Autismo em Movimento

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 189

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas


Programa de Pós Graduação em Antropologia

Bianca Retes Carvalho

AUTISMO EM MOVIMENTO:

A mobilização da família no reconhecimento do autismo

Belo Horizonte

2022
Bianca Retes Carvalho

AUTISMO EM MOVIMENTO:

A mobilização da família no reconhecimento do autismo

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.

Orientadora: Profa. Dra. Sabrina Deise Finamori

Co-orientador: Prof. Dr. Leandro de Oliveira

Belo Horizonte

2022
AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES) pelo financiamento desta pesquisa durante todo o mestrado
e que, mesmo diante do contexto de crise sanitária, política e econômica que
vivenciamos nos últimos anos, valorizou o fomento à ciência brasileira. À
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia (PPGAN) sou grata por toda a estrutura, comprometimento e
acolhimento.

Sou imensamente grata pelos interlocutores desta pesquisa, que resguardo


seus nomes em decorrência da necessidade ética do anonimato. Agradeço a todos
os integrantes da Associação da Síndrome de Asperger no Transtorno do Espectro
do Autismo (ASATEA-MG) que não apenas contribuíram com suas histórias,
experiências, informações e conhecimentos, como me acolheram e me apoiaram
durante toda a pesquisa. Meu respeito e carinho por cada um de vocês. Agradeço a
todos os integrantes da Comissão das Associações de Defesa dos Direitos dos
Autistas (CADDA/MG) que me permitiram entender toda a potencialidade da
construção coletiva. Minha admiração a vocês, mães, pais, familiares, profissionais,
autistas, e tantos outros que passaram pelas reuniões com o objetivo comum de
construir uma sociedade mais diversa e inclusiva. Ao Conselho Municipal dos
Direitos da Pessoa com Deficiência (CMDPD/BH), agradeço por todo o apoio e
confiança. Obrigada pela escuta e espaço para o desenvolvimento desta pesquisa.
Agradeço também à Diretoria de Políticas para as Pessoas com Deficiência da
Prefeitura de Belo Horizonte (DPPD/PBH) por toda contribuição e pela formação
possibilitada nessa trajetória.

Com enorme agradecimento e carinho também me direciono à minha


orientadora, Sabrina Deise Finamori. Obrigada não apenas por contribuir com minha
formação acadêmica e intelectual, mas por ser amparo nesta trajetória. Obrigada por
entender sobre temporalidades e cuidados, nas teorias e ainda mais nas nossas
práticas cotidianas. Meu agradecimento pela confiança e pela tranquilidade de ter
sempre seu apoio. Ao meu co-orientador, Leandro de Oliveira, minha gratidão por ter
acreditado nesta pesquisa antes de qualquer outra pessoa. Por ter sempre me dado
ótimos direcionamentos, inspirações e por ter me apresentado e compartilhado a
possibilidade desta pesquisa. A ambos, obrigada por sempre restaurarem minha
esperança em um espaço acadêmico mais sensível e cheio de alegria.

Agradeço a Érica Souza, por ter contribuído com minha formação acadêmica
ainda na graduação e por ter aceito o convite para participar da defesa desta
dissertação. À Helena Fietz, agradeço pelas observações cuidadosas que trouxe à
esta pesquisa. Suas produções sempre tiveram minha admiração e fico grata pela
presença nesta trajetória acadêmica. E à Magda Ribeiro e Pedro Lopes agradeço
por também terem aceito o convite de participação na banca de defesa desta
pesquisa. Agradeço à Ana Flávia Santos que contribuiu na apresentação parcial
deste trabalho com uma leitura atenta e delicada. Agradeço ainda àqueles que
ofereceram relevantes reflexões nas discussões das apresentações que pude
realizar: Alessandra Rinaldi e Rafael Cerqueira Pinheiro no I Seminário Famílias,
Políticas e Direitos, promovido pelo GESEX; Adriana Dias, Fagner Carniel, Pedro
Lopes, Nádia Meinerz e Natan Monsores de Sá, no “GT Etnografias da deficiência”
durante a 32ª RBA; e Eugenia Brage, Marcia Longhi e Denise Pimenta no “GT O
cuidado na agenda política” na 44ª ANPOCS. Meu agradecimento também ao
Parent in Science e todas as mulheres cheias de força e afeto que integram o
movimento, nossos diálogos foram fundamentais para a continuidade desta
dissertação. Agradeço aos meus colegas dos grupos de pesquisa e orientação que
trouxeram debates relevantes para minha formação enquanto pesquisadora. E em
especial, à Lívia Duarte, minha gratidão e carinho por dividir antropologias, risadas e
desabafos que desde o começo deste mestrado fizemos tão bem.

Aos meus amigos de longa data, que aqui hesito em nomeá-los para não
correr o risco do esquecimento, meu agradecimento pelo constante apoio, diálogo,
amizade e por possibilitarem doses constantes de motivação para esta pesquisa e
para a vida. À minha família, obrigada pelo incentivo, confiança e afeto. À André, por
todo o cuidado, diálogo e amor nas grandes empreitadas e nas miudezas do dia a
dia. À minha filha, Catarina, obrigada pelos tantos encantamentos e possibilidades
de cada dia, por todo o amor que transborda.
“[...] Na condição de pessoa no espectro que opta por esse
suor e sangue, por esse imediatismo, em vez daquilo que é
traduzido e deslocado, minha resposta sobre quem eu gostaria
de ficar presa em uma ilha deserta é bem diferente da resposta
normal. Por exemplo, eu gostaria de ficar presa em uma ilha
deserta com algum ancestral remoto meu, ou uma pessoa dos
tempos atuais que entenda de sobrevivência em uma ilha.
Enquanto a maioria das pessoas pensa em um paraíso
desconectado de tudo, em que elas bebem drinques na praia
enquanto Einstein lhes presenteia com algum discurso
extraordinário ao pôr do sol, eu penso na necessidade de fogo,
de água, de se conhecer as plantas que são doces e as que
são amargas, em alguém que sente uma alegria permanente
em encontrar a coisa certa crescendo escondida perto da terra,
ou qualquer fio de água que seja limpa o bastante para beber,
que fica alegre com a habilidade de poder fazer um simples
abrigo para se dormir na floresta. As pessoas já me disseram
que eu faço esses tipos de escolhas em resposta à pergunta da
ilha porque eu sou ‘literal demais’. Mas não há nada mais literal
do que esta vida, este dia, esta sobrevivência, esta
oportunidade para uma velha e profunda conexão com esta
Terra-ilha em que vivemos, neste momento.”

Alegria. Dawn Prince-Hughes.


Autismo em Tradução (RIOS e FEIN, 2019).
RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo analisar as relações de cuidados e atuações


políticas de familiares de pessoas no espectro autista no reconhecimento social e
político do autismo e na efetivação de direitos e políticas públicas. A pesquisa foi
realizada através de uma etnografia em diferentes redes de acolhimento e atuação
na cidade de Belo Horizonte/MG; dentre elas, associações, espaços municipais e
redes sociais. Também foram feitas entrevistas com familiares, autistas e agentes
públicos, assim como a participação em eventos e análises documentais de direitos
e políticas públicas relativos ao autismo. As trajetórias das mães e pais de autistas
evidenciam como deficiência, parentesco, cuidado e Estado são articulados de
formas complexas. A etnografia, portanto, fundamentada em discussões teóricas de
parentesco, movimentos sociais e cuidado, possibilita refletir como as relações
familiares constituem e são constituídas nos múltiplos sentidos atribuídos ao
autismo. Por fim, este trabalho aponta para os limites e possibilidades das práticas
de cuidado que também se conformam como práticas políticas, constituindo
processos democráticos e participativos, nos quais as experiências dos sujeitos
ganham centralidade na reivindicação de uma sociedade mais inclusiva.

Palavras-chave: autismo, deficiência, parentesco, cuidado, movimento social


ABSTRACT

This dissertation proposes to analyze the care relations and political actions of family
members of people on the autistic spectrum in the social and political recognition of
autism and the realization of rights and public policies. The research was carried out
through an ethnography in different networks of care and action in the city of Belo
Horizonte/MG; among them, associations, municipal spaces and social networks.
Interviews were also conducted with family members, autistic people and public
agents; as well as participation in events and documentary analysis of rights and
public policies related to autism. The trajectories of mothers and fathers of autistic
individuals show how disability, kinship, care and the State are articulated in complex
ways. Ethnography, therefore, based on theoretical discussions of kinship, social
movements and care, makes it possible to reflect on how family relationships
constitute and are constituted in the multiple meanings attributed to autism. Finally,
this work points to the limits and possibilities of care practices that also conform to
political practices, constituting democratic and participatory processes, in which the
subjects’ experiences gain centrality to the demand for a more inclusive society.

Keywords: autism, disability, kinship, care, social movement


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAP – Associação Americana de Psiquiatria ou American Psychiatric Association


(APA)

ABA – Applied Behavior Analysis ou Análise do Comportamento Aplicada

AEE – Atendimento Educacional Especializado

AMA – Associação de Amigos do Autista

APAE – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

APARJ – Associação de Pais de Autistas do Rio de Janeiro

ASATEA-MG – Associação da Síndrome de Asperger no Transtorno do Espectro do


Autismo de Minas Gerais

BPC – Benefício de Prestação Continuada

CADDA/MG – Comissão das Associações de Defesa dos Direitos dos Autistas de


Minas Gerais

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial

CAPSi – Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil

CDC – Centers for Disease Control and Prevention ou Centro de Controle de


Doenças e Prevenção

CERSAM – Centro de Referência à Saúde Mental

CERSAMI – Centro de Referência à Saúde Mental Infantil

CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados


à Saúde ou International Statistical Classification of Diseases and Related Health
Problems (ICD)

CIF – Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde

CIPTEA – Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista

CMDPD/BH – Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Belo


Horizonte

DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders ou Manual Diagnóstico


e Estatístico de Transtornos Mentais

DUA – Desenho Universal de Aprendizagem


FÓRUM TEA – Fórum Intersetorial de Atenção Integral à Pessoa com Transtorno do
Espectro do Autismo

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICS – Índice de Confiança Social

IFMSA BRASIL – Federação Internacional das Associações dos Estudantes de


Medicina do Brasil

LBI – Lei Brasileira de Inclusão

OMS – Organização Mundial de Saúde ou World Health Organization (WHO)

ONU – Organização das Nações Unidas

PBH – Prefeitura de Belo Horizonte

PcD – Pessoa com deficiência

PDI – Plano de Desenvolvimento Individual

PEI – Plano de Ensino Individualizado

SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SUS – Sistema Único de Saúde

TEA – Transtorno do Espectro do Autismo

TEACCH – Tratamento e Educação de Crianças com Autismo e Dificuldades de


Comunicação ou Treatment and Education of Autistic and Related
Communication-Handicapped Children

UFJF GV – Universidade Federal de Juiz de Fora, campus Governador Valadares


SUMÁRIO

Introdução ………………………………………………………………………………… 14

1 As controvérsias do autismo ……………………………………………………….. 33

1.1 Histórias do autismo e as famílias ……………………………………………… 34

1.2 O autismo no Brasil ………………………………………………………………. 40

1.3 Autismo como movimento e identidade ………………………………………... 46

1.4 Autismo como espectro ………………………………………………………….. 51

1.5 Construindo diagnósticos ………………………………………………………... 56

2 Famílias em movimento ……………………………………………………………... 66

2.1 Quando a vida cotidiana é interrompida ……………………………………….. 69

2.2 Rearranjando o passado e reescrevendo o familiar ………………………….. 77

2.3 Futuros possíveis …………………………………………………………………. 89

3 Direito à diferença …………………………………………………………………… 100

3.1 Autismo e deficiência: “Uma deficiência invisível” …………………………... 100

3.2 Luta e movimento: “O caminho da luta não é fácil” ………………………….. 112

3.3 Fórum TEA: “Nunca lutei por privilégios, mas por direitos já garantidos por
lei”……………………………………………………………………………………… 115

3.4 Famílias e políticas públicas: “É preciso colocar a máscara de oxigênio” ... 123

3.5 A emoção como ferramenta política: “Porque a gente acaba envolvendo a


razão e o coração” …………………………………………………………………... 133

4 Éticas, práticas e políticas do cuidado ………………………………………….. 141

4.1 Teorias e movimentos do cuidado …………………………………………….. 141

4.2 A interdependência e o futuro …………………………………………………. 146

4.3 A luta como cuidado …………………………………………………………….. 159

Considerações finais ………………………………………………………………….. 170

Referências bibliográficas ……………………………………………………………. 176

Apêndices ……………………………………………………………………………….. 187


14

INTRODUÇÃO

“Autismo é o que fazemos dele”, conclui Roy Grinker em uma apresentação1


enquanto pesquisador e pai de uma mulher autista. A frase de Grinker expressa
habilmente a profusão de sentidos sobre o autismo e a forma múltipla como a
condição é habitada pelos sujeitos (AYDOS, 2017). O autismo se apresenta em um
campo de controvérsias no qual saberes médicos, entraves políticos, sociais e
culturais entram em disputa nesta imprecisa definição. Sendo descrito como
condição neurológica, transtorno mental, condição psíquica, identidade social,
deficiência, neurodiversidade, ou uma variável de outras nomenclaturas que o
acompanha, o autismo também é apresentado a partir do acionamento que os
sujeitos fazem em seus cotidianos e em contextos localizados.

Movimentos sociais e políticos em torno do autismo têm emergido nas últimas


décadas, ao redor de todo o mundo, reivindicando diferentes concepções sobre a
condição2. Se, por um lado, o autismo é objeto de controvérsias dentro da área
médica, sendo ainda um diagnóstico com muitas incertezas quanto à etiologia e
prognóstico, por outro, a diversidade de experiências e agendas políticas em torno
do espectro autista também abre espaço para discussões relativas à assistência,
cuidados, direitos, assim como questões identitárias. Pesquisas em diferentes áreas
têm elencado as copiosas definições associadas ao autismo, evidenciando
narrativas e reconhecimentos particulares que impactam no modo como essas
pessoas se constituem social e culturalmente. Este conceito que designa um
conjunto de sujeitos que partilham de uma experiência, ainda que fundamentado em
uma substância biológica, é, invariavelmente, uma definição socialmente construída
com consequências reais para aqueles que recebem e vivenciam esta designação.

1
Autism Spectrum Disorders in Global, Local and Personal Perspective: A Cross-Cultural Workshop,
realizado no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em setembro
de 2015. Organizado por Clarice Rios e Elizabeth Fein, o workshop contou com apresentações de
pesquisadores da temática do autismo em diferentes áreas. O conteúdo das apresentações está
disponível em: <https://vimeo.com/showcase/3897481>. Acesso em maio de 2021.
2
Exemplos de alguns trabalhos que trazem a abordagem de movimentos sociais em torno do
autismo, ao redor do mundo, são: Chamak, 2008; Ortega, 2009; Eyal e Hart, 2010; Hart, 2014; Nunes,
2014; Ortega, Zorzanelli e Rios, 2016; Rios, 2017; Lopes, 2019a; Rios e Fein, 2019.
15

Alguns pesquisadores do tema (ORTEGA, 2009; AYDOS, 2017) resgatam a ideia de


categoria problemática, de Charles Rosenberg (2002), para evidenciar o status
ontológico disputado do autismo nas interlocuções entre especialistas da área
médica, agentes de gestão pública, familiares, cuidadores e autistas ativistas.
Portanto, as construções ontológicas acerca do autismo derivam categorias
nosológicas, políticas e de identidade que são disputadas a partir de diferentes
atribuições contextuais.

Diante dessas disputas ontológicas, o trabalho de Gabriel Feltran (2017), em


um distinto contexto de pesquisa que aborda sobre a objetivação das categorias de
diferença, pode oferecer uma perspectiva sobre essa multiplicidade de sentidos.
Feltran aponta como uma categoria pode ser captada em intervalos de sentidos que
têm seus conteúdos apreendidos nos usos e contextos situados. Seja nas interações
rotineiras ou nas experiências disruptivas, os sentidos são produzidos frente a um
“continuum de possibilidades” (FELTRAN, 2017). Por este viés, guardadas as
devidas limitações na comparação entre diferentes contextos de pesquisa, o autismo
também pode ser tomado como uma categoria analítica que tem seus sentidos
constituídos e atualizados nas interações relacionais, flexíveis e pragmáticas em que
é acionado. Tal como Feltran (2017) aponta, as categorias tornam-se, portanto, uma
gramática, uma matriz de inteligibilidade com inúmeras possibilidades e formas de
interação que, simultaneamente, define seus usos e exclui outros sentidos. Assim, o
trabalho de Feltran aponta para uma possibilidade analítica que tomo, nesta
dissertação, em relação ao autismo: uma categoria menos “problemática”, como
define Rosenberg (2002), e mais repleta de possibilidades nestas práticas e
discursos em interação.

O contexto apresentado nesta dissertação, portanto, é um recorte analítico


muito preciso sobre um amplo cenário de discussões acerca do autismo. Nesta
pesquisa, me interessa analisar as relações de cuidados e atuações políticas de
familiares de pessoas no espectro autista. Por meio das narrativas e trajetórias
desses familiares, busco refletir como os múltiplos sentidos da condição são
evocados nos contextos locais cotidianos e nas mobilizações sociais. Percorro, ao
longo do campo etnográfico, redes de acolhimento e atuação – dentre elas,
16

associações, gestão municipal e redes sociais virtuais –, buscando entender como


são construídas relações e alianças em torno da condição e como as atuações
familiares, que aqui defino como um movimento familiar, reverberam no
reconhecimento social e político do autismo. A estrutura desta dissertação, portanto,
se dá em um duplo deslocamento: a reelaboração das famílias diante do autismo e a
constituição do autismo através do movimento familiar. Refiro-me, ao longo da
dissertação, às pessoas que vivem com o autismo, entendendo que o uso
terminológico permite abarcar autistas, mas também suas famílias, que são
atravessadas, de diferentes formas, nas experiências com a condição3. Assim,
construo uma investigação das trajetórias familiares frente a uma condição e como
essas experiências se desdobram no espaço público, suprimindo a ideia de que um
“diagnóstico da diferença” está encerrado no vínculo familiar, assim como as práticas
familiares estão reservadas ao âmbito do privado e doméstico.

A pesquisa

O material apresentado nesta dissertação é resultado de uma pesquisa


etnográfica realizada entre os anos de 2019 e 2022, na cidade de Belo Horizonte.
Em agosto de 2019, entrei em contato pela primeira vez e fui recebida por Joaquim4
na Associação da Síndrome de Asperger no Transtorno do Espectro do Autismo, a
ASATEA-MG. Iniciei a etnografia acompanhando as reuniões quinzenais que
objetivavam o acolhimento das famílias e a gestão da associação. As reuniões

3
As terminologias relacionadas às pessoas diagnosticadas com autismo são cercadas de disputas
políticas e identitárias. Por um lado, há a preferência ao termo “pessoa com autismo”, em detrimento
de “autista”. O uso da expressão também faz referência à uma aproximação da opção sociopolítica e
legal da “pessoa com deficiência” no Brasil. Atualmente, é também consensual que o termo “portador”
não seja usado em uma variedade de contextos relativos à deficiência, e sim “pessoa com
deficiência”, conforme a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2006) e
a Lei Brasileira de Inclusão (2015). Em oposição à terminologia “pessoa com autismo”, defendido
principalmente por autistas ativistas, o termo “autista” é preferido por evidenciar a condição como
parte de suas identidades e subjetividades, uma diversidade humana (ORTEGA, 2009). Optei pelo
uso de ambas as terminologias, já que no campo etnográfico, muitas vezes, são utilizadas de modo
intercambiável. Neste mesmo sentido, adoto o termo “condição” em referência ao autismo.
4
Buscando preservar a privacidade e anonimato, os nomes dos interlocutores foram alterados nesta
dissertação, assim como das pessoas citadas por eles.
17

aconteciam em lugares centrais na capital mineira, sendo emprestados por


colaboradores ou pelos próprios integrantes. Havia familiares que demarcavam sua
constante presença nas reuniões e outros que participavam ocasionalmente sendo
acolhidos em suas demandas particulares. A convite das mães e pais que
compunham o coletivo, comecei a acompanhar também outras atividades
articuladas pela associação, tais como ações de conscientização do autismo,
palestras e eventos municipais.

Tornar-me parte da associação foi essencial para o campo etnográfico e


várias foram as vezes em que minha posição variava como a antropóloga ou a
integrante da ASATEA. Carmen Tornquist (2007) afirma como as relações entre
antropólogos e movimentos sociais tendem a ser muito mais concretas: as relações
são permeadas por uma lógica de reciprocidade, onde temos que retribuir a dádiva
sem exatamente o controle sobre a temporalidade que se mostra nas relações.
Assim, o campo etnográfico e a escrita acadêmica são construídos junto a novos
convites, reuniões, atuações, participações e posicionamentos. Como a autora
descreve, constitui-se uma espécie de “ativismo observante” (TORNQUIST, 2007). E
neste posicionamento de minha participação no campo etnográfico, a maternidade
compunha uma perspectiva comum na interlocução com esse movimento familiar.
Demarcava as relações estabelecidas perpassadas pelas experiências pragmáticas
e morais do cuidado. Entretanto, minhas experiências de uma mulher sem
deficiência, mãe e pesquisadora, pouco se aproximavam das trajetórias familiares
constituídas junto à deficiência e, em alguns casos, da parentalidade perpassada
pela deficiência de pessoas já adultas. Assim, ora as aproximações eram
compartilhadas, ora era estabelecida e demarcada a distância de nossos cotidianos.
Em meio a essas subjetividades e corporalidades, a lógica da reciprocidade das
interlocuções era constituída.

O campo etnográfico foi se expandindo à medida que minha interlocução com


Joaquim se tornou mais próxima e conexões com outras pessoas dentro e fora da
associação foram estabelecidas. Assim, passei a acompanhar as reuniões da
Comissão das Associações de Defesa dos Direitos dos Autistas de Minas Gerais
(CADDA/MG), um importante espaço de representação coletiva constituído,
18

majoritariamente, por familiares de autistas. Os encontros entre as associações da


região metropolitana aconteciam com mais frequência próximos aos meses de abril,
setembro e dezembro, nos quais eram organizadas ações públicas nas datas
destinadas à conscientização sobre autismo e deficiência5. No encontro com
familiares, autistas, profissionais e agentes públicos, fui convidada a participar de
eventos que resultaram destas alianças estabelecidas entre a sociedade civil
organizada e os órgãos da gestão pública. Desta forma, em setembro de 2019, o
Fórum Intersetorial de Atenção Integral à Pessoa com Transtorno do Espectro do
Autismo (Fórum TEA) tornou-se um importante espaço para as análises desta
pesquisa acerca das reivindicações políticas de familiares de autistas. Em 2020, a
ASATEA também passou a integrar o Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas
com Deficiência (CMDPD/BH), instrumento institucional de condução de políticas
públicas e controle social no município. As redes e alianças constituídas no
movimento familiar se tornaram mais evidentes, e o CMDPD também se tornou parte
do campo etnográfico objetivando entender as tramas entre famílias, políticas
públicas e deficiência. No decorrer desta dissertação, refiro-me a estes diferentes
espaços como associação, comissão e conselho ou utilizando das próprias siglas
que os nomeiam.

Acompanhando os espaços de acolhimento e atuação que se constituíam


junto às trajetórias desses familiares, esta etnografia acabou por se multissituar
(MARCUS, 1995). O autismo passou a ser uma categoria analítica nos
entrelaçamentos de experiências, práticas e discursos. Constituindo, desta forma,
uma etnografia interessada na circulação de categorias, assim como nos
movimentos empreendidos por meio das relações e posições sociais dos sujeitos.
Não menos relevante para esta pesquisa, seguir as informações que circulavam
entre os coletivos de familiares também foi fundamental para a compreensão das
múltiplas representações do autismo; desta forma, entrevistas semiestruturadas,

5
Entre os meses de fevereiro e junho as reuniões da CADDA priorizam a organização de eventos em
abril, o Mês da Conscientização do Autismo. Em agosto e setembro, a comissão contribui para a
promoção do Setembro Verde, o Mês da Luta pela Inclusão Social, junto à Prefeitura de Belo
Horizonte (PBH). Relativo ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, em dezembro, também
são mobilizadas ações públicas. No apêndice desta dissertação há um quadro explicativo das datas
significativas para os movimentos do autismo.
19

eventos, congressos6, livros autobiográficos7, produções midiáticas, documentos


internos das associações, documentos da gestão municipal, legislação e normativas,
também compuseram a construção do conhecimento sobre o autismo nesta
pesquisa e que, em diferentes momentos, serão mencionados ao longo desta
dissertação.

Buscando entender os movimentos que constituem as diferentes acepções


sobre o autismo, direcionei parte de minha investigação para alguns perfis de
autistas ativistas nas redes sociais na tentativa de ampliar a análise contextual sobre
o movimento familiar. As transformações sociais e tecnológicas recentes abrem
espaço para a emergência de ativismos virtuais com ações políticas que, além de
significativas, são constituídas na circulação global e rápida de informações. Logo,
acompanhei postagens constantes de perfis na rede social do Instagram, através de
publicações de posts, stories, reels e lives8, definidos pela intensa atuação virtual ou
por indicação dos familiares interlocutores desta pesquisa. Os movimentos nas
redes sociais, tanto de autistas ativistas, quanto de familiares e associações,
ganharam legitimidade nos últimos anos, principalmente, diante do contexto de
isolamento social decorrente da crise sanitária de covid-19, em que as interações
virtuais passaram a compor o cotidiano9.

6
Participei de um congresso promovido por familiares e profissionais acerca do autismo, o
NeuroConecta, e do pioneiro congresso internacional realizado por pessoas com autismo, o Vez e
Voz do Autista.
7
Livros autobiográficos como: Unidas pelo Autismo (2021), organizado e produzido por mães de
autistas e Colapso Azul (2021), escrito por um autista.
8
O Instagram é uma rede social virtual de compartilhamento de fotos e vídeos. As interações
acontecem seguindo usuários, curtindo, comentando e compartilhando as publicações. Os termos
apresentados denominam formas distintas de publicações na rede social em questão. Os posts são
imagens colocadas nos perfis da rede social, que podem ou não ser acompanhadas de texto na
legenda. Stories são publicações curtas, com poucos segundos de duração e permanência de 24
horas. Costumam trazer divulgação de eventos, compartilhamento de outras publicações ou relatos e
fotos mais íntimos – devido a sua brevidade. Reels também é uma funcionalidade que permite a
criação de vídeos curtos, mas diferente dos stories, são publicados e permanecem no perfil da rede
social. Também permitem a criação e edição desses vídeos pela própria plataforma com o intuito de
torná-los mais atrativos, comunicativos ou performativos. Já as lives são recursos de transmissão ao
vivo pela plataforma permitindo a interação de mais pessoas, além da comunicação com os ouvintes
por mensagens de texto. Todas essas funcionalidades buscam formas distintas de interação e
engajamento.
9
As associações e coletivos acompanhados nesta pesquisa também passaram a utilizar com
frequência as redes sociais virtuais como forma de atuação durante a pandemia.
20

Esta pesquisa também foi atravessada por um contexto global de crise


sanitária, econômica e social diante do reconhecimento da pandemia de covid-19,
com a declaração da OMS (Organização Mundial de Saúde), em março de 2020. Os
impactos sociais, econômicos e os cotidianos inexoravelmente transformados
também perpassam os dados desta pesquisa. Se as incertezas e precariedades do
fazer etnográfico foram colocadas em pauta diante deste contexto de pandemia em
diversos debates, congressos e discussões entre antropólogas e antropólogos, a
imersão deste campo etnográfico se deu para dentro das casas através de câmeras,
áudios, fotos, arquivos e uma constante comunicação. A interlocução com os
familiares e autistas, antes feita nas presenças, passou a se constituir pelas
interações virtuais, através de reuniões remotas e uma comunicação constante por
meio de grupos de whatsapp10 e outras redes sociais. A temporalidade que se
insinua nas relações, como apontado por Tornquist (2007) entre antropólogos e
movimentos sociais, passou a ser mediada também pelas tecnologias e redes
virtuais. A constituição dessa etnografia multifacetada – presencial, mas também
com grande aporte digital e virtual – concebeu a possibilidade de uma pesquisa que
seguiu as circulações e movimentos que eram empreendidos pelos familiares no
campo etnográfico. Assim, os resultados aqui apresentados também são
perpassados por este contexto, evidenciando as experiências da pandemia, com
questões econômicas, sociais e políticas que atingiram os sujeitos de diferentes
formas. E neste sentido, este cenário circunscreve também este próprio fazer
etnográfico.

Percursos teóricos

Era agosto de 2019, em uma sala pequena e aconchegante, com todos os


móveis combinados em cores terrosas, eu escutava os carros, suas buzinas e
impaciências em meio aos resquícios de congestionamento de fim de tarde. Junto a

10
O WhatsApp é um aplicativo e uma rede social virtual que permite o envio e recebimento
instantâneo de arquivos de mídia diversos, dentre eles, mensagens de texto, fotos, vídeos,
documentos, localização; além de possibilitar chamadas de voz e vídeo com uma ou mais pessoas.
21

Joaquim e Marisa aguardava outros integrantes chegarem à reunião da associação.


Para além das apresentações, conversas sobre a associação, filhos, tarefas
cotidianas, universidades e empregos, a interpelação acerca desta pesquisa e a
contribuição da antropologia se tornaram pauta da conversa. Joaquim então me
questionava se o trabalho, afinal, não falaria de autismo “em si”, seria “apenas sobre
famílias e associações”. Em retrospectiva, minha breve confirmação foi ingênua e
precipitada, ou ao menos, simplista demais. A dicotomia entre o “autismo em si” e as
“famílias e associações” está longe de se conformar como uma realidade empírica.

A multiplicidade de sentidos que o autismo ganha está alicerçada nos


contextos históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais. E o autismo enquanto
uma classificação, uma categoria transitiva que passa a habitar e é habitado na vida
das pessoas, repercute nas famílias e é constituído dentro delas. Joaquim, logo na
primeira reunião que acompanhei na associação, enfatizava a pluralidade de
experiências de pessoas autistas. Há autistas nos centros e nas favelas, nos bairros
nobres e populares, escondidos dentro de casa e nas ruas, reconhecidos ou
encobertos pela invisibilidade da discriminação. Ao apontar essas diversidades
acerca da condição, Joaquim dava ênfase em um argumento que constantemente
era evocado no campo etnográfico: em todas essas experiências, havia também
uma profunda história familiar. É a partir desta constatação que o campo de
pesquisa foi se constituindo. As trajetórias familiares aqui abordadas, colhidas por
meio de fragmentos de histórias e vivências junto a um movimento social, resgatam
as experiências com o autismo não como uma categoria fechada, mas reiterada nos
arranjos locais de reconhecimento. Já nas primeiras interações, os interlocutores
desta pesquisa elaboravam relatos em tentativas diversas de apresentar o autismo:
ora nas abordagens biomédicas, ora em determinações legais e jurídicas, ora o
sentido construído de suas histórias e afetos.

Entre os anos de 1970 e 1990, uma série de acontecimentos dentro das


pesquisas sociais redefinem os estudos de “família” e “parentesco”, temas alicerces
das abordagens clássicas da antropologia (FONSECA, 2003; 2007; 2010). Este
campo de estudos passa por um deslocamento de categorias analíticas e
metodológicas, fundamentado, principalmente, nas teorias pós-coloniais e na
22

epistemologia feminista. As dinâmicas familiares da sociedade ocidental e


contemporânea tomam espaço nas pesquisas antropológicas (SCHNEIDER, 1984,
STRATHERN, 1992) e, a partir da década de 1990, são centradas em questões mais
amplas e políticas, para além dos arranjos domésticos e da questão de
consanguinidade. Ao refazer este histórico dos estudos de família e parentesco,
Cláudia Fonseca (2007) retoma o trabalho de Barrie Thorne (1992), levantando
muitas das premissas desta convergência teórica entre parentesco e as críticas
feministas: o deslocamento dos processos biológicos para a acepção da “família”
enquanto um produto historicamente produzido; o enfoque nos marcadores sociais
da diferença que sublinham divisões e desigualdades sociais, tais como raça, classe
e sexualidade; a ressignificação do trabalho de cuidado; a crítica às oposições entre
indivíduo/comunidade e privado/público; a valorização da diversidade de
experiências familiares que destacam vivências de apoio, mas também de conflitos e
abusos; a rejeição do ideal de família como unidade autônoma e isolada; e o
interesse em políticas sociais que perpassam relações interpessoais (FONSECA,
2007).

Estas proposições sintetizam as reformulações propostas por esses novos


estudos de parentesco (CARSTEN, 2004, 2007; FONSECA, 2003; 2007) que
apresentam a família como um espaço poroso, perpassado por outras questões
além dos domínios únicos do privado, da unidade doméstica e das genealogias. A
família é, então, apresentada sem desconsiderar as “forças estruturais” que a
atravessam. Neste viés, vários estudos etnográficos começam a abordar as famílias
em interseção às análises de desigualdade, políticas de governo, programas de
intervenção, mas também agências, subjetividades individuais e relações
interpessoais (FONSECA, 2007).

Para além das inspirações teóricas e tradições metodológicas da Europa e


América do Norte, no Brasil, os estudos de família e parentesco ganham outros
elementos que dizem respeito às transformações da história intelectual e dos
processos institucionais próprios do país (FONSECA, 2010). Como Fonseca (2010)
demonstra, linhas de investigação centradas em questões identitárias e morais
associadas à rede de parentesco, compõem esses estudos de família no contexto
23

brasileiro, abarcando, por exemplo, através de práticas e discursos, questões


intergeracionais e experiências individuais nessas trajetórias familiares. Mas há
também, uma emergência de abordagens feitas em relação às influências
institucionais na constituição da noção de família no contexto local. Neste viés, a
família passa a ser analisada criticamente como uma chave de políticas públicas,
tendo vários trabalhos com perspectivas sobre a intervenção estatal na vida familiar.
Fonseca (2010) destaca ainda, que essa abordagem da família, no Brasil, como
parte da “solução de uma série de problemas sociais” está relacionada a uma “era
dos direitos”, em que a constituição da cidadania e as políticas identitárias ganham
ainda mais força, a partir da década de 1990. Uma série de outras temáticas
compõem, nas últimas décadas, esse campo de estudos de família e parentesco, e
constituem novas abordagens metodológicas sobre este campo de pesquisa.
Exemplares são os estudos de maternidade e movimentos sociais (LEITE, 2004;
VIANNA e FARIAS, 2011; BRITES e FONSECA, 2013; NOVAIS, 2018) e que
orientam grande parte das análises aqui empreendidas.

Ao fazer um recorte analítico sobre as famílias de pessoas no espectro


autista, esta dissertação se ampara nestes vastos estudos antropológicos sobre
família e parentesco. Se Fonseca (2010) define duas aparentes linhas investigativas
sobre o campo de estudos, uma perpassada pelas relacionalidades, moralidades e
experiências subjetivas, outra marcada pelas forças institucionais que constituem e
são constituídas na relação com as famílias, esta dissertação busca explorar as
conexões entre ambas as abordagens. Perpasso as trajetórias familiares, com
ênfase nos processos de subjetivação de familiares diante de um diagnóstico de
autismo, entendendo as práticas sociais, culturais e morais relacionadas. Também
abordo o cotidiano buscando entender os discursos e práticas que são construídos
em relação à uma parentalidade específica, assim como questões identitárias e
políticas. Central nesta dissertação é a abordagem de direitos e políticas públicas
neste movimento social constituído por familiares de autistas, entendendo como a
mobilização, assim como as práticas de governo incidem nas relações familiares
24

com a condição, a partir do reconhecimento do autismo como deficiência11. Minha


análise se baseia, portanto, em uma noção de família como um lugar possível de
entendimento de questões sociais e políticas mais amplas. Na especificidade do
autismo, a categoria é constituída junto a um proeminente posicionamento de
familiares, tanto em práticas cotidianas de cuidado e atendimento de necessidades,
como discursos e participações políticas que fundamentam, inclusive, o âmbito
legislativo na promoção de direitos da pessoa autista. Este amplo cenário de
participação familiar em relação ao autismo, escancara essas intermitências entre a
oposição do público e privado, do individual e coletivo, e dá ênfase em uma
perspectiva pautada em relacionalidades, redes e conexões.

Isto posto, esta dissertação também se insere no amplo debate sobre


deficiência abordado pelas ciências sociais, tendo, na antropologia brasileira, uma
eclosão na última década. Os Estudos da Deficiência têm início com lutas políticas
de pessoas com deficiência, entre as décadas de 1960 e 1970, com a reivindicação
da promoção de direitos civis, participação plena, independência e autonomia,
principalmente na Europa e Estados Unidos, ainda que constituídos com diferentes
arcabouços históricos e abordagens políticas (MELLO, 2009, DINIZ, 2012). Essas
demandas corroboram para uma ampliação do debate da deficiência, suscitando um
campo de estudo e atuação na década de 1970, os Disability Studies. Com críticas à
hegemonia biomédica, a deficiência passava a ser entendida como um fenômeno
sociológico12, como resultado da relação entre corpo e sociedade, que nestes
termos, era discriminatória e despreparada para a diversidade de expressões
biológicas humanas (DINIZ, 2012). Para estes teóricos, tal como outros grupos
minoritários de gênero e raça, por exemplo, as pessoas com deficiência

11
Não é unânime a apropriação da deficiência por autistas, familiares ou mesmo profissionais, em
relação ao autismo. Ainda que essas disputas terminológicas existam e carreguem questões políticas
importantes, neste trabalho opto pela associação do autismo à deficiência que, além de se amparar
em uma fundamentação legal, é incorporada no contexto etnográfico na busca por políticas públicas e
efetivação de direitos, constituindo, desta forma, parte das experiências dos sujeitos.
12
Débora Diniz aprofunda este debate histórico sobre os Estudos da Deficiência, e aponta como o
modelo social da deficiência impacta, inclusive, na revisão de modelos médicos e abordagem de
organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS). A autora exemplifica,
apontando para o envolvimento das pessoas com deficiência na Classificação Internacional de
Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), elaborada em 2001, que passa a ponderar aspectos
socioculturais nas compreensões sobre lesão, deficiência e participação plena.
25

experienciavam o estigma em decorrência de classificações inerentes aos corpos


em sociedade (DINIZ, 2012). Amparados no argumento da deficiência enquanto
fenômeno sociológico, as soluções e reparações estariam no âmbito da política, não
somente em terapêutica e medicalização. Assim, estes primeiros teóricos da
deficiência contribuíram para reflexões acerca das intervenções do Estado na
promoção de direitos e políticas de justiça e participação social. O movimento
também se conformou como um processo de autodeclaração, no qual a deficiência
deixava de ser vista apenas como um complemento e passava a ser entendida
como uma identidade social. Este panorama teórico e social, trouxe importantes
contribuições acerca da deficiência enquanto uma categoria analítica, concomitante
às demandas de transformações materiais e políticas.

Tal qual as transformações teóricas advindas das críticas feministas nos


estudos de parentesco e família, nos campos de pesquisa da deficiência, entre as
décadas de 1990 e 2000, a segunda geração do modelo social da deficiência
passou a incluir discussões com perspectivas mais interseccionais, como gênero,
raça, idade, orientação sexual, assim como experiências e práticas de cuidado e
dependência (DINIZ, 2012). A subjetividade, as experiências, a corporalidade e o
cuidado se tornaram centrais nas proposições analíticas que alcançaram os estudos
da deficiência. É neste sentido que as produções de embasamento teórico feminista
são constituídas pelas experiências com a deficiência, sejam evidenciando as
trajetórias corporificadas ou as relações interpessoais, atreladas a contextos sociais
e às práticas governamentais de controle e atenção às populações específicas.

No Brasil, os Estudos da Deficiência culminaram nas ciências sociais, no


início do século XXI, nesta retórica da epistemologia feminista (DINIZ, 2003, 2012;
MELLO, 2009). A emergência destes estudos tem influência dos Disability Studies,
assim como publicações pioneiras sobre a deficiência enquanto impedimento social
nas áreas de Educação e Psicologia (MELLO, NUERNBERG e BLOCK, 2013). Na
antropologia, é a partir dos anos 2000 que a deficiência aparece mais efetivamente
nas discussões teóricas, amparadas em temáticas já consolidadas no cenário
nacional, tais como a antropologia urbana, antropologia da saúde, do gênero e da
sexualidade (RIOS, PEREIRA e MEINERZ, 2019). Vale notar, entretanto, que em
26

anos recentes tem havido uma profusão de novos estudos sobre o tema, com
formação de grupos diversos de pesquisa acerca da deficiência no Brasil. Com uma
abordagem da especificidade do contexto local, essas pesquisas passam a incluir
demandas e reivindicações específicas à legislação e política nacional, e do mesmo
modo, questões interseccionais, como classe, raça, gênero e sexualidade. É com
esta recente produção sobre o tema que esta dissertação dialoga mais diretamente.

Em suma, os estudos da deficiência têm se constituído como um campo


acadêmico interdisciplinar que pretende refletir sobre a deficiência enquanto uma
categoria analítica. Entretanto, estudos teóricos e movimentos sociais são
duplamente constitutivos, e disputas epistêmicas e terminológicas são travadas
entre o ativismo da deficiência e o campo acadêmico. Além dos embates conceituais
e da mobilização social, o cenário normativo e legislativo também ampara grande
parte dessas formulações, tendo, por exemplo, a Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006) e a Lei Brasileira de Inclusão
(BRASIL, 2015), como partes dessa circulação de informações e controvérsias a
respeito da deficiência. Na especificidade do autismo, a partir da promulgação da Lei
Berenice Piana (BRASIL, 2012), que reconhece o autismo como uma deficiência
para todos os efeitos legais, as discussões trazidas nos embates teóricos e políticos
em torno da deficiência são fundamentais no entendimento das representações e do
reconhecimento do autismo no contexto brasileiro13. E na especificidade das
pesquisas acadêmicas sobre o autismo, no Brasil, grande parte da produção é
amparada nas áreas da Medicina, Psicologia, Educação, sendo ainda emergentes
as pesquisas advindas das ciências sociais sobre autismo14.

Alguns autores refletem como a articulação entre a categoria deficiência e o


autismo se expressa em uma zona nebulosa, na qual orientações classificatórias
tendem a ser instáveis. Pedro Lopes (2014), por exemplo, ao discutir sobre

13
A promulgação da Lei Berenice Piana é vista, pela maioria das famílias e ativistas da causa autista
como uma conquista pela efetivação de direitos e acesso a serviços públicos. Mas a representação
do autismo como uma deficiência não é apropriada de modo unânime. Portanto, a lei também
escancara esses posicionamentos e formas de assistência divergentes em relação ao autismo.
14
Algumas pesquisas relevantes nas ciências sociais sobre o autismo no Brasil, e que alicerçam esta
dissertação, podem ser encontradas em: Ortega (2008, 2009, 2013); López e Sarti (2013); Block e
Cavalcante (2014); Fietz e Aydos (2015); Rios et al. (2015); Campoy (2015, 2017); Aydos (2016,
2017, 2019); Rios (2017); Lopes (2019a); Rios e Fein (2019), dentre outras.
27

deficiência intelectual15, retoma a particularidade do autismo que é alocado como


uma “deficiência”, mas também como um “transtorno mental”. Assim, de acordo com
o autor, a condição tende a coabitar essas duas categorias que permeiam questões
de deficiência e diagnóstico médico em um “pântano classificatório” (LOPES, 2014).
A deficiência aparece como um termo significativo para este contexto etnográfico,
refugiando-se no cotidiano daqueles que contam suas histórias. As experiências
acompanhadas se desdobram, essencialmente, na busca por direitos e políticas
públicas que atendam às pessoas autistas; e complementar, se dediquem à atenção
e cuidado com as famílias e cuidadores. Desta forma, a deficiência permeia o campo
etnográfico enquanto uma categoria “nativa” que habita o cotidiano dos
interlocutores e produz sentidos no mundo vivido. Mas essa produção de
experiências permeada pela deficiência vai de encontro a elaborações sobre a
própria categoria. Pedro Lopes (2019b) apresenta o caráter produtivo da deficiência
enquanto uma categoria êmica, mas também, potencialmente proveitosa na
qualidade de uma categoria analítica. Para o autor, a deficiência, contígua aos
marcadores sociais, é também um registro da diferença. Para esta pesquisa, me
interessa a construção do autismo enquanto uma deficiência, entendendo que a
relação entre essas duas categorias produz ruídos na composição social da
condição e, não menos relevante, nas implicações sobre a deficiência enquanto
categoria social.

As ponderações das produções das diferenças e as análises das


desigualdades sociais advêm de longos debates ancorados nas teorias feministas e
antirracistas, incluídos nas rubricas da interseccionalidade, das categorias de
articulação e dos marcadores sociais da diferença. Em uma intercepção entre os
embates políticos, movimentos sociais e as teorias acadêmicas, as categorias de
gênero, sexualidade, raça e classe pautam essas investigações, e mais
recentemente, são incluídas outras categorias, como geração, religião e deficiência
(PISCITELLI, 2008; MOUTINHO, 2014).

15
Alguns instrumentos governamentais e empresas privadas ainda incluem o autismo na rubrica da
deficiência intelectual/mental. Entretanto, de forma mais atualizada, o autismo é entendido como uma
deficiência relacional (RIOS, 2017; VALTELLINA, 2019), ou ainda uma deficiência psicossocial.
28

A despeito da qualidade comum da corporalidade para gênero, raça e


deficiência, a diferença crucial, apontada por Faye Ginsburg e Rayna Rapp (2013), é
que qualquer pessoa pode “entrar” na categoria da deficiência através do
envelhecimento ou de modo fortuito. As autoras, em consonância com as críticas
feministas e pós-modernas dos estudos da deficiência, demonstram como esta
perspectiva mais extensiva sobre a categoria desafia as suposições ao longo da vida
de identidades estáveis e normatividade. A vulnerabilidade comum à deficiência é
potencialmente perpassada por condições de desigualdade, pobreza, guerra,
desastre, ou contextos de crise, “mas nenhuma outra categoria social está isenta de
experiências incapacitantes” (GINSBURG e RAPP, 2013, p.4.3, tradução minha).
Para as autoras, a incapacidade é o resultado de interações negativas entre uma
pessoa com deficiência e seu ambiente, trata-se, portanto, da análise da deficiência
como uma categoria relacional. Partindo dessas premissas da deficiência como
categoria analítica, estes autores têm defendido a importância de aproximar as
perspectivas da deficiência em todas as esferas da vida dos sujeitos com a
potencialidade de agregar debates e reflexões.

Tomo esses direcionamentos para pensar o autismo enquanto uma


deficiência, sem me restringir unicamente ao uso do termo enquanto
autodenominação, mas entendendo-o analiticamente como um marcador da
diferença (LOPES, 2019b). Nesta pesquisa me interessam as reflexões sobre as
articulações entre distintos marcadores sociais da diferença e a constituição de
subjetividades e identidades. A construção de identidades a partir de registros
sociais da diferença, bem como a percepção da experiência como política, são
evidentes no campo etnográfico, constituindo um movimento sobre o autismo com
sucessivos deslocamentos e negociações entre agentes diversos. Não menos
relevante, o entrelaçamento entre os marcadores sociais nas práticas e na
construção de sujeitos de direitos tornam expressivos “os processos políticos nos
quais indivíduos e coletividades se engajam, bem como suas experiências nas
formas definidas de inclusão/exclusão” (MOUTINHO, 2014, p.226). Neste sentido,
cabe entender tanto os processos de exclusão que perpassam as experiências dos
sujeitos, quanto suas ações e agências.
29

Para os objetivos desta dissertação, cabe destacar que ao abordar a


centralidade das questões políticas, direcionando a atenção para direitos e políticas
públicas que circunscrevem o campo de pesquisa, esta etnografia propõe escapar
de filosofias epistêmicas que considerem o Estado e instituições tangentes como a
essência da política (GOLDMAN, 2006). Márcio Goldman (2006), ao interpelar a
análise substancial da política no fazer antropológico, demonstra como esse campo
de estudos, no Brasil, apresenta mudanças teóricas e metodológicas significativas a
partir da década de 1990. Esta antropologia da política, na qual baseio as análises
aqui empreendidas, passa a encarar a política como um dispositivo teórico capaz de
articular e refletir sobre as práticas e experiências vividas pelos agentes sociais e
aquilo que vem a ser definido como política (GOLDMAN, 2006).

Neste sentido, através das experiências que são constituídas no cotidiano das
trajetórias pessoais e familiares, busco resgatar uma política que é atravessada por
processos complexos de construções de sentidos e representações do autismo.
Mais precisamente, abordo uma politização de aspectos cotidianos da vida familiar
(CARSTEN, 2004; 2007) para refletir como as práticas sociais e de gestão pública
são acionadas, manejadas e reiteradas nas experiências com a deficiência.
Goldman afirma que cabe uma “modesta tarefa” à antropologia acerca da política:
“elaborar teorias etnográficas capazes de devolver a política à quotidianidade, essa
espécie de tédio universal existente em toda cultura” (GOLDMAN, 2006, p.42). Ainda
que essa etnografia proponha articular essa “quotidianidade” dos fatos com a política
que perpassa a constituição de direitos, as experiências aqui apresentadas parecem
estar longe de ocupar um vazio tedioso do qual Goldman retrata o cotidiano. O
recorte do cotidiano que aqui se mostra é feito de movimento.

Diante dessas considerações, esta dissertação se constrói frente ao duplo


fazer da teoria e da política. Alicerça-se na construção de experiências
corporificadas e subjetivas que ocupam espaços de luta e mobilização. Seja através
da vivência dos próprios autistas ou de mães e pais, a construção social da condição
enquanto uma deficiência se dá por meio dessas experiências em espaços de poder
ocupados – e excluídos. Portanto, nesta dissertação, busco apresentar um cenário a
respeito do autismo que é articulado nas relações familiares, nos processos políticos
30

e nas práticas de cuidado constituídos na temporalidade do cotidiano e da luta. A


partir das histórias que me foram contadas e mostradas junto a familiares de
autistas, trago algumas reflexões sobre os múltiplos sentidos do autismo. Sem
procurar fórmulas dogmáticas, aponto para alguns dos limites e potencialidades de
tomar essas questões não como fragmentárias, mas como parte de um todo
complexo e dinâmico que envolve corpos, subjetividades, disposições pragmáticas e
morais, marcadores sociais, políticas e possibilidades de existência. Tal como Veena
Das traz a metáfora do olho não apenas como o órgão que vê, mas como o órgão
que chora (DAS, 2011), trata-se de pensar o autismo através de corpos que também
contam histórias, silenciam, desejam, cantam, sentem, choram, sorriem, gritam,
balançam, rodam, e lutam.

Arranjos e estruturas

Apresentadas as discussões teóricas que norteiam as análises aqui


empreendidas, assim como o contexto no qual a pesquisa foi construída, organizo
esta dissertação em quatro capítulos, abordando as trajetórias familiares e as
representações do autismo acionadas nos cotidianos e nas reivindicações políticas.

