2014 Tese Rasfeitosa
2014 Tese Rasfeitosa
2014 Tese Rasfeitosa
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA
FORTALEZA
2014
RICARDO AUGUSTO DE SABÓIA FEITOSA
FORTALEZA
2014
RICARDO AUGUSTO DE SABÓIA FEITOSA
À Profa. Dra Andréa Borges Leão, orientadora, pela condução serena e ao mesmo tempo
estimulante da pesquisa;
Ao Prof. Dr. Miguel Vale de Almeida, pela acolhida generosa no ISCTE-IUL, em Lisboa;
Aos professores Dr. Alexandre Bergamo, Dr. Cristian Paiva, Drª Glória Diógenes e Drª
Roberta Manuela Barros, pela avaliação da tese.
Ao Prof. Dr Cristian Paiva, pela interlocução ao longo dos anos e pelo modo sempre
atencioso com que tratou, como coordenador, das dificuldades de natureza acadêmica.
Aos professores do PPGS (UFC), em particular, aos professores Drª Alba Pinho, Drª Irlys
Barreira, Dr. César Barreira e Drª Rejane Accioly. Ao Prof. Dr. Marcelo Natividade, por ter
participado do exame de qualificação.
Aos meus pais, Amaury e Selma, pelo amor incondicional e pelos anos investidos na minha
formação;
Aos meus familiares, Eva, Amaury Jr, Paulo e Luzia, presentes mesmo quando eu estava
longe;
A Simone Oliveira Lima, pela acolhida em casa e pela amizade de tantos anos;
A Edma Góis, por ter ajudado a fazer de Lisboa algo possível e pelo afeto na reta final;
Ao Alexandre Joca, companhia de todo dia no ISCTE, nos primeiros passos da escrita, no
Bairro Alto e no Príncipe Real: “Mira, nosso tempo não passou”;
A Sheyla Freire;
Ao Rui Reis, “ê pá, essa cidade foi invadida por gajos giros”;
Ao Beto Holanda;
This research investigates the field of print publications conceived as "gay press" in Brazil,
taking them as relevant instances of the creation and re-elaboration of sexual and gender
categories and identities, and of the political visibility and experiences of homosexualities in
Brazil from the second half of the twentieth century. Focusing on newspapers and magazines
mostly addressed to a homosexual male reader, published in the 1960s (O Snob), 1970s
(Gente Gay e Lampião da Esquina), 1990s (Sui Generis) and 2000s (Junior), the thesis
analyzes how these publications at the same time forge and are immersed within the processes
of identifications that reiterate, displace or pose a risk to these categories and their
classification potential. It critically questions the themes privileged by these vehicles for being
in the interest of its audience and in the “public interest”. It investigates, fundamentally, the
construction and the search for legitimacy of a journalistic field that is claimed as “gay press”,
taking it as a social field of intersection between social subjectivities, practices and
knowledge which produces discourses about the experiences of subjects and ways of being. It
also examines how the demarcation of these publications as gay involve complex processes of
negotiation about dynamics that circumscribe and exceed the (re)constructions of categories
in these vehicles, associated with the processes of construction of a lectureship shaped in
homosexualities that are historically crossed by multiplicities, disputes and contradictory
strategies of affirmation and social legitimacy. Beyond dialogue with sexuality and gender
studies and socio-anthropological research addressing journalism as a field of symbolic
production, the methodology involves the analysis of discourses circulated in the cited
publications, and interviews with journalists and employees currently working or formerly
employed by this segment of the press. The aim is to construct a dialogic reflection between
the researcher and journalists about both their practices and this discursive production.
INTRODUÇÃO…...................................................................................................................10
REFERÊNCIAS …...............................................................................................................225
ANEXOS ...............................................................................................................................241
10
INTRODUÇÃO
de uma análise discursiva das categorias e marcadores sexuais e de gênero 1 numa perspectiva
de sua construção neste segmento jornalístico específico, o eixo de nossa investigação passa a
tomá-las não como um fim dos discursos selecionados para nossa leitura, mas dos processos
indissociáveis, no âmbito dessa imprensa que se anuncia ou se reivindica como “gay”, de
construção interdependente entre um endereçamento das publicações como e para gays (em
suas potencialidades e também seus limites) e das construções performativas dessas mesmas
categorias sexuais e de gênero.
Uma observação se faz necessária: entendemos que a categoria gay agencia
estratégias de (auto)identificações diversas, que ora tentam ampliar seu potencial para além de
homossexuais masculinos, ora se vê tensionada por sujeitos que reivindicam maior
visibilidade a suas especificidades (caso de lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis, entre
outros). Não queremos – nem acreditamos ser possível – estender aqui todas as contradições
envolvidas nessas estratégias, mas propomos explorar algumas delas a partir dos discursos
dos jornais e revistas analisados, de como gay passa a ser uma categoria ou um referencial a
ser elaborado, ora valorizado, ora interrogado, nas páginas dessas publicações. De todo modo,
pensar nos limites do gay como referencial de identificação no campo da sexualidade e gênero
é tanto reconhecer os seus limites em cenários mais complexos e segmentados como por em
perspectiva, também, seu potencial de permanência ao longo das últimas décadas. Nesse
sentido, compartilhamos com Eribon (2008, p. 23) uma leitura que esteja mais no horizonte
de uma “questão gay” como “um conjunto articulado de reflexões, no que elas têm, às vezes,
de incompleto, provisório, hipotético” do que de “tentativas de teorizar uma
homossexualidade” .
Nesse processo, a pesquisa passa fundamentalmente a interrogar, a partir dos
discursos veiculados nas próprias publicações e de entrevistas realizadas com jornalistas
(estagiários, repórteres, colunistas e editores), na reflexão sobre os processos dessa produção
jornalística e de seus contextos, como são elaboradas neste segmento editorial modos de ser
“gay”, mas também “homossexual”, “guei”, “entendido”, “bicha” e, em menor escala,
“lésbica”, “travesti” etc, numa articulação que envolve, em suas elaborações como
publicações jornalísticas gays, saberes, subjetividades, apropriações e deslocamentos de
1
Concordamos com Butler (2010, p. 335) quando esta afirma ser “inaceitável separar radicalmente as formas
de sexualidade dos efeitos das normas de gênero”, exigindo-se “conceber os dois termos numa relação
dinâmica e recíproca”, tanto para escapar de uma abordagem em que os dois termos seriam situados numa
“relação determinada estruturalmente” como meio de “poder desestabilizar o suposto heterossexual desse
estruturalismo” (BUTLER, 2010, p. 335). Informamos ainda que todas as traduções de citações em língua
estrangeira presentes neste trabalho foram realizadas por nós.
13
2
Situamos aqui a ideia de reconhecimento na perspectiva sugerida por Honneth, como “um ato expressivo
pelo qual certo conhecimento é conferido com um senso positivo de uma afirmação”. Ele ressalta ainda para
a dimensão de que “o reconhecimento depende de meios de comunicação que exprimam o fato de que outra
pessoa é suposta de ter um ‘valor’ social” (2004).
3
“Chegou a hora”, Editorial, Junior, ano 1, n. 1, set 2007, p. 11.
14
sobre uma sociologia da imprensa e das notícias, nos moldes sugeridos por Weber (2012) e
Park (2008) no início do século XX. Destacamos as contribuições (e algumas das limitações)
da construção, também ao longo do século passado, de uma “antropologia da comunicação”.
Apresentamos ainda as escolhas teórico-metodológicas que guiaram a investigação e
detalhamos a construção do corpus que compõe a análise discursiva da pesquisa.
No segundo capítulo, analisamos, numa proposta de leitura genealógica,
publicações gays emergentes num período que abrange da década de 1960 ao final dos anos
1970. Buscamos relacionar como a visibilidade, nas páginas desses periódicos, a categorias
como bicha, boneca, entendido, homossexual e gay interrelaciona-se com os esforços de
também construir, em nosso país, um lugar para um “jornalismo entendido”, “gay”/“guei” ou
“jornalismo homossexual”.
No terceiro, concentramos nossa análise na revista Sui Generis. A partir de uma
primeira leitura do corpus, optamos por não dividir a análise discursiva nas seções editoriais
selecionadas, mas de fazer uma leitura que atravessasse as matérias de capa, os editoriais e as
cartas dos leitores, combinando-as aos dados obtidos nas entrevistas realizadas com os
jornalistas desta publicação. Disso, três seções correlacionadas emergem: uma discussão
sobre a valorização do outing, do “assumir-se” ou de uma “saída do armário” como política
editorial da revista para construção de uma visibilidade “gay e lésbica”; a reivindicação – não
sem contradições e tensões – de uma “identidade” e “cultura” situadas como “gay”; e a
valorização de um modelo de jornalismo (“gay”), enfatizado seja nas páginas da revista, seja
nas falas dos seus atores, como distanciado de qualquer associação ao “pornográfico” ou ao
“vulgar” – mas que, como demonstraremos, negocia as fronteiras entre o “jornalístico” e o
“erótico” e busca se adequar às distintas demandas editoriais e dos leitores.
No quarto capitulo, adotamos estratégia semelhante para analisar a revista Junior.
Os eixos concentram-se na leitura da seção coverboy, ensaios fotográficos com os modelos
que tradicionalmente ilustram as capas da publicação; nos textos que buscam tratar de temas
situados discursivamente como da esfera dos “direitos sexuais” e/ou “humanos”, com
particular destaque para as matérias que tratam do que se convenciona chamar de “casamento
gay”, “casamento igualitário” ou “casamento entre pessoas do mesmo sexo”; um terceiro
conjunto permite-nos explorar as possibilidades e os limites de elaboração, no sentido
conferido pelos colaboradores da pesquisa, de uma “linguagem” ou “ponto de vista” gay nas
suas produções jornalísticas.
Convidamo-los, assim, a explorar uma parte desse universo editorial jornalístico
situado como “imprensa gay brasileira”, sem perder de vista que os próximos capítulos
16
5
“(...) a novidade consiste em que os elementos inconciliáveis da cultura, arte e divertimento, sejam reduzidos
a um falso denominador comum, a totalidade da indústria cultural. Esta consiste na repetição. Que as suas
inovações típicas consistam sempre e tão somente em melhorar os processos de reprodução de massa não é
de fato extrínseco ao sistema. Em virtude do interesse de inumeráveis consumidores, tudo é levado para a
técnica, e não para os conteúdos rigidamente repetidos, intimamente esvaziados e já meio abandonados”
(HORKHEIMER e ADORNO, 2003 [1947], p. 29).
6
“A refuncionalização do princípio da esfera pública baseia-se numa reestruturação da esfera pública enquanto
uma esfera que pode ser apreendida na evolução de sua instituição por excelência: a imprensa. Por um lado,
na medida mesma de sua comercialização, supera-se a diferença entre circulação de mercadorias e circulação
do público; dentro do setor privado, apaga-se a nítida delimitação entre esfera pública e esfera privada. Por
outro lado, no entanto, a esfera pública, à medida que a independência de suas instituições só pode ser ainda
assegurada mediante certas garantias políticas, ela deixa de ser de modo geral exclusivamente de uma parte
do setor privado” (HABERMAS, 2003, p.213).
19
para citarmos dois eixos que se desenvolveram na segunda metade do século, em áreas como
a sociologia, a história e as pesquisas na área de comunicação social. Em anos mais recentes,
o debate encontra eco, por exemplo, nas reflexões de autores como Bauman (2003), Bourdieu
(1997) e Thompson [2009 (1995)]. Este último, por exemplo, advoca que somente podemos
compreender as “características institucionais das sociedades modernas e as condições de vida
criadas por ela” se conferirmos aos meios de comunicação um “lugar central” no que ele
define como “organização social do poder simbólico”, que moldou o que se convencionou
chamar de “modernidade” (ocidental). Como ressalta,
“os contatos dos jornais com os partidos, aqui e em outros países, seus contatos com o mundo
dos negócios, com todos os inumeráveis grupos e pessoas que influem na vida pública e são
influenciados por ela, supõem um campo impressionante para a investigação sociológica”
(WEBER, 2002, p. 187; grifo nosso).
É digno de constatação como, num espaço tão reduzido, Weber sinaliza aspectos
que pautariam muitas das investigações sociológicas sobre a imprensa ou, mais largamente,
das sociedades caracterizadas, nas décadas posteriores, pelo aparecimento de novos meios de
comunicação de massa, como o rádio e a televisão, e das inter-relações entre imprensa e
outros domínios da “vida moderna”. Primeiramente, enfatiza que, “se considerarmos a
imprensa em termos sociológicos, o fundamental para toda a discussão é o fato de que, hoje
em dia, a imprensa é necessariamente uma empresa capitalista e privada que, ao mesmo
tempo ocupa uma posição totalmente peculiar, posto que, ao contrário de qualquer outra
empresa, tem dois tipos completamente distintos de 'clientes'”, que ele situa como “os
compradores de jornal” e os “anunciantes”, mas sem esquecer que “entre esse leque de
clientes produzem-se as inter-relações mais curiosas” (p. 188). Alerta, por sua vez, para os
riscos da “criação de trusts no setor de imprensa” quando as empresas jornalísticas se
deparavam com a necessidade de “uma crescente demanda de capital” para financiar seus
empreendimentos. A expansão das agências de notícias internacionais na produção do
noticiário, por sua vez, o leva a interrogar “quem são os que representam, em último lugar, as
fontes dessas notícias”. Insiste nas particularidades de organização da “instituição” imprensa
em países distintos, advogando um olhar atento às especificidades locais. E, reconhecendo a
diversidade editorial que caracterizaria cada edição de um periódico, “uma vez que o
conteúdo do jornal não consta apenas de notícias, por um lado, nem de produtos de indústria
do entretenimento, do clichê, por outro”, sugere que “não podemos nos contentar, com a
contemplação do produto como tal, mas sim temos que prestar atenção ao produtor e
perguntar pela sorte e pela situação do estamento jornalístico” (WEBER, 2002, p. 191). Essas
são pistas, por fim, para um projeto mais ambicioso, em que o sociólogo alemão lança como
indagações: “o que aporta a imprensa à conformação do homem moderno? Que influências
exerce sobre os elementos culturais objetivos supraindividuais? Que deslocamentos produz
neles?” (WEBER, 2002, p. 193).
No outro lado do Atlântico, eram as “notícias” que despertavam o interesse de
Robert E. Park, um dos nomes mais relevantes da “Escola de Chicago” e da afirmação da
sociologia nos Estados Unidos da primeira metade do século passado. Park, que também
atuou como jornalista, foi um dos pioneiros em reivindicar que elas fossem tratadas como
21
uma “forma de conhecimento”7. Para ele, um conhecimento que, não tendo a especificidade
daquele elaborado nas ciências, estaria menos vinculado ao passado ou ao futuro do que ao
“presente”, ou ao que ele classifica de “presente especioso” (specious present). Isso decorreria
da natureza “transitória e efêmera” que caracterizaria as notícias, de modo que estas
permaneceriam como tal até o momento em que alcançassem as pessoas para quais elas
tivessem “interesse de notícia” (PARK, 2008 [1940], p. 40-41). Assim, “uma vez publicada e
reconhecida sua importância, o que era notícia vira história” (Ibid.).
O sociólogo sugere pensarmos em duas formas de conhecimento, o do
conhecimento “formal”, “científico” e “sistemático” (knowledge about) e o conhecimento
não-sistemático, “concreto” ou do “senso comum” (acquaintance with), considerando-os,
porém, não em termos absolutos, mas constituindo um “continuum dentro do qual todos os
tipos e espécies de conhecimento encontram um lugar”. É nesse continuum que “a notícia tem
localização própria”: Park sugere que, não configurando “conhecimento sistemático como
aquele das ciências físicas”, ela fosse tomada como “eventos” (PARK, 2008, p.58).
Essa definição como evento faz com que Park reitere, com particular ênfase, o
caráter transitório e ao mesmo tempo vinculado ao presente da produção e circulação das
notícias. Contrapõe, assim, o repórter ao historiador, pois aquele “busca somente registrar
cada evento quando ele acontece e está interessado no passado e futuro apenas na medida em
que projetam luz sobre o que é real e presente” (PARK, 2008, p.58). Quase um século depois,
pode-se por em perspectiva crítica esta associação de “história” como “passado”, bem como
da inserção das “notícias” em realidades que se complexificam, marcadas pela emergência de
novos gêneros jornalísticos e a afirmação de cursos de jornalismo em nível superior e deste
como atividade “profissional”8. Mas o que nos interessa aqui é destacar o esforço de Park em
legitimar o estudo das notícias no interior de uma expansão – para citar uma expressão
utilizada pelo próprio autor – do “horizonte sociológico” da época. É nesse contexto, por
7
Concentramos nossa leitura no artigo “A notícia como forma de conhecimento: um capítulo dentro da
sociologia do conhecimento” (PARK, 2008, p. 51-70). Sugerimos ainda a leitura das reflexões do autor sobre
notícia e imprensa desenvolvidas nos seguintes artigos “A história natural do jornal” (PARK, 2008, p. 33-50),
“Notícia e o poder da imprensa” (PARK, 2008, p. 71-82) e “Foreign language press and social progress”
(PARK, 1967, p. 133-144). Para um balanço das contribuições de Park no estudo do jornalismo, cf. Machado
(2005).
8
Traquina faz um extenso apanhado para uma abordagem conceitual das notícias, seja numa abordagem
“construcionista”, seja numa perspectiva em que seus profissionais a situam como “estórias”. Lembra que,
“embora o paradigma das notícias como narrativa não signifique que as notícias sejam ficção, questiona o
conceito das notícias como espelho da realidade” (2008, p. 19). Também as situa no interior de uma
“comunidade interpretativa”, em que “numa história universal do jornalismo, cada vez mais visível na era da
globalização, dois processos fundamentais marcam a evolução da atividade jornalística: 1) a sua
comercialização e 2) a profissionalização de seus trabalhadores” (p.34). Os jornalistas reivindicariam, assim,
“um monopólio do saber – o que é a notícia” (p. 34).
22
9
Para uma reconstituição dos modos como o jornalismo constitui-se em domínio de investigação sociológica,
ao longo do século XX e sob um recorte norte-americano e britânico, cf. Zelizer (2004). A autora também
lançou influente artigo em que defende uma compreensão dos jornalistas menos como uma comunidade
“profissional” do que como “membros de uma comunidade interpretativa unida por seus discursos
compartilhados e interpretações coletivas de eventos públicos chaves” (1993, p. 219). No terreno da pesquisa
em comunicação social, uma referência brasileira são as pesquisas de Marques de Melo (2003a; 2003b). Na
sociologia brasileira, para um apanhado crítico, num escopo mais ampliado da “sociologia da cultura” ou da
“sociologia da comunicação”, cf. Arruda (2010) e ainda a discussão sobre a “diluição da mídia como objeto
sociológico” empreendida por Rocha (2011).
23
incorporada por estes profissionais como forma de complexificar tanto sua leitura do “social”
como dos modos de narrar o “funcionamento”, a “estruturação”, a “ritualização” e a
“simbolização” da vida coletiva, a partir de olhares menos parciais e que pudessem ser
construídos mediante a adoção de perspectivas teóricas e metodológicas correntes na
antropologia.
Considerando que cada campo (o jornalístico e o antropológico) apresenta suas
especificidades, demandas e reivindicações de legitimidade, entendem-se as dificuldades para
se cumprir o que Coman (2003, p. 7) sintetiza como a “dupla conversão de antropólogos em
jornalistas e de jornalistas em antropólogos”. De todo modo, como também ressalta o autor,
uma “antropologia da mídia” conseguiu firmar relativo espaço no terreno da antropologia
cultural, em consonância com sua expansão a novos domínios que escapavam àqueles
circunscritos ao que se definiria como “antropologia clássica”, mas que se apropriaria dos
referenciais desta para tratar do cotidiano. Neste mesmo movimento, emergiriam
“antropologias” situadas como “antropologia da saúde”, “do esporte”, “do corpo” etc.
Peterson (2003), por sua vez, entende que, mesmo já sendo possível encontrar
breves reflexões sobre os jornais norte-americanos nos escritos de Franz Boas na primeira
década do século XX, o interesse antropológico pela “comunicação de massa” nos Estados
Unidos só cresceu substancialmente a partir da década de 1980, quando já tinha maior
visibilidade em áreas como a sociologia, psicologia, ciência política, os “estudos culturais” e
o próprio campo da “comunicação social”.
As primeiras pesquisas antropológicas dedicadas à comunicação de massa teriam
sido marcadas notadamente pelo viés funcionalista, com metodologias que buscavam aplicar
os preceitos de Malinowski e de Radcliffe-Brown, como a observação participante e a análise
das “instituições”, ao estudo do consumo midiático em pequenas comunidades. Como
destaca, “davam atenção ao modo como estas instituições funcionavam em direção às
necessidades sociais e psicológicas dos membros da comunidade, e como estas instituições
funcionavam para manter a coesão social como um todo” (PETERSON, 2003, p. 27). Estudos
nessa perspectiva foram perdendo espaço na medida em que o próprio funcionalismo e os
“estudos de comunidade” como espaços coesos e delimitados eram questionados na
antropologia.
Uma segunda corrente, que se inicia a partir dos anos 1960, associa-se ao
interesse de antropólogos em vincular os meios de comunicação ao processo de
“modernização” das sociedades, ampliando a análise de um enquadramento “comunitário”
para as “estruturas sociais” mais amplas. Escolhendo como campo sociedades “periféricas”
25
aos Estados Unidos, como países da América Latina ou da Ásia, buscava discutir as relações
em transformação do urbano/rural, nacional/”folk”, e de como os veículos de comunicação
atuavam justamente “mediando” os processos de manutenção ou reconfiguração das tradições
ou das mudanças sociais.
Também nos anos 1960, desponta uma tendência que associa a comunicação ao
“desenvolvimento”. Esses estudos ecoam ainda a perspectiva funcionalista, ancorando-se num
modo linear de conceber os processos comunicativos (a mensagem como “sinal” que parte do
“emissor” diretamente ao “receptor”, com a possibilidade de ocorrer “ruído”), reforçando
ainda uma visão das sociedades ou países periféricos como “primitivas”, “tribais” etc.
Mais representativa, no intervalo entre as décadas de 1940 e 1960, foi a corrente
que Peterson (2003, p. 47) define como as pesquisas antropológicas que buscavam pensar a
atuação dos meios de comunicação na elaboração da “cultura” e da “personalidade” dos
indivíduos, geralmente a partir de um enfoque que lia os “textos midiáticos como expressivos
das culturas nacionais que os produziam, do mesmo modo que os rituais e os contos
folclóricos tinham sido estudados pelos antropólogos como expressivos das culturas de
sociedade de menor escala”. Como destaca o autor, essa perspectiva falha quando valoriza
leituras “tautológicas” que tentam definir como “padrões culturais” os “comportamentos
observados” dos receptores midiáticos, quando concebe monoliticamente a ideia de que os
meios de comunicação expressam padrões culturais em geral e, por fim, quando a própria
noção de “nação” como “unidade cultural” passa a ser questionada com mais ênfase na
antropologia.
Já na décadas de 1970 e 1980, seja na esteira da influência da antropologia
estrutural centrada na obra de Lévi-Strauss, seja no peso que a noção de cultura como
conjunto de “textos” defendida por Geertz [1993 (1973)] assume no âmbito de uma
“antropologia interpretativa”/“cultural”10, ganha relevância uma concepção de “mídia” como
“sistema simbólico”. Se noções como “ritual” ou “mito” despontam como centrais para a
descrição de como os meios de comunicação apresentam papéis ativos na estruturação ou
codificação dos símbolos culturais e atuam ou “performam” – ecoando a influente perspectiva
10
Isso é evidenciado em diversas passagens das reflexões lançadas por Geertz sobre o trabalho de “descrição
densa” a ser empreendido pelo antropólogo: “O conceito de cultura que exponho (…) é essencialmente
semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal suspenso em redes de significância que
ele mesmo gerou, entendo a cultura ser essas redes, e sua análise então não uma ciência experimental em
busca das leis, mas uma ciência interpretativa em busca de significados (p. 5); “Em suma, escritos
antropológicos são eles mesmo interpretações” (p. 15); “Há três características da descrição etnográfica: ela é
interpretativa; o que é interpretativa é o fluxo do discurso social; e aquilo interpretado consiste em tentar
resgatar o “dito” de tais discursos de suas ocasiões perecíveis e fixá-lo em termos perecíveis” (GEERTZ,
1993, p. 20).
26
11
Cf. Coman (2003), particularmente a introdução e o capítulo “Les processus: la ritualisation et la
mythification” (p. 135-164).
12
Destacamos, entre o vasto repertório de reflexão construído sobre a antropologia e, mais especificamente, na
crítica sobre a escritura antropológica (seja em relação à reprodução de relações de poder e hierarquias entre
pesquisadores e colaboradores, seja na revindicação por trabalhos mais dialógicos), Clifford e Marcus (eds)
(1986); Clifford, (2008) e James, Hockey e Dawson (orgs) (1997). Também destacamos a leitura de Marcus
(1994), quando ele situa que a “reflexividade é um termo usado comumente no lugar de uma alternativa ainda
não realizada na produção da etnografia. Para mim, portanto, a reflexividade não é tanto uma questão
metodológica quanto uma questão ideológica que, por sua vez, mascara a ansiedade quanto a um pós-
modernismo mais amplo, porém mais difícil de ser concebido. Quanto a isso, há uma distinção importante
entre a reflexividade essencial e uma reflexividade ideológica derivada, como eu a chamo. A reflexividade
essencial é uma característica integrante de qualquer discurso (como na função indicial dos atos de fala); não
se pode escolher entre ser reflexivo ou não no sentido essencial – é sempre uma parte do uso da linguagem.
Mas o que resta é como lidar com o fato da reflexividade, como usá-lo estrategicamente para certos interesses
teóricos e intelectuais” (MARCUS, 1994, p. 18). O autor defende uma forma de “reflexividade autocrítica”,
“enquanto politica de posição”, a reconhecer que “o campo das representações não é de forma alguma um
mero complemento do trabalho de campo; as representações são fatos sociais e definem não apenas o
discurso do etnógrafo, mas também sua posição literal em relação aos objetos” (MARCUS, 1994, p. 24).
29
13
Exploramos estas dimensões na seção seguinte, ao apresentar os jornais e revistas que compõem nosso
corpus, e nos capítulos subsequentes.
14
Como sugerem as entrevistas com os jornalistas de Sui Generis e Junior para esta pesquisa, essa inclusão é
menos uma questão mercadológica – as duas revistas reiteram a ampla prioridade a uma audiência gay
masculina – do que responder a eventuais críticas de leitores que não se sentem contemplados na linha
editorial. Também é, assim, uma estratégia editorial de se legitimarem como revistas “plurais”, “diversas”.
30
a outros textos, compartilhando modelos formais com estes, desenhando-se numa miríade de
modos sobre suas fontes textuais”. Mesmo quando “completamente intencional”, um texto
“nunca está confinado à intenção de um único emissor” (BARBER, 2007, p. 10).
Ainda inspirada numa perspectiva bakhtiniana, a antropóloga propõe pensarmos
esse “terreno” onde os textos são elaborados e projetados a uma “público” a partir de uma
“zona de endereçamento”, constituída na “orientação mútua do texto para a audiência e da
audiência para o texto” (BARBER, 2007, p. 138). Nesse sentido, a autora utiliza-se de uma
noção de público como “uma audiência cujos membros não são conhecidos ao autor do texto,
e não necessariamente presente, mas ainda assim endereçada simultaneamente, e imaginada
como uma coletividade” (Ibid., p. 139). Há um processo contínuo de (re)construção desse
público, uma vez que “uma nova forma de endereçamento faz-se necessária quando o autor
exibe um texto ou uma performance para uma massa de destinatários que não o conhecem ou
se conhecem entre si, e que não são pessoalmente reconhecidas ou diferenciadas de cada um
no endereçamento do texto – mas que são, por sua vez, convocadas como se formassem uma
coletividade real, copresente e singular” (BARBER, 2007, p. 140).
Nesse processo de “construção” e de “convocação” dos leitores, a antropóloga
ressalta um ponto relevante para nossa investigação: “formas específicas de endereçamento a
audiências dispersas de leitores também podem desempenhar um papel na constituição de
novas formas de sociabilidade – forjando vínculos, gerando clivagens ou desenvolvendo nas
pessoas um reconhecimento de sua condição comum” (BARBER, 2007, p. 140). Barber faz
suas observações a partir de um contexto específico, de análise das “tradições orais, gêneros
populares e a escrita” em sociedades africanas do presente, mas é interessante pensarmos que
os processos negociados de construção de um público leitor “gay”, projetado a partir dos
textos ou discursos e dos modos como jornalistas e colaboradores das publicações que
também se situam (e são situadas) como “gays” constroem esses mesmos discursos, tendem a
ser subvalorizadas15, refletindo-se assim em análises acadêmicas cujos objetivos acabam não
conseguindo escapar de uma “comprovação”, em leituras “textuais”, de que uma ou outra
publicação reproduz determinados modelos ou padrões de “identidades” sexuais e de gênero.
No caso de uma imprensa dita gay, isso tem como agravante também tomar
determinadas categorias e marcadores sexuais e de gênero como previamente “dados”,
“prontos” para serem identificados pelo pesquisador. Mesmo quando há uma intenção de por
sob crítica os limites “identitários” calcados numa política de valorização de algumas dessas
15
Uma exceção é o trabalho de Monteiro (2000) sobre a construção de masculinidades nas revistas Vip Exame,
Sui Generis e Homens.
31
16
O diálogo com Sedgwick, particularmente em torno da noção de “armário” e de sua “epistemologia”, é
realizado no capítulo 3, a partir da análise da revista Sui Generis.
17
“Ao compreender a identificação como uma fantasia ou incorporação realizada, contudo, fica claro que a
coerência é desejada, ansiada, idealizada, e que esta idealização é um efeito de uma significação corporal. Em
outras palavras, atos, gestos e desejo produzem o efeito de um núcleo interno ou substância, mas o fazem na
superfície do corpo, por meio do jogo de ausências significantes que evocam, mas nunca revelam, o princípio
organizador da identidade como uma causa. Tais atos, gestos e realizações são performativos no sentido de
que a essência ou a identidade que pretendem afirmar são invenções fabricadas e preservadas através de
signos corporais e outros meios discursivos. O fato de que o corpo gendrificado [gendered body, no original]
seja performativo sugere que não tem um status ontológico a margem dos vários atos que constituem sua
realidade. Isto também sugere que se tal realidade é fabricada como uma essência interior, essa mesma
interioridade é um efeito e uma função de um discurso decididamente público e social, a regulação pública de
uma fantasia através da política de superfície do corpo, do controle fronteiriço do gênero que diferencia o
interno do externo, e assim instaura esta “integridade” do sujeito. Em outras palavras, atos e gestos, desejos
organizados e realizados, criam a ilusão de um núcleo de gênero interior e organizador, uma ilusão mantida
discursivamente com o propósito de regulação da sexualidade no interior do quadro obrigatório da
heterossexualidade reprodutiva. Se a 'causa' do desejo, o gesto e o ato pode se situar dentro do 'self' do ator,
então as regulações políticas e as práticas disciplinares que produzem esse gênero ostensivamente coerente
são efetivamente deslocadas (BUTLER, 1990, p. 185-186). Em Bodies that Matter, a autora revisita o
impacto que a noção de performatividade trouxe aos estudos de gênero: “As coisas pioraram ainda mais ou se
fizeram ainda mais remotas por causa das questões plantadas pela noção de performatividade de gênero
apresentadas em Gender Trouble. Pois se eu tinha sustentado que os gêneros são performativos, isso
significaria que eu pensava que alguém acorda de manhã, examina o guarda-roupa ou algum espaço mais
amplo em busca do gênero que queria escolher e o adotava durante o dia para voltar a colocá-lo em seu lugar
à noite. Semelhante sujeito voluntário e instrumental, que decide sobre seu gênero, claramente não
pertence a esse gênero desde o começo e não se dá conta de que sua existência já está decidida pelo gênero.
Certamente, uma teoria deste tipo voltaria a colocar a figura de um sujeito que decide – humanista – no
centro de um projeto cuja ênfase na construção parece opor-se por completo a tal noção (...) Se o
gênero não é um artifício que se pode adotar ou se rechaçar à vontade e, portanto, não é um efeito da escolha,
como poderíamos compreender a condição constitutiva e compulsiva das normas de gênero sem cair na
32
armadilha do determinismo cultural? (…) Afirmar que a materialidade do sexo constrói-se através da
repetição ritualizada de normas dificilmente seria uma declaração evidente por si mesma (...) Conceber o
corpo como algo construído exige reconceber a significação da construção ela mesma (BUTLER, 2010, p.
12, 13 e14).
33
18
Num longo universo exploratório, recorremos aqui a Barbosa da Silva (2005), Fry (1982), Perlongher (2008),
MacRae (1990), Parker (2002), Facchini (2005), Simões e Facchini (2009), França (2006; 2010), Carrara e
Simões (2007). Voltaremos a estes autores na medida em que se realizam as análises das publicações do
corpus, nos capítulos subsequentes.
19
Seguimos aqui a perspectiva de “discurso” sugerida por Véron (1980, p. 217-218): “Todo discurso tem duas
faces: remete, por um lado, às suas condições de engendramento; é, porém, por outro lado, o exercício de um
poder. Tanto num caso como no outro, relativamente às suas origens e a seus efeitos, ele é uma economia de
conjunto (…) Entre a produção da fala e de seu poder, existe certamente um sistema de relações, mas tais
relações não podem ser inferidas de maneira linear da produção ao reconhecimento. Toda situação
interdiscursiva é uma situação na qual um universo de operações se mostra e um poder se exerce: a passagem
de um a outro é o que se poderia chamar de embreagem dos discursos nas situações de sua circulação. Um
discurso, é desse ponto de vista, o lugar de mediação entre um universo de operações e um universo de
representações”.
34
Mais do que buscar a permanência dos temas, das imagens e das opiniões através do
tempo, mais do que retraçar a dialética de seus conflitos para individualizar
conjuntos enunciativos, não poderíamos demarcar a dispersão dos pontos de escolha
e definir, antes de qualquer opção, de qualquer preferência temática, um campo de
possibilidades estratégicas? (…) No caso em que se puder descrever, entre um certo
número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva
(…) As regras de formação são condições de existência (mas também de
coexistência, de manutenção, de modificação e de desaparecimento) em uma dada
repartição discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 43)
Nesse aspecto, a “imprensa gay” deve ser tomada como uma “formação
discursiva”, no sentido proposto por Foucault, constituindo-se como ponto de partida para
problematização de um segmento editorial que redesenha suas fronteiras a partir de um
conjunto de demandas por parte dos atores que nela atuam e do seu(s) público(s) leitor(es), de
pressões, busca por legitimidade (como universo que reivindica reconhecimento como
“jornalismo”), enfim, a partir de um “campo de possibilidades estratégicas” em que emergem,
reiteram-se e se dispersam os discursos que vamos analisar. Ao agruparmos determinados
jornais e revistas sob a designação “imprensa gay”, por sua vez, estamos refletindo sobre os
processos sociais que interrogam tanto as práticas deste segmento editorial como de sua
relevância na (re)construção das dinâmicas em jogo quando se reivindicam alguns modos de
identificação e de visibilidade a determinados temas nos terrenos da sexualidade e gênero do
Brasil das últimas décadas20.
Também em Maingueneau (1997, p. 19) buscamos como referência um alerta
acerca do processo de construção do corpus de análise: o de que, sem uma reflexão das
escolhas que, como pesquisadores, somos obrigados a fazer, corre-se o seguinte risco: “aplica-
se cegamente um método a um corpus e obtém-se algo que representa apenas o resultado
deste método aplicado a este corpus”. Ele, então, nos lembra que “não é a presença de
hipóteses muito específicas e de pressupostos que é prejudicial, mas a intenção de não utilizá-
los ou de fazê-lo minimamente”. Assim, “é o fato de levar em conta a singularidade do objeto,
a complexidade dos fatos discursivos e a incidência dos métodos de análise que permite
produzir os estudos mais interessantes” (Ibid.).
20
No caso de Sui Generis, por exemplo, a leitura do corpus revelou como o outing era uma política central de
visibilidade reivindicada na linha editorial, bem como postura defendida por seus jornalistas. Em Junior,
pautas como “casamento igualitário” ou a “igualdade de direitos sexuais e/ou humanos” ganham destaque
nos anos recentes. Retornamos a estas questões – e as contradições que as compõem – nos capítulos
específicos de análise das respectivas publicações.
35
21
Longevidade no contexto de uma “imprensa gay” no Brasil, e particularmente para títulos que, neste
segmento, tentam se distanciar editorialmente da associação a publicações que tenham como destaque a
veiculação de ensaios de nu. Nesse último perfil, G Magazine está nas bancas brasileiras desde 1997.
Revistas segmentadas para outros públicos também circulam há décadas. É o caso das edições brasileiras de
Playboy (desde 1975) e Cosmopolitan (Nova, desde 1973), endereçadas respectivamente a uma audiência
masculina e feminina, abordando temas acerca de sexualidade, comportamento e consumo. Uma leitura da
“segmentação da cultura” a partir dos universos de revistas publicadas no país, com ênfase no século XX e
nas publicações da editora Abril, é realizada por Mira (2001).
22
Essa leitura genealógica é empreendida no capitulo 2. Seguimos aqui a perspectiva de genealogia nos termos
de Foucault: “A genealogia é cinza. Ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha sobre
percursos confusos, fissurados, várias vezes reescritos (…) O que se encontra, no começo histórico das
coisas, não é a identidade ainda preservada de suas origens – é a discordância de outras coisas, é o disparate.
36
A história aprende também a rir das solenidades de origem (…) Outro uso da história: a dissociação
sistemática de nossa identidade. Pois essa identidade, bem falível, que nós ensaiamos de garantir e de montar
sob uma máscara, é somente uma paródia: o plural as habita, almas incontáveis disputam-se; os sistemas
entrecruzam-se e se dominam uns aos outros (…) A história, genealogicamente dirigida, não tem por fim
reencontrar as raízes de nossa identidade, mas de perseguir, no contrário, a sua dissipação. Ela não
empreende localizar o lugar único de onde nós viemos, esta primeira parte onde os metafísicos nos prometem
que nos farão retornar; ela empreende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam
(FOUCAULT, 2004, p. 393, 396, 418-419).
37
presentes na primeira página sinalizam muitas das dimensões envolvidas nos modos como a
revista busca se apresentar num primeiro contato com o leitor, bem como de uma
hierarquização dos temas que ela julga como mais “quentes” ou dignos de destaque e das
possibilidades destes causarem impacto, disputando a atenção dos leitores nas bancas. Como
destacam Vaz e Trindade (2013, p. 225), a capa é a “vitrine de qualquer publicação”, “um
rosto exposto em meio a centena de outros rostos – não só de revistas, mas também de jornais,
almanaques, apostilas para concursos, livros e afins –, que busca a todo momento fisgar os
olhos daqueles que passam pelas bancas de revista”. Os autores entendem ainda que “cabe à
capa, portanto, o papel de traduzir as intenções, o posicionamento e a identidade da revista”,
convertendo-se num “canal de comunicação constante com o leitor, permitindo que, antes
mesmo de folhear a revista, ela saiba do que ela fala e como fala”.
No universo das capas selecionadas em nossa análise, a maior parte das
chamadas23 remete a reportagens e entrevistas24, representando apostas e direcionando ao
leitor, numa hierarquização dentre todos os textos publicados, aqueles que o(s) editor(es)
julga(m) os mais atrativos em cada edição. Isso pode incluir desde as pautas que recebem
maior investimento em apuração a artigos retratando personalidades, temas polêmicos ou em
evidência em determinado período. Em síntese, na capa costumam figurar os conteúdos
selecionados a partir do que, no interior da práxis jornalística, atribui-se maior “valor-
notícia”25.
23
Cf. Anexos A e B.
24
Nas definições apresentadas por Sousa, a notícia consiste num “pequeno enunciado reportativo, um discurso
sobre um acontecimento recente (ou, pelo menos de que só no presente se tenha conhecimento), vários
acontecimentos ou desenvolvimentos de acontecimentos”, representando “informação nova, actual e de
interesse geral” (2005, p. 169), sendo o “gênero básico do jornalismo”. Já a reportagem “é seu gênero
nobre”, tendo como principal objetivo “informar com profundidade e exaustividade, contando uma história”.
O autor entende ainda que se pode considerar a reportagem “um gênero jornalístico híbrido, que vai buscar
elementos à observação directa, ao contato com as fontes e à respectiva citação, à análise de dados
quantitativos, a inquéritos, em suma, a tudo o que possa contribuir para elucidar o leitor” (2005, p.187). A
entrevista, como gênero jornalístico (ela também pode ser tomada como técnica básica de recolha de
informações para compor uma notícia ou reportagem), “corresponde à transposição de perguntas e respostas
feitas durante a entrevista, enquanto técnica de obtenção de informações, para um determinado modelo de
enunciação. Este modelo discursivo consiste na exposição de respostas dadas por um entrevistado às
perguntas de um entrevistador” (SOUSA, 2005, p. 172).
25
Como destaca Fontcuberta (1993, p. 57), “uma vez que um meio seleciona alguns acontecimentos para
oferecê-los como notícias (o que implica que rechaça outros), tem que valorá-los. Em primeiro lugar, deve
fazê-lo por necessidade: as informações que vão em primeira página são as primeiras vistas pelo leitor e as
que dá mais importância (…) Mas também tem que fazê-lo para mostrar ao público sua própria valoração da
atualidade e feitos jornalísticos e, para tanto, para definir sua própria personalidade frente a outros meios”.
Traquina (2008), por seu turno, define “valor-notícia” como procedimento de seleção e transformação de
acontecimentos em notícias, mediante o cumprimento de uma série de critérios (entre eles, de simplificação e
personificação dos fatos, de dramatização de eventos etc.). Eles não são necessariamente fixos, pois um ou
outro aspecto do valor-notícia pode ser privilegiado de acordo com o perfil de cada publicação (de notícias
“quentes” ou “frias”, se tem ou não caráter mais sensacionalista etc).
38
o gênero, isto também sinaliza o esforço de construção discursiva de uma maior proximidade
e intimidade destes (e das publicações) com o leitor27.
A seção de cartas dos leitores permite-nos, por seu turno, complementar a
proposta de pensar como os discursos das publicações “gays” são elaborados a partir de
negociações frente a um público leitor específico, no interior da construção da “zona de
endereçamento” como dialógica na orientação mútua texto-público. Ela é, igualmente
importante ressaltar, o espaço em que uma parcela dos leitores manifesta-se mais
assertivamente sobre os conteúdos ou sobre o perfil da publicação. Em alguns casos, a
exposição das críticas ou das demandas de (parte) do leitorado, bem como eventuais respostas
ou esclarecimentos por parte dos jornalistas ou do veículo, sinalizam alguns dos aspectos mais
interessantes da construção processual de sua linha editorial.
Mesmo reconhecendo que a publicação das cartas passa por um processo de
seleção ou filtragem no interior das redações, analisar os seus discursos permite-nos pensar
que os processos de construção de uma revista como “gay” implica em elaborar, de modo bem
sucedido, identificações entre a revista e seu público, mas que estas incorrem em negociações
e, em muitos casos, tensões, sinalizadas nas reivindicações de leitores que não se identificam
com determinadas abordagens ou modelos de ser valorizados nas páginas da publicação, ou
de sujeitos que põem em questionamento o fato de não se sentirem reconhecidos nos modos
em que tais revistas representam o “gay”, ou ainda dos limites deste como categoria ou
referencial identitário ou de identificação.
A segunda diretriz na construção do corpus diz respeito a uma segunda seleção no
total de exemplares à disposição, de modo a aprofundar a análise discursiva. Priorizamos um
recorte temporal que nos permite explorar, ao longo dos anos de circulação de Sui Generis e
de Junior, um número mais reduzido de edições, mas sem perder uma dimensão de conjunto,
permitindo perceber, ao longo dos anos, a consolidação das linhas editoriais das revistas, seus
ajustes e reendereçamentos frente aos leitores, como dos eventuais deslocamentos, mudanças,
tensões e recriações operadas nessas mesmas linhas, nas pautas elaboradas, nas temáticas
abordadas, nos processos de reendereçamento.
Desse modo, trabalhamos com três subconjuntos nos dois títulos. Em Sui Generis,
ele foi composto por 10 exemplares dos anos I e II28, oito exemplares dos anos III e IV29 e
27
Em Sui Generis, a seção é intitulada simplesmente “Editorial”. Em Junior, “Preliminares”, o que sugere certa
informalidade/intimidade e ainda a intenção de prenunciar temas e questões consideradas relevantes
abordadas no conteúdo editorial de cada edição.
28
Edições 1, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14.
40
oito exemplares dos anos V e VI30. Em Junior, 10 exemplares dos anos I e II31, oito
exemplares dos anos IV e V32 e seis exemplares do ano VI33.
Ressaltamos que a construção desse corpus de análise não representa apenas uma
simples etapa da construção “metodológica” da pesquisa, mas de apropriarmo-nos, nos termos
sugeridos por Orlandi (2001, p. 67), da análise de discurso como “um procedimento que
demanda um ir-e-vir constante entre teoria, consulta ao corpus e análise.
Em paralelo à leitura dos exemplares, realizamos entrevistas individuais e
semiestruturadas com jornalistas que atuaram nas revistas Sui Generis e Junior. No caso de
Sui Generis, elas ocorreram ao longo do ano de 2011, na cidade de São Paulo e no Rio de
Janeiro. Participaram os jornalistas Gilberto Scofield Jr (que iniciou sua trajetória na revista já
atuando no jornalismo econômico da “grande imprensa”, tendo exercido nos primeiros
exemplares a função de editor-assistente, permanecendo cinco anos como titular da coluna
“Estilo de Vida”, que ele sintetiza como de abordagem de temas que “tivessem um viés um
pouco urbano, mas também de sentimentos profundos, universais como 'primeiro amor',
encontros, a questão da fidelidade, o 'trepa ou não trepa', que as pessoas associam à vida
gay masculina”34); Marcos Mazzaro (na época, estudante de mestrado em antropologia,
formado em jornalismo, contratado para escrever reportagens de capa em 1997 e, num
segundo momento, também responsável por uma seção fixa de resenha de teatro e literatura
intitulada “Mosaico”); Roberto (Beto) Pêgo (publicitário de formação, trabalhou como
fotógrafo e repórter, iniciou na revista como estagiário, no início do ano de 1999, por se
identificar, como leitor, com a proposta editorial); Roni Filgueiras (jornalista, convidada para
assumir a função de editora nos anos III e IV da revista) e Heloiza Gomes (jornalista, com
trajetória anterior no jornalismo sindical, assumiu como editora no período que vai do ano V
ao encerramento da revista).
