me sentindo bem com
meus pais, pois eu vivia com eles, então eles tinham esperança
de eu levar uma namorada, de ter filhos, essas coisas.
“Eu neguei algumas vezes mas ela insistia. Me perguntei a razão de negar. Como
ela já tinha lido a carta e como não havia motivo para negar acabei confirmando”. Dionny
me relatou algumas vezes sobre certa “angústia” que sentia ao esconder sua orientação
sexual dos pais. Para expressar o que sentia ele usou frases como: “não era justo com
eles”, “não é justo por causa das expectativas que eles têm”. Insisti com ela sobre essa
questão.
69
(fragmento 7)
Além disso, como aparece no fragmento 7, seu incômodo também estava atrelado
à sua vida amorosa. Mas não apenas. Após nosso encontro na Parada LGBT de 2017 ele
comentou que sua ida ao evento o fez refletir ainda mais sobre contar ou não para seus
pais. Não fica totalmente claro para mim se esse sentimento de angústia e de necessidade
de revelação está implicado mais em suas experiências ou ancorado na ideia de
‘sinceridade’ que ele aciona ao falar sobre seus pais: “tenho de ser sincero”.
(fragmento 8)
70
estávamos apenas nós dois, pois nunca fizemos nada juntos, de
sair juntos como pai e filho, nunca. Saio só com amigos e
quando muito com tios. Disse que depois que ele terminasse o
trabalho eu precisava falar com ele. Ele parou e disse que eu
poderia falar. Eu olhei para ele e disse: ‘eu sou gay’. Ele deu um
passo para trás, sabe quando você pega alguém no susto? Ele se
assustou. Me perguntou se eu estava brincando e disse que não.
Ele perguntou de novo e novamente disse que não. Os olhos
deles encheram de lágrimas e disse que não acreditava que o
único filho dele estava fazendo aquilo com ele, e começou a
chorar. Bom, eu fui homem o suficiente para falar aquilo para
ele então eu posso tomar a atitude e abraça-lo nesse momento.
E fui em direção a ele para dar o abraço. Mas ele quis que eu
me afastasse, disse para eu não chegar perto. Eu respeitei. Até
porque ele é uma pessoa nervosa. Ele me perguntou como sabia
que eu era gay e disse que era porque eu tinha atração e que já
tinha ficado com homens. Disse a ele que não precisava chorar
pois isso não era uma doença. Ele discordou de mim, me
questionou: ‘como não?!’. E me mandou subir, ele disse que
terminava o trabalho sozinho. Foi o que fiz. Subi e deixei ele na
garagem.
(fragmento 9)
71
mas não disse nada. Só falei para eles continuarem. Meu pai
achou que fui sarcástico e veio me dar um soco, eu ergui o braço
para me proteger, minha mãe entrou na frente e abraçou ele,
disse para ele não fazer aquilo. Os dois voltaram a chorar e eu
sai, fui para rua. Mas pouco antes eles me disseram: ‘você trate
logo de arrumar um lugar para você ficar! Você não tem muitos
amigos? Não sai bastante com eles? Então, quem sabe, um deles
também não te oferece um lugar para você ficar?’. Perguntei se
eles estavam me mandando embora de casa. Meu pai
respondeu que ela para eu dar um rumo na minha vida o mais
rápido possível. Eles ficaram sem falar comigo por uma semana.
Um dia, do nada, minha mãe puxou conversa comigo, como se
nada tivesse acontecido. Meu pai chegou do trabalho e falou
comigo também, fez questão de puxar conversas algumas
vezes. Tudo foi voltando ao normal. Eu sempre respondi o
básico, estava com muita mágoa.
73
As únicas fontes de renda de Dionny são seus pais e sua avó. O estágio que realizou é obrigatório para
seu curso e não remunerado.
72
quem foi que deu aquilo para ele. Dionny diz a verdade, mas o pai parece não acreditar
e o manda “ficar esperto”.