No primeiro capítulo, apresento uma contextualização histórica atrelada aos


diversos movimentos que compõem o reconhecimento da condição. Exploro, mais
detidamente, como as famílias, em diferentes momentos históricos, são interpeladas
diante das composições ontológicas que o autismo adquire. Retomo a história do
diagnóstico para analisar como as famílias se inserem na consolidação de uma
definição biomédica, ao mesmo tempo em que a reelabora diante de disposições
morais que circunscrevem o papel parental em relação ao diagnóstico. Ao abordar
as classificações biomédicas, demonstro a centralidade dessas discussões nas
controvérsias envolvendo os movimentos do autismo. Buscando aproximar mais
precisamente do campo etnográfico, contextualizo a inserção do autismo na cena
pública e política brasileira, em que movimentos em torno da deficiência são centrais
31

para o entendimento desta posição, evidenciando também como essa relação entre
deficiência e classificação biomédica corroboram na efetivação de demandas e
direitos na especificidade do autismo. Em síntese, a partir de discussões teóricas
sobre as classificações do autismo, contextualizo o amplo cenário de debates e
trago como estes diferentes sentidos interpelam a vida dos sujeitos que vivem com o
autismo.

No segundo capítulo, detenho-me mais precisamente nas experiências


familiares de constituição de um diagnóstico e reconhecimento da deficiência.
Através das histórias e narrativas de familiares do campo etnográfico, exploro como
família e deficiência são mutuamente escritos. Com ênfase nos processos de
subjetivação das famílias, e mais precisamente, da constituição de uma
parentalidade atípica, abordo como o diagnóstico de autismo rearranja as trajetórias
pessoais e familiares, mas também compõe imaginações de futuros possíveis
através da mobilização política dessas famílias. Atenho-me nas atuações de
familiares através de associações e redes de acolhimento para analisar como as
experiências desta parentalidade, através da produção de expertise, da criação de
redes e alianças, constituem o movimento familiar em defesa dos direitos e
reconhecimento da pessoa autista. Neste capítulo, portanto, retomo a noção de
família como um espaço poroso, perpassado por diferentes questões estruturais e
institucionais, que é composta e compõe os diferentes sentidos do autismo em suas
experiências cotidianas.

No terceiro capítulo, aproximo os debates da deficiência à especificidade do


autismo, demonstrando como o movimento familiar articula lutas políticas e mobiliza
questões identitárias e de cidadania. Descrevo mais minuciosamente o campo
etnográfico relativo à atuação de familiares, detendo-me na mobilização social em
espaços de gestão pública por meio de ferramentas de participação da sociedade
civil. Fundamentadas nas discussões teóricas de movimentos sociais e direitos,
analiso as atuações desses familiares através de políticas emocionais, autoridades
morais e reivindicação de projetos políticos pautados nas redes familiares,
comunitárias e institucionais.
32

No último capítulo, a partir de um amplo debate teórico sobre cuidado,


apresento como todo o campo etnográfico é perpassado por práticas e políticas do
cuidado. Examino como o cuidado aparece nas práticas cotidianas e familiares, mas
também é fundamento para as reivindicações políticas e sociais. Analiso a ideia de
interdependência das relações na especificidade do autismo, evidenciando as
controvérsias que compõem o trabalho de cuidado, assim como as reivindicações de
autonomia e independência. Por meio de relatos etnográficos, apresento reflexões
em torno da interlocução entre cuidado, família e deficiência.
33

1 AS CONTROVÉRSIAS DO AUTISMO

J: Você conseguiu o livro [Outra sintonia: A história do autismo]?


B: Sim, comecei a ler!
J: Aquele livro, ele é muito importante. Para ter uma visão histórica que siga
as famílias, tá? [...] Seu trabalho está ligado a questões de cuidado e
envolvimento das famílias, aquele livro mostra que tudo que houve de
avanço, tudo que houve de importante, de referência na questão do
autismo, quem conseguiu foi o movimento familiar (Entrevista com Joaquim,
grifo e acréscimo meu).

O modo como o autismo é compreendido e reconhecido é parte de


significativas mudanças que adentram um conjunto mais amplo de transformações
da própria sociedade (GRINKER, 2010). Os sentidos que o autismo adquire também
estão fundamentados em fluxos sociais, econômicos e geopolíticos (RIOS e FEIN,
2019), constituindo narrativas e circulando informações que integram-se globalmente
e vão ganhando contornos nos seus arranjos locais. A história do autismo não é algo
que escapa às histórias particulares dos interlocutores desta pesquisa. Pontos
nodais dos processos históricos do diagnóstico e do reconhecimento do autismo
enquanto uma deficiência são sempre lembrados pelas mães e pais dentro do
movimento familiar16. A história não serve apenas para legitimar e ordenar uma
narrativa sobre uma condição que é cercada de controvérsias, ainda que tenha tido
grandes transformações na sua acepção, ou mesmo que seja um tema em destaque
nas mídias e redes sociais nas últimas décadas (RIOS et al., 2015; AYDOS, 2017). A
história, para algumas destas mães e pais, faz parte de um processo de
subjetivação e de elaboração das suas próprias experiências frente a uma
parentalidade atípica17.

16
Os conceitos elaborados pelos interlocutores são marcados em itálico ao longo desta dissertação.
Termos e expressões de outros autores que são relevantes para as discussões aqui empreendidas,
assim como categorias analíticas adotadas nesta dissertação, também são marcados em itálico.
17
Termo mencionado pelos próprios familiares que, além de demarcar a condição do filho ou filha, faz
referência às experiências dessas mães e pais diante da condição. Este uso terminológico é
carregado de controvérsias, sendo que, uma das críticas diz respeito à tentativa de igualar a
experiência de familiares às pessoas autistas. Optei por utilizar este termo, também como uma
categoria analítica, na medida em que explicita várias das experiências dessas mães e pais.
34

Portanto, para entender parte desta profusão de sentidos que envolvem o


autismo, neste capítulo, retomo os processos históricos em alguns pontos essenciais
para meu campo de pesquisa, buscando analisar como o movimento familiar local se
insere no panorama de compreensão e reconhecimento da condição. Tendo o
autismo uma substância médica em sua definição, abordo a história do diagnóstico,
evidenciado diversas vezes pelos meus interlocutores, como produtora de efeitos no
modo pelo qual a condição é vista, legitimada e experienciada nos dias atuais. A
abordagem biomédica é central nas articulações entre os diferentes movimentos do
autismo, seja porque pautam-se nesta visão biológica ou negam sua autoridade na
classificação de sujeitos. O diagnóstico adquire assim uma dupla acepção: corrobora
na efetivação de demandas e direitos referentes ao autismo, sendo evidenciado nas
atuações do movimento familiar; mas também aparece como limitante para as
pessoas autistas e suas famílias. Entretanto, entendendo que essa perspectiva
médica também é constituída a partir de processos políticos, sociais e culturais,
exploro como diferentes movimentos em torno do autismo surgem nesses debates
de entendimento do diagnóstico e passam a incorporar outras perspectivas, como o
reconhecimento da deficiência, os processos identitários e as considerações a
respeito da diversidade. Assim, apresento, neste capítulo, um breve panorama
contextual e histórico sobre o autismo através desses discursos em interação.

1.1 HISTÓRIAS DO AUTISMO E AS FAMÍLIAS

Atualmente os debates sobre o autismo se desdobram em posicionamentos


críticos da condição enquanto um diagnóstico e doença, e se direcionam para um
reconhecimento complementar enquanto identidade social e diversidade
neurológica. Mas a primeira definição do autismo aparece como um diagnóstico
clínico advindo de longos estudos psiquiátricos diante de comportamentos vistos
como atípicos em crianças que não se enquadravam em outras classificações
diagnósticas. Leo Kanner era um médico austríaco que atuava como psiquiatra nos
Estados Unidos e desde a década de 1930 já possuía estudos proeminentes sobre
35

psiquiatria infantil. Em 1943, Kanner publicou seu famoso artigo “Distúrbio autista do
contato afetivo”18 que classificou pela primeira vez o diagnóstico de autismo. Em
suas primeiras observações, o psiquiatra identificou crianças com um relevante
apreço pelo isolamento social, o desejo obsessivo pela manutenção de semelhanças
e rotinas, pensamento concreto e questões sensoriais (GRINKER, 2010).

Ainda que o estudo de Kanner seja comumente considerado pioneiro na


descrição do autismo enquanto um diagnóstico clínico, vários são os indicativos de
pesquisas ou declarações no campo médico que já apresentavam descobertas do
que veio a ser chamado de autismo19. Essas construções históricas alternativas
sobre o diagnóstico surgem através de pesquisas aprofundadas, mas também
aparecem em publicações e falas dentro do próprio movimento autista e no
movimento familiar em uma tentativa de resgatar outras vozes referenciadas à
condição20. As narrativas históricas e composições ontológicas moldam diferentes
percepções sobre o autismo, impactando na construção de políticas, serviços,
informações e, consequentemente, nas experiências dos sujeitos.

Nas reuniões de associações de familiares acompanhadas nos últimos três


anos nesta pesquisa, mães e pais apresentavam o autismo com referências a uma
representação histórica que, atrelada aos avanços médicos e científicos, denotava
um inicial e emblemático envolvimento familiar. Essa descrição que vai além do que
os documentos históricos apontam sobre as prodigiosas observações de Leo
Kanner, contidas em uma espécie de “mito criador” do diagnóstico de autismo, é
clarificada no livro de John Donvan e Caren Zucker (2017). Como demonstram os
jornalistas, o primeiro processo diagnóstico de autismo, historicamente resgatado,
decorreu da busca de uma família, nos Estados Unidos, por explicações para o
comportamento do filho primogênito. Uma carta datilografada, com 33 páginas em

18
“Autistic Disturbances of Affective Contact” (1943), no original.
19
Exemplares são os escritos de J. Langdon Down sobre “crianças savants”, em 1887 (GRINKER,
2010), e o estudo de Grunya Sukhareva, sobre a “psicopatia autista” descrita em 1926, e que
desencadeou discussões polêmicas sobre o plágio de seu trabalho por Hans Asperger, outro
psiquiatra a se dedicar sobre o tema na década de 1940 (ZELDOVICH, 2018).
20
Exemplar desta constatação acerca dos resgates alternativos do processo histórico do diagnóstico
diz respeito à pesquisa invisibilizada da psiquiatra Grunya Sukhareva que emerge em discussões nas
redes sociais, no contexto do “Dia da Mulher Autista” – uma data defendida por mulheres com o
diagnóstico reivindicando o reconhecimento da diversidade de gênero dentro/sobre a condição.
36

um espaçamento simples, escrita pelo pai Beamon Triplett, descrevia Donald nos
seus primeiros quatro anos de vida (DONVAN e ZUCKER, 2017). Direcionada a Leo
Kanner, Beamon procurava uma explicação para o desenvolvimento do filho
apresentando na carta os mais pormenorizados detalhes de suas habilidades e
condutas. Como Donvan e Zucker (2017) investigam, após várias trocas entre os
pais e o psiquiatra, foi em uma carta particular à mãe, em 1942, que Kanner relatou
pela primeira vez a percepção de um “distúrbio” que passou a ser conhecido como
autismo. Essa motivação familiar impulsora é lembrada até os dias atuais por
familiares que, de maneira semelhante, buscam suas respostas e afirmam sua
expertise no autismo a partir de um conhecimento tácito e pragmático constituído no
cotidiano (RIOS, 2017; 2019; RIOS e CAMARGO JR, 2019).

Ao tratar de questões relevantes acerca do processo histórico do autismo,


algumas observações são emblemáticas para a compreensão desses discursos
acionados e vivenciados atualmente por aqueles que convivem com o diagnóstico.
Kanner tomou emprestada uma terminologia descrita como traço de um diagnóstico
amplamente aceito na época: a esquizofrenia. O conceito foi utilizado pela primeira
vez, três décadas antes, por Eugen Bleuler ao descrever a esquizofrenia que, além
de alucinações e distanciamento da realidade, o comportamento autista
caracterizava uma “retirada da vida mental do sujeito sobre si mesmo, chegando à
construção de um mundo fechado” (LARA, 2012 apud LOPES, 2019a, p.31). Kanner
passou a considerar o autismo não como um sintoma, mas um diagnóstico
independente na psiquiatria (LOPES, 2019a). Ainda que as semelhanças tenham
sido refutadas por pesquisas médicas, a aproximação causou uma grande
dificuldade ao longo dos anos na desarticulação entre os dois diagnósticos, sendo
que, até 2004, nos manuais médicos franceses, o autismo ainda era considerado
uma psicose infantil (GRINKER, 2010). A conjunção também gerou uma percepção
equivocada do autismo enquanto um traço, um “sintoma” ou “comportamento”.
Como consequência, ainda resiste, no imaginário social, o autismo como um
comportamento ou conduta específica, pautado em uma percepção preconceituosa
e discriminatória acerca da condição. Contemporaneamente, familiares e autistas
ativistas têm se posicionado, inclusive através de denúncias, contra figuras públicas
37

que utilizam do autismo como um adjetivo pejorativo. No campo etnográfico, a


máxima “autismo não é adjetivo” se tornou fundamental no processo de
reconhecimento da condição desassociada à uma perspectiva comportamental
negativa21.

Ao longo das primeiras décadas após a caracterização do diagnóstico clínico,


diferentes concepções etiológicas e de prognóstico sobre o autismo foram se
estabelecendo concomitante às transformações da ciência médica e aos processos
históricos e sociais mais amplos. Inicialmente entendido por uma visão organicista
através das constatações de Kanner, por influência das abordagens psicodinâmicas
que começavam a ganhar força nos Estados Unidos, o autismo passou a ser
relacionado ao ambiente e às relações (CAVALCANTE, 2002). Uma série de
interpretações e críticas a respeito do trabalho de Kanner desencadeou um enfoque
no papel e exercício dos pais – e principalmente, das mães – no desenvolvimento de
crianças autistas. Ainda que o psiquiatra tenha argumentado não seguir este viés de
responsabilização das relações parentais como causa do autismo (LOPES, 2019a),
muitas de suas afirmações a respeito do comportamento das famílias das crianças
atendidas, revelavam uma perspectiva menos organicista e mais psicodinâmica, ou
seja, em que motivações psicológicas agiam sobre o comportamento infantil22.

Roy Grinker (2010) afirma como as doenças e diagnósticos estão imbuídos


de valores morais, principalmente aqueles com causas ou prognósticos
desconhecidos. Assim, em um contexto cultural de reestruturação do modelo social
da família, na década de 1960, o autismo foi associado a um valor moral incidente
sobre as famílias, reforçando modelos vistos como ideais de parentalidade. Bruno
Bettelheim23, com suas populares teorizações sobre autismo nos Estados Unidos,

21
Casos recentes contra o uso discriminatório do autismo como um adjetivo pejorativo foram pautas
de discussões e posicionamentos entre os interlocutores desta pesquisa. Mais informações sobre
esses casos estão disponíveis em: <https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/02/05/interna_po
litica,1235551/prefeito-diz-ter-sido-mal-interpretado-ao-comparar-bolsonaro-a-autista.shtml>; <https://
www.metropoles.com/colunas/leo-dias/maes-de-criancas-com-autismo-se-revoltam-com-humorista-le
o-lins-entenda>. Acesso em maio de 2021.
22
Grinker (2010) explora mais detidamente como as abordagens psicodinâmicas impactaram no
entendimento e reconhecimento do autismo ao longo das décadas.
23
Bettelheim era austríaco, emigrado para os Estados Unidos, e ganhou popularidade por teorizações
sobre psicologia humana e diversas publicações sobre o autismo. Donvan e Zucker (2017)
38

também ganhou destaque ao publicar seu livro intitulado “A fortaleza vazia”24, em


1967. O autor apresentava os traços do autismo como reações a relações
problemáticas com a família, principalmente as mães. Donvan e Zucker demonstram
que Bettelheim chegou a comparar os comportamentos vistos em homens
aprisionados com o de crianças autistas: “se os nazistas destruíam o espírito
daqueles homens adultos, as mães estropiavam os filhos pequenos” (DONVAN E
ZUCKER, 2017, n.p). Foi neste cenário de transformações do papel da mulher
associado ao ambiente doméstico, assim como a emergência da psiquiatria infantil
em conjunto à psicanálise, trazendo elementos para exercício da parentalidade
(LOPES, 2019a), que a mãe geladeira do autismo adentrou o imaginário social.
Como consequência das metáforas e acusações morais por Kanner e Bettelheim
acerca da insuficiência de afetividade e cuidado pelas mães com seus filhos em
desenvolvimento, permaneceu o estigma do autismo associado à influência familiar,
afastando dessas mães o modelo de “boa mãe”25.

O suposto comportamento inadequado da mulher era, então, considerado


problemático, uma vez que os possíveis danos resultantes de suas ações
inapropriadas impactariam negativamente as crianças, podendo (conforme
esse discurso) inclusive provocar desde problemas comportamentais a
patologias emocionais (LOPES, 2019a, p.41-42).

As considerações de Kanner e Bettelheim fundamentaram uma análise de


fundo psicanalítico que teve como um de seus efeitos, uma concepção
estigmatizante sobre as famílias de pessoas com autismo. Assim, eram construídas
uma condição e uma parentalidade baseadas nas explicações comportamentais de
mães e pais: frios, reservados, incapazes de demonstrar afeto, congelados. Uma
parentalidade que estava congelando crianças saudáveis, tornando-as autistas. Um
autismo latente esperando por criações inadequadas (GRANDIN e PANEK, 2015).

descrevem com profundidade as relações de Kanner, Bettelheim e outros especialistas na construção


dessas narrativas sobre o autismo.
24
“The empty fortress: infantile autism and the birth of self” (1967), no original.
25
Sobre a influência desses discursos no contexto brasileiro ao longo do século XX e início do XXI,
ver o trabalho de Bruna Alves Lopes (2019a), que parte das análises pioneiras de Elisabeth Badinter
(1985) sobre a construção cultural do mito do amor materno, para analisar as transformações do
papel da mulher e mãe no contexto do diagnóstico de autismo.
39

Esse imaginário excludente e extenuante sobre pais não emocionalmente


responsivos causadores do autismo predominou como uma explicação validada pela
psiquiatria e pela psicanálise ao longo das décadas seguintes ao reconhecimento do
diagnóstico. “A mãe geladeira nunca saiu do imaginário popular”, pondera Rute, mãe
de um homem autista e uma das interlocutoras desta pesquisa com um considerável
histórico de atuação na causa26. Sua fala não é exceção, a evolução histórica do
diagnóstico reverbera ainda hoje nas experiências cotidianas desses familiares. E no
contexto local, onde a abordagem psicanalítica predomina, a perspectiva pautada na
responsabilidade direta das mães tende a ser frequente. Acusações sobre as formas
de parentalidade, criação e cuidados como propulsores da condição se apresentam
em falas de profissionais de saúde, de agentes públicos e é também usual entre
pessoas desconhecedoras da causa ou mesmo alguns familiares, seja em discursos
que enfatizam o autismo como consequência da escassez de afetividade ou na falta
de empenho dessas mães e pais no desenvolvimento do filho.

O deslocamento, nas décadas seguintes, das concepções psicanalíticas para


um enfoque biológico e cerebral, na Europa e Estados Unidos, resultou em uma
guinada na apreensão sobre o diagnóstico de autismo. Francisco Ortega (2009)
aponta que, a partir da década de 1960, foi se conformando ao redor do mundo, em
diferentes intervalos de tempo, a convergência para explicações orgânicas e
biológicas que culminaram em atualizações de manuais diagnósticos. Com o
afastamento das teorias psicanalíticas, mães e pais foram desresponsabilizados
pelos destinos subjetivos de seus filhos (ORTEGA, 2008; 2009) rearranjando a
posição desta parentalidade. O “autismo cerebral”, advindo de pesquisas da
psiquiatria biológica e das neurociências (ORTEGA, 2008, 2009; GRANDIN e
PANEK, 2015), é o início tanto de um movimento de familiares pautado na busca por
serviços, tratamentos e terapias – e em alguns casos, na busca pela cura –, quanto
um movimento pautado na neurodiversidade e na identidade autista. Ian Hacking
(2006) argumenta como essa biologização acaba por desvincular a condição de

26
O termo causa é constantemente evocado no campo etnográfico. A depender de cada contexto, as
causas autistas dizem respeito aos movimentos de pessoas autistas, aos movimentos de familiares
em prol dos direitos dos autistas ou ambos; distinguindo-os, na maioria das vezes, dos especialistas
ou agentes públicos. Outro termo flexível adotado neste mesmo sentido é comunidade autista.
40

causas ligadas às responsabilidades individuais. Portanto, a partir da década de


1960 com esta abordagem das neurociências, assim como os enfoques políticos
trazidos pelo movimento da deficiência nas décadas seguintes, há um deslocamento
do diagnóstico como algo situado exclusivamente no domínio individual ou na
relação familiar, para uma construção da condição em termos de identidade e
cidadania. Assim, esta localização do autismo na biologia dos corpos implica
também em movimentos políticos direcionados ao modo como esses corpos ocupam
o social.

É a partir desses movimentos, tanto de familiares e cuidadores, quanto de


ativistas autistas que surgem debates concomitantes sobre o autismo como
diagnóstico e como identidade social. Estes discursos, que localizam diferentes
concepções sobre o autismo, ganham relevância nos embates cotidianos das
pessoas que vivem com27 a condição e passam a compor os contextos locais. Após
essa breve digressão do “mito criador”, que se torna relevante no entendimento do
envolvimento familiar referente à condição, tanto em uma perspectiva analítica para
esta dissertação, quanto para a concepção dos próprios interlocutores no campo
etnográfico, trago os sentidos que a categoria/condição ganha no contexto local
desta pesquisa, apontando como o autismo passa a fazer parte do repertório político
e social no Brasil.

1.2 O AUTISMO NO BRASIL

O reconhecimento do autismo no Brasil ampara-se em um amplo cenário


político e social e que, na particularidade histórica do país, está atrelado às questões
de saúde e assistência em relação à deficiência. Movimentos políticos e sociais
como a Reforma Sanitária, a Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta
Antimanicomial são fundamentais para o entendimento sobre deficiência e saúde

27
Refiro-me a pessoas que vivem com o autismo, abarcando tanto os autistas, quanto suas famílias,
entendendo, como argumento central desta dissertação, que as famílias também são atravessadas,
de diferentes formas, nas experiências com a condição.
41

mental baseadas nas premissas sociais, identitárias e de promoção da cidadania.


Da mesma forma, esses processos reformistas trouxeram transformações
substanciais na constituição de um sistema de gestão pública disposto em
concepções biomédicas atreladas às conjunturas sociais. A constituição de políticas
e serviços públicos na área da saúde mental estabeleceu também um panorama de
reivindicações, assim como promoção de serviços pela sociedade civil, que
configuraram parte do reconhecimento do autismo no Brasil. A autoadvocacia e o
associativismo, emergentes diante das demandas e insuficiências da gestão pública,
adquirem um papel fundamental no reconhecimento das condições de saúde e
deficiência e assim, são através dessas mobilizações que o autismo ganha
visibilidade. De forma sucinta, retomo, portanto, este panorama histórico,
destacando como gestão estatal, autoridade biomédica e mobilização social estão
imbricados no entendimento da condição no contexto local.

Pamela Block e Fátima Gonçalves Cavalcante (2014) demonstram como


modelos, instituições e formas de tratamentos advindos dos Estados Unidos e
Europa foram significativos na construção e sistematização da psiquiatria brasileira.
Entretanto, como demonstram as autoras, as introduções de perspectivas teóricas e
clínicas passaram por arranjos locais que configuraram práticas psiquiátricas
profundamente enraizadas em princípios de raça, hierarquia e gênero. Uma rigorosa
institucionalização e medicalização permaneceram no Brasil, até meados do século
XX, como controle de comportamentos sociais considerados desviantes e
patológicos. Durante a ditadura civil-militar brasileira houve um crescimento de
hospitais psiquiátricos privados e financiados pelo governo (LIMA et al., 2019). Neste
contexto, sem o diagnóstico sistemático, pessoas autistas eram institucionalizadas
em abrigos, hospitais psiquiátricos e instituições filantrópicas ou, sem receber
nenhum tipo de assistência, eram abandonadas (CASCIO, ANDRADA e BEZERRA
JR, 2019). O autismo, ainda sem esta denominação específica, permanecia nas
rubricas do “retardo mental”, portanto, recebendo o mesmo tipo de tratamento.

Ao resgatar esse período de institucionalização e a relação com o autismo no


Brasil, Rossano Lima, Clara Feldman, Cassandra Evans e Pamela Block (2019)
apontam para as primeiras iniciativas de assistência providas por associações, como
42

a Associação Pestalozzi, criada em 1932, com a promoção de estratégias


terapêuticas e educacionais para “crianças excepcionais”28. Diante da falta de
assistência estatal, grupos de apoio entre familiares também foram criados,
resultando em um modelo de associativismo e prestação de serviços a “indivíduos
mentalmente deficientes”29. Exemplar da disseminação deste modelo foi a
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), fundada na década de
1950.

Na segunda metade do século XX, as práticas de atenção e cuidado à saúde


passaram por um significativo processo social e político em decorrência de um
período de transformação geral frente à redemocratização. M. Ariel Cascio, Bárbara
Costa Andrada e Benilton Bezerra Jr. (2019) apontam para a mobilização social que
se fortaleceu nos anos seguintes ao regime militar ditatorial à medida que
reivindicações específicas eram associadas à constituição democrática. A partir da
década de 1980, diferentes setores da sociedade reclamavam por uma abordagem
da saúde como uma questão política, social e pública. A ideia de uma cidadania
plena combinava-se à saúde como um direito (CASCIO, ANDRADA e BEZERRA JR,
2019). Assim, o ativismo político do período de redemocratização “conectou mais
explicitamente direitos civis e políticos com direitos sociais e econômicos” (LIMA et
al., 2019, p.37), abrangendo o amplo debate de direitos humanos, central para os
movimentos sociais no Brasil. A Reforma Sanitária, como uma reformulação das
políticas de saúde e da construção do ideal de saúde como um direito do cidadão,
se consolidou nos anos de 1980 e fundamentou a criação do Sistema Único de
Saúde (SUS) com seus princípios de universalidade, integralidade e equidade.

Foi nesse cenário que o Movimento da Luta Antimanicomial e a Reforma


Psiquiátrica também eclodiram e trouxeram amplas mudanças na atenção à saúde
mental no Brasil. Esses movimentos denunciavam a precariedade da vida nas

28
Atualmente, o termo “excepcional” é considerado depreciativo, portanto, não sendo utilizado para
referenciar pessoas com deficiência ou transtornos mentais. Termos como “pessoas especiais” e
“portador de deficiência” também não são utilizados pelo mesmo motivo. Resultado da luta de
movimentos sociais da deficiência e relacionada diretamente à construção e promoção da cidadania,
a terminologia tida como a mais adequada é, atualmente, “pessoa com deficiência” (PcD). Esta
terminologia é incorporada na Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº13.146/2015).
29
Neste contexto de atuação, o autismo não era um diagnóstico independente, mas associado ao
“retardo mental” e outras deficiências (LIMA et al., 2019).
43

instituições psiquiátricas e questionavam os conhecimentos e práticas da psiquiatria.


Com influência dos ideais do italiano Franco Basaglia, a Reforma Psiquiátrica
defendia o foco na experiência social dos sujeitos e buscava colocar “a doença entre
parênteses” (LIMA et al., 2019, p.49). A Reforma Psiquiátrica consolidou uma ampla
reestruturação na política oficial de saúde mental no contexto brasileiro. Hospitais
psiquiátricos tiveram suas atividades encerradas e foi formulada uma rede de
serviços estatais destinados às pessoas com transtornos mentais (LIMA et al.,
2019). Estabeleceu-se também uma rede de serviços comunitários com a promoção
da família e da comunidade local como fundamentais nesta política de gestão da
assistência à saúde mental. A desinstitucionalização envolveu mudanças legais e
políticas, críticas epistemológicas à medicina e psiquiatria, novas perspectivas sobre
cuidados e uma transformação dos transtornos mentais em uma identidade social,
fundamentada na cidadania e inclusão (CASCIO, ANDRADA e BEZERRA JR, 2019).
A oficialização do processo reformista ocorreu, legalmente, apenas em 2001, com a
promulgação da Lei nº 10.216.

Dentre os serviços que a Reforma Psiquiátrica propiciou, os Centros de


Atenção Psicossocial (CAPS) e, posteriormente, os Centros de Atenção Psicossocial
Infantojuvenil (CAPSi) ganharam destaque. Em Belo Horizonte, na década de 1990,
foram criados os primeiros Centros de Referência à Saúde Mental (CERSAM) e,
mais tardiamente, os Centros de Referência em Saúde Mental Infantil (CERSAMI),
com atuação semelhante ao CAPS. Esses serviços de curta permanência objetivam
o atendimento de pessoas com transtornos mentais e atuam de forma regionalizada
e hierarquizada, ou seja, atendem uma área de abrangência e incluem outros
serviços de saúde, como centros de saúde, centros de convivência, hospitais gerais
e demais serviços (OLIVEIRA, CAIAFFA e CHERCHIGLIA, 2008). Lima, Feldman,
Evans e Block (2019) exploram como a criação do CAPS e CAPSi tem especial
importância para o autismo no país. O diagnóstico de autismo passou a se
estabelecer sistematicamente, no Brasil, na década de 1980. Entretanto, só ganha
proeminência no campo da saúde mental, no início do século XXI, com o
desenvolvimento da saúde mental infantil atrelada à constituição destas políticas
públicas e à autoadvocacia.
44

Estes Centros passam a atender pessoas com transtornos de forma integrada


baseados nas premissas da Reforma Psiquiátrica, ou seja, com ações em conjunto
com a saúde, educação, assistência social, justiça e defesa de direitos (LIMA et al.,
2019), e buscam, neste mesmo sentido, fomentar e preservar os vínculos sociais
com a comunidade. A prática, entretanto, destoa-se das propostas e ideais dos
serviços. A pouca ênfase nas parcerias intersetoriais, a insuficiência de recursos e a
precariedade estrutural são os principais fatores que prejudicam a efetivação do
sistema (LIMA et al., 2014). No que concerne ao autismo, em decorrência das
premissas da Reforma Psiquiátrica, em conjunto à forte presença psicanalítica na
psiquiatria brasileira30, muitos dos profissionais da saúde mental pública apresentam
críticas em relação às classificações advindas de documentos de referência, como o
DSM e a CID31. O atendimento nos CAPS e CAPSi são realizados independente da
categoria diagnóstica. No que concerne ao autismo, essa falta de especialidade no
diagnóstico é caracterizada com um dos principais impasses no atendimento dentro
dos serviços públicos. Neste viés, recorrentes são as críticas de familiares à falta de
tratamento especializado, a “falta de foco no cuidado clínico”, o atendimento com
duração e frequência insuficiente e a escassez de informação sobre o autismo (LIMA
et al., 2019; RIOS, 2019). Essas mesmas críticas são apontadas por familiares no
contexto local da pesquisa acerca das avaliações do CERSAM e CERSAMI. É neste
controverso cenário que as associações adquirem um papel fundamental no
reconhecimento das condições de saúde e deficiência no Brasil.

Block e Cavalcante (2014), em um resgate histórico e social do autismo,


discorrem como a Constituição Federal de 1988, resultado das transformações
políticas e sociais da redemocratização, passa a incluir programas de proteção e
assistência estatal. Mas logo de início, as falhas na gestão dessa garantia de direitos
se tornaram visíveis no apagamento de certos contextos de vulnerabilidade. As

30
A Reforma Psiquiátrica brasileira teve uma grande influência da lógica psicanalítica que marcou
também os movimentos pós-Reforma. Cascio, Andrada e Bezerra Jr (2019) apontam como a
psicanálise permanece muito forte nos campos de atuação da saúde mental. “Parte da controvérsia
relacionada às políticas e ao cuidado para o autismo no Brasil está emaranhada com a influência
psicanalítica no campo da saúde mental” (CASCIO, ANDRADA e BEZERRA JR, 2019, p.85).
31
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), que são abordados ao longo
desta dissertação.
45

autoras demonstram como a sociedade civil, e principalmente as famílias, passaram


a assumir responsabilidades por serviços que deveriam partir do próprio Estado.
Portanto, paralelamente às transformações reformistas, incluindo as novas políticas
oficiais de saúde mental, houve uma significativa mobilização de grupos de ativismo,
associações privadas e instituições filantrópicas que buscavam atender demandas
de assistência a grupos vulneráveis.

Nesta lógica da promoção de serviços, assistência e informações, o autismo


ganha visibilidade com as primeiras associações de familiares. José Augusto
Leandro e Bruna Alves Lopes (2018), em uma pesquisa documental no Jornal do
Brasil, com recorte na década de 1980, analisam a construção do conhecimento
sobre o autismo e destacam o significativo envolvimento familiar. Os autores revelam
uma série de cartas de mães e pais ao jornal de ampla circulação que traziam
relatos sobre a dificuldade da atenção ao diagnóstico. As narrativas descreviam o
autismo como uma “doença enigmática” e enfatizavam a falta de visibilidade e ações
destinadas às pessoas autistas (LEANDRO e LOPES, 2018). As cartas analisadas
por Leandro e Lopes evidenciavam a convocação de outros familiares para a criação
de instituições que visassem o bem estar dos filhos autistas.

Assim, em 1983, foi fundada a Associação de Amigos do Autista (AMA) em


São Paulo, sendo composta majoritariamente por mães e pais, objetivava a
assistência e produção de expertise. A AMA promoveu um vasto intercâmbio de
informações e tratamentos, principalmente teorias e práticas estrangeiras nas
formações de pais e profissionais de saúde no país. Como apontam Lima, Feldman,
Evans e Block (2019, p.47), “inspiraram o estabelecimento de uma rede de serviços
e outras associações”. A Associação de Pais de Autistas do Rio de Janeiro (APARJ)
surgiu em 1985, com a mesma atuação e promoção de serviços e informações.
Esse ativismo autista advindo de familiares propiciou uma percepção do autismo no
Brasil associado às políticas públicas e práticas de assistência, saúde e educação.
Portanto, as associações de familiares ganharam, ao longo das décadas, um papel
fundamental no reconhecimento do autismo. Essas redes de ativismo continuaram
com uma constante mobilização e engajamento, constituição de associações por
46

todo o país, e atuações com diferentes linguagens e suportes tecnológicos, assim


como propostas de novas pautas sobre o autismo (LEANDRO e LOPES, 2018).

Esta retomada histórica da emergência do autismo no Brasil se faz


necessária para a contextualização do campo de pesquisa aqui apresentado. As
associações garantem um papel fundamental no reconhecimento do autismo e, à
medida que teorias e práticas circulam globalmente, o autismo ganha novos sentidos
na apreensão pelos sujeitos em seus contextos situacionais e arranjos locais de
manutenção da vida. Cabe acrescentar que, para além da atuação familiar, a
ocupação política de pessoas com deficiência ao longo das últimas décadas, e em
específico, de autistas ativistas, ganha proeminência nessa circulação de sentidos,
reivindicação de demandas e constituição de reconhecimento social e político no
contexto brasileiro. Ao situar o cenário de ampla intervenção estatal e oferta de
serviços de assistência, saúde e educação, o autismo no contexto local, é marcado
por essas relações entre diferentes atores sociais no reconhecimento político e
social, sendo centrais a concepção da gestão estatal, a autoridade biomédica e a
mobilização social de familiares e autistas na constituição de projetos de identidade
e cidadania. É neste resgate histórico que destaco o papel fundamental da atuação
familiar no entendimento do autismo enquanto uma categoria situada. Cabe
entender os limites e possibilidades desta atuação e quais novas disposições de
entendimento e reconhecimento esse constante influxo pode estabelecer.

1.3 AUTISMO COMO MOVIMENTO E IDENTIDADE

Abordei anteriormente como o autismo se inseriu na cena pública e política


brasileira. Um cenário complexo e dinâmico que envolve atores diversos na
legitimidade, reconhecimento e atenção à pessoa autista. O autismo ganha
contornos específicos a partir desses arranjos locais que integram histórias políticas,
econômicas, sociais e a relação entre os sujeitos e o Estado. As controvérsias que
surgem de um conjunto de circunstâncias históricas permitem articulações, redes e
47

alianças, e corroboram para a construção e apreensão do diagnóstico específico ao


contexto local. Assim como afirma Grinker (2010), a forma como vemos o autismo
faz parte de um conjunto amplo de transformações das sociedades. É interessante
notar, entretanto, que essas múltiplas lógicas não estão isoladas em suas
localidades, estão em interação e movimento, corroborando para incorporação de
novos elementos nas disputas em torno da condição. Neste sentido, narrativas
construídas pelos indivíduos podem revelar essas aproximações, exaltando o
caráter relacional, flexível e pragmático das diferentes classificações.

Nos Estados Unidos, localidade de onde advém o diagnóstico clínico, os


temas em debate sobre o autismo abarcam outros sentidos em comparação ao
contexto brasileiro. Algumas questões principais nas disputas ontológicas do
autismo trazem interpretações relacionadas às causas, tratamentos e intervenções
e, em oposição, à noção de diversidade e identidade. Esses dissensos giram em
torno de intervenções sobre o corpo, autonomia pessoal e apoios necessários à vida
independente, mas de maneira distinta ao Brasil, nos Estados Unidos o ativismo
político e a assistência médica estão, geralmente, em lados opostos na atenção à
pessoa autista (LIMA et al., 2019). Por um lado, pais e profissionais buscam as
melhores estratégias educacionais e de tratamento para os filhos, adotando
ferramentas e técnicas32 com o objetivo de investirem nas adaptações necessárias
para a inclusão social. Muito similar ao Brasil, pais e associações de defesa dirigidas
por familiares têm construído serviços e programas destinados a autistas. Em alguns
casos, a busca desses pais por tratamentos vão além de uma inclusão social,
objetivam curar, prevenir, reverter ou eliminar a sintomatologia autista.

Em contrapartida, autistas ativistas têm desempenhado um papel


fundamental nessas questões, com críticas à cultura médica dominante e suas
formas de intervenções, apresentando outras perspectivas para o autismo. O

32
Nas arenas de debates do autismo, são populares as intervenções comportamentais como a
Análise Comportamental Aplicada (Applied Behavioral Analysis, ou ABA), Floor Time, Terapia de
Integração Sensorial, Tratamento e Educação de Crianças com Autismo e Dificuldades de
Comunicação (Treatment and Education of Autistic and Related Communication-Handicapped
Children, ou TEACCH), dentre outras. Essas técnicas são utilizadas por muitos profissionais no
Brasil, principalmente na rede privada, que tem seus contatos constantemente trocados entre os
grupos de familiares da pesquisa etnográfica. Os debates sobre as melhores intervenções e
tratamentos são recorrentes, mas uma análise aprofundada não cabe ao escopo desta dissertação.
48

ativismo autista, que tem início na década de 1980, tem crescido exponencialmente
nos Estados Unidos trazendo as próprias experiências para o cerne das discussões
(LIMA et al., 2019). Os movimentos em defesa das pessoas com deficiência, na
década de 1970, também foram fundamentais para a construção do viés identitário,
através do deslocamento da visão biomédica para um modelo social, no qual a
deficiência deixa de ser uma tragédia pessoal e passa a ser vista como uma questão
social e política (ORTEGA, 2009). Esse fundamento político permite, portanto, em
relação ao autismo, a emergência de uma perspectiva baseada na afirmação da
identidade, constituindo afirmações do “orgulho autista” e da “comunidade autista”,
por exemplo. Atualmente, diversos grupos de autistas trabalham em conjunto aos
movimentos em defesa das pessoas com deficiência, na efetivação de políticas e na
valorização dos indivíduos. Lima, Feldman, Evans e Block apresentam o ativismo
autista que vem ganhando força nos Estados Unidos:

Há uma considerável afinidade entre os ativistas autistas e acadêmicos que


estudam deficiência e loucura, que se perguntam por que as experiências
da deficiência, do autismo e dos transtornos mentais não podem ser
reconhecidas como parte autêntica do espectro da experiência humana
(LIMA et al., 2019, p.63).

Também por uma perspectiva que enfoca a experiência humana, o autismo


como uma neurodiversidade aparece nos Estados Unidos a partir de discussões de
acadêmicos e ativistas, no final da década de 199033. O movimento em torno da
neurodiversidade surge como um posicionamento crítico em relação ao discurso
biomédico e à falta de representatividade de autistas nas tomadas de decisões e
debates políticos, passando a reivindicar uma identidade. O ativismo se desdobra a
partir da atuação de grupos de apoio e associações, do movimento da deficiência e
de autoadvocacia e, não menos relevante, do advento da era digital (ORTEGA,
2008). Para os neurodiversos ou neuroatípicos, como se autodenominam, o autismo
é parte constitutiva de si mesmos, relacionando-se com uma composição

33
O termo é usado pela primeira vez pela socióloga Judy Singer com a publicação do texto “Por que
você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um “problema sem nome” para a emergência de
uma nova categoria de diferença” (1999).
49

neurológica que constrói suas formas de ver e experienciar o mundo. A variação


neurológica está sujeita a dinâmicas sociais semelhantes às outras diferenças
humanas, tais como raça, gênero e sexualidade (ORTEGA, 2009)34. Este outro
sentido do autismo retoma, portanto, o complexo cenário de controvérsias e
disputas, mas traz uma crucial perspectiva do movimento mobilizado pelos próprios
autistas.

Os ativismos autistas, que têm ganhado força e destaque não apenas nos
Estados Unidos, mas ao redor de todo o mundo, têm reivindicado a
representatividade e o engajamento, e influenciado os posicionamentos críticos e
políticos, inclusive de grupos de familiares e profissionais. No Brasil, ainda que as
controvérsias sobre o autismo estejam centradas na pragmática da execução de
serviços, construção de políticas públicas e efetivação de direitos, a
neurodiversidade, por exemplo, tem adentrado as narrativas de atores sociais
envolvidos na temática do autismo. Acompanhei durante o período de isolamento
social, decorrente da crise sanitária de covid-19, a expansão rápida de perfis de
autistas ativistas nas redes sociais trazendo debates mais próximos ao movimento
da neurodiversidade e da identidade autista35. O movimento tem ganhado
legitimidade nas perspectivas de mães, pais, grupos organizados e associações; e
da mesma forma, a atuação por meio da internet tem adquirido mais intensidade
como atuação política, em consequência às novas formas de relacionamento,
disseminação e acesso de informações durante a pandemia36.

34
Ortega (2008, 2009), Hart (2014) e Campoy (2016) trazem com mais propriedade o movimento da
neurodiversidade e a relação com associações e grupos de pais. Ortega aponta como os movimentos
estão fundamentados na concepção de um “sujeito cerebral” que leva a diferentes modos de gestão e
posições políticas. Hart traz um debate mais amplo do movimento da neurodiversidade, para refletir
como a diversidade e a experiência autista exprimem-se nas relações de cuidados, nas adesões de
programas terapêuticos e na vida cotidiana das famílias. Campoy apresenta as disputas entre
familiares e ativistas da neurodiversidade na alocação de recursos e serviços de assistência e, assim
como Ortega, elucida sobre os limites do movimento quanto à diversidade do espectro autista.
35
O aumento da exposição em redes sociais e interações virtuais, em decorrência da situação de
isolamento, pode ter contribuído para a potencialidade do movimento no contexto brasileiro,
carecendo de uma investigação mais aprofundada dos impactos da pandemia nos processos de
reconhecimento do autismo.
36
O grupo de associações acompanhado nesta pesquisa também passou a adotar perfis em distintas
redes sociais virtuais como forma de atuação política.
50

Brendan Hart resgata Ian Hacking (2009) para explicar como as atuações de
autistas fornecem uma “infraestrutura para entender o que as pessoas com autismo
estão fazendo na vida diária” (HART, 2014, p.287), funcionando como alicerces entre
as diferentes experiências. Através de uma pesquisa em variados contextos
etnográficos, Hart busca refletir como a neurodiversidade, e mais especificamente, a
valorização da diversidade e experiência autista levantada pelo movimento,
exprime-se nas relações de cuidados e nas adesões de programas terapêuticos por
pais e familiares. Hart evidencia como o autismo adquire novos sentidos nos
contextos da vida cotidiana, ainda que perpassados por teorias e movimentos que, à
primeira vista, parecem contraditórios. No cotidiano, os embates e discrepâncias
tornam-se abstratos, “praticamente irrelevantes” (HART, 2014). Para o autor, as
terapias, também ampliadas na vida das famílias, fornecem uma “infraestrutura
técnica” para a profundidade e diversificação das vivências das pessoas autistas, tal
como advoga o movimento da neurodiversidade. Hart apresenta uma miríade de
exemplos de interações entre pais, mães, filhos e filhas autistas para a inclusão nos
ambientes sociais que estão longe de serem normativas, mas abarcam os modos
neurodiversos de interação.

[...] Os pais aprenderam a se comunicar com os filhos, a valorizar suas


personalidades singulares e advogar em seu nome no contexto da vida
cotidiana e às vezes além dela. Assim, sob o signo da normalização das
crianças autistas, elas realmente iniciaram um processo dialético de
aceitação radical de suas diferenças (HART, 2014, p.293).

O campo etnográfico desta pesquisa também se assemelha às observações


apontadas por Hart (2014) ao apresentar as práticas cotidianas familiares
perpassadas por diferentes premissas dos movimentos sobre autismo. Similar às
considerações do autor, as relações entre a neurodiversidade e o movimento familiar
organizado não são meramente excludentes. As ideias preconizadas pelo
movimento da neurodiversidade aparecem dentro da rede atuante local,
principalmente no que concerne à valorização da diversidade e da experiência
autista. Ainda que, algumas vezes, a menção ao movimento da neurodiversidade
51

sugira um assombroso ataque, remetendo a uma ideia de “pseudociência” ou como


um movimento separatista dos níveis de suporte às pessoas autistas. Tal como
Ortega aponta (2008, 2009), as críticas ao movimento da neurodiversidade advindas
de familiares e cuidadores de pessoas no espectro autista, dizem respeito à pouca
atenção às necessidade de crianças autistas e autistas “severos” que requerem um
suporte maior, e que, por vezes, os ideais de tomadas de decisões e autonomia,
advogados pelo movimento, excluem suas experiências. Assim, estas críticas se
fundamentam na pouca representatividade do movimento, que é visto como uma
mobilização de autistas de “alto funcionamento”. Esta situação também é expressa
no campo etnográfico, ao dar ênfase em questões que atingem a especificidade da
experiência em níveis maiores de suporte. Ainda assim, a diversidade e a
valorização dessas experiências são expressões recorrentes, evidenciando esta
diferença humana que deve ser respeitada (ORTEGA, 2009). As premissas do
movimento da neurodiversidade, portanto, são também alento e resistência para
alguns familiares nos discursos esperançosos por uma sociedade mais inclusiva.

Ao longo desta dissertação, apresentarei exemplos etnográficos que retomam


essas articulações entre as controvérsias sobre o autismo que, ao final, tem seus
sentidos apreendidos nas ordens de ação e experiências vividas. Explorarei mais
detidamente como a perspectiva biomédica sobre o autismo, a construção de seu
reconhecimento enquanto uma deficiência, bem como as complexas relações entre
os discursos de identidade autista e neurodiversidade são atualizados no cotidiano
do movimento de familiares e autistas.

1.4 AUTISMO COMO ESPECTRO

Nas intercorrências históricas do autismo, síncrono à pesquisa de Kanner, em


1944, Hans Asperger publicou na Alemanha um estudo com crianças usando o
autismo para descrevê-las (GRINKER, 2010)37. Asperger chegou a conclusões

37
A primeira referência de Asperger sobre o tema foi em 1938, entretanto, seu estudo mais
abrangente sobre o autismo foi publicado em 1944 (CZECH, 2018).
52

semelhantes às de Kanner quanto aos critérios diagnósticos, mas já afirmava que o


autismo era resultado de uma relação entre fatores genéticos e ambientais – o
entendimento etiológico mais defendido atualmente em relação ao autismo
(GRINKER, 2010). Muito antes de ser incluído nos documentos médicos, Asperger
afirmava que a condição se tratava de um espectro, com uma variedade de
manifestações de comportamentos. Alguns autores afirmam que, possivelmente,
Kanner e Asperger abarcavam, em suas pesquisas, pacientes diferentes em relação
ao espectro: Kanner estaria em contato com pacientes da forma “clássica” e “grave”
do autismo, enquanto Asperger pesquisava pacientes com grau de suporte
“moderado” e “leve” (GRINKER, 2010). Análises históricas sobre a relação entre os
psiquiatras também são controversas, variando entre um completo desconhecimento
mútuo entre os médicos (GRINKER, 2010) e uma proposital falta de menção dos
registros de Asperger por Kanner (CZECH, 2018). Independente desta relação,
Asperger só se tornou conhecido na década de 1980, através do trabalho de Lorna
Wing. Especialista inglesa em autismo e mãe de uma criança autista, Wing
popularizou a “psicopatia autista” de Asperger em uma síndrome com seu nome
(GRANDIN e PANEK, 2015).

O autismo passou a compor os manuais diagnósticos38 quase quarenta anos


após a publicação de Kanner, na década de 1980. Já a Síndrome de Asperger
passou a ser incluída, em um dos relevantes sistemas internacionais de
classificação médica – a saber, o DSM39 –, em 1994. Atualmente, a síndrome foi
suprimida de manuais diagnósticos, integrando a ampla rubrica de Transtorno do
Espectro Autista (TEA). A Síndrome de Asperger é diferenciada do autismo por
abarcar uma condição com questões sutis de socialização, comunicação e
sensoriais, sem comprometimentos de linguagem e cognição. Por esses motivos, o

38
Com base no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e na Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), documentos médicos
que foram abordados no campo etnográfico e serão mencionados ao longo desta dissertação. Em
1980, o autismo é incluído como diagnóstico clínico no DSM III, colocado em uma nova classe de
transtornos de desenvolvimento (KLIN, 2006). Essa classe diagnóstica é, então, incorporada no
CID-10, publicada em 1989 e que sofreu diversas atualizações ao longo dos anos.
39
Um quadro sobre as transformações no DSM em relação ao diagnóstico de autismo pode ser
encontrado no apêndice desta dissertação, baseado nas formulações de Grandin e Panek (2015).
53

diagnóstico é muitas vezes associado, no senso comum, ao autismo “leve” e de “alto


funcionamento”.

Tal como no espectro das cores, no qual não há uma divisão clara entre, por
exemplo, o vermelho e o laranja, ou o azul e o púrpura, o espectro do
autismo não apresenta fronteiras definidas entre as diferentes
manifestações de autismo (GRINKER, 2010, p.73).

Temple Grandin e Richard Panek (2015) ressaltam que o


“autismo-mas-nem-tanto”, referindo-se de forma irônica à Síndrome de Asperger, foi
relevante para a transformação da visibilidade sobre a condição. A presença destes
autistas, com a autoidentificação de aspergers40 ou aspies, resultou em uma
abertura midiática sobre a condição, inspirando, principalmente, produções
cinematográficas41. Consequência disso, foi a expansão do entendimento acerca do
autismo. Neste mesmo sentido, Enrico Valtellina (2019) também aponta como a
classificação psiquiátrica da Síndrome de Asperger foi atribuída a conotações
positivas, justificando a vasta atenção cultural, e permitindo novos direcionamentos
sobre o autismo de forma generalizada. A participação plena das pessoas
diagnosticadas como aspergers em movimentos sociais42 – inicialmente nos Estados
Unidos, baseados nos discursos de representatividade de minorias – também
caracterizou uma abertura para a conscientização e informação sobre o autismo,
sendo que “desde os anos 1990, esse diagnóstico tem criado um espaço para algo
que é como uma afirmação de identidade” (VALTELLINA, 2019, p.271).