Em São Paulo, no primeiro semestre de 2013, foram entrevistados jornalistas que
atuam em Junior: Nelson Neto (estagiário, cursando na ocasião o último ano da faculdade de
jornalismo numa universidade privada), Gean Oliveira (jornalista recém-formado também
numa universidade privada, quando da entrevista ocupava a função de repórter), Felype
29
Edições 19, 20, 23, 24, 30, 31, 34 e 40.
30
Edições 41, 43, 44, 47, 48, 52, 54 e 55.
31
Edições 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10.
32
Edições 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 e 34.
33
Edições 47, 48, 49, 50, 51 e 52.
34
Entrevista ao autor em 10 mai 2011.
41
“O ano já é novo e a estação, a nossa preferida. Não podia haver melhor ocasião
para o lançamento de Sui Generis. Em clima de verão e de recomeço, a primeira edição quer
ser um convite para você, leitor, entrar nesses novos tempos que os anos 90 tão bem
42
35
Sui Generis, Editorial. Ano 1, n. 1, jan 1995, p. 4.
36
Os dois jornais foram objeto de análise específica de Rodrigues (2010). Sobre o Nós, por exemplo, o autor
destaca que era destinado a um “público leitor majoritariamente masculino, letrado e ativista” (p. 128). Sobre
o ENT&, ressalta que este foi pensado para “homens entre 20 e 40 anos, que tivessem uma aparência e
comportamento masculino; também pessoas antenadas com os acontecimentos globalizados, (…) que fossem
militantes mas nem tanto”. A brevidade de sua circulação, de acordo ainda com Rodrigues a partir de um
diálogo com um dos editores do periódico, decorreria do fato de que o “ENT& veio fora de hora, não tendo
sido acolhido pelos militantes gays e nem entendido pela maioria da comunidade gay, pois o jornal, que era
feito como uma revista, se apresentava como jornal, dirigido a um público que era gay, mas que não se
imaginava frequentando os ambientes gays. O ENT& se perdeu no meio das novidades e das conquistas que
um grupo assumidamente gay, que frequentava os lugares gays e adotava uma postura gay, estava
acumulando” (RODRIGUES, 2010, p. 131).
37
Nelson Feitosa, em depoimento a Rodrigues, destaca: “Comecei a receber revistas dessa natureza. Desse tipo
de revistas de conteúdo cultural e com jornalismo mais bem feito, mais profissional, sendo lançada lá fora,
né? Consegui comprar aqui no Brasil, numa livraria de revistas importadas, a Attitude, que foi uma das
primeiras revistas inglesas a serem lançadas nessa linha. Tinha conseguido uma edição da Out, que é uma
revista norte-americana. E aí eu comecei a achar legal... E aí, conversando com o Zé... Nessa época, né? Isso
era 1994... Não existia ainda essa popularização do computador que existe hoje, né? (Rodrigues, 2010, p.
138). Viterbo, por sua vez, a partir do relato colhido por Flávia Péret: “'Um dia saiu uma matéria bacana na
coluna da Maria Caballero, do jornal O Globo, falando de uma revista gay que seria lançada nos Estados
Unidos. De fato, essa revista nunca foi lançada, mas a noticia contava um pouco a história da revista OUT.
Nós nunca tínhamos escutado falar que essas coisas existiam. O Nelson leu aquilo e ficou fascinado. Ele
falou: 'Poxa, podia fazer um negócio assim, podia fazer um negócio assim'. Pouco tempo depois, em 1994,
Feitosa e Viterbo viajaram para os Estados Unidos. Voltaram para o Rio com diversas publicações dirigidas
ao público homossexual, norte-americanas e europeias, e o desejo de criar uma revista gay no Brasil”
(PÉRET, 2011, p. 86).
38
Sui Generis, Editorial. Ano 1, n. 1, jan 1995, p. 4.
43
(Diretor Geral), além da colaboração de Marcos Pulga (Diretor Financeiro), nascia instalada
num pequeno sobrado na rua Santa Clara, uma das principais vias do bairro de Copacabana,
Zona Sul da capital fluminense. Roni Filgueiras descreve o local do seguinte modo: “Era
interessante, porque não era só uma redação, era quase um 'bunker' de resistência. As pessoas
passavam para tomar café, paravam no caminho para a praia, era um point. Era uma casinha,
às vezes parecia mais um consultório sentimental”41. Já a visão de Heloiza Gomes era a de
uma “redação comum”: “Alguns leitores ligavam, mandavam e-mail, dizendo que o sonho era
conhecer a Sui Generis. Um leitor da Bahia até veio visitar. As pessoas fantasiavam muito.
Era uma redação pequena, totalmente comum. A única diferença era essa [ser para um público
gay]”42.
A equipe era reduzida43, e o trio tinha como expectativa lançar no mercado
editorial uma revista voltada para uma audiência “gay e lésbica”, que se distanciasse de uma
associação a títulos não-profissionais que veiculavam fotos de nu44, aproximando-se assim de
um modelo de revista “gay” informativa, de entretenimento e lazer. Como declara o
colaborador Gilberto Scofield Jr (responsável inicialmente pela coluna Contraponto, que
mesclava notas sobre o ativismo local e estrangeiro com notícias sobre as cenas gays de
grandes centros urbanos internacionais), criou-se ao longo dos meses uma expectativa sobre o
aparecimento da revista, particularmente no circuito dos jornalistas:
41
(Entrevista ao autor em 21 nov 2011). No último ano, quando a revista estava em crise financeira, a editora
de Sui Generis, que funcionava no mesmo sobrado da redação da revista, em Copacabana, mudou-se para o
centro do Rio.
42
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
43
Nos primeiros exemplares, a redação de Sui Generis era composta basicamente por um editor (Nelson
Feitosa), um editor-assistente (Gilberto Scofield), um diagramador (José Vitor Souza), um ilustrador e
produtores dos ensaios de moda. Uma parte significativa do do conteúdo era produzido por colaboradores e
complementados por “correspondentes”. Ao longo dos anos, essa estrutura teve poucas alterações. Nelson
permaneceu como editor e, posteriormente, foi incorporada a função de “editor adjunto”, exercida a partir do
número 24 por Roni Filgueiras. Um novo rearranjo situou Feitosa como “diretor de redação”, compondo
ainda a redação as figuras do(a) editor(a), editor de moda e beleza, repórteres, estagiários, colaboradores e
colunistas. No último exemplar (ed. 55, mar 2000), as funções eram apresentadas do seguinte modo: “diretor
de redação” (Nelson Feitosa), coordenador de redação (José Viterbo F.), editora adjunta (Heloiza Gomes),
editor de moda e beleza (Rogério S) e uma lista de nomes que se dividiam em “redação”, “colunistas”,
“colaboradores”, “fotógrafa”, “direção de arte”, “projeto gráfico” e “publicidade”.
44
É importante ressaltar que, dois anos após o lançamento de Sui Generis, G Magazine chega ao mercado,
também investindo em uma circulação nacional em bancas de revista e assinaturas, sem o caráter artesanal
que marcavam publicações eróticas ou pornográficas, mas tendo como principal destaque a exibição do nu
masculino, numa fórmula que se revelou bem sucedida comercialmente quando do seu lançamento.
45
uma coisa que causaria certo impacto, no sentido comportamental, de a revista ser
referência na área para a literatura, para a produção de conteúdo para gays e lésbicas
no Brasil, sob todos os aspectos, históricos e comportamentais 45.
Como podemos situar esse otimismo que cercava Sui Generis? Além da
circunstância de ser o verão a “nossa” (do editor, dos jornalistas da revista, dos potenciais
leitores...) estação preferida, o que faria daquele momento uma “ocasião” propícia para o
lançamento de um projeto com aquelas características? Que “novos tempos” eram aqueles,
enfatizados em seu editorial e percebidos pela publicação como “bem anunciados” pelos
“anos 90”?
Um dos modos de “reconstituí-lo”, mesmo que parcialmente, é situar o
lançamento de Sui Generis num cenário mais amplo, de rearranjo nos circuitos de vivência
das homossexualidades no Brasil, em que não apenas se reorganizavam os espaços
tradicionais de atuação coletiva definidas geralmente pelo signo de “militância”, como se
ampliavam segmentos ancorados na oferta de serviços e consumo a gays e lésbicas (com
maior ênfase aos primeiros, notadamente os pertencentes a uma classe média e alta residente
nos principais centros urbanos), em expansão no Brasil em meados dos anos 199046.
O ano em que Sui Generis chega às bancas de revista, 1995, pode ser considerado
chave na história das reivindicações públicas dos sujeitos gays, lésbicas, bissexuais e
transexuais no Brasil. Em junho, pela primeira vez uma cidade brasileira, o Rio de Janeiro,
sedia a Conferência Internacional da ILGA47. Cinco meses antes, a cidade de Curitiba recebe
simultaneamente o VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas e o I Encontro de Gays e
Lésbicas que Trabalham com Aids, eventos marcados ainda pela fundação da Associação
Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT). Como registram Simões e
Facchini (2009, p. 144 e 145),
45
Entrevista ao autor em 10 mai 2011.
46
Há uma extensa bibliografia sobre estas esferas, suas relações e interdependências (PARKER, 2002;
FRANÇA 2006, 2010; SIMÕES; FACCHINI, 2009, entre outros), cuja diversidade torna impossível citá-la
em sua inteireza na medida em que constituti uma parte significativa do que tem sido definido como campo
de estudos de sexualidade e gênero no Brasil das últimas duas ou três décadas. Optamos, assim, por
privilegiar, mais especificamente no terceiro capítulo, os próprios discursos circulantes em Sui Generis como
pontos de partida de análise. Mais do que recorrer a autores que embasem ou “contextualizem” as condições
de emergência da revista, acredita-se numa leitura que se constrói, assim, no trânsito entre os discursos
elaborados na revista, as entrevistas realizadas com seus jornalistas, e as contribuições dos “achados” das
investigações de pesquisadores nesta área.
47
Associação Internacional de Gays e Lésbicas, fundada na Inglaterra, no final dos anos 1970. Reunia
associações da Europa, Estados Unidos e Austrália, com o objetivo de “maximizar a efetividade das
organizações gays por meio de uma ação política coordenada em busca dos direitos gays”. Uma cronologia
de suas atividades, e as diretrizes atuais de seu estatuto, podem ser encontradas no sítio da instituição.
Disponível em : <http://ilga.org/ilga/en/article/mG6UVpR17x>. Acesso em 15 abr 2013.
46
a partir de meados dos anos 1990, em que a parceria com o Estado, gestada no
período anterior, se consolida e dá impulso à multiplicação de grupos ativistas,
promovendo a diversificação dos vários sujeitos do movimento na atual designação
LGBT, a formação das atuais grandes redes regionais e nacionais de organizações, e
a consagração das Paradas do Orgulho LGBT, paralelamente ao crescimento do
mercado segmentado voltado à homossexualidade” (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p.
14)
Este “mercado segmentado” tem sido objeto particular de investigação nas últimas
47
duas décadas. França (2006), por exemplo, considera que na década de 1990 “o que se
conhecia como 'gueto' transformou-se num mercado mais sólido, expandindo-se de uma base
territorial mais ou menos definida para uma pluralidade de iniciativas” (p. 2). Se o “gueto”
homossexual nos centros urbanos brasileiros estruturava-se principalmente nas casas noturnas
ou nas saunas como espaços principais de sociabilidade48, entravam em cena novos
estabelecimentos, espaços de consumo e canais de informação, num mercado que passou a se
rotular como “GLS”, ou seja, direcionado a gays e lésbicas mas que demonstrasse abertura
aos “simpatizantes” que não fossem ou não quisessem ser reconhecidos como
“homossexuais”: “festivais de cinema, agências de turismo, livrarias, programas de televisão e
até mesmo um canal a cabo, inúmeros sites, lojas de roupa” (Ibid.).
Como observa a autora, isto envolvia “também o estabelecimento de uma mídia
segmentada”, em que revistas como G Magazine e Sui Generis alcançaram “visibilidade e
alcance” distintos de outras publicações que surgiram na década de 1980, logo após o
fechamento do Lampião da Esquina. Particularmente sobre a Sui Generis, França (2006, p.
66) destaca: “investia numa apresentação visual sofisticada, com ensaios de moda, artigos
sobre as novidades do cenário cultural e comportamento e entrevistas bastante detalhadas com
personagens ligados de alguma forma à homossexualidade”.
Parker (2002), por sua vez, enxerga nos anos 1990 o desenvolvimento de um
“circuito gay”, caracterizado pelo “surgimento de uma variedade de estabelecimentos
comerciais que concentram não apenas os encontros sexuais eventuais, mas também um tipo
mais abrangente de sociabilidade gay” (p. 119). Para o autor,
Sui Generis é mencionada por Parker (2002, p. 337) como “uma das mais
sofisticadas e visíveis dessa nova onda” de “revistas e jornais gays que começaram a florescer
48
Isso não quer dizer que se tratava de um espaço rigidamente demarcado. Convém lembrar as análises de
Perlongher (2008 [1987]) sobre a deriva de homens que se relacionavam com outros homens, em fluxos que
atravessam espaços urbanos e desejos. Voltaremos à questão do “gueto” a partir da leitura do jornal Lampião
da Esquina e de reflexões empreendidas por MacRae (1983; 1990). (cf. Capítulo 2).
48
49
Prossegue a crítica: “O movimento inicial que acontece no 'centro' independe delas. Elas o incorporam,
processam e, dadas certas circunstâncias, especialíssimas, conseguem exportá-lo reelaborado. O movimento
tem sua origem sempre em seu 'exterior'” (CARRARA; SIMÕES, 2007, p. 91 e 92).
49
não existiam! Então, passando a existir, a gente tinha a impressão que isso ia
aparecer, né, não é possível que não percebam que esse mundo das grifes é um
mundo que tem um imaginário gay enorme, que turbinam essas grifes, que dão valor
inestimável a elas. Portanto, seria uma boa ideia anunciar numa revista que tratasse
diretamente com esse público. Isso acabou não se confirmando50.
e tiragens que chegariam a alcançar a cifra de 100 mil exemplares52, a editora que publicava
Sui Generis, a SG Press, lança dois novos títulos, Homens e Sodoma, revistas voltadas para
uma audiência aparentemente mais interessada em contos eróticos e ensaios de nu, nacionais
ou reproduzidos/traduzidos de outras publicações estrangeiras53.
Perceber essas dificuldades, assim, sugerem pelo menos duas ponderações: a de
que, mesmo quando se considera a década de 1990 como uma época de expansão, no Brasil,
de serviços e as expectativas de uma emergência de uma “comunidade gay” ou “GLS”, ao
mesmo tempo faz-se necessário pô-la numa perspectiva que, ao menos tomando um segmento
de sua imprensa que geralmente é citado como atestado dessa “expansão”, considere tal
“comunidade” frente a desafios, dificuldades de articulação e esforços para se manter viável.
Também ajuda a entender uma dimensão recorrente nos discursos dos jornalistas de Sui
Generis entrevistados para nossa pesquisa: não obstante as dificuldades identificadas no dia a
dia da redação, quando interpelados para revisitarem suas atuações na revista e da posição que
esta ocupava naquele contexto, geralmente expressam como “orgulho” ter feito parte da
“história” de uma revista comprometida com uma “causa” que teriam, por meio do trabalho
“jornalístico”, ajudado a construir.
52
Cf. Péret, 2011.
53
Sobre a trajetória de G Magazine, destaca Péret: “Em fevereiro de 2008, depois de lutar vários anos contra
inúmeras dívidas, foi vendida para o grupo norte-americano Ultra Friends International (…) Os novos
editores fizeram uma grande reestruturação editorial. As colunas perderam espaço, assim como as matérias de
comportamento. A G Magazine, que quando surgiu pretendia aliar militância e erotismo, vem se
transformando em uma revista exclusivamente erótica, já que diminuiu o número de matérias e aumentou o
de ensaios fotográficos” (2011, p. 90).
Abordaremos no terceiro capítulo (seção 3.3), a partir de algumas reportagens publicadas em Sui Generis e
da questão de se veicular ou não o nu em suas páginas, como na verdade o distanciamento do “erótico”
consistia em negociações para tentar satisfazer parte da audiência leitora ou captar um público que esperavam
mais fotos “eróticas”. Ainda que Homens e Sodoma não componham nosso corpus, o lançamento dos dois
títulos não podem ser dissociados de como negociar essa posição de revista de “qualidade”, “sofisticada”,
“jornalística” que a revista tentava preservar. Ressalto ainda o que foi dito pela editora Heloíza Gomes,
quando ela sugeriu que os dois títulos foram lançados com o objetivo de preservar uma identidade editorial
de Sui Generis, mas também de compensar financeiramente o investimento com pouco retorno na publicação,
algo que se identificou com o sucesso de G Magazine.
51
como a Out americana ou a Têtu francesa, mas não seria a melhor idéia”54.
É com essas palavras que André Fischer55 (Diretor de Redação/publisher)
apresenta, em editorial publicado na primeira edição, o surgimento de Junior no mercado
jornalístico impresso (gay). Esboçam-se ali algumas das diretrizes básicas da linha editorial:
produzir uma revista cuja imagem não fosse associada a títulos “eróticos”, mas que não
abrisse mão de oferecer aos leitores “homens lindos” sob um recorte “sensual”. O perfil
“informativo” das matérias implicaria uma postura “assumida” para com seu leitorado, de
atender e ao mesmo tempo conferir visibilidade a temas “sérios” ou eventualmente
“políticos”, mas que se conciliasse com a produção de matérias, seções e abordagem de
temáticas extraídas do domínio do “entretenimento”.
Uma imagem leve, descontraída, também passava por explicitar ao que a revista
não queria ser associada: um veículo “militante”56. O termo “assumida”, por sua vez, também
sugere o que as linhas seguintes vai circunscrever, o público leitor projetado da revista:
Há tempos esperávamos o momento certo para dar forma a essa revista masculina
direcionada ao gay brasileiro, onde mulheres e homens de corações e mentes
abertos, independente da orientação sexual, também se sentissem contemplados.
Quinze anos depois do nascimento do Festival MixBrasil de Cinema, treze anos na
54
“Chegou a hora”. Editorial, Junior, ano 1, n. 1, set 2007, p. 11.
55
Fischer é formado em economia, mas realizou uma trajetória que ele define como “da economia para o
marketing, do marketing para a publicidade, da publicidade para a computação gráfica e, com esta, chegou à
criação da BBS (Bulletin Board System) que deu origem ao [portal e grupo] MixBrasil”. Filho de um
publicitário e uma jornalista, disse que “sempre esteve próximo da comunicação”, o que o levou a atuar no
extinto Jornal da Tarde e como autor da coluna GLS no jornal Folha de S.Paulo, na década de 1990, além de
eventuais colaborações para a revista Sui Generis. O publisher (termo de tradição no jornalismo norte-
americano para designar o proprietário de um jornal ou revista) também revela que se interessou “desde
cedo” por cinema, o que o levou, após o convite de um amigo cineasta a organizar uma mostra de festival de
cinema em Nova York, a criar um festival de cinema independente “GLS”, atualmente da “diversidade
sexual”, realizado anualmente e que se encontra na 21ª edição. Sobre a criação da BBS, comenta: “Criamos a
primeira comunidade online em 1995. Em 1997, tava com um acordo com o [portal] UOL. Eu sempre tive
envolvido com essa questão de tecnologia, sabia das possibilidades dessa área e de aplicar isso no universo
gay”. Considerado um dos possíveis criadores da sigla GLS (“Gays, Lésbicas e Simpatizantes”), também nos
anos 1990, Fischer diz: “A gente lançou a segunda edição do Festival [MixBrasil], e quando fomos lançá-lo,
queríamos descrever quem seria o público frequentador, que não seria só gays e lésbicas. O simpatizantes era,
inicialmente, para descrever o público do festival. Quando passa a se definir mais amplamente, pode-se
considerar como nossa especificidade, brasileira. A única maneira de se expandir aqui, no Brasil, é
dialogando e também disfarçando um pouco para enfrentar as resistências. A maneira de ampliar [os espaços]
é assim” (Entrevista ao autor em 27 jun 2013). Retomamos ao uso estratégico da noção de “simpatizante” no
capitulo 3. Para uma coletânea de textos de Fischer publicados no jornal Folha de S. Paulo e no portal
MixBrasil, cf. Fischer (2008).
56
Fischer comenta essa passagem do editorial: “Sensual sem ser erótica é fácil de explicar, não tinha 'pinto',
uma contraposição a G Magazine, que era revista de referência gay na época, para as pessoas entenderem que
não era uma revista de nu. Engajada sem ser militante, não sei hoje em dia, para usar uma referencia da
época, ela não seria uma revista como a [norte-americana] Advocate, política. Mas acho que é muito militante
sim, mais do que engajada. Na época quis fazer essa diferenciação. Pra localizar o que era a revista, que
falaria de política mas que não era política, que teria homens bonitos mas não pelados, acho que era esse o
recado dado (Entrevista ao autor em 27 jun 2013).
52
estrada produzindo o maior portal de interesse GLS da internet, uma rádio web
segmentada e outros sites gays, chegou a hora do nosso júnior vir à luz (“Chegou a
hora”, Editorial, Junior, ano 1, n. 1, set 2007, p. 11; grifos nossos)
57
André Fischer, em entrevista à Revista Imprensa, ao discorrer sobre a inexistência de uma revista informativa
lésbica de circulação expressiva no Brasil, sita-a como uma questão mercadológica: “É uma questão
importante. Mas na hora que eu vou fazer uma revista que vai contar com as vendas em banca e com os
anunciantes, meu público é masculino”. In: VESCELAU, Pedro. O (supermercado) gay. Revista Imprensa,
São Paulo, n.230, dez 2007.
58
In VESCELAU, Pedro. O (supermercado) gay. Revista Imprensa, São Paulo, n.230, dez 2007.
Miskolci tece os seguintes comentários sobre a construção dos leitores (e do perfil) de Junior como “jovem”:
“Sem modelos ou scripts para a vida adulta que possam competir pelos ditados pelo mercado, estes homens
vivenciam a experiência de ter que viver a partir de ideais de consumo que marcam não apenas a compra de
objetos, mas, sobretudo pressões sobre aonde ir, com quem sair, a quem desejar e – sobretudo – como se
tornar socialmente aceito. Nestas condições, ao adotarem uma vida “gay” vivem um corte biográfico em que
a adolescência anterior pouco parece prover para a experiência presente. Daí sua abertura a referências “fora
de época” e a uma problemática afetivo-sexual que se mistura, inevitavelmente, com a busca por formas de
encontrar uma nova inserção social na sempre ameaçada condição da homossexualidade.(…) Em meio a
estes aprisionamentos corporais e subjetivos, compreendemos o culto de uma juventude idealizada como
estado “natural”, condição mesma de uma certa homossexualidade em nossa cultura. Nas matérias sobre
relacionamentos, por exemplo, encontramos uma intitulada “Era vidro e se quebrou”, mais uma referência
infantil(izada) que corrobora que é a armadilha da “imaturidade”, de poderosos ideais e fantasias sobre si
mesmo, que preenche as páginas e marca a vida dos leitores da principal revista do segmento editorial gay
brasileiro (MISKOLCI, Richard. In: <http://www.ufscar.br/cis/2010/06/reflexoes-queer-sobre-a-revista-
junior/> Acesso em 12 ago 2013. Também conferir a análise de Azevedo (2010).
Paiva, por seu turno e pensando a partir do lugar da velhice e das conjugalidades homossexuais, interroga:
53
Da revista ser jovem, sim, já é uma demarcação. Ate hoje não sei dizer exatamente
quem é o leitor da Junior. Sei dizer que sim, é um leitor gay, mas até hoje acho
difícil delimitar. A gente nunca fez pesquisa grande, nunca teve dinheiro pra isso.
Acho que tem todo tipo de homem comprando, mais jovem, menos jovem, mais
rico, menos rico. Comparando com a H, acho que a Junior é mais pop, o público da
H, mais maduro, assumido. Uma tem gíria, outra tem palavrão, a gente costuma
brincar na redação. A Junior tem gíria nova, conectada com essas novidades, mais
pop, a H, um público mais masculino. Tinha até uma questão pessoal, de eu não me
“Se consultarmos os estudos sobre velhice no Brasil, verificaremos, como regra geral, o silêncio a respeito do
envelhecimento homossexual. Poderíamos ver aí um sintoma de recalcamento das questões relativas a aliança
e parentesco que, no campos LGBTT, se achariam desbussolados? (…) Quando é, por exemplo, que um gay
começa a envelhecer? Quando se depara em “envelhescência”? Aos trinta? Aos quarenta? Aos cinquenta? A
matriz heterossexual nesse sentido ajuda a delimitar um campo mais ou menos desenhado para essa
marcação: envelhece-se quando os filhos saem de casa, ou quando casam, ou quando vêm os netos... Mas
quando não há esses marcadores geracionais expressos na norma conjugal e familiar, quando é que se começa
a envelhecer? E o que a experiência de envelhecer faz mudar a percepção de si, do outro e do mundo?”
(PAIVA, 2009, p. 199-201).
59
A sedimentação deste endereçamento a um leitor jovem como eixo da linha editorial ajuda a compreender o
lançamento de H Magazine em fevereiro de 2012, pela mesma editora MixBrasil. Bimestral, esta é apresenta
editorialmente num contraponto a Junior: “E se a JUNIOR foi pensada para um leitor jovem – ou que busca
informação jovem – conectado com a noite, novas tendências de moda e cultura pop, a H vem preencher a
lacuna de informação existente nas bancas e tablets para o homem gay com mais de 30, mais tranquilo e de
bem com a vida. Ainda que não tenha a revista um caráter erótico, colocamos na capa o aviso
'desaconselhável para menores de 18 anos' para poder ousar um pouco mais sem chocar ninguém, e sobretudo
porque esta não é uma revista para adolescentes” (“Hora H”, Editorial, H Magazine, ano 1, n.1, fev/mar
2012, p. 6).
54
encarar tanto como um leitor da Junior, daí lançar a H. Mas é uma percepção, a
gente nunca fez pesquisa, é no feeling.60
60
Entrevista ao autor em 27 jun 2013.
61
Entrevistas ao autor em 12 mar 2013 e 27 jun 2013. O publisher atribui a diminuição da tiragem a um
encolhimento do mercado editorial de revistas impressas, não apenas gays, mas geral.
62
Uma descrição desses deslocamentos é empreendida por França (2006).
63
Na última edição do corpus, junho de 2013, o expediente registrava como “Publisher” André Fischer e na
seção “Redação”, o “Editor” Marcelo Cia e, sob a rubrica “Reportagem”, Gean Oliveira e Nelson Neto
(estagiário). Um total de 11 colaboradores participou daquela edição. Na seção “Arte”, “Projeto gráfico e
editor” era atribuído a Marcio Caparica, “Editor assistente” Marcio Rosemberg e “Design e tratamento de
imagens” “Alan Key. Trabalhar com colaboradores revela-se uma estratégia empresarial de menor custo fixo
para o veículo.
55
apresentam descrições convergentes de suas rotinas: um deles relatou que dedicava o período
da manhã para atualizar o sítio eletrônico do portal MixBrasil com notícias e para leituras das
páginas eletrônicas de revistas gays estrangeiras. O turno da tarde, que poderia se estender até
o início da noite, era dedicado à produção de Junior, mas quando se tornou “repórter
especial”, passou a escrever a maior parte das matérias em casa. Outro jornalista informou
que, quando não estava na “rua” fazendo reportagens e eventos, “como o que é normal em
qualquer mídia”, trabalhava seis horas no período vespertino, sendo que metade do período
consistia em “abastecer o site de notícias” e, o restante, ao conteúdo da revista mas
destacando que “não era tão rígida essa divisão”.
Geralmente, a interlocução sobre o andamento das pautas, o enquadramento a elas
conferido é feito diretamente com o editor da redação, com relativa independência. A “semana
de fechamento”, ou seja, os dias em que as matérias são “finalizadas” e a revista diagramada
no formato que vai ser impresso e posto em circulação, como em qualquer publicação
jornalista, é o período de atividade mais intensa. Também é a ocasião de maior interação entre
os repórteres e editor, de avaliação do que foi produzido, dos eventuais ajustes etc. Segundo
me informou um dos jornalistas, geralmente ocorre uma reunião mensal e, quando avaliada
como necessária, uma reunião extra. A mesma equipe que atua em Junior eventualmente
também colabora com matérias para a revista H.
O fato de estar sediada na capital paulista reforça, entre os próprios jornalistas e o
publisher da revista, uma imagem de que Junior, apesar de se posicionar como “nacional”,
concentra suas pautas num universo de classe média/alta de consumo e serviços (casas
noturnas, saunas, centros de estética e beleza)64 da cidade. Quando questionados a respeito, os
jornalistas apresentaram respostas convergentes: ainda que reconheçam um esforço de cobrir
outras cidades, as limitações na estrutura da redação para fazer uma cobertura
64
Ainda que Fischer tenha destacado nas entrevistas não realizar pesquisas sobre o perfil do leitor, na edição 26
(março de 2011) há uma matéria na seção “Especial” indicando que Junior realizou sua “primeira pesquisa
com os leitores”, em que ouviu “100 deles” a partir de “uma mescla de membros das comunidades da revista
no Orkut, Twitter, os que comentam as edições por e-mail e outros ainda que responderam nosso chamado
pelo site da JUNIOR”. Na faixa etária, informam-se os seguintes números: 2% dos leitores teriam menos de
18 anos; 20% de 18 a 24 anos; 48% de 25 a 31 anos; 20% de 31 a 39 anos; e 10% com mais de 40 anos.
66% dos entrevistados dizem “estar namorando” ou “casado”, 44% solteiros. Nas respostas espontâneas
sobre as “principais qualidades da revista”, comenta-se que “disparado aparecem respostas como conteúdo
não erótico, fotos não apelativas, não colocar nudez, não ter pornografia, entre outras respostas
equivalentes (…) Ainda neste tópico, há grande quantidade de respostas sobre a 'a abrangência de assuntos'
das reportagens e elogios em relação a 'fotos, visual e os modelos', e a 'qualidade das reportagens'”. No box
“O que falta”, registra-se que “entre os assuntos que a JUNIOR deveria tratar com mais frequência, o que
mais aparece é ligado ao mercado de trabalho (como assumir no trabalho, projetos e leis que protegem
profissionais gays, sugestões de carreira etc), e que “também são citados conteúdos sobre religião; matérias
dirigidas a homens maduros, reportagens que tirem dúvidas sobre leis de casamento gay e proteção contra
homofobia” (“Quem é você”. Junior, ano 4, n. 26, mar 2011,. p. 40-41; grifos nossos).
56
65
Na edição 05 (ano 1, maio de 2008), os anúncios correspondiam a 15 de 132 páginas; no exemplar 29 (ano 4,
junho de 2011), que trazia na capa o “Mister Brasil 2011”, 18 páginas, num total de 100; a edição 50 (abril de
2013) trazia 10 páginas de anúncio, também num total de 100 páginas.
66
Fischer faz a seguinte leitura: “Pensando no Brasil, acho que está ligado a questões culturais, de a gente aqui
ser mais careta, conservador. E ai entra outra coisa que não é só brasileira, mas qual o sentido desse mercado
para novas gerações? Hoje, quando você fala de mercado gay, você fala para mais de 25 anos. Não acho que
exista um mercado para jovens. Tem uma questão etária, de a nova geração se identificar de outras maneiras.
O que conquistamos nesses anos foram direitos e visibilidade. Quando você sai de um miolinho muito
pequeninho, localizado nos grandes centros urbanos, acho que não mudou tanto assim, e acho que isso
dificulta a estruturação desse mercado. A gente não pode nem falar de mercado porque é um número muito
pequeno, que não configuraria a ideia de um mercado em si” (Entrevista ao autor em 27 jun 2013).
57
chamá-la assim – gay no Brasil. Tudo aqui tem uma lógica própria. Realizamos a
maior Parada Gay do planeta mesmo sem haver uma mobilização de massa por
direitos GLBT. Temos um festival de cinema da diversidade sexual mandando filmes
nacionais para fora que surgiu antes que se estabelecesse uma produção local
reconhecida. Estamos dispostos a perder o medo de avançar, precisamos apenas de
um empurrão (…) Apesar da enorme visibilidade conquistada na última década, o
segmento conseguiu se organizar mais efetivamente em torno de nichos específicos
na internet, noite e sexo. Outras áreas como turismo e moda já descobriram que não
vivem sem nós. Outros estão começando a entender isso agora (“Chegou a hora”,
Junior, ano 1, n.1, set 2007, p. 11)
67
“Woof – Mike Smarro faz sucesso ajudando a criar a iconografia da moderna comunidade dos ursos” (Junior,
ano 1, n. 3, fev. 2008, p. 82-85); “Queer nerds – quadrinhos, homens e joysticks” (Junior, ano 1, n. 4, abr
2008, p. 38-41); “Tc de onde – você é MLK, BROW, KSDO ou SARADAO?” (Junior, ano 1, n. 9, 2009, p.
46-47); “Whoof! Nova geração de ursos é mais linkada e bem resolvida” (Junior, ano 4, n. 27, abr 2011, p.
28-31); “Surfistas assumidos” (Junior, ano 4, n. 27, abr 2011, p. 28-31); “Punks gays – Rebeldia em dobro”
(Junior, ano 4, n.28, mai 2011, p. 52-53); “Skatistas gays revelam suas manobras” (Junior, ano 4, n. 30, jul
2011, p. 42-45); “Punks gays – anarquia e viado sim. Vai encarar?” (Junior, ano 6, n. 51, p. 58-60).
A cena de “ursos” é explorada etnograficamente por França, a partir do acompanhamento de uma de suas
principais festas realizadas em São Paulo (“Ursound”), das complexidades de classificação e de produção de
subjetividades e desejos no interior deste universo, nas “fronteiras” entre “normatividades” e “subversões”
(cf. FRANÇA, 2010, particularmente o capítulo IV). Em linhas gerais, “ursos” são homossexuais que não se
identificam com o padrão de corpo magro ou definido e de poucos pêlos.
68
“Amor e sexo na prisão” (Junior, ano 1, n.4, abr 2008, p. 102-105); “Vida Real – Gays que moram nas ruas
de SP contam seus dramas e sonhos” (Junior, ano 1, n. 6, jul 2008, p. 38-43); “Interior – Como gays
enfrentam preconceito e fofoca em cidades pequenas” (Junior, ano 1, n. 7, set 2008, p. 68-71); “20,30,40,50
- O que muda no sexo com o passar do tempo” (Junior, ano 4, n. 29, jun 2011, p. 36-39); “Todas bate (sic)
continência! Dossiê: Homens fardados” (Junior, ano 5, n. 32, set 2011, p. 40-42); “Dossiê Gays na periferia –
Bom dia, comunidade!” (Junior, ano 5, n. 34, nov 2011, p. 36-39); “ Transhomem – tem que ser muito macho
pra deixar de ser menina” (Junior, ano 6, n. 51, mai 2013, p. 72-74).
69
Numa extensa produção sobre esse tema, Facchini (2005), França (2006, 2010), Simões e França (2005).
58
que a revista tanto reproduz como também (re)cria, não deixa de ser atravessada por
dissonâncias, dispersões, que emergem seja na reflexão dos seus ofícios pelos próprios atores
que atuam na revista, seja na necessidade de atender a uma parte leitora do público que cobra,
por meio de cartas e e-mails, outras possibilidades de serem “visibilizados” ou
“representados” editorialmente.
Ao mesmo tempo, esse conjunto de matérias também pode ser situado num
espaço que, editorialmente, parece circunscrito. Mesmo quando bem intencionadas, elas não
deixam de reiterar determinados sujeitos, desejos e modos de ser e viver como notícias à
margem ou da/na “periferia”. Em outros casos, como nas reportagens sobre “skatistas” e
“surfistas gays”, não se deixa de se reforçar estas como categorias fetiches a partir do olhar
“privilegiado” dos “gays” tomados como leitores prioritários/majoritários.
Destacamos, por fim, que no mesmo ano do lançamento de Junior, DOM (De
Outro Modo) chegou ao mercado numa disputa por um público semelhante70, com capas que
investiam em modelos ou atores de televisão que se apresentam ou são reconhecidos como
“galãs” heterossexuais. Aimé também pode ser considerada outra representante do que, num
momento de leitura positiva do aparecimento desses títulos, foi considerado como uma nova
fase da “imprensa gay brasileira” mas que, pouco menos de uma década depois, encontra em
Junior e nos títulos do MixBrasil (H Magazine e Junior Homem71) alguns dos poucos títulos
impressos de referência não centradas em ensaios de nu e com venda em bancas de revista.
Tanto Fischer como os jornalistas atribuem a longevidade de Junior a fatores diversos, desde
a insistência em não expor nas páginas da revista a genitália masculina, afastando-a de
qualquer vinculação, por parte dos leitores e dos anunciantes, ao que se poderia ser visto
como “pornográfico”, como a uma compreensão, por parte da equipe que faz a revista, de que
profissionalmente entendem e conseguem responder às necessidades específicas do público
privilegiado como leitor.
Nesse contexto, é importante perceber que, dos três títulos lançados praticamente
na mesma época, Junior era a única veiculada a um grupo (MixBrasil) cuja atuação está
estabelecida há quase duas décadas, notadamente num circuito que inclui o maior festival
anual de cinema da “diversidade sexual”, a realização de um programa de rádio semanal numa
70
DOM foi lançada por uma editora de médio porte no segmento editorial de revistas, a Peixes, encerrando suas
atividades em 2009.
71
A Junior Homem consiste em edições esporádicas (até o momento, quatro foram lançadas), contendo apenas
ensaios fotográficos, geralmente com modelos que já foram retratados nas páginas da revista principal.
59
72
http://mixbrasil.uol.com.br.
73
Entrevista ao autor em 26 jul 2013.
60
consumo gays em nossos centros urbanos a partir tanto do discurso acadêmico de MacRae
(“Em defesa do gueto”, 1983) como do editorial de inauguração do jornal Lampião da
Esquina (“Saindo do gueto”, 1978).
Nessa mesma perspectiva, incluem-se as referências a pesquisas que, indireta ou
diretamente, abordam alguns dos três jornais selecionados (GREEN, 1999; MARTINS DA
COSTA, 2010; SILVA, 1998) ou, num escopo mais geral, com a “imprensa gay” brasileira
(PÉRET, 2011; RODRIGUES, 2010). Não obstante suas leituras servirem de referência para a
construção desse painel, elas também não podem ser tratadas à margem de um importante
processo de elaboração, no domínio dos discursos acadêmicos, do que se costuma definir
como “imprensa gay” como fenômeno social e “objeto” de investigação.
Apresentando o jornalsinho: Até que enfim eis lançado o primeiro número de nosso
jornal. Jornaldo nossa turma. Para fazermos comentarios das festas, as fofocas, os
disse-me-disse. Não tem pretenção a ter muitas tiragens, e nem fazer concorrencias a
“O Globo” ou a “Última Hora”, e como não somos nem da direita e nem da
esquerda, o melhor mesmo é ficarmos pelo centro75 (O Snob, ano 1, n.1, julho de
1962, p.1).
74
Entendemos que a expressão “nossa turma” remete a um jogo de significados. Faz referência à “Turma OK”,
rede de sociabilidade onde nasceu e circulou O Snob, considerada um dos primeiros coletivos organizados a
reunir majoritariamente homens que se relacionavam com homens, em atuação no Rio de Janeiro desde a
década de 1960. Num sentido mais amplo, poderia remeter aos sujeitos que não se identificavam ou eram
identificados com a heterossexualidade hegemônica.
75
Mantivemos os erros presentes no texto original. Como ressalta Green (1999), a opção pelo “centro” sugere
como a publicação nascia tentando não se posicionar diretamente nas “disputas políticas polarizadas” do
período. O autor entende que nesta passagem há um “jogo de palavras”, uma vez que ao não se posicionar
nem num polo (direita) nem no outro (esquerda), optaria por ficar “no meio” (in the middle, nas palavras de
Green).
62
Uma leitura do primeiro exemplar e das edições seguintes d'O Snob nos permite
transitar tanto por um universo de categorias sexuais e de gênero como pelos modos de
relações que compunham parte da vida sócio-sexual da zona sul carioca e de outros centros
urbanos do país na década de 1960: fazia-se menção a bofes, mancebos, esposas, esposos,
cachos. E num período anterior à consolidação dos espaços de consumo e lazer homossexuais
nas metrópoles brasileiras, algo que se dá majoritariamente no final dos anos 197076, as
relações entre homens que se relacionavam afetiva e sexualmente eram construída nas
76
Retomamos a este ponto mais adiante, a partir da análise de MacRae (1983). Não queremos sugerir, contudo, a
ausência de espaços de sociabilidade ou de redes compostas por homens que se relacionavam predominante ou
exclusivamente com outros homens no Brasil, nas décadas anteriores. O estudo pioneiro de Barbosa Silva [2005
(1958)], recuperado por Perlongher [2008 (1987)] nos anos 1980, já indicava as regiões da “Boca do Luxo” e da
“Boca do Lixo”, no centro da cidade de São Paulo nos anos 1950, como uma “zona moral” de homossexuais.
Green (1999) também registra espaços de encontro e lazer emergentes na década de 1960, na cidade do Rio de
Janeiro, para mencionarmos apenas essas duas cidades.
63
“turmas”: “Estão fazendo divisões de turma (Copacabana e Catete). Não vejo razão para isso.
Afinal de contas, amigos não moram em bairros diferentes, moram num só bairro: o do
coração” (O Snob, ano 1, n.1, julho de 1962, p. 2).
“Amigos”, “bairro do coração”... Há, nesta passagem, entrelinhas que escondem e
que revelam sujeitos, espaços, códigos de pertença, partilhas de experiências, desejos...
Ampliando a leitura a outras passagens daquela mesma edição, deparamo-nos ainda com as
limitações de se produzir artesanalmente um jornal para os “amigos”, indicia modelos de
relação (“bicha” x “bofe”, “marido” x “esposa” etc) e, tão importante quanto, como
demonstramos a seguir, as negociações dessas mesmas fronteiras. Nas primeiras edições d'O
Snob, a “nossa turma” era retratada na vida de personagens que se identificavam por nomes
femininos e as relações que mantinham com seus maridos, casos ou cachos. Em duas colunas
sociais da terceira edição, por exemplo, é possível vislumbrar algumas das classificações
compartilhadas entre os produtores e os leitores do periódico:
Seu jornalzinho de boas qualidades causam tão grande prazer, que já é comentário
não só no nosso meio como fora deste. Como freqüentadora do círculo de relações
quero agradecer os melhores comentários a meu respeito como também de meu
marido e de todas minhas amigas e seus casos (“Cantinho da Edna, O Snob, ano 1,
n. 3, 1962)
Mirabel, querida, você precisa dar um tratamento melhor ao seu marido, pois seu
tempo de “louca” já passou. E o bofe é de fino trato. Você ainda não notou?”
(“Rumores da semana”, O Snob, ano 1, n. 3, 1962)
Para James N. Green, as páginas deste jornal representam “uma entrada única no
mundo das bichas, bofes, bonecas e entendidos” (1999, p. 184). Nas fofocas e mexericos, nos
registros de festas e eventos articulados em torno da comunidade de produtores e leitores da
publicação, o historiador reconstitui as redes homoeróticas que despontam na época, o
aparecimento de novos locais de sociabilidade (bares, boates, galerias comerciais), espaços e
eventos públicos destinados ou reapropriados pelos homossexuais e o que ele define, em
síntese, como a “emergência, nos anos 1960, de uma nova identidade gay de classe média”
(GREEN, 1999, p. 191).
O Snob, tendo a frente Agildo Guimarães, integrante da Turma OK que migrara de
Recife para o Rio de Janeiro nos anos 1950, passou a ser considerado uma das primeiras
publicações brasileiras endereçadas a uma audiência de bichas e bonecas, veiculado com certa
regularidade e, não obstante o formato artesanal que perdurou em seus sete anos de existência,
costuma ser tomado como um marco nos estudos e narrativas históricas que tratam dos
64
Baixinha ganhou um novo garoto. Ela muito feliz. Será que o Afrânio sabe? (O
Snob, n.5, agosto de 1963)
77
Na esteira de Green (1999), pode-se encontrar referências a O Snob em diversas pesquisas, apresentando-se,
por exemplo, como ponto de partida da investigação de Rodrigues (2010) e do livro de Péret (2011). Esta
chega a afirmar que o jornal foi “a primeira publicação abertamente homossexual divulgada no Brasil”
(p.19). Também conferir a pesquisa de Martins da Costa (2010) e Gallas e Oliveira (2012), entre outros.
78
Green (1999) cita dezenas de jornais dos anos 1960. Este acervo é constituído basicamente de jornais
baianos e fluminenses.
79
Especificamente acerca da “diferenciação de classe”, Green (1999, p. 192) afirma: “A diferenciação de
classe entre os homens que se moviam entre no mundo das bichas, bofes, tias e entendidos não era
automaticamente um fator determinante na elaboração da identidade sexual mas, no entanto, podiam ter um
impacto nos modos como as pessoas se apresentavam e negociavam sua subcultura e a sociedade mais
amplamente.
65
Cabe ressaltar que análise de James N. Green, ainda que situe um modelo
hierárquico pautado nas relações entre bichas e bofes como privilegiado nas páginas dos
primeiros exemplares d'O Snob, também sinaliza como tal modelo não era o único possível:
Contudo, como vimos a partir da amostragem sociológica conduzida por José Fábio
Barbosa da Silva em São Paulo nessa mesma época, o universo homossexual não
seria constituído apenas de bonecas autoidentificadas ou bofes identificados como
masculinos. Alguns homens que se consideravam homossexuais não se
identificavam necessariamente com a persona da boneca extravagante. Uma larga
percentagem da amostra de pesquisa de Barbosa da Silva estava engajada em
atividades sexuais simultaneamente “ativas” e “passivas”. Em resumo, a ordem de
modos como as pessoas organizavam suas vidas sexuais revela um sistema sexual
muito mais complexo do que aquele promovido pela audiência d'O Snob (GREEN,
1999, p. 198)80
Já Péret (2011, p. 25), em sua narrativa sobre a “imprensa gay no Brasil”, afirma
que O Snob apresentou, até 1966, noções de gênero extremamente fixas”. A autora parece
querer destacar, num enunciado como este, a relação hierárquica entre papéis masculino e
80
Nesse sentido, também é pertinente mencionar a leitura de Simões e Facchini (2009), quando estes ponderam
sobre a própria noção de “modelo” para situar as dinâmicas e conflitos articuladas nas experiências das
categorias sexuais e de gênero: “A insistência no termo 'modelo' é crucial para situar com mais clareza o
plano em que essa leitura se situa: isto é, o plano das ideias, valores, representações e categorias sociais por
meio dos quais procuramos tornar inteligíveis comportamentos e identidades. Entre esse plano – que busca
estabelecer fronteiras nítidas entre as categorias e definir quais são as regras e as contravenções – e o plano
das condutas e das identidades sexuais de gênero efetivamente acionadas, há inconsistências, conflitos e
margens de manobra para os atores sociais” (p.58 e 59).