Na semana seguinte ocorre a situação das blusas. Dionny comenta que só estava
com duas blusas de frio e que o tempo iria esfriar nas próximas semanas. “Acho que
minha colega ficou com dó de mim e falou com outra técnica cujo filho tinha crescido e
que tinha algumas roupas para dar. Dentre elas três blusas de frio. A técnica veio falar
comigo e pediu que eu não a levasse a mal (...). Aceitei o presente na mesma hora”. Com
isso, ao chegar em casa usando umas das blusas, ocorre um novo questionamento por
parte do pai. A cena continua:
(fragmento 10)
Dionny Meu pai me perguntou de novo sobre quem tinha me dado as
blusas. Disse novamente. Ele disse que eu estava mentindo, que
eu estava sendo falso. Tudo o que eu estava fazendo para ele
envolvia homens. Se eu saia para algum lugar era com homem,
se eu fazia alguma coisa era por causa de homem, se eu ganho
algo é de homem. Ás vezes eles [a mãe e o pai] acham que não
estou indo para faculdade, que eu estou mentindo. Eles dizem
que sabem que não estou indo para aula. Eles dizem que uma
hora vão me pegar, que vão descobrir. (...) Nesse dia, então,
após uma nova briga, ele me diz novamente: ‘dá um jeito de
traçar seu rumo logo!’.
Ainda que não enfrente o pai diretamente, usando falas como: “as coisas estão
indo bem, apesar dos pesares” e, mais recentemente, de que “tudo anda
surpreendentemente bom”74, Dionny se queixa dos acontecimentos, especialmente das
expulsões de casa e do modo como os pais o tratam – eles consideram que “há demónios”
dentro dele. Essas queixas, mesmo não sendo diretas como no caso de Cristina,
comunicam algo e, ainda que ditas para mim e não para a mãe e o pai, considero que se
tratam também de uma forma de questionar o ‘lugar’ qual ele ocupa. Diferente de
concordar c0m os pais sobre suas concepções de “pecado” e “demônios”, ele reitera que
sua orientação sexual não passa pelo crivo religioso e menos ainda pela ideia de “doença”.
74
Conversei novamente com Dionny no final de novembro de 2018.
73
Tendo como base uma leitura da obra de Moore (2000), um entendimento
possível é pensar a ‘expulsão’, ou melhor, expulsões de Dionny que nunca se
concretizaram, como uma espécie de fantasia de poder que o pai nutre sobre o filho. As
ameaças, talvez, apenas reforcem – ou tentem reforçar – uma ideia de controle que o pai
pensa ter sobre a agência do filho. A autora americana explora como, de maneiras
diferentes, as agências dos sujeitos estão implicadas e cercadas de fantasias de poder,
especialmente quando envolvem a identidade de gênero.
Nesse contexto, para Dionny, o que está posto em pauta é sua orientação sexual,
para o pai, contudo, de maneira acentuada – ao trazer em seus discursos algumas
inferências sobre vestimentas, modos de agir e os “homens” com quem o filho
possivelmente sai e de quem pode estar recebendo presentes – é o gênero que entra em
questão. As fantasias que este nutre sobre o filho, no entanto, não são correspondidas.
Ainda que, como mencionei, Dionny não o enfrente diretamente, entendo que seu
momento de revelação e o fato de assistir filmes com temática LGBT perto do pai, são
pequenos sinais de sua não conformidade e não aceitação em relação a essas “micro-
hierarquias” (CLARK, 1997) na relação.
“Mais tarde ele [o pai] me chamou no quarto e me disse: ‘você pode fazer
o que quiser da sua vida, só não quero, dado que está aqui dentro [de
casa], que mude seu jeito de agir, seu jeito de se vestir, que fique com
alguém aqui dentro ou no nosso bairro, ou que mude sua maneira de
ser!’. Como se eu fosse virar uma travesti! Acho que eles pensaram que
só porque disse que era gay eu iria virar travesti. Ele me disse: “só não vá
me aparecer usando shorts curto, falando fino ou de saia!”.
Dionny
Destaco que na construção qual realizei até aqui, o ‘gênero’ se configura como
questão central nas experiências familiares. Na história de vida de Leona ele é
evidenciado por ela ser travesti. No relato de Cristina, a partir das falas transfóbicas
74
expressas pelo pai. Com Dionny, em especial, a partir das expectativas que o pai tem
sobre ele, sobre sua sexualidade e, especialmente, a partir de uma leitura social do
‘gênero’. Partindo de um excerto do relato de Dionny, retomo essas considerações sobre
“fantasias de poder” e “expectativas de gênero”.