40
Comumente os familiares que acompanhei também se referem aos filhos como aspergers quando a
diferenciação do diagnóstico é relevante para o contexto do diálogo, mostrando a construção da
identidade, assim como o uso frequente do termo, a despeito da exclusão da síndrome nos códigos
de classificação biomédicos.
41
Um ponto a se destacar é a exposição midiática de pessoas apresentadas como diagnosticadas
com Síndrome de Asperger associadas a características de genialidade. Em consequência, o paralelo
com o restante do espectro é, muitas vezes, associado a não inteligência. Essas imagens infundadas
sobre o autismo acentuam visões estereotipadas, reducionistas e discriminatórias. Por se tratar de um
espectro, há uma diversidade de manifestações comportamentais e cognitivas.
42
O movimento mobilizado por aspergers desencadeou a criação do Dia do Orgulho Autista (Autistic
Pride Day), em 2005, pelo grupo de defesa de direitos civis dos autistas Aspies for Freedom.
54

A diferença entre essas classificações, e as especificidades que abarcam, é


relevante nesta dissertação considerando que o campo etnográfico foi realizado
junto a uma associação que, em seus anos iniciais, atendia pessoas que se
identificavam como “familiares de aspergers”. O coletivo também carrega a
classificação em seu próprio nome, e no decorrer da etnografia, das entrevistas e
trocas com os integrantes, várias foram as tentativas de compreensão da
permanência da terminologia da Síndrome de Asperger, ainda que em processo de
supressão das visões biomédicas. Enquanto a designação escolhida na identificação
da associação manifesta uma partição em relação à amplitude do autismo, as ações
do coletivo buscam priorizar a abrangência de familiares e autistas, independente
das classificações biomédicas sobre o diagnóstico.

Se, por um lado, a identidade asperger, explorada por Grandin e Panek


(2015) e Valtellina (2019), estabelece um espaço de reconhecimento pela
associação, por outro, uma das poucas justificativas que presenciei a este respeito
apresentava como essas divisões classificatórias são fluidas e reiteradas nos seus
usos cotidianos. “Na verdade, o nome não importa, o que importa é que é um
espectro”, foi com essa afirmativa emblemática durante uma das reuniões da
associação que as controvérsias sobre a construção de categorias relativas à
condição se tornou ainda mais evidente, refletindo essa produção de sentidos a
partir de um “continuum de possibilidades” (FELTRAN, 2017).

Apesar da maleabilidade relativa às categorias de diferenciação dentro do


autismo, é passível de discussão os efeitos que asperger produz na nomeação de
um coletivo. Durante a etnografia, pude perceber como a escolha ou recusa de
muitas famílias pela participação na associação decorrem do diagnóstico particular
presente em seu nome. Sendo a Síndrome de Asperger associada ao autismo “leve”
ou de “alto funcionamento”, muitos familiares e autistas recebem o nome da
associação como um acolhimento à especificidade. Essa constatação ficou evidente
em relatos sobre a associação, externos ao círculo de integrantes da mesma.
Exemplar foi o caso de uma mãe de um “autista severo” que acreditava na
especificidade do acolhimento, mas passou a integrar a associação após convite de
seus integrantes por sua proeminente atuação na causa. Ou ainda, uma mãe que
55

relatou sua preferência por não integrar a associação, acreditando que não seria
acolhida nas suas necessidades, sendo mãe de “um menino autista severo e
negro”43.

Para além das questões pragmáticas da especificidade da Síndrome de


Asperger, o nome do psiquiatra carrega um significativo viés político que, nos últimos
anos, tem sido fundamento para a supressão de seu nome associado a identidades
individuais. Estudos recentes (CZECH, 2018; SHEFFER, 2018) apresentam estreitas
alianças entre as atuações de Hans Asperger e o programa nazista.
Fundamentando-se em publicações contemporâneas e arquivos históricos, Herwig
Czech (2018) apresenta uma detalhada análise crítica da vida, política e carreira de
Asperger com uma relação polêmica com o programa da época. O psiquiatra foi
recompensado com oportunidades de carreira por sua lealdade, tendo cooperado
com políticas eugenistas – como a eutanásia infantil e o apoio a esterilizações
forçadas (CZECH, 2018). Desta forma, as contribuições de Asperger têm sido
revisadas tendo em vista seu papel enquanto uma “engrenagem na máquina nazista
de matar” (BARON-COHEN et al., 2018, p.1). Essas análises críticas repercutem
também no movimento autista e têm contribuído para discussões quanto ao uso do
epônimo44.

Diante dessas considerações, na escrita e estruturação desta dissertação,


optei por utilizar apenas a categoria de autismo para descrever as experiências que
aqui abordo e analiso, suprimindo a classificação de Síndrome de Asperger,
excetuada a nomeação da associação na qual esta pesquisa se fundamentou e
contextos discursivos em que a diferenciação é evocada. A escolha se dá a partir de
três perspectivas distintas, porém concorrentes: primeiramente, a Síndrome de
Asperger entra em desuso através das atualizações dos principais manuais

43
Sendo a maioria dos integrantes da associação, pessoas brancas, a questão racial aparece como
um fator determinante na participação através da fala desta mãe. A questão de classe também
aparece como uma discussão controversa, inclusive, dentro do próprio coletivo, ao ser evidenciada
por alguns integrantes a situação privilegiada das famílias atuantes. O espaço geográfico da cidade
ocupado pela associação, tendo a maioria dos eventos e reuniões realizados em áreas centrais e
nobres da cidade, é apontado como uma marca da questão de classe e raça em relação ao coletivo,
ainda que se priorize a participação independente de qualquer marcador social.
44
Essas discussões aparecem com mais frequência no ativismo autista nas redes sociais,
acompanhado no período desta pesquisa.
56

diagnósticos utilizados na medicina ocidental contemporânea, a saber, o DSM e o


CID. Portanto, compreendo que basear a pesquisa em uma classificação em
processo de supressão é limitar contribuições dos dados e análises de investigação.
Em segundo lugar, ainda que o principal grupo de familiares que contribuiu para este
trabalho seja integrante de uma associação com Síndrome de Asperger no nome, a
condição, as experiências e as lutas não são estritamente pautadas nesta
especificidade. As vivências cotidianas e experiências dos sujeitos são,
majoritariamente, marcadas pela categoria do autismo. Por fim, em decorrência dos
aspectos históricos e sociopolíticos apontados anteriormente a respeito das
posições de Hans Asperger, opto pelo uso de outras terminologias que possam
substituir a síndrome de seu nome.

Esclarecida essas composições acerca do diagnóstico, e a posição em que


se encontra a associação e alguns dos familiares acompanhados no decorrer desta
pesquisa, cabe entender como a categoria do autismo passa a habitar e ser
habitada (AYDOS, 2017) nas experiências destes sujeitos localizados.

1.5 CONSTRUINDO DIAGNÓSTICOS

Tem que ser um psiquiatra ou um neuropsiquiatra, neurologista, que tem o


poder da caneta. São eles que têm a capacidade, a possibilidade, a
autoridade para escrever embaixo. [...] Dependendo, a questão do autismo
é experiência. A pessoa tem que desenvolver experiência e tem que
estudar, tem que ler, estudar, exercitar, entendeu? [...] É, tanto é que em
Belo Horizonte você conta nos dedos os psiquiatras que têm. Tem um
monte de psiquiatra na cidade, um monte! Mas bota aí quantos têm
experiência com autismo? 10% não têm (Entrevista com Joaquim, grifos
meus).

A fala de Joaquim, um dos principais interlocutores desta pesquisa e pai de


um homem autista, evidencia a centralidade da classificação biomédica sobre a
condição. São os psiquiatras e neurologistas que possuem “o poder da caneta”. O
laudo médico é objeto significativo nas experiências daqueles que vivem com o
57

autismo. Além do efeito pragmático do laudo médico na validação de direitos


direcionados a populações específicas, ou seja, o diagnóstico apresentando-se
como uma ferramenta estratégica na gestão e planejamento de serviços e políticas
públicas; a ciência médica, ao produzir conceitos e categorias relativos aos corpos e
comportamentos, também contribui para a construção de identidades e
representações.

Um exemplo interessante desta análise é exposto por Luiza Ferreira Lima


(2018) ao analisar os processos de reconhecimento de pessoas transexuais pelas
mobilizações de categorias médicas na retificação de registros civis. Abordando
outras reivindicações e lutas, as observações da autora convergem com o autismo
aqui acionado como um “saber médico”, com uma centralidade ineludível, assim
como um processo de produção de pessoas e trajetórias. A autora demonstra como
a autoridade médica qualifica e molda experiências, emoções e processos de
subjetivação; em síntese, constituem modelos de pessoas. É possível entender o
laudo médico como um “ponto de articulação entre uma norma geral e seu caso
concreto, entre o saber médico e sua aplicação” (LIMA, 2018, p.197). As
negociações de sentidos nos âmbitos da medicina, portanto, acabam por
regulamentar acesso a direitos e legitimação de sujeitos, servindo como uma
ferramenta nas políticas públicas. Mas há também um processo mais subjetivo e de
reestruturação de trajetórias pessoais e familiares concernente a esse “poder” e
“autoridade” que a ciência médica detém sobre a vida dos indivíduos. Dessa forma,
o diagnóstico é uma “necessidade burocrática”, assim como um processo que
“configura e reconfigura vidas” (AYDOS, 2017, p.72).

Alguns autores (HACKING, 2006; VALTELLINA, 2019) trazem discussões


mais amplas sobre o diagnóstico para demonstrar como o autismo é,
concomitantemente, uma classificação biomédica e um ato de nomear e dar sentido
ao mundo. Inspirada nesses trabalhos, parto do diagnóstico enquanto uma categoria
necessária para a compreensão dos inúmeros movimentos que tangem o autismo.
Parto de algo que é classificado, nomeado, definido, para aquilo que transborda a
categoria através dos corpos, subjetividades, histórias e experiências. O diagnóstico
se apresenta como uma substância biomédica, que é também elaborada nas
58

micropolíticas do cotidiano. Nesta etnografia, tomar como ponto de partida o


diagnóstico de autismo é consequência dos dados obtidos em campo e das formas
como a semiótica clínica aparece nos discursos dos interlocutores. Minhas
investigações se pautam em experiências com o autismo, nas quais as pessoas
possuíam o “laudo fechado”45. Isto é, a condição estava formalizada em um laudo
médico, após exames clínicos feitos por um especialista, como um psiquiatra,
neuropediatra ou neurologista. Tal como me descreviam através de seus relatos
pessoais, essas pessoas já tinham estado ou estavam em um “processo
diagnóstico”.

Nas narrativas de mães, pais e autistas no campo etnográfico, não raro, a


dificuldade de obtenção do laudo médico é explicitada como um processo
desgastante e exaustivo. Esses percalços acerca da obtenção do diagnóstico são
comuns nos relatos de autistas e seus familiares e recorrente em bibliografias sobre
o tema (NUNES, 2014; FONTOURA, 2015; AYDOS, 2017; RIOS e CAMARGO
JÚNIOR, 2019), apresentando o processo diagnóstico a partir de diversas
metáforas: ritual, jornada, peregrinação, via crucis. A falta de prática e conhecimento
da condição por parte dos profissionais, como apontado na fala de Joaquim, é
evidentemente um fator no impasse do “laudo fechado”. O cenário não é exceção na
localidade da pesquisa, mas se estende por todo o território nacional, sendo o
acesso aos profissionais qualificados ainda muito restrito. Essa constatação também
evidencia questões macroestruturais no que concerne ao acesso a serviços de
qualidade no âmbito da gestão pública. Valéria Aydos (2017) aponta como o status
nosológico disputado do autismo e a percepção de um diagnóstico demasiado
subjetivo, por parte dos especialistas, geram mais um agravante na obtenção do
diagnóstico. Temple Grandin e Richard Panek também ressaltam essa abstração do
diagnóstico ao apontar que na definição clínica do autismo, feita, principalmente,

45
Há uma vertente do movimento de autistas no Brasil, presente também em outras partes do mundo,
que defende o autodiagnóstico de autismo. Considerando questões sociais e estruturais, como a
desigualdade de acesso a serviços de assistência e de saúde, os defensores desta proposta
enfatizam a importância de um diagnóstico, ainda que identificado pela própria pessoa ou família,
visando o direcionamento para ações específicas que possibilitem bem-estar e qualidade de vida.
Observei esse posicionamento mais expressivo em perfis de autistas ativistas em redes sociais. Outra
vertente do movimento, predominante nos Estados Unidos, enfatiza o autodiagnóstico e além, nega a
determinação médica. No contexto local desta pesquisa, essa vertente é inexpressiva.
59

através de questões comportamentais, “as observações e avaliações são subjetivas,


e os comportamentos variam de uma pessoa para outra, portanto, o diagnóstico
pode ser confuso e vago” (GRANDIN e PANEK, 2015, n.p).

Sabe quando a gente vai arrumar o armário e a bagunça chega a um ponto


em que fica pior do que quando começamos? Agora, estamos neste ponto
na história do autismo. De algum modo, nosso conhecimento sobre ele
aumentou muito desde a década de 1940. Mas, por outro lado, estamos tão
confusos como antes (GRANDIN e PANEK, 2015, n.p).

Atualmente, na perspectiva biomédica, o Transtorno do Espectro do Autismo


(TEA) é caracterizado como um transtorno de neurodesenvolvimento com alterações
persistentes em diferentes graus nas áreas de comunicação e sociabilidade, além de
apresentar padrões de comportamento e interesses vistos como atípicos ou
excessivos para a idade do indivíduo ou o contexto sociocultural46. Essa definição
nosológica é descrita na Classificação Estatística Internacional de Doenças e
Problemas Relacionados à Saúde (CID)47, documento da Organização Mundial de
Saúde (OMS), que objetiva fornecer uma linguagem médica comum e informações
de saúde em nível mundial. Com sua mais recente versão, lançada em 2019 e com
vigência em 2022, a CID-11 conta com atualizações nas definições do autismo.
Diversos diagnósticos da décima versão do documento48 – são incluídos em uma
categoria mais ampla no CID-11: o Transtorno do Espectro do Autismo. Passam a
ser considerados os prejuízos persistentes nas áreas pessoais, familiares, sociais,
educacionais e ocupacionais dos indivíduos diagnosticados, além de apresentar de
forma clarificada o espectro de funções intelectuais e habilidades de linguagem dos
indivíduos.

46
Ian Hacking (2006) descreve o autismo como uma condição "tridimensional'', com um eixo
comunicacional, um social e um sensorial.
47
International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD-11), em inglês.
O documento, assim como algumas versões anteriores, pode ser acessado no site da OMS,
disponível em: <https://www.who.int/standards/classifications/classification-of-diseases>.
48
No código F84 (CID-10) encontra-se: Autismo infantil, Autismo atípico, Síndrome de Rett, Outro
transtorno desintegrativo da infância, Transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a
movimentos estereotipados, Síndrome de Asperger, Outros transtornos globais de desenvolvimento,
Transtornos globais não especificados do desenvolvimento.
60

Outro documento amplamente utilizado pela psiquiatria moderna na


classificação do autismo é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM)49. O DSM, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria
(AAP), em sua quinta versão, publicada em 2013, já associa os chamados
Transtornos Globais de Desenvolvimento na definição única do TEA. Na perspectiva
biomédica, a associação possibilita vantagens diagnósticas e terapêuticas. O DSM-5
inclui nos critérios do TEA: déficits de reciprocidade socioemocional, comunicação,
desenvolvimento e manutenção relacional; além da presença de padrões repetitivos
de comportamento ou interesses; e questões sensoriais relevantes. Também
diferencia as condições sobre o autismo a partir de níveis de suporte necessários à
pessoa diagnosticada50.

Esses sistemas de codificação foram se tornando mais equivalentes ao longo


do tempo, já que são utilizados de formas desiguais ao redor do mundo (KLIN,
2006). As disputas em torno do status nosológico e ontológico do autismo
(ORTEGA, 2008, 2009; ORTEGA et al., 2013) impactam no modo como as pessoas
autistas se identificam ou são reconhecidas em diferentes contextos. As categorias
diagnósticas são, portanto, fundamentais na constituição de identidades e
subjetividades (AYDOS, 2017), assim como nas formas de “gestão” da condição. A
atualização acerca do espectro do transtorno, por exemplo, tem resultado em um
proeminente empenho por autistas ativistas e familiares para a validação social. O
caráter espectral definido formalmente a partir de documentos biomédicos permite
que a condição seja considerada em suas particularidades, evidenciando a
diversidade de experiências dentro do autismo. Como exemplifica Valéria Aydos
(2019), citando uma organização não governamental, Autistic UK, quando
conhecemos uma pessoa com autismo, conhecemos uma pessoa com autismo.
Neste mesmo sentido, as transformações dos manuais diagnósticos sugerem a
atenção às questões de ordem sociocultural na abordagem da condição. Portanto, a

49
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, em inglês.
50
É a partir desses níveis de suporte que as pessoas são comumente reconhecidas como “autistas
de grau leve, moderado e grave”. Mas essas divisões, em algumas vertentes do movimento autista,
são objetos de controvérsias pautadas no argumento de que criam subgrupos dentro da causa. Em
um mesmo nível de suporte, as particularidades quanto ao diagnóstico são variáveis, reafirmando o
espectro da condição.
61

abertura de discussões relevantes sobre outros marcadores biopsicossociais acerca


do transtorno emergem deste foco e das consequentes interpretações e críticas em
relação aos manuais de classificação.

Abordar os critérios diagnósticos nesta dissertação não é apenas um


percurso analítico relevante para a contextualização da pesquisa, mas é tema
central nas articulações e controvérsias envolvendo os movimentos do autismo. Os
manuais médicos de diagnósticos corroboram na apresentação e efetivação de
demandas e direitos referentes à especificidade do autismo, aparecendo, por vezes,
de forma literal nas falas de familiares e autistas ativistas. Em contrapartida, os
manuais são preteridos por aqueles que vivem com o autismo por distanciar a
condição das vivências cotidianas e experiências subjetivas. O autismo, enquanto
uma categoria em movimento, é constituído por uma identidade social e um
reconhecimento da deficiência, mas também é perpassado por uma substância
médica. É neste sentido que a máxima “autismo não é doença” e a centralidade da
condição médica não são meramente excludentes, mas são partes de processos
identitários e de reconhecimento diante de classificações que interpelam a vida dos
sujeitos e possibilita o acesso a direitos específicos.

No campo etnográfico, a atuação de um renomado psiquiatra, com


especialidade em autismo, em uma das apresentações no Fórum Intersetorial de
Atenção Integral à Pessoa com TEA, – evento que integra tanto a sociedade civil
quanto a governamental51 – evidencia algumas considerações acerca das
classificações diagnósticas. O psiquiatra descreveu o autismo aos participantes a
partir dos critérios do DSM-5 enfatizando a característica primordial do transtorno: o
caráter espectral com sua diversidade de manifestações e especificidades. Em sua
fala, o psiquiatra considerou a condição em sua pluralidade, questionando se seria
possível falar de um único autismo. A apresentação do especialista nos revela
também o paradoxo médico sobre a condição. Fundamentações etiológicas são
carregadas de incertezas e o mesmo acontece acerca dos exames neurológicos e
de imagens que, apesar dos avanços, não apresentam validações sobre

51
Retomarei as discussões sobre o Fórum TEA no Capítulo 3 desta dissertação.
62

biomarcadores do autismo (GRANDIN e PANEK, 2015)52. Essa possível pluralidade


do autismo também está acrescida de questões estruturais e sociais sobre o
diagnóstico, como as intersecções de classe, raça e gênero, e da mesma forma, o
acesso à informação, saúde e assistência. Tais questões são substanciais em um
país constituído por enormes desigualdades sociais e um histórico relevante sobre a
abordagem da saúde mental e das práticas de cuidados. Nesta perspectiva, o
autismo só pode ser entendido a partir dos contextos em que as pessoas autistas
habitam (FEIN, 2018). Referindo-se às questões genéticas, Temple Grandin,
popularmente conhecida por sua notável experiência científica e por sua atuação e
exposição pública como pessoa autista, diz que a condição é “um imbróglio
excessivamente complicado” (GRANDIN e PANEK, 2015, n.p). Para além da
genética, o autismo é um imbróglio que autistas, familiares, especialistas e agentes
públicos vivenciam em contextos localizados histórico, social e culturalmente.

Os dados trazidos pelo psiquiatra sobre a disparidade entre o Brasil e os


Estados Unidos53, exemplifica a divergência das questões diagnósticas,
desestabilizando a construção generalista de documentos de classificação
nosológica, tais como o CID ou o DSM. No Brasil, não há estudos estatísticos
efetivos sobre o autismo, tendo, por exemplo, sido aprovado apenas em 2019 a Lei
13.861 que passa a incluir as especificidades inerentes à condição no Censo
Demográfico. Em 2021 seria realizada a pesquisa censitária que incluiria o autismo
nas amostragens, mas em decorrência de uma crise econômica – culminada e
justificada principalmente pela crise sanitária de covid-19 – o Censo foi cancelado54.

52
Várias pesquisas têm sido desenvolvidas buscando detectar alterações cerebrais que contribuam
para o diagnóstico do autismo. Recentemente foi publicada a notícia de um estudo que aprofunda
essas análises, e pode ser acessada em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-59529950>. Acesso
em janeiro de 2022.
53
O psiquiatra citou estudos de uma entidade nos Estados Unidos, Autism Speaks, que considera
que 1 a cada 54 pessoas é diagnosticada com TEA. Dados estão disponíveis em:
<https://www.autismspeaks.org/what-autism>.
54
O Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é
realizado a cada dez anos e visa identificar as condições demográficas, sociais e econômicas da
população brasileira. O Censo mais recente, marcado para acontecer em 2020, foi adiado frente à
crise sanitária de covid-19 que culminou no início do mesmo ano. Previsto para acontecer em 2021, o
Censo foi novamente cancelado após corte de 96% dos recursos previstos pelo Estado. A próxima
pesquisa censitária será realizada em 2022. É possível saber mais sobre essa discussão no site do
IBGE, disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticia
s/noticias/30602-estamos-preparados-para-realizar-o-censo-neste-ano-diz-presidente-do-ibge-sem-de
scartar-2022>. Acesso em junho de 2021.
63

A falta de dados estatísticos não apenas impacta na forma como as políticas


públicas de saúde, assistência e educação são construídas, mas também produzem
efeitos nas considerações sobre diagnósticos e o desenvolvimento de pesquisas
científicas sobre o tema. E como apontado pelo psiquiatra, os estudos são
fundamentais para estabelecer uma abordagem especializada e eficaz para os
profissionais, assim como o próprio reconhecimento do autismo nos contextos
locais.

Após a fala de caráter técnico, o psiquiatra acrescentou que o diagnóstico das


pessoas deve vir como uma forma de orientar e auxiliar, nunca excluir ou
estigmatizar, “o diagnóstico nem sempre é prejuízo”, afirmou. Evocando certa
sensibilidade sobre as causas autistas, citou Temple Grandin: o mundo precisa de
todos os tipos de mentes. Diferente do psiquiatra que parte do DSM para explicar o
autismo, Temple Grandin, em seu livro com Richard Panek, explicita como o sistema
classificativo impacta na vida das pessoas diagnosticadas. Grandin observa que o
autismo continua sendo diagnosticado segundo um perfil comportamental do
“desastroso” DSM (GRANDIN e PANEK, 2015). Sua crítica se baseia em uma
argumentação não apenas individual, mas que é observável nos discursos dos
movimentos autistas que confrontam o caráter universalista e generalizante desses
documentos. Uma abordagem por meio dos manuais médicos parte do pressuposto
de um comportamento único que define a normalidade. Grandin se expressa com
veemência: “Evitem se prender a rótulos. Eles não são precisos. Rogo-lhes: não
permitam que uma criança ou adulto sejam definidos por um rótulo do DSM”
(GRANDIN e PANEK, 2015, n.p).

Longe de desprezar as contribuições científicas sobre um diagnóstico que


ainda se apresenta cercado de dúvidas biomédicas, esses documentos propõem
classificações baseadas em critérios fixos e estabelecidos. Mas a própria elaboração
dos documentos apresenta o caráter sociocultural e histórico nos quais as
construções diagnósticas são constituídas, reproduzidas e reconhecidas, e
enfatizam o seu processo interacional e de constante estruturação (HACKING,
2006). Em uma análise da publicação do DSM-5, abordando as críticas referentes
ao manual que explicitam elaborações políticas, Sandra Caponi (2014) apresenta
64

como as transformações de documentos médicos para validação científica e


ordenamento de sintomas é também parte da construção histórica e social da
psiquiatria, assim como um modo de exercer governo sobre populações.
Resgatando a ideia foucaultiana de biopolítica, a autora demonstra como por trás de
manuais e documentos médicos permanece uma polarização entre aquilo que é
considerado normal e o que é visto como anormal. Partindo, portanto, da crítica da
construção do diagnóstico como um discurso de verdade, Caponi (2014) também
apresenta a argumentação de Ian Hacking (2013) que aborda o DSM e outros
manuais desse teor, como um dicionário construído a partir de consensos entre
aqueles que participam do processo de elaboração e que comumente exclui outras
narrativas. Desta forma, sujeitos localizados em um contexto específico, demarcados
socialmente, elaboram essa convenção de uma linguagem comum que é tida como
verdade. Nas palavras de Caponi (2014), a problemática do DSM é a pretensão de
ser um espelho da realidade que, entretanto, em nada condiz com experiências
vividas.

Tal como Hacking (2006) explicita, as classificações instituídas pelo saber


médico produzem identidades e modos de ser sujeito. Portanto, classificações
nosológicas são também categorias historicamente construídas nas interações com
pessoas específicas e que corroboram para determinados comportamentos
(HACKING, 2006). E assim, a construção de um discurso e reconhecimento sobre o
autismo, fundamentado em uma visão biomédica, e incorporado nas estratégias de
governo, nos sistemas institucionais ou mesmo pela mídia, produz efeitos concretos
na vida das pessoas – seja a validação e constituição de identidades ou mesmo a
rejeição dessas narrativas (CAPONI, 2014). Caponi finaliza sua argumentação
apontando para a necessidade esperançosa de um abandono do DSM ou de outros
manuais diagnósticos generalistas, para a adoção de estratégias que permitam
reconhecer as questões mentais como partes de histórias de vida. Assim, as
narrativas dos sujeitos ganham espaço, entendendo as características
transformadoras dos transtornos mentais ao longo da vida como partes da
construção e reconstrução das subjetividades (CAPONI, 2014).
65

As observações de Caponi (2014) são relevantes para refletir sobre o impacto


dos manuais diagnósticos na vida das pessoas diagnosticadas, assim como as
relações de poder estabelecidas por esses processos classificatórios de autoridade
biomédica. Entretanto, é importante destacar o poder como algo repressivo, mas
também produtivo, dado por sujeitos em relação. O que pretendo aqui elaborar é
como esses movimentos em torno do autismo têm se conformado e, possivelmente,
têm configurado um obstáculo para uma hegemonia de manuais e classificações
produtores de verdades irredutíveis. Seja através de um movimento pautado na
neurodiversidade, ou em um movimento que tome as demandas de pessoas com
deficiência como pauta, aqueles que atuam nas lutas sobre o autismo convergem
em um questionamento sobre esse modelo biomédico generalista. Esses
movimentos provocam uma reflexão sobre a polarização entre o que é normal e
anormal, e ameaçam alguns pressupostos sobre a patologização de
comportamentos e formas de experienciar o mundo que são definidos a partir de um
sistema cultural específico. E tal como a esperançosa posição de Caponi (2014),
esse movimento social e político relacionado ao autismo busca desestabilizar o
discurso biomédico como um único discurso factual, trazendo à tona outras
verdades, outras histórias e outras vivências que não apenas descrevem
experiências, mas permitem uma reflexão mais ampla sobre categorias centrais de
nosso contexto sociocultural. Longe de serem excludentes, essas narrativas são
atualizadas de forma pragmática em um “continuum de possibilidades” (FELTRAN,
2017).
66

2 FAMÍLIAS EM MOVIMENTO

Aí trocamos o psiquiatra, nesse momento aos 23 anos, o psiquiatra que o


recebeu, que o consultou, identificou o autismo nele, entendeu? Identificou o
autismo. Quando isso acontece, você já vivenciou isso várias vezes, você aí
na sua pesquisa, o tapete sai de baixo do pé da gente né? O tapete sai
andando e a gente fica sem ele. Pessoal costuma dizer, fica sem chão
mesmo (Entrevista com Joaquim).

Joaquim é um homem branco, de mais ou menos 60 anos, já com três filhos


adultos, e um deles com o diagnóstico de autismo. Casado com Marisa, também
uma mulher branca, com idade semelhante, de riso fácil e carismática. Como grande
parte da população de classe média, com orçamentos apertados, mas alguma
estabilidade financeira, tiveram a possibilidade de acessar profissionais qualificados
e um acompanhamento terapêutico para o filho que recebeu o diagnóstico apenas
aos 23 anos e que, no momento da pesquisa, tinha mais de 30 anos. Joaquim é
perspicaz, cheio de brincadeiras, e com uma habilidade de fala impressionante,
principalmente quando é para falar sobre autismo. É fácil prestar atenção e ouvir
sobre as minúcias do cotidiano com o diagnóstico através de suas falas. Sua
experiência profissional como um engenheiro o torna ainda mais didático e com seus
slides explicativos de praxe, as discussões ficam mais fáceis em palestras e
reuniões em que é convidado a expor. Joaquim já ganhou lugar de destaque, é pai
de três filhos, um deles autista, é ativista e militante, integra uma associação, se
engaja na luta, tem planos de ações para políticas públicas, conhece em detalhes as
leis para pessoas com deficiência e seus direitos, tem diplomacia e carisma. É “uma
referência importante para nós sobre o TEA”55, como descreveu o gestor municipal
de políticas para pessoas com deficiência.

Acompanhei mais de perto a história de Joaquim, sua esposa Marisa e seu


filho Rafael. A trajetória familiar se diferencia, em partes, da grande maioria: como
relatou Joaquim, a busca pelo diagnóstico do filho foi motivada pela experiência

55
Se referindo ao Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CMDPD/BH), no qual
Joaquim também integra. Acompanhei o trabalho do Conselho, sendo incluída como colaboradora na
Comissão de Políticas Sociais, desde junho de 2020, até o momento de escrita desta dissertação.
67

profissional de Marisa que, sendo psicóloga, já percebia diferenças comportamentais


e, por conta disso, o casal sempre buscou junto sanar suas dúvidas. A parceria entre
eles na busca por profissionais, no “fechamento do laudo” e nas terapias, além dos
cuidados com a educação e profissão do filho, demarca a posição de Joaquim como
uma figura crucial na causa e na maneira como é visto por outros familiares e atores
sociais envolvidos. Mas também demarca questões sociais importantes – incluindo
raça, classe e gênero – em relação a outras histórias pessoais e familiares. É a partir
da história de Joaquim, Marisa e Rafael que conheço outras. E é envolta nesse
mapa biográfico e familiar que emergem reflexões importantes sobre as relações em
torno do autismo e como familiares se posicionam socialmente frente a uma
parentalidade atípica.

Neste capítulo, exploro meu envolvimento com os familiares que conheci e


mantive contato dentro da ASATEA e que se estendeu para outras associações,
sejam esses contatos mais próximos ou apenas em breves conversas em tom de
desabafo nas variadas reuniões da CADDA, nos corredores esperando pelo início de
encontros, ou nas despedidas cansadas após longas discussões nos eventos
municipais. Esse envolvimento não se limitou apenas a reuniões e datas
programáticas, ele também se deu em outras esferas de aparecimento, como nas
mobilizações em grupos de whatsapp, o compartilhamento de relatos em livros,
artigos midiáticos ou redes sociais; além da minha participação em congressos
destinados às discussões sobre autismo, palestras promovidas por familiares e
associações, e lives de mães e pais – que se tornaram muito comuns diante do
contexto de isolamento social em decorrência da pandemia de covid-19, com início
em 2020. Dessa forma, delimito uma etnografia caracterizada por um duplo campo
de compreensão, evidentemente relacionais e influentes um sobre o outro: um
campo que perpassa pelas minúcias do cotidiano, abraços de boas vindas, lágrimas
envergonhadas, sorrisos contagiantes, expressões corporais que dizem muito mais
do que palavras, e que também traziam à tona expressões de sentidos acerca do
autismo. O outro campo feito através de telas e redes de comunicação, em que as
palavras escritas tinham um peso maior porque ficavam gravadas, ou em que as
vozes eram misturadas aos sons de fundo de cada uma das casas, deixando
68

aparecer no canto das telas cores, objetos e disposições do que eram os cuidados
dentro das residências em tempos de isolamento social.

Através das reuniões da associação, das trocas e acolhimentos virtuais nos


grupos de redes sociais, por meio das histórias compartilhadas e das tantas
conversas informais, os fragmentos de trajetórias familiares eram apreendidos. O
processo diagnóstico de autismo era constituído como uma transformação na vida
dessas famílias, ainda que diverso em suas próprias experiências. Conheci sobre
mudanças de rotinas da vida familiar, estratégias de cuidados, treinamentos para
facilitar a vida dos filhos, dificuldades nas universidades e empregos, melhores
profissionais e terapias, interesses e gostos dos filhos, até como preparar o
sanduíche perfeito com os ingredientes que devem estar na geladeira de forma
sacramental ou como evitar ruídos domésticos de modos criativos para evitar crises
sensoriais.

Cláudia Fonseca afirma que quando realizamos uma escuta etnográfica de


diferentes discursos, ou quando confrontamos falas de diferentes sujeitos sobre um
mesmo processo ou realidade, “constrói-se a tessitura da vida social em que todo
valor, emoção ou atitude está inscrita” (FONSECA, 1999, p.64). Entretanto, pensar
sobre a vida cotidiana, as minúcias das histórias familiares, é também tatear entre
modos de vida que não são homogêneos e estáticos e tal como coloca Fonseca,
mesmo que adentrando a lógica informal do cotidiano, a antropologia também
repercute modelos grosseiros dessa realidade. Assim, os modelos explicativos que
criamos servem como alternativas, interpretações possíveis, e não para “criar
fórmulas dogmáticas” (FONSECA, 1999). Portanto, as análises que apresento a
partir dos relatos encontrados são possibilidades de interpretações sobre um
contexto recortado por famílias, cuidados, movimentos, associações e o
reconhecimento do autismo.

Entendendo o parentesco como parte de contextos históricos e políticos, e da


mesma forma, como o lugar onde os conteúdos sociais são vividos e as práticas
sobre a deficiência são articuladas, tomo como objetos de análise as experiências e
resgates de memórias apresentados por mães e pais de pessoas diagnosticadas
69

com autismo. Inspirada nas teorizações de Janet Carsten (2000, 2004, 2007) sobre
o parentesco e nas contribuições acerca das relações entre eventos críticos e vida
cotidiana de Veena Das (1995, 2007), neste capítulo analiso como após o
diagnóstico de autismo dos filhos e filhas, ocorrem transformações dentro do
parentesco e das relações familiares. Dessa forma, dou seguimento às discussões
já tratadas no início desta dissertação que abordam o diagnóstico como um
processo que não apenas classifica, mas reconfigura vidas. Igualmente, procuro
identificar como essas mudanças de ordem individual e relacional levam a alianças e
redes que se mobilizam por meio de movimentos sociais em prol dos direitos da
pessoa com autismo. Uma etnografia com familiares de pessoas com deficiência diz
respeito não apenas às formas elementares do parentesco, mas evidencia relações
políticas importantes em um contexto recortado por questões que atingem corpos,
subjetividades, relações, identidades e construções sobre as noções de pessoa em
nossa sociedade.

2.1 QUANDO A VIDA COTIDIANA É INTERROMPIDA

Rayna Rapp e Faye Ginsburg (2001), antropólogas e pesquisadoras da


deficiência, em seus trabalhos sobre a reescrita do parentesco em paralelo com a
reconstrução da ideia de cidadania, afirmam como diante das experiências com a
deficiência, as famílias precisam recriar suas narrativas. De acordo com as autoras,
nas relações entre mães, pais, filhos e filhas, alternativas dramáticas são
articuladas, perpassando pela dependência e autonomia, a intimidade e autoridade,
a aceitação e recusa de cuidados, assim como roteiros normativos e singulares da
vida familiar na incorporação das diferenças. Dessa forma, Rapp e Ginsburg
defendem como as deficiências devem ser estudadas pelas arenas públicas do
Direito, da Medicina e da Educação, mas também devem passar pela arena íntima
do parentesco, considerada como o lugar onde dramas sociais contemporâneos são
70

vividos e onde os entendimentos e práticas sobre a deficiência são frequentemente


manipulados pela primeira vez (RAPP e GINSBURG, 2001).

Parto de um evento de ruptura na vida cotidiana dessas famílias: o


diagnóstico de autismo de seus filhos e filhas. Um evento que rearranja as
memórias, o passado familiar, que transforma categorias, reordena as relações de
parentesco, e que evidencia o caráter imaginativo sobre os futuros possíveis. Assim,
minha etnografia diz respeito aos familiares, muito mais do que aos próprios
autistas, mas é justamente através desse recorte analítico que pretendo analisar
como a pessoa com autismo pode ser reconhecida por consequência das
predisposições familiares. Tomando as teorias de Rapp e Ginsburg (2001) em que
as experiências recriam narrativas dentro do contexto familiar, pensar o autismo
dentro das famílias e como o diagnóstico corrobora para as transformações dentro
das práticas e vivências do cotidiano, também é pensar como é feita a mudança de
consciência a respeito do reconhecimento da pessoa autista e do autismo enquanto
uma deficiência. Percorrer essas trajetórias habitadas pelas práticas cotidianas e
reescritas na vida diária familiar é fundamental para compreender as minúcias de um
acionamento social mais amplo em prol da diversidade e da inclusão. Assim como
Rapp e Ginsburg, acredito que essa análise da família, termo que é
convencionalmente associado ao íntimo e doméstico, é crucial para o entendimento
das dinâmicas culturais e para a criação de um terreno estrutural em que a
deficiência não é apenas acomodada na legislação “mas é positivamente
incorporada ao corpo social” (RAPP e GINSBURG, 2001, p.535, tradução minha).

Pretendo elaborar aqui como as relações familiares são motrizes no


diagnóstico de autismo, ao mesmo tempo em que são reconfiguradas por ele.
Enquanto algumas falas que encontrei traziam os aspectos da “vida transformada”
após a descoberta do autismo relacionada às mudanças da ordem dos afetos, dos
valores pessoais e das religiosidades, exploro como o diagnóstico demarca também
uma reconfiguração das relações e trajetórias da família. Como bem explora Janet
Carsten (2000) com seu precursor conceito de relatedness: sem pressupor o que
significa o parentesco, relações e dinâmicas familiares são evidenciadas a partir de
diferentes experiências vividas, diferentes idiomas de conexão. E assim, o
71

parentesco como relacionalidade é feito mais por práticas cotidianas do que por
regras formais (CARSTEN, 2000; 2004).

Na coletânea “Ghosts of Memory”, Carsten (2007) articula como


temporalidade, memória e parentesco estão imbricados na construção de
subjetividades, mas também coadunam com processos históricos e políticos. Os
cursos diários de relacionamentos, cumulativamente, possuem uma importante
escala e, portanto, o parentesco, além de evidenciar estruturas políticas e sociais,
também as constrói. A partir das teorizações de eventos críticos de Veena Das
(1995), Carsten apresenta como a intimidade do parentesco é também perpassada
por eventos sociais e políticos. O conceito de Das propõe analisar como momentos
de ruptura da vida cotidiana podem produzir novas disposições para ações que,
consequentemente, mudam categorias nas quais as pessoas operam (CARSTEN,
2007). Essas rupturas, portanto, envolvem processos criativos de rearranjo do
passado e imaginação de futuros possíveis. Desta forma, Carsten (2007) argumenta
que o parentesco é um tipo particular de socialidade que evidencia eventos políticos
de grande escala ou estruturas institucionais do Estado, e no qual certas disposições
de temporalidade são possíveis. Assim, algumas formas do parentesco são
ativamente produzidas nas interseções de Estado, família e indivíduo (CARSTEN,
2007). No contexto desta pesquisa, essas elaborações sobre o parentesco são
construídas na articulação do autismo com as famílias ao ser apreendido e habitado
(AYDOS, 2017). Essas trajetórias se entrelaçam a debates mais amplos referentes
ao próprio diagnóstico, à deficiência, à gestão estatal, aos direitos humanos, mas
também, às práticas de cuidado cotidianas e as relações interpessoais.

Veena Das e Lori Leonard (2007) em uma pesquisa com mulheres jovens
com HIV positivo em atendimentos em clínicas médicas norte-americanas, retomam
a ideia de evento crítico de Das para pensar o diagnóstico como um ponto de
partida, um evento característico que permite elaborar questões da ordem individual
assim como a emergência de conteúdos do parentesco. Tomar um diagnóstico
biomédico como esse ponto de origem, de ruptura, recupera a ideia de um evento
que vem de modo inesperado e, portanto, transforma o tempo comum, o cotidiano
(DAS e LEONARD, 2007). Ainda que procedam de outros contextos de análises,
72

retomo as concepções teóricas de Carsten (2000, 2007) a respeito do parentesco, e


as reflexões à noção de evento de Das (1995) e Das e Leonard (2007), para analisar
o diagnóstico de autismo enquanto um evento que adentra as relações familiares,
mas também evidencia disposições políticas e sociais mais amplas.

É possível pensar, entretanto, que se Das e Leonard (2007) partem do HIV,


como um diagnóstico que, na maioria dos casos, é inesperado, com o autismo a
imprevisibilidade não é posta da mesma forma. Joaquim, ao me descrever como se
deu o diagnóstico do filho, aos 23 anos, retoma a trajetória da família desde seu
casamento com Marisa e o nascimento de seus primeiros filhos. E segue essa
cronologia familiar trazendo o autismo nas suas minúcias e observações diárias.

Rafael sendo o terceiro, a gente notou realmente as características


diferentes, os aspectos diferentes. Porém, pelo fato dele ter sido o terceiro
filho, ele se envolvia muito nas brincadeiras com Isabela e Vinícius
diariamente, ano após ano, ele foi sempre envolvido nas brincadeiras, nas
horas de lazer, nos passeios, no convívio familiar. E isso o ajudou muito,
ajudou ele bastante. Bastante mesmo! Foi uma espécie de terapia
ocupacional diária. [...] Mas a forma de aprender do Rafael em relação à
Isabela e ao Vinícius era diferente, e como ele era o terceiro filho, a gente
tem um senso de observação mais forte para isso, né? [...] Ao longo desses
anos as diferenças que a gente percebia a gente ia resolvendo, foi
resolvendo com terapias, resolvendo com psiquiatras, mas nunca se tinha
uma definição clara do que isso representava. O que essa diferença
caracterizava? (Entrevista com Joaquim).

Através da fala de Joaquim é possível notar como o autismo já é parte de


observações dos familiares no decorrer da vida dos filhos. O relato de Joaquim não
é exceção, várias foram as histórias de mães e pais que percebiam “características
diferentes” em relação ao filho ou filha desde a primeira infância56. Diego, um dos
interlocutores desta pesquisa que também se apresenta como autista com
diagnóstico tardio, ao relatar sobre o autismo nas interações cotidianas de sua

56
É com ênfase nessas histórias que muitos familiares enfatizam a importância do diagnóstico
precoce, com a formação adequada de profissionais de saúde para a avaliação correta de possíveis
diagnósticos na infância. É unânime, em meu campo de pesquisa, a valorização do diagnóstico
precoce como uma forma de obter acesso a direitos e, consequentemente, bem estar e qualidade de
vida para a pessoa autista. Joaquim, durante uma reunião entre as associações, afirmou como o
diagnóstico pode ser o primeiro passo para a autonomia.
73

família, enfatizou como parecia que o pai, hoje já falecido, sempre soube das suas
“diferenças” e, como sua mãe lhe contou, “ele sempre o tratava de um jeito
especial”. Poderia, então, supostamente afirmar que, em relação ao autismo, a
imprevisibilidade do evento diagnóstico não existe, mas o processo de busca por
respostas às inquietações sobre as diferenças dos filhos e filhas, e a chegada a um
diagnóstico biomédico, muito se aproxima de um acontecimento, tal como a análise
trazida por Das e Leonard (2007). Ainda que a percepção da diferença já exista
dentro dessas famílias, o diagnóstico, descrito e formalizado em um laudo médico,
concretiza uma ruptura na vida familiar. A partir dessa semiótica clínica que passa a
atravessar a vida das pessoas, acontece uma ruptura do cotidiano, apresentando
novos rearranjos, através de terapias, medicamentos, consultas médicas, ou mesmo
nas práticas de cuidado domésticas e rotineiras. Ou ainda, através de atuações
políticas e sociais antes impensáveis por esses familiares, que passam a incluir em
seu repertório, o autismo, adentrando as trajetórias dessas famílias e transformando
o tempo comum.

Enrico Valtellina (2019), em um trabalho acerca da definição e


reconhecimento do autismo, argumenta sobre a interpelação do diagnóstico clínico
na vida daqueles que o recebem, considerando-o resultado de processos e produtos
das interações e discursos sociais. Em um primeiro momento, o autor apresenta o
diagnóstico como uma classificação, ou seja, uma catalogação de condições
problemáticas. Resgatando Ian Hacking (2006), o autor discorre como as
classificações são elaboradas histórica, social e culturalmente e têm seus sentidos
apreendidos nas relações sociais. Em síntese, as classificações são construções
dadas em seus usos. O cotidiano mostra-se significativo para o entendimento de
diagnósticos, na medida em que a semiótica clínica só é efetivada nas experiências
dos sujeitos. Daniela Feriani (2017) em uma pesquisa sobre o Alzheimer, destaca de
modo exemplar como os diagnósticos são dados na perspectiva da organização
social da vida diária. Sendo o Alzheimer também perpassado por incertezas médicas
e questões sociais abrangentes, tais como as variadas dimensões do
envelhecimento ou ainda questões referentes a gênero, Feriani habilmente narra
como o “cotidiano assombrado” apresenta as pistas que elaboram o diagnóstico.
74

Essas experiências estão interligadas ao segundo processo destacado por Valtellina:


o diagnóstico como um evento. Neste sentido, ele se dá como o momento de
identificação de uma pessoa dentro de um conjunto de condições com um nome
dado pela ciência médica (VALTELLINA, 2019). Entretanto, esse sentido não se
limita à “taxonomia”, mas é também algo que acontece na vida das pessoas, um
evento no fluxo que reorganiza a vida de maneira crítica, como descreve o autor.
Ainda que a semiótica clínica elabore lugares de poder através das classificações,
os sujeitos envolvidos são agentes de sua construção. Neste sentido, o diagnóstico
enquanto uma classificação que cria sujeitos é também criado por eles nos efeitos e
sentidos que produz (HACKING, 2006).

Assim, o diagnóstico não é apenas construído no processo biomédico, mas


nas formas como é recebido, reconhecido e legitimado nos contextos das histórias
individuais e familiares. O evento do diagnóstico é circunscrito também às formas
como a deficiência é concebida no imaginário social, já que o autismo, no contexto
brasileiro, também está amparado nas categorias da deficiência. Exemplar disso foi
um relato de uma mãe sobre o estabelecimento de outra estrutura familiar após o
diagnóstico: “agora sou uma mãe de deficiente”. Dessa forma, evidenciam-se
controvérsias sobre o autismo neste jogo de relações e categorias, que por vezes
são contraditórias, mas também são constituídas na interação: identidade e
diagnóstico médico, evento individual e familiar, da ordem do cotidiano e do político.
No capítulo anterior, apresentei como o autismo é identificado e legitimado em
discursos biomédicos, nas questões da deficiência ou ligado a movimentos
identitários e de diversidade, mas aqui, parto das narrativas e depoimentos de mães
e pais de pessoas autistas, para fazer um movimento contrário, tal como Das (1995),
indo em direção ao ordinário de modo a compreender como o evento se atualiza no
cotidiano das famílias.

Através da fala de um homem autista em uma rede social da associação,


essas relações entre o processo de diagnóstico para a própria pessoa e para a
família, além das implicações e experiências que serão vivenciadas, se tornam muito
claras. Em uma discussão sobre a disseminação de informações sobre o autismo e
a criação do coletivo, sua mensagem apontava: “o diagnóstico é familiar, não apenas
75

nosso e pessoal”. Esse viés familiar do diagnóstico também é constatado por


Leonardo Campoy (2015) ao analisar as demandas que o autismo impõe às famílias:
esforço de tempo, gastos materiais e afetos de grande magnitude. O autor
demonstra como os dramas desses familiares se dão pelas delicadas situações que
se encontram em relação ao diagnóstico, sendo que a crescente ênfase em um
fisicalismo cerebral do autismo dispõe cotidianos transformados para o
desenvolvimento e depreende em relações de afeto, dedicação, disposição e
cuidado constante. Nas palavras do autor, “o autismo se espalha pela casa e pelo
parentesco” (CAMPOY, 2015, p.170). Através do acompanhamento de consultas
neuropediátricas, Campoy descreve como o diagnóstico também interpela a vida e
identidade desses familiares perante o “imperativo do amor aos filhos autistas”
(CAMPOY, 2015, p.171).

Portanto, o uso das variações terminológicas relacionadas à maternidade e


paternidade atípicas não são narrativas esvaziadas e meros jogos de palavras.
Constituem, de fato, as experiências desses sujeitos diante uma condição que
implica novas disposições sobre a trajetória pessoal e familiar. Considerando as
controvérsias que o termo ganha associado às mães e pais, entendo que as
experiências desses sujeitos não se equiparam às experiências dos próprios
autistas. Trata-se de um outro espaço e identidade social também cerceados por
estigmas relativos à uma condição, assim como a falta de efetivação de direitos.
Predomina o termo “atípico” associado à maternidade, portanto, demarcando
também questões relativas à gênero. Ao enfatizar o uso da “maternidade atípica”,
muitas mães enfatizam como o papel de cuidado, assistência e suporte às pessoas
com deficiência são ainda vinculados à responsabilidade materna, com altas
demandas materiais, temporais e emocionais. Alia-se a isso, a falta de efetivação e
o descumprimento de direitos e políticas públicas às pessoas com deficiência, que
demandam dessas mães uma constante reivindicação e luta, como por exemplo, os
inúmeros casos de escolas negando ilegalmente a matrícula de crianças e
adolescentes autistas, assim como precarizando a permanência dos mesmos. Essas
violações de direitos às pessoas com deficiência, e mais especificamente neste
contexto, das pessoas autistas, reverberam também no acesso aos direitos pelos
76

cuidadores, como mães que abandonam o mercado de trabalho para se dedicarem


às demandas de suporte e assistência, diante da falta de programas efetivos pelo
Estado, e que se veem em outra situação de vulnerabilidade ao limitarem o acesso a
recursos materiais sem um emprego formal – muitas vezes, sem emprego algum. A
parentalidade atípica traz à tona essa dialética entre o pessoal, doméstico, público e
coletivo, ao demarcar um processo de subjetivação, um papel social e uma atuação
política. Dessa forma, a busca pelo diagnóstico, não diz respeito apenas aos filhos e
filhas, também trata-se de uma ruptura para as próprias mães e pais, um decurso de
subjetivação e formas de estar no mundo.

As experiências emocionais, para além das suas impressões baseadas em


processos psicológicos e individuais, demarcam fenômenos de ordem histórica,
social e cultural (REZENDE e COELHO, 2010). Desde clássicos da antropologia
como Marcel Mauss (1980), as expressões dos sentimentos e das emoções passam
a ser reconhecidas como um entrelaçamento entre o obrigatório e o espontâneo a
partir das experiências dos sujeitos. Portanto, descendo ao cotidiano (DAS, 2007)
através das narrativas familiares, me inspiro em digressões da ordem das emoções
e das expressões de sentimentos para levantar possibilidades de interpretação das
experiências dessas mães e pais com o diagnóstico de autismo de seus filhos e
filhas. Trazendo as narrativas, histórias familiares contadas, revividas e
reorganizadas, as subjetividades dessas pessoas tomam lugar, mas demarcam
impressões sociais e culturais muito específicas a respeito do reconhecimento do
autismo, das demandas e invisibilidades, além das configurações familiares.
Portanto, a subjetividade dessas pessoas é apontada como uma realidade empírica
e também uma perspectiva analítica (AYDOS, 2017).

Das e Leonard (2007), no trabalho já mencionado sobre mulheres jovens com


HIV positivo, articulam através de conversas com profissionais de saúde, como os
diagnósticos são interpretados de formas variadas, mas assumem uma sucessão
ordenada de fases, que inclui o choque, a negação e a aceitação, aproximando-se
de um processo de luto. Acerca do processo de apreensão, as autoras mostram
como o passado também é reconfigurado a partir do diagnóstico, “fazendo com que
algo que estava oculto se revele” (DAS e LEONARD, 2007, p.200, tradução minha).
77

De forma semelhante à abordada por Das e Leonard, examino a ruptura da vida


cotidiana a partir do diagnóstico, sem tratá-la no sentido de rompimento e quebra,
mas, ao contrário, a entendendo como uma circunstância temporal significativa, ou
seja, um novo prelúdio. Refletir a partir desta lógica, permite estabelecer as
fronteiras cronológicas de uma história familiar que se insere em uma disposição
social distinta da expectativa normativa.

O transcurso que caracteriza essa ruptura e circunscreve no cotidiano as


novas categorias operantes de ordenamento da vida familiar, é visto em
encadeamentos de emoções e experiências vivenciadas. Tão diversos no princípio,
mas com significativas semelhanças, os relatos familiares traziam o acontecimento
do diagnóstico. Um processo que é heterogêneo em suas adjetivações, sendo alívio
e clareza, medo e sofrimento, é também atravessado por questões de classe, raça,
gênero, geração, religião, além das diversas expressões individuais e parentais. Não
obstante, há processos emocionais e sociais que caracterizam as experiências após
o laudo. De modo semelhante ao analisado por Das e Leonard (2007), há também
em relação ao autismo, uma demarcação de momentos da história familiar sobre o
diagnóstico, em que a dúvida, surpresa, luto, isolamento, aceitação, expertise e por
vezes, luta, passam a compor os repertórios dessas famílias57.

2.2 REARRANJANDO O PASSADO E REESCREVENDO O FAMILIAR

Vários dos relatos de autistas e familiares sobre o processo de obtenção do


diagnóstico de autismo apresentam uma série de entraves que perpassam questões
subjetivas, mas também práticas e materiais, assim como questões mais amplas de
caráter cultural, social e econômico. O diagnóstico de autismo no Brasil ainda é uma
referência clínica carregada de estigmas mesmo entre os profissionais de saúde,
sejam pediatras, psicólogos, psiquiatras, neurologistas, ou mesmo a clínica geral.

57
Outros estudos também articulam essas experiências emocionais de familiares com o autismo, a
partir de diferentes abordagens e que são inspirações para a análise aqui construída (GRINKER,
2010; NUNES, 2014; CAMPOY, 2015; FONTOURA, 2015; RIOS, 2017; AYDOS, 2017).
78

Devido à falta de profissionais especializados no Brasil, e com essa lacuna ainda


maior no Sistema Único de Saúde (SUS), o processo de obtenção do laudo médico
é relatado como permeado por muitos obstáculos, diagnósticos equivocados,
avaliações custosas e demoradas. Fernanda Nunes (2014), em sua etnografia com
grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro, descreve como a busca pelo laudo
diagnóstico é narrada como uma “jornada” e “peregrinação”58. Essa construção
metafórica acerca da longa trajetória percorrida na busca pelo correto diagnóstico
demarca não somente a falta de conhecimento e traquejo dos profissionais de saúde
– decorrência da etiologia incerta, a ausência de exames clínicos e biomarcadores
definidos (NUNES, 2014) –, mas também a falta de informação correta e os
estigmas que cercam a especificidade desta deficiência.

Através do laudo médico, a pessoa com autismo passa a ter assegurados os


mesmos direitos às pessoas com deficiência e a ter suas especificidades atendidas
por leis e decretos em nível federal, estadual e municipal. É por esse acesso a
direitos que há uma enorme busca das famílias pela obtenção do diagnóstico
médico, além das questões de ordem emocional e psicológica. Entretanto, baseada
nas discussões de Valtellina (2019) e Hacking (2006), que partem da ideia do
diagnóstico constituído no cotidiano das relações e sendo interpelado pelas pessoas
que o tem tangente em suas vidas, encontro nas narrativas desses familiares, um
processo que é perpassado por questões sociais que vão além de uma definição
biomédica.

O pediatra, quando falei que achava que meu filho era autista, me olhou
como se eu estivesse maluca e me pediu para nem repetir aquilo! Meu
esposo falava que “esse tal de autismo” era uma coisa da minha cabeça e
que o filho dele não tinha nada (GOMES, 2020, n.p.)59.

58
Assim como Fernanda Nunes (2014) apresenta sobre seu campo, em meu contexto de pesquisa a
religiosidade é constantemente evocada para dar justificativa aos acontecimentos. Roy Grinker (2010)
discute essa questão religiosa ao contrastar como em contextos diversos, e com religiosidades
também diversas, esse mesmo caminho é posto como ordenamento para a vida diante do
diagnóstico. A presença religiosa aparece, principalmente, em adjetivações de autistas como “anjos”
ou “presentes de deus”, o que é um tema de recorrente embate entre autistas ativistas e familiares.
59
Livro organizado por mães de pessoas com autismo, com relatos de suas experiências sobre o
diagnóstico. Material obtido com os interlocutores desta pesquisa e que apresenta o contexto local
abordado.
79

Em quase todos os relatos de familiares sobre o processo diagnóstico do


autismo no campo etnográfico60, a dúvida aparece como um dos demarcados
momentos do acontecimento do diagnóstico. A dúvida sobre as características
diversas observadas são comumente relatadas por mães frente ao desenvolvimento
do filho ou filha. Mas, em outro sentido, a incerteza também está associada à
constante descrença dessas mulheres sobre suas percepções. Maluca, oportunista,
paranóica, neurótica, fraca, preocupada demais, “sem ter o que fazer dentro de
casa”, “mãe de primeira viagem”, dentre outras adjetivações e sentenças morais,
foram direcionadas a essas mães na busca pelo entendimento sobre seus
questionamentos em relação aos filhos e filhas. A ideia de culpa associada a essa
busca pelas mães está amparada em pontos nodais do processo histórico do
diagnóstico, como já apresentado anteriormente nesta dissertação. O imaginário
construído sobre pais, e principalmente, mães, responsáveis pelo diagnóstico é
fundamentado em uma perspectiva moral da dúvida e da culpa.

Bruna Lopes (2019a), ao apresentar de maneira habilidosa o papel da


maternidade em relação ao autismo, demonstra como a culpabilização das mães
não está desassociada da construção do ideal de maternidade do ocidente, que
enfatiza descrições de maternidade adequada e inadequada, ou seja, a “mãe boa” e
a “mãe má”. Portanto, permanece um estigma da mãe constituído no que Lopes
(2019a) chama de “regime da culpa”. Se esta incerteza sobre o papel das mães em
relação ao diagnóstico estava antes associada às suas causas, nas falas de muitos
familiares, atualmente, esta associação se baseia mais em uma espécie de
prognóstico: as mães ficam “buscando coisa onde não tem”, e são, muitas vezes,
julgadas por uma superproteção que as vincula novamente a um ideal de
maternidade inadequada. Neste imaginário social, a proteção e o afeto demasiado
acabam por prejudicar o desenvolvimento de seus filhos autistas, acabam por criar
preocupações exageradas.

60
Acompanhei, com maior profundidade, apenas histórias familiares de autistas que já haviam, em
maior ou menor tempo, recebido o diagnóstico de autismo. Não pude acompanhar nenhum processo
de busca pelo diagnóstico. Amparo-me nas narrativas dos familiares que não apenas retomam
acontecimentos, mas ao narrar, elaboram suas experiências.
80

Aponto aqui como essa dúvida em relação à busca pelo diagnóstico está
associada, na maior parte das vezes, ao exercício da maternidade, evidenciando
marcas de relações e diferenças morais nas construções de gênero dentro das
famílias (ALMEIDA, 2004). Mas não raros são os relatos de pais que, ao
participarem da busca por entendimento sobre os filhos e filhas, também evidenciam
o desgaste com a família extensa61 na invalidação do diagnóstico de autismo. Tal
como traz Heloísa Buarque de Almeida (2004), a família não é apenas o lugar de
afeto, mas também o lugar onde se expressam conflitos. Fernanda Nunes ao relatar
sobre experiências de familiares com o diagnóstico, demonstra como há ainda uma
disruptiva dos laços afetivos e sociais vivenciados que se estende para além das
famílias, explicitado na fala de um interlocutor: “é como se uma bomba de nêutron,
aquela que mata tudo em volta, mas não destrói nada, tivesse explodido em nossos
relacionamentos” (NUNES, 2014, p.38). Portanto, cabe às famílias o suporte e
assistência adequados, assim como a lida com essa reconfiguração familiar, essa
incorporação das diferenças inesperadas em uma narrativa compreensível de
parentesco (RAPP e GINSBURG, 2001). Como bem descreve Campoy, os pais
passam pelo dilema de “como ler seu filho, esse estranho que a vida lhe colocou
como parente, esse outro que lhe veio como família, esse migrante que arrastou as
fronteiras da alteridade para dentro do seu lar” (CAMPOY, 2017, p.148).

A dúvida que perpassa os caminhos da família diante do diagnóstico aparece,


portanto, como uma impulsão inicial em relação ao reconhecimento das diferenças
dentro da trajetória familiar, na obtenção do laudo médico ou mesmo na recepção

61
Heloísa Buarque de Almeida (2004) traz a discussão sobre o que pressupõe a família nuclear na
sociedade moderna, em oposição à família extensa. A autora mostra que há um imaginário de um tipo
ideal de grupo de parentesco: um casal com seus filhos, formado por uma aliança e decorrente de
laços diretos de consanguinidade. Além da habitação na mesma moradia em boa parte do ciclo
familiar. Sem desconsiderar essas discussões acerca das relações de parentesco e das categorias
que emergem na sociedade moderna, utilizo das adjetivações de nuclear e extensa sem pressupor o
que significam essas famílias. Pretendo demonstrar apenas que há um núcleo (constituído das mais
variadas formas) que predispõem apoio e cuidado recíprocos, inclusive diante de diagnósticos
médicos e deficiência; e outro grupo familiar que geralmente está mais distante, podendo ou não
direcionar ações de apoio. Faço essa escolha metodológica buscando não generalizar as histórias
familiares com as quais tive contato, considerando também que conheci fragmentos dessas histórias,
portanto, os dados são insuficientes para afirmar com clareza quais são essas estruturas familiares
ou arranjos de moradia. Havia famílias monogâmicas, famílias monoparentais, famílias constituídas
com outros membros como figuras centrais, etc. Meu foco nesta dissertação foi a trajetória de mães e
pais de autistas, independente da consanguinidade ou do arranjo familiar.
81

desta classificação que interpela a vida dos indivíduos e cria novas categorias nas
quais as relações operam. Mas é também a dúvida, e consequentemente, a busca
por informações, que aproxima as famílias de um movimento de ativismo familiar.
Exemplar é o envolvimento de novos integrantes na associação que encontram a
ASATEA em redes sociais, indicação pessoal ou profissional, e a veem como uma
alternativa ao acesso de informações acerca do autismo, assim como à
reconstrução de laços afetivos e sociais. Joaquim, ao descrever a rotatividade de
participação na associação, enfatizou como muitas das mães e pais que fazem o
contato, estão em uma ânsia por respostas prontas, idealizando a associação como
o lugar de resolução de dilemas e um “guia do caminho a seguir”. Entretanto, mais
do que prescrições, Joaquim afirmou como o conhecimento e acolhimento das
subjetividades da parentalidade atípica é parte de um longo processo, assim como a
luta por direitos e reconhecimento do autismo também requer engajamento e uma
constante busca por respostas que perpassa tanto questões sociais e políticas,
como o próprio ordenamento pessoal e subjetivo.

Mesmo diante das dúvidas e incertezas sobre a condição dos filhos e filhas,
alguns pais preferem acreditar que não há nada a ser esclarecido, constituindo um
mecanismo de defesa, como afirma a terapeuta Sônia Calil62. Mas esta defesa não
está apenas relacionada ao sentido psicológico, ela coaduna com uma lógica
generalizada de produções de corpos e subjetividades circunscritas em uma
representação de normalidade. A condição do autismo, enquanto um diagnóstico e
uma deficiência, materializada em um laudo médico, além de uma “resposta” ou o
aparente fim de uma “jornada”, também gera a ruptura de certezas construídas no
ideal da parentalidade e da família. Neste sentido, a surpresa e o choque também
aparecem, frequentemente, nas narrativas e relatos das trajetórias familiares. Uma
das mães que contribuiu com o livro “Unidas pelo Autismo” (2020), material com
relatos de mães após o diagnóstico de autismo de seus filhos, conta como a dor e o

62
Vídeo circulado no grupo de whatsapp da associação que discute a saúde mental de pais e a
“estabilidade” da família, promovido por Mayra Gaiato, notável psicóloga especializada em autismo,
com a participação de Sônia Calil, psicóloga de adultos e terapeuta de pais. Trago este material como
algo que circulou entre o coletivo de familiares e foi muito apreciado. As demandas sobre “terapia de
pais” são recorrentes nas associações. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=2quH3Lf_
UhI&feature=youtu.be>. Acesso em março de 2021.
82

sofrimento a consumiram e, em todas as consultas médicas, ela apenas ouvia o que


queria ouvir. “Quando você está ali, com o laudo nas mãos, aí é outra coisa”, me
relatou uma mãe.

O luto é outra categoria amplamente acionada por familiares nas relações


com diagnósticos de deficiência. Diante do diagnóstico, mães e pais afirmam
experimentar o luto quando recebem a “notícia”, ou mais precisamente, a
classificação médica. Esse luto, comumente associado ao sentimento em
decorrência da morte, pode ser problematizado quanto a esse acionamento em um
contexto tão distinto. Em uma situação em que a notícia dada não é a morte, mas a
vida com certas diferenças corporais e barreiras sociais, ainda se trata de vida, e o
luto parece desapropriado.

E aí tem o luto. Muitas partes dessa fase eu não lembro, e acho que
justamente por conta de todo sofrimento. Digerir tudo isso foi muito
complexo. Fiquei por um tempo em um lugar bebendo da fonte de onde
jorrava toda a tristeza do mundo. [...] No caso da minha família, minha
esposa não passou por esse processo. [...] O que pode levar uma pessoa a
ter esse sentimento? Sentir culpa ou procurar um culpado (Trechos
transcritos da fala de uma pai no Congresso NeuroConecta, realizado em
2020).

Em uma análise mais cuidadosa de discursos familiares, tais como o


apresentado na fala de um pai em um congresso destinado a discussões sobre
autismo, o luto aparece enquanto a perda da idealização, enquanto a morte
simbólica de expectativas. Como aponta Deise Fontoura (2015) em sua pesquisa
com mães de autistas, o filho idealizado é substituído pelo filho real e sua
experiência com uma condição diversa – a deficiência. Culpa, rejeição, medo,
preocupação e vergonha, também caracterizam esse discurso do luto, evidenciando
como são constituídas essas complexas e heterogêneas políticas emocionais. Ao
destacar, em suas falas, o processo de elaboração da dor frente ao diagnóstico, as
mães e pais tendem a dar ênfase na perspectiva psicológica, mas há uma
incorporação da deficiência no corpo social através dessas micropolíticas das
emoções (REZENDE e COELHO, 2010). Sustentado em uma narrativa da
83

“preocupação”, o luto é também envolto a um reconhecimento social estigmatizante


da deficiência que prevê a incapacidade das pessoas com deficiência de gerir suas
próprias vidas e, portanto, o diagnóstico marca essa aparente ruptura no curso da
vida dos filhos autistas63.

A deficiência, incorporada nas trajetórias familiares, aponta para


transformações no projeto e exercício da parentalidade. Ao apropriar de um sentido
lexical do luto, trata-se de um processo de elaboração perpassado pela dor, o qual é
possível analisar, desta forma, como um processo de subjetivação e de
reordenamento dessas parentalidades que passam a se adjetivar como atípicas.
Neste sentido, o luto diz respeito a uma perda da idealização em relação aos filhos,
mas também circunda a morte simbólica de uma expectativa de parentalidade por
essas mães e pais, ou seja, reflete sobre a imagem do outro e de si. O
reordenamento das trajetórias e rotinas familiares no contexto do cotidiano, como a
organização do espaço físico da casa, o provimento de cuidados, a distribuição de
recursos materiais e econômicos, e a temporalidade rearranjada, também fazem
parte deste processo. O parentesco e a deficiência passam a ser mutuamente
escritos. A categoria do luto evidencia uma construção social e cultural relativa às
noções de família no contexto da sociedade ocidental moderna, assim como as
expectativas sobre um decurso de vida convencionalmente ideal. Os modelos da
parentalidade e das relações familiares, ao relacionar esses paradigmas, também
configura exclusões às diversidades: certos modos de ser, estar e experienciar o
mundo, através dos corpos e subjetividades, são colocados no campo da subversão
da ordem social. O luto, portanto, faz parte de um processo marcado por questões
emocionais, mas também, sociais e políticas.

Essa ruptura de planos e projetos de vida também corrobora para uma


reconfiguração das relações e papéis familiares. Em um trabalho realizado junto com
Sabrina Finamori (FINAMORI e CARVALHO, 2020), trazendo discussões parciais
desta etnografia, abordamos como o cuidado e a deficiência são alocados, na maior

63
Ao longo desta dissertação abordarei mais detidamente sobre este estigma associado à deficiência
em uma lógica de produção de corpos. Cabe apontar que esta visão é classificada como capacitismo:
a suposição da relação entre deficiência e incapacidade.
84

parte das vezes, como responsabilidade materna. Em grande parte dos relatos, a
rede de apoio constituída por essas famílias é prioritariamente de mulheres,
incluindo mães, avós, tias e irmãs. E mais uma vez, a questão de gênero é colocada
em pauta quando pais afirmam que as mães não passam pelo processo de luto,
mas, ao contrário, nos relatos de mães, elas exprimem como precisam lidar com a
ruptura inicial para dar início aos tratamentos, estabelecer cuidados rotineiros e
buscar políticas de assistência. E por vezes, essas mães justificam o “breve luto”
pela necessidade de intervir no processo emocional de pais que recusam o
diagnóstico e “demoram a vivenciar o luto”, e consequentemente, não participam do
compartilhamento de cuidados em relação aos filhos. O abandono paterno é
também recorrente diante da deficiência e, portanto, dentre essas famílias há uma
quantidade significativa de casos de monoparentalidade feminina (FINAMORI e
CARVALHO, 2020). Irmãos e irmãs também emergem nas narrativas familiares, na
medida em que são reconduzidos a outros planos e projetos de vida. Por vezes é
dado aos irmãos o “direito” de seguir suas vidas, sem que as demandas acerca do
diagnóstico impactem em suas escolhas, justificando, assim, suas ausências. O
contrário também é recorrente, isto é, que esses membros da família – e, neste
caso, notadamente, as irmãs – passem a assumir a responsabilidade pelos irmãos
com deficiência (FIETZ, 2018). Não pretendo me deter aqui nas transformações dos
arranjos familiares, mas busco evidenciar como percorrer essas trajetórias permite
uma compreensão da experiência da deficiência para além da ordem individual, mas
parte da elaboração do parentesco e, de forma mais ampliada, da organização
social e coletiva.

Fernanda Nunes (2014), ao abordar como a parentalidade atípica é


perpassada pelo enfrentamento de situações de preconceitos e dificuldades
relacionadas ao cuidado dos filhos, como comorbidades associadas64 ou a falta de
acesso a direitos e recursos, enfatiza como o diagnóstico também repercute em um
isolamento social familiar. Ao explorar a narrativa de um de seus interlocutores, a

64
É recorrente a associação de comorbidades à condição autista, sendo algumas delas: transtorno de
ansiedade, depressão, transtorno de déficit de atenção, distúrbios do sono, distúrbios alimentares,
epilepsia, etc. Em meu campo de pesquisa é muito comum a troca de informações e recomendações
médicas direcionadas aos cuidados dessas comorbidades.
85

autora apresenta a ideia de “pais-problema” em referência a esse afastamento


social.

[...] Mas, dentro desse universo, os pais se sentem, de certa forma,


tachados como ‘pais-problema’. Isso seria objeto de uma pesquisa muito
grande, porque os pais se sentem excluídos do próprio convívio familiar, no
sentido de que quando aquele pai chega [nos lugares], [também] chega
aquela criança que derruba tudo, que fala alto e que não fica quieto. Então,
para as festas de criança nós não somos mais chamados. Isso é notório. [...]
Então as pessoas já não nos convidam, não é porque elas não querem, mas
elas não sabem lidar com aquela situação. Algumas não sabem lidar, outras
não querem e outras ainda fazem até avaliações preconceituosas: não
educam direito, não tratam, não educam (NUNES, 2014, p.38, grifos da
autora).

Se as rupturas de laços afetivos e sociais já são parte das narrativas de


familiares de pessoas autistas, e de um modo mais amplo, de familiares de pessoas
com deficiência, essa situação ganha outros contornos diante do contexto de crise
sanitária vivenciado mundialmente. Desde a declaração feita pela OMS
(Organização Mundial de Saúde), em março de 2020, atestando uma crise sanitária
de alcance global, passamos a enfrentar consequências econômicas e sociais mais
amplas, mas também, o medo da contaminação e da morte. Com nossos cotidianos
inexoravelmente afetados, adotamos em diferentes graus, medidas de isolamento
social e proteção pessoal definidas pelos governos locais. Nesses dois anos de
pandemia, o isolamento social tem sido alvo de diferentes discussões que cercam
desde questões mais práticas, como o acesso a espaços, à questões de saúde
mental e relações interpessoais. Médicos, psicólogos e psiquiatras são chamados a
discorrer sobre os impactos na saúde mental diante de um isolamento desta
magnitude. Mas esses debates não ficam restritos aos especialistas: a população
geral passou a colocar a pauta diante de ações que reforçam ou rompem com esse
isolamento, com o compartilhamento de experiências e estratégias alternativas
diante deste contexto singular. Se a pandemia e este isolamento social afetou a
todos, de diferentes formas, resgato essa categoria do isolamento ancorando às
narrativas encontradas em meu campo de pesquisa para entender a complexidade
86

desse processo de afastamento de vínculos sociais atrelado a questões de ordem


social e política.

Ao longo do campo etnográfico que, em decorrência da pandemia de


covid-19, se concentrou em modos virtuais de socialização – por meio de reuniões
remotas, grupos de whatsapp e redes sociais –, os relatos que traziam o isolamento
permitiram uma outra leitura sobre essa perspectiva, que afetaram, não apenas
analiticamente, mas a minha própria experiência neste cenário. Encontrei, em mais
de uma situação, e vindo de pessoas distintas e sem relação mútua, falas como:
“nós, pessoas com deficiência e nossas famílias, sempre estivemos em isolamento
social”. Neste mesmo sentido, em uma reunião de organização de eventos
destinados à conscientização sobre o autismo, Gisele, uma das mães interlocutoras
desta pesquisa, sugeriu que fossem debatidos conteúdos do cenário vivenciado
diante da pandemia. Em tom de desabafo, ela explicou o pedido ao ouvir do próprio
filho, um adolescente autista, que sua vida “é uma eterna pandemia”.

A metáfora do isolamento explicitada nas falas dos interlocutores, coaduna


com discussões já trazidas, há algumas décadas, pelos Estudos da Deficiência: a
deficiência é um conceito complexo que não diz respeito apenas aos corpos
diversos, mas trata-se de uma categoria analítica que permite também denunciar e
reconhecer a estrutural social que cria barreiras e oprime esses mesmos corpos
(DINIZ, 2012). Éverton Pereira, Cecília Alecrim, Diego Silva, Adalberto Salles-Lima,
Gabriela dos Santos e Marineia Resende (2021), ao abordarem as perspectivas
sobre deficiência em relação ao contexto pandêmico da covid-19, afirmam como o
histórico de discriminação, a escassez de informações e dados oficiais desta
população específica, assim como a falta de espaços de participação, geram uma
“invisibilidade sistemática”. Esta invisibilidade e isolamento foram ainda mais
acentuados durante a crise sanitária. Patrice Schuch e Mário Saretta (2020)
demonstram, por exemplo, como as políticas e programas de enfrentamento do vírus
e das consequências sociais e econômicas, enfatizaram políticas generalistas, sem
que as práticas e dinâmicas cotidianas das pessoas com deficiência e suas famílias
fossem abarcadas nessas estratégias de controle.
87

Diante disso, as mobilizações políticas em torno da deficiência, por meio dos


estudos teóricos e movimentos sociais, se dão nas reivindicações pela participação
plena das pessoas com deficiência e suas famílias e tocam precisamente nessas
experiências de isolamento e exclusão. Assim, os relatos não estão localizados
apenas em trajetórias pessoais dos interlocutores desta pesquisa, são parte da
construção social sobre a deficiência e motivam, no agenciamento dos sujeitos
sobre essas violações, movimentos políticos, tais como “nada sobre nós sem nós”65
ou a exposição pública de narrativas de familiares buscando mitigar essa
invisibilidade sistemática. Alessandra Soares e Maria Eulina Carvalho (2017), ao
constatarem o recorrente isolamento social de familiares de pessoas com
deficiência, mais especificamente de mães, constroem uma pesquisa e intervenção
que articula coletivos e redes de apoio, buscando garantir a reinserção social, o
empoderamento individual e coletivo. A partir deste trabalho, as autoras explicitam
como redes e alianças são fundamentais para as relações pessoais e familiares
diante da condição de deficiência, mas também contribuem significativamente para o
reconhecimento e inclusão da deficiência no corpo social.

Na especificidade do autismo, Fernanda Nunes (2014) ao descrever essa


ruptura dos laços afetivos e o isolamento social de famílias de autistas, atenta para o
fato de que mesmo após a participação em redes de acolhimento ou movimentos
sociais de familiares, o ciclo de relações se fecha no coletivo mobilizado. No campo
etnográfico, metáforas foram elaboradas sobre a predominância do tema do autismo
em várias das experiências dessas mães e pais ativistas, enfatizando como “tudo é
sobre autismo”. Em tom de brincadeira, ouvi que as mães e pais “respiram autismo o
tempo todo” e já receberam críticas por “só abrir a boca pra falar de autismo”.

É importante destacar o contraste das experiências familiares com as


motivações dos próprios filhos autistas, sendo que, grande parte das vezes, a
condição – e tudo relacionada à ela – não é central na vida dessas pessoas.

65
Uma máxima do ativismo da deficiência, o “nada sobre nós sem nós” representa as reivindicações
de autonomia, independência e participação plena. Romeu Sassaki (2007a, 2007b) faz um detalhado
histórico dos movimentos das pessoas com deficiência, destacando os efeitos do “nada sobre nós
sem nós”. Pedro Lopes (2019c) aborda como o ativismo político protagonizado por pessoas com
deficiência na África do Sul, em 1970, também foi relevante para a consolidação do emblema.
88

Comuns são os relatos de autistas que enfatizam outras características próprias


antes de enunciar que também tem o autismo presente em suas vidas. Joaquim me
relatou como Rafael, seu filho, no início do envolvimento com a associação,
participava ocasionalmente das reuniões e eventos promovidos pelo coletivo, mas
que, com o passar dos anos, isso deixou de ser algo relevante para ele.

[...] E no passado, antes talvez até de você conhecer a ASATEA, ele


[Rafael] até participou de alguns eventos. Participou, ajudou, deu
entrevista… Ele agora não quer saber mais disso não. Ele quer assim, quer
seguir no programa dele de autoconhecimento e fazer as coisas que ele
gosta de fazer, entendeu? Dentro da rotina dele. Então assim... Eu não
chamaria ele mais para fazer participação em evento, participação nisso e
naquilo, porque ele não tem mais interesse. O lado bom disso é que essa
falta de interesse não é porque ele desdenha não, é porque ele acha que
está se conhecendo melhor, ele está lidando melhor com ele mesmo
(Entrevista com Joaquim, acréscimo meu).

Dessa forma, o isolamento e o entendimento acerca do reordenamento das


relações e das novas categorias operantes após o diagnóstico de autismo pelas
mães e pais, não estão desatrelados da interpelação da condição nas experiências
dos próprios filhos. De modo semelhante ao relatado por Joaquim, Rute, outra mãe
da associação, justificando a pouca participação e ausência em algumas reuniões,
evidenciou como o autismo pode ser habitado de diferentes formas (AYDOS, 2017).

Meu filho estava negando, odiando essa palavra, por isso eu precisei dar
uma recuada, para ele se entender, ter o momento dele. [...] Teve um
momento em que ele era super aberto, batia no peito e falava ‘eu sou
autista!’, depois ele negava. As coisas estão se encaminhando, então agora
eu posso me dedicar mais. [...] Chegou um momento em que ou eu fazia
bem a ele ou aos outros (Fala de Rute).

Portanto, como apresentei ao longo deste tópico, seja através dessas


políticas emocionais elaboradas no processo diagnóstico, na constituição de um
reconhecimento da diferença na trajetória familiar ou mesmo na participação de
familiares em coletivos e movimentos mais amplos em torno da condição, o autismo
89

é, de fato, algo que acontece no fluxo da vida cotidiana e é significado nas relações
dispostas em contextos socioculturais específicos. No sentido apontado por Ian
Hacking (2006), o diagnóstico, além de uma classificação, é também criado pelos
sujeitos localizados nas dinâmicas dos efeitos e sentidos que produz. E a
deficiência, enquanto categoria analítica, deve ser também analisada na
potencialidade do cotidiano, dentro das casas, nas ruas, nas praças, ou mesmo em
telas que passam a contar tantas histórias.

2.3 FUTUROS POSSÍVEIS

Como já apontado por inúmeras pesquisas relativas ao tema, o autismo ainda


é uma categoria carregada de controvérsias, seja da ordem médica, social ou
política. Os sentidos do autismo se dão nos contextos socioculturais, no
conhecimento especializado, mas também, através de fluxos econômicos e políticos
que geram discursos conectados em todo mundo. Essa miríade de informações que
circulam também são experienciadas pelos familiares diante do diagnóstico de
autismo de seus filhos e filhas. Significativos são os relatos que adentram uma
imagem da “busca por respostas”, enfatizando a produção de conhecimento das
mães e pais em relação à condição. “A falta de informações é uma grande lacuna na
sociedade”, afirma Diego, um dos interlocutores desta pesquisa, com uma fala
emblemática no campo etnográfico por corroborar com a perspectiva de um contínuo
hiato sobre o autismo no contexto local. É em decorrência da situação de aparente
escassez de informações que, no acontecimento do diagnóstico, muitas mães e pais
passam a circular por diversas áreas de conhecimento e manipular múltiplas
ferramentas de comunicação e informação.

A mídia tem um papel fundamental na construção do conhecimento sobre o


autismo ao longo das décadas. Clarice Rios, Francisco Ortega, Rafaela Zorzanelli e
Leonardo Nascimento (2015), em um trabalho acerca da ênfase sobre o autismo na
mídia brasileira, demonstram como inicialmente a visibilidade é alcançada por
90

relatos que abordam o autismo como uma condição extrema, com a exposição de
pais desesperados. Outra perspectiva que constituiu este inicial destaque, foi uma
apropriação sobre narrativas de autistas estrangeiros e matérias de cunho científico
com estudos e tratamentos advindos de fora do Brasil – o que, argumentam os
autores, poderia indicar a falta de recursos para lidar com o autismo no contexto
local. Ao longo dos anos, essa visibilidade foi ganhando outros contornos, e a
participação de familiares e autistas ativistas também foi fundamental para a
construção de narrativas mais amparadas nas experiências reais dessas pessoas66.
Ainda que esses reconhecimentos tenham sido atualizados, o autismo é uma
categoria que carrega muitos estigmas, sendo associado a visões estereotipadas ou
informações contestáveis. Assim, para muitos familiares, o decurso após receberem
o diagnóstico de seus filhos e filhas, é o empenho e procura por informações
confiáveis. Destrinchar matérias, sites, relatos, artigos científicos, revistas, livros de
especialistas, leis, cartilhas, bulas de medicamentos, dentre outros materiais e
narrativas, é parte da experiência de muitos familiares. Nas reuniões das
associações em meu campo etnográfico, não raro, mães e pais traziam consigo
algum livro ou artigo impresso em processo de leitura. Produções cinematográficas,
principalmente com protagonistas autistas, também ocupavam o repertório de
alternativas de obtenção de informações sobre o autismo67.

Ao adquirir recursos e informações que contribuem para esse reordenamento


de categorias que passam a operar e habitar a vida de familiares de autistas, uma
espécie de incorporação da condição acontece no cotidiano dessas famílias. São
recursos que ajudam a ordenar e a elucidar. Neste sentido, Catiane Gomes,
organizadora do livro “Unidas pelo autismo” (2020) e fundadora do grupo de mães
com o mesmo nome, na participação de uma live, afirmou como, grande parte das
vezes, cabe às mães a responsabilidade pela “educação do resto da família”, se
referindo à busca e agregação de conhecimentos que arranjam as experiências com

66
Hacking (2009), Hart (2014), Grandin e Panek (2015) e Valtellina (2019), são alguns autores que
abordam a constituição da visibilidade do autismo por meio de narrativas e autobiografias de autistas.
67
Alguns dos filmes e séries que me foram indicados ao longo desta pesquisa incluem: Rain Man
(1999), Missão especial (2004), Um certo olhar (2006), O nome dela é Sabine (2007), Sei que vou te
amar (2007), Temple Grandin (2010), Fly Away (2011), Vida Animada (2016), The Good Doctor
(2017), Tudo que eu quero (2017), Farol das Orcas (2017), Atypical (2017), Love on the Spectrum
(2019).
91

o diagnóstico. Clarice Rios (2017, 2019), antropóloga e pesquisadora do autismo no


Brasil, explica o processo de produção de conhecimento através de redes de
expertise. Para a autora, essa expertise embaralha os limites dos conhecimentos
técnico e científico e os conhecimentos advindos das experiências dentro da arena
familiar (RIOS, 2017). Entretanto, as competências não se limitam a buscas
detalhadas pelo navegador de pesquisa ou horas gastas em bibliotecas, as
habilidades analisadas por Rios dizem respeito também ao conhecimento adquirido
em processos que envolvem aprendizagem de concepções médicas, técnicas,
processos jurídicos e legislativos, trâmites burocráticos, linguagens emotivas, uso de
suportes tecnológicos, monetização de experiências, envolvimento público, dentre
outros meios de produção de conhecimento advindos das experiências cotidianas de
autistas e seus familiares. A rede de expertise68 está relacionada ainda à elaboração
de narrativas sociais, assim como à construção de alianças entre diversos atores
sociais, que contribuem efetivamente para a atuação de familiares no envolvimento
com políticas públicas e direitos e o arranjo de experiências públicas em relação ao
diagnóstico, como, por exemplo, o engajamento em redes sociais.

Fernanda Nunes (2014) analisa como a identidade política é construída frente


ao reconhecimento de posições estigmatizantes e discriminatórias, que
transforma-se em mobilizações políticas por direitos e justiça social. Considero que,
após o acontecimento do diagnóstico e as consequentes ruptura e reordenação no
contexto familiar, assim como a constante produção de conhecimento relativo ao
autismo, as disposições familiares aqui abordadas apontam para a imaginação de
futuros possíveis, conferidas na gramática da luta. Tal como coloca Nunes (2014), é
o concomitante caráter pessoal e coletivo que confere um capital simbólico
(BOURDIEU, 2004) às motivações e novas identidades desses familiares.

O preconceito, a desinformação e o isolamento, no entanto, são apenas


uma parte da situação vivida pela qual é preciso “lutar” contra. O
entendimento do autismo é positivado por substantivos e predicados que

68
Abordarei sobre esta perspectiva das redes de expertise ao longo da dissertação. No capítulo 3, é
acionada para analisar as redes e alianças que são construídas por familiares na mobilização por
políticas públicas e direitos no contexto local. No capítulo 4, buscando esclarecer como o cuidado
está atrelado a essa produção de conhecimento cotidiano, a expertise é retomada novamente.
92

remetem ao que Claudia Moraes chama de “tomada de posição dentro da


sociedade”. [...] Do momento que se é identificado/rotulado negativamente
(“pessoa chata que só fala de um assunto”, por exemplo) à construção da
carreira de desviante, que se dá pela politização e coletivização de uma
experiência subjetiva, há uma mudança drástica na identidade pública do
indivíduo. A construção da carreira desviante é aqui entendida como a
passagem “pai”, cujo saber é leigo, para o “ativista”, que marca efeitos
positivos da experiência de transformação do self (NUNES, 2014, p.39,
grifo da autora).

Emblemática desta politização e coletivização da parentalidade atípica, a fala


de uma mãe integrante das associações acompanhadas reafirmou esse poderoso
símbolo político do parentesco (CARSTEN, 2004): “a família tem a obrigação de
deixar um legado, nós, mães e pais podemos encurtar o caminho de outros pais que
virão com todo o conhecimento que já temos”. Na ocasião, outra mãe, ao concordar,
concluiu que é através de redes e alianças “que conhecemos a força das famílias,
que acolhemos, que construímos o motor das transformações sociais”.

E aí assim, voltando à questão do Rafael, a gente optou então por buscar


um espaço onde a gente pudesse conversar com pessoas que não fossem
médicos, que não fossem psicólogos, que não fossem... sabe? A buscar
outro tipo de informação, outro viés de informação. Busca daqui, busca dali,
busca de lá, achamos a ASATEA e fomos a uma primeira reunião. Fomos a
uma primeira reunião, estava lá a Regina, a Rute, a Ivana, a Clarice, outras
pessoas. E a gente chegou e foi muito bem recebido, muito bem acolhido,
muito! Nós tivemos um carinho muito grande da parte deles, e gostamos,
eles gostaram da gente e a gente prosseguiu! [...] Durante um bom tempo a
gente se reuniu ali, a gente praticou muito acolhimento ali, muito
acolhimento de muitas famílias, de muita gente assim que... que ia lá para
ver como é que era. Uns gostavam, outros não gostavam, uns estranhavam.
Mas a associação tomou seu rumo, né? O grupo tomou seu rumo. [...] A
gente fez muitos eventos interessantes, alguns dentro de universidade. A
gente teve uma recepção muito grande, em um momento em que o autismo
buscava esse tipo de informação, dos pais. [...] E a ASATEA, acaba que
também foi para nós uma coisa muito boa para a gente se posicionar melhor
socialmente, para gente encarar os problemas de frente, encarar a situação
do autismo, assim, sem nenhum tipo de cortina, sem nenhum tipo de
afastamento familiar, evitar o falar sobre isso, aquelas coisas, esconder...
Então a gente aprendeu muito sobre isso no convívio com a ASATEA e no
convívio com os locais que a gente frequentou (Entrevista com Joaquim).
93

De acordo com o Código Civil Brasileiro69, as associações são caracterizadas


pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. De acordo com
mães e pais de autistas, associações são caracterizadas pelo alívio, clareza,
acolhimento, apoio, informação e resposta. Após um processo de diagnóstico
perpassado por transformações na trajetória individual e familiar, com privilégios e
adversidades a depender de posições sociais, as associações configuram um
espaço possível para as famílias. Como demonstrei no início desta dissertação e em
uma apresentação parcial desta etnografia (CARVALHO, 2020a), o engajamento de
familiares em defesa aos direitos e reconhecimento da pessoa autista no contexto
brasileiro não é recente, data-se que os primeiros movimentos organizados tiveram
início na década de 1980. As aparições públicas de familiares de autistas emergem
com a redemocratização social e política do país ao longo desta década e,
principalmente, com os crescentes debates políticos direcionados à saúde. Através
de meios de comunicação de ampla circulação, mães, pais e outros interessados na
causa, deram início a um movimento de disseminação de informações sobre o
autismo, além de reivindicações acerca de direitos e assistências às pessoas com o
diagnóstico no Brasil (LEANDRO e LOPES, 2018). Atualmente, as associações
fundadas em torno do autismo funcionam, fundamentalmente, como espaços de
acolhimento e informação. Através dos relatos e experiências que me foram
apresentados, essas associações têm uma importante contribuição na elaboração
das próprias famílias diante do processo de diagnóstico. E tal como explicitado na
fala de Joaquim, oferece um posicionamento social das famílias em relação à
deficiência.

Ao longo do trabalho etnográfico, acompanhei de forma mais próxima a


atuação da Associação da Síndrome de Asperger no Transtorno do Espectro do
Autismo, a ASATEA. O campo teve início em agosto de 2019 e até o momento de
escrita desta dissertação, participei das reuniões quinzenais e eventos da
associação, que passaram a ser realizados de forma virtual, com a declaração da
pandemia de covid-19, em março de 2020. A maior parte dos meus interlocutores
são integrantes da ASATEA e configuram um grupo mais próximo de relações

69
Lei nº 10.406 de janeiro de 2002, no Capítulo II dispõe sobre as associações.
94

interpessoais. Dentro deste círculo de integrantes – sendo a maioria, mães; tendo


também a participação de Joaquim, como pai, e alguns autistas – muitos foram os
primeiros a participar da associação, permanecendo, ainda hoje, na direção do
coletivo.

Em uma das primeiras reuniões que participei, conheci Ivana que, na ocasião,
me ofereceu uma carona de volta para casa. Ivana é mãe de dois filhos autistas,
advogada, e é muito envolvida com a causa. Eloquente e extrovertida, é habilidosa
na comunicação de informações e é descrita, pelos outros integrantes, como a mais
apta a pleitear demandas com gestores e figuras públicas. Sua determinação e
carisma aliados, ganha espaços significativos nessas relações de alianças, mas
ganha também, conversas leves e muitos sorrisos durante as reuniões. Na ocasião,
nos acompanhava Rute, mãe de um filho autista já adulto, também advogada.
Resoluta e atenta, Rute é uma das integrantes mais respeitadas por sua longa
atuação na causa, como ela mesma afirmou em dado momento, “27 anos de luta”.
No momento de saída da reunião descrita, enquanto percorríamos o estacionamento
escuro e vazio do prédio, Ivana e Rute, davam continuidade à conversa iniciada
durante o encontro acerca dos cuidados com os filhos. Discorriam sobre suas
rotinas, elaboravam sobre as relações familiares, trocavam conselhos e
recomendações. Minha presença, aparentemente, não era incômoda aos relatos
pessoais trocados. Em tom de brincadeira, Ivana se direcionou à mim: “não liga para
as coisas que a gente fala aqui não! Você sabe da loucura de cuidar de filho, né?
Que a gente ama, mas também quer fugir para longe! Mas a gente faz a mala e põe
o filho dentro!”. A partir deste momento etnográfico, as relações foram se
estabelecendo dentro da associação: eu, enquanto pesquisadora, mas também
mãe, passei a criar vínculos e conexões em que a dimensão familiar era o ponto de
encontro entre as diferentes trajetórias. E foi a partir das conversas estabelecidas
nesta “etnografia de carona” que tive acesso ao “mito criador” da associação pela
primeira vez.

Cerca de trinta minutos dentro do carro, Ivana, Rute e eu compartilhamos


nossas experiências no cuidado com os filhos e filhas. As mães contaram sobre
suas maternidades e falaram precisamente sobre suas carreiras após o diagnóstico
95

de autismo de seus filhos. Na elaboração das narrativas, eram reordenadas as


rotinas, os cuidados, as expectativas. E em meio às suas trajetórias pessoais e
familiares, Ivana e Rute enfatizavam o momento da demanda por uma atuação
colaborativa e coletiva. Junto a outras mães “cheias de dúvidas” que se conheceram
através de um mesmo psiquiatra, Ivana e Rute contaram como essas mulheres
começaram encontros para trocas de experiências. Na fala de Ivana, o contato com
outras pessoas que compartilhavam os mesmos medos e conquistas, gerava um
“enorme alívio”. O início da associação muito se assemelha à história de outros
coletivos constituídos a partir de demandas sobre o autismo: mães são as principais
fundadoras desses grupos e são presença substancial no movimento social. Em
consonância aos processos históricos já mencionados nesta dissertação em relação
ao diagnóstico de autismo e à questão de gênero, excetuados os coletivos de
profissionais que atuam no suporte especializado a autistas, os grupos de defesa e
acolhimento encontrados no contexto local têm, em maioria, a participação da figura
materna em sua criação.

Rute continuou o relato sobre o início da associação afirmando como a


proximidade e o vínculo criado entre as mães foi se expandido e outros familiares
passaram a integrar o grupo com discussões sobre cuidados, direitos, saúde,
educação, trabalho e inclusão. Percebendo a demanda do acolhimento e da
informação às famílias de autistas, em 2017, após três anos de encontros e reuniões
– “lotadas”, como enfatizou Ivana – a ASATEA foi formalizada em uma associação,
adquirindo assim, uma representação formal na atuação pública. O restante da
viagem foi composto de memórias e recordações: eventos promovidos pelo coletivo,
materiais produzidos, envolvimento com administração pública, acontecimentos
cômicos e situações difíceis. Rute, sorrindo, me disse: “a gente já passou por tanta
coisa!”.

A ASATEA atua voltada ao acolhimento, sendo a participação aberta a


qualquer familiar, autista, profissional ou interessado na causa. Grande parte de sua
atuação é voltada à efetivação de direitos e políticas públicas no município, com
uma significativa interlocução da associação com a Prefeitura de Belo Horizonte. Há
também um efetivo empenho na conscientização sobre o autismo através de
96

eventos em formatos diversos, em escolas, empresas, universidades e espaços de


gestão pública. Os integrantes também mobilizam uma rede de profissionais
parceiros, mantendo contato e troca de informações, principalmente através do
grupo virtual. Além da ASATEA, foi possível acompanhar a atuação de outras
associações na região metropolitana, através da Comissão das Associações de
Defesa dos Autistas (CADDA/MG). Em totalidade, as mães e pais que mantive
contato no contexto local desta pesquisa estavam ligados a associações que tinham
o autismo como questão central.

Cada associação possui uma linha própria de atuação, mas com o objetivo
comum de fornecer informações e acolhimento a autistas, familiares e profissionais.
Ainda que as linhas de atuação sejam permeáveis, podendo uma associação atuar
em múltiplos eixos a depender das situações locais, é possível descrever quatro
eixos de atuação pelas associações analisadas nesta pesquisa70: 1) ações políticas
públicas, como a atuação em instituições ou espaços de gestão municipal; 2)
visibilidade e comunicação, através de publicações de materiais, como livros,
vídeos, produção em redes sociais, etc.; 3) acolhimento de famílias, incluindo
serviços destinados à familiares e cuidadores com profissionais parceiros; 4)
acolhimento de autistas, também incluindo a ação de profissionais ou instituições
parceiras. Portanto, através de distintos exercícios políticos através das
associações, os agenciamentos em torno do autismo ora divergem-se, ora
aproximam-se. É a demanda por acolhimento de autistas e suas famílias, promoção
e efetivação de direitos e disseminação de informações sobre o autismo que essas
diferentes atuações se convergem em um movimento social fundamentado em
experiências subjetivas em torno do diagnóstico e da deficiência71.

A politização da experiência da maternidade é um tema já abordado por


diversos pesquisadores em diferentes mobilizações sociais (LEITE, 2004; VIANNA e

70
As linhas de atuação elaboradas nesta dissertação partem de observação etnográfica, pesquisa
documental, entrevistas e conversas informais, não correspondendo, necessariamente, a dados
elaborados pelas associações.
71
Enfatizo as terminologias diagnóstico e deficiência na mesma sentença, sinalizando as
heterogêneas perspectivas ontológicas sobre o autismo neste movimento familiar mais amplo, e que,
longe de serem excludentes, compõem as nuances que marcam o debate e o reconhecimento do
espectro autista.
97

FARIAS, 2011; BRITES e FONSECA, 2013; NOVAIS, 2018) e que se apresenta


como um dos cernes desta etnografia. A participação de mães nos movimentos
sociais através da criação de redes de associações fazem parte de uma
discursividade que produz e sustenta a politização familiar e articula problemas
sociais contemporâneos em relação aos modos de experienciar a parentalidade
(MEYER, 2005). Não se limitando apenas às questões maternas, não raro, no
contexto desta pesquisa, o ideal de uma parentalidade atípica é entendido como
aquele em que a mãe ou pai luta por seu filho, ou seja, é marcado por uma
transformação de subjetivação que se direciona ao ativismo e engajamento social.
Esta perspectiva coaduna com uma reelaboração da noção de família, na qual a
politização das experiências subjetivas são parte da construção da cidadania e da
justiça social. Através da circulação de relatos, do conhecimento tácito adquirido no
cotidiano, nas experiências individuais, na elaboração coletiva sobre a família dentro
das associações e do aparecimento em esferas públicas, fronteiras são
constantemente ultrapassadas, elaborando, desta forma, um fazer político que é
constituído no vínculo entre o público e o privado (BUTLER, 2019).

A politização da experiência subjetiva de mães e pais, materializada nos


movimentos sociais e nas associações, também é estruturada por relações
dinâmicas que envolvem posições de poder, representatividade e autoridade moral.
Kaito Novais (2018), em sua etnografia com o movimento Mães pela Diversidade,
enfatiza como os movimentos familiares também são constituídos por alianças de
pessoas que possuem gênero, sexualidade, raça, idade, classe social, escolaridade,
profissão, estado civil, posição política e naturalidade diversas. A convergência se
dá nesta posição e atuação em relação à parentalidade (NOVAIS, 2018). Como
apresentei, o exercício e gestão de cada associação segue um eixo de atuação que
pode objetivar um aspecto específico ou combinar múltiplas formas de mobilização.
Entretanto, o propósito da informação, acolhimento e efetivação de direitos é o
comum. Ainda que essas coalizões sejam significativas no campo de pesquisa,
inclusive possibilitando a atuação conjunta de associações plurais – no caso da
CADDA –, há marcadores sociais muito específicos àqueles que têm maior
representatividade neste tipo de atuação. No tocante à posição da parentalidade
98

relacionada a marcadores sociais na mobilização familiar, exemplares eram os


lugares de realização das reuniões da ASATEA que, quando ainda presenciais,
cedidos por integrantes e parceiros, demarcavam um posicionamento social na
geografia da cidade. As reuniões, ainda que justificadas na centralidade do acesso,
eram realizadas em bairros nobres de Belo Horizonte. Com a demanda por
comunicação remota, diante da pandemia de covid-19, a participação nos grupos
virtuais das associações permitiram emergir uma diversidade maior de trajetórias,
trazendo à tona, essa miríade de experiências pessoais e familiares em relação ao
autismo e contribuindo para certos direcionamentos no exercício das associações72.

Apresentei ao longo deste capítulo como o diagnóstico de autismo passa a


interpelar e ser interpelado nas trajetórias familiares, destacando o parentesco como
um recorte analítico significativo nesta apreensão da deficiência. Busquei
demonstrar como as famílias recriam suas narrativas e reelaboram categorias
operantes (CARSTEN, 2007) no cotidiano com a deficiência. Tal como Carsten
(2007) defende o parentesco como um tipo de socialidade que evidencia estruturas
sociais, parto dos relatos de mães e pais para compreender como a deficiência e o
parentesco são mutuamente escritos nos processos cotidianos e são perpassados
por uma imaginação cultural. Entretanto, para além do rearranjo das famílias,
apresento como ideias de parentalidade, curso de vida e deficiência são atualizados
diante de uma coletivização e politização das experiências subjetivas. E a
imaginação de futuros possíveis torna também possível uma gramática da luta. Essa
mobilização social de familiares, portanto, não está desatrelada de processos
cotidianos, políticas emocionais e da interlocução com o Estado através de políticas
e direitos acessados – ou não – por autistas e suas famílias. É neste sentido que
exploro, no próximo capítulo, como essas relações com a deficiência, construídas
dentro da aparente dimensão do particular, são elaboradas na luta de familiares no
âmbito público, através da atuação do movimento familiar em espaços de gestão

72
Comumente a máxima “diversidade dentro da diversidade” é utilizada para explicitar as múltiplas
experiências em relação ao espectro autista. No contexto da pesquisa etnográfica, a frase era
também relembrada para mobilizar reflexões a respeito das próprias experiências familiares em
relação ao diagnóstico, enfatizando, principalmente, questões de classe, raça, gênero e geração.
99

pública e articulação com o Estado na luta por direitos e reconhecimento de seus


filhos e filhas, mas também, de suas próprias posições de parentalidade e cuidado.
100

3 DIREITO À DIFERENÇA

Nos primeiros capítulos desta dissertação apresentei como o autismo é


expresso em múltiplos sentidos e como as categorias constituem e são constituídas
pelas experiências dos sujeitos que vivem com a condição tangente em suas vidas.
Apresentei as controvérsias que envolvem o autismo imbricado em contextos mais
amplos que articulam questões sociais, culturais e políticas. Busquei apontar quem
são as pessoas que estão reivindicando condições mais vivíveis, efetivação de
direitos e reconhecimento da diversidade. Demonstrei como as discussões da
deficiência também dizem respeito à esfera do parentesco e da família,
reconfigurando esse pressuposto moral fundante da sociedade ocidental moderna.
Diante dessas considerações, que não se resumem e não são limitadas às
experiências aqui retratadas, busquei demonstrar como esse campo parece estar
em um constante movimento.

Neste capítulo, portanto, trago mais detidamente a relação desses familiares


com movimentos sociais e políticos de reconhecimento do autismo e efetivação de
direitos e políticas públicas. Aponto para as aproximações com o movimento mais
amplo da deficiência, mas também para os distanciamentos constituídos por meio da
especificidade do autismo, com suas demandas particulares. Exploro cenas
etnográficas para explicitar como se dão as atuações das mães e pais em espaços
participativos da gestão municipal, com ênfase nas redes e alianças constituídas no
contexto local desta pesquisa.

3.1 AUTISMO E DEFICIÊNCIA: “UMA DEFICIÊNCIA INVISÍVEL”

Dezembro de 2012 habita as memórias de muitas mães, pais e familiares de


pessoas autistas. Relembrada como uma das datas mais importantes para o
reconhecimento do autismo no Brasil, esses familiares engrandecem uma mãe que,
101

“munida de coragem”, estabeleceu um novo panorama para a atenção ao autismo


no contexto brasileiro. A Lei nº 12.764, amplamente conhecida como Lei Berenice
Piana73, nome dado em homenagem à mãe co-autora do projeto de lei, é vista como
uma das principais conquistas do ativismo autista no país. Promulgada em
dezembro de 2012, a lei institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da
Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, tornando o TEA reconhecido
legalmente como uma deficiência no Brasil. As pessoas autistas passam a ter
assegurados direitos como acesso à educação e ensino profissionalizante, mercado
de trabalho, previdência social e acesso a serviços de saúde – incluindo
atendimento multiprofissional, terapia nutricional e acesso a medicamentos. A lei,
reconhecida como uma vitória do ativismo político por todo o Brasil, estabelece a
relação direta com o movimento mais amplo das pessoas com deficiência (RIOS,
2017). Essa inserção legal do autismo corrobora para propostas reivindicatórias que
priorizam a especificidade do transtorno, mas também, passam a ser consolidadas
frente a um movimento mais amplo da deficiência.

“São pessoas com deficiência não aparente”, pondera Diego, um homem


autista e ativista, interlocutor desta pesquisa, a respeito da condição. A discussão
sobre a complexidade desta deficiência invisível, o reconhecimento das pessoas
autistas e, consequente a isso, a efetivação de direitos, são assuntos recorrentes
entre os grupos de atuação no campo etnográfico. A constante anunciação da
invisibilidade da condição demarca a posição do autismo frente a um movimento
político mais amplo da deficiência. O autismo é, a partir de uma perspectiva
biomédica, uma condição sem biomarcador definido, o que corrobora para esse
reconhecimento – ou a falta dele. Em um contexto sociocultural ainda discriminatório
e adverso, a deficiência tende a ser legitimada quando visível: se os órgãos do
sentido não captam a corporalidade que causa estranheza, a experiência da
deficiência é subestimada. Não raros foram os relatos, elaborados junto a

73
Embora existam disputas e controvérsias a respeito da criação e autoria da lei – já que houve a
articulação de outros familiares, assim como alianças políticas –, Berenice Piana se tornou uma figura
central de representação para muitas famílias. Fernanda Nunes destaca essa atuação simbólica de
Berenice, afirmando: “Pude observar que Berenice atuou, simbolicamente, como uma espécie de
entidade mística frente a outras mulheres, mães de autistas em sua maioria” (NUNES, 2014, p.58).
Em meu contexto de pesquisa, Berenice também é vista como uma “mãe guerreira”, que lutou pelo
próprio filho e de tantas outras.
102

desalentos e repulsas, sobre a invalidação do diagnóstico e da deficiência frente à


ausência de um biomarcador. Frases ditas às pessoas autistas ou aos seus
familiares em referência à condição revelam parte desta recognição e legitimidade
vinculadas ao olhar do outro.

“uma menina bonita dessa, autista?”, “mas você parece normal”, “é bom que
nem dá pra ver, aí finge ser normal e não sofre muito”, “você não tem nada
demais, o que está fazendo no preferencial?”, “nem dá pra ver que é
diferente”, “só parece estranho mesmo”, “esse negócio de autismo é
exagero”, “não tem cara de autista” (Relatos de diversos interlocutores).

Não se trata aqui de refletir apenas sobre os processos subjetivos intrínsecos


ao que chamo de “invisibilidade do autismo”. Esse comprometimento do
reconhecimento da condição não tange apenas o plano individual de identificação,
mas ganha contornos políticos e sociais relevantes. Essas enunciações evocam
pressupostos sobre a deficiência perpassados ainda por outros marcadores da
diferença, como gênero, sexualidade, raça, classe, idade, ou mesmo valores morais
e religiosos presentes em vários relatos de experiências com o autismo. Discorrendo
acerca de uma situação pessoal de constrangimento em um estabelecimento
comercial, por decorrência de sua “deficiência invisível” e o uso de fila preferencial,
Diego, destacou em sua fala a interseccionalidade das exclusões diante de uma
condição que não está à vista. Em relação ao desconforto e à exaustão de justificar
e validar a deficiência, Diego afirmou:

Mas e as pessoas que não conseguem fazer isso? Por exemplo, vocês
acham que uma mãe, pobre, negra, com o filho autista, num
estabelecimento que sente que nem era pra estar ali, vai querer passar por
esse tipo de desconforto? (Relato de Diego).

Um capacitismo velado também pode ser interpretado a partir dos


pressupostos de “nem parecer autista”, valorados, à primeira vista, como positivos. A
normalidade apreendida pressupõe um modelo do corpo ideal, uma
103

corponormatividade, e além, pressupõe o desejo do outro de não ter a deficiência


como parte de si. Adriana Dias (2013) apresenta o capacitismo como uma
concepção social das pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou
incapazes de gerir a própria vida, projetando um padrão que vê nas pessoas com
deficiência um estado diminuído do ser humano. O capacitismo é referido nas
convenções e leis74 que definem a discriminação por motivo de deficiência, na qual
qualquer diferenciação, exclusão e restrição por conta da deficiência com o objetivo
de impedimento de acesso, oportunidade ou violação de direito é legalmente
caracterizado na ordem criminal75. O capacitismo se conforma como um neologismo,
aproximando-se de outras discriminações sociais, tais como racismo, sexismo e
homofobia. Adriana Dias (2013) e Anahí Guedes de Mello (2014) retomam o
conceito de biopolítica e biopoder para explicitar como o capacitismo se conforma na
lógica generalizada de produções de corpos, sustentada pelas polarizações de
normalidade e anormalidade. Dias enfatiza que o capacitismo é “subliminar e
embutido dentro da produção simbólica social” (DIAS, 2013, p.2).

Neste viés, o capacitismo implícito às falas direcionadas às pessoas que


vivem com o autismo, dispõe de julgamentos morais que associam capacidade à
funcionalidade corporal e analisa as formas de ser e fazer baseados em uma
categoria ou diagnóstico. Diante de pessoas autistas com uma variável de relações
profissionais, pessoais, românticas, sexuais, além de outros objetivos e valores
particulares, frases que evocam a “normalidade” ou a “invisibilidade do autismo”
aparecem como “mensagens de superação”, que a fundo, podem ser interpretadas
como narrativas capacitistas. Relatos tais como os apontados pelos interlocutores
desta pesquisa, localizados em situações sociais específicas, corroboram para a
dúvida e a invalidação da deficiência. No Seminário Atípico, promovido pela IFMSA

74
Segundo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), da Organização das
Nações Unidas (ONU), incorporada no sistema jurídico brasileiro pelo Decreto Legislativo nº186/2008
e Decreto nº 6.949; e a Lei nº 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão, no Art. 88.
75
No período de minha pesquisa, Diego idealizou e produziu uma campanha acerca do crime de
discriminação em relação ao autismo, em parceria com repartições públicas e privadas de Minas
Gerais.
104

Brasil e UFJF-GV76, autistas ativistas e palestrantes no evento apresentaram suas


experiências acerca desta falta de validação da pessoa autista:

Eu já ouvi que eu não podia ser autista, porque… olha só, eu tive vários
relacionamentos amorosos, eu era casado, porque eu tinha emprego,
porque eu faço sexo, porque eu sou essa delícia marrom que vocês estão
vendo! [em tom de brincadeira]. [...] Se você é um pouco funcional, não
pode ser autista. E se você não é nenhum pouco funcional, você não é
considerado gente. (Homem autista no Seminário Atípico, 2021, transcrição
minha).

Seguindo a lógica desta invisibilidade da legitimação da deficiência, a


comunidade autista também percorre uma luta na desvinculação de um estereótipo
do autismo relacionado à amplitude do espectro. “Autismo não tem cara” estampa
campanhas, projetos e é constantemente evocado como um slogan que carrega
outra forma de visibilização do autismo, pautada no reconhecimento da diversidade
dos corpos e subjetividades e na mobilização contra o capacitismo.

No supracitado seminário, os autistas e ativistas também trouxeram uma


considerável questão que permeia essa “invisibilidade do autismo” em relação às
categorias de análise mais amplas. O gênero tem sido uma crescente pauta entre a
comunidade autista em decorrência de estudos que apontavam a maior incidência
da condição em meninos. Algumas pesquisas em âmbito internacional, ainda em
validação, têm apresentado como os primeiros estudos sobre autismo eram
realizados majoritariamente em meninos77. No mesmo viés, esses estudos
demonstram como os traços em meninas podem ser representados de outras

76
O evento promovido pela Federação Internacional das Associações dos Estudantes de Medicina do
Brasil da Universidade Federal de Juiz de Fora, campus Governador Valadares, realizado nos dias 24
e 25 de junho de 2021, teve como público alvo estudantes de medicina. O evento, entretanto, trouxe a
participação de autistas em diversas palestras que abordavam tanto o diagnóstico como categoria
médica, quanto os entraves sociais e políticos relacionados. Cabe destacar como essas falas
aparecem em um espaço destinado à formação de futuros profissionais de saúde, evidenciando o
agenciamento dos participantes por meio de suas experiências com o diagnóstico. Neste sentido,
explicita-se a construção de sentidos e intenções dos discursos a partir dos diferentes contextos em
que são acionados.
77
Um debate controverso e inflamado na comunidade autista diz respeito à cor azul como símbolo do
autismo. Essas discussões evidenciam a pouca representação de meninas e mulheres autistas, e de
acordo com algumas ativistas, criam mais uma intersecção de estigma acerca da condição.
105

formas, dadas as condições de sociabilidade e relações de gênero. O campo


etnográfico também demonstrou a diminuta quantidade de diagnósticos em meninas,
e consequentemente, a pouca representatividade nos engajamentos e debates
locais. A emergência dessas discussões se tornou muito mais evidente nas
observações de redes sociais e ativismo virtual no período desta pesquisa.
Experiências de mulheres autistas e inclusive, mulheres mães autistas, têm
apresentado uma proeminente presença nos ativismos virtuais.

Essas mulheres têm reivindicado maior atenção e pesquisa acerca das


condições de gênero e diagnóstico. Inúmeros são os relatos de diagnósticos
psiquiátricos equivocados que surgem em decorrência de uma acepção de certos
transtornos mentais e distúrbios associados a estereótipos de gênero, como é o
caso do transtorno bipolar78. Uma das autistas que se apresentou no Seminário
Atípico, destacou como frequentemente o autismo não é nem mesmo considerado
por especialistas médicos, quando se trata de uma mulher. Ela também enfatizou a
imensa invisibilidade do autismo em relação às pessoas LGBT, considerando uma
das questões ainda mais urgentes, já que muitas dessas pessoas estão em
condições precárias em decorrência de preconceitos e discriminações, atrelados às
necessidades de suporte e assistência sobre a deficiência. Essa perspectiva
também se associa a um debate mais amplo de gênero e deficiência, com ênfase na
negligência histórica pelos movimentos sociais e pela academia na compreensão
das categorias de gênero, sexualidade e deficiência – além de raça, etnia, classe e
religião –, como igualmente significativas para a formação da subjetividade e
identidade (MELLO e NUERNBERG, 2012). A respeito desta análise que também
permeia a invisibilidade acerca do autismo, finalizo com a fala de outra autista
ativista presente no evento que explicita a argumentação:

As pessoas acham que a mulher não vai ser autista, ela vai ser louca, ela
vai ser maluca, ela vai ser desequilibrada. [...] Então não, ela não vai ser
autista, ela é maluca, ela é bipolar, ela é depressiva... aí, ela não consegue
fazer tal coisa? Ah, isso não é disfunção executiva do autismo, isso é

78
Emily Martin (2007) explora de maneira primorosa o caso do transtorno bipolar associado a fatores
sociais e culturais.
106

depressão, frescura, ela é mimada. Então a gente cai nisso (Mulher autista
no Seminário Atípico, 2021, transcrição minha).

Outra perspectiva que tange os processos de reconhecimento frente às


disposições políticas é o exemplo emblemático da movimentação pela efetivação da
Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea). A
Ciptea é criada com o intuito de garantir atenção integral, prioridade de atendimento
e acesso a serviços79, expedida gratuitamente pelo Estado. Vinda de uma longa luta
pelo movimento em prol dos direitos da pessoa autista, a Lei nº 13.977/2020,
nomeada de Lei Romeo Mion80, institui a Ciptea e dá as providências para a
efetivação de sua emissão. Desde a Lei Berenice Piana, essa forma de identificação
já está prevista, mas apenas em janeiro de 2020 a nova lei regulamenta a execução
do serviço pelos estados e municípios. Acompanhada de relatório médico com
indicação da CID, a carteira também inclui dados básicos de identificação, foto e
informações do responsável legal ou cuidador.

No município de Belo Horizonte, a carteira passa a ser emitida e


disponibilizada apenas em dezembro de 2021. A carteira de identificação foi pauta
em todas as edições do Fórum TEA81, importante instrumento de participação cidadã
no município, acompanhado durante esta pesquisa. Com convites às autoridades de
diferentes competências – gestores públicos, especialistas, familiares e autistas –,
tanto a sociedade civil quanto a governamental, apontava suas demandas,
urgências e processos. Enquanto agentes governamentais apresentavam uma lenta
e gradual execução na implantação da Ciptea, alegando a falta de clareza quanto ao
órgão emissor e partes de responsabilidade na emissão e distribuição do

79
Os debates acerca da identificação autista em documentos oficiais já vêm de um longo período de
reivindicação. Inicialmente foi proposta a inclusão do diagnóstico nas Carteiras de Identidade. A
proposta foi repudiada por parte dos autistas e familiares por desconsiderar a escolha de exposição,
podendo ferir questões de privacidade. Atualmente, um símbolo para o autismo pode ser incluído na
emissão das Carteiras de Identidade, além da emissão da Ciptea. As identificações são
complementares e não obrigatórias.
80
O nome foi dado em homenagem ao filho de Marcos Mion, apresentador popular na mídia brasileira
e ativista da causa autista. Ainda que sua atuação e a exposição do filho sejam vistas de modos
controversos dentro do movimento autista, a homenagem da nomeação da lei com o nome de uma
pessoa autista é vista como emblemática.
81
Abordarei mais detidamente ao longo deste capítulo.
107

documento; a sociedade civil enfatizava o longo tempo de espera de efetivação e a


falta de cumprimento da lei. As discussões acerca dessas demandas eram
permeadas por ânimos exaltados e constantes relatos de experiências acerca da
invisibilidade da deficiência. “Nem toda deficiência é visível, estamos no limbo”,
concluiu uma mãe presente em um dos encontros.

Diante da falta de providências por parte dos gestores e instâncias públicas,


atuantes da causa se mobilizaram para a garantia do direito através de carteiras de
identificação autista provisórias, ainda que não se enquadrassem como documentos
oficiais. Uma associação da região metropolitana acompanhada no campo
etnográfico, já apontava a iniciativa autônoma de confecção de carteiras de
identificação do autismo. Uma mãe integrante, mostrando o documento alternativo
do próprio filho, enfatizou que as associações têm tido a missão de acolher, “dar
uma luz” e “tirar da escuridão” os pais com filhos e filhas recém diagnosticados, mas
também devem ter ações concretas que permitam uma vida de qualidade. Neste
mesmo sentido, uma ação considerável que pude acompanhar, foi a produção e
divulgação da carteira de identidade por Diego em seu blog de divulgação sobre o
autismo. Vista como uma “utilidade pública”, a carteira provisória disponibilizada para
download no blog apresentava elementos básicos e comuns à Ciptea. Diego relatou
inúmeras cópias da carteira logo após ser disponibilizada em sua página pessoal.
Ele próprio utilizava da carteira provisória e afirmava a facilidade de atendimento e
sensibilidade à condição quando apresentada em estabelecimentos públicos ou
privados.

Vários debates e polêmicas precederam a promulgação da lei da Ciptea e


ainda perpassam as discussões sobre a emissão e utilização. Entretanto, as
discussões provêm da explícita necessidade de um documento legal que “torne o
autismo visível”. Situações cotidianas ou circunstâncias fortuitas habitam
experiências que poderiam ser mais bem conduzidas em razão de uma identificação
e visibilidade da condição. A título de exemplo, diversos são os relatos de
abordagens policiais de pessoas autistas, conduzidas pela falta de conhecimento da
condição e dos comportamentos decorrentes. Gisele, uma das mães da associação
com grande atuação na causa, relatou que a abordagem dos filhos autistas pela
108

polícia é uma dos maiores medos dessas mães e pais. Diante de situações
adversas, não raros são os casos em que autistas têm dificuldades na identificação,
em seguir comandos ou entram em crises que são interpretadas como desacato e
violência. O “treinamento” dos filhos sobre uma abordagem policial é tido como um
assunto comum nas discussões entre familiares de autistas. Um dos grandes
benefícios da Ciptea, apontado por esses familiares, é o reconhecimento da
deficiência de seus filhos ante situações críticas. O medo, materializado em uma
abordagem policial, não apenas explicita a invisibilidade acerca da condição, no que
tange às corporalidades, mas também apresenta críticas às abordagens e práticas
de segurança e integridade por agentes públicos em relação à deficiência.

Ao que interessa nesta reflexão, a “preocupação” também elabora a


interseccionalidade entre deficiência, classe e raça nas vivências e cotidianos
dessas pessoas. Um homem autista e negro, em sua fala no Seminário Atípico,
tornou explícita essa articulação ao enfatizar que “quando você ouve relatos de
pessoas periféricas, negras, autistas, a dor deles é bem entrelaçada com o racismo
institucional que a gente tem”. Citando caso análogo, o relato de uma mãe no
Autismo e Realidade, site destinado à disseminação de informações sobre o autismo
compartilhado no grupo virtual de associações, revela a relação entre racismo e
capacitismo exposta na invisibilidade da condição:

Meu maior medo não era falta de aceitação, mas abordagem policial a um
negro autista não verbal. Ao perceber que tinha um filho autista, meu medo
não era “não ter um filho aceito na sociedade”, porque afinal somos pretos e
periféricos e a sociedade não nos aceita. Nós aprendemos a resistir em
meio à estrutura racista que nos cerca. Meu maior medo em relação ao meu
filho deixou de ser preocupação e passou a ser a urgência, sendo o Luiz um
menino preto e autista não verbal. Há uma vivência que não é contada
sobre as famílias periféricas: abordagem policial, uma realidade comum,
mas autoritária, dentro das favelas. Um questionamento urgente surgiu em
minha cabeça: ao “autistar” pelo meu bairro, meu filho não seria confundido
pela polícia com um suspeito? Será que os policiais iriam ouvi-lo? Será que
daria tempo de ele sinalizar que não fala? Sabemos como a polícia nos
aborda e como somos tratados. A resposta é não. Ele não seria ouvido. Luiz
e outros garotos negros, neurodiversos ou não, sequer têm direito de fala ou
109

de explicação. Já ensino comandos policiais ao Luiz, pois o mais importante


é que ele volte vivo para casa (Relato no site Autismo e Realidade, 2020)82.

Valéria Aydos (2017) aponta como o debate sobre autismo tem ganhado
visibilidade na mídia e na cena pública brasileira, enfatizando a abordagem do tema
em novelas, séries, filmes, jornais, revistas e outros produtos de informação83.
Referindo-se ao “tema do momento”, Aydos também apresenta dados relativos a
grupos de trabalhos e comissões nos eventos e instituições governamentais, assim
como uma crescente visibilidade nos debates acadêmicos internacionais. A
justificativa para grande parte dos pesquisadores sobre a chamada “epidemia de
autismo” (HACKING, 2006; GRINKER, 2010; NUNES, 2014; RIOS et al, 2015;
AYDOS, 2017, 2019; RIOS e CAMARGO JR, 2019) se concentra nos estudos
epidemiológicos, com a crescente incidência de diagnósticos ao redor do mundo84.
Mas esta “epidemia”, situada inicialmente no campo biomédico, também apresenta
um cenário de contextualizações históricas, políticas e culturais. Esses
pesquisadores têm levantado hipóteses acerca das mudanças nos manuais
diagnósticos, da evolução do diagnóstico clínico, nas transformações da ciência
médica, nos grupos de autoadvocacia e acolhimento, além da repercussão midiática.

No contexto local desta pesquisa, a justificativa apresentada em relação ao


aumento na incidência, é o fato de que vários adultos estão finalmente acessando
informações que permitem o autoconhecimento – tendo como consequência, o
crescente debate sobre diagnóstico tardio –, e o acesso a informações permite

82
O relato completo está disponível em: <https://autismoerealidade.org.br/2020/11/20/luciana-viegas-
sobre-racismo-e-capacitismo/>. Acesso em junho de 2021.
83
Diversos foram os eventos sobre a temática do autismo ao longo do período da pesquisa, além da
crescente atuação e presença de ativistas nas redes sociais virtuais. Em decorrência da crise
sanitária de covid-19, e o consequente isolamento social como medida preventiva, os meios virtuais
se tornaram uma ferramenta decisiva na atuação e envolvimento em relação ao autismo. Para
discussões sobre autismo e redes sociais virtuais ver ORTEGA et al. (2013).
84
O TEA não é entendido mais como um transtorno raro, de acordo com relatórios da Organização
das Nações Unidas (ONU) 1% de toda população mundial possui algum grau de autismo. O Centers
for Disease Control and Prevention (CDC), entidade dos Estados Unidos, calcula que a prevalência
de diagnósticos de TEA aumentou exponencialmente e em 2016, a proporção é de 1 a cada 54
pessoas com autismo (MAENNER et al., 2020). No Brasil, ainda não há pesquisas sobre a
prevalência do autismo. O Censo é considerado o estudo estatístico mais abrangente, porém se
encontra defasado em 12 anos. O último foi realizado em 2010 e não incluía as especificidades do
autismo. Dessa forma, grande parte das pesquisas ou agendas políticas baseiam-se em estudos de
prevalência de outros países, tal como o CDC.
110

também uma atenção cuidadosa em relação às crianças. Ou seja, quanto mais se


sabe sobre um diagnóstico e deficiência, mais ferramentas se têm à disposição para
identificação. Nas redes sociais e grupos virtuais, a máxima “autismo está na moda”,
tem circulado como uma referência hostil à crescente incidência e aparição do
autismo, assim como às reivindicações de direitos. O mote relaciona bem esta
aparente contraposição entre uma visibilidade exacerbada e a invisibilidade presente
nas falas das pessoas que vivem com o autismo. A percepção relativa à
popularidade e tendência, mais uma vez esconde narrativas capacitistas, já que
estão, em maioria, relacionadas à invalidação da atuação e demanda desses
movimentos pelos direitos dos autistas.

Ainda que haja a aparente visibilidade exacerbada, seja na “moda do


autismo” ou na sua “epidemia”, nos discursos de autistas e seus familiares, a
invisibilidade está presente. Os relatos são fundamentados em invisibilidades, seja
no que tange ao próprio processo diagnóstico, seja nas formas como a condição é
apreendida e reconhecida socialmente. Assim se justifica a necessidade de uma
compreensão dos fenômenos sociais e culturais que perpassam os diferentes
modos de habitar o autismo (AYDOS, 2017). A possível invisibilidade não atravessa
apenas trajetórias pessoais e perspectivas subjetivas, mas escancara questões
significativas sobre as estruturas nas quais as pessoas estão inseridas, e explicitam
a relação com a deficiência em um contínuo e fatigante processo de validação.

É importante ressaltar que ainda que uma abordagem sobre essa


“invisibilidade do autismo” seja expressiva nas investigações junto à comunidade
autista e atuação local de associações e familiares, essa constatação não indica
uma omissão. Longe disso, as disputas são apropriadas em um fazer político e um
propósito através dos corpos pelo direito de existir. Clarice Rios (2017) aponta como
o ativismo político pode ser assentado em uma noção de “representação” política,
dependente de mecanismos burocráticos e institucionais, mas há também uma
“apresentação” política, na medida em que a experiência, performance e
reconhecimento dos corpos se traduzem em formas políticas entrelaçadas às
subjetividades e formas de estar no mundo. Essas invisibilidades do autismo,
portanto, são articuladas com categorias de diferença que emolduram identidades,
111

corroboram para o movimento político e deixam de ser apenas formas excludentes e


se tornam possibilidades de ação.

Próximo a uma década de reconhecimento legal do autismo enquanto uma


deficiência no contexto brasileiro, claras são as falas de autistas e familiares acerca
do escasso comprometimento do movimento mais amplo da deficiência acerca da
condição. “O autismo é desconhecido, mesmo para o grupo das pessoas com
deficiência”, ponderou Ivana, mãe e atuante na causa. Ainda que grandes
conquistas tenham se dado no contexto local em relação às ações participativas no
âmbito das políticas da deficiência por parte do movimento do autismo85, as
narrativas de autistas e familiares evidenciam as dificuldades enfrentadas nesta
articulação com o movimento da deficiência. Esses percalços em relação a causa
autista são explicitados na fala de Ivana: “É apresentada uma série de atributos
pejorativos sobre nossas demandas, as pessoas realmente acham que nossas
demandas são ilegítimas”. Tal como Rios (2017) aponta, com o autismo são
complementadas as formas de entendimento sobre suporte, assistência e barreiras
que impossibilitam a participação social das pessoas com deficiência. Desloca-se o
entendimento sobre o que é necessário, em termos de acessibilidade e inclusão,
para a participação plena de pessoas com deficiência e a incorporação da
diversidade. A fala de um gestor público é emblemática ao caracterizar este cenário
de tensões em relação ao movimento da deficiência: “A luta do autismo e o
reconhecimento como deficiência permite remexer políticas sobre a deficiência que
já estão há muito estagnadas”. E assim, essa produção relacional tem apresentado
fronteiras que, gradativamente, se expandem e adquirem novos sentidos.

85
No contexto desta pesquisa, pude acompanhar a inserção de uma associação em políticas
participativas de um instrumento de gestão municipal que objetiva o controle social de políticas
públicas às pessoas com deficiência. Esse processo representativo da associação foi comemorado
pela possibilidade de dar destaque às demandas associadas ao autismo.
112

3.2 LUTA E MOVIMENTO: “O CAMINHO DA LUTA NÃO É FÁCIL”

A luta86 aparece como a expressão da conjunção entre as políticas públicas,


os discursos estatais e médicos, as práticas normativas e morais e o cotidiano
vivido. Essa luta, que atravessa todas as experiências e aspirações aqui retratadas,
permite uma reflexão mais aprofundada da assinatura do Estado (DAS, 2007) no
cotidiano desses familiares e autistas. Enfatizo, mais uma vez, o recorte desta
pesquisa nas práticas de pessoas que tomam o lugar moral, legal e afetivo da
criação de filhos e filhas com autismo. Além de gerar e gestar vidas, essas pessoas
assumem a responsabilidade por uma sociedade com existências plurais. Portanto,
neste capítulo, apresento como os familiares de autistas articulam a luta através de
um movimento social amplo com representação em espaços de política municipal.
Argumento ainda que, no contexto local, a família e o cotidiano são partes
significativas na politização referente ao autismo, e não menos relevante, a ética do
cuidado aparece como uma relação fundante desse movimento que é feito de afeto
e luta.

Márcio Goldman (2007) em uma discussão sobre os “novos movimentos


sociais e culturais” destaca como, em décadas passadas, os movimentos faziam
uma oposição clara ao Estado e às instituições, motivados principalmente por
interesses econômicos e de classes. Os ditos “novos movimentos” podem ser
compreendidos a partir do repertório de participações de grupos voltados à
identificação de formas de opressão, portanto, passam a se comprometer com
agendas políticas acerca de direitos mais específicos (GOLDMAN, 2007). Nesse
novo rol, incluem-se os movimentos de mulheres, negros, indígenas, pessoas LGBT,
pessoas com deficiência, dentre outros grupos de reivindicação. Mas o que difere
esses “novos” dos “velhos” movimentos, de forma categórica, são as articulações
com o Estado que não pressupõem essa oposição de antemão, mas se constroem

86
O termo aparece como uma expressão dos meus interlocutores, assim como nos movimentos mais
amplos pelo autismo no Brasil. Essa constatação se deu acompanhando redes sociais de ativistas da
causa e diferentes congressos destinados às discussões sobre o autismo por autistas, familiares e
profissionais. Fiz uma análise dessa temática, entre a luta e o afeto, em trabalho apresentado na 32ª
Reunião Brasileira de Antropologia (CARVALHO, 2020a).
113

em processos de variações contínuas. Passando por uma abordagem histórica dos


movimentos, e reconhecendo que não há supressão, mas uma ampliação de formas
de reivindicações, Goldman (2007) defende análises das novas configurações e
categorias com base em observações etnográficas desses grupos. Na antropologia
brasileira, os estudos sobre movimentos sociais têm se voltado para a apreensão
das lutas por direitos com ênfase nos efeitos particulares e nos resultados das
mobilizações, incluindo uma maior visibilidade da agência dos envolvidos (SCHUCH,
2008). Dessa forma, as experiências das pessoas diretamente relacionadas aos
movimentos sociais não se resumem a um simples processo de construção de
cidadania (GOLDMAN, 2007), mas incluem uma série de transições subjetivas,
sociais, culturais e políticas.

Ademais, outros vários autores das ciências sociais e políticas têm


demarcado como desde a redemocratização social e política da década de 1980, os
movimentos sociais passam por transformações tanto dos objetivos das
reivindicações, quanto do modus operandi desse engajamento. Maria da Glória
Gohn (2000), socióloga referência nos estudos de movimentos sociais no Brasil,
demonstra como a Constituição Federal de 1988 foi crucial nessas novas
perspectivas de democracia representativa e contribuiu para a criação de outras
formas de engajamento pautadas não apenas na reivindicação, mas na gestão de
direitos. A emergência de novas formas de associativismo é resultado das políticas
sociais nos anos de 1990, paralela às ações de movimentos sociais e organizações
nas lutas por direitos (GOHN, 2000). Independente dos seus programas e projetos –
diversos, com o único ideal comum da cidadania –, essas formas de associativismo
geraram atuações nos poderes públicos locais (GOHN, 2000). Começaram então a
surgir outras formas de participação com motivações mais propositivas e menos
combativas, em uma relação com o Estado pautada na representação da sociedade
civil e na participação cidadã (GOHN, 2013)87.

87
Referentes às agendas da saúde e da deficiência, e que fazem uma relação mais clara com o
autismo, essas transformações democráticas foram mais bem descritas no início desta etnografia a
partir do surgimento das associações e a relação com a Reforma Sanitária.
114

Partindo dessas considerações mais amplas acerca do contexto histórico e


político brasileiro, é possível entender o panorama das associações que são criadas
em prol dos direitos das pessoas com autismo. Central na minha análise de
pesquisa, e que Gohn irá chamar de “institucionalização da participação”, é a
possibilidade da sociedade civil participar da gestão pública por meio de parcerias
com o Estado e estruturas de representações dos grupos demandantes (GOHN,
2013). As construções das associações que acompanhei são resultado desse
contexto sociopolítico que envolve projetos democráticos em correlação à
mobilização de movimentos sociais pela efetivação de direitos, seja em nível local ou
de forma mais ampliada. As associações se constituem na necessidade de uma
representação formal dentro dos espaços governamentais para dar seguimento às
motivações estratégicas, fato este também apontado diversas vezes sobre a criação
da ASATEA e sua inserção no cenário de políticas públicas.

Dentro das associações em que abri interlocuções, seus integrantes muitas


vezes retomam o discurso dos movimentos sociais para dar entendimento às suas
ações e projetos políticos. Dessa forma, as associações são vistas como parte de
um movimento social mais amplo na luta pelos direitos das pessoas com deficiência,
e nesse contexto em específico, na luta pelos direitos das pessoas com autismo.
Dentre as categorias êmicas encontradas, “movimento da deficiência”, “movimento
do autismo”, “causa autista”, “comunidade autista” ou ainda, menos frequente, mas
também presente, um “movimento da maternidade/paternidade atípica”.
Evidenciam-se assim, como essas categorias políticas e jurídicas – movimentos
sociais e associações – não estão desarticuladas. São parte de um todo que objetiva
a cidadania, a inclusão e a acessibilidade, que demanda direitos ao mesmo tempo
em que cria novas formas de sociabilidades e subjetividades.

Retomando as ideias de Goldman (2007) a respeito da importância das


experiências daqueles envolvidos nesses coletivos políticos, o viés etnográfico
permite explorar os processos materiais, sociais e simbólicos em que os movimentos
sociais e culturais estão envolvidos, mas permite também olhar para “linhas de fuga”
e “territórios existenciais que são construídos” (GOLDMAN, 2007, p.6). Goldman
defende que o enfoque passa a ser também sobre as relações entre esses grupos,
115

pensando o movimento no duplo sentido do termo, enquanto coletivo e enquanto


algo em constante mudança. Goldman nos diz que “‘ser uma’ minoria pode consistir
apenas em um modo de ‘não ser’ maioria, ou seja, uma forma para exprimir
situações de resistência ou de deriva frente a uma situação majoritária qualquer”
(GOLDMAN, 2007, p.16). De forma análoga, acredito que no contexto de minha
pesquisa, as mães e pais retomam a parentalidade atípica para explicar essas
situações de resistência com as quais se deparam. Entretanto, para além de
identidades aparentemente estáveis que mobilizam, os movimentos que
desencadeiam são muito mais significativos do que as identidades cristalizadas,
como também aponta Goldman (2007) acerca dos efeitos e resultados de
mobilizações sociais.

Os coletivos são constituídos, dessa forma, por uma identidade, por


experiências culturais relacionadas à deficiência que recortam suas histórias
individuais e familiares, com requisições que objetivam ações estratégicas na
efetivação de direitos, e um sentido de movimento que ora se expande e se articula
às demandas acerca da deficiência como um todo, ora se especificam nas
reivindicações acerca das particularidades do autismo. Na articulação entre o
processo do diagnóstico e como se dá a mobilização desses familiares, evidencio o
caráter dialético e dinâmico entre o que classificamos como público e privado. Diante
dessas considerações teóricas sobre a constituição de movimentos sociais por
direitos, trago a etnografia à discussão para um entendimento dessas resistências e
lutas.

3.3 FÓRUM TEA: “NUNCA LUTEI POR PRIVILÉGIOS, MAS POR DIREITOS JÁ
GARANTIDOS POR LEI”

[...] Eu sou mãe da Rosa e é por isso que eu estou aqui, por isso que eu
entrei nesse movimento há 15 anos atrás, pra poder dialogar com o poder
público a respeito dos direitos da minha filha. E em nome de várias pessoas
que vão falar daqui a pouco sobre a sua realidade, a nossa preocupação é
encontrar respostas para que o poder público possa atender a toda a
população, inclusive as pessoas com deficiência, e o autismo severo. É na
116

qualidade de representante da sociedade civil que nós solicitamos à


prefeitura municipal de Belo Horizonte, por força do Decreto 15.519/2014 o
agendamento desse Fórum que, por estar no [nome do bairro], pertence à
[nome da região do município]. Que expõe a realidade de muitas famílias e
pessoas com autismo severo em toda a extensão do nosso município. São
com eles, e por eles, que emprestamos a nossa voz para falar de uma
realidade na vida desses indivíduos que por circunstâncias da vida foram
privados de se comunicar fluentemente, de interagir socialmente e se
comportam de maneira peculiar. [...] Nós costumamos falar que nós somos
os excluídos dos excluídos. Pessoas que precisam de atenção na saúde,
precisam de educação especializada, pessoas que precisam de assistência
social continuada. Pessoas que precisam de respeito e dignidade. Pessoas
que precisam que suas famílias sejam cuidadas para que possam cuidar
dos seus. [...] Pessoas que não são lembradas porque não são vistas.
Pessoas que foram negligenciadas em detrimento a outras prioridades
sociais. Pessoas que morrem no anonimato e serão esquecidas por uma
sociedade que só valoriza quem produz. Nós estamos aqui para pedir o
cumprimento do Decreto 15.519/2014 e da Lei Brasileira de Inclusão,
13.146/2015, com todas as garantias de direitos para as pessoas com
deficiência. Nós queremos lembrar que somos diferentes nas necessidades
e iguais nos direitos civis. Somos diferentes na personalidade e iguais no
desejo de ser feliz. Certamente que as futuras gerações serão privilegiadas
com o nosso legado, entretanto, não podemos afirmar o mesmo aos que
foram negligenciados no passado. Por eles, fica aqui registrada a nossa
dívida social a qual devemos hoje reparar através do nosso compromisso
com a geração atual, de que é possível transformar barreiras em
possibilidades. Nós estamos aqui para dialogar, trocar experiências de boas
práticas e escrever a história. A nossa expectativa é que as propostas e
intenções aqui compactuadas saiam do papel e tornem realidade nos
consultórios clínicos e terapêuticos, nos centros de convivência, nas
escolas, nas instituições de longa permanência, nos centros esportivos
especializados, enfim, em todos os lugares públicos e privados, mas
principalmente no coração de cada pessoa, de cada indivíduo [...]. (Trechos
transcritos da fala de Virgínia, mãe e integrante da CADDA no Fórum TEA
Local, realizado em 2021).

Em setembro de 2019 eu participei pela primeira vez de um Fórum


Intersetorial de Atenção Integral à Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo88.
O Fórum, previsto pelo Decreto Municipal nº 15.519 de 201489, ainda que promovido
e efetivado pela gestão municipal, com a representação de órgãos e entidades, é

88
Os Fóruns TEA Centrais acontecem em abril, Mês da Conscientização do Autismo, ou em
setembro, no Mês da Pessoa com Deficiência, ou ainda, em dezembro, próximo ao Dia Internacional
das Pessoas com Deficiência. Meus interlocutores ressaltaram como nessas datas, o poder público
está “disposto a ouvir”, enquanto no restante do ano, as associações fazem um extenso trabalho para
trazer visibilidade ao autismo, porque “eles [a gestão pública] esquecem de nós”.
89
O Decreto Municipal regulamenta a Lei Municipal nº 10.418/2012, que dispõe sobre o
reconhecimento da pessoa com TEA como pessoa com deficiência, para a fruição de direitos
previstos pelo município de Belo Horizonte. A Lei Municipal foi promulgada meses antes da Lei
Berenice Piana, destacando a atenção à pessoa autista pelo município, mesmo que de maneira
incipiente.
117

uma das ações mais emblemáticas da atuação política e social de familiares e


pessoas autistas no ativismo pelos direitos e reconhecimento da condição no
contexto local. O Fórum TEA, realizado em nível local, regional e central do
município90, tem o objetivo de garantir a intersetorialidade da Política Municipal de
Atenção à Pessoa com TEA, com a ação integrada e coordenação de ações e
serviços de diversos órgãos e entidades governamentais, tais como as secretarias
municipais de Saúde, Educação, Esporte e Lazer, Assistência Social, Direitos de
Cidadania, Cultura, e o Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência
(CMDPD/BH).

Além da proposta de integração entre diferentes pastas do governo e a


atuação conjunta na efetivação de políticas públicas e garantia de direitos, o Fórum
TEA se caracteriza por uma ferramenta democrática participativa, contando com a
representação e participação da sociedade civil91. Como descrito por um dos
interlocutores, o Fórum é um movimento de luta, de fomento e controle sobre os
direitos das pessoas com autismo. O Decreto que o orienta é visto pela maioria
como um excelente documento ao contemplar grande parte das demandas e
necessidades de autistas e suas famílias, “mais poderosa que a legislação federal”.
Ainda que as resoluções sejam destacadas por sua primazia, muitas vezes os
relatos de mães e pais carregam a decepção pela falta de cumprimento e efetivação
do Decreto. Ouvi, no campo etnográfico, como “a lei é muito bonita no papel”, mas a
falta de efetivação desses documentos pela gestão pública leva a uma insuficiência
no atendimento dos direitos dos autistas. E são nessas reclamações que se pautam
grande parte das atuações de familiares e de autistas em espaços de poder público:
exigem o cumprimento de direitos.

A organização dos Fóruns é fundamentada em um modelo de gestão pública


participativa que conta com a sociedade civil para a elaboração do que virão a ser

90
Na elaboração do sistema de Fórum, em uma das reuniões da CADDA que pude acompanhar, um
dos participantes apontou para o alcance nas áreas periféricas: “nenhuma mãe vai sair lá da favela
para vir para o centro sul de Belo Horizonte, ficar uma tarde inteira discutindo com um monte de gente
que diz que está fazendo coisas e ainda não ser ouvida; ela não tem tempo nem dinheiro pra isso”. A
mudança para a realização virtual, ainda que nos limites do acesso tecnológico, contribuiu para uma
maior abrangência da participação da população.
91
Em um dos Fóruns, um dos gestores apresentou dados sobre a participação: 51% de agentes
públicos e 49% da sociedade civil.
118

formas de atuação do Estado, assim como assegura a legitimidade de suas ações e


corrobora para o controle social das decisões governamentais. Como Ivana
destacou se referindo à associação: “não somos chamados a dar nossa opinião
somente, mas somos chamados a participar dos processos”. Viviane Petinelli,
Isabella Lins e Cláudia Faria (2011) demonstram como, no Brasil atual, nos
processos de formação das agendas de políticas públicas, há um aprofundamento
das relações democráticas92 e fomento à gestão participativa. A participação da
sociedade civil na formulação e acompanhamento das políticas públicas é
assegurada por lei e se dá através de conselhos municipais, estaduais e nacionais,
assim como através do controle social em audiências públicas, encontros locais e
conferências setoriais. Dessa forma, a participação popular é uma obrigação do
Estado e um direito da população. Petinelli, Lins e Faria (2011) apontam como a
análise de políticas públicas deve levar em consideração essa atuação de indivíduos
e grupos, politicamente organizados, nos processos de tomada de decisões.
Afirmam:

Esses atores buscam influenciar as decisões dos governos a partir de suas


ideias e de seus interesses e, até mesmo, participar ativamente da
formulação de certas políticas, tais como as políticas de Saúde e de
Assistência Social no Brasil. Não obstante, esta capacidade de influência,
como vimos, depende de um conjunto de variáveis internas e externas, que
vão desde a capacidade de mobilização de atores sociais, sua influência
sobre os espaços deliberativos, as condições institucionais destes espaços
até a abertura da burocracia pública e de seus agentes em acatar os
resultados da mobilização e da deliberação (PETINELLI, LINS e FARIA,
2011, p.11).

Neste sentido, o Fórum se apresenta como um espaço político significativo


para o entendimento da atuação de um movimento que se baseia nas experiências
de familiares de pessoas autistas. Tal como as autoras apontam, esses agentes
sociais buscam influenciar ou direcionar ações do governo a partir de ideias e
interesses que são construídos como objetivos coletivos que permitem alianças

92
Não pretendo elaborar aqui uma análise mais aprofundada e crítica sobre democracia. Ainda que a
estabilidade democrática possa ser analisada com mais profundidade, considerando-se, por exemplo,
a notória desigualdade social presente no contexto brasileiro.
119

entre diversos atores, uma espécie de “bem comum” ou, mais precisamente neste
contexto, a causa autista. Se por um lado, o Fórum se destaca como um objeto de
gestão pública e controle social que visa a articulação entre o Estado e as
mobilizações sociais civis, por outra perspectiva, o espaço de diálogo demarca
capitais sociais, relações hierárquicas e de poder, permeados, principalmente, por
orientações morais. Portanto, nas narrativas desses agentes autoidentificados pela
parentalidade atípica é recordada uma luta que é constantemente reiterada nessas
arenas políticas. Mas também, cabe ressaltar que, os representantes da sociedade
civil e suas experiências fazem parte de um grupo de pessoas com marcadores
sociais muito específicos, ainda que reafirmem a luta pelo direito de todos. São, em
sua maioria, pessoas brancas, de classe média, com ensino superior e
especializações, com áreas profissionais relativas às demandas sobre o autismo –
como saúde (e, em específico, saúde mental), educação, direito e cultura. As
desigualdades interseccionais se apresentam de modo mais contundente nas
discussões para além da estrutura organizacional do Fórum, como por exemplo, nos
chats de discussão nas salas virtuais de realização do Fórum e abertas ao público
interessado.

A representação da sociedade civil nos Fóruns é feita através da participação


da Comissão das Associações de Defesa dos Direitos dos Autistas (CADDA/MG). A
Comissão teve início em 2016 com o objetivo de promover informações e atuar na
promoção e controle social dos direitos da pessoa autista. O início do coletivo foi
caracterizado pela realização de eventos e ações visando maior conscientização do
autismo93, posteriormente, a CADDA passou a assumir e colaborar em espaços de
representação participativa, como o Fórum TEA e a mobilização para representação
no Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CMDPD/BH). Ao
descrever as ações da CADDA, Joaquim, em um dos fóruns realizados, reforçou
como a busca desse coletivo é por “projetos e ações sociais para a inclusão do
autista e o acolhimento das famílias”.

93
A CADDA é responsável pela articulação dos eventos, junto à Prefeitura, do Mês da
Conscientização do Autismo, em abril. São realizadas, para a efetivação desses eventos, parcerias
com profissionais parceiros, Assembleia Legislativa, espaços culturais, instituições educacionais,
dentre outras instituições públicas, como por exemplo, o SENAC.
120

A Comissão passa então a se constituir por autistas e familiares integrantes


de associações, assim como instituições e entidades parceiras como, por exemplo,
uma empresa de educação especializada. A participação nas reuniões da Comissão
é caracterizada, principalmente, por uma alta rotatividade, sendo alguns integrantes
mais atuantes que outros. Outra característica é a constante circulação de
informações – principalmente através das redes sociais – e as diferentes visões que
são integradas no coletivo. Em consequência, as divergências que surgem dentro da
Comissão explicitam a pluralidade de experiências, perspectivas políticas, conflitos,
interesses e diferenças. Entretanto, ainda que existam essas discrepâncias, a
atuação da CADDA é vista, por grande parte dos interlocutores, como uma
ferramenta de controle social e interlocução com o poder público representativa das
experiências com o autismo, principalmente dos posicionamentos de familiares. Ao
descrever a Comissão, Joaquim ponderou como a constituição do coletivo “foi uma
tacada legal que impediu briga entre associações”, referindo-se a diferentes
interesses relativos ao autismo, como os embates entre as experiências e demandas
do “autismo severo” e do “autismo leve”. No decorrer da reunião em que a CADDA
foi objeto de discussões, também foi constatado como, diferente de outras
localidades do país, “em Belo Horizonte a gente tem muita união”, fazendo com que
as divergências e conflitos sejam menos explícitos.

A Comissão tornou muito clara a rede que se entrelaça e borda as ações


políticas para o autismo pela sociedade civil. Kaito Novais (2018), em seu trabalho
etnográfico com o movimento Mães pela Diversidade, explora o conceito de
meshwork, proposto por Tim Ingold (2012), como um emaranhado de fios
entrelaçados. A ideia de malha consiste no coletivo desenhado à imagem de um
tecido, cuja estrutura composta pela sobreposição e atravessamento de múltiplos
filamentos políticos-emotivos indica trajetórias de vida e suas lutas (NOVAIS, 2018).
Neste mesmo sentido de alinhamento de interesses, Judith Butler (2019) explora a
ideia de alianças como corpos que, com suas subjetividades, experiências e
posições sociais específicas e diversas, se aliam na reconfiguração do espaço
público e das esferas de aparecimento. Ao fazer uma análise dos engajamentos
coletivos pela reivindicação de direitos, a autora também demonstra como a política
121

é definida no acontecimento das mobilizações e nas diferentes formas que o


agenciamento ocorre.

Em um primeiro momento, seria mais fácil dizer que essas manifestações


ou, na verdade, que esses movimentos são caracterizados por corpos que
se unem para fazer uma reivindicação em um espaço público, mas essa
formulação presume que o espaço público esteja dado, que já é público e
reconhecido como tal. Deixamos de lado parte do objetivo dessas
manifestações públicas se deixamos de ver que o próprio caráter público do
espaço está sendo questionado, ou até mesmo disputado, quando essas
multidões se reúnem (BUTLER, 2019, p.80).

A teorização de Butler (2019), concernente aos movimentos sociais e


manifestações em massa, também pode servir para entender o posicionamento de
um coletivo como a Comissão. Além de estabelecer alianças para a efetivação de
direitos, priorizando a “união” como a forma mais eficiente para o atendimento de
demandas, o coletivo ganha força e representação nos espaços públicos,
caracterizados neste contexto de análise pelos Fóruns. Mas, tal como a autora
afirma, o “espaço público” não está dado, é, de fato, constituído nos embates
travados entre o movimento coletivo e o poder público, representado por seus
agentes. Butler (2019) também destaca como a política não está definida como algo
exclusivo da esfera pública em oposição à esfera privada, mas,

Nesse momento, a política não se define por tomar lugar exclusivamente da


esfera pública, distinta da esfera privada, mas atravessa essas linhas
repetidas vezes, chamando atenção para a maneira como a política já está
nas casas, nas ruas, na vizinhança ou, de fato, nos espaços virtuais que
estão igualmente livres da arquitetura da casa e da praça (BUTLER, 2019,
p.80-81).

A representação pela CADDA é emblemática nesses movimentos entre as


casas, os corpos, as relações, as políticas e as lutas. Buscando evidenciar essa
convergência de análises no que concerne a atuação de familiares por um
movimento social mais amplo do autismo e a gestão do Estado, trago uma descrição
122

pormenorizada de um dos Fóruns que acompanhei durante a realização desta


pesquisa, fazendo paralelos com discussões complementares de outros eventos.
Vale destacar, antecipadamente, que acompanhei os fóruns centrais, algumas
reuniões de organização dos fóruns e fóruns locais, entretanto, a escolha pelo relato
deste Fórum específico se deu pela evidência das demandas levantadas pelo
movimento familiar, assim como sua atuação. Portanto, a escolha também foi feita
baseada no amplo engajamento dos participantes da sociedade civil que se
reconheciam como mães, pais e pessoas autistas. Além da presença desses
representantes na própria estrutura do Fórum, como estabelecido pelo Decreto que
o regulamenta, o engajamento também se estendeu ao chat do evento virtual e após
a data, o debate se ampliou nas reuniões de associações demandando novas
mobilizações frente às discussões do Fórum.

Pelo viés da gestão municipal e, em especial, com as discussões promovidas


pelo CMDPD que possui representante na execução do Fórum, ficou evidente como
este evento avançou em termos de organização da sociedade civil na apresentação
de demandas. Entretanto, também tornou clara a falta de planejamento da gestão
em acatar as experiências das famílias. A “angústia das famílias” foi expressa em
diversas falas após este Fórum, tanto por elas mesmas, ao relatar a falta de
comprometimento do Estado, quanto por alguns representantes governamentais ao
descrever a urgência de atenção às reivindicações. Portanto, o Fórum descrito se
tornou emblemático por dar visibilidade às vulnerabilidades vivenciadas por pessoas
autistas e suas famílias, fundamentando grande parte das mobilizações, mas
também por ressaltar a agência desses sujeitos.
123

3.4 FAMÍLIAS E POLÍTICAS PÚBLICAS: “É PRECISO COLOCAR A MÁSCARA


DE OXIGÊNIO”

O Fórum TEA, realizado virtualmente em decorrência da crise sanitária de


covid-19, contou com a participação aproximada de 150 pessoas94. Com a
realização no mês de conscientização do autismo, o Fórum promoveu a campanha
da CADDA, “Autismo: empatia é preciso”, e da PBH, “Gentileza: quando a gente se
conscientiza as peças se encaixam”95. É importante ressaltar essa evocação de
sentimentos que suscitam uma motivação coletiva como base para as campanhas,
evidenciando uma positivação do autismo e que também perpassa pela maioria dos
espaços de constituição e efetivação de políticas públicas. Ao fazer a abertura do
evento, Eduardo, o gestor municipal, retomou os slogans para destacar a “união”
como a principal característica deste “movimento coletivo em prol dos direitos da
pessoa com TEA”96. Eduardo destacou a importância da CADDA para a construção
efetiva de uma sociedade mais inclusiva. Também descreveu a elaboração do
Decreto que dá providências sobre o sistema de Fóruns, enfatizando a participação
de lideranças dos movimentos, além de técnicos, agentes públicos e o CMDPD. O
Fórum, ainda muito recente, foi sendo estruturado ao longo dos anos, articulando as
apresentações de diferentes sujeitos da sociedade, e como descrito pelo gestor, um

94
No Fórum presencial que acompanhei havia, em média, 50 participantes, sendo a maioria
significativa, mulheres. Já nos fóruns virtuais, o número de participantes das salas de transmissão
atingiu 170 participantes. Nestes, a participação de pessoas de outros municípios do estado de Minas
Gerais, assim como de outros estados, foi ressaltada pelos gestores públicos. Em certa ocasião, o
evento contava com pessoas de 11 estados da federação, situação que o gestor disse revelar “o
mundo globalizado que precisa trocar experiências”.
95
A campanha fazia uma alusão à peça de quebra-cabeça, considerada um símbolo do autismo,
ainda que existam divergências na aceitação dessa simbologia. Na pesquisa realizada nas redes
sociais, autistas ativistas evidenciam a oposição ao quebra-cabeça: “eu não sou um mistério como
um quebra-cabeça, e nem tenho peças faltando”. Outras simbologias são o laço colorido e a fita de
Möbius colorida (ou símbolo do infinito, como é popularmente conhecida). O laço, que possui diversas
peças de quebra-cabeça coloridas no seu interior, foi adotado como simbologia oficial, estando
presente, por exemplo, nas placas de sinalização de atendimento prioritário. Já o “infinito colorido”
tem sido priorizado por autistas ativistas do movimento da neurodiversidade com a justificativa de
apresentar mais precisamente o espectro do autismo através do espectro de cores. Essas
simbologias constam no apêndice desta dissertação.
96
É interessante ressaltar que no movimento familiar, muitas vezes a causa autista é diferenciada da
atuação de agentes públicos e profissionais. Essa dicotomia localiza a “causa” e o “movimento” nas
experiências dos sujeitos que vivem com o autismo. Aos profissionais e agentes públicos que acabam
por se envolver na causa, ainda que haja uma exaltação da atuação desses sujeitos, é também
comum a ideia de que os agentes “só estão fazendo seu trabalho”.
124

processo contínuo de “puxão de orelha pela sociedade civil”. Os Fóruns são


realizados com a estrutura de apresentação e exposição de um especialista ou
agente público, seguida de um relato de uma pessoa representante da sociedade
civil. Ao apresentar Joaquim, como representante da sociedade civil, Eduardo
destacou sua trajetória, como ocorreu em outras ocasiões: “grande
representatividade na nossa cidade, [...] sempre nos apontando caminhos”. Ao
retomar a importância da atuação da CADDA, Joaquim deu ênfase na mobilização
de um “coletivo de pessoas” com o objetivo de oferecer um espaço de informação e
planejamento.

Neste Fórum, estava programada a apresentação de um representante da


pasta da Saúde, um setor que tem sido visto com urgência de diálogo pelo
movimento familiar. Edgar, representante da saúde mental municipal, fez uma longa
explicação sobre a articulação da saúde com outras redes de assistência do
município, trazendo o princípio de intersetorialidade garantida no processo de
formulação do sistema de saúde brasileiro. Edgar abordou como não há um
tratamento ou medicação para o autismo, mas “um cuidado multidisciplinar e
multiprofissional”. Destacou que “não é um diagnóstico simples, que pode ser dado
na brevidade de uma consulta, [...] é preciso colocar em primeiro lugar a pessoa, e
não o transtorno”. Sua fala apresentou propostas claras advindas da Reforma
Psiquiátrica, como descrita no início desta dissertação, ressaltando as experiências
das pessoas em sociedade e não um diagnóstico limitado à classificação nosológica.
Sua fala iniciou com visões muito próximas daquelas enfatizadas pelo movimento de
familiares, como por exemplo, a complexidade das vivências do autismo e a
abordagem multidisciplinar para a qualidade de vida e bem estar da pessoa autista.
Entretanto, após uma longa explanação sobre a estrutura de atendimento à saúde
mental, com uma detalhada apresentação de quantitativos de atendimentos e
profissionais da cidade de Belo Horizonte, suas falas traziam uma realidade que
permanece apenas nas formalidades da lei e das regulamentações municipais.
Durante toda a sua explanação, os comentários que apareciam no chat do evento,
espaço reservado para a manifestação dos participantes, destacavam como a
sociedade civil não acessava todas essas estruturas descritas que, à primeira vista,
125

eram de extrema eficiência e sistematização. Trago alguns dos comentários como


uma emblemática oposição de familiares, que assim se identificavam97, às falas do
agente governamental:

“Um sonho se tudo isso fosse realidade”; “ISSO É UM PROJETO???”;


“Conclusão: o serviço está ótimo de acordo com o ponto de vista do
senhor”; “Estamos brincando nessa reunião?”; “O senhor está praticamente
ironizando, estou horrorizada”; “O senhor Edgar sabe realmente a realidade
de uma família com pessoa AUTISTA EM CASA?”; “Teoria muito linda”;
“Estamos só perdendo um tempo precioso” (Mensagens no chat do Fórum
TEA, realizado virtualmente).

É interessante destacar que ainda que o sistema de atendimento de saúde


apresentado esteja longe de sustentar as diversas realidades das pessoas com
autismo e suas famílias, e seja atravessado pelas controvérsias sobre o autismo no
Brasil, as falas do representante trazem importantes considerações sobre a
atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como sua manutenção. As falas
destacam uma proposta e sistema estruturado e organizado para o atendimento da
maioria das demandas que compõe as reivindicações desses familiares em ativismo
pela atenção à pessoa com autismo, mas a insuficiência da infraestrutura pública,
em decorrência de uma falta de investimento governamental, é concretizada na falta
de equipamentos, estruturas e profissionais em grande parte desse sistema.

As explanações do representante encaminhavam para uma valorização do


SUS, apontando para as realizações de um avanço nos cuidados com saúde mental,
assim como um discurso pelo reconhecimento de perspectivas que advêm de
movimentos sociais tais como o movimento das pessoas com deficiência e,
principalmente, o movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Essa apresentação
positivada coaduna com um contexto de precarização do Sistema Único de Saúde
que, vindo de longa data, é intensificado pelo atual governo federal. Uma das ações
vistas neste sentido de subfinanciamento público, foi o Decreto 10.530, de outubro

97
É muito comum nesse grupo de parentalidade a associação aos nomes dos filhos nas
apresentações ou identificações: “mãe da Helen”, “pai do Antônio”, etc. Cabe destacar, portanto,
como as experiências das pessoas estão profundamente atreladas aos filhos e filhas.
126

de 2020, prevendo parcerias de investimento com a iniciativa privada para fomento


do setor de atenção primária à saúde, o decreto dispunha sobre projetos pilotos e
elaborações de estudos preliminares destinados a esta finalidade. Após repercussão
negativa da publicação, o Decreto foi revogado, permanecendo o receio pela
privatização do sistema de saúde98. Como forma de oposição a esse debate
governamental de desmonte, a disseminação de informações sobre o SUS tem sido
uma ferramenta política importante frente a esse contexto, garantindo uma crescente
popularidade e aprovação do SUS no Índice de Confiança Social (ICS)99, mesmo em
meio à crise sanitária no país e no mundo.

A fala de uma mãe, representando a sociedade civil através das associações,


também trouxe algumas objeções quanto ao tema da saúde e à apresentação do
representante governamental. Susana destacou a necessidade de discussão do
“colapso do sistema de saúde” e a consequente precarização no atendimento às
pessoas autistas durante a pandemia. Direcionando-se ao representante, Susana
sintetizou grande parte das mensagens de indignação que foram surgindo no chat
de discussões: “o que você expôs é o sonho de quem busca atendimento”, a
realidade é que grande parte dos familiares sequer sabe sobre o fluxo ou tem
respeitado esse atendimento pela atenção primária à saúde das pessoas autistas.

Susana também apresentou a ênfase das associações no cuidado com o


familiar, dando suporte a esses cuidadores e, em alguns casos, no cuidado com
“muitos pais e mães autistas que começaram a ser identificados dentro dos grupos e
redes de apoio”. Assim, para além do diagnóstico do próprio filho ou filha, Susana
apontou para diagnósticos que surgem em um resgate de trajetórias familiares,
como é o caso de muitas mães e pais que se veem diante do próprio diagnóstico de
autismo após apreender sobre a diversidade dos filhos100. Sua observação destacou
como o cuidado com as famílias também deveria partir do atendimento à saúde.
Enfatizando a importância dos grupos de familiares e associações na identificação

98
Outras informações sobre o Decreto disponíveis em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-5472
7328> Acesso em 17 de setembro de 2021.
99
Pesquisa realizada pelo Ibope Inteligência e apresentada na Revista Radis da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz). Disponível em: <https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/todas-as-edicoes/219> Acesso
em julho de 2021.
100
Essa situação evidencia a etiologia do autismo associada à genética.
127

desses problemas locais, Susana contou sobre o enorme aumento, durante a


pandemia, de mães e pais que tentam extermínio da própria vida ou do filho,
situação esta demarcada pela falta de redes de apoio e assistência. Essa difícil
realidade, exposta por Susana, ainda é uma discussão pouco levantada, ou
inexistente, nas entidades de saúde pública, ou mesmo em trabalhos acadêmicos
que apontam para a relação entre família e deficiência, ainda que tratem de
intersecções de vulnerabilidade e desigualdade social101. As redes e movimentos de
apoio têm sido fundamentais para a mitigação desse tipo de situação, oferecendo
acolhimento, assim como suporte psicológico, jurídico, ou mesmo material para
essas famílias.

Ao relatar como a pandemia acentua as desigualdades e é vivenciada de


diferentes formas pelos sujeitos, Susana clarificou a falta de atenção às pessoas
autistas e suas famílias e trouxe um movimento que se tornou ainda mais comum no
contexto de crise sanitária: a articulação de redes de cuidados e assistências
comunitárias102. A diminuição ou interrupção temporária de alguns atendimentos pelo
SUS das pessoas com autismo durante a crise sanitária de covid-19 tem impactado
profundamente essas famílias. A mãe exemplificou com o caso de uma regional de
atendimento básico de saúde na capital que não conta com psiquiatria há quatro
anos e como os atendimentos médicos gerais estão ainda mais dificultosos no
contexto da pandemia. Susana, muito coerente em suas falas, determinada e séria,
pediu que os agentes governamentais tomassem atitudes concretas, e exemplificou
que há profissionais muito qualificados, como uma psiquiatra e autista que, no relato
de Susana, reconhece mais precisamente a realidade das famílias. Trago
novamente algumas mensagens colocadas no chat como uma participação
significativa desses familiares que também clareiam e legitimam o que é

101
Helena Fietz (2020) traz um relato sobre essas difíceis realidades na relação entre cuidados e
deficiência em sua tese.
102
Constantemente, nos grupos de whatsapp dos coletivos, são relatadas histórias de famílias
passando por necessidades ou mesmo situações que, embora aparentemente triviais, evidenciam as
desigualdades de recursos no bem-estar dos autistas. Exemplo disso foi o caso de uma mãe que
pedia a doação de um liquidificador, já que o filho, com seletividade alimentar, só ingeria alimentos
processados e a família estava impossibilitada, por recursos financeiros, de adquirir o
eletrodoméstico. Campanhas de arrecadação de dinheiro, fraldas e alimentos também foram comuns
nessa rede de familiares e associações. Além das recorrentes indicações de profissionais
especialistas, instituições educacionais e advogados.
128

apresentado nos Fóruns, tanto por parte dos agentes públicos, quanto dos próprios
representantes da sociedade civil. Durante a fala de Susana, frases como “quem
tem condições financeiras, paga, quem não tem, fica como nós, abandonadas pelo
sistema” e “estamos pedindo socorro urgente” eram comuns.

Edgar, o representante da saúde, em uma tentativa de tréplica, respondeu


com as mudanças que ocorreram no sistema de saúde frente à pandemia, como o
atendimento por consultas virtuais; mas voltava ao argumento de que “a rede
psicossocial não é utópica”. Eduardo, retomando a fala e buscando dar continuidade
ao evento, ressaltou a “angústia das famílias” frente ao distanciamento entre o
planejamento e a prática, justificando, dessa forma, a importância dos Fóruns.
Foram sugeridas, então, auditorias para a análise das discrepâncias entre
interpretações daqueles que oferecem o serviço e daqueles que o recebem. No chat,
mais uma vez, as famílias traziam a falta de credibilidade vivenciada: “parece que as
famílias estão mentindo”.

Retomo esse relato etnográfico para refletir sobre dois aspectos que abarcam
o papel da família nessa trama entre deficiência e políticas públicas e que, ainda que
aparentemente sejam empreendimentos distintos, são convergentes no plano de
ação social. Por uma perspectiva, a fala de Susana destaca como os familiares têm
reivindicado atenção e cuidado às famílias das pessoas com deficiência, neste caso,
apresentando as particularidades em relação ao diagnóstico de autismo. Este
“cuidado”, que passa a ocupar a dupla posição de categoria êmica e analítica,
abarca a demanda por políticas públicas que priorizem a atenção às famílias em
relação a questões de saúde, assistência e educação, para que, desta forma, os
direitos relativos às pessoas com deficiência sejam também priorizados por esses
cuidadores.

Em outra ocasião, no relato de uma mãe sobre o nascimento do filho, o


médico que a atendia lhe questionou: “Você está preparada? Porque seu filho tem
deficiência, vai ter que estar forte e preparada”. O que consiste em uma mãe estar
preparada para um filho com deficiência? Além do tocante à dimensão emocional –
e o pressuposto capacitista imbricado na sentença –, cabe pensar que este
129

“preparo” também condiz com condições culturais, sociais, econômicas e estruturais.


E é neste sentido que essas famílias têm apresentado suas demandas: a garantia
de direitos para condições mais vivíveis. Portanto, destaco como há uma crescente
mobilização dos familiares não apenas pelo cuidado e atenção aos autistas, mas um
esforço para que o autismo seja visto também nas relações, com enfoque nas
famílias e nas pessoas cuidadoras. Durante uma apresentação em um Fórum, uma
especialista em autismo convidada retomou a reverberação do diagnóstico na vida
familiar e enfatizou como muitas das discussões sobre a condição perpassam pelo
âmbito dos cuidadores. A metáfora da “máscara de oxigênio”, que consiste em
cuidar primeiro de si para ter condições de cuidar do outro, foi evocada pela
especialista ressaltando a urgência de cuidar de quem cuida. A especialista
demarcou também a capacitação e suporte de cuidadores e familiares para que a
pessoa autista tenha a atenção, tratamento e recursos necessários, e
consequentemente, tenha possibilitada a autonomia e independência do decurso de
sua vida.

Entretanto, por outro viés, as famílias têm adquirido um papel fundamental no


reconhecimento de “problemas locais”, tal como apontado por Susana em sua fala.
E essas identificações não compõem apenas análises, mas efetivam ações
concretas na manutenção de direitos dos autistas e suas famílias. Portanto, através
de associações, redes de acolhimento e redes comunitárias, as famílias assumem
uma função de “promoção de cuidados”, ao atender demandas de assistência
psicológica, jurídica, médica e material. Então, se por um lado os familiares pedem
“cuidados e atenção”, por outro, são os familiares, através de redes e alianças, que
também oferecem esse tipo de suporte. A politização da família, argumentada por
Patrice Schuch (2013), é o processo pelo qual a família deixa de ser apenas uma
instituição preservada ou um valor crucial para certos grupos no contexto brasileiro e
se torna um “sujeito político fundamental para a mobilização de práticas de governo,
mas também de luta por recursos, reputações e novas posições sociais” (SCHUCH,
2013, p.323). Assim, essa dupla posição dos familiares não é contraditória, mas
ressalta a demanda por efetivação de serviços pelo Estado, e demarca também uma
130

agência desses sujeitos na constituição de planos de reconhecimento sobre a


deficiência103 e a construção da cidadania.

A reelaboração crítica em torno da noção de família tem sido fundamental


para a constituição de estudos que convergem com análises de políticas públicas.
Guita Grin Debert (1999) demonstra a ideia de uma reprivatização das questões
políticas com o direcionamento de problemas sociais às famílias. Para a autora, as
famílias se tornam aliadas fundamentais no processo de construção social, atuando
tanto como objeto quanto instrumento de intervenção (SCHUCH, 2013). A família se
torna um meio, uma ferramenta de atuação governamental, também sob um viés de
“atenção à família”. A atenção às famílias, como demonstrado, tem sido pauta
recorrente tanto nas reivindicações desses sujeitos, quanto nas apresentações de
gestores governamentais das políticas para pessoas autistas. Ainda que os
discursos sejam agregadores, os programas sociais e as experiências das famílias
parecem não se alinhar dessa mesma forma. A fala de Joaquim em um dos fóruns,
referindo-se principalmente às demandas relativas à saúde, evidencia essa
disjunção: “parece que a gente não consegue estabelecer uma comunicação clara”.
A família é o lugar onde o diagnóstico e a deficiência são apreendidos pela primeira
vez, onde questões sociais e culturais reverberam na apreensão e reconhecimento
do autismo e que geram visões construtivas e adversas. A família também é o
espaço de cuidado e atenção às necessidades básicas e palco das relações,
subjetivação e construção identitária. Às famílias também estão destinadas
responsabilidades que fazem parte de um plano de gestão governamental que as
destina a tarefa pela inclusão e convivência. E não obstante, é também da família
essa posição particular, em referência ao autismo, de reivindicação por direitos.

O que também está contido neste cenário de reivindicação de direitos,


práticas governamentais, discursos médicos, autonarrativas e mobilização familiar, é
a atribuição de quem tem o conhecimento legítimo sobre o autismo e quem não tem,
quais são as narrativas a serem consideradas e quais serão excluídas. Não

103
Cabe ponderar, entretanto, que essas mobilizações são realizadas no limite de seus recursos e
ainda que potencializem a garantia por direitos, podem também levar a ações que corroboram para
visões estereotipadas e capacitistas.
131

pretendo aprofundar aqui na reivindicação legítima de representatividade dos


próprios autistas, tema este que se desdobra em inúmeros debates e controvérsias,
entretanto, no recorte desta pesquisa sobre famílias, a análise da construção deste
espaço político e social é relevante para o entendimento do que está sendo
elaborado nesses movimentos sociais. Portanto, a politização da família, na
especificidade da deficiência, além de uma reformulação do papel social da
instituição familiar e a construção de um ideal pautado na política cotidiana que
coaduna com práticas governamentais e controle social, também diz respeito a uma
produção de conhecimento diante dessas redes e articulações, constituídas, no
contexto local, pelas associações. É emblemática na realização dos Fóruns TEA a
reivindicação de mães e pais de um lugar de autoridade nas discussões sobre as
demandas e planejamentos em relação às políticas destinadas às pessoas autistas.
O fundamento dessas famílias é elaborado na produção de uma expertise,
constituída no decurso dos vários processos já apontados em relação ao autismo. O
processo diagnóstico, o autismo como deficiência, a reelaboração do parentesco,
processos de subjetivação e identidade, e o engajamento social e político são parte
dessa legitimação de um conhecimento adquirido.

Gil Eyal e Brendan Hart (2010), em uma abordagem sociológica e histórica,


demonstram como em oposição crítica à ideia de pais emocionalmente insuficientes
causadores do autismo em seus filhos, a participação efetiva dos familiares no
estabelecimento de terapias e métodos de intervenção, fundamentada na
perspectiva de que são os pais especialistas em seus próprios filhos, também
constituiu os processos históricos sobre o autismo. Assim, os autores demonstram
como nessa articulação de informações, cuidados e políticas, surge um novo tipo de
“especialista”: a mãe ou pai que é autodidata nas terapias e nas necessidades em
relação ao autismo de seus filhos e filhas, é pesquisador/a, ativista, profissional, etc.
Para além da produção de expertise baseada em alianças de caráter médico e
terapêutico, retomo essas considerações para demonstrar como ela se dá também
na construção política e na mobilização social sobre o autismo.

Clarice Rios (2019) apresenta como nas reivindicações de familiares por


tratamentos e assistência, assim como na efetivação de direitos relativos às pessoas
132

com autismo, é articulada uma rede de expertise. De acordo com a autora, a


expertise de familiares incorpora o conhecimento técnico formal e o conhecimento
local através de redes e alianças entre diferentes atores, ou como Rios resgata de
Eyal e Hart (2010), através de uma “economia de trocas”. Dessa forma, a
transformação da experiência familiar em instrumentos e atuações políticas envolve
a produção da expertise (RIOS, 2017; FIETZ, 2018). As associações, foco desta
análise, se constituem no contexto brasileiro como os primeiros prestadores de
serviços especializados no autismo, mas também respaldam a circulação global de
informações e conhecimento da condição através dessa expertise dos familiares104.
As associações não contribuíram apenas para a criação de um modelo auxiliar na
assistência e suporte aos autistas (RIOS, 2019), mas também conformam e
questionam práticas e modelos médicos, práticas e modelos governamentais. As
associações de familiares no Brasil estão na interface entre o conhecimento global e
o conhecimento tácito e situado (RIOS, 2019).

Autores que têm se debruçado sobre essa produção de conhecimento através


das experiências relativas ao autismo e, de um modo mais amplo, às deficiências,
dão ênfase à expertise não como atributo relativo a indivíduos específicos, mas
como uma malha ou rede de conhecimento que é produzida individual e
coletivamente. É com base neste argumento, que explicito como o processo
diagnóstico do autismo, vivenciado pelas famílias, não está contido apenas na
esfera individual ou privada. E como essas trajetórias estão imbricadas em
processos históricos, políticos e sociais mais amplos na relação entre o autismo e o
movimento familiar. E neste mesmo sentido, a atuação organizada de diversas
associações na representação formal no espaço de gestão pública, como a CADDA,
adentra o cenário mais amplo das gramáticas de reconhecimento do autismo.

Assim, as discussões levantadas por Eyal e Hart (2010), Fietz (2018) e Rios
(2017, 2019) ficam evidentes no contexto do Fórum TEA ao explicitar como a
expertise é articulada em rede, promovida pelo agenciamento de familiares diante da

104
Rios (2019) exemplifica com a criação da AMA que trouxe, para o contexto local, profissionais e
técnicas advindas dos Estados Unidos e Europa. Mas ainda hoje, no contexto desta pesquisa, a
circulação global de informações e conhecimentos também é evidente nos congressos destinados às
discussões sobre autismo, com grande interlocução entre profissionais, familiares e autistas.
133

questão da deficiência, e que define como essa expertise em autismo é elaborada


de “modos socialmente valorizados e valorados” (RIOS, 2019, p.244). São nesses
processos da luta, constituída nas experiências e trajetórias familiares, que o
conhecimento tácito sobre o autismo é transformado em conhecimento explícito, não
apenas sobre a condição, mas também, sobre o mundo sociocultural em que os
autistas e suas famílias integram (RIOS, 2019).

3.5 A EMOÇÃO COMO FERRAMENTA POLÍTICA: “PORQUE A GENTE ACABA


ENVOLVENDO A RAZÃO E O CORAÇÃO”

A continuidade do Fórum que aqui descrevo abarcou outros setores das


agendas municipais para a identificação de demandas e a assimilação das
realidades vivenciadas pelos autistas e suas famílias, considerando uma
possibilidade de avanço nas políticas públicas municipais105. No que concerne à
temática da educação, com muita serenidade, Fátima apresentou políticas de
inclusão para crianças e adolescentes com deficiência, na especificidade do
autismo. A representante governamental enfatizou políticas de inclusão como as
ferramentas de Plano de Desenvolvimento Individual (PDI), ou Plano de Ensino
Individualizado (PEI), e o Atendimento Educacional Especializado (AEE) que
objetivam remover barreiras, estimular o desenvolvimento e autonomia das crianças
com deficiência106. A reivindicação no âmbito da educação tem gerado amplos

105
Além das agendas políticas de saúde, discussões do âmbito da educação e assistência social
também são recorrentes no Fórum e em outras instâncias com articulação com o poder público pelos
familiares. Exemplares desse rol de discussões estão a entrada e permanência escolar de autistas,
as emissões da Carteira de Identificação da Pessoa com TEA (Ciptea), vagas de estacionamento
prioritário, acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), vacinação contra covid-19, dentre
outros.
106
Idealmente construído junto às famílias e de forma intersetorial, o PDI e o AEE têm sido tema de
recorrente debate entre os grupos de familiares visando a inclusão educacional. Passou a fazer parte
desse rol de debates, o Desenho Universal de Aprendizagem (DUA), que Borges e Schmidt (2021)
descrevem: “o fundamental na abordagem do DUA é o entendimento de que cada aluno tem
necessidades únicas e aprende de forma diferente. Não existe uma solução única para todos e a
estrutura do DUA facilita o acesso do aluno ao currículo através do reconhecimento das diferenças
individuais” (BORGES e SCHMIDT, 2021, p.33). Um exemplo dessa adequação é brevemente
descrito na reportagem sobre uma escola de São Paulo, referência no atendimento às crianças e
jovens com deficiência. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/08/espelho-e-a
134

debates e alianças entre familiares de autistas, gestão pública e pesquisadores da


área. Em uma dupla posição de pesquisadora da área educacional e integrante de
associação, Liliane foi chamada para falar de políticas educacionais, sendo
considerada uma grande especialista para o avanço dessas políticas através de
pesquisas desenvolvidas na universidade, assim como sua atuação na causa.
Liliane destacou que individuação não é segregação, e é preciso que, cada vez
mais, escolas estreitem as relações com os familiares e deem condições
pedagógicas para a criança ou adolescente aprender e não apenas estar presente
nas escolas. Tendo suas falas bem recebidas pela maioria dos presentes que se
manifestavam no Fórum, Fátima agradeceu a participação e encerrou sua breve fala
com um poema que, em uma tentativa de definir avanços esperançosos, resgata as
emoções como uma forma de atuação e constituição de vínculos nessas relações
que se desdobram em espaços de poder. Retomo aqui alguns versos que se
relacionam com o movimento de familiares e permite abordar reflexões mais amplas
acerca dessas atuações que são compostas de afeto e luta.

Das acontecências do banzo/ a pesar sobre nós,/ há de nos aprumar a


coragem./ Murros em ponta de faca (valem)/ afiam os nossos desejos/
neutralizando o corte da lâmina (Poema de Conceição Evaristo, Apesar das
acontecências do banzo).

A evocação de um poema atrelado a narrativas de cunho emocional,


apresenta um caráter fundamental na articulação desses espaços de participação e
controle social observados durante a pesquisa. Esperança, resiliência e coragem
passam a compor o repertório de atuação, enquanto política, mas também como
performance. Neste exemplo etnográfico, as emoções são geradas por uma
representante governamental, assim como em outros eventos, nos quais outros
gestores também traziam expressões emocionais como forma de garantia de
engajamento com a efetivação de direitos. Exemplar é o caso de um agente público

larme-musical-como-uma-escola-comum-inclui-alunos-com-deficiencia.shtml?pwgt=khm2t3sgi4d7mfw
mcwz6j1ds5b5vyz0fwni246wij7ts56v6&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=
compwagift> Acesso em 29 de agosto de 2021.
135

que relatou seu primeiro contato com o autismo ao descrever uma história
emocionalmente carregada com uma criança autista e a transformação que gerou
em sua vida. Outro agente destacou sua angústia, cansaço e insistência para travar
diálogos sobre a inclusão dentro do espaço municipal, dando enfoque nos processos
emocionais relativos a este trabalho. Ainda que não caiba ao escopo desta
dissertação um aprofundamento dos agenciamentos e subjetividades dos agentes
governamentais participantes da efetivação de políticas públicas e direitos, essas
demonstrações emocionais adquirem um duplo papel: enquanto uma constituição de
vínculos em espaços hierárquicos, mas também indicativo do Estado menos como
uma entidade dotada de autoridade e neutralidade, e mais constituído de pessoas,
com subjetividades, preferências, trajetórias pessoais, marcadas por raça, classe,
gênero, deficiência, sexualidade, geração, religião; e que vivenciam a assinatura do
Estado (DAS, 2007) em suas próprias práticas. Pretendo abordar aqui, como as
emoções nesses espaços de articulação e embate são cruciais para o entendimento
da luta de familiares. Se agentes governamentais utilizam de discursos emocionais
para a criação de vínculos, sejam essas estratégias ponderadas ou não, fazem esse
caminho articulando-se com a mobilização que advém da atuação dos familiares
quanto às emoções. No que toca a família, é comum o discurso associado à moral,
assim como a evocação de emoções. Portanto, esse desdobramento das políticas
emocionais é algo fundamental a ser analisado, e para isso, trago outra descrição
etnográfica também colhida em um Fórum TEA.

Os eventos ainda aconteciam presencialmente, a pandemia de covid-19 não


havia sido deflagrada, e essa observação é relevante considerando que a presença
dos corpos expressa mais do que câmeras bem posicionadas recortando fragmentos
de histórias, casas e expressões. No tempo ocioso de espera do início do Fórum, eu
conversava com integrantes da ASATEA sobre nossas famílias, dentre outros
assuntos que abordavam a organização de eventos pela associação. Foi em meio
às conversas informais que conheci Olga, uma mãe muito respeitada em vários
espaços que acompanhei. Olga é uma mulher branca, de mais ou menos 50 anos,
com uma presença forte e sempre usando roupas elegantes. É uma renomada
profissional da área de saúde mental, tendo colaborado com documentos federais
136

sobre cuidados às pessoas autistas e suas famílias, e também uma “mãe atípica”.
Ouvi de uma de minhas interlocutoras, que Olga sempre está à frente de ações
direcionadas ao autismo, principalmente em referência às políticas públicas, “ela que
tem a coragem”, ponderou. Quando fomos apresentadas e Olga soube de minha
pesquisa, enfatizou seu interesse em “entender o lugar dessas mulheres nos
cuidados”. Olga foi fundamental para perceber como as atuações em espaços
públicos eram articuladas pelos familiares. Ela trazia à cena a criação de redes de
expertise e demonstrava de modo muito claro as construções entre o discurso das
experiências, do familiar e a posição de atuação profissional e política. Tornou-se
evidente, tal como Adriana Vianna aponta, a transformação da multiplicidade de
experiências em “casos” e “causas”, através da gramática dos direitos, onde
“pessoas de carne e osso, objeto de afetos e desafetos” se tornam figuras centrais
de discursos e ações políticas (VIANNA, 2013, p.22).

Após algumas apresentações, Olga começou sua fala quase como um


desabafo. Relatou o diagnóstico dos filhos, a dificuldade em manter a profissão
enquanto despendia os cuidados necessários e do incômodo sobre a falta de
presença de autistas nesses espaços políticos. Olga afirmou que nada adiantava
lutar por direitos sem que a realidade da experiência com o autismo fosse
evidenciada, que não adiantava “esconder ou ter vergonha dos filhos”, porque a luta
por direitos requer a presença. Relatou como diante de faltas e falhas nas políticas
públicas, tomou “a luta” para si. Falou sobre estar ali enquanto profissional,
enquanto ativista, concluindo que “nesse tema, meu lugar é de mãe”. Em sua fala,
em meio a pausas emocionadas, ressaltou a dificuldade de acesso a serviços e a
falta de apoio às famílias. Chamou casos de pessoas ouvintes para exemplificar o
compartilhamento dessas ideias. Olga defendeu a necessidade de luta por ações de
formulação de políticas públicas, mas também de mudanças de consciência para se
construir “uma estrutura social que possibilite a inclusão”. Trouxe dados, referências,
documentos e retomou o histórico de políticas públicas. Mas em seu discurso, o
amor, dedicação, carinho, angústia, medo, raiva, cansaço, também tinham seu
espaço. Olga, mais uma vez emocionada, encerrou sua fala citando um trecho de
137

Hamlet. Fazendo a leitura, concluiu criando um paralelo com o contexto do autismo:


“são seres singulares querendo ser reconhecidos em sua singularidade”.

Em um trabalho a respeito dessa etnografia (CARVALHO, 2020b), evidenciei


como para além das ações públicas e políticas no sentido estrito da aquisição de
direitos, as performances e estratégias de ações também são fundamentais na
compreensão dos movimentos sociais, destacando a agência dos seus integrantes.
Partindo de uma análise dos atributos de moralidades incorporados e
ressignificados, assim como dos discursos emocionais reiterados e contestados,
destaco a atuação desses familiares na luta por direitos. Várias são as esferas que
se entrelaçam na produção das “gramáticas dos direitos”: a dimensão da ação social
se constitui nas normativas legais, nas tradições administrativas, nos aparatos
institucionais, assim como nas mobilizações políticas, estratégias coletivas, ou
mesmo nos dramas morais e sofrimentos pessoais (VIANNA, 2013). Através de
contextualização de discursos morais, Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz (1990)
explicitam como as emoções – que tomo como parte desses dramas morais e
sofrimentos pessoais – também dizem respeito à vida social e não somente a
estados internos, irracionais e naturais, tais como defendidos em abordagens
psicológicas ou em estudos essencialistas.

Os discursos emocionais, tais como defendem Abu-Lughod e Lutz (1990) com


base no conceito de discurso foucaultiano, assinalam uma linguagem que é falada,
utilizada, manipulada em contextos específicos, não só um código estático
desatrelado das práticas sociais. Dessa forma, a emoção como prática discursiva,
motivada por atos pragmáticos e performances comunicativas delimitadas
culturalmente (ABU-LUGHOD e LUTZ, 1990), pode ser vista como componente de
mobilização política. Seja nos acolhimentos em associações ou nas participações
em eventos públicos, mães e pais de pessoas com autismo articulam com outros
interlocutores – pessoas leigas, agentes do Estado, outros familiares, profissionais
de saúde, etc. – conhecimentos advindos de suas experiências, inclusive
emocionais. Fica evidente, portanto, o caráter político das emoções e seus
acionamentos como formas de agenciamento contra-hegemônico.
138

Os espaços de acolhimento são constituídos como espaços seguros voltados


à expressão das emoções, ou dos “dramas morais e sofrimentos pessoais”
(VIANNA, 2013). Entretanto, o deslocamento desses discursos emocionais para os
campos de aparecimento público, tais como os Fóruns, pode ser compreendido
também como estratégia nos jogos de poder e esferas de aparecimento. Essas
micropolíticas das emoções têm, portanto, o potencial de dramatizar, alterar ou
reforçar dimensões macrossociais vivenciadas (REZENDE e COELHO, 2010). As
emoções são reais, sentidas, afetadas, mas isso não impede que sejam também
acionadas como estratégias de ações nas atuações políticas. Enquanto gestores e
diretores governamentais evidenciam suas tentativas na execução de políticas
públicas que efetivem direitos dos autistas, essas mães e pais acionam discursos
emocionais e experiências pessoais como formas de destacar a urgência de suas
demandas. Além deste exemplo representativo da fala de Olga no Fórum, outras
falas que observei na etnografia revelavam esse peso das emoções na
caracterização da luta. “Só quem é mãe e já passou por isso sabe” também era uma
frase recorrente nas aparições públicas, acionando uma posição em que os agentes
governamentais não poderiam experimentar, portanto, estabelecendo uma
autoridade moral (VIANNA e FARIAS, 2011) em que nenhuma lei, decreto ou teoria –
mencionado por esses agentes – poderiam extrair107.

O conceito de trabalho emocional de Arlie Hochschild (2013) também pode


ser bem observado nesse contexto de utilização de discursos emocionais nas ações
políticas. Discorro em meu trabalho (CARVALHO, 2020b) como a autora defende
que a estrutura social, regras de sentimentos, gerenciamento emocional e
experiências emotivas estão inter-relacionados, culminando em convenções de
sentimentos. Essas mesmas regras de sentimentos refletem padrões de
pertencimento e enquadramento social além de evidenciarem posturas ideológicas.
O trabalho emocional diz respeito ao ato de tentar mudar, em grau e qualidade, uma
emoção e sentimento (HOCHSCHILD, 2013). Entretanto, a autora também

107
Na ocasião de um dos Fóruns, foram apresentados vídeos com relatos de mães e pais sobre suas
experiências com o autismo de seus filhos. Foi enfatizado como são pessoas que têm conhecimento
sobre o autismo “que nenhuma outra formação vai dar”. Os vídeos foram recebidos com muita
emoção e várias foram as expressões de admiração e carinho pelas famílias que contavam suas
trajetórias.
139

demonstra como o trabalho emocional pode ser uma forma de referência a


posicionamentos ideológicos e políticos específicos, aqui relacionando com o
gerenciamento de emoções por parte de movimentos sociais (GOMES, 2017). A fala
de Olga evidencia esse aspecto ao definir que seu lugar de fala é como mãe,
nenhuma outra posição. Como coloca Hochschild, “as leis que orientam emoções
podem se tornar, em graus variados, a arena de luta política” (HOCHSCHILD, 2013,
p.197).

Dessa forma, o acionamento de discursos emocionais não é algo previsto


apenas na individualidade dessas pessoas, mas pautado em uma construção de um
coletivo emocional, onde as emoções são experimentadas de modo compartilhado
e, portanto, legitimadas. Não é apenas uma mãe falando de sua maternidade
atípica, são mães e pais destacando experiências fundamentadas em questões
históricas, sociais e culturais, específicas em relação à parentalidade, cuidado e
deficiência. Candace Clark (1997), sobre outro contexto de pesquisa, discorre como
a simpatia/empatia/compaixão cria fronteiras morais e, portanto, age como um
sentimento de estabelecimento de alteridade. E de forma semelhante, as ações
dessas mães e pais de autistas, através desse viés analítico das micropolíticas
emocionais, geram empatia, estabelecem uma posição de alteridade de suas
parentalidades e experiências. Por conseguinte, as diferentes formas em que esses
corpos e emoções são constituídos dentro do coletivo, estabelecem diferentes
projetos políticos, “o que afeta a própria configuração das redes e da política
identitária desses movimentos” (GOMES, 2017, p.234), ou seja, o que corrobora
para os processos de identificação e diferenciação, assim como alianças e rupturas
com outros atores sociais.

O Fórum TEA foi um dos espaços mais significativos para a etnografia, onde
várias discussões emergiram, muitos dados foram levantados, havia uma interseção
entre a atuação governamental e a da sociedade civil, mães e pais tomavam a frente
das discussões. Mas também posso dizer que não se caracterizou como um evento
tranquilo em nenhuma das vezes que participei, e sim envolto em discussões
fervorosas e muita agitação. Em alguns momentos do Fórum, que ocorreu
presencialmente, foram levantadas críticas ao evento como um todo, com mães
140

afirmando como o espaço não possuía acessibilidade à presença de pessoas


autistas, principalmente em questões sensoriais – ruídos altos dentro e fora do
espaço, discussões enfurecidas, demora, iluminação, utilização de recursos de
comunicação inviáveis, essas foram algumas das questões apontadas. Também saí
muito afetada e cansada após os Fóruns, especialmente, o que ocorreu de forma
presencial. Trago essa experiência corporificada para destacar que a participação do
Fórum não permitiu apenas um trabalho intelectual, com análises sobre discursos
emotivos e formas de atuações desses familiares em suas mobilizações políticas.
Mas também fui surpreendida quando colocada nessas experiências emocionais
dentro do trabalho de campo e afetada por elas. E, de modo muito contundente, o
discurso emocional se tornou um modo de ação social que criou efeitos
(ABU-LUGHOD, 1990).
141

4 ÉTICAS, PRÁTICAS E POLÍTICAS DO CUIDADO

4.1 TEORIAS E MOVIMENTOS DO CUIDADO

Nos capítulos anteriores explorei como o autismo é constituído nas trajetórias


familiares e como as famílias elaboram o reconhecimento da condição nos
pressupostos do parentesco, mas também, através de movimentos sociais e
reivindicações por políticas públicas e direitos. Ao longo do campo etnográfico, o
cuidado aparece como uma categoria contida nestes processos e ativismos,
fundamentando as análises aqui apresentadas. Buscando entender o que compõe e
descreve o autismo, através de processos históricos, sociais e políticos, o cuidado
aparece nas articulações da participação familiar na composição histórica do
diagnóstico, nas lutas em torno do reconhecimento da deficiência e nas várias
controvérsias ontológicas sobre o autismo. Do mesmo modo, o cuidado é
concomitantemente elaborado junto às trajetórias familiares com a deficiência e que
perpassam por uma série de processos de subjetivação, identidade e
reconhecimento. O cuidado também baliza e molda as práticas de parentalidade, ao
ser acionado como valor pragmático e moral. Descrevo também, como o cuidado
sustenta e é propulsor de movimentos políticos no contexto local, sendo as
experiências com o cuidado produtoras de expertise e autoridade moral frente ao
poder público. Neste capítulo, através de discursos em interação, busco sintetizar
uma ampla discussão sobre o cuidado, considerando que a categoria analítica é
central nas reflexões que convergem a deficiência, o parentesco e os processos de
mobilização social.

Desde a década de 1980, nos Estados Unidos, vários estudos têm sido feitos
com foco no cuidado como potente categoria analítica no entendimento das relações
sociais (GUIMARÃES, HIRATA e SUGITA, 2011). A partir das críticas feministas, é
evidenciado como o cuidado está socialmente atrelado ao âmbito doméstico e
privado, e, principalmente, relacionado aos papéis sociais de gênero no trato com
142

filhos, idosos, dependentes, doentes, assim como o trabalho doméstico. Essa


avaliação crítica do cuidado enquanto um trabalho mal reconhecido, mal
remunerado e subalterno, evidencia não apenas as disposições práticas, mas
relaciona o cuidado às questões mais amplas relativas à economia, Estado e
direitos.

As discussões surgem em torno da terminologia do care, grafada em inglês,


abarcando uma multiplicidade de sentidos, seja cuidado, solicitude, preocupação e
atenção. O termo polissêmico é referido tanto a uma ação ou prática, quanto uma
atitude ou disposição moral (HIRATA e GUIMARÃES, 2012). Portanto, o care,
enquanto uma categoria emergente, multifacetada e heterogênea (GEORGES,
2019), é constituída de recorrentes discussões sobre seus significados, políticas e
moralidades em diferentes áreas, seja na filosofia, sociologia, antropologia,
psicologia, serviço social, educação ou, de forma mais recorrente, nas áreas da
saúde. A relevância das questões do cuidado coaduna com processos históricos e
sociais mais amplos, como o envelhecimento de populações e aumento na
expectativa de vida, a entrada e estabilização de mulheres no mercado de trabalho,
a privatização de serviços de saúde, o desenvolvimento de profissões relacionadas
ao cuidado e assistência, a imigração internacional para o trabalho de care, dentre
outros (HIRATA e GUIMARÃES, 2012; ARAUJO, 2018; FINAMORI e FERREIRA,
2018). Mais recentemente, o cuidado como uma questão política, social e teórica,
alcança uma significativa centralidade diante da crise sanitária de nível global da
covid-19, em que os cotidianos e práticas foram inexoravelmente afetados e
perpassados por questões de saúde, assistência, cuidado e uma necessária
domiciliarização de atividades sociais108.

O cuidado envolve normas e valores situados, desta forma, tomar a categoria


analítica em diferentes contextos revela a pluralidade de realidades sociais. O
cuidado é, portanto, constituído nos contextos locais e no acionamento feito pelos

108
Durante a crise sanitária de covid-19, uma série de trabalhos nas ciências sociais brasileiras têm
tematizado sobre a dimensão do cuidado e as relações de gênero, destacando, principalmente, as
desigualdades reveladas pela pandemia. A produção internacional também tem se debruçado sobre
essa emergência das relações de cuidado diante do contexto vivenciado nos últimos anos que
desencadeou novas disposições econômicas, sociais e políticas.
143

sujeitos conferindo-lhe sentidos que articulam as relações sociais e marcadores


sociais da diferença, como classe, gênero, sexualidade, geração, deficiência, raça e
etnia. No contexto local brasileiro, a categoria ganha relevância em traduções e
gramáticas locais: é cuidar e “tomar conta” (GUIMARÃES, HIRATA e SUGITA, 2011).
Isabel Georges demonstra como, no Brasil, a partir de meados dos anos 2000, o
tema tem sido abordado através de funções sociais e questões de dependência,
evidenciando, desta forma, além de questões de hierarquização e poder, uma
repolitização do debate “sobre a questão social da dependência e do cuidado, de
uma forma muito mais abrangente, globalizada e interseccional” (GEORGES, 2019,
p.141).

Em um paralelo entre as discussões teóricas feministas e as reformulações


propostas pelos novos estudos de parentesco e família (FONSECA, 2003;
CARSTEN, 2004), a relação com o cuidado e a questão da dependência delimita um
campo profícuo de análises. Tanto a família, quanto o cuidado, através dessas
constituições teóricas que se desdobraram desde a década de 1980, se tornam
potentes categorias de reflexão sobre disposições políticas e sociais. Além da
questão de gênero, central nas discussões com perspectivas feministas, ao se
pensar na articulação entre cuidado e família, a questão geracional e do curso de
vida é incisiva. Não restrita às práticas cotidianas familiares, a vinculação entre
esses diferentes âmbitos reverbera nos debates políticos e jurídicos que
estabelecem direitos e deveres intergeracionais (FINAMORI e FERREIRA, 2018).
Sabrina Finamori e Flávio Ferreira (2018) demonstram como a dimensão do cuidado
coaduna com os debates sobre parentesco, ao apontar para a relacionalidade,
evidenciando os afetos, reciprocidades, mas também, as tramas entre a noção de
família e o Estado. Neste sentido, como já apontado ao longo desta dissertação, o
processo de construção de cidadania também tange a politização da família nos
processos de assistência e suporte às demandas que seriam, a princípio,
responsabilidades do Estado. Portanto, a família enquanto uma instituição da
primazia do cuidado é também constituída através dessas práticas sociais e morais.

Ademais a esta relação com a noção de família, une-se o debate presente


nos Disability Studies que, a partir de perspectivas feministas, colocam o cuidado
144

como dimensão central para se pensar também a deficiência como disposição


social. Entre as décadas de 1990 e 2000, a epistemologia feminista reuniu críticas
quanto à representatividade do grupo de pessoas que vinham se posicionando
política e teoricamente nos anos iniciais do movimento da deficiência. A situação
privilegiada dos primeiros teóricos, em sua maioria, homens, brancos,
institucionalizados, com lesão medular, não era apenas um detalhe histórico (DINIZ,
2003; 2012). A segunda geração do modelo social da deficiência passa, então, a
incluir ponderações sobre outros corpos em relação ao social, abarcando tanto
outras formas de deficiência, quanto condições de envelhecimento e doenças
crônicas. Neste mesmo viés, as análises de cuidado e dependência são introduzidas
no campo de estudos da deficiência.

Para as teóricas feministas da deficiência, a dimensão do corpo, da dor e as


especificidades contidas nessas experiências não podiam ser invisibilizadas, assim
como as questões de dependência e interdependência (DINIZ, 2003; 2012). Se o
movimento da deficiência já entendia a relevância de se pensar a categoria
enquanto socialmente situada, ou seja, os limites relativos à deficiência decorrentes
de barreiras sociais e não localizados em corpos específicos, o movimento feminista
da deficiência problematizou como isso não abarcava a totalidade de demandas. Ao
dar ênfase em uma independência e autonomia como basilares da igualdade e
justiça social, para o movimento feminista, “o corpo foi esquecido em troca do
projeto de independência” (DINIZ, 2012, p.62). E este corpo, com especificidades,
necessidades, dores, vontades e em relações mútuas, também era fundamento nas
reivindicações de justiça social.

Ainda que abarquem discussões semelhantes quanto às relações de poder e


a constituição dos sujeitos, o movimento das pessoas com deficiência e o
movimento feminista, ainda hoje, repercutem agendas políticas que, por vezes, são
conflituosas. Bill Hughes, Linda McKie, Debra Hopkins e Nick Watson (2019), ao
fazer uma análise acerca das práticas de cuidado pelo viés do movimento teórico da
deficiência e a teoria feminista, demonstram como os embates em torno do tema são
complexos, ainda que haja um caminho comum por políticas de bem estar social e
cidadania. Para parte do movimento da deficiência, principalmente nos anos iniciais,
145

o cuidado é frequentemente visto como algo que corrompe os projetos


emancipatórios e de autodeterminação, ao criar estereótipos capacitistas e de
infantilização. O cuidado, portanto, é entendido como uma barreira para a autonomia
e independência das pessoas com deficiência. Os autores apresentam como uma
parte do movimento tem atuado no sentido de entender o cuidado não como uma
prática atrelada a questões morais e emocionais, mas algo estritamente da ordem
de assistência pessoal e suporte, ou seja, uma dimensão material, pragmática, e por
vezes, monetizada.

Por outro viés, o movimento feminista tem apresentado as discussões acerca


das práticas de cuidado com uma emergente centralidade, entendendo que uma
sociedade dominada pelo imaginário masculino vê o cuidado, em contraposição ao
político e público, como algo degradante e do âmbito privado. A epistemologia
feminista, portanto, enfatiza como o cuidado é primordial na vida de todas as
pessoas, sendo as relações de interdependência e as necessidades mútuas ao
longo da vida fundamentais para qualquer sujeito em sociedade. Nesta oposição
entre o domínio público e privado, o cuidado era deixado aquém das análises
sociais, já que era, na esfera pública, em que as preocupações sobre direitos e
justiça eram privilegiadas (HUGHES et al., 2019). As críticas feministas apontam,
portanto, que o cuidado e a dependência também são parte das discussões
referentes à deficiência, porque coadunam com processos de vida e reivindicações
por condições mais vivíveis em uma almejada sociedade acessível e inclusiva que
considere a relacionalidade.

Diante dessas considerações, o cuidado tem sido objeto de disputas teóricas


entre o campo da deficiência e a teoria feminista. Por um lado é visto como “uma
categoria reificadora de estigmas, incapacidade e infantilização da pessoa com
deficiência” (FIETZ e MELLO, 2018, p.115), por outro, o cuidado questiona os ideais
de autonomia e de independência109 enquanto universais absolutos, argumentando

109
No movimento da deficiência no Brasil, a autonomia refere-se ao controle do próprio corpo no
ambiente e a independência é a capacidade e possibilidade de decisão. Anahí Guedes de Mello
(2009) aprofunda este debate, enfatizando a importância destas questões na vida das pessoas com
deficiência. Em meu campo etnográfico, a autonomia e a independência constantemente cruzavam as
fronteiras terminológicas ou eram apresentadas em conjunto.
146

pela interdependência das relações. Portanto, o que temos é um cuidado múltiplo,


polissêmico, categoria proveniente de um processo de experimentação nas formas
de atenção às diferentes necessidades apresentadas em cada contexto (FIETZ e
MELLO, 2018), inclusive, na deficiência.

Na especificidade desta pesquisa, exploro como o cuidado aparece nas


diferentes dimensões elaboradas por mães e pais de pessoas com autismo.
Examino como essas tensões e controvérsias do cuidado aparecem no campo
etnográfico e mobilizam diferentes reflexões sobre a categoria analítica em relação à
deficiência, entendendo-a enquanto uma questão ético-política (PUIG DE LA
BELLACASA, 2017; FIETZ, 2020). Essas discussões são resultado das múltiplas
redes de cuidado e interdependência que foram se constituindo ao longo do campo
etnográfico.

4.2 A INTERDEPENDÊNCIA E O FUTURO

Enquanto apreendia os percursos e percalços em relação ao autismo a partir


da perspectiva de mães e pais ativistas no campo etnográfico, cada relato
perpassava por questões que ora adentravam o espaço da casa, do privado, dos
sussurros; ora se firmava na dimensão pública, na busca e efetivação de espaços de
reconhecimento e direitos inclusivos. As reuniões da associação dedicadas ao
acolhimento de algum familiar, ou mesmo famílias inteiras dispostas a conhecer o
coletivo, tinham a característica comum de serem carregadas emocionalmente: eram
feitas de angústias, medos, desabafos, mas também sorrisos, celebrações e alívio.
Enquanto acompanhava as reuniões presenciais, o acolhimento era premissa básica
dos encontros, mas esse acolhimento se transformou em uma “tecnologia do
cuidado” ao se constituir através de redes e grupos sociais virtuais, diante do
necessário isolamento social como medida de contenção da disseminação do vírus
na crise sanitária global. A cada encontro, ligação, vídeo, contato, áudio ou foto, os
fragmentos de cuidado emergiam nas inúmeras discussões sobre filhos e filhas com
147

autismo. Eram apresentadas mãos que carregam, ensinam, estimulam, treinam,


medicam, pesquisam, acolhem, mãos que cuidam. Mas essas mesmas mãos fazem
parte de um corpo-cuidador que eleva a voz nas escolas, clínicas, universidades,
mídias virtuais, espaços públicos ou mesmo dentro de casa, na garantia de direitos e
experiências mais respeitosas. São nessas disposições do cuidado que esta análise
se constitui. Retomo a uma das reuniões presenciais que expõe vários elementos
que pretendo explorar neste capítulo: o cuidado como uma categoria analítica
relevante para o entendimento de práticas sociais relacionadas à deficiência.

Diana é mãe de um homem de 27 anos diagnosticado com autismo, e


participava da reunião pela primeira vez com o objetivo de conhecer o coletivo. Com
um sorriso amável, afirmava suas expectativas quanto à associação e a interlocução
com outras mães e pais. Diana contava em detalhes sobre o processo diagnóstico
do filho que, à época, era recente e ainda estava sendo elaborado dentro da
trajetória familiar. Afirmou como o marido, muito próximo do filho, havia se afastado,
em reação a não aceitação do diagnóstico. A mãe contou como após muitas
tentativas, conversas e pesquisas, o pai passou a compreender melhor o autismo do
filho e agora buscavam respostas aos questionamentos diante do diagnóstico. Diana
deixou muito claro como o processo de aceitação dos filhos é também um processo
de aceitação de mães e pais sobre si mesmos. E assim, com uma fala
emocionalmente carregada, Diana recebia o acolhimento de outros familiares
presentes que relatavam suas próprias experiências pessoais criando um espaço
seguro e empático.

Em meio às escutas, histórias, afetos e dúvidas, Diana se direcionou para


uma narrativa mais pragmática: as práticas cotidianas de cuidado com o filho. Após
vários conselhos e compartilhamento de experiências particulares, os integrantes
presentes falaram sobre o treinamento de pais110, visto como uma importante

110
Também referenciado como Treinamento Parental ou Psicoeducação Parental, é uma intervenção
comportamental conduzida, na maioria das vezes, por profissionais da psicologia com o objetivo de
dar continuidade ao tratamento também no ambiente domiciliar. A condução dos profissionais,
realizada principalmente no diagnóstico de autismo, consiste no ensino de estratégias de manejo
comportamental aos familiares. Este método, visto como positivo por grande parte dos interlocutores
da pesquisa, é demandado em diversos momentos da etnografia e mais do que um tratamento e
acompanhamento psicológico, o Treinamento de Pais é visto como um processo importante para o
ordenamento da parentalidade sobre as práticas de cuidado em relação ao autismo.
148

metodologia e ferramenta da psicologia com um enorme potencial no apoio aos


familiares diante das estruturas de cuidado a serem despendidas aos filhos com
autismo. Em tom de brincadeira, Ivana questionou: “e quem sabe muito sobre
treinamento de pais?”, deixando a pergunta sem resposta. Ao ouvir nomes de
especialistas, a mãe completou: “não, somos nós mesmos, os pais”. As experiências
dos autistas eram ali narradas e constituídas nas experiências dos pais, em seus
treinamentos e expertises constituídas. As escolhas dos filhos também eram
perpassadas pelas motivações de mães e pais, que, baseados em uma construção
social da parentalidade, buscavam afirmar ou moldar outras expectativas.

A partir destas narrativas, um dos integrantes levantou a questão do “preparo


do terreno” feito pelas mães e pais, seja através de reuniões de acompanhamento e
avaliação em escolas, orientações nos locais de trabalho, ou uma série de
direcionamentos aos filhos quanto à socialização. As mães e pais integrantes da
associação enfatizavam a importância de instituições que contam com um diálogo
aberto com os pais, e Joaquim deu o exemplo do próprio filho que, trabalhando em
um ambiente comercial, sempre teve o apoio e diálogo com a gestão sobre as
particularidades referentes ao diagnóstico, permitindo um ambiente respeitoso e
inclusivo para o filho, concomitante à independência constituída na permanência
dele no mercado de trabalho. Dando continuidade ao seu relato, Joaquim fez a
ressalva de que é preciso precaução para “não tomar conta da vida dos filhos”. Há
uma linha tênue entre o cuidado e o controle, explicitada na própria narrativa de
Joaquim, e que expõe uma das mais controversas questões referentes às relações
familiares e a deficiência. Mas esta questão não passa despercebida ao coletivo
acompanhado no campo etnográfico, ela aparece nestes relatos que explicitam a
volubilidade de categorias em relação: cuidado, autonomia e independência.

Em dado momento da reunião, após todos refletirem sobre as escolhas e


expectativas dos filhos, Diana expôs uma situação específica: o relacionamento do
filho autista. A mãe falava da preocupação pelo filho nunca ter “interessado em
nenhuma garota” e afirmava: “eu até insisto, tento conversar”. As mães e pais
contaram, então, das experiências de relacionamentos dos filhos, evidenciando a
preocupação no estabelecimento de relações sociais, sejam de amizade ou
149

amorosas. Ivana contou que o filho, já adulto e quase formando na universidade,


nunca havia tido uma namorada, já havia se envolvido com garotas antes, mas não
conseguia perceber limites de interesse e o jogo amoroso, tomando atitudes que não
correspondiam ao ideal social neste tipo de contexto. Ivana afirmou que a maior
parte dos autistas prefere não contar sobre o autismo quando iniciam um
relacionamento, e com isso, algumas atitudes, por vezes, são interpretadas como
arrogância ou incoerência. Ao elaborarem qual o papel dos pais nesta interseção
entre o autismo, afetividade e sexualidade, uma mãe presente na reunião
desabafou: “Enquanto estiverem namorando dentro de casa, saindo vez ou outra é
fácil da gente saber se as coisas estão bem, mas e se decidem fazer uma viagem,
por exemplo? Como a gente vai saber que as coisas não vão sair do controle?”.

A conversa circulou ao redor destas delicadas situações em que a


intervenção e expectativa familiar vão de encontro às experiências dos próprios
filhos autistas com a condição e as relações de autonomia e independência. Já perto
do fim do encontro, Joaquim interveio e ressaltou a importância dos pais serem
ativos e participativos no movimento de ativismo familiar em defesa e
reconhecimento do autismo, na “luta pelos seus filhos”, porque era essa a forma de
se ter “algum controle de alguma coisa”. Ivana também endossou a fala de Joaquim
sobre a importância da causa, enfatizando como isso repercutia nas experiências
familiares. Em síntese, Joaquim e Ivana demonstravam aos outros participantes
como a construção de uma sociedade mais inclusiva, acessível e sensível às
particularidades do autismo seria muito mais efetiva na elaboração dessas questões
do que efetivamente o controle dos pais, enfatizando como os filhos também
possuem “uma vida além dos pais e devem ter autonomia para vivê-la”.
“Conscientizar sobre o autismo, fazer com que as pessoas entendam o diagnóstico
também é abrir esses espaços de relações pessoais dos nossos filhos, afinal, até
quando a gente vai ter controle?”, concluiu Joaquim. Era a percepção de que as
mãos que carregam e cuidam, não serão sempre permitidas, nem serão eternas.

O relato explicita um dos cernes das controvérsias e discussões no que tange


o cuidado e a deficiência: a questão da autonomia e independência. As lutas
políticas de pessoas com deficiência com propostas reivindicatórias por
150

independência e direitos civis, tem início entre as décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos, Inglaterra e países nórdicos (MELLO, 2009). O movimento da “vida
independente”, liderado por Edward Roberts, fundamentava a independência como o
poder de escolha e a possibilidade de decisão da pessoa com deficiência. Em 1970,
o movimento sul-africano consolidou a máxima do ativismo da deficiência: o “nada
sobre nós, sem nós” reunia a independência e participação reivindicadas (LOPES,
2019c). Esses movimentos políticos culminaram também em um movimento teórico
que constituiu o modelo social da deficiência111. A promoção da independência das
pessoas com deficiência, entendida enquanto valor ético central na vida humana,
era a premissa fundamental do movimento reivindicatório, e o principal impeditivo
para sua efetivação eram as barreiras sociais. A partir deste modelo, a deficiência
adquiriu um caráter social e coletivo e tornou-se, desta forma, um debate público,
uma questão de direito, justiça social e políticas de bem estar (DINIZ, 2012).
Atrelada a essa mobilização da independência como valor crucial, a autonomia
também aparece como um reconhecimento pleno da condição de pessoa, tal como
explicita Fietz:

A promoção destes ideais é fruto também de um contexto mais amplo em


que a autonomia, enquanto a capacidade de se autogovernar, fazer as
próprias escolhas e ter domínio de si (DWORKIN, 1988; POLS; ALTHOFF;
BRANSEN, 2017; VON DER WEID, 2019) é tida como um valor absoluto e
constituidor do indivíduo moderno (ROSE, 2007; MARTIN, 2007; RABINOW;
ROSE, 2006). A autonomia estaria, assim, ligada a ideais de racionalidade e
capacidade cognitiva para tomar decisões e gerir sua vida. Igualmente
importante nas sociedades liberais é a promoção e valorização da
independência como o que garante a liberdade e o valor humano
(FERGUSON, 2013) (FIETZ, 2020, p.170).

Com críticas ao ideal de autonomia e independência almejado pelos primeiros


estudiosos da deficiência, as teóricas feministas, nos anos de 1990 e 2000,
sustentavam o argumento de que a aposta única na inclusão através da remoção de

111
Para o modelo social da deficiência, a deficiência consiste em barreiras sociais que impedem a
plena participação, em contraste, a lesão é o aspecto biomédico marcado nos corpos (DINIZ, 2012;
FIETZ, 2020). Este modelo permitiu um afastamento do modelo médico da deficiência, focado nas
concepções biomédicas dos impeditivos do corpo como definidoras da deficiência.
151

barreiras não mudava os pressupostos morais da independência, já que era um


projeto de pessoas não deficientes, especialmente, homens em idade produtiva
(DINIZ, 2003; 2012). A valorização da independência e autonomia, para essas
teóricas, em sua maioria, mulheres com deficiência e cuidadoras, não abarcava a
diversidade de experiências da deficiência, e promoviam um ideal impossível de ser
alcançado por algumas pessoas, ou mesmo, não desejado por algumas. É a partir
dessas teorizações sobre os pressupostos da autonomia e independência que o
cuidado emerge como uma categoria analítica neste contexto de articulação política
e teórica da deficiência.

Fundamentadas na ética do cuidado, algumas teóricas do movimento


feminista da deficiência introduzem a ideia de dependência mútua em diferentes
estágios ao longo da vida, constituindo uma igualdade pela interdependência, e
mobilizando este conceito nas lutas políticas por reconhecimento de direitos e justiça
social (FIETZ, 2020). Desta forma, o conceito de interdependência passou a
descrever as relações nas quais as pessoas estão inseridas e nos modos como
operam em associações com atores diversos, tanto pessoas, quanto estruturas. Os
ideais de autonomia e independência não foram abandonados do movimento da
deficiência, mas passaram a ser tensionados e constituídos também pelas relações
nas quais as pessoas com deficiência estão inseridas e são também, partes ativas
da relação.

Tal como Hughes, McKie, Hopkins e Watson (2019) apontam do embate entre
o movimento feminista e o movimento da deficiência, o cuidado é uma categoria
carregada de tensões e que explicita agendas políticas distintas, ainda que seja
comum a busca por direitos e cidadania, assim como a crítica às posições de
hierarquização e poder. Mais do que enfatizar essa cisão entre diferentes
perspectivas, o cuidado aparece múltiplo nos contextos situados e permite deslocar
pressupostos dados como antagônicos. Para além de uma categoria que corrobora
para corromper processos emancipatórios e de autodeterminação, ou uma
sacralização das práticas de solicitude e amor, o cuidado pode ser entendido como
um processo político, relacional e coletivo. Com base no argumento de Annemarie
Mol (2008a) acerca da multiplicidade de categorias ontológicas, o cuidado pode ser
152

visto na multiplicidade de experiências e práticas performadas. Tal como a autora


argumenta, a multiplicidade não consiste apenas em apontar para inúmeras opções,
uma pluralidade numérica somente, mas diz respeito a uma categoria que é feita e
performada em diferentes versões que coexistem e interagem entre si.

Helena Fietz e Anahí Mello (2018), partindo deste mesmo embasamento


teórico e da relação entre noções de cuidado, autonomia e independência,
demonstram a potencialidade do cuidado enquanto uma categoria ontológica
múltipla, abarcando o cuidado como um trabalho, enquanto forma de garantir o
necessário àqueles que necessitam, mas também, como uma atitude ou virtude do
interesse pelo bem estar do outro e de si, pautado em moralidades. Essa
perspectiva também é representada no contexto etnográfico ao elaborar o cuidado
de mães e pais de pessoas autistas como um trabalho que garante o suporte às
necessidades de seus filhos e filhas, assim como uma virtude ou atitude constituída
em ideias de parentalidade, e mais precisamente, uma parentalidade atípica,
conformada nas relações diante da deficiência e do ativismo.

Ao trazer a narrativa de uma reunião de acolhimento na associação


acompanhada durante esta pesquisa, a multiplicidade do cuidado atrelada a
inúmeras versões que não são independentes, mas coexistem e se conformam nas
conexões que criam, fica evidente a partir dos diálogos estabelecidos entre os
interlocutores. O cuidado aparece enquanto “proteção”, enquanto uma forma de
“controle” dos filhos e das relações estabelecidas por eles: é o cuidado com o
relacionamento dos filhos que causa angústia às mães e pais. A superproteção e o
controle são comumente associados ao viés estigmatizante do cuidado que, além de
infantilizar as pessoas com deficiência, as colocam em uma situação de
dependência em que suas capacidades e motivações não são consideradas. Não
cabe julgar as ações desses familiares como estigmatizantes ou não, uma vez que
estão perpassadas por uma corponormatividade, além de lógicas ideais de sujeito e
parentalidade, que por vezes, são desafiadas nas práticas cotidianas. Cabe, no
entanto, uma reflexão sobre o capacitismo estrutural que informa as relações com as
pessoas com deficiência.
153

O capacitismo se caracteriza pela presunção de inferioridade e incapacidade


de pessoas por motivos de sua deficiência, constituindo uma discriminação, tal qual
o racismo está em relação à raça (MELLO, 2016; FIETZ, 2020). De acordo com
Adriana Dias (2013) o capacitismo está embutido na produção simbólica social,
portanto, também perpassa os pressupostos de parentesco e parentalidade em
relação à deficiência. Ao suporem as necessidades e capacidades de seus filhos e
filhas, ainda que de forma não intencional, as mães e pais conformam uma visão
capacitista de corpos e mentes diversos. Fietz (2020) demonstra, em seu campo de
pesquisa com mães na luta por moradia assistida, como o corpo não-deficiente é o
padrão de normalidade, uma “régua” pela qual as ações e habilidades são medidas.
Portanto, na particularidade do autismo, são esses corpos normativos que se tornam
modelo de comparação para a experiência dos filhos autistas, delimitando
habilidades e condutas que devem ser evitadas, corrigidas, eliminadas, treinadas.
Na especificidade de uma “deficiência invisível”, como já apresentei ao longo desta
dissertação, essa lógica capacitista recai em corpos que estão visivelmente dentro
dos padrões esperados. Em outro viés, o capacitismo que incorre nas experiências
do autismo também tem uma forte tendência à infantilização e sacralização, em
muitas falas de familiares ou mesmo profissionais, a “inocência” do autismo é tida
como característica da deficiência psicossocial. E assim, estabelecem-se
estereótipos como, por exemplo, a referência a autistas como “anjos azuis”. Um forte
ativismo autista têm apresentado críticas quanto a essa lógica capacitista,
principalmente no que concerne às questões de sexualidade e afetividade.

Dessa forma, o capacitismo estrutural, ou seja, a desvalorização da


deficiência internalizada (FIETZ, 2020), também atravessa as experiências das
mães e pais de pessoas autistas. Aqui se trata menos de uma acusação moral
desses familiares e mais uma reflexão no tocante à relação do cuidado e deficiência.
Essas tensões destacam, portanto, como o cuidado é também um espaço de
relações de poder que pode resultar em relações de desigualdade e opressão. E a
imagem da família como espaço de proteção, afeto e generosidade, é também
espaço de invisibilidade de assimetrias e contradições das práticas de cuidado
(ARAUJO, 2018).
154

Sem ignorar as diversas faces da violência enfrentadas pelas pessoas com


deficiência, caracterizadas por relações de abusos e violações, principalmente no
tocante às relações de assistência e suporte – inclusive, institucionais –, esta
dependência enfatizada nas críticas ao cuidado também deve ser considerada como
parte de uma construção social mais ampla a respeito dos indivíduos no sistema
capitalista ocidental. Fietz (2016), inspirada nas discussões de Mol (2008b),
demonstra como a autonomia e a escolha são princípios ocidentais que pressupõem
um sujeito completamente autônomo e capaz, portanto, essa lógica da escolha não
admite a impossibilidade da escolha individual112. Neste ideal de racionalidade,
individualidade e liberdade, as relações e situações onde as escolhas são feitas são
invisibilizadas e, dessa forma, o ideal de escolha é mais um fator disciplinador do
que evidência de liberdade (FIETZ, 2016). Ao contrário, Mol (2008b) sugere a lógica
do cuidado, na qual todas as partes da relação de cuidado são reconhecidas como
partes ativas, negociando e constituindo essas relações. No relato etnográfico, o
cuidado, com a recorrente associação ao controle e à superproteção –
principalmente materna –, passa a ser uma equação entre a busca por autonomia e
independência, concomitante à prontidão no suporte e apoio necessários aos filhos,
através de constantes processos de experimentação (FIETZ e MELLO, 2018).

O cuidado não pode ser tomado como uma solução definitiva e absoluta
para determinada situação, mas sim como um processo contínuo, uma
grande experimentação que se dá de forma atenta e preocupada com as
diferentes necessidades apresentadas naquele espaço e tempo específicos
(FIETZ e MELLO, 2018, p.136).

112
Exemplo desta discussão acerca do autismo, diz respeito à relação das famílias de autistas e o
movimento da neurodiversidade. O movimento pauta a autonomia e independência como
pressupostos essenciais no respeito à neurodiversidade, sendo que, em algumas vertentes do
movimento, qualquer forma de assistência e cuidado que impossibilite a escolha individual, é
repudiada veemente. Em oposição, os familiares apontam como o movimento da neurodiversidade é
majoritariamente articulado por autistas de “alto funcionamento” e criticam a facilidade de pautar este
ideal absoluto de autonomia e independência “sabendo falar aos quinze anos e sem usar fraldas aos
nove” (CAMPOY, 2016, p.10), enfatizando os diferentes graus de suporte necessários às pessoas do
espectro autista. Portanto, coexistem essas críticas a respeito do ideal de autonomia e independência
que não atenda todas as pessoas com deficiência, as quais têm, nas relações de cuidado, um
importante alicerce da cidadania.
155

Para além do tocante à autonomia e independência dos filhos autistas, o


relato emblemático dessas mães e pais, também explicita como o cuidado não está
contido apenas no trabalho pragmático, no suporte e assistência, mas é parte de
valores e atitudes que dizem respeito também ao próprio cuidador. O cuidado
também consiste em uma prática cotidiana que envolve responsabilização e
reciprocidade, e que pode ser tomado como categoria analítica para o entendimento
das experiências e práticas de parentalidade, perpassadas por marcadores sociais,
principalmente, de gênero, raça e classe. Retomando a coletânea de Alber e
Drothbohm (2015), Finamori e Ferreira (2018) descrevem como o cuidado é uma
prática que presume, produz ou confirma laços de parentesco ou relacionalidade,
assim sendo, o cuidado também pode ser uma forma de legitimar laços dentro da
família113.

Em um contexto de parentalidade atípica, nos cuidados diários com seus


filhos e filhas, essas mães e pais correspondem a uma perspectiva idealizada da
família como o local da primazia de cuidados. Essas práticas dentro das trajetórias
familiares confirmam uma moral positivada do cuidado. As ações concretas dos
familiares cuidadores reafirmam o cuidado perpassado pela experiência da
deficiência que é também feito de reciprocidade, na medida que posiciona e
estabelece a posição social dessas mães e pais. O cuidado despendido não é
abstrato, basta alguns minutos de conversa com um familiar, para o quantitativo ser
apresentado: psiquiatra, psicóloga, nutricionista, terapeuta ocupacional,
fisioterapeuta, musicoterapeuta, alimentação balanceada suprindo a seletividade
alimentar, medicação, abafadores de ruídos, reuniões na escola, reuniões na
secretaria de educação, perícia médica, acompanhamento de aulas da faculdade,

113
Outros trabalhos que exploram a discussão do cuidado e família, para além da questão da
deficiência, têm evidenciado esses marcadores sociais. Referência desta análise é a etnografia de
Cláudia Fonseca (1995; 2006) sobre a adoção e “circulação de crianças” no contexto urbano de
baixa-renda no Brasil, que evidencia como as diferentes práticas de cuidado, ancoradas em versões
ideais do “bom” ou “mau” cuidado, conciliam diferentes projetos de família, reafirmando ou
subvertendo os pressupostos de parentalidade. Outros marcadores como gênero, classe e raça,
também são centrais nas discussões de monoparentalidade feminina e as práticas de cuidado que
perpassam essa construção parental (BERQUÓ, 2002; CAVENAGHI e ALVES, 2018). Mesmo os
papéis sociais e políticos da maternidade e da paternidade são balizados por conjecturas do cuidado.
Assim, a conjunção entre as práticas de cuidado e marcadores sociais são relevantes para o
entendimento do parentesco que é reafirmado ou subvertido nas diferentes realidades sociais.
156

socialização, estimulação, mordedores, cobertores de compressão, além de todas


as outras ações que são, presumivelmente, associadas aos cuidados parentais.
Entretanto, na especificidade da parentalidade atípica, essa afirmação dos laços de
parentesco através das práticas de cuidado, se torna emblemática ao resgatar o
histórico do diagnóstico de autismo, em que a família – principalmente a mãe – foi
responsabilizada pela falta de afeto e atenção ao filho ou filha, entendida àquela
época, como causadora do autismo.

Fietz (2020), ao delinear as posições da mãe na relação com os filhos e a


questão de autonomia e independência, demonstra como essas experiências
parentais também são comumente representadas dentro da lógica capacitista:
primeiro, como detentoras do “fardo” da deficiência, com suas vidas marcadas por
uma “tragédia” pessoal; segundo, como “mães especiais” que superam todos os
desafios. Dentro desta lógica, as práticas de cuidado que reafirmam os laços de
parentalidade criam outros limites do ideal em relação à deficiência o qual as mães e
pais devem alcançar, a parentalidade que suporta tudo pelo bem estar dos filhos
com deficiência. Assim, cria-se o imaginário da “mãe guerreira” como aquela que
cuida, faz e consegue tudo pelos filhos, sendo aceitável abdicar de suas próprias
necessidades e trajetórias pessoais. Mas o limite entre a “mãe guerreira” e a “mãe
superprotetora” é frágil, e a essa parentalidade, cabe o constante equilibrismo das
práticas de cuidado frente aos dispositivos morais. No campo etnográfico, não raras
foram as vezes em que a aversão a essa perspectiva foi exaltada, “odeio que me
chamem de guerreira, odeio”, afirmou Rute ao falar de sua experiência materna.

Assim, com base na ideia de interdependência, tal como elaborado pelas


teorias feministas da deficiência, nos discursos e posicionamentos desses familiares,
não se explicitam apenas as relações de cuidado direcionadas às pessoas autistas,
evidencia-se também a posição do cuidador nesta prática cotidiana. Os
compartilhamentos das experiências de cuidado são a manifestação do ato de
cuidar como a realização do self (FIETZ e MELLO, 2018), sendo que este self está
sempre constituído em relações. Neste sentido, ao elaborarem em coletivo como se
dão essas práticas de “proteção” e “controle” dos filhos, é avaliado o que é o “bom” e
“mau” cuidado, e se essas mães e pais têm sido “bons” ou “maus” cuidadores a
157

partir de suas experiências. Mas na multiplicidade do cuidado, feita de um processo


contínuo de interações que visam o bem-estar, “são os diferentes ‘bons’ que
sustentam as relações de cuidado e são as suas diferentes versões que fazem com
que as práticas de cuidado sejam permeadas por tensões e negociações entre
indivíduos” (FIETZ e MELLO, 2018, p.137). Através dos atos e discursos, as tensões
e controvérsias referentes à autonomia, independência e cuidado são explicitadas,
mas mais do que um categoria analítica teorizada, é algo vivenciado no cotidiano
desses sujeitos em sua miríade de expressões.

“Até quando a gente vai ter controle?”, questiona Joaquim. Em diversas


ocasiões, no campo etnográfico, a temporalidade incerta ocupou as falas de mães e
pais de pessoas com deficiência. Os cuidados nas relações de parentesco são
constituídos por marcos temporais que presumem diferentes etapas no curso de
vida, tanto dos pais, quanto dos próprios filhos. Mesmo essa temporalidade que
habita o cotidiano e as dimensões particulares da existência, é balizada por um ideal
de tempo linear, produtivo e capitalista, direcionado a produzir constantemente um
futuro melhor (PUIG DE LA BELLACASA, 2017). Essa temporalidade produtivista
também direciona expectativas em torno do cuidado: pressupõe-se que filhos e
filhas recebam os cuidados na infância, e na velhice dos seus pais, sejam
concessores do cuidado. María Puig de la Bellacasa (2017) demonstra, ao contrário,
que o tempo do cuidado corrompe esse ideal ao produzir a temporalidade através de
diferentes experiências vistas como improdutivas.

Helena Fietz (2020), em seu exímio trabalho sobre práticas de cuidado de


famílias de pessoas com deficiência intelectual, apresenta como as famílias que
vivenciam a deficiência experimentam também uma temporalidade dissidente114.
Como a autora aponta, a deficiência passa a conformar outro tempo nas relações e
relacionamentos entre mães, pais e seus filhos, nas expectativas quanto ao futuro e
no modo como a trajetória pessoal e familiar é narrada diante da deficiência –
principalmente de famílias de pessoas adultas com deficiência, em que o convívio

114
Fietz (2020) apresenta como as famílias de pessoas com deficiência estão inscritas em um crip
time, ou seja, uma temporalidade outra que não a dominante, na qual a experiência com o tempo é
feita comportando as diferenças de corpos e mentes.
158

perdura por mais tempo. Mas, como parte da perspectiva dominante da


temporalidade que visa o porvir, essas famílias acolhem um futuro em que também
estejam garantidos tratamentos, moradia assistida, suporte e assistência, direitos e
políticas públicas. A centralidade da questão apontada por Joaquim está, portanto,
atrelada a dois aspectos: a intergeracionalidade e o curso de vida, e o cuidado
enquanto um produto da temporalidade e do político.

A questão geracional fica evidente na maioria dos relatos de mães e pais


ativistas no movimento do autismo. Ao considerar que a maioria dos interlocutores
nesta pesquisa são mães e pais de pessoas autistas adultas, a temporalidade
aparece menos abstrata e mais urgente. Guita Grin Debert (2000), ao elaborar
criticamente sobre os marcadores de idade e a construção da convicção sobre o
curso de vida, demonstra como as categorias e grupos de idade implicam em
posições sociais dos sujeitos em espaços sociais específicos. Portanto, são
processos biológicos, reais e reconhecidos por sinais externos do corpo que são
também elaborados simbólica e politicamente (MINAYO e COIMBRA JR, 2002).
Entretanto, na experiência com a deficiência, o curso de vida e o envelhecimento
tanto das mães e pais, quanto dos filhos, complexifica as relações e reconfigura
pressupostos do parentesco (FIETZ, 2017). Assim, as expectativas em torno das
demandas do cuidado são afetadas e esses sujeitos, dentro do próprio curso de
vida, passam a compor outras posições sociais, como por exemplo, recorrente
nessas famílias são os irmãos – e principalmente irmãs – que se tornam cuidadores
de seus irmãos com deficiência na ausência dos pais. Mais uma vez, a
temporalidade dissidente se torna central nas trajetórias dessas famílias. Diante do
contexto da pandemia de covid-19, deflagrada em março de 2020, essa
preocupação recorrente dos familiares de autistas ganhou ainda mais ênfase diante
da iminência da contaminação e do medo da morte. As práticas de cuidado, perante
situações críticas como o estado de saúde e a perda de um familiar, passaram a ser
avaliadas nas discussões entre esses coletivos familiares, expondo ainda, diferentes
situações de vulnerabilidade enfrentadas pelas pessoas com deficiência e suas
famílias diante da falta de políticas públicas que abarque suas demandas. A
159

temporalidade dissidente, a temporalidade do cotidiano e a temporalidade da


excepcionalidade se entrelaçaram nas projeções de um futuro.

Ao elaborarem a linha tênue entre oferecer autonomia e independência, e


“tomar conta” das interações, as mães e pais do relato recaem em um discurso do
cuidado que é também político e, à primeira vista, externo à própria relação com os
filhos. Mas essa demanda política é também parte desse arranjo entre as múltiplas
disposições práticas e morais do cuidado e suas relações, assim como a
temporalidade que incide nos contextos da deficiência. E como Fietz e Mello (2018)
já apontaram em outros contextos etnográficos, resgatando as considerações de
Eva Kittay (2010), para as famílias de pessoas com deficiência há ainda uma tarefa
igualmente importante: preparar o mundo para seus filhos.

4.3 A LUTA COMO CUIDADO

Quando eu luto pelos direitos do meu próprio filho, eu luto pelos direitos de
todos os filhos (Fala de Ivana).

Era mais uma reunião de planejamento de ações para o Mês da


Conscientização do Autismo, como acontece todo início de ano. A informação e o
conhecimento eram palavras recorrentes nas falas que enfatizavam a importância
dos eventos propostos por diferentes associações. Algumas mães desabafavam
como “só quem convive com o autismo está na luta” e por esse entrave, para os
integrantes das associações, o objetivo do mês era levar informação ao público
leigo. Ao refletirem sobre a temática escolhida para o evento de conscientização
daquele ano, as mães e pais pautavam como, para além do cuidado familiar, a
sociedade e o Estado também tinham responsabilidade nesta rede de suporte. Os
integrantes começaram então a decidir sobre os locais de realização dos eventos do
mês, e ao falarem sobre os espaços públicos de gestão, enfatizaram como esses
espaços ocupados eram consequência da “ação e cansaço das famílias”. Foram
160

relembradas as várias iniciativas de famílias que desencadearam ações públicas, e


uma das participantes, orgulhosa falou: “Olha o que as famílias estão fazendo!”. Não
apenas pelos próprios familiares, mas também por alguns agentes públicos no
município, a família é vista como uma potência para a efetivação de políticas
públicas.

Maria Luísa ao relatar algumas de suas experiências com as mobilizações


políticas através do movimento familiar, falou como no momento em que os pais têm
o diagnóstico dos filhos, quando encaram as dificuldades enfrentadas e que
enfrentarão no futuro, “a família tem a obrigação de deixar um legado”. Para a mãe,
os familiares têm um significativo papel político de mostrar à sociedade as
experiências reais das pessoas com deficiência. Era unânime a perspectiva de que
as famílias são fundamentais para o reconhecimento da deficiência, a efetivação de
direitos e a constituição de políticas públicas que atendam as demandas dessas
pessoas. Joaquim completou a discussão afirmando que “o maior apoio que essas
pessoas têm durante toda a vida é dentro da família”. A conversa se direcionou para
as responsabilidades que recaem sobre mães e pais diante da deficiência, as quais,
nas palavras dos participantes, se tornavam árduas em decorrência da falta de
políticas públicas e assistência efetiva. “Tem pais e mães que fazem inúmeras
coisas: se tornam terapeutas, psicólogos, fisioterapeutas, pedagogos, sem nem
saber nenhuma dessas funções”, apontou uma das mães presente. Reconhecendo
os privilégios de recursos financeiros que permitiam ter algum acesso a
profissionais, instituições e informações, as mães e pais relatavam exemplos de
famílias em situação de vulnerabilidade que, pela falta de acesso e infraestrutura,
faziam “intervenções com o que tinham em mãos”.

“E nós que temos esse conhecimento, o que podemos fazer? Nós precisamos
olhar para todas as famílias”, ponderou uma mãe ao retomar a questão dos
privilégios. Nesta reunião, ficou clara a percepção dessas mães e pais de que são
as famílias propulsoras na visibilidade do autismo e que garantem o cuidado e
suporte necessário aos autistas. De acordo com esses familiares que refletiam sobre
as próprias práticas de cuidado diante dos vários entraves em relação à gestão
pública, é através da família que se garante a “participação social, visibilidade e
161

dignidade”. Com todos visivelmente emocionados com as discussões estabelecidas


naquela reunião, uma das mães, em tom de brincadeira, encerrou: “essas lutas são
assim, porque a gente acaba envolvendo a razão e o coração”.

Eva Kittay (1999), em seu prodigioso trabalho sobre cuidado e deficiência,


aborda como as questões de dependência sempre estiveram invisibilizadas na arena
pública, no que concerne a gestão de direitos. Para a teoria feminista, a
consequência deste desinteresse é o perpetuamento de situações de
vulnerabilidade. É na dupla posição de filósofa e mãe de uma pessoa com
deficiência que Kittay propõe analisar a dependência como uma condição humana
que é experimentada de diferentes formas ao longo da vida. Entendendo que as
relações de dependência são feitas de reciprocidade, mas sem ignorar que as partes
da relação são desiguais, a autora busca refletir como a reciprocidade pode ser
possível nestes trabalhos de dependência e cuidado. A interdependência passa
então a ser vista como parte da condição humana, e por isso, garantia de
manutenção da vida e dignidade.

Kittay (1999) problematiza os ideais de autonomia e independência como


universais absolutos, considerando que há diferentes configurações desses valores
nas experiências reais dos sujeitos. Portanto, fundamentada na interdependência
das relações humanas, a autora propõe pensar o cuidado enquanto uma questão de
justiça social. Ao discorrer a respeito das teorizações de Kittay, Anahí Mello e
Adriano Nuernberg (2012) demonstram como a ideia de interdependência como
valor humano implica considerar o caráter social do cuidado e, portanto, uma
responsabilidade do Estado. Assim, o cuidado é redesenhado na perspectiva dos
direitos humanos.

Trago o relato da reunião de planejamento para explicitar como essa justiça


social através do cuidado é também reivindicada pelas famílias por meio da
mobilização social no contexto local. Busco evidenciar como a interdependência,
pensada através das éticas e práticas do cuidado, pode ser uma perspectiva
profícua para analisar a deficiência em diferentes situações sociais. Longe de
invalidar as lutas e movimentos das pessoas com deficiência na busca por
162

autonomia, independência e participação, levanto outra perspectiva que


problematiza alguns desses valores, mas que pode também contribuir para a
garantia de bem estar e dignidade à pessoa com deficiência. Há limites em uma
ótica do cuidado, na medida em que há enormes desigualdades que o estruturam
socialmente, mas além de contestar alguns pressupostos reinantes referentes à
noção de pessoa e a ideia de sujeitos de direitos, entendo, tal como aponta Anna
Bárbara Araujo (2018, p.66), que “reconhecer as pluralidades, tensões e
contradições do cuidado” oferecerá um terreno mais firme para a reivindicação de
políticas sociais e direitos humanos.

Segundo as teorias de Kittay (1999), o cuidado é invisibilizado nas agendas


políticas. Entretanto, não se trata aqui de uma ausência do Estado nas questões do
cuidado, o Estado está presente em várias dimensões que perpassam a vida dessas
famílias que convivem com a deficiência. Na verdade, trata-se do modo como o
Estado está presente que, historicamente, é de forma violenta ou negligente. E o
movimento familiar, os coletivos e associações decorrentes, se constituem também
como redes de cuidado, sintomático desta atuação do Estado. Como demonstrei no
capítulo anterior por meio das análises do Fórum TEA, o cuidado é mobilizado como
uma categoria social que revela as relações de interdependência e reciprocidade,
assim como a constituição de expertises e conhecimentos tácitos que configuram
diferentes posições nas alianças empreendidas em torno do reconhecimento do
autismo e, da mesma forma, é parte de um processo diagnóstico nas experiências
com a deficiência em contextos situados.

As associações constantemente reafirmam seu papel de acolhimento e


suporte às famílias, e esse é um dos objetivos que parece pautar a “união” entre
associações tão heterogêneas no contexto local. Ao abordar questões de classe, tal
como apontado por alguns participantes da reunião narrada, esse acolhimento e
suporte passa a ser urgente. Em muitos contextos, principalmente em um país
marcado por profundas desigualdades sociais, situações de vulnerabilidade e
deficiência estão mutuamente associadas. Muitas famílias, sem recursos financeiros
e acesso a infraestruturas institucionais, vivenciam a deficiência de modos muito
distintos do relatado pela maioria das famílias que integram esses coletivos de
163

mobilização social. Tal como Kittay (1999) discorre, apontando para as


desigualdades nas relações de cuidado e deficiência, as famílias brancas, urbanas,
de classe média, com ambos os pais presentes, não estão propensas a lidar com
outras questões que interseccionam as barreiras sociais da deficiência e que
agravam as dificuldades. No contexto brasileiro, por exemplo, essas famílias têm
menores riscos em relação a doenças, não enfrentam a falta de saneamento básico,
educação, saúde e a escassez de recursos financeiros para alimentação, não lidam,
em sua maioria, com responsabilidades da monoparentalidade, não sofrem de
discriminação racial ou perseguição étnica. Ao lutarem por políticas públicas e
direitos à pessoa autista, essas famílias também experimentam uma vivência
específica em relação à efetivação dessas demandas relativas à deficiência115.
Longe de menosprezar o trabalho social que tem sido feito por essas famílias, é
evidente como experiências interseccionais ainda são insuficientes nos movimentos
sociais, mas também no campo teórico da deficiência. Essas tensões nas
mobilizações sociais das associações, entretanto, expõe com muita clareza o que
Kittay aponta em seu trabalho: “infelizmente, quando os recursos são limitados, a
universalidade e igualdade significa apenas que todos são tratados igualmente mal”
(KITTAY, 1999, p.174, tradução minha).

Para além deste acolhimento mais amparado na institucionalidade das


associações, o cuidado também está constituído nas interações pessoais entre seus
integrantes. Em diversos momentos ao longo do campo etnográfico, o envolvimento
entre as mães e pais, principalmente da ASATEA, na qual pude ter maior
proximidade, era pautado pelo cuidado e suporte nas necessidades cotidianas uns
dos outros. Ao relataram as “árduas” responsabilidades, os familiares evidenciam
suas posições enquanto cuidadores que voltam suas atenções para as
necessidades do outro, em diferentes níveis de suporte e com diferentes medidas ao

115
Exemplar desta situação foi a efetivação da emissão da Carteira de Identificação da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista (Ciptea) com vários relatos de famílias com dificuldades para solicitar
o documento e, em certas localidades, a informação sobre a Ciptea não ter sequer chegado à
população. Ainda sobre esta situação, a Ciptea é disponibilizada em via digital com a possibilidade de
impressão pelos próprios solicitantes, entretanto, algumas famílias sem recursos financeiros, não
puderam imprimir o documento ou portar sua versão digital. Dentre as ações almejadas pela CADDA
em um dos eventos do Mês da Conscientização do Autismo, estava a impressão gratuita desses
documentos nas dimensões de um documento oficial de identidade para facilitar o porte e manuseio
da Ciptea.
164

longo do curso de vida. Kittay (1999), Fietz e Mello (2018) apontam como os
cuidadores também podem se tornar vulneráveis à privação econômica, falta de
sono, interrupções de sua própria vida íntima, perda de oportunidades de lazer e
carreira, dentre outras questões que atingem suas condições pessoais para além do
trabalho de cuidado. Os encontros nas casas, as trocas de assuntos íntimos e
pessoais, a preocupação com a saúde de cada um, dentre outras práticas que
visavam o bem estar a partir do compartilhamento dessa posição de cuidador, eram
também fundamento para a constituição do coletivo. São assim elaboradas relações
de reciprocidade entre as mães e pais a partir de seus contextos e trajetórias
particulares. E a rede de acolhimento e assistência estabelecida através da
associação, é permeada por práticas de cuidado destinadas aos filhos e filhas
autistas, mas também aos próprios familiares116.

Essas redes de cuidado também são analisadas por Cláudia Fonseca e


Helena Fietz (2018). Com base em um estudo etnográfico, as autoras discorrem
como o cuidado, de natureza relacional, é constituído por redes que o cortam:
familiares, comunitárias e institucionais. Fonseca e Fietz elaboram como as relações
de cuidado sustentam os direitos das pessoas com deficiência e defendem este
argumento através de narrativas de cenas cotidianas que permitem uma análise das
práticas de cuidado. O contexto social brasileiro apresenta um panorama de
escassez de serviços estatais prestados às famílias cuidadoras de pessoas com
deficiência, e assim, Fonseca e Fietz examinam a criação de redes alternativas de
cuidado que dão suporte e assistência a essas famílias. Da mesma forma, esta
pesquisa etnográfica, busca evidenciar essas redes de cuidado que constituem as
ações em relação às pessoas autistas e suas famílias.

Investigando as trajetórias pessoais e familiares de algumas mulheres,


Fonseca e Fietz (2018) propõem reflexões acerca de uma etnografia do cuidado. A
partir das histórias narradas, as autoras apresentam, por exemplo, os esforços de

116
Algumas associações encontradas no campo etnográfico possuíam ações marcadamente
direcionadas ao “cuidado das famílias”. O repertório do “empoderamento familiar” também estava
presente neste tipo de direcionamento. Exemplar destas ações é o projeto 5 minutos para mim, com
encontros e rodas de conversa destinadas a “cuidar de quem cuida”. Atividades terapêuticas também
eram comumente oferecidas aos familiares em eventos promovidos por associações.
165

uma mãe em fornecer ligações entre sua filha e a comunidade, criando, dessa
forma, possibilidade de autonomia. Mais uma vez, a autonomia enquanto um valor
individualizante é questionada, ao enfatizar as redes constituídas. Fonseca e Fietz
retomam a lógica do cuidado, de Annemarie Mol (2008b) para enfatizar como esta
opera através de coletivos, ou seja, na qual os sujeitos são sempre relacionais. E
nesta lógica, o cuidado não procede através de regras claras e demarcadas, mas é
algo dinâmico, inventado e reinventado nos processos diários, onde práticas são
incorporadas em histórias complexas e ambivalentes (FONSECA e FIETZ, 2018). O
argumento geral das autoras é de que essas redes também são fonte relevante das
práticas de cuidado dispensadas às pessoas com deficiência e que, de diferentes
formas, possibilita agência e autonomia dessas pessoas. Ao elaborarem como as
redes, dentre elas, a família, comunidade e Estado, são constituídas de formas
interligadas e dinâmicas, as autoras apontam:

No caso de adultos com deficiência que, aos olhos da lei, deixa-os


“incapazes de levar uma vida independente”, geralmente são as mães ou
mulheres idosas que realizam as atividades diárias de cuidado,
especialmente em famílias de baixa-renda. A carga relativa e a eficácia
dessas atividades dependem, em grande medida, na convergência de redes
das quais a mulher participa. Os coletivos de cuidado não constituem uma
entidade formal e claramente delimitada; eles são construídos no contato
diário, através do fluxo de informações, da troca de serviços, do
reconhecimento mútuo e dos favores recíprocos (FONSECA e FIETZ, 2018,
p.236, tradução minha).

Fundamental para o entendimento dessas redes de cuidado que se


estabelecem em relação à deficiência e que se tornam presentes no campo
etnográfico local, tanto quanto nos vários trabalhos do tema, é a questão de gênero.

Lidar com a dependência é preocupar-se com nossa juventude, nossa


velhice, os momentos de nossa própria doença e deficiência, e os
momentos em que cuidamos de nossos pais idosos, nossos filhos
pequenos, nossos cônjuges doentes, amigos e amantes. Embora a
dependência seja uma condição a que homens e mulheres são igualmente
vulneráveis, o cuidado de dependentes ocupa principalmente as mulheres e,
para muitas mulheres, ocupa a maior parte de suas vidas. A igualdade tem
servido como base da ordem moral, social e política pela qual as pessoas
166

lutaram e têm lutado ao longo da era moderna. Mas qualquer ideia de


igualdade que está localizada no indivíduo autônomo, livre e autossuficiente,
que só se une a outras situadas de forma semelhante, não reconhece
facilmente a dependência que tanto ocupou a vida das mulheres. Ao não
reconhecer esta dependência, tais concepções de igualdade efetivamente
excluem as mulheres (KITTAY, 1999, p.182, tradução minha).

Às mulheres tem sido dado histórica e socialmente o encargo do cuidado em


relação à dependência, doença e deficiência (HIRATA e GUIMARÃES, 2012),
pautado em um ideal romantizado do cuidado inerente às habilidades do gênero.
Assim como a maioria dos trabalhos que abordam a deficiência, a questão de
gênero é recorrente também nesta pesquisa. São, em sua maioria, mulheres mães
que criam e participam ativamente das associações e coletivos de atuação em
defesa de direitos e reconhecimento do autismo117. Como mostrei ao longo desta
dissertação, o movimento da deficiência no contexto brasileiro, que culminou de
transformações históricas, sociais e políticas advindas da redemocratização do país,
teve uma importante participação de famílias na constituição de redes e associações
prestadoras de suporte e serviços. Ademais, o contexto histórico do movimento
autista também é marcado pela forte presença de mães em diferentes períodos e
contextos. Essas participações estão fundamentadas em produções de expertise e
práticas sociais. Portanto, para além do cuidado, recorrentemente associado à
esfera doméstica e às práticas diárias, essas mães também constituem uma
emblemática mobilização política.

A mobilização da agência materna é parte de uma ampla transformação


social em relação ao ideal de maternidade. A maternidade deixa de ser algo da
dimensão privada e apolítica, para uma questão social e política ao apontar para as
necessidades, práticas e moralidades que permeiam o ideal materno, ora
reafirmando-o, ora subvertendo-o. As teorias feministas também foram fundamentais
no campo de estudo da maternidade, enquadrando diversos debates, como
questões de classe, raça, as práticas da maternidade, parto e nascimento, o ideal de
instinto materno, dentre outras abordagens. Mas essas transformações sociais em

117
Ainda que o recorte analítico desta pesquisa não tenha sido feito em torno da questão de gênero,
tendo, portanto, entre os interlocutores, mães e pais; no campo etnográfico, a maioria substancial era
composta de mães ou mulheres cuidadoras, tanto nos coletivos, quanto nos eventos públicos.
167

torno da maternidade desencadeiam e são desencadeadas pela emergência de


movimentos sociais de mães que têm, como principal característica, o ativismo em
prol de uma relação. No Brasil, os ativismos maternos em relação às vítimas de
violências institucionais (LEITE, 2004; BRITES e FONSECA, 2013) e da violência
política na guerra ao tráfico (VIANNA e FARIAS, 2011) desencadearam trabalhos
referências neste tipo de abordagem da maternidade. Pautas identitárias também
têm sido um tema emergente em relação aos movimentos maternos, tais como a
questão LGBT (NOVAIS, 2018) ou mesmo a questão da deficiência.

Adriana Vianna e Juliana Farias (2011) propõem que as mães, tornadas


protagonistas políticas de algumas mobilizações sociais, apontam para a relação
entre o doméstico e o público, levando a “casa” junto à reivindicação. Assim, essas
mobilizações fazem parte de uma economia simbólica assentada nessas projeções
dos domínios privado e público, da mesma forma, a maternidade, suas práticas e
morais, é ordenadora de legitimidade das experiências as quais se referem. Nessa
construção simbólica e moral, mesmo aqueles outros sujeitos, sejam homens ou
outros familiares que passam a compor os movimentos e mobilizações sociais,
englobam a dimensão simbólica da maternidade. Guardadas as devidas limitações
comparativas entre os campos etnográficos das autoras e esta pesquisa, aqui
também a maternidade é acionada como propulsora e fundamento da luta. E para
além desse tensionamento com as dimensões do doméstico e do público, o
acionamento do cuidado é central para a compreensão dos processos
reivindicatórios empreendidos. Ao elaborarem a demanda por efetivação de políticas
públicas e direitos humanos relativos às pessoas com deficiência, e neste contexto
em específico, das pessoas autistas, estas mães escancaram também a
interdependência: é o cuidado como fundamento, é o ativismo em prol das relações.
Portanto, através dessas lutas, delineia-se uma importante política do cuidado.

Demonstrei como o cuidado, acionado enquanto uma categoria analítica para


a compreensão de um movimento familiar da deficiência é potente para refletir sobre
uma multiplicidade de questões que permeiam tanto valores morais, quanto
pragmáticas do cuidado. Além dessas dimensões, ao tomar a interdependência
como uma questão de justiça social e, portanto, acionada no âmbito dos direitos, o
168

cuidado é também uma importante categoria que permite problematizar e contribuir


para os processos de construção da cidadania. Helena Fietz e Valéria Aydos
refletindo através de diferentes campos etnográficos, a saber, a reivindicação por
moradia assistida às pessoas com deficiência intelectual e a inclusão de autistas no
mercado de trabalho, demonstram como a cidadania não é um fato objetivo que
designa pessoas em arranjos de regras, direitos e deveres; mas abarca um
processo sociocultural de subjetivação perpassado por relações de dependência e o
reconhecimento identitário (FIETZ e AYDOS, 2015; AYDOS, 2017). Neste sentido, a
autonomia e o cuidado são centrais na construção cidadã e, não necessariamente
ideias mutuamente excludentes, assim, a ênfase na interdependência reflete
também na construção da cidadania.

Ao tomar o cuidado como uma questão de justiça social, tal qual Kittay (1999)
propõe, e aqui é apresentado pelos familiares no movimento do autismo, na prática,
trata-se de elaborar políticas públicas e direitos que atendam às pessoas com
deficiência, mas também suas famílias e cuidadores. Mais do que enfatizar uma
disposição moral do cuidado atribuída ao gênero ou ao âmbito doméstico, essas
reivindicações pautam um cuidado que é também responsabilidade social, um
cuidado também direcionado à sociedade e ao Estado. Bem como afirma Joan
Tronto (2007), é necessário que o cuidado passe a ser visto como uma premissa
fundamental e não um “fato lamentável da teoria democrática”. Assim, o cuidado é
acionado como uma das formas de promoção de justiça e de qualidade de vida às
pessoas com deficiência, sem desconsiderar as relações e redes que integram.
Trata-se, dessa forma, de uma desprivatização do cuidado e outra reelaboração
social da deficiência.

Diante de todas essas considerações, tal como Araujo (2018) propõe, cabe
refletir qual projeto político democrático pode ser construído com base na ideia de
interdependência. Cabe entender as possibilidades do cuidado no reconhecimento
da pessoa com deficiência e a constituição de dignidade e cidadania para todas as
partes. Sendo necessário também, conceber projetos democráticos reconhecendo
as desigualdades e limites que estão implicados no cuidado. Não pretendo aqui
fazer uma positivação moral, mas atentar para o caráter produtivo que o cuidado
169

detém nas práticas e contextos sociais, permeado por diferentes


interseccionalidades que escancaram as realidades e experiências diante da
deficiência. Georges (2019) descreve o cuidado como um “quase-conceito” em um
campo de tensões hermenêuticas, mas é possível também pensar o cuidado neste
contexto etnográfico operando como uma categoria de mediação nas articulações
entre família, deficiência, Estado e direitos.

Araujo (2018) afirma como a ética do cuidado oferece uma imagem normativa
e abstrata do cuidado, uma “utopia desencarnada e desincrustrada”. Espero, ao
contrário, ter demonstrado neste trabalho, como o cuidado que permeia este campo
de pesquisa e esta análise etnográfica é feito de éticas, práticas, políticas, redes,
cotidianos, afetos e desafetos. Busquei explorar ao longo desta dissertação, como o
cuidado relacionado às famílias diante da deficiência, tomando-a como categoria
analítica, envolve aspectos emocionais, pragmáticos, materiais, subjetivos, assim
como uma trama de questões históricas, políticas e sociais. Em síntese, o cuidado
também importa na construção do conhecimento (PUIG DE LA BELLACASA, 2017).
170

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Sra. Johnson para diante da minha carteira. Quer uma ajuda para
encontrar um grupo? Eu já tenho um grupo. E quem está no seu grupo? Eu.
E quem mais? Ninguém. Eu sou o meu próprio grupo. Alguém ri. Eu gostaria
que você fizesse parte de um grupo de verdade. Que tal se juntar a Emma e
Briana? Não. Mais crianças riem. A Sra. Johnson franze os olhos e a boca
para eles mas volta para mim. Como disse? Não Obrigada. É mais um
adesivo para a minha cartela de SUA EDUCAÇÃO. Todo mundo está rindo
agora. A Sra. Johnson respira fundo e solta o ar. Eu quero que você faça
parte de um grupo. Fico olhando para as mãos dela. Você entendeu?
Entendi. Entendi o que ela quer mas também sei o que eu quero. Então
quer ir para lá e se juntar a elas? Ela não entende. Abano a cabeça. Não.
Por que não? Suspiro e tento explicar para que ela Capte O Sentido. Eu sei
que é o que a senhora quer mas não é o que eu quero (ERSKINE, 2013,
p.47-48).

Em Passarinha, romance literário de Kathryn Erskine, a autora descreve em


minúcias as percepções de uma garota autista após a morte do irmão mais velho. Já
no início do livro traduzido, uma nota explicita como as descrições e uso de palavras
ao longo do romance são feitas de múltiplos sentidos e que são nos
entrelaçamentos que se tem uma totalidade viva da narrativa. Neste jogo de
palavras, a autora, que é também mãe de uma pessoa autista, demonstra como as
experiências de autistas se situam socialmente, e constrói um cenário poético em
que a diversidade dos sentidos e modos de experienciar o mundo pelo autismo são
revelados. Caitlin, a protagonista do romance, busca durante toda a história “Captar
O Sentido” do que lhe é falado e apresentado, e o que a narrativa releva, é que são
as outras pessoas de sua interlocução que não captam o seu próprio sentido. Quais
os sentidos, então, que podemos apreender sobre o autismo e as experiências
daqueles que o vivenciam? Nesta dissertação, busquei captar alguns dos múltiplos
sentidos em que o autismo é constituído, entendendo que, para além de uma única
perspectiva, é nos entrelaçamentos que as possibilidades de compreensão se
tornam mais profícuas. Minha intenção, portanto, não foi apontar para fórmulas
dogmáticas que encerrem as discussões em torno do autismo e, ainda menos,
cristalizem as histórias e experiências aqui narradas. Mas pretendi oferecer intuições
sobre esta complexa conjuntura que inclui deficiência, família, direitos e cuidados.
171

O autismo tem se constituído, nas últimas décadas, muito além da substância


biomédica que o caracterizava. Para além dos avanços científicos e médicos em
relação ao diagnóstico, diversos movimentos sociais e políticos têm emergido e
advogado uma série de apreensões e agendas políticas heterogêneas sobre a
condição que constitui diferentes status ontológicos, mas também impacta nas
experiências de autistas e suas famílias. São reconhecimentos e representações do
autismo fundamentados em informações com diferentes conteúdos que circulam
globalmente, mas também adquirem aspectos particulares a depender de cada
contexto cultural, social e historicamente situado. Propus inicialmente, nesta
dissertação, apontar para as conexões entre os múltiplos sentidos do autismo,
entendendo a potencialidade de pensar esses diferentes discursos em interação. Ao
acompanhar as trajetórias de mães e pais de pessoas no espectro autista, essas
representações são alocadas no cotidiano de suas experiências. Mas são nesses
modos através dos quais o autismo é habitado e habita a vida das pessoas (AYDOS,
2017) que as categorias que o denomina e o acompanha, são também elaboradas.

Neste sentido, apresento o reconhecimento do autismo no contexto local,


perpassado por transformações sociais e políticas no Brasil, que o delimitam em
uma abordagem mais próxima do movimento da deficiência e da advocacia por
direitos e políticas públicas que busca garantir assistência, acessibilidade, inclusão e
reconhecimento, mas que também corrobora para a construção de um ideal de
cidadania pautado na diversidade. Demonstrei como o campo etnográfico se insere
em um amplo cenário de articulação de familiares, característico do movimento da
deficiência no Brasil, principalmente, no tocante ao suporte e assistência
necessários a esta parcela da população. Desde a redemocratização política, as
famílias têm adquirido um papel central no atendimento de demandas referentes aos
cuidados e à deficiência. E assim, o movimento familiar acompanhado durante a
etnografia, é também parte desse processo democrático e de gestão de direitos no
panorama brasileiro. Não obstante, a politização da família e a consequente
mobilização social, reverbera no entendimento do fazer político, ao romper com as
oposições entre o âmbito público e privado, e da mesma forma, trazendo o individual
e o coletivo, o social e o subjetivo, em uma trama do cuidado.
172

Assim, abordo mais detidamente a atuação de mães e pais, através das


associações, em espaços do poder público e que caracterizam grande parte das
trajetórias das famílias acompanhadas nesta pesquisa. Ao elaborar essas
mobilizações coletivas em espaços participativos, revelo como a relação entre
família, deficiência e Estado está posta nas especificidades deste movimento do
autismo local. Ao trazer as experiências subjetivas, as políticas emocionais e as
trajetórias familiares, as atuações de mães e pais, definidas como um movimento
familiar, evidenciam redes e alianças, constituem uma expertise e autoridade moral
que embasam suas reivindicações, e sustentam, desta forma, uma perspectiva
pautada na interdependência que dá centralidade às práticas e políticas do cuidado.
Neste sentido, portanto, a família também pode ser compreendida como um
poderoso símbolo político (CARSTEN, 2004).

Os movimentos que configuram múltiplas representações do autismo,


também colocam em pauta quem são os atores sociais com legitimidade e
autoridade para falar de uma condição que é habitada, ainda, por estigmas,
preconceitos, violações e capacitismo. Por um lado, as experiências de médicos e
especialistas com o conhecimento técnico, assim como agentes governamentais
fundamentados nas premissas generalistas das leis, e por outro, autistas ativistas
reivindicando a centralidade de suas experiências, e familiares e cuidadores que
demarcam sua posição de expertise e autoridade moral constituídas nas relações
com a condição. Os embates em torno das demandas referentes ao autismo
revelam uma ampla e complexa discussão de aspectos sociais, políticos e culturais
que não se limitam, unicamente, à especificidade do autismo. Trazem, ao contrário,
discussões que corroboram para o entendimento de normativas sociais, tais como a
noção de família ou o ideal de autonomia e independência, no sentido de abarcar
composições outras em relação a essas convicções.

Ao analisar quem são essas pessoas que reivindicam direitos e


reconhecimento em prol de uma relação, aproximo da experiência diante do
diagnóstico, para entender como família e deficiência são mutuamente escritas. Por
meio de uma miríade de relatos, desabafos e fragmentos de histórias que me foram
apresentados ao longo do campo etnográfico, ou mesmo expostos em eventos e
173

livros autobiográficos, constitui-se uma tessitura da experiência familiar diante da


deficiência, e mais especificamente, do autismo. O diagnóstico, caracterizado,
majoritariamente, como um processo perpassado por entraves e percalços, em
decorrência da escassez de recursos e especialização em relação ao autismo no
Brasil, define um acontecimento na vida das famílias e rearranja as estruturas de
parentesco. Assim, pauto a análise desta dissertação na categoria de parentalidade
atípica, buscando evidenciar como as classificações interpelam e reconfiguram vidas
e relações, neste caso, relações e papéis parentais.

Diante disso, exploro como os impactos de classificações e categorias


associadas ao autismo estão também relacionados a um debate mais amplo sobre
uma interpelação particular que constitui específicas subjetividades coletivas
(VALTELLINA, 2019). Para além de entender como as concepções de categorias e
ontologias do autismo repercute na legitimidade social da condição, essas
representações participam da constituição de subjetividades – sendo a subjetividade
“o lugar do processo de dar sentido a nossas relações com o mundo” (BRAH, 2006,
p.371). Ao longo de toda a pesquisa, destaco as vulnerabilidades enfrentadas por
pessoas com deficiência e suas famílias, que influenciam nestas experiências com o
diagnóstico e são acentuadas por questões de raça, classe, gênero e geração. Os
relatos que apontam para as falhas dos direitos e para as vulnerabilidades
estruturais enfrentadas, também evidenciam a cotidianização e subjetivação da ideia
de direitos, caracterizando as atuações empreendidas, mas também refletindo sobre
as transformações profundas dos sujeitos (VIANNA, 2013). É neste sentido que
considero os fragmentos de histórias, compostos de afeto e luta, para apresentar
também as agências e potências dessas experiências.

Carregado de controvérsias frente aos diferentes movimentos da deficiência,


da neurodiversidade ou mesmo nas concepções biomédicas, o cuidado aparece
como uma categoria de mediação ao longo de toda a pesquisa. O cuidado, aqui
tomado como uma potente categoria analítica, emerge nas trajetórias das famílias
diante dos processos de transformação das práticas de cuidado na incorporação da
deficiência, acionado como um valor pragmático e moral. Mas também traça a lógica
das reivindicações familiares ao pleitearem políticas e direitos que atendam as
174

demandas dos autistas, e não menos relevante, as necessidades e direitos das


famílias e cuidadores. Assim, o cuidado aponta para as relações de parentesco,
evidenciando afetos e reciprocidades, mas também tramas entre família e Estado.
Demonstro, portanto, como as trajetórias de mães e pais de pessoas autistas são
marcadas por uma politização que também coaduna com a constituição do papel
parental nas relações de cuidado e que é atravessada pelas expectativas do curso
de vida. Ao elaborarem as práticas de cuidado circunscritas nas temporalidades das
relações, essas famílias se deparam com uma outra disposição, preparar a
sociedade para os filhos (FIETZ e MELLO, 2018).

Entretanto, tomar o cuidado como uma categoria analítica que perpassa todo
o campo etnográfico e que estrutura grande parte dos argumentos apresentados
nesta dissertação, é entendê-lo em sua polissemia, como agregador de reflexões
acerca de suas potencialidades e suas limitações. Ao evocar o cuidado como uma
fração do reconhecimento do autismo, evidencia-se também algumas práticas que
incorporam um viés capacitista, entendendo que o capacitismo estrutura ainda
grande parte das relações com a deficiência. E a família pode também se configurar
como um espaço de invisibilidade de assimetrias e contradições nestas práticas de
cuidado (ARAUJO, 2018). Neste debate, apresento as controvérsias em torno das
noções de independência e autonomia, que repercutem nas experiências das
pessoas autistas através das práticas familiares. Na especificidade do autismo, o
dilema da falta de um biomarcador definido, explicitado em narrativas sobre uma
deficiência invisível pelos interlocutores, conduz a uma perspectiva capacitista
pautada na normalidade do visível. Se os corpos são parte deste ideal de
normalidade, espera-se que os comportamentos, cognições, habilidades e condutas
também estejam localizados nas medidas das expectativas sociais. Mas é contrário
a esses planos e ideais normativos que considero a interpelação cultural do autismo,
tornando múltiplos os modos de ser, estar e experienciar o mundo.

O intuito desta dissertação, portanto, foi apresentar um amplo cenário de


debates sobre o autismo, no qual recortes analíticos podem evidenciar diferentes
dimensões que perpassam o reconhecimento, assim como as experiências na
relação com a condição. Ao delinear o movimento familiar, aponto para a apreensão
175

do autismo no contexto local, buscando admitir os agenciamentos e controvérsias


que envolvem as trajetórias familiares na especificidade do autismo. Argumento que
a família é também central na constituição de políticas públicas, efetivação de
direitos humanos e produção da cidadania relativos às pessoas autistas, mas é
necessário que se considere projetos democráticos que abarquem os variados
aspectos das relações de interdependência. No entanto, reafirmo que esta
dissertação versa sobre alguns dos múltiplos sentidos correlatos ao autismo. Longe
de conseguir abordar todo este cenário, as frestas que aqui permanecem abertas
revelam as possibilidades analíticas neste campo de pesquisa. A necessidade de
uma abordagem dos movimentos de autistas ativistas, considerando suas
interseccionalidades, é algo que aparece cada vez mais urgente para o
entendimento das demandas em relação à diversidade e deficiência que emergem
nas últimas décadas e que elaboram essas próprias categorias. Igualmente,
entender com profundidade o movimento da neurodiversidade no contexto local
pode trazer importantes percepções sobre a articulação de marcadores da diferença.

Por fim, chegar ao ultimato deste outro campo que é a escrita da dissertação
(STRATHERN, 2018), faz permanecer o sentimento melancólico da despedida. A
ânsia pelo muito ainda a ser dito, assim como a angústia do arremate, são resultado
das experiências em relação ao autismo que atingiram este próprio fazer
etnográfico, este próprio corpo-pesquisadora nas tentativas de transformar
movimentos e histórias em palavras. Goldman (2006) aponta para o processo pelo
qual o antropólogo ou antropóloga, em sua etnografia, experimenta um
deslocamento de convenções. Não é tornar-se o outro, mas ser afetado pelas
categorias operantes dos interlocutores, retirando-lhe de um lugar em que se
encontra sem lhe dar outro em troca, é devir. As apreensões sobre a deficiência, e
ainda mais as práticas em que o parir, gerar e cuidar são centrais, atravessam
minhas experiências e se tornam parte do conhecimento que produzo. Sou afetada
pelos tantos entrelaçamentos que constituem esta pesquisa. Até mesmo os toques,
movimentos, sons e silêncios são agora percebidos de outra forma. Resta-me, tentar
Captar Outros Sentidos.
176

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine. Introduction: Emotion, discourse and the politics of everyday
life. Em C. Lutz e L. Abu-Lughod (orgs.), Language and the Politics of Emotion. Cambridge
University Press, 1990.

ALBER, Erdmute; DROTBOHM, Heike. Anthropological perspectives on care: work, kinship and
the life-course. Springer, 2015.

ALMEIDA, Heloisa Buarque. Família e relações de parentesco: contribuições antropológicas.


Educação, cidadania e direitos humanos, p. 224, 2004.

ALVES, Ernane. Colapso Azul: Um olhar particular sobre o Autismo. Belo Horizonte: Páginas
Editora, 2021.

ARAUJO, Anna Bárbara. Da Ética do Cuidado à Interseccionalidade: Caminhos e desafios para a


compreensão do trabalho do cuidado. Mediações, v.23, n.3, p.43-69, 2018.

ASPERGER, Hans. Die "Autistischen psychopathen” im kindesalter. Archiv für psychiatrie und
nervenkrankheiten, 1944.

AYDOS, Valéria. “Não é só cumprir as cotas”: Uma etnografia sobre cidadania, políticas públicas e
autismo no mercado de trabalho. Tese (Doutorado em Antropologia Social), Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2017.

AYDOS, Valéria. A (des)construção social do diagnóstico de autismo no contexto das políticas de


cotas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Anuário Antropológico, n.I, p.93-116,
2019.

AYDOS, Valéria. Agência e subjetivação na gestão de pessoas com deficiência: A inclusão no


mercado de trabalho de um jovem diagnosticado com autismo. Horizontes Antropológicos, Porto
Alegre, ano 22, n.46, p.329-358, 2016.

BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

BARON-COHEN, Simon; KLIN, Ami; SILBERMAN, Steve; BUXBAUM, Joseph. Did Hans Asperger
actively assist the Nazi euthanasia program?. Molecular Autism, n.9(28), 2018.

BERQUÓ, Elza. Perfil demográfico das mulheres chefes no Brasil. Em BRUSCHINI, Cristina;
UNBEHAUM, Sandra G. (orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC,
Ed.34, 2002.

BETTELHEIM, Bruno. Empty fortress. The Free Press, distributed by Simon and Schuster, 1967.

BLOCK, Pamela; CAVALCANTE, F. G. Historical perceptions of autism in Brazil: professional


treatment, family advocacy, and autistic pride, 1943-2010. Disability Histories, p.77-97, 2014.

BORGES, Adriana Araújo Pereira; SCHMIDT, Carlo. Desenho universal para aprendizagem: uma
abordagem para alunos com autismo na sala de aula. Revista Teias, v.22, n.66, p.27-36, 2021.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos pagu, n.26, p.329-376, 2006.

BRITES, Jurema; FONSECA, Cláudia. As metamorfoses de um movimento social: Mães de vítimas


de violência no Brasil. Análise Social, Lisboa, n.209, p.858-877, 2013.
177

BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de
assembleia. Ed. Civilização Brasileira, 2019.

CAMPOY, Leonardo Carbonieri. A dependência ativa da criança autista: sobre cuidados e


singularidades. Anais da 30ª Reunião Brasileira de Antropologia – RBA. De 03 a 06 de agosto de
2016, João Pessoa/PB. ISBN n° 978-85-87942-42-5. Disponível em:
<http://evento.abant.org.br/rba/30rba/?id=8> Acesso em 10/07/2021.

CAMPOY, Leonardo Carbonieri. Aproximando mundos: pensando etnograficamente a aplicação da


antropologia na saúde mental infantil. Teoria e Cultura, v.11, n.3, 2017.

CAMPOY, Leonardo Carbonieri. Autismo em ação: reflexões etnográficas, sem aprovação de comitês
de ética sobre a clínica e o cuidado de crianças autistas. Politica & Trabalho, n.42, 2015.

CAPONI, Sandra. O DSM-V como dispositivo de segurança. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio
de Janeiro, 24(3), p.741-763, 2014.

CARSTEN, Janet. After kinship. Cambridge University Press, 2004.

CARSTEN, Janet. Cultures of relatedness: new approaches to the study of kinship. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.

CARSTEN, Janet. Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness. Blackwell


Publishing, 2007.

CARVALHO, Bianca Retes. Afeto e luta: a mobilização de mães e pais na construção de direitos das
pessoas com autismo. Anais da 32ª Reunião Brasileira de Antropologia - RBA. De 30 de outubro a 6
de novembro de 2020, em formato virtual. ISBN nº 978-65-87289-08-3. Disponível em:
<http://evento.abant.org.br/rba/32RBA/grupos_de_trabalho?id=23966> Acesso em 05/03/2021 (a).

CARVALHO, Bianca Retes. Pensando emoções: reflexões sobre emoções, gênero e movimentos
sociais. Caderno Espaço Feminino, v.33, n.2, p.36-55, 2020 (b).

CASCIO, M. Ariel; ANDRADA, Bárbara Costa; BEZERRA JR, Benilton. Reforma Psiquiátrica e
serviços para o autismo na Itália e no Brasil. Em RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.). Autismo em
tradução: Uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Ed. Papéis Selvagens,
2019.

CAVALCANTE, Fátima Gonçalves. Pessoas muito especiais: a construção social do portador de


deficiência e a reinvenção da família. Tese (Doutorado em Saúde Pública), Fundação Oswaldo Cruz,
2002.

CAVENAGHI, Suzana; ALVES, José Eustáquio Diniz. Mulheres chefes de família no Brasil:
avanços e desafios. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2018.

CHAMAK, Brigitte. Autism and social movements: French parents’ associations and international
autistic individuals’ organizations. Sociology of Health & Illness, vol.30, n.1, p.76-96, 2008.

CLARK, Candace. Simpathy, Microhierarchy and Micropolitics. Em Misery and company: sympathy
in everyday life. Chicago; London: The University of Chicago Press, 1997.

CZECH, Herwig. Hans Asperger, National Socialism, and “race hygiene” in Nazi-era Vienna.
Molecular Autism, n.9(29), 2018.

DAS, Veena. Critical events: an anthropological perspective on contemporary India. Delhi: Oxford
University Press, 1995.

DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of
California Press, 2007.
178

DAS, Veena. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos pagu, n.37, p.9-41,
2011.

DAS, Veena; LEONARD, Lori. Kinship, Memory, and Time in the Lives of HIV/AIDS Patients in a North
American City. Em CARSTEN, Janet. Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness.
Blackwell Publishing, p.194-217, 2007.

DEBERT, Guita Grin. A antropologia e os estudos dos grupos e das categorias de idade. Em LINS DE
BARROS, M. M. (Org.) Velhice ou Terceira Idade? Estudos antropológicos sobre identidade,
memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivitização do


envelhecimento. São Paulo: Ed. Edusp, 1999.

DIAS, Adriana. Por uma genealogia do capacitismo: da eugenia estatal à narrativa capacitista social.
Anais do I Simpósio Internacional de Estudos sobre a Deficiência. SEDPcD/Diversitas/USP Legal,
São Paulo, 2013.

DINIZ, Débora. O Modelo Social da Deficiência: a crítica feminista. Série Anis, 28, Brasília: Letras
Livres, p.1-8, 2003.

DINIZ, Débora. O que é deficiência. Brasiliense, 2012.

DONVAN, John; ZUCKER, Caren. Outra sintonia: a história do autismo. Editora Companhia das
Letras, 2017.

ERSKINE, Kathryn. Passarinha. Rio de Janeiro: Valentina, 2013.

EYAL, Gil; HART, Brendan. How Parents of Autistic Children Became Experts on their Own Children:
Notes towards a Sociology of Expertise. Berkeley Journal of Sociology, 54, p.3-17, Palestra
inaugural para a conferência anual do Berkeley Journal of Sociology, 2010.

FEIN, Elizabeth. Autismo como um modo de engajamento. Em RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.).
Autismo em tradução: Uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Ed. Papéis
Selvagens, 2019.

FELTRAN, Gabriel de Santis. A categoria como intervalo – a diferença entre essência e


desconstrução. Cadernos pagu, n.51, 2017.

FERIANI, Daniela. Pistas de um cotidiano assombrado: a saga do diagnóstico na doença de


Alzheimer. Ponto Urbe, 20, 2017.

FIETZ, Helena. Construindo Futuros, Provocando o Presente: Cuidado familiar, moradias assistidas e
temporalidades na gestão cotidiana da deficiência intelectual no Brasil. Tese de Doutorado
(Antropologia Social). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2020.

FIETZ, Helena. Deficiência e práticas de cuidado: uma etnografia sobre “problemas de cabeça” em
um bairro popular. Dissertação (Antropologia Social). Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2016.

FIETZ, Helena. Habitando Incertezas: reflexões sobre deficiência e práticas de cuidado na luta por
moradias assistidas. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v.23, n.3, p.103-131, 2018.

FIETZ, Helena. Reflexões sobre família e deficiência a partir da reivindicação por moradia assistida
para jovens e adultos com deficiência intelectual. Universidade de São Paulo, V ENADIR, GT.12
Antropologia, Famílias e (I)legalidade, 2017.

FIETZ, Helena; AYDOS, Valeria. Por uma vida assistida: reflexões sobre cuidado, autonomia e
cidadania. Em REA ABANNE 2015. Direitos diferenciados, conflitos e produção de conhecimentos.
Maceió, 2015.
179

FIETZ, Helena; MELLO, Anahí Guedes de. A Multiplicidade do Cuidado na Experiência da


Deficiência. Revista AntHropológicas, v.29, n.2, 2018.

FINAMORI, Sabrina; CARVALHO, Bianca Retes. Maternidades, cuidados e cuidadoras: a


desprivatização do cuidado. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS. De 01 a 11 de dezembro de
2020, em formato virtual. ISSN 2177-3092. Disponível em: <https://www.anpocs.com/index.php/encon
tros/papers/44-encontro-anual-da-anpocs/gt-32/gt30-15> Acesso em 05/03/2021.

FINAMORI, Sabrina; FERREIRA, Flávio. Gênero, Cuidado e Famílias: Tramas e Interseções.


Mediações, v.23, n.3, p.11-42, 2018.

FONSECA, Claudia. Apresentação. De família, reprodução e parentesco: algumas


considerações. cadernos pagu, n.29, p.9-35, 2007.

FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. Editora Cortez, 1995.

FONSECA, Claudia. Da circulação de crianças à adoção internacional: questões de pertencimento e


posse. cadernos pagu, p.11-43, 2006.

FONSECA, Claudia. De afinidades e coalizões: uma reflexão sobre a transpolinização entre gênero e
parentesco em décadas recentes da antropologia. Ilha Revista de Antropologia, v.5, n.2, p.5-32,
2003.

FONSECA, Claudia. Família e parentesco na antropologia brasileira contemporânea. Em MARTINS,


Carlos Benedito (coord.); DUARTE, Luiz Fernando Dias (org.). Horizontes das Ciências Sociais:
Antropologia. São Paulo: ANPOCS, p.123-154, 2010.

FONSECA, Claudia. Quando cada caso não é um caso. Revista Brasileira de Educação, v.10, n.1,
p.58-78, 1999.

FONSECA, Claudia; FIETZ, Helena. Collectives of care in the relations surrounding people with ‘head
troubles’: family, community and gender in a working-class neighbourhood of southern Brazil.
Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v.08.01, p.223-243, 2018.

FONTOURA, Deise da Silva. Mães azuis: trajetórias de mães de autistas de Porto Alegre.
Monografia. (Bacharelado em Ciências Sociais). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015.

GEORGES, Isabel. O “cuidado” como “quase-conceito”: por que está pegando. Notas sobre a
resiliência de uma categoria emergente. Em Desafios do cuidado: gênero, velhice e deficiência.
Campinas, SP: UNICAMP/IFCH, 2ª Edição, 2019.

GINSBURG, Faye; RAPP, Rayna. Disability Worlds. Annual Review of Anthropology, 42, p.4.1-4.16,
2013.

GOHN, Maria da Glória. 500 anos de lutas sociais no Brasil: movimentos sociais, ONGs e terceiro
setor. Mediações-Revista de Ciências Sociais, v.5, n.1, p.11-40, 2000.

GOHN, Maria da Glória. Sociedade Civil no Brasil: movimentos sociais e ONGs. Meta: Avaliação, Rio
de Janeiro, v.5, n.14, p.238-253, 2013.

GOLDMAN, Marcio. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2006.

GOLDMAN, Marcio. Políticas e subjetividades nos “novos movimentos culturais”. Ilha Revista de
Antropologia, v.9, p.8-22, 2007.

GOMES, Carla de Castro. Corpo e emoção no protesto feminista: a Marcha das Vadias do Rio de
Janeiro. Sexualidad, Salud y Sociedad, n.25, Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, 2017.
180

GOMES, Catiane Ferreira (org.) Unidas pelo Autismo. Histórias de 10 mães contadas após o
diagnóstico de autismo de seus filhos. Litteris Editora, 2020.

GRANDIN, Temple; PANEK, Richard. O cérebro autista. Editora Record, Rio de Janeiro, 2015.

GRINKER, Roy Richard. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. São Paulo: Larousse do Brasil,
2010.

GUIMARÃES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena Sumiko; SUGITA, Kurumi. Cuidado e cuidadoras: o
trabalho de care no Brasil, França e Japão. Sociologia & Antropologia, v.1, n.1, p.151-180, 2011.

HACKING, Ian. Autistic autobiography. Philosophical Transactions of the Royal Society B, v. 364,
p.1467-1473, 2009.

HACKING, Ian. Lost in the forest. London Review of Books, v.35, n.15, p.7-9, 2013. Disponível em:
<https://www.lrb.co.uk/the-paper/v35/n15/ian-hacking/lost-in-the-forest> Acesso em 10/07/2021.

HACKING, Ian. Making up people: clinical classifications. London Review of Books, n.16, v.28,
2006. Disponível em: <https://www.lrb.co.uk/the-paper/v28/n16/ian-hacking/making-up-people>
Acesso em 10/07/2021.

HART, Brendan. Autism parents & neurodiversity: Radical translation, joint embodiment and the
prosthetic environment. BioSocieties, v.9, p.284-303, 2014.

HIRATA, Helena; GUIMARÃES, Nadya Araújo. Cuidado e cuidadoras: As várias faces do trabalho
do care. São Paulo: Editora Atlas, 2012.

HOCHSCHILD, Arlie Russel. Trabalho Emocional, regras de sentimento e estrutura social. Em


COELHO, Maria Cláudia (org). Estudos Sobre Interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2013.

HUGHES, Bill; MCKIE, Linda; HOPKINS, Debra; WATSON, Nick. Trabalhos de amor perdidos?
Feminismo, Movimento de Pessoas com Deficiência e Éticas do Cuidado. Em DEBERT, Guita Grin;
PULHEZ, Mariana Marques (ed.). Desafios do Cuidado: gênero, velhice e deficiência. Campinas,
SP: Unicamp/IFCH, 2019.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.37, p.25-44, jan/jun, 2012.

KANNER, Leo. Autistic disturbances of affective contact. Nervous Child, n.2, p.217-250, 1943.

KITTAY, Eva Feder. Love’s labor: essays on women, equality and dependency. New York: Routledge,
1999.

KITTAY, Eva Feder. The personal is philosophical is political: A philosopher and mother of a cognitively
disabled person sends notes from the battlefield. Em KITTAY, E.; CARLSON, L. (eds.). Cognitive
Disability and its Challenge to Moral Philosophy. Wiley-Blackwell, 2010.

KLIN, Ami. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Revista Brasileira de Psiquiatria,
v.28, p.s3-s11, 2006.

LEANDRO, José Augusto; LOPES, Bruna Alves. Cartas de mães e pais de autistas ao Jornal do
Brasil na década de 1980. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v.22, p.153-163, 2018.

LEITE, Márcia Pereira. As mães em movimento. Em BIRMAN, Patrícia & LEITE, Márcia (orgs). Um
Mural para a Dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora UFRGS,
2004.

LIMA, Luiza Ferreira. Julgando identidades, prescrevendo diagnósticos: o lugar dos saberes médicos
e científicos nas decisões judiciais. Em SAGGESE, Gustavo [et al] (org.). Marcadores sociais da
181

diferença: gênero, sexualidade, raça e classe em perspectiva antropológica. Editora Terceiro Nome,
Editora Gramma, 2018.

LIMA, Rossano Cabral; FELDMAN, Clara; EVANS, Cassandra; BLOCK, Pamela. Defesa de direitos e
políticas para o autismo no Brasil e nos EUA. Em RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.). Autismo em
tradução: Uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Ed. Papéis Selvagens,
2019.

LOPES, Bruna Alves. Não existe mãe-geladeira: Uma análise feminista da construção do ativismo de
mães de autistas no Brasil (1940-2019). Tese (Doutorado em Ciências Sociais Aplicadas).
Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2019 (a).

LOPES, Pedro. Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tornar. Anuário
Antropológico, v.44, n.1, p.67-91, 2019 (b).

LOPES, Pedro. Deficiência como categoria do Sul Global: primeiras aproximações com a África do
Sul. Revista Estudos Feministas, 27(3), 2019 (c).

LOPES, Pedro. Negociando Deficiências: identidades e subjetividades entre pessoas com “deficiência
intelectual”. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade de São Paulo, 2014.

LÓPEZ, Rosa Maria Monteiro; SARTI, Cynthia. Eles vão ficando mais próximos do normal.
Considerações sobre normalização na assistência ao autismo infantil. Ideias, n.6, p.77-98, 2013.

MAENNER, Matthew J. [et al]. Prevalence of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8
Years — Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2016.
Surveillance Summaries, 69(4), p.1-12, 2020. Disponível em:
<https://www.cdc.gov/mmwr/volumes/69/ss/ss6904a1.htm?s_cid=ss6904a1_w>. Acesso em
10/07/2021.

MARCUS, George E. Ethnography in/of the world system: The emergence of multi-sited
ethnography. Annual review of anthropology, v.24, n.1, p.95-117, 1995.

MARTIN, Emily. Bipolar Expeditions: Mania and Depression in American Culture. Princeton
University Press, 2007.

MAUSS, Marcel. A expressão obrigatória dos sentimentos. Em FIGUEIRA, S. (org.). Psicanálise e


ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, p.56-63, 1980.

MELLO, Anahí Guedes de. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a


preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Ciência e Saúde
Coletiva. v.1(10), 2016.

MELLO, Anahí Guedes de. Gênero, deficiência, cuidado e capacitismo: uma análise antropológica de
experiências, narrativas e observações sobre violências contra mulheres com deficiência. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social). Universidade Federal de Santa Catarina, 2014.

MELLO, Anahí Guedes de. Por uma abordagem antropológica da deficiência: pessoa, corpo e
subjetividade. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais). Universidade
Federal de Santa Catarina, 2009.

MELLO, Anahí Guedes de; NUERNBERG, Adriano Henrique. Gênero e deficiência: interseções e
perspectivas. Revista Estudos Feministas, 20(3), p.635-655, 2012.

MELLO, Anahí Guedes de; NUERNBERG, Adriano Henrique; BLOCK, Pamela. Estudos sobre
deficiência no Brasil: passado, presente e futuro. II Simpósio Internacional de Estudos sobre a
Deficiência, São Paulo, 2013.

MEYER, Dagmar E. Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um


argumento. Revista gênero, v.6, n.1, p.81-104, 2005.
182

MINAYO, Maria Cecília de Souza; COIMBRA JR, Carlos. Antropologia, saúde e envelhecimento.
Editora Fiocruz, 2002.

MOL, Annemarie. Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas. Em NUNES, João Arriscado;
ROQUE, Ricardo (org.) Objectos impuros: Experiências em estudos sociais da ciência. Porto:
Edições Afrontamento, 2008(a).

MOL, Annemarie. The logic of care: health and the problem of patient choice. New York: Routledge,
2008(b).

MOUTINHO, Laura. Diferenças e desigualdades negociadas: raça, sexualidade e gênero em


produções acadêmicas recentes. Cardernos pagu, n.42, 2014.

NOVAIS, Kaito Campos. Gestos de Amor, Gestações de Lutas: Uma etnografia desenhada sobre o
movimento “Mães pela Diversidade”. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). Universidade
Federal de Goiás, 2018.

NUNES, Fernanda. Atuação política de grupos de pais de autistas no Rio de Janeiro: perspectivas
para o campo da saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, 2014.

OLIVEIRA, Graziella Lage; CAIAFFA, Waleska Teixeira; CHERCHIGLIA, Mariangela Leal. Saúde
mental e a continuidade do cuidado em centros de saúde de Belo Horizonte, MG. Revista Saúde
Pública, 42(4), p.707-716, 2008.

ORTEGA, Francisco [et al]. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual
brasileira. Interface – Comunicação, Saúde, Educação. v.17, n.44, p.119-132, 2013.

ORTEGA, Francisco. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência & Saúde Coletiva, v.14,
p.67-77, 2009.

ORTEGA, Francisco. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Mana, v.14, n.2,


p.477-509, 2008.

ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela; RIOS, Clarice. The biopolitics of autism in Brazil.
Re-thinking autism: diagnosis, identity and equality, p.67-89, 2016.

PEREIRA, Éverton Luís et al. Invisibilidade sistemática: pessoas com deficiência e Covid-19 no Brasil.
Interface, n.25 (Supl.1), 2021.

PETINELLI, Viviane; LINS, Isabella; FARIA, Cláudia. Conferências de Políticas Públicas: um Sistema
Integrado de Participação e Deliberação? IV Congresso Latino Americano de Opinião Pública da
WAPOR. Realizado entre 04 e 06 de maio de 2011, Belo Horizonte.

PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes


brasileiras. Sociedade e cultura, v. 11, n. 2, 2008.

PUIG DE LA BELLACASA, María. Matters of Care: Speculative Ethics in More Than Human Worlds.
University of Minnesota Press, 2017.

RAPP, Rayna; GINSBURG, Faye D. Enabling disability: Rewriting kinship, reimagining


citizenship. Public Culture, v.13, n.3, p.533-556, 2001.

REZENDE, Claudia Barcellos; COELHO, Maria Claudia. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2010.

RIOS, Clarice. “Nada sobre nós sem nós”? O corpo na construção do autista como sujeito social e
político. Sexualidad, Salud y Sociedad. Revista Latinoamericana. n.25, p.212-230, 2017.
183

RIOS, Clarice. Expert em seu próprio filho, expert em seu próprio mundo - Reinventando a(s)
expertise(s) sobre o autismo. Em RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.). Autismo em tradução: Uma
conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Ed. Papéis Selvagens, 2019.

RIOS, Clarice; CAMARGO JÚNIOR, Kenneth Rochel. Especialismo, especificidade e identidade – as


controvérsias em torno do autismo no SUS. Ciência & Saúde Coletiva, 24(3), 2019.

RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.). Autismo em tradução: Uma conversa intercultural sobre
condições do espectro autista. Ed. Papéis Selvagens, 2019.

RIOS, Clarice; ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela, NASCIMENTO, Leonardo Fernandes.


Da invisibilidade à epidemia: a construção narrativa do autismo na mídia impressa
brasileira. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v.19, p.325-336, 2015.

RIOS, Clarice; PEREIRA, Éverton Luís; MEINERZ, Nádia. Apresentação: Perspectivas antropológicas
sobre deficiência no Brasil. Anuário Antropológico, v.44, n.1, p.29-42, 2019.

ROSENBERG, Charles E. The tyrannt of diagnosis: specific entities and individual experience. The
Milkbank Quarterly, n.80, v.2, p. 237-260, 2002.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão - Parte 1. Revista
Nacional de Reabilitação, ano X, n. 57, p. 8-16, 2007 (a).

SASSAKI, Romeu Kazumi. Nada sobre nós, sem nós: Da integração à inclusão - Parte 2. Revista
Nacional de Reabilitação, ano X, n. 58, p.20-30, 2007 (b).

SCHNEIDER, David. A Critique of the Study of Kinship. University of Michigan Press, 1984.

SCHUCH, Patrice. A “Judicialização do Amor”: sentidos e paradoxos de uma Justiça “engajada”.


Campos-Revista de Antropologia, v.9, n.1, 2008.

SCHUCH, Patrice. Como a família funciona em políticas de intervenção social? Civitas - Revista de
Ciências Sociais, v.13, n.2, p.309-325, 2013.

SCHUCH, Patrice; SARETTA, Mário. Deficiências, Coronavírus e Políticas de Vida e Morte. ANPOCS,
Boletim Especial n. 35, 07/05/2020.

SHEFFER, Edith. Asperger's children: The origins of autism in Nazi Vienna. WW Norton &
Company, 2018.

SINGER, Judy. Why can’t you be normal for once in your life? From a “problem with no name” to the
emergence of a new category of difference. Disability discourse, p.59-70, 1999.

SOARES, Alessandra Miranda Mendes; CARVALHO, Maria Eulina Pessoa. Ser mãe de pessoa com
deficiência: do isolamento à participação social. Seminário Internacional Fazendo Gênero, v. 11.
Florianópolis, 2017.

STRATHERN, Marilyn. After nature: English kinship in the late twentieth century. Cambridge
University Press, 1992.

STRATHERN, Marilyn. O efeito etnográfico e outros ensaios. Ubu Editora, 2018.

THORNE, B. Feminism and the family: two decades of thought. In: THORNE, B. e YALOM, M. (org.).
Rethinking the family: Some feminist questions. Boston, Northeastern University Press, 1992.

TORNQUIST, Carmen Susana. Vicissitudes da subjetividade. Em BONETTI, Aline; FLEISCHER,


Soraya (org). Entre Saias Justas e Jogos de Cintura. Santa Cruz do Sul: Editora EDUNISC, 2007.
Cadernos do LEPAARQ (UFPEL), v.4, n.7/8, p.195-200, 2007.
184

TRONTO, Joan. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado, v.22,


n.2, p.285-308, 2007.

VALTELLINA, Enrico. S.A: classificação, interpelação. Em RIOS, Clarice; FEIN, Elizabeth (ed.).
Autismo em tradução: Uma conversa intercultural sobre condições do espectro autista. Ed. Papéis
Selvagens, 2019.

VIANNA, Adriana. Introdução: fazendo e desfazendo inquietudes no mundo dos direitos. Em VIANNA,
Adriana (org). O Fazer e Desfazer dos Direitos: experiências etnográficas sobre política,
administração e moralidades. Rio de Janeiro: Editora E-Papers, 2013.

VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência
institucional. Cadernos pagu, n.37, p.79-116, 2011.

ZELDOVICH, Lina. How History Forgot the Woman Who Defined Autism. Scientific American, 2018.
Disponível em: <https://www.scientificamerican.com/article/how-history-forgot-the-woman-who-defined
-autism/>. Acesso em 10/07/2021.

DOCUMENTOS MÉDICOS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders,


Fifth Edition. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. International Statistical Classification of Diseases and Related


Health Problems (11). Disponível em: <https://icd.who.int/browse11/l-m/en> Acesso em 28/06/2021.

NOTÍCIAS E SITES

ALVIM, Mariana. Diagnóstico de autismo: a alteração cerebral que pode ajudar a detectar o
transtorno. BBC News Brasil. 6 de dezembro de 2021. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/geral-59529950> . Acesso em 28/01/2022.

AUTISM SPEAKS. What is Autism? There is no one type of autism, but many. Autism Speaks.
Disponível em: <https://www.autismspeaks.org/what-autism> Acesso em 10/07/2021.

AUTISM SPECTRUM DISORDERS IN GLOBAL, LOCAL AND PERSONAL PERSPECTIVE: A


CROSS-CULTURAL WORKSHOP. Workshop. Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, 2015. Disponível em: <https://vimeo.com/showcase/3897481>. Acesso em
20/05/2021.

BARROS, Alerrandre. Editoria IBGE. “Estamos preparados para realizar o Censo neste ano”, diz
presidente do IBGE, sem descartar 2022. Agência IBGE Notícias. 30 de abril de 2021. Disponível
em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/30602-e
stamos-preparados-para-realizar-o-censo-neste-ano-diz-presidente-do-ibge-sem-descartar-2022>.
Acesso em 10/07/2021.
185

CAETANO, Luciana Viegas. Luciana Viegas: sobre racismo e capacitismo. Autismo e Realidade. 20
de novembro de 2020. Disponível em: <https://autismoerealidade.org.br/2020/11/20/luciana-viegas-so
bre-racismo-e-capacitismo/> Acesso em 10/07/2021.

DIAS, Leo. Mães de crianças com autismo se revoltam com humorista Léo Lins. Entenda.
Metrópoles. 25 de setembro de 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/leo-dias/
maes-de-criancas-com-autismo-se-revoltam-com-humorista-leo-lins-entenda> Acesso em 10/07/2021.

DOURADO, Camilla. Prefeito diz ter sido mal interpretado ao comparar Bolsonaro a ‘autista’. Estado
de Minas. 05 de fevereiro de 2021. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/
02/05/interna_politica,1235551/prefeito-diz-ter-sido-mal-interpretado-ao-comparar-bolsonaro-a-autista.
shtml> Acesso em 10/07/2021.

GAIATO, Mayra (canal). Autismo - Terapia com os pais Parte 1/2. Youtube, 2019. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=2quH3Lf_UhI&feature=youtu.be>. Acesso em março de 2021.

IDOETA, Paulo Adamo. O que dizia a polêmica proposta sobre Unidades Básicas de Saúde, que
acabou 186revogada por Bolsonaro. BBC News Brasil. 28 de outubro de 2020. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54727328> Acesso em 17/09/2021.

PINHO, Angela. Espelho e alarme musical: como uma escola comum inclui alunos com deficiência.
Folha de São Paulo. 29 de agosto de 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao
/2021/08/espelho-e-alarme-musical-como-uma-escola-comum-inclui-alunos-com-deficiencia.shtml?pw
gt=khm2t3sgi4d7mfwmcwz6j1ds5b5vyz0fwni246wij7ts56v6&utm_source=whatsapp&utm_medium=so
cial&utm_campaign=compwagift> Acesso em 29/08/2021.

STEVANIM, Luiz Felipe. Capa: SUS 30 anos. Revista Radis, n.219, p.12-21, 2020. Disponível em:
<https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/todas-as-edicoes/219> Acesso em 07/2021.

LEIS E DECRETOS

BELO HORIZONTE. Decreto Municipal nº 15.519, de 1 de abril de 2014. Regulamenta a Lei nº


10.418/2012, que dispõe sobre o reconhecimento da pessoa com autismo, para fim da plena fruição
dos direitos previstos pela legislação do município.

BELO HORIZONTE. Lei Municipal nº 10.418, de 09 de março de 2012. Dispõe sobre o


reconhecimento da pessoa com autismo como pessoa com deficiência para fim da plena fruição dos
direitos previstos pela legislação do município.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (Constituição Federal). Publicada em 5 de


outubro de 1988.

BRASIL. Decreto Legislativo nº 186, de 2008. Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março
de 2007.

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os


Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30
de março de 2007.

BRASIL. Decreto nº 10.530, de 26 de outubro de 2020. Dispõe sobre a qualificação da política de


fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos
186

da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a


iniciativa privada.

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.

BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos
Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3o do art. 98 da Lei n. 8.112, de
11 de dezembro de 1990.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).

BRASIL. Lei nº 13.861, de 18 de julho de 2019. Altera a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, para
incluir as especificidades inerentes ao transtorno do espectro autista nos censos demográficos.

BRASIL. Lei nº 13.977, de 8 de janeiro de 2020. Altera a Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012
(Lei Berenice Piana), e a Lei nº 9.265, de 12 de fevereiro de 1996, para instituir a Carteira de
Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), e dá outras providências.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção Internacional sobre os Direitos da


Pessoa com Deficiência. Aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de
2006.
187

APÊNDICES

APÊNDICE A – Datas simbólicas relacionadas ao autismo

DATA SIGNIFICADO

18 de fevereiro Dia Internacional da Síndrome de Asperger

Abril Mês de Conscientização sobre o TEA

Dia Mundial de Conscientização do Autismo


02 de abril
(instituído pela ONU, em 2007)

Dia do Orgulho Autista


18 de junho
(promovido pela Aspies for Freedom, em 2005)

Dia Internacional da Pessoa com Deficiência


03 de dezembro
(instituído pela ONU em 1992)

27 de dezembro Data da publicação da Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764)

APÊNDICE B – Histórico do autismo no DSM

DATA DE PUBLICAÇÃO NOME DEFINIÇÃO DO AUTISMO

O comportamento autista está presente nos


1952 DSM I
critérios diagnósticos de esquizofrenia.

O comportamento autista está presente nos


1968 DSM II
critérios diagnósticos de esquizofrenia.

Define o autismo infantil ou Síndrome de Kanner


1980 DSM III em uma categoria mais ampla dos Transtornos
Globais de Desenvolvimento (TGD)

Define o transtorno autista, incluindo mais critérios


DSM III-R diagnósticos. Também inclui o Transtorno Global
1987
(revisado) de Desenvolvimento Sem Outra Especificação
(TGD-SOE), no caso de sintomas mais brandos.

1994 DSM IV Inclui a Síndrome de Asperger.

Aparece alternativamente Transtorno do Espectro


2000 DSM IV-TR Autista e a Síndrome de Asperger passa a ser
considerada dentro do transtorno autista.

Define o Transtorno do Espectro do Autismo e


2013 DSM 5* engloba outros transtornos em um único
diagnóstico.
* A mudança para números arábicos é feita para facilitar atualizações. O DSM 5 também já possui
revisão prevista para ser lançada pela AAP em março de 2022.
Referência: Grandin e Panek, 2015.

Você também pode gostar