Tese Thais Mantovaneli

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Universidade Federal de São Carlos

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Thais Mantovanelli

Os Xikrin do Bacajá e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte:


uma crítica indígena à política dos brancos

São Carlos
2016
1
Universidade Federal de São Carlos
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Os Xikrin do Bacajá e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte: uma


crítica indígena à política dos brancos

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do
Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal de São Carlos,
para obtenção do título de Doutora em
Antropologia Social.

Orientadora: Prof.ª Dra. Clarice Cohn

São Carlos
2016

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A Ngrenhkaró Xikrin (in memorian) e Maria Anísia Campanha da Silva,
minhas avós e a José Antonio, meu pai (in memorian).

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Agradecimentos

Relações de afeto precisam ser lembradas para permanecerem ativas, disseram-


me os homens e mulheres Xikrin sobre os seus modos de fortalecimento constante das
conexões com parentes e amigos. Mas a lembrança em si só não é suficiente para que
esses laços perdurem, ensinaram-me. As pessoas merecem saber que são lembradas.
Difícil essa tarefa em fazer jus a todos e todas que dedicaram a mim sua confiança e
amizade. O percurso de minha formação como antropóloga está repleto dessas gentes
que de maneiras singulares foram fundamentais em minha trajetória. Esforço-me aqui a
dedicar a elas minha lembrança, meu carinho e meus agradecimentos, embora nunca
suficientes se comparados com suas reverberações em minha vida.
Agradeço a José Antonio da Silva, um pai poeta que se imaginava um
cangaceiro, e a quem dedico esta tese. A ele por sempre se dispor em me fazer ver a
beleza mesmo nas situações mais difíceis e injustas da vida. Seu modo jocoso de
encarar as mais diversas intempéries foi responsável por me fazer sempre acreditar que
era possível. Sem você, pai, nada disso teria acontecido. À Vó Maria, uma sertaneja
responsável pela criação de seus filhos e de seus netos e netas. Foi com ela que aprendi
à beira do fogão lições valiosas sobre generosidade. Mulher que mal aprendeu a ler e
que garantiu os estudos dos seus. À minha mãe Duda, toda minha admiração à sua garra
de todos os dias, foi à sua força e persistência de guerreira que recorri tantas vezes
quando achei que seria impossível. Obrigada por nunca duvidar de minhas escolhas. À
minha irmã, Ingrid que desde tão menina teve de lidar com um mundo muito mais
difícil do que ela merecia e que ainda sim esteve ao meu lado, mesmo quando eu é que
deveria estar em seu suporte. À Fellippe Assur por ser o responsável de meus esforços
em querer ser sempre uma pessoa melhor, por me fazer querer ser a melhor tia desse
mundo. Á Fábio Mantovanelli, com quem tive o prazer de estabelecer uma relação de
vertigem com o mundo que eu tanto admiro e preservo. Vocês estarão sempre comigo,
onde quer que seja.
Registro meus mais devotos agradecimentos ao povo Xikrin da Terra Indígena
Trincehira-Bacajá, por me receber em suas casas, em sua rotina diária e por me ensinar
tanto sobre o mundo dos brancos e sobre mim mesma. As pessoas Mẽbengôkre-Xikrin
são responsáveis por dar sentido à minha dedicação à antropologia. Os modos como me
receberam e trataram, tornando-me avó, neta, filha e amiga formal são a mais valiosa
lição que trago dessa experiência de formação em antropologia. Obrigada por me

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ensinar que para ser antropóloga eu precisava aprender sobre ser pessoa. Agradeço
especialmente às mulheres, e a todos os pertencentes de suas casas: Ngrenhkaró (in
memorian), minha avó por me fazer rir nas situações mais inusitadas; Ngrenhkarati,
grande amiga e irmã de muitas aventuras; Mokpure, a amiga formal mais jocosa de
todos os tempos; Koitu, pela afeição e paciência com as miçangas e tempo empenhado
nas traduções; Panthô, pelo sofisticado misto de humor e braveza; Nhakkeiti, a mãe
mais brava e generosa que conheci; Ngrenhkru por sua docilidade tão característica;
Koti, pela capacidade em rir de si mesma que tantas vezes testemunhei; aos meus
tadjwỳ [netos/sobrinhos] meninos e meninas; às crianças e todas suas trapaças e
traquinagens. Toda minha dedicação acadêmica destina-se a vocês, de modo sempre
encontrarei maneiras de estar convosco.
Foi uma lisonja desenvolver essa pesquisa ao lado de Clarice Cohn. Admiro
sua determinação e seu engajamento com os Xikrin. Posição que influencia
significativamente sua prática antropológica. Devo muito a essa parceria e aos
momentos incríveis e assustadores que compartilhamos junto aos Xikrin ao longo do
processo de licenciamento e construção de Belo Monte. Obrigada por sua amizade, por
sua paciência durante a orientação deste trabalho, pela liberdade em relação às minhas
escolhas teórico-metodológicas, por acreditar em minha capacidade e apostar na minha
formação enquanto antropóloga. Sempre lhe serei grata.
Ao financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior por me permitir o regime de dedicação exclusiva. Ao PPGAS UFSCar pelo
financiamento de algumas de minhas pesquisas de campo, especialmente ao secretário
Fabio Urban pela competência com a burocracia e incentivo aos pesquisadores.
Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da UFSCar por mostrar que o ensino e o debate antropológico
podem ser feitos a partir de relações sinceras de amizade e convívio.
À Catarina Morawska que me fez perceber, através de suas experimentações
etnográficas, a antropologia enquanto um modo de vida, um modo de resistência e
existência, um engajamento no mundo. Obrigada pela leitura do relatório de
qualificação e pelas preciosas sugestões. Suas considerações sempre inspiraram minhas
reflexões. Agradeço ainda pelo modo de realização dos debates conduzidos no LE-E
(Laboratório de Experimentações Etnográficas).
Ao Jorge Vilella que me mostrou a potência de uma antropologia política em
relação ao modo de enfrentamento do mundo. Agradeço por me receber em sua casa e

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em meio à sua família de modo absolutamente generoso e gentil. Obrigada por agir para
que amigos sintam-se em casa. Estendo meus agradecimentos também à Ana Claudia
Marques, antropóloga a quem dedico sinceras admirações e que tive o prazer enorme de
conviver mais proximamente. Obrigada aos dois pelas discussões nos encontros do
Hybris (Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflito e Socialidade),
fundamentais na composição argumentativa desta tese.
A disciplina “Etnologia Indígena” ministrada por Geraldo Andrello foi
inspiradora e motivou muitas de minhas escolhas teóricas, a quem agradeço pela leitura
de um dos capítulos da tese, ainda no momento inicial de redação, e pela companhia.
Agradeço aos debates realizados no Grupo de Pesquisa da XIII Semana de
Ciências Sociais da UFSCar, especialmente à leitura e comentários de Pedro Lolli e
Edmundo Peggion.
Agradeço a Piero Leirner pelas reflexões sobre antropologia do parentesco e
pelas análises acerca da antropologia do estado em relação aos escritos de Pierre
Clastres.
Ao Luiz Henrique de Toledo, pelo poetismo não piegas dos seus escritos
antropológicos e pelas conversas sobre outras coisas da vida.
Ao Felipe Vander Velden, agradeço pelo convívio caseiro além dos espaços
acadêmicos, por compartilhar suas posições e questões antropológicas, pelas instigantes
leituras em aulas e debates inspiradores, pela generosidade que sempre demonstrou nas
relações cotidianas e pelo apoio à minha formação de antropóloga.
Agradeço também ao Igor Renó Machado pela primorosa leitura do projeto de
pesquisa, ao Marcos Lanna pelas conversas sobre Belo Monte e políticas de
desenvolvimento, à Marina Cardoso por sua sincera dedicação como professora.
Meus sinceros agradecimentos à Marcela Coelho de Souza pelo aceite na
participação da banca de doutorado, cuja produção literária sempre foi uma inspiração.
À Vanessa Lea pela dedicada leitura do relatório de qualificação e por suas convicções
antropológicas que tanto admiro.
Sou intensamente grata às pessoas que no sentido forte do termo tornaram-se
amigos e amigas. À Luana Vignon, pela cumplicidade desde os remotos tempos de
escola, parceria que testemunhou tantas alegrias e perdas, a você devoto um amor de
irmã, de fã e de filha. À Jacqueline Ferraz de Lima, amiga de todas as horas,
companheira de luta, por sua sensibilidade insubmissa que repercute na vida e em seus
textos antropológicos. Estaremos sempre juntas no fronte. À Marina Defalque pelas

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conversas sobre pesquisas etnográficas e antropologia econômica, por sua delicadeza
não óbvia em cultivar a lealdade e a dedicação, por prestar-se tantas vezes em meu
socorro, por ter se mostrado como minha casa em muitos momentos. Obrigada por
tantos resgastes. À Renan Martins Pereira, por tantos momentos de debates
antropológicos, pela leitura de versões preliminares da introdução da tese, sempre
seguidos de ocasiões de muitas risadas e descontração, por ser esse grande amigo de
confiança. Essa amizade que não cessará ao findarmos essa etapa de formação de nossas
carreiras. Deixo agradecimentos também a Fernando Mazzer, pela companhia agradável
e humor inigualável. À Ion Fernandez De Las Heras por nossas discussões sobre os
conceitos de casa e parentesco, pelas leituras e comentários feitos a artigos e partes da
tese, por mostrar-se um parceiro de todas as horas. À Vanessa Perin e suas leituras
dedicadas e precisas dos primeiros esboços dos argumentos da tese, pela companhia nos
eventos ocorridos no Rio de Janeiro, pelos momentos de desabafos e incertezas, pela
confiança. À Mariana Lahr pela companhia diária nos meses finais da escrita, pela
paciência e compreensão, pela calma e parceria que certamente seguiremos travando.
Clarissa Martins, obrigada pela oportunidade em compartilharmos a vida, por
dividirmos uma casa, inquietações etnográficas e antropológicas, os Xukuru e os Xikrin,
pela certeza de que sempre podemos contar umas com as outras. Sou muito grata à
aliança que estabelecemos.
Agradeço também à Karina Biondi, pelos anos de amizade, pelo prazer de sua
companhia, pelo seu modo de levar a antropologia e a vida. Obrigada por todos os
momentos de encontro com Chicão, Walkyiria Biondi e Samanta.
Devo meus agradecimentos também à Messias Basques, parceiro-de-verdade
desde o mestrado, por sua dedicação detalhista e política à antropologia e à condição de
antropólogo, por estar sempre disposto a subverter valores estabelecidos, por mostrar-se
um grande companheiro e dedicado amigo em todas as horas. Nossa amizade, parceria e
lealdade vão muito além da antropologia.
Aos amigos e amigas do Observatório Escolar da Educação Escolar Indígena.
À Camila Beltrame pela leitura de tantos textos, artigos e tese, por seus precisos
comentários, sua posição em relação aos escritos antropológicos e sua dedicação aos
Xikrin. É uma honra contar com sua parceria. À Stéphanie Tselouiko, por sua
companhia durante uma parte de minhas pesquisas de campo, por dividir comigo
momentos tão íntimos da vida, por ter se tornado minha outra de mim como nos
disseram os Xikrin. À Rafaela Soldan pela leveza e entusiasmo com a vida e com os

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Xikrin. À Ana Elisa Santiago, pelas inquietações que compartilhamos sobre Altamira e
seus percalços difíceis de digerir, por ser uma amiga que posso confiar. À Amanda
Marqui pela companhia nos momentos de descontração e por compartilhar da convicção
na formação como antropóloga. Ao Eduardo Belezinni por me convidar como arguidora
da monografia e pelo carinho dedicado aos Arara do Laranjal. Ao Eri Manchineri pelas
longas conversas sobre formação acadêmica e por manter sua sensibilidade xamânica
nesse mundo de austeridade.
Os encontros do Grupo de Etnologia Indígena foram decisivos nessa jornada. A
troca dos textos de pesquisas e a honestidade das leituras fortaleceram meus argumentos
em muitos sentidos. Agradeço à Amanda Danaga pela leitura e comentários de tantas
versões de minha pesquisa, pelo modo satírico de tocar a vida, por ser uma amiga capaz
de me fazer rir mesmo nos momentos mais assustadores. Seguiremos firme nessa
caminhada. Muito obrigada aos comentários e parceria de Ligia Rodrigues de Almeida,
Gabriel Bertolin, Marina Novo, Aline Iubel, Rodolfo Bento, Jan-Arthur Bruno Eckart.
Os debates que travamos no Hybris resultaram em muitas reflexões e arranjos
textuais. Meus agradecimentos especiais a Iara Alves, Natacha Leal, Nicolau Dela
Bandera, Sara Munhoz, Guilherme Boldrin. Do mesmo modo, as contribuições das
discussões realizadas no LE-E conferiram importantes afetações nos meus
procedimentos de escrita. Pelos comentários estimulantes e incentivadores, agradeço a
Barbara Moraes, Juliana Boldrin, Alessandra Regina Santos, Rainer Brito, Joaquim
Pereira de Almeida Neto, Pedro Mourthé. Agradeço à Magda dos Santos Ribeiro por
suas estimulantes indicações bibliográficas e reflexão metodológica sobre minha
pesquisa.
Aos amigos e amigas que tantas vezes me receberam em Altamira
compartilhando suas casas, pelos diálogos calorosos sobre antropologia, população
indígena e impacto socioambiental. Pela confiança e afeto agradeço a Estella Libardi,
Assis Oliveira, Tatiana Botelho, Luciano Pohl, Allyme Mayumi Rodolfo, Eneida de
Melo, Dani Tibério Luz. Agradeço também a Eduardo Vieira Barnes da TNC (The
Nature Conservance) que tem desenvolvido projetos de proteção territorial nas aldeias
Xikrin a partir da parceria PNGAT (Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial
de Terras Inígenas). E também à Luciana Lima pela dedicação ao projeto Menire e por
ter se tornado uma importante interlocutora e amiga.

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Agradeço à amizade de Tomé Maloa por me fazer, no final da escrita da tese,
ver que existem outras coisas interessantes além da antropologia. À Gislene Moura por
tantas conversas inspiradoras sobre a vida, por sua postura de luta e posicionamento
político. Pierre Masato e Paula Klaus sou grata a vocês pela confiança que
estabelecemos, por me receberem em suas vidas tão prontamente, por se mostrarem
amigos tão zelosos. Anderson Machado, obrigada pelos anos de treinos de muay thai,
por ser um amigo de confiança e um excelente treinador. À Renata Forato, Paula Forato,
Simoni Menatti, Renata Menatti, Paula Cantieri, Sabrina Vasconcelos, Juliana Martins,
Dani Disorder pela amizade de longa data. Vocês são uma parte importante desse
percurso.

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RESUMO

Os Xikrin do Bacajá vivem “a era dos impactos” desde a retomada dos


processos de licenciamento e construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ngô
beyêt é como eles chamam a barragem: “água parada, água trancada” e ampliam a
significação do termo para “água podre, água suja, água velha”. Com o intuito de
fortalecer essa imagem de Belo Monte, a tese apresenta uma descrição etnográfica sobre
a crítica Xikrin à política dos brancos segundo três de seus elementos: reunião,
documento, projeto. Os elementos negativos da política dos brancos são tratados
analiticamente como artefatos de modo a se contraporem aos modos de existência
valorizados pelos Xikrin, kukràdjà, cultura Mẽbengôkre. A analogia contrastiva, além
de um importante procedimento metodológico foi um recurso amplamente utilizado
pelos Xikrin para expressarem suas críticas à política dos brancos. Por este motivo, o
contraste de imagens tornou-se a forma argumentativa da tese, justificando sua divisão
em duas partes. A analogia por contraste tem como objetivo evidenciar também a
imagem que os Xikrin queriam transmitir aos brancos de Belo Monte, como um
coletivo de pessoas que compartilham modos corretos e belos de agir e estar no mundo.
Desse modo, a depreciação da política dos brancos será apresentada a partir da
valorização do modo de existência Xikrin, kukràdjà, a cultura dos Mẽbengôkre,
marcando sua importância sumariamente desconsiderada pelos brancos de Belo Monte.

Palavras-chave: Mẽbengôkre-Xikrin, Belo Monte, política dos brancos, kukràdjà.

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ABSTRACT

The Xikrin Bacajá live "the era of impacts" since the resumption of the
licensing process and construction of the hydroelectric plant of Belo Monte. Ngô beyêt
is as they call the dam, "standing water, water locked" and expand the meaning of the
term for "rotten water, dirty water, old water." In order to strengthen this image of Belo
Monte, the thesis presents an ethnographic description of the Xikrin criticism regarding
of the white policy in three of its elements: meeting, document, project. The negative
elements of the white policy are treated analytically as artifacts being opposed to the
forms of existence valued by Xikrin kukràdjà, Mẽbengôkre culture. The contrastive
analysis, as well as an important methodological procedure was a widely used resource
by Xikrin to express their criticism of the policy of the whites. The contrast images
became argumentative form of the thesis, justifying its division into two parts. The
analogy by contrast also aims to highlight the image that Xikrin wanted to convey to
white of Belo Monte, as a collective of people who share correct and beautiful ways of
acting and being in the world. Thus, the depreciation of the white policy will be
presented from the appreciation of the Xikrin mode of existence, kukràdjà, the culture
of Mẽbengôkre, emphasizing its importance summarily ignored by white of Belo
Monte.

Keywords: Mẽbengôkre-Xikrin, Belo Monte, policy of the whites, kukràdjà.

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Lista de Figuras

Figura 1- Registro fotográfico do uso do ritual mẽreremejx, adornamento das crianças


nominadas .......................................................................................................................58
Figura 2- Imagem extraída do boneco do livro “Terra Indígena Trincheira-Bacajá:
menire nhõ kukràdjà meyxtere. A beleza e a força do conhecimento das mulheres
Xikrin”.............................................................................................................................73
Figuras 3, 4, 5, 6, 7 e 8- Registro fotográfico do uso das bexigas como adorno
cerimonial .................................................................................................................86, 87
Figura 09- Prinkore e seu filho ornamentados ............................................................110
Figura 10- Ngôkon [maracá] pintado com urucum utilizado na cerimônia. (p.103)... 108
Figura 11 e 12- Aplicação da pintura inédita entre as mẽkranỳre [mulheres com poucos
filhos ou netos] .............................................................................................................133
Figura 13- Padrão gráfico aplicado entre as mulheres ................................................140
Figura 14- Padrão gráfico aplicado entre as mulheres ................................................140
Figura 15- Aplicação do padrão gráfico entre mulheres .............................................143
Figura 16- Aplicação do padrão gráfico entre as mulheres .........................................143
Figura 17- Bep Djô, jovem guerreiro ornamentado para participação da cerimônia
.......................................................................................................................................144
Figura 18- Bep Kranti, um dos meninos homenageados, antes da ornamentação ......144
Figura19- As kwatwỳ ...................................................................................................145
Figuras 20, 21- Menino homenageado na cerimônia com os adornos e pinturas ........146
Figura 22- Trecho extraído do “Parecer Técnico 21” .................................................184
Figura 23- Trecho extraído do “Parecer Técnico 21” .................................................184
Figura 24- Trecho extraído do “Parecer Técnico 21” .................................................185
Figura 25- Desenho feito por criança durante oficina de uma das atividades
“etno”.............................................................................................................................190
Figura 26- Registro fotográfico de atividade para desenho e mapeamento da aldeia
.......................................................................................................................................190
Figura 27- Gráfico extraído do laudo “Estudos Complementares do Rio Bacajá” usado
nas reuniões de apresentação dos resultados nas aldeias em formato de folder............196
Figura 28- Roça após a queima ...................................................................................212
Figura 29- Aldeia Bacajá, vista de uma das casas do círculo ......................................217

13
Figura 30- Mopkure colocando as batatas para assarem no forno de pedras [kῖ],
juntamente com os berarubus de carne [mrỳ kupu] ......................................................218
Figura 31- Construção das casas de alvenaria na aldeia Rap Kô ................................221

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Lista de abreviaturas e siglas

ABEX- Associação Bebô Xikrin


AIA- Avaliação de Impacto Ambiental
AUH- Aproveitamento Hidrelétrico
CASAI- Casa de Saúde Indígena
CVRD- Companhia Vale do Rio Doce
DNIT- Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte
DSEI- Distrito Sanitário Especial Indígena
ECRB- Estudos Complementares do Rio Bacajá
EIA- Estudo de Impacto Ambiental
EIA-CI- Estudo de Impacto Ambiental Componente Indígena
FUNAI- Fundação Nacional do Índio
IAF- Inter-American Foundation
IBAMA- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
LI- Licença de Instalação
LP- Licença Provisória
MPF- Ministério Público Federal
PAC- Programa de Aceleramento Econômico
PBA- Plano Básico Ambiental
PBA-CI- Plano Básico Ambiental Componente Indígena
PE- Plano Emergencial
PNGATI- Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas
SEMED- Secretaria Municipal de Educação
TITB- Terra Indígena Trincheira-Bacajá

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SUMÁRIO
Introdução
A política dos brancos: termo indecomponível ..............................................................19
Desenho da tese e seus capítulos ....................................................................................37

Parte I
Das formas que persuadem: Mẽbengôkre nho kukràdjà

Capítulo 1. Kukràdjà: cultura Mẽbengôkre ...............................................................42


Os Mẽbengôkre e seus antropólogos ..............................................................................50
O caso do tatu: um problema na cultura, os perigos de kukràdjà ...................................60
Implicações e questões com o número três ....................................................................63

Capítulo 2. Mẽreremejx: ritual de confirmação de nomes ........................................67


Os preparativos ...............................................................................................................78
Pỳ metoro e mroti metoro ...............................................................................................81
Ritual de nominação mẽreremejx: forma que persuade ..................................................89

Capítulo 3. Mẽbengôkre kaben: língua Mẽbengôkre e alguns de seus modos de fala


.........................................................................................................................................95
Chefia e suas posições: primeiro e segundo caciques ..................................................100
Ritual de iniciação masculina .......................................................................................106
Mulheres e falas formais ...............................................................................................116
Mẽbengôkre kaben: forma que persuade ......................................................................122

Capítulo 4. Mẽ ôk: pinturas corporais ......................................................................123


Pinturas corporais no cotidiano da aldeia .....................................................................128
Rituais e pinturas corporais ..........................................................................................137
Pintura corporal Mẽbengôkre: forma que persuade ....................................................147

16
Parte II
Das formas que não persuadem: crítica à política dos brancos

Capítulo 5. Reunião ....................................................................................................150


Afastamento entre reunião e ritual ................................................................................157
Engajamento Xikrin na reunião ....................................................................................161
Reunião: forma que não persuade da política dos brancos ...........................................172

Capítulo 6. Documento ...............................................................................................175


Documento: kaigo [falso/fraudulento] ..........................................................................181
Equipe de pesquisadores nas aldeias: mejx/mejxtere [belo/correto] .............................186
Documento: punu/punure [feio/horrível] .....................................................................193
Documento: forma que não persuade da política dos brancos .....................................199

Capítulo 7. Projeto ......................................................................................................202


Casa Mẽbengôkre [kikre]: o buraco do fogo ................................................................208
Projeto de construção das casas de alvenaria nas aldeias .............................................219
Projeto: forma que não persuade da política dos brancos ............................................224

Considerações finais ...................................................................................................228

Referências bibliográficas ..........................................................................................241

Anexos ..........................................................................................................................254

17
Revoltado com o espetáculo lastimável das megalomaníacas obras várias rasgando a floresta a
esmo, com seu cortejo de doenças e devastação, entendi que para mim nenhuma etnografia seria
possível sem um envolvimento duradouro ao lado do povo com quem tinha resolvido trabalhar.
[...] . Assim, o trabalho de enólogo apresentou-se imediatamente a mim como um misto de
busca intelectual e modo de vida [...].
Albert, Bruce (2015, p. 48)

18
INTRODUÇÃO
A política dos brancos: termo indecomponível.

Nós, se quisermos ajudar, precisamos de ajuda. Nós precisamos aprender a contar


outras narrativas. (Stengers, 2014, p. 07).

A voadeira estava lotada. O suprimento de combustível de que dispunham os


Xikrin só lhes permitiram realizar o trajeto em uma embarcação. As caixas de papelão
com café, arroz e biscoitos dividiam os espaços com bordunas, arcos, flechas e nos
impediam de sentar com algum conforto. Embarquei com uma barraca de acampamento
e três trocas de roupa, levando ao colo um computador, uma impressora, duas resmas de
papel sulfite e um estojo. Era a primeira vez que eu estava com os Xikrin numa situação
como aquela. Estávamos mal acomodados, espremidos pelas caixas de papelão e
temorosos com o decorrer dos próximos acontecimentos. Uma ordem de reintegração de
posse havia sido expedida e havíamos sido informados que a polícia federal estava a
caminho da ocupação do canteiro de obras de Belo Monte.
O trajeto da cidade de Altamira até o local de construção da ensecadeira do
Sítio Pimental, que anteriormente demorava uma hora para se cumprir, realizou-se após
quatro horas de deslocamento e a exposição constante das cabeças ao sol fez parecer
que o tempo gasto no itinerário tinha sido ainda maior. O rio Xingu estava mudado. Era
preciso muita cautela. As placas de sinalização espalhadas em boias pela empresa
consorciada Norte Energia não impediam que frequentemente o fundo de nossa
embarcação batesse nas inúmeras pedras enormes que despencaram da ensecadeira
diretamente para o do fundo rio, alterando sua paisagem submersa. Se o pé do motor da
embarcação quebrasse, ficaríamos à deriva porque a ensecadeira que barrava o Xingu
fez desaparecer as margens das praias onde era possível atracar.
Era quase meio dia, o sol estava a pino quando chegamos. De longe, era
possível avistar o paredão que formava a ensecadeira no sítio Pimental. No barco,
silêncio. A imagem daquele paredão causava assombro e pavor naquelas pessoas que
meses atrás navegavam com suas embarcações pelo rio Xingu sem nenhum
impedimento.
Eu subi a ensecadeira, parede provisória feita de pedra, terra e cimento, junto
com alguns homens guerreiros da aldeia Bacajá. Assim que alcancei a parte de cima do

19
paredão, Bep Tok, conhecido como Onça, pegou em meu braço e me levou até o meio
da barragem que dividia o rio Xingu, apontou sua borduna para os dois lados do rio
separados pela larga parede: “Gowá, ngôbeyêt punure. Ngô ngrire. Ngô kró. Ngô arup
bi. Mejx kêt. [Olha, água parada, feia. Água pouca. Água fétida. Água morta. Isso não é
bom/correto, não]”. 1
Ngô beyêt é como os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá (TITB)
chamam Belo Monte: água parada, água trancada. Elas acionam ainda outras
designações de tradução ampliando a significação do termo para “água podre, água suja,
água velha, água parada”. Água podre, suja, velha e parada é o espectro de Belo Monte
sobre o rio, uma previsão acurada que nenhum cálculo técnico de “impacto da obra”
consegue, ou quer, apurar. Mas os Xikrin insistem em comunicar a sua assustadora
visão de futuro, seja em ocupações do canteiro de obra, em comunicados à imprensa ou
reuniões formais com técnicos e representantes da empresa Norte Energia, como
apresentarei ao longo desta tese, especialmente nos capítulos dois e cinco.
Os Mẽbengôkre Xikrin a quem me refiro são as pessoas associadas a esse
etnônimo que ocupam a Terra Indígena Trincheira-Bacajá, cujas aldeias, exceto uma,
estão localizadas à margem do rio Bacajá, afluente do rio Xingu. O processo de
licenciamento e implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte voltou a ser uma
questão de suma importância a partir de 2008, afetando-os diretamente e intensificando
negativamente suas relações com setores da burocracia nacional.
As pessoas Xikrin que conheci e com quem estabeleci relações de afeto e
convívio vivem o que eu chamo de “era dos impactos”. Essa afirmação advém de duas
fontes distintas. Uma inspiração na nomenclatura “era das dádivas”, utilizada por Lea
(2012) para uma reflexão sobre as políticas de atuação de agências nacionais acerca do
contato e pacificação de alguns povos indígenas Mẽbengôkre-Kayapó; bem como o uso
recorrente do termo impacto pelos Mẽbengôkre-Xikrin, ao longo de minhas estadias em

1
As falas de homens e mulheres Mẽbengôkre-Xikrin serão tratadas em português ao longo da tese, a
partir de minhas próprias traduções das anotações e gravações feitas em campo. Quando houver uma
contribuição de tradutores ou tradutoras Xikrin, o leitor será avisado. Em algumas citações, a formulação
na língua Mẽbêngôkre será utilizada, apesar de todos os erros que decorrerão desse processo de inscrição.
Atualmente, os Xikrin anseiam por um projeto de documentação escrita de sua língua a partir do auxílio
de linguistas porque não reconhecem as grafias vigentes, desenvolvidas pelo Summer Institute of
Linguistics, normalmente utilizadas nas escolas. Antropólogos e antropólogas que pesquisaram entre os
Mebengokre usam diferentes grafias, não havendo homogeneidade acerca dos da grafia da língua
Mẽbengôkre.

20
campo. A palavra impacto era normalmente utilizada por eles para relatar sua situação
em relação à obra, carro chefe de um programa desenvolvimentista em curso no Brasil 2.
Os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, os Xikrin do Cateté e diversos
grupos Kayapó autodenominam-se Mẽbêngôkre. Apesar da explicação sobre o
significado do etnônimo ser controversa entre os pesquisadores desses grupos, irei
manter aqui, no que se refere aos Xikrin do Bacajá e para fortalecimento de minha
coreografia argumentativa, a tradução oferecida por Vidal (1977) como “povo que saiu
do buraco d‟água” [mẽ: coletivizador, nós; ngô: água; kre: buraco]. Considerar os
Xikrin como povo que saiu do buraco d‟água permite que uma poderosa imagem se
desenhe levando em conta que atualmente eles vivem um processo de barramento das
águas do rio Xingu. Essa imagem, portanto, produz uma analogia poderosa em relação
aos impactos vividos pelos Xikrin decorrentes do processo de licenciamento e
construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.
Conforme várias versões da narrativa mítica que se referem ao surgimento e
origem da humanidade Mẽbengôkre-Xikrin, especialmente a coletada e transcrita por
Vidal (1977, p.18), o leste ou o céu [koikwa-krai] figura o ponto de origem e o começo
da humanidade e das águas. Mais a leste no céu, encontra-se a morada do gavião-real
[àk kaikrit] que é antecedida por uma imensa teia de aranha. Essa grande ave é
responsável pela iniciação dos xamãs desde os tempos imemoriais até os dias atuais.
Em oposição ao leste, o começo da humanidade, está o oeste [koikwa-enhôt] que,
contrariamente, não possui uma localização específica e é associado ao fim do mundo,
ao fim da vida, à escuridão. A versão mencionada da narrativa, também analisada por
Giannini (1991, p. 37), conta que para acessarem o plano terrestre [pukà] onde estão
agora, os Xikrin tiveram de atravessar diferentes domínios: desceram do leste ou céu,

2
Durante a década de 70, através de debates entre governo federal, estadual e municipal, iniciou-se um
projeto de especulação energética no rio Xingu com proposta de construção das barragens Babaquara e
Kararaô. Nos idos de 1989, em meio a denuncias de órgãos governamentais, instituições de pesquisa,
índios, IBAMA, universidade, antropólogos, artistas nacionais e internacionais, o projeto foi embargado.
Passadas algumas décadas, o projeto de aproveitamento hidrelétrico na região xinguana voltou à cena
com nova roupagem: diminuição das áreas afetadas por alagamento dos rios Xingu e Iriri. Esse novo
projeto, denominado Vazão Reduzida tornou-se um dos principais debates do eixo de energia do
(Programa de Aceleração Econômica) PAC 1 e 2 de caráter desenvolvimentista intitulado Avança Brasil.
Segundo a nova proposta de barramento através da Vazão Reduzida, que consiste numa tecnologia fio
d‟àgua que evita a inundação das Terras Indígenas do rio Xingu com abertura de canais de derivação,
toda a região da Volta Grande do Xingu foi condenada a uma condição de seca perene. Esses programas
de aproveitamento hidrelétrico foram desenvolvidos, a partir dos anos 2000, durante a presidência de
Fernando Henrique Cardoso, incorporados ao governo Lula e mantidos com a atual presidenta Dilma
Rousseff. Sobre a consequência do projeto de Vazão Reduzida quanto às dificuldades de mensuração dos
impactos ambientais em relação ao secamento da região da Volta Grande e do rio Bacajá, ver: Conh
(2014a, p. 28; 2014b, p. 257).

21
atravessaram o buraco do tatu (perdendo a capacidade de voar enquanto gente-ave),
passaram pelo buraco do cachorro (ou da onça, dependendo da versão) e saíram pelo
buraco das águas atingindo a terra [pukà]. Nessa época, também apareceram alguns
seres da parte subterrânea, associados ao oeste, e chamados kuben kamrik. Esses seres
malévolos e canibais também acessaram esse domínio a partir de um buraco na terra, de
onde emergiram para consumir a carne crua dos humanos Mẽbengôkre, arrastando-os
para o mundo subterrâneo. Os domínios do leste estão suspensos por varas e troncos,
distanciando-se do domínio terrestre; ao passo que o domínio do oeste, liga o plano
cósmico atual diretamente aos perigos dos mundos subterrâneos, de onde podem
aparecer esses perigosos seres míticos canibais, como já ocorreu em tempos imemoriais.
Tomando a narrativa sobre a origem dos Mẽbengôkre como um povo que saiu
do buraco da água para atingirem a terra ou o domínio terrestre onde vivem atualmente,
é possível compor analogicamente uma imagem significativamente nefasta em relação à
Usina Hidrelétrica de Belo Monte que barra o rio Xingu. Além disso, essa narrativa
também reflete sobre os perigos ocasionados pela ação canibal dos estrangeiros do oeste
ou do mundo subterrâneo, os kuben kamrik. Se imaginarmos as ações dos brancos de
Belo Monte, uma gente também vinda do oeste (aqui no sentido de ocidente), como
semelhante às práticas mortíferas dos estrangeiros canibais mencionados na narrativa, é
possível elaborarmos uma forma bastante potente da “era dos impactos” vivida pelos
Xikrin atualmente. Porque, como constata Giannini (1991) os perigos advindos do
mundo subterrâneo (oeste ou ocidente) podem aparecer novamente e colocar em risco a
vida dos Mẽbengôkre e seus modos de existência.
A autodenominação Mẽbengôkre é costumeiramente ativada pelos Xikrin de
dois modos: como um substantivo que se associa diretamente às pessoas pertencentes a
esse coletivo (os Mẽbengôkre) e como um adjetivo referindo-se a modos específicos de
existência no mundo, incluindo certas etiquetas de convivialidade e parentesco, certos
modos de produção de pessoa, certos modos de distribuição e circulação de bens
alimentares, mercadorias, dinheiro, prerrogativas cerimoniais, nomes, pessoas.
Para garantir a eficácia da coreografia argumentativa pretendida nesta essa
tese, o termo Mẽbêngôkre assumirá aqui tanto a forma de caracterização desse grupo de
pessoas quanto os seus modos de existência como mecanismos de contraposição aos
brancos [kubẽn], principalmente aos brancos de Belo Monte [kuben do ngo byêt].
Assim, os termos Xikrin e Mebêngôkre, usados sinonimamente por meus interlocutores,
falam de uma condição e de um modo específico de estar no mundo (Cohn, 2005b).

22
Atualmente, um mundo também específico: o mundo do barramento das águas do rio
Xingu.
Usar o termo Mẽbengôkre segundo as duas formulações indicadas no parágrafo
anterior, não significa dizer que não exista discordância ou desentendimentos entre as
pessoas que acionam o etnônimo para referirem a si mesmas e a seus modos de
existência. Existem muitas etnografias dedicadas ao tema das rupturas, brigas internas e
fissões de aldeias, que são associadas ao conceito de faccionalismo Mẽbengôkre e que
irei retomar com mais vagar na conclusão 3.
Minha proposta, por outro lado, ao realçar o aspecto aglutinador do termo,
relaciona-se com o modo como, durante minhas pesquisas 4, os Xikrin articularam suas
desavenças, a saber, sempre longe dos olhos dos brancos de Belo Monte. Especialmente
quando na presença desses brancos, eles se esforçavam para se apresentarem enquanto
pessoas aglutinadas, que compartilham conhecimentos e etiquetas de convívio. A
imagem que queriam transmitir era a da coesão e da pertença, da força de seus
conhecimentos, saberes e existência [kukràdjà]. Os Xikrin queriam ser vistos pelos
brancos de Belo Monte como um conjunto de pessoas que possui um tipo de fala
unívoca e conjunta [kaben pudji]. Seus esforços destinavam-se a se mostrarem como um
coletivo de pessoas que vivenciam a “era dos impactos”, com a construção do
empreendimento hidrelétrico.
Todos os tipos de pessoas que não são consideradas Mẽbengôkre, segundo uma
série de cálculos e referências que discutirei ao longo dos capítulos, são chamadas
kubẽn. Esse termo kubẽn ou kubẽ concerne, segundo a literatura especializada, ao
conceito de estrangeiros, uma ampla gama de pessoas não-mẽbêngôkre, incluindo
brancos, outros grupos indígenas e certos personagens míticos. Apesar da grande
amplitude do conceito, com intuito de defender meus os esforços argumentativos, o
termo será utilizado para se referir exclusivamente aos brancos ou não indígenas, como
3
O debate sobre o faccionalismo entre os povos Mẽbengôkre é realizado principalmente por Verswijer
(1992), Turner (1992), Gordon (2006) e Inglez de Sousa (2000).
4
Iniciei minha estadia em campo em 2011, período em que percorri as cinco aldeias existentes na época
da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, acompanhando as equipes de pesquisadores contratados para coleta
de dados utilizadas na confecção dos Estudos Complementares do Rio Bacajá. Neste ano meu tempo de
permanência nas aldeias foi de cinco meses espaçados. Em 2012, acompanhei a equipe dos Estudos
Complementares do Rio Bacajá para entrega e apresentação do relatório final. Ainda neste ano, estive
com os Xikrin na ocupação do canteiro de obras do Sítio Pimental de Belo Monte indo para a aldeia
Bacajá onde permaneci durante dois meses corridos. Em 2013, acompanhei a execução do projeto de
abertura da roça coletiva na aldeia Pot-Krô, seguindo posteriormente para aldeia Bacajá, somando o
tempo de seis meses de campo corridos. Entre 2014 e 2015 permaneci na aldeia Bacajá durante oito
meses. No final de 2015, passei pouco mais de um mês na aldeia Mrotidjam, durante a realização da
Assembleia do Projeto Menire, de realização da CTL FUNAI de Altamira.

23
normalmente também o fazem os Xikrin. Desse modo, toda vez que o termo kubẽn
aparecer ao longo do texto será para se referir aos brancos (não índios). Nesse sentido,
quando for necessário mencionar outros grupos indígenas, utilizarei o etnônimo
associado a esses grupos. Essa opção, mesmo reconhecendo que os brancos são um dos
muitos tipos de estrangeiros conhecidos e descritos pela língua Mẽbêngôkre (Lea,
2012), tem como objetivo marcar a posição crítica dos Xikrin à política dos brancos, a
partir dos processos de licenciamento e construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Os brancos identificados pelos Xikrin como idealizadores e defensores de Belo
Monte são chamados kubẽn do ngô beyêt, cuja tradução foi-me explicitada como
“brancos da água barrada” 5. Proferida por homens e mulheres, essa formulação
apareceu de modo recorrente durante minha pesquisa. Esses brancos foram avaliados
como sendo tipos mais egoístas e sovinas, responsabilizados pelo encadeamento
fracassado dos artefatos da política dos brancos: reunião, documento, projeto. Contra as
ações egoístas desses brancos, ou contra a política dos brancos de Belo Monte, que se
posicionam os Xikrin. É desse posicionamento crítico que trata esta tese.
Para dar conta desse posicionamento crítico, lançarei mão de algumas imagens
etnográficas que irão vincular minhas experiências de pesquisa junto aos Xikrin à
produção antropológica da literatura especializada. 6
Imagem é uma questão metodológica importante para meu argumento, como
irei demonstrar ao longo desta introdução. A imagem presente na capa da tese é um dos
exemplos da importância desse recurso metodológico, pois evidencia o modo como os
dados de pesquisa foram refletidos e tratados nos meus esforços argumentativos, bem
como minha própria posição de etnógrafa.
Ao discutir analiticamente o processo de licenciamento e construção de Belo
Monte, a partir da crítica dos Mẽbengôkre-Xikrin à política dos brancos, sugiro uma
problematização de minha posição de pesquisadora, isto é, uma reflexão sobre a

5
Uma expressão formada pela palavras kubẽn, ngô beyêt em Mẽbengôkre e pela conjunção de pertença
do em português.
6
Além das etnografias dedicadas especificamente aos povos Mẽbengôkre, outras publicações da
etnologia indígena também serão discutidas, por exemplo: alguns trabalhos de Coelho de Souza (2002,
2010, 2012, 2014), especialmente em relação ao debate conceitual da noção de criatividade e cultura entre
os Kῖsedje; de Carneiro da Cunha (2009), sobretudo em sua reflexão da apropriação do termo cultura
pelos povos indígenas; de Lagrou (2007, 2011), a partir do debate sobre o uso antropológico do conceito
de arte em relação aos Kaxinawá; de Viveiros de Castro (2004, 2007, 2015), especialmente a partir do
debate da equivocidade; de Almeida (2013) a partir da reflexão dos encontros paradigmáticos e ontologia
caipora. Dentre outros debates antropológicos, afora do escopo da etnologia indígena, que também se
tornaram importantes referências metodológicas de interlocução nesta tese, destaco: Strathern (2000,
2005, 2006, 2011, 2014), Haraway (1988, 2000, 2003), Tsing (2005), Riles (2001, 2006).

24
evidenciação dessa posição na escrita do texto etnográfico, como uma “ficção
controlada” 7. Posição que parcializa a narrativa e enfatiza as considerações Xikrin e
que exige algumas escolhas metodológicas. Por esse motivo, eu gostaria de sublinhar
que não irei tratar da relação de meus interlocutores com os brancos de Belo Monte
seguindo um procedimento “contatualista” (Viveiros de Castro, 1999) 8. Se esse fosse o
caso, minha câmera fotográfica deveria estar posicionada ao lado da cena registrada,
mostrando de modo mais ou menos equivalente as pessoas que compõem o retrato.
Distintamente, a posição da minha lente para o registro da imagem em questão está
fixada atrás das costas de Tedjore Xikrin. Esse é o ângulo de visão que privilegio,
porque mostra o branco, que na época era presidente da Norte Energia, de forma parcial,
encoberto pelas penas do adorno cerimonial e pelo braço pintado de jenipapo de meu
interlocutor.
É também de modo parcial, a partir das considerações críticas dos Xikrin, que a
política dos brancos será problematizada nesta tese. Os Xikrin não recorriam ao termo
política para se referirem a eles mesmos. Diferentemente do que ocorre com o termo
cultura, que se costuma utilizar como tradução para o conceito kukràdjà [cultura (dos)
Mẽbengôkre], política não se apresentava como algo que pudesse ser associado a eles.
De fato, os Xikrin empenhavam-se em se dissociarem do termo relegando-o
exclusivamente às práticas e aos modos de existência dos brancos, especialmente dos
brancos de Belo Monte.
Prinkore Xikrin, atualmente segundo cacique da aldeia Bacajá, no pátio do
escritório da Norte Energia na cidade de Altamira, enquanto esperávamos para mais
uma reunião sobre a definição das ações de mitigações a serem efetivadas pela empresa
consorciada, disse-me em português: “Os brancos só sabem fazer política e política não
presta e nem nunca prestou para nós, povos indígenas”.
Essa assertiva dissociativa dos Xikrin em relação ao termo política colocou-me
uma questão embaraçosa analiticamente porque enquanto nós, antropólogos,
costumamos ver política em tudo, os Xikrin só viam política em nós, nos brancos. 9 Para
solucionar esse impasse e manter a opção de meus interlocutores de se dissociarem do

7
Wagner (2010).
8
Crítica desenvolvida pelo autor em relação ao paradigma de análise da antropologia social brasileira
voltado às relações de contato das populações indígenas com a sociedade brasileira, inspirado no conceito
de “fricção interétnica”, cunhado por Roberto Cardoso de Oliveira.
9
Agradeço a Sara Munhoz, mestre em antropologia pelo PPGAS UFSCar, pesquisadora do Hybris
(Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades) e do LE-E (Laboratório
de Experimentações Etnográficas), por me chamar a atenção a esse ponto.

25
termo política, trato esse conceito como indecomponível ao seu complemento “dos
brancos”, carregado negativamente pela interpenetração de três artefatos que o
compõem: reunião, documento e projeto. Juntos, esses artefatos impulsionam o modo
de existência dos brancos (especialmente os de Belo Monte) fundamentado em relações
de avareza e egoísmo.
Política, tal como os Xikrin explicitam o termo, não equivale ao tratamento
analítico que alguns antropólogos sensíveis a esse tema têm desenvolvido. Autores da
etnologia indígena, como por exemplo, Sztutman (2009a) e Viveiros de Castro (2006,
2014, 2015), têm se dedicado a impulsionar o termo política como um efeito
constantemente considerado por algumas práticas ameríndias, seja na formação de
pessoas e relações de parentesco e afinidade, em procedimentos xamânicos de cura, em
expedições de caça, pesca e abertura de roças, em etiquetas de comensalidade, em
realizações de cerimônias rituais, na relação com brancos e sua burocracia estatal e
empresarial, além de incontáveis outros exemplos. Esses autores, inspirados no conceito
10
cunhado por Stengers (2010) de cosmopolítica , têm atentado para como os cálculos
desses efeitos políticos são levados em conta nas relações desses povos com animais,
entidades sobrenaturais, pessoas, plantas, paisagens, fenômenos meteorológicos,
cultivares.
Mesmo tendo clareza da importância analítica que a palavra política assume a
partir de muitos trabalhos da etnologia indígena, como os acima mencionados, eu irei
evitar seu uso. Desse modo, expressões como “política interna das aldeias” ou “política
extra-aldeã”, mesmo quando usadas para se referirem a efeitos de certas ações, não
serão utilizadas ao longo de minha escrita.
Para além das recentes discussões dos efeitos políticos, ou cosmopolíticos,
como importantes fundamentos na implicação das relações humanas e não humanas
entre os ameríndios, a política, como tema da antropologia, remonta aos anos 40
(Goldman, 2004). Segundo o autor, naquele momento, política era definida e pensada
pelo estrutural funcionalismo britânico como um domínio ou um “subsistema”
específico que poderia estar presente ou ausente nas sociedades. Partindo dessa
premissa, nas sociedades ditas primitivas, sem aparelhos de estado, as relações de
10
Latour (1994, 2004, 2005) é um dos autores fundamentais para a divulgação conceito de cosmopolítica
de Isabelle Stengers, devido à capacidade analítica desse conceito em questionar a projeção das definições
modernas ocidentais de política e poder político como se fossem um sistema ou objeto facilmente
identificado pelas análises antropológicas e sociológicas. Uma apreciação da importância dos escritos de
Latour para a antropologia e etnologia indígena, é realizada por Sztutman (2009a) e Viveiros de Castro
(2007, 2015).

26
parentesco, a descendência e a aliança foram consideradas os sistemas de organização
que desempenhavam funções políticas mais ou menos equivalentes às instituições
políticas das sociedades ocidentais, dotadas de aparelhos de estado. Ainda conforme as
reflexões de Goldman (2004), uma década depois ocorreu um movimento crítico a essa
formulação, a partir, principalmente, dos escritos de Gluckman (1940) e Leach (2014
[1954]) que passaram a considerar como política e político quaisquer aspectos de
relações sociais. Segundo as reflexões de Goldman (2004, p. 11, aspas e grifos no
original), esse movimento analítico sobre como tratar o tema da política em termos
antropológicos, teve implicações importantes para a disciplina:

Devemos observar, igualmente, que os estudos sobre fenômenos políticos


têm ocupado uma posição central no desenvolvimento da antropologia nos
últimos anos. No caso da antropologia feita no Brasil, esses estudos
apresentaram notáveis avanços, especialmente no campo que
convencionamos denominar, a partir de meados da década de 90,
“antropologia da política”. O termo cunhado por Moacir Palmeira, visava
principalmente evitar conceber a política como domínio ou processo
específicos, definíveis objetivamente de fora. Tratava-se, ao contrário, de
investigar fenômenos relacionados àquilo que, “do ponto de vista nativo”, é
considerado “política”.

A proposta teórico-metodológica mencionada por Goldman (2004) tornou-se


presente nas pesquisas de antropólogos e antropólogas que voltaram seus interesses em
pensar os problemas vinculados ao tema da política e do político, segundo uma
abordagem etnográfica e sem recorrer a definições etimológicas prévias desses
conceitos. Política ou político tornaram-se termos delimitados a partir das situações em
11
que eram acionados, ganhando contorno sempre de forma circunstancial. Nas
palavras de Villela (2015, p.334, aspas no original), interessa ao etnógrafo da política:

[...] mostrar os modos como essas partes pretensamente excluídas dos


processos políticos centrais para as nossas vidas são indissociavelmente
constituintes deste mesmo processo e que podemos notá-lo desde que nos
aproximemos o suficiente dele e que nos esforcemos para abandonar o
“ecossistema nocional” jurídico-orgânico-empresarial que preside o nosso
pensamento. Bastará, portanto, que tomemos o vocabulário conceitual dos
intervenientes reais, sublunares, para que notemos como e do que as coisas
são feitas.

11
Especialmente os trabalhos desenvolvidos pelo NuAP (Núcleo de Antropologia da Política), sediado no
Museu Nacional da UFRJ, por exemplo: Villela (2004), Marques (2002), Goldman (2006).

27
Tendo em mente que o debate antropológico sobre o as definições de política
e/ou político, seja nos nossos termos quanto nos termos de tantos outros, é extenso e
está longe de ser exaurido, proponho levar a sério os esforços Xikrin para se dissociar
desse conceito e tratar política como coextensão da política dos brancos, cujos efeitos
(políticos, poderíamos dizer) são considerados nefastos e indesejados.
Falar de política dos brancos a partir da abordagem etnográfica proposta,
através das penas dos braços pintados de jenipapo dos Xikrin _como a imagem da capa
da tese mostra o branco da empresa Norte Energia_ implica em falar do processo de
licenciamento e construção de Belo Monte, um conjunto de eventos responsável pela
“era dos impactos” que afeta os Mẽbengôkre-Xikrin e demais povos indígenas da
região. Desse modo, apresentar esse processo de licenciamento e construção da
hidrelétrica tornou-se também uma de minhas questões metodológicas. Frente a essa
problemática, minha opção foi descrever esse processo a partir dos artefatos
Mẽbêngôkre-Xikrin de persuasão, kukràdjà, ou cultura (dos) Mẽbengôkre que marcam a
cosmopráxis 12 de seus modos de existência.
Essa questão, que se colocou para o desenvolvimento de escrita do argumento
da tese e da organização dos dados de pesquisa, levou-me a uma reflexão sobre como
tratar o surgimento de Belo Monte num texto antropológico sem que para tanto fosse
necessário um esforço de contextualização histórica. Procurei então, encontrar saídas de
redação e tratamento dos dados de pesquisa que permitissem tratar minhas experiências
de pesquisas com os Xikrin, levando em conta, os modos como eles percebiam e viviam
esse advento e o que tinham a dizer sobre ele. A resolução encontrada foi lançar mão do
conceito de artefato, tal como definido por Strathern (2005, 2014), como uma opção
analítica que proporcionou dispensar os esforços da contextualização histórica de Belo
Monte. 13
Importante registrar que o empréstimo teórico e metodológico do uso do
conceito de artefato desenvolvido por Strathern (2014) não implica em uma

12
“Cosmopráxis amazônica” é termo utilizado por Viveiros de Castro (2015, p. 206) para se referir à
afinidade virtual como um esquematismo genérico da alteridade na Amazônia que, tal como a “segunda
aliança” mencionada por Deleuze e Guatarri no Mil Platôs, ela aparece quando o casamento não deve ou
não pode existir e desaparece assim que ele se realiza. Para o autor, esse esquematismo é genérico porque
ultrapassa o parentesco se pensado como um certo tipo de relação social e age como uma máquina de
guerra que impede a filiação de funcionar como transcendência por meio de referências a origens divinas,
ancestrais fundadores ou grupos de filiação identitários.
13
Agradeço as contribuições de Vanessa Lea e Catarina Morawska na banca de qualificação,
especialmente sobre a questão de como tratar os processos de licenciamento e construção de Belo Monte,
privilegiando o ponto de vista dos Xikrin. Além disso, a disposição para os debates e leituras de Clarice
Cohn, orientadora de minha pesquisa, foi fundamental para este trabalho.

28
aproximação comparativa entre os Xikrin e os Melanésios. Distintamente, o empréstimo
relaciona-se com o modo como a formação de imagens, enquanto artefatos, pode ser
uma opção analítica ao recurso da contextualização histórica. Por isso, considero
importante situar o debate desenvolvido pela autora, apesar de proporcionar à redação
da introdução um recuo deveras demorado.
Para defender o conceito de artefato como extensivo a performances e eventos,
Strathern (2014, p. 211) partiu da chegada dos europeus à Papua Nova Guiné tomando
esse evento enquanto um tipo particular de imagem melanésia que abrigava em si tanto
o passado quanto o futuro. Segundo a autora, essa imagem não estava necessariamente
conectada a um contexto histórico, mas sim com relatos e imagens das pessoas
melanésias que já continham esses recém-chegados, ainda que, segundo aspectos
inesperados.
A assunção da chegada dos europeus à Melanésia como artefato ou imagem
proporcionou à autora a elaboração de uma crítica teórico-metodológica ao conceito e
ao paradigma do contexto histórico, vigente em grande parte dos escritos
antropológicos, principalmente segundo as definições defendidas por Sahlins (1985).
Como destaca a autora, eventos, segundo as análises de Sahlins (1985), são
tratados como acontecimentos acidentais ou resultados inevitáveis, naturais, de certos
arranjos sociais. Por meio dessa premissa, eventos passam a ser vinculados enquanto
encontros fortuitos, inevitáveis ou não previstos por esses arranjos. E, partindo dessa
premissa em favor da necessidade inexorável da contextualização histórica para
interpretação dos eventos, uma análise da estrutura da conjuntura tornou-se uma das
principais tarefas dos pesquisadores para a realização da mediação entre estrutura
(arranjos sociais) e evento (ocorrência histórica). Para Strathern (2014, p. 213), a
abordagem argumentativa de Sahlins (1985) promoveu alguns efeitos importantes no
desenvolvimento posterior das pesquisas antropológicas, como a disseminação da
proposição de que as análises antropológicas sobre eventos deveriam admiti-los como
uma interpretação cultural de acontecimentos históricos, ou enquanto repercussões da
história na cultura.
Para Strathern (2014, p. 214), o argumento de Sahlins (1985) implicou ainda
em outras consequências importantes para a teoria antropológica. Ao deslocar a
distinção entre evento e estrutura com base numa relação redutível entre ambos, tornou-
se imprescindível que se considerasse que essa relação de redutibilidade fosse do
mesmo tipo da existente entre o sujeito que conhece e os objetos de conhecimento.

29
Assim, compreender evento enquanto uma relação entre acontecimento histórico e
sistema simbólico acabou por submeter a noção de acontecimento e de história a uma
posição permanente de fato natural, de modo que a interpretação cultural ou simbólica
tornou-se um processo de domesticação do acontecimento histórico. Além da
consequência apresentada, para Strathern (2014), a abordagem de Sahlins (1985)
promoveu também uma influência no modo como os antropólogos passaram a pensar e
tratar os artefatos. Nesse sentido, estudos de cultura material ou artefato foram
vinculados a substratos tecnológicos ao passo que estudos da sociedade ou da cultura
foram vinculados a processos de abstração dos arranjos sociais e seus valores. Essa
proposição fez com que os artefatos fossem tratados como meras ilustrações da
elucidação dos sistemas sociais e culturais (político, religioso, parentesco, gênero). Dito
de outra maneira, evento passou a ser considerado um acontecimento histórico
culturalmente interpretado, enquanto que artefato foi tomado como item material cujo
significado e sentido precisava ser elucidado antropologicamente a partir de um
determinado contexto histórico.
Além disso, ainda conforme as análises da autora, essas formulações analíticas
em defesa da necessidade intrínseca da contextualização histórica de eventos e artefatos
acabaram por assumir que as respostas das pessoas eram sempre o resultado de seus
esforços para orientar suas cognições em relação a um acontecimento imprevisto ou
desconhecido, social e culturalmente. De tal modo, a condição de consciência mais
verdadeira de um fenômeno acabava por estar sempre do lado daquele grupo de pessoas
que se consideravam a recorrência histórica na vida de outras pessoas ou grupos. Nesse
sentido, os europeus permitiram-se supor que detinham o poder (a verdade) da situação
de encontro com os melanésios por se considerarem a recorrência histórica para as
pessoas da Papua Nova-Guiné.
Strathern (2014) argumenta que a diferença crucial do modo melanésio de lidar
com evento como artefato em relação ao modo histórico como os europeus lidaram, tem
a ver com diferentes visões do tempo. Para os europeus recém-chegados nas ilhas da
Melanésia, assim como para Sahlins (1985), eventos são ocorrências idiossincráticas
(acontecimentos históricos) e suas relações com outros eventos devem ser expostas
enquanto progressão, uma após a outra. Para os melanésios, eventos são performances,
ou artefatos, e são conhecidos a partir de seus efeitos, a partir das formas que ocultam e
revelam. Essa formulação melanésia, defendida pela autora, remete ao debate de
Wagner (1986, p.210) que propõe pensar sucessão de formas como sucessão de

30
deslocamentos (e não uma progressão), de modo que cada sucessão é a substituição de
uma sucessão anterior. Dito de outro modo, para Wagner (1986b) cada imagem é uma
nova imagem e contém tanto o passado (efeitos-imagens) quanto o futuro (imagens-
efeitos). Essa associação de eventos como efeitos-imagens e/ou imagens-efeitos levou
Strathern (2014) a afirmar que diferentemente dos europeus, os melanésios esforçaram-
se para transmitir uma imagem que é contra histórica ou anti-histórica. Nesse sentido,
qualquer tentativa de formulação de uma etno-história ou da explicitação de um
contexto histórico perde o sentido etnográfico. Por este motivo, a proposta da autora é
voltar os seus olhos e as suas lentes para como os Melanésios apresentam os „efeitos‟
dos eventos e das imagens para si mesmos, “e isso não se parece em absoluto com nossa
„história‟” (Strathern 2014, p. 214, aspas simples no original).
Tratar o advento europeu, segundo o modo melanésio de formulação de
artefato como evento e performance, permite um tratamento antropológico distinto da
compreensão desse evento como um acontecimento histórico interpretado, segundo um
determinado panteão cultural anteriormente estabelecido. Nas palavras da autora, “[..]
não precisamos supor uma desorientação cognitiva porque não precisamos supor que os
melanésios pensaram estar lidando com seres cuja descontextualização representava um
problema” (Strathern, 2014, p.220).
Inspira-me especialmente a proposta de ampliação do conceito de artefato,
incluindo performance e evento, para que se possa usar essa extensão para comutar
metáforas. Para isso, ainda conforme os argumentos de Strathern (2014), faz-se
necessário esvaziar nossa noção de história como uma ocorrência natural de eventos que
interfere na estrutura social. É preciso falar das pessoas usando um evento assim como
se usa uma faca, ou criar uma ocasião assim como se cria uma máscara. Esse
procedimento pode ser considerado como uma maneira de controlar nossas próprias
metáforas na escrita. Desse modo, tomar eventos como artefatos permite-nos visualizar
como, ao enfrentar o imprevisto, as pessoas agem dotadas de poder.