66
81
Evitamos usar o termo homossexual nesse contexto por entender que este não era tomado como um referente
cristalizado nas primeiras edições do jornal, bem como a de um “homossexualismo”/homossexualidade como
debate que estivesse em questão naquele momento. Esta passa a ocupar posição de relevo apenas nos últimos
exemplares e, de modo mais articulado, no “jornalismo homossexual” brasileiro dos anos 1970, como
exploramos na seção seguinte. MacRae (1990, p. 66) faz a seguinte leitura da adoção de “pseudônimos
femininos” nos jornais artesanais da “imprensa gay” dos anos 1960, especulando duas razões: “para evitar
prejuízos às suas vidas profissionais ou familiares, e também porque naquele tempo a maioria dos homens
que se consideravam como homossexuais ainda aderiam ao sistema tradicional de ordenação de identidades
sexuais onde 'as bichas' eram geralmente associadas ao papel de gênero feminino”. Para Gallas e Oliveira
(2012, p. 4), os pseudônimos femininos eram uma “estratégia de anonimato”: “esse tipo de publicação era
considerado um material impróprio e até indecoroso. Quem consumia essas publicações poderia ser
considerado pervertido, ser preso ou banido socialmente”. Mais do que propriamente “anônima”, entendo que
pode ser considerada uma estratégia de se resguardar de possíveis constrangimentos legais, mas indissociável
também dos processos de reapropriação de categorias e modelos estabelecidos de relações (heterossexuais)
que mencionei anteriormente.
67
audiência leitora, situando-as como “casamento” ou “relação”. Com isso, insistimos para o
fato de que os mesmos discursos que reificavam tais modelos, calcados na polarização
masculino/feminino, também sinalizam a instabilidade de noções como “casamento” ou das
categorias como marido e esposa, na medida em que tornavam estas passíveis de
(re)apropriação pelas bonecas!
É nesse sentido que um outro estudo, dedicado especificamente a O Snob e à rede
social de seus produtores e leitores, empreendido por Martins da Costa (2010), não apenas
identifica os diversos grupos que gravitavam e disputavam posições de prestígio no periódico,
mas mostra como o jornal também foi palco de discussões acerca de categorias de
identificação, papéis e condutas sexuais, que incluíam deste o público-alvo que deveria ser
privilegiado pelos editores à incorporação de novos referentes, de modo a situar – não sem
conflito – as experiências de sujeitos que não se identificavam ou eram identificados como
bichas ou bofes.
Ao longo dos sete anos de existência, é importante perceber que O Snob ganhava
progressivamente mais páginas (a folha frente e verso tornara-se algo próximo de uma revista,
com quase 60 páginas, ainda que datilografadas)82, mas sem conseguir superar o caráter
artesanal. Isso fica evidente em discursos veiculados no próprio jornal, como o apelo aos
leitores feitos já na décima segunda edição:
Esboça-se, com o passar dos anos, o esforço do jornal também dar visibilidade a
categorias sexuais e de gênero que passam a ter maior trânsito na vida urbana brasileira, como
o referente gay, que aparece nos textos das últimas edições, já no final dos anos 1960. No ano
de 1969, quando O Snob para de circular, era possível identificar no jornal tanto a
permanência – ainda que menos frequente – de termos como bichas e bonecas, como a
incorporação, ainda que pontual, de expressões como “mundo gay”.
O último ano d'O Snob (1969) também se revela rico para qualquer tentativa de
compreensão dos rumos que as publicações impressas “gays” seguiriam, no Brasil, nas
décadas posteriores. Texto da edição de 31 de março informa que o jornal aceitara convite
para ingressar na “Associação Brasileira de Imprensa Gay” (ABIG), entidade que, malgrado a
82
Cf. Anexos D e E.
68
A consolidação desta nova linha editorial não chegou a se concretizar n'O Snob,
mas seu idealizador, Agildo Guimarães, lançou, em meados da década de 1970, uma
publicação mais próxima de um modelo de jornal informativo, Gente Gay, que trazia de modo
explícito no título o referente identitário (gay) bem estabelecido em países anglo-saxões e em
expansão nos setores urbanos de classe média do Brasil daquele período, concomitantemente
com certo deslocamento da categoria bicha para outras como entendido e homossexual84.
É igualmente importante ressaltar a existência de um amplo conjunto de
referências, nem sempre consensuais, sobre os modos como, no Brasil, categorias como
“entendido” e do “homossexual” afirmam-se como referentes de (auto)identificação por
homens que se relacionam sexual/afetivamente com outros homens, e de sua circulação nos
espaços de sociabilidade majoritariamente frequentados por estes.
Barbosa da Silva, no estudo destacado como pesquisa sociológica pioneira sobre a
homossexualidade no Brasil, já mencionado aqui a partir de Green (1999), identifica
83
Sobre o vínculo do jornal a esta breve Associação, está registrado: “Essa trégua que está havendo, devemos
tão somente a Thula Morgani que, num incansável esforço à frente da ABIG, conseguiu unir os principais
jornais do país, num momento em que muitos, inclusive nós, desacreditavam na referida Associação. Assim
sendo, aceitamos o convite para, não somente entrarmos para a Associação Brasileira de Imprensa Gay, como
participamos da Cúpula e, juntamente com nossos colegas diretores de outros jornais, trabalharmos para o
benefício de todos na esperança de dias melhores” (O Snob, ano 7, n.1, março de 1969). Conforme relatam
Simões e Facchini (2009), esta tentativa de se estabelecer uma associação de imprensa gay foi iniciativa de
Agildo Guimarães e Anuar Farah (outro representante ativo da produção de publicações homossexuais
caseiras). Os autores também lembram que em 1967 era possível encontrar n'O Snob referências ao desejo de
se realizar um “Congresso dos Jornalistas Entendidos”.
84
O que não quer dizer abandono do marcador bicha no universo das publicações. Como será mostrado mais
adiante, este se fará presente (e em debate) nas páginas do principal jornal “homossexual” do final da década
de 1970 e início dos anos 1980, o Lampião da Esquina. Retomamos à questão da categoria “gay” mais
adiante, a partir da leitura do Lampião. Mostramos que, apesar de sua “importação” ficar cada vez mais
visível ao longo da década de 1970 (referência, por exemplo, tanto nas publicações especializadas como na
grande imprensa), esta não se dá sem uma interrogação inicial sobre o próprio caráter “estrangeiro” do termo,
como pode ser visto tanto num exemplo de discurso acadêmico (MACRAE, 1983) como nos próprios
discursos do Lampião.
69
categorias que, na época da sua investigação, o final da década de 1950, transitavam entre
dois polos no interior da “população homossexual”: os indivíduos de “comportamento
ostensivo” e os “dissimulados” (BARBOSA DA SILVA, 2005, p. 110). Segundo o autor, “esse
resultado decorre principalmente da forma de interação que se estabelece entre o homossexual
como indivíduo e o grupo majoritário” (ibid), estando diretamente relacionado a questões de
“status na estrutura social global” (os “dissimulados” poderiam sofrer menos sanções dos
grupos socialmente majoritários), “psicológicas” (“vergonha”, “culpabilidade” dos
“dissimulados”), escolha das atividades de lazer e sociabilidade, “preconceitos” acerca de
“educação” e aparência” ou ainda das possibilidades da “prática erótica” (os “dissimulados”
apresentariam um campo mais amplo de relações do que os “ostensivos”, que se restringiriam
ao papel sexual “passivo”)85.
O fato de Barbosa da Silva trabalhar como estes dois polos “ideais” não significa
que não existissem, entre os sujeitos que compunham sua pesquisa, classificações
diferenciadas onde circulavam determinadas categorias. Como ele ressalta,
Revelam-se outros tipos entre estes dois polos, como é o caso da “tia” (que
Barbosa da Silva define como “vocábulo que designa homossexual passivo”) e a “rainha”
(indivíduo que tem o poder de centralizar direta ou indiretamente todo um círculo social em
torno de si)86, além do ato, valorizado por “ostensivos” e desprezado por alguns
“dissimulados”, de se travestir em performances musicais87.
Cabe observar que tais categorias são identificadas pelo próprio Barbosa da Silva
85
Polarização semelhante é empreendida por Leznoff e Westley (1998 [1956]) num estudo sobre a “organização
social de uma comunidade homossexual” estabelecida numa metrópole canadense dos anos 1950. Os autores
identificam a existências de homossexuais “secretos” (secret homosexuals) e homossexuais abertos (overt
homosexuals), e o alinhamento a um grupo ou outro estava diretamente ligado ao desejo de se manter
integrado à comunidade heterossexual ou à homossexualidade “aberta” ser tomada como uma ameaça ao
status social. Como eles ressaltam, “as distinções entre os grupos [secretos e abertos] são mantidas pelos
homossexuais secretos que temem a identificação e recusam a associação com homossexuais abertos”
(LEZNOFF; WESTLEY, 1998 [1956], p.7).
86
A figura da rainha também é identificada por Leznoff e Westley (1998[1956]): “O papel da rainha [queen] é
muito importante na vida desses grupos. Ele [he, no original] disponibiliza um lugar onde o grupo pode se
encontrar e onde os membros podem ter seus 'casos' ['affairs', no original] (…) Geralmente, a rainha é um
homossexual mais velho que tem larga experiência no mundo homossexual (p. 9).
87
Para uma análise detalhada, cf. particularmente os capítulos IV e V do estudo de Barbosa da Silva (2005),
intitulado “O grupo homossexual” e “Aspectos da vida homossexual”.
70
numa “amostra de investigação” que ele classifica de “classe média homossexual”, ou seja,
“aqueles que não são demasiadamente femininos para estar diretamente submetidos à
discriminação do grupo majoritário” (BARBOSA DA SILVA, 2005, p. 87). Nesse contexto
em particular, “média” não diz respeito diretamente a uma clivagem de classe social (ainda
que também possa estar a ela relacionada), mas a uma posição entre os polos dos
homossexuais “ostensivos” e os “dissimulados”.
MacRae (1990), por seu turno, sugere que na década de 1960 ocorre a
“consolidação” de uma outra categoria, a do “entendido”. Esta estaria fundamentalmente
ligada a busca de modelos mais igualitários nas relações entre os homossexuais, demarcando-
se a partir de certa clivagem “socioeconômica” e “educacional”:
Além desta referência ao entendido levantada por MacRae, pode-se destacar ainda
o estudo de Guimarães [2004 (1977)], majoritariamente dedicado à categoria. Os
“entendidos” são analisados a partir de uma análise etnográfica de uma rede específica de
amigos de classe média e alta formada, em sua maioria, por migrantes mineiros que
escolheram viver na capital fluminense. A categoria também é brevemente mencionada por
Peter Fry (1982) no conhecido ensaio em que o antropólogo se propõe a “investigar a
construção das categorias sociais que dizem respeito à sexualidade no Brasil” ao deslocá-la
“do campo da medicina e da psicologia para colocá-la firmemente no campo da antropologia
social” (p. 87), mais especificamente na valorização das relações entre homens “simétricas”
(entre entendidos ou homossexuais), em detrimento a referenciais como bicha e bofe. Como
ele ressalta, surge “por volta dos fins da década de 1960, nas classes médias das cidades do
Rio de Janeiro e São Paulo, um novo sistema de classificação das identidades sexuais
masculinas”:
71
“Gente Gay- Como você vê as reações das pessoas perante os gays hoje?”;
“Camily, poderia traçar em rápidas palavras um paralelo entre os gays e os não
gays?”. (Gente Gay, ano 2, n. 15, out/nov/dez 1978, p. 2)
Na quarta edição, por sua vez, destaque para texto que reproduzia artigo atribuído
a uma associação intitulada “União Brasileira de Entendidos”, com perguntas e respostas
72
Queremos destacar que uma leitura das páginas de Gente Gay também permite
identificar, mais do que a existência de um campo estruturado como jornalismo gay, uma rede
formada por outros jornais ou boletins que também circulavam no país já no final dos anos
1970 e que, diante de um cenário de adversidade – anúncios escassos, dificuldade de acesso a
um grande número de leitores em escala nacional, periodicidade irregular etc – tentava dar
corpo a este “jornalismo”. Isto pode ser visto nos discursos que saudavam ou conclamavam o
aparecimento de outros periódicos, ou ainda quando se discutia em sua próprias páginas o que
seria o tal “jornalismo gay”. Textos de uma publicação eram reproduzidos por outras,
colaboradores, editores e leitores trocavam sugestões, comentários ou impressões sobre o
“homossexualismo” e sua vivência nos âmbitos político, de lazer e de sociabilidade, uma
movimentação que se materializava naquelas e por aquelas páginas.
88
Faço essa observação a partir de um conjunto de fontes: textos de Gente Gay e Lampião da Esquina que
explicitam tais dificuldades; e de trabalhos que abordaram a “imprensa gay”, como o de Péret (2011), que
entrevistou colaboradores deste último periódico.
74
Pouco a pouco, segundo a sua própria linguagem, eles vão afinal se “assumindo” – e
talvez em nenhum lugar essa postura seja tão evidente como em sua imprensa. Nas
areias da praia de Copacabana, em frente à rua Fernando Mendes, e nas
efervescentes calçadas da Cinelândia, no Rio de Janeiro, circulam de mão em mão
exemplares dos mensários Gente Gay e Gay Press Magazine, além de recortes das
colunas “Tudo Entendido”, da Gazeta de Notícias, e “Guei”, do Correio de
Copacabana. Em São Paulo, nos interiores das saunas Four Friends, durante o dia,
na esquina das avenidas Ipiranga e São João, à noite, e no salão enfumaçado da
boate Medieval, ao longo da madrugada, são devoradas as páginas do jornal mensal
Entender – e sobretudo, a prestigiada “Coluna do Meio”, que o jornalista Celso Curi
assina ininterruptamente na Última Hora paulista há um ano e meio.
Sem abandonarem seus textos de cabeceira – contos de fada de Oscar Wilde, peças
de Jean Genet, romances de Gore Vidal e até mesmo um ou outro trecho dos
“Diálogos” de Platão –, os homossexuais brasileiros ganham enfim porta-vozes
mais próximos, com o surgimento de seções e periódicos dirigidos aos seus
interesses mais imediatos. É verdade que, à crua palavra “homossexual”, eles ainda
preferem a relativa discrição do inglês gay, ou as variações do verbo “entender”.
Mas o fato é que sua voz, após um secular anonimato, começa a vir a público. E,
através dessas leituras, eles se inteiram das últimas fofocas do meio, recebem
conselhos úteis, tomam conhecimento da opinião de notáveis do setor e encontram
indicações precisas sobre seus principais pontos de encontro ou de lazer do
momento. (“Um gay power à brasileira”, VEJA, n. 468, 24 ago. 1977, p. 66-68)
2.3.1 “Em defesa do gueto”, “não ao gueto” e os homossexuais como “minoria social”
mundo do comércio e dos serviços”. MacRae, que transitava entre a academia e o universo
daquilo que viria a ser conhecido como o nascente “movimento homossexual brasileiro” – sua
pesquisa empírica de tese era centrada na análise do grupo Somos (SP) –, tentava ali demarcar
uma posição nos debates entre esses dois campos, intitulando o texto “Em defesa do Gueto”.
Essa maior “visibilidade” homossexual fica patente quando o autor abre o artigo
com o subtítulo “Em guetos, mas bem visíveis”. Desse modo, ele afirma:
Tem chamado a atenção nas áreas centrais da cidade e nos pontos boêmios
paulistanos uma certa explosão de comportamento homossexual. A qualquer hora, à
noite especialmente, podem-se ver pessoas do mesmo sexo, geralmente homens,
andando abraçados, às vezes de mãos dadas, às vezes se beijando como forma de
saudação, beijos esses não raro dados na boca. Este comportamento, anteriormente
inconcebível em público, está começando a ter respaldo em várias esferas da
sociedade. É verdade que vem ocorrendo de modo mais marcante no mundo do
comércios e dos serviços, onde o mercado homossexual desponta como um novo
filão a prometer bons lucros (MACRAE, 1983, p. 53)
De lá para cá, cresceu o número de casas noturnas. Mas foi nos últimos anos,
especialmente depois da abertura política, que surgiu uma enxurrada de
estabelecimentos diretamente voltados para o mercado gay – bares, boates,
discotecas, saunas. Hoje, existem em São Paulo e no Rio algumas saunas gays que
não deixam nada a dever às suas congêneres de Nova York ou São Francisco (…) A
novidade nos estabelecimentos que agora estão surgindo está no fato de serem
concebidos e claramente dirigidos a uma freguesia homossexual e encorajarem a
atividade sexual; por exemplo, com a exibição de video-tapes pornôs-homossexuais
76
nas salas de repouso coletivo. Também nas discotecas gays, onde há algum tempo já
se permitia que casais do mesmo sexo dançassem juntos, beijos eram proibidos; aos
poucos, foi ocorrendo uma liberalização e agora é comum ver pares homossexuais,
especialmente homens, trocando beijos cinematográficos. Embora não se possa falar
em uma revolução na forma como é desempenhado o papel do homossexual nas
grandes metrópoles brasileiras, mudanças há (MACRAE, 1983, p. 54)
É no cenário que o autor identifica tanto nas “mudanças que ocorrem no nível
social mais amplo” (além do circuito “comercial” centrado nas saunas, bares e discotecas, ele
menciona o fato do “homossexualismo” passar a ser abordado com mais destaque em filmes e
novelas, o surgimento de grupos “autônomos” visando enfrentar o “machismo” e a “sociedade
patriarcal”, as primeiras discussões “em nível político-partidário”) como na “forma como os
homossexuais se vêem e se relacionam entre si” (p. 56) que MacRae empreende, assim, uma
“defesa do gueto”.
Em linhas gerais, para ele o “gueto” representaria um lugar privilegiado ao
permitir aos homossexuais a possibilidade de “afastar” sentimentos ligados a culpa e pecado
e, fundamentalmente, permitir a construção de uma própria “identidade homossexual”. Assim,
ele afirma:
89
Levine (1998, p. 203), a partir da exploração das quatro características que Wirth identifica como
conformadora de um gueto urbano (“concentração institucional”, “área cultural”, “isolamento social” e
“concentração residencial”), aplica estes critérios para definir áreas como o Castro, em São Francisco, e o West
Village, em Nova York, como “guetos gays”, na medida em que concentrariam “instituições gays”, “pontos de
encontro”, uma “cultura marcadamente gay” e uma “população majoritariamente gay”. Nesse sentido, o autor
defenderia a aplicação da noção de “gueto gay” como um construto sociológico válido. Cabe ressaltar que o
texto foi originalmente publicado em 1979. Uma leitura do artigo de MacRae e a elaboração de um “panorama
atual do 'gueto' em São Paulo”, relativizando a própria noção de “gueto” ao tirar a ênfase numa territorialidade
para os “deslocamentos” dos sujeitos que se identificam com as práticas e orientações homossexuais são
77
identidade, a “homossexual”, que deveria ser reivindicada como parte da elaboração de uma
“auto-imagem positiva” (MACRAE, 1983, p. 56).
O artigo de MacRae, na realidade, nos permite acessar uma gama de questões
acerca dos marcadores e categorias sexuais e de gênero que começavam a ganhar mais
visibilidade na sociedade brasileira do período. Considerando-se que este texto é do início da
década de 1980, é pertinente observar como o autor sugere uma noção processual de
“identidade” (neste caso, especificamente a “homossexual”) que antecede a própria ênfase
que esta adquire nos anos subsequentes no campo das ciências sociais e humanas, incluindo-
se as discussões posteriores acerca dos seus limites e contradições. Em outro lugar (1990),
quando investiga a estruturação de um dos primeiros grupos de ativismo homossexual no
Brasil (Somos-SP), o autor situa que, mesmo tendo o grupo uma postura predominantemente
de “afirmação homossexual” e, por conseguinte, da “adoção de uma identidade homossexual
ou heterossexual como fundamental e definidora do indivíduo”, os “militantes homossexuais”
seriam um “grupo heterogêneo onde eram frequentes os conflitos tanto em nível de atuação
como teórico, tornando impossível atribuir a eles uma posição hegemônica estável” (1990, p.
59).
MacRae (1983, p. 57) entendia que, em paralelo a uma maior “auto-confiança”
por parte dos sujeitos “homossexuais”, também estariam “mudando as formas (dos
homossexuais) de se relacionar entre si”, numa “diluição da dicotomia ativo/passivo” como
divisão de papéis sexuais arraigadas na sociedade (em que o primeiro polo associar-se-ia ao
homem, o segundo, a mulher). Tal divisão seria “reproduzida nas relações homossexuais” na
medida em que elas se estruturavam na polarização “bofe” e “bicha” como categorias de
classificação utilizadas entre os homens e “fanchona” e “lady”, entre as mulheres.
Essa diluição, que o autor defendia à época por entendê-la como uma
“democratização do relacionamento” entre casais homossexuais com maior renda,
escolaridade e habitantes dos grandes centros urbanos, conforme também mencionamos a
partir da leitura de Fry (1982), relacionava-se a um “deslocamento” da “ênfase” do ato sexual
(a penetração) para o “relacionamento visto de maneira mais abrangente” (ibid) e caminharia
em paralelo ao processo dos sujeitos priorizarem afirmar-se como “homossexuais” ou
“heterossexuais” e não como “ativos” ou “passivos”.
O artigo de MacRae, como o próprio título enuncia, é nitidamente posicionado,
empreendidos por Simões e França [In GREEN e TRINDADE (org), 2005]. Ainda que parta de noções presentes
sobretudo na obra de Robert E. Park, o estudo de Perlongher (2008 [1986]) sobre a prostituição viril no centro de
São Paulo também mostra, com bastante originalidade, o trânsito dos desejos em processos de deslocamento de
des e reterritorializações.
78
Se fomos examinar a situação nas grandes metrópoles brasileiras, veremos que aqui
90
“Não é de estranhar que o homossexualismo de repente parece tornar-se mais aceito. Afinal, em vez de uma
ameaça ao sistema, pode até conter certos traços a ser imitados. Claro que isto não passa de uma possível
tendência, contra a qual persistem fortes barreiras sociais, estruturais e atitudinais” (MACRAE, 1983, p. 60).
79
91
Entendemos que nesta passagem o autor sinaliza, ainda que de modo embrionário, uma leitura que articulasse
a reprodução de segregações sociais e de hierarquias no interior dos espaços de sociabilidade e das relações entre
homossexuais às dimensões do desejo como organizador destas mesmas relações. Pode-se pensar novamente no
trabalho de Perlongher [2008 (1987)] realizado também nos anos 1980, quando este parte de uma
problematização de noções como “zonas morais”, para analisar, sob influência de Deleuze e Guattari,
“reterritorializações”, “desterritorializações” ou “códigos-territórios” e pôr em questionamento certa fixidez e
estabilidade de categorias frente às possibilidades engendradas nos desejos que atravessariam as práticas sexuais
no universo da prostituição masculina no centro de São Paulo, ou do que ele define como “negócio do michê”.
92
Nesta edição, o jornal tinha o título apenas de Lampião. Por questões de direito autoral – já havia um jornal
registrado com esse nome –, substituiu-se por Lampião da Esquina.
80
O grande marco mesmo foi o aparecimento do jornal Lampião (…) Embora não
fosse a primeira publicação a se dirigir diretamente ao público homossexual, foi a
primeira tentativa bem sucedida de fazer um jornal com reflexões sobre o estilo de
vida homossexual que fossem além da superfície, sem contudo, cair numa sisudez
atípica do público a que se dirigia. Originalmente se propunha ser mais do que um
jornal gay, tentando levantar discussões também sobre a condição dos negros, dos
índios e das mulheres, e sobre ecologia. Mas voltado desde o inicio
predominantemente para os interesses dos homossexuais masculinos, passou a se
dirigir cada vez mais a este grupo (…) o Lampião, mais que qualquer outro órgão da
imprensa, abriu e sustentou a discussão sobre o homossexualismo e teve importância
ao difundir a ideia de militância homossexual” (MACRAE, 1983, p. 54; 55)
93
Sobre a importância de Lampião da Esquina na estruturação do ativismo homossexual brasileiro, cf. MacRae
(1990) e, mais recentemente, Simões e Facchini (2009).
94
Relembramos os textos ou pesquisas da época citados anteriormente, como Fry [1982 (primeira versão de
1974)] e Guimarães [2004 (1977)] que, reiteramos, devem ser entendidos aqui não apenas como referências
bibliográficas, mas discursos que também sinalizam essa interdependência entre o jornal e outras instâncias de
produção discursiva das homossexualidades.
81
“ativismo gay” norte-americano dos anos 1970, João Silvério Trevisan95, e incluía ainda a
participação regular ou a colaboração de acadêmicos, jornalistas, críticos culturais e artistas 96.
Aos discursos dos membros da equipe e dos colaboradores, por sua vez, também
somavam-se os dos leitores, que se manifestavam na seção “Cartas na Mesa”. Esta acaba se
estabelecendo num espaço de debate, firmado no diálogo entre as cartas dos leitores e as
eventuais respostas que o jornal tentava elaborar frente às interpelações que lhe eram
dirigidas.
Uma questão ilustrativa (e transversal) que marca o surgimento do Lampião,
exemplo das inter-relações entre o jornal, sua audiência e outros campos (o nascente ativismo
e a academia) é a própria noção de “gueto”, que recuperamos do ensaio de MacRae para situar
as mudanças na vivência das homossexualidades no Brasil de meados e fim da década de
1970 e sua relação com uma imprensa entendida/gay.
Os posicionamentos sobre o “gueto” em Lampião estavam distante do consenso.
Já na edição de número zero, fica evidenciado que aquele era um tema central, e a posição
assumida era de “sair” desse “gueto” como estratégia de superá-lo. Assinado pelo Conselho
Editorial, o artigo que tinha como função apresentar o jornal aos leitores, além de demarcar
uma posição editorial e politica, buscava apresentar as razões para o surgimento do periódico:
Brasil, março de 1978. Ventos favoráveis sopram no rumo de uma certa liberalização
do quadro nacional: em ano eleitoral, a imprensa noticia promessas de um Executivo
menos rígido, fala-se na criação de novos partidos, de anistia, uma investigação das
alternativas propostas faz até com que se fareje uma “abertura” do discurso
brasileiro. Mas um jornal homossexual, para quê?
95
Os distintos posicionamentos entre os editores e os colaboradores são fartamente documentados, seja
diretamente pelos personagens envolvidos, seja pelos estudos que se dedicam à “homossexualidade” no Brasil,
como atestam Trevisan (2000), MacRae (1990), Simões e Facchini (2009), Rodrigues (2010) e Péret (2011),
entre outros. Uma referência fundamental é a dissertação de Silva (1998), que reconstitui a partir de extensos
depoimentos, as “histórias de vida” de membros do conselho, da redação e de colaboradores do jornal.
96
Na edição de número zero, metade da segunda página é dedicada a uma apresentação dos “Senhores do
Conselho” (Editorial). Em ordem alfabética, constava: Adão Costa (“jornalista, ex-terapeuta ocupacional,
pintor)”, Aguinaldo Silva (“jornalista especializado em assuntos policiais, escritor (tem dez livros publicados),
tem uma longa experiência na imprensa alternativa”, Antônio Chrysóstomo (“jornalista especializado em música
popular), Clóvis Marques (“jornalista e tradutor, faz crítica e cinema”), Darcy Penteado (“Artista plástico e
escritor. Uma das figuras mais importantes do front cultural paulista, foi o primeiro intelectual brasileiro a
defraudar publicamente a bandeira de luta contra a discriminação e o preconceito em relação aos
homossexuais”), Franscisco Bittencourt (“Poeta, critico de arte e jornalista), Gasparino Damata (“jornalista e
escritor, com passagem pela diplomacia”), Jean-Claude Bernadet (“Crítico de cinema, um dos teóricos do
Cinema Novo, possui também uma longa experiência na imprensa alternativa”), João Antônio Mascarenhas
(“Advogado, jornalista e tradutor, abandonou a burocratice dos Ministérios da Educação e da Agricultura para
formar a cadeia de “gente boa” que resultou na ideia de se publicar o Lampião”), João Silvério Trevisan
(Cineasta e escritor, é autor de um dos livros de contos mais elogiados do ano passado – Testamento de Jônatas
deixado a Davi) e Peter Fry (“Nasceu em Liverpool, Inglaterra, e formou-se em Cambridge (…) Em 1970 veio
para o Brasil, contratado pela Universidade de Campinas, onde está até hoje. Tem pesquisado sobre as religiões
afro-brasileiras e pretende escrever sobre a sexualidade no Brasil”).
82
A resposta mais fácil é aquela que nos mostrará empunhando uma bandeira exótica
ou “compreensível”, cavando mais fundo as muralhas do gueto, endossando – ao
“assumir” – a posição isolada que a Grande Consciência Homossexual reservou aos
que não rezam pela sua cartilha, e que convém à sua perpetuação e ao seu
funcionamento. Nossa resposta, no entanto, é esta: é preciso dizer não ao gueto e, em
consequência, sair dele. O que nos interessa é destruir a imagem padrão do
homossexual, segundo a qual ele é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite,
que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição, que é dado aos
ademanes e que sempre esbarra, em qualquer tentativa de se realizar mais
amplamente enquanto ser humano neste fator capital: seu sexo não é aquele desejaria
ter” (“Saindo do Gueto”, Lampião da Esquina, edição experimental número zero,
abr 1978, p.2)
(…) o que LAMPIÃO reivindica em nome dessa minoria é não apenas se assumir e
ser aceito97 – o que nós queremos é resgatar essa condição que todas as sociedades
construídas em bases machistas lhes negou: o fato de que os homossexuais são seres
humanos e que, portanto, têm todo o direito de lutar por sua plena realização,
97
Os grifos são do texto original.
83
enquanto tal (…) Nós pretendemos também ir mais longe, dando voz a todos os
grupos injustamente discriminados – dos negros, índios, mulheres, às minorias
étnicas do Curdistão: abaixo os guetos e o sistema (disfarçado) de párias (“Saindo do
Gueto”, Lampião da Esquina, edição experimental número zero, abr 1978, p.2)
uma extensa bibliografia dedicada majoritariamente ao tema (MACRAE, 1990; SILVA, 1998;
SIMÕES; FACCHIINI, 2010, entre outros)99 mas reconstituí-la, mesmo que parcialmente, a
partir de alguns dos discursos que ganhavam evidência nas próprias páginas do jornal. Há
dezenas deles onde essas tensões vão sendo elaboradas. É o caso do ensaio de João Silvério
Trevisan100 sobre encontros promovidos pela revista da imprensa alternativa Versus, cujo o
intuito era possível criação de um “Partido Socialista Brasileiro”:
99
Em seu estudo sobre o movimento homossexual brasileiro de final dos anos 1970 e início de 1980, descreve
MacRae: “Na época em que a pesquisa de campo foi feita eu sentia que, mais que os partidos tradicionais cujas
fórmulas pareciam bastante desgastadas, eram os grupos 'minoritários' como o das mulheres, dos homossexuais,
dos negros, dos índios etc., que propunham enfoques novos. Achava especialmente atraente a combinação
pretendida entre a experiência comunitária e uma política que respeitasse as necessidades individuais.
Porém,essa harmonização do socialmente desejável com a autonomia individual é muito difícil de conseguir”
(1990, p. 44-45). Peter Fry, na introdução deste mesmo livro de MacRae (1990), faz a seguinte leitura: “Com
muita razão, o autor considera a falta de repressão visível ou legal (o Brasil é um caso raro por nunca ter tido
nenhuma legislação homofóbica) um dos grandes entraves à organização e a disseminação do movimento
homossexual no Brasil (…) Na ausência de um inimigo identificável e tangível, o movimento teve como que
'inventá-lo', seja ele na Convergência Socialista e nos outros partidos de esquerda (os defensores da 'luta maior'),
seja ele dentro do próprio movimento” (in MACRAE, 1990, p. 13).
100
Cabe ressaltar que o escritor João Silvério Trevisan, um dos membros mais atuantes do Lampião da
Esquina, é nome chave do “ativismo” gay no Brasil e teve contato direto com o “Gay Power” nos Estados
Unidos ao longo dos anos 1970, onde residiu. Pode ser considerado, seguramente, uma das figuras que pautou os
debates nos primeiros anos de estruturação do “movimento homossexual” brasileiro na passagem dos anos 1970
aos anos 1980. Devassos no Paraíso, livro que lançou nos anos 1980, tornou-se referência para toda uma
geração de acadêmicos, ativistas e interessados na história das homossexualidades no Brasil. Ao destacar este
texto, entendo que sinaliza majoritariamente a posição de Trevisan no interior do jornal, mais próxima da defesa
de Lampão da Esquina como veículo “político”.
85
101
O jornal também tentaria, posteriormente, construir em sua linha editorial um deslocamento que passasse a
dar ênfase não apenas à opressão de uma “minoria”, como era explícito nas primeiras edições, mas no prazer
como política “libertária”. Isso fica evidente, por exemplo, no anúncio do próprio jornal sobre seu sistema de
assinaturas, veiculado na edição número nove: “Nós também estamos fazendo História: Lampião discute a única
forma que ainda é tabu no Brasil: o prazer” (Lampião da Esquina, ano 1, n. 9, fev 1979, p. 15).
86
O tema reaparece na quarta edição, por meio de outra carta, assinada pelas
iniciais L.C.A, que identifica na posição do jornal uma visão “reacionária” e de “direita”:
Bom, mas o negócio que estou achando boboca essa rixa com a esquerda. O texto
do Antônio Chrysóstomo102 no n.2 é extremamente boboca. Além de não servir a
propósito algum, foi descortês e alienado. Alienado porque misturou tudo e fez uma
“salada paulista” para impressionar os menos avisados. Eu concordaria se vocês
tomassem essa posição se nós vivêssemos numa democracia burguesa (tipo USA ou
capitalistas europeus), mas essa posição dentro de um regime como o brasileiro é
tremendamente desagradável, para não dizer o mínimo. Acho bom vocês manerarem
na língua pois senão seus leitores serão somente aqueles iguais ao Carlos Quebec
(Cartas na Mesa, LAMPIÃO N.3), um baluarte (mais um) da direita reacionária. Ou
então, ao lado de um “reacionário” (Antônio Chrysóstomo) publiquem um artigo de
um “progressista” para contrabalançar a coisa, para que seus leitores não fiquem
com uma visão só da direita (Cartas na Mesa, Lampião da Esquina, ano 1, n. 4, ago-
set 1978, p. 18)
102
O leitor confunde-se em atribuir a autoria do texto a Chrysóstomo, o que é comentado pelo próprio jornal em
resposta à carta.
87
das lutas das “minorias” à “luta maior”, porém, não se dava sem o explicitamento de como a
“luta homossexual” ainda era incipiente – e sofria resistência – no que se postulava como
“esquerda”, quando não era desqualificada como “rixa” e “reacionária”, como faz o segundo
leitor.
O tema reaparece com mais destaque na décima edição, em reportagem de capa,
que faz uma associação ao lema de defesa da “Anistia” encampada por segmentos
progressistas diversos (estudantes, sindicalistas, intelectuais) da sociedade brasileira no final
dos anos 1970: “Minorias exigem em São Paulo: felicidade deve ser ampla e irrestrita”.
A reportagem era composta de duas peças, cada uma ocupando uma página
inteira, ambas dedicadas à cobertura de uma “semana de minorias” realizada na Universidade
88
de São Paulo.
A primeira delas, assinada por Eduardo Dantas, consiste num extenso artigo que
ocupava toda uma página de quatro colunas, partindo do ineditismo da fala pública de
homossexuais num debate sobre “emancipação das minorias” para descrever a tensão com a
“esquerda”:
(…) Esta reunião foi uma série de surpresas para todo mundo; para os homossexuais,
houve a novidade do convite à participação, o que talvez torne essa data de 8 de
fevereiro histórica. Afinal, não se tem lembrança de um debate tão livre e polêmico
sobre um assunto que as autoridades policiais e grande parte da sociedade brasileira
ainda consideram um tabu. Depois teve o choque do plenário e até de integrantes dos
outros grupos minoritários convidados (negros, mulheres e índios) que nunca tinham
ouvido falar dessa militância guei e perguntavam-se perplexos como podiam estar
desinformados a respeito e os objetivos de tudo isso.
Logo no início da discussão, quando já se tentava enquadrar o movimento guei na
ótica da esquerda, alguém no plenário tomou a palavra e disse: “Eu vou dizer agora
o que a metade deste auditório estrá sequiosa para ouvir: Vocês querem saber se o
movimento guei é de esquerda, de direita ou de centro, não é? Pois fiquem sabendo
que os homossexuais estão conscientes de que para a direita constituem um atentado
à moral e à estabilidade da família, base da sociedade. Para os esquerdistas, somos
um resultado da decadência burguesa. Na verdade, o objetivo do movimento guei é a
busca da felicidade e por isso é claro nós vamos lutar pelas liberdades democráticas.
Mas isso sem um engajamento específico, um alinhamento automático com os
grupos chamados de vanguarda” (“Negros, mulheres, homossexuais e índios nos
debates da USP: felicidade também deve ser ampla e irrestrita”, Lampião da
Esquina, ano 1, n. 10, mar 1979, p.9)
Fica evidenciado, assim, que a construção dos homossexuais como minoria era
também um ponto passível de problematização. Mesmo na primeira edição, ocupou toda a
segunda página destinada à seção “Opinião”, como revela o artigo assinado por autora
identificada apenas por “Mariza”:
103
O uso corrente da expressão “orientação sexual” é mais recente, notadamente quando considerada como
estratégica no “ativismo” gay/lgbt, sobrepondo-se à ideia de “opção” sexual. Conforme vimos em outros textos
das primeiras edições do jornal, prevalecia naquele contexto a ideia do “homossexualismo” como “condição”.
De todo modo, este discurso deve ser situado numa rede de outros discursos (dentro e fora do jornal), o que torna
mais claro como estavam em construção noções, classificações e categorias. Destaco o texto já mencionado de
Fry (1982, mas cujo primeiro esboço é de 1974), por exemplo, em que ele distingue analiticamente “sexo
fisiológico” (macho e fêmea), “papel de gênero” (masculino e feminino), “comportamento sexual” (atividade e
passividade) e “orientação sexual” (homo, hetero ou bissexualidade).
104
Nesse mesmo viés, cabe refletir sobre o próprio nome do jornal, em que a figura de Lampião remetia tanto ao
mítico cangaceiro como à ideia de trazer luz, iluminar a questão do “homossexualismo” numa dimensão pública.
Aguinaldo Silva, quando questionado sobre a escolha do título, apresenta a seguinte versão: “O nome do jornal
seria Esquina, porque a gente achava que esquina é um lugar meio que icônico para os homossexuais, um lugar
de parada. E aí nós descobrimos que já tinham registrado Esquina. Aí nos pensamos em Lampião da Esquina. Na
verdade, o Lampião era esse, não era o Virgulino. Mas na brincadeira, na hora de fazer o logotipo, pensamos 'E
se a gente fizer essa brincadeira? Quem é o maior representante do machismo nacional? É o Lampião. Se
92
Na mesma edição, artigo assinado por Frederico Jorge Dantas, que editava um
boletim nos anos 1970 intitulado Eros, também se propunha a justificar a existência de uma
“imprensa homossexual”. Predominam no discurso as ideias de “informar” e de
“conscientização” em uma “irmandade”:
O texto, por sua vez, foi comentado por leitor que se identificara como C.S.S na
edição seguinte, num discurso que reitera a importância de se construir um “sujeito
homossexual conscientizado”:
Concordo com Frederico Dantas quando diz que é necessário se atingir um tipo
ideal de homossexual conscientizado de sua verdadeira realidade sexual. A imagem
da afetação e da frescura perseguem ainda o tema homossexualismo e a corrupção
moral em que se encontra envolvida a homossexualidade confere a desconfiança
sobre a possibilidade de uma conduta equilibrada, ou seja, sem tentar corromper ou
facilitar as coisas para o seu lado. É preciso que isto seja sempre mostrado: o
homossexual agindo conscientemente dentro de sua realidade sexual; é um
indivíduo comum, sem preocupação de “fazer a cabeça” dos outros, o que por si só
é uma asneira (Cartas na Mesa, Lampião da Esquina, ano 1, número 1, mai-jun
1978, p. 15)
Evidentemente, tanto o artigo como a carta não nos permitem afirmar que seus
discursos eram endossados total ou mesmo parcialmente pelo jornal, pelo conselho editorial
ou pelos demais colaboradores (é difícil imaginar, por exemplo, um antropólogo como Peter
Fry subscrevendo uma visão “evolucionista” das categorias sexuais em que a “bicha” fosse
um estágio menos desenvolvido de outro, o “homossexual”!). Mas mencionamos estes dois
exemplos pelos que seus discursos sugerem: nos primeiros números de Lampião, a construção
da linha editorial de um “jornal homossexual” deparava-se, de saída, com o desafio de se
fizermos uma brincadeira, o jornal já mostra que veio pra brincar. Disponivel em:
<http://www.youtube.com/watch?v=2z9uyCRF7ic> Acesso em 20 mar 2013.
93
Acho que o Conselho Editorial precisa discutir também suas posições dentro do
jornal, para os leitores (não simplesmente através de seus artigos, mas de uma mesa
redonda, sei lá). E isto é a maior importância. É preciso também criar cismas, acabar
com a manutenção do status quo de bicha assumida erudita que não precisa de
ninguém nas suas investidas intelectuais, como se lhe fossem tomar o caso. Não
deixa de ser! (Taí uma das maneiras de exercício do poder). Não esqueçam que o
Lampião também é nosso, que não entramos com o capital para sua implantação,
mas que o mantemos vivo de uma maneira ou de outra (Cartas na mesa, Lampião da
Esquina, ano 1, n. 4, ago-set de 1978, p. 17)
Vou ser franco: não gostei do jornal de vocês. Digo de vocês porque não acho que
ele seja de toda a classe. É meio metido a intelectual, tem pretensões. Até aí tudo
bem, porque tem muita boneca metida a sabichona, indo a concerto na Casa Cecilia
Meireles de nariz emproado e lencinho na lapela. Mas e o resto? E o povão? Eu acho
que vocês deviam fechar mais com o bicharéu, para não parecer um jornal muito
elitista. Afinal, vocês podem até todos muito grã-finos, mas o jornal não pode dar
bandeira sobre isso. Onde estão os travestis? Por que não tem uma no conselho de
Lampião? Só tem professor e artista? Que democracia é essa de vocês, onde o povo
também não vota?
E ainda tem uma coisa. Tem uns artigos publicados no jornal, meu Deus do céu. É
como se vocês tivessem dando aula pra gente. Atenção, meninas, aprendam com a
gente, que nós sabemos tudo. Assim não dá. Fiquei meio pulérrimo com isso (Cartas
na mesa, Lampião da Esquina, ano 1, n. 4, ago-set 1978, p. 19)
105
Insistimos em grafar as duas formas para reiterar que, naquele período, como indicia a carta e diversos outros
textos, os dois termos coexistiam, ainda que o primeiro predominasse.
94
este “homossexual”, diante das diferenças (social /“de classe”, de profissão, de status, das
categorias que concorriam na representação dos “homossexuais” etc) em que a própria
categoria, e as estratégias para legitimá-la, eram tensionadas, quando não mesmo postas em
interrogação.
Leitor: (Sugestão) Aumentar a frescura. Tá sério demais. Quase não tem piadas,
frescurinhas. Está uma literatura pesada e triste. Que tal uma seção de Receitas do
Prazer, inventando modos de como fazer melhor “a coisa”?
Resposta: Reconhecemos que nosso número zero ficou mais sério do que
pretendíamos. Essa é uma coisa ser corrigida. Quanto ao prazer, cada um que trate de
inventar o seu (Cartas na mesa, Lampião da Esquina, ano 1, n. 1, mai-jun 1978, p.
15)
Na edição seguinte, leitor identificado por Carlos Schorr, de Porto Alegre (RS),
contrapõe-se ao leitor “Anônimo”:
95
Posição próxima também pode ser identificada no discurso do leitor José Alcides
Ferreira:
Pauladas na “Bichória”
Lampião veio na hora certa, estávamos afundando em termos de jornalismo
homossexual e isto seria, claro, uma insuficiência na nossa capacidade de lutar por
algo de bom em prol da nossa afirmação (…) Lampião correspondeu em cheio (pelo
menos isto ficou provado neste número de distribuição gratuita) às necessidades que
este grupo que a bichória chama de “mariconas”, ou seja, de nós, homossexuais que
somos homens normais e nos relacionamos com seres humanos, sem necessidade de
pompas, visuais congestionados de artefatos de consumo e tiques ridículos (tão
característicos à nocividade que é representada pela bicha de classe média, incapaz
de se impor como gente, como pessoa). Espero que os números seguintes encham
nossos olhos e corações de coisas boas, de realidade (Cartas na mesa, Lampião da
Esquina, ano 1, n. 2, jun-jul 1978, p. 14)
Uma parcela de leitores entendia, assim, que uma política de “afirmação” exigiria
o distanciamento de um modelo que associava o “homossexualismo”/homossexualidade ao
risível ou à “frescura”, sintetizado na figura da “bicha”. O primeiro leitor situa
discursivamente as dimensões do riso e da frescura, assim, num lugar outro, a partir das
imagens contrapostas da casa do vizinho ou da TV e da “família de cada um” ou do
“carnaval”. O segundo, explicitamente nomeia e acusa a “bicha de classe média” como nociva
ao mesmo projeto de afirmação (“homossexual”).
Também na segunda carta, constrói-se um discurso em que o autor se apresenta e
se inclui em um “nós” composto por “homossexuais”, que se caracterizariam como “homens
normais”, grifando a palavra “realidade” como se esta fosse uma dimensão a ser buscada pelo
jornal. Esta dimensão, por seu turno, não seria contemplada por um “jornalismo
homossexual” anterior (“estávamos afundando”) que privilegiaria as “pompas visuais” e os
“tiques ridículos”. As duas cartas, assim, expressam posicionamentos que convergem em
reivindicar para o/a “homossexualismo”/homossexualidade um lugar de respeitabilidade que
seria construído fundamentalmente a partir de sua vinculação à “normalidade”.