Dionny relatou a mim, em outras conversas, a forma como o pai reagia quando
estava assistindo televisão e via alguma cena de novela ou filme que insinuasse uma
possível relação homossexual. Ou fazia algum comentário depreciando a cena, a novela
e/ou o filme; ou então simplesmente mudava de canal. As reações, no entanto, se dão
em outro nível caso a cena envolva uma pessoa travesti, transexual, transgênero ou
qualquer outra identidade dissidente, como “gays muito afeminados”. Nesse momento
o pai chega a sair da sala, ou fica bravo com a “feiura” que está sendo mostrada no canal.
Chamo a atenção para dois apontamentos acerca das outras histórias de vida que
abarquei nesse estudo. Cristina relata como o pai faz comentários transfóbicos quando
assiste algum programa televisivo onde uma personalidade travesti ou transexual se
apresente. Leona expõe suas considerações sobre a não preparação da família em ter
entre seus membros uma travesti ou pessoa transexual. Esta assinala que hoje em dia,
socialmente, é mais concebível um gay e uma lésbica – afinal, é um homem que gosta de
homem e uma mulher que gosta de mulher – do que pessoas trans, que não cabem nas
“caixinhas”. Estas fogem totalmente das expectativas de gênero nas leituras sociais.
75
O fato de depender financeiramente do pai e da mãe é um apontamento que surge em vários momentos
da entrevista com meu interlocutor.
75
A “presunção da heterossexualidade” já citada, implica diretamente não apenas
no comportamento sexual dos sujeitos, mas também na ‘performance’ que eles realizam
em relação ao gênero nos quais foram conformados em seu nascimento e sob os quais
foram criados (BUTLER, 2003, b). Entendo que a situação agravada de conflito presente
nas falas dos interlocutores – especialmente nas de Leona e Dionny – se dão, justamente,
por causa dessas expectativas de gênero frustradas e, no caso deste último, temidas. A
visibilidade do gênero, diferente do ocultamento possível em relação à sexualidade,
reforça ainda mais esses embates.76
76
Assinalo que o gênero, assim como a sexualidade, também pode ser ocultado, embora isso seja menos
frequente. Vide o caso de pessoas que não se expressam da mesma forma na frente da família e entre
amigos, ou casos de pessoas LGBT que têm de manter total anonimato quanto a sua identidade.
77
Uma exceção é o caso de Leona. Curiosamente, se lermos sua história de vida sob a óptica da
cismogênese, podemos identificá-la como um processo de diferenciação simétrico. Ao nível que a família
não a aceita por ser trans, ela também não aceita as reiterações dos laços sanguíneos presentes nas falas
da irmã.
78
Homens que transam com homens, mas que se consideram heterossexuais. Os também chamado g0ys,
com certa variação, sustentam seus discursos sob a fala de que não se envolvem afetivamente com o
mesmo sexo – o afeto é direcionado exclusivamente ao sexo oposto – apenas transam – sem penetração
anal.
76
visibilidade do gênero é que se encontra como problemática de maior magnitude. Tal
apontamento pode ser lido também no cenário macropolítico.
Finalmente, ressalto que essas histórias de vida devem ser compreendidas como
peças de um mosaico mais abrangente de conflitos políticos, não como efeito ou mero
reflexo desse cenário, mas enquanto experiências locais que estão situadas contra o
plano de fundo desses processos mais amplos.
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse cenário abarca, ainda, o âmbito político. Busquei evidenciar como o percurso
histórico desse campo foi se reconfigurando até achegar na percepção dinâmica do
Estado na atualidade. Penso em possíveis perguntas que podem ser levantadas a partir
do breve estado da arte que realizei nessa monografia sob a perspectiva política da
família: como o Estado comparece nessas controvérsias? O futuro dessa discussão estará
preso à legitimação do Estado, ou a sociedade está construindo outros mecanismos que
não atravessem esse campo? Como se dão essas relações, entre movimentos sociais, alas
conservadoras e o próprio Estado? Ou então, dito de outra maneira, onde estão
localizadas as ‘margens’ do Estado?
78
campo renovado no âmbito da antropologia do gênero e da sexualidade que hoje,
diferente do que ocorreu há algumas décadas, não trata puramente dos ‘excluídos’ ou
‘subalternos’, mas evidenciam suas vozes e dão destaque à suas lutas.
Por último, gostaria de ressaltar o impacto que essa pesquisa e as histórias de vida
aqui contatas tiveram sobre mim. Cada qual me marcou de maneira única e, ainda que
eu atue em certa medida, no movimento organizado e esteja a par das situações
vivenciadas por outros LGBT, não deixo de me surpreender com as falas de meus
interlocutores. Ademais, imagino não ser necessário afirmar o quanto minha
aproximação para com a senhora travesti educada e suas meninas me impactou – os
excertos desse percurso etnográfico encontrados ao longo do trabalho, provavelmente
me denunciam. Ressalto que nenhuma tragédia é comparável, mas pensando em meu
‘lugar de fala’, enquanto gay que é aceito em seu núcleo familiar de origem, tendo a
concordar com o que me disse Leona: “a letra T é a mais sofrida da sigla LGBT”. Constato,
com efeito, que cada uma dessas histórias é singular. E confesso, fui ‘afetado’ por todas.
79
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87
ANEXOS
Carta aberta dos alunos Agostinianos em resposta aos senhores pais redatores e
signatários da carta crítica ao ensino do Colégio Santo Agostinho
Não somos capazes de mensurar nosso espanto ao ler, há algum tempo, a carta
aberta extrajudicial – posteriormente transformada em um “abaixo assinado” – redigida
com o objetivo de criticar os ensinamentos do Colégio Santo Agostinho.
79
Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2017/07/13/interna_gerais,883484/alunos-
do-santo-agostinho-defendem-ensino-de-diversidade-sexual.shtml>. Acesso em: 28 nov. 2018.
88
se uma afronta à autonomia parental na escolha dos ensinamentos fornecidos a seus
filhos?
Em relação ao livro de Ciências, as críticas dos senhores pais são pueris e não
merecem qualquer crédito. Nesse livro didático, a orientação sexual, a sexualidade, a
identidade de gênero e o sexo biológico são abordados de maneira inteiramente coerente
com a mentalidade de um aluno do Ensino Fundamental II, a partir de textos que
exaltam a tolerância e a diversidade. O ensino ao respeito às diferenças é um dos
principais pilares que regem a educação tanto Agostiniana quanto de inúmeros colégios
que seguem a doutrina católica, tendo em vista a importância da família e da escola para
a formação moral do aluno.
Frente aos questionamentos feitos pelos pais, portanto, nós, alunos do Colégio
Santo Agostinho de Belo Horizonte concluímos que a discussão relacionada à
sexualidade e à identidade de gênero é fundamental na desconstrução dos incontáveis
tabus presentes na vida adolescente e, principalmente, na aceitação tanto própria
quanto externa quando se tratando da homossexualidade, bissexualidade e
transexualidade. A tentativa de impedimento das exposições acerca da realidade social
baseada na discordância quanto à abordagem aproxima-se até mesmo da censura.
Aos pais, fica a reflexão: com o que os senhores estão realmente preocupados?
Com a vontade de manter seus filhos isolados de tudo aquilo que diverge do que lhes foi
ensinado ou com o fornecimento de ensinamentos extremamente relacionados à
convivência em comunidade e respeito ao diferente?
Com o tempo, vocês descobrirão, como nós, que o Colégio Santo Agostinho e seu
corpo docente sempre estarão disponíveis para ajudar todos os que a eles recorrerem em
busca de evolução pessoal.
89
Alunos da Terceira Série do Ensino Médio do Colégio Santo Agostinho – Unidade de
Belo Horizonte.
90
B. Código de Ética do Antropólogo e da Antropóloga da Associação Brasileira de
Antropologia – ABA80.
1. Direito ao pleno exercício da pesquisa, livre de qualquer tipo de censura no que diga
respeito ao tema, à metodologia e ao objeto da investigação.
2. Direito de acesso às populações e às fontes com as quais o/a pesquisador/a precisa
trabalhar.
3. Direito de preservar informações confidenciais.
4. Direito de autoria do trabalho antropológico, mesmo quando o trabalho constitua
encomenda de organismos públicos ou privados.
5. O direito de autoria implica o direito de publicação e divulgação do resultado de seu
trabalho.
6. Direito de autoria e proteção contra o plágio.
7. Os direitos dos antropólogos devem estar subordinados aos direitos das populações
que são objeto de pesquisa e têm como contrapartida as responsabilidades inerentes ao
exercício da atividade científica.
80
Criado na gestão 1986/1988 e alterado na gestão 2011/2012. Disponível em:
<http://www.abant.org.br/?code=3.1>. Acesso em: 11 jun. 2017.
91