Essa proposição permite mostrar a aptidão melanésia ao inesperado. E


permite mostrar que os melanésios pensaram o evento da chegada dos
europeus por meio de sua única referência possível: seus efeitos sobre eles
mesmos. (Strathern, 2014, p.228).

Foi entusiasmada com a proposta metodológica de Strathern (2014), que optei


por descrever a crítica Mẽbêngôkre-Xikrin à política dos brancos como forma que não
persuade, caraterizada negativamente a partir de três artefatos: reunião, documento e

31
projeto. 14 E é por meio dessa montagem ou dessa imagem da política dos brancos que o
processo de licenciamento e construção de Belo Monte aparece nesta tese. O que quer
dizer que não será apresentado aqui um encadeamento histórico desse processo, mas
uma sucessão de imagens etnográficas que permite evidenciar e dar potência às
apreciações críticas dos Xikrin aos brancos a partir desses eventos ou artefatos.
Vale a pena insistir que essa apreciação crítica dos Xikrin à política dos
brancos, a partir de três de seus artefatos (reunião, documento, projeto), foi uma
recorrência durante minhas pesquisas de campo. Dessa maneira, meu problema tornou-
se o de articular essa crítica numa escrita antropológica que a fizesse potente, que não a
localizasse num contexto histórico de sucessão causal de eventos do processo de
licenciamento e construção de Belo Monte.
Para cumprir esse objetivo, optei por dar destaque, na primeira parte da tese, a
três artefatos de persuasão da cultura Mẽbengôkre [kukràdjà]: rituais, falas formais e
pinturas corporais. Esses artefatos permitiram-me elaborar uma imagem de contraste
aos três artefatos depreciativos da política dos brancos. Importante explicitar que o
recorte dos três artefatos da cultura Mẽbengôkre [kukràdjà] é um recurso descritivo e
que os Xikrin valorizam inúmeros procedimentos e conhecimentos de seus modos de
existência, além dos mencionados, que também poderiam servir de contraste com o
modo de existência dos brancos. Em outras palavras, além de ser um importante
mecanismo textual para o desenvolvimento desta tese, a operação de analogias por
contraste era também constantemente realizada pelos Xikrin que recorriam aos artefatos
valorizados dos seus modos de existência como um contraponto para me explicitarem
suas críticas à política dos brancos.
Por outro lado, a política dos brancos criticada pelos Xikrin não é o único
modo de expressão do mundo dos brancos, apesar de ser, conforme minha
argumentação, um dos mais devastadores desses modos. É importante registrar que os
Xikrin não estabelecem apenas relações de crítica e distanciamento com os modos de
existência dos brancos, como irei discutir na conclusão. Eles também estabelecem
relações de captura e demonstram encantamento por alguns artefatos dos brancos como
bens materiais, tecnologias e capacidades. Entretanto, para a proposta desta introdução,
14
Agradeço imensamente à Catarina Morawska Vianna e sua dedicação às reflexões sobre metodologia
na antropologia, inspirada principalmente pelos escritos de Strathern e discutidas no Laboratório de
Experimentação Etnográfica (LE-E) na UFSCar. Desde o início de nossas interlocuções, suas
preocupações metodológicas (políticas), tornaram-se um ponto de referência muito importante para o
desenvolvimento de minha pesquisa. Meu experimento deve muito a essa inspiração, interlocução e
afecção.

32
faz-se importante que a apreciação negativa dos Xikrin à política dos brancos, bem
como as formas como eles a visibilizaram, seja o foco da descrição.
Ainda com o intuito de fortalecer essa imagem crítica, apresento a seguir duas
narrativas míticas e uma reflexão de Irekà, mulher Xikrin da aldeia Bacajá. Estas três
asserções valorizam a importância das águas e dos regimes das cheias dos rios e serão
acionadas posteriormente para retomar o conceito de impacto a partir da construção de
Belo Monte.
As falas ou narrativas dos antigos [iarem tum] são consideradas pelos
Mẽbengôkre-Xikrin como conhecimento das pessoas mais velhas que já possuem
muitos filhos, filhas, netos e netas. Essas pessoas são as únicas a pronunciarem essas
falas, seja em situações de encontros vespertinos ou matinais na casa do meio [ngàb]
com a presença de muitas pessoas da aldeia ou nas cozinhas das casas para um público
mais específico.
15
Uma dessas narrativas, coletada por Vidal (1977, p.221) , trata da vingança
de dois irmãos, Kukkrut-Kako e Kukrut-Uíre, a um gavião que havia comido sua avó
[kwatyi] (MM, FM, FZ) 16 quando eram crianças. Para que os netos 17 pudessem matar o
18
gavião, seu avô [ngêt] (MF, FF, MB) os imergiu num grande lado profundo e os
deixou ali por dois meses. Os meninos eram alimentados dentro da água e quando
atingiram o tamanho adequado, de modo que seus pés já apontavam do outro lado do
19
rio, saíram da água para matar o gavião com as bordunas que seu avô lhes fizera. Os
irmãos, após cansarem o gavião, mataram-no usando suas bordunas e lhes retiraram as
penas usando-as como enfeite. As pessoas cortaram as penas do gavião morto que se
transformaram em pássaros.

15
Utilizo aqui uma adaptação das versões publicadas pela autora por ainda não ter conseguido realizar a
tradução dessas narrativas, contadas a mim por Motmar. Durante uma parte de minha estadia em campo,
Bep Nho realizou comigo algumas traduções dessas falas do mẽkukràdjà tum [cultura Mẽbengôkre dos
velhos]. Bep Nho e eu demoramos mais de dois meses para realizar a transcrição de apenas uma dessas
falas, já que não era possível que ele se dedicasse exclusivamente a essa tarefa. Consideramos então mais
adequado realizar esses processos de tradução em outros momentos e de preferência com algum recurso
financeiro disponível que pague pelo trabalho de tradução. Cohn (2005) apresenta uma série de reflexões
e análises sobre as narrativas míticas Mẽbengôkre-Xikrin, tanto a partir do processo de tradução por meio
do uso de gravador, quanto em relação aos resultados das traduções transcritas.
16
Mãe da mãe, mãe do pai, irmã do pai.
17
A categoria adequada é tabjwỳ que se refere aos filhos dos filhos ou filhos das filhas e filhos das imãs,
no caso dos meninos. Essas categorias serão discutidas ao longo da tese.
18
Pai da mãe, pai do pai, irmão da mãe.
19
Tipo de arma comum entre vários povos ameríndios e bastante apreciada pelos Mẽbengôkre-Xikrin.
Normalmente é feita a partir do talhamento de um único tronco de árvore e usada tanto em expedições
guerreiras como em expedições de caça.

33
A outra narrativa, também transcrita por Vidal (1977, p. 221), refere-se à ação
de um avô xamã que se jogou no fogo do berarubu20 de sua irmã ao perceber que seu
neto havia queimado o pé. O avô ficou muito queimado e correu mergulhando nas
profundezas do rio para curar seus ferimentos, onde ficou imerso por três invernos e três
verões. Quando o avô voltou para aldeia com muitos peixes em seu cabelo, foi até a
casa do meio e dançou, cantando uma música que ninguém conhecia e que ele havia
aprendido com os peixes numa cerimônia de nominação feita pelos animais no fundo do
rio. O avô xamã transmitiu os nomes de prefixo Bekwỳ para sua neta e de prefixo Bep
para seu neto, realizando essa cerimônia de confirmação dos nomes na aldeia.
Ambas narrativas mostram as profundezas das águas como importantes fontes
de apropriação de bens, prerrogativas, capacidades e nomes para os Mẽbengôkre. Por
meio das profundezas das águas, os Mẽbengôkre aprimoraram e expandiram seu
conhecimento e cultura, kukràdjà [mẽkukràdjà]. No primeiro caso, os irmãos, após a
imersão nas águas, conseguiram matar o gavião, adquirindo adornos cerimoniais de
penas e criando, por meio da transformação das penas do gavião morto, as várias
espécies de pássaros. No segundo, após uma longa temporada sob a profundeza das
águas, o avô xamã transmitiu aos netos e às netas os nomes aprendidos com os peixes e
ensinou a cerimônia de confirmação desses nomes para as pessoas nas aldeias.
Que benefícios os Mẽbengôkre-Xikrin poderão extrair de águas rasas, de um
rio que estará permanentemente em situação de seca? Como lidar com o barramento do
rio Xingu, que, segundo as teorias dos Xikrin, fará o rio Bacajá perder seus regimes de
cheia, tornando-o inerte, improdutivo e incapaz de promover adequadamente a vida?
Essas questões afligem os Xikrin de modos brutais, como podemos ver a partir da
reflexão de Irekà.
Numa manhã, durante uma de minhas estadias em campo, as mulheres da
aldeia Bacajá, com seus facões e paneiros em mãos, chamaram-me para acompanhá-las
em mais uma de suas atividades: a retirada de uma casca de árvore [bàt prãn] usada
como carvão para confecção da tintura de jenipapo [mroti kango]. O trajeto em um
motor rabeta cruzava a névoa matinal e mostrava um rio cuja paisagem seria brutal e
permanentemente modificada pela barragem. No meio da sensação de uma futura
nostalgia que se desenhava, Mopkure ajeitava pacientemente seu cachimbo entupido

20
Berarubu ou djwy kupu é uma massa feita de massa de mandioca assada do forno de pedra [ki] e
enrolada com folhas de bananeiras. Essa massa pode ser assada junto com a carne de animais de caça
[mru kupu] ou com peixe [tep kupu]. As mulheres Xikrin também fazem essa massa com banana [tuturi
kupu].

34
pelo excesso de tabaco consumido nos dias anteriores. O silêncio da nostalgia visionária
foi quebrado por Irekà ao ver dois filhotes de tracajás [krantoe ngrire] tomando sol no
tronco de uma árvore caída na margem do rio. Diante da cena, disse:

Barragem é punure [feia, horrível], as tracajás vão morrer, os filhotes


das tracajás vão morrer, á agua vai secar, não terá mais água boa para
banhar. Barragem é punure, as mulheres não querem barragem. Nós
vamos bater no chefe da barragem e vamos cortar a orelha dele.
Estamos bravas. Não estamos brincando. Os homens brancos fazem
muitas reuniões falsas. Nós mulheres, somos fortes, não somos fracas
não. Vamos falar duro contra a brarragem. Vamos tomar as chaves das
máquinas e nunca mais vamos devolvê-las.

A formulação de Irekà ocorreu após a ocupação do canteiro de obras da


hidrelétrica que menciono no início deste texto. A imagem da parede de pedra
obstruindo as águas do rio Xingu tinha se tornado uma realidade e assombrava as
conversas das pessoas nas aldeias. Especialmente, as mulheres evidenciavam em suas
conversas a possibilidade da mudança brutal dos seus modos de vida decorrentes do
barramento das águas do Xingu. Ver as tracajás ao sol no tronco caído levou Ireká a
expressar seu pavor e fúria fazendo-a imaginar o secamento do rio Bacajá, o
desaparecimento dos animais aquáticos, a fuga dos animais de caça, a morte das plantas
que compõe as margens do rio, o fim das regiões alagadas na época das cheias e,
sobretudo, a incerteza em como gerir suas vidas naquelas condições. Um pavor que se
associa com a possibilidade da perda do controle de seus modos de existência.
Tomar as chaves das máquinas pareceu à Irekà a maneira mais eficiente de
interromper a continuidade da construção da obra, de manter o fluxo das águas e
garantir o regime de cheias do rio Bacajá. Fazer parar as máquinas pode ser uma
imagem associada com uma intenção de Irekà em tentar desenvolver ações de controle,
em tentar retirar os brancos de Belo Monte do controle de suas máquinas, em impedi-los
de barrar o rio Xingu.
Irekà, ao imaginar a tomada das chaves das máquinas, formulou uma imagem
interessante que associo agora com uma proposta de ação para evitar a invasão do leste,
ponto de origem da vida, pelo oeste, morte. Segundo a cosmologia Mebêngôkre,
partindo das reflexões de Vidal (1977) e Giannini (1991), o leste [koikwa-krai] é um
ponto de origem da humanidade, da vida e das águas; o oeste [koikwa-ênhôt], por sua
vez, não é referido por meio de localização, mas por meio dos seus efeitos decorrentes

35
da capacidade de destruição do mundo e, por isso, associado à escuridão e ao fim do
mundo.
Quero tomar de empréstimo essa reflexão cosmológica de leste e oeste para
situar conceitualmente os brancos de Belo Monte, a barragem do Xingu e a política dos
brancos ao lado do oeste, do fim do mundo, fim da vida e escuridão. O ponto de
surgimento dos Mẽbengôkre ou da humanidade, leste, é também designado como
origem dos fluxos das águas, das corredeiras e rios. Juntos, fluxos de água e pessoas
Mẽbengôkre, povo que saiu do buraco d‟água, originaram-se no leste. As águas, seus
fluxos e a humanidade (Mẽbengôkre) relacionam-se mutuamente de modo a se
estabelecerem como condições imbricadas de existência, formatando poderosas
conexões de origem e continuidade. Belo Monte é a concretização da imagem pavorosa
do oeste, do barramento de um rio, fim da vida e dos fluxos da água. Belo Monte é uma
invasão do oeste no leste.
O leste [koikwa krai], a referência originária dos fluxos, opõe-se ao oeste
[koikwa ênhôt], o estático. O oeste, meio de produção do homem branco e da civilização
ocidental ou, mais precisamente, da política dos brancos, ao se intrometer no leste, quer
por fim aos fluxos das águas. O oeste quer o fim dos modos de existências outros, a
morte da ontologia caipora, diria Almeida (2013).
Com Belo Monte, segundo as teorias apavorantes de homens e mulheres
Xikrin, o rio Bacajá perderá seu fluxo, perderá seu regime de cheia e entrará num estado
de inercia e improdutividade, ou, fim da vida. O barramento das águas causa a morte, de
espécies animais, vegetais, e pode se estender aos próprios Xikrin, que constantemente
anunciam suas preocupações e medo: “o que irão comer os nossos netos? Como iremos
viver assim?”. Belo Monte, emblema da devastadora política dos brancos, o oeste, o fim
das águas, a escuridão, o fim da vida.
Essa imagem de analogia por contraste só é possível ser acionada dessa
maneira porque o processo de licenciamento e construção da hidrelétrica não está
referido a partir de um esforço analítico voltado à necessidade da contextualização
histórica. Tal visualização de Belo Monte só consegue tomar forma porque a minha
máquina de registro foi posicionada atrás das costas ou por sobre os ombros de Tedjore
e de outras pessoas Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá. Um procedimento
descritivo que corrobora com minha intenção em evidenciar a crítica Mẽbengôkre-
Xikrin à política dos brancos e tentar incitar os brancos a repensar seus modos de fazer
política. Destacar a crítica dos Xikrin à política dos brancos tem também como

36
aspiração instigar os antropólogos a questionarem etnograficamente conceitos e suas
definições. Finalmente, empenha-se em aguçar o leitor para que se permita, ainda que
por um único instante, imaginar-se num mundo diferente deste produzido pela política
egoísta dos brancos de Belo Monte.

Desenho da tese e seus capítulos

Eu gostaria de alertar o leitor que o argumento da tese se repetirá ao longo dos


capítulos. O recurso da repetição empregado como modo de apresentação das análises
se conforma com a estética das falas formais mẽbêngôkre que usam certas formas de
enunciações repetidamente constituindo um ritmo específico a suas encadeações. Um
dos efeitos desse recurso pode ser uma sensação de congelamento ou fixidez da relação
dos Xikrin com a política dos brancos de Belo Monte. Essa sensação pode ser uma
maneira eficiente de visualização da imagem crítica dos Xikrin aos brancos de Belo
Monte e suas ações egoístas e sovinas, a partir do barramento do rio Xingu e fim do
fluxo nos regimes de cheia e enchente do rio Bacajá.
A tese é dividida em duas partes. A primeira parte trata dos artefatos de
persuasão da cultura Mẽbêngôkre, kukràdjà, com intuito de apresentar ao leitor alguns
dos importantes componentes dos modos de existência valorizados pelos Xikrin. Esta
primeira parte é composta por quatro capítulos que juntos apresentam imagens
etnográficas e reflexões bibliográficas dos regimes e procedimentos acerca da
consideração dos Xikrin sobre seus modos de existência, seus conhecimentos, sua
cultura.
O primeiro capítulo discute o conceito kukràdjà em termos do debate
antropológico e em termos dos esforços dos Xikrin em fazer com que seus modos de
existência sejam conhecidos, respeitados e valorizados pelos brancos, especialmente
pelos brancos de Belo Monte. O capítulo em questão destaca também o processo de
tradução dos Xikrin do conceito kukràdjà como cultura, reforçando o argumento de
tratar seus modos de existência como formas que persuadem.
O capítulo dois apresenta a descrição etnográfica de um ritual de confirmação
de nomes belos ocorrido na aldeia Bacajá. A intenção é oferecer uma reflexão
etnográfica que enfatize os processos de engajamento coletivo para realização da

37
performance, enquanto modos de elicitação de certos comportamentos e convivialidade
que caracterizam os modos mẽbêngôkre de existência [kukràdjà], pautados por ações de
afastamento das práticas de egoísmo e celebração da partilha alimentar e das relações de
parentesco e amizade formal.
No terceiro capítulo realizo uma apreciação sobre as falas formais e suas
correlações com posições de chefia. A intenção é apresentar as sequências de
apresentação dessas falas formais e suas formas de expressão marcadas pela repetição
de certas fórmulas, chamadas ben. A característica das falas formais enfatizadas no
capítulo é sintetizada pela expressão kaben pudji que marca suas qualidades de fala
como única, compassada, correta e verdadeira e serve como um importante contraponto
às falas dos brancos de Belo Monte marcadas pela tortuosidade, mentira e confusão.
O quarto capítulo destaca as pinturas corporais, expressão de conhecimento das
mulheres [menire nho kukràdjà], como processos fundamentais na constituição das
pessoas Mẽbêngôkre que visibilizam ao mesmo tempo em que promovem relações de
parentesco e amizade formal. As pinturas e suas aplicações são operações fundamentais
na vida das pessoas Mẽbêngôkre, cujos corpos dependem das tinturas de jenipapo e
urucum para crescem sadios e da maneira correta entre os parentes.
A segunda parte apresenta a política dos brancos a partir dos seus três artefatos
negativados pelos Xikrin. As relações entre esses artefatos negativos fundamentam a
proposição da política dos brancos como algo ruim, ineficaz e improdutivo. Política dos
brancos é tratada como uma cadeia fracassada de eventos marcados por esses artefatos:
a reunião, o documento, o projeto. A atribuição crítica dos Xikrin à política dos brancos,
a partir de três de seus artefatos, pode repercutir interessantemente com uma das
análises de Foucault (2005, p. 28) que, ao discorrer sobre os mecanismos de operação
do poder nas sociedades europeias ocidentais, fundamenta-os triangularmente numa
associação contínua e continuada entre poder, saber e jurisprudência.

O que eu tentei percorrer, desde 1970-1971, era o “como” do poder. Estudar


o “como do poder”, isto é, tentar apreender seus mecanismos entre dois
pontos de referência ou dois limites: de um lado, as regras do direito que
delimitam formalmente o poder, de outro lado, a outra extremidade, o outro
limite, seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder
conduz e que, por sua vez, reconduzem a esse poder. Portanto, triângulo:
poder, direito, verdade.

A importância da categoria três, que será apresentada no capítulo I, remete


tanto aos procedimentos Mẽbengôkre de classificação quanto ao modo de organização

38
textual da crítica por eles empregada. Nesse sentido, a segunda parte é divida em três
capítulos que juntos fornecem descrições e análises para o fortalecimento da imagem
crítica à política dos brancos, como artefatos que não persuadem.
O capítulo cinco trata da reunião, a partir de reuniões dos Xikrin com membros
da Norte Energia, como um dos artefatos depreciativos da política dos brancos. A
reunião é considerada como forma que não persuade por ser marcada pelo engajamento
destoante dos Xikrin em relação aos membros da empresa. Eles consideram que os
brancos de Belo Monte, ao se pronunciarem de forma mentirosa e conflitante, agem
para que os povos indígenas não alcancem suas reivindicações.
No sexto capítulo, apresento a apreciação crítica dos Xikrin a documentos,
outro artefato negativo da política dos brancos. Para visualização dessa crítica, dois
documentos são levados em conta. O “Parecer Técnico 21”, de autoria da FUNAI que
permitiu a continuidade do processo de licenciamento de Belo Monte e que caracterizou
os Xikrin como “povos geograficamente distantes do empreendimento” a pedido do
empreendedor, e os “Estudos Complementares do Rio Bacajá (ECRB)” que
desconsiderou as teorias Xikrin sobre os impactos da construção da obra como o
secamento perene do rio Bacajá. O capítulo não propõe uma análise documental
propriamente dita, mas sim a evidenciação do modo como os Xikrin avaliaram
negativamente essas peças técnicas, associando-as às classificações de kaigo [à toa,
falso, fajuto, fraudulenjto] e punu/punure [feio, horrível, incorreto].
O sétimo e último capítulo destaca mais um dos artefatos da política dos
brancos: projeto. A partir de um desentendimento entre os Xikrin e um consultor,
contratado para realizar um dos programas de mitigação previsto do Plano Básico
Ambiental Componente Indígena (PBA CI), o capítulo apresenta a avaliação negativa
dos Xikrin em relação à construção das casas de alvenaria nas aldeias, consideradas
feias e pequenas. As casas de alvenaria foram mencionadas pelos Xikrin como um dos
exemplos salutares das ações egoístas e sovinas que marcam a política dos brancos de
Belo Monte.
Na conclusão, retomo os argumentos apresentados ao longo da tese a partir da
caraterização negativa dos Xikrin em relação à política dos brancos e valorização de
seus modos de existência, a cultura (dos) mẽbêngôkre, kukràdjà.
Por fim, em todos os capítulos o argumento da crítica Xikrin à política dos
brancos será mencionado de modo repetitivo. Além de adotar essa técnica por
inspiração nos modos formais das falas Mẽbengôkre, a repetição permite que a imagem

39
crítica se fortaleça e se apresente de modos diversos. Partindo desse procedimento, os
capítulos desta tese podem ser lidos tanto de forma corrida, sequencialmente, quanto de
forma contrastiva. Desse modo, os capítulos 1, 2, 3, 4 podem ser lidos em contraste com
os capítulos 5, 6 ou 7. Ou seja, os capítulos da primeira parte podem ser lidos em
relação a quaisquer outros da segunda parte e vice-versa. Assim, essa possibilidade de
comutação de metáforas de um capítulo a outro foi o que me fez traçar a divisão da tese
em duas partes: analogias contrastivas.

40
Parte I.
Das formas que persuadem: mẽbêngôkre nhõ kukràdjà

No momento presente, uma guerra silenciosa está sendo travada contra


indígenas, agricultores inocentes, e ecossistema florestal na Bacia Amazônica da
América do Sul. Para muitos leitores, o imenso sofrimento e os danos causados na
Bacia Amazônica é um custo inevitável a ser pago por qualquer país que deseja
experimentar um rápido crescimento econômico. Esta posição, eu acredito, é um erro.
Não há nada de inevitável sobre o que está tomando lugar na Amazônia brasileira.
Também não há qualquer razão para acreditarmos que o programa de desenvolvimento
em curso irá beneficiar uma grande maioria de pessoas no Brasil.
Davis, S. 1977, p.167-168.

41
CAPÍTULO 1
Kukràdjà: cultura Mẽbengôkre

Ele não deve estar nos ouvindo bem. Recomecemos! Como fazer para que nossas
palavras sejam audíveis para ele?

Kopenawa, Albert, Bruce, Davi (2015, p.148)

Numa tarde chuvosa de inverno, enquanto tomávamos café na cozinha da casa


de Irekà, perguntei a ela se seria possível que uma pessoa não-Mẽbêngôkre aprendesse e
entendesse todas as coisas importantes que implicam o modo de existência
Mẽbêngôkre, se seria possível que um antropólogo compreendesse a maior parte do
conjunto de práticas e conhecimentos kukràdjà. Diante de minha pergunta, ela riu como
se dissesse o quão ingênuo era meu questionamento e respondeu:

Para uma pessoa saber mesmo como precisa ser para ser Mẽbêngôkre, para
essa pessoa saber muito dos modos de conhecimentos dos Mẽbêngôkre,
saber muito de kukràdjà, ela precisa vir viver aqui. Mas não como você faz.
A pessoa precisa viver aqui mesmo, de verdade, e nunca mais ir embora.
Essa pessoa precisaria casar aqui, fazer roça, ter filhos, participar das festas
[metoro], aprender os cantos, falar bem a língua, ouvir os velhos e as velhas
contarem as histórias dos antigos [moja arem tum], ir pegar castanha e açaí,
saber fazer fogo de pedra [kῖ] e, esquecer a língua do povo de onde a pessoa
saiu.

Irekà é mãe de Ngrenhgri que é esposa [pron] de Cabokinho, ou Katendjo


Xikrin, que por bastante tempo ocupou a posição de segundo cacique da aldeia Bacajá.
A casa de Irekà, localizada ao lado da casa de sua filha e de seu genro, era
constantemente ocupada por um número maior de pessoas que normalmente visitam ou
frequentam as casas dos parentes próximos. Isso ocorria porque, como já demonstrado
por Fisher (1998), sendo mãe de uma mulher casada com um homem de posição de
liderança ou chefia, sua casa era, tal como a de sua filha, local de encontro das mulheres
antes de saírem juntas para alguma atividade compartilhada como trabalhos na roça,
busca de lenha, busca de açaí ou bacaba.
Cabokinho, o genro de Irekà, é filho de pai Kayapó e mãe Kuruaia, e por ter
sido criado na cidade de Altamira, pode ser tomado como um exemplo sobre como
apreender e aprender grandes aportes do complexo de práticas e conhecimento kukràdjà
através do casamento e da permanência efetiva e afetiva na aldeia. Sua fixação da na

42
aldeia Bacajá e seu casamento com Ngrenhgri fez com que relações de aparentamento e
amizade formal se estabelecessem entre os moradores da aldeia, de modo a ser
escolhido como segundo cacique e tendo permanecido por bastante tempo nessa
posição. Ele foi posteriormente deposto de sua posição de chefia e se mudou com a
esposa e seus filhos menores para outra aldeia. A deposição de Cabokinho, como eu
mostrarei adiante, está diretamente relacionada com os debates dos Xikrin da aldeia
Bacajá sobre kukràdjà e sobre a valorização desse modo de existência tipicamente
Mẽbêngôkre. Por ora, o importante é ressaltar que a partir de certos conjuntos de
práticas, vivências cotidianas, domínio linguístico, estreitamento e respeito por certas
relações de parentesco, distribuição e partilha alimentar, organização e realização de
festas cerimoniais, é possível que alguém que não tenha nascido numa aldeia
Mẽbêngôkre possa desfrutar e entender esse modo de existência definido como
mẽbêngôkre nho kukràdjà, desde que se comprometa num engajamento efetivo e afetivo
com os Xikrin. 21
Outro exemplo da possibilidade de como se tornar uma pessoa Mẽbêngôkre e
partilhar o modo de existência conhecido como kukràdjà pode ser o da criação (no
sentido de adoção, mas também de formação e nutrição dos corpos) de crianças cativas,
capturadas de outros povos à época anterior ao contato com os brancos. Uma época em
que os Xikrin envolveram-se em inúmeras guerras com os grupos indígenas da região
22
como os Araweté, Parakãna, Assurini. Esse período intenso das incursões guerreiras
contra outros povos ainda é bastante vívido entre os homens mais velhos e mulheres
mais velhas da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e mesmo hoje é possível identificar os
homens e as mulheres que foram capturadas e capturados nessas incursões guerreiras,
tendo sido criados ou criadas pelos Xikrin como gente Mẽbêngôkre, e tendo de fato se
tornado, como o caso de um desses homens, grande chefe e ainda hoje atuando como
cacique antigo 23.

21
Cohn (2005) apresenta como opção conceitual para mebêngôkre nho kukràdjà, o termo mẽkukradjá
[mẽ: coletivizador/ nós; kukràdjà: cultura, conhecimento, modo de vida dos Mẽbengôkre].
22
Para uma apreciação etnohistórica, nas palavras do autor, desse período entre os Xikrin da Terra
Indígena Trincheira-Bacajá, ver: Fisher (2000). Para uma análise de narrativas (mítico-históricas) que
mencionam os períodos em que os Mẽbengôkre Xikrin (da Terra Indígena Trincheira-Bacajá) eram
bravos [akrè] e guerreavam com seus vizinhos, ver Cohn (2005). Os rendimentos da guerra como um
importante dispositivo mẽbêngôkre de incremento de kukràdjà e criação de fontes de distintividade serão
retomados na segunda parte da tese a partir, especialmente do artigo de Cohn & Sztutman (2003) e Cohn
(2006, 2010).
23
Trata-se de Tedjore Xikrin, mais conhecido como Seu Domingos. Ele e seu irmão, Tapiêt, foram
capturados pelos Xikrin dos Araweté. Eu nunca, entretanto, os ouvi referirem-se como cativos ou algo
parecido; ao contrário, ambos são típicos Mẽbêngôkre e referem-se desse modo sobre si mesmos. Os dois

43
Mas como percebe Irekà, essa é uma realidade bastante distante daquela
comumente vivida pelos antropólogos, que mesmo interessados em entender e aprender,
de modo mais correto possível, os conhecimentos e práticas que envolvem kukràdjà nho
mẽbêngôkre, não são capazes de operar em suas vidas esse tipo de engajamento
necessário para acessar maiores partes desse complexo.
O que quero mostrar com essa breve reflexão é a capacidade do complexo
kukràdjà nho mẽbêngôkre, ou o modo de vida que produz gente mẽbêngôkre, de
incorporar a presença de seres e agentes exteriores, atuando na transformação desses
seres, tornando-os capazes de operarem o engajamento necessário para que as ações e os
comportamentos sejam coerentes com os considerados modos corretos de se engajar e
de agir, amplamente compartilhados entre os povos Mebêngôkre. Essa capacidade
depende da ação das pessoas Mẽbêngôkre nesses processos de incorporação e modos de
24
processamento _ou digestão, como diz Fausto (2006) _ dos agentes externos e a
conformação/transformação deles ao que é considerado necessário para que se tenha
uma vida correta/verdadeira [mejx kumrex] e boa, bela [mejx kumrex].
No caso dos antropólogos que são, segundo Irekà, incapazes de abandonar suas
formas de vida e suas cidades para mergulhar nos infindáveis componentes do modo de
vida Mẽbêngôkre, cabe o compromisso da montagem de um texto etnográfico que esteja
engajado com aquilo que os Mẽbengôkre querem dizer sobre si, aquilo que eles querem
mostrar sobre si e, principalmente, as coisas que eles têm a dizer sobre nós, os brancos,
e sobre os nossos modos de existência. Uma das propostas mais urgentes desta tese é
“levar absolutamente a sério” (Viveiros de Castro, 2015) o que as pessoas com quem se
convive estão dizendo ou mostrando para nós e, sobretudo, sobre nós.
Por ser uma questão de engajamento máximo num modo de existência,
kukràdjà é um desses termos metassemânticos que complicam a vida dos antropólogos.
Utilizado pelos índios Mẽbêngôkre numa gama variada de situações, o conceito parece

irmãos ocuparam posições de chefia nas aldeias e são ainda hoje referidos como mekatumbre [pessoa
velha] que conhece muito (de) kukràdjà e sabem falar como chefes e contar as histórias dos antigos [moja
arem tum]. Voltaremos a esses irmãos muitas vezes ao longo da tese. Vale a pena ressaltar que uma
reflexão sobre os modos de criação de pessoas Mẽbengôkre, destacando esses mesmos irmãos que
menciono é realizado por Cohn (2005, p. 116-118).
24
Em prefácio à publicação de Gordon (2006), Fausto (2006) elogia a etnografia do autor sobre a relação
dos Xikrin do Cateté com aumento do consumo de bens industriais por questionar a distinção entre os
povos Jê do Brasil Central, considerados a partir de regimes dialéticos e os povos da floresta densa,
considerados a partir de regimes minimalistas. Fausto (2006) concorda com a argumentação de Gordon
(2006) sobre o caráter canibal do sistema mẽbêngôkre de captura de exteriores, e propõe que o modo de
processamento ou digestão das capturas é o que diferenciaria os povos Tupi dos Jê. A sugestão de Fausto
é que mais pesquisas sejam realizadas para melhor compreensão das “variantes indígenas da digestão do
mundo não indígena” (2006, p.28).

44
querer escapar de definições precisas e estáveis, dificultando as descrições
antropológicas explicativas. Se, kukràdjà tornou-se um imbróglio entre os etnógrafos
dos grupos Mẽbêngôkre, de modo que cada autor retém desse conceito definições que
lhe parece mais coerente, entre os Xikrin, a situação não é equivalente. Os Xikrin não
precisam traduzir para si mesmos o conceito kukràdjà, porque vão aprendendo a lidar
com ele ao longo de suas vidas, durante os processos de formação e maturação de seus
corpos, através dos modos corretos de realizar determinadas atividades e
comportamentos (Cohn, 2000). Apesar disso, os Xikrin esforçam-se para mostrar aos
brancos o que é e a importância de kukràdjà nho mẽbêngôkre.
Os pesquisadores rapidamente percebem que para realizar a operação de
tradução de kukràdjà para os brancos, os Xikrin do Bacajá (além de outros grupos
Kayapó e entre os Xikrin do Cateté) operam uma redução importante, pedagogicamente
falando, e associam-no ao conceito de cultura. Quando perguntados sobre o que é
kukràdjà, eles costumam responder: “é nossa cultura, a cultura dos Mẽbengôkre”.25
Minha sugestão é que ao associar o conceito kukràdjà ao conceito de cultura, os Xikrin
querem marcar suas diferenças em relação aos brancos e mostrar que seus modos de
existir são valorizados e importantes e que não deveriam ser ignorados. Os Xikrin
aprenderam que cultura é algo muito importante para os brancos, especialmente após
reestruturação da FUNAI 26 e exclusão da figura do chefe de posto nas aldeias.
Esse procedimento de tradução e, consequentemente redução, operado pelos
Xikrin do conceito kukràdjà ao de cultura não é tomado aqui como uma resposta dos
padrões ideológicos desses povos em relação à história de intensificação de contato com
os brancos, como defendem as análises de Turner (1993). Segundo esse autor, e
seguindo um aporte marxista, a tradução pelos povos Mẽbêngôkre do termo nativo pelo
termo cultura em português está diretamente relacionada com o surgimento histórico de
uma autoconsciência étnica, que por sua vez só pode existir em relação a esse contato
com a sociedade envolvente dos brancos com a qual precisam lidar de modo a impedir
que se tornem dependentes dela. Apesar de considerar o autor um antropólogo engajado
com os Mẽbengôkre Kayapó, grande conhecedor de kukràdjà, e suas contribuições
serem de extrema importância para a etnologia indígena, meu caminho de argumentação
segue um rumo diferente do proposto pelo etnomarxismo histórico de Turner (1993).
25
Uma interessante reflexão de Onça ou Bep Tok, cacique antigo da aldeia Bacajá, sobre kukràdjà como
cultura é referida por Cohn (2008), a partir de sua afirmação de que “Toda boa fala é sobre kukràdjà”.
26
Para um debate sobre a reestruturação da FUNAI e a questão do licenciamento de Belo Monte, ver:
Cohn (2010).

45
Não é minha intenção explicar a tradução dos Mẽbêngôkre-Xikrin de kukràdjà
por cultura como se fosse preciso encontrar um respaldo histórico, um marco de origem
ou um contexto sócio histórico específico. Inclusive porque, como se tem debatido pela
etnologia indígena inspirada nas reflexões de Lévi-Strauss na tetralogia das Mitológicas,
o aparecimento dos brancos é explicado nos mitos como decorrência de alguma ação
desajeitada dos primeiros humanos, os índios. Segundo essa gama ampla de mitos
ameríndios que tratam da origem dos humanos, os brancos estão previstos desde a
ocorrência da humanidade dos próprios grupos indígenas e não surgem a partir de um
aparecimento histórico da relação de contato.
Também não é suficiente considerar os usos recentes dos povos indígenas do
termo cultura como uma linguagem política nascida dos movimentos sociais indígenas,
ou como uma metalinguagem que, por ser consciente, necessita de aspas para ser
referida. Cultura, para o argumento desta tese, obtém o sentido forte Xikrin de sinônimo
de kukràdjà, modo de existência dos Mẽbengôkre, e por isso, levar absolutamente a
sério essa tradução implica em não a considerar uma representação consciente de algo
que certos modelos antropológicos podem tratar como consequência de um contexto
histórico de acirramento do contato com os brancos.
Nesse sentido, a discussão realizada por Carneiro da Cunha (2009, p.313) sobre
as diferenças de usos do conceito de cultura entre os antropólogos e os nativos, ou
melhor, entre a política acadêmica e a política étnica, que caminham na direção
contrária, merece ser problematizada. A autora realiza um importante debate sobre
como o conceito de cultura indígena tem sido folclorizado e diminuído pelas políticas
nacionais e internacionais, ao mesmo tempo em que tem sido apropriado pelos povos
indígenas como propriedade intelectual. A questão levantada pela autora desemboca nos
complexos processos de tradução entre os etnógrafos e os índios. A pergunta é
pertinente: “O que fazer se todo nosso jargão ocidental como sociedade, representação,
autoridade não tiver nem nunca tiver tido qualquer equivalência entre os outros povos?”
(Carneiro da Cunha 2009, p. 337). Sabemos que o conceito de cultura para o que
poderíamos chamar “imaginação ocidental” é restritivo a um tipo de produção de
conhecimento e a um conjunto específico de práticas como grafismos corporais, uso de
alucinógenos e eméticos, rituais, e assim por diante. Nesse sentido, algumas práticas
consideradas impróprias ao aspecto folclorizado das culturas indígenas são expulsas do
conjunto semântico do termo e normalmente não são enfatizadas nas descrições
etnográficas como, por exemplo, as situações de ataques de grupos indígenas a outros

46
grupos ou os modos para obtenção de acesso a dinheiro e mercadorias dos brancos. Aos
antropólogos, como sugere a autora, parece caber essa tarefa de etnografar como esse
conceito é usado pelos povos indígenas. O mais interessante é levar em conta que os
próprios índios vão moldando e delineando certos temas e composições do que seja
cultura, evitando aquilo que consideram que incomodarão a imaginação dos brancos.
Entretanto, quando a intenção dos grupos indígenas é justamente causar incômodos e
desconfortos ao pensamento ocidental e criticar o modo de existência dos brancos, então
é preciso forçar a pena justamente onde os índios também o estão fazendo. Nesse
sentido, um debate sobre a metalinguagem ou não do termo cultura torna-se
desnecessária.
Bruce Albert na incrível tarefa com David Kopenawa Yanomami (2015) para
levar aos brancos, os povos das mercadorias, as vozes de um xamã e as vozes da
floresta, insere no relato de seu parceiro autor xamã um conjunto precioso de notas de
rodapé para melhor situar o leitor nesse universo ontológico descrito em primeira
pessoa por Davi. Em uma dessas notas, Albert explica ao seu leitor sobre o uso de Davi
do termo “representante” 27 que se trata de uma palavra advinda do vocabulário político
corrente do jargão convencional do movimento indígena. Ao fazer isso, o antropólogo
parece pedir silenciosamente desculpa ao seu leitor pelo uso do termo,
antropologicamente obsoleto, por seu parceiro de pesquisa e de lutas políticas pelos
direitos indígenas. A nota refere-se a uma analogia de Davi para explicar a imagem
utupȅ em relação aos animais da floresta: “São essas imagens os animais de caça de
verdade, não aqueles que comemos! [...] Mas só os xamãs podem vê-las. A gente
comum não consegue. Em suas palavras, os brancos diriam que os animais da floresta
são seus representantes”. É justamente tentando escapar desse tipo de armadilha,
absolutamente bem intencionada do antropólogo, que o conceito de cultura tal como
anunciado pelos Xikrin para se referir ao conceito kukràdjà será utilizado aqui, sem uma
busca histórica da origem que explique esse uso.
Kukràdjà nho mẽbengôkre será tratado aqui como “forma que persuade”
(Strathern, 2014), como aquilo que toma forma e precisa ser mostrado de maneiras
específicas. O conceito é referido também como o que dá forma e constitui

27
Kopenawa, Albert, Bruce, Davi (2015), nota 15, p. 621.

47
determinados tipos de pessoas, como uma “estética/ética da visualidade” seguindo a
sugestão de Demarchi (2014) 28, e como “formas que comunicam” (Fisher, 2001) 29.
Ao deslocar o foco de busca por explicações e origens históricas por um lado
ou análises mitológicas a partir de um referencial da antropologia estrutural por outro,
tratar kukràdjà nho mẽbêngôkre como “forma que persuade” permite mostrar que sua
forma é feita em ato, através de encontros e engajamentos entre parentes Mẽbêngôkre,
entre os Mẽbengôkre e outros povos indígenas, entre eles e os brancos (de madeireiros a
ambientalistas), entre eles e animais no mato, nas viagens dos sonhos xamânicos, nas
cerimônias rituais, nas pescarias com barco a motor de popa, e infinitamente. Se me
parece possível dizer que os etnólogos dos povos Mẽbêngôkre concordam que esses
grupos, devido a seus métodos de captura e apropriação de exteriores que marcam sua
origem e sua condição de humanidade, vivem muito mais uma “tradição da invenção”
30
do que uma “invenção da tradição” , faz sentido que kukràdjà nho mẽbêngôkre seja
tratado por sua forma tal como feita em ato, e por isso, aberta a improvisações.
Nesse sentido, considero que o movimento de tradução realizado pelos Xikrin
do conceito kukràdjà como cultura tem mais a ver com aquilo que eles identificam
como sendo a nossa forma que persuade, isto é, o que consideram que nós, os brancos,
somos capazes de compreender. Como já notado acertadamente por Vidal (1977, p.28),
os Xikrin só explicam ou mostram aos brancos aquilo que eles consideram que os
brancos são capazes de entender. Em suas palavras, “[...] Os informantes [Xikrin] [...]
somente informam na medida em que o pesquisador é capaz de entender o assunto”.
A opção em tratar kukràdjà como “forma que persuade” associa-se à outra
formulação conceitual: “modo de existência” que implica o debate proposto por
Haraway (2003) acerca das diversas possibilidades de engajamento entre seres de
mesma espécie e/ou de espécies distintas. Ou seja, não se trata de descrever um estilo de

28
O autor inspira-se na discussão realizada por Lagrou (2007, 2012) sobre se é ou não é possível chamar
certos padrões gráficos dos povos ameríndios de arte, visto que não há, pelo menos na língua dos
Kashinawa, algum termo que possa traduzido dessa forma. A autora irá defender a pertinência do uso de
arte desde que arte, entre os povos indígenas, seja tomada pelos antropólogos como “um conjunto ético e
estético que marca” suas vidas. Essa acepção advém dos escritos de Overing (1991) sobre os Cubeo e os
Piaroa para quem, segundo seu argumento, não existe separação entre regimes éticos e estéticos.
29
A aliança analítica de Fisher é com um conjunto de autores e vocabulários semióticos como
importantes mecanismos de descrição dos rituais. Um debate mais aprofundado dessa questão será
realizado no capítulo 2.
30
Trocadilho conceitual realizado por Madi (2015) referindo-se à inversão de perspectiva sugerida por
Viveiros de Castro (1999) quanto ao tratamento analítico realizado por alguns autores como Hobsbawn &
Ranger (1984) em relação ao modo como grupos locais respondem às pressões globais. Essa inversão de
perspectiva também serve como contraponto ao argumento de Sahlins (1976, 1997) em relação à sua
formulação sobre “indigenização da modernidade”.

48
vida, mas engajamentos entre pessoas, seres e coisas. Segundo a autora, esses encontros
e modos de engajamento dos seres são feitos em ato e estão abertos a imprevistos e
inovações. Para os Xikrin, os engajamentos corretos precisam seguir certos princípios
específicos como, por exemplo, saber se comportar entre parentes, respeitando as
relações de jocosidade e evitação [pi’am] cabíveis a cada categoria numa relação, agir
com generosidade e compartilhar alimentos, falar corretamente e não mentir, ter corpos
constantemente pintados com jenipapo [mroti] e urucum [pỳ], saber cantar e dançar
durante as realizações dos rituais.

Trata-se, para eles, de produzir o kukràdjà, esse termo polissêmico


que por isso mesmo abarca aquilo que faz a pessoa mebêngôkre em
diversos níveis: a constitui, na condição de atributos e conhecimentos;
constitui o repertório e o modo de fazer ritual que atua em sua
construção; constitui, em termos ainda mais genéricos, os
conhecimentos necessários para toda atuação (adequada, apropriada,
mẽbêngôkre), no mundo, e que culminarão na produção de pessoas,
relações, afetos. (Cohn, 2005b, p. 68).

A intenção da primeira parte da tese é apresentar ao leitor aquilo que os Xikrin


consideraram, ao longo de minha trajetória de pesquisa, os pontos mais valorizados de
seus modos de conhecimento e de suas práticas. Esses elementos valorizados por eles,
que compõem o complexo conjunto conhecido como kukràdjà, marcam suas diferenças
em relação a outros grupos indígenas, e, principalmente, suas diferenças em relação aos
brancos. O conjunto dos conhecimentos Mẽbêngôkre, kukràdjà, não comporta uma
contemplação a partir de um suposto todo orgânico, pronto para ser explicado.
Primeiramente porque é sabido que tal conjunto é dinâmico, um fluxo de
31
transformações (incorporações e/ou reduções) ; segundo porque, foram esses os
aspectos do conjunto de conhecimento kukràdjà que se visibilizaram com mais
frequência durante minha pesquisa de campo e, sobretudo, foram esses aspectos que os
Xikrin selecionaram para explicar a mim suas críticas ao mundo dos brancos, durante o
processo de licenciamento e instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte. Esses
elementos ou partes do complexo kukràdjà destacados são: rituais de nominação e
quebra de marimbondo; fala de chefe, fala de guerreiro e modo de fala mẽbêngôkre;

31
Principalmente a partir dos escritos de Cohn (2005), Coelho de Souza (2002), Gordon (2006). Autores
que se dedicaram a questionar ou colocar sob escrutínio a marca analítica divulgada, na etnologia
indígena, sobre os povos Jê, considerados como grupos fechados e autônomos, autossustentados e com
regimes de transmissão de padrões sociais. Segundo Lea (1986, 2012), ao analisar o conjunto de
narrativas e mitos dos Mẽbengôkre, é possível perceber que as inovações e aquisições de itens culturais
desses grupos são, em geral, apropriações vindas de fora.

49
pinturas corporais cotidianas e cerimoniais. Assim, o capítulo dois discute o ritual de
nominação e seu modo de realização que precisa do envolvimento de todas as pessoas; o
capítulo três destaca o modo das falas cerimoniais, caracterizada como fala verdadeira e
forte; e o capítulo quatro, destaca as pinturas corporais enquanto uma marca necessária
à formação de corpos e pessoas Mẽbengôkre.
Antes de dar início a cada um dos capítulos, apresento ainda um debate sobre o
conceito kukràdjà tal como discutido pelos antropólogos em relação ao meu próprio
material de pesquisa. Para isso, descrevo um uso peculiar do termo kukràdjà junto com
o qualificador negativo punu [ruim, errado, péssimo, feio] e com o indicativo de lugar
kam [aqui, neste lugar, ali, naquele lugar] que me foi traduzido como “problema na
cultura” [kam kukràdjà punu]; e destaco a importância da tríade classificatória
Mẽbêngôkre [mejx: bom, correto/ kaigo: à toa, fajuto/ punure: ruim, errado] tanto para o
modo de operação do complexo kukràdjà quanto para a forma de redação da tese 32.
Assim, o destaque dado a certos elementos do conjunto de conhecimento
kukràdjà, que me foram mais visibilizados pelos Xikrin, tem como objetivo a
montagem de uma analogia contrastiva que permita potencializar a crítica deles aos à
política dos brancos. Esse procedimento era constantemente realizado pelos Xikrin para
que eu pudesse entender melhor o que eles estavam tentando dizer e mostrar sobre si e
sobre o mundo dos brancos ao qual eu pertenço.

Os Mẽbengôkre e seus antropólogos

Muito tem sido escrito e publicado pelos antropólogos e etnógrafos dos grupos
Mẽbengôkre (Xikrin e Kayapó), desde os anos 60 até os dias atuais. Não pretendo
fornecer qualquer tipo de resumo de todas essas discussões bibliográficas. Ao contrário,
irei tratar de alguns desses debates que considero mais importantes aos objetivos desta
tese, qual seja, a analogia crítica dos Xikrin à política dos brancos. Para isso, apresento
alguns dos modos como o conceito kukràdjà foi mobilizado pelos autores especialistas,

32
A associação dos conceitos mejx, kaigo e punú da língua Mebêngôkre são chamados por mim como
“tríade classificatória” sem uma verificação de profundidade sobre padronização linguística discutida por
Salanova (2008) e Silva (2001). O uso da expressão “tríade classificatória” tem como intenção marcar um
modo de operação de classificação bastante recorrente entre o povo Mẽbengôkre Xikrin. Por outro lado, o
caráter ergativo da língua mẽbengôkre torna difícil ao especialista definir com precisão os aspectos
morfológicos e sintáticos das expressões o que significa que os termos em questão podem atuar ao mesmo
tanto como classificadores quanto como adjetivos.

50
destacando a recente mudança de perspectiva a partir de trabalhos que questionam o
quadro referencial Jê como um conjunto fechado, autônomo e autossustentado que se
reproduzia internamente e repetia seus padrões socioculturais. Argumento que os
antropólogos realizam um movimento de incremento constante do conceito kukràdjà,
expandindo-o cada vez mais na antropologia. Tal procedimento assemelha-se ao modo
como os próprios Mẽbêngôkre agem em relação à constante busca de inovação e
capacidades vindas de fora. Essa ação dos índios e também a dos antropólogos, é o que
incrementa o conjunto kukràdjà mẽbêngôkre e permite que esse complexo seja
expandido para além dos limites das aldeias.
A fim de situar o leitor no amplo debate sobre as diferentes traduções de
kukràdjà realizadas pelos etnógrafos dos povos Mẽbengôkre, é possível dizer que os
autores dedicados a pesquisas entre esses povos podem ser associados a dois grupos, a
partir de suas ênfases e formulações analíticas: aqueles que tratam o conceito como
tradição no sentido de permanência e continuidade, e aqueles que tratam o conceito
como fluxo e dinamismo. Importante dizer que essa distinção é tipológica e lida com as
maiores ênfases dadas pelos pesquisadores em suas análises, o que não significa dizer
que essas ênfases representem exclusivamente um viés tradicionalista ou dinamista
dessas análises. Os autores com ênfase no idioma da tradição e permanência são aqueles
33
que tiveram suas pesquisas de modo direto ou indireto vinculados ao HPBC . Esses
autores estavam interessados em mapear as semelhanças, em termos de organização
social e ritual, entre os povos Jê Setentrionais, sendo Turner (1979, 1988, 1991, 1992,
1993a, 1993b, 1995, 2012) o exemplo de maior expediente para os povos Mẽbengôkre.
Posteriormente às publicações dos autores relacionados ao HPBC, incluindo alguns

33
Harvard Central-Brazil Project, coordenado por Maybury-Lewis, resultando na publicação de
Dialetical Societes em 1979. Segundo Coelho de Souza (2002) um dos efeitos do HBCP (Havard Brazil
Central Project) foi o deslocamento do debate sobre descendência e aliança para um foco no padrão
uxorilocal, como característico dos povos Jê setentrionais. Esse padrão residencial seria responsável pela
disseminação de algumas oposições como esfera cerimonial masculina e esfera pública privada (dualismo
concêntrico visual de centro e periferia). O foco era delinear os padrões residenciais uxorilocais e
sobrepujar as teorias de parentesco aos sistemas dualistas. De todo modo, foi graças a esses esforços
desses pesquisadores, que seus sucessores puderam continuar a recusar o parentesco como um domínio
totalizador do sócius primitivo (organização social pautada pelo sangue, ao invés de terra/território).
Ainda segundo a autora, outro efeito mais problemático foi o remetimento dos grupos Jê a um isolamento
em relação aos demais grupos indígenas da Amazônia, o que implicou num determinado modo bastante
específico da ação comparativa deles na etnologia indígena de panorama sul-americano. Esse segundo
efeito foi responsável pela produção de uma imagem Kayapó, realizada pela descrição de Turner (1979),
de se constituírem como um grupo ou uma totalidade auto-reprodutiva, fechada, englobante, transmissiva.
Para uma descrição desse projeto e a participação de antropólogos brasileiros do Museu Nacional, ver:
Mellati (2002).

51
34
trabalhos do próprio Turner, etnógrafos e etnógrafas dos grupos Mẽbêngôkre
passaram a se posicionar criticamente ao modelo do que ficou conhecido como
“fechamento Jê”, que supunha um sistema de contínua reprodução interna como
características desses grupos. Esses autores e autoras, cada um à sua maneira,
empenharam-se em demonstrar o caráter dinâmico das cosmologias Jê, marcadas por
um esforço na aquisição de novas prerrogativas rituais, itens cerimoniais, objetos
industrializados, cantos e nomes. O que essa produção bibliográfica sustenta é que são
justamente as apropriações das inovações, capturadas de agentes externos, que marcam
a especificidade do sistema sociocosmológico Mẽbêngôkre: busca e produção de
distintividade e beleza.
Apesar dessa distinção tipológica sugerida, o que interessa mostrar é que os
autores e as autoras de ambos os conjuntos de ênfases concordam em pelo menos um
sentido para a descrição ou tradução de kukràdjà: como força de resistência, leia-se
existência, dos povos Mẽbengôkre e/ou como um modo de vida/existência que permite
com que esses povos se mantenham Mẽbengôkre.
Parece mesmo haver um consenso entre os pesquisadores dos povos
Mẽbengôkre de que as riquezas, os nomes, os cantos, e tecnologias como uso do fogo
que fundam o modo de humanidade Mẽbengôkre são resultado de investidas e
apropriações, por meio de roubo, empréstimos e trocas com outros grupos de seres
humanos e/ou não humanos. O surgimento desse modo de existência ou da cultura
Mẽbêngôkre decorre de ações deliberadas desses ancestrais fundadores da
humanidade35. E em geral, a literatura especializada parece também concordar que, por
conta desses modus operandi da cultura Mẽbêngôkre, fundada na apropriação de
capacidades exteriores, o modo de relação estabelecido entre esses povos com as
mercadorias, tecnologias e bens industriais advindos do contato com os brancos é
36
marcado por um regime sociocosmológico da predação ou preensão . Nesse sentido,

34
Vanessa Lea ( 1986, 1992, 1993, 1994, 1995a, 1995b, 1999, 2005, 2007, 2012); Gustav Verswijver
(1978, 1983, 1992); Cassio Inglez de Souza (2000); Lux Vidal (1977, 1979, 1986, 1991, 1992, 2001);
Clarice Cohn (2000, 2001, 2004, 2005, 2006, 2008, 2011); William Fisher (1991, 2000, 2001, 2014),
Isabelle Giannini (1991, 1992), Cesar Gordon (2001, 2006, 2009, 2011, 2014); Edgar Bolivar Urueta
(2014); Andre Demarchi (2013, 2014).
35
Referências aos temas das apropriações como modo de constituição da humanidade entre os povos Jê
podem ser encontradas no corpus mitológico publicado por Wilbert e Simoneau (1984).
36
Remeto aqui ao uso do termo preensão, tal como elaborado por Cohn 2005b (p.68), inspirada nos
escritos de Viveiros de Castro (2000, p.335-337), como uma alternativa ao uso do idioma da predação que
caracterizou as análises antropológicas dos povos Tupi-Guarani, que ficaram conhecidas como
cosmologias TG. Autores como Fausto (2001) e Viveiros de Castro (1999) defendiam o argumento de
que os sistemas sociocosmológicos e onomásticos dos “povos TG” eram do tipo sacrificiais e

52
para os Xikrin e demais grupos Mẽbengôkre, não há nada de ilógico, de incoerente e,
sobretudo, nada de imoral na ação deles em esforçar-se por adquirir os bens industriais,
as tecnologias e os produtos manufaturados produzidos pela sociedade dos brancos 37. É
como se os Mẽbengôkre nos dissessem que a inovação (aquisição de novos itens e
capacidades), desde o ponto de vista deles, nunca foi novidade em seus pensamentos e
práticas.
Tal como os Mẽbengôkre, os etnógrafos e etnógrafas também movimentam o
conceito kukràdjà a partir de suas interpretações e análises, e operam incrementos e
reduções para destacarem de kukràdjà seus fins desejados. Como afirma Cohn (2000, p.
175), kukràdjà conjuga escolhas individuais com manipulações coletivas para produção
de efeitos de beleza no mundo. Antropólogos, ao incrementarem novas possibilidades
de tradução, sentido e reflexão ao conceito Mẽbêngôkre de kukràdjà realizam um
movimento bastante semelhante que também visa à produção de certos efeitos.
Alguns dos temas e dos aspectos que compõem o conjunto Mẽbêngôkre nho
kukràdjà, mesmo sendo distintamente descritos e analisados nas etnografias
especializadas, aparecem recorrentemente na maior parte da literatura. Entre esses temas
recorrentes, pode-se pontuar: sistemas de transmissão onomástica e circulação de
nomes, rituais de nominação, rituais de iniciação masculinos, falas cerimoniais, nêkrêjx,
pinturas corporais, ornamentação corporal, histórias dos antigos ou mitologia, cantos
cerimoniais, organização das casas e círculo da aldeia, roças. Os antropólogos também
concordam que kukràdjà refere-se tanto a conhecimentos gerais, quanto a
conhecimentos específicos para cada classe de idade ou gênero 38.