Esta posição, entretanto, não era de todo compartilhada no Lampião. Entendemos,
a partir dos discursos veiculados nas primeiras edições, que emergia ali um desafio, sobretudo
96
No discurso de Fry, evidencia-se uma revalorização dos periódicos dos anos 1960
e 1970. Argumenta-se que, se estes reproduziam as “manchas” de uma sociedade machista ao
dar visibilidade ao modelo bicha/homem, os jornais também poderiam ser vistos como
97
documentos “históricos” que davam acesso à realidade (“da vida homossexual” brasileira).
Em outra passagem do texto, o antropólogo traz declarações do jornalista baiano em que este
associa a cobertura das fofocas, dos “desfiles de miss” como de uma época (majoritariamente
os anos 1960) que estaria em transformação: “Hoje (…) todo mundo faz o que quer,
abertamente e com o apoio de todo o mundo (…) Foi a década de 70 que trouxe esta
renovação”. Ao encerrar o texto propondo que se articule as transformações naqueles jornais
da imprensa (gay/“underground”) baiana às transformações sociais (“contexto”, no discurso
do antropólogo106) e tomando estas como condição para o lançamento do Lampião da
Esquina em um novo cenário, a defesa de Fry também pode se lida como uma tentativa de se
pensar o Lampião e a imprensa (entendida/homossexual/gay) numa historicidade onde
persistiram o desafio de enfrentar o “machismo”, mas que também reconhecesse as categorias
e os modelos representados naquele jornalismo como dimensões da vida homossexual
(baiana, no caso, mas também brasileira).
É importante perceber que este “reconhecimento” se dá num processo em que se
delineiam algumas mudanças editoriais nas páginas de Lampião, principalmente quando este
passa a tentar conciliar a cobertura do “homossexualismo”/homossexualidade com o tom
menos “sério” que avaliavam ter marcado os primeiros exemplares.
Um dos símbolos desse deslocamento (que é simultaneamente editorial e político,
no sentido de apropriação e ressignificação de algumas categorias sexuais e de gênero, como
expomos a seguir) é o lançamento da coluna Bixórdia, cujo título não apenas põe em primeiro
plano a categoria bicha como recupera o formato da “coluna social” que era, como vimos,
posto em debate no interior da “imprensa gay” desde o final dos anos 1960, ainda que nunca o
tenha sido de todo abandonado nestes periódicos107.
Bixórdia procurava conciliar uma nova visibilidade a categorias postas em
segundo plano por serem associadas ao “machismo”, bem como valorizar a experimentação
de uma maior liberdade editorial característica do formato jornalístico de coluna. Isso fica
evidenciado no texto de apresentação, a partir de uma explicação do neologismo ao leitor:
106
Em outra passagem do texto, isto fica mais explícito: “Sem entrar em mais detalhes, é claro que as
transformações notadas de Fatos e Fofocas até Ello representam as grandes transformações ocorridas na vida
homossexual da Bahia” (Lampião da Esquina, ano 1, n. 4, ago-set 1978, p. 4).
107
O aparecimento da coluna foi destaque na capa da quinta edição, com a manchete “Nós também temos uma
coluna social” (Lampião da Esquina, ano 1, n. 5, out 1978).
98
Tal discurso, que joga em diversos níveis com os limites do “sério” (a ideia de
“mistura” e “bagunça” que pautaria a coluna dá-se por meio de um modelo de enunciado mais
formal, representado pela entrada de dicionário; o contraponto entre sério e triste como
paradoxo; A representação do “livre” e do “autopermitido” por meio de uma palavra
originária do “machês”; os modos como o enunciador dialoga com os leitores, no uso do
superlativo – “finíssimo” – ou diminutivo – “queridinhas”) coaduna-se com a adoção de um
tom mais descontraído, elaborado na descrição de cenas cotidianas vivenciadas por
integrantes do jornal ou pelos leitores. Também podem ser incluídas as anedotas extraídas de
situações vividas nas interações afetivas e sexuais entre as diferentes categorias (entre “tias” e
“sobrinhos”, entre “bofes” e “bichinhas” etc.).
Concomitantemente, o uso da categoria bicha passa a ser estratégico, como fica
explícito na seguinte passagem ainda na primeira edição de Bixórdia, que mostra a tentativa
de tomá-la, mediante um convite à participação num “concurso”, como referente de
interação/reconhecimento com os leitores:
Concurso da Bixórdia
Muita gente ainda tem medo das palavras, de ser chamada de bicha, por exemplo.
Pois bem: para provar que o que conta é a cuca das pessoas e que a palavra, seja qual
for, pode – e deve – ser encarada como coisa gozosa (!), curtível até, Bixórdia lança
um concurso: qual o coletivo da palavra bicha? Já pensaram? Manada, rebanho ou
vara não servem, pois já designam o coletivo de outras espécies. Então, imaginações
à obra. Vamos inventar um coletivo de bicha, enriquecendo e resgatando o
vocabulário guei (Lampião da Esquina, ano 1, n. 5, out 1978, p. 12)
O aparecimento da coluna também pode ser lida no interior de uma política que
passa a ficar mais evidenciada no Lampião, acerca do uso ou não da categoria bicha108. Ela já
se anunciava, contudo, anteriormente, se considerarmos o discurso elaborado por Aguinaldo
108
Os modos não-consensuais de se relacionar com o termo “bicha” (e variações) já ficaram evidenciados na
segunda edição de Lampião, ao se publicar uma longa entrevista com Lennie Dale, bailarino norte-americano
radicado no Brasil e integrante do grupo musical Dzi Croquettes. O texto intercala as falas do entrevistado a
comentários sobre os bastidores, numa passagem que discute particularmente as possibilidades de articulação de
um “movimento de libertação homossexual” ou “guei” no Brasil: “Lennie – Eu acho que no Brasil não vai ter
movimento, nesse momento, porque a América do Norte é muito diferente da América do Sul. Mas eu acho que
alguma coisa vai acontecer, de qualquer maneira. Acho que as bichinhas, aqui, hoje em dia, já estão se unindo.
(Segue-se nova discussão sobre o termo bicha. Alguém lembra que “Não fomos nós que inventamos esse
apelido! Todos intervêm. Maurício [Domingues, fotógrafo d'O Lampião) fala sobre o equivalente norte-
americano da palavra e diz: “Lá, se alguém é chamado assim, pode processar quem o chamou”)” (Lampião da
Esquina, ano 1, n.2, jun-jul 1978, p. 7).
99
Silva em artigo da terceira edição, em que este defende explicitamente o uso de determinadas
“palavras” no Lampião:
antecipa uma estratégia que seria mais amplamente celebrada nos círculos acadêmicos anglo-
saxões com a emergência, ao longo das décadas de 1980 e 1990, dos “estudos gays e
lésbicos” e da “teoria/estudos queer”: o da “contra-apropriação” dos discursos ofensivos pelos
sujeitos a quem eles seriam endereçados109. Como ressalta uma de suas teóricas mais
influentes, Judith Butler, acerca do termo queer110:
A reavaliação de termos como “queer” sugere que o discurso pode ser “retornado”
ao seu enunciador numa forma diferente, de que pode ser citado contra seus
propósitos originais, e performar uma reversão dos efeitos. De modo mais geral,
então, isto sugere que o poder cambiante de termos como esse marca um tipo de
performatividade discursiva que não é uma série discreta de atos de fala, mas uma
corrente ritual de ressignificações cuja origem e fim permanecem não-fixadas e não-
fixáveis (BUTLER, 1997, p. 14)
Butler (1997, p. 15) considera que um ato de fala ou discurso [speech act, no
original] não deve ser tratado como um acontecimento momentâneo, mas como um “certo
nexo de horizontes temporais” que condensaria uma reiteração [iterability, no original] capaz
de exceder o momento do ato. Esses horizontes temporais também dizem respeito à abertura
entre o ato do discurso e a ofensa que esse ato performa, e é nessa abertura que se constrói a
possibilidade de se elaborar um “contra-discurso”. Assim, Butler afirma que “o intervalo entre
instâncias de elocução [utterance, no original] não apenas faz a repetição e a ressiginificação
da elocução possíveis, mas mostra como as palavras podem, através do tempo, ser dissociadas
do seu poder de ofensa e recontextualizadas em maneiras mais afirmativas”.
Entendemos que o discurso de Aguinaldo Silva no texto “As palavras: para que
temê-las?” associa-se às possibilidades editoriais de negociar com a audiência leitora as
brechas que também constituiriam a “separação”, para usar novamente o termo presente
naquele discurso, entre o mundo dos machistas e o “nosso” (dos homossexuais), ou nos
horizontes, para usar os termos de Butler, em que o uso das palavras pelos próprios
homossexuais permitiria a “desmistificação” (do poder de ofensa) dessas palavras e, como
109
Concordamos com a ressalva feita por Carrara e Simões quando estes afirmam ser “muito interessante notar
como inquietações contemporâneas em relação a processos de naturalização das diferenças e fechamentos
identitários, associadas no debate atual ao influente pensamento de autoras pós-estruturalistas, como Judith
Butler, já estavam presentes no campo intelectual brasileiro desde o final dos anos 1970” (2007, p. 75-76). Nesse
sentido, enfatizamos que o Lampião da Esquina também se mostrava um espaço de debate dessas inquietações,
neste caso em particular, no que concerne à (re)apropriação discursiva de palavras pejorativas.
110
A expressão queer pode remeter, numa tradução bastante livre, a “estranho”, “esquisito”, “bicha”, “viado” etc.
Nas últimas décadas o termo ampliou sua abrangência de significação, indo desde a designação de um campo de
estudos ou de perspectivas teóricas/epistemológicas no terreno da sexualidade e gênero (estudos queer, teoria
queer...) a sua utilização como referencial identitário (os “queers”) – ainda que sua proposta inicial esteja
diretamente associada a um questionamento das (políticas de) identidades sexuais e de gênero como fixas e
estáveis.
101
111
Uma leitura distinta da coluna é feita por Butturi Junior (2012, p. 104), a quem Bixórdia, espaço demarcado
no Lampião como coluna, “se constitui como o espaço do pastiche, da paródia dentro do jornal”. Para ele, “seu
apelo é da ordem do discurso 'livre', não sério, que se pretende além da disciplinarização. É só nesse discurso da
alteridade homossexual, da 'bicha' como promessa revolucionária que se permite existir. Assim, enquanto o
jornal discute a violência contra os homossexuais, a censura política e a legislação que tolhe os direitos da
minoria politizada, a seção dedicada à 'fechação' permanece um performativo não-feliz: não há regramentos que
permitam à Bixórdia construir a identidade da nova homossexualidade, pois seu espaço é o de uma contemplação
arcaica, de um retorno folclórico”. Acreditamos que esta leitura limita os efeitos que a paródia e o pastiche têm,
do potencial de revelar as contradições nas disputas de construção das “identidades” das homossexualidades,
circunscrevendo tais recursos (o pastiche e a paródia) a um “arcaísmo” ou “folclorismo”. Não obstante, ainda
que se fosse um “retorno ao folclórico”, não seria o caso de questionar em que medida tal retorno também não
denunciaria e poderia desestabilizar a “modernidade” no discurso da “nova homossexualidade” em circulação no
jornal, contaminando, assim, outros espaços editorias do Lampião?
102
112
João Silvério Trevisan, ao fazer um balanço do “movimento brasileiro na luta pelos direitos homossexuais”,
em contraste com o movimento gay norte-americano, entende que a resistência ao termo gay, por exemplo, pode
103
Ainda que o Lampião da Esquina tenha surgido com a proposta de dialogar com
outras “minorias” e conferir alguma visibilidade a outras categorias e “lutas” (como a racial e
a ecológica), as reportagens e artigos direcionavam-se preferencialmente aos homossexuais
masculinos. Os 11 integrantes do Conselho Editorial eram homens, situação que se manteve
nas edições seguintes.
Isto não quer dizer que, no seu primeiro ano de veiculação, o Lampião não tenha
veiculado reportagens e artigos enfocando “lésbicas”, “travestis” ou “bissexuais”. O jornal
também se deparou com os desafios, demandas e reivindicações de sujeitos que não se
alinhavam exclusivamente ou que, de algum modo, não se viam incluídos na categoria
“homossexual”.
Para ilustrar, no seu primeiro ano de circulação, de um total de treze exemplares,
as mulheres foram o principal destaque na capa de quatro edições. Na terceira, a manchete
saudava “Mulheres na Redação”, acompanhada de uma entrevista com a atriz Norma Bengell.
A edição de número cinco ressaltava a extensão produção literária da escritora Cassandra Rios
(“Cassandra Rios ainda resiste – com 36 livros, ela só pensa em escrever”). Na décima
primeira, são as temáticas que desafiavam o movimento feminista que ganham realce
(“Lesbianismo, machismo, aborto, discriminação – são as mulheres fazendo política”). A
edição seguinte, por sua vez, salientava o “Amor entre mulheres (elas dizem onde, quando,
como e porquê)”. Pode-se incluir ainda o relativo destaque à entrevista da cantora Lecy
Brandão na sexta edição, sugerindo a existência de uma “Música Popular Entendida”).
ser situada no interior de uma resistência ao próprio termo (e conceito de) “gay power”: “Um dos termos
discutidos e rejeitados era o chamado gay power, muito em voga no final dos anos 1970 e começo dos 1980.
Acreditávamos que a concentração de poder começava pela delegação de poderes individuais. Portanto,
considerávamos repugnante substituir um poder por outro, ainda que fosse pretensamente um “poder de dentro' –
o que nos parecia um impedimento para diluir ao máximo os poderes e para manter a condição de sujeito
desejante – dentro da comunidade homossexual” (TREVISAN in COSTA et al,2010, p. 55).
104
A inserção das pautas femininas e/ou lésbicas pode ser pensada na articulação de
dois pontos: um, de aproximação; o segundo, de tensão.
Em relação ao primeiro, Lampião acompanhava e era palco das relações que
começavam a se estabelecer entre o nascente “movimento homossexual brasileiro” e as
reivindicações feministas. Como documenta amplamente MacRae (1990), entre 1975 e 1976,
são lançados os jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres (este último declarando-se
editorialmente como feminista), veículos que traziam para o primeiro plano temas como a
“opressão das mulheres” e o “direito ao prazer sexual”. O respeito à individualidade e ao
reconhecimento do prazer, que como vimos estava na pauta do Lampião da Esquina desde
seus primeiros números, eram incorporadas nos coletivos homossexuais como questões
prioritárias, em contraponto às lutas gerais da esquerda:
(…) não vou chegar ao extremo de dizer que foi “bem feito pra elas”; mas é que do
LAMPIÃO elas vivem fugindo. Agora, quando aparece um jornal normal disposto a
entrevistá-las, elas não se furtam: entregam todo o ouro. Ficam p. da vida com O
Repórter? Pois então vamos fazer o seguinte: que se reúna um grupo de mulheres,
façam as entrevistas, escrevam, botem tudo, e depois nos mandem. Nós
publicaremos sem reescrever, sem cortar coisas, sem policiar. Tomem vergonha na
cara e assumam esse compromisso, meninas; ponham o medo de lado e aceitem o
fato de que o jornal é nosso, ou seja: também é de vocês (“Lésbicas vendem mais
jornal?”, Lampião da Esquina, ano 1, n.10, mar 1979, p. 2)
113
Nos discursos veiculados em Lampião, travesti era sempre designado pelo artigo definido masculino (“o
travesti”).
107
(…) a fotógrafa Astrid Marot (…) passou a fotografar, com rara paciência, os
travestis que, a cada carnaval, saem à rua, não para exibir uma possível semelhança
com as pessoas do outro sexo, mas sim, para incorporar a inquietação que os faz
buscar o impossível – a transformação. Os travestis de Astrid têm a face do
pesadelo, vê-los certamente ajuda a entender o medo irracional que acomete muitas
pessoas hetero nas quais o homossexualismo provoca um pavor, a sensação do “já
ter visto aquilo em algum lugar” – possivelmente no mais íntimo de todos os seus
pensamentos (“Sugestões para o pesadelo da madrugada”, Lampião da Esquina, ano
1, n. 11, abr1979, p. 20)
Podemos identificar neste discurso a alocação do travesti como alguém que, mais
do que uma semelhança com a figura da mulher, inquieta pela performatização da
“transformação” (impossível); por outro lado, “o travesti” também é considerado uma
variação do “homossexualismo” que interpela os medos e pensamentos íntimos dos
heterossexuais.
Entretanto, assim como em outras questões editoriais analisadas aqui, esse modo
de representação também dividia o jornal, seja na posição de alguns colaboradores, seja de
leitores que se manifestavam na seção de cartas. Isso pode ser constatado em texto do
conselheiro editorial João Antônio Mascarenhas, que propugna um discurso que vincula “o
travesti” a uma categoria de homossexuais que, não obstante se “rebelasse” contra “a rigidez
dos padrões sexuais impostos pela casta dominante”, ora representava uma tentativa
“incompleta” de se tornar mulher (esta, vista como portadora de uma feminilidade “natural”),
ora (numa leitura que mescla travestismo e transexualidade) buscava ocultar sua “identidade”
mediante o recurso da operação cirúrgica:
114
O texto de Mascarenhas também ataca as “bichas pintosas”, a quem classifica de “agressivas” por “agredir” e
internalizar “insegurança” e “sentimento de culpa”. No discurso do autor, “dar bandeira” como expressão da
própria homossexualidade era tomado como uma postura de internalização de uma opressão e de assumir uma
posição de estigmatizado. Entendemos que esse discurso discrimina as “pintosas” ao situá-las como ameaçadoras
de uma homossexualidade “respeitada”. Ainda para Mascarenhas, o travesti elevaria esta postura ao paradoxo,
por buscar um ideal de feminilidade. É um discurso, portanto, contraposto a outros discursos mais
“celebratórios” que circulavam em textos e, sobretudo, ensaios fotográficos do Lampião.
108
(homossexuais/entendidos/gueis/gays).
Tanto pelo modo como se “cedeu” espaço às mulheres/lésbicas ou se elaborou
estas representações ambíguas dos travestis, não se trata aqui apenas de revelar a delimitação
editorial por uma audiência de homossexuais masculinos: Lampião era um jornal que, não
obstante os esforços de problematizar o “homossexualismo”/ homossexualidade, o/a situava a
partir de olhares que, majoritariamente, partiam de uma posição homossexual masculina.
É nesse contexto que as lésbicas “convidadas” a escrever sobre “lesbianismo” no
Lampião decidem, como fruto desta experiência, tanto lançar uma publicação própria como
um coletivo organizado, o Chana com Chana e o Grupo Lésbico Feminista (posteriormente
GALF- Grupo de Ação Lésbico-Feminista), respectivamente. Artesanal, o Chana com Chana
consistia num boletim informativo distribuído em bares, boates e eventos acadêmicos e
políticos de interesse da comunidade lésbica. Na medida em que o GALF, no final da década
de 1980, passa a se constituir na organização não-governamental Um Outro Olhar, o
periódico passa a ganhar este mesmo nome, circulando entre outros coletivos gays e lésbicos.
Como demonstra Péret (2011), outras publicações lésbicas similares, de alcance
bastante restrito quando comparadas a jornais homossexuais como o Lampião, despontam nos
anos 1980 vinculadas a associações e organizações de militância, caso de Boletim Amazonas,
Xerereca, Boletim Ponto G, Deusa Terra e Lesbertária. Nas décadas seguintes, a pequena
inserção de lésbicas num universo editorial de maioria homossexual masculina encontra eco
na atuação de Vange Leonel (cantora, escritora, colunista de Sui Generis e do jornal Folha de
S. Paulo) e Suzy Capó (curadora do Festival MixBrasil de cinema).
Nos anos 2000, também são lançadas revistas direcionadas especificamente a este
público, caso de Sobre Elas (2006, com circulação de apenas dois números e distribuição
gratuita) e Entre Elas (2008, extinta no mesmo ano). Esta efemeridade demonstra uma
dificuldade ainda maior de se elaborar uma “imprensa lésbica” no Brasil. Ainda segundo
Péret, isso remete a fatores diversos, “desde o fato de elas não se assumirem até a profusão de
revistas femininas que existem no mercado” (2011, p. 80). Igualmente a se considerar é uma
menor visibilidade das lésbicas no interior tanto da imprensa “gay” como do mercado de
consumo e serviços direcionados aos sujeitos LGBTs.
Durante os quinze anos de ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1980, nasceram e
morreram cerca de 150 periódicos que tinham como traço comum a oposição
intransigente ao regime militar. Ficaram conhecidos como imprensa alternativa ou
imprensa nanica. A palavra nanica, inspirada no formato tablóide adotado pela
maioria dos jornais alternativos, foi disseminada principalmente por publicitários,
num curto período em que eles se deixaram cativar por esses jornais. Enfatizava-se
uma pequenez atribuída pelo sistema a partir de sua escala de valores e não dos
valores intrínsecos à imprensa alternativa. Ainda sugeria imaturidade e promessas de
tratamento paternal. Já o radical de alternativa contém quatro dos significados
essenciais dessa imprensa: o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de
uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma
situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos de 1960 e 1970, de
protagonizar as transformações sociais que pregavam (KUCINSKI, 2003, p. 13)
115
Silva (1998) apresenta do seguinte modo o jornal em sua dissertação: “Observei a recorrência de relatos
referentes a um periódico da imprensa alternativa: o Lampião da Esquina” (p. 7); No capitulo dedicado ao
Lampião, MacRae dedica uma breve seção à “imprensa alternativa” (1990, p. 69-70).
110
na seção “Cartas na Mesa”, incluindo o periódico numa lista de outros títulos como De Fato,
Repórter, Em Tempo, Coojornal, Verso, Nós Mulheres, Brasil Mulher e o Pasquim. Esta
associação com os jornais alternativos fica mais explícita com o título, no topo do anúncio,
reivindicando “Por uma imprensa independente”.
O anúncio, porém, recebe críticas de um leitor no exemplar seguinte, cujo
discurso, mencionando o fato de dois desses jornais alternativos citados terem recusado a
publicação de uma entrevista com um ativista gay norte-americano, questiona a imprensa
“independente” e o fato de o Lampião promovê-la em suas páginas:
(…) Mas ainda não chegamos ao principal: a propaganda que você, meu querido
LAMPIÃO, fez da tal de “imprensa alternativa”. Eu, antes de jogar o epíteto
“independente”, perguntaria antes: independente de que? De quem? Porque pode ser
independente de uma coisa e dependente de outra...
Trevisan neste mesmo seu n.2, LAMPIÃO, nos conta que Versus e Movimento se
recusaram a publicar a matéria sobre o Leyland por razões morais. Nos conta ainda
que O Beijo se recusou por pura sacanagem. Ora, você sabendo de tudo isto ainda
publica uma propaganda desta imprensa em suas páginas? Você está parecendo
Bicha-burra, LAMPIÃO! Esse tipo de imprensa não é independente coisissíma
nenhuma, muito pelo contrário. E bota contrário nisso. São preconceituosos,
pedantes e antes de mais nada, pequeno-burgueses (Cartas na Mesa, Lampião da
Esquina, ano I, n.3, jul-ago 1978, p. 15)
A crítica do leitor, numa interpelação direta ao jornal explicitada pelo uso recorrente
do vocativo, recebe a seguinte resposta (não-assinada):
veículos, algo que o jornal revaloriza como positivo (“saudável”). Essa dificuldade de
reconhecimento, por seu turno, pode ser pensada no interior de disputas em que a
homossexualidade/“homossexualismo” não era plenamente reconhecida no interior das lutas
sociais que pautavam os jornais da “imprensa alternativa”.
Isso fica mais explícito quando se traz um trecho do texto já citado de Aguinaldo
Silva, acerca da participação das mulheres no Lampião, quando ele usa como exemplo o
jornal O Repórter e o retrato que este faz do “homossexualismo”:
Bom: eu conheço o pessoal d'O Repórter e sei que ele é da melhor qualidade; estão
enfrentando uma barra pesadíssima como nós e formam, como outros jornais, uma
linha de frente na qual LAMPIÃO também se instala. Agora, o problema é que, por
mais progressistas que sejam, os meninos enrolam a língua quando resolvem falar de
homossexualismo. Tenho certeza que, quando resolveram fazer a matéria sobre as
lésbicas, eles tinham a melhor das intenções. Mas como de boas intenções o mundo
está cheio, foi o que se viu (“Lésbicas vendem mais jornal?”, Lampião da Esquina,
ano 1, n.10, mar 1979, p. 2)
116
A Coluna do Meio foi publicada no jornal paulistano Última Hora, dos Diários Associados, entre 1976 e
1977. Retratando o universo das festas e casas noturnas, somado a notas de colunismo social e à promoção de
trocas de correspondências entre leitores por meio um “correio elegante”, teve ampla repercussão por ser um
espaço editorial endereçado a homossexuais no interior de um veículo da grande imprensa. Na edição de
estreia de Lampião, há uma reportagem de duas páginas abordando a coluna e o processo judicial que
envolvia Curi, acusado de “ofender a moral e os bons costumes” segundo a Lei de Imprensa. Cf. “Demissão,
processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Curi?” (Lampião da Esquina, ano 1, n. zero, abr 1978,
p. 6 e 7).
112
estampada com destaque “Moral e bons costumes?”, informando que “Lampião põe o assunto
na berlinda”. Um artigo do conselheiro editorial Darcy Penteado explicita que a escolha por
aquela temática decorria de um inquérito policial aberto contra o jornal, uma “rotineira forma
de opressão que ainda vigora, apesar das aberturas prometidas e ensaiadas, visando intimidar
principalmente os da imprensa nanica” (Lampião da Esquina, ano I, n.9, fev 1979, p. 6).
Já a reportagem interna, intitulada “O que pensa a sociedade civil sobre o
assunto”, traz depoimentos de políticos, jornalistas, escritores, atores, um operário e uma dona
de casa, encerrando-se, a partir da fala atribuída a um comerciante, com um depoimento que
explicita a situação vivenciada pelo jornal:
Tal discurso não apenas torna público as pressões sofridas como também serve
para reforçar o mote lançado no número inicial, reiterando a existência do Lampião como
jornal porta-voz e combate ao preconceito vivenciado pelos homossexuais.
Cabe ressaltar, entretanto, que as pressões ao Lampião da Esquina não eram
apenas externas. Diversos relatos sobre o jornal trazem como ponto convergente as divisões
editoriais internas e as demandas distintas dos leitores, sintetizadas por MacRae (1990, p. 89)
do seguinte modo:
*
Em abril de 2011, Marcos Mazzaro, repórter que atuou na revista Sui Generis e
colaborador desta pesquisa, encerrou a entrevista para esta pesquisa nos seguintes termos:
“Foi uma história muito bonita, da qual tenho muito orgulho, ter feito parte da revista.
Acredito que há muito de um jornal como o Lampião na Sui Generis, você não acha?”.
A pergunta ecoa quando se inicia agora a tarefa de analisar a Sui Generis como
um dos títulos paradigmáticos da feitura de um “jornalismo gay” no Brasil a partir da década
de 1990. E não por sugerir que se busque eventuais “semelhanças” entre as duas publicações,
numa leitura “comparativa”. A fala nos chama a atenção pelo modo com que o colaborador
tenta fazer um balanço de sua atuação profissional, e daquela revista em particular: enxergar
ecos do Lampião da Esquina em Sui Generis é também uma forma de reconstruir
historicamente sua trajetória de repórter num campo mais amplo, em que as duas publicações
sinalizaram, em seus respectivos períodos, as experiências, desafios e resistências num
segmento que permanece em constante exercício de legitimação.
De certo modo, discutir aqui alguns dos discursos que circulavam no Lampião e,
antes dele, em O Snob e Gente Gay, mostrou-se necessário para que as questões a serem
tratadas na análise de Sui Generis e Junior não fossem tomadas fora de uma historicidade e de
como elas estão relacionadas a esse processo de afirmação não apenas de determinadas
categorias ou dos discursos sobre as homossexualidades, mas dos próprios sentidos em jogo
quando se reivindica um lugar ou se dimensiona, no Brasil das últimas décadas, o universo de
publicações geralmente abarcadas no rótulo imprensa ou jornalismo gay. Estas duas
publicações são abordadas nos próximos capítulos.
115
Tinha uma coisa na Sui Generis que hoje acho que deva ser complicado de fazer,
mas que na época se fazia, que era a coisa do outing mesmo como uma questão.
Hoje, acho que talvez não seja nem mais uma questão, será que é? Uma boa
pergunta... Que é meio promover esse outing ou lançar suspeitas sobre essa história.
E isso tem vários episódios na revista, que recebeu alguns processos por causa disso.
Às vezes, até injusto.117
117
Entrevista ao autor em 15 abr 2011.
116
Tomamos esta fala como ponto de partida por entendermos que ela abre
importantes frentes de análise, sobretudo no que se refere a estratégias discursivas que, no
âmbito da produção jornalística aqui analisada, ora atualizam, ora redesenham o que se
convenciona chamar de outing como política de visibilidade.
Antes de explorá-las, entende-se que, mais do que demonstrar com “exemplos” o
outing como um dos eixos da política editorial de Sui Generis, esta é uma questão privilegiada
para discutir uma dimensão crucial na construção deste periódico como uma “revista gay” e
“para gays” (e “lésbicas”). O “assumir-se” desponta, assim, como um dos elementos
principais para a construção do referente gay como identidade e como cultura valorizados nas
páginas da publicação.
Ao destacar o outing em correlação aos processos performativos de elaboração
dos discursos veiculados na revista, da linha editorial e da atuação dos seus jornalistas e
colaboradores, adota-se uma perspectiva teórica/epistemológica que opera na “importação” de
um influente referencial analítico, elaborado em torno daquilo que a crítica literária Eve K.
Sedgwick situa como “regime de conhecimento do armário” (1990). A ideia de “importação”
aqui não é gratuita, pois entendemos que o conceito de “armário”, nos moldes em que circula
nos estudos gays, lésbicos e queer nas últimas décadas, deve ser situado a partir de um
movimento que tanto reconhece sua relevância nos debates acadêmicos, ativistas, da imprensa
gay etc como exige uma interrogação crítica dos limites de sua incorporação a outros
contextos espaço-temporais situados além de sua origem supostamente “central”118.
Desse modo, cabe interrogar: ao tratarmos do “armário”, ou da política correlata
do outing, lidamos com um “conceito” ou estratégia chaves numa realidade supostamente
118
A análise de Sedgwick é tomada como referência, mas cabe ressaltar que os debates sobre as políticas em
torno do coming out são anteriores à década de 1980. Altman [1998 (1971), p. 306] o associava à necessidade
de construção de uma “comunidade de irmandade”: “A essência do [movimento de] liberação gay é que ele
nos capacita a nos assumirmos [to come out, no original]. 'Sair do armário e ir pras ruas torna-se um processo
de libertação que, se não é suficiente para superar a opressão – de modo mais imediato, deve ao contrário
fazer a opressão ser mais difícil de ser carregada – é certamente um primeiro passo necessário. Aqueles
tocados pela nova afirmação descobrem uma nova percepção de como tem sido oprimidos pela sociedade e
pelas normas sociais (…) Para o homossexual, a nova afirmação envolve romper com o mundo gay como ele
tradicionalmente existiu e transformar a pseudo-comunidade do segredo e da objetificação sexual numa
comunidade genuína de irmandade”. O artigo de Altman interroga ainda: “Se finalmente transcendermos a
divisão entre hétero e homossexual, perdemos também nossa identidade?” (Ibid), concluindo que “se a
humanidade [man/womankind, no original] alcançar o ponto em que esteja capaz de dispensar as categorias
de homo e heterossexualidade, a perda valerá o ganho” (ALTMAN, 1998 (1971), p. 311). Outras referências
do final dos anos 1960 e início dos anos 1970 são a leitura de Simon e Gagnon (1967, p. 62), que situa o
coming out como “uma fase marcada pelo ponto no tempo quando há o autorreconhecimento pelo indivíduo
de sua identidade como um homossexual e sua primeira grande exploração da comunidade homossexual
[1998], e a de Dank [1998 (1971), p. 231], que identifica o uso da expressão aos informantes relacionarem “a
suas próprias experiências concernentes a como encontram outras pessoas gays e quando decidem que são
homossexuais”.
117
Mesmo num nível individual, há notadamente poucas pessoas, mesmo entre as mais
abertamente gays, que não estejam no armário com alguém pessoal, econômica ou
institucionalmente importante para elas. Ademais, a elasticidade mortífera da
presunção heterossexista significa que, como Wendy em Peter Pan, as pessoas
encontram novas barreiras que emergem em seu entorno até quando cochilam: cada
encontro com uma nova turma de estudantes, para não dizer de um encontro com um
novo chefe, assistente social, analista de crédito, senhorio, médico, levanta novos
armários cujas leis características e plenas da ótica e da física exigem, pelo menos
das pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos rascunhos e
demandas de sigilo ou revelação. Mesmo uma pessoa gay assumida 120 lida
diariamente com interlocutores que ela não sabe se eles sabem ou não; é igualmente
difícil adivinhar, para cada interlocutor, se, no caso de saber, se tal conhecimento
seria realmente importante (SEDGWICK, 1990, p. 67 e 68)
O armário gay não é uma dimensão apenas das vidas das pessoas gays. Mas para
muitas delas, ainda é a dimensão fundamental de sua vida social. E há poucas
pessoas gays, por mais habitualmente corajosas e francas, por mais afortunadas no
apoio que recebam de suas comunidades mais imediatas, em cujas vidas o armário
não seja ainda uma presença modeladora (SEDGWICK, 1990, p. 68)
Mesmo ciente dos “riscos” que uma “epistemologia do armário” possa assumir, a
saber, de colocar o “armário” numa “centralidade” e “continuidade” de uma “narrativa
119
Essas perguntas não minimizam, evidentemente, o peso da “questão do armário” nos discursos construídos
na politica editorial de Sui Generis, de sua recorrência nos artigos editoriais, reportagens, cartas endereçadas
à redação ou nos depoimentos colhidos de seus jornalistas. Antes, quer problematizar as dimensões e os
limites de seu lugar como política editorial estratégica, obrigando-nos a buscar identificar e tensionar o que
na revista se constrói como “armário”, “saída do armário”, outing ou coming out.
120
Out gay person, no original.
118
histórica” que caia na armadilha de sua essencialização, Sedgwick opera uma transposição
analítica de um plano, digamos, individual121, para outro, geral: “A epistemologia do armário
também tem sido, contudo, numa escala mais vasta e com uma inflexão menos honorífica,
incansavelmente produtora da cultura e história modernas do Ocidente como um todo” (Ibid).
Em outra passagem, afirma: “uma compreensão de virtualmente cada aspecto da cultura
moderna ocidental será não meramente incompleta, mas prejudicada em sua substância
central se não incorporar uma análise crítica da definição moderna de homo/heterossexual”
(1990, p. I).
É importante ressaltar que Sedgwick, cujas investigações concentram-se no
terreno da crítica literária, busca traçar tal análise a partir de um amplo conjunto de
binarismos: “segredo/revelação, conhecimento/desconhecimento, privado/público,
masculino/feminino, maioria/minoria, inocência/iniciação, natural/artificial, novo/velho,
disciplina/terrorismo, canônico/não-canônico, inteireza/decadência, urbano/local,
doméstico/estrangeiro, saúde/doença, igual/diferente, ativo/passivo, dentro/fora,
cognição/paranóia, arte/kistch, utopia/apocalipse, sinceridade/sentimentalismo e
voluntarismo/vício”122 (1990, p. 11), explorados a partir de referenciais canônicos
específicos123 que se tornam representativos do que ela situa como “cultura moderna
ocidental”. Entendemos que esta passagem com tendência “universalizante” (“cultura e
história modernas do ocidente”), ao mesmo tempo que representa um salto para uma
abordagem “epistemológica” original, de grande valia nos estudos gays e lésbicos em
contextos diversos, também consiste numa operação com efeitos que, mais do que
simplesmente descartar o “armário” como regime de conhecimento, precisa ser continuamente
problematizada124.
No primeiro exemplar de Sui Generis, destaca-se na composição da capa a
personagem selecionada para ilustrá-la: o vocalista de um dos principais expoentes da música
121
Como destaca Edwards (2009, p. 4), uma das ideias “mais importantes e enganosamente simples” de
Sedgwick é “que as pessoas são diferentes uma das outras, e sua noção que a primeira pessoa é uma
heurística potencialmente poderosa”.
122
No original: secrecy/disclosure, knowledge/ignorance, private/public, masculine/feminine,
majority/minority, innocence/initiation, natural/artificial, new/old, discipline/terrorism, canonic/noncanonic,
wholeness/decadence, urbane/provincial, domestic/foreign, health/illness, same/different, active/passive,
in/out, cognition/paranoia, art/kistch, utopia/apocalypse, sincerity/sentimentality, and voluntarity/addiction.
Observo que a tradução implica sempre em perder mais de um sentido para cada um dos termos e pares.
123
A literatura norte-americana, inglesa e francesa, a partir de obras de Herman Melville, Oscar Wilde, Henry
Miller e Marcel Proust.
124
Ressaltamos que exploramos esta questão a partir de um lugar sempre específico, constituído pelos discursos
na revista Sui Generis.
119
pop internacional da época, a dupla inglesa Pet Shop Boys125. Enquadrado num plano
americano126, o artista encara o leitor, numa pose em que sugere estar desabotoando uma
blusa branca, “despindo-se”. A manchete disposta no topo da página: “O Pet Shop Boy Neil
Tennant abre o jogo: “I am gay””.
Compõem ainda a capa os seguintes títulos: “Cássia Eller – Renato Russo revela a
estrela do blues”; “Stephan Elliott se apaixona no Brasil”; “Caio Fernando Abreu desafia as
hipocrisias do Brasil-Barbie”. Somam-se a estas “Points – Roteiro Fervido no eixo RJ-SP” e
“Verão – 19 páginas de moda e consumo”.
É interessante perceber que estas manchetes secundárias, ainda que não tenham o
mesmo peso do enunciado atribuído à personagem principal da página, ajudam a
circunscrever o escopo editorial da revista como de “variedades”, em que são enfatizadas as
125
Duo musical que fez sucesso em diversos países, inclusive no Brasil, nas décadas de 1980 e 1990, ainda em
atividade.
126
Plano que registra a imagem da altura do joelho para cima.
120
gay, através de espectros que ora deslocam, ora reinventam essa binaridade. Quando lançamos
um olhar sobre a reportagem escolhida para ilustrar a capa, publicada originalmente na revista
gay inglesa Attitude e intitulada “Mudança de comportamento”, podemos identificar mais
claramente esse jogo entre o saber e o não-saber.
O primeiro parágrafo do texto, cujo relato é feito em primeira pessoa, traz uma
dimensão de cumplicidade entre o jornalista e o artista, sobre algo implícito a ser abordado no
encontro entre os dois. Tal cumplicidade, por sua vez, também é transferida ao leitor, pois o
repórter revela os bastidores da realização da entrevista:
Neil Tennant sabe que hoje tem algo a me dizer e, graças a uma dica de um desses
conspiradores de quem sempre ouvimos falar, eu também sei. Na verdade, esta
entrevista foi toda combinada nessa base. Só que ninguém falou sobre isso, nem
mesmo seu assessor de imprensa, que sugeriu que nos encontrássemos 20 minutos
antes para esclarecer alguns detalhes. Tivemos um papo amigável sobre a vida e a
mídia em geral, mas absolutamente nenhuma restrição de como deveria abordar o
assunto.
Dessa forma, aqui estamos nós, Neil Tennant e eu, 45 minutos na nossa combinada
sessão de duas horas e ainda assim aquela questão problemática da sua vida pessoal
ainda não aconteceu. Ao invés, conversamos sobre outras coisas mais mundanas
(“Mudança de Comportamento”, Sui Generis, ano 1, n. 1, jan 1995, p. 38)
Graças ao fato da Kyle130 ser uma garota tão moderna, Neil e eu chegamos a arriscar
muito algumas vezes. Conversamos a respeito da audiência gay e da dificuldade de
ampliar o público sem perder essa audiência núcleo. “Penso que é muito difícil ser
Kyle”, ele me comentou em certo momento, me dando a chance de perguntar: é
difícil ser Neil Tennant?
“Em que sentido, respondeu com precaução?”
No sentido de ser mal entendido.
“Às vezes, embora esteja aprendendo a não ligar para isso. Obviamente, é uma falha
nossa que tenhamos dado às pessoas a impressão de que o que fazemos seja um tipo
de piada sofisticada”.
Então, tendo estabelecido que é uma falha minha não ter dado a Neil Tennant a
oportunidade de esclarecer quaisquer dúvidas que alguém possa ter se ele é gay ou
não, saio para uma pergunta mais longa sobre como os Pets são vistos pela imprensa
gay […]
Neil Tennant dá um profundo suspiro […]
“Eu realmente penso que contribuímos, através da nossa música, dos nossos vídeos e
da forma geral como apresentamos as coisas, ao que você poderia chamar de cultura
gay. E a razão simples pra isso é que escrevi canções do meu próprio ponto de
vista...” Ele dá uma pausa e se inclina um pouco mais perto do gravador. “O que eu
estou tentando dizer é que, eu sou gay, e escrevi canções deste ponto de vista. Ou
130
Kyle Minogue, cantora pop australiana. A reportagem mencionava a participação dos Pet Shop Boys no disco
recém-lançado da cantora.
122
seja, estou sendo surpreendentemente honesto com você aqui, e esses são os fatos.
Visivelmente aliviado, Neil Tennant se serve de água mineral e tira sua camiseta.
Seu rosto ficou bem vermelho. “Bem, qual a sua próxima pergunta?” (“Mudança de
Comportamento”, Sui Generis, ano 1, n. 1, jan 1995, p. 38-40)
“Para mim, fazer parte dos Pet Shop Boys sempre foi um esforço entre o
constrangimento total e a sem-vegonhice total”.
Escutando a fita de nossa conversa mais tarde, começo a pensar qual foi o motivo
desta estranha confissão. Talvez tenha sido uma referência ao fato de que Neil
Tennant não sente mais nenhum constrangimento sobre quem ele é nem com sua
decisão de expor seus assuntos particulares. Talvez tenha sido sua maneira de me
lembrar que normalmente ele não faria esse tipo de coisa. Honestamente (“Mudança
de Comportamento”, Sui Generis, ano 1, n. 1, p. 72).
Como o público da revista era muito exigente, existia uma preocupação muito
grande com o projeto gráfico, com a estética, com as fotos. O Nelson também tinha
uma preocupação muito grande de refletir o que é que tinha fora do país. Então,
comprava todas as revistas gays europeias, americanas e a gente sempre tava
repercutindo o que saía nelas. Era uma coisa do olhar, mesmo. E como não tinha
concorrência no nicho que a gente atuava, pois as revistas eram majoritariamente de
nu masculino e não tinham a preocupação de discutir os desejos, os anseios, a
questão do comportamento, a questão gay, a referência era a imprensa internacional.
Como a gente não tinha muitas referências de revistas aqui, a Sui Generis era a única
publicação específica, a gente lia a Out, tentava buscar a referência de outras revistas
e tentar ver aqueles assuntos, o que poderia funcionar aqui [grifo meu], na Sui
Generis, para nosso público no Brasil.
131
Clippagem é uma expressão corrente nas redações jornalísticas e no campo da assessoria da comunicação e
de relações públicas, remetendo ao ato de acompanhar a cobertura de assuntos específicos em um ou mais
veículos de imprensa.
132
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
133
Entrevista ao autor em 15 abr 2011.
124
HIV-Aids, era visto como uma das estratégias principais de desafiar aquilo que as publicações
situavam como “status quo” (mantido pelo segredo do “armário” de pessoas influentes),
constituindo-se num dos principais modos de se construir uma visibilidade gay :
A imprensa gay e lésbica ajudou a liderar a erupção da raiva contra o status quo.
OutWeek pôs no papel a mesma mensagem que o ACT UP134 gritava das ruas: “Não
mais!”. O belicoso semanário não apenas promoveu o novo radicalismo, mas
fabricou notícias de sua própria leva: OutWeek esteve no centro do fenômeno do
outing. Ao revelar a homossexualidade de homens e mulheres enrustidos 135 em
posições de poder e proeminência, a revista buscou sacudir o país a agir
(STREITMATTER, 1995, p.277, 283-284)
ser lida como um mero “reflexo” de um modelo já estabelecido nos Estados Unidos ou na
Europa e replicado diretamente no Brasil. Antes, é resultado de uma combinação de fatores.
Abrange, evidentemente, os modos como seus jornalistas concebiam a ideia de “armário” e de
“ser gay” a partir de um referencial “estrangeiro” (norte-americano e/ou europeu) a que
tinham acesso privilegiado mas, igualmente, das negociações que estabeleciam (“localmente”)
entre si no ambiente da redação, com os sujeitos (fontes e personalidades) selecionados para
ilustrar as reportagens veiculadas na revista, e com o público leitor. Essas articulações no
plano editorial e do fazer jornalístico não podem ser dissociadas, por sua vez, do peso distinto
e aos modos diversos de como o “armário” configura-se em nosso plano local.
Inicialmente, mostraremos a centralidade do “armário” como um eixo da linha
editorial, pautando o dia a dia da redação e do universo de seus jornalistas. Sugiro uma leitura
de dois trechos de editoriais publicados na oitava e na nona edições. No primeiro, tomando-se
como mote o encerramento do ano de 1995, o texto estabelece paralelos entre uma maior
visibilidade de gays e lésbicas e uma “saída de armário” que seria “social”. Já na edição
seguinte, é explícito o vínculo entre ser out e uma ideia de “orgulho”:
E o ano de 1995 foi, do ponto de vista do universo gay e lésbico, um daqueles que
ficam. Nem precisa relembrar acontecimentos, vai entrar para a história como nosso
coming out social. Elegantemente, porque somos muito chics, mostramos nossa
cara e o país descobriu que a gente existe. E o melhor foi ver que, do lado de cá,
nem doeu tanto, nem para eles a nossa cara pareceu tão feia assim.
No final, ganhamos todos. Entramos em 96 vivendo numa sociedade um pouco
menos hipócrita. (Editorial. “Chega de cara feia”, Sui Generis, ano 1, n.8, dez 1995,
p.3, grifo meu)
Ninguém planejou, mas a Sui Generis torna-se a cada dia mais interativa (…) Muita
gente não sabe por onde começar a vencer esse isolamento. Ainda mais quando não
se é out num mundo que fala constantemente de sexo (…) Na verdade, a gente quer
muito falar. Todos os gays e lésbicas, certamente, querem ser out. Quem vai preferir
carregar indefinidamente esse peso da mentira e da dissimulação? Assumir o que
somos traz uma leveza, que só conhece quem já trocou a vergonha de viver com o
medo (porque quem se esconde sofre com a possibilidade de ser descoberto) pelo
orgulho de ser livre.
E esse desejo de se comunicar, tem tudo a ver com o desejo de liberdade (Editorial.
“Só entre nós, não!”, Sui Generis, ano 2, n. 9, jan 1996, p. 6, grifos nossos)
gente”) tanto conecta a revista à sua audiência leitora como estabelece que a posição da
“saída do armário” deveria ser partilhada indistintamente (“todos os gays e lésbicas”). Este
uso do plural costura a trajetória da revista, sua chegada ao mercado editorial e à cena pública,
com o processo de se conferir visibilidade e respeitabilidade aos sujeitos gays e lésbicas
(“somos muito chics”, “mostramos nossa cara”...).
Nas entrevistas realizadas com os jornalistas de Sui Generis, todos relataram que a
política de “estar fora do armário” era simultaneamente algo reivindicado pelo proprietário e
editor-geral da revista, Nelson Feitosa, como uma posição editorial que se estruturava e
circulava no cotidiano da redação. Destacamos o depoimento do colunista Gilberto Scofield
Jr, que nos permite reconstituir esta dimensão e, simultaneamente, é revelador de suas
convicções sobre a questão do “armário”:
_ Você acha que a Sui Generis sempre teve uma política de afirmação gay?
De afirmação. De afirmação, sim, não tenho a menor dúvida disso. O Nelson era
muito assim. O Nelson não gostava de gente no armário. Não gostava [enfático].
Então, a revista tinha muito a cara dele, que era essa cara mesmo.
Alguém poderia esclarecer o que faziam a cantora Leila Pinheiro e a atriz Cláudia
Jimenez na capa do Jornal do Brasil, ilustrando a matéria sobre o Prêmio Sharp?
[…] A presença forçada das duas artistas no espaço mais importante de um dos
veículos mais respeitados do país era um grande deboche. Não com Rita Lee,
Marília Pêra, Marco Nanini, Fernanda Montenegro, Paulinho da Viola e tantos
outros que ganharam prêmios ou homenagens (e nem por isso a capa). Nem
conosco, gays e lésbicas, já carecas de saber a informação oculta naquela imagem.
Mas sim com os leitores desavisados que, pobrezinhos, não entenderam nada.
Que Cláudia Jimenez brinque com a curiosidade pública em torno de sua vida (ou
que alivie dessa forma a pressão que provavelmente sofre para dizer o que não
pretende) todo mundo compreende. Já jornais entrarem nesse jogo, vira deboche.
Afinal, jornalistas ganham para revelar verdades e não para ajudá-las a dissimulá-
las. O leitor pode comprar o jornal por diversos motivos, mas não para ser
confundido (Editorial. “Deboche público”, SuiGeneris, ano 3, n. 23, 1997, p. 4,
grifos nossos)
Os leitores mais jovens talvez não saibam. Mas existiu no Brasil, por ocasião da
mais recente ditadura, um fenômeno do jornalismo chamado imprensa nanica.
Foram pequenos jornais que conseguiram publicar certas verdades quando elas já
rareavam nos grandes veículos por causa da censura oficial […] Esta longa volta ao
passado serve para entrar num ponto atual, tema de cartas de leitores que reclamam
dos poucos entrevistados que dizem abertamente “sou gay” nas páginas de Sui
Generis. A crítica injusta escapa do universo da revista e engrossa uma boa discussão
sobre o que é público ou privado para a maioria […] A homossexualidade envolve
nebulosos aspectos públicos e privados. A Sui Generis a encara como questão
coletiva. Dentre outras, pela simples razão de que é extramente difícil um gay viver
a sua vida privada com todos os entraves públicos impostos externamente pela
sociedade. O público interfere no seu direito privado de ser homossexual
continuamente desde o berço. Contraditoriamente, no entanto, toda a sociedade
clama – muitos de nós também – que ser gay é “assunto particular”, “opção de cada
um” e dezenas de outras frases de efeito sem base real […] O que a Sui Generis e
parte dos gays acreditam, porém, significa pouco diante da opinião maior da
sociedade. Vale a regra de encarar a homossexualidade como uma questão privada.
Assim funciona uma democracia, a opinião da maioria, justa ou injusta, prevalece.
Na nossa revista, a regra é: assumir-se homossexual é decisão do entrevistado. A
gente provoca, pergunta, argumenta, insiste, mas nunca toma a decisão por
ninguém.
Poucos dizem “sou gay” nas entrevistas, porque a decisão é deles. Não estamos
autorizados a encarar essa inverdade como algo que atente ao interesse coletivo (não
só de milhões de gays, mas de todos que defendem algo parecido com uma
sociedade justa), ainda que acreditemos nisso […] A Sui Generis deve ser hoje dos
poucos veículos que, num tempo de imprensa livre e objetiva, ainda diz o
importante nas entrelinhas […] Entre um “eu não sou gay” e um “sou contra os
128
rótulos”, você poderá encontrar elementos para concluir por si próprio que não é
bem assim que a banda toca (Editorial. “Sexo, mentiras e jornalismo”, SuiGeneris,
ano 4, n.31, 1998, p. 4, grifos nossos)
Nesses discursos, reitera-se, assim, o assumir como uma postura necessária para
definir uma homossexualidade situada pela revista como verdadeira e socialmente justa. No
primeiro editorial, cabe frisar que esta “verdade” é interseccionada tanto pelos interesses dos
sujeitos “gays e lésbicas” como por uma atualização, no domínio da imprensa gay, de um
discurso em que o jornalismo legitimar-se-ia como atividade social de “revelar verdades” ao
público. A “dissimulação”, assim, é vinculada à grande imprensa como uma forma desta não
só praticar um mau jornalismo, de “deboche”, mas de, numa perspectiva mais abrangente,
manutenção do “armário” como regime constitutivo e atravessador da vida social de gays e
lésbicas.
O segundo editorial, por sua vez, explicita uma segunda dimensão, em que o
“regime do armário” (nos moldes como este é concebido nos discursos majoritários que
norteiam Sui Generis), ao mesmo tempo em que é condenado editorialmente, é atravessado
por contradições. Assim, a revista assume para seus leitores uma posição de condenar
publicamente o “armário” e seus efeitos. Mas quando nos debruçamos sobre os relatos dos
entrevistados para esta pesquisa e sobre as reportagens de nosso corpus, é possível perceber
que esse mesmo “armário” consiste, na prática, menos numa posição claramente demarcada
do que numa série de negociações em que se exploram os limites de noções como “público” e
“privado”, interesse “pessoal” e “coletivo”, dizer e não-dizer, ou de dizer nas entrelinhas,
como sinaliza o editorial.
A questão do “armário” no jornalismo de Sui Generis, ou ainda, do “outing como
questão”, resulta de uma combinação nem sempre coerente ou harmoniosa da posição
editorial valorizada pela equipe da revista, dos discursos elaborados por fontes/personalidades
que ilustravam suas páginas e, não menos importante, seus leitores. Destaco os depoimentos
do colunista Gilberto Scofield Jr e da editora Roni Filgueiras, ainda versando sobre o
“armário” e o outing:
G.S.J: Acho que essa era uma ideia que a gente tinha, a gente fala do armário, mas
não trata com condescendência. Porque a gente sabe que tem um monte de gente que
está lendo a revista que está no armário e precisa descobrir como sair. Também não
adianta quebrar o armário e falar “ah, foda-se, sai dando pinta e dizendo que você
gosta de pau pra todo mundo”, porque também não é por aí, pois cada um tem sua
hora de sair, seu momento de sair, entendeu? 138
138
Um dos pontos que podem ser problematizados nessa fala remete à questão do nu masculino, e de como este
tensionava os parâmetros editoriais de uma revista que buscava se posicionar como de “referência”,
129
Isso tinha que estar claro, mas o armário, quando está dentro da revista de um modo
geral, ele é sempre dentro de uma abordagem temporária, digamos assim, o armário
é um lugar onde não se deve ficar. De preferência, saia dele. Ele está aí, existe e
provavelmente vai existir enquanto houver preconceito. Mas saia dele, a sua vida só
cresce, a sua história só acontece, quando você sai dele, senão a sua história, a sua
sexualidade, o exercício da sua sexualidade... Senão, meu amigo, você tá vivendo
uma farsa... Então, assim, não há aspecto positivo no armário, para mim não há
[enfático]. Na época, a gente pensava isso e todo mundo concordava. Então, a
revista tinha esse tom139.
R.F: Tinha um projeto do Nelson na época, que eu via no Nelson, que era “a gente
quer promover a saída do armário”. Na época, eu achava isso bacana, achava que era
isso mesmo... Tínhamos esse foco, o Nelson dizia “Olha Roni, vamos tentar trazer
pessoas que queiram se assumir, que queiram aparecer publicamente.
contrapondo-se às revistas que seriam situadas como “eróticas” ou “pornôs”. Exploramos este ponto na
terceira sessão do capítulo, ainda que se faça necessário explicitar que ela também interpela a noção de “saída
de armário” neste discurso. Do mesmo modo, aproxima-se de um modelo de representação que
simultaneamente valoriza o reconhecimento público do referente gay, aproximando-o de uma
“normalidade”/“naturalidade”, questão que abordamos na seção 3.2.
139
Entrevista ao autor em 10 mai 2011.
140
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
130
Z: Dá para falar que cada disco é uma nova revelação onde você conta um
pouquinho mais sobre você?
Acho que sim, porque eu mesma descubro cada vez mais coisas sobre mim.
Z: Mas é natural do artista se sentir cada vez mais à vontade para contar mais sobre
si?
Eu sempre procuro contar o que sei sobre mim, o que eu quero falar no momento.
Mas, com esse disco, é até uma ironia você dizer isso, porque não é um disco de
autor – é um disco de intérprete. Estou falando de mim a partir de outros autores.
C: Bom, minha especialidade não é música, mas eu sinto que existe aí um...
Como eu vou dizer... O nome do disco é Abrigo. Algo que você usa para se proteger,
para se esconder. Como fica essa dualidade?
Eu acho que você se esconde. Mas isso é uma coisa do instinto do ser humano, do
animal. Cada pessoa tem seu abrigo – e isso não é uma frescura. Então, para mim,
esse nome significa um lugar onde eu me sinto bem e onde eu até posso me expor
mais, porque me sinto protegida de ataques alheios (“Marina Livre”, Sui Generis,
ano 1, n. 8. dez 1995, p. 28)
Z: O público está sempre pensando no que você está cantando atrás dessas músicas.
Você diz que isso aconteceu em Virgem muito forte e isso nunca te abandonou. Você
não acha que o público está sempre escavando alguma coisa?
O público é sempre curioso, mas você responde ou não – responde com um disco,
pode dar menos, pode dar mais, e o público tem que se conformar, porque é assim o
jogo (“Marina Livre”, Sui Generis, ano 1, n. 8. dez 1995, p. 28)
Z: você é mestre em controlar sua imagem e é com grande facilidade que você pode
se arriscar tanto a ponto de se vestir de homem (como já fez no palco) e, ao mesmo
tempo, se resguardar. Você gosta um pouco de provocar o público e a mídia?
[…] Não quero que certas coisas fiquem mais importantes que meu trabalho.
141
A entrevista foi realizada por Zeca Camargo, na época apresentador da MTV, canal de música endereçada a
uma audiência jovem, e por Cristina Franco, consultora de moda. Eles aparecem identificados nas perguntas
pelas iniciais “Z” e “C”, respectivamente.
131
questões coletivas. Então, eu ficar fingindo que não são importantes palavras como
solidariedade, fraternidade, seria fingimento.
Z: Mas talvez, falando de sexualidade, a partir de uma opção pessoal, você possa
falar de uma coisa que é coletiva também. Aí, você teria um papel talvez mais
coletivo, podendo abrir o nível da discussão.
O que eu acho, Zeca, em relação a isso é: eu sempre tive horror a rótulos, sempre
tive, porque sempre me sinto perdendo alguma coisa, sempre me impossibilita de ser
mais alguma coisa que eu queria e não posso porque só posso ser aquilo – parece
que diminuem as possibilidades. Eu acho que eu sou uma pessoa livre. A vida me
deu essa chance de poder escolher o que eu acho que é bom para mim e
experimentar minhas opções em determinado momento. Eu sou uma pessoa livre e
isso é que tem que prevalecer – é isso que eu tento.
[…]
Z: mas eu acho que, sem dúvida, quando você fala, nos seus subtextos, você está
dando uma contribuição.
Eu espero, eu quero dar, na medida em que não diga... que eu não tenha que fingir
uma coisa que eu não sou, nem bancar uma coisa que eu não seja.
Z: Uma militante.
É. Porque não é isso. Eu acho que essa coisa obrigatória que tem agora,
especialmente nos Estados Unidos, ligada à coisa gay, que fica quase que delatando
as pessoas...
Z: “Outing”?
É, isso é uma loucura. As pessoas têm o direito de escolher o que querem falar ou
não (“Marina Livre”, Sui Generis, ano 1, n. 8. dez 1995, p. 32)
a cantora Marina Lima por ter “um respeito em relação ao dito e não dito” (Sui Generis,
Cartas, ano 2 n. 12, 1996, p. 6). Já o leitor identificado como Osni Melgaço Bulcão, ao se
voltar para reportagem veiculada na edição 12 sobre um cantor estrangeiro que teria
vivenciado uma relação amorosa com um brasileiro, mas sem assumir uma identidade
homossexual/gay (“George Michael só está out no Brasil”, Sui Generis, ano 2, n.12, 1996),
faz o seguinte comentário:
Não vou discutir as qualidades artísticas de George Michael, que eu admiro muito.
Mas sim a posição um pouco radical de querer dele uma assumição total. Cada um
trás (sic) dentro de si as limitações e aos poucos trabalhamos por uma melhoria.
George tem feito isso e ensaiou fazê-lo por total, porém recuou... Só o fato dos
sentimentos dele terem sidos verdadeiros ao ponto de vir ao Brasil várias vezes e
compor em homenagem ao amor que se foi já merece nosso respeito e admiração
(Cartas, Sui Generis, ano 2, n. 14, 1996, p. 6)
Para o leitor, assim, é possível identificar uma leitura do “armário” em que o ato
de “assumir” é visto a partir de gradações, entre “melhoria” e recuos, ao passo que a
“assumição total” (vista como alguma “radicalidade”) não seria a única postura sinônima de
“verdadeira” ou capaz de alcançar “respeito” e “admiração”. Ao afirmar que “cada um traz
dentro de si as limitações e aos poucos trabalhamos por uma melhoria”, o uso do plural não
apenas remete à situação do artista, mas também sugere um relato confessional do leitor (e
projetado a outros leitores) sobre compartilhar uma posição em que o “armário” não era algo
completamente fixado (no caso, relativizado a partir do reconhecimento de “sentimentos
verdadeiros” ou das composições amorosas escritas pelo cantor retratado ao namorado).
A ideia de confissão aparece mais explicitamente na entrevista concedida para esta
pesquisa pela editora Roni Filgueiras, quando ela reflete sobre as correspondências enviadas à
sede da revista:
142
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
133
Vivendo às claras I
Tenho 18 anos e há dois anos descobri a Sui, que muito me ajuda a aceitar-me do
jeito que sou. Influenciado pela Sui, decidi, há algumas semanas, como dizem, “sair
do armário”. Acreditando ter uma mãe liberal, compreensiva e que até bem poderia
imaginar algo da revelação que estava para lhe fazer, resolvi contar tudo a ela. Isto é,
dizer: “mãe, eu sou gay”. Qual não foi minha surpresa ao ver que ela ficou furiosa
[…] ela passou a se intrometer na minha vida (moro com ela e minha irmã mais
velha), a controlar severamente minhas saídas e tratar mal os meus amigos e
namorados que telefonam para mim. Antes, eu vivia tranquilo com a minha
homossexualidade, ainda que devidamente “dentro do armário”. Pensei que fosse
ficar mais leve comigo mesmo, com os que me cercam e com o mundo, assim que
assumisse abertamente minha condição, aliás, como tantos pregam. O que fazer?
Não quero tirar nenhuma conclusão por ora, apenas gostaria que publicassem meu
depoimento, pois o considero ao mesmo tempo relevante e revelador (Cartas, Sui
Generis, ano 5, n. 44, 1999, p. 7)
Vivendo às claras II
A Sui Generis vem me fascinando cada vez mais. Tenho 19 anos e há dois fiz meu
coming out. Por mais incrível que pareça, todos os meus amigos e minha família
aceitaram. Por morar no interior, onde a maioria das cidades são hipócritas e
católicas (não necessariamente nessa ordem), tive muito medo, pois temia sofrer
represálias ou mesmo não conseguir arranjar emprego. Mas estou aqui para provar
que o coming out não é tão doloroso, encorajando outros adolescentes a assumirem
sua homossexualidade […] A sensação de liberdade é tanta que até posso comprar a
Sui Generis sem problemas. O jornaleiro não se intimida e até apóia. Aliás, procuro
sempre mostrar a revista para todos para comprovarem que, antes de sermos gays,
somos cidadãos como os outros, com seus direitos e obrigações (Cartas, Sui Generis,
ano 5, n. 44, 1999, p. 7)
Pedro, ficamos boquiabertos com o vocabulário da sua mãe, mais do que com a falta
de compreensão dela. Intolerância faz parte do nosso dia a dia. Você precisa se
fortalecer para enfrentar esta realidade. Mesmo que o momento escolhido para se
abrir tenha sido inoportuno, aproveite que a decisão já foi tomada e conquiste o
143
“Tarefa, quase infinita, de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem, tudo o que se possa se relacionar
com o jogo dos prazeres, sensações e pensamentos inumeráveis que, através da alma e do corpo tenham alguma
afinidade com o sexo […] Coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar
fazer de seu desejo, de todo o seu desejo, um discurso”. Convém lembrar que Foucault toma como ponto de
partida a importância da confissão “numa tradição ascética e monástica”, depois generalizada quando o “século
XVII fez dele [o projeto de colocação do sexo em discurso] uma regra para todos” (1999, p. 24).
134
respeito dela. Apesar de, neste momento a época do armário parecer mais tranquila,
a nossa experiência nos diz que, no futuro, você irá verdadeiramente se sentir leve e
digno, justamente pelo que fez agora (Cartas, Sui Generis, ano 5, n. 44, 1999, p. 7)
Cabe perceber ainda que a questão do armário não consiste apenas numa temática
editorial, mas é performada também nas práticas e nas relações entre jornalistas e fontes,
revista e leitores, num jogo duplo de mostrar e de ser implícito, que explora fronteiras e
modos de dizer e não dizer, das interseções entre estes. As contradições, por sua vez, mostram
que, naquele contexto em particular, a “saída do armário” era valorada como uma política de
visibilidade tomada como ideal, mas também constituída em modos particulares de
negociação, em que este ora era relativado, ora flexibilizado, nem sempre reproduzindo uma
lógica totalmente binária de revelar ou assumir integralmente uma identidade gay em outros
contextos distintos do que o da imprensa e do ativismo gay norte-americano, por exemplo.
Não menos importante, também convém lembrar que essas negociações dão-se no
no interior do cotidiano do fazer jornalístico. Retomo a conversa que tive com o jornalista
Marcos Mazzaro, em que é possível perceber essa dimensão do jogo em explorar o outing, no
interior das práticas que norteavam o jornalismo em Sui Generis:
_ Essa “questão do outing” que você menciona é uma das questões que exploro na
pesquisa.
(Interrompe): Imaginei mesmo que fosse.
meio de uma entrevista, numa situação forte, levava, digamos assim, a esse out meio
forçado.144
Na introdução de Epistemology of the closet há uma nota de rodapé que não pode
ser desprezada, em que Sedgwick reflete sobre a elaboração de sua análise articulada a partir
de binarismos:
144
Entrevista ao autor em 15 abr 2011.
145
“The closet” e “coming out”, respectivamente, no original.
136
sentido de uma análise superficial, algo que a autora contorna com desenvoltura, mas porque
toda tarefa de fixar o “armário”, ou seja, seu regime e seus efeitos, vai se deparar com
estratégias diversas, cambiantes, que este mesmo regime desafia e que por elas também são
ora reforçadas, ora desafiadas, ora colocadas num segundo plano frente a outras demandas ou
modos dos sujeitos se fazerem visíveis.
A “inconsistência”, assim, reside no fato de que uma “epistemologia do armário”,
ao mesmo tempo em que nos ajuda a problematizar dimensões socioculturais como segredo e
revelação, público e privado, normal e anormal no terreno da compreensão das
homossexualidades, também é desafiada continuamente pelos modos distintos com que os
sujeitos se relacionam com estas dimensões, o que nos desafia a pôr em permanente
questionamento sua “essencialização”.
Não queremos, com isso, desprezar alguns dos efeitos desse regime na
estigmatização histórica das homossexualidades, nem desconsiderar os modos com que a
produtiva análise de Sedgwick desdobra os binarismos, mas destacar a necessidade de
reconhecer que tanto o “armário” como os modos de denunciá-lo ou “combatê-lo” estão
continuamente nos “escapando”, nos desestabilizando numa posição epistemológica, uma vez
que está sempre se reinventando, em disputa, em “jogo”, como demonstram os discursos
veiculados e os modos de atuação dos jornalistas de Sui Generis.
Destaco uma cena descrita pelo pesquisador cubano José Quiroga, ao narrar a
Marcha de Orgulho Gay realizada em Buenos Aires no ano de 1993. Na medida em que
militantes e associações gays e lésbicas começavam a ocupar as ruas da cidade, ofereceram-se
máscaras para atrair novas pessoas ao cortejo, de modo a convencê-las a participar “não como
membros abertos e visíveis da comunidade, mas como membros mascarados no apoio aberto
daquela comunidade”, constituindo parte de “um corpo manifestando solidariedade à causa
dos direitos civis de uma minoria marginalizada”. Naquele contexto,
O armário era parte da equação, mas não era a única parte da equação. A máscara
falava de circuitos mais amplos que não necessariamente terminavam com um
“outing” ou uma identidade como conclusão. Fazia parte de uma dinâmica
complexa de sujeito e identidade, e o armário era um elemento entre muitos outros
[…] A máscara na marcha gay e lésbica foi sobredeterminada pela circunstância,
pelo contexto social e até pela cultura. O que era interessante para mim, como um
daqueles cujo senso de privilégio (como um estrangeiro) permitia uma participação
aberta e “sem máscara”, era o modo como as taxonomias pareciam ser criadas e
recriadas precisamente a partir do espaço criado pela máscara (QUIROGA, 2000)
articulam “localmente”, criam e recriam as taxonomias. Pôr isto em perspectiva pode parecer
abrir mão ou desfazer de décadas de luta em denunciar os mecanismos e efeitos das produções
das heterossexualidades como privilegiadamente “públicas” e das homossexualidades ou das
sexualidades não-normativas num domínio do subalterno146. Mas é preciso assumir que não é
tratando indistintamente experiências como “ocidentais”/“modernas”/“universais” que se
esboçarão estratégias mais efetivas de desestabilização e enfrentamento desses mesmos
“efeitos”.
Interroga-se, assim, a concepção de “armário” estruturada justamente a partir de
binarismos. Essa “falsificação” como recurso metodológico/epistemológico, mesmo que
numa certa “idealidade” possibilite ressaltar algumas das dimensões dos modos como se
vivenciam e se disputam homo e heterossexualidades, tem um custo de “binarizar” realidades
em que dimensões como público e privado, segredo e revelação, dentro e fora delineiam-se
por modos mais nuançados do que aqueles hegemônicos em espaços como o ativismo ou a
própria imprensa gay. E não se trata apenas de reconhecer diferenças “geográficas” ou
“culturais”, mas também diferenças de classe, raça, origem, gênero etc que estão em jogo e
são negociadas constantemente no interior dos “regimes” de produção das
(homos)sexualidades.147
É nesse sentido que tal “redutividade drástica” acaba exigindo um contínuo
tensionamento. Destacamos a leitura de Miskolci, quando este, mesmo que a partir de uma
pesquisa com recorte diverso, sobre relações entre homens que valorizam a “masculinidade”
na “era digital”, sugere
tentar superar tanto uma visão que considera o armário como atemporal quanto as
narrativas de liberação das décadas de 1960 e 1970, baseadas nele, mas que ainda
ecoam em discursos políticos e mesmo em alguns trabalhos acadêmicos. Regimes
de visibilidade são históricos e, como tais, passíveis de transformações com o tempo
e variáveis segundo particularidades culturais. O armário, apenas aparentemente,
operava no binômio dentro/fora, o qual caracterizaria os sujeitos nele inseridos
como diante dos dilemas também descritos em binários acusatórios como o de
enrustidos/assumidos, falsos/verdadeiros ou, ainda pior, mentirosos/honestos. Uma
lógica construída sob a hegemonia heterossexual o regia, de forma que
dentro/enrustido ou fora/assumido, a verdade e a honestidade permanecem como
posse dos heterossexuais e daqueles e daquelas que – “corajosamente” –
146
Para uma discussão de subalternidade, mais especificamente de um lugar de análise da “violência epistêmica
de se constituir o sujeito colonial como Outro”, cf. Spivak (2010).
147
Simões ressalta a importância de olhar os “operadores de diferença na chamada 'comunidade LGBT'”,
enfatizando a necessidade de “discussões em torno da relação entre processos culturais e políticos de
interpelação e de atribuição de categorias, de um lado, e a do reconhecimento e da apropriação dessas
categorias como identidades situacionais e pragmáticas, do outro. Existe aí um complexo de arranjos,
negociações, acomodações e resistências que tornam vãs as tentativas de fixar alinhamentos e oposições”
(SIMÕES, 2011, p. 172).
138
No caso de uma revista gay brasileira de meados dos anos 1990 como Sui
Generis, tanto a crítica editorial ao “armário” como as estratégias que revelam mais
ambiguidades e contradições do que os próprios discursos sugerem, só podem ser
compreendidas numa contextualização que permita reconhecer que ele era uma dimensão
importante da vida de uma parcela de gays e lésbicas definida como público privilegiado da
revista (mesmo que seus discursos em torno de valores como honestidade e verdade tivessem
a pretensão de falar a gays e lésbicas num escopo mais geral), como algo em tensionamento
nas experiências de reconhecimento por visibilidade desses mesmos sujeitos.
Indissociável da valorização em Sui Generis do outing como política (editorial), e
das negociações que sua defesa faziam emergir, era a construção discursiva de um modelo
valorizado de “identidade gay” em suas páginas, tema da próxima seção.
Nesse primeiro ano, a Sui Generis quis ser um motivo de orgulho para todos os gays
e lésbicas brasileiros. Em dezenas de reportagens tentamos fugir do isolamento
social e investir no que há de semelhante entre nós todos. Procuramos também
contar nossa história, falar dos nossos ídolos. Assim, buscávamos, ao mesmo tempo,
firmar nossa identidade e mostrar que a cultura gay permeia toda a sociedade
(Editorial. “Chega de cara feia”, Sui Generis, ano 1, n.8, dez 1995, p.3, grifo nosso)
139
148
Same-sex sexual behavior, no original.
149
A autora pondera que “historiadores têm divergido em relação ao significado da classificação/rotulação
médica: ela criou uma subcultura que se organizou em torno de um novo conceito de identidade sexual, ou
foi a medicamentalização uma resposta para, e uma tentativa de definir e controlar comunidades sexuais pré-
existentes”? (IRVINE, 1998, p. 578).
141
(IRVINE, 1998, p. 577). O século passado, notadamente a partir da Segunda Guerra Mundial,
“teria testemunhado um desenvolvimento rápido e transformador dos mundos sociais dos
homens gays e das lésbicas” e “a organização social de lésbicas e homens gays, centrada na
experiência compartilhada de uma sexualidade transgressiva, seria definida de modo variado
ao longo de todo o século” (Ibid.).
Tomando como referência principal o contexto norte-americano, Irvine lembra
que as pesquisas conduzidas por Alfred Kinsey, resultantes no relatório com as classificações
e escalas do comportamento sexual realizadas entre o final dos anos 1940 e a década
posterior, ao mesmo tempo em que “contribuiu para um pânico cultural que alimentou o
macartismo também ajudou a consolidar um crescente movimento homófilo dos anos 1950”
(1998, p. 579). Este movimento, por seu turno, também foi ajudado por novas perspectivas no
âmbito da sociologia, especialmente no que se costuma classificar como “teoria do desvio”
(deviance theory). Trabalhos influentes realizados por Howard S. Becker ou por Erving
Goffman nas décadas de 1960 contribuíram para “deslocar a visão teórica do desvio de uma
qualidade localizada na pessoa ou ato individual para um status historicamente específico
criado por uma censura social” (Ibid.).
Um dos pontos mais relevantes deste panorama feito por Irvine (1998, p. 579) é
perceber, na medida em que se ampliavam os modos de “organização social de homens gays e
lésbicas” e das “elaboradas coletividades de vida gay e lésbica organizada em torno da
identidade erótica”, também se complexificavam ao longo do século XX, quando mesmo não
divergiam, os modos de classificar esses processos sociais: “estilo de vida”, “comunidade”,
“etnicidade”, “cultura”. Este último termo, por sua vez, ganha peso ao circular como
“significante mais maleável e abrangente de uma identidade compartilhada” (Ibid.).
É importante frisar que se descrevem processos sociais que não podem ser
homogeneizados nem tomados como simultâneos espaço-temporalmente150 – como sugerimos
na seção anterior, a “saída do armário” como discurso estratégico numa revista gay brasileira
pode assumir nuances e modos de negociação particulares, mesmo quando busca referências
“estrangeiras”. Do mesmo modo, uma noção de “cultura gay”, ainda quando tomada como
total/globalizante, não apaga os modos como ela é interpelada ou redesenhada por diferenças
socioculturais de classe, raça ou nas categorias do sistema de sexo e gênero151. É, interessante,
150
Ainda que não faça qualquer relativização a respeito, podemos identificar como pano de fundo na narrativa
de Irvine um contexto centrado notadamente nos Estados Unidos, não apenas em relação à descrição dos
processos de organização coletiva de gays e lésbicas, como nas referências sociológicas e antropológicas a
que a autora recorre.
151
Mais adiante, mostramos como Sui Generis projetava como leitor ideal um sujeito gay, de classe média, de
142
porém, destacar que os significantes “cultura gay” e, em menor escala, “comunidade gay”,
eram recorrentes em Sui Generis, sendo estratégicos no processo de delimitação de um
público leitor que partilhasse seus interesses e na elaboração de uma política “gay afirmativa”
baseada em valores como autorrealização, “positividade” e na “semelhança”/homogeneidade
entre os sujeitos “gays”. Isto fica evidenciado no editorial da primeira edição, quando o editor
Nelson Feitosa explicita um dos objetivos de Sui Generis:
Nossa intenção é levar a cultura gay de forma vibrante, inteligente, alegre, para fora
dos guetos. Dar nossa contribuição, oferecendo um jornalismo de qualidade, para
que surja em breve uma consciência social mais generalizada de que nossas
semelhanças são maiores do que nossas diferenças (Editorial, Sui Generis, ano 1, n.
1, jan 1995, p. 4)
Essa proposta encontrava eco numa parcela expressiva dos leitores que se
manifestavam por cartas. Na sétima edição, uma das correspondências celebra a relevância da
revista para a “comunidade gay” brasileira.
Sou de Santa Catarina, faz 10 anos que não moro no Brasil, mas visito regularmente.
Recebi a Sui Generis aqui nos EUA, enviada por um amigo de Florianópolis. Achei
incrível o nível. Sou gay, tenho um namorado americano e minha esperança é que
nossa revista brasileira continue informando, divertindo e preocupada com a
melhoria da comunidade gay (Cartas, Sui Generis, ano 1, n. 7, 1995, p. 6)
alta escolaridade, próximas do universo sociocultural do editor e dos jornalistas da revista. Também
abordamos a tensão entre o reconhecimento de uma “identidade gay” e uma maior reivindicação de espaço
editorial por leitoras que se identificavam como lésbicas.
143
que colocam na nossa cabeça. Ser gay não é ser doente, também não é contra a lei,
para você viver exilado na sua casa. Vá de encontro [sic] a outros gays como você,
faça amizades, aproveite sua adolescência para conhecer o que nós já fizemos pela
humanidade e, acima de tudo, fique vivo, cresça um homem saudável e seja feliz! A
gente deve isso uns aos outros (Cartas, Sui Generis, ano 1, n. 9, 1995, p. 8)
152
Outras reportagens sobre a representação de gays e lésbicas na mídia, especialmente na televisão, analisadas
em nosso corpus: “Vieira – a lésbica de Catarina Abdala em A Indomada” (Sui Generis, ano 3, n. 23, mai
1997); “Você decide – Elas arrasaram como lésbicas na Globo (Sui Generis, ano 4, n. 30, 1998); “Quem tem
medo do Uálber – Por que o guru esotérico de Suave Veneno apavora tanta gente?” (Sui Generis, ano V, n.
44, 1999); Sílvio de Abreu esclarece quem matou Leila e Rafaela (Sui Generis, ano V, n. 44, 1999). A
reportagem sobre a personagem Uálber, interpretado pelo ator Diogo Vilela na telenovela Suave Veneno, é
complementada pela contraposição de dois artigos, um de autoria de Luiz Mott, outro do novelista Aguinaldo
Silva. O texto de Mott faz críticas à personagem, considerando-a um “desserviço à dignificação dos 'viados'”
e um “prejuízo incalculável para o movimento de libertação homossexual” (“Uma imagem ridícula dos
gays”, Sui Generis, ano V, n. 44, 1999, p. 48). Silva defende a representação de “efeminados”, argumentando
que “o ódio que master Luiz Mott sente pelos homossexuais efeminados representados por Uálber e
Edilberto, a quem chama, repito, de palhaços ridículos, me parece estranhamente com o mesmo ódio soturno
que os heteros sentem pelos homos de modo geral” (“Os efeminados dão a cara aos tapas”, Sui Generis, ano
5, n. 44, 1999, p. 49). A questão aparece em dezenas de outros textos, em entrevistas com atores e atrizes de
teatro e de televisão, geralmente em discussões sobre a relevância de personalidades “assumirem-se”. É o
caso da entrevista com o ator Pedro Paulo Rangel (“Xô monotonia – Pedro Paulo Rangel, um especialista em
personagens de exceção”, Sui Generis, ano 5, n.43, 1999).
144
153
Grifo nosso.
154
Grifo nosso.
155
“A Comédia da Vida Privada”, programa baseado em livro de contos homônimo do escritor Luis Fernando
Veríssimo, veiculado na Rede Globo entre os anos 1995 e 1997.
156
Grifo nosso.
145
dos termos gay e lésbica como referentes identitários: se em Lampião da Esquina, como
vimos, muitos discursos revelavam a relutância em se assumir o significante gay por ser
estrangeiro, em Sui Generis seu uso recorrente está associado diretamente a uma visão de que
a “cultura gay” seria bem estabelecida internacionalmente, aquilo que a jornalista, ainda
tomando esta reportagem como exemplo, considera como atestado “de que é impossível
permanecer indiferente à presença gay no mundo”.
O referencial identitário gay, tanto para designar sujeitos como uma coletividade,
sua “presença” ou demandas (“causa”) por sua vez, passa a se inserir num processo em que
se marca simultaneamente a valorização de uma diferença e uma busca por integração a uma
noção mais geral de “toda a sociedade”. Recuperando um dos trechos veiculados no editorial
da primeira edição da revista, “a gente é gay e é igual a todo mundo” (Sui Generis, ano 1, n.1,
jan 1995, p. 4).
Se a ênfase dos discursos verbais na reportagem recai, como se demonstrou, numa
representação do gay como “natural” e que, embora considere “remotíssima a possibilidade
do casal vir a ser retratado como os ditos pares normais”, celebra a mudança na representação
de um casal gay para um modelo próximo dos heterossexuais157, cabe ressaltar que há outras
possibilidades de representação no interior da mesma reportagem. O ensaio fotográfico que
acompanha o texto principal e a capa da edição investe numa dinâmica de explorar as
margens de representação do masculino e do feminino.
157
Diz ainda a reportagem: “É só olhar para trás para perceber que houve uma inegável evolução no conceito da
sociedade e que as pessoas já suportam que os gays se revelem ou sejam felizes com seus pares antes do
último capítulo da história” (“Touché”, Sui Generis, ano 1, n. 6, out 1995, p. 32).
146
A Sui Generis aborda temas dos mais diversos envolvendo os gays e os heteros (que
costuma chamar de simpatizantes). Isso é ótimo porque vemos que gays estão em
todos os lugares, todos os dias, em todas as situações, em trabalhos sérios que
movem o país. Isso acaba colaborando para melhorar em muito a nossa auto-estima
que é tão podada pela sociedade mal esclarecida em que vivemos (Cartas, Sui
Generis, ano I, n. 8, dezembro de 1995)
158
Há uma extensa bibliografia sobre a relevância das telenovelas na cultura moderna brasileira. Destaco, mais
recentemente, o trabalho da antropóloga Esther Hamburger, que sugere que as “novelas podem ser pensadas
como redes de interações – distorcidas e desiguais – cujos fios e nós se articulam de acordo com um jogo
cujas regras mobilizam uma 'fantasia de estar conectado'” (HAMBURGER, 2005, p. 60). Numa perspectiva
dos estudos de recepção e dos modos como se constroem e negociam as convenções deste gênero, cf.
Andrade (2003).
148
RF: Todo mundo queria aparecer na revista. Não só os entrevistados, mas o outro
lado, os jornalistas. A gente tinha muitos colaboradores, que sugeriam pautas, do Rio
e de São Paulo, que queriam aparecer na revista. Os dois lados. 161
HG: Já cheguei na Sui Generis com a revista estabelecida, era uma revista querida.
Hoje, trabalho numa revista sobre telenovelas onde tenho muito mais dificuldade de
159
Observações mais específicas sobre este festival, no contexto de novas possibilidades de representação das
homossexualidades no Brasil dos anos 1990 e da difusão do termo GLS, podem ser conferidas em Trindade
(2004).
160
No editorial da primeira edição, afirma-se que a revista é endereçada a “homens e mulheres gays. Mas sem
exclusividade” (Editorial, Sui Generis, ano 1, n.1, jan 1995).
161
Entrevista ao autor em 21 nov 2011. É interessante perceber como a editora Roni Filgueiras apresentou-se no
início da entrevista a partir do termo “simpatizante”: “Na época que entrei na revista, falava-se em GLS, e eu
era a simpatizante da sigla. Não sou militante, como te falei, sou simpatizante, jornalista, mais ou menos 25
anos de formada”.
149
marcar entrevistas do que tinha na Sui Generis, que era uma revista alternativa, de
temática gay. Mas era uma revista querida, as pessoas tinham prazer de falar com a
Sui Generis. Evidentemente, houve casos de gente que não queria falar, “ah, eu
preferia não falar”, mas sempre de um modo muito agradável. A revista tinha muito
prestígio, fato. A gente chegava nos lugares, eu sentia isso, tava numa festa e falava:
“sou editora da Sui Generis”, as pessoas diziam “Jura? E como é que é?”. Mesmo
pessoas que nunca tinham visto a revista, mas conhecia, sabia que ela existia. 162
Parabéns pela revista but... vocês não acham que a própria tá muito macha, muito
para eles? Que tal lembrar que as entendidas também existem? Tô querendo assinar
a Sui só que sou mulher e quero ler reportagens sobre nós mulheres homossexuais
(diga-se de passagem que nós nunca tivemos tão em alta) (Cartas, Sui Generis, ano I,
n. 7, p. 6)
Crítica similar pode ser identificada na carta de uma leitora que se identifica
“mulher e bissexual”, publicada na décima terceira edição, questionando a ausência de
conteúdo dirigido “às meninas”:
Desta vez não deu para ficar quieta. Como leitora e fã barulhenta desta ótima revista,
senti-me no direito de falar: na minha opinião, e de muitos amigos da cidadezinha
onde moro, a Sui Generis está cada vez mais dirigida ao público gay (masculino).
Infelizmente, na capa da Sui 10 não havia um só assunto que se dirigisse às meninas,
mesmo como se fosse só um agrado... E a entrevista do Renato Gaúcho, então? Eu
não senti nada de bom enquanto mulher, bissexual 163 e mãe que sou. Em tempo: cadê
162
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
163
A categoria bissexual praticamente não aparece nos discursos analisados em nosso corpus. Na nona edição,
150
a Maria Bethânia? Um beijo para todos (Cartas, Sui Generis, ano 2, n. 13, 1996, p. 6)
A partir das entrevistas realizadas para esta pesquisa, em particular com as duas
editoras que se identificaram como mulheres heterossexuais, Roni Filgueiras e Heloiza
Gomes, este desequilíbrio editorial, marcado por um privilégio a um leitor situado como gay
masculino, relacionava-se a dois aspectos: o primeiro, comercial, em que as leitoras mulheres,
mesmo que se manifestassem com certa regularidade à revista, não seriam as principais
compradoras dos exemplares; a segunda, pelo perfil do proprietário e da maior parte da
reduzida equipe de Sui Generis, formada por homens de classe média e alta, que viviam num
universo cultural e de consumo em que prevalecia maior visibilidade aos homossexuais
masculinos.
O primeiro aspecto sobressai-se no depoimento de Heloiza Gomes:
_ Você concorda com a leitura de que a revista era direcionada para um público
gay masculino?
Vou te contar um episódio. Tinha isso, era uma revista “gays e lésbicas”, mas a
única sessão [folheia um exemplar] voltada para as meninas era a coluna da Vange
Leonel164. Até o final da revista foi assim, quando cheguei já era assim.
leitor questiona uma “segregação dos bissexuais” no interior do universo gay: “E essa agora de alguns gays
que querem que todos os gays sejam somente gays? Nós, os bissexuais, ficamos com um certo receio de nos
assumirmos. Se dizemos para a garota da qual gostamos, pega muito mal. E se dizemos que também
gostamos de mulher para o namorado, temos que apanhar? Não entendo, o mundo está agora começando a se
abrir para coisas antigamente ditas erradas, por que essa segregação dos bissexuais? O amor não é
premeditado, e quando acontece, existe! Seria bom que segregação dentro de areias já segregadas não
ocorresse!” (Cartas, Sui Generis, ano 2, n. 9, fev 1996, p. 9).
No total de 139 textos e ensaios de moda com chamadas de capa que selecionamos para análise, nenhuma
manchete remetia à categoria travesti. Na sétima edição, o sucesso do filme Priscila, a Rainha do Deserto era
o mote para descrever a emergência, no universo gay e na cultura pop em geral, das drag queens: “Drags do
mundo, uni-vos! Muito já se falou e se escreveu sobre drag queens, muita gente já viu suas performances em
clubes do mundo inteiro, mas elas sempre ficaram meio relegadas a um segundo plano” (“Machões de batom,
Sui Generis, ano I, n.7, nov 1995, p 10).
Na décima edição, Rose Bom Bom, performer que atuava em clubes noturnos gays ou da cena de música
eletrônica, concedeu breve entrevista no estilo pergunta-e-resposta (“ping-pong”), na coluna Vortex (Sui
Generis, ano II, n. 10, 1996, p. 36). Não há referências a categorias como travesti ou drag queen,
predominando um uso indistinto do termo gay.
A reportagem “To Wong Foo do cangaço”, publicada na décima-terceira edição, retrata a vida de Josevaldo
da Silva, cabeleireiro “no coração do sertão baiano, na pequena Jaguariri”. O título é uma menção ao filme
estrelado pelo ator Patrick Swayze no papel de uma drag queen, tema de texto que menciono anteriormente.
Descrevendo a relação de Josevaldo com os habitantes da cidade, cujos moradores viveriam “uma relação
conflituosa com seus gays e lésbicas, alternando aceitação e rejeição”, a reportagem o denomina travesti,
enquanto a manchete de capa da edição o designa como transex.
A transexualidade teve mais visibilidade na capa da décima-primeira edição, quando foi abordada a partir de
um extenso perfil de Roberta Close, referenciada como mulher (“E Deus recriou a mulher, Sui Generis, ano
2, n. 11, 1996).
164
A coluna intitulava-se grrrls, ocupava uma página em cada edição e trazia artigos de opinião assinados pela
cantora e militante.
151
165
Cantora pop brasileira, já retratada em entrevista na primeira edição.
166
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
152
Além deste direcionamento comercial, centrado num público gay masculino que a
revista estimava – e realimentava, a partir da própria linha editorial – como leitor/consumidor
prioritário, pode ser destacado ainda o perfil da equipe. Tanto o proprietário como os
repórteres e principais colunistas eram homens. Isso já tinha sido sugerido no depoimento de
Heloiza, mas também pode ser identificado quando a editora Roni Filgueiras reflete sobre o
público-alvo:
noite, sempre antenado com a noite, que frequentava as raves167, numa época que
começou a surgir as barbies168, preocupados com o físico […] Eu via que... O
Nélson era o público. Era um cara de 30 anos, 30 e poucos anos, jovem,
antenadíssimo, globe trotter, porque estava sempre viajando pelo mundo e no Rio de
Janeiro e São Paulo, principalmente.169.
_ Como você imaginava, quando escrevia seus textos, qual era o seu público-leitor?
Então... Eu tentava imaginar meu leitor, sei lá, pelos leitores que... Que eu conhecia,
amigos... Mas eu, realmente, sinceramente, não tinha uma visão muito específica de
quem era essa público... Não lembro, no tempo em que eu estava lá, da gente ter
feito algum tipo de pesquisa que especificasse realmente quem tava comprando a
revista, quem tava assinando a revista. Ou não tive acesso a isso.
_Você acha que a característica principal da linha editorial da revista era uma
política afirmativa gay, ou isso não aparecia tanto quando vocês escreviam?
[Pausa] Sim, com certeza. Isso permeava toda a linha editorial da revista. A
gente tava sempre interessado em nunca perder esse ponto. A gente tava sempre
tentando, é... Se a gente tava entrevistando alguém, a gente tentava sempre encaixar
algum tipo de pergunta que pudesse questionar essa pessoa de como ela encarava
algum assunto relacionado à homossexualidade, ou à situação de preconceito... A
gente tava sempre tentando colocar isso nas nossas pautas. 170
_ Mas, ao mesmo tempo, você acha que a revista busca se distanciar de um modelo
que poderia ser considerado “erótico” ou “pornográfico”?
Sim. Sem dúvida! Porque, quando você banaliza o corpo, você tira o foco do que a
gente estava querendo discutir, o consumo, o posicionamento, a visibilidade gay. E
desvincular isso um pouco, digamos assim... do vulgar. Então era assim, um nu,
mas era um nu sempre estetizado, um nu na contraluz, muito bonito, muito bem
feito. E isso, obviamente, atrai, como atrai na revista masculina, na revista
feminina... Então, o erótico sempre está presente, não é uma coisa totalmente
desvinculada.
_ Você acha que a revista conseguiu alcançar certa “respeitabilidade” por essa
posição demarcada, num mercado que era estigmatizado...
(Interrompe) Com certeza! Todo mundo queria aparecer na revista! Dos dois lados,
gente que queria aparecer na revista, gente que queria ser colaborador. E isso
conferia prestígio à revista.171 (grifos nossos)
171
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
156
contraponto que ela delineia entre uma noção de “erotismo” (associada ao “bonito” e ao
“estético” ou “artístico”) e outra, do “pornográfico” (situado no domínio do “vulgar”). Não é
nossa intenção aqui advogar uma distinção conceitual ou os limites entre uma esfera e
outra172, mas enfatizar como neste discurso (e dos demais jornalistas entrevistados), essa
distinção era relevante no processo de construção de sua linha editorial e do “jornalismo”
feito na revista, bem como na elaboração de uma posição distintiva para Sui Generis no
mercado jornalístico (gay e geral). Simultaneamente, essa distinção era permanentemente
interrogada pelos leitores que, em conjunto às dinâmicas de um mercado editorial que
testemunhava, na época, o estabelecimento de uma publicação bem sucedida comercialmente
centrada no nu masculino (G Magazine), questionavam os limites do que se devia ou não
“mostrar” num veículo “gay”.
Maingueneau, numa discussão acerca dos “problemas de definição” para o
significante “pornografia”, ressalta que este é
Direto vs. indireto, masculino vs. feminino, selvagem vs. civilizado, grosseiro vs.
refinado, baixo vs. alto, prosaico vs. poético, quantidade vs. qualidade, chavão vs.
172
Cf., numa extensa bibliografia, Bataille (2013); Diaz-Benítez (2010).
157
criatividade, massa vs. elite, comercial vs. artístico, fácil vs. difícil, banal vs.
original, unívoco vs. plurívoco, matéria vs. espírito etc (MAINGUENEAU, 2010, p.
31)
Tenho a impressão que a Sui Generis foi muito importante, porque acho que trouxe
um jornalismo elegante, gay elegante. Até a Sui Generis, quando se pensava em
revista gay, se pensava em eroticização, em sacanagem, em putaria mesmo, em bom
português. E a Sui Generis, não. Um jornalismo gay, sim, engajado, você tinha
denúncias, cobertura de passeatas... É uma revista gay, para o público gay, pensada o
tempo inteiro nisso, as fotos, isso aqui vai agradar a quem? Ao gay. Mas você não
tem o cara lá, nu. Mas houve uma fase em que a revista estava tentando
experimentar.
Please, evitem colocar capas muito chamativas como foi a da edição nove. Não que
eu não goste (o modelo, então, é absurdo), mas muito amigos meus se sentiram
constrangidos de comprar, por ficar evidente o conteúdo da revista (Cartas, Sui
Generis, ano 2, n. 11, abril 1996, p. 7)
Acho que se vocês atendessem ao leitor Luís (edição 8) – ele queria ver homem
pelado na revista – estariam fugindo (e muito) ao que vieram (Cartas, Sui Generis,
ano 2, n. 11, abril 1996, p. 6)
A revista só peca numa coisa: podia pelo menos ter uma bela foto de nu frontal, de
homem, claro. Faltou homem, espero que isso seja corrigido nas próximas edições
(Cartas, Sui Generis, ano 1, n. 8, dezembro 1995, p. 6)
Parabéns pelo seu primeiro aninho de vida, que deveria ser comemorado com muita
pompa e circunstância. A revista conseguiu ser séria, interessante e respeitada. E,
pelo nosso lado, conseguimos ter a nossa revista, com nossos assuntos e nossa
linguagem (às vezes essa linguagem é exagerada, mas tudo bem!) Vida longa à Sui!
Mas como nem tudo são flores, faço uma crítica: onde estão os beijos, abraços,
carícias e nus frontais, que tanto povoam as ditas “revistas caretas”? A Sui procurou
uma linha de seriedade e conseguiu, mas um pouco de erotismo de bom gosto não
faz mal a ninguém, a revista “tá um tanto seca”, vocês não acham? (Dante Asadorah,
Cartas, Sui Generis, ano 2, n. 10, março 1996, p. 8)
174
“Renato Gaúcho: o craque fala de sexo, mulheres, homossexualismo e dinheiro” (Sui Generis, ano 2, n. 10,
março 1996).
175
No quinto ano (1999) de Sui Generis, a capa da edição do Dia dos Namorados trazia um beijo, com a
legenda “Amar é dar beijo na boca”. Esta edição teve ampla repercussão, pois a distribuidora nacional da
revista somente repassou os exemplares para as bancas de revista mediante seu envelopamento num saco
159
de revistas impressas e também frente aos seus leitores, mas a critica ao ler a revista como um
“tanto seca”, podemos também perceber, como sugere a missiva do leitor Alex, que não havia
consenso, neste mesmo leitorado, sobre em não exibir o “nu”, já que haveria uma abertura
possível para explorá-lo se num regime de “erotismo” que fosse “de bom gosto” ou “estético”.
Como responder, assim, às demandas que cobravam uma “conciliação” entre tal “erotismo” à
“linha de seriedade” que a revista elegeu como parâmetro editorial?
Exploremos algumas pistas. A primeira consistia no modo como se estruturava a
pequena editora responsável por sua publicação, também comandada pelo editor Nelson
Feitosa. Uma das saídas para responder à cobrança do “nu frontal” foi a criação de uma nova
publicação, Homens, cujo título parece explicitar justamente o que o leitor Luís cobrava nas
páginas de Sui Generis176. Desse modo, a exibição de ensaios nus é deslocada para um outro
título, sem “contaminar” a linha editorial de Sui Generis. Como sugere a editora Heloiza
Gomes, Homens também era uma tentativa de atrair leitores que encontravam abrigo na G
Magazine, título que se firmara comercialmente.177
Destaco a recorrência com que se distinguia “editorialmente” o espaço de cada
uma das publicações abrigadas na mesma (e pequena) editora. Ainda que compartilhassem
basicamente a mesma sede física e, ocasionalmente, alguém que trabalhava em Sui Generis
também colaborasse em Homens178, em diversas passagens da conversa com Heloiza essa
diferenciação veio à tona. Folheando alguns exemplares que levei ao nosso encontro, ela fez o
seguinte comentário, que perpassa tanto a criação de Homens e de Sodoma como o peso que
teve a chegada de G Magazine ao mercado de publicações endereçadas a homens gays:
Quem comprava essa revista [Sui Generis], não comprava para mostrar ao amigo:
“olha, vem ver esse corpão!” Ia trazer para dizer: “olha, tem uma matéria
interessante...”. A gente faz uma revista gay, para gay, mas uma revista para ler.
Normalmente, o que se vê é mais para se olhar do que para ler. E disso eu tenho
orgulho, de ter participado desse projeto. Quando terminou, deu uma tristeza, pois é
como se a pele vencesse o intelecto. No final, as pessoas diziam pra gente: bota pau
nessa revista! E uma coisa, a César o que é de César, eu bati cabeça com o Nelson
sobre isso e ele dizia: “Não, não, não! Aí, eu faço outra revista. A Homens tem pau, a
Sodoma tem pau, a Sui Generis não tem pau”. A Sodoma já foi criada meio que
para segurar a Sui Generis. Com a explosão da G [Magazine], onde a gente ia, ouvia
“bota pau!”. O Nelson pensou, “Ah, vou fazer outra revista, porque a Sui Generis
não tem pau. E eu super concordo, “então, não há mais mercado para a Sui Generis”.
E a G veio mesmo com tudo, e foi esmagador. O Nelson tinha a mesma percepção,
se não tem mercado, tira de circulação. Porque senão iria descaracterizar tudo. Não
era uma coisa comercial: o Nelson tinha uma paixão pela revista. (grifos nossos) 179
179
Entrevista ao autor em 21 nov 2011.
161
Agora, os olhos do mundo gay pousam sobre um tipo tão antigo quanto a
humanidade. Desde pelo menos o início do ano passado, os michês saíram do
submundo sórdido e violento em que costumavam ser vistos para as páginas dos
livros, palcos de teatro, telas de cinema, editoriais em publicações variadas. É
movimento já batizado de Gay for Pay. Alguns argumentam que o tema é recorrente.
Mas não de forma tão avassaladora como agora (“A Hora da Fama”, Sui Generis,
ano 3, n. 20, p. 26-28)
180
O termo em inglês é próximo do sentido de “michê”, em português. Na reportagem, não foi traduzido.
163
181
É o caso da reportagem Invasão de Privacidade, a televisão devassa sua intimidade, tema da edição de
número 41 (ano 4, 1998). O tema, aqui, é discutir a “controvérsia” existente na “visibilidade de gays e
lésbicas na mídia em programas diversificados”. Partindo da constatação de que “nunca se viu tanto gays e
lésbicas na tevê” e de que “nunca também se criou tanta polêmica em torno do tema”, a reportagem segue os
parâmetros padrões deste gênero jornalístico: a escrita de um texto mais longo, ilustrado por declarações de
especialistas (declarações de uma antropóloga que estuda a televisão brasileira e de ativistas que
acompanham a cobertura noticiosa sobre “gays e lésbicas”), de personagens que participaram de programas
de televisão e de produtores destas atrações. Destacam-se os pontos “positivos” e “negativos” dessa nova
“visibilidade”, numa determinada passagem questiona-se os processos de edição a partir de situações
relatadas por quem participou de programas de debate ou de auditório. Em um box, o proprietário e diretor de
redação de Sui Generis estabelece “cinco dicas” para aqueles que decidiram ser entrevistados em programas
televisivos, o que inclui “pesquisar o trabalho do jornalista para o qual vai dar entrevista” e “negociar” a
exposição, “discutindo a matéria na hora do convite”. Se as fotos que compõem a reportagem em sua
maioria, mostram personagens que tinham participado recentemente das atrações televisivas, destacando-se
uma foto da “secretária da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis” em que se vê, ao fundo,
faixas e bandeiras do arco-íris extraída de uma parada realizada na orla de Copacabana, outra de um casal
formado por um sociólogo e um geógrafo, membros de um grupo ativista LGBT de Brasília, a capa contrasta
com a figura de um modelo retratado saindo do box de um banheiro, escondendo apenas a genitália após o
banho (Cf. Anexo G). Em “Abuso policial” (Sui Generis, ano 5, n. 43, 1999) estratégia similar consiste em
abordar, no texto verbal, um tema “sério”, os “casos de tortura, humilhação e extorsão praticados por
policias” a partir de relatos de sujeitos “gays”. As imagens que ilustram a reportagem, por sua vez, mostra um
modelo de corpo definido, sem camisa, em situações que acionam um imaginário erótico centrado na figura
de um homem fardado/policial. (Cf. Anexo H).
165
desafiada por desejos de leitores que nem sempre correspondiam à identidade afirmativa
idealizada na redação; e, de tentar construir tais negociações sem o risco de cair no que seus
jornalistas considerariam como um jornalismo “contaminado” no domínio do “vulgar”.
166
Brasil (em campos diversos como o acadêmico, o jurídico, o “ativismo LGBT”, a imprensa –
gay e a dita “grande imprensa”), de como essas mesmas questões se insinuavam recorrentes
nos discursos de Junior e na construção, ao longo destes seis anos, de sua linha editorial: os
usos de noções como “homofobia” ou as variações “homofóbico” ou “violência homofóbica”,
por exemplo; o destaque à “união civil” ou “casamento igualitário” na pauta de “defesa dos
direitos sexuais” e “humanos”.
Quando finalmente me acomodei com Gean numa das mesas do café, resolvi
seguir a regra habitual que estruturava as entrevistas: pedi para que ele começasse a contar um
pouco de sua trajetória de vida antes de ingressar na Junior. Perguntei, um tanto
burocraticamente para dar início à conversa, se ele era paulistano. Ele respondera que não,
que tinha nascido no interior da Bahia, mas tinha vindo com o pai e a mãe (ele, metalúrgico;
ela, babá) para a capital paulista com um ano de idade, o que fez “ter uma trajetória muito
mais paulistana do que baiana”, “toda a vida centrada em São Paulo”182.
Ao ouvir posteriormente a entrevista no gravador, chamou minha atenção como
ele, em pouco menos de cinco minutos, passa a apresentar um discurso bastante articulado
para um profissional recém-formado de apenas 22 anos de idade. Informa ter feito o curso de
jornalismo na Universidade Mackenzie183, após ter tentado ingressar na Escola de
Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Aprovado na seleção da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), em Bauru, optou pela instituição localizada na capital,
financiando seus estudos através do Prouni184.
Gean entende que sua “trajetória na faculdade assemelha-se, choca-se várias vezes
com a Junior”. Reproduzo este momento da entrevista:
_Você pode me falar um pouco mais dessa pesquisa sobre a imprensa gay?
Fiz uma análise histórica e discursiva, analisando os discursos e visões de mundo
que cada revista ou periódico queria apresentar. Dividi em três períodos: a década de
182
Entrevista ao autor em 25 abr 2013.
183
Universidade privada presbiteriana localizada entre o centro e um bairro de classe média e alta da capital
paulista.
184
Programa do Ministério da Educação que confere bolsas integrais ou parciais no ensino superior privado a
estudantes egressos da rede pública cujas famílias não excedam a renda de três salários mínimos.
168
Reconstituo esta cena pois a considero uma das surpresas que se revelam no
desenvolvimento de uma pesquisa: em questão de segundos, Gean passou a dividir a posição
de “colaborador de pesquisa” com a de um interlocutor que também “estudava” a “imprensa
gay brasileira”, inclusive alguns dos veículos que me propus a analisar186. Também ressalto o
fato dele destacar a importância de jornais, e da mídia em geral, como espaço destacado para
construir “visibilidade” aos “temas LGBT” e dos “direitos humanos”. E, como me informaria
em passagem posterior da entrevista, de acreditar que essa posição de ter estudado os
periódicos “gays” e de se dedicar “ao jornalismo e minorias” foi importante para – aliado ao
fato “de ser jovem” – ter sido selecionado para estagiar em Junior.
Algo que somente passei a atentar quando escutei alguns meses depois a
entrevista, e após ter concluído a primeira leitura dos textos que compõem o corpus analítico
da revista, foi perceber ainda como Gean articula na sua fala, com certa desenvoltura,
expressões condizentes aos discursos e pautas reivindicadas no universo que ele situa como
“agenda pública brasileira” (LGBT/contemporânea).
Depois de “decupar” o arquivo sonoro, precisei então fazer um novo movimento
analítico, que exponho aqui por revelar como se estruturou este capítulo: voltei ao meu
arquivo de primeira análise dos editoriais, da seção de cartas dos leitores e das reportagens de
capa do periódico, fazendo uma leitura de algumas anotações traçadas na primeira leitura
desse corpus. Era possível identificar nessas anotações alguns dos termos e expressões
semelhantes, ou semanticamente próximas, àquelas utilizadas por Gean: “direitos humanos”,
“pluralidade”, “minorias”... Não é um dado surpreendente, mas sugeriu-me que seria
fundamental problematizar como alguns desses referentes circulam nos discursos de Junior,
num contexto mais específico de virada da primeira para a segunda década do século XXI.
Trata-se, enfim, de analisar e pôr em tensão como se constrói editorialmente, nas
pautas privilegiadas e nos discursos selecionados, algumas das dimensões que vão delinear
tanto um perfil editorial hegemônico em Junior, com discursos (verbais e visuais) que
185
Entrevista ao autor em 25 abr 2013.
186
Na sequência, quando Gean falava de sua pesquisa, recordei que tinha lido um artigo sobre a “imprensa
homossexual” nos anais de um congresso acadêmico da área de Comunicação (Intercom), ocorrendo-me
então que ele era o autor. Indaguei e ele confirmou. Após a entrevista, quando caminhávamos em direção ao
metrô, trocamos algumas impressões sobre o Lampião da Esquina e a Sui Generis, as questões e os recortes
que ele abordou e as que eu estava analisando. Cf. Gonçalves e Santoro, 2011.
169
privilegiam certos modelos de corpos e relações (das quais o “casamento entre pessoas do
mesmo sexo”, por exemplo, é uma das mais destacadas). Mas também de explorar zonas de
abertura, em que os mesmos discursos e as atuações de seus jornalistas e colaboradores nos
permitem interrogar criticamente as bases desta linha editorial, as tentativas de se elaborar
uma “diversidade” e visibilidade a outros modos de ser (“gay”) numa revista endereçada
majoritariamente a um público leitor que permanece situado/privilegiado como jovem,
homossexual masculino, branco, de classe média e alta, consumidor de produtos de beleza e
adepto do fitness, frequentador de “baladas”, turista...
Do recruzamento, assim, das entrevistas com os jornalistas de Junior e da
primeira leitura do corpus (delimitado nas dez primeiras edições, entre 2007 e 2009; as
edições 27 a 34 – abril a novembro de 2011; e os exemplares de número 47 a 52 – janeiro a
junho de 2013), decidimos estruturar a análise discursiva da revista, a partir dos seguintes
eixos: na primeira seção, analisamos a seção “Coverboy”, que consiste em ensaios
fotográficos de modelos e ocupam o espaço de maior visibilidade da revista, a sua capa. Que
modelo ideal de “homem” é constantemente veiculado ali? Há espaço para aberturas ou
deslocamentos nesse espaço? Em caso afirmativo, o que eles consistem? Concentramo-nos
num ensaio publicado na edição de março de 2013, justapondo a análise com outra capa de
Junior, também lançada na mesma edição, cujo tema é discutir a pouca visibilidade midiática
a diferentes padrões de “beleza”.
Na segunda seção, discutimos um conjunto de reportagens e editoriais que
enfocam questões relacionadas a “direitos” (“sexuais”/“humanos”), com particular ênfase à
cobertura da “união estável” e ao “casamento”. Interroga-se se é privilegiado um modelo de
relação entre homossexuais, neste caso, que outras possibilidades os discursos da revista
põem em segundo plano. Na terceira e última seção, problematizamos, a partir de algumas
reportagens e dos depoimentos dos jornalistas de Junior, as possibilidades e os limites de uma
“linguagem gay”, no sentido em que eles se referem a esta, no jornalismo desta revista.
A escolha por anos distintos busca, assim como feito na análise de Sui Generis,
abarcar momentos diversos de elaboração da revista, permitindo-nos uma compreensão mais
ampla da consolidação e dos eventuais deslocamentos na linha editorial, reiterando sua
dimensão processual, em constante negociação, tensão e redesenho.
A edição 49 (ano 6, março de 2013) chegou às bancas de revista com duas opções
170
de capa para o leitor. Não foi a primeira vez que isso ocorrera nos seis anos de circulação de
Junior: na edição 16 (abril de 2010), podia-se optar em comprar o exemplar com o modelo
Bernardo Velasco, que já tinha aparecido em outros ensaios fotográficos da publicação, ou
levar para casa uma primeira página com a escritora e roteirista de televisão Fernanda
Young187.
Essa estratégia editorial foi sinalizada pelo publisher, André Fischer, e pelos
jornalistas entrevistados, como uma abertura para experimentar outras possibilidades de
apresentar a revista. Na primeira conversa que tive com Fischer, mais informal e sem registro
de gravação, quando visitei pela primeira vez a sede do Mix Brasil, ele relatara algumas das
capas que não seguiriam o “padrão” daquele ancorado na imagem do modelo retratado, a cada
mês, na seção Coverboy (“Garoto da capa”). Fischer não mencionou números específicos de
vendas quando duas capas são veiculadas, mas reiterou que era importante oferecer, em
algumas edições, uma opção alternativa. Como demonstro adiante, a partir da análise de
algumas cartas à redação, alguns leitores escrevem a Junior cobrando primeiras páginas que
escapem do padrão “modelo jovem-sarado-sem (ou com poucos) pêlos”. Quando perguntei ao
publisher se ele já tinha cogitado lançar um exemplar apenas com uma capa “alternativa”, ele
ponderou que por ser uma editora pequena, não tinha como “bancar” o “risco” de uma edição
sem o formato já consagrado.
Para analisar as características desse formato recorrente nas capas 188 e as
tentativas de lançar outras que, publicadas mais ocasionalmente, são consideradas na redação
de Junior alternativas ao “padrão” identificado à revista, propomos que, em vez de ilustrar
diversos ensaios da seção coverboy, concentremo-nos numa leitura da edição 49 (ano 6,
março de 2013). Esta, oferecida com duas opções de capa, foi escolhida por nos permitir uma
leitura comparada: ao mesmo tempo em que traz elementos para explorarmos algumas das
caraterísticas do “padrão” estabelecido, tem como particularidade o fato de a capa
“alternativa” remeter a uma reportagem que propõe discutir como o mercado editorial de
revistas impressas reproduziria determinados modelos de “beleza”, negligenciando outras.
187
Mulheres estamparam a capa de Junior apenas em duas edições. Além de Fernanda Young, a atriz Cláudia
Raia, na época atuando numa telenovela das 19h da Rede Globo de Televisão e se preparando para lançar a
temporada de um musical na capital paulista, é retratada no número 27 (abril de 2011). Ressaltamos, porém,
que ela está acompanhada por um modelo, “coverboy” daquela edição. Em outros exemplares, a segunda
opção de capa geralmente retrata atores de televisão ou cinemas entrevistados na revista (edições 14, 30). Na
edição 23 (novembro de 2010), as opções consistiam em comprar uma capa com três modelos de sunga ou
uma com um ator Paulo Vilhena numa foto de uma personagem “roqueira transexual”, que ele encenava num
musical à época. No editorial, foram apresentadas como opções “mais sexy ou mais cult” (“Vale tudo”,
Preliminares, Junior, ano 4, nov 2011, p. 6).
188
Para exemplos de capa, cf. Anexos I e J.
171
No espaço da leitura entre uma capa e outra, queremos analisar como o formato “coverboy”,
ao mesmo tempo majoritário comercial e editorialmente, também é desafiado por pressões de
renovação e questionamentos acerca desta mesma fórmula. Por sua vez, a partir ainda das
duas capas, também interrogar alguns dos pontos e, principalmente, dos limites da
(auto)crítica nos discursos em defesa de “belezas diversificadas”, que a primeira página e a
reportagem “alternativas” tentam oferecer aos leitores.
Iniciemos pela capa “padrão”. Ela é estampada por um modelo da agência “40
Graus”, Beto Malfacini, com torso nu, bronzeado, sem pelos no torso, mas de barba,
aparentando a faixa de 30 anos de idade. Na chamada, em caracteres situados abaixo do seu
nome em destaque, uma descrição das expectativas que ele deveria sintetizar: “Um galã
completo”.
fotografias aproximam o leitor ainda mais do corpo do modelo. Nas páginas 30 e 31, três
registros. No primeiro, ele está sentando numa cadeira, e uma ideia de sensualidade tenta ser
construída no fato de a calça estar parcialmente aberta e no gesto de flexionar o braço a partir
de um movimento do dedo polegar na boca. Na segunda imagem, como na capa, o modelo é
retratado com a cintura da vestimenta dobrada, sorrindo de frente para o leitor. A terceira, com
o modelo deslocando o corpo para a lateral, contrasta com um semblante sério. Essa breve
inclinação, por sua vez, amplia a visualização dos traços físicos: na parte inferior, a calça
jeans (com o botão também aberto); na parte superior, um jogo de sombra e luz, em que um
dos braços (sobressaindo-se uma veia a contornar o bíceps e o ombro, parte do abdômen e do
peitoral são realçados.
As duas páginas finais, por sua vez, são compostas por três fotografias:
retirada na praia, visualiza-se em conjunto também pela primeira vez todo o corpo do modelo,
que aparece sorrindo. Na fotografia da direita, última do ensaio, retoma-se uma expressão
facial de seriedade, mas dois elementos chamam a atenção: um enquadramento de plano
americano que, registrando o modelo aparentemente vestido com uma toalha, reforça uma
posição de superioridade do retratado. A pose encenada também reitera tal posição: o modelo
põe a mão direita na cintura e, com a esquerda, aponta para o leitor, como se o lembrasse que
é ele, o modelo, que está no domínio da situação/contemplação (erótica).
A partir do ensaio, podemos identificar uma dinâmica que permite situar a capa
“tradicional” pautada nos ensaios dos garotos em Junior. Ela aciona, mediante a forma física,
gestos e movimentos corporais, referenciais associados a uma masculinidade hegemônica
(virilidade, força e vigor físico)191. Mas não se pode tomar aqui esta mesma “masculinidade”
como construção absoluta que seria simplesmente “replicada” ou reiterada no domínio de uma
revista “gay”. Ela, para usar novamente a expressão de Mendonça (2013), também é
“provocada” e negociada a partir de novas possibilidades de produção de sentido: joga-se para
o leitor (não-heterossexual) com a sensualidade de um colar mordido, com um quadril
levemente inclinado, com o botão de uma calça aberto ou em dobrar sua cintura. As poses e
movimentos sugeridos também buscam sugerir uma aproximação erótica ao leitor. Ao
comentar uma das seções Coverboy, um dos jornalistas entrevistados sugeriu que nos ensaios
existiria um movimento duplo: a revista busca vender para o leitor tanto um modelo que ele
gostaria de ser, mas também ter no domínio do desejo. Assim, emerge algo não menos
importante, o fato deste padrão de beleza (masculina) precisar ser permanentemente
renegociado frente a demarcação da revista “gay” e feita para “gays”, nos modos como
projetam os anseios de sua audiência leitora. Ao mesmo tempo, tal padrão, na medida em que
191
O conceito de masculinidade hegemônica, como sugere Connell e Messerschmidt (2013) tem, nas últimas
três ou quatro décadas, tanto influenciado como sendo objeto de crítica no campo dos estudos de sexualidade
e gênero. A partir de uma reavaliação do conceito, eles sugerem, entre outros tópicos, reconhecer “que não
apenas as masculinidades sejam entendidas como encorporadas [embodiement], mas também que sejam
tratados os entrelaçamentos das encorporações com os contextos sociais” (CONNEL; MESSERSCHMIDT,
2013, p. 269). Também consideram que “devemos reconhecer agora explicitamente a estratificação, a
potencial contradição interna, dentre todas as práticas que constroem masculinidades. Tais práticas não
podem ser lidas simplesmente como expressando uma masculinidade unitária. Elas podem, por exemplo,
representar transformações comprometidas por desejos contraditórios ou emoções, ou por resultados de
cálculos incertos sobre custos e os benefícios de diferentes estratégias de gênero (CONNELL;
MESSERSCHMIDT, 2013, p. 271). Já Miskolci (2013b, p. 317), no contexto mais específico de uma
etnografia das “relações homoeróticas masculinas criadas on-line”, observa que nas relações entre usuários
que se identificam como “machos” ou “brothers”, o “culto da masculinidade hegemônica equivale à criação
de uma forma de desejo por ela (…) Assim, seu desejo é homoerótico, mas se dirige ao homem
'heterossexual' e aos valores e às práticas de uma masculinidade historicamente construída, alçando-os a uma
superioridade em relação aos claramente homossexuais, assim como à partilha de controle sobre as
mulheres”.
177
192
O enunciado na reportagem interna menciona em sequência: “E também os idosos (ou os não tão jovens)”
(“Brasil de todas as belezas”, Junior, ano 6, n. 49, mar 2013, p. 36).
178
Cinco modelos selecionados para compor esta capa tentariam reproduzir uma
“mistura brasileira” que, segundo a revista, teria ocasionado a formação de um “país de
homens lindos”. O texto disposto abaixo da manchete assume um tom enfático, de urgência:
“Já está na hora de termos orgulho de nosso próprio DNA” 193. A ideia de “diversidade seria
sugerida numa escolha por modelos que, à princípio, escapariam ao padrão analisado (do topo
para cima: o primeiro, com cabelo mais longo e cacheado; o segundo, um modelo negro; o
terceiro, ruivo; o quarto, apresentado nas páginas internas como “ator de porte”; o quinto,
ainda que não se identifique e registe apenas “mistura boa”, aparenta ter ascendência oriental).
Como fica evidenciado num primeiro olhar, porém, apenas um dos modelos escaparia ao
padrão de corpo “definido”.
A manchete, por sua vez, ao estampar no título “Verdadeira beleza”,
implicitamente também remete a indagarmos: qual beleza não seria a verdadeira, ou
verdadeiramente contida no “DNA” brasileiro? Estaria, assim, no domínio de uma confissão
da revista acerca de um padrão desvinculado de uma “realidade” brasileira, mas que é
comumente retratado nas suas capas? É sugestivo que a edição tenha sido apresentada, no
editorial, também sob o prisma de uma (“quase”) confissão, com ressalvas, sobre essas
escolhas editoriais: “Quase um mea culpa. Ou não”. Acompanhado da negativa, o enunciado
sinaliza tanto um discurso de justificativa como de revelar as pressões (de parcela do
leitorado, de uma projetada “militância”) no privilégio conferido pela revista ao padrão
estabelecido. Vamos nos deter inicialmente no editorial:
Desde 2007, a JUNIOR vem estampando em suas capas homens que materializam
um ideal de beleza que não é muito diferente de revistas de todo mundo. Com raras
exceções, todos jovens, magros, musculosos, brancos, morenos e de aparência
máscula estão nas capas de revistas masculinas gays e não gays da Alemanha ao
México, da Austrália a Portugal. São chamados de modelos porque são apresentados
justamente como modelos de beleza a ser desejada, consumida e reproduzida.
É uma fórmula consagrada há décadas e que o mercado editorial, por medo de
perder vendas em bancas, raramente ousa transgredir. Já fomos acusados de
covardes e preconceituosos. Mas ainda que alguns editores ouvidos na matéria
principal digam que essa realidade está mudando e lembrem de suas experiências,
colocando não-brancos em suas publicações, a verdade é que eles ainda são
exceções. Dê uma olhada na banca: 99% dos títulos (sendo otimista) ainda trazem
homens e mulheres jovens, magros e musculosos. Se você prestar bem atenção, nem
loiros são muito comuns (“Quase um mea culpa. Ou não”, Junior, ano 6, n. 49, p. 6)
Há, nesses dois parágrafos, indícios significativos das negociações que envolvem
um título como Junior no mercado editorial. A forte dependência da venda em bancas reitera
um movimento de continuamente privilegiar a “fórmula consagrada”, abrindo assim pouco
193
Exploramos mais adiante a construção de um discurso a associar beleza, mistura/miscigenação e brasilidade.
179
espaço para uma transgressão. Alinhavar-se a outros títulos “estrangeiros”, por sua vez, tanto
insere a revista num circuito de revistas “gays” transnacional194 como, num exercício de
justificativa, desvia o que se confessa também para um estrangeiro: somos assim porque as
revistas “masculinas”, no mundo todo, o são. Mas devemos refletir sobre um enunciado
calcado na indeterminação: “Já fomos acusados de covardes e preconceituosos”. Quem
“acusa”?
É importante notar a emergência, nas cartas dos leitores, de correspondências que
põem em perspectiva crítica o padrão corporal estampado nos modelos de capa. Na edição 30
, leitor comenta: “A JUNIOR é famosa por seu sempre ótimo casting de modelos, mas peca
por não trazer, ainda que eventualmente, homens mais maduros. Não tenho nada contra os de
20, mas há beleza aos 30, 40, 50...” (Cartas, Junior, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 10). Na edição
47, é pela ótica de um “desejo” que se mudaria o padrão e, assim, permaneceria “atual”:
“Chega de modelos de corpo perfeito e sem sal nenhum. Existem homens lindos no Brasil e a
JUNIOR é famosa por mostrá-los, mas os desejos mudam e a revista mostrou que sabe
atualizar-se” (Cartas, Junior, ano 6, n, 47, jan. 2013, p.8)195. Na edição 34, o questionamento
amplia-se para, similarmente ao que identificamos na análise de Sui Generis, um contraponto
entre texto verbal como “conteúdo jornalístico” e o que leitor identifica como uma
predominância de um regime visual (“fotográfico”):
Fiquei muito feliz com as mudanças na revista, mas achei que vocês estão dando
mais valor para o conteúdo fotográfico, o que me desagrada muito. A JUNIOR é a
única revista gay com conteúdo jornalístico nas bancas e deveria dar ainda mais peso
a essas páginas. Todos gostamos de ver homens bonitos, o que a revista faz muito
bem, mas eles não precisam dominar as páginas. Eu quero mais “ler” do que “ver”
(Cartas, Junior, ano 5, n. 34, nov 2011, p. 10)
Essas críticas, não obstante interrogarem um padrão construído ao longo dos anos,
194
Nesse circuito, chamamos a atenção de que não apenas há uma iconografia construída nas capas que se
reproduzem entre os principias títulos, algumas mencionadas em editoriais anteriores de Junior como
referências ou “inspiração” (a francesa Têtu, a espanhola - atualmente extinta - Zéro, a inglesa Attitude e a
australiana DNA): quando questionados sobre a rotina na redação, os jornalistas de Junior mencionaram a
clippagem dos portais de notícias das principais revistas gays internacionais. Um dos jornalistas informou
ainda que esta foi uma das recomendações que recebeu na entrevista de seleção para ingresso no veículo, de
modo a acompanhar notícias que fossem feitas de um “ponto de vista” gay. Também ressalto que modelos já
retratados em capas e ensaios fotográficos de Junior, em algumas ocasiões, despontam em algumas seções
dos sites dessas revistas estrangeiras. Como exemplo, o modelo Bernardo Velasco, capa da edição n. 16,
compôs a seção “Sorriso do dia” da publicação australiana DNA. Cf:
<http://www.dnamagazine.com.au/articles/news.asp?news_id=20388> Acesso em 15 out 2013. Cf. Anexos K
e L.
195
Neste caso, a diferença do “padrão” residiria no fato de o modelo usar uma espessa barba e pêlos no peitoral.
Na capa a que se refere o leitor (edição 46), podemos identificar este como musculoso e jovem. O ensaio tem
como chamada “Beleza austera”.
180
algo reconhecível por parcela dos leitores, situam-no num plano relativizado: aqui, não é a
onipresença de “homens bonitos” que está em xeque, mas a beleza predominantemente
jovem, de torsos geralmente depilados ou que, mesmo agradando como fórmula consagrada,
não deveria se sobrepor ao “conteúdo jornalístico”196.
A reportagem “Brasil de todas as belezas”, alocada numa seção designada
“Especial: abaixo aos padrões”, investe numa categoria semântica recorrente em Junior,
“lindo” (ou a correlata “homens lindos”). Tenta-se, a partir daí, pôr em perspectiva uma crítica
a um padrão (reproduzido também em suas capas) centrado no “tipo europeu”. Chamamos a
atenção, inicialmente, para a ênfase conferida a uma associação entre diversidade, beleza,
sensualidade e brasilidade197, que poderia ser atestada por um olhar externo (“gringo”) como
no parágrafo de abertura do texto:
196
Neste discurso, o leitor desloca, assim, a seção do ensaio fotográfico de capa como algo não “jornalístico”,
situando este último como “conteúdo” textual (ou seja, que poderia ser “lido”).
197
Na visão de Parker, a noção de “sensualidade”, mais do que ligada “à percepção de existência individual”,
estaria ligada, no Brasil, “à auto-interpretação de uma sociedade inteira”. Assim, ele entende que “os
brasileiros consideram-se como seres sensuais não apenas em termos de sua individualidade (embora isso
também seja importante), mas num nível social e cultural – como indivíduos sensuais, pelo menos em parte,
em virtude de sua compartilhada brasilidade” (PARKER, 1991, p. 23). Conforme sugerimos em outra
passagem, leituras dessa ordem podem ser postas numa perspectiva crítica, como a empreendida por Carrara
e Simões, particularmente sobre a leitura que estes fazem das apropriações das noções de
“homossexualidade” na antropologia brasileira. O que queremos salientar é que o discurso da revista aciona
essa vinculação de uma sensualidade (“bonito e sexy”) como característica “brasileira”.
181
profundo. Por que são tão poucos negros em capas? Por que o mercado plus size não
aparece nem é reconhecido nas revistas e nas campanhas publicitárias? E por que os
idosos não possuem programas de TV, revistas ou sites específicos no Brasil?
(“Brasil de todas as belezas”, Junior, ano 6, n. 49, mar 2013, p. 36)
198
Numa tradição que ecoa Gilberto Freyre, atravessa a reportagens discursos que valorizariam nossa “mistura
social e racial” como interpretação e valorização da sociedade brasileira. Sobre essa persistência, diz Cardoso
(2013) sobre a obra do pernambucano: “As oposições simplificadoras, os contrários em equilíbrio, se não
explicam logicamente o movimento da sociedade, servem para salientar características fundamentais. São,
nesse aspecto, instrumentos heurísticos, construções do espírito cuja fundamentação na realidade conta
menos do que a inspiração derivada delas, que permite captar o que é essencial para a interpretação proposta.
Não preciso referir-me aos aspectos vulneráveis já salientados por muitos comentadores de Gilberto Freyre:
suas confusões entre raça e cultura, seu ecletismo metodológico, o quase embuste do mito da democracia
racial, a ausência de conflitos entre as classes, ou mesmo a 'ideologia da cultura brasileira' baseada na
plasticidade e no hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos. E como, apesar disso, a obra de Freyre
sobrevive, e suas interpretações não só são repetidas (o que mostra a perspicácia das interpretações) como
continuam a incomodar a muitos, é preciso indagar mais o porquê de tanta resistência para aceitar e louvar o
que de positivo existe nela” (CARDOSO, 2013, p. 86-87).
182
Daqui pra frente, com a economia reestabelecida, vamos parar de nos mirar no ideal
europeu e recriar a nossa auto-estima, a partir desta imagem miscigenada, plural e
incisiva. Não é uma mudança fácil de paradigma, mas sou otimista neste ponto e
acho que vai acontecer naturalmente, sem protestos, apenas com uma nova
percepção do que é ser brasileiro” (“Brasil de todas as belezas”, Junior, ano 6, n. 49,
mar 2013, p. 37)
Se você tem o perfil do leitor, se você sabe para quem tá escrevendo, não é comum
tanta visibilidade assim a grupos que não estão lendo. Apesar de, eu estou sentindo
com o tempo, de que a Junior tá ampliando um pouco mais isso. Esse quinto ano da
revista serviu para refletir sobre isso. Não sei exatamente por quê. A maior crítica é
focar no homem alto, gay, branco, musculoso, que é o que tá na capa. Vários leitores
falam que não se sentem representados. A capa das múltiplas belezas mostra uma
abertura. Acho que não tão cedo a revista vai mudar, a não ser que descubra esses
novos leitores.
199
Complementam ainda a matéria um relato das “histórias de dois homens que passaram por mudanças físicas
radicais”, uma entrevista com um norte-americano que fez “mais de 90 plásticas” e um artigo assinado por
um psicólogo debatendo “a democratização dos padrões”.
183
“as bandeiras de inclusão na sociedade de 'tipos' não consagrados como perfeitos (branco,
magro, cristão, hétero)” às “bandeiras da comunidade LGBT”. O desfecho reenfatiza a noção
de “mistura”: “As bandeiras da comunidade LGBT também estão sendo ampliadas. Nos
Estados Unidos já se fala na aposentadoria da sigla LGBT, que passaria a incluir assexuados,
intersexuais e outras minorias menos visíveis. As bandeiras, no fim das contas, se misturam”
(“Brasil de todas as belezas”, Junior, ano 6, n. 49, mar 2013, p. 39).
Em consonância, o desfecho do editorial também recorre à ideia de “belezas
absolutamente brasileiras”, mas concluindo-se aquilo que era apresentado como “quase”: a
capa “alternativa” configura-se em “risco” editorial/comercial na medida em que também se
faz possível reconhecer um “bom e conhecido estilo JUNIOR”:
Como somos uma editora pequena – e que não pode correr riscos tão grandes assim
– publicamos mais uma vez duas opções de capa, uma delas no bom e conhecido
estilo JUNIOR. O estonteante moreno, forte e jovem Beto Malfacini garante aos
leitores fiéis imagens que de uma certa maneira atestam também porque homens
com esta estampa fazem tanto sucesso (“Quase um mea culpa. Ou não”, Junior, ano
6, mar 2013, p. 6)
200
Para mencionar em décadas recentes, a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim
(1994) e a Comissão Internacional de Juristas, reunida na Indonésia (2006). Nesta, especialistas em “direitos
humanos” lançaram um documento com os Princípios de aplicação das leis de direitos humanos
internacionais em relação à orientação sexual e à identidade de gênero”. Composta por 29 princípios que
abrangem do direito à igualdade à privacidade e à fundar uma família e participar na vida pública, os
“Princípios de Yogyakarta” estabelecem que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos. Todos os seres humanos são universais, interdependentes, indivisíveis e interrelacionados. A
orientação sexual e a identidade de gênero são integrais para a dignidade e humanidade de toda pessoa e não
devem ser a base de discriminação ou abuso”. O documento completo pode ser conferido em :
<http://www.refworld.org/pdfid/48244e602.pdf>. Acesso em 08 ago 2013.
184
artigo primeiro, preconiza que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”201. Em anos mais recentes, por exemplo, destaca-se num número crescente de países
a pauta pelo reconhecimento da união estável civil e/ou do casamento “entre pessoas do
mesmo sexo”, revelando sua inserção no domínio dos “direitos sexuais” e “humanos”, ao
mesmo tempo em que complexifica e sinaliza tensões nestes domínios202.
As estratégias e conflitos emergentes nas reivindicações desses “direitos”, porém,
somente podem ser compreendidas no reconhecimento de que se dão localmente, em
dimensões jurídicas e socioculturais específicas. Assim, políticas de negociação colocam a
questão do casamento “entre pessoas do mesmo sexo”, por exemplo, em primeiro plano em
alguns locais e em alguns segmentos sociais no interior de cada país, enquanto em outros,
ainda que façam parte da agenda ativista LGBT ou da imprensa (“gay” ou geral), não
necessariamente constituem sua pauta mais urgente. Tais especificidades dizem respeito,
como não poderia deixar de ser ressaltado, a modos assimétricos com que a “universalidade”
da pauta dos “direitos humanos” é elaborada nos circuitos locais/transnacionais203.
Vale de Almeida lembra que, no caso português, por exemplo, “a primeira grande
reivindicação sobre casamento entre gays veio da ILGA Portugal 204, dos ativistas”, ainda que
“o primeiro grande caso foi o de duas mulheres que se dirigiram a um cartório e, por si
201
O artigo segundo, por sua vez, estabelece que “toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as
liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição”. Especificamente sobre o casamento, afirma o artigo XVI: “ Os homens e mulheres de maior
idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e
fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução”.
Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm> Acesso em 08 ago
2013.
202
É possível identificar no sítio da ILGA (Internacional Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex
Association) um mapa que classifica, até o momento da escrita deste trabalho, os países em razão do
reconhecimento do “casamento e substitutos do casamento”. As categorias são: 1) Casamento reconhecido a
nível nacional (caso, por exemplo, dos Países Baixos, Bélgica, Espanha, Portugal, Argentina, Uruguai,
México, Canadá, África do Sul, Nova Zelândia, França, Suécia e Noruega); 2) As leis de casamento variam
dependendo da área (Austrália, Estados Unidos); 3) Substituto inferior ao casamento e reconhecido apenas
em algumas áreas; 4) Substituto inferior ao casamento e reconhecido a nível nacional (Irlanda, República
Tcheca, Eslovênia e Croácia); 4) Substituto igual ou quase igual ao casamento e reconhecido em algumas
áreas; 5) Substituto igual ou quase igual ao casamento e reconhecido a nível nacional (Brasil, Colômbia,
Equador, Reino Unido, Alemanha, Áustria, Hungria, Finlândia e Suíça); 6) Casamento reconhecido em
algumas áreas; 7) Não há nenhuma lei (Rússia, Índia, Paraguai, Egito, Itália, Angola, entre outros); 8) Países
sem dados (Indonésia, Cuba, Japão, Bolívia, Peru, entre outros). Disponível em:
<http://ilga.org/ilga/pt/index.html>. Acesso em 19 set 2013..
203
Uma discussão sobre os “direitos humanos” a partir, sobretudo, de uma reflexão de suas relações com o
“engajamento antropológico”, é delineada por Goodale (2009). Garcia e Parker (2006) exploram, por sua vez,
as dinâmicas entre um discurso global e ações locais na esfera das políticas de construção de um “movimento
dos direitos sexuais”. No caso brasileiro, para sugerir uma leitura mais recente, indico a seção “Direitos” da
coletânea organizada por Miskolci e Pelúcio (2012).
204
Principal associação ativista LGBT portuguesa.
185
próprias, sem nenhum apoio do movimento LGBT, anunciaram que queriam casar-se”. O
antropólogo pondera que no interior do ativismo LGBT daquele país instaurou-se uma
discussão se a reivindicação “deveria seguir pela via judicial ou via política”. Ressaltando
que, embora estrategicamente o resultado positivo via judicial seria uma possibilidade a ser
acatada, optou-se pela segunda via. Ele lembra que pesou nessa estratégia tanto o fato de o
Judiciário ser um poder “muito conservador” do ponto de vista “dos costumes” como ter um
sistema político parlamentarista “partidocrático”, menos dependente de “alianças
transpartidárias” e que “permite mais o debate”. Ao comparar, assim, a situação de Portugal
com a realidade brasileira, entende que “nós [portugueses], se tivéssemos ido pelo judiciário,
não chegávamos muito longe”205.
No Brasil, um marco em âmbito legislativo, ainda nos anos 1990, foi o envio do
Projeto de Lei Federal n. 1.151, de autoria da então deputada Marta Suplicy ao Congresso,
que tinha como objetivo “disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo”206. Rejeitado
em votação na Câmara Federal, os anos subsequentes foram marcados por conquistas na
esfera do Judiciário, que se revelou terreno mais favorável em acolher as reivindicações de
sujeitos LGBTs, enquanto o Legislativo segue como terreno de negociações, conflitos e
barganhas entre deputados e “bancadas” de interesses diversos.
É impossível reconstituir neste espaço as trajetórias dessas mudanças no âmbito
jurídico e institucional no Brasil nas duas últimas décadas, bem como as complexidades que
se revelam no cruzamento dos domínios dos “direitos sexuais” e “direitos humanos” e sua
incorporação na linha de frente das reivindicações políticas, individuais e coletivas dos
sujeitos LGBTs. Lembramos o que dizem Rios e Rodrigues de Oliveira: “a luta pelo
reconhecimento e a promoção dos direitos de homossexuais é um caso emblemático da
necessidade de compreensão dos direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos” (2012,
p. 253), pois “nos debates sobre diversidade sexual e direitos humanos, são invocados vários
direitos: liberdade sexual, integridade sexual (…) expressão sexual, informação sexual”
(Ibid.), constatando que “neste campo, os direitos cuja invocação se revelou mais capaz de
proteger homossexuais em face da homofobia e do heterossexismo foram, basicamente, o
205
Vale de Almeida, in Revista Universidade Pública, ano 11, n.61, mai/jun 2011, p. 7-11. Para um panorama de
questões como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, homoparentalidade e políticas de gênero e
sexualidade no Portugal contemporâneo, além de uma perspectiva comparada dos casos espanhol, francês e
norte-americano, cf. também Vale de Almeida (2009). Uma discussão mais pontual sobre a trajetória dos
debates sobre direitos humanos e sexuais em Portugal é realizada por Santos (2004).
206
Uma síntese do projeto pode ser conferida em: <http://www.ggb.org.br/projetolei_1151.html >.
Acesso em 12 ago 2013.
186
direito da privacidade e o direito da igualdade (Ibid., p. 254). Destacam também, por sua vez,
que a “reificação das identidades sexuais e a repetição de modelos heterossexistas, nas
relações homossexuais são manifestações particularmente persistentes desta dinâmica”, no
encontro destes “direitos”, questão que exploramos mais adiante. Assim, em consonância com
o campo demarcado de nossa investigação (a “imprensa gay”), abordamos como algumas
dessas dimensões (o que inclui tangenciar alguns desses marcos “jurídicos” e disputas
políticas), em particular os “direitos civis” e “humanos” e o reconhecimento das “uniões
estáveis” e do “casamento entre pessoas do mesmo sexo”, ganham forma nos discursos de
Junior. Os textos selecionados são tomados, assim, como ponto de partida para refletirmos,
sob o prisma do jornalismo feito neste veículo, sobre questões que atravessam e desafiam não
apenas o universo dos produtores e leitores projetados na sua linha editorial, mas as políticas
sexuais e de gênero em evidência (e em contínua disputa) no Brasil dos últimos anos.
França ou Irã?
Nunca antes na história a discussão dos direitos LGBT ocupou tanto espaço na mídia
e no cenário político do Brasil. E ainda que nossa presidenta faça a linha avestruz, há
um motivo muito claro para que a sociedade esteja discutindo esses temas.
Estamos vivendo um dilema de identidade enquanto nação e precisamos fazer uma
escolha: queremos ser um país civilizado e avançado socialmente ou dar uma
guinada para o obscurantismo fundamentalista e retroceder para uma era de trevas?
A pergunta é simples assim: você preferiria viver na França ou no Irã?
De um lado, um Estado laico que respeita integralmente seus cidadãos e, ainda que
existam conservadores e que eles tenham uma voz importante, a religião não
restringe a liberdade. Do outro, uma teocracia onde cada aspecto do cotidiano é
determinado por líderes religiosos, que demonizam todos que discordam do que eles
alegam ser a lei de Deus.
O que diferencia um aiatolá iraniano de um deputado-pastor brasileiro é que ainda
temos uma Constituição que diz que a justiça dos homens está acima da justiça
divina por um bem simples: cada religião interpreta a palavra de Deus de sua
maneira. E os que não acreditam em Deus são protegidos da fogueira inquisidora.
A questão não se limita a direitos de uma minoria, mas a uma maneira de ver o
mundo.
Gays, lésbicas e transexuais estão a frente das manifestações contra os Felicianos da
vida, por serem diretamente mais afetados pelos fanáticos emponderados por uma
sociedade inerte que está se tornando refém deles.
O risco concreto é a manutenção da visibilidade alcançada a duras penas nos últimos
anos – como a própria existência dessa revista – e a conquista da igualdade de
direitos.
187
Ainda que possa parecer uma chatice militante, é fundamental que neste mês do
orgulho LGBT você escolha a sua maneira de levantar essa bandeira (“França ou
Irã?”, Preliminares, Junior, ano 6, n. 51, mai 2013, p.6)
207
No mês anterior ao da edição 51 de Junior, o Parlamento francês aprovou, sob forte polarização e protestos
nas ruas das maiores cidades do país, projeto de lei que expandia a noção de casamento e o direito à adoção a
“casais do mesmo sexo”. Desde 1999, existe no país o artifício jurídico do PaCS (Pactos Civis de
Solidariedade), que permite a “pessoas do mesmo sexo” a possibilidade de registrar civilmente suas uniões.
Como destaca Vale de Almeida em análise dos debates em torno do “casamento” e “cidadania” naquele país,
sobressai-se no contexto francês uma considerável “reacção ao suposto comunitarismo das reivindicações
LGBT”, ancorada no “fantasma triplo de: a) a 'americanização' dos costumes, correlata da 'globalização'; b) o
'comunitarismo' da politica de identidade, ele mesmo visto como americano; e c) o receio da perda das
características da República Francesa que são vistas como simultaneamente nacionais e 'universais” (2009,
p.55). Soma-se a isto outra particularidade, “o uso dos saberes científicos, nomeadamente o antropológico”,
em que muitas vezes Freud ou Lévi-Strauss são invocados para “defender o dispositivo heteronormativo”
(Ibid., p. 56). Uma leitura panorâmica da cobertura da grande imprensa francesa e internacional sugere que
esses fantasmas continuaram a operar, quando não se amplificaram, no debate mais recente sobre o
“casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Destacamos ainda a leitura de Eribon (2008) sobre o “casamento
gay”, que retomo no tópico seguinte. Uma análise das articulações entre as políticas gays e LGBTs na França,
do período da Segunda Guerra Mundial aos primeiros anos do século XXI, em consonância com discursos
universalistas e dos “valores republicanos franceses”, é feita por Gunter (2009). Este, inclusive, discute tais
discursos no cenário de aprovação e dos anos posteriores à implementação do PaCS. O autor traça ainda uma
análise crítica do conteúdo editorial da “mídia gay francesa”, a partir de uma leitura das revistas Têtu e
Préferences e do canal televisivo PinkTV.
No Brasil, em março de 2013, o pastor Marco Feliciano, deputado federal pelo Partido Social-Cristão
(PSC), foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Considerando um
dos principais representantes do que se designa “bancada evangélica”, este fato, associado a declarações
recorrentes, em anos recentes, deste e de outros parlamentares desta “bancada”, em oposição a decisões
jurídicas como o reconhecimento à união estável e ao casamento “entre pessoas do mesmo sexo” ou ao
projeto de lei (PLC) 122, que busca instituir a criminalização do preconceito baseado em orientação sexual
e/ou identidade de gênero, refletiu-se numa intensa cobertura midiática. Como fica claro, assim, a associação
ao Irã no editorial de Junior institui este como símbolo máximo de uma “teocracia”, estruturando-se o
paralelo com o cenário que poderia se desenhar no Brasil, em que “líderes religiosos” interfeririam tanto no
“cotidiano” como nas políticas do Estado, que deve ser defendido em sua “laicidade”, ajustando-se ao
contraponto de um lugar a ser defendido, símbolo de encarnação de valores democráticos e “republicanos”,
notadamente a liberdade de expressão e de um Estado acima de pressões religiosas/fundamentalistas
(simbolizado na França).
188
208
Diante da impossibilidade de restituir aqui um extenso debate sobre identidade e nação no Brasil,
propomos a consulta a partir de um recorte, a leitura de Miskolci quando este se propõe a articular, a partir de
uma leitura dos romances O Ateneu, Bom Crioulo e Dom Casmurro e das trajetórias de seus respectivos
autores, uma analítica do “desejo da nação”, inserindo numa investigação de uma “economia erótica
brasileira” o estudo das “relações entre pessoas do mesmo sexo”. Centrando sua análise no final do século
XIX, o autor afirma: “Nossa transição de regime político se relaciona com a passagem de uma primeira
concepção de nação, implantada pelo Império de acordo com os moldes vigentes no início do século [XIX],
para uma segunda, que emergiu a partir dos debates e embates dentro de nossas elites políticas e intelectuais
no terço final do mesmo século. Assim, nossa troca de regime político se conduziu em meio a uma troca de
visão nacional de um imaginário simbólico para a de um um projeto político modernizante como
compreendido aqui, algo que se constitui a partir das condições estratégicas de poder em uma determinada
época e não a partir de planos delineados e seguidos por um ou outro grupo social entendido como detentor
das condições culturais, materiais e políticas para implementar seus objetivos à revelia das oposições,
resistências e alternativas existentes” (MISKOLCI, 2012b, p.33-34). Afirma ainda: “Uma imagem idealizada
que se criara aqui a respeito da Europa como quinta-essência da Civilização guiou as investidas do poder que
se configurou em meio à decadência do Império e a consolidação da Primeira República. 'Ordem e Progresso'
era mais do que mera alusão a Auguste Comte e ao Positivismo, era um compromisso do novo regime
político de levar ordeiramente a sociedade brasileira em direção evolutiva, afastando-a dos seus grandes
fantasmas: a anarquia e a degeneração” (Ibid., p. 147). Trago esta referência não para sugerir, evidentemente,
uma correspondência entre discursos do final do século XIX e o discurso de Junior no início do século XXI,
mas de problematizar o eco de alguns dos vínculos entre o projeto de nação (republicano) e discursos que
preconizam vertentes de “direção evolutiva” (no editorial da revista, encarnado num ideal de “país civilizado
e avançado socialmente”), situando assim essa reivindicação modernizadora (novamente no editorial,
simbolizada “francesa”/europeia) em sua historicidade. Também recomendamos, para uma perspectiva
histórica da noção de cidadania no Brasil, a leitura de Carvalho (2001).
189
“enunciado plural” dos “direitos sexuais” como reivindicações de “direitos humanos”. Como
ela ressalta,
o que a enunciação da sexualidade como parte dos direitos humanos faz é promover
sutis deslocamentos, às vezes dentro de uma mesma seara de sujeitos já consagrados
(como as mulheres), mudando a forma de falar das relações de poder em que tais
sujeitos estariam colocados e dando à sexualidade uma posição destaque para o seu
fazer-se político. Em outras vezes, funcionando para denunciar a insuficiência das
rubricas e personagens políticos encobertos pela noção heterogênea de “minorias”,
insuficiente simbolicamente para dar conta das dissidências sexuais e da própria
fluidez da sexualidade. Teríamos, assim, uma situação em que para alguns desses
sujeitos os direitos relativos à sexualidade poderiam ser pensados como parte de uma
plêiade de condições, experiências e relações de poder, enquanto para outros seria a
forma principal de indexação em um mundo de classificações e possibilidades de
atuação coletiva. Entre o sexo dos sujeitos e os sujeitos do sexo, os pesos iriam
sendo distribuídos, não apenas entre as pessoas e seus enquadramentos nos
dispositivos de sexo/gênero (mulheres hétero, mulheres lésbicas, homens gays,
pessoas trans etc.) mas também relacional e situacionalmente face a contextos,
dramas, reivindicações e estratégias (VIANNA, 2012, p. 231)
209
O enunciado “como a existência dessa revista”, ressaltado no editorial, torna-se, assim, não apenas recurso
de atestar uma “visibilidade alcançada a duras penas nos últimos anos”, ameaçada por “um risco concreto”
em função da atuação de “fundamentalistas”, mas de reiteração do lugar de destaque que a revista reivindica
para elaboração dessa “visibilidade”.
190
revista “moderna”.
Assim, podemos compreender a ênfase do discurso deste editorial, e de outros
textos de nosso corpus, em situar como “ameaça” categorias situadas como
“fundamentalistas” (“religiosos”)210: na medida em que estes intensificam suas ações
politicas, tanto nas esferas institucionais do Congresso Nacional como no campo midiático,
tornam-se um contraponto de referência para que se prossiga nas lutas e no “avanço” de
conquistas e visibilidades gays/LGBTs. Entretanto, entendemos que também é um recurso
estratégico que opera num deslocamento de parte da revista: centrando-se na oposição a um
elemento externo (“fundamentalistas”, “religiosos”, o “Irã” etc.), as diferenças e contradições
no interior do que a revista situa como universo de “gays, lésbicas e transexuais” tendem a ser
“universalizadas” ou deixadas na periferia dos debates, de modo que a revista possa continuar
utilizando-se do discurso de “porta-voz” da visibilidade de um nós em que “lésbicas e
transexuais”, por exemplo, à margem da linha editorial privilegiada em suas páginas, ficam
restritas praticamente ao plano de uma mera citação.
210
É também o caso do editorial da edição 30, que situa a decisão jurídica de reconhecimento das uniões civis
entre pessoas do mesmo sexo num contexto mais amplo de “avanços”, em que “nossa questão entrou na pauta
da vez”, contraposto a posições celebradas por “fundamentalistas e enrustidos”: “Casais estão legalizando
suas uniões afetivas, novos negócios surgindo, novelas apresentando bons personagens gays, pessoas tendo a
coragem de denunciar ofensas gratuitas e maus tratos. Todos esses avanços têm sido o pesadelo dos
fundamentalistas e enrustidos – sobretudo os que são políticos e religiosos – que resolveram usar o santo
nome de Deus em vão para justificar suas teorias e a sujeira que está em suas cabeças” (“Sonhos, pesadelos e
realidade”, Junior, ano 4, n. 30, jul 2011, p.8).
191
Isso não significa que uma noção menos formal ou jurídica de “casamento” fosse
“invisível” nos primeiros exemplares de Junior. No caso de “12 homens, 06 casais”, por
exemplo, a pauta busca ilustrar para os leitores “histórias de amor”, de modo que estes
pudessem “ver o que acontece quando duas metades se encontram”. Os perfis, constituídos
todos por casais masculinos, descrevem como suas relações afetivas foram construídas, as
dificuldades vivenciadas pelos personagens retratados, a partilha de um cotidiano etc. Os
significados de “casados” ou de “casamento”, aqui, transitam entre “morar junto” e manter
uma “relação estável” (“Flávio Espíndola, 36, analista de suporte de informática, e Fábio
Bechepeche, 36, booker de modelos, casados há 11 anos”; “Lembro que ele vestia uma
camisa vermelha e estava lindo. Três meses depois estávamos morando juntos. Um dia liguei
para minha amiga e falei: 'Você tinha razão! Deu em casamento!”). No caso específico de um
casal constituído por um brasileiro e um norte-americano, o texto enfatiza a dificuldade destes
permanecerem juntos, uma vez que as leis dos dois países não permitiam (na época da
reportagem) as “relações gays para imigração” nem a possibilidade de ambos se fixarem a
longo prazo em um dos dois países sob a condição de turista. O depoimento do personagem
estrangeiro ressalta que “planejamos nos casar em algum país que reconheça a união civil
entre gays para legitimar a relação”. Não obstante os entraves de ordem legal, “acho que
quando você ama não existem barreiras”, complementa o parceiro brasileiro211.
De todo modo, na reportagem os aspectos jurídicos e a elaboração de um
posicionamento editorial pautado explicitamente na reivindicação de reconhecimento legal
das relações caracterizadas como “casal” não estão em primeiro plano. Prevalece um discurso
em que noções como “amor” e “companheirismo” são salientadas (e mais valorizadas).
211
Destacamos também na segunda edição, mesmo não incluída nas chamadas de capa que delimitam nosso
corpus, a entrevista realizada por André Fischer com o estilista Lorenzo Merlino e o produtor de eventos
Pazzeto. O “abre” destaca que eles “têm em comum a paixão pela moda e a crença no poder da aliança na
mão esquerda” (As duas primeiras páginas são ilustradas por duas fotografias de enquadramento fechado nas
mãos de cada um deles). Após seis perguntas sobre o universo da moda, a entrevista passa a enfocar questões
acerca do “casamento” “Vocês dois são casados, têm uma rotina de família com seus namorados? Sempre vão
dormir juntos, acordam pra tomar café da manhã juntos?” No caso de Lorenzo, ele ressalta que por ser
francês tem direito ao Pacto Civil de Solidariedade (PaCs), mas que este “não é casamento, é um contrato” e
que, “mesmo assim, casamos no consulado com direito a padrinhos, convidados”. Pazzeto, por seu turno,
enfatiza que “pensa em casar, infelizmente não se pode casar nesse país...”. O restante da entrevista gira em
torno da condição de casado, de usar alianças às diferenças entre esse status e o de “namoro firme”. No final
da entrevista, Fischer afirma que “casar e estabelecer família poderia ser chamado de um sonho
heterossexual, uma normalização...”, recebendo uma breve resposta afirmativa de um dos entrevistados
(“Casa, comida e roupa lavada”, Junior, ano I, n. 2, nov 2007, p. 32-37). Retornaremos a esta questão da
normalização, associada a um referencial de casamento heterossexual, mais adiante, a partir de outras
reportagens inseridas em nosso corpus analítico. Já a questão específica de “casais formados por pessoas de
nacionalidades distintas” seria abordada na edição 21, retratando casais que enfrentavam, entre outros
aspectos, “distâncias, a burocracia heteronormativa e os abismos entre culturas” (“Lá e cá”, Junior, ano 4,
n.21, set 2010, p. 44-46).
192
Já no texto sobre casal que adotara quatro crianças, publicado na nona edição e
intitulado “Família feliz”, o “gancho” jornalístico reside na adoção “definitiva” de quatro
irmãos na cidade de Ribeirão Preto, interior paulista, enfatizando a decisão como uma “rara
movimentação da justiça brasileira”.
Ao reconstituir a trajetória do casal, a matéria informa as instâncias jurídicas
percorridas (carta enviada por um dos irmãos ao juiz, período “de adaptação e tutela”) e
aborda as mudanças no cotidiano com a constituição da família. No primeiro parágrafo, este
caso em particular é tomado como um “alento” num “momento em que a militância gay de
todo o mundo briga para que famílias homoparentais conquistem na Justiça os mesmos
direitos à adoção já gozados pelos héteros” (“Família Feliz”, Junior, ano 2, n. 9, 2009, p.76).
Dois boxes, “Raridade” e “Revés”, complementam o texto principal, destacando
decisões jurídicas. O primeiro compila os “raros casos” (informava-se haver “registro público
de quatro casos”) de adoção definitiva de crianças por “casais formados por gays ou lésbicas”,
contrapondo que a adoção por “homossexuais solteiros” seria mais “comum”. O segundo
registra decisão da Câmara dos Deputados de 20 de agosto de 2008 de retirada do Projeto de
Lei que “atualizaria as normas de adoção de menores de 18 anos” permitindo “casais
homossexuais adotarem crianças oficialmente no Brasil”. Centra-se na análise de uma
“advogada especializada em Direitos Homossexuais” em que esta opina que “o Legislativo
não está acompanhando o compasso do Judiciário”, destacando que “grande parte dos
legisladores e julgadores do país não reconhece os direitos de liberdade, igualdade e
dignidade, assegurados pela Constituição Federal, a todos os cidadãos” (“Família Feliz”,
Junior, ano 2, n. 9, 2009, p.76).
Como o próprio título desta reportagem enuncia, o relato em boa parte enfatiza as
dimensões positivas que a constituição desta família representou, seja na vida do casal, seja
nas das crianças adotadas. Salienta-se que “a rotina dos pais mudou para melhor”, ao passo
que “o casal passou a ter hábitos mais saudáveis, como fazer refeições em casa e diminuir o
ritmo da jogação”. Essa associação entre um estilo de vida mais saudável e uma vida
“caseira” e “casada” (privada, familiar, em contraposição a uma vida implicitamente menos
saudável, “noturna”, de “jogação”) é reiterada pela fotografia do casal e dos filhos,
apresentada graficamente numa moldura de um tradicional quadro dourado de madeira,
reforçando o sentido de tradicionalidade do registro “familiar” (cf. Anexo M).
Se na reportagem podemos identificar a valorização do casamento e da instituição
da família, na mesma edição (n.9) entrevista com o “diretor de cinema cult” Bruce LaBruce,
(apresentado na abertura do texto como “anticapitalista convicto, avesso à cultura de
193
celebridades e defensor do sexo sem tabus”) traz, de modo breve, uma passagem em que o
entrevistado questiona a noção de “casamento tradicional”. Ele afirma que, por o “casamento
gay” ser legal no Canadá e o parceiro, por ser cubano, “precisar do papel para ficar no pais”,
optou por “estar casado agora”. Descreve a relação como “relativamente aberta”, informa
viver em “casas separadas” e conclui afirmando “não acredito no casamento tradicional
monogâmico que diz que você deve fazer isso ou aquilo”, defendendo “que a noção
tradicional de casamento deve ser destruída” (“O anticapitalista”, Junior, ano 2, n. 9, 2009,
p.66-69).
A partir da edição 18 (ano 3, junho de 2010), Junior inicia uma campanha que
consiste em “convidar personalidades que apoiam o direito universal ao casamento – passo
importante no caminho do fim do preconceito institucionalizado que discrimina relações
homossexuais” (“A taça do mundo é nossa, Junior, ano 3, jun 2010, p. 6). Esta permanece até
a edição 25 (ano 4, fevereiro de 2011), ilustrada por atrizes, cantores/as e apresentadores de
TV que posam com um cartaz onde se lê “Sim, eu aceito!”212.
No segundo conjunto do corpus de análise (exemplares 27 a 34, abril a novembro
de 2011), o período inclui um importante marco jurídico, o reconhecimento da “união estável
para casais do mesmo sexo” pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em sentença realizada em
05 de maio daquele ano213. Ainda que a decisão legal não se reflita numa cobertura de peso
desta temática por Junior (nenhuma chamada de capa no período faz referência ao
acontecimento), é possível analisar os editoriais e as reportagens que tangenciam a questão,
acrescentadas aqui ao nosso recorte como estratégia de ampliar a discussão da temática.
Na edição 27 (ano 4, abril de 2011), por exemplo, uma das chamadas de capa
remete à declaração da Ministra titular da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do
212
Participaram, nas oito edições, a apresentadora de televisão Astrid Fontenelle, o apresentador de TV Cazé
Peçanha, a atriz Betty Faria, o cantor Rogério Flausino, a atriz Marisa Orth, a cantora Elza Soares e o cantor
Nando Reis. Cf. Anexo N.
213
Em julgamento realizado em dois dias, o STF analisou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e
a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Como indica o sítio do tribunal, “a
ADI 4277 (...) buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade
familiar. Pediu, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem
estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Já na Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o governo do Estado do Rio de Janeiro (RJ) alegou que o não
reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual
decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição
Federal. Com esse argumento, pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no
artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro”.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=178931> Acesso em
12 ago 2013.
194
Rosário214: “Estado tem uma dívida com a população LGBT”. Reproduzimos parcialmente os
trechos da entrevista, em particular quando se menciona o “casamento gay” e a “união civil”:
Você foi deputada federal e conhece bem os jogos de poder da casa. Avalia que
existem chances reais de projetos como o PLC 122 e o de união civil passarem
nesta legislatura?
Precisamos levantar esse debate na sociedade, mostrar o quanto atitudes
preconceituosas estão presentes no cotidiano. É através dessa discussão que
sensibilizaremos os parlamentares.
Como seu ministério pode ajudar na aprovação dos processos que correm no
Supremo pela união civil homossexual? Marta Suplicy está visitando os
ministros para falar sobre o assunto. Existe alguma forma de seu Ministério
influir nestes processos?
Já estive reunida diversas vezes com a senadora Marta Suplicy para tratar do tema.
Ela está liderando, ao lado do deputado Jean Willys 215, uma grande mobilização no
Congresso Nacional para discutir esses temas. Também queremos debater com o
Poder Judiciário sobre a importância de garantirmos decisões que reconheçam os
direitos LGBT. Enfim, estamos trabalhando para consolidação de um ambiente
favorável (“A bela que enfrenta as feras”, Junior, ano 4, n. 27, abr 2011, p. 42-43)
214
Reeleita deputada federal pelo Rio Grande do Sul em 2010, a gaúcha assumiu a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República do Brasil em 1º de janeiro de 2011. Esta secretaria tem status de
ministério.
215
Deputado Federal, coordenador da Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT. Em seu sítio web,
Willys declara apoio à campanha “casamento civil igualitário – os mesmos direitos com os mesmos nomes”.
Disponível em: <http://jeanwyllys.com.br/wp/bio>. Acesso em 12 ago 2013.
195
argumenta que “o Brasil assiste a cenas antes inimagináveis como duas mulheres vestidas de
noiva e dois homens vestidos de noivos”, ressaltando que “não há nada de errado nisso”.
O discurso da reportagem, que narra as cerimônias vividas por quatro casais (três
formados por homens, um por mulheres) reforça a correspondência entre o modelo tradicional
de cerimônia de casamento (heterossexual) e a do casamento realizado nas igrejas
“inclusivas”, enfatizando que esta é realizada “como manda o figurino: com troca de alianças,
vestido de noiva, buquê, padrinhos, madrinhas e igreja especialmente decorada”. Os registros
fotográficos, em consonância com o que se retrata no texto, mostram momentos típicos de um
casamento realizado sob tal “figurino”.
Destacamos que na matéria apresenta-se o argumento de questionamento à
celebração religiosa do casamento. Contudo, este é imediatamente contraposto por uma
positividade na atuação das igrejas que realizam as cerimônias: “Enquanto para uns a
celebração religiosa possa parecer uma mimetização do relacionamento heterossexual, essas
igrejas inclusivas vêem nos casamentos gays e lésbicos que realizam o sinal de que
homossexuais conseguem superar complexos que muitas vezes o impedem até mesmo de
amar” (“Cenas de casamento”, Junior, ano 4, n. 28, p.62-64).
A edição seguinte é a primeira produzida após a decisão do Supremo Tribunal
Federal de reconhecimento jurídico da união civil “entre pessoas do mesmo sexo”. Como
esperado, o editorial a destaca como “histórica”. Entretanto, o fato é apresentado sob ressalva:
“A impressão era de que finalmente caminhávamos com passos firmes em direção às
sociedades mais modernas, nos distanciando do fundamentalismo retrógrado”, pois em
seguida informa-se que, “exatos vinte dias depois, a presidente Dilma barganha a distribuição
do kit anti-homofobia, uma justa reivindicação de educadores, para tentar minimizar o
bullying homofóbico nas escolas” (“Um passo à frente, um passo atrás”, Junior, ano 4, n. 29,
jun 2011, p. 6). Fica evidenciado que, assim como nos discursos sobre “direitos humanos” e
sobre a própria homofobia, Junior situa o reconhecimento da “união civil” como símbolo de
uma “modernização” a se implantar no país, em atraso frente a outras “sociedades modernas”,
sendo os “direitos civis de minorias” um terreno crucial, assim, para seu desenvolvimento216.
A reportagem que trata deste tema, inserida na seção “Justiça”, baseia-se em “tirar
as principais dúvidas dos leitores” a partir da “decisão do Supremo que reconheceu as uniões
216
Ainda na edição 29, esse discurso é reiterado na fala do entrevistado da seção Política, o governador do
estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral: “Mas essa [a “aprovação da união estável para casais
homossexuais”] é uma causa de todos, humana, de uma dimensão profunda. É um marco civilizatório no
Brasil”; “Não adianta avançar na tecnologia se os valores humanos não forem plenos. País de primeiro
mundo é o que conquistou esses valores” (“A revolução de Cabral, Junior, ano 4, n.29, jun 2011, p. 52-55).
196
gays no Brasil” (“E agora?”, Junior, ano 4, n. 29, jun 2011, p. 76). Para tanto, recorre a um
advogado “especialista em direito da família e homoafetivo”, convidado a responder
perguntas lançadas pelos leitores no portal MixBrasil. Sintetizando “cerca de cem perguntas”
nos “cinco assuntos mais constantes”, o discurso do especialista, nos moldes propostos pela
pauta, é didático e toca em questões como pensão, concessão de vistos para companheiros
estrangeiros e os “regimes de bens possíveis para uniões homoafetivas”. Também distingue
“união estável” e “casamento civil”, definindo a primeira como “legalmente reconhecida e
considerada como entidade familiar não registrada”, enquanto o segundo “é ato jurídico
solene, com atuação de duas pessoas de sexo distinto, conforme determina a lei e considerada
como entidade familiar registrada, posto que altera o estado civil dos participantes”.
As edições posteriores passam a cobrir, geralmente na seção de política ou de
notícias curtas (“Saladão”), os desdobramentos da decisão do Supremo Tribunal Federal 217,
ou informar casos em que países alteraram a legislação acerca do tema 218. Na edição 30, por
exemplo, “Eles se casaram” revela que “dois casais gays conseguem na Justiça direito ao
casamento civil” (Junior, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 16). Destaca-se que, mediante “o efeito
cascata e com decisões relâmpagos, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo já é
realidade no Brasil”. No primeiro casal, privilegia-se a declaração de um dos parceiros à
possibilidade de se constituir uma família: “'Como um dos preceitos do casamento é a união
de duas famílias para se constituir uma nova, estaremos oficialmente constituindo a família
Sousa Moresi, onde eu irei incorporar o sobrenome do Sergio, o 'Sousa', e ele irá incorporar o
meu, o 'Moresi', comemorou Luiz” (“Eles se casaram”, Junior, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 16).
Efetivamente, nesse conjunto de textos analisados, a noção de construir uma
família, jurídica e/ou afetivamente, torna-se um tópico recorrente nas pautas sobre “união
estável”/“civil” e do “casamento entre pessoas do mesmo sexo”. Nesse sentido, entendemos
que os discursos hegemônicos circulantes em Junior não são apenas reflexos de um
movimento em que a família seria posta em destaque como desdobramento natural ou meta a
ser alcançada mediante uma nova legislação jurídica, mas valorizadores de um modelo em
que, para usar uma expressão de Mello (2006), põe em relevo certo “familismo”.
Mello expõe duas dimensões que costumam ser tratadas (politicamente) como
antagônicas, mas que operam simultaneamente como paradoxais da incorporação das
217
É o caso, por exemplo, da reportagem “E agora que podemos, vamos nos casar?” (Junior, ano 4, n. 30, jul
2011, p. 54-57), que traz depoimentos de casais (todos compostos por homens) para “contar suas histórias,
falar sobre o relacionamento com família e amigos e como a aprovação da união homoafetiva pode modificar
a relação de um casal”.
218
“Casamento gay – Notícias frescas da união igualitária” (Junior, ano 5, n. 33, out 2011, p. 15).
197
que deferem direitos ao argumento de que, afora a igualdade dos sexos, os partícipes
da relação reproduzem em tudo a vivência dos casais heterossexuais – postura
nitidamente nutrida na lógica assimilacionista. Nesta, o reconhecimento dos direitos
depende da satisfação de predicados como comportamento adequado, aprovação
social, reprodução de uma ideologia familista, fidelidade conjugal como valor
imprescindível e reiteração de papéis definidos de gênero […] Ainda nesta linha, a
formulação de expressões, ainda que bem intencionadas, como “homoafetividade”
revela uma tentativa de adequação à norma que pode revelar uma subordinação dos
princípios de liberdade, igualdade e não-discriminação, centrais para o
desenvolvimento dos direitos sexuais a uma lógica assimilacionista, o que produziria
um efeito contrário, revelando-se também discriminatória, pois, na prática, distingue
uma condição sexual “normal”, palatável e “natural” de outra assimilável e tolerável,
desde que bem comportada e “higienizada” Com efeito, a sexualidade heterossexual
é tomada como referência para nomear o indivíduo “naturalmente” detentor de
direitos (o heterossexual que não necessita ser heteroafetivo), enquanto a
sexualidade do homossexual é expurgada pela “afetividade”, numa espécie de efeito
mata-borrão (RIOS e RODRIGUES DE OLIVEIRA, 2012, p. 260)
Essa lógica assimilacionista, que se traduz em Junior também pelo uso, em seus
discursos, do termo “homoafetivo” para designar o casamento, é predominante na revista,
notadamente quando a pauta se desloca para o reconhecimento do “casamento gay”, algo
evidenciado no terceiro conjunto do nosso corpus (janeiro-junho de 2013).
Concentremo-nos na análise do exemplar 48 (fevereiro de 2013), que traz em
destaque o tema do “casamento” numa seção “Especial”, composta por um ensaio fotográfico
de moda (incluindo uma das duas capas da edição disponibilizadas na venda para os leitores),
duas reportagens e um editorial (“Quer casar? Mesmo?”, Junior, ano 6, n.48, fev 2013, p.6).
Esta edição chegou às bancas após decisão da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São
Paulo, publicada em 18 de dezembro de 2012 e tornada obrigatória a partir de 18 de fevereiro
do ano seguinte, caracterizada pela “atualização do Capítulo do Registro Civil das Normas de
Serviço da Corregedoria”, que incluía na prática as conversões de união civil entre pessoas do
199
219
A Subseção V da Seção VI do Capítulo XVII do Tomo II das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de
Justiça passa a registrar: “Do Casamento ou Conversão da União Estável em Casamento de Pessoas do
Mesmo Sexo - 88. Aplicar-se-á ao casamento ou a conversão de união estável em casamento de pessoas do
mesmo sexo as normas disciplinadas nesta Seção”. No parecer da Corregedoria, observa-se: “A pós-
modernidade enquanto fenômeno em curso e, portanto, de difícil compreensão de seus exatos contornos, sem
dúvida, alçou sua influência no modo de vida dos seres humanos acarretando profundas modificações no
viver e na maneira de compreender o mundo. A finalidade do Registro Civil é justamente retratar os fatos e
negócios jurídicos ligados à condição humana, assim, não há ser humano que esteja excluído de suas
atribuições (…) As uniões estáveis são um fato social relevante, o Censo de 2010, realizado pelo IBGE,
apurou o aumento das uniões estáveis de 28,6% em 2000 para 36,4% em 2010, bem como a diminuição dos
casamentos de 49,2% em 2000 para 42,9% em 2010. (…) Noutra quadra, consoante recentemente tratado no
Supremo Tribunal Federal e entendimento pacífico do Conselho Superior da Magistratura, o casamento e
união estável de pessoas do mesmo sexo foram inseridos nas previsões das NSCGJ”. Disponível em:
<http://www.jusbrasil.com.br/diarios/44385721/djsp-administrativo-18-12-2012-pg-33/pdfView> Acesso em
20 ago 2013.
200
celebração. Tanto pela realização do sonho quanto por terem consciência do que
aquele momento representava para toda a comunidade LGBT. Durante a conversa
com JUNIOR, os dois não seguram as lágrimas ao relembrar que as famílias de
ambos os lados compareceram em peso […] Os dois reconhecem que, para muitos, a
certidão de casamento pode ser apenas um pedaço de papel, mas para eles é muito
mais. É, além da equiparação de direitos, a coroação de uma história de
companheirismo, compreensão mútua e, sobretudo, muito amor (“Vai um bem-
casado aí?, Junior, ano 6, n. 48, fev 2013, p. 46)
(Imagem 18 - “Vai um bem-casado aí?”, Junior, ano 6, n.48, fev 2013, p. 45)
220
Retomaremos esta dimensão editorial na última seção deste capítulo.
221
A janela ou olho, no jargão jornalístico, designa um extrato do texto selecionado e posto em destaque na
página, de modo a ressaltar determinada passagem e, ao mesmo tempo, tornar o design da página mais leve
para leitura.
201
(Imagem 20 - “Já pode casar”, Junior, ano 6, n. 48, fev 2013, p. 84-85).
os modelos com que mais amamos trabalhar nos últimos anos”), que trajam peças de roupas e
acessórios de grifes (informadas nas legendas). Também consideramos relevante destacar o
fato de apenas uma mulher (também modelo) compor as cenas. No fim, o ensaio busca
encarnar uma noção de celebração do casamento que coaduna com a (auto)imagem que a
revista faz de si e projeta aos seus leitores, em que o estilista responsável pela montagem do
figurino “ficou responsável em montar os looks com a nossa cara: jovem, feliz e otimista”.
Se nos exemplos analisados até aqui prevalecem discursos que “celebram” o
casamento, o editorial da mesma edição 48 chama a atenção por constituir-se como um dos
poucos discursos em Junior que põe esta instituição em questionamento. O título propõe ao
leitor: “Quer casar? Mesmo?”.
O texto abre situando o “casamento igualitário” como uma “questão de tempo”,
representando uma “ampliação” dos “direitos de todos”. Na sequência, contudo, os
argumentos que o interrogam, ao situá-lo no plano dos “valores tradicionais”, são
apresentados:
Mas quem diria que justamente os gays seriam defensores dos “valores
tradicionais”? Se o movimento por direitos iguais começou com a luta para garantir
a livre expressão do desejo, hoje ele batalha pelo enquadramento. E trata-se de um
fenômeno mundial […] Pouco tempo atrás, fazia parte do estilo de vida gay ser
solteiro e não ter filhos – o que por muitos eram considerados pontos positivos.
Assim como entre os casais homem-mulher de antigamente, há quase uma pressão
social para que dois namorados formalizem sua relação. Até porque, a Justiça já tem
dado os mesmos direitos de pensão e divisão de bens. Portanto, pense bem com
quem se envolve. De qualquer forma, acredito que é chegada a hora de repensar
casamento e família, ampliando e flexibilizando seus conceitos originais. Sempre
sintonizada com seu tempo, a JUNIOR levanta essa bola nesta edição (“Quer casar?
Mesmo?”, Junior, ano 6, n. 48, p. 6)
nunca é muito nítida, mas pode-se até afirmar que ela se dissolve tão logo ali
olhamos mais de perto. Primeiramente, a reivindicação do casamento “gay” não
exprime simplesmente a aspiração, que seria o sinal de uma abdicação diante dos
modos de vida heterossexuais, de certos homossexuais a entrar na instituição
matrimonial; ela traria também, caso se realizasse, uma mudança profunda na
própria instituição, que não poderia mais ser a mesma que antes, e isto ainda mais
que, se os gays podem hoje reivindicar o direito de a ela ter acesso, é porque já não é
mais o que era. É a dessacralização do casamento que torna possível a própria
reivindicação de que se deva abri-lo aos casais do mesmo sexo. Mas pode-se
igualmente ressaltar que o que parece corresponder a dois modos de vida opostos e
irredutíveis um ao outro (a liberdade sexual, de um lado; o casamento, do outro)
podem ser apenas etapas diferentes na vida dos indivíduos, aqueles que participam
do primeiro durante um período mais ou menos longo, transformando-se com a
idade em adeptos do segundo […] Ou, ao contrário, pessoas instaladas em casal bem
jovens que descobrem, após uma ruptura, as delícias da multiparceria. Sem mesmo
evocar o caso daqueles que vivem em casal durável e nem por isso se sentem de
modo algum forçados a renunciar aos encontros múltiplos. Mas a verdadeira razão
que deveria conduzir a pensar que as duas aspirações não são opostas uma à outra,
mas solidárias uma da outra, é que são produzidas pelas mesmas determinações e os
mesmos “sofrimentos”, e são duas “saídas” inventadas para tentar escapar disso
(ERIBON, 2008, p. 55-56)
tais efeitos em Junior sem um distanciamento maior que vá além do tempo da análise que
fazemos até aqui, podemos destacar a partir da leitura do nosso corpus que, para além do
importante reconhecimento, nas páginas da revista, das conquistas no âmbito jurídico e
institucional, da celebração da existência de casais que optaram pelo “casamento no papel”,
bem como da identificação de algumas brechas neste discurso majoritário, como o caso do
editorial citado anteriormente, constatamos permanecer o desafio de se buscar dar visibilidade
não a um único modelo de casamento, mas também elaborar discursos outros em que se possa
por em debate as possibilidades de reivindicar, uma vez garantidas tais conquistas, relações,
modos de vida e maneiras de ser mais “diversas” e “plurais” do que as dos discursos de
“diversidade” e “pluralidade” que simultaneamente busca enunciar e reivindicar como
imagem para si.
4.3 “Test drive”, “carão” e o “novo pajubá”: explorando a “linguagem jornalística gay”
223
“Com que roupa eu vou?”, Junior, ano 3, n. 15, mar 2010, p. 62-65.
224
“Pega no meu iPhone”, Junior, ano 4, n.25, fev 2011, p. 52-53.
225
“E que consolo!”, Junior, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 48-49.
226
Num dos textos da seção analisados, o repórter descrevia seu trabalho de apuração como “pesquisa de
campo” (“Eles topam?”, Junior, ano 5, n.32, set 2011, p. 51).
206
Selecionamos para análise uma reportagem de Test Drive, tomando-a assim como
referência para problematizar algumas das principais questões sugeridas nas entrevistas pelos
jornalistas quando destacaram essa seção. Na edição de número 32 (ano 5, setembro de 2011),
o “teste” consistia em trazer relatos de repórteres de Junior sobre clubes de swing
frequentados majoritariamente por casais heterossexuais. O título ajuda a delimitar o enfoque:
“Eles topam?”, reforçado pelo subtítulo que informa: “Saiba o que rola nos clubes de swing
hétero – Repórteres entram nos clubes de troca de casais héteros para saber: afinal, gay tem
vez?”.
Antes dos três relatos em primeira pessoa, um parágrafo de apresentação busca
valorizar o teste como inédito, algo reforçado por uma narrativa de cunho “aventuresca”:
O meu desafio era simples: visitar uma casa de swing e ver, na real, se em um
ambiente voltado a casais heterossexuais rola algum tipo de pegação gay, ou até
mesmo se é possível encontrar algum hétero mais solícito a fazer algo de diferente. O
local escolhido foi um badalado clube localizado no bairro nobre de Moema, na
capital paulista, tradicional reduto de casas de sexo voltadas para heterossexuais.
Acompanhado por uma amiga, entramos juntos no local como se fôssemos um casal.
No ar, uma certa apreensão e, ao mesmo tempo, curiosidade em saber o que iríamos
encontrar lá dentro, já que era a primeira vez de ambos. Poucos segundos na pista e
já senti o impacto. Havia me esquecido de como os héteros se comportam dentro dos
227
Gíria para designar “heterossexual”.
207
Minha primeira missão foi observar todos os que estavam por ali para ver se
conseguia captar algum gay no meio daquela multidão. De repente, surgem dois
rapazes bem alegres. A luz acendeu. Minutos depois só ouvi um deles falar: “Nossa,
esse lugar fede a racha228! Que horror!”. Todos, claro, deram risadas. Depois disso,
não os vi novamente para conversar com eles e tentar extrair algum tipo de
informação. Continuei na minha saga acompanhado de perto pela minha amiga.
Como ela é linda, daqueles tipos capazes de seduzir o homem (hétero) que ela
desejar, comecei a aproximar a mão dela do pau dos caras, levando junto a minha
mão, deixando-os ver que eu também estava pegando. Nenhum deles tirou a mão
(“Eles topam?”, Junior, ano 5, n. 32, set 2011, p. 51)
228
A expressão “racha” é utilizada como sinônimo de “mulher”, podendo assumir uma dimensão depreciativa.
229
Não serão explorados aqui as representações da figura feminina encarnada na “amiga” nos relatos, mas
ressalto que ela também é chave na construção das dinâmicas de reiteração de categorias e das posições
estratégicas que elas ocupam nos discursos analisados. Nesta passagem, a figura da mulher (bonita), com sua
capacidade de seduzir homens (“héteros”), é o e meio de arriscar as abordagens eróticas entre o repórter
“gay” e os “héteros”.
208
Depois de algumas voltas sem nada além de umas apertadinhas safadas – os homens
dando umas pegadas na amiga, e as mulheres passando a mão no meu abdômen e
beliscando minha bunda –, voltamos para a pista. Naquele momento começou um
show de gogoboys e gogogirls. Enquanto minha amiga se distraía com a
performance do gostosão no queijo, uma menina bem bonita veio de costas e
começou a encostar a bundinha empinada em mim. Confesso que fui cedendo. Mas
aquilo seria pouco para quem estava numa casa que prega o sexo livre.
Olhei discretamente para trás e notei um boy de beleza média perto de mim. Decidi
arriscar e comecei a aproximar a mão do pau dele. Ele deixou. Passamos pelo menos
alguns minutos naquele entusiasmo. O show rolando no centro da pista, e nós três
fazendo acontecer no meio daquela gente. Até que o show acabou e todos se
dispersaram. Minha amiga se reaproximou e decidimos voltar às cabines (“Eles
topam?”, Junior, ano 5, n. 32, set 2011, p. 51)
No final das contas, o fato é que pegação gay231 parece uma tarefa difícil, quase
impossível, dentro de uma casa de swing. O máximo que você vai conseguir, e isso
dentro dos limites de cada hétero, é aproveitar as oportunidades que surgirem
enquanto tiver uma mulher do lado. Se não tiver, corra para uma sauna ou uma
suruba gay. Se quiser arriscar, chegue cedo e se tranque em alguma das cabines à
espera de boas surpresas no gloryhole (“Eles topam?”, Junior, ano 5, n. 32, set 2011,
p. 51)
230
O gloryhole consiste numa parede com um orifício, destinado a práticas do sexo oral ou do intercurso anal
sem o contato ou visualização dos sujeitos envolvidos.
231
Observo que no contexto deste discurso, “pegação gay” é utilizado pelo repórter como modo de situar as
interações eróticas entre homens.
209
O lugar já estava cheio quando chegamos. De maneira geral o público por ali era
mais maduro do que estou acostumado a ver em clubes gays, mas também tinha uma
garotada. Todo mundo bem arrumado, mulherada no salto e homens no melhor estilo
mauricinho. De cara fomos ao bar para bebericar e observar o movimento. A
estrutura do clube não fica devendo em nada a casas da cena gay e, à primeira vista,
a pista não denunciava que ali estavam casais em busca de aventuras sexuais com
outros parceiros. Mas o clima de sensualidade é evidenciado pelos dançarinos e
pelas fotos provocantes colocadas nas paredes (“Eles topam?”, Junior, ano 5, n. 32,
set 2011, p. 52)
232
Parker, em reflexão sobre o “tesão” como símbolo para o “desejo” e “excitação sexual” no contexto
brasileiro, afirma: “(...) a noção de tesão derruba os limites criados em torno do erótico no mundo da vida
normal, já que o sentido sexual se torna uma metáfora e um modelo para todas as formas de experiência. É
através da noção de tesão, mais que qualquer outra construção particular, que o desejo se investe na excitação
do corpo. Realmente, é o tesão que marca a prontidão física do próprio corpo. Como sacanagem, tesão é ao
mesmo tempo difuso e localizado. É sentido em todo o corpo, mas, ao mesmo tempo, com mais intensidade,
nos órgãos sexuais (…) Antecipando o prazer onde ele é mais explicitamente negado, noções como a de tesão
e de fantasia tornam-se importantes à ideologia da cultura erótica brasileira. Ao mesmo tempo, propõem uma
reinterpretação de todo o conjunto de significados sexuais: do corpo humano e seu potencial sexual, a
variedade e estrutura das possíveis práticas sexuais e assim por diante” (PARKER, 1991, p. 166,167, 171).
210
233
Após descrever como foi seu processo de inserção no grupo que organizava o “swing exclusivo para
homens”, chega-se à seguinte passagem do relato: “No começo fiquei meio confuso porque não sabia muito
bem como agir, como começar a entrar no emaranhado dos corpos, como fazer parte daquele coro de
gemidos que me parecia tão gostoso. Logo um rapaz branco um pouco mais alto do que eu – completamente
nu – já chegou esticando a mão e me levando pelo caminho dos tijolos amarelos” (“Cabe mais um” - “Eles
topam?”, Junior, ano 5, n. 32, set 2011, p. 51). Pressupõe-se do conhecimento do leitor (gay) a referência
camp ao Mágico de Oz (romance do norte-americano L.Frank Baum, adaptado pelo cinema em 1939 e
estrelado pela atriz Judy Garland), em que a personagem Dorothy aventura-se numa jornada de aventuras
com a companhia de personagens como o Homem de Lata e o Espantalho. A estrada de tijolos amarelos é o
caminho que a personagem deve seguir rumo à Cidade das Esmeraldas e ao encontro do Mágico. Novamente
é acionado um tom aventuresco ao relato, algo também confirmado com o encerramento/concretização da
experiência pelo repórter: “É como pular de pára-quedas ou bungee jumping, dá medo no começo, mas
depois que você abre os braços e se joga não quer mais parar, sempre tomando os cuidados necessários para
não se esborrachar com a cara no chão. E não se esqueça de esquecer seu preconceito do lado de fora da
porta” (“Eles topam?”, Junior, ano 5, n. 32, set 2011, p. 51).
234
Há um ponto que é sempre importante ressaltar: reconhecer que noções de “gay” e “hétero” são acionadas e
manobradas nesses discursos, ao mesmo tempo em que é crucial para uma compreensão mais efetiva da
dimensão processual de suas construções na revista e da sua posição no mercado editorial jornalístico como
publicação “gay”, não deve ser tomado por si como indício de deslocamentos ou desestabilizações de
normatividades que se estruturam na relação entre elas (“gay” e “hétero”) ou no interior do universo “gay”
que a revista constrói.
235
Aqui em aspas para indicar que este termo apareceu com certa recorrência nas falas dos colaboradores. Em
linhas gerais, associava-se à descrição dos esforços que eles, jornalistas, faziam para manter o interesse dos
leitores por suas matérias e pela revista. As falas também sugeriam que a ideia de identificação remetia a uma
estratégia de aproximação, de intensificar os vínculos entre eles e os leitores, tornando assim uma relação
menos distanciada ou impessoal, e de reconhecimento entre ambos. É interessante perceber que, assim, ela
seria processual, tendo que ser rearticulada, renegociada a cada nova matéria, a cada nova edição. Sobre a
identificação como conceito, Hall afirma: “Ela não é, nunca, completamente determinada – no sentido de que
se pode, sempre 'ganhá-la' ou 'perdê-la'; no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada.
Embora tenha suas condições determinadas de existência, o que inclui os recursos materiais e simbólicos
exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim e ao cabo, alojada na contingência (…) A identificação é,
211
como esta dinâmica presente nessa edição do Test Drive também aparecia na fala de um dos
jornalistas de Junior:
_Você acha que numa revista que não fosse gay, seria mais complicado de fazer?
[pensativo] É muito complicado te dizer... Não sei se eu toparia fazer em outra
pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. Há sempre
'demasiado' ou 'muito pouco' - uma sobredeterminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma
totalidade. Como todas as práticas de identificação, ela está sujeita ao 'jogo' da différance. Ela obedece à
lógica do mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a identificação opera por meio da différance, ela
envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de 'efeitos
de fronteiras'. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a
constitui” (HALL, 2000, p. 106, grifo nosso). Contextualize-se que essa análise de Hall se dá numa
interrogação da conceituação da “identidade” como conceito que opera “sob rasura”, de suas potencialidades
e limites como eixo analítico. Destaque-se que ele ainda ressalva que a “identificação” é um conceito “tão
ardiloso – embora preferível – quanto o de 'identidade'. Ele não nos dá, certamente, nenhuma garantia contra
as dificuldades conceituais que têm assolado o último” (Ibid., p. 105). Também deve ser salientado o fato de
Hall, em outro lugar (e a partir de uma discussão sobre o “significante 'negro'”), embora reconheça a
importância que um “essencialismo estratégico” (nos termos consagrados por Gayatri Spivak) associado a
uma política “identitária” possa ter tido em determinado “momento”, fundamentalmente nos lembra a
necessidade de interrogar se tal essencialismo “ainda é uma base suficiente para estratégias das novas
intervenções”. Assim, ele alerta que “esse momento essencializa as diferenças em vários sentidos. Ele
enxerga a diferença como “as tradições dele versus as nossas” – não de uma forma posicional, mas
mutuamente excludente, autônoma e auto-suficiente – e é, consequentemente, incapaz de compreender as
estratégias dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica”. Questionar a “essencialização da
diferença” exige deslocamentos para um “novo tipo de posição cultural”, “uma lógica diferente da diferença”
(HALL, 2003, p. 344-345). Para uma abordagem do conceito de “diáspora”, cf. Gilroy (2001).
236
O conceito de “jornalismo literário” torna-se particularmente influente no jornalismo a partir dos anos 1960
e 1970, calcado numa valorização de reportagens especiais, mais extensas, com um tempo mais largo de
apuração e experimentação estilística de escrita. Este movimento também tornou-se conhecido como “Novo
Jornalismo”. Nos Estados Unidos, uma geração de nomes como Truman Capote, Norman Mailer e Tom
Wolfe reivindicavam um novo status para o relato jornalístico. No Brasil, um dos casos mais bem sucedidos
editorialmente foi a revista Realidade, publicada pela Editora Abril nos anos 1970. Como destaca Wolfe: “E,
no entanto, no começo dos anos 60, uma curiosa ideia nova, quente o bastante para inflamar o ego, começou
a se insinuar nos limites da statusfera das reportagens especiais. Essa descoberta, de início modesta, na
verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como
um romance” (2005, p. 19). Ele também aparece no depoimento de outro jornalista de Junior, como
estratégia discursiva de “aproximação” ao leitor: “Em pautas sobre sexo, é recomendado fazer texto doce,
gostoso de ler, criar um cenário. Para não ficar tão chato, pesado. Gosto de me envolver no texto, é gostoso
para se aproximar do leitor”. É interessante notar nessa fala como também a preparação da escrita da matéria
é descrita num jogo de sedução erótica para com o leitor. Ele informa ainda que busca um equilíbrio entre o
texto informativo e algo “mais literário”, “próximo do leitor”: “Por isso escolhi trabalhar em revista. E de
forma que não fique num padrão 'Veja'”. Entendemos que na seção Test Drive, especificamente, ela funciona
tanto para ancorar uma ideia de jornalismo (a experiência relatada foi vivida pelo repórter, sendo do domínio
“jornalistico” do “real”), como para ampliar as possibilidades de narrativa, aproximando-a do “literário” (de
ser “brincada” no texto).
212
Bem, [o abre] está mostrando elementos do texto que estão na nossa fala. Por
exemplo, está escrito “hotel” e entre parênteses, “motel”. Vai ficar implícito se é um
motel ou hotel. Ou “a presa”, entre parenteses. Palavras que estão no senso da
comunidade gay estão explícitas ali. E ele ainda tem um apelo erótico, mas não
pornográfico. São as linguagens que identifique, que o gay se identifica, né?
uma audiência que em parte cobra maior visibilidade ao nu (desde que “erótico” ou “sensual”,
“artístico”, “de bom gosto”...) e outra que a rejeita em nome de um peso maior ao
“jornalismo”, a uma cobertura “mais política”, “séria”, “ativista” etc. Não vamos nos deter
novamente nessa questão, nem sugerir que ela se dê necessariamente nos mesmos moldes em
Sui Generis e Junior (ainda que o “risco” de ser visto como “pornográfica” siga influente no
domínio de uma “imprensa gay” contemporânea). Concentremo-nos agora, porém, e ainda
partindo daquela passagem da entrevista, no fato de se enunciar que o processo de
identificação entre o(s) jornalista(s) e o(s) leitor(es) é mediado por uma noção situada pelo
jornalista como “linguagens”.
Um risco que uma análise da fala do jornalista poderia sugerir é a de
interrogarmos em que medida tais “linguagens” (ainda a partir de seu relato, algo a abranger
da escolha de determinados vocábulos a um “ritmo de leitura”) efetivamente seriam passíveis
de verificação nos discursos veiculados em Junior (e, mais ampla e hipoteticamente, numa
“imprensa gay”). Haveria, aqui, uma dupla armadilha: primeiramente, a de tomar o uso de
determinadas “marcas” no texto como reflexo, seja de um modo “inato” (elaborando um
raciocínio na linha “gays falam assim”, por exemplo), seja de uma “comunidade” (“o texto é
assim ou usa certas expressões porque reflete o que está na ‘comunidade gay’”); segundo, de
essencializar o referente gay na equação “jornalismo gay”, quando os discursos de nossos
colaboradores sugerem que, ainda que possa estratégica e situacionalmente servir como
referente “identitário”, opera como mediador de uma série de práticas e estratégias na
construção desse “jornalismo”, de como os jornalistas se identificam e de como projetam os
leitores.
Em relação à primeira armadilha, Cameron e Kulick (2003) lembram que um dos
principais problemas no estudo da linguagem ou dos discursos articulados ao campo da
sexualidade é que a relação entre estes domínios é mal representada: tende a conceber
“desejos sexuais, práticas e identidades como realidades fixas que sempre existiram, apenas
esperando as condições socioculturais que permitiriam a eles serem expressadas abertamente
por palavras” (p. 18). Mesmo quando se considera os termos como socialmente construídos,
sugere-se que eles somente fazem-se no discurso jornalístico por reproduzir o que estaria no
social (na fala de outro jornalista de Junior, estaria na “sociabilidade” [gay]). Devemos,
contudo, reiterar que estes discursos (parafraseando uma vez mais a conceituação de De
Lauretis [1987]) se elaboram num espaço de práticas em que o jornalismo é um dispositivo
em que a representação do marcador como “gay” numa revista como Junior seria também sua
215
construção; e que esta, por seu turno, se faria ainda por sua desconstrução237.
Observemos dois textos, publicados nas edições n.1 (“Batalha de Carão”) e n.29
(“Cuen the pajubá”). No primeiro (Junior, ano 1, n.1, set 2007, p. 70), a pauta busca
“fundamentar a expressão usada em larga escala pela humanidade festiva: o bom e velho
carão” (p. 70). O texto inicia-se do seguinte modo:
Que atire a primeira máscara de lama negra quem nunca fez um carão na vida,
mesmo que involuntário. Ainda assim, é muito comum ouvir as pessoas elogiarem
um lugar ou uma festa por que “ali não tem carão”. Oras, isso não é elogio, é uma
ofensa às pessoas que tem o mínimo de crítica em suas vidinhas e algum nível de
xoxômetro e ironia.
Se você ainda não sabe o que é carão, veja essa definição da “Aurélia, A Dicionária
da Língua Afiada”. Carão – S.m.aum. Pose; esnobação; presunção. Bom, agora que
nós falamos a mesma língua, vamos voltar ao tempo. Cleópatra, que amava
maquiagens, se montou toda para fazer o maior carão da antiguidade para os
romanos. Dizem os historiadores que a entrada dela em Roma foi um lash. Com
certeza a mais famosa rainha do Egito foi a grande divulgadora do carão em seu
tempo, uma espécie de Kate Moss da época.
Claro que ela não inventou o carão, mas com certeza fez caras e bocas quando entrou
em Roma e nisso Liz Taylor fez uma interpretação luxuosa e fidedigna no filme
“Cleópatra (1963, direção de Joseph L. Mankiewicz). Não é à toa que fazer o carão e
fazer a egípcia são sinônimos. Aliás, aquilo (a civilização egípcia) deveria ser uma
pós-graduação do carão? Vocês já repararam nos hieróglifos (a antiga escrita do
povo egípcio?) (“Batalha de Carão”, Junior, ano 1, n. 1, set 2007, p. 70)
237
É interessante perceber que muitas vezes esse processo de construção, por mais que seja sugerido nas falas
dos jornalistas, tende a ser relativizado numa ideia de que refletem ou traduzem o mundo. Ao entrevistar uma
das editoras de Sui Generis, perguntei se ela tinha claro, na época, se estava participando ativamente da
construção do que viria a ser situado como “cultura gay” ou “cultura GLS” no Brasil dos anos 1990. Ela me
respondeu: “Construir? Olha, eu acho que nenhum jornalista tem esse poder de construir um mundo, não. A
gente mostrava o que estava acontecendo. Você pode considerar até que a gente ampliava”. Entendemos que
isto se dá dentro de uma dinâmica de evocação de valores atribuídos pelos jornalistas ao seu exercício
profissional: “transparência”, “equilíbrio”, “objetividade” nos relatos etc.
216
daí, uma seção lista, ainda sob a forma de dicionário, “verbetes” para “entendê-lo”238,
enquanto outra estabelece seus “10 mandamentos”239.
Em “Cuen the pajubá”240 (Junior, ano 4, n. 29, junho de 2011, p. 78), também
prevalece uma lógica de a revista anunciar-se veículo de “atualização”, para o leitor, de
novidades nas “rodinhas gays”: “Atualize seu vocabulário com as novas gírias faladas nas
cinco regiões do país!”, é o que enfatiza o subtítulo. Partindo da constatação de que “a língua
portuguesa é mutante e fica cada dia mais rica, ainda mais quando os gays decidem incorporar
a ela gírias próprias para designar de tudo um pouco”, informa-se que o repórter “conversou
com vários leitores de cinco capitais brasileiras para saber qual é o trocadilho do momento, a
frase mais falada por todo mundo”. Assim, “o Nordeste, com sua riqueza fonética, sai na
frente com uma lista vinda de Recife que mistura a cultura popular local com o pajubá dos
bons”. Complementa-se com “o quê o povo anda dizendo de mais legal no Rio de Janeiro,
São Paulo, Campo Grande e Porto Alegre” (Junior, ano 4, n. 29, jun 2011, p.78)241.
Convém lembrar que no primeiro caso, a matéria, mais extensa (quatro páginas,
incluindo ensaio fotográfico) foi publicada na primeira edição de Junior. Ainda que cada
publicação chegue ao mercado apresentando-se ao leitor a partir de determinado perfil
editorial, a primeira edição também é marcada por certa experimentação: algumas seções
podem ceder espaço a outras, podem-se fazer ajustes de acordo com o retorno dos leitores nas
238
Além de “fazer carão”, incluem-se as expressões “fazer a egípcia” (“virar a cara de perfil (como as figuras
egípcias”), a fim de menosprezar ou ignorar alguém”), lash (“do inglês”, “ato de jogar o picumã, fazer a
egípcia, virar a cara, dar rabissaca, sempre com a intenção de tombar alguém”) e “jogar o picumã (“virar a
cabeça, mudando os cabelos de lado tal como as loiras fazem”) (“Batalha de carão”, Junior, ano 1, n.1. Set
2004, p. 71).
239
Entre os dez, listam-se “ande sempre com o nariz empinado”, “passe sempre reto e nunca olhe para os lados”
e “um bom carão é feito de atitude, mas um bom make sempre ajuda” (“Batalha de carão”, Junior, ano 1, n.1.
Set 2004, p. 72).
240
A expressão “cuen” é uma abreviação de “aquenda”, significando “preste atenção”, “olhe”, “se ligue” ou
“pegue”. “Pajubá” (também conhecido por bajubá), remete a incorporação de expressões oriundas do léxico
nagô-yourubá. Fortemente identificada às vivências de travestis no candomblé, alguns dos termos atualmente
circulam em outros contextos gays de classe média.
241
A partir das cidades escolhidas, são listados termos, acompanhados de breves definições. Em Recife, por
exemplo, incluem-se “culeteira” (“gay cheio de culete, cheio de frescura, detalhista ao extremo”), “frango”
(“o mesmo que bicha, viado”), “saboeira” (“lésbica”) e “cafuçú” (“homem sem cultura, sem estilo, sem
educação, sem nível, mal vestido, sujo, mal tratado, mas que exala masculinidade e arrasa na cama”); em São
Paulo, “baunilhinha” (“fraco para a bebida”), “maluca” (“que não faz carão no clube”), “boy RM” (“usada
para designar moços da região metropolitana de São Paulo”) e “boy magia” (“lindo, cheiroso, gostoso”); em
Campo Grande, “chipa” (“bicha fácil, todo mundo come – chipa é um tipo de pão de queijo popular no
Estado”) e “piquê” (“pênis”); Porto Alegre, “fazer meia” (“”ação do enrustido”), “eu, se rica” (“ao ver uma
celebridade ou alguém muito estiloso”); e Rio de Janeiro, com expressões como “ele fez a Shakira” (“ele fez
aloka”) e “puxaaaaado” (“quando algo é difícil de fazer ou alguém é difícil de aturar - estica o xaaaaa para
alongar a palavra dando um sentido de difícil/cansativo”) (“Cuen the pajubá”, Junior, ano 4, n.29, jun 2011,
p. 78).
217
242
Essa dimensão processual da construção da linha editorial em Junior é externada aos leitores em diversos
momentos. No editorial da décima edição, por exemplo, registra-se: “Chegamos ao número 10 e tivemos um
encorajador aumento nas vendas em bancas e esses já são bons motivos para comemorar (…) Você que
acompanha a JUNIOR desde o começo vai ver que dessa vez nos sentimos à vontade para fazer uma revista
mais sensual, sem deixar de lado a profundidade e engajamento de matérias que vem ficando mais fortes a
cada número” (“Dez, nota dez”, Preliminares, Junior, ano 2, n.10, 2009, p. 12); O editorial da edição 32, por
seu turno, sugere a adoção da revista de uma “nova fórmula”: “Com essa edição, chegamos ao quarto
aniversário da JUNIOR. Hora de mudar e consolidar alguns ajustes no projeto editorial – processo que já
havia começado nos últimos meses atendendo às demandas dos leitores. Foram criadas novas seções para
abrigar mais conteúdo e mais imagens, e adotado um lay out mais moderno, que inclui mudança de fonte
(tipo de letra) para tornar a leitura mais clara e simples (“Nova fórmula”, Preliminares, ano 5, n. 32, set 2011,
p. 8).
218
lugar seguro que seria o domínio do exótico, externo ou do outro. Quando muito, algo que o
leitor pode mostrar ter conhecimento, ficando ainda restrito a seções “especiais” da revista (a
reportagem do carão saiu na seção “Noite”, a das gírias, sob a rubrica “Especial”). Em outras
palavras, o potencial de investir em modos menos convencionais de elaboração do texto
jornalístico, ao mesmo tempo em que é reconhecido pelos colaboradores de Junior como uma
possibilidade advinda de se estar numa “revista gay”, e dos esforços de seus profissionais em
explorar tais possibilidades, precisa também ser pensando num projeto editorial de uma
revista que se preza “sofisticada” e para uma audiência (gay, masculina, com alto poder
aquisitivo) que ela tenta seduzir e que ao mesmo tempo, reinventar valorizando determinados
modos de ser “gay”.
Também queremos destacar que, ao ouvirmos os depoimentos dos demais
jornalistas que trabalham em Junior, ficou mais evidente, como já tinha sido percebido nas
falas dos jornalistas de Sui Generis no capitulo anterior, como eles operam estrategicamente
noções que simultaneamente valorizam a especificidade de trabalhar numa “revista gay” mas
que, em certos contextos, pode assumir um discurso de que fazem, no fim das contas,
“jornalismo” ou, como disse um dos colaboradores, “uma rotina normal como qualquer
jornalismo”. Citando o “conselho” de uma editora de uma revista em que trabalhara
anteriormente, o mesmo jornalista que sugeriu a noção de “abre gay” declarou que “aprendi
que não existe jornalismo cultural, jornalismo de hard news243, jornalismo gay... Existe bom e
mau jornalismo”. Já outro jornalista afirmou: “Eu não vejo muita diferença entre revista
hétero e revista gay. É jornalismo. A diferença é que nossa temática é essa. E não ter o padrão
da grande mídia de reproduzir preconceitos. Isso é o que diferencia a mídia LGBT de
qualquer outra mídia, de não reproduzir padrões de opressão”.
Entendemos, assim, que estas não são dimensões excludentes, mas se
complementam para a construção operacional e conceitual de uma noção de “jornalismo gay”
e de “jornalismo” por seus repórteres. São nessas negociações entre fazer “jornalismo e “fazer
jornalismo (numa revista) gay”, entre explorar outras possibilidades de enunciação e reiterar
normativamente discursos consagrados no jornalismo e no universo “gay”, entre padrões e
cobranças, tentativas de fugas e deslocamentos, que essa posição editorial “gay” é
(re)inventada a cada exemplar que chega às bancas de revista.
243
As hard news consistem nas “notícias quentes”, mais imediatas, atuais.
219
CONSIDERAÇÕES FINAIS
244
Entrevista ao autor em 27 jun 2013.
245
É o caso de Ambear, distribuída em formato pdf e atualmente fora de circulação. Alguns de seus exemplares
estão disponíveis para leitura em <http://issuu.com/ambear>.
223
Gilberto Scofield Jr iniciou sua entrevista para esta pesquisa. Ele pôs o estabelecimento de um
“jornalismo gay” no Brasil a partir da seguinte perspectiva:
A questão do jornalismo gay, é algo engraçado, ela se dá aos soluços. Você tem
ondas de jornalismo gay. A grande primeira onda, podemos dizer, foi o Lampião [da
Esquina]. Depois, você tem uns anos em que não tem nenhuma produção
jornalística. Depois, renasce sob a forma de um ou outro fanzine, ainda na década de
[19]80. Porque essa coisa do jornalismo gay tende a se confundida com uma certa
militância. E não poderia ser diferente, pois se trata de dar visibilidade à coisa, né?
Ele é um jornalismo cuja primeira função é tornar visível a questão, tornar visível
a causa e tornar visíveis as pessoas. Que, afinal de contas, dão a cara àquilo que se
chama de... militância? Vivência gay? Porque, no fundo, no fundo, a gente tem
muito pouco exemplo, especialmente no Brasil, poucos são os exemplos no sentido
de dar a cara. Qual a cara do gay brasileiro ao longo dos anos? Então, a ideia desse
jornalismo, a gente percebe sempre que é um pouco de mostrar as varias facetas,
porque não tem uma única cara gay. A questão do jornalismo gay, então, acontece
246.
aos soluços
O que se explorou aqui, quando nos debruçamos numa análise dos discursos
veiculados nos periódicos selecionados, quando os cruzamos com outros discursos proferidos
por seus jornalistas e colaboradores nas entrevistas, nas centenas de cartas de leitores
publicadas nos jornais e revistas, são também... soluços. Pois gosto de pensar que soluços
aparecem para irromper, não sem incômodo, silêncios. As páginas não deixam de contar
estórias sobre veículos e sobre sujeitos que reivindicaram, entre reiterações de normatividades
e deslocamentos, entre (re)apropriações e (re)invenções de categorias e modos de
identificações, mas também das possibilidades de excedê-las ou questioná-las, esforços de
“dar a cara” e insistir em lembrar que somos “visíveis”.
O Snob, Gente Gay, Lampião da Esquina e, com mais ênfase, Sui Generis e
Junior foram nossos “terrenos” de pesquisa, mas muitos outros “soluços” devem ser
explorados. Alguns resistem em ecoar, mesmo em cenários tão adversos e a estigmas que
permanecem, quando já puderam ser, num passado não muito distante, ouvidos alto por uma
centena de milhar – é o caso de G Magazine, bastante influente no final dos anos 1990 e início
dos anos 2000, ainda hoje nas bancas. Outros tantos, jornais caseiros que se esforçavam para
ter um perfil mais “profissional”, foram soluços ouvidos apenas por dezenas ou centenas, mas
permanecem como registros de sujeitos que quiseram e querem falar, serem ouvidos. Que
nossa “amostra” de análise seja menos um registro de rodapé de suas existências do que o
reconhecimento dos nossos limites de apreendê-los “cientificamente” em todas as suas
singularidades e diversidades e, principalmente, um desafio que instigue futuras pesquisas.
Esperamos que, na investigação dos dilemas encontrados na produção dos
246
Entrevista ao autor em 10 mai 2011.
224
REFERÊNCIAS
ALTMAN, Dennis. The end of the homossexual? In: NARDI, Peter M. E SCHNEIDER,
Beth E (eds). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Londres: Routledge,
1998.
AZEVEDO, Flávia Amaral de Oliveira. Uma leitura queer da revista Junior. 2010. 58p.
Monografia (Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Sociologia, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2010.
BAIM, Tracy (ed). Gay press, gay power: the growth of LGBT community newspapers in
America. Chicago: Prairie Avenue Productions, 2012.
BARBER, Karin. The anthropology of texts, persons and publics. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: jorge Zahar Ed., 1997.
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. Nova York:
Routledge, 1990.
______. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del “sexo”.
Buenos Aires: Paidós, 2010.
226
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011.
______; MARCUS, George E. (eds). Writing culture: the poetics and politics of
ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
COMAN, Mihai. Pour une anthropologie des médias. Grenoble: PUG, 2003.
DANK, Barry M. Coming out in the gay world. In: NARDI, Peter M. E SCHNEIDER, Beth
E (eds). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Londres: Routledge, 1998.
DIAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Nas redes do sexo: os bastidores do pornô brasileiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.
ERIBON, Didier. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2008.
FISCHER, André. Como o mundo virou gay?: crônicas sobre a nova ordem sexual. São
Paulo: Ediouro, 2008.
FONTCUBERTA, Mar de. La noticia: pistas para percibir el mundo. Barcelona: Paidós,
1993.
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
______. O triunfo social do prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault. In:
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004.
FRANÇA, Isadora Lins. Cercas e pontes: o movimento LGBT e o mercado GLS na cidade
de São Paulo. 2006, 257 p. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Departamento
de Antropologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1982.
GALLAS, Ana Kelma Cunha; OLIVEIRA, Yakowenko Guerra de. Publicações destinadas
aos homossexuais no Brasil: O Snob (1963-1969) e Lampião da Esquina (1978-1981). In:
CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 35., 2012, Fortaleza.
Anais eletrônicos... Disponível em: <http://www.intercom.org.br/sis/2012/resumos/R7-1516-
1.pdf >. Acesso em 05 fev. 2013.
GARCIA, Joanthan; PARKER, Richard. From global discourses to local action: the making of
a sexual rights movement?. Horizontes Antropológicos, ano 12, n. 26, p.13-41, Porto Alegre,
jul/dez 2006.
228
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures: selected essays by Clifford Geertz. Nova
York: Basic Books, 2003.
GENTE GAY, Camilly, a elegante dama do protesto. Rio de Janeiro, ano 2, n. 15,
out/nov/dez 1978, p. 2.
GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34,
2001.
GOULD, Deborah B. Moving politics: emotion and ACT UP's fight against AIDS. Chicago:
Univesity of Chicago Press, 2009.
GUNTER, Scott. The elastic closet: a history of homosexuality in France, 1942 – present.
Nova York: Palgrave Macmillan, 2009.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
______. Que “negro” é esse na cultura negra? In: HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e
mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
HALPERIN, David. One hundred years of homosexuality. Nova York: Routledge, 1990.
229
HARAWAY, Donna. “Género” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.
In: CRESPO, Ana Isabel, MONTEIRO-FERREIRA, Ana; COUTO, Anabela; CRUZ, Isabel;
JOAQUIM, Teresa. Variações sobre sexo e género. Lisboa: Livros Horizonte, 2008.
IRVINE, Janice M. A place in the rainbow: theorizing lesbian and gay culture. In: NARDI,
Peter M. E SCHNEIDER, Beth E (eds). Social perspectives in lesbian and gay studies: a
reader. Londres: Routledge, 1998.
JAMES, Allison; HOCKEY, Jenny; DAWSON, Andrew (orgs). After writing culture:
epistemology and praxis in contemporary anthropology. Londres: Routledge, 1997.
JUNIOR, A bela que enfrenta as feras, São Paulo, ano 4, n. 27, abr 2011, p. 42-43.
______. A revolução de Cabral, São Paulo, ano 4, n.29, jun 2011, p. 52-55.
______. Agache por um bumbum durinho, São Paulo, ano 5, n.33, out 2011, p. 188.
______. Alimentos e suplementos que secam a barriga, São Paulo, ano 4, n. 31, p. 78.
______. Brasil de todas as belezas, São Paulo, ano 6, n. 49, mar 2013, p. 36.
______. Casa, comida e roupa lavada, São Paulo, ano 1, n. 2, nov 2007, p. 32-37.
______. Casamento gay – Notícias frescas da união igualitária, São Paulo, ano 5, n. 33, out
2011, p. 15.
______. Com que roupa eu vou?, São Paulo, ano 3, n. 15, mar 2010, p. 62-65.
______. Cuen the pajubá, São Paulo, ano 4, n. 29, junho de 2011, p. 78.
______. De cair o queixo, São Paulo, ano 6, n. 49, mar 2013, p.27.
______. Dez, nota dez, Preliminares, São Paulo, ano 2, n.10, 2009, p. 12.
______. E agora que podemos, vamos nos casar?, São Paulo, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 54-
57.
______. Eles se casaram, São Paulo, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 16.
______. Eles topam?, São Paulo, ano 5, n.32, set 2011, p. 51.
______. E que consolo!, São Paulo, ano 4, n. 30, jul 2011, p. 48-49.
______. França ou Irã?, Preliminares, São Paulo, ano 6, n. 51, mai 2013, p.6.
______. Já pode casar, São Paulo, ano 6, n. 48, fev 2013, p. 75-85.
______. Lá vem os noivos, São Paulo, ano 6, n. 48, fev 2013, p. 48.
______. Nova fórmula, Preliminares, São Paulo, ano 5, n. 32, set 2011, p. 8.
______. Pega no meu iPhone, São Paulo, ano 4, n.25, fev 2011, p. 52-53.
______. Quase um mea culpa. Ou não. Preliminares, São Paulo, ano 6, n. 49, p. 6.
______. Quem é você, São Paulo, ano 4, n. 26, mar 2011,. p. 40-41.
_______. Quer casar? Mesmo?, São Paulo, ano 6, n.48, fev 2013, p.6.
______. Sonhos, pesadelos e realidade, São Paulo, ano 4, n. 30, jul 2011, p.8.
______. Truques de maquiagens para boys, São Paulo, ano 5, n.33, p. 190.
______. Um passo à frente, um passo atrás, São Paulo, ano 4, n. 29, jun 2011, p. 6.
______. Vai um bem-casado aí?, São Paulo, ano 6, n. 48, fev 2013, p. 46.
KATZ, Jonathan. The invention of heterosexuality. Socialist Review, n.31, p. 7-34, 1990.
______. As palavras: para que temê-las? Rio de Janeiro, ano 1, n. 3, jul-ago 1978, p. 5.
______. Cartas na Mesa, Rio de Janeiro, ano 1, n.3, jul-ago 1978, p. 15.
______. Demissão, processo, perseguições. Mas qual é o crime de Celso Curi?, Rio de
Janeiro, ano 1, n. zero, abr 1978, p. 6-7.
______. Estão querendo convergir. Para onde?, Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, jun-jul 1978, p.
9.
______. Extra, mulheres chegam para ficar, Rio de Janeiro, ano 1, n. 11, abr 1979, p. 2.
______. História da imprensa baiana, Rio de Janeiro, ano 1, número 4, ago-set 1978, p. 4.
______. Lésbicas vendem mais jornal?, Rio de Janeiro, ano 1, n.10, mar 1979, p. 2.
______. Mulheres do mundo inteiro, Rio de Janeiro, ano 1, n. zero, abr 1978, p. 5.
______. Nós também estamos fazendo história. Rio de Janeiro, ano 1, n. 9, fev 1979, p. 15.
______. O que pensa a sociedade civil sobre o assunto. Rio de Janeiro, ano 1, n.9, fev1979.
______. O que vem a ser bixórdia?, Rio de Janeiro, ano 1, n. 5, outubro 1978, p. 12.
______. Qual é a da nossa imprensa, Rio de Janeiro, ano 1, n. zero, abr 1978, p.5.
______. Quem tem medo das minorias?, Rio de Janeiro, ano 1, n. 10, mar 1979, p. 10.
______. Sobre tigres de papel, Rio de Janeiro, ano 1, n.4, ago-set 1978, p.9.
______. Sugestões para o pesadelo da madrugada, Rio de Janeiro, ano 1, n. 11, abr1979, p.
20.
______. Travestis! Quem atira a primeira pedra?, Rio de Janeiro, ano 1, n.4, ago-set 1978,
p. 8.
LEVINE, Martin P. Gay Ghetto. In: NARDI, Peter M. E SCHNEIDER, Beth E (eds). Social
perspectives in lesbian and gay studies: a reader. Londres: Routledge, 1998.
LEZNOFF, Maurice e WESTLEY, William A. The homosexual community. In: NARDI, Peter
M. E SCHNEIDER, Beth E (eds). Social perspectives in lesbian and gay studies: a reader.
Londres: Routledge, 1998.
LIB, Fred; VIP, Angelo. Aurélia: a dicionária da língua afiada. São Paulo: Editora do Bispo,
2006.
______. Em defesa do gueto. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v.2, 1, p. 53-60, abr 1983.
MARCUS, George E. O que vem (logo) depois do “pós”: o caso da etnografia. Revista de
Antropologia (USP), São Paulo, v. 37, p.7-34, 1994.
234
MARQUES DE MELO, José. Jornalismo brasileiro. Porto Alegre: Ed. Sulina, 2003a.
MENDONÇA, Carlos Camargo. E o verbo se fez homem: corpo e mídia. São Paulo:
Intermeios, 2013.
PAIVA, Antônio Cristian Saraiva. Seres que não importam? Sobre homossexuais velhos.
Bagoas, v.3, n. 4, Natal, 2009.
______. A história natural do jornal. In: BERGER, Christa; MAROCCO, Beatriz (orgs). A
era glacial do jornalismo: teorias sociais da imprensa, volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2008.
______. Notícia e o poder da imprensa. In: BERGER, Christa; MAROCCO, Beatriz (orgs). A
era glacial do jornalismo: teorias sociais da imprensa, volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2008.
______. Foreign language press and social progress. In: On social control and collective
behavior. Chicago: The University of Chicago Press, 1967.
______. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Best Seller, 1991.
PÉRET, Flávia. Imprensa gay no Brasil: entre a militância e o consumo. São Paulo:
Publifolha, 2011.
PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2008.
PETERSON, Mark Allen. Anthropology & mass communication: media and myth in the
new millennium. Nova York: Berghahn Books, 2005.
QUIROGA, José. Tropics of desire: interventions from queer Latino America. Nova York:
NY University Press, 2000.
236
RIOS, Roger Raupp; OLIVEIRA, Rosa Maria Rodrigues de. Direitos sexuais e
heterossexismo: identidades sexuais e discursos judiciais no Brasil. In: MISKOLCI, Richard;
PELÚCIO, Larissa (orgs.). Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São
Paulo: Annablume; Fapesp, 2012.
ROCHA, Maria Eduarda da Mota. Em busca de um ponto cego: notas sobre a sociologia da
cultura no Brasil e a diluição da mídia como objeto sociológico. Revista Sociedade e Estado,
vol. 26, n. 3, Brasília, set/dez 2011.
RUBIN, Gayle S. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In:
NARDI, Peter M. E SCHNEIDER, Beth E (eds). Social perspectives in lesbian and gay
studies: a reader. Londres: Routledge, 1998.
SCOTT, Joan. Género: uma categoria útil de análise histórica. In: CRESPO, Ana Isabel,
MONTEIRO-FERREIRA, Ana; COUTO, Anabela; CRUZ, Isabel; JOAQUIM, Teresa.
Variações sobre sexo e género. Lisboa: Livros Horizonte, 2008.
______. Between men: English literature and male homosocial desire. Nova York: Columbia
University Press, 1985.
SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o sonho: história oral de vida política e
homossexualidade no Brasil contemporâneo. Dissertação (mestrado) História Social (USP).
São Paulo, 1998.
SOUSA, Jorge Pedro de. Elementos de jornalismo impresso. Florianópolis: Ed. Letras
contemporâneas. 2005.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
STREITMATTER, Rodger. Unspeakable: the rise of the gay and lesbian press in America.
Winchester: Faber and Faber, 1995.
SUI GENERIS, Abuso policial, Rio de Janeiro, ano 5, n. 43, 1999, p. 40-45.
______. Chega de cara feia, Rio de Janeiro, ano 1, n.8, dez 1995, p.3.
______. Invasão de Privacidade, a televisão devassa sua intimidade, Rio de Janeiro, ano 4,
n. 41, 1998.
______. Machões de batom, Rio de Janeiro, ano 1, n.7, nov 1995, p 10.
______. Os efeminados dão a cara aos tapas, Rio de Janeiro, ano 5, n. 44, 1999, p. 49.
______. Quem tem medo do Uálber – Por que o guru esotérico de Suave Veneno apavora
tanta gente?”, Rio de Janeiro, ano 5, n. 44, 1999.
______. Renato Gaúcho: o craque fala de sexo, mulheres, homossexualismo e dinheiro, Rio
de Janeiro, ano 2, n. 10, março 1996).
______. Saint Cassia's Blues, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, jan 1995, p. 68.
______. Sílvio de Abreu esclarece quem matou Leila e Rafaela, Rio de Janeiro, ano 5, n.
44, 1999.
______. To Wong Foo do cangaço, Rio de Janeiro, ano 2, n.13, jun 1996.
______. Uma imagem ridícula dos gays, Rio de Janeiro, ano 5, n. 44, 1999, p. 48.
______. Vieira – a lésbica de Catarina Abdala em A Indomada, Rio de Janeiro, ano 3, n. 23,
mai 1997.
______. Você decide – Elas arrasaram como lésbicas na Globo, Rio de Janeiro, ano 4, n. 30,
1998.
TUCHMAN, Gaye. Making news: a study in the construction of reality. Nova York: Free
Press, 1978.
______. Entrevista. Revista Universidade Pública, ano 11, n.61, mai/jun 2011, p. 7-11.
VAN DIJK, Teun A. Discurso, notícia e ideologia: estudos na análise crítica do discurso.
Porto: Campo das letras, 2005.
VESCESLAU, Pedro. O (super) mercado gay. São Paulo, Revista Imprensa, n. 237, 2007.
VIANNA, Adriana. Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre a construção
dos direitos sexuais. In: MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa (orgs.). Discursos fora da
ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2012.
WEBER, Max. Sociologia da imprensa: um programa de pesquisa. In: Lua Nova. Revista de
Cultura e Política, n. 55-56. São Paulo: Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 2002,
p. 185-194.
WOLFE, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
ZELIZER, Barbie. Taking journalism seriously: news and the academy. Londres: Sage,
2004.
241
ANEXOS
242
30 1998 - Maurício Branco - “Eu Mocinho com pinta de bad boy 44-47
não sou gay”
30 1998 Moda Moda – Look rural urbano Destino Oeste 28-33
31 1998 Capa Ao ataque! Torez Bandeira Narciso em evolução 26-33
é uma das beldades que de
caçador viram caça no
carnaval
31 1998 - Marcello Antony – o belo O belo e o travesti 40-43
também pode ser mau
31 1998 - Guilherme Karam vai Entre a cruz e o babadão 44-46
vestir santas de Versace
31 1998 - Ed Motta - “Você acha que Malabarismo radical e dançante 24-25
sou algum boçal”
31 1998 - Gontijo – O furacão de Em busca de experiências 22-23
Algo em Comum
31 1998 Moda Moda – Meninos calientes Fantasia de verão 34-39
34 1998 Capa Robson Caetano – Campeão Um gentleman corre atrás do 28-31
olímpico com os genes do sucesso
futuro
34 1998 - Alexandre Pires Pagode com cara fashion 53-55
34 1998 - Tony Garrido Orfeu do ano 2000 47-49
34 1998 - Lui Mendes Os passos do Lui 50-52
34 1998 - Luiz Melodia Rebelde sedutor 44-46
40 1998 Capa Família gay – A barreira da procriação 28-33
inseminação, adoção e
sexo tradicional rompem
as barreiras da procriação
40 1998 - Marta Suplicy – Sucesso E a parceria, três milhões de votos 24-25
político vai afastar depois?
deputada das minorias?
40 1998 - Nelson Motta – Gay Um romântico em Nova York 26-27
brasileiro não quer poder
40 1998 - Baby do Brasil – O lance é Baby para o Brasil 40-42
ser masculino e feminino
41 1998 Capa Invasão de privacidade – A A invasão do bizarro 26-33
televisão devassa sua
intimidade
41 1998 - Carlinhos Brown – Cantor Omelete inter-racial 22-25
fala de strip na Bahia
41 1998 - Luciana de Moraes – a Uma artista de negócios 40-41
filha do poeta
41 1998 Moda Moda – sungas e ereção Puro duro absurdo 34-39
41 1998 - Fernando Alves Pinto Um estrangeiro familiar 44-46
43 1999 Capa Abuso policial – Gays Flagrantes na madrugada 41-45
denunciam casos de
247
tortura, humilhação e
extorsão praticados por
policiais
43 1999 - Pedro Paulo Rangel – o Xô monotonia – Pedro Paulo 30-32
chato é ser galã Rangel, um especialista em
personagens de exceção
43 1999 - Carmen Miranda – Tia faz Viva Carmen Miranda! 46-47
90 anos
43 1999 Vortex Tom Cruise em nu frontal, Loucos, devassos e nus 8
será?
43 1999 - Backing vocal – a voz é Uma dupla do barulho 27-29
boa, mas o corpo é tudo!
43 1999 - Moda – O que vestem os Coleção outono/inverno 99 34-49
homens do inverno
44 1999 Capa Dia dos namorados – Depois daquele beijo 42-43
Amar é dar beijo na boca
44 1999 - Quem tem medo do Quem tem medo do Uálber? 44-49
Uálber – Por que o guru
esotérico de Suave Veneno
apavora tanta gente?
44 1999 - Scarlet Moon - “Vi a Histórias escaldantes 23-25
misoginia dos gays”
44 1999 - Sílvio de Abreu esclarece A imprensa matou Leila e Rafaela 46
quem matou Leila e
Rafaela
44 1999 - Walmes Rangel – Atleta Coragem para romper barreiras 26-28
olímpico, tá meu bem!
44 1999 - Roberto Jefferson – Xeque-mate da vez 32-33
Cantada de homem, não!
44 1999 - Moda – homem nu e cru Cru 34-41
47 1999 Capa A Estrela sobe Louro, alto e poderoso 25-33
47 1999 - São Paulo – Marcha Enfim, a parada do milênio 40-43
histórica com 20 mil –
Texto de João Silvério
Trevisan
47 1999 - Constanza Pascolato Um toque de classe 22-24
defende o prazer pelo
prazer
47 1999 Moda Moda – A hora e a vez da A volta da cor 34-39
cor
47 1999 - Freira lésbica – Caso de Do hábito à calça jeans 44-46
amor durou 4 anos dentro
do convento
48 1999 Capa Cássia Eller – Abusada e Príncipe do rock'n blues 28-33
assumida, ela ocupa o
vazio deixado por Renato
Russo
248
na hora da paquera?
29 Jun Política Governador Sérgio A revolução de Cabral 52-55
2011 Cabral - “Políticos têm
que sair do armário e
vencer preconceitos”
29 Jun Especial Novo pajubá – Cuen the pajubá 78
2011 Atualize seu
vocabulário
29 Jun Dossiê 20,30,40,50 - O que Sexo dos 20 ao 50 e poucos 36-39
2011 muda no sexo com o
passar do tempo
29 Jun Religião Católico e As paróquias que dizem sim 56-58
2011 simpatizante –
Paróquias brasileiras
que cultivam a
diversidade
30 Jul Entrevista Agora vai? Marcos O namorado que sua mãe pediu 28-33
2011 Damigo pronto para
dar o beijo mais
aguardado da TV
30 Jul Moda Especial Moda – 91 Moda homem 88-93
2011 looks para vestir no
próximo verão
30 Jul Coverboy O mais pedido – Sol no inverno 34-41
2011 Franklin David do
jeito que você quer
30 Jul Bem-estar Corpaço: A solução Lisa e macia/ Poxa, que coxa!
2011 contra as estrias/ O
segredo das coxas
grossas
30 Jul TV André Gonçalves: “Fui Duas vezes gay 26
2011 a saunas fazer
laboratório”
30 Jul Test Drive Sexo artificial – Quase E que consolo! 48-49
2011 tão bom quanto o de
verdade, na pág 48
30 Jul Dossiê Skatistas gays revelam Rolê de Sk8 42-45
2011 suas manobras
31 Ago Coverboy Miro Moreira – Cada Miro – O supermodelo está cada 32-39'
2011 vez melhor vez mais lindo – e isso é tudo!
31 Ago Moda Moda para o dia: Sai do chão / Color, dust 84-95
2011 xadrez + conforto/
Para a noite: muita cor
+ pouca roupa
31 Ago Bem-estar Conquiste uma barriga Dieta – Alimentos e suplementos 78
2011 chapada como esta: que secam a barriga
confira na pág.78
31 Ago Entrevista Rodrigo Andrade Suave 26-31
257
247
A expressão no singular, mais do que um erro gramatical, sugere uma apropriação pela revista de uma
coloquialidade recorrente no universo gay e nas redes sociais da época.
258
exterior fazer
programa
48 Fev Perfil Profissão de hétero: Aê fera, troca o óleo? 50-51
2013 Isso existe? Frentista
gay conta sua
experiência
49 Mar Coverboy Beto Malfacini – um De cair o queixo 26-33
2013 galã completo
49 Mar Perfil Instagram – conheça Instagatos 48-49
2013 quem são os reis do
aplicativo
49 Mar Entrevista Aislan revela o que Depois daquele beijo 22-24
2013 interessa do Big
Brother
49 Mar Especial Verdadeira beleza – Brasil de todas as belezas 34-41
2013 Negros, índios, ruivos,
loiros... a mistura
brasileira gerou um
país de homens lindos.
Já está na hora de
termos orgulho do
nosso próprio DNA
49 Mar Test Drive Dia seguinte – Tudo A pílula do dia seguinte para o 42-43
2013 sobre o tratamento de HIV
28 dias para quem se
expôs ao vírus HIV
49 Mar Relacionamento Amor na noite – Amores noturnos 46-47
2013 Namoros entre
profissionais das
baladas
49 Mar Tecnologia Grindr – o gaydar de Sexo fácil 44-45
2013 bolso está dominando
o Brasil
49 Mar Beleza Queda de cabelo – Pouca idade, pouca telha 68
2013 impeça enquanto é
tempo
50 Abr Coverboy Jesus brilha com Luz Jesus amado 26-39
2013 própria
50 Abr Moda Verão 2014 – Os looks Roupa de vitrine 64-69
2013 que você vai usar
50 Abr Entrevista José de Abreu assume Aberta mente 20-25
2013 que é hétero em
entrevista exclusiva
50 Abr Religião Papa pop – seria Será um papa pop? 40-43
2013 Francisco um
simpatizante
enrustido?
50 Abr Positivo Vida com HIV – nova Sem medo de ser feliz 78-80
261