Kukràdjà tem conotações de singular e plural, pode ser entendido de várias


maneiras, dependendo do contexto. Uma glosa possível seria „uma parte de
um todo‟, ou „as partes constitutivas da totalidade‟, seja um corpo orgânico
[...] ou um corpus de conhecimento ou tradições. (Lea, 1986, p. 64).

metonímicos, enquanto que “os Jê” eram totêmicos e metafóricos. Críticas a essas definições,
apressadamente estanques, podem ser encontradas principalmente em Coelho de Souza (2002).
37
Gordon (2001) apresenta um argumento semelhante a partir da experiência com os Xikrin do Cateté na
elaboração das listas encaminhadas à Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) como parte das políticas de
mitigação. Essa discussão será retomada nas considerações finais desta tese.
38
As terminologias mais usadas para indicar tipos específicos de kukràdjà são: me kuni kukràdà
[conhecimento de todos os Mẽbengôkre]; menõrõny kukràdjà [conhecimento dos homens jovens];
metumre kukràdjà [conhecimento dos antigos, homens ou mulheres]; memy kukràdjà [conhecimentos dos
homens]; meni kukradja [conhecimento das mulheres]. Existem também algumas formulações que
destacam atributos mais pessoais: i-kukràdjà [meu conhecimento]; me õ kukràdjà [conhecimento de
alguém].

53
Minha hipótese é que as recorrências desses temas nas etnografias estão
relacionadas menos com as agendas de pesquisas específicas dos pesquisadores e mais
com o que os Mẽbengôkre consideram importantes para si mesmos, seus modos de
estarem no mundo, suas práticas e suas formas de persuasão. Os temas que compõem o
complexo kukràdjà são inescapáveis para os antropólogos precisamente porque eles
também o são aos próprios Mẽbengôkre.
Quando uma pessoa inicia sua leitura aos textos etnológicos sobre os povos
Mẽbêngôkre, logo percebe que kukràdjà é um desses temas inescapáveis. Uma das
primeiras lições é que os Xikrin e os Kayapó são gente Mẽbêngôkre que compartilham
kukràdjà. Essa afirmação pode ser notada quando se coloca em comparação as
etnografias escritas pelos antropólogos desses grupos. É sabido, por meio da literatura
da etnologia indígena, que os Xikrin e os Kayapó compartilham, não apenas um mesmo
recurso linguístico, mas também sua própria denominação. Esse compartilhamento
coloca-os como próximos, aparentados, advindos de um mesmo grupo fundador e que
explicam sua existência, bem como o aparecimento da figura do homem branco, pelo
mesmo conjunto de mitos. Os Xikrin e os Kayapó falam a língua Mẽbengôkre
[mẽbengôkre kaben] e são conhecidos por aspectos bastante semelhantes de sua cultura
como alguns grafismos corporais, mitologia, rituais, cantos, padrões de transmissão de
nominação e circulação de nomes, forma organizacional das aldeias, forma de corte de
cabelo, entre outros.
Assim, Xikrin e Kayapó possuem/praticam/conhecem/compartilham kukràdjà
[cultura/ modo de conhecimento]. Kukràdjà relaciona-se a um modo específico de
existência, uma maneira de estar no mundo, um conjunto de conhecimento e de cultura,
compartilhado entre os Mẽbengôkre (Cohn, 2010).
Mas entre os grupos Xikrin e Kayapó não existem apenas semelhanças e
autorreconhecimento mútuo. Apesar de referirem-se em certos casos como povo-parente
que se dividiram em um dado momento mítico/histórico (Turner, 1992) e
compartilharem mitos, padrões gráficos e estrutura linguística, os Xikrin e os Kayapó
não se identificam o tempo todo como aparentados ou iguais [õmikwà]. Ambos marcam
essas diferenças em várias situações como nos usos de palavras distintas da língua
Mẽbengôkre, formas de escrita, padrões gráficos, aspectos da ornamentação corporal,
acusações de feitiçaria, entre outros.
Um exemplo bastante significativo das diferenças entre esses dois grupos é o
uso distinto que eles fazem do termo nekretx, cuja tradução mais conhecida é como

54
“riqueza”, desenvolvida por Vanessa Lea (1986, 1995a, 1995b, 1999, 2012).
Comumente, o conceito de nekretx é associado ao conceito kukràdjà. Nekretx costuma
ser considerado uma parte de kukràdjà.
A autora foi umas das primeiras etnólogas a discutir sistematicamente o
conceito de nekretx, que ela traduz como riqueza, a partir do uso entre os Mẽtyktire
desse termo para se referirem tanto a adornos, prerrogativas e objetos cerimoniais
quanto a bens manufaturados e mercadorias.

No início de minha estada em campo com os Mẽtyktire me decepcionou o


fato de eles falarem dia e noite sobre nekretx, referindo-se aos bens
industrializados. [...] Estava intrigada em saber por que os bens
industrializados eram designados por uma palavra tão evidentemente
mẽbêngôkre, e então decidi investigar a etimologia de nekretx. Isso
significou mergulhar num mundo fantástico digno de Borges. Fui seduzida
pela riqueza (nekretx) dos Mẽbengôkre ao ponto de torná-la o objeto
principal de minha pesquisa. Nekretx e o sistema onomástico dos
Mẽbengôkre são dois lados da mesma moeda; ambos fundamentais para
entender a organização social dos Mẽbengôkre porque implicam um
conceito de casa como pessoa jurídica (personne morale, em francês),
composta de pessoas partíveis [...] (Lea 2012, p. 41-41).

Verswijver (1992) e Turner (1993) também destacaram o uso do termo nekrêtx


como designío tanto de mercadorias industrializadas quanto de ornamentos e riquezas
cerimoniais. Segundo o primeiro autor, as duas designações referem-se ao modo de
apropriação e captura de itens e capacidades externas. Para Turner, as mercadorias tem
um papel semelhante ao dos bens tradicionais por serem proporcionadoras de
distintividade entre as pessoas.
Segundo Lea (2012), tanto os nekretx quanto os nomes e o sistema de
nominação implicam o conceito de propriedade, que a autora prefere referir-se na glosa
inglesa, property porque permite que a ambivalência entre posse e propriedade,
enquanto características específicas de algo ou alguém, seja referenciada. Assim, a
posse e a característica (elementos constitutivos de algo ou alguém) podem ser
evidenciadas ao mesmo tempo. A sugestão da autora converge em seu argumento sobre
39
as Casas ou Matricasas que caracterizam o layout espacial e sociológico desses
grupos. Lea (idem) argumenta que cada Casa possui uma localização específica que
remonta a um tempo mítico da grande aldeia ancestral, de modo que cada Casa possui
uma parte específica da porção do círculo e deve respeitar essa localização mesmo nos

39
A autora usa o conceito Casa enquanto Matricasa em letra maiúscula para diferenciar o uso de casa
como construções ou habitações (Lea, 1995).

55
dias atuais. Além disso, cada Casa detém um conjunto específico de bens, nomes,
prerrogativas cerimoniais, cantos, partes consumíveis da caça, direito de
criação/domesticação de determinados animais, ornamentos e danças. Esse conjunto
específico é propriedade e característica (property) de cada Casa, ou seja, é aquilo que a
caracteriza e a define ao mesmo tempo em que é aquilo que ela possui. Uma reflexão
inspiradora presente no argumento de Lea (1995), é que a posse de cada Casa desse
conjunto de riquezas é valorizada justamente pelo modo de circulação desses itens e
prerrogativas, pelo modo como ocorre a transmissão e a circulação de cada um desses
elementos. Posse e característica, no sentido defendido pela autora, só importa e só é
valorizada quando não é detida, ou quando é posta a circular de determinadas maneiras.
Cada pessoa irá receber ou herdar algumas partes e componentes desse conjunto de
riquezas que compõe a propriedade e a característica da Casa ou Matricasa de onde ela
nasce. A questão é que os itens transmitidos acabam por habitar outras Casas devido ao
padrão uxorilocal de casamento, ou seja, os homens saem das Casas das mães e vão
residir na Casa de suas esposas e sogras. Segundo Lea (2012) a cada duas gerações,
mais ou menos, esses itens devem retornar à sua Casa de origem para ser novamente
posto em circulação.
Esse é um ponto importante do argumento da autora, para a economia do
argumento da tese, por considerar que as propriedades e as características de uma Casa
só importam para os Mẽbengôkre quando entram em circulação através do sistema de
transmissão. Os itens e nomes não devem ficar retidos ou barrados dentro de uma Casa;
ao contrário, eles devem estar em constante fluxo40.
O que considero mais significativo do argumento de Lea (1995, 2012) é a
percepção de que são as Casas, as responsáveis pelo sistema de transmissão dos nomes
e circulação dos bens e prerrogativas cerimoniais que, por sua vez, são a força de
renovação e (por isso) manutenção do kukràdjà. Com esse argumento em mãos, Lea
(idem) questiona as análises funcionalistas dualistas que caracterizaram os escritos
sobre os grupos Jê que consideravam as casas, e por consequência as mulheres, como
partes da esfera doméstica ou como elemento mais natural da sociedade, sem
importância no que tange às questões políticas. Tal premissa associou política ao centro
da aldeia como espaço público dos homens tomando-os como os únicos tomadores de

40
Essa é uma imagem duplamente poderosa, pois permite mostrar o horror nutrido pelos Mẽbengôkre
pelo procedimento de barramento e retenção do seu rio e o horror deles por acumulações e retenções
excessivas de bens, itens e capacidades que caracterizaria uma atitude egoísta e sovina, típicas dos
brancos.

56
decisão do grupo. Lea (idem) inverte essa perspectiva de dominação centro-masculina e
propõe um modelo de análise que considera as Casas ou Matricasas como englobadoras
do espaço central, considerado lócus da esfera pública e cerimonial 41.
Assim, é possível argumentar que a riqueza do complexo kukràdjà está na
movimentação e circulação de seus itens e componentes entre as Casas ou Matricasas.
Sem essa movimentação, tais riquezas não poderiam ser operadas e visibilizadas como
elementos de manutenção e reformulação do complexo kukràdjà.
Apesar do amplo uso do conceito nêkrêjx ou nekretx entre os grupos Kayapó,
os Xikrin não utilizam o termo para se referirem a bens industriais, partes da caça,
42
papéis ou prerrogativas cerimoniais . O termo nêkrêjx é utilizado por eles para se
referir exclusivamente a um adorno, feito de penas de arara, preso às costas das crianças
homenageadas nos rituais de nominação. Segundo Giannini (1991, p.51), os Xikrin do
Cateté chamam também as aves de nekretx por serem criações dos heróis mitológicos
que fundaram a humanidade mẽbêngôkre, diferenciando-a de outros tipos de humanos.
Enquanto eu acompanhava uma das execuções de um ritual de nominação na
aldeia Bacajá, perguntei a Koka, professor Mẽbêngôkre na aldeia Rap Kô, se ele sabia
por que os Xikrin utilizavam o termo nêkrêjx de modo diferente daquele dos Kayapó.
Ele explicou que é assim mesmo, que os Xikrin são diferentes dos Kayapó, mesmo
falando a mesma língua. Insisti com a questão de modo a perguntar para pessoas
diferentes: “Nhàra nêkrêjx? [Cadê/onde estão os nêkrêjx?]”. Todas as pessoas
apontavam-me, realizando um bico indicador com os lábios, para o adorno cerimonial
preso às costas das crianças homenageadas. Eu insistia: “Nhàra nêkrêjx õndjwo? [Cadê/
onde estão outros nekretx?]”. A resposta era: “Nêkrêjx õndjwo kêt, pudji bi. [Não tem,
só há um]”.

41
Uma reflexão etnográfica a esse modelo será realizado no capítulo 7 da tese.
42
Os Xikrin chamam os bens produzidos pelos brancos em geral como kubẽ nho mojxa [coisas dos
brancos]. Alguns desses itens são traduzidos e incorporados à língua Mẽbêngôkre como, por exemplo,
lanterna que é chamada rop nó, cuja tradução literal etimológica seria “olho da onça”. Outros itens são
referidos em português mesmo como celular, por exemplo.

57
Figura 1: Registro fotográfico do uso do ritual mẽreremejx, adornamento das crianças
nominadas. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Tomando a definição específica de nêkrêjx entre os Xikrin, pode-se afirmar que


para eles todo nêkrêjx é kukràdjà, mas nem todo kukràdjà é nêkrêjx (Cohn, 2000). Isso
porque, o adorno cerimonial que é chamado nêkrêjx pelos Xikrin é um componente,
uma parte, um aspecto de kukràdjà, bem como a habilidade necessária para a confecção
de tal enfeite e o modo correto de uso na cerimonia de nominação. Por outro lado, se se
pergunta a um Xikrin se um padjê, adorno usado no braço, próximo à altura das axilas,
é nêkrêjx, a resposta será: não [kêt]. Os padjês, por sua vez, são kukràdjà, bem como as
habilidades necessárias para sua confecção e os modos corretos de uso.
Além das diferenças nos usos de conceitos ou expressões, os Xikrin e os
Kayapó podem referir-se ou não como parentes a depender da situação. No final da
primeira semana de ocupação pelos Xikrin ao canteiro do Sítio Pimental na hidrelétrica
de Belo Monte em 2012, os Kayapó enviaram um recado via rádio de que gostariam
também de participar das reivindicações e dos protestos e juntar-se aos “parentes Xikrin
na luta contra a barragem”. Através de várias conversas de rádio, os Kayapó tentaram
convencer os Xikrin de que eles também tinham que participar da ocupação, porque
também queriam parar Belo Monte. Os Kayapó disseram que com a presença deles na
ocupação haveria muito mais recursos das ONGs e maior apoio do ISA (Instituto
Socioambiental), com quem os Kayapó trabalham há bastante tempo e desenvolvem

58
vários projetos de sustentabilidade ambiental, proteção territorial, revitalização cultural,
e assim por diante. Os Xikrin foram enfáticos, negando a presença dos Kayapó durante
a ocupação 43.

Os Kayapó não moram aqui, não moram onde está ngô beyêt [água barrada,
trancada, Belo Monte], não têm que vir aqui. Aqui, só deve estar os povos da
região, ninguém mais. Nem Mundurucu e nem Kayapó, só a gente daqui.
Kayapó fala que é parente Mẽbengôkre, sabe falar a língua Mẽbengôkre,
mas fala de jeito fajuto [kaben kaigo] e faz as coisas de qualquer jeito [ipey
kaigo] sem perguntar para os Xikrin. Kayapó tem que ficar lá na casa deles,
cuidar do rio de lá e não daqui.

Querelas à parte, os Xikrin e os Kayapó são Mẽbêngôkre e nunca ouvi alguém


referir-se a um Kayapó como kubẽn [branco, estrangeiro]. Sendo gente Mẽbêngôkre,
partilham e praticam kukràdjà, seu modo de existência e sabem, mesmo que com
algumas diferenças, como comportar-se com os parentes, como falar a língua, como
realizar rituais, como pintar-se com urucu e jenipapo, como dar os nomes para os filhos
e filhas, como fazer e manipular remédios do mato, e assim sucessivamente. Xikrin e
Kayapó concordam que os brancos são kubẽn, um tipo de gente não-Mẽbêngôkre,
estrangeiros que não conhecem nem partilham o modo de existência kukràdjà.
Em geral, os brancos são considerados como não conhecedores da cultura
Mẽbengôkre [Mẽbengôkre kukràdjà mar kêt], não falantes da língua Mẽbengôkre
[Mẽbengôkre kaben mar kêt], cuja expressão contrária é saber falar direito e de forma
bela [kaben mejx]. Existem algumas exceções, entretanto. Trata-se dos antropólogos e
antropólogas que trabalham com os grupos Mẽbêngôkre e que, em certos casos, são
considerados conhecedores da língua [Mẽbengôkre kaben mar mejx] e sabedores de
algumas partes da cultura Mẽbengôkre [Mẽbengôkre nhõ kukràdjà mar mejx]; índios de
outras etnias ou brancos que se casaram com pessoas Mẽbengôkre e que aprenderam a
viver entre eles, com eles e como eles; e alguns servidores da FUNAI, especialmente na
época de existência de chefe de posto, quando se costumava passar determinados
períodos morando nas aldeias. Entretanto, salvo as exceções, a grande maioria dos
brancos é classificada como não conhecedores da cultura Mẽbengôkre, da língua, dos
modos corretos de falar, de viver.

43
A querela entre Xikrin e Kayapó é antiga e pode ser remetida ao período de separação da aldeia
ancestral. Historicamente, existem muitos relatos das guerras entre esses grupos e, para autores como
Verswjver (1992), Fisher (2000), Turner (1993), foram esses confrontos guerreiros que ajudaram a
impulsionar os deslocamentos e as fixações, bem como as fissões entre aldeias.

59
Alguns brancos, especialmente aqueles vinculados à empresa consorciada
Norte Energia, chamados brancos de Belo Monte [kubẽn do ngô beyêt], são
considerados pelos Xikrin como não conhecedores da cultura Mẽbengôkre, como os que
falam de forma errada e mentirosa [kaben punure] e que não conhecem o rio Bacajá
[ngô Bacajá mar kêt], nem a floresta da Terra Indígena, nem como vivem os animais e
plantas da região. Esses brancos são também responsáveis pelo envio de relatórios de
impacto ambiental e propostas de mitigação dos impactos.

O caso do tatu: um problema na cultura, os perigos de kukràdjà

Antes de prosseguir a cada um dos três componentes do complexo kukràdjà,


que serão tratados nos capítulos subsequentes, acrescento agora mais um sentido ao qual
o conceito foi apresentado a mim durante uma etapa da pesquisa de campo. Esse
sentido, raramente discutido pela literatura especializada, vem acompanhado de dois
complementos: um adjunto de lugar e um qualificador. O termo é kam kukràdjà punu,
de modo que kam é adjunto de lugar (aqui, lá, ou o lugar onde se está, por exemplo); e
punu um classificador negativo como algo ruim, péssimo, errado. Assim, uma tradução
possível para o termo composto, discutida com Bep Nho, é “um problema na cultura” 44.
Logo após a intensiva realização ritual que marcou o final de 2014 e começo de
2015 e que contou com duas cerimônias de nominação e um amỳta, ritual da quebra de
marimbondo, Cabokinho e sua mulher com os filhos menores retornaram da cidade de
Altamira após longo período que estiveram por lá, incluindo justamente o período das
festividades rituais na aldeia. Poucos dias após o retorno da família do segundo cacique,
os guerreiros jovens e velhos organizaram um grande conversa no ngàb [casa do meio]
com direito a uso de microfone e caixa amplificadora de som.
Os ânimos estavam exaltados e o clima tenso. As mulheres também
acompanharam a conversa e as cadeiras da escola foram levadas para o pátio central. Os
chefes antigos [benadjwỳre tum] iniciaram as falas e todos os guerreiros seguiram com
suas apresentações. Os homens da aldeia Bacajá estavam questionando o segundo
cacique por sua atitude, considerada egoísta e equivocada. Isso porque, antes da família

44
A associação do conceito kukràdjà como problema é mencionada, ainda que não aprofundada, na
etnografia de Demarchi (2014, p. 133) através do relato de Kaikware sobre a fundação da aldeia
Môjkarakô.

60
de Cabokinho ir até a cidade de Altamira, era preciso que ele proporcionasse a
quantidade necessária e correta de biscoitos, bolos e refrigerantes para as festividades
rituais do final do ano, além de providenciar as calcinhas usadas pelas mulheres na festa
que devem ser de cores diferentes conforme a categoria de idade a qual pertencem. Por
não ter cumprido com aquilo que era considerado como sua incumbência, a saber,
garantir fluxos de mercadorias, bens industriais e alimentos industrializados, o segundo
cacique estava sendo pressionado e acusado de ter agido de modo errôneo com os
parentes e com a comunidade, visto que essa ação de permanecer na cidade foi
entendida como egoísta. Outra reclamação comum na fala dos homens, especialmente
aqueles velhos e com muitos filhos e netos, foi a despreocupação de Cabokinho com
relação à realização das festividades na aldeia, que são parte do kukràdjà nho
mẽbêngôkre. Eles diziam que as festividades ou os rituais eram importantes e belos,
partes fortes do complexo kukràdjà e que não poderiam ter sido deixados de lado por
nenhuma pessoa Mẽbêngôkre, especialmente por uma que ocupe uma posição de chefia.
As mulheres também reclamaram dizendo que as crianças ficaram com vontade de
comer os biscoitos e isso era muito ruim.
Ao longo das falas descontentes dos chefes antigos e guerreiros quanto à ação
45
equivocada do segundo cacique, Stefhanie e eu, ouvimos a composição linguística
kam kukràdjà punu mencionada repetidas vezes, incluindo nas falas das mulheres que
também foram ao microfone expressar seu descontentamento. Num primeiro momento,
mesmo tendo percebido um uso distinto da palavra kukràdjà numa situação de debate e
conflito, Stefhanie e eu deixamos essa questão de lado. Até um dia em que realizávamos
a transcrição e tradução de um dos mitos contados pelos velhos durante os rituais
46
juntamente com Bep Nho , a composição kam kukràdjà punu reapareceu. O termo
composto foi acionado por Bep Nho para explicar a ação mítica de um tatu ancestral
que estava em seu buraco e que prendeu um caçador dentro desse buraco onde passaram
45
Stephanie Tseluiko é doutoranda pelo PPGAS- UFSCar, sob orientação de Clarice Cohn. Dedica-se a
pesquisar roças e usos de recursos naturais entre os Xikrin, e sobre esse período de sua pesquisa de
campo, fez uma fina descrição dos processos de abertura, queima e plantio de uma roça grande vinculado
a um projeto de fortalecimento ambiental, além de ter acompanhado três cerimonias rituais na aldeia
Bacajá, no mesmo período em que eu também realizava pesquisa de campo.
46
Bep Nho que era professor na escola da aldeia Pytako, havia se mudado para a aldeia Bacajá com sua
esposa e seus dois filhos e fora indicado para nos auxiliar a questão da língua mẽbêngôkre e das
traduções. Desde quando nos conhecemos, Bep Nho sempre se mostrou muito interessado nos processos
de registro da cultura e da língua dos Mẽbengôkre, incluindo versões dos mitos e das histórias dos
antigos. Ele insiste que é preciso que façamos um projeto para documentação e registro da língua
mẽbêngôkre falada entre os Xikrin e que um linguista auxilie na documentação gramatical e ortográfica
da mesma de modo que as diferenças com a língua mẽbêngôkre falada e escrita pelos Kayapó sejam
evidenciadas.

61
a viver juntos por certo tempo. O caçador que ficou preso era um homem da categoria
ngêt (avô/tio materno).

Sabem a história antiga que o velho contou? É uma parte da história de


Oiropre. O caçador ficou preso com o tatu no buraco, aprendeu o canto do
tatu [apeity nhõ mengrere], aprendeu o kukràdjà do tatu e incorporou esse
kukràdjà em algum lugar do seu corpo. O caçador cantava junto com o tatu e
por isso seu neto ou sobrinho [tabjwỳ] o encontrou, encontrou o buraco do
tatu. O neto ou sobrinho [tabdjwỳ] quebrou a cabeça do tatu, fez um buraco
em cima da cabeça do tatu, puxou o tatu pelo rabo e matou o tatu. O neto ou
sobrinho aprendeu a música do tatu de seu avô e voltou para aldeia cantando
a música. Foi por isso que o tatu morreu, por causa de seu kukràdjà que
virou um problema para o tatu e causou a morte dele, apiety nho kam
kukràdjà punu.

Interessante que em seu exemplo, Bep Nhô destaca a morte do tatu como um
problema dele, um problema da cultura dele, privilegiando o ponto de vista do tatu e
não a aquisição de kukràdjà pelo avô ou tio materno caçador, transmitido a seu neto ou
sobrinho. Do ponto de vista do procedimento de transmissão do avô ou tio materno para
o neto ou sobrinho não há um problema, mas uma expansão do seu kukràdjà.
Ao dizer a Bep Nho que eu jamais havia visto essa definição entre os
antropólogos dedicados a pesquisas com os povos Mẽbêngôkre, ele respondeu que é
muito difícil explicar tudo para os antropólogos porque eles não conseguem entender
muitas coisas e fazem muitas perguntas. “Antropólogos não têm paciência, querem
saber tudo de uma vez e rápido”.

É muito difícil traduzir a língua Mẽbêngôkre para o português porque não há


como explicar em português algumas coisas e que muitas vezes os índios
Mẽbêngôkre ficam cansados de ficar explicando tudo e deixam passar
muitas coisas mesmo.

Tomando o termo kam kudradja punu como uma tradução possível de


“problema na cultura”, pode-se argumentar, ainda que muito provisoriamente, que os
processos de expansão e redução do complexo kukràdjà entre os Mẽbengôkre não
ocorrem sem riscos e perigos: o neto ou sobrinho poderia ter sido preso pelo tatu, o avô
ou tio materno poderia nunca ter conseguido escapar ou poderia ser morto pelo tatu, o
neto ou sobrinho poderia nunca ter encontrado o buraco do tatu. Se ocorresse dessa
forma o “problema na cultura” seria dos ancestrais Mẽbêngôkre. É como se nós
pudéssemos dizer que toda ação de produção e constituição da cultura entre os

62
Mẽbengôkre acarreta um risco eminente, um perigo que pode levar à sua
desestabilização e a efeitos indesejados.
Longe de querer redefinir o conjunto de explicações antropológicas sobre o
conceito kukràdjà, o que o exemplo supracitado mostra é quão escapável ele é. O
conceito está sempre passível de ser expandido pelas descrições antropológicas e
inovado pelas ações dos Mẽbengôkre. Como disse Bep Nho:

Precisamos mesmo de muitas pessoas antropólogas para vir aqui, ficar um


tempo na aldeia conosco e trabalhar para o povo mẽbêngôkre. Antigamente
foi a velha Lux que começou isso e depois trouxe a Clarice, que aprendeu
muito da língua e da cultura Mẽbêngôkre e sempre ajuda a aldeia. Agora
Clarice mandou você, que gosta de vir aqui e que nós, da aldeia, gostamos
muito quando você vem. Depois você vai mandar alguém também. Quem
você vai mandar? Tem que ser alguma pessoa boa, não queremos pessoas
ruins na aldeia.

Implicações e questões com o número três

A questão do três aparece de maneira muito inspiradora nos trabalhos de


Strathern (2000a, 2000b, 2005) que, preocupada com a escrita etnográfica como ficção
47
controlada , propõe, nos seus regimes de escrita, procedimentos para deslocamento
dos conceitos antropológicos criando conexões entre ao menos três elementos
argumentativos e/ou etnográficos, de modo que cada um incida sobre o outro. Esse
procedimento é realizado em muitos, senão todos, os seus trabalhos de modo que ao
contrapor sua etnografia melanésia com auditores de universidades, por exemplo, cria
uma imagem que irá incidir sobre a própria disciplina antropológica e sobre seus
conceitos; ou ainda, ao contrapor os regimes de socialidade e troca melanésia com as
teorias feministas, cria um deslocamento para colocar sob escrutínio o modo como a
antropologia se apropriou do debate feminista. O terceiro elemento do procedimento
stratherniano implica sempre uma espécie de meta-antropologia, já que torna visíveis

47
Ao tratar a escrita etnográfica como ficção controlada, a autora propõe que o material etnográfico do
pesquisador e as análises teóricas que compõe a disciplina antropológica sejam tratadas pelo redator ou
autor de modo simétrico, admitindo a ambos o mesmo estatuto.

63
alguns modelos antropológicos euro americanos, ou o mundo dos brancos, como diriam
os Xikrin.
Stengers (2015, maiúsculas no original) também formula uma tríade para
expressar a “irresistível escala de poder do Ocidente”, representada pelas figuras do
Empresário, do Estado e da Ciência. Segundo a autora, trata-se de uma aliança
monstruosa entre essas três figuras que permitiram o desenvolvimento empresarial da
racionalidade científica, a legitimação burocrática do Estado para o desenvolvimento
dessa racionalidade e a aceleração da exploração das forças produtivas necessárias ao
crescimento industrial.
Entre os Mẽbengôkre, a questão do conceito três pode ser encontrada no
sistema das terminologias triádicas, um procedimento extremamente complexo, que até
o momento só foi apresentado por Vanessa Lea (2004). Trata-se de um conjunto de
referências (termos de parentesco) que cada pessoa deve usar para chamar cada tipo de
parente. A questão se complica ainda mais quando o que está em jogo é uma conversa
entre duas pessoas sobre uma terceira. Assim, se eu estou falando com minha mãe sobre
o irmão de meu marido eu o chamo de um determinado termo; diferentemente, se eu
estou falando com meu pai, eu o chamo por outro termo; e assim sucessivamente para
todas as categorias de parentes. Importante lembrar que a posição de ego e seu gênero,
nos casos acima, são aspectos absolutamente relevantes e como ego chama o parente
depende da posição que ocupa.
O que mais importa aqui para meu argumento, entretanto, não é o estatuto
teórico analítico do três na antropologia e seus desdobramentos. Mas sim, que um dos
mais importantes procedimentos que envolve saber manejar corretamente as práticas e
os conhecimentos kukràdjà é a atribuição, feita pelos Xikrin o tempo todo e em
praticamente todas as situações, dos classificadores adjetivos mejx [bom, correto,
verdadeiro], kaigo [fajuto, falso, à toa], punu [feio, errado, incorreto].
Tudo e todos, seres não humanos, pessoas, comportamentos, atividades, fala,
situação da terra na mata, modo de enchente e vazante do rio, corpos, pinturas, cabelos,
danças, cantos, escadas de jabuti, distribuição alimentar, partes de caça, e assim
sucessivamente e infinitamente, são vinculados a esses classificadores. Não existe uma
regra nítida sobre o uso desse procedimento terciário de classificação. Cada tipo de
pessoa pode acionar diferentemente cada um dos classificadores de acordo com seu tipo
de kukràdjà no momento. Por exemplo, uma mulher sem filhos poderá dizer que rachar
lenha na época das chuvas é punure [ruim] porque os troncos estão molhados e a terra

64
está lamacenta tornando a atividade bastante cansativa. Uma mulher mais velha, mãe ou
avó desta que fez a reclamação provavelmente irá dizer: “Não há nada de ruim. Você é
que é ruim. As mulheres Mẽbêngôkre não são fracas, as mulheres Mẽbêngôkre são
muito fortes, o conhecimento e as práticas das mulheres é muito forte, bonito e correto,
não é ruim não”. [Punure kêt, ga punure. Menire Mẽbengôkre kererekre ket, menire
Mebengkre tojx, menire kukràdjà mejxtere, punu kêt].
Mesmo sem haver uma regra fixa para o uso dos classificadores mẽbêngôkre
existem alguns consensos para uso de mejx [belo, beleza], como crianças que são
consideradas sempre belas, o rio Bacajá na época da cheia, o sol nascente, corpos
pintados corretamente, falas boas e retas, a língua Mẽbêngôkre, os cabelos pretos
brilhosos com óleo de babaçu, os pés vermelhos de urucum, a tonsura dos cabelos, estar
com boa saúde, gente Mẽbêngôkre.
Também existem algumas concordâncias quanto ao uso de punu/ punure [ruim,
errado], como recusar-se a compartilhar comida ou qualquer outra coisa, fofocar ou
falar mal de alguém, roubar, o rio Bacajá quando está muito seco, a falta de peixes nos
grotões ou nas corredeiras, mentir, falar de modo confuso, não rachar lenha de modo
simétrico, entre muitos outros casos. Os brancos, suas ações, comportamentos e modo
de vida ocupam quase que eternamente a categoria de classificação punu/punure. Os
brancos falam mentiras e falam de modo confuso, não sabem falar a língua
Mẽbêngôkre, são egoístas, não pintam os corpos, não fazem cerimonias rituais, não
conhecem as histórias dos antigos, não moram em aldeias perto do mato, não conhecem
o rio Bacajá, não raspam os cabelos e as sobrancelhas ou os cílios, não conhecem as
músicas Mẽbêngôkre, não sabem viver entre parentes.
O classificador kaigo [falso, à toa] refere-se a coisas ou comportamentos
demasiadamente despreocupados, como algo “feito de qualquer jeito”. Por exemplo, os
Kayapó quando quiseram juntar-se aos Xikrin durante a ocupação da ensecadeira do
Sítio Pimental de Belo Monte, o documento que considerou os Xikrin como
48
indiretamente impactados pela construção da hidrelétrica , um adorno feito para
vender aos brancos, um tênis de marca similar à considerada boa/correta, o corpo sem
nenhuma aplicação de jenipapo, uma refeição sem nenhuma carne ou peixe, pouca
quantidade de algum item.

48
Trata-se do Parecer Técnico 21, elaborado pela Funai em 2009 sobre as classificações, feitas pela
empresa Norte Energia, acerca dos povos que seriam diretamente impactados pela obra, dos que não
seriam impactados, e dos que seriam indiretamente impactados. Uma discussão mais aprofundada sobre
esse documento será desenvolvida no capítulo seis.

65
Não me parece ter sido acidental que os Xikrin, ao formularem sua crítica à
política dos brancos elegeram três de seus elementos: as reuniões, os documentos e os
projetos. Tampouco é acidental que para a visualização de sua crítica política eu optei
por destacar três aspectos do complexo kukràdjà como contraponto. Evidentemente, não
se trata de considerar de modo estanque cada um dos termos de classificação. Como
perceberam os Xikrin, os três elementos que desqualificam a política dos brancos são
retroalimentados e dependem uns dos outros para sua efetivação negativa. Do mesmo
modo que os elementos de kukràdjà selecionados também dependem uns dos outros
para sua efetivação positiva do modo de existência Mẽbêngôkre. É preciso frisar que a
relação lógica subsumida na ênfase de três partes ou aspectos do complexo kukràdjà
está presente também na crítica dos Xikrin à política dos brancos, principal argumento
desta tese.
Para cumprimento de minha proposta em destacar à crítica dos Xikrin à política
dos brancos, durante o processo de licenciamento e construção de Belo Monte,
seleciono três aspectos do complexo kukràdjà que me foram mais visibilizados pelos
Xikrin, ao longo de minha pesquisa de campo. Esses elementos mais visibilizados do
conjunto que marca o modo de existência Mẽbengôkre foram os que permitiram aos
Xikrin tornarem compreensíveis a mim as críticas à política dos brancos. Passemos aos
três componentes destacados na tese do mẽbêngôkre nho kukràdjà.

66
CAPÍTULO 2. Mẽreremejx: ritual de confirmação dos nomes

Isso é o que vocês precisam aprender. Está vendo? Hoje, todos estão felizes. Ficamos
felizes em fazer nossas festas e estarmos juntos. A aldeia fica bonita e as pessoas ficam bonitas,
dançam e cantam muito. Nossa cultura é forte, não é fraca não.

Fala de Bep Keiti, também conhecido como Maradona, durante a realização de um


ritual de confirmação de nomes na aldeia Bacajá.

Bep Keiti conversava comigo enquanto os homens traziam as grandes palhas


verdes de babaçu usadas para cobrir o chão da casa do meio [ngàb]. Os corpos pintados
49
e ornamentados com os adornos de penas e miçangas enchiam o espaço. Prinkore e
50
Katendojre iniciavam um canto e movimentavam seus maracás. A beleza e as cores
eram o idioma em operação.
Em dois momentos distintos de minha pesquisa de campo acompanhei a
execução de rituais de nominação na aldeia Bacajá. Nesses dois momentos, os rituais
foram realizados no final do ano correspondendo às datas comemorativas do natal e do
ano novo. O ritual mẽreremejx acontece na aldeia Bacajá todos os anos, pelos menos
duas vezes e atualmente sempre nessas datas. A associação de execução de rituais com
o calendário nacional também aparece para a realização de outros rituais, que ocorrem
geralmente no dia dezenove de abril (dia do índio) e no dia sete de setembro (dia da
51
independência do Brasil). Essa associação dos rituais às datas comemorativas do
calendário nacional não impede que eles sejam realizados fora desse calendário, como
pude perceber para o caso da iniciação masculina da quebra de marimbondo [amiỳta]

49
Atualmente é o segundo cacique da aldeia Bacajá, tendo ocupado a posição de Cabokinho, referido no
capítulo um da tese. À época de minhas estadias em campo, Prinkore, também conhecido pelo apelido em
português Americano, ocupava a posição de guerreiro. Durante a execução do ritual de iniciação
masculina, Prinkore era um dos homens portadores do maracá [ngokon bàri] o que indica a possibilidade
de assumir alguma posição de chefia. Prinkore é filho de Tapiêt e Ngrenhkru. Tapiêt é um dos irmãos
capturados quando criança e criados pelos e como os Mẽbengôkre, mencionado no primeiro capítulo.
50
Também conhecido como Mirera é atualmente o primeiro cacique da aldeia Bacajá, filho mais novo de
Bep Djàti, cacique antigo, ele passou a ocupar essa posição de chefia após seu irmão mais velho ser
acusado de retenção indevida de bens e mercadorias à época da implantação de um projeto para manejo
sustentável de madeira. Sobre a implantação e fracasso desse projeto ver: Fisher (2000). Importante
salientar que os donos do maracá [ngokon bàri] são aqueles que poderão assumir uma posição de chefia
ou que são chefes.
51
Giannini (1998) realiza uma interessante descrição de um ritual ocorrido em sete de setembro de 1996
entre os Xikrin do Catete. Segundo a autora, os Xikrin demoraram cerca de dois anos para compor a
realização do ritual que contou com o uso de vestimentas dos brancos como ternos e gravatas, comprados
em Brasília, coletes do Ibama e da Polícia Federal, bandeiras do Brasil e da Funai, ternos pretos e camisas
brancas como as que usam os pastores de igrejas evangélicas.

67
52
ocorrido no final do mês de janeiro . Perguntado sobre as datas dos rituais, Prinkore
respondeu:

A gente é assim. Quando queremos fazemos uma festa. Quando queremos


ficar felizes começamos a fazer uma festa. Tem algumas festas que acontece
na mesma data todos os anos, mas outras fazemos assim mesmo quando
queremos. Se quisermos dançar, cantar e comer juntos, fazemos uma festa. É
assim a cultura dos Mẽbengôkre. Nossa cultura é assim muito forte, não é
fraca não.

A terminologia mẽreremejx é utilizada pelos Xikrin para designação de


cerimônias de confirmação de nomes. Nessas cerimônias, realizam-se a confirmação de
nomes bonitos [idji mejx] transmitidos pelos nominadores masculinos, ngêt (MF, FF,
MB, MBS) para os nominados, tabjwỳ (CS, ZS) e/ou pelas nominadoras, kwatyi (MM,
FM, FZ) para as nominadas, tabjwỳ (CD, BD) 53. Os nomes bonitos [idji mejx], como já
discutidos pela literatura especializada, só são assim reconhecidos a partir dessas
cerimônias. Desse modo, como descreve Lea (2012), uma pessoa pode ter recebido
alguns nomes bonitos de seus nominadores, mas se não houver a realização da
cerimônia, esses nomes serão classificados como idji mejx kaigo [nomes bonitos falsos
(não confirmados)] 54.
Mopkure explicou-me, numa de nossas conversas à beira do fogo de pedra [kῖ]
de sua cozinha, que uma pessoa Mẽbêngôkre recebe muitos nomes ao mesmo tempo.
52
Para uma análise recente do ritual da quebra de marimbondos entre os Xikrin da aldeia Mrotidjam, na
Terra Indígena Trincheira-Bacajá, ver Bollettin (2013).
53
O debate antropológico sobre processos de nominação e transmissão de nomes entre os povos indígenas
associados ao tronco linguístico Jê é bastante extensivo, especialmente após os estudos publicados no
livro Dialetical Societes organizado por Maybury-Lewis (1979). As primeiras análises desses processos
de transmissão para os Xikrin estão presentes em Vidal (1977). Uma análise sistemática dos processos de
transmissão de nomes a partir das Casas ou Matricasas é realizada por Lea (1986, 1992, 1993,
1995,2012). Entre os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, as linhas de transmissão seguem as
apresentadas por Vidal (1977). Entre os nominadores masculinos da categoria ngêt, temos: MF (pai da
mãe); FF (pai do pai); MB (irmão da mãe); MBS (filho do irmão da mãe). Entre os possíveis nominados
masculinos da categoria tabjwỳ, temos: DS (filho da filha); ZS (filho da irmã). Entre as nominadoras
femininas da categoria kwatyi, temos: MM (mãe da mãe); FM (mãe do pai); FZ (irmã do pai). Entre as
possíveis nominadas da categoria tabjwỳ, temos: DD (filha da filha); BD (filha do irmão). Importante
lembrar que os ocupantes das posições FB (irmãos do pai) são chamados de pai [bãm] pelas crianças,
enquanto que as ocupantes das posições MZ (irmãs da mãe), são chamadas de mãe [nãn].
54
Lea (2012) explica que, entre os Metuktire, acusações de roubo de nomes e uso incorreto de nomes
belos não reconhecidos cerimonialmente podem provocar brigas e confusões, incluindo movimentos de
fissão de aldeias. Ela também afirma que uma pessoa pode herdar de cinco a trinta e cinco nomes. Desse
conjunto alguns são nomes bonitos e outros não. Quem conhece o conjunto total dos nomes são os
transmissores e dificilmente uma pessoa sabe todos os nomes que possui. Também é comum que as
pessoas passem a ser chamadas por nomes diferentes dependendo da categoria de idade e de qual pessoa
fala com ela. Pude perceber, durante minhas estadias em campo, que é comum as irmãs referirem-se umas
às outras por nomes que não são divulgados e que apenas elas os utilizam. Isso também aconteceu entre
mães e filhas. É comum também que as pessoas acionem os termos de parentesco para se referir umas às
outras, como chama atenção Lea (2004) acerca dos termos triádicos.

68
Entre esses nomes existem alguns que são os nomes belos não confirmados
cerimonialmente [idji mejx kaigo] e os nomes comuns [idji kakrit], que não podem ser
reconhecidos cerimonialmente. Segundo ela, em geral, uma pessoa não sabe quais são
todos os nomes que lhe foram transmitidos, cabendo ao nominador ou à nominadora
esse conhecimento.
Fisher (2001) afirma que a partícula rêr do termo mẽreremejx refere-se ao
movimento de atravessar um espaço, como atravessar um rio de uma margem à outra 55.
Segundo o autor, esse seria o sentido do ritual de nominação, um processo de
atravessamento de um caminho para a chegada em um local ou ponto desejado. Esse
processo de deslocamento é o que ocorre com a execução do ritual, porque as crianças
que são homenageadas passarão a ter nomes bonitos transmitidos e reconhecidos
cerimonialmente por suas kwati ou ngêt. A ideia de atravessamento para alcance de um
ponto específico é uma boa imagem para a descrição do ritual de nominação tal como
realizarei neste capítulo. Essa imagem reverbera em pensar kukràdjà como engajamento
(individual ou coletivo) para promoção de uma ação conjunta e permite dar destaque ao
ritual como a visibilização desse engajamento das pessoas de uma (ou mais de uma)
aldeia em uma performance.
A intenção neste capítulo é oferecer ao leitor uma descrição do ritual de
confirmação de nomes, ocorrido na aldeia Bacajá, que o destaca como forma
Mẽbêngôkre que persuade. Tomando o conceito “formas que persuadem” emprestado
de Strathern (2014), tratar o ritual como forma que persuade implica em destacar alguns
elementos e invisibilizar outros. A atitude descritiva de visibilização aqui está vinculada
ao esforço para elaborar uma analogia contrastiva que expresse a crítica dos Xikrin à
política dos brancos. Assim, os elementos elicitados do ritual são aqueles que permitem
uma visualização do contraste, operado pelos Xikrin, entre kukràdjà e política dos
brancos.
Para o objetivo proposto, as descrições deste capítulo seguem um caminho
diferente daquele comumente oferecido pelas descrições antropológicas dos rituais de
nominação Mẽbêngôkre. Apesar de diferenças significativas entre as etnografias, a
grande maioria dos autores e autoras quando se dedicam à descrição e análise do ritual
de nominação focam nos processos de confirmação da transmissão dos nomes belos.
Minha descrição, amplamente influenciada por essa literatura, intenta oferecer uma

55
Os Xikrin traduzem o termo rêr como nadar.

69
alteração de ênfase, uma mudança de escala para a descrição da cerimônia, focando
mais nos processos e procedimentos coletivos necessários para que a performance
ocorra e menos no efeito da confirmação da transmissão dos nomes belos, qual seja, a
produção da distintividade.
O foco aqui está no engajamento coletivo necessário para a realização da
performance, na articulação de muitas pessoas numa certa atividade para objetivos
comuns, produção da alegria e da beleza e da força da cultura mẽbêngôkre [kukràdjà].
Para os interesses desta tese, o objetivo comum do ritual elicitado é a formação de
pessoas Mẽbêngôkre e de seu modo de existência, kukràdjà. Por esse motivo, não irei
dar destaque à distinção entre pessoas belas _com os nomes belos reconhecidos
cerimonialmente_ e pessoas comuns _cujos nomes não passaram por reconhecimento
56
cerimonial_. A ênfase que quero sublinhar com a descrição do ritual de nominação é
a marcação da oposição e do contraste entre os Mẽbêngôkre, que conhecem,
compartilham e praticam kukràdjà e os brancos que são pessoas sovinas que fazem
política e não sabem viver entre parentes.
Não é minha intenção questionar a importância das análises voltadas para os
processos de constituição de distintividades como impulsionadora do sistema
cosmológico Mẽbêngôkre. O que proponho é justamente deslocar o foco do olhar e me
voltar para as necessidades dos engajamentos coletivos nesses processos de constituição
de distintividades. Para isso, o capítulo conta com uma introdução que discute alguns
importantes debates da literatura especializada à luz de meus dados de pesquisa, além de
dois momentos rituais descritos separadamente e um argumento final em favor da
proposta descritiva adotada.
Como dito anteriormente, os rituais mẽreremejx de nominação compõem o
complexo das práticas e conhecimentos tipicamente Mẽbêngôkre, denominado kukràdjà
traduzido, em algumas situações, pelos Xikrin como cultura. Se, por um lado, o ritual de
nominação pode ser pensado como uma das demonstrações comunicativas (visuais,
sonoras e performáticas) do conhecimento Mẽbêngôkre, por outro, sua execução
depende dos modos corretos de operação desse conjunto de saberes e práticas, isto é de
engajamentos específicos para que a eficácia de sua realização seja assegurada. Desse
modo, o intuito de minha descrição é dar enfoque aos elementos performáticos do ritual
tomados como formas que persuadem.

56
Uma análise e descrição dos rituais a partir da distintividade entre pessoas belas e comuns como
importante operador cosmológico mẽbêngôkre pode ser encontrada na etnografia de Gordon (2006).

70
Minha estratégia descritiva é consoante com a afirmação de Vidal (1977) sobre
a importância da sequência correta que envolve a realização do ritual de confirmação de
nomes como uma demonstração do controle de mundo pelos Xikrin.

O que mais impressiona no desenvolvimento ritual é a ordenação lógica das


sequências [...] Os aspectos essenciais são transmitidos de modo claro,
ordenado, com uma nitidez quase didática, mostrando que os Xikrin estão
conscientemente no comando de seu mundo (Vidal, 1977, p. 193).

Essa lógica da sequência ritual está relacionada com a estética da cerimônia


que deve respeitar os usos específicos de certos adornos cerimoniais, as sequências das
danças, as posições dos dançarinos, e o ponto de origem e de término de cada dança.
Isso não significa que as performances rituais permaneçam sempre sendo realizadas da
mesma maneira. Como percebeu Cohn (2005a, 2005b), os conjuntos musicais, por
exemplo, podem ser alterados em relação à escolha das avós ou avôs para cada ritual de
nominação. Os homens mais velhos e mulheres mais velhas são responsáveis pelas
escolhas das músicas, podendo acrescentar novas composições que serão ensinadas
durante a realização dos ensaios que antecedem o dia da festa propriamente dito. A
incorporação de novas composições musicais e coreografias pode ser tomada como um
exemplo dos processos de inovação e expansão do complexo kukràdjà, realizada pelos
Mẽbengôkre, discutidas no primeiro capítulo. Um ritual de nominação deve produzir
alegria e harmonia (Cohn, 2000, 2005; Fisher 2000; Gordon, 2006). Se esses
sentimentos não forem o resultado da cerimônia, então ela não será avaliada como
correta.
Os rituais de nominação podem também ser pensados também como ações
catalizadoras do modo de agir e viver entre parentes e amigos formais. Essas ações
implicam em três relações que ocorrem simultaneamente na cerimônia: comensalidade
através da ingestão e circulação do ῖnh [carne na tradução de Lea (2012), e substância
vital na tradução de Fisher (2001)]; circulação de conhecimento, danças, cantos,
prerrogativas rituais; manutenção do karon [alma, espírito, princípio vital] dentro do
corpo das pessoas vivas e afastamento do karon dos parentes mortos que circulam na
aldeia durante a cerimônia, através do uso de determinadas substâncias utilizadas nas
pinturas e ornamentação corporais.
Diferentemente do que ocorre no cotidiano, a produção e distribuição alimentar
durante a execução do ritual de nominação extrapola os espaços das casas, envolvendo
um conjunto maior de pessoas, vinculando as crianças nominadas em relações mais

71
expansivas daquelas que normalmente são responsáveis pelo nutrimento de seus corpos
(Fisher 2001, p. 126). Entretanto, não é meu objetivo opor cotidiano e ritual, mas pensar
ritual como uma alteração de escala em relação ao cotidiano. Tal abordagem foi
desenvolvida por Lima (2005) em sua descrição da socialidade ritual de cauinagem
entre os Yudjá: “Como tudo o que acontece na cauinagem é extraído de indícios de
fatos da vida cotidiana para então ser ampliado, distorcido, estilhaçado e dramatizado
57
[...]” (idem, p. 251). A autora recorre a um aforismo de Nietzche para compor sua
fundamentação descritiva dos regimes de socialidade Yudjá: “Acredito que atingimos
assim um conceito etnográfico do ritual yudjá: ele varia entre a realidade e a irrealidade,
e de modo que o irreal não é nem pré – nem aquém – mas pós – ou além-real” (Lima
2005, p. 260).
Comumente, a ênfase nas descrições dos antropólogos dedicados aos povos
Mẽbengôkre sobre os rituais de nominação é dada no processo de confirmação da
transmissão dos nomes bonitos que distingue as pessoas portadoras desses conjuntos de
nomes como pessoas belas das pessoas comuns, que não tiveram nomes belos
reconhecidos cerimonialmente. Segundo a literatura especializada, os conjuntos de
nomes belos masculinos são aqueles iniciados pelos prefixos Bep e Takàk; os
femininos, pelos prefixos Bekwỳ, Ngrenh, Pãnh, Koko, Nhak; enquanto que o prefixo
Ire, podem ser utilizados para compor nomes belos femininos ou masculinos 58.
Em uma sessão para revisão de um livro de fotografias ocorrida na aldeia
Mrotidjam em dezembro de 2015, resultado de um projeto realizado pela FUNAI entre
as mulheres Xikrin, Koka 59 auxiliava na correção do conteúdo e da grafia das palavras.
Uma das sessões de fotos selecionada pelas menire [mulheres] que participaram das
oficinas do projeto intitulou-se Metoro Mereremex. Nesta sessão ficaram alocadas
imagens dos preparos para a realização do ritual de confirmação dos nomes como
ornamentação das crianças nominadas durante a cerimônia.

57
“Hábito das oposições. – A observação inexata comum vê na natureza, por toda a parte, oposições
(como por exemplo „quente e frio‟) onde não há oposições, mas apenas diferenças de grau. Esse mau
hábito nos induz também a querer entender e decompor a natureza interior, o mundo estético-espiturual,
segundo tais oposições. É indizível o quanto de dor, pretensão, dureza, estranhamento, frieza, penetrou
assim no sentimento humano, por se pensar ver oposições em lugar de transições” Nietzche (1978, p.146).
58
Para uma referência desse debate entre os Mẽbengôkre Xikrin, ver Vidal (1977); entre os Mẽbengôkre
Kayapó, ver Lea (1986, 2012).
59
Koka, cujo um dos nomes Mẽbêngôkre é Tàkàk Jakare Xikrin, é professor na aldeia RapKô, inaugurada
em 2014. Ele participou da elaboração de material didático realizada na UFSCar pela equipe do
Observatório da Educação Escolar Indígena (OEEI) em dezembro de 2012 e da execução do ritual na
aldeia Bacajá no final de 2014.

72
Figura 2: Imagem extraída do boneco do livro “Terra Indígena Trincheira-Bacajá: menire nhõ
kukràdjà meyxtere. A beleza e a força do conhecimento das mulheres Xikrin”.

Ao comentar sobre o texto que deveria acompanhar a imagem da ornamentação


de uma criança, Koka afirmou que o que importa mesmo nas festas não são os nomes
bonitos transmitidos, mas as crianças que são homenageadas.

Nosso ritual mẽreremejx de nominação é como as festas de aniversário que


os brancos fazem para seus filhos. E todas as crianças da aldeia podem ter
essa festa em sua homenagem, desde que seus pais, avôs e avós queiram
fazer isso para elas.

Mesmo sabendo que a analogia de Koka provavelmente seja influenciada por


um tipo de conhecimento vinculado a escolas e cursos de magistério indígena que ele
frequentou, tomo a reflexão realizada por ele como mais um dos movimentos criativos
de tradução, enquanto redução pedagógica, para explicação do ritual de confirmação
dos nomes que seja compatível ao conhecimento dos brancos. 60
Nesse sentido, adoto um procedimento diferente daquele realizado por Fisher
(2001) em sua descrição do ritual. O autor opera sua descrição a partir da inspiração na
literatura sobre semiótica, especialmente por meio da discussão de Rappaport (1999),
por sua vez inspirado na classificação dos signos feita por Pierce, sobre pensar ordens
litúrgicas enquanto uma sequência mais ou menos invariante de atos formais e
60
Agradeço à Camila Beltrame, doutoranda do PPGAS UFSCar por ter me chama a atenção sobre esse
ponto. Em sua dissertação de mestrado, ela realiza uma etnografia sobre o cotidiano de uma escola na
aldeia Mrotidjam problematizando o modo como os conhecimentos escolares eram apresentados às
crianças pelos professores não indígenas (Beltrame, 2013).

73
elocuções de alguma duração, repetida em contextos específicos. Segundo Fisher
(2001), os nomes bonitos, reconhecidos cerimonialmente nos rituais, que ele grafa como
great names, são como tokens. Por tokens, o autor compreende tratar-se de coisas que
servem de representação vivível ou palpável de um fato, uma qualidade e/ou um
sentimento. Dessa maneira, nomes enquanto tokens assumem a formulação analítica de
indexal symbols, ou mais precisamente, símbolos que dependem de certos indexadores
como, por exemplo, certos contextos. Ainda conforme o autor, a ocorrência de um token
é um evento que, no caso dos nomes belos confirmados cerimonialmente, refere-se ao
sucesso e à finalização de um processo de distintividade de um grupo de parentes que
compartilham substâncias. Assim, os nomes belos simbolizam uma forma social
atemporal recriada e reafirmada a cada novo ritual e marcam esses processos de
distinção de determinados grupos de parentes.
As análises de Fisher (2001) e Gordon (2006) concordam que é de extrema
importância o fato de que nem todos os filhos e/ou filhas de uma casa terão nomes belos
confirmados cerimonialmente. Isso porque, segundo os autores, a confirmação dos
nomes belos expande as redes de parentesco e amizade das crianças nominadas de modo
que elas terão, no futuro, maiores condições de conquistarem posições de chefia 61. Esse
movimento de distinção entre pessoas belas e pessoas comuns é, para os autores,
fundamental na manutenção dos índices de distintividade que pautam os regimes
sociomórficos dos povos Mẽbengôkre.
Fisher (2001) apresenta um exemplo etnográfico para justificar sua
argumentação de que entre os Xikrin a importância do ritual está na identificação da
distinção entre pessoas belas e comuns. Conforme seu argumento, a importância da
distintividade pode ser compreendida no fato de que apenas os primeiros filhos de um
casal terão os nomes belos confirmados cerimonialmente 62.
Meus dados, contudo, apontam para outra possibilidade reflexiva. Em duas das
cerimônias de nominação que acompanhei, haviam crianças nominadas que eram filhos
e filhas caçulas de um casal. O que pode decorrer de um espaçamento temporal, de

61
A associação entre pessoas com nomes confirmados cerimonialmente e assunções privilegiadas a
posições de chefia também pode ser encontrada em Bamberger (1974) e em Turner (2009).
62
Lea (2012) também enfatiza a confirmação dos nomes belos como principal efeito da realização do
ritual de nominação. Entretanto, diferentemente de Fisher (2003), a autora sugere que os nomes, os
ornamentos e as prerrogativas transmitidas não são símbolos (ou tokens), mas sim partes de kukràdjà e
nekretx que irão compor as pessoas. Nesse sentido, para Lea (1995, p.209), nomes e riquezas cerimoniais
não são termos simbólicos, mas partes atualizadas das essências ancestrais que conecta os vivos com os
Mẽbêngôkre originários.

74
modo que os filhos ou filhas que nasceram logo após a confirmação cerimonial de seus
irmãos ou irmãs não sejam homenageados cerimonialmente, enquanto que as crianças
que nasceram depois de certo tempo voltam a serem homenageadas 63.
Ainda que a produção coletiva da distintividade entre pessoas belas e comuns
seja de fundamental importância para o debate antropológico acerca da operação do
complexo kukràdjà, minha descrição irá realçar o efeito provocado por esse mecanismo
da distinção, a produção de pessoas Mẽbengôkre alegres, a celebração das relações de
parentesco e amizade formal e o engajamento coletivo das pessoas da aldeia para
realização dos seus preparativos.
Gordon (2006) dá destaque ao aumento da realização de rituais de nominação
proporcionado pelo maior acesso a bens e mercadorias decorrentes da relação dos
Xikrin do Cateté com a CVRD. Esse incremento das atividades rituais, segundo o autor,
acaba por gerar uma “comunização ou universalização do estatuto cerimonial de
pessoas belas com o aumento dos nomes celebrados cerimonialmente”. A comunização
implica em uma necessidade de novos mecanismos Mẽbêngôkre para reposição das
distintividades. Segundo sua análise, a marcação das distintividades passa a ser expressa
por meio da aquisição e acesso de dinheiro e mercadorias, de modo que pessoas belas
(com nomes belos reconhecidos cerimonialmente) concentram maiores facilidades desse
acesso do que as pessoas comuns. Ainda segundo o autor, os Xikrin vivem um duplo
risco, com a intensificação do acesso a bens e mercadorias: o de ficarem parecidos com
os brancos pela ingestão de comida industrializada e o de ficarem demasiadamente
parecidos entre si com a comununização do estatuto cerimonial.
Demarchi (2014, p. 52) questiona esse segundo risco, a partir de sua etnografia
entre os Kayapó de Môjkarakô, dizendo que para seus interlocutores não existe um risco
negativo em se apresentarem como pessoas parecidas entre si. Ao contrário, esse seria
um dos efeitos desejados por eles, porque ao se parecerem entre si, através do “idioma
ritual da beleza”, os Kayapó de Môjkarakô reforçam sua condição de gente
Mẽbêngôkre, e se mostram como diferentes dos parentes Mẽbêngôkre de outras aldeias
e diferentes dos brancos.
Entre os Xikrin do Bacajá, meus dados sugerem que o efeito de se
apresentarem como pessoas parecidas entre si também não é encarado como o maior de

63
Essa é uma questão para a qual ainda não tenho uma resposta satisfatória. Uma hipótese pode ser o fato
de uma intensificação dessas atividades rituais que proporcionam a possibilidade de mais crianças terem
seus nomes belos reconhecidos cerimonialmente. Essa apercepção foi desenvolvida por Gordon (2006).

75
seus problemas porque ao se mostrarem parecidos entre si, pelos menos aos olhos dos
estrangeiros, marcam a diferença daquilo que eles não desejam ser, a saber, os
brancos64. Desse modo, distinguirem-se dos brancos, através de certos procedimentos e
modo de existência como os rituais de confirmação dos nomes é o efeito mais
importante e que deve ser elicitado.
Para que o ritual meremejx seja iniciado é preciso que os pais das crianças que
serão homenageadas, e terão seus nomes bonitos transmitidos reconhecidos
cerimonialmente, agrupem pessoas que irão trabalhar para elas. O grupo formado por
essas pessoas é chamado mekrareremejx e é composto segundo as relações de
parentesco, afinidade e amizade formal dos pais com os demais moradores de sua e de
outras aldeias65. Assim, cada criança contará com um grupo de pessoas, seus
mekrareremejx, que se empenharão para garantir a comida necessária para a execução
66
da festa . A participação dessas pessoas no trabalho para a garantia da realização da
festa estreita os seus laços com os membros da casa da criança nominada. O
engajamento dessas pessoas é sempre lembrado pelos residentes da casa de
pertencimento da criança. O agrupamento das pessoas como mekrareremejx depende de
seus desejos e disposições nas atividades de preparação do ritual que destacam ou
visibilizam suas relações com os residentes da casa da criança nominada. “As pessoas
mekrareremejx precisam querer fazer a festa para aquela criança”. Preparar um ritual
mereremejx é uma tarefa trabalhosa e exige o engajamento de muitas pessoas. As
atividades de preparação do ritual de nominação são iniciadas com a organização e

64
O que não significa que ocorra de fato um processo de assemelhamento entre as pessoas em detrimento
da importância dos processos de distinção, que fundamentam a promoção da beleza e a constituição do
complexo kukràdjà. O procedimento adotado aqui é apenas forçar a tinta numa imagem de coletivo que se
contrapõe aos brancos, um mecanismo adotado pelos Mẽbengôkre-Xikrin em relação aos seus modos de
apresentação para os brancos da Norte Energia.
65
As relações de amizade formal são chamadas kradjwy entre os Mẽbêngôkre, tanto entre os Xikrin
quanto entre os Kayapó. Essas relações são idealmente herdadas patrilinearmente e os termos de
chamamento mudam conforme o gênero dos envolvidos na relação. Um homem chama seu amigo formal
de kràb e sua amiga formal de kràbngêt, ao passo que uma mulher chama sua amiga formal de kràb e seu
amigo formal de kràbngêt (Vidal, 1977). Os Xikrin explicaram-me que as relações krabdjwy, ou relações
de amizade formal, são como as relações entre compadres e comadres dos brancos. A explicação dos
Xikrin aproxima-se da associação feita por Diniz (1962, p. 22) entre amizade formal e compadrio. As
relações entre amigos formais são geralmente descritas como relações de evitação e/ou vergonha [pi’am
entre os Mẽbêngôkre]. Em contrapartida, as relações com os parentes do amigo formal são marcadas por
jocosidade, privilegiando brincadeiras de cunho sexual entre as pessoas de gêneros opostos. Segundo Lea
(1995), a amizade formal promove a possibilidade da relação entre pessoas de segmentos residenciais
distintos, de modo que é possível (ou mesmo desejável) a transformação de um amigo ou amiga formal
em possíveis afins via casamento. Coelho de Souza (2002, p.513) propõem pensar as relações de amizade
formal como um super-parentesco ao passo que o parentesco, propriamente dito, seria uma hipoafinidade.
66
As pessoas que fazem desse conjunto de pessoas são F (pai), FB (irmãos do pai), M (mãe), MZ (irmãs
da mãe); ou seja, os pais [bãm] e as mães [nãn] das crianças homenageadas (Vidal, 1977).

76
saída dos grupos masculinos para uma expedição de caça [õntomo]. Antes da saída dos
homens, as mulheres das casas preparam uma massa de mandioca [djoe kupu] para eles
levarem durante a viagem.
Um ritual de nominação é uma forma que persuade na medida em que executa
e visibiliza corretamente certos elementos de kukràdjà como uso de determinados
adornos cerimoniais por determinadas pessoas, o entoamento de canto e a realização de
passos de danças a partir da ação coordenada dos participantes, a aplicação de penujem
de determinados pássaros nos corpos das pessoas que serão nominadas por seus amigos
formais, a aplicação da mesma penujem nos corpos de todos os participantes entre
pessoas com relação de amizade formal, o fornecimento alimentar pelos grupos de
mekrareremjx a todos os participantes. É essa ação coordenada dos participantes que
gera o sentimento de alegria, felicidade, euforia, júbilo e engajamento. Assim, os rituais
de nominação marcam uma ocasião particular de engajamento conjunto de um grupo
determinado de pessoas que compartilham um objetivo ou uma finalidade em comum,
que é a realização eficaz do ritual marcada pela produção dos sentimentos de alegria e
harmonia entre os parentes [mekuni kῖn kumrejx].
Ao conversar com os Xikrin, eles afirmaram que o mais importante nesses
rituais é o engajamento das pessoas de uma aldeia e dos parentes de outras aldeias na
preparação e realização da cerimônia. O mais importante é a disposição das pessoas em
estarem juntas e fazerem juntas o que é preciso ser feito para que a cerimônia aconteça
de modo correto. Conforme notado por Cohn (2000) não há nenhuma ação de coerção
para que um ritual seja realizado, a coesão da performance depende do engajamento de
todos na atividade67.
Nesse sentido, sugiro que o efeito principal do ritual é o engajamento coletivo
das pessoas da aldeia, bem como dos parentes de outras aldeias, para a realização da
festa. Esse engajamento tem como efeito estarem juntos, felizes e vivos e expressa a
força e a beleza da cultura mẽbêngôkre [kukràdjà].
Na descrição que se segue, a ênfase será dada ao engajamento necessário para
que a cerimônia se realize e atinja o objetivo de “fazer as pessoas alegres e felizes”,
celebrando a importância da cultura Mẽbêngôkre [kukràdjà], elicitando relações de
67
Assim como não há nenhuma ação coercitiva no processo de aprendizagem das crianças. Para Cohn
(2000a, 2000b) as crianças devem mostrar-se interessadas em aprender as coisas e devem tomar a
iniciativa. A autora destaca também que as relações de afeto entre avôs, avós, netos e netas ou tios, tias,
sobrinhos, sobrinhas não dependem exclusivamente do processo de confirmação cerimonial e transmissão
dos nomes. As relações de mútuo afeto e cuidado são vivenciadas diariamente, de modo os netos sempre
geram motivo de orgulho.

77
parentesco e amizade formal. Assim, a intenção é marcar menos os processos de
distinção e beleza de grupos e parentes e dos nominados e mais o engajamento coletivo
necessário para que a cerimônia se realize.

Os preparativos

Cheguei atrasada à cozinha/quintal68 da casa de uma de minhas amigas


formais, que estava prestes a ter a confirmação ritual dos nomes bonitos de mais uma de
suas filhas. O trabalho para organização da expedição masculina de caça começa muito
cedo, antes do apontar do sol. Alguns homens, os guerreiros dos grupos mekrareremejx
que partiriam para a expedição, chegaram ao Posto de Saúde, onde me hospedava,
acordando a mim e a técnica de enfermagem. Eles queriam alguns remédios para levar
ao acampamento de caça. Tinham pressa. Fui repreendida pelo marido de minha amiga
formal por eu ainda estar na rede. “Levanta, Thaís, rápido. Vá ajudar sua amiga formal.
Ande.” Na cozinha do Posto de Saúde, os homens diziam quais remédios queriam levar
consigo: remédios para dor, medicamentos para malária, remédios para disenteria e
vermífugos. Eles estavam pintados com jenipapo e urucum e vestiam alguns de seus
adornos rituais, os braceletes de penas e colares de miçanga. A técnica de enfermagem
oscilava entre pegar os remédios e fazer o café. Saí antes de o café ficar pronto e fui
para casa de minha amiga formal.
Na cozinha/quintal da casa de Mopkure, os fornos de pedra [kῖ] estavam a todo
vapor: sobre as pedras, assava a parte traseira de um porcão [angrô]. Algumas mulheres
terminavam a pintura com jenipapo nos corpos de seus maridos [miêt]. As mulheres
sem filhos [kurere] alimentavam o fogo com mais lenha e coavam grandes quantidades
de café. Mopkure separava uma parte da carne quando me aproximei. “Por que demorou
tanto? Pega mais folhas de bananeira ali na roça. O facão está ali”. Mopkure possui
muitas roças, como é comum entre as mulheres Xikrin com muitos filhos e netos. A
roça a qual ela se referiu ficava bem próxima da casa, na parte traseira. Voltei com as
folhas ou palhas de banana enquanto os homens da casa retornavam com o suprimento
dos remédios que estavam disponíveis no Posto de Saúde. Enquanto embrulhava a carne

68
Nas descrições de Ladeira (1983) sobre as casas Timbira e de Novaes (1983) sobre casas Bororo, a
alusão ao espaço exterior da casa é feita a partir do termo “puxado” ou “puxadinho”. As autoras reforçam,
ao acionar o termo, que não se cozinha dentro das casas, o que é também confirmado em Vidal (1986)
para os Xikrin.

78
na palha vi os homens organizando seus apetrechos para a expedição de caça [õntomo]:
verificavam suas espingardas e a quantidade de munição; separavam farinha de
mandioca para levar ao acampamento; pegavam sabão, esponja e panela; calçavam seus
tênis; guardavam as redes, lonas, anzóis, linhas de pesca e celulares na mochila.
Enquanto os homens guerreiros preparavam-se para a expedição de caça, os
avôs e tios maternos [ngêt] das crianças ocuparam a porção central do ngàb [casa do
meio] e realizaram falas cerimoniais. As falas cerimoniais masculinas [ben] são
caracterizadas principalmente por sua forma de execução: tom bastante grave da voz do
velho narrador [mebenget iarem] e caminhadas curtas acompanhadas do levantamento
sistemático da borduna. Em suas falas, os ngêt [avôs e tios maternos], que eram homens
velhos com muitos netos e netas, ressaltavam a importância da realização do ritual de
nominação, a importância da participação de todos para a realização da festa, o modo
como os jovens [mekranýre] deveriam se portar durante a expedição de caça, a beleza
do conhecimento dos Mẽbengôkre [kukràdjà], a importância dos avôs e tios maternos e
das avós e tias paternas em transmitir e confirmar os nomes bonitos a seus netos ou
sobrinhos e netas ou sobrinhas dando continuidade ao kukràdjà de todos. Não havia
plateia durante as falas dos homens velhos. Aos poucos, os guerreiros foram se
aproximando com suas bagagens ao ngàb. Depois da chegada de todos, os guerreiros
partiram em direção ao rio onde estavam preparadas as três voadeiras que utilizariam
para a viagem. As mulheres posicionaram-se no caminho entre o centro da aldeia e o
porto e viram os homens partirem, sem despedidas. Na aldeia ficamos as mulheres, as
crianças e os velhos. Assim que os homens saíram, Mopkure pegou meu braço: “Vem,
vamos comer”.
Na aldeia, as mulheres também se organizaram em grupos [menire kute] para a
realização das atividades necessárias para o ritual. As mulheres precisam buscar a
quantidade de lenha e pedras para alimentar os três fornos de pedras [kῖ] onde serão
preparados os jabutis trazidos pelos homens da caçada. A primeira atividade das
mulheres durante o início dos preparativos para o ritual de nominação mereremejx foi
uma sessão de pintura corporal, ocasião em que combinavam quais seriam as próximas
atividades para a preparação do ritual e como se organizariam para executá-las. Irekô
explicou que era preciso que as mulheres estivessem mejx [corretas, pintadas
corretamente] para irem à floresta buscar uma parte da lenha usada no ritual. Com as
pinturas recém-terminadas, as mulheres ajeitaram seus facões, machados e paneiros e
saíram em dois barcos, divididos segundo categorias de idade.

79
As pessoas mais velhas, homens e mulheres, permaneceram em suas casas
durante os preparativos do ritual e auxiliaram nos cuidados das crianças pequenas e na
confecção dos adornos que serão usados na festa. Ao final da tarde, eram as mulheres
velhas que ensinavam o repertório musical às mulheres mais novas.
O período de uma expedição de caça dos homens depende do tempo gasto na
captura da quantidade exata de jabutis que precisam ser levados para a realização do
ritual. Como já mencionado, os homens dividiram-se em grupos de acordo com o
número de crianças nominadas. Cada um dos três grupos precisou capturar vinte e cinco
jabutis que foram entregues para a mãe e para as irmãs da mãe das crianças nominadas.
Os jabutis devem ser colocados em fila em duas varas de sustentação e amarrados nelas
com cipós, o que Lea (2012) chama de “escada de jabuti”. A disposição dos jabutis nas
varas precisa ser feita de modo simétrico, correto, para que as varas fiquem bonitas
[mejx] 69.
Ao retornarem para a aldeia, os homens chegaram cantando as músicas
ensaiadas durante o período da expedição e caça e carregavam as varas para a parte
traseira das casas das crianças nominadas. Os homens voltaram pintados de jenipapo,
mas não como se alguma de suas mulheres (esposas, mães, irmãs ou avós) os tivessem
pintado. A pintura que apresentaram nos corpos, quando retornaram à aldeia, era
70
grosseira e assimétrica , feita seu uso de qualquer talinha [kuoku]. Alguns homens
disseram-me que apenas mastigaram o jenipapo e depois cuspiram a massa em seus
corpos deixando-a escorrer desajeitadamente por sobre o tórax e as costas. Somado a
essa pintura, os homens também se apresentaram com urucum na região dos olhos e pés
e portando alguns de seus adornos (colares e braceletes). Panhtô ao ver seu marido
entrando no pátio da aldeia comenta comigo: “Ele está um pouco mais magro até, estou
(estava) com saudade”. A fala de Panthô gerou muitos risos das mulheres de sua casa,
que também acompanhavam a entrada dos homens no pátio da aldeia.

69
Ao retornar de uma dessas expedições de caça, Tekakamreti mostrou-me um vídeo do acampamento
sobre o preparo de uma das escadas de jabuti. O tempo gasto para organização e posicionamento dos
jabutis é longo. Os meninos jovens, com poucos filhos ficaram responsáveis pela montagem sob a
supervisão dos homens mais velhos que já possuem netos.
70
Para uma análise das pinturas masculinas, ver Demarchi (2014) e Vidal (1992).

80
Pỳ metoro e mroti metoro

71
Prinkore anuncia o início do pỳ metoro [festa/dança do urucum] numa fala
formal no ngàb. Em sua fala, Prinkore destaca a importância de fazer a festa, como é
bonita sua cultura, como ele tem orgulho de ser Mẽbêngôkre, como o conhecimento dos
Mẽbêngôkre é forte, e como ele está feliz porque todos ficarão felizes durante a festa,
como está feliz por ter aprendido com os velhos a fazer a festa que, por sua vez,
aprenderam com outros velhos. Ele pediu para que as caixas dos aparelhos de som das
casas não fossem ligadas a partir daquele momento, porque era preciso que todos da
aldeia (exceto as demais crianças, que não serão homenageadas e não participam da
execução da festa) cantassem as músicas durante a festa. Prinkore falava que aquela
festa seria importante também porque seria filmada e ressaltava o desejo de fazer os
filmes de suas festas para registrar a beleza de sua cultura e para que nunca ninguém
esqueça como é a cultura dos Mẽbêngôkre. Os pais de cada criança também fizeram um
discurso e agradeceram o engajamento dos mekrareremjx, destacaram a chegada dos
parentes de outras aldeias no dia seguinte, disseram aos velhos para ouvirem as músicas
que ensaiaram no acampamento de caça para saber se estavam cantando certo e bonito.
Na manhã seguinte, as mulheres realizaram mais uma sessão de pintura
corporal mantendo o mesmo grupo das que se pintaram anteriormente. Outros motivos
gráficos foram aplicados, de modo que as mulheres com poucos filhos pintaram-se com
um grafismo distinto do aplicado pelas mulheres mais velhas, com muitos filhos e netos.
A sessão, desta vez, foi feita atrás das casas das crianças que receberão os nomes
bonitos. O grupo dos mekrareremejx servia comida às mulheres: peixe assado, farinha,
arroz e feijão. Terminada a sessão, as mulheres retornaram às suas casas e realizaram os
acabamentos finais nos enfeites de miçangas que serão usados pelos moradores de suas
casas. No final do dia, começou o pỳ metoro [festa/dança do urucum]. Os homens ainda
não estavam pintados com jenipapo e dançavam pintados com urucum, usando seus
braceletes de penas. As avós e tias paternas das crianças nominadas dançaram no pátio
circulando as casas e apresentando, pela primeira vez, as crianças. A apresentação das
crianças pelas avós foi feita com uma única volta circular entre as casas e o pátio
central. Essas mulheres voltaram para frente de suas casas com as crianças e choraram.

71
A tradução de Giannini (1991) para a expressão é “dança- vôo do urucum”. Segundo a autora, a
terminologia vôo associada à dança está relacionada com os processos de transformação dos participantes
da festa em aves. Essa metamorfose remonta ao tempo mítico em que os Mẽbêngôkre eram aves, antes de
se transformarem em humanos.

81
72
O choro ritual das avós e tias paternas podia ser ouvido de dentro do ngàb. Bekanhê
explicou: “As avós choram porque estão lembrando-se de seus parentes que já
morreram. Os espíritos desses parentes chegarão amanhã para a festa. As avós sentem
saudade dos parentes que morreram”.
No outro dia, pela manhã, as avós e tias paternas das crianças nominadas foram
até o ngàb para raspar o cabelo dos homens. Todas as pessoas, que estão engajadas na
realização do ritual, tiveram os cabelos do meio da cabeça raspados [amimioko]. Esse
espaço de onde foi retirado o cabelo recebeu a tinta do urucum. Depois de terem os
cabelos raspados, os homens retornaram às suas casas onde suas mulheres pintaram seus
corpos com jenipapo. Enquanto as mulheres pintavam os homens (seus maridos, filhos,
irmãos e netos) as pessoas das outras aldeias foram chegando. As pessoas que chegaram
encaminharam-se à casa de seus parentes consanguíneos e as mulheres choraram
ritualmente para cada uma delas. Esse choro ritual é feito todas as vezes que algum
parente ou amigo é recebido na casa. Nesse choro as mulheres entoam, como uma
ladainha, a saudade dos que morreram e os acontecimentos que viveram. São as
mulheres que recebem as visitas e cantam o choro para os visitantes, independentemente
de serem homens ou mulheres. Os visitantes choram em silêncio ouvindo o choro
cantando das mulheres que estão lhes recebendo.
Após a chegada dos parentes das outras aldeias, os homens organizaram um
torneio de futebol com dois times. Cada time foi formado conforme as categorias de
idade dos jogadores: time dos homens com muitos filhos e netos contra o time dos
homens com poucos filhos e netos. As mulheres foram ao campo assistir o jogo de
futebol. Depois do jogo, os homens dançaram, ainda vestidos com o uniforme do jogo,
no ngàb. Muitos jabutis assados foram servidos a eles. Até esse momento os pais das
crianças ainda permaneciam sem nenhuma pintura [koiakà].
Depois de comerem os jabutis, os homens confeccionaram um enfeite com
palha que foi colocado na cabeça, de modo que uma longa tira da palha ficou voltada
para trás, como um rabo. As avós circularam mais uma vez com as crianças, dando uma
única volta no círculo e retornando para a frente das casas onde entoaram o choro. Os
homens dançaram no pátio (entre as casas e o ngàb) parando em frente de cada uma das

72
O choro ritual entre os povos Mẽbengôkre é designado por Lea (2012) como a oratória feminina quee
contém muitos componentes do kukràdjà. Nas palavras de Cohn (2005, p. 176) trata-se de “um discurso
biográfico e narrativo de memória social e afetiva”.

82
casas das crianças nominadas. De volta ao centro, os avôs cantaram para as crianças
nominadas. Da frente de suas casas, as mulheres entoaram o choro ritual.
Tedjôre, mencionado no capítulo um, homem velho e com muitos filhos e
netos, cacique antigo, que atualmente reside na aldeia Rapkô, iniciou uma fala
cerimonial exaltando a qualidade da festa até aquele momento: a boa quantidade de
comida servida, as músicas e danças feitas corretamente, a alegria de estar junto com as
pessoas para fazer a festa. Tedjôre falou da beleza do modo de ser dos Mẽbêngôkre, de
como os avôs e avós produzem os netos e netas, de como são importantes as relações de
respeito/evitação [pi’am] entre as crianças e as pessoas mais velhas. “Avôs e avós
Mẽbêngôkre são muito fortes, não são fracos não. Avôs e avós têm muito netos e netas,
fazem as crianças crescerem fortes e bonitas”.
Entre uma dança e outra, os mais velhos contaram histórias antigas [iarem tüm]
no ngàb. 73
Há algum tempo atrás [amrebe ngrire], uma vez por ano, as mulheres e os
homens trocavam de esposa e marido com outro casal. As mulheres
combinavam entre si a troca dos maridos, eram elas que decidiam primeiro e
depois avisavam para o marido com quem a troca se realizaria. Os homens
quando estavam caçando na mata conversavam sobre as escolhas que suas
mulheres tinham feito e combinavam a troca. Algumas vezes, os casais
permaneciam trocados por seis meses, outras vezes a troca era mantida por
menos tempo. Os casais eram trocados em uma festa [metoro] da dança
kuoro kango. Depois de tudo combinado, as mulheres não podiam desistir da
troca, porque seria muita vergonha para o seu marido. Se as mulheres
desistissem, os maridos batiam muito nelas [kaprepre kumejx] (risos da
plateia). No outro ano era preciso que as mulheres escolhessem o marido de
outro casal para fazer a troca. Os casais só podiam fazer a troca durante um
ano e depois tinha que escolher outro casal para trocar. Antigamente era
assim que faziam os Mẽbêngôkre. Antigamente as pessoas eram mais unidas
e as crianças eram cuidadas por todo mundo da aldeia, não apenas por sua
mãe e pai.

Eu ouvia a história que Tedjôre contava quando Bekanhê disse ao pé do meu


ouvido: “Os meninos mais jovens adoram essas histórias que os velhos contam. Todo
mundo dá risada delas”. Tedjôre continuava sua narrativa.

Antigamente [amrebê] os homens jovens trocavam com as mulheres velhas e


as mulheres novas trocavam com os homens velhos. Isso chama awãrỳ. Os
homens jovens levavam as mulheres velhas para o mato e transavam com
elas lá no mato. Na aldeia só ficavam as mulheres novas e os homens velhos
transavam com elas. Essa troca era rápida, só poucos dias. Ao voltarem para

73
Trecho gravado e traduzido para o português por Koka.

83
a aldeia com as mulheres mais velhas, os homens traziam bastante carne de
caça.

O dia do clímax do ritual mereremejx [mroti metoro, festa/dança do jenipapo]


começou junto com o nascer do sol e a aldeia foi tomada pela a fumaça e o cheiro dos
74
jabutis assados e dos berarubus das vísceras no animal. A primeira dança foi a
apresentação circular no pátio das crianças [tabjwo toro djá]. Na parte frontal da cabeça
usava-se uma folha da árvore de cacau [kubẽn krati ôk]. Após as primeiras danças com a
folha de cacau na cabeça, o adorno foi substituído pelos enfeites com penas 75.
A primeira apresentação das crianças foi feita para que o kukràdjà [adornos
cerimoniais e prerrogativas rituais] fosse visto e respeitado por todos 76. Para os Xikrin,
diferentemente do que ocorre entre os Metuktire, segundo Lea (2012), os nekretx são
77
apenas os grandes adornos de penas colocados nas costas da criança nominada , de
modo os demais adornos e prerrogativas rituais são chamadas de kukràdjà.
Os homens dançaram mais uma vez com os uniformes dos dois times de
futebol: o time dos homens com muitos filhos e netos [mekrare] e o time dos homens
com poucos filhos e netos [mekranỳre]. Os homens se apresentaram no ngáb e
dançaram no pátio cantando a música da comida ritual [pidjo kangore]78. Dois homens
de cada grupo de mekrareremejx saíram da casa do meio cantando essa música até a
casa da criança com a qual o grupo se vincula para buscar comida (biscoitos e
refrigerantes). A partir desse momento, as pessoas começaram a sair de suas casas
porque os espíritos dos parentes mortos [mẽkaron] estavam chegando para ocupar as
casas dos parentes que estão vivos. Mesmo as crianças que não estavam participando da
festa ficaram do lado de fora das casas, brincando e tentando invadir a festa. Os homens
cobriram o chão da casa do meio com palhas de coco babaçu. Os avôs e avós iniciaram
74
Alimento típico da culinária Mẽbengôkre. Massa de mandioca que pode ser usada para evolver uma
parte de carne de caça ou de peixe, levada ao forno de pedra e enterrada durante algumas horas. Os
Mẽbengôkre chamam os berarubus de carne de caça como mry kupu, os de carne de peixe como tep kupu
e os sem nenhuma carne dwy kupu.
75
Para uma análise dos usos de adornos vegetais que são posteriormente substituídos por adornos com
penas, ver Cohn (2000).
76
Cohn (2000) refere-se a esse movimento através do termo amirin [mostrar].
77
Segundo Cohn (2000, 2005) os nekretx são os cocares pequenos feitos com penas de papagaio,
enquanto que os grandes adornos colocados nas costas das crianças são chamados krokrotire. Giannini
(1992) afirma que nekretx podem ser quaisquer adornos feitos com penas, de modo que o termo pode ser
utilizado para designar apenas as penas. Durante meu acompanhamento dos rituais, os Xikrin referiam-se
a esses grandes adornos, krokrotire, como nekretx.
78
Essa música foi incorporada após ter sido vista e ouvida em uma filmagem de ritual de nominação
Kayapó. Esse filme circulou entre as casas e passou a compor o repertório ritual porque, como disse
Takakmare “todo mundo gostou da música quando ouviu, por isso passamos a cantá-la também”. A
música faz uma analogia entre o fornecimento alimentar de homens a mulheres e relações sexuais.

84
o processo de ornamentação das crianças, ao mesmo tempo em que os demais cantavam
as músicas. As pessoas choravam enquanto os avôs e avós enfeitavam as crianças. O
rosto da criança foi coberto com uma seiva [barop] para a colagem da casca triturada do
ovo do pássaro azulona [atorori ngre]. Os pais seguravam a cabeça da criança no colo
enquanto o avô e a avó começavam a aplicação do enfeite. Do rosto do pai e da mãe da
criança, lágrimas silenciosas escorriam.
O ritual mereremejx é ao mesmo tempo a saudação da vida das crianças
nominadas e de todos os que estão vivos e a lembrança dolorosa daqueles que
morreram, cujos espíritos [mẽkaron] estão presentes na festa. A festa congrega a
celebração da vida e a saudação da dor da morte. É como se o ritual mereremjx fosse
uma mistura de batizado e velório. É justamente essa ambivalência que a performance
suscitou um mim: a vida e a morte numa mesma forma ritual, a celebração da vida
renovada e o choro pela ausência de vida num só tempo.
Três carrinhos de mão forrados com jabutis assados foram trazidos pelos
mekrareremejx para o ngàb. A distribuição dos jabutis assados foi feita primeiramente
aos mais velhos e às mais velhas. Os donos dos maracás [ngokon bàri] receberam seus
instrumentos dos seus avôs, chefes antigos. Esses tocadores eram homens guerreiros
que ocupavam posições de chefia ou que poderiam vir a ocupá-las. Os instrumentos
receberam óleo de coco babaçu e tinta de urucum. Os caciques antigos fizeram a entrega
dos maracas àqueles que têm o direito de uso dessa prerrogativa, os mesmos homens
que poderão ser lideranças ou que são chefes atuais.
Entre uma música e outra, os pais das crianças entregavam a cada um dos
participantes um barbante cheio de balas amarradas e outro com bexigas que era usado
transversalmente no tórax junto com as miçangas. As bexigas foram incorporadas
enquanto adorno cerimonial após a entrega das caminhonetes, num dos acordos de
mitigação com a Norte Energia, nas aldeias. As caminhonetes levadas até as aldeias
estavam enfeitadas com bexigas. Os Xikrin realizaram um ritual em homenagem às
caminhonetes e as bexigas tornaram-se parte dos seus ornamentos rituais.

85
86
Figuras 3, 4, 5, 6, 7 e 8: Registro fotográfico do uso das bexigas como adorno
cerimonial. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

87
Várias danças e cantos foram se realizando após a apresentação das crianças
pelos avôs e avós [tabdjwo toro djá]. Homens e mulheres dançavam e cantavam juntos
[kuoro kango]. Em outros momentos, as avós se colocavam no final da fila [tabjwo
katen]. Os parentes da criança apresentavam a dança que é prerrogativa da casa dela,
como o caso da dança/canto pjxau, originária da casa de Koti, umas das avós das
crianças nominadas. As avós podiam pegar no braço de um de seus netos e netas
[tabdjwo pá amỳ] e iniciar uma dança ao redor do ngàb. Os avôs e avós também
dançavam e cantavam para os netos e netas [mẽ nó ok mengrere].
O conjunto de danças e cantos realizados no dia do clímax ritual [mroti
metoro] durou vinte e quatro horas, começando e terminando com o nascer do sol. O
conjunto de músicas e danças realizadas durante o dia é chamado metoro amró
mengrere [canto e festa do/para o sol quente]. Quando a noite chega, o conjunto de
dança e música é alterado para o metoro akamàt mengrere [canto e festa para o sol frio,
para a anoite]. Durante a madrugada o conjunto de dança e música é o metoro ngrere
oabá [canto e festa para a madrugada, quando o sol foi embora].
O dia seguinte apontou e o café foi servido com bolo de farinha de trigo.
Durante a madrugada, os pais das crianças continuaram servindo alimentos, água e café
para os velhos e para as velhas que seguravam o ritual, que continuaram cantando e
dançando durante a madrugada. A comida precisava ser continuamente servida para que
os cantores e cantoras continuassem cantando com força. Caso os cantores deixassem de
cantar as músicas, o ritual perderia sua força e deixaria de ter o efeito desejado.
Os pais e mães das crianças levaram urucum para o ngàb. O urucum foi usado
para pintar as penas brancas, aplicadas na tarde anterior nos corpos de todos que
participam da festa. As aplicações das penas, e seu tingimento posterior, realizaram-se
entre os amigos e as amigas formais, de modo que essa relação fosse visualizada e
explicitada para que as crianças nominadas reconhecessem quem são seus amigos
formais. Com as penas brancas tingidas de vermelho, as pessoas foram banhar-se no rio
e seguiram para descansar em suas casas. Nesse momento, os espíritos dos mortos já
tinham indo embora.
Com o cair da tarde, as pessoas retornaram ao pátio e realizaram mais uma
dança percorrendo o círculo das casas uma única vez. Em seguida, os homens sentaram-
se dentro do ngàb e as mulheres posicionaram-se de forma semicircular a leste da casa
do meio. As lideranças velhas falaram sobre como a festa foi bonita e como estavam
felizes. Os parentes convidados das outras aldeias agradeceram a festa, elogiaram a

88
comida e a satisfação de estar ali. Os pais das crianças agradeceram a participação de
todos, disseram como estavam felizes por conta da presença de todos e como sentiam
falta dos parentes que morreram. As mães das crianças agradeceram a participação de
todos, disseram como estavam alegres e como a festa tinha sido bonita, porque reuniu as
pessoas. Os caciques e os guerreiros da aldeia terminaram suas falas mencionando o
preparo para o próximo ritual. “Agora vamos fazer uma nova festa, começar a festa de
novo, juntar os parentes. Nós, Mẽbêngôkre, somos fortes, não somos fracos.”

Ritual de nominação mẽreremejx: forma que persuade

Os rituais de mẽreremejx de confirmação de nomes mẽbêngôkre são daqueles


momentos que enchem de alegria e beleza os olhos dos antropólogos que os
acompanham. A beleza das cores, formas e sons da cerimônia embriaga os sentidos de
todos. Tudo é muito rápido e muito devagar ao mesmo tempo. Os olhos do observador
não sabem o que fazer, há sempre muitas coisas lhes chamando a atenção. Nos dois dias
de clímax ritual, um riso permanece estampado na boca e só cede lugar nos momentos
de enunciação do choro ritual feminino. O ritual hipnotiza o pesquisador, que perdido
naquela imensa coreografia de cores, corpos e sons não sabe muito bem para onde olhar
e o que anotar no seu caderninho, a não ser a convicção de que a performance é
hipnoticamente bela. Nesses rituais todos ficam felizes e alegres [mekuni ikin kumrenh]
e isso é francamente visível.
Essa proeminência da beleza num ritual não ocorre de um modo qualquer. É
preciso que uma série, bastante detalhista, de atividades seja realizada em conjunto para
que a cerimônia aconteça. Existe um ritmo importante para a realização dessas
atividades em conjunto. Homens devem retornar da expedição de caça, com a
quantidade necessária de animais, num tempo próximo daquele em que as mulheres
terminam de estocar a quantidade necessária de lenha utilizada nos grandes fornos de
pedra [kῖ]. As comidas precisam ser servidas para os participantes do ritual nos
intervalos entre as danças em volta no ngàb. Os dançarinos e dançarinas precisam
realizar os passos sincronicamente. Os cantores e cantoras devem intercalar suas vozes
em momentos precisos das canções. Tudo isso sendo conjuntos de ações sincronizadas
que garantem o efeito de beleza do ritual.

89
Mas essa garantia nunca está dada de antemão e todo o ritual, desde o início de
suas preparações, pode falhar. O esforço para que uma falha não ocorra é intenso e
exaustivo. O controle precisa sempre ser tomado pelas mãos de todos os que trabalham
para um ritual ocorrer. O perigo é grande. Durante o clímax ritual, os espíritos dos
mortos estão na aldeia e podem levar o karon [alma] de algum parente querido consigo
para a aldeia dos mortos. É preciso estar atento e não se deixar levar pela dor da
saudade. Os choros rituais precisam ser controlados pelas mulheres que os entoam,
porque se chorarem muito, elas podem adoecer e os espíritos dos mortos [mekaron]
podem tentar capturar sua alma [karon]79. É preciso estar atento para se manter vivo e é
preciso estar muito mais atento para se manter vivo enquanto gente mẽbêngôkre. Os
Xikrin do Bacajá bem o sabem.
Refletindo sobre as possíveis falhas de um ritual, Fisher (2001, p. 122) destaca
como uma das mais problemáticas a elicitação de disputas ou desavenças entre os
participantes durante a performance. Lea (2012) aponta que essas disputas podem
ocorrer em relação à acusação de transmissão incorreta ou roubo dos nomes entre os
membros de determinadas casas. Nesse caso, ainda segundo Lea (2012), que concorda
com Verswjver (1984, p.106-107), os nomes belos não confirmados de modo correto
nas cerimônias de nominação não poderão ocupar a categoria de nomes belos e se
tornarão nomes belos falsamente reconhecidos [idji mejx kaigo]. Uma das
consequências pode ser, para Verswjver (1992), a ruptura e divisão de uma aldeia.
Os Xikrin com quem convivi também temem pelo fracasso de um ritual e
elencam também outros motivos que podem acarretar nesse efeito indesejado. Para eles,
um ritual pode fracassar e isso acontece se o modo e o ritmo do engajamento coletivo
falhar, se alguém não cumprir devidamente seu papel cerimonial ou não conseguir
atingir as condições necessárias para realização (correta, leia-se) do ritual. No caso do
ritual fracassar, o nome bonito continua sendo bonito e pode haver uma nova realização
da festa para a criança. Conforme explicação de Bep Nhô, o fracasso do ritual gera
muita vergonha para os adultos envolvidos, mas não para a criança celebrada.
Um dos problemas para realização correta do ritual de confirmação de nomes
belos pode ser a atitude de um homem da categoria ngêt [avô ou tio materno] em
recusar a transmitir o conjunto de nomes para o filho de uma irmã caso ela tenha tido
alguma postura mesquinha como se negar a oferecer comida (Lea, 1992, p. 143). Essa

79
Ou como afirma Cohn (2000) para as crianças: choro demasiado envolve sempre um risco de perda do
karõn.

90
possibilidade leva-me a tratar esse ritual como um estímulo para evitar relações de
sovinice entre parentes próximos ou distantes e entre residentes de uma ou várias
aldeias. Uma história dos antigos [mojxa arem tum] conta sobre uma avó que se recusa
a fornecer comida para o neto e acaba se transformando em porcão [angrô], devido a
sua ação falha de não compartilhamento alimentar.

No começo, o pai mandava o filho dele ir buscar comida com a sua avó.
_ Vai. Vá até a sua avó buscar comida. Todo o pessoal já foi para o mato.
A avó mandou seu neto ir com o pessoal para o mato para retirar o bucho
dos animais.
O neto falou para sua avó: _ O papai disse para eu vir aqui buscar comida
para eu comer.
A avó respondeu: _ Coisa nenhuma. Vá para o mato tirar o bucho dos
animais.
No outro dia o pai disse para o filho: _O pessoal vai pro mato. Vá até a casa
de sua avó para pegar comida.
O filho recusou: _ Não vou não pai. A vovó vai me mandar para o mato de
novo.
O pai ficou furioso e decidiu fazer alguma coisa.
O pai furioso disse para o filho: _ Está certo. Deixa pra lá. Vamos deixar sua
avó sozinha comendo sementes. Porque ela é (está se tornando) porcão.
Porcões são assim comem sementes velhas sozinhos. Sua avó está fazendo
como os porcões, ela está comendo sozinha as sementes.
Quando chegou a noite, alguém (que não é possível ser identificado) trancou
a mãe, a irmã, os netos, as netas todo mundo da casa da avó para ficarem
presos juntos.
Porcão é Mebengokre. Mebengokre é/está (se transformando em) porcão.
Quando chegou o dia, alguém (que não é possível ser identificado) foi abrir a
casa.
Como abrir a casa? Ninguém viu como fez. Ninguém viu como foi que
abriu.
Assim mesmo, desse jeito.
Crianças choravam, a mãe chorava e gritava.
Quando o sol estava quente, ouviu-se o barulho kri kri [onomatopeia referida
a porcões].
Por que estavam com aquele focinho curto cutucando a pedra?
De novo o barulho kri kri
As crianças tornaram-se filhotes de porcões: we we we [onomatopeia para
filhotes de porcões]
_ Olha só. Sua avó ficou sozinha comendo sementes. Ela ficou presa. Agora
ela se tornou porcão.

Narrativa realizada por Tedjôre Xikrin e transcrita com auxílio de Bep Nhô
Xikrin.

A história narrada por Tedjôre, um dos irmãos mencionados no capítulo um,


lembra os perigos que as ações de sovinice podem ocasionar. Em última instância, esse
tipo de ação egoísta pode fazer com que a pessoa perca sua condição de gente

91
Mẽbêngôkre. O ritual de nominação mostra que é preciso um esforço constante para que
essa condição de pessoa seja mantida. E mostra também que uma ação importante para
essa manutenção da condição de pessoa é o compartilhamento alimentar entre parentes
80
. O compartilhamento alimentar é intensamente marcado na execução ritual. Grupos
de homens vão buscar os animais que serão consumidos na festa, grupos de mulheres
vão buscar lenha e preparar a massa de mandioca para rechear os jabutis trazidos pelos
homens. Os participantes do ritual precisam ser servidos com grandes quantidades de
alimentos.
Para Fisher (2001, p. 119) o grande problema de alguma falha num ritual de
nominação é atrapalhar o fluxo do parentesco analógico (Wagner, 1977). Conforme
análises do primeiro autor, apenas as pessoas com nomes belos confirmados
cerimonialmente tem acesso amplo a redes de parentes, de modo que pessoas com
nomes comuns ou com nomes belos não confirmados cerimonialmente acabam tendo
um acesso reduzido à rede de parentes. Esse aspecto, ainda segundo Fisher (idem), não
interfere nas capacidades individuais das pessoas em se inserirem em redes mais amplas
de parentes.
Meus dados de pesquisa concordam prontamente com a segunda premissa de
Fisher (idem), mas não tão prontamente assim com a primeira. Uma série de atividades
cotidianas como distribuição correta de partes de caça pelas mulheres, por exemplo,
podem ser também tomadas como fluxos analógicos de parentesco, para retomar a
expressão de Wagner (1977) indicada pelo autor. Além disso, uma pessoa com nome
belo (cerimonialmente reconhecido), se não agir corretamente com seus parentes, acaba
sendo desligada dessas relações 81.
Certa vez, Bep Nho explicou-me acerca da constante circulação de alimentos
entre parentes de aldeias distintas. Um piloto de uma embarcação, contratado pelo DSEI
(Distrito Sanitário Especial Indígena) estava bastante irritado acerca do movimento

80
O que não significa que as pessoas Mebengokre-Xikrin vivam cotidiana e exclusivamente de maneira a
praticarem a generosidade e o compartilhamento alimentar. Acusações de roubo e apropriação indevida
de cultivares da roça, má distribuição de recursos e dinheiro, não são situações raras. Entretanto, é a
imagem da partilha e da generosidade que promove o contraste e a oposição com os brancos que vivem
sistematicamente por meio de ações egoístas e sovinas. E esse contraste que proponho evidenciar.
81
Afirmação que concorda com a análise de Cohn (2005, p.29): “Isso quer dizer que, embora uma relação
seja possível, ela só será realizada de fato na prática, e de acordo com o tipo de laços criados e mantidos
ao longo da vida. E, portanto, de acordo com a atuação da criança no sentido de fortalecer ou não esses
laços. A criança não apenas aprende como se deve tratar um pai classificatório; ao lado disso, dentre as
várias pessoas que ela chamará de pai algumas se tornarão mais próximas e mais importante em sua vida
do que outras. Portanto, cada criança criará para si uma rede de relações que não está apenas dada, mas
deverá ser colocada em prática e cultivada. Elas não “ganham” ou “herdam” simplesmente uma posição
no sistema de relações sociais e de parentesco, mas atuam criando essas relações”.

92
constante de entrega de mantimentos entre as pessoas das aldeias que o incumbiam essa
tarefa. Essa movimentação causava desconforto ao piloto porque dizia atrasar seus
cronogramas de viagem. Isso porque, era preciso que cada presente enviado tivesse o
nome do receptor marcado com caneta e fosse entregue apenas à pessoa referida no
pacote. O piloto reclamou enquanto recebia e marcava o nome da pessoa que receberia
cada um dos pacotes:

Não sei porque isso. Se eu saio da aldeia Pot-Kro para vir à aldeia Bacajá eu
tenho que trazer um monte de coisas, como jabutis, por exemplo. Quando
chego à aldeia Bacajá tenho que levar outro monte de coisas para aldeia Pot-
Kro. Muitas vezes acontece de eu ter que levar jabutis da aldeia Pot-Kro à
aldeia Bacajá e retornar à aldeia Pot-Kro com jabutis enviados pelas pessoas
da aldeia Bacajá. Se são as mesmas coisas, por que cada um não fica com
seu próprio jabuti e pronto?

Enquanto observávamos a irritação do piloto durante o preparo da embarcação


para seguir viagem, Bep Nhô comentou:

As pessoas precisam lembrar sempre dos seus parentes. Por exemplo,


mesmo quando a pessoa mora numa aldeia diferente da que mora algum
parente ou amigo/amiga formal ela precisa mostrar que se lembra deles e
mandar sempre alguma coisa para essa pessoa. Por isso que quando passa
alguma voadeira que vai para outra aldeia as pessoas mandam presentes,
coisas da roça, da mata, leite, café fumo para os parentes que estão nas
outras aldeias. Esses parentes das outras aldeias farão a mesma coisa. Uma
pessoa não deve esquecer-se de seus parentes.

Especificamente para o caso dos rituais mẽreremejx de confirmação dos nomes


belos as pessoas que participam da cerimônia, aprendem a reconhecer suas redes de
parentesco: os homens da categoria bam [pai], as mulheres da categoria nã [mãe], os
homens da categoria ngêt [avôs ou tios maternos], as mulheres da categoria kwatỳi
[avós, tias paternas], os amigos e amigas formais [kràb/kràbjwỳ]. Concordo com Fisher
(2001) quando ele elenca as necessidades que evolvem a execução do ritual, que para se
realizar demanda mais do que a articulação dos parentes de uma criança nominada, visto
que é preciso que haja um grande acordo de trabalho coletivo e que os pais das crianças
homenageadas sejam capazes de recrutar pessoas para auxiliar nos preparativos da roça,
preparação da comida e expedições de caça; é preciso que as pessoas mobilizadas sejam
capazes de suprir a quantidade necessária de matéria-prima para confecção dos adornos;

93
em suma, é preciso haja um engajamento de toda a aldeia que encoraje os
patrocinadores a realizarem a cerimônia.
Nos rituais que acompanhei na aldeia Bacajá, outro requisito também entra em
ação para a realização de um ritual de nominação. É preciso que os chefes assumam
certas responsabilidades em relação à cerimônia, como o suprimento de alimentos
industrializados como biscoitos, sucos, refrigerantes, balas e bexigas (pelo menos de
duas cores), além de garantir a quantidade de combustível necessária para o
funcionamento do motor de energia para uso do microfone e da caixa de som.
De todo modo, o que minha descrição do ritual mẽreremejx quis enfatizar é
menos os processos corretos ou incorretos dos sistemas de confirmação da transmissão
dos nomes e mais o engajamento coletivo do qual depende sua realização. Nesse
sentido, o que procurei evidenciar do ritual é justamente esse engajamento coletivo
numa atividade que valoriza o modo de existência Mẽbêngôkre, kukràdjà e atua na
produção da distintividade e da beleza. Tal engajamento, por sua vez, implica na
valorização e realização de ações de generosidade e partilha alimentar e, consequente,
no afastamento e obliteração de ações egoístas e sovinas.
Um ritual para ser eficaz não pode explicitar desacordos e por esse motivo
deve gerar um engajamento coletivo de extrema harmonia, alegria e satisfação. Um
ritual de nominação precisa proporcionar formas de beleza como resultado da
articulação correta entre dançarinos e quantidade correta de provisão alimentar
compartilhada somada à visualização e exibição de vários ornamentos cerimoniais
distintos (Turner, 1980, p.130). Se, o ritual é o espaço de experimentação da harmonia,
as reuniões com a empresa Norte Energia, por exemplo, são o espaço oposto desse
sentimento, como será discutido no capítulo cinco. Os Xikrin dizem que os brancos não
sabem fazer e nem viver com os seus parentes e que, por esse motivo, são um tipo
egoísta de pessoa. Nesse sentido, os rituais Mẽbêngôkre são uma boa imagem para
demonstração dos efeitos da valorização de relações de generosidade, partilha alimentar,
reconhecimento de relações de parentesco e amizade formal.

94
CAPÍTULO 3. Mẽbengôkre kaben: língua Mẽbengôkre e alguns
de seus modos de fala.

[...] as sociedades indígenas não reconhecem ao chefe o direito à palavra porque ele é
o chefe: elas exigem do homem destinado a ser chefe que ele prove seu domínio sobre as
palavras. Falar é para chefe uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso
não é mais um chefe.
Pierre Clastres (2011 [1973], p. 170)

O dia era 02 de janeiro de 2015. Após a cerimônia de confirmação dos nomes


na aldeia Bacajá, todos se juntaram na casa do meio: mulheres e homens na lateral. O
sol começava a se pôr e um vento úmido anunciava o começo de mais um período de
chuvas. Algumas crianças cochilavam nos colos de suas mães e avós. Os Xikrin
estavam satisfeitos. Jabotis assados foram trazidos por meninas mẽkukerere [sem filhos]
das casas das crianças que haviam sido homenageadas. Katendjore, o primeiro cacique
levantou-se e pegou o microfone: “Amejx nỳ õmbikwá” [Feliz ano novo, parentes]. As
falas cerimoniais masculinas sequenciaram-se. O chefe antigo [benadjwyry tum] Bep
Djàti foi o segundo a falar após seu filho Katendjore. 82

Venho falar junto com todos. Com todos os que já estão crescidos. Juntos,
somos felizes. As avós transmitem a cultura para as netas/sobrinhas. Os
amigos formais respeitam as relações de evitação. Meus netos hoje querem
comer biscoito. Os carros dos brancos precisam trazê-los para nós. Nossas
festas são bonitas e não vamos parar de fazê-las. Hoje estamos juntos
novamente, felizes. Antigamente, nossos avós eram mais bravos, mas ainda
hoje nós seguimos os passos deles. Os nossos parentes das outras aldeias
vieram aqui nos visitar e fazer a festa conosco, por isso estamos felizes,
comendo junto, assim é como fazemos. Somos fortes, não somos fracos.

Entre os Mẽbengôkre, as falas formais são um tipo de fala utilizadas em


algumas ocasiões específicas como nos enunciados locutórios feitos por homens velhos
da categoria ngêt [avô, tio materno] nos rituais de confirmação dos nomes e de iniciação
masculina, nos chamamentos vespertinos ou matutinos para convocação dos homens à
casa do meio [ngàb] e nas narrativas de história dos antigos [moja arem tum], que
incluem mitos e acontecimentos de guerra ou caça.

82
Fala registrada em áudio e traduzida posteriormente com ajuda de Bep Nhô.

95
Esse tipo de fala é uma prerrogativa masculina. Como nota Cohn (2000) para
os Xikrin do Bacajá, os meninos ainda bebês têm a parte inferior do lábio perfurado e
adornado com linhas de miçangas para estimular a capacidade oratória, e as orelhas
furadas com pequenas estacas de madeira para desenvolvimento da capacidade de
audição e entendimento. As meninas têm apenas as orelhas perfuradas, de modo que a
manipulação corporal para desenvolvimento da boa fala é uma característica exclusiva
dos homens.
As falas formais são geralmente compostas por certas fórmulas específicas de
enunciação, conhecidas como ben. Esses enunciados respeitam uma formulação que se
repete e são utilizadas na abertura e no fechamento das falas formais expressas em
certas atividades como nos rituais, na pesca com timbó, nas expedições de caça, nos
chamamentos para aglutinação na casa do meio.
A origem da fala cerimonial ben é narrada no mito do jabuti que sabia falar
(Vidal, 1977, p. 231).

Os índios foram caçar e matar anta.


Voltando à aldeia com a caça, viram o rastro do jabuti. Um índio foi atrás e
achou o jabuti que estava falando naquele lugar.
Havia índios que queriam matar o índio que tinha pego o jabuti.
Ele chegou com o jabuti na aldeia e disse para mulher que ele tinha pego o
jabuti que falava.
No dia seguinte ele saiu para matar os índios que o perseguiam.
Mas os índios mataram-no.
Depois a mulher dele casou com um jovem mẽnõrõnu e lhe ensinou a fala do
jabuti (kaprã-kaben) e ele ficou kaben djuoy.
Depois ele transmitiu este ingêt kukro-djo ao seu tabdjuo.

A terminologia kaben djuoy tem por tradução literal “dono da fala” e está
diretamente associada à palavra Mẽbêngôkre para se referir a chefes: benadjwàrỳ, que
significa dono da fala cerimonial ben. Para Lea (2012, p. 190) o termo benjadjwárỳ é
utilizado porque apenas os chefes sabem ou possuem legitimidade para emitir as
cantigas conhecidas como ben, cuja mensagem é sempre destinada à coletividade da
aldeia. Interessante notar que ben aparece como composição para o termo kaben cuja
tradução mais corriqueira é falar.
Por “ingêt kukro-djo”, Vidal (1977, p. 131) define como sendo um privilégio
herdado de um ingêt (avô ou tio materno) e transmitido para um ou mais tabdjuo (filhos
da irmã ou netos). A transmissão marca o caráter de exclusividade masculina da
prerrogativa, porém o mito mostra que foi uma mulher, a esposa do homem morto,

96
quem primeiramente transmitiu essa prerrogativa ao seu segundo marido, após o
assassinato do primeiro, que tinha encontrado e capturado o jabuti falante. Uma mulher
ter sido a responsável pela transmissão da fala formal kaben djouy a um homem é
importante para este capítulo e será retomada adiante quando eu tratar da participação e
modo de fala das mulheres na assembleia para o fechamento de um projeto organizado
pela FUNAI destinado a elas. Por enquanto, o importante a destacar é a transmissão
masculina dessa capacidade de oratória.
As falas formais são realizadas de acordo com alguns procedimentos de
entonações de voz, como tom de falsete, usos de paralelismos, onomatopeias e
gestualidade corporal específica. Essas falas possuem ainda um ritmo definido que é
sempre realizado pelo narrador. Expressões como ãne [dessa maneira, desse jeito] e
taynauá [foi assim, isso mesmo] são recorrentes nesses tipos de narrativas. Replicar
com perfeição esse ritmo e usar adequadamente as expressões devidas são atitudes que
levam tempo, de modo que apenas os homens mais velhos, chefes ou guerreiros com
muitos filhos e netos, são considerados aptos a realizar esse tipo de locução. Assim, os
homens jovens, com poucos filhos e netos, e as mulheres, mesmo sabendo o conteúdo
das narrativas não se arriscam a pronunciar publicamente uma fala formal, porque esse
tipo de performance narrativa é prerrogativa homens mais velhos [mebenghet nhõ
kukràdjà] 83.
A complexidade dessas formas de locuções narrativas das falas formais é
destacada por Coelho de Souza (2014, p. 199) acerca das formulações dos Kῖsêdjê.
Segundo a autora, esse gênero performatizado da fala cerimonial, chamado sarën, é
traduzido como “contar, relatar, instruir” e difere das histórias dos antigos [methumjiê
jarêni] por possuir um padrão relativamente fixo, sonoramente distinto, necessariamente
memorizado pelos narradores e composto de metáforas convencionais que, podem ser
opacas para a maioria dos ouvintes. Como aponta a autora, os próprios Kῖsêdjê
consideram essas formas de fala altamente complexas e difíceis, constituindo o que ela
chama de “língua profunda”. Entre os Xikrin, como me explicou Bep Nho durante
nossas atividades de tradução da fala dos velhos [metumbre iarem], essas falas são
bastante complexas e difíceis de entender devido ao uso de muitas expressões que não
são usadas cotidianamente.

83
Esse argumento sobre a relação entre categorias de idade e expressões de certas partes de kukràdjà foi
desenvolvida por Cohn (2000, 2005) enfatizando que saber mostrar adequadamente esses conhecimentos,
tanto em relação ao gênero quanto às definições etárias é uma importante condição do próprio modo de
operação do mẽkukradja, cultura Mẽbengôkre.

97
Entre os autores da etnologia indígena, análises e descrições de falas formais
são recorrentes, sendo tratadas a partir de várias abordagens distintas: através de
análises linguísticas que envolvem uma reflexão sobre repetições, aliterações e
onomatopeias 84; relações entre enunciação xamânica de fala e processos de cura como
85
benzimentos ; disputas entre grupos clãnicos distintos sobre versões de mitos de
86
origem ; etnoautobiografias, quando pessoas de grupos indígenas falam sobre si
87 88
mesmas ; modos de expressão formal como poéticas xamânicas . Minha intenção é
apresentar as falas formais de chefes e de guerreiros segundo algumas de suas principais
características como as cadências rítmicas, sem adentrar nas questões linguísticas dos
paralelismos o que necessitaria de muito mais tempo de pesquisa e de um trabalho
intenso de tradução. A ênfase, que proponho, é apresentar a sequência das falas formais
segundo posição de chefia e categoria de idade, entoamento da voz, repetição de
expressões, gesticulação corporal, uso de bordunas e de maracás [ngô kon]. A descrição
das falas formais que realizarei aqui tem como objetivo dar visibilidade à crítica dos
Xikrin ao tipo de fala dos brancos, caracterizada como descompassada, tortuosa,
desconexa e mentirosa.
As falas formais Mẽbêngôkre são marcadas por um ritmo de narração que
difere das falas cotidianas, que são mais livres na questão da forma de expressão, mas
que também denotam princípios formais como saber chamar um parente pela
terminologia triádica correta, ou como saber demonstrar verbal e gestualmente as
relações de pi’am [vergonha] ou de bitchaere [jocosidade] que devem marcar as
relações entre amigos formais e parentes afins.
O modo de expressão elocutória das falas formais é realizado de modo a que
não haja participação do ouvinte, seja ela individual ou um coletivo de pessoas. Não se
espera que o ouvinte reaja verbalmente à enunciação do narrador. A fala formal não é
um diálogo direto, o ouvinte deve permanecer em silêncio até o final da narração. Isso
quer dizer que essas falas não são questionáveis ou postas em dúvida no ato de sua
enunciação. Dito de outro modo, não há espaço para desacordos verbais como ocorre
num debate, discussão ou conversa cotidiana. E esse é o foco da fala formal que quero
destacar aqui, tomá-la com modo de uma expressão verbal que não comporta

84
Francheto (1983), Guerreiro Junior (2012).
85
Lolli (2010).
86
Andrello (2006, 2010).
87
Cabalzar (2009).
88
Cesarino (2011).

98
desacordos nem disputas, que pressupõe a ausência de adesão de novos conteúdos por
qualquer ouvinte à fala do narrador, durante sua enunciação, e respeita um ritmo
encadeado e entonações de voz.
Este capítulo sustenta o argumento de certos modos ou característica da fala
formal, praticada pelos Mẽbengôkre Xikrin, aparece na maneira como eles realizam
suas falas nas reuniões com representantes da empresa consorciada de Belo Monte, a
Norte Energia, com representantes de setores da burocracia governamental e com
membros de organizações não governamentais, ocorridas durante o processo de
licenciamento e construção do empreendimento hidrelétrico. Suas falas nas reuniões são
chamadas por eles de kaben pudjy [fala única, fala reta] e são recorrentemente
contrapostas ao modo de fala dos brancos, consideradas mentirosas e confusas. Assim, o
argumento defendido aqui é que existe um modo específico de realização das falas pelos
Xikrin nas reuniões com os brancos que, por sua vez, envolve uma forma específica de
performance como a entonação da voz, a gesticulação corporal e a repetição dos
conteúdos expressados. Essa forma de expressão utilizada, chamada por eles de kaben
pudjy, marca uma diferença importante em relação ao modo como os brancos articulam
e realizam suas falas confusas e traiçoeiras.
Segundo os Xikrin, as falas dos brancos são confusas e descompassadas ao
passo que a fala dos Mẽbêngôkre é direta e tem apenas um único sentido [kaben pudyi].
Os Mẽbengôkre falam junto e não brigam entre si (pelo menos não na frente dos
brancos de Belo Monte). Essa crítica feita por eles às falas dos kubẽn decorre
principalmente de suas reflexões sobre a realização de reuniões com a empresa Norte
Energia, durante o processo de licenciamento e construção de Belo Monte.
Mas a reflexão sobre as falas tortuosas e mentirosas dos brancos não tem as
reuniões com a empresa Norte Energia como o único exemplo acionado por eles. Os
mais velhos indicam essa crítica à fala dos brancos como mentirosas quando contam
como aconteceu o contato com os brancos e o acordo feito para que eles parassem de
brigar com os outros povos indígenas da região e aceitassem morar na área da Flor do
Cauxo (localização atual da aldeia Bacajá). Segundo eles, os brancos disseram-lhes que
dariam armas de fogo, enxadas, facões, machados. Os brancos disseram-lhes ainda que
se aceitassem morar ali eles teriam remédios, roupas e alimentos, facões e que se eles

99
89
permanecessem na área as pessoas deixariam de morrer . Bekanhê, disse sobre o
estabelecimento do contato com os brancos:

No começo até que foi bom mesmo. Os kubẽn viam aqui de vez de quando e
traziam muitas coisas para nós. Eu já era grande. Os kubẽn vinham e traziam
comida, remédios, roupas, chinelos, espingarda, munição. Depois,
começaram a trazer lanternas, pilhas, redes. Depois, um kubẽn veio morar
um tempo aqui e fez aquela casa para ele lá. Quando ele vinha da cidade ele
trazia o rancho [suprimentos alimentares] e dividia para todas as casas. Foi
nessa época que a FUNAI começou aposentar alguns velhos. O pessoal já
estava ficando velho já. E depois parou. Parou com tudo. Não veio mais
ninguém ficar aqui e agora os kubẽn falam que não tem dinheiro, que não
recurso, que o índio não precisa disso nem daquilo. Os brancos mentem
muito. Mas foram esses kubẽn que prometeram que nos dariam essas coisas,
nos ensinaram a usar e agora dizem que não tem mais dinheiro para mandar
nada para as aldeias. Os meninos agora não querem ficar descalço, querem
ter sandália, bermuda. As meninas e as mulheres agora usam vestido.

Com o intuito de fortalecer a crítica feita pelos Xikrin aos modos de fala dos
brancos, descritas no capítulo cinco, apresento a seguir algumas situações típicas em
que as falas formais são realizadas. Essas descrições reforçam o tratamento da fala
Mẽbêngôkre, na sua forma de kaben pudjy [fala única] como “forma que persuade”.
Para isso, o presente capítulo é divido em três partes subsequentes: um debate sobre
posição de chefia e oratória Mẽbêngôkre, expressões de fala formal num ritual de
iniciação masculina e as fala das menire [mulheres] numa assembleia de finalização de
projeto. Ao final, retomo alguns argumentos para justificar a proposta defendida de
tratar a fala Mẽbêngôkre como “forma que persuade” e contrapô-la negativamente ao
tipo de fala dos brancos.

Chefia e suas posições: primeiro e segundo cacique

A complexidade de se falar em chefia entre os povos indígenas nas terras


baixas é bastante conhecida entre os antropólogos. Grande parte dos escritos de Pierre
Clastres é dedicada a essa questão sobre como falar de chefia indígena sem preencher o
conceito com características da ideologia política ocidental voltada para autoridade,
89
Cohn (2005, p. 130) discute os processos de pacificação e contato com os brancos dos Xikrin do
Bacajá, a partir do conceito de krono, que traduz como acordo de paz e que difere dos processos de
domesticação [uabô] referidos para o amansamento dos cativos de guerra e animais de estimação. Ainda
segundo a autora, ao acionarem o conceito krono, os Xikrin estão lembrando que esses acordos não são
permanentes, mas circunstanciais, podendo ser revertidos em relações de inimizade e guerra.

100
representação e poder. Clastres foi um dos autores que mais problematizaram essa
questão das traduções e do sobreposicionamento de conceitos ocidentais para explicar
certos aspectos da socialidade dos povos indígenas e continua inspirar pesquisas
antropológicas. Além de provocar reflexões sobre os nossos modos de descrição desses
povos, Clastres realiza outro movimento: desenvolver uma reflexão crítica à ideologia
política ocidental a partir da descrição dos grupos indígenas. 90
Quando falamos de chefia imediatamente surge em nossa imaginação política
certos conceitos que associamos enquanto vizinhos à noção de chefe como
representação, poder, autoridade e hierarquia (para falar dos mais evidentes). Mas, no
sentido desenvolvido por Clastres, quando falamos de chefia ou de chefe indígena
estamos realmente falando de outras coisas e de outras relações. Os conceitos de
vizinhança são outros, como generosidade, boa oratória e gêneros de fala, produção de
parentes e coletivos, não concentração de riqueza e poder.
Inspirada nas leituras de Clastres, Tania Stolze Lima (2011) questiona a
validade do princípio dumontiano de hierarquia para a descrição de relações
assimétricas entre os povos indígenas. Segundo a autora, os coletivos ameríndios, que
partilham de uma ontologia perspectivista (ou perspectiva), não investem na
possibilidade de existência de um ponto de vista que seja capaz de abarcar todos os
demais e, com isso, não acreditam numa noção unificada de totalidade.
Esse debate tem sido recentemente incorporado pelos antropólogos dos
chamados povos Jê, principalmente a partir da tese de Coelho de Souza (2002) que
questiona a dicotomia modelar entre povos Jê como centrípetos (metafóricos e
dialéticos) e os povos Tupi como centrífugos (metonímicos e sacrificiais). Não se trata,
obviamente, de dizer que todos os povos indígenas das Terras Baixas sejam
perspectivistas, animistas ou etologistas, mas de problematizar os modos como os
conceitos antropológicos sobre eles vêm sendo desenvolvidos. Como argumenta a
autora, durante bastante tempo, o modo mais corriqueiro de apresentação da chefia
Mẽbêngôkre foi pautado justamente pelos escritos dos autores do HPBC, que,

90
A relação entre chefes, prestígio e fala é crucial, argumenta Clastres, entre os povos ameríndios. O
chefe indígena não tem poder, afirma. E é essa máquina primitiva que impede o aparecimento de um
Estado representativo e transcendental que se desenvolveu na sociedade dos brancos. A imagem lapidada
por Clastres de que os índios não são um grupo sem o Estado e suas instituições representacionais, mas
que são uma máquina primitiva contra o Estado e seu aparato de divisão de poderes que necessita de
práticas de coerção é uma dessas alocuções poderosas que continuam a inspirar algumas análises
antropológicas. Um exemplo pode ser encontrado na publicação do dossiê Pensar com Clastres da Revista
de Antropologia, volume 54, número 2, de 2011.

101
inspirados no debate sobre dualismo como característica intrínseca dos povos Jê,
marcaram a chefia como uma posição de poder político, localizada no centro da aldeia e
ocupada por homens, a partir de determinadas relações de parentesco. Segundo esse
viés, o chefe Mẽbêngôkre seria o detentor de um ponto de vista totalizador da aldeia
ocupando, juntamente com os homens guerreiros, o espaço central do círculo e
englobando as casas e a produção feminina das roças. O chefe e seus guerreiros seriam
assim a figura central desse modelo analítico acerca da política Mẽbêngôkre intra e
extra-aldeã (Turner, 1993). Segundo essa literatura dedicada ao dualismo dos povos Jê
como sendo a expressão formal das relações sociais, a posição de chefia é envolta de
prestígio e influência. Entretanto, isso não quer dizer, como argumenta Coelho de Souza
(2002) que prestígio e influência sejam equivalentes homólogos de autoridade e poder.
A organização da chefia entre os Xikrin implica numa relação hereditária de
91
transmissão patrilinear, favorecendo normalmente o filho mais velho . Desde o
nascimento, os parentes da casa da criança que provavelmente herdará essa condição
irão incentivar o futuro chefe a ir se acostumando a ser tratado como tal e a resolver
pequenos problemas. É o caso de um dos filhos, não primogênito, de Katendjore, atual
primeiro cacique da aldeia Bacajá. O menino é tratado por Caciquinho [em português]
por sua avó paterna que incentiva a todos a chamá-lo pela terminologia que invoca seu
futuro posto.
O próprio caso de Katendjore, bem como o de seu filho não primogênito, que
segundo os esforços de sua avó paterna será seu sucessor, escapa do padrão estabelecido
para transmissão de hierarquia da chefia. Katendjore é um dos filhos mais novos de Bp
Djàti, cacique antigo, que por muito tempo ocupou essa posição na aldeia Bacajá.
Contaram-me que quando Bep Djàti ficou velho e abandonou a posição de chefia foi o
seu filho mais velho quem ocupou a posição durante certo tempo. Entretanto, esse filho
foi acusado pelos membros da aldeia de reter indevidamente uma parte do dinheiro dos
aposentados que deveria ser distribuído entre as pessoas da aldeia92. A situação ficou
insustentável e as pessoas deixaram de reconhecê-lo como chefe e por isso, ele
abandonou sua posição, sendo assumida por seu irmão mais novo.

91
Lea (2012) e Fisher (2003) afirmam que os filhos caçulas não conseguem assumir posições de chefia
por serem preferencialmente destinadas aos filhos mais velhos, que são chamados krá kumrẽn ou krá
kukama, que pode ser traduzido como filho-liderança.
92
Antigamente, dizem os Xikrin, o chefe do posto juntamente com o cacique da aldeia eram responsáveis
por receber os salários dos aposentados na cidade de Altamira e comprar com o dinheiro roupas, chinelos
e alimentos para os moradores do todas as casas da aldeia.

102
O caso acima mostra que mais do que uma repetição de padrões de sistemas
patrilineares de transmissão, a condição de chefe não está garantida nem assegurada e
que as ações da pessoa nessa posição conta mais do que sua prévia adequação ao posto.
Além disso, o exemplo evidencia a importância da generosidade e da partilha de bens
materiais, dinheiro e gênero alimentares que deve ser constantemente praticado por
quem está em condição de chefia. Situação que também aponta para o debate acerca da
ação criticada de Cabokinho que resultou no abandono de sua posição e mudança de
aldeia. Os Xikrin dizem que quando a comunidade deixa de confiar nas atitudes de um
chefe, ele acaba abandonando o cargo e abrindo espaço para novos arranjos de ocupação
da posição.
Além do primeiro cacique, os Xikrin têm outra posição de chefia, o segundo
cacique 93. Vidal (1977) mostra que sempre houve uma posição de chefia cuja tarefa era
ajudar o chefe principal em suas atividades. Prinkore, numa de nossas conversas,
identifica a posição atual de segundo cacique às tarefas de negociação com os brancos,
após a intensificação do contato.

O segundo cacique começou existir para ajudar o primeiro cacique, quando


os brancos começaram a existir muito na vida dos Mẽbengôkre. Então, nós
precisávamos de uma pessoa para aprender mais sobre o mundo dos brancos
e como lidar com ele. Mas o segundo cacique não trabalha sozinho, ele
trabalha com o primeiro cacique com os guerreiros e com os chefes velhos.
Os caciques precisam trabalhar sempre juntos para sua comunidade. Não
pode pensar em fazer as coisas só para ele e para sua casa.

Cabe ao segundo cacique resolver questões especialmente vinculadas com o


mundo dos brancos. Eles precisam garantir que os agentes da FUNAI cadastrem os
velhos para recebimento da aposentadoria, conseguir instrumentos para trabalho nas
roças como facão, machado, lima, enxada, adquirir certos alimentos e vestimentas para
realização dos rituais. Em outras palavras, o segundo cacique é responsável em grande
medida pela manutenção do fluxo de mercadorias e dinheiro nas aldeias.
Mas como lembra Prinkore, os caciques não trabalham sozinhos. Eles recebem
ajuda do grupo de guerreiros (homens com muitos filhos/filhas e netos/netas) e dos

93
Segundo Perrone-Moisés (2011), existe a possibilidade de que a posição de segundo cacique seja uma
transformação da figura do chefe de guerra, que na época anterior ao contato com os brancos, era
responsável pela organização de expedições guerreiras contra grupos inimigos. Para a autora, ambos,
segundo cacique e chefe de guerra, parecem compartilhar a preeminência de relações com a alteridade
(especialmente em relação a estrangeiros e inimigos). Apesar de essa aproximação parecer ter
ressonâncias frutíferas entre os Xikrin, não possuo dados que a confirmem. Por esse motivo, qualquer
afirmação nesse sentido seria demasiadamente especulativa de minha parte.

103
caciques antigos [benadjwỳr tum]. Os guerreiros e os caciques atuais são caracterizados
como pessoas bravas [okrê] que estão sempre dispostas a possíveis enfrentamentos, de
modo que quando estão em guerra e ficam zangados/incorformados [angry] e deixam de
ouvir os outros ou sentir dor [amakre ket]94, tornando-se guerreiros implacáveis. Essa
era uma situação muito comum antes do estabelecimento do contato com os brancos.
Mas mesmo hoje com as guerras tornadas invisíveis se comparadas com as de
antigamente, como sugere Cohn (2003), esse conjunto cacique/guerreiro mantém sua
característica de braveza e disposição ao enfrentamento.
Os caciques antigos e homens velhos com muitos netos e netas, por sua vez,
são os homens mais prestigiados por saberem e poderem expressar corretamente os
regimes de oratória formal, o que Lea (2012) chama de “gerontocracia mẽbêngôkre”.
Nesse sentido, as falas dos caciques antigos são sempre levadas em conta pelos caciques
atuais, pelos guerreiros e por todos da aldeia. Essas figuras de prestígio têm
desenvolvido uma importante ação no que tange a situação recente dos Xikrin em
relação ao licenciamento e construção de Belo Monte, como veremos no capítulo cinco.
A composição das falas de caciques antigos, caciques atuais e guerreiros é
marcada por certas posturas guerreiras das quais os Mẽbengôkre tanto se orgulham em
expressar. Uma dessas posturas é o uso de imperativos como modo de expressão da fala
com pessoas não-Mẽbengôkre. Segundo Lea (2012) esse tipo de fala pautada pela
intimidação e que compõe o “ethos guerreiro mẽbêngôkre” é acionada em situações de
confrontos e disputas com estrangeiros e se diferencia do modo de comunicação entre
parentes, incluindo, em alguns casos, grupos mẽbêngôkre de outras aldeias.
O modo imperativo da fala mẽbêngôkre direcionada aos estrangeiros não deve,
entretanto, ser confundida com a detenção de poder e autoridade por parte do chefe.
Como argumenta Clastres, chefes indígenas não detêm voz de mando e nem exercem
formulações coercitivas de poder. Esses chefes precisam da adesão do grupo, do
engajamento das pessoas, da disposição dos membros de sua aldeia. Nas palavras de

94
De modo literal, amàk [orelha], kre [buraco], kêt [não], cuja expressão sugere: “aquele que não tem
ouvido” ou “aquele que não escuta ningém”. Essa é uma expressão que as mulheres costumam atribuir a
seus filhos ou filhas quando estes ou estas não seguem suas recomendações ou fingem não estarem
ouvindo o que lhes está sendo dito. O termo também é acionado pelas mulheres somando a ele o
aumentativo ti [grande] para designar pessoas muito teimosas ou que não são capazes de compreender
aquilo que lhe é ensinado.

104
95
Guerreiro Júnior (2011) , sobre a chefia Kalapalo, “o corpo do chefe é o corpo do
grupo”.
Inspirada nos escritos de Clastres, Perrone-Moisés (2011) propõe uma
interessante explanação do pensamento do autor acerca da chefia ameríndia, sem poder
e marcada por prestígio, tomando narrativas míticas como pensamento sobre a filosofia
política ameríndia que questiona e afronta nossa imaginação política ocidental estatal.
96
Ela destaca, nas narrativas míticas , as dificuldades dos chefes indígenas em manter
sua posição de prestígio que depende do apoio da comunidade. Mesmo tendo Clastres
(2003) incialmente não considerado os povos Jê como exemplos da chefia sem
autoridade que caracterizaria a máquina primitiva da chefia, a autora argumenta em
favor dessa associação, uma vez que, também entre os Jê, os chefes devem ser
generosos, dominar a boa oratória, ser responsáveis por começar uma ação como abrir
uma aldeia, conseguir a adesão de um grupo de pessoas e ter condições de lidar com
princípios de alteridade.
Segundo a autora, alguns mitos que tratam da transformação de poder em
prestígio, formulam também a importância da diferença como princípio, da alteridade
como condição da vida em sociedade. Para ela, as reflexões de Clastres e as análises de
Levi-Strauss (2008) sobre os dualismos em perpétuo desequilíbrio que marcam as
narrativas e o pensamento ameríndio permitem evidenciar uma filosofia indígena
pautada pela “recusa da escolha”. Não se trata, portanto, ainda conforme a autora, de se
“recusar o poder em nome da liberdade ou a hierarquia em nome da igualdade”
(Perrone-Moisés 2012, p. 868, grifos no original). Diferentemente, trata-se de recusar-se
a escolher e de jamais se fixar em quaisquer desses pólos. Em suas palavras: “Entre
Estado e não Estado, há lugar para toda sorte de dosagens, que as políticas ameríndias
_vividas ou pensadas nos mitos_ exploram” (Perrone-Moisés 2011, p. 869).

95
Interessante notar, segundo Guerreiro Jr (2011), que os Kalapalo ao falar da chefia dos brancos dizem
que nós tiramos os nossos chefes e os substituímos por outros enquanto que eles dão continuidade aos
seus chefes, de modo que apenas os filhos de chefe, os que têm sangue de chefe poderá continuar a chefia
de seu parente (normalmente pai) de seu predecessor. O autor argumenta que ao acionar o sangue como
um dos princípios necessários para chefia, os Kalapalo não se referem à substancia sangue como um
elemento biológico corporal transmitido geneticamente, não se trata do fato de que os chefes tenham o
mesmo sangue necessariamente. Sangue de chefe atuaria mais no sentido de substancia, tal como
proposto por Strathern (1999), não enquanto essência ou coisa, mas enquanto formas de descrição de
relações.
96
Em suas palavras, “Os mitos _lugar de reflexão que delineia o campo do pensável_ pensam, pois, o
perigo do poder concentrado, unificado, coercitivo. E descrevem mecanismos para conjurá-lo”. (Perrone-
Moisés 2011, p. 866)

105
Inspirada pelas análises desenvolvidas por Perrone-Moisés (2011) é possível
afirmar que os modos de organização dos povos ameríndios são vividos porque
pensados nos mitos e pensados nos mitos porque vividos. Minha aposta, entretanto
apresenta outra possibilidade de formulação de que se recusar a escolher é justamente
conjurar o Estado, essa entidade filosófica do Um e da coerção, que requer escolhas
estáveis e fixas em um dos polos. Como afirma Jullien (2001), o ocidente não suporta a
contradição e a ambivalência do “e”, ele precisa do “ou” para sustentar sua unidade.

Ritual de iniciação masculina

Poucas semanas após a realização do ritual de confirmação dos nomes na


aldeia Bacajá, os homens iniciaram a organização da quebra de marimbondos, de
iniciação masculina.
Os preparativos para o evento foram iniciados quando um homem mais velho
da categoria ngêt [avô ou tio materno] anunciou no ngàb [casa do meio], com a
presença dos homens jovens da aldeia, uma fala formal defendendo a importância da
prática que transforma os jovens em homens fortes, guerreiros.

Vamos quebrar marimbondo. Isso é muito importante para nós, gente


Mẽbengôkre. Isso faz que os homens fiquem fortes, que aprendam a
aguentar a dor e que se tornem guerreiros e bons caçadores. Todos nós, os
velhos, também passamos por isso. E agora é a vez de vocês. Não podemos
deixar nossa cultura acabar. Somos fortes, não somos fracos. Hoje à noite
nós, os velhos, vamos começar a construir a escada que será usada para
alcançar o ninho dos marimbondos. Nós os velhos já encontramos o ninho
que vocês irão quebrar. Não tenham medo, é nossa cultura e não podemos
deixar isso acabar. 97

Antes do pronunciamento, os guerreiros com muitos filhos, filhas, netos e netas


já haviam encontrado um bom ninho de marimbondos para ser quebrado pelos jovens e
já haviam limpado o local para dar acesso à árvore onde se encontra o ninho. As escadas
[ãmpari] onde os jovens sobem para quebrar o ninho de marimbondo são
confeccionadas sempre à noite pelos homens mais velhos, quando os marimbondos
estão dormindo. É preciso muito cuidado na confecção, pois a escada não pode se
romper enquanto os jovens intercalam suas subidas. Apenas os mais velhos, que já

97
Exortação feita por Motmar, tradução realizada por mim com auxílio de Prinkore.

106
quebraram muitos ninhos de marimbondo, são capazes de confeccionar adequadamente
essas escadas.
Quebrar ninhos de marimbondos é uma importante atividade para os jovens
porque lhes permitem tornarem-se corporal e emocionalmente fortes, guerreiros e bons
98
caçadores . A quebra de marimbondos é analisada por etnógrafos e etnógrafas dos
povos Mẽbêngôkre como uma simulação de expedição e ataque guerreiro, de modo que
os marimbondos são (como) os inimigos (Vidal, 1977).
Os meninos desde cedo são estimulados pelos homens a não expressarem
pânico em relação à dor e o ritual de quebra de marimbondos age como um desses
estímulos. Não existe uma idade específica para participação no ritual de iniciação, é
preciso que a decisão venha do jovem. Em geral, os iniciantes são jovens que já
demonstram interesse em se casar ou que já estão tendo relações amorosas.
Numa tarde, meses antes da preparação do ritual de iniciação masculina ser
iniciado, o filho de Nhokaê (uma de minhas amigas formais), com idade aproximada de
dez anos, cortou seriamente o seu dedo indicador com um facão. As mulheres da casa
de Nokaê, especialmente sua mãe e irmãs, desesperam-se. O menino foi levado ao Posto
de Saúde da aldeia num carrinho de mão com o dedo amarrado por um pano. O corte
tinha sido bastante profundo. As mulheres batiam em suas cabeças com pedaços de pau
e facões em choro 99. A técnica de enfermagem iniciou os preparativos para o curativo,
afirmando que seria preciso mandá-lo à cidade porque o dedo tinha sido quase
amputado. Os homens foram chegando para falar com a técnica, pois sabiam que
Nhokaê não queria ter de ir à cidade. Incrivelmente, em meio à confusão de gente, choro
e sangue, eu notei que o menino estava sério e compenetrado, não expressava pânico
nem demonstrava dor. Ele estava sentado com a mão para cima, enquanto o sangue lhe
escorria pelo antebraço. A técnica de enfermagem, também impressionada com a calma
100
do menino, disse: “Ei, Bep , eu sei que está doendo muito. Não precisa ter vergonha
não, viu, pode chorar”. Sei olhar para a técnica, ele respondeu: “Muruá kêt, ba memyre,

98
O processo de formação dos guerreiros, através da realização do ritual da quebra de marimbondo
[amiýtá], tem como finalidade tornar os corpos dos meninos fortes e insensíveis ao cansaço e à dor [amak
kre ket] (Giannini, 1991).
99
Prática comum quando um de seus parentes está em situação grave por conta de alguma doença ou
quando morrem. Para uma reflexão sobre os processos de desfiguração dos corpos dos parentes durante
um funeral, ver Demarchi (2013).
100
Modo como os brancos usualmente chamam homens Mẽbengôkre em geral, independentemente de seu
nome.

107
101
ba guerreiro, abatoe, ba menire pran kêt” . Ao ver a resposta dada pelo menino,
Prinkore, que acompanhava a situação, disse: “Ga tojx kumrejx, mebengokre bi.
Kamama ngrire, gá arup amyitá iphey” 102.
O filho de Nhokaê não pôde participar da realização do ritual de quebra de
marimbondo que acompanhei porque seu tratamento médico durou três meses o que
implicou na sua permanência e de sua família da cidade, durante esse período.
O ritual de quebra de marimbondo que acompanhei teve duração média de dez
horas, diferentemente do ritual mẽreremejx, descrito no capítulo anterior. A preparação
também foi diferente: apenas os homens engajaram-se nas atividades preparatórias que
não envolveram distribuição alimentar. Na manhã seguinte à noite em que os homens
velhos confeccionaram a escada [ãmpari], colocada na árvore onde estava o ninho dos
marimbondos, os homens adultos com poucos filhos e netos limparam com facão o
caminho que dava acesso ao local. Terminada a limpeza do caminho, os homens
retornaram à aldeia entoando cantos de guerra e movimentando-se em fila com o passo
da dança mais comum do conjunto coreográfico Mẽbêngôkre, as caminhadas curtas
marcadas com o pisar forte do pé direito no chão e movimentação de ida e volta dos
braços com os cotovelos dobrados.
Um dos homens adultos, Prinkore, guerreiro que atualmente assumiu posição
de segundo cacique, e que havia participado da limpeza do caminho, anunciou aos
jovens iniciados:

Todos devem aprender/conhecer a cultura dos antigos. Os velhos já levaram


muitas ferradas de marimbondo, por isso eles não são fracos nem
preguiçosos. Esse é o conhecimento que eles querem passar para vocês,
assim como passaram para nós. Existem muitas coisas que os antigos sabem,
as narrativas dos mitos, as músicas da guerra. Por acaso os brancos sabem
essas coisas? Não, eles não sabem, são os Mẽbengôkre que sabem. Agora os
jovens vão começar a aprender, não podemos esquecer nossa pintura, nossa
raspagem de cabelo, construir e tocar maracás. O conhecimento dos brancos
é de papel, eles sempre irão embora das nossas aldeias. Nós é quem ficamos
aqui. Nós é devemos cuidar dos nossos netos/sobrinhos. Devemos ensinar
para nossos netos/sobrinhos. E logo teremos mais e mais netos. Os Xikrin do
Cateté também ensinam seus netos/sobrinhos, os parentes daqui já foram lá e
viram com os seus próprios olhos. Nosso metoro mẽreremejx não foi fraco
não. Queremos mostrar isso também para os brancos. Queremos filmar e
mostrar para eles nossas festas, nossas danças. Meu pai saiu do luto, acabou
o luto dele e de minha mãe, já passou o tempo. Eu tive de ir caçar uma anta
101
“Chorar nada, eu sou homem, sou guerreiro, já estou crescido, não sou mulher”. A palavra guerreiro
foi referida em português pelo menino.
102
Você é muito forte mesmo, você é um Mẽbengôkre de verdade. Espere um pouco que em breve você
irá quebrar marimbondo.

108
para eles comerem e saírem do luto. Como eu poderia ser um bom caçador
se não tivesse quebrado marimbondo quando eu era jovem? Que anta eu
poderia dar a meu pai e à minha mãe? Como eles poderiam sair do luto?

No ngàb, um dos homens velhos da categoria ngêt iniciou uma fala formal
sobre a vida dos Mẽbengôkre antigos, antes de conhecerem os brancos, entoando
narrativas que, no passado, seu pai havia contado a ele. Nesse momento, os
participantes ainda não estavam ornamentados e após a fala cerimonial, as crianças do
sexo masculino que acompanhavam a atividade foram colocadas no centro da casa do
meio e rodeadas por um círculo maior composto pelos jovens que iriam quebrar o ninho
de marimbondo, pelos homens adultos (guerreiros) que auxiliaram na realização do
ritual, pelos donos dos maracás [ngokon bàri] e pelos velhos [ngêt].
O primeiro canto de guerra entoado, puxado por um dos velhos ngêt, tinha um
ritmo lento e foi acompanhado de uma movimentação corporal de modo em que os pés
dos dançarinos permanecessem fixos no mesmo lugar e o tronco movimentando-se
seguidamente (ao ritmo do canto) de um lado para o outro. Todos realizaram
sincronicamente esse movimento. O tempo de duração desse primeiro canto foi de
aproximadamente cinco minutos. O canto terminou com o bater seguido e rápido dos
pés dos homens no chão, o que os fez movimentarem-se num espaço curto para o
mesmo lado, mantendo a formação inicial do círculo. Esse movimento final foi
composto também por um grito como um urro que marcou o fim do canto e da
coreografia. O homem velho retomou a fala formal enquanto os jovens foram, aos
poucos, saindo do espaço do ngàb a caminho de suas casas respectivas. Mesmo sem a
presença dos demais participantes da cerimônia, o homem velho continuou sua fala
caminhando externamente ao ngàb, de modo que sua fala pudesse ser ouvida pelas
pessoas que estavam nas casas.
O espaço central ngàb foi completamente esvaziado e, passado certo tempo, os
homens da categoria ngêt começaram a retornar ao centro da aldeia, pintados de
jenipapo e trazendo seus instrumentos ngokôn [maracás] à mão. Os guerreiros também
iniciaram seu retorno ao ngàb, adornados com suas braçadeiras de penas de arara,
103
miçangas e carregando carvão bat prã , urucum cru, óleo de coco babaçu e feixes de
palhas para confecção do adorno de cabeça. Uma menina trouxe, de sua casa, duas

103
Casca de uma árvore comumente utilizada para confecção da tinta de jenipapo. Essa casca é torrada no
fogo transformando-se em carvão. Uma descrição mais detalhada desse processo será realizada no
capítulo quatro.

109
garrafas térmicas cheias de café e duas canecas e as colocaram numa mesa de canto,
saindo em seguida.
Motmar, homem velho da categoria ngêt, iniciou uma fala formal sobre
histórias de caçadas. Enquanto ele falava, os participantes confeccionavam o adorno de
palha e os colocavam na cabeça, de modo a que cada adulto ou jovem iniciado
confeccionavam os seus próprios ornamentos, e apenas os ornamentos destinados a
enfeitar os meninos, que ainda eram crianças, foram feitos por seus pais. Os homens
estavam sentados e começaram a ornamentar seus corpos com os adornos, colocaram o
enfeite de palha na cabeça, inseriram um pedaço bem fino de madeira no orifício entre o
queixo e o lábio inferior, ajeitaram as braçadeiras de penas e pintaram o rosto com o
carvão de bat prã. Os homens adultos aplicaram o carvão em si mesmos: com três
dedos da mão (indicador, dedo do meio e anelar) esfregaram o pó de forma vertical na
testa e de forma diagonal nas bochechas. Os braços, na altura do ombro, também
receberam os traços do carvão esfarelado. O velho encadeou com sua narrativa de caça
uma música 104.

Figura 09: Prinkore e seu filho ornamentados para o ritual de iniciação masculina. Figura 10:
Ngôkon [maracá] pintado com urucum utilizado na cerimônia. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Os homens espalharam urucum por seus corpos, abrindo o fruto e misturando


as sementes vermelhas com o óleo de coco babaçu antes de aplicarem a mistura.

104
A música tinha relação com o animal caçado. Uma apreciação sobre música e relações humano-
animais, mitos e parentesco pode ser encontrada em Seeger (2015).

110
Enquanto a música continuava sendo entoada por Motmar, os homens adultos
realizaram o procedimento de ornamentação nos corpos dos jovens iniciados e nos
meninos, ainda crianças, que participavam da cerimônia. Todos prontos, a música foi
finalizada e os adultos incentivaram os meninos a ocuparem o espaço do centro do
círculo do ngàb. Os jovens iniciados posicionaram-se em círculo, envolvendo os
meninos e foram envolvidos pelo círculo dos adultos.
Outra música se iniciou lentamente, os maracás foram girados em torno de seu
próprio eixo no mesmo ritmo lento e os corpos, sincronicamente, movimentaram-se
calmamente de um lado para o outro sem que os pés precisassem ser retirados do chão.
Esse ritmo lentamente compassado seguiu até metade da performance quando foi um
pouco acelerado de modo que o maracá passou a ser chacoalhado para frente e para trás
marcando a batida do pé direito no chão e o levantar do pé, após a batida. Em seguida,
ocorreu outra aceleração mais intensa no ritmo de modo que a velocidade do pé direito
batendo no chão aumentou e o maracá intensificou sua batida, marcando apenas o bater
dos pés no chão e promovendo um encadeamento sonoro e visual, rápido e estrondoso.
Nessa sessão de canto e dança, o ritmo lento do compasso durou a metade da
performance, enquanto que a outra metade foi divida entre o aceleramento inicial e o
aceleramento intensivo da coreografia e do som. O final da música e da coreografia foi
anunciado com gritos e assovios dos participantes.
Fez-se uma pausa e em seguida outra música começou a ser entoada pelos
velhos da mesma maneira: lentamente com os maracás sendo girados e os corpos
deslocando-se de um a outro lado sem tirar o pé do chão. Mas nessa segunda sessão, o
ritmo um pouco acelerado foi antecipado em relação à primeira performance. O tempo
de execução lenta dos passos e da música foi diminuído e a aceleração inicial durou a
metade do tempo da coreografia e do canto. A aceleração mais intensa do ritmo ocorreu
no final da performance durando mais tempo.
Outra pausa e novamente outra sessão de canto recomeçou com o ritmo mais
lento em sua entoação. A coreografia, da mesma maneira, acompanhou a lentidão do
canto. Desta vez, entretanto, a parta de transição da fase lenta para a fase mais acelerada
da performance foi suprimida e o tempo de realização da coreografia e do canto foi
dividido em duas partes equivalentes, de modo que na primeira metade do tempo o
ritmo foi mantido lento e na segunda foi acelerado ao ápice da intensificação do ritmo e
rapidez coreográfica.

111
Mais uma pausa e recomeço de outra sessão de canto e dança. Do mesmo
modo, a performance teve seu início marcado pelo ritmo lento, mas rapidamente se
transformou no modo de aceleração rítmica mais intensa. O tempo da parte rítmica lenta
diminuiu e o modo de aceleração intensiva do ritmo tomou a maior parte da
performance sonora e coreográfica.
Apresento em seguida um esquema gráfico para ajudar na visualização da
transformação das performances que vão se tornando cada vez aceleradas conforme se
sucedem. A divisão do tempo da performance em quatro partes é um modelo de
visualização para que essa transformação seja facilmente identificada pelo leitor. Além
disso, vale lembrar, que foram quatro performances que compuseram essa sessão do
ritual.
O que deve ser destacado nesse conjunto é a contínua aceleração da música e
da coreografia, ao longo das quatro sessões, destacando o momento em que a aceleração
transitória é suprimida e a aceleração intensiva assume a maior parte da performance.
Este é o momento em que os homens e os meninos iniciados saem da casa do meio a
caminho da mata onde será quebrado o ninho de marimbondo.

112
A saída da casa do meio foi feita através de passos curtos arrastados dos pés
que não saíram da posição lateral entre si e batiam juntos no chão [mendjỳ]. Os
participantes foram para o lado de fora do ngàb e formaram um círculo, com a mesma
ordenação que os círculos feitos dentro do ngàb (crianças no meio, iniciados em volta,
adultos e velhos no entorno). Todos ficaram agachados. A música começou a ser
entoada em ritmo lento e os corpos se levantaram um pouco, permanecendo reclinados
com os troncos inclinados para baixo movimentando-se de um lado a outro sem sair do
lugar. A música assumiu a aceleração máxima e os passos da dança foram feitos
mantendo os troncos abaixados. Com o fim da música todos voltaram a se agachar. O
jovem escolhido como o primeiro a bater no ninho de marimbondo levantou-se e se
colocou fora do círculo. Os grupos de mesma categoria de idade, ainda agachados,
também se destacaram do círculo. Um por vez, os grupos foram ocupando a borda do
círculo formatando um novo contorno circular que deixou vazio o centro.
Reposicionados os grupos, conforme especificações de idade, o escolhido como
primeiro a desferir a palmada no ninho de marimbondo soltou um grito, como um urro e

113
conduziu a fila dos participantes para fora do contorno da aldeia. Na clareira que
antecipava a mata onde estava a árvore com o ninho, mais um canto foi entoado, dessa
vez apenas com a marcação lenta do ritmo. Um dos homens que auxiliara na limpeza do
caminho na mata retirou as palhas da palmeira de coco babaçu que vedava a abertura do
caminho. Prinkore seguiu na fila, levando consigo toalhas de algodão para auxiliar os
jovens quando forem picados pelos insetos. Um dos velhos entoou um dos cantos
durante a caminhada. As mulheres já se encontravam na clareira com as toalhas para
socorrer seus filhos, maridos, netos. A escada já estava posicionada no tronco da árvore
e atingia a altura próxima ao ninho dos marimbondos. O grupo dos iniciados foi
posicionado no canto da clareira em baixo de uma grande palmeira de coco babaçu
permanecendo agachados. As mulheres começaram a entoar o choro ritual utilizando
tons bastante agudos da voz que vão aumentando a cada momento. Bep Djo, escolhido
como primeiro a desferir a palmada, subiu pela escada e bateu com a palma de sua mão
no grande ninho de marimbondos que saíram bravos voando por todos os lados e
atacando todos os presentes, enquanto isso, o segundo da fila já estava subindo no
andaime antes da descida do primeiro ter se concluída. Tudo ficou muito rápido. As
mulheres, chorando num tom mais grave, foram encobrindo os seus jovens feridos e
seguiram com eles para suas casas.
Dentro das casas esses jovens têm o corpo cuidado pelas suas mulheres: mães,
esposas, avós ou tias. Essas mulheres aplicam-lhes um caldo espremido de uma folha
que atua como um calmante para as dores da picada. Os corpos dos jovens atingidos
pelos marimbondos incharam imediatamente após as picadas e foram inchando cada vez
mais conforme o tempo foi passando. As mulheres arrancavam os marimbondos ainda
presos por meio de seus ferrões nos corpos e na cabeça dos iniciados. “A febre desses
jovens vai ser intensa e vai durar a noite inteira”, explicou Bekanhê.
A sequência da fila seguiu e só foi interrompida quando o ninho do
marimbondo estava completamente desfeito. Parte dos jovens iniciados não conseguiu
atingir o ninho, por já ter se desfeito antes de chegar sua vez de subir no andaime.
Juntos com os velhos e com os homens, os jovens iniciados, que não conseguiram
atingir o ninho de marimbondos, realizaram uma dança/canto ainda nas proximidades da
clareira de ritmo lento, com uma curta duração. Juntos, os homens e os iniciados
entraram no espaço da aldeia em filas e seguiram cantando até chegarem ao ngàb onde
levantaram e chacoalharam os braços terminando com o grito gutural. Esses jovens
iniciados sentaram-se numa palmeira do lado de fora da casa do meio. Um menino

114
trouxe de sua casa duas lenhas em brasa e as posicionou na frente dos jovens. Após um
canto realizado por um único homem velho, os jovens se levantaram e se posicionaram
em fila seguindo um riso feito no chão. Com os braços levantados apoiados na cabeça e
saltando com os dois pés ao mesmo tempo, realizaram a coreografia amyikrayatin
repetidamente, encerrando a performance de iniciação.
É apenas após terem passado pelo ritual de iniciação masculina que os jovens
irão se tornar homens adultos, guerreiros e bons caçadores e com isso, poder aos poucos
expressar-se verbalmente nas conversas masculinas no ngàb e nas reuniões.
O que quero frisar com a descrição do ritual de iniciação da quebra de
marimbondo é que as falas masculinas em espaços cerimoniais estão relacionadas com
uma série de procedimentos que envolvem a formação e crescimento dos meninos,
desde a sua perfuração labial até sua condição de homem com muitos filhos e
netos/sobrinhos. Além disso, os modos de fala não tratam apenas do conteúdo que é
dito, mas conjuntamente implica em movimentações corporais específicas, modos de
imposição da voz, coreografias e cantos, fortalecimento corporal e formação de pessoa.
As falas masculinas em espaços cerimoniais não são expressões comunicativas das
impressões pessoais e individuais acerca de um assunto. Como afirma Fisher (2003, p.
120), “não há desacordos em relação às expressões verbais que compõe uma liturgia
cerimonial”. Nesses regimes de fala não há espaço para discordância, as falas
encadeiam-se umas sobre as outras, reiterando-se sucessivamente. Procedimento que
marca o modo de fala Mẽbêngôkre como kaben pudjy, fala única feita em conjunto, e
que promove ações efetivas no mundo; diferente, como veremos no capítulo cinco, das
falas dos brancos nas reuniões, marcadas pela discordância e pela mentira.
Os modos de fala em espaço cerimonial são uma prerrogativa masculina, o que
não quer dizer que as mulheres não participem das tomadas de decisões ou que estejam
totalmente excluídas do espaço público e cerimonial, que é comumente e um tanto
apressadamente associado com o político. A seguir, apresento um relato sobre a
participação das mulheres numa assembleia de finalização de um projeto, destacando as
reflexões delas sobre esse envolvimento.

115
Mulheres e falas formais

A região amazônica entrava no final do verão, época de tempo seco e rio baixo.
As mulheres da aldeia Mrotidjam haviam se comprometido a organizar a Assembleia
Final do Projeto Menire. O projeto foi desenvolvido ao longo do ano de 2015,
105
submetido pela Funai ao edital do PDRS-Xingu no final de 2014, tendo sido
aprovado com um corte de metade de seu orçamento proposto.
As conversas para elaboração do projeto ganharam força quando
Nngrenhkarati e Ngrendjam manifestaram interesse em concorrerem ao edital
106
mencionado. Elas queriam entender melhor o que é uma associação indígena, para
que ela serve e como fazer para propor um projeto. Nessa época, a Associação Bebô
Xikrin estava retomando suas atividades e funcionamento, participando de oficinas
sobre elaboração de projetos e prestação de contas 107.
Devido ao corte no orçamento, a FUNAI, proponente do projeto, promoveu
uma série de modificações na proposta inicial e assumiu sua execução após contratação
108
de duas consultoras que se responsabilizaram por seu andamento. Ngrenhkarati foi
contratada como colaboradora, e atuou como tradutora, visto que a maioria das
mulheres Xikrin não falam português. Essa contratação trouxe a Ngrenhkarati muitos
desafios como as desconfianças de algumas mulheres Xikrin sobre a validade de seu
trabalho e sobre seu maior favorecimento, tendo em vista o pagamento que recebia pelo
trabalho que prestava. Ao mesmo tempo, sua presença como colaboradora proporcionou

105
O Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável (PDRS) do Xingu tem como finalidade
implementar políticas públicas e iniciativas da sociedade civil que promovam o desenvolvimento
sustentável e a melhoria da qualidade de vida entre pessoas que residem em regiões afetadas pela
construção de grande empreendimentos como a pavimentação da Transamazônica e construção da usina
hidrelétrica de Belo Monte. Os municípios atendidos são: Altamira, Anapu, Brasil Novo, Gurupá,
Medicilândia, Pacajá, Placas, Porto de Moz, Pacajá, Senador José Porfírio, Uruará e Vitória do Xingu.
Além dos orçamentos públicos, o PDRS do Xingu conta com a alocação, no prazo de vinte anos, de
recursos originários da Norte Energia S.A., no montante de R$ 500 milhões, decorrentes de exigência
inscrita no Edital de Leilão nº 06/2009 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) para a UHE
Belo Monte. Fonte: http://pdrsxingu.org.br/site/quemSomos <acessado em 11 de março de 2015.
106
A pedido das mulheres Xikrin, eu, Clarice Cohn e Camila Beltrame escrevemos o projeto e o
enviamos para submissão, indicando a FUNAI de Altamira como sua proponente.
107
Isso será retomado no capítulo sete.
108
A principal exigência da Funai para a contratação das consultoras foi residir na cidade de Altamira,
evitando gastos com passagens aéreas.

116
maior confiabilidade ao projeto, especialmente durante atividades que necessitavam do
deslocamento das mulheres para outras aldeias e outras cidades, incluindo Altamira 109.
Ngrenhkarati não foi convidada à toa para trabalhar como colaboradora do
projeto. Ela morou por algum tempo na cidade de Altamira, tem bastante traquejo no
uso do português e se mostra sempre muito disposta a participar de movimentos que
considera beneficiar, ainda que nunca como o esperado, os Mẽbengôkre Xikrin. Numa
de nossas longas conversas, Ngrenhkarati disse que algumas mulheres Xikrin conhecem
um pouco da língua dos brancos e entendem algumas coisas que eles dizem, mas que se
recusam a falar essa língua por a considerarem muito feia. Perguntei a ela como ela
aprendeu a falar português, já que eu estava muito interessada em aprender a falar a
língua Mẽbengôkre com alguma dicção minimamente boa. Ela explicou:

Eu era menina quando os brancos começaram a aparecer na minha aldeia. A


primeira vez que eu os vi, fiquei bem escondida e com muito medo. Eu não
conseguia entender nada do que eles estavam falando com meu pai. Meu pai
já conhecia os brancos há muito tempo, antes de chegar aqui [na TITB].
Minha mãe também não entendia nada daquela fala. Passou bastante tempo
antes dos brancos voltarem, mas depois eles começaram a visitar a aldeia
com mais frequência. Eu ainda tinha muito medo, mas aos poucos fui
ficando curiosa e com vontade de entender o que eles falavam. Quem
começou a me ensinar a entender a língua dos brancos foi Dona Osvaldina,
minha tia casada com meu tio. Ela é branca, mas aprendeu muito bem a
língua Mẽbêngôkre depois de casar com o meu tio. Minha tia me explicou
que para aprender a língua dos brancos era preciso ter paciência. Ela disse
que eu deveria aprender umas cinco palavras por dia e essas palavras tinham
que estar relacionadas, por exemplo: eu aprendia num dia as palavras dos
brancos para comer e daí aprendia o nome que eles davam para as coisas de
comer: comida, prato, faca, colher, fome. Ela foi me ensinando assim e eu
fui aprendendo. No começo, eu achava a língua dos brancos muito feia,
depois eu fui acostumando. Fui aprendendo, mas ainda tinha muita vergonha
de falar. Quando eu morei um tempo em Altamira fui perdendo essa
vergonha e comecei a falar. Hoje, as pessoas me dizem que eu falo muito
bem o português, mas eu ainda não consigo entender tudo que os brancos
falam. O português é uma língua muito grande, tem muitas palavras que
confundem a gente.

A última atividade realizada pelo Projeto Menire foi a organização de uma


Assembleia final para discutir “os problemas enfrentados e os resultados alcançados
durante as atividades do projeto”, além de averiguar acerca da necessidade de

109
Em novembro de 2015, oito mulheres Xikrin viajaram, juntamente com uma consultora do projeto,
uma servidora da Funai e eu, como colaboradora externa, até à aldeia Açaizal (região da cidade
Oiapoque) para acompanharem a assembleia da Associação AMIM (Associação das Mulheres Indígenas
em Mutirão). A viagem foi realizada em parceria com o Instituto Iepé que atua na região, executando
vários projetos junto aos grupos Wajapi, Karipuna, Palikur, Galibi Atroari, Galibi Marwono.

117
continuação ou não de projetos voltados às mulheres Xikrin. A aldeia Mrotidjam foi
escolhida, pelas mulheres Xikrin, como local do encontro.
Ngrenkarati e eu chegamos uma semana antes da realização da assembleia para
ajudar com os preparativos na aldeia. Duas mulheres da diretoria da AMIM (Associação
das Mulheres Indígenas em Mutirão) da região do Oiapoque, duas mulheres Wajãpi e
duas do Parque Tumucumaque haviam sido convidadas e confirmaram a presença. Eu
estava curiosa. Era a primeira vez que uma reunião exclusivamente de mulheres
ocorreria nas aldeias da Trincheira-Bacajá. Minha curiosidade residia justamente em
saber como as mulheres Xikrin iriam realizar essa assembleia, principalmente porque,
como se sabe, as falas formais feitas nos espaços cerimoniais são prerrogativas dos
homens.
Na manhã de início, enquanto as convidadas tomavam café, homens e
mulheres da aldeia Mrotidjam terminavam os preparativos do espaço da casa do meio
[ngàb]. As meninas mais jovens com poucos filhos varriam os arredores das casas e o
espaço entre as casas e o pátio central. Cadeiras retiradas das salas de aula da escola
local foram posicionadas em formato de semicírculo de modo que a parte frontal do
espaço ficasse livre. Um telão de projeção havia sido instalado e um aparelho de
reprodução de imagem ligado a um computador projetava a imagem de uma foto com o
título do acontecimento. À frente da instalação da mesa do computador uma caixa de
som, emprestada da casa de Kapot, ligava-se a um microfone. Os homens,
aparentemente tão ou mais curiosos que eu, posicionaram-se fora do pátio central, nas
laterais, posição normalmente ocupada pelas mulheres. Após a apresentação das
mulheres convidadas, as mulheres Xikrin revezavam-se na apresentação de suas falas.
Kokodjã, esposa do segundo cacique da aldeia Mrotidjam, foi a primeira a
falar. Diferentemente dos homens, que se apresentam em reuniões com suas bordunas e
se movimentam de modo a levantá-las repetidamente, o que caracteriza a valorização da
imagem de guerreiro e de bravura, as mulheres falaram sem se movimentarem e sem o
110
levante de qualquer arma de guerra e/ou de caça . Entretanto, tal como os homens, as
mulheres Mẽbêngôkre impunham a voz de modo firme e estabeleciam pausas em
períodos curtos de orações. “Menire ne kaben tojx, kaben pudjy [As mulheres também
falam duro, e falam uma só palavra]”, explicou-me Koka a me ver anotar as falas.

110
Sobre participação de mulheres mẽbêngôkre em reuniões com brancos, o exemplo que ficou mais
conhecido foi a fala de Tuíra, mulher Kayapó, que levantou seu facão na altura do rosto de um engenheiro
durante a reunião de 1989 em Altamira contra a construção das barragens Kararô e Babaquara.

118
Duas mulheres assumiram a posição de tradutoras e era bastante comum que
algumas falas não fossem traduzidas. Ngrenkarati, era, evidentemente, uma das
tradutoras que, respondeu, quando questionada por uma servidora da Funai que
acompanhava a assembleia porque nem todas as falas estavam sendo traduzidas:

É que não precisa traduzir tudo né. Porque as mulheres estão todas falando
as mesmas coisas. O que uma fala é o que a outra fala também, por isso não
precisa ficar traduzindo tudo, não é verdade? Quando alguém falar outra
coisa, que ainda ninguém falou, eu traduzo para vocês.

Em geral, as falas das mulheres repetiam os mesmos conteúdos e se replicavam


umas nas outras. Elas disseram repetidamente que estavam felizes com a presença de
todos, agradeciam a presença dos homens que já sabem mais sobre projeto e que
queriam que eles as acompanhassem nesse caminho, que estavam começando a
aprender sobre projetos, que era muito difícil entender as coisas porque a fala dos
brancos era muito enrolada, que queriam ter os seus projetos e que estavam ali por causa
dos filhos e dos netos, que estavam preocupadas com a barragem e queriam garantir
uma vida boa para as crianças.
Irenhum uma das mulheres da categoria kwatyi, que participavam da
assembleia, apresentou uma reflexão bastante interessante sobre a vida atual dos
Mẽbengôkre da TITB:

Eu vim aqui, nessa aldeia Mrotidjam. Eu vim de caminhonete e meu marido


veio também comigo. Estou feliz de estar aqui e de ter vindo com meu
marido aqui. Hoje estou encontrando alguns parentes que moram aqui. Eu
não os via há bastante tempo. Nossas aldeias são longe uma da outra. Hoje
eu encontrei minha sogra aqui. Ela está muito velha. Chorei muito e ela,
minha sogra, chorou para mim e me contou sobre as coisas que estão
acontecendo aqui. [pausa longa] Fico feliz de estar aqui, mas também um
pouco triste. Tem muita coisa errada acontecendo com a gente, com o povo
Mẽbêngôkre-Xikrin. Eu sou Xikrin, minha mãe é Xikrin, meu pai é Xikrin,
meu marido é Xikrin, meus filhos, filhas, meus netos e netas são Xikrin.
[pausa mais longa] Essas estradas que os brancos fizeram, que eles acabaram
de fazer, já não servem mais. Estou com dores do corpo porque a viagem na
caminhonete foi ruim, porque a estrada está ruim. Os homens é que viajam
para fazer as reuniões e para conversar de projeto. Agora, as mulheres
também estão fazendo isso. Eu mesma não queria estar aqui fazendo isso de
reunião. Eu queria ficar na minha aldeia e cuidar da roça, ir para o mato
pegar açaí. Tive que deixar uma filha lá na aldeia. Eu não gosto disso. Mas
agora as mulheres estão tendo que fazer isso, as viagens e tudo isso. Nós
mulheres estamos fazendo isso porque estamos com medo. Estamos com
medo do que vai acontecer com a gente, com nossos parentes, com as
crianças. Nós mulheres estamos querendo garantir uma vida boa para gente.
E por isso estamos agora viajando e fazendo essas reuniões. Eu queria

119
mesmo não precisar fazer nada disso. Mas agora as mulheres também
precisam entender mais essas coisas dos brancos e ajudar os homens
também. Era só isso que eu queria falar.

Após a fala das mulheres, os homens foram convidados por elas a falar
também. O primeiro que falou foi Bebere, primeiro cacique da aldeia Mrotidjam. O
convite feito pelas mulheres para que os homens assumissem as falas não foi bem
recebido pela equipe que acompanhava a reunião. Comentou-se baixinho: “A ideia é
que elas comecem a se empoderar e não os homens falarem por elas. Queremos que elas
tomem a frente das coisas, só as mulheres deveriam estar participando da assembleia”.
A reclamação tinha a ver com a intenção de manter um projeto exclusivo para
as mulheres Xikrin e a sensação de uma das participantes da equipe era de que ao final
as mulheres retornavam aos homens os seus momentos de expressão e comunicação.
Trata-se, como diria Viveiros de Castro (2004), de uma situação de equivocação. O
problema é que para nós, do modo como fomos ensinados, o espaço de fala em uma
situação de assembleia está associado com a expressividade de opiniões individuais
acerca de um tema, assunto ou evento. Cada pessoa ou cada representante de um grupo
de pessoas (grupo de mulheres indígenas, grupos de mulheres rurais, grupos de
trabalhadores rurais, entre tantos outros) deve expressar a sua opinião e o seu ponto de
vista que será contrastado com o ponto de vista (diferente ou equivalente) dos presentes
para que, ao final, esses contrastes de opiniões sejam registrados em documentos e que
soluções sejam tomadas com o intuito de que as contradições sejam minimizadas e que
a maior parte das demandas apresentadas sejam sanadas.
Como já dito, para os Xikrin, homens e mulheres, as falas realizadas em espaço
cerimonial não são expressões individuais de opiniões ou pontos de vista. Ao contrário,
elas são a visibilização de um conjunto, a expressão de um conjunto de gente parente e
sua forma de expressão reforça esse caráter comunicativo. As discordâncias não são
parte desse procedimento de fala, elas devem, ao contrário, serem subsumidas para que
a fala Mẽbêngôkre reta e única [kaben pudjy] seja evidenciada. Os desacordos devem
ocorrer em outros espaços, mais íntimos, e nunca na frente de pessoas estrangeiras.
Assim, ao chamarem os homens para comporem as falas na assembleia, as mulheres
Xikrin estavam reforçando sua posição e não se submetendo à posição dos homens.
Homens e mulheres Xikrin mostram-se aos brancos como portando uma mesma
posição, uma única fala, uma mesma intenção e por isso engajam-se conjuntamente em

120
certas atividades como podemos perceber para as atividades de preparação e execução
ritual, por exemplo.
A fala de Irenhum permite, entre outras coisas, que nós repensemos nossos
modelos de participação (política) e submissão 111. Para ela, permanecer na sua aldeia e
cuidar dos filhos/filhos e netos/netas, além da roça, é mais importante (e, podemos
elencar, segundo nossas divisões de mundo: do ponto de vista político, econômico,
cultural) do que participar de uma assembleia, atividade a ser desempenhada pelos
homens. Entretanto, ainda segundo Irenhum, dada a situação atual de riscos e impactos,
as mulheres estão começando a se verem impelidas a participarem de reuniões,
assembleias e projetos para se engajarem com os homens nos esforços de entenderem a
situação da TITB e agirem com o intuito de garantir uma vida para si e para os seus.
As mulheres Mẽbengôkre não são donas das falas formais [benadjwyry]. Como
vimos, segundo mito de origem da fala ben, mencionado acima, uma mulher primordial
transmitiu essa prerrogativa ao seu novo marido que, por sua vez, a transmitiu para seu
tabjwỳ (sobrinho materno, neto). A narrativa mítica conta que a mulher abriu mão dessa
prerrogativa e, se pensarmos juntamente com o reclame de Irenhum, podemos sugerir
que isso foi feito para que as mulheres pudessem dedicar-se a outras coisas, tão ou mais
importantes que a execução das falas formais, como criar, cuidar e nutrir os corpos de
seus co-residentes; ou seja, produzir gente Mẽbêngôkre.
Entretanto, como também nota Irenhum, a situação atual de incerteza sobre as
condições de manutenção de suas vidas e de suas existências coloca as mulheres Xikrin
num movimento de também se engajarem nesses processos que evolve a política dos
brancos: os documentos, as reuniões e os projetos. Ao se engajarem nesses processos,
elas não estão reivindicando para si mesmas autonomias exclusivistas de demanda e
participação. As mulheres Xikrin não estão reivindicando seu empoderamento no
sentido convencional como costuma aparecer em movimentos sociais. Ao contrário, eu
sugiro que o engajamento das mulheres relaciona-se com uma maneira de compor
juntamente com os homens uma mesma visão e mesma posição de mundo que precisa
ser visibilizada pelos brancos, mostrando que os Mẽbengôkre (homens ou mulheres)
possuem uma única fala, uma fala reta e direta [kaben pudjỳ]; uma fala mẽbêngôkre, em
última instância.

111
Para uma apreciação etnográfica sobre o modo como as mulheres que visitam presos nas cadeias do
PCC entendem e propõe maneiras insubmissas de pensar submissão, ver Ferraz de Lima, 2015.

121
Mẽbêngôkre kaben: forma que persuade

Os modos de fala mẽbêngôkre tomados aqui como kaben pudjy [fala reta e
única] são formas que persuadem por depender de alguns modos e processos específicos
de expressão que vale a pena reforçar. A principal forma de expressão dessas falas
Mẽbêngôkre é a reiteração sequenciada da informação contida na fala realizada primeira
e a entonação marcada da voz. Essa reiteração das falas é realizada tanto em situações
cerimoniais da cultura dos Mẽbêngôkre [kukràdjà nho mẽbêngôkre], quanto em
situações de reuniões com representantes de diversos setores da burocracia empresarial
e política da nacional.
Os Xikrin dizem que suas falas possuem um único sentido [kaben pudjy],
possuem muita força [kaben tojx], são verdadeiras e/ou belas [kaben mejx kumrejx].
Eles dizem isso principalmente quando criticam os tipos de falas dos brancos durante
reuniões sobre processo de licenciamento e construção de Belo Monte. Contrariamente,
à fala Mẽbêngôkre, as falas dos brancos são confusas, são fracas ou não se sustentam,
são mentirosas e/ou falsas.
A intenção deste capítulo foi fornecer ao leitor algumas situações etnográficas
em que as falas formais Mebêngôkre são acionadas para que a afirmação dos Xikrin de
que suas falas são corretas, fortes e verdadeiras e/ou belas seja levada às últimas
consequências. Ou dito de outro modo, para que a apreciação deles acerca de seus
modos de existência seja visibilizada e para que suas críticas ao modo de existência dos
brancos ganhe força.
Espero ter deixado claro que as falas Mẽbêngôkre não dependem
exclusivamente da entonação da voz e memorização dos conteúdos e sequências
formais das falas. A fala Mẽbêngôkre é parte do conjunto kukràdjà e depende também
de certas intervenções e formações corporais para poderem ser corretamente realizada
pelas pessoas. Um desses procedimentos são as constantes aplicações das pinturas
corporais, que discuto a seguir, realizadas ao longo da vida das pessoas que constitui a
formação corporal para produção de corpos adequados e aparentados que sabem viver
com e como parentes.

122
CAPÍTULO 4. Mẽ ôk: pinturas corporais

“Assim é nossa tradição da pintura. Basta eu estar sadio e a gente se junta para pintar”
(Trecho da narrativa de Kaikware, in: Demarchi, 2015, p. 103).

Numa manhã de verão, eu voltava do bà [mato, floresta] com Nhokaê, uma de


minhas formais, onde havíamos ido rachar lenha. Assim que passamos pela lateral de
sua casa para depositar a lenha no chão da cozinha, Ngrenhkaró, que depois viera a se
tornar minha avó, a me ver chegar disse: “Deixe o paneiro, vá banhar e depois venha
aqui. Nhoktoe vai pintar você. Você está muito feia, seu corpo está muito branco, akáre
[sem pintura]”. De fato, nas partes mais expostas de meu corpo não era mais possível
ver os resquícios da pintura que havia sido aplicada há uns oito dias atrás. No entanto,
nas partes menos expostas do meu corpo, que ficam escondidas pelo uso das roupas,
ainda era possível ver com nitidez a aplicação da pintura, porque a tinta de jenipapo
ainda estava escura [tukre]. Independente de ter a barriga, as costas, a bunda e os seios
bem marcados com a pintura anterior, era preciso que eu fosse novamente submetida a
uma sessão de pintura porque meu rosto, minhas pernas e meus braços tinham perdido a
cor e a forma da aplicação da pintura, do padrão gráfico.
Esse procedimento contínuo de aplicação das pinturas corporais faz parte do
modo de vida dos Mẽbengôkre. Nas palavras de Demarchi (2015, p.130):

Com a pintura, criam-se pessoas, constroem-se corpos e reconstroem-se


superfícies. É com ela, enfim, que as pessoas crescem. Como nos conta Ruth
Kayapó, no filme Nossa Pintura: “Nós, Mebengokre, não crescemos
sozinhos. Nós crescemos com a pintura corporal e os enfeites feitos por
nossas mães”.

Além do fato dos corpos serem constantemente desenhados pelas talas ou


112
dedos das mulheres pintoras [ôk mari] , é a caracterização da visibilidade da pintura
que eu quero destacar aqui.
Assim que as pinturas começam a deixar de serem vistas nas partes mais
expostas dos corpos, uma nova sessão de aplicação da tinta de jenipapo é realizada. O

112
Demarchi (2015, p.118) sugere como tradução para o termo “especialistas em pintura”. Em termos
literais, ôk é pintura; mari é saber, conhecer, ouvir. Os Xikrin também acionam o termo ôk para referirem-
se a escrita, o termo é piôko pode ser traduzido de modo literal como pintura no papel, e é como eles
chamam qualquer tipo de texto escrito, como documentos ou livros. Além disso, como lembra Gordon
(2006), a palavra em mẽbêngôkre usada para se referir a dinheiro é piokaprim, que, segundo sua tradução,
significa: folhas pálidas.

123
fenômeno sugere que a pintura corporal precisa ser vista pelas outras pessoas, ela
precisa estar visível nas superfícies expostas do corpo, ela precisa estar completa e
inteira.
As mulheres Mẽbêngôkre (Xikrin e Kayapó) passam grande parte de suas vidas
envolvidas em sessões de pintura corporal: pintando-se mutuamente ou pintando seus
filhos, filhas, netos, netas, maridos e/ou irmãos ainda não casados. O processo de
aplicação das pinturas nos corpos repete-se geralmente a cada oito ou dez dias, e como
já mencionado, mesmo quando os resquícios da pintura anterior ainda estão presentes
nas partes escondidas dos corpos. Esse processo contínuo mostra o quão importante é o
aspecto visível que marca a completude das pinturas porque mesmo quando ainda
restam os traços do jenipapo nas partes não expostas dos corpos é preciso refazer a
pintura para que ela seja vista e esteja inteira.
Diferentemente das mulheres, como já foi discutido pelos autores e autoras
dedicados às pesquisas com esses grupos Jê Setentrionais, os homens Mẽbengôkre, que
também passam suas vidas recebendo as pinturas corporais, não podem e não sabem
aplicar os grafismos, porque essa prática de conhecimento é exclusiva das mulheres
[meninre nho kukdradjá] 113.
As pinturas corporais, juntamente com o uso dos adornos de penas e miçangas,
compõe o que se poderia chamar de estética visual da cultura mẽbêngôkre [kukràdjà].
Essa visualidade salta aos olhos de qualquer estrangeiro, mesmo aqueles menos
familiarizados com o modo de existência dos Mẽbengôkre. Do mesmo modo como o
tema dos rituais, as pinturas Mẽbêngôkre também têm ocupado amplo destaque nas
descrições dos etnógrafos dedicados a esses povos. O tema da pintura e dos ornamentos
corporais está presente desde os autores mais antigos, incluindo os primeiros registros
dos grupos Mẽbengôkre, até nas pesquisas mais recentes, como pode ser visto nas
publicações de Demarchi (2013, 2014, 2015). Essa recorrência, que junto com a
tematização dos rituais aparecem mais do que as análises e descrições das falas formais,

113
Vanessa Lea (2012, p.149) e Demarchi (2013, p.96) apresentam a descrição da realização de pinturas
feitas pelos homens em seus corpos em sessões ocorridas dentro do ngàb. Essas pinturas masculinas são
descritas a partir de dois procedimentos de aplicação: uso da casca da fruta do jenipapo como carimbo,
constituindo o motivo da pintura do pássaro [akre ôk], feita de modo desleixado; e a técnica de
gotejamento da massa da fruta do jenipapo que é deixada escorrer aleatoriamente pelo corpo, chamada
krãn amenh ôk [krãn: curto, rápido; amenh: jogar; ôk: pintura]. Voltarei ao debate sobre as pinturas
masculinas adiante para mostrar que entre os Xikrin seus modos e ocasiões de aplicação diferem das
descrições fornecidas pelos autores. Um debate sobre as especificidades dos conhecimentos das mulheres
pode ser visto em Cohn (2011) e Vidal (1992).

124
pode ser um entendida como decorrência ou efeito do encantamento que a estética da
visualidade da cultura Mẽbêngôkre causa aos olhos dos pesquisadores e de qualquer
estrangeiro. O encantamento gerado por esse aspecto da visualidade das pinturas e
ornamentação corporais é compartilhado também pelos próprios Mẽbêngôkre, homens e
mulheres, sendo motivo de orgulho, além de um importante diferenciador que marca
visualmente seus modos de existência [kukràdjà].
Em uma das atividades vinculadas à realização do projeto Menire, mencionado
no capítulo anterior, as mulheres Xikrin selecionavam as fotos que haviam registrado
para composição do livro de imagens sobre o menire kukràdjà [conhecimento ou cultura
das mulheres]. Os temas das imagens que compuseram o livro foram as pinturas e a
ornamentação corporais, a roça e o ritual de confirmação dos nomes. Um dos debates
era sobre o objetivo do livro. Depois de conversas entre elas, disseram que queriam que
o livro mostrasse para os kuben [brancos] a força e a beleza da cultura e do
conhecimento das mulheres Xikrin. Queriam que o livro circulasse nas mãos dos
brancos para que estes soubessem e aprendessem que as mulheres “são fortes e belas,
não são fracas não”.
Aproveitei a ocasião para mostrar a elas as fotos de meu arquivo pessoal. Eu
lhes disse que gostaria que algumas daquelas fotos estivessem presentes no corpo da
minha tese. Elas concordaram e disseram que escolheriam quais fotos eu poderia usar
para mostrar no meu documento. Como havia a presença de mulheres de todas as
aldeias, por conta da oficina do projeto Menire, o processo de apresentação e seleção
das imagens foi bastante demorado, de modo que longas pausas eram feitas e as
mulheres Xikrin ficavam silenciosas e respeitosas quando viam um parente que já havia
morrido ou caiam em gargalhadas quando se viam nas imagens de cinco anos atrás.
Uma fotografia insuspeita, desde o meu ponto de vista, gerou grande polêmica
e me colocou numa situação de reflexão e descontentamento em relação à falta de
sensibilidade que por vezes, mais vezes do que infelizmente parecemos supor, marcam
as práticas de pesquisa dos antropólogos. Eu estava convicta de que a imagem em
questão _em primeiro plano um menino segurando uma bexiga azul com pequenas
estrelas brancas próxima ao rosto, e ao fundo um consistente céu diurno com poucas
nuvens_ estava bonita. No rosto do menino era possível ver a tintura de jenipapo
bastante desbotada na pele, o que compunha um contraste com os azuis do céu e da
bexiga. Honestamente, eu estava orgulhosa da imagem que conseguira produzir com o
equipamento fotográfico que tinha à disposição na época, já que não domino técnicas

125
aprimoradas de fotografia. Quando essa imagem foi apresentada no slide, perguntei de
modo automático já supondo saber a resposta: Mejx? [Boa, correta, bela?]. Mas, para
minha surpresa, um coro uníssono respondeu: Kêt, punure! [Não, é feia, incorreta,
ruim]. Aquela imagem que eu considerava uma de minhas obras primas em relação à
realização de registro fotográfico foi considerada feia, horrível, incorreta. Eu estava
intrigada. Afinal de contas porque aquela imagem de belíssimo enquadramento era feia?
As mulheres Xikrin explicaram de modo simples e preciso: “O menino está feio, está
quase branco, não tem pintura bonita, o rosto está muito branco, feio, quase sem
jenipapo”. O debate intensificou-se e as mulheres falavam uma seguida da outra, em
alta velocidade, de modo que a conversa assumiu um ritmo de difícil compreensão aos
meus ouvidos. Ngrenkarati, tradutora e consultora do projeto, explicou a mim em
português, quando os ânimos exaltados acalmaram-se:

Nós, as pessoas Mẽbêngôkre, não gostamos que tirem fotos nossas de


qualquer jeito. Mas nós gostamos de tirar foto. Não gostamos quando os
brancos vão às nossas aldeias e ficam tirando foto do que querem, sem
perguntar nem nada. Por acaso nós devemos ficar ali à espera desses brancos
para sermos fotografadas? Os brancos não entendem isso. Acho mesmo que
não entendem e então muitas vezes deixamos isso para lá. Você já fez isso
também, todos os brancos fazem isso, especialmente os antropólogos. Para
nós, uma foto boa é aquela em que a pessoa ou as pessoas da foto estejam
com pinturas de jenipapo e urucum, com miçangas e adornos de pena. Nós
não existimos de qualquer jeito, nós existimos enquanto gente Mẽbêngôkre
que pinta o rosto e o corpo com jenipapo. Entendeu?

Envergonhada, afirmei com a cabeça que sim e passei para a outra fotografia,
mas desde esse episódio, aquelas palavras repercutem na minha cabeça e pensamento.
A descrição das pinturas e ornamentos corporais pode ser feita a partir de um
incontável número de possibilidades, como podemos observar entre os autores da
literatura especializada. Para mencionar apenas alguns exemplos, Cohn (2000) destaca a
importância das aplicações da pintura e dos padrões gráficos nos processos de
constituição da pessoa e de formação e maturação dos corpos, Vidal (1992) afirma as
pinturas corporais como modos de comunicação social da situação dos indivíduos,
como categorias de idade, posição de parentesco, situações de fim de luto, nascimento
do primeiro filho(a) ou neto(a); Lea (1986, 2012) destaca a pintura como um dos
agenciamentos femininos para formação de pessoas e elaboração dos rituais; Turner
(1995) associa as pinturas corporais como fronteira social que envolve o indivíduo;

126
Demarchi (2013) enfatiza a agência dos materiais das pinturas (tinta de jenipapo e pasta
de urucum) enquanto efeitos terapêuticos.
Lagrou e Severi (2013) realizam uma crítica ao modo como as pinturas e os
ornamentos corporais foram analisados no clássico livro “O Grafismo Indígena”,
organizado por Vidal (1992). Segundo os autores, inspirados na abordagem
praxiológica da agência da imagem proposta por Gell (1998), apesar da importância da
obra, o vocabulário sociológico que envolve as análises engessaram os grafismos como
meros sistemas de comunicação da condição dos indivíduos e dos grupos indígenas.
Mesmo concordando, em partes, com a crítica desses autores, que também é
compartilhada por Demarchi (2013), minha sugestão é que tratar as pinturas enquanto
sistemas comunicacionais nem sempre quer dizer enfatizar aspectos sociológicos ou
funcionalistas de análises.
Uma alternativa analítica, que defendo aqui, é discutir sistemas
comunicacionais enquanto formas que persuadem e padrões que comunicam, segundo o
modo como esses conceitos são defendidos por Strathern (2005). Assim, ao tomar as
pinturas corporais como formas que comunicam, eu não pretendo reiterar a definição
das pinturas como uma linguagem simbólica ou como códigos sociais que devem ser
decifrados pelos antropólogos, segundo argumento de Turner (1995), tampouco ignorar
a agência dos padrões gráficos e das substâncias utilizadas na confecção das tintas,
como propõe Demarchi (2013).
Minha intenção é colocar em destaque o aspecto visível que essa tecnologia e
conhecimento implicam e o efeito que deve promover. Essa visibilidade trata daquilo
que constitui uma pessoa Mẽbêngôkre. O que significa por sua vez, submeter os corpos
a sessões sequenciadas de pinturas corporais, ter parentes Mẽbêngôkre e saber como
conviver com esses parentes, valorizar relações de generosidade e distribuição de
114
carnes, cultivares da roça, objetos, nomes. Nesse sentido, ao descrever os processos
de aplicação das pinturas corporais e destacar essa tecnologia, um tipo de conhecimento
das mulheres, a partir dos efeitos da visualidade que imprime quando aplicada nos
corpos, pretendo destacar mais um dos componentes que são parte do conjunto da
cultura Mẽbêngôkre [kukràdjà]. Isso porque, um dos efeitos dessa visualidade é também
a elicitação, no sentido de colocar em evidência, de certas relações de parentesco (entre
consanguíneos ou entre afins) e de amizade formal. Esse destaque daquilo que e as

114
Uma discussão etnográfica sobre distribuição alimentar será apresentada no capítulo sete.

127
pinturas corporais visibilizam permite que o modo de existência Mẽbêngôkre, como um
tipo de gente não egoísta e que saber produzir e viver com (seus) parentes, seja
enfatizado.
Para o cumprimento de minha proposta descritiva tratarei as pinturas corporais,
em detrimento dos demais modos de ornamentação corporal, como uso de miçangas e
adornos feitos com penas de aves, de acordo com dois de seus usos: aplicação cotidiana
das pinturas nas aldeias, aplicação ritual das pinturas durante cerimonia de confirmação
dos nomes. As duas situações de aplicação das pinturas corporais servirão como aporte
descritivo para discutir o modo de apresentação dos homens e mulheres Xikrin nas
reuniões com membros da Norte Energia, que será discutida no capítulo cinco.

Pinturas corporais no cotidiano da aldeia

Outra atividade desenvolvida durante a realização do já mencionado projeto


Menire foi a exibição de uma pequena mostra de documentários produzidos por ou que
tratassem de grupos indígenas brasileiros. Rafaela Soldan 115, uma das antropólogas que
116
acompanhavam as atividades, sugeriu que o filme Me Ôk [Nossa Pintura] fizesse
parte da mostra. Os filmes eram mostrados à noite, na cada do meio [ngàb], com auxílio
de um equipamento de reprodução. As mulheres Xikrin gostaram muito desse filme em
117
particular por se referir a uma aldeia de pessoas Mẽbêngôkre . Um das partes do
filme que gerou mais entusiasmo aos telespectadores Xikrin foi a narrativa de um
homem sobre a história e origem das pinturas corporais Mẽbêngôkre. Nessa narrativa, o
desenvolvimento da tecnologia do uso de talinhas [kwỳkỳ] para aplicação da tintura de
jenipapo é associada ao grupo dos Djôre, ancestrais dos atuais Xikrin. A narrativa

115
Graduada em Ciências Sociais e pesquisadora do Observatório da Educação Escolar Indígena,
coordenado por Clarice Cohn, na Universidade Federal de São Carlos.
116
O filme 'Me'Ôk, Nossa Pintura' , dirigido por Fábio Nascimento e Thiago Oliveira, recebeu premiação
de Melhor Filme do Juri Jovem na competição nacional do Festival Curta Cinema em 2014 e foi
produzido com participação direta dos bolsistas Kayapó do Programa de Documentação de Línguas e
Culturas Indígenas, coordenado pelo Museu do Índio com apoio da Unesco. DIR: Fábio Nascimento,
Thiago Oliveira . 24 min . PA/Brasil . 2014. Agradeço a Thiago Oliveira pela disponibilização do filme.
117
A aldeia Môjkarakô está localizada as margens do Riozinho, um afluente do rio Fresco, que, por sua
vez é afluente do rio Xingu. De modo diverso ao padrão aldeão mẽbêngôkre e Jê, o plano da aldeia
Môjkarakô não e redondo. A organização das casas forma um grande retângulo composto pelas
habitações, em cujo centro se localiza a casa dos. Em 2010, segundo dados da Funasa, sua população era
de aproximadamente 400 pessoas, das quais praticamente um terço eram crianças (Demarchi, 2014, p. 58-
59).

128
vinculava também as pinturas corporais às ações do homem morcego [kubenhepre],
associação pouco registrada pelos antropólogos familiarizados com a literatura sobre
povos Mẽbêngôkre. Para Demarchi (2015), a narrativa tem um sabor especial porque
destaca a pintura corporal como parte do conjunto dos conhecimentos Mẽbêngôkre que
foram (e continuam sendo) apreendidos e apropriados por meio de relações de
alteridade. Assim como nomes, enfeites, cantos e danças, as pinturas foram (e ainda
são) capturadas do exterior e, posteriormente, circuladas e dispersadas por diversas
aldeias.
Reproduzo abaixo um trecho da narrativa, presente no filme e transcrita por
Demarchi (2015, p. 103-104).

Eu vou contar a história da pintura. Foi o Kubenhêpre, o homem-morecego,


que nos mostrou a arte da pintura. Ele nos deixou essa arte. Ele nos mostrou
a pintura Meibê, a pintura feita com os dedos e a Mekjekrôri, que se faz na
coxa. Ele nos mostrou todos os tipos de pintura, a pintura da anta
(Kukrytkra-ôk), a pintura cerimonial do Mutum, (Àkre-ôk), a pintura feita
com os dedos (Me-pkupiti), a pintura do mel (Pykakam-mei-ê) e também a
pintura dos guerreiros (Mekakokreti) e outros tipos de pintura que são usadas
pelos guerreiros que matam os inimigos. Foram essas pinturas que os
morcegos deixaram para os Mebengokre, e, desde então, nós começamos a
fazê-las. A gente continua usando até hoje essas pinturas. Mas também
aprendemos muitas outras. Há muito tempo atrás, os Djôre (Xikrin)
começaram a fazer a pintura da festa dos homens. Os Mebengokre, foram lá
encontra-los. Viram como eles faziam as pinturas e, quando voltaram,
fizeram igual e continuam fazendo até hoje. Lá na antiga aldeia Pykatôti,
nossos antepassados usavam essas pinturas e depois nossos pais, depois a
gente... e depois as pessoas da aldeia Awarikraikunoin também usavam. E
pessoas do Kubenkankrenh aprenderam também. E, depois, a aldeia de
Kubenhakrenh foi dividida e as pessoas se espalharam e as pinturas também
se espalharam. A pintura da festa de mandioca, da festa dos homens, a
pintura do Bemp, a pintura da festa da Anta, e também a pintura do
casamento, Meadjorekadjy, a pintura do noivo, todas são parte da nossa
tradição. Assim é nossa tradição da pintura. Basta eu estar sadio e a gente
junta para pintar. Mas também tem a pintura com palito. Foram os Djôre que
começaram a usar o palito. Aí o pessoal daqui foi até eles e fizeram uma
festa usando essa pintura no corpo. As mulheres de lá pintaram os homens
Mebengokre com o palito e eles levaram as pinturas no corpo para as
mulheres verem. Foi assim que começamos a usar a pintura feita com palito.
A pintura da chuva, do jabuti, a pintura diagonal, todas elas. Então foi tudo
isso que a gente aprendeu com o morcego e com os Djôre e continuamos
aprendendo até hoje. Essas pinturas, todas as mulheres sabem fazer. É por
isso que estou contando para vocês a história da pintura. Meu avô me
contou, eu me lembro da história, eu conheço bem a história e por isso a
conto.

129
Enquanto as atividades vinculadas ao projeto Menire ocorriam durante o dia, à
noite o filme era repetidamente assistido nas sessões realizadas no ngàb. As mulheres
conversavam muito sobre o filme e o tema das pinturas corporais tornou-se assunto
recorrente nas rodas noturnas de conversa na frente das casas. Numa dessas conversas,
em frente da casa de Kokadjã, esposa do segundo cacique da aldeia Mrotidjam,
perguntei a Ngrenhkarati: “Essa história da pintura e do Kubenhepre é assim mesmo
que os Xikrin contam?” Ela respondeu:

É assim mesmo, foram as mulheres Xikrin que fizeram a pintura com as


talinhas. Existem muitas histórias das pinturas, como conhecimento das
mulheres. Conhece a história de Nhokboti, a mulher estrela? Então essa
história também conta sobre a pintura corporal. A mulher estrela quando foi
pintada com jenipapo e urucum por sua sogra virou mulher humana e passou
a morar na terra, na aldeia e não voltou mais para o céu.

Em geral a narrativa, mencionada por Ngrenkarati, é associada à origem das


plantas cultiváveis, tecnologia trazida pela mulher-estrela. Ao vincular a esse mito o
conhecimento das pinturas corporais, Ngrenhkarati confirma a valorização da cultura
Mẽbengôkre por meio da aquisição de relações de alteridade, como afirmou Demarchi
(2015). Além disso, a associação feita por minha amiga Xikrin também concorda com
as apreciações argumentativas de Cohn (2011) de que os conhecimentos das mulheres,
como roças e pinturas, também são apropriações de exteriores e advêm de relações de
alteridade, desmistificando a imagem das mulheres como relegadas ao campo do
doméstico, do natural ou da infraestrutura da sociedade mẽbêngôkre, como afirma
Turner (1966) e Bamberger (1979).
As sessões de pintura das mulheres Xikrin são uma daquelas cenas recorrentes
que se observa com frequência quando se está nas aldeias. Sem que exista um motivo
aparente, as mulheres se reúnem no espaço no ngàb com o preparo de suas tintas, suas
talinhas de palmeira de babaçu [kwỳkỳ] e seus pentes riscadores [pikakiere], dando
início a mais uma sessão de pintura corporal. Em grupos de três ou duas, elas começam
a aplicarem-se, entre si ou em si mesmas, os motivos gráficos específicos. Em geral, as
mulheres pintam-se com motivos semelhantes a depender de sua categoria de idade:
mulheres com muitos filhos e netos pintam-se com o mesmo motivo gráfico, ao passo
que as mulheres com poucos filhos e netos também reproduzem em seus corpos motivos
semelhantes que diferem daqueles escolhidos pelas mulheres mais velhas.

130
É comum que algumas sessões femininas de pinturas ocorram no espaço do
ngàb [casa do meio], de modo que todo o processo de aplicação da tinta e dos padrões
gráficos seja visto no espaço central da aldeia. Contrariamente, as pinturas feitas pelas
mulheres nos corpos dos homens e das crianças, ocorrem nos espaços internos das casas
ou nos quintais, de modo que o processo de aplicação da pintura não seja visibilizado.
Esse modo de aplicação das pinturas em ambientes mais restritos também era realizado
pelas mulheres quando eu precisava ser pintada. Por não ser capaz de pintar os corpos
de minhas anfitriãs, eu não participava das sessões femininas e minhas pinturas eram
sempre feitas por elas após essas sessões, fora do espaço do ngàb ou, como fazem com
as crianças e com os homens, dentro das casas ou nos quintais.
Desse modo, não há realização de sessões de pintura corporal no ngàb [pátio
central] quando os corpos pintados são de homens, crianças e antropólogas, no meu
caso. Evitar pintar homens e crianças no espaço cerimonial, sugiro, decorre do tipo de
relação da especificidade de certos componentes do complexo kukràdjà. Homens e
crianças não compartilham desse modo de conhecimento que envolve a técnica de
aplicação de pinturas corporais e, por esse motivo, seus corpos não devem demonstrar
publicamente sua relação com essa prática e/ou conhecimento.
Minha interpretação inspira-se nos escritos de Cohn (2000, 2005b) de que a
demonstração de certas práticas de conhecimento e tecnologia concernentes às
especificidades do conjunto kukràdjà [cultura Mẽbêngôkre] precisa seguir certas
etiquetas de visibilização. Segundo argumento da autora, mais do que dominar certas
técnicas de conhecimento, as pessoas Mẽbêngôkre precisam saber os momentos certos
de demonstrar esses domínios, bem como de não os demonstrar publicamente. Por
exemplo, uma mulher pode saber manejar uma arma de fogo, mas não a utilizará numa
expedição de caça masculina. Um jovem, com poucos filhos e netos, pode saber
reproduzir com perfeição uma fala formal, mas não irá apresentá-la em espaço
cerimonial enquanto não se tornar um homem com muitos filhos e netos. No caso das
pinturas corporais, as mulheres jovens e sem filhos não irão participar das sessões
coletivas de pintura, sendo pintadas por suas parentas, tal como os homens as crianças,
em ambientes mais restritos e longe dos olhos dos moradores e moradoras da aldeia.
Mesmo sem dominar as técnicas de aplicação das pinturas, os corpos de todas
as pessoas são constantemente submetidos às mãos e talinhas das mulheres pintoras.
Exceto em caso de restrição devido a doenças ou luto, as pessoas na aldeia Bacajá
sempre estão pintadas e as pinturas vão sendo feitas uma após a outra, assim que a

131
aplicação de jenipapo das partes expostas do corpo começa a ficar fraca ou desaparecer.
118
Nesse sentido, as pessoas pintam-se durante momentos semelhantes. Basta que uma
mulher ou homem apareça com uma pintura nova, recém-feita e bem preta para que
todos se dediquem à mesma tarefa. Pode-se então observar um movimento de
disseminação das sessões de pintura corporal entre todas as casas da aldeia, como uma
espécie de “irradiação por contágio” (Tarde, 2007) 119.
Existem alguns padrões específicos que devem aplicados dependendo da
posição que uma pessoa ocupa em relação à categoria de idade e gênero. Entretanto,
como já apontou Vidal (1992), novas experimentações estão sempre em curso e são
constantemente postas em circulação.
Pude presenciar um caso de aplicação de um padrão gráfico inédito na aldeia
Bacajá. O combustível para abastecimento do gerador de energia havia sido entregue no
meio da tarde pela equipe do DSEI 120, após quatro semanas de atraso. Ao cair da noite,
era possível ver os televisores das casas ligados ao aparelho de DVD. O vídeo mais
reproduzido pelos aparelhos de televisão era a filmagem de um ritual de nominação
realizado na aldeia Cateté. A filmagem do ritual havia sido feita por alguns jovens
Xikrin daquela aldeia, sem o uso de equipamentos sofisticados ou equipes especialistas.
A gravação também não havia passado por qualquer processo de edição, de modo que o
filme tinha uma duração bastante semelhante à do próprio ritual, cerca de vinte e quatro
horas e estava dividido em muitas unidades de DVD. As gravações começavam com a
filmagem de uma sessão feminina de pintura, mostrando os padrões aplicados entre as
mulheres com poucos e com muitos filhos e netos. Como o tempo de funcionamento do
gerador de energia nas aldeias da TITB é de três a quatro horas, a sequência do filme foi
assistida ao longo de muitas noites. Na noite em que o filme começou a ser assistido, o
gerador demorou um pouco mais que o normal para ser desligado, a pedido das pessoas
que assistiam a gravação.
118
Tal como discutido pelos autores e autoras da literatura especializada, as pinturas sempre estarão
presentes nos corpos das pessoas, exceto em casos de resguardo por luto, situações de doenças e
nascimento do primeiro filho. Assim, se não há um motivo específico para que as pinturas sejam
aplicadas cotidianamente, existem motivos para a não aplicação das pinturas em determinadas situações
de vulnerabilidade. Dito de outro modo, os corpos estarão pintados a maior do tempo e só deixarão de
receber as aplicações das pinturas em algumas situações de vulnerabilidade e risco. Debates e discussões
acerca disso são referidos por Cohn (2000), Vidal (1992), Demarchi (2011), Lea (2012), Fisher (2013).
119
Refiro-me ao conceito de Gabriel Tarde sobre pontos de irradiação que promovem um movimento de
afetação por meio da ressonância e alteração, de modo infinitesimal.
120
Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) são unidades gestoras descentralizadas e
vinculadas ao Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi) que compõe o Sistema Único de Saúde
(SUS). Fonte: http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/secretaria-
sesai/mais-sobre-sesai/9540-destaques (acessado em 04 de abril de 2016).

132
Na manhã seguinte, as mulheres iniciaram uma sessão de pintura corporal:
aquelas com poucos filhos e netos aplicaram-se o padrão visto nos corpos das
mekranỳre [mesma categoria de idade] do vídeo. Em suas aplicações, as mulheres
realizaram algumas variações do novo padrão gráfico visto no vídeo. Essas
modificações foram aplicadas na região do rosto, mantendo nos corpos o mesmo motivo
e desenho visto nos corpos das menire da aldeia Cateté. As imagens do novo padrão
gráfico estavam sendo experimentadas nos corpos e algumas variações estavam sendo
testadas na região das bochechas do rosto. As mulheres mais velhas aplicaram-se o
padrão já conhecido feito por linhas diagonais paralelas, também aplicados com
variações nas faces.

Figura 11 e 12: Aplicação da pintura inédita entre as mẽkranỳre [mulheres com


poucos filhos ou netos]. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

Panthô explicou sobre a aplicação do novo padrão gráfico:


A gente viu ontem no filme e achamos muito bonito o desenho. Não sei qual
é o nome dessa pintura, mas todo mundo achou ela bonita, por isso estamos
pintando esse desenho hoje. Ninguém nunca tinha visto essa pintura antes.
As mulheres do Cateté sabem pintar muito bem, assim como a gente. Elas
devem ter aprendido com alguém ou em terem visto essa pintura em algum
lugar e resolveram pinta-las por terem também achado bonitas as pinturas.
Agora nós também gostamos da pintura e estamos fazendo porque é uma
pintura bonita.

A consideração de Panthô concorda com as afirmações de Vidal (1992) de que


todas as mulheres Xikrin são pintoras e se arriscam em imprimir novas formas gráficas,

133
desde certas características do modo Mẽbêngôkre de aplicação da tintura não se altere
em demasia. Fazer a mistura da tinta de jenipapo e saber aplicar os padrões gráficos nos
corpos das pessoas é parte fundamental do conjunto de conhecimentos das mulheres
Mẽbêngôkre [menire nhõ kukràdjà]. As meninas, ainda crianças, começam a arriscar-se
na tarefa de aplicação de pinturas em pedaços de suas pernas ou em outras crianças.
Essa atividade é vista como brincadeira por suas mães e avós, que as incentivam a
reproduzir suas primeiras tentativas de pintura. As meninas, como descreve Cohn
(2000), por outro lado, não usam jenipapo para realizar suas aplicações, devido ao risco
de adoecerem com o contato antecipado com a substância. É apenas após o nascimento
do primeiro filho ou filha que elas irão iniciar a aplicação das pinturas e serem
reconhecidas como pintoras ou como mulheres que sabem pintar os corpos com
jenipapo.
Esse reconhecimento das mulheres como boas pintoras ganha tamanho
destaque que, muitas vezes, as autoras das pinturas são identificadas por outras
mulheres a partir do modo de realização e aplicação dos grafismos. É comum que, uma
mulher com uma pintura que acabou de ser finalizada seja interpelada por outra, como
ocorreu comigo numa ocasião diferente da mencionada na abertura deste capítulo.
Algumas mulheres voltavam da roça e nos encontramos na beira do rio, onde eu estava
indo banhar para retirar o excesso do carvão da pintura já seca. A me ver, Nhoktôe
perguntou: “Õk mejxtere. Nhyma ôk nipehjx? Koitu?” [Que pintura bonita. Quem te
pintou? Koitu?]. Respondi afirmativamente. Mais tarde, na casa de Mopkure, mãe de
Nhoktoe, perguntei como a sua filha sabia que Koitu havia feito a pintura. Mopkure
respondeu: “Cada mulher tem um jeito de pintar, só de olhar já dá para saber quem foi
que fez a pintura”. Esse é um tipo de reconhecimento que depende de uma imensa
familiaridade com o processo de aplicação das pinturas e com o convívio entre as
mulheres pintoras durante as sessões femininas de pinturas e que, em geral, escapa aos
olhos amadores dos pesquisadores e pesquisadoras.
Em alguns casos, as mulheres Xikrin classificam-se silenciosamente umas em
relação às outras segundo o modo de aplicação das pinturas nos corpos dos maridos,
filhos e filhas, além do tempo de duração e a cor da tintura de jenipapo na pele. Quando
alguns desses requisitos não são considerados bonitos, ou seja, quando a tinta de
jenipapo fica fraca e solta da pele com facilidade ou quando os padrões aplicados estão
assimétricos ou tortos e descuidados, é comum que as mulheres critiquem em suas rodas
de conversas a autora responsável pelo grafismo.

134
Vidal (1992) e Cohn (2000) realizam uma reflexão acerca dos padrões
utilizados nos grafismos aplicados ao corpo e rosto das pessoas a partir das definições
de gênero e idade de quem receberá a pintura. Assim, segundo as autoras, existem
pinturas aplicadas preferencialmente em crianças, independentemente do gênero,
pinturas exclusivamente masculinas e exclusivamente femininas, e pinturas
especificamente aplicadas nos corpos das pessoas mais velhas. Como as próprias
autoras notaram, eu também pude observar certas definições prévias em relação a
motivos gráficos e categorias de gênero e idade, tornando-me com o tempo ser capaz de
identificar alguns dos motivos e sua aplicação correta. Entretanto, fui surpreendida com
uma cena que me fez rever essas definições estáveis entre motivos gráficos e categorias
de gênero e idade. Pude constatar que essas definições podem ser subvertidas conforme
o desejo de quem receberá o grafismo e a disposição da mulher que aplicará a pintura.
Um dia depois da primeira expedição para coleta de castanha, que se sucedeu
ao longo de todo o mês chuvoso de fevereiro, cheguei à casa de Koitu que pintava Bep
Nhô, seu marido [miêt], com um padrão gráfico tipicamente aplicado às crianças. Koitu
explicou que fora seu marido quem lhe pediu para ser pintado com aquele padrão e
disse em tom de riso: “Bepnho meprire pran” [Bepnho quer se tornar criança]. Afora a
reação jocosa de sua esposa pintora, Bepnho confirmou sua escolha gráfica quando lhe
perguntei e, quando Koiti encerrou a pintura, ele seguiu ao ngàb [casa do meio] e não
me pareceu sofrer qualquer tipo de comentário pilhérico dos homens, que ocupavam o
local, para as recorrentes partidas de dominó e de dama que animavam as tardes de
inverno.
A negociação entre a pintora e a pessoa que recebe a pintura pode ser
encontrada também nas sessões coletivas de pinturas corporais femininas, antes de se
aplicarem os motivos gráficos, específicos para cada categoria de idade, quando
conversam e negociam sobre o padrão que mais as interessam naquele momento.
Existem, por outro lado, certos grafismos que devem ser aplicados em certas situações
específicas como o motivo de padrão gráfico da onça que deve ser impresso nos corpos
das avós com o nascimento dos primeiros bebês de seus filhos ou filhas. Ou ainda, a
aplicação da tintura toda negra no corpo e rosto do pai ou mãe num ritual de nominação
de seu filho ou filha. 121

121
Muitas outras situações estão descritas em Vidal (1992).

135
As diferentes montagens dos padrões gráficos entre mulheres de uma mesma
categoria de idade podem ser vinculadas ao argumento de Lea (2012) sobre a
constituição das pessoas Mẽbêngôkre, e a formação dos conjuntos de conhecimento
kukràdjà, enquanto montagens e desmontagens de certas partes, que são o tempo todo
feitas e refeitas ao longo da vida. Inspirada nas leituras de Strathern (1988, 1999) sobre
a partibilidade das pessoas melanésias, Lea (2012) propõe uma imagem bastante
promissora sobre a constituição dos corpos e das pessoas Mẽbêngôkre a partir de partes
de coisas, adornos, artefatos, conhecimento que podem ser somadas e subtraídas das
pessoas, como uma sessão de montagem ou desmanche de peças. A autora sugere que
esse processo de montagem e desmontagem implica tanto processos de anexação ou
subtração de coisas e capacidades na superfície dos corpos quanto na anexação e
subtração de coisas e capacidades imateriais como as prerrogativas cerimoniais e os
nomes transmitidos a partir das Casas. Um dos exemplos indicados são as viagens
xamânica ou adoecimento das pessoas quando o karõn [espírito, alma, força vital]
abandona temporariamente os corpos viaja para outros lugares.
As aplicações de pintura corporais, mesmo sendo uma atividade constante na
vida das mulheres, não ocorrem sem esforço. Muitas vezes, as mulheres reclamam de
ficar com os olhos cansados [nó tudjã] e os dedos doloridos [kra tokru], especialmente
quando se trata de aplicação da pintura com o uso da talinha no corpo todo. Essas
reclamações das mulheres, entretanto só foram feitas em relação à aplicação de pintura
nos corpos de pessoas não-Mẽbengôkre que estavam visitando as aldeias. Não as ouvi
reclamar de cansaço ou dor quando pintavam seus parentes, suas parentas ou suas
amigas formais.
Numa noite, estávamos Ngrenhkarati e eu, sentadas na frente da casa da sogra
de Ireprin, na aldeia Mrotidjam, quando ela disse que não gostava de pintar as mulheres
brancas [kubenire]. Ela contou que era muito recorrente que as mulheres brancas
quando estão visitando as aldeias queiram ser pintadas de corpo inteiro. Em uma dessas
vezes, contou-nos Ireprin que cobrou um determinado valor para aplicação da pintura e
122
a mulher não quis pagar o valor pedido por ela por considerar muito caro .
Ngrenhkarati expressou sua concordância com Ireprin.

122
Lea (2012, p.190) em entrevista para a Revista de Antropologia do PPGAS UFSCar, menciona essa
preocupação sobre a questão das pinturas corporais e promoção de projetos para geração de renda. Em
suas palavras: “Quando voltei dessa última temporada de campo, ano passado, pensei em fazer um projeto
com as mulheres sobre pintura. Tem mulheres que são ótimas produtoras de pinturas e estão vendendo

136
É assim mesmo, sempre desse jeito. As kubenire querem ser pintadas, mas
nunca querem pagar pelas pinturas. Eu acho que elas pensam que as
mulheres Xikrin não merecem receber dinheiro, ou que os índios não devem
receber dinheiro por nada. As pinturas são nosso conhecimento, das
mulheres Mẽbêngôkre, e se quisermos cobrar para fazer as pinturas, as
mulheres brancas tem mais é que pagar, sem reclamar. As mulheres brancas
não sabem fazer nossas pinturas e não pintam suas crianças como nós
fazemos. Nós não queremos pintar os brancos de graça, não são nossos
parentes. Se, estamos cobrando dinheiro, as mulheres brancas tem que pagar,
senão ficam sem a pintura e pronto. Não precisamos pintar as mulheres
brancas.

Se as aplicações de pinturas em pessoas não-Mẽbêngôkre pode ser em certos


momentos entendida como um fardo, ou como uma atividade que precisa ser
remunerada, as aplicações nos corpos dos parentes Mẽbêngôkre são realizadas sempre e
com dedicação e cuidado. Desse modo, no cotidiano da aldeia, as pinturas exercem um
efeito de contágio por irradiação, porque basta que alguém se apresente com uma
pintura recém-feita para que praticamente todas as pessoas das casas organizem-se para
pintar-se ou pintar seus parentes. Esse efeito de irradiação da beleza contagia os corpos
das pessoas com grafismos e imprime na circulação das pessoas um movimento de
formas e cores de estonteante de beleza. As únicas ocasiões que superam essa irradiação
de grafismos na movimentação dos corpos são os preparativos e as realizações dos
rituais, que possuem um modo ainda mais coreográfico de aplicação das pinturas e
ornamentação corporais.

Rituais e pinturas corporais

Cotidianamente, os corpos Mẽbêngôkre são formados, mas não


exclusivamente, pelas constantes aplicações das pinturas corporais com jenipapo e
urucum. Além disso, a ausência das pinturas em momentos de luto, doença ou
resguardo também são importantes ações para formações desses corpos. Apresento a
seguir a produção dos corpos Mẽbengôkre a partir das aplicações de pintura ocorridas
em momentos de cerimônia ritual, o que implica num esforço maior de padronização
dos motivos gráficos.

pequi para caminhoneiro. Essas mulheres Kayapó têm o azar histórico de não aplicar suas pinturas em
tecidos, mas sim no corpo; ao contrário dos Assurini, por exemplo, que vendem sua arte em cerâmica”.

137
Como apresento no capítulo dois, os rituais de confirmação de nomes e de
iniciação masculina, que acompanhei durante minhas pesquisas de campo, são tratados
como performances que dependem de um tipo de engajamento coletivo para que sua
eficácia esperada seja atingida. Entre esses engajamentos necessários para a realização
das cerimônias, em seus sentidos de corretude e beleza, estão os processos de pintura e
ornamentação corporais das pessoas envolvidas nas performances. Em suas situações de
aplicações nos processos de preparo e realização ritual, as pinturas corporais assumem
outra escala de visibilidade, porque elas serão vistas e apresentadas nos corpos que
estarão engajados na realização de determinados movimentos, ao longo da performance.
As pinturas, nas aplicações rituais, excedem os corpos e se expandam para além das
suas fronteiras atingindo os corpos vizinhos nas coreografias de danças em que os
Mẽbengôkre, como afirma Giannini (1992), assumem sua posição de gente ave.
Assim, em momentos rituais, os motivos gráficos aplicados nos corpos das
pessoas engajadas na performance seguem padrões e recorrências mais precisas, se
comparadas à aplicação cotidiana das pinturas. Com o objetivo de apresentar esses
engajamentos corporais, apresento a seguir os procedimentos de pintura corporal
ocorridos em outra cerimônia de nominação. Entretanto, diferentemente da descrição
evidenciada no capítulo dois, o foco descritivo são os corpos, os grafismos neles
aplicados e suas extensões por meio das danças, constituindo mais um dos artefatos de
persuasão do complexo kukràdjà por meio da produção estética e visual de beleza, de
corpos belos e pessoas belas (Mẽbêngôkre).

***
Os homens da aldeia Bacajá ajeitavam seus equipamentos para expedição de
caça, enquanto as mulheres esfregavam a tinta de urucum na superfície de seus corpos e
imprimiam um desenho com os dedos na região dos olhos. No dia anterior, as mulheres
de suas casas haviam feito as pinturas com tinta de jenipapo e carvão nos corpos dos
guerreiros. As pessoas organizavam-se para realização de mais um mẽreremejx, ritual
de nominação, de três meninos da aldeia Bacajá: Bep Kruá, Bep Kororoti, Bep Kranti.
Após a saída dos homens e o desjejum das mulheres da aldeia, elas começaram
a ocupar o espaço da casa de meio [ngàb], trazendo consigo a tinta de jenipapo [mroti
kango] já misturada com o carvão [bàt prã], as talinhas de palmeira usadas como
pinceis [kwỳkỳ], os pentes riscadores [pikakiere], garrafas de água e café, suas crianças
menores, suas esteiras [ronti ô]. Ocuparam o espaço com o rosto marcado com tinta de

138
urucum [pỳ] e com os pés e pernas, até o meio da canela, totalmente cobertas pela
tintura vermelha.
Elas se espalharam pelo espaço da casa do meio em grupos de duas ou três, de
modo que cada grupo foi composto por mulheres da mesma categoria de idade e com
relações de amizade formal. Entre si decidiam os motivos gráficos que iriam compor a
pintura dos corpos. A decisão foi que as mulheres mais velhas, com muitos filhos e
netos, pintar-se-iam com o motivo da cobra [kanhã ôk] no rosto [maritẽn]; enquanto que
as mais novas aplicar-se-iam o motivo de um peixe, conhecido como ibê, [ibê ôk]. A
superfície corporal de todas as mulheres receberam a mesma forma gráfica com linhas
diagonais feitas com o uso de uma talinha mais espessa do aquela usada no rosto [kwỳkỳ
rajx].
Abaixo a esquematização da divisão dos grupos das mulheres dentro da casa do
meio [ngàb]:

Verde: mulheres mais novas com poucos filhos


Vermelho: mulheres mais velhas com muitos filhos e netos

01: Mopkure
02: Nhokmaiti
03: Nhotoe
04: Koin
05: Irebô
06: Panthô
07: Iretô
08: Bekwoi ó
09: Kokoró
10: Turure
11: Ireroi
12: Ngrenhpuka
13: Ngrenhme

139
14: Nhokbê
15: Panhkaró
16: Irekoti
17: Bekwoikà
18: Irekô
19: Bekwoiró
20: Nhaúre
21: Kokprã
22: Nhokeiti
23: Irekà
24: Nhokmumti
25: Iremoro
26: Kokororoti
27: Nhakukoro

Figura 13: Padrão gráfico aplicado pelas mulheres mais velhas. Figura 14: Padrão gráfico aplicado pelas mulheres
com poucos filhos e netos. Fonte: Acervo pessoal da autora.

A figura 13 exemplifica a aplicação de uma das variações do padrão gráfico


kanh ôk [pintura da cobra] no rosto de Mopkỳre, mulher da categoria de idade
mekratymbre, com muitos filhos e netos. Na figura 14 apresenta-se uma das variações
possíveis do padrão gráfico ibê ôk [pintura do ibê] no rosto de Panthô da categoria de
idade mekranýre, com poucos filhos e netos.
A disposição dos grupos das mulheres, que se dividiram entre categorias de
idade e relações de parentesco e amizade formal, conformou um círculo que deixou o
meio do espaço da casa central vazio. Essa disposição das mulheres na sessão de pintura
corporal difere do modo como os homens ocupam esse espaço em situações de fala
formal ou em suas conversas vespertinas, quando se posicionam no espaço mais central
do espaço do ngàb. Não quero reafirmar, com essa descrição, qualquer imagem de

140
associação entre homens, centro, espaço político cerimonial e entre mulheres, periferia,
espaço doméstico e natural. Ao contrário, sustento que o modo diferenciado de
ocupação das mulheres do espaço da casa do meio [ngàb] figura uma marcação da
diferença delas em relação aos homens, no sentido de positivarem-se a partir daquilo
que consideram suas especificidades em relação a eles, como por exemplo, a
demonstração do domínio da técnica de aplicação das pinturas corporais, cujo efeito é a
visualização dos seus modos de existência e conhecimento específicos [meninre nhõ
kukràdjà].
Assim que terminam de aplicar os padrões gráficos com a tinta de jenipapo, as
mulheres reforçaram os contornos da tinta de urucum no rosto, e espalharam uma nova
camada dessa tinta vermelha nos pés e pernas, guardaram seus equipamentos de pintura,
deixaram suas crianças menores aos cuidados de suas mães ou filhas jovens [kurerere] e
saíram da aldeia em busca de lenha.
Em dois barcos com motor rabeta, as mulheres dividiram-se [kute] segundo
suas categorias de idade. Essa separação ficou ainda mais nítida por conta da aplicação
dos mesmos padrões gráficos nos rostos e corpos das mulheres de mesma categoria de
idade. A imagem era linda. Cada um dos barcos ocupados por mulheres com os mesmos
padrões gráficos. Em cima do barranco que antecede o porto do rio Bacajá, eu fiquei um
tempo admirando essa composição imagética e quase perdi a carona para buscar a lenha.
Eu fazia parte do barco ocupado pelas mulheres mais velhas e ainda não tinha
recebido a aplicação daquela pintura que eu sabia fazer parte do processo de realização
do ritual de nominação. Os dois barcos atracaram na mesma região alagada da floresta
[buanõro]. As mulheres desceram com seus machados, paneiros e facões. Mais uma vez
eu me hipnotizava com o desenho que o movimento dos seus corpos pintados com
aqueles motivos gráficos configurava, como se as fronteiras entre os corpos, em certos
instantes, se desfizesse.
Ao entrarem na área, as mulheres juntas caminharam nas trilhas até
encontrarem os melhores exemplares de troncos caídos para serem rachados e
transportados para aldeia. Assim que os troncos começaram a ser encontrados, as
mulheres dividiram-se em grupos de duas ou três para iniciaram o processo de racha da
lenha, repetindo a mesma formação dos grupos de aplicação da pintura.
Os dias foram passando e as mulheres permaneciam envolvidas com as
atividades que lhes cabiam para a preparação do ritual: rachar e armazenar lenha
suficiente para alimentar o forno kῖ [forno de pedra] durante a cerimônia, carregar e

141
armazenar as pesadas pedras que compõem o forno, reformar ou produzir os adornos de
miçangas que serão usados.
Um dia antes do retorno dos homens do acampamento de caça, as mulheres
engajaram-se em mais uma sessão de pintura corporal, repetindo a divisão etária e dos
grupos de amigas formais. Dessa vez, o padrão gráfico aplicado nos corpos repetiu os
motivos gráficos anteriores como para provocar um reforço da primeira pintura.
Antes do retorno dos homens, as mulheres dedicaram-se a varrer [kapon] e
capinar todo o entorno das casas e o espaço entre elas e a casa do meio, deixando a
aldeia limpa. Esse é um procedimento comum em épocas de preparo e realização de
rituais. Ao varrer o espaço do círculo contornado pelas casas, as pessoas tornam a aldeia
bela, limpa, plana com o chão de terra bem liso sem pedras, matos ou pedaços de paus e
pedras. O espaço interno da casa do meio também é limpo e varrido para ficar bonito e
sem nada jogado no chão. Sempre que essa tarefa é concluída é possível ouvir da boca
das pessoas envolvidas na atividade: primejx mejxtere, pyka mejxtere, Bacajá mejxtere
[Aldeia bela, correta; terra boa, bonita; aldeia Bacajá bonita, linda].
Os homens retornaram trazendo as escadas dos jabutis a serem consumidos
durante a cerimônia. Em seus corpos viam-se linhas disformemente escorridas de
jenipapo, sem carvão. Essas pinturas desajeitadas, feitas por eles no acampamento de
caça, são chamadas kran amenh ôk [kran: rápido; amenh: jogar; ôk: pintura], traduzida
123
por Demarchi (2013, p. 250) como “dripping selvagem” . Para Demarchi (2013), a
aplicação do que ele nomina como “anti-pintura” nos corpos dos homens jovens é
justificada porque apenas os corpos dos homens, guerreiros, são capazes de suportar
essa desfiguração gráfica sem adoecer ou sem causar a tão “temida desestabilização
interna”. Isso porque, ainda segundo seu argumento, os corpos dos homens vão sendo
formados e testados por processos constantes de figuração e desfiguração, como se pode
observar nos rituais de iniciação da quebra de marimbondo que causam inchamentos
124
corporais e febres altas . Como já mencionado no capítulo dois, essas pinturas
masculinas, entre os Xikrin do Bacajá, são feitas pelos homens no acampamento de
caça, longe dos olhos das mulheres pintoras, e consiste em cuspir a polpa da fruta, após
sua mastigação, sobre o próprio corpo. Assim, diferentemente do que Demarchi

123
O autor inspira-se em uma técnica de pintura desenvolvida pelos artistas Jackson Pollock e Marx
Ernest que consiste no uso de gotejamento das tintas sobre as telas (Demarchi, 2013, p. 247).
124
Para Demarchi (2013), a possibilidade da realização de testes desfigurativos nos corpos dos homens
guerreiros pode ser remetida ao mito da morte do gavião-real, em que os heróis são submetidos a um
crescimento corporal excessivo, quando seus corpos são mergulhados na água durante certo tempo.

142
observou entre os Mebêngôkre Kayapó de Mojkarako, os homens Mẽbêngôkre da
aldeia Bacajá não realizaram essa prática nos espaço da casa do meio.
As mulheres, pintadas e urucum e jenipapo, foram ao porto receber os homens
que traziam as escadas de jabutis. Eles caminharam com as escadas de jabutis e, após as
deixarem nos fundos das casas das crianças homenageadas, ocuparam o espaço do ngàb
realizando uma dança e um canto de guerra, exibindo seus corpos com as marcas
escorridas do jenipapo e suas braçadeiras de penas.
Após o retorno dos homens, iniciou-se mais uma sessão feminina de pintura
corporal. Desta vez, ao invés de se reunirem no espaço central do ngàb, as mulheres
dividiram-se, conforme suas categorias de idade, nas cozinhas de duas casas. As
mulheres mais velhas aplicaram-se, nas faces, o padrão gráfico conhecido como rorodjã
(espécie de tabuleiro de dama preenchido com linhas horizontais de modo alternado); as
mais jovens utilizaram nas faces o motivo irotῖ (espécie de triângulo sem a base e que
mantém o centro sem pintura). Nos corpos foram refeitas as listras em diagonal.

Figura 15: Aplicação do padrão gráfico entre mulheres com muitos filhos e netos. Figura 16: Aplicação
do padrão gráfico entre as mulheres com poucos filhos e netos. Fonte: Acervo pessoal da autora.

No final da tarde a dança/canto do urucum foi iniciada [pỳ metoro] com os


homens ainda portando a pintura de gotejamento feita por eles próprios no
acampamento de caça. Todos os envolvidos na cerimônia, homens e mulheres
apresentaram-se pintados com urucum.

143
Na manhã seguinte duas mulheres com muitos filhos e netos rasparam os
cabelos dos homens no ngàb ao estilo da tonsura Mẽbêngôkre. Aos poucos, os homens
foram sendo pintados com tintura de jenipapo por suas mulheres dentro das casas. O
padrão gráfico aplicado nos corpos foi homens foi aquele comumente usado em
cerimônias de nominação no qual se deixa algumas partes sem pintar para que nelas
sejam coladas as penugens filhotes de urubu, o que marca um dos clímaces da festa. Os
meninos homenageados também são pintados com o mesmo motivo gráfico para
aplicação da penugem.
Os homens vindos de outras aldeias para a cerimônia foram pintados pelas
mulheres da aldeia Bacajá que são mais próximas em termos de relações de parentesco.
Algumas mulheres vindas de outras aldeias já chegaram com suas pinturas prontas,
enquanto que outras preferiram ser pintadas pelas mulheres da aldeia Bacajá nas sessões
coletivas.

144
Figura 17: Bep Djô, jovem guerreiro ornamentado para participação da cerimônia. Figura 18:
Bep Kranti, um dos meninos homenageados, antes da ornamentação. Figura 19: As kwatwỳ [avós ou tias
paternas] dos meninos homenageados Fonte: Arquivo pessoa da autora.

Aos poucos a casa do meio foi sendo ocupada pelos participantes da cerimônia
e o processo de ornamentação dos corpos das crianças homenageadas foi iniciado. As
crianças receberam no rosto a tinta látex [barop] onde forma coladas as cascas trituradas
do ovo do pássaro conhecido como azulona. Em seguida, os amigos formais de cada
criança também ornamentaram seus corpos colando as penugens de pena de filhote de
urubu. Terminada a ornamentação das crianças, os homens aplicaram-se também as
penugens respeitando as relações de amizade formal entre si.

145
Figuras 20, 21: Menino homenageado na cerimônia com os adornos e pinturas. Fonte: Arquivo
pessoal da autora.

146
Os homens e as crianças homenageadas exibiram-se nas danças ao redor da
casa do meio com os corpos cobertos com as penugens do filhote de gavião, adornos de
penas como cocares e braçadeiras e com os mesmos padrões gráficos.
No decorrer da noite do mroti metoro [canta/dança do jenipapo], os homens
mais velhos responsáveis por cantar até o nascer do sol, receberam dos pais das crianças
homenageadas uma marca facial feita com carvão, comprovando o engajamento dos
cantores durante toda a madrugada. No início da manhã, as pessoas que não
permaneceram no ngàb durante a madrugada reapareceram trazendo grandes
quantidades de tinta de urucum e óleo de coco babaçu. A tinta do urucum foi misturada
ao óleo e passada nas penas brancas dos corpos e das faces das pessoas. Mais uma vez
foram os amigos formais que realizaram essa aplicação uns nos outros. Com as penas
brancas tornadas vermelhas, as pessoas tomaram café, banharam-se no rio e se retiraram
para descansar. No final da tarde, as pessoas reforçaram a aplicação de urucum nas
partes devidas e circularam uma única vez em torno da casa central, encerrando a
cerimônia.

Pintura corporal Mẽbêngôkre: forma que persuade

Tratar a pintura corporal Mẽbêngôkre como uma das marcas da estética da


visualidade que compõe o complexo kukràdjà [cultura dos Mẽbengôkre], não significa
assumir uma posição analítica que toma os grafismos como meros indícios de relações
preexistentes. Não se trata, apenas, de tornar visível algo que já existe, como se as
pinturas fossem exclusivamente a visualização de relações preexistentes de parentesco e
amizade formal. As pinturas corporais fazem relações, na medida em que comunicam
padrões de proximidade entre amigos formais, afins e/ou consanguíneos. Essas relações
ganham novas formas a cada manifestação gráfica. As pinturas corporais são tomadas
como formas que persuadem e padrões que comunicam no sentido em que elas fazem
relações ao torná-las visíveis. As pinturas corporais, as relações de parentesco e amizade
formais são conjuntamente produzidas em ato, a partir do momento em que os corpos
das pessoas Mẽbêngôkre recebem de determinadas mulheres certos padrões gráficos.
Bep Kranti, um dos meninos homenageados, faz amigos formais ao ter o corpo
preenchido por alguns formais que herdou de sua linha paterna e reforça as relações de

147
afeto e convivialidade com sua avó que lhe aplicou as cascas trituradas do ovo azul do
pássaro azulona. O corpo de Bep Kranti expressa ao mesmo tempo em que valida
relações com alguns de seus parentes e amigos formais.
Corpos pintados de jenipapo e urucum são corpos Mẽbêngôkre, são corpos
engajados num determinado modo de existência que tem nas relações entre parentes e
amigos formais marcadas pela circulação e distribuição de bens, mercadorias, nomes,
capacidades, sua mais exponencial expressão. Seja em ocasiões rituais ou cotidianas,
esses corpos, constantemente pintados pelas mulheres vão produzindo relações de certo
tipo com determinadas pessoas ao longo da vida, ao longo das aplicações das pinturas e
ornamentação devidas. Como disse Ngrenhkarati: “as mulheres brancas não pintam seus
filhos, filhas, seus netos e netas. As mulheres brancas não sabem pintar as pessoas, não
sabem fazer a tinta de jenipapo, apenas as mulheres Mẽbêngôkre que sabem”.
Esse saber, essa tecnologia das mulheres Mẽbêngôkre, é responsável pela
produção dos corpos belos, fortes e saudáveis das pessoas nas aldeias. Ao mesmo
tempo, essas pinturas visibilizam a beleza, a saúde e a força desses corpos. Não existe,
quero argumentar, qualquer relação imediata de antecedência, consequência ou de
causalidade em jogo. Pintar um corpo é fazê-lo belo ao mesmo tempo em que a beleza
do corpo é elicitada por meio da pintura. E, como quero demonstrar ao longo da tese, o
conceito de beleza entre os Xikrin relaciona-se intimamente com atitudes e
comportamentos que visam o compartilhamento, a comensalidade e se afastam de ações
de egoísmo e sovinice, que marcam os modos como os brancos se relacionam tanto
entre si quanto para com os povos Mẽbengôkre.

148
Parte II
Das formas que não persuadem: crítica à política dos
brancos.

[...] Pois as formações discursivas são verdadeiras práticas, e suas linguagens, em vez de
logos universal, são linguagens mortais, capazes de promover e, às vezes, exprimir
mutações.
Deleuze (2013, p.24)

149
Capítulo V. Reunião

[...] meu avô, ele está lá me esperando, não sei como está lá, e me mandou: “Mukuka
vai para lá, conta a história lá do que está acontecendo aqui com a gente, que o governo está
querendo enganar a nós. Ele já enganou a gente dentro da nossa vida”.

Mukuka, trecho de entrevista realizada em São Paulo na 28ª RBA. In: Atual, o último
jornal da terra, n.02, dez de 2013.

Com o início do processo de licenciamento e implantação do Aproveitamento


Hidrelétrico de Belo Monte, os Xikrin, assim como os demais grupos indígenas na
região, viram-se envolvidos em uma série de reuniões com representantes da empresa
Norte Energia, principal consorciada do empreendimento, e setores da burocracia
nacional para definição e debate sobre os impactos decorrentes da obra e as possíveis
ações de mitigação a serem implantadas. As ações de mitigação foram formuladas por
vários estudiosos no documento denominado PBA CI (Plano Básico Ambiental
Componente Indígena), que previam debates nas aldeias para definição de atividades e
programas diversos como gestão territorial indígena, defesa do patrimônio material e
imaterial dos povos e o reassentamento dos índios moradores de Altamira e da Volta
Grande do Xingu. 125
Devido ao atraso, por parte do grupo empreendedor, na realização tanto das
ações previstas no PBA quanto naquelas descritas como “condicionantes” 126, iniciou-se
o que ficou conhecido como Plano Emergencial127. O Plano Emergencial teve duração

125
Esses programas foram divididos em quatro eixos: eixo relacional, contendo os programas de
fortalecimento institucional e de comunicação para não indígenas; eixo territorial, contendo os programas
de gestão territorial indígena; eixo econômico cultural, contendo programas como educação escolar
indígena, saúde indígena, atividades produtivas, patrimônio cultural material e imaterial, infraestrutura,
realocação e reassentamento dos índios moradores de Altamira e da Volta Grande do Xingu; e eixo
ambiental contendo o programa de supervisão ambiental do meio físico e biótico. O documento pode ser
encontrado em: https://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/PBA_-revisado_2.pdf .
126
Ficou estabelecido pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e pelo IBAMA (Instituto Brasileiro de
Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis) um conjunto de quarenta condicionantes, que deveriam ser
cumpridas para o andamento da obra e liberação da Licença Prévia e de Instalação. Apesar dessa
determinação, a Licença Prévia Ambiental foi emitida, em 2010, sem que tais condicionantes tivessem
sido cumpridas. Para visualização do quadro das condicionantes:
http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/3.Tabela_de_Condicionantes.pdf .
127
Em sete de dezembro de 2015, o Ministério Público Federal encaminhou uma Ação Civil Pública
denunciando a implantação de Belo Monte como uma ação etnocida do estado brasileiro e da
concessionária Norte Energia. A ação civil encaminhada contou com relatórios feitos por antropólogos,
incluindo os produzidos conjuntamente por mim e por Clarice Cohn, que continham descrições
etnográficas acerca do processo de implantação do Plano Emergencial. Nesse documento, além de

150
de um ano, encerrando-se em setembro de 2012, e consistiu no repasse de itens e
produtos, adquiridos por funcionários da empresa consorciada, a partir de uma lista feita
por cada aldeia e entregue ao funcionário responsável. A entrega da lista era feita
mensalmente no escritório da Norte Energia em Altamira. Após a entrega da lista, ao
funcionário da empresa, os segundos caciques Xikrin, esperavam na cidade até que os
itens da lista fossem adquiridos e eles pudessem leva-los às suas respectivas aldeias. 128
Muitas reuniões decorreram então tanto dos problemas referentes à
implantação e gestão do Plano Emergencial, quanto de discussões sobre a ausência dos
impactos ambientais nos laudos técnicos e dos debates para implantações de ações do
PBA CI. Reunião tornou-se um importante fenômeno durante todo o meu trabalho de
campo e passou a ser parte, de modo intensamente mais frequente, da vida dos Xikrin.
Segundo Cabokinho, na época, segundo cacique da aldeia Bacajá:

Reunião já é um impacto de Belo Monte. Isso de termos de participar das


reuniões já é um impacto ruim. Temos outras coisas para fazer, mas agora
precisamos estar presentes nessas reuniões que nunca resolvem nada.

Impacto, assim, torna-se um termo constantemente acionado nas reflexões dos


Xikrin sobre a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e, na “era dos impactos”
em que vivem, as reuniões assumem um lugar central. Desde meus primeiros
acompanhamentos das reuniões dos Xikrin com membros da Norte Energia na cidade de
Altamira algumas questões tornaram-se importantes e incômodas à minha pesquisa.
Como descrever etnograficamente essas reuniões? Seria prudente, do ponto de vista dos

denunciar o não cumprimento das ações de mitigação, o MPF critica a implantação do Plano Emergencial
como uma ação ilegítima cujos efeitos negativos ainda não foram mensurados por nenhum órgão
competente. Nas palavras do órgão denunciante: “O que ficou vulgarmente conhecido como „Plano
Emergencial‟ foi um caminho à margem das normas do licenciamento, definido longe dos espaços
legítimos de participação e protagonismo indígena, por meio do qual o empreendedor obteve o êxito de,
ao atrair os indígenas aos seus balcões, mantê-los longe dos canteiros de obras de Belo Monte, mesmo
sem cumprir condicionantes indispensáveis. Uma política maciça de pacificação e silenciamento, que se
fez com a utilização dos recursos destinados ao etnodesenvolvimento. E que, dos escritórios da
Eletronorte aos balcões da Norte Energia, rapidamente atingiu a mais remota aldeia do médio Xingu, com
danos nem sequer dimensionados, mas já presentes”. Para acesso ao documento e à notícia da vinculação
da denúncia, ver: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/mpf-denuncia-acao-etnocida-e-pede-
intervencao-judicial-em-belo-monte (acessado em 05 de janeiro de 2016).
128
Importante mencionar que o valor mensal estipulado pela empresa consorciada para a aquisição dos
itens indicados na lista era de trinta mil reais. Entretanto, os Xikrin diziam nunca saberem se haviam ou
não atingido aquele teto e que não conseguiam acompanhar a prestação de contas feita numa planilha de
Excel pelo funcionário da empresa que recolhia a assinatura, ou impressão do dedo polegar com tinta de
carimbo, do responsável de cada aldeia. Esses documentos nunca ficavam com os Xikrin, pois o
funcionário lhes dizia que precisava deles arquivados no escritório da empresa. Além disso, o
combustível gasto para a realização das viagens era retirado do valor desse repasse do Plano Emergencial,
bem como a alimentação na cidade do responsável pela entrega da lista e envio dos itens para a aldeia.

151
esforços argumentativos para a tese, tomar reunião como um ritual, “modelo para
analisar eventos sociais em sentido lato” como propõe Peirano (2002, p. 08) no prefácio
da coleção que organiza? Segundo a autora, rituais são os tipos mais estereotipados,
formalizados e estáveis de eventos e, por isso, menos influenciados por intempéries
acidentais e mais fáceis de serem apreendidos pela observação do antropólogo. Mesmo
considerando a importância desse argumento da autora, a concepção de ritual que
proponho defender aqui, a partir da descrição etnográfica do capítulo dois, está mais
vinculada com outra premissa defendida por Peirano (2002, p. 09): a de que não
compete aos antropólogos definirem previamente o que são rituais, devido à ênfase
necessária sempre destacada na perspectiva etnográfica, de modo que, “ao pesquisador
cabe apenas a sensibilidade de detectar o que são, e quais são, os eventos especiais para
os nativos (sejam “nativos” políticos, o cidadão comum, até cientistas sociais)”. Por
esse motivo, minha intenção passa a ser distanciar reunião de ritual Mẽbêngôkre. Essa
opção procedimental não significa que considero as reuniões como eventos menos
performatizados que os rituais indígenas, mas sim que a reunião é uma das formas
artefatuais da política dos brancos, caracterizada negativamente pelos Xikrin devido à
sua ineficácia. Diferentemente dos rituais de nominação ou iniciação masculina, para os
Xikrin, reunião é uma forma que não persuade da política dos brancos. 129
Importante mencionar que as reuniões dos Xikrin com membros da Norte
Energia na cidade de Altamira eram realizadas segundo algumas formas e
procedimentos definidos pelos organizadores da empresa. O que incluía desde o espaço
utilizado no escritório, o posicionamento dos funcionários e dos Xikrin na sala de
reuniões, a ordem das falas dos componentes da mesa e uso do microfone, a presença de
documentos e até a produção de atas. É, portanto, inegável a presença de certos padrões
e procedimentos desses encontros, que se poderia chamar de seus aspectos ritualísticos.
Entretanto, e apesar desse ritualismo, o que procuro argumentar neste capítulo é que as
reuniões não são (como) rituais Mẽbêngôkre. Não apenas porque diferem deste último
em relação ao modo de sua realização, mas, sobretudo porque não implicam num
engajamento coletivo (dos Xikrin e dos brancos de Belo Monte) para produção de um
fim comum. O engajamento dos Xikrin nas reuniões não é o mesmo tipo de
engajamento dos funcionários da empresa.

129
Agradeço aos pesquisadores vinculados ao LE-E (Laboratório de Experimentações Etnográficas) do
PPGAS UFSCar, pelos comentários e debates da primeira versão do argumento desse capítulo. À Valéria
Macedo agradeço especialmente por me chamar atenção à importância dos regimes de distintividade para
a etnologia ameríndia.

152
Para defender a premissa de que as reuniões com membros da Norte Energia
não são (como) rituais Mẽbêngôkre, o processo descritivo adotado neste capítulo difere
daquele adotado para as descrições dos rituais nas aldeias. Se para os rituais, o método
descritivo relacionou-se com os modos combinados e sincronizados dos engajamentos
das pessoas Xikrin de uma ou mais aldeias para atingirem um mesmo objetivo comum;
para as reuniões, priorizarei o modo de engajamento dos Xikrin e seus pontos de vista,
desconsiderando tanto o comportamento e adesão dos funcionários da empresa
consorciada ou de quaisquer outros brancos presentes. Dito de outro modo, os brancos
só aparecerão na descrição das reuniões na medida em que eles apareciam para os
Xikrin presentes. Os brancos nas reuniões apenas serão tornados visíveis aqui a partir
dos Xikrin, segundo nossas conversas e convívio. Isso significa que a descrição
etnográfica deste capítulo prioriza uma conexão parcial, para usar um conceito de
Strathern (2005), que está fundamentada na minha relação com os Xikrin e que não tem
como objetivo fornecer uma visão global ou totalizadora de um evento.
Além disso, não é objetivo aqui, como já debatido na introdução, apresentar os
detalhes e desdobramentos das batalhas judiciais e documentais que proporcionaram a
130
continuidade de licenciamento da hidrelétrica . Trata-se de destacar a crítica feita
pelos Xikrin em relação à política dos brancos de Belo Monte, especialmente em
relação ao artefato reunião, considerado expediente fundamental desse processo. Dar
destaque ao tratamento crítico dos Xikrin à reunião enquanto uma forma da política dos
brancos relaciona-se ao movimento de pensá-la como artefato da política, um esquema
modelar que se repete, especialmente em relação à sua ineficácia.
Importante considerar que a reunião enquanto artefato da política dos brancos
não engloba os tipos de encontro entre os Xikrin, nas aldeias, para suas conversas e
deliberações diárias no ngàb [casa do guerreiro]. Esse tipo de encontro muito apreciado
por eles, é costumeiramente chamado de aben kaben mari mejx [falar junto para nos
entender] quando “sentam juntos” para reflexões e tomadas de decisões. Nessas
ocasiões, promovem-se ações de transformação no mundo que não compõem o escopo
crítico da ineficácia característico das reuniões com os brancos de Belo Monte.

130
Morawska Vianna (2014b, 2014c) apresenta uma análise sobre a produção de documentos, enquanto
artefatos, nos processos de licenciamento ambiental e a nas etapas de planejamento e execução de UHEs.
Segundo ela, o processo dos vários tipos de geração documental acaba por separar domínios do social e
ambiental, de um lado, e os domínios econômicos de validação dos projetos de outro. Assim, os
documentos voltados aos domínios social e ambiental acabam por ser neutralizados por meio do cálculo,
garantindo a continuidade das obras de infraestrutura do eixo energético do PAC.

153
A quantidade de reuniões que acompanhei ao longo de todas as fases de minha
pesquisa de campo foi realmente numerosa. Muitos eram os motivos que as justificavam
e muito variadas eram as pautas e instituições presentes. Apesar dessa diversidade, a
grande maioria das reuniões, senão todas, relacionava-se de alguma maneira com os
processos de licenciamento e construção de Belo Monte.
Considerando desnecessário e mesmo enfadonho adotar um procedimento
descritivo que contemple cada uma das reuniões ou ainda um procedimento de
descrição realística de uma única reunião, adoto aqui um instrumento antropológico de
escrita que privilegia a descrição de uma reunião fictícia como um evento que trará
131
certos recortes de todas as reuniões que presenciei em campo . Dois motivos
justificavam essa escolha metodológica de descrição.
Primeiro porque os modos de registros realizados por mim em cada uma das
diversas reuniões que acompanhei entre os Xikrin e membros da empresa consorciada
Norte Energia variaram muito. Essa variação decorreu em partes de minha dificuldade
sobre como operar registros naquelas situações. Eu não sabia se filmava ou gravava as
reuniões na íntegra, se anotava apenas as falas que eu considerava importante (dos
Xikrin e/ou dos demais participantes), se me voltava exclusivamente para as falas dos
Xikrin ou se me detinha nas conversas paralelas dos funcionários da empresa que
compunham a mesa, se fotografava algumas cenas, se me detinha nas apresentações de
gráficos e powerpoints pelos funcionários da empresa, ou se me atentava mais para os
momentos de pausa para café, almoço ou jantar. Devido à constante dúvida em relação a
qual modo de registro adotar durante o acompanhamento das reuniões, eu prosseguia
realizando, em cada reunião, todos ou quase todos os modos de registros elencados
acima. Além disso, em várias reuniões eu era incumbida pelos Xikrin da produção de
algum documento a ser encaminhado para os integrantes da mesa ou da leitura de algum
documento apresentado a eles. 132

131
Inspiro aqui na discussão de Deleuze (2013, p.26) sobre a arqueologia de Foucault enquanto um
método que não tem interesse em “contornar as performances verbais para descobrir atrás delas ou sob
sua superfície aparente um elemento oculto, um sentido secreto que se esconde nelas ou aparece através
delas sem dizê-lo”. Uma interessante reflexão sobre o aproveitamento analítico do conceito ficção é
realizada por Biondi (2010) em sua descrição etnográfica de um dia de visita em prisões de domínio do
PCC, do interior paulista, como forma de mobilização da escrita e sistematização dos seus dados de
campo.
132
Essa situação de produção de documentos não se repetia quando estava presente algum membro da
Funai CTL Centro Leste do Pará, da cidade de Altamira. Isso porque a produção de um documento por
um servidor da Funai com anuência da instituição tinha um peso maior no que tange ao processo de
cobrança das mitigações devidas à mesa composta por funcionários da empresa Norte Energia. Essa
estratégia era compartilhada pelos Xikrin e por alguns servidores da Funai de Altamira que de modo tão

154
133
Segundo, e com a intenção de não constranger ainda mais os Xikrin ,
apresentar descritivamente uma reunião não significa que elementos de várias reuniões
serão incorporados sucessivamente como se essa reunião descrita fosse a somatória de
todas as reuniões que eu acompanhei. Diferentemente disso, ao optar por descrever uma
reunião, meu desejo é marcar o seu caráter procedimental, (como diria Foucault) 134, sua
forma de expressão, sua forma de comunicação. Minha sugestão é que a descrição de
uma reunião só é possível porque sua forma de expressão é repetida, reproduzida,
replicada 135.
Assim, reunião é tomada aqui como uma forma que não persuade da política
dos brancos, desde o ponto de vista dos Xikrin. Contrariamente às formas que
persuadem da cultura Mẽbêngôkre [kukràdjà], a reunião não atinge os efeitos esperados
pelos Xikrin. Mesmo considerando a reunião ineficaz, os Xikrin engajam-se nesses
eventos de determinados modos com o intuito de torná-la uma ação que produz
determinados efeitos no mundo. Bem sabem os Xikrin que a reunião pode produzir
muitas ações e realizações como a própria construção do complexo hidrelétrico de Belo
Monte. Entretanto, como notaram, a reunião deles com os membros e funcionários da
Norte Energia tem a ineficácia como caracterização e premissa. Essa ineficácia
característica é entendida como decorrente do alto grau de egoísmo dos brancos de Belo
Monte que é a marca, por sua vez, da política dos brancos. Como notaram os Xikrin, os
brancos de Belo Monte mostraram-se desinteressados em levar em conta seus
posicionamentos, pedidos e demandas. A reunião assume a forma, então, de um espaço
de enunciação das falas dos brancos de Belo Monte, uma fala tortuosa, imprecisa,
confusa e mentirosa.

dedicado engajaram-se nesse duro processo de tentativa de garantir as mitigações devidas e o


reconhecimento dos impactos causados pelo empreendimento. No ano de 2015 houve uma saída em
massa dos servidores daquela localidade regional, em geral, por conta dos processos injustos e
avassaladores causados pelo empreendimento e pela dificuldade de atuação em relação a ele.
133
Alguns textos foram veiculados na imprensa e criticavam os Xikrin como gananciosos. Essa questão
será discutida na conclusão.
134
Um exemplo da reflexão de Foucault sobre o caráter procedimental de mecanismos de controle e
exclusão está na aula inaugural do Collège de France proferida em 2 de dezembro de 1970 em que discute
os modos de operação de certos procedimentos que intentam “conjurar os poderes e os perigos [do
discurso], controlar sua ocorrência aleatória, esquivar-se de sua pesada e temível materialidade” (Foucault
2015, p.11).
135
O que pode remeter o leitor a perguntar se isso não seria suficiente para caracterizar reunião como
ritual. Se se tomarmos o conceito ritual como a performatização máxima de eventos, reunião pode ser
vinculada a ele. Entretanto, para me manter coerente com o exercício de enfatizar a crítica dos Xikrin à
política dos brancos distancio reunião de ritual porque a primeira não implica num processo de
engajamento mútuo e coletivo e sua repetição e réplica só reforçam seu caráter fracassado e ineficaz.

155
Assim, é necessário dizer que se de um lado as reuniões com os brancos de
Belo Monte são improdutivas, do ponto de vista dos Xikrin, de outro, elas produzem um
conjunto de efeitos nefastos como a própria construção da hidrelétrica em seu processo
de licenciamento. Para os Xikrin, no entanto, tais reuniões são improdutivas porque não
promovem as transformações que eles desejam e demandam, diferentemente do que
ocorre na execução dos rituais.
O presente capítulo tem como objetivo, ao descrever o modo de engajamento
dos Xikrin nas reuniões realizadas com os representantes da Norte Energia e outros
setores e instituições da burocracia nacional envolvidos no processo de licenciamento e
construção do empreendimento de Belo Monte, levar a cabo a crítica feita por eles à
forma de realização dessas reuniões. Consideradas ineficazes pelos Xikrin, as reuniões
serão tratadas aqui como formas que não persuadem da política dos brancos. A
ineficácia, característica da forma de realização das reuniões, é um dos principais
atributos da política dos brancos, desde o ponto de vista Xikrin. A reunião como forma
privilegiada da política dos brancos aparece como parte de uma cadeia interminável e
fracassada de eventos: faz-se reunião para escrever documentos, faz-se documentos para
propor reuniões, faz-se reunião para ler os documentos, faz-se documentos para
descrever reuniões. Essa cadeia não promove as ações no mundo desejadas pelos
Xikrin.
Para apresentar a reunião como forma ineficaz da política dos brancos o
capítulo é dividido em três partes. Primeiramente, trata da situação conflituosa que
marcou a ocupação do canteiro de obras do empreendimento pelos índios da região a
fim situar o leitor em alguns dos embates com os membros da empresa consorciada e
realizar uma comparação com as análises de Turner (1991) sobre o encontro de 1989, na
cidade de Altamira que obstruiu a construção das barragens Babaquara e Kararaô. A
segunda parte descreve etnograficamente o modo de engajamento dos Xikrin na
reunião, dando destaque ao modo como eles se apresentavam, como proferiam suas
falas e como agiam para tentar garantir a eficácia do evento. Nessas duas primeiras
partes, o debate sobre os conceitos de eficácia e ineficácia percorrerá a argumentação. A
terceira e última parte, retoma o argumento da reunião como forma que não persuade,
desde o ponto de vista Xikrin, contendo suas críticas às falas tortuosas e mentirosas dos
brancos e a produção de documentos, considerados fajutos. Essa última parte também
apresentará uma discussão acerca da necessidade de se estabelecer, para o argumento

156
defendido na tese, separações e distanciamentos entre o conceito de diferença e de
disputa.

Afastamento entre reunião e ritual

O ano de 2012 foi marcado por uma tensão entre os Xikrin e a Norte Energia,
empresa consorciada para construção de Belo Monte. Indignados com o atraso das
ações de mitigação dos impactos da obra, os Xikrin, juntamente com os demais povos
da região, ocuparam a ensecadeira do Sítio Pimental durante vinte e um dias.
Durante o período da ocupação, uma série contínua de reuniões se desenrolou
entre os Xikrin e membros da empresa consorciada. Essas reuniões tinham como
propósito, segundo a empresa empreendedora, “resolver os problemas referentes às
ações mitigatórias para a continuidade da construção da obra”. A intenção dos Xikrin
era mostrar tornar público o que estava acontecendo com eles: o atraso das mitigações
devidas, o não cumprimento das promessas feitas a eles por alguns representantes da
empresa e o desconhecimento das ações de mitigação e do conteúdo do PBA CI (Plano
Básico Ambiental Componente Indígena). Os Xikrin tinham ainda outra preocupação
relacionada ao futuro alimentar de seus filhos e netos após o barramento do rio Xingu e,
consequentemente, o secamento do rio Bacajá que corta a Terra Indígena.
Ainda no ano de 2012, em março, uma equipe da empresa contratada para
execução do estudo de impacto ambiental da Terra Indígena Xikrin levou às aldeias, em
136
formato de oito banners, o resultado de um ano de realização do estudo . Nessas
apresentações, o engenheiro responsável pela coordenação dos estudos de impacto
ambiental afirmou que a previsão dos Xikrin sobre o secamento do rio Bacajá não
estava correta e não se fundamentava em dados científicos como cálculos de vazão.
Segundo o engenheiro, o secamento do rio Xingu não irá “afetar significativamente a
vida dos Xikrin nas aldeias”. Os Xikrin preocupavam-se não apenas por terem sido
descreditados nas análises da apresentação final dos resultados dos estudos, mas
também por não saberem como seriam as ações de mitigação a serem executadas em
suas aldeias para assegurar a alimentação de seus filhos e netos e a boa qualidade da
água do rio, usadas para banho e para consumo. Certos de que o rio Bacajá irá secar
com o barramento do rio Xingu, os Xikrin defendiam a abertura de estradas para

136
Trata-se dos Estudos Complementares do Rio Bacajá que será discutido no próximo capítulo.

157
conectar as aldeias com a cidade de Altamira, para onde precisam ir quando vão
recolher seus benefícios como aposentadorias e salários maternidade 137.
Se, no ano de 1989, Turner (1991) descreve o Encontro em Altamira138, a partir
da participação dos Mẽbengôkre Kayapó como um ritual baridjumoko do milho novo;
em 2012, as reuniões com membros da política nacional e representantes da empresa
consorciada não tiveram o mesmo alcance ou efeito. Segundo o autor, a associação do
Encontro em Altamira de 1989 como um ritual de iniciação é justificada devido à
participação dos povos Kayapó e à conquista do objetivo por eles desejado com o fim
da continuidade do processo de licenciamento para construção das hidrelétricas Kararaô
e Babaquara. Conforme já descrito pela literatura especializada da etnologia indígena,
os rituais são importantes porque, dentre outras coisas, operam transformações
desejadas como amadurecimento dos corpos dos iniciados, metamorfoses controladas e
temporárias de pessoas em animais, transmissão de nomes e prerrogativas rituais,
celebração da vida em conjunto e visualização de alguns aspectos da cultura ou
conhecimento indígena.
No caso das reuniões com a concessionária Norte Energia, a analogia
aproximativa com ritual é improdutiva porque reunião não promove as ações
transformacionais esperadas e desejadas. Essas reuniões com membros da empresa são
consideradas como kaigo: falsas, inoperantes e improdutivas. Sendo reunião, uma das
formas artefactuais da política dos brancos, ela não pode ser equiparada
comparativamente a um ritual Mẽbêngôkre, cujo desempenho movimenta
transformações desejadas no mundo e, principalmente, são momentos cruciais de
produção e demonstração de beleza e distintividade.

137
A obra de abertura das estradas foi finalizada em 2014. Entretanto, após as primeiras chuvas, suas
condições de trafegabilidade foram seriamente afetadas. Além disso, algumas pontes também não
resistiram ao processo de erosão causado pela derrubada da mata.
138
O famoso encontro de 1989, ocorrido em Altamira, é veiculado como um dos maiores movimentos de
resistência indígena, com participação de ambientalistas e aliados dos indígenas em defesa da floresta e
do rio Xingu. Filmado e fotografado por jornalistas de vários países, o encontro tornou-se referência
mundial de defesa de recursos naturais e direitos indígenas e de arquivamento de um megaprojeto, neste
caso o de construção do polêmico complexo hidrelétrico de Kararaô, hoje Belo Monte. Uma das cenas
mais famosas do encontro é a kayapó Tuíra empenhando seu facão próximo ao rosto de um dos
engenheiros que defendia o empreendimento. Conforme análise de Turner (1991), o encontro de 1989
pode ser descrito como um ritual, associado ao ritual mẽbêngôkre do milho verde, por ter operado
mudanças e transformações desejadas pelos Kayapó na época, já que ele culminou no arquivamento do
projeto de construção da usina hidrelétrica Kararaô. Diferentemente tem ocorrido nas diversas reuniões
que acompanhei entre os Xikrin e representantes da Norte Energia, em que as transformações desejadas
não são concretizadas.

158
Como vimos na descrição do ritual mẽreremejx de nominação, a realização e os
preparativos de uma cerimônia dependem do engajamento de todas as pessoas, que
139
trabalham juntas para a garantia de execução de uma festa bonita e alegre . Esse
engajamento, entretanto, não pode ser exigido nem pelos pais da criança nominada nem
pelos chefes da aldeia. “Participa da festa apenas quem quer porque ninguém é obrigado
a fazer a festa. Mas quando fazemos um mẽreremejx aqui, a aldeia toda participa, todo
mundo gosta”. Mesmo sem haver qualquer tipo de obrigação para a participação das
pessoas na execução de um ritual, a atitude de se negar a compor o conjunto de pessoas,
que se envolve com a cerimônia, seria muito mal vista pelos outros moradores da aldeia.
Negar-se a se engajar na execução das cerimônias repercutiria como um ato egoísta e
individualista, porque implicaria na negação de querer estar junto com as pessoas,
comer e dançar com todos.
As reuniões com representantes da Norte Energia, por sua vez, são marcadas
por conflitos de interesses e disputas entre os brancos presentes, especialmente com
relação à demanda apresentada pelos Xikrin. Não há um engajamento coletivo. Ao
contrário, o interesse dos brancos de Belo Monte difere significativamente do interesse
ou demanda dos Xikrin. Além disso, não há tampouco acordo entre os brancos presentes
na reunião, de modo que situações de embates e conflitos entre servidores da Funai e
Ministério Público com os membros da empresa consorciada, por exemplo, são
recorrentes e entendidas como uma demonstração do egoísmo dos brancos que marcam
suas relações entre si como frágeis e enganosas. A reunião visualiza o conflito de
interesse, o desacordo de opiniões, a incapacidade de viver junto e alegre; ao contrário
do ritual mẽreremejx que visualiza a beleza de viver junto com os parentes e com os
afins, a continuidade das relações de amizade, parentesco e vizinhança, a fala reta e
direta dos guerreiros e chefes e a fala cerimonial continuada e forte que é reiterada por
cada um dos que assumem a posição de narrador, numa constante repetição de forma e
conteúdo.
Tomadas a partir do ritual Mẽbêngôkre de nominação, as reuniões com os
brancos de Belo Monte podem ser consideradas como inoperantes, fraudulentas e
ineficazes. Compor uma analogia constrastiva entre a forma ritual e a forma reunião
permite dar destaque à crítica dos Xikrin à política dos brancos, considerada como uma
cadeia fracassada de eventos.

139
Cf. Fisher (2003), Gordon (2006), Cohn (2005).

159
A eficácia da celebração ritual pode ser atribuída ao modo de engajamento dos
Xikrin para execução da cerimônia: a produção em ato e manutenção dos modos
corretos de estarem juntos. O engajamento de todas as pessoas nas várias etapas do
ritual pode ser pensado como uma visualização do caráter não egoísta do modo de vida
mẽbêngôkre, a valorização do sentimento de alegria por estarem juntos dando
continuidade a certos elementos da cultura [kukràdjà].
O ritual de nominação, por exemplo, é um modo de produção de pessoas e
confirmação de nomes belos. A performance descrita por autores e autoras especialistas
como um espaço mẽbêngôkre de produção de distintividade, marcando a diferença entre
pessoas com nomes belos, reconhecidos cerimonialmente, e pessoas com nomes
comuns, cujos nomes não foram reconhecidos nas cerimônias, destaca também e,
sobretudo, o engajamento coletivo das pessoas das aldeias para a execução do ritual.
Isso porque, a produção de pessoas com nomes belos reconhecidos cerimonialmente
depende do engajamento dos seus parentes, amigos e afins para que o ritual em sua
homenagem ocorra. Assim, a criação da distintividade e da beleza depende da ação
operada por todos. Minha intenção é dar mais foco a esse modo de engajamento, em que
as pessoas se envolvem em uma série de tarefas e atividades das quais depende a
execução de uma cerimônia em oposição às discordâncias e desacordos que pautam o
engajamento das pessoas (dos brancos e dos Xikrin) nas reuniões com a Norte Energia.
A reunião atua como forma oposta do ritual porque o que ela visibiliza é o embate, o
conflito, a disputa de interesse, ou do ponto de vista Xikrin, o egoísmo.
O sentimento de alegria e harmonia que é produzido pelo ritual de nominação
(Fisher, 2001) implica na execução de atividades como produção de alimentos, os
cantos, as danças, o uso dos adornos e enfeites que precisam ser realizadas corretamente
para que o modo correto de estar junto seja celebrado. Entretanto, segundo Strathern
(2014, p. 217), a despeito de quão padronizados possam ser os modos de realização de
um ritual, sua configuração final abre o espaço para o inesperado, e esse é o espaço da
inventividade e da novidade, porque uma performance, tal como uma imagem, não pode
ser prevista até o momento de sua composição. 140 Um ritual como forma que persuade

140
A perspectiva da autora, que é endossada aqui, difere da análise de ritual feita por Levi-Strauss (2007)
em sua famosa analogia entre ritual e jogo, que argumenta que o final de um ritual é conhecido, porque as
pessoas sabem o que esperar de sua realização. É importante destacar que a comparação realizada por ele
entre jogo e ritual não implica uma descrição congelante do ritual, nem toma o ritual como um modelo
estático ou atemporal. Para uma assunção de Levi-Strauss como um autor precursor da guinada pós-
estruturalista na antropologia, especialmente em relação às Mitologias e ao Pensamento Selvagem, ver:
Viveiros de Castro (2015).

160
está aberto a novas possibilidades de composições e arranjos que passam pelo controle
dos Mẽbengôkre e de como eles operam seus modos de conhecimento e
experimentação.
A reunião escapa ao controle dos Xikrin, mas mesmo assim, eles se engajam
nas reuniões de formas específicas marcando sua diferença de ser e estar no mundo em
relação aos brancos presentes. Os Xikrin mostram aos brancos que acompanham as
reuniões com a concessionária Norte Energia, ao menos em parte, o que é ser uma
pessoa Mẽbengôkre, como é ser gente verdadeira, como é saber viver entre os parentes e
amigos, como é uma fala de guerreiro, uma fala reta e forte, não mentirosa, enfim, como
ser um tipo de gente generosa. Ao se engajarem nas reuniões pintados e ornamentados,
entoando seus cantos e danças rituais com suas bordunas, apresentando suas falas
cerimoniais [ben], os Xikrin mostram que não se reconhecem na estética da ineficácia
que marca a política dos brancos, que não se reconhecem como gente que faz política.

Engajamento Mẽbengôkre-Xikrin na reunião

Aí o pessoal começou a arrumar as coisas deles, pegou só farinha e sal, e foi embora.
“Daqui a gente vai caçando, vai encostando e vai caçando, pegando jabuti, matando porcão, e a
gente vai levando, pegando peixe e vai comendo”. Aí o pessoal chegou: “Aí, a gente está
pronto”, “Então pula para dentro da voadeira que a gente vai junto. Nós primeiro, a gente vai
pela frente”. Aí veio vinte guerreiro só. Aí quando deu dia 19, às nove horas da manhã, o
pessoal invadiu tudo lá, aí tinha branco correndo para todo lado, pessoal pedindo para não
morrer. “A gente não veio matar ninguém, a gente veio atrás do nosso direito. Que o chefe de
vocês não estão cumprindo, estão passando por cima, não estão ouvindo a gente”

Mukukua, debate realizado na 28ª RBA. In: Atual, o último jornal da terra, n.02, dez
de 2013.

No presente tópico apresento o modo de engajamento dos Mẽbengôkre-Xikrin


numa reunião, com o intuito de elicitar suas considerações negativas desse fenômeno,
tratado aqui como artefato da política dos brancos. Quando os Xikrin se propõem a falar
numa reunião com os brancos, fazem-nos de algumas maneiras específicas. A principal

161
caraterística desse conjunto de modos é a relação entre fala e visibilidade. Ao
pronunciarem suas falas, os Xikrin dão destaque a um modo específico de se mostrar e,
sobretudo, querendo ser vistos de certo modo.
Assim, apresento os modos de engajamento Xikrin na reunião com o intuito de
defender que tais engajamentos têm como objetivo mostrar aos brancos o modo de
existência Mẽbêngôkre a partir de alguns elementos do conjunto de práticas e
conhecimentos de sua cultura, kukràdjà.
Nos casos de reuniões em que os Xikrin precisam deslocar-se para um local
definido na cidade de Altamira, o modo de divisão de pessoas nas embarcações ou
automóveis respeita relações de parentesco e moradia. Dessa maneira, homens e
mulheres de determinadas aldeias costumam ocupar os mesmos veículos de transporte,
respeitando os contatos mais efetivos de convivência e levando em conta relações de
parentesco e proximidade de aldeias. Essa divisão mostra que mesmo reconhecendo-se
como um único povo ou coletivo, os Xikrin destacam a importância de suas opções de
habitações nas respectivas aldeias, bem como suas vinculações entre parentes
consanguíneos e afins. Esse modo de posicionamento das pessoas indica, segundo meu
entendimento, que é preciso respeitar as formações habitacionais como modo correto de
viver entre os seus parentes.
Uma das primeiras exigências dos Xikrin para sua participação numa reunião é
a presença de pessoas que ocupem altos cargos de chefia como o presidente da
concessionária Norte Energia, a presidenta da república e presidência da Funai. “Só
faremos reunião com os benadjure [chefes]141 de vocês. Nós estamos aqui com nossos
benadjure [chefes] e só vamos fazer reunião se vocês também trouxerem os seus
benadjure [chefes]”. A demanda dos Xikrin pela presença dos chefes envolvidos com a
construção de Belo Monte, ou como eles dizem: os donos de Belo Monte, foi-me
141
Etimologicamente, o termo benadjwore pode ser traduzido como o dono da fala ben, fala cerimonial
masculina [ben: tipo de fala masculina cerimonial; djwoj: dono, verdadeiro]. O conceito mẽbêngôkre de
chefia passa pela imagem do chefe como aquele que é o verdadeiro dono da fala cerimonial masculina. O
debate sobre chefia remonta um amplo debate entre os autores da etnologia indígena. Para os
Mẽbengôkre, os chefes devem ser generosos e não acumular coisas nem reter riquezas, eles devem
exercer um tipo de chefia sem poder como sugere Clastres (2003 [1974]) que associa essa característica
como uma máquina primitiva para evitar a erupção do Estado. A consolidação da capacidade de um
homem em assumir uma posição de chefia depende tanto da relação dos membros de sua casa com essa
posição quanto do engajamento de suas avós e avôs durante sua infância. Atualmente nas aldeias da Terra
Indígena Trincheira-Bacajá, existem duas posições de chefia: o primeiro cacique e o segundo cacique. O
primeiro cacique deve voltar-se para as questões internas da aldeia como a realização dos rituais e
manutenção da boa convivência entre as pessoas, evitando fofocas, roubos e discussões. O segundo
cacique deve estar atento às questões das relações com os brancos, como um tipo de diplomata das
relações exteriores. Cabe ao segundo cacique, por exemplo, garantir o fluxo de bens industriais e dinheiro
para a aldeia.

162
justificada porque, segundo eles, nas reuniões em que os chefes não estão presentes, os
brancos prometem e não cumprem suas promessas depois. Os Xikrin esperam que a
presença do presidente da empresa Norte Energia e da presidente da República garanta
que suas demandas fossem ouvidas e cumpridas. Segundo os Xikrin, em reuniões que
não contam com a presença de pessoas que ocupam os cargos de chefia, escrevem-se
documentos que não chegam ao conhecimento daquelas pessoas que ocupam essas
posições. Nesse sentido, quando não há a presença dos chefes dos altos cargos políticos
e empresariais, as reuniões são ainda mais ineficazes porque produzem documentos que
não garantem nada sendo comum os Xikrin negarem-se a participar desses eventos.
Os homens, antes de chegarem ao local definido para reunião, são pintados
pelas mulheres. No caso da ocupação do canteiro de Belo Monte, por exemplo, devido à
presença reduzida de mulheres em relação aos homens, o procedimento de aplicação das
pinturas seguiu determinadas relações de relações de consanguinidade, afinidade e
moradia. Um homem que não estivesse com sua mãe, esposa ou irmã presente era
pintado por alguma mulher co-residente de sua aldeia, preferencialmente com aquela
com quem mantem relações de afinidade. Assim, os Xikrin apresentam-se, para a
reunião, ornamentados: com pinturas de jenipapo e urucum, uso dos adornos de penas e
miçangas, sem camisas, carregando consigo suas bordunas ou arcos e flechas.
Importante frisar que todos os homens são pintados para as reuniões, mesmo aqueles
cujas esposas não estão presentes, ou, no caso dos mais jovens, quando nem suas mães
ou irmãs estejam presentes. As mulheres presentes responsabilizam-se respectivamente
pelas pinturas e ornamentação dos homens mais próximos de si, segundo uma série de
cálculos de parentesco que articula a decisão de qual mulher deve assumir a pintura de
tal ou qual homem. Ser um afim ou um morador da mesma aldeia conta como índice do
cálculo, e assim algumas mulheres precisam pintar muito mais homens do que outras.
Ainda dentro dos veículos de transporte, os homens Xikrin começam a cantar
músicas de guerra levantando suas bordunas e seus arcos e flechas. Eles desembarcam
entoando os cantos e realizando um metoro [dança/voo] de guerra na rua, normalmente
em frente da Casa do Índio. Os transeuntes que passam pelo local e jornalistas que
acompanham a movimentação sempre fotografam e filmam a performance dos Xikrin.
As músicas entoadas durante a entrada dos homens Xikrin na sala da reunião
são escolhidas pelos chefes e guerreiros velhos, sendo ensaiadas anteriormente. Cada
cacique antigo pode indicar uma música, que ele pode ter aprendido ou inventado em

163
outra situação como no caso de caçadas e de expedições de guerra ou que ele detenha a
prerrogativa ritual de seu uso.
Os homens cantam as canções em uníssono num tom de voz grave intercalando
a letra da canção com gritos sequenciados. Essa técnica de intercalação da letra da
música com os gritos é usada também na execução dos rituais Xikrin, especialmente
quando os cantos são de entoação dos homens. Os gritos, segundo explicaram, são
importante nos cantos dos homens Mẽbêngôkre porque:

Ao mesmo que servem para assustar os inimigos, servem para mostrar às


mulheres que a expedição de caça ou de guerra ocorreu com sucesso, que o
inimigo está morto ou que a caça está sendo trazida para a aldeia.

Essas canções dizem sobre como os Mẽbengôkre são fortes, que não são fracos
e como sabem das coisas, devido à força e beleza de seu conhecimento [kukràdjà].
Percebi algumas repetições de músicas entoadas pelos homens Xikrin enquanto
adentram na reunião e músicas cantadas durante a preparação do ritual da quebra de
marimbondo [amỳta] e ritual de nominação mereremejx. Certa vez, pedi ajuda para a
tradução de alguns desses cantos a um dos homens jovens que realiza a tradução da
reunião. Ele disse que só os velhos é que sabem as músicas e que elas não são cantadas
para serem traduzidas para o português, que elas devem ser cantadas na língua
Mẽbêngôkre e mantidas assim. O jovem explicou que essas músicas são mais difíceis de
traduzir do que as narrativas míticas contadas pelos homens mais velhos. 142
A entrada dos homens Xikrin na salda de reuniões respeita categorias de idade
e posições de chefia: os chefes antigos ocupam as primeiras posições na fila da dança,
os guerreiros velhos as posições posteriores, seguidos pelos chefes e guerreiros atuais.
As músicas entoadas e passos de dança escolhidos são coordenados e puxados [ben dji]
por homens velhos para mostrar a todos a dança verdadeira [mẽ akre djowoj] e fazer
com que todos vejam como se faz (a dança) corretamente [mẽ omujn djwoj]. Essa
performance dos homens Xikrin na sala de reunião é realmente impressionante. As
vozes entoadas repetidamente, o som do maracá e os gritos sequenciados tomam o
auditório da empresa Norte Energia, provocando nos homens da empresa, já presentes
no recinto, expressões faciais que esboçam um misto de pavor e encantamento.

142
Para uma reflexão sobre os processos de tradução de músicas cantadas em língua indígena,
especificamente sobre a poética oral kuikuro, ver: Francheto (1989).

164
Ao adentrarem no recinto da reunião os homens Xikrin caminham até o espaço
entre a mesa e as cadeiras da plateia e realizam mais um canto e dança circular
levantando suas bordunas e girando coreograficamente como se desenhassem um meio
círculo, sem completarem uma volta circular inteiramente. Terminam a dança e o canto
com os gritos levantando as bordunas para o alto e são aplaudidos pelos brancos
presentes no auditório.
Após sua performance, os Xikrin acomodam-se nas cadeiras enfileiradas da
plateia. Nas fileiras mais próximas da mesa retangular frontal, ocupada pelos
representantes da empresa, sentam-se os homens mais velhos, os chefes antigos. Atrás
da fileira de cadeiras ocupadas pelos chefes antigos, sentam-se os guerreiros antigos e
os chefes atuais. Na porção mais distante da mesa frontal, colocam-se os guerreiros
atuais. As equipes de jornalistas organizam-se nas laterais do espaço entre a mesa
frontal e as cadeiras da plateia.
A porta de entrada da sala de reuniões é controlada por um grupo numeroso de
servidores da polícia federal para impedir a presença de “gente curiosa” no recinto. Em
uma dessas reuniões, um dos policiais disse-me, ao barrar minha entrada, que “na
reunião só podem entrar os índios e o pessoal autorizado da Funai”. Graças à
intervenção de Mukuka, guerreiro da aldeia Pot-Kro, que solicitou a autorização de
minha entrada, consegui acompanhar a reunião.
O primeiro a falar é algum membro da mesa, aquele ou aquela que possua o
mais alto cargo de chefia. A primeira fala do chefe da empresa, alguém que ocupe a
posição da presidência ou está diretamente relacionado a ela, normalmente comporta a
seguinte expressão: “Estou muito feliz em estar aqui para poder ouvir o que os senhores
têm a dizer para nós da empresa. E faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para
atender suas demandas”.
Os chefes antigos falam em seguida. As falas de chefes, tanto antigos quanto
atuais, são as falas cerimoniais [ben] que são realizadas segundo certo padrão rítmico de
entoação grave da voz, algumas expressões de início e final repetidas por todos, e mais
importante, é um tipo de fala que não supõe uma abertura ao diálogo e não exige
resposta do ouvinte. Essas falas de chefe e mesmo de guerreiros quando entoadas, não
podem ser interrompidas pelos ouvintes, elas devem iniciadas e terminadas por seu
narrador numa espécie de monólogo. Na sala de reuniões da Norte Energia, os chefes
antigos [benadjure tum] tomam a palavra.

165
Bom dia. Meu nome é Tedjore Xikrin, sou chefe antigo da aldeia Bacajá e
moro na aldeia Mrotidjam. Nós mebengokre queremos falar o que está
acontecendo conosco nas nossas aldeias. A obra da usina de Belo Monte está
muito adiantada e nós estamos preocupados porque a empresa ainda não
cumpriu nada do que prometeu para gente. Estamos aqui para defender
nossos direitos, nossa vida e da vida dos nossos filhos e netos. Não queremos
mais ser enganados. Vamos falar aqui para todo mundo ouvir o que temos a
dizer. Saímos de nossas casas, das nossas aldeias e já estamos há muito
tempo ocupando o canteiro. Fizemos isso para garantir a vida dos nossos
filhos dos nossos netos. É isso que eu queria falar.

Bom dia. Meu nome é Bep Tok Xikrin, sou chefe antigo da aldeia Bacajá e
moro na aldeia Pytako. Meu filho hoje é chefe da aldeia Pytako. Estamos
com medo do que vai acontecer com a gente depois da barragem. Porque,
nosso rio vai secar depois que barrarem o Xingu e até agora não existe
nenhuma garantia para nós. O que iremos comer? Os peixes vão morrer, as
caças vão embora para longe. Como iremos fazer? Vamos deixar nossos
filhos morrerem? Se continuar assim, nós povo Mebengokre iremos acabar.
Muitos povos indígenas já acabaram. Mas nós vamos lutar. Vamos lutar
pelos nossos direitos e nossas vidas, vamos lutar pela vida dos filhos e dos
netos. É isso que eu queria falar.

Estou falando agora para você [referindo-se diretamente ao presidente da


Norte Energia]. Vocês precisam cumprir o que está no papel [aponta para um
documento sobre a mesa]. Vocês precisam cumprir todas as coisas que
prometeram. Veja, preste atenção no que eu estou te falando. Vocês
precisam começar a fazer as coisas que prometeram: as casas, as estradas,
todas as coisas que vocês já prometeram. Vocês precisam se juntar a
começar a fazer as coisas direito. As coisas erradas precisam parar de
acontecer, as coisas erradas precisam ir embora. Nós queremos o trabalho
certo. Não queremos mais que vocês se escondam nos papéis. Assim eu falo.
Minha fala é só uma. É isso que eu queria falar. 143

E assim seguidamente, cada um reforçando a fala do outro. As falas são


realizadas exclusivamente em Mẽbêngôkre kaben ou mẽkaben [língua mẽbêngôkre] e
traduzida por algum jovem Mẽbêngôkre considerado bem versado em falar o português.
Pude observar que o uso corrente da língua Mẽbêngôkre pelos Xikrin na reunião
implica numa espécie de vantagem comunicativa porque os brancos presentes que não
entendem a língua indígena.
Para os Xikrin, a fala, a língua kaben mejx [falar bem, falar com beleza, falar
corretamente] são de extrema importância e saber utilizar os modos corretos de
comunicação é sinal de humanidade verdadeira. Os estrangeiros [kubẽn], mesmo
quando se tratam de outros grupos indígenas ou seres míticos antropozoomórficos, são

143
Essa fala foi também realizada por Tedjore e registro fotográfico desse momento é imagem que está na
capa desta tese.

166
marcados pela incapacidade de se comunicarem corretamente, tanto com relação à
língua e o modo como a utilizam, como com a maneira de se relacionarem entre si e/ou
com o mundo. Em suas narrativas míticas, os Xikrin em vários momentos refletem
sobre a perda da humanidade de determinados seres devido ao modo incorreto de sua
comunicação, especialmente em relação aos parentes. Uma dessas narrativas, referida
no capítulo dois, versa sobre a transformação de uma avó em porco do mato após ter se
negado a alimentar o neto.
O engajamento dos brancos em aprender a língua Mẽbêngôkre é tido, pelos
Xikrin, como um classificador dos tipos de brancos com quem se relacionam. Segundo
me disseram, os brancos que se interessam pela língua Mẽbêngôkre e pela “cultura do
índio” [mẽbêngôkre nho kukràdjà] são aqueles que “gostam do índio e querem trabalhar
para o índio” como é o caso de antropólogos, sertanistas antigos da região, antigos
chefes de posto da Funai, alguns homens e mulheres regionais que se casaram com
algum Mẽbêngôkre da TITB ou que residem em alguma aldeia. Os brancos que não se
interessam pela língua Mẽbêngôkre e não a aprendem são considerados como os que
não gostam dos índios, não querem saber dos índios e não se importam com os índios
como é o caso dos engenheiros, responsáveis pelos Estudos Complementares do Rio
Bacajá, e os representantes da Norte Energia, alguns servidores da Funai que, mesmo
trabalhando com eles “nunca aprendem a falar”, alguns professores e técnicos de
enfermagem, que mesmo passando meses seguidos nas aldeias não aprendem a falar
nada, não querem conviver com os Xikrin e ficam só nas suas casas.
Esse sistema de classificação dos brancos, a partir do modo de como eles
devem se relacionar com os Xikrin, em sendo absolutamente pertinente com seus modos
de se relacionar com o mundo, promove algumas classificações peculiares. Madeireiros
e garimpeiros da região que circulavam (e que ainda circulam) por aquelas matas
próximas às aldeias e que conhecem os Xikrin desde muito tempo, por exemplo, podem
ser classificados como o tipo de branco que “gosta do índio e se importa com o índio”
porque sempre levam presentes para os velhos quando vão à aldeia e falam alguma
coisa da língua mẽbêngôkre e “trabalham há bastante tempo para os índios”.
Assim, como explicou Irekà, no capítulo um, para que os brancos possam
inserir-se de modo eficaz e permanente nos modos corretos de viver com e como os
Mẽbengôkre é preciso que abandonem seus modos de vida e suas cidades e passem a
compartilhar a vida, os alimentos, as falas, o cotidiano segundo os princípios da cultura
desses grupos [kukràdjà]. Mesmo sendo raros os casos em que esse movimento de

167
transformação é realizado, os brancos não são considerados pelos Xikrin como um
único tipo de pessoa definido por um único critério de classificação. Os brancos são
pessoas cuja existência está pautada por ações egoístas do ancestral Mebêngôkre, mas
existem brancos mais egoístas que outros. De modo que, para os Xikrin, aqueles
brancos que se interessam em aprender e conhecer o modo de existência Mebêngôkre e
a língua Mẽbêngôkre [mẽkaben] são um pouco menos egoístas que aqueles que não se
interessam.
As falas dos Xikrin obedecem a um regime da boa oratória [kaben tojx, kaben
pudjy], traduzida como fala forte ou fala dura e única, que segue uma ordem de
apresentação, iniciada pelos caciques antigos [benadjuro tum], passando pelos dois
caciques atuais e terminando com os guerreiros presentes. Essa ordenação é seguida
pelos membros de todas as aldeias. Assim, os caciques antigos de todas as aldeias são os
primeiros a falar, seguidos dos caciques atuais e dos guerreiros. Cada um deles, ao falar,
reitera a mensagem iniciada pela fala inicial, não apresentando discordâncias.
O espaço de discordâncias e debates ocorre sem a presença dos brancos na
reunião. Assim, após a apresentação das falas dos Xikrin e resposta dos membros da
mesa presentes, os Xikrin pedem para que todos os brancos se retirem para que eles
conversem sobre o que foi dito. Nesses momentos, a imprensa, quando presente,
também é convidada e se retirar. Quando apenas entre si, os Xikrin discutem suas
opiniões, apresentam suas posições e as divergências são apresentadas e negociadas.
Após se darem por satisfeitos, os Xikrin chamam novamente os kubẽn a voltarem para o
espaço da reunião e seguem novamente uma sequência de falas que reiteram umas às
outras, não explicitando suas divergências.
Mesmo quando na presença dos brancos, os Xikrin falam em Mẽbengôkre,
contando com o auxílio de tradutores, que em geral são jovens que sabem ler e escrever.
A opção em usar a língua nativa não se associa apenas ao fato de os mais velhos
entenderem pouco o português, mas também é uma afirmação de sua cultura [kukràdjà],
marcando as diferenças entre eles e os kubẽn que compõem a reunião.
Os processos de tradução, entretanto, não ocorrem sem problemas. As
traduções operadas pelos jovens podem ser alvo de críticas entre os Xikrin, que às vezes
podem classificá-las como incorretas ou falsas. A própria posição do tradutor pode
também ser alvo de críticas e especulações, sendo às vezes acusado de impor suas
posições e explicar errado o que se está sendo dito na reunião. Muitos foram os jovens
que ocuparam essa posição de tradutor nas reuniões, mas nenhum deles foi considerado

168
144
plenamente satisfatório em sua tarefa . A situação é complicada porque, além dos
problemas convencionais associados a quaisquer procedimentos de tradução, segundo
me relatou um dos jovens tradutores:

É muito complicado isso. Porque muitos não querem essa tarefa de


traduzir a reunião. Ao mesmo tempo, não temos como negar quando
um cacique, antigo ou atual, nos faz esse pedido. Então aceitamos
mesmo a contragosto, porque sabemos que depois seremos criticados
por não termos feito direito.

O problema enfrentado pelos Xikrin com a questão da tradução não é


explicitado na presença dos brancos da reunião. As discussões sobre a validade da
tradução, que pude presenciar, são feitas sempre longe do espaço da reunião ou quando
não há a presença de kubẽn.
Um dos tradutores, certa vez, disse aos kubẽn, na reunião, que os caciques
antigos aceitavam a proposta de aguardarem a deliberação da empresa em relação aos
pedidos feitos nas aldeias. Os Xikrin explicaram-me que essa tradução estava errada
mas por ter sido transmita aos brancos, então eles deveriam voltar para as aldeias e
aguardar. Perguntei por que eles não corrigiram a tradução durante a reunião.
Explicaram que não devem questionar ou duvidar da fala de um parente na frente dos
kubẽn, porque se fizessem isso, eles pareceriam um tipo de gente mentirosa e confusa.

Somos mẽbêngôkre e precisamos respeitar a fala dos nossos parentes,


temos que falar junto, não podemos ficar duvidando um do outro.
Nossa fala deve ser reta e direta. Os kubẽn é que falam tudo confuso e
ficam brigando entre si na reunião. Os Mẽbengôkre não são assim.

Além da questão da tradução, outro problema enfrentado pelos Xikrin com a


tendência de jovens serem os escolhidos como tradutores é que se, por um lado, são eles
os que melhor entendem o português, por outro, eles não tem legitimidade de ocupar
posições de lideranças e não estão aptos a falarem nos espaços cerimoniais 145. Ao terem
de desrespeitar seu sistema de classificação etária e a relação dele com assunção de

144
O debate sobre categorias de idade, bem como os embates e conflitos delas recorrentes é tema de
muitos autores da bibliografia especializada entre os povos Mebêngôkre. O tema aparece especialmente
em Verswjver (1992).
145
Beltrame (2013) mostra em sua etnografia entre os Xikrin da aldeia Mrotidjam que os adultos, mesmo
tendo frequentado a escola na aldeia, recusam-se a falar ou mostrar o que aprenderam naquele espaço
porque esse aprendizado deve permanecer como característico do tempo em que eram crianças. Essa
descrição concorda com análise de Cohn (2000, p. 120) de que existem momentos certos para
demonstração de tipos específicos do kukràdjà [conhecimentos] e que a antecipação desses momentos
significa envelhecer precocemente.

169
posição de chefia e oratória, os Xikrin acabam por lidar com situações inusitadas que
podem levar a um movimento geral de deslegitimação desses jovens e o cancelamento
de sua futura posição de chefia, ou ainda, um processo de isolamento social bastante
doloroso e sofrido 146.
Assim, a participação dos Xikrin na reunião, apesar de suas constantes críticas
à ineficácia inerente ao seu formato, não ocorre de forma leviana. Os Xikrin participam
das reuniões de maneiras específicas, maneiras pelas quais objetivam mostrarem-se
enquanto gente Mẽbêngôkre, enquanto guerreiros, enquanto uma gente que possui
etiquetas de oratória, ornamentação adequada, realizando danças e entoando cantos, tal
como em uma expedição de guerra (Cohn, 2005b).
A principal crítica dos Xikrin à reunião relaciona-se com o comportamento e
adesão dos brancos marcados pela disputa e por conflitos de interesses. Diferentemente
dos Xikrin que se engajam na reunião reiterando suas falas e se apresentando como um
coletivo não discordante, os brancos envolvidos na reunião, ao contrário, apresentam-se
como discordantes, tanto entre si quanto em relação aos Xikrin. As posições
discordantes dos brancos apresentadas nas reuniões, são tomadas aqui como um anti-
climax em contraste com o modo como os Xikrin se engajam, como um grupo de
pessoas que falam junto e falam reto, que vivem a “era dos impactos”, querem as
mesmas coisas e que se envolvem para fazer com que suas demandas se realizem. Esse
modo de engajamento é o modo como os Xikrin se articulam para a realização de suas
cerimônias rituais, cuja execução depende desse tipo de engajamento coletivo e
sincronizado para obtenção dos mesmos fins.
As posições discordantes dos brancos nas reuniões são marcadas em geral
segundo as relações destes com determinadas instituições que acompanham o processo
de licenciamento de Belo Monte. Comumente, as instituições presentes nas reuniões
são: Presidência da Norte Energia, Secretaria Geral da Presidência da República,
Presidência da Funai, Coordenação Geral da CGGAM Funai (Coordenação Geral de
Gestão Ambiental), representantes da área socioambiental da Norte Energia, direção
institucional da Norte Energia, responsáveis pelo Componente Indígena da Norte
Energia.
Os desentendimentos dos brancos são explicitados, como no exemplo abaixo,
com a fala do presidente da Norte Energia dirigida aos Xikrin:

146
Lea (2012) descreve esse processo de isolamento social realizado pelo grupo de uma aldeia em relação
a uma pessoa como algo equivalente à morte social do sujeito, devendo este mudar-se.

170
Vocês estão pedindo a abertura das estradas. Nós da empresa já prometemos
que queremos fazer as estradas que os senhores solicitam. Mas para isso,
precisamos que a Funai nos dê autorização para darmos início à obra. Sem a
autorização da Funai, a Norte Energia não pode fazer as estradas que os
senhores pedem.

Em resposta, a coordenação da CGGAM anuncia:

Pessoal, a Funai não está impedindo o início da obra para a abertura das
estradas. A Funai não é contra a abertura das estradas. Mas para que a Funai
libere a autorização para o começo das obras das estradas é preciso que a
Norte Energia encaminhe o projeto de abertura das estradas. Nesse projeto,
precisa ter o desenho exato dessas estradas, quais empresas irão realizar o
serviço, quantas máquinas serão utilizadas, quantos trabalhadores irão
participar disso e prever a construção de alojamento para esses trabalhadores
para eles não ficarem nas aldeias. Se for preciso derrubar áreas de floresta
para abrir alguma estrada, então quem precisa dar a autorização para a
abertura das estradas é também o Ibama. O documento do projeto das
estradas deve ser encaminhado também para o Ibama.

Frente ao desacordo apresentado pelos brancos na reunião, Mukuka manifesta


sua reflexão:

É desse jeito que as coisas estão acontecendo. Quando se trata de realizar as


obras para os índios, nas aldeias, então é preciso um meio mundo de papel e
mais um monte de reunião e nunca sai nada, nada começa. Agora, para fazer
Belo Monte é fácil demais. Nós estamos lá acampados na ensecadeira, em
cima do rio Xingu. A obra de Belo Monte não está parada, está bem
adiantada. Estamos lá onde, até esses dias atrás, o rio Xingu corria. Agora
tem um paredão lá. Todos podem ver, está lá. Enquanto isso, nós não temos
nada, ninguém fez nada para nós e o nosso rio Bacajá vai secar por causa da
hidrelétrica. A Funai e a Norte Energia ficam brigando, jogando a culpa um
pro outro quando se trata de fazer as coisas nas aldeias. Agora tenho certeza
que para fazer Belo Monte ninguém brigou não, porque a obra está muito
adiantada e os papéis não atrapalharam em nada a construção da obra.

Outro aspecto criticado pelos Xikrin em relação à forma da reunião é a


excessiva produção de documentos na forma de papéis que são entregues aos caciques
de cada aldeia. Esses papéis são considerados como provas das falsas promessas feitas
pelo empreendedor, como um artefato que testemunha as mentiras enunciadas pelos
brancos, mas que não tem agência porque não produz ações. Os papéis, desde o ponto
de vista Xikrin, só produzem mais papéis ou mais reunião e nada acontece. Os papéis só
servem para promover ações que interessam aos brancos de Belo Monte, e não servem
quando se trata de ações mitigatórias para os povos indígenas.

171
A entrega de um documento produzido pelos representantes da Norte Energia
com uma cronologia de execução das ações de mitigação gerou um descontentamento
geral entre os Xikrin.

Não queremos mais papel. Quem gosta de papel são vocês. Não queremos
mais papel nenhum. Esses papéis não dizem nada, não garantem nada. Nós
não precisamos de papel porque temos nossa palavra, nossa fala. Nós
fazemos aquilo que falamos e não precisamos de papel nenhum para isso.
Não queremos mais papéis. Nós queremos ouvir a palavra de vocês, palavra
de verdade, essa é a garantia que queremos. Queremos que vocês se
comprometam a cumprir com as suas promessas.

Com o papel nas mãos, o presidente da empresa disse: “Os senhores estão
certos. Então eu digo aos senhores que estou aqui dando minha palavra”. Os Xikrin
sentiram-se então satisfeitos com o desfecho da reunião, especialmente porque o
presidente havia dado sua palavra de que as coisas agora iriam acontecer para as
melhorias demandadas. E com isso, resolveram voltar para as aldeias. Nem um mês
depois do ocorrido, chegou às aldeias, via rádio, a notícia de que o então presidente da
empresa havia sido demitido do cargo. A repercussão da notícia entre os Xikrin foi de
espanto e incompreensão: “Não pode ser, ele [o presidente] deu sua palavra, ele não
pode ter saído. Acho que estão mentindo para nós”. Uma nova viagem de guerreiros
para Altamira foi organizada, para que eles soubessem melhor o que estava
acontecendo. Por fim, descobriram que nada lhes estava assegurado e que a palavra do
então presidente não valia mais nada, segundo as explicações dos representantes da
empresa, devido à sua demissão do cargo.

Reunião: forma que não persuade da política dos brancos

O modo de engajamento dos Xikrin na reunião foi destacado acima com o


intuito de mostrar ao leitor o modo como os Xikrin se apresentam para os brancos de
Belo Monte e como tentam tornarem visíveis seus modos de existência e suas visões de
mundo. Agora, farei uma apreciação mais indicativa dos aspectos ou pontos criticados
da reunião, artefato ineficaz da política dos brancos, para retornar aos distanciamentos
entre os conceitos de diferença e distintividade versus disputa, conflito de interesse e
homogeneização da diferença.

172
A primeira assertiva defendida é que reunião não é (como) um ritual
mẽbêngôkre. Isso porque para que um ritual mẽbêngôkre se realize é preciso que todos
os participantes da performance engajem-se sincronicamente em uma série de atividades
comuns com um ou mais objetivos compartilhados como a produção de beleza e
distintividade das crianças nominadas, a celebração da vida entre parentes vivos, a
alegria de se estar junto, a transformação dos corpos, a visibilização das relações de
parentesco e amizade formal. Na reunião, o modo de engajamento das pessoas ocorre
por meio da disputa e dos conflitos de interesses, não há um objetivo compartilhado
sequer entre os brancos que participam dela. Não há tampouco qualquer
compartilhamento de objetivo entre os Xikrin e os brancos na reunião que, ao elicitarem
a disputa dos seus interesses, acabam por promover ações políticas homogeneizadoras
de supressão dos modos de existência outros, como os Xikrin. Essas ações diruptivas
dos brancos na reunião geram justamente a supressão da diferença, movimento oposto
ao propiciado pelo funcionamento e operação do kukràdjà, cultura dos Mẽbengôkre, de
valorização e produção da diferença, distintividade e beleza.
A segunda assertiva é que o modo de engajamento Xikrin na reunião
corresponde a um dos aspectos mais conhecidos desses povos e por eles constantemente
acionados: sua imagem enquanto povo guerreiro. Desse modo, o tipo de engajamento
Xikrin na reunião corresponde à análise de Cohn & Sztutman (2003) sobre a
continuidade ontológica da guerra entre os povos ameríndios por outros meios como
ações referentes ao contato com certos setores da burocracia de estado. Se reunião é
guerra por outros meios, como argumentam os autores, os Xikrin engajam-se enquanto
guerreiros nesses eventos com intuito de capturarem qualidades, capacidades, objetos e
recursos financeiros, mantendo ativo seu modo de produção de pessoas mẽbêngôkre,
kukràdjà.
As falas dos brancos, confusas, tortuosas e concorrentes comparada
negativamente pelos Xikrin em relação às suas falas retas, corretas, verdadeiras e
congruentes ocupa a terceira assertiva. Os brancos ao realizarem esse tipo de fala
mentirosa e discordante passam a assumir uma condição muito negativa, que contraria
os atributos necessários para se assumir a posição de um parente, uma pessoa, um ser
dotado de condição humana.
Além dessa crítica em relação à fala dos brancos, os Xikrin questionam ainda a
relação entre as falas e a produção de papel decorrente da reunião. Se os papéis nada
garantem, como veremos no próximo capítulo, as falas acabam também assumindo essa

173
incapacidade de ação, não produzindo os efeitos enunciados e caracterizando a
existência dos brancos como gente mentirosa.

174
CAPÍTULO 6. DOCUMENTO

E a Funai deu parecer para construir Belo Monte. Depois que nós fomos saber, que a
gente foi ver o papel, que isso já era oitiva. Que a gente vinha questionando a justiça, levando
procurador para nossa aldeia, levando e nada, não foi cumprida. Está na justiça, e ninguém sabe
onde está esse documento. [...] Prometeram tanta coisa, e a gente acreditou. [...] A gente avisou.
Para o presidente da Casa Civil, a gente falou: “Se vocês não cumprirem o que estão falando, a
gente vai ocupar lá”. “Não mais não pode fazer isso”. “A gente pode, a gente pode. Quem não
pode é vocês”, falei bem assim.

Mukuka, trecho de entrevista realizada durante a 28ª Reunião Brasileira de


Antropologia. In: Atual, o último jornal da terra, n.02, dez de 2013.

Como venho argumentando ao longo dos capítulos, os Xikrin consideram-se


como pessoas que possuem uma única fala [kaben pudjy], correta e verdadeira [kaben
mejx kumrejx]. Eles costumam opor essa caraterística de seu modo de existência à fala
dos brancos, especialmente aqueles relacionados com a hidrelétrica de Belo monte,
avaliada como mentirosa e confusa. Além das falas mentirosas, os brancos são
criticados também pela sua produção documental, ênfase que quero destacar aqui.
Alguns desses documentos, além de não garantir as demandas Xikrin, desconsideram
suas teorias acerca dos impactos que acarretam o rio Bacajá e toda a Terra Indígena por
conta do barramento do rio Xingu. Por razões como estas, documentos são tomados
como parte da cadeia fracassada de eventos que marcam a política dos brancos em
relação aos processos de licenciamento e construção de Belo Monte. Vale reforçar as
reflexões Xikrin de que os brancos de Belo Monte fazem reuniões para escrever
documentos, fazem documentos sobre as reuniões, fazem reuniões para discutir
documentos, fazem documentos para convocar reuniões. Os Xikrin compreendem que
os brancos de Belo Monte operam essa cadeia de eventos de modo proposital para
ludibriá-los.
Durante os vários momentos de minha pesquisa de campo, presenciei os Xikrin
operarem suas críticas em relação à produção de vários documentos pelos brancos de
Belo Monte. Como foi o caso para o PBA CI (Plano Básico Ambiental Componente
Indígena), a autorização de reintegração de posse durante ocupação do canteiro de obras
do empreendimento, atas de reuniões com a empresa Norte Energia e autorizações de

175
licenças ambientais para continuação da obra. Neste capítulo, irei tratar de dois
documentos especificamente: o Parecer Técnico 21, de autoria da FUNAI, criticado
pelos Xikrin por considerá-los “povos indiretamente afetados pelo empreendimento” ou
“geograficamente distantes da obra de Belo Monte”; e o laudo de impacto ambiental,
nominado Estudos Complementares do Rio Bacajá.
Uma das reivindicações realizadas pelos Xikrin e demais grupos da região de
Altamira durante a ocupação no canteiro de obras de Belo Monte, já mencionada
anteriormente, foi o cumprimento por parte do empreendedor das condicionantes e dos
programas de mitigação. As quarenta condicionantes foram estabelecidas pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) no documento intitulado “Parecer Técnico 21”, emitido em
147
setembro de 2009 . Esse parecer é parte do protocolo de licenciamento da
hidrelétrica, requerido pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Recursos Renováveis), órgão
licenciador do AHE Belo Monte (Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte), para a
emissão do Termo de Referência específico para o Componente Indígena, do qual
depende a Licença de Instalação para realização da obra.
Nesse documento, a FUNAI aprovou a continuação de licenciamento da
hidrelétrica, impondo como condição que a empresa acionista do empreendimento
cumprisse quarenta condicionantes referentes a políticas de mitigação. Entre essas
condicionantes constava a exigência de execução de um laudo de estudo de impacto
ambiental na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, a partir de coleta primária de dados.
A exigência para a de produção desse laudo de impacto ambiental, na Terra
Indígena Trincheira-Bacajá, nominado Estudos Complementares do Rio Bacajá,
decorreu também da divulgação de estudos realizados em 2009 que demonstrava sua
necessidade 148.
O processo de elaboração dos Estudos Complementares do Rio Bacajá teve
início no ano de 2011 e contou com minha participação como “acompanhamento
antropológico”. Minha vinculação à equipe responsável pela produção do laudo advém
da atuação de Clarice Cohn como “coordenadora antropológica”, que se engajou nesse
processo em 2008 a pedido dos Xikrin. Por não conhecerem e, portanto, não confiarem
nas pessoas que estariam envolvidas na produção do laudo, os Xikrin solicitaram a
participação da antropóloga Clarice Cohn, com quem estabelecem relações há mais de
147
Disponível em http://socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo MonteFUNAI.pdf
148
Clarice Cohn e Isabelle Giannini foram importantes agentes desse processo, tendo sido responsáveis
pela emissão de documentos técnicos que reforçavam a necessidade dos estudos de impacto para a Terra
Indígena Trincheira-Bacajá.

176
vinte anos. Do mesmo modo que os Xikrin, Clarice Cohn, também por desconfiar do
modo como a produção do laudo se realizaria por parte de uma empresa que não possuía
qualquer relação anterior com a redação de peças técnicas entre povos indígenas,
convidou-me a participar do processo 149.
Vale a pena destacar que para além da apreciação crítica dos Xikrin em relação
à versão final do laudo, a entrega desse documento, nas aldeias, serviu como
justificativa para continuidade do processo de licenciamento da obra no ano de 2012.
Durante as reuniões para entrega do laudo, os Xikrin diziam que novos estudos
deveriam ser feitos porque aquele documento não continha suas apreciações de impacto
e negava a possibilidade de secamento do rio Bacajá com o barramento do Xingu. Os
coordenadores responsáveis disseram que não seria possível a realização de outros
estudos e que aquele estudo era o que deveria ser aceito.
Durante o processo de elaboração dos Estudos Complementares do Rio Bacajá,
eu presenciei algumas situações de equívocos entre os Xikrin, as equipes para coleta de
dados e os engenheiros redatores do laudo. As teorias dos Xikrin sobre os impactos
causados pela construção de Belo Monte e suas análises sobre a relação hidrológica dos
rios Bacajá (onde se situa a Terra Indígena) e Xingu (onde o complexo hidrelétrico está
sendo construído) foram obliteradas na versão final do documento, que dá maior
destaque aos cálculos matemáticos apresentados por meio de gráficos realizados pelos
engenheiros responsáveis.
A fim de evidenciar o eclipsamento das teorias Xikrin na versão final do
documento, que responde a uma estética de organização de dados e de modelos
matemáticos para previsões de impactos, tomo emprestada a mais recorrente tríade
classificatória dos Xikrin Mẽbêngôkre. A tríade, descrita no capítulo um, é composta
por três conceitos classificatórios que são acionados por eles tanto como processos de
adjetivação de bens, relações, coisas, pessoas, acontecimentos como enquanto processos
de substantivação. Assim, as terminologias mejx/mejxtere designam a beleza, o belo,
modos corretos, o verdadeiro ou a verdade; punu/punure, designam a feiura, o horrível,
modos errôneos ou incorretos; kaigo, por sua vez, designa falsidade, fraude,
fraudulento, enganador, falso, fajuto, malfeito. Os Xikrin empregam a tríade
classificatória para adjetivar uma ampla gama de relações: deles entre si, deles com
outras pessoas, deles com coisas e objetos, deles com fenômenos naturais, e,

149
Para o debate sobre a “guerra de papeis” que antecederam os Estudos Complementares do rio Bacajá,
ver Cohn (2010).

177
principalmente de seu modo de conhecimento com outros modos. Desde os primeiros
momentos de pesquisa de campo, os etnógrafos dos Xikrin, são ensinados a também
classificarem o mundo a partir da tríade. Ensinam-nos a dizer quando uma carne é boa
[mrü mejx], uma criança é bonita [meprire mejxetere], um ritual está correto [metoro
mejxkumren]; quando uma fala está incoerente [kaben kaigo], quando se faz algo
equivocadamente [ipey kaigo]; quando uma fala é feia [kaben punu], quando se faz algo
errado [ipey punure]; e assim sucessivamente. Assim como kukràdjà [cultura
Mẽbengôkre] não é um conjunto fixo de repertórios de conhecimento e saberes, os
classificadores Mẽbêngôkre também não comportam uma taxonomia fixa, podendo ser
acionados diferentemente em relação a uma situação específica.
A instantaneidade de operação dos classificadores pelos Xikrin, associações
sempre feitas em ato, a depender das circunstâncias e situações, remete ao debate
desenvolvido por Tsing (2005) sobre as relações dos Meratu, que vivem na floresta
indonésia nas montanhas Meratus do Sul de Kalimantan, com companhias madeireiras,
agências de governos e movimento ambientalista. Partindo dos mal-entendidos entre os
Meratu, amantes da natureza locais, ativistas ambientalistas nacionais Jakarta e agentes
da companhia de extração madeireira, que se proliferaram durante esses encontros,
incluindo também aqueles decorrentes de sua presença como etnógrafa, Tsing (2005)
defende que além de conflitos, esses mal entendidos geram possibilidade de
engajamento para realização de uma atividade comum, como a expulsão das agências
madeireiras, ocorrida em 1986. A autora sugere a premissa de que processos de
entendimento ou conhecimento não significam uma homogeneização de perspectivas
em prol de se atingir um consenso ou clarificação da realidade. Ao contrário, tais
processos de engajamento de pessoas, técnicas, instituições podem ser embaraçosos,
desajeitados, transitórios, acidentais. E nem por isso, argumenta a autora, tais interações
de conexões globais não produzem efeitos, como alianças momentâneas de pessoas com
objetivos e estratégias diferentes em torno de uma ação comum como a vinculação dos
Meratu com os ambientalistas nacionais para expulsão da empresa madeireira no final
dos anos oitenta.
Durante o processo de produção dos Estudos Complementares do Rio Bacajá, o
uso dos classificadores mẽbêngôkre alterava-se conforme as relações e situações vividas
pelos Xikrin em relação aos kubẽn [brancos] envolvidos nesse processo: equipes de
pesquisadores que visitavam as aldeias, engenheiros responsáveis pela confecção dos

178
Estudos Complementares do rio Bacajá, servidores da FUNAI local e de Brasília,
funcionários da Norte Energia.
Minha intenção ao acionar a tríade classificatória Xikrin para descrever o
processo de elaboração do estudo de impacto ambiental, os Estudos Complementares do
Rio Bacajá, é tanto tornar visível o ponto de vista dos Xikrin sobre tal processo,
mostrando o que ficou obliterado na versão final do documento, quanto realizar uma
contribuição analítica sobre processos de obliteração de informação na composição de
documentos, discutida recentemente na antropologia, especialmente nos trabalhos de
Marilyn Strathern (1991, 2000, 2009), Annelise Riles (2001, 2006) e Mathew Hull
(2012).
Hull (2012) aborda o tratamento da antropologia a estudos com documentos e
burocracia, destacando o modo como esse interesse antropológico tem marcado as
pesquisas atuais. Para o autor, essa retomada de pesquisas antropológicas sobre
produção documental ganha importância quando se volta à questão da materialidade,
tratando documentos como artefatos (Riles 2006), por exemplo. Documentos deixam
de ser tratados como fornecedores neutros de discursos e passam a ser analisados a
partir dos modos como são produzidos, usados, experenciados através de
procedimentos, técnicas, estéticas, ideologia, cooperação, negociação e contestação.
Mesmo considerando, tal como Hull (2012), a importância do aumento
significativo de produções antropológicas voltadas a essas temáticas, sublinho, para o
argumento defendido aqui, as produções de Strathern (1991, 2000) e Riles (2001, 2006)
tendo em vista a discussão metodológica que elas empregam para lidar com essas
problemáticas. Interessa-me, sobretudo, o modo como ambas se dedicam a discutir
estética de documentos, levando em conta que os procedimentos técnicos sobre aquilo
que é visibilizado e obliterado não são resultados inocentes de determinadas expertises.
Ao se dedicarem a discutir a forma ou a estética, ambas as autoras recorrem ao conceito
de artefato, inspiradas pela formulação de Bateson (1980, p. 08), enquanto “padrão que
comunica” que Strathern (1991, p. 10) expande para a noção de artefato como “formas
persuasivas e elicitação de um sentido de adequação 150”.
Para cumprimento de sua proposta, este capítulo divide-se em quatro partes. A
primeira, que é atribuída ao classificador kaigo [falso, fraudulento], apresenta a crítica
dos Xikrin em relação ao modo como eles foram alocados em relação ao grid (quadro

150
Em inglês, a expressão é “the persuasiveness of form, the elicitation of a sense of appropriateness”
(Strathern, 1991, p. 10).

179
de referência) de povos diretamente impactados para indiretamente impactos pela
construção de Belo Monte e a importância do “Parecer Técnico 21”, de autoria da
FUNAI.
A segunda parte, atribuída ao classificador mêxj/mejxtere [belo, correto, bom],
descreve o modo de coleta de dados das equipes de especialistas em campo e o
envolvimento dos Xikrin com tais atividades.
Vinculada ao classificador punu/punure [feio, errado], a terceira parte discute a
estética final dos Estudos Complementares do Rio Bacajá e o eclipsamento dos saberes
Xikrin sobre o rio Bacajá, suas teorias de impacto e a relação hidrológica com o rio
Xingu.
Por último, apresento algumas considerações sobre a diferença de tratamento
que os conhecimentos Xikrin tiveram na versão final dos Estudos Complementares do
Rio Bacajá em relação aos cálculos matemáticos e gráficos de vazão do rio feitos pelos
engenheiros redatores. Cabe ainda à última parte uma discussão sobre a associação dos
documentos com dois dos classificadores negativos da tríade e sua relação com a crítica
Xikrin, levada a cabo nesta tese, à política dos brancos.
Importante ainda esclarecer que não realizo uma análise dos documentos em si,
de seus conteúdos, contextos de sua elaboração, ou das pessoas e expertises envolvidas
em sua redação. Diferentemente disso, apresento a apreciação Xikrin dos documentos
mencionados, considerando que tratar documentos agentes de enunciação, implica em
“não os considerar testemunhos de fatos históricos ou falsificações, porque fatos só são
verdadeiros na capacidade das pessoas em os fazer verdadeiros. ” (Villela, 2015, p.16).
O que apresento a seguir mostra como esses classificadores podem ser
mobilizados analiticamente para descrever o processo de produção dos Estudos
Complementares do Rio Bacajá e visibilizar aquilo que ficou obliterado na versão final
de redação do documento como as teorias dos Xikrin acerca dos impactos do rio Bacajá
com construção de Belo Monte, os conhecimentos deles da região da Terra Indígena
Trincheira-Bacajá, e a teoria Xikrin da relação hidrológica do rio Bacajá com o rio
Xingu.

180
Documento kaigo [falso/à toa]

O classificador kaigo [falso/fradulutento] é referido para apresentar o efeito da


emissão de um documento, o “Parecer Técnico 21”, que garantiu aos Xikrin o direito à
realização de um estudo de impacto em sua Terra Indígena, ao mesmo tempo em que os
desclassificaram como “povos diretamente impactados pela obra” e permitiu que o
licenciamento da obra continuasse. Nesse sentido, a demonstração da crítica dos Xikrin
ao documento como kaigo [fajuto, fraudulento], decorreu dos seus conteúdos.
A declaração da realização obrigatória de um estudo de impacto ambiental na
Terra Indígena Trincheira-Bacajá, os Estudos Complementares do Rio Bacajá, como
condição para licenciamento do megaempreendimento hidrelétrico de Belo Monte é
resultado da divulgação do “Parecer Técnico 21” de autoria da FUNAI. Neste
documento, apesar de concordar com a proposta da Norte Energia para a mudança de
grid dos Xikrin de “povos diretamente impactados” para “povos geograficamente mais
distantes do empreendimento”, a FUNAI colocou-os na condição de necessitários de
realização de um estudo de impacto.

Figura 22: trecho extraído do “Parecer Técnico 21”, p. 32.

O Parecer Técnico de número 21, “Análise do Componente Indígena dos


Estudos de Impacto Ambiental” é um relatório feito por analistas da FUNAI que
avaliam os quadros de indicadores de impacto previstos no EIA 151 (Estudos de Impacto

151
EIA (Estudo de Impacto Ambiental), RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) foram entregues em
2009 ao Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O
EIA/RIMA de Belo Monte foi elaborado pela Leme Engenharia, afiliada ao Grupo Tractebel Engineering,

181
Ambiental Componente Indígena). A peça técnica discorre principalmente acerca da
previsão de impactos relacionadas às populações indígenas afetadas. A emissão do
documento permitiu que os trâmites para o licenciamento do empreendimento fossem
continuados e proporcionou o início da construção de Belo Monte, indicando a
152
necessidade de realização de algumas condicionantes. A lista das condicionantes
consta no escopo do Parecer Técnico 21, na parte final do documento, e incrementa as
ações de mitigações previstas no EIA (Estudo de Impacto Ambiental). A titulação
condicionante define tais medidas como condições necessárias a serem realizadas pelo
grupo empreendedor para continuidade de licenciamento da obra. A realização dos
Estudos Complementares do Rio Bacajá foi uma delas.
Para além das emissões dos documentos, que Cohn (2010) designa como
“guerra de papéis” e que os Xikrin criticam como parte da cadeia de fracasso que marca
a política dos brancos, a necessidade de realização de um estudo de impacto ambiental
na Terra Indígena Trincheira-Bacajá também era defendida pelos Xikrin. Eles se
posicionaram em favor da realização dos estudos de impacto para sua Terra Indígena
em reuniões em Altamira com a FUNAI e representantes da Norte Energia com intuito
de garantir que os estudos se realizassem. Segundo me disseram, era “preciso fazer
estudos no rio Bacajá, porque nenhum branco conhece esse rio direito e porque, com a
seca de parte do Xingu, o rio Bacajá pode desaparecer”.
Alguns teóricos dedicados a estudos sobre os procedimentos que pautam a
elaboração de um estudo de impacto ambiental, como Montano (2014), questionam a
validade ou eficiência desses estudos porque o processo de licenciamento ambiental
acaba por atuar como um falicitador e incentivador da implantação dos projetos

por sua vez vinculado ao grupo GDF Suez, um dos participantes do leilão para construção da UHE Belo
Monte. Em outubro de 2009, cinco meses após a versão final do documento ter sido entregue ao Ibama,
chegou ao mesmo órgão, e ao Ministério Público Federal (MPF), um relatório alternativo, de 230 páginas,
intitulado “Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo
Monte”, elaborado por mais de quarenta pesquisadores. Antropólogos, sociólogos, zoólogos, biólogos,
etimólogos, doutores em energia e planejamento de sistemas energéticos, historiadores, cientistas
políticos, economistas, engenheiros, hidrólogos, ictiólogos, entre outros, compõem um grupo denominado
Painel de Especialistas. Para acesso ao relatório “Análise Critica”:
http://www.socioambiental.org/esp/bm/hist.asp. A empresa responsável pela construção da AUH Belo
Monte divulgou outro relatório respondendo às críticas em relação ao empreendimento:
http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Atend.%20aos%20Questio%20Mov.%20Sociais_I
bama.pdf.
152
Ficou estabelecido pela FUNAI e pelo IBAMA um conjunto de quarenta condicionantes, que
deveriam ser cumpridas para o andamento da obra e liberação da Licença Prévia e de Instalação. Apesar
dessa determinação, a Licença Prévia Ambiental foi emitida, em 2010, sem que tais condicionantes
tivessem sido cumpridas. Para visualização do quadro das condicionantes:
http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/3.Tabela_de_Condicionantes.pdf.

182
desenvolvimentistas. Nesse sentido, os EIAs acabam por voltar-se aos aspectos
corretivos dos empreendimentos e tornam-se incapazes de atuar como documentos
preventivos ou antecipatórios dos efeitos e impactos das obras. Além disso, o objetivo
de apontar para incongruências e impactos possíveis da obra é prejudicado quando a
responsabilidade pela execução dos estudos de impacto fica à cargo da empresa
consorciada do empreendimento, a Norte Energia, no caso de Belo Monte 153.
Não são apenas os modos procedimentais dos estudos de impacto ambiental
que são descritos criticamente por autores vinculados com essa temática do
desenvolvimentismo da economia nacional. Nahum-Claudel (2012) denuncia a situação
de construção de um empreendimento hidrelétrico, a Telegráfica, nas áreas das Terras
Indígenas dos Enawene-nawe, que passaram de povos em situação de pouco contato a
povos afetados pela construção da obra em menos de dez anos. A autora relata que no
início do processo de negociação com os índios, o, na época, governador Blairo Maggi
do PP (Partido Progressista), interessado na continuidade do processo de licenciamento,
encaminhou alguns barcos a motor aos Enawene-nawe. Ainda segundo a autora, a
entrega dos barcos foi uma clara ação de suborno para que as estradas, que seriam
utilizadas para a construção da hidrelétrica, pudessem ser abertas dentro da Terra
Indígena. O Ministério Público Federal proibiu a continuação do projeto da estrada, mas
os Enawene-nawe passaram a visitar a cidade com mais frequência percebendo que
grandes porções de seu território estavam sendo invadidos por gado, soja e plantações
de arroz. Mesmo com o impedimento para abertura das estradas, as construções de
cinco barragens foram autorizadas em 2002, sem que fossem necessários procedimentos
de avaliação de impactos ambientais devido a um decreto de lei que suspendia a
necessidade de estudos de impacto em obras hidrelétricas com geração de menos de
30mw de energia. A decisão para apressamento da construção das barragens, dentre elas
a Telegráfica, na área Enawene-nawe, foi considerada inconstitucional por uma Ação
Civil Pública em 2008 e seu processo de licenciamento foi interrompido pela
Promotoria Pública que exigia a realização de estudos de impactos socioculturais e
reuniões com as populações afetadas, desencadeando uma pesada burocracia para
desaceleração do processo de construção dos centros hidrelétricos. Em junho de 2008 a
153
Apesar das críticas ao modo de funcionamento da legislação ambiental, a atual PEC 65 (Proposta de
Emenda à Constituição), relatada pelo senador Blairo Maggi (PR-MT) em 2012, pretende acabar com o
processo de licenciamento ambiental vigente. A intenção de facilitar e desburocratizar a implantação das
obras irá desfavorecer ainda mais as populações afetadas por empreendimentos, que não precisarão mais,
caso aprovada a PEC, passar pelas três etapas de avaliação técnica seja do Ibama ou de órgãos estatais
responsáveis.

183
ação civil pública foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal e as obras recomeçaram.
Como podemos ver com outras situações de empreendimentos, o juiz reconheceu o
processo inconstitucional do licenciamento, mas decidiu pela continuidade da obra para
evitar maiores perdas financeiras à nação.
Os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá eram incialmente considerados
parte do “Grupo 1: diretamente afetados pela obra”. No entanto, segundo avaliações de
impacto feitas pelas empresas empreendedoras, os Xikrin deveriam ser deslocados para
o “Grupo 2”, considerados como parte dos povos que “embora sofram impactos, estão
geograficamente mais distantes do empreendimento”.
Segundo argumento do grupo de empreendedores, os Xikrin deveriam ser
alocados ao “Grupo 2” por dois motivos: primeiro, porque estudos de impacto sobre a
hidrologia e condições de navegação do rio Xingu já haviam sido feitos e constavam no
EIA (Estudo de Impacto Ambiental); e segundo, porque o contexto político era
desfavorável devido à repercussão negativa do enfrentamento dos Kayapó com um
engenheiro da Eletronorte em Altamira em abril de 2008.
A FUNAI acatou em partes a sugestão do grupo de empreendedores. Se por um
lado, concordou com a mudança de grid dos Xikrin do “Grupo 1” para o “Grupo 2”; por
outro, indicou a necessidade da realização de um estudo de impacto ambiental na Terra
Indígena Trincheira-Bacajá, os Estudos Complementares do Rio Bacajá, com o objetivo
de estabelecer um quadro de impactos específico para a região da Terra Indígena, que
tratasse especialmente da relação hidrológica do rio Bacajá com o rio Xingu. Assim,
mesmo compondo o Grupo 2, os Xikrin puderam ter em sua Terra Indígena, a realização
de um Estudo de Impacto Ambiental específico, os Estudos Complementares do Rio
Bacajá.

Figura 23: Trecho extraído do “Parecer Técnico 21”, p. 35.

184
Figura 24: Trecho extraído do “Parecer Técnico 21”, p. 68.

A necessidade de realização de um estudo de impacto ambiental na Terra


Indígena Trincheira-Bacajá também era defendida pelos Xikrin, que participaram de
reuniões em Altamira com a FUNAI e representantes da Norte Energia para garantir que
os estudos se realizassem.

Nós falamos para o pessoal da FUNAI e da Norte Energia que o


impacto ia ser também aqui com nossas aldeias e com a vida dos
nossos filhos, e netos. Antes ninguém queria aceitar isso e de tanto a
gente falar e falar nas reuniões, a FUNAI teve que aceitar. Se não
fosse isso, da gente falar, não ia ter estudo aqui no nosso rio Bacajá.
(Cabokinho, comunicação pessoal, 2011).

Além disso, as preocupações dos Xikrin voltavam-se também para as datas do


cronograma de construção da obra e o cumprimento das condicionantes pelo
empreendedor, visto que os Estudos Complementares do rio Bacajá só foram iniciados
em 2011, dois anos depois da emissão do Parecer Técnico 21, enquanto a usina de Belo
Monte estava em fase adiantada de construção.

A barragem começou antes de terminar os nossos estudos aqui. Isso


não é certo não. Ninguém fez as coisas aqui para nós, na aldeia,
ninguém fez nada. A Norte Energia tinha que fazer as coisas antes. Do
jeito que está fazendo, não está certo e a gente não aceita isso. Não
fizeram o posto de vigilância e ninguém falou para gente quando vai
fazer. A gente não quer kubẽ (branco) aqui na nossa área, pescando
aqui e caçando.
(Tedjore, comunicação pessoal, 2011).

A garantia da realização dos Estudos Complementares do Rio Bacajá foi uma


demanda Xikrin que queriam, através desses estudos, mostrar para os kubẽ do ngô beyêt
[brancos de Belo Monte] o conhecimento que eles tinham do rio Bacajá e da relação
deste com o rio Xingu. A intenção dos Xikrin era ensinar/mostrar/falar que seus
conhecimentos [kukràdjà] deveriam ser considerados pelos engenheiros e por todos

185
envolvidos com a obra. Queriam mostrar que seus conhecimentos eram bons, corretos,
verdadeiros [kukràdjà mejxtere]. Queriam que os engenheiros ouvissem seus
conhecimentos para aprenderem sobre o rio Bacajá e sobre a relação deste rio com o rio
Xingu. Queriam “mostrar kukràdjà para os kubẽn”.
Apesar de corroborar em partes com a demanda Xikrin, o Parecer Técnico 21
associa-se ao classificador kaigo [falso/fajuto] porque, se por um lado, garantiu a
realização de um laudo de impacto ambiental na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, por
outro, manteve os Xikrin como Grupo 2: “povos impactados, mas geograficamente mais
distantes da obra”. Os Xikrin queriam a realização dos estudos em sua Terra Indígena,
mas se consideravam como “diretamente impactados” e não se consideram
“geograficamente distantes de Belo Monte”, porque os seus “avós e parentes
caminhavam por toda aquela região onde a usina está sendo construída, por conhecerem
a região, por viverem ali antes dos kubẽ [brancos] saberem que aquela região existia”.
A demanda dos Xikrin pela realização dos Estudos Complementares do Rio
Bacajá foi atendida, apesar da mudança de grid em que foram deslocados do grupo de
“povos diretamente afetados”. Porém, as expectativas que eles tinham com os resultados
dos estudos não se consolidaram, como será apresentado na terceira parte deste capítulo.
Na próxima sessão, associada ao classificador mejx/mejxtere (bom, belo correto), será
discutida as formas de coleta de dados das equipes, contratadas para realização dos
Estudos Complementares do Rio Bacajá, em paralelo com o modo como os Xikrin
apresentavam/mostravam/narravam seus conhecimentos [kukràdjà].

Equipe de pesquisadores nas aldeias: mejx/mejxtere [belo/correto/verdadeiro]

O trabalho das equipes em campo para “coleta de dados” durante a realização


dos Estudos Complementares do Rio Bacajá é associado ao classificador mejx/mejxtere
[belo/correto/verdadeiro] por conta do engajamento dos Xikrin nas atividades propostas
e por seus esforços em mostrar/ensinar seus conhecimentos [kukràdjà] aos
pesquisadores das equipes em campo.
Minha participação entre as equipes de pesquisadores contratados para coletar
dados entre os Xikrin deu início à minha pesquisa de doutorado. A maioria dos

186
154
pesquisadores contratados pela LEME-Engenharia para realização dos Estudos
Complementares do rio Bacajá, eram biólogos vinculados a cursos de graduação e pós-
graduação de universidades brasileiras. As equipes foram divididas, de acordo com a
especialidade dos pesquisadores, em três grupos: ictiofauna e consumo alimentar;
navegação; e qualidade da água. Cada viagem das equipes à Terra Indígena Trincheira-
Bacajá era chamada pelos coordenadores dos estudos de “campanhas” e um calendário
foi estabelecido para que as equipes estivessem em períodos diferentes umas das outras
nas aldeias. Assim, ao longo do ano de 2011, as aldeias Xikrin receberam visitas
continuadas das equipes. Cada “campanha” obedecia ainda ao ciclo hidrológico dos rios
Bacajá e Xingu: cheia, vazante, seca e enchente.
O desenvolvimento do trabalho das equipes em campo pode ser descrito pela
disposição de engajamento dos Xikrin nas atividades propostas pelos pesquisadores. A
cada “campanha”, assim que as equipes chegavam às aldeias, era organizada uma
reunião no ngàb [casa do meio/casa do guerreiro] para definição das atividades a serem
realizadas.
Além das atividades consideradas pelos biólogos em campo como “mais
objetivas”, como era o caso da pesagem das espécies de peixes e caça consumidas,
fotografias das espécies coletadas e retirada de amostras para análise de mercúrio;
também eram realizadas atividades “etno” como conversas sobre os peixes e animais de
caça, confecção de mapas sobre os ciclos hidrológicos do rio, calendários sazonais de
155
produção agrícola e notações sobre previsões de impacto feitas pelos Xikrin . Era
bastante comum que fosse utilizado nas atividades “etno” algum mapa georreferenciado
de toda a área indígena com os limites de usos entre cada aldeia, da forma como havia
sido marcado nos pontos com uso de GPS, durante a “campanha” anterior 156.
Os Xikrin mostravam nos mapas os principais pontos de pesca que utilizavam
157
em cada um dos ciclos hidrológicos: locais de maior presença de tracajás , chamados

154
Trata-se de uma empresa de engenharia com atuação na América Latina, que no Brasil, é representante
do grupo Tractebel Engineering (GDF SUEZ). A empresa foi contratada pela Norte Energia para a
execução dos Estudos de Impacto Ambiental para a região da Volta Grande e Altamira, e posteriormente
para realização dos Estudos Complementares do Rio Bacajá.
155
As atividades “etno” com os Xikrin sobre preferência alimentar foram apresentadas em artigo por
Carvalho Júnior (2015).
156
Mesmo na primeira campanha, foram levados mapas georreferenciados com alguns pontos já
indicados que resultaram de um encontro dos Xikrin com Clarice Cohn e Isabelle Giannini em 2009.
157
Tipo de tartaruga de água doce, da família dos pelomedusídeos (Podocnemis unifilis), encontrada nos
rios amazônicos, com cerca de 50 cm de comprimento, carapaça abaulada, pardo-escura, e cabeça com
manchas alaranjadas. Os Xikrin chamam-na kapran krantoe, consomem sua carne, preferencialmente

187
boiadores; os locais de difícil navegação, devido às cachoeiras; as regiões na mata com
maior concentração de açaí e castanha; os locais de barreiros, onde são mais
158
comumente encontrados os porcões do mato; as aldeias antigas; roças antigas e já
abandonadas; roças em uso; presença de frutas e palmitos comestíveis; locais onde se
encontram jenipapo 159. Os pesquisadores anotavam as informações e faziam marcações
nos mapas, filmavam e fotografavam essas atividades, gravavam as falas dos velhos
sobre uma história relacionada a um local específico ou sobre como eles encontraram
outros grupos indígenas naquelas regiões. Os mais velhos narravam histórias sobre
localidades importantes da Terra Indígena, contavam sobre caçadas bem sucedidas e
fracassadas, enquanto os mais jovens traduziam as falas dos velhos e mostravam aos
160
pesquisadores como grafar os nomes das localidades Mebêngôkre . Entre a grafia de
um nome e outro, os Xikrin insistiam para que os membros das equipes repetissem os
nomes até a pronúncia ficar correta [Mebêngôkre kaben mejxtere]. Os Xikrin estavam
compartilhando seus conhecimentos, ensinando/mostrando kukràdjà [cultura] às
equipes de pesquisadores.

Essa parte aqui do mato [apontando para o mapa] tem nome Irepopare.
Quando era criança, Ireporare sumiu nesse mato e se perdeu. Ela ficou três
dias desaparecida. Os homens ficavam procurando por ela com o barco e
nada. Sua mãe e sua avó já estavam chorando, pensando que ela tivesse
morrido. No terceiro dia, quando os homens estavam navegando para
procurá-la, ouviram gritos de chamado do outro lado da margem. Irepopare
estava lá. Estava magra e confusa. Colocaram-na no barco e a trouxeram de
volta para a aldeia. Por isso demos o nome dela para o mato onde ela se
perdeu e todos conhecem esse nome e essa história.

assada, e seus ovos, que são encontrados nas praias do rio Bacajá, especialmente em setembro, época de
desova do animal e vazão do rio.
158
Dois tipos de porcões são mais recorrentes na Terra Indígena dos Xikrin. Um de tamanho menor com
uma faixa clara ao redor do pescoço, que os Xikrin chamam angrore, regionalmente chamado de catitu
que é um mamífero também chamado de porco-do-mato ou cateto (Tayassu tajacu), artiodátilo da família
dos taiaçuídeos de hábitos diurno e ambiente florestal, com cerca de 90 cm de comprimento e pelagem
cinza-escura com uma faixa branca no pescoço, em forma de colar. E outro de tamanho maior, chamado
pelos Xikrin de angrô, e regionalmente, porco-do-mato, um mamífero artiodátilo (Tayassu pecari) da
família dos taiaçuídeos, diurno e terrestre, com cerca de 1 m de comprimento e pelagem negra com o
queixo branco; que vivem em bandos com até 300 indivíduos.
159
Fruto do jenipapeiro (Genipa americana) geralmente amarelo-pardacento, com polpa aromática e
comestível. Os Xikrin chamam o jenipapo de mroti, e seu uso está relacionado com a aplicação da pintura
corporal. As mulheres cortam o fruto ao meio, extraem sua parte interna com as sementes, mastigam e
cospem a massa numa cuia onde será misturada com carvão e depois aplicada no corpo. Sobre técnicas de
pinturas corporais Xikrin, ver: Vidal (2000).
160
Os Xikrin possuem atualmente em suas aldeias, escolas que oferecem formação até o 5º ano do nível
Fundamental II. Alguns jovens da aldeia aprenderam a escrever sua língua num intercâmbio à cidade de
São Félix do Xingu PA, onde ocorre tal alfabetização através da atuação de um grupo de missionários
evangélicos.

188
(Prunkey, guerreiro antigo, aldeia Pot-Krô, atividade de etnomapeamento,
2011).

Além das atividades “etno” nas aldeias, as equipes organizavam com os Xikrin
expedições de pesca e visitas a pontos de caça, coleta, roças e locais de aldeias velhas.
Durante os trajetos, os Xikrin explicavam detalhes sobre os canais de navegação do rio
Bacajá, levavam os pesquisadores aos pontos de pesca mais usados em cada ciclo
hidrológico do rio, diziam quais espécies de peixes eram mais comuns e os mais
consumidos em cada um desses ciclos, levavam os pesquisadores a incursões na mata
para mostrarem locais de barreiros e açaizais. Ao final do dia, no ngàb [casa do meio],
os Xikrin contavam mais histórias e pediam para que os pesquisadores registrassem
essas falas.

Os mais antigos viviam andando, moravam ali onde hoje é lugar de


fazendeiro, antes nossos avós moravam andando. Andavam até o
igarapé But Pramei e o Moptu, pegavam o jenipapo para as mulheres
fazerem as pinturas. Chegavam até o igarapé Ikiebepuro, hoje tem
uma cidadezinha lá. Andavam tudo até descer para o Xingu. Andava
pela pedra do índio, tudinho. Aqui no mato não tinha kubẽ, kubẽ tinha
medo do índio. Kubẽ ficava só em Altamira e o índio pegava tudo do
kubẽ: espingarda, facão, machado. Antes andava até a TI Apyterewa e
Koatinemo, onde os Parakanã e os Assurini moram. Andava até o
igarapé Tucunaré, nosso avô andava lá por cima do igarapé Goiaba
onde tem vila hoje. Atravessa o rio a pé, amarrado no cipó, não tinha
canoa não. Hoje o índio como óleo, sal, açúcar e morre. Antigamente
todo mundo ficava bem velho, velhinho mesmo e não morria. Antes o
pessoal novo quebrava castanha para trazer para o pessoal velho e
depois comia e banhava e dançava. Isso é a cultura e pode acabar por
causa da barragem. Antes, só pegava peixe no cipó ou na flecha e
ficava no mato para comer castanha, palmito, babaçu, bacaba, açaí. A
panela para carregar água era a taboca de bambu.
(Bep Djeti, cacique antigo, aldeia Bacajá, atividade de
etnomapeamento, 2011).

As crianças, os jovens e os adultos faziam desenhos e mapas da aldeia, das


roças, da Terra Indígena, dos animais de caça, dos peixes.

189
Figura 25: Desenho feito por criança durante oficina de uma das atividades “etno”. Fonte:
Acervo pessoal, aldeia Pot-Krô, 2011.

190
Figura 26: Registro fotográfico de atividade para desenho e mapeamento da aldeia.
Acervo pessoal, aldeia Bacajá, 2011.

Ao pedirem os registros de suas falas, os Xikrin desejavam que seus


conhecimentos sobre o rio Bacajá, a relação hidrológica deste com o rio Xingu, suas
formas de manejo e uso dos recursos naturais fossem divulgados no documento dos
Estudos Complementares do Rio Bacajá. Estavam operando um procedimento de
legitimação/divulgação de seus conhecimentos e saberes para os kubẽ [brancos]
envolvidos com a construção de Belo Monte.
Muitas vezes usando gravetos que eram riscados no chão de terra, os mais
velhos explicavam a relação do rio Bacajá com o Xingu e os mais jovens traduziam
essas falas para os pesquisadores.

O rio Bacajá é pequeno e corre muito, tem muitas cachoeiras. É o rio


Xingu que segura o rio Bacajá. Na época da seca, quando o rio Xingu
seca, o rio Bacajá desce todo, vai embora também porque não fica
mais nada lá para segurá-lo. Quando o rio Xingu está cheio, o rio
Bacajá fica cheio também, porque não consegue vazar, não desce e
não vai embora. Se tiver barragem, o rio Xingu vai ficar seco e nada
mais vai segurar o rio Bacajá. Se tiver barragem o rio Bacajá irá todo
embora, vai vazar até acabar.

Em muitas ocasiões, os Xikrin apresentavam suas previsões de impacto.

Se o Xingu secar, o Bacajá vai secar também. E se o Bacajá secar, a


caça vai embora para longe, os peixes vão morrer porque muitos deles
saem do Xingu e sobem para o Bacajá, as tracajás vão morrer porque a
água do Bacajá vai ficar quente, o rio vai ficar raso e com muita
corredeira. Não conseguiremos mais navegar. Como vai ser para
nossos filhos e netos? Eles vão viver de que? Porque só sobrarão ratos
e sapos. E nossos filhos e netos terão de comer sapos e ratos?

Se os Xikrin queriam mostrar seus conhecimentos para os brancos envolvidos


com a construção de Belo Monte, a intenção dos pesquisadores era coletar as
informações e padronizá-las, preferencialmente em gráficos, para as tornarem “dados”.
Os Xikrin operavam no compartilhamento/divulgação de seus conhecimentos enquanto
as equipes coletavam dados, apesar disso engajaram-se 161 numa atividade comum.

161
O conceito de engajamento que utilizo aqui se inspira nos trabalhos de Donna Haraway (1998, 2008),
cuja formulação refere-se às interações e intenções de interações entre humanos e entre humanos e outras
espécies, de forma toda aliança estabelecida é precária e nunca está plenamente assegurada. Etnografias

191
A situação descrita entre os diferentes engajamentos dos Xikrin e dos
pesquisadores nas aldeias para coleta de dados pode ser remetida ao debate realizado
por Almeida (2013) acerca dos “encontros pragmáticos”, conceito que propõe uma
reflexão sobre o reconhecimento do conflito entre ontologias, bem como algumas áreas
de possíveis acordos entre elas. A sugestão do autor de tomar metodologicamente a
proposta de “encontros pragmáticos” opera como uma alternativa ao modelo da
tradução que desconsidera a existência concomitante de ontologias múltiplas que podem
ser incompatíveis entre si. Esse procedimento só é possível se as verdades forem
tomadas como “parciais” ou “pragmáticas”, ou seja, não traduzíveis num esquema de
totalização prévio ou de suposições modelares de existências e relações causais.
Encontros pragmáticos implicam na simetrização das convicções dos ribeirinhos do
Alto Juruá sobre a ação de seres encantados do fundo do rio e nas matas _ “ontologia
caipora” _ e dos modelos analíticos dos técnicos para manejo florestal, por exemplo.
Para que os “encontros pragmáticos” sejam possíveis, pondera o autor, é
necessário que as ontologias científicas deixem de se considerar os índices mais
verdadeiros da realidade porque tal convicção e arrogância destrói a possibilidade dos
encontros pragmáticos. Tomadas como verdade, as ontologias científicas ou de mercado
destroem a “ontologia caipora” e extermina as possibilidades de diferenças e
multiplicidade ontológicas. Não considerar simetricamente a “ontologia caipora” é
colocar em jogo a existência de entes no sentido pragmático, “é uma questão de vida e
de morte para Caipora, para antas e macacos, para „gente-de-verdade‟ e para pedras e
rios” (Almeida 2013, p.22). Ignorar a multiplicidade de ontologias e a realização dos
encontros pragmáticos é bloquear o surgimento incessante de novos entes materiais e
imateriais, visíveis e invisíveis, humanos e não-humanos. A luta por reconhecimento é a
luta por existência, uma luta por multiplicação de ontologias.
Desse modo, mesmo com intenções diferentes, Xikrin e pesquisadores
envolveram-se nas atividades “etno” e nas “mais objetivas” que compunham a
metodologia de trabalho das equipes nas aldeias para coleta de dados a serem utilizadas,
posteriormente, na redação dos Estudos Complementares do Rio Bacajá. Poderíamos
dizer que os pesquisadores e os Xikrin esforçavam-se para controlar suas equivocações,

recentes tem expandido a noção de engajamento, como é o caso, por exemplo de Tsing (2005) sobre os
Meratus Dayak da região das montanhas Kalimantan, Indonésia e projetos ambientalistas; Kohn (2002)
sobre os Quechua (Ávila Runa) da Amazônia Equatoriana e suas formas de engajamento com espécies
animais de caça e com seus cachorros; Willerslev (2007) sobre os Yukaghirs da Sibéria e a presa em uma
caça que é vista como uma amante que precisa entregar-se ao caçador, num jogo de sedução.

192
162
para referir ao debate de Viveiros de Castro (2004) . Nessa fase de elaboração do
laudo, os Xikrin e os pesquisadores em campo dedicaram-se às atividades de modo
semelhante à descrição de Tsing (2005) sobre os Meratu e os ambientalistas. A
insatisfação dos Xikrin com os Estudos Complementares do Rio Bacajá não ocorreu
durante as atividades das equipes nas aldeias, mas sim na apresentação da versão final
de redação dos estudos, quando perceberam que seus conhecimentos não estavam
contemplados no documento. É dessa insatisfação com a versão final dos estudos que
trato a seguir.

Documento: punú/punure [feio/incorreto].

Os Estudos Complementares do Rio Bacajá foram apresentados aos Xikrin em


março e abril de 2012. Essas apresentações contaram com a participação de engenheiros
responsáveis pela coordenação dos estudos, um representante da Norte Energia, dois
especialistas que integraram as equipes de coleta de dados, um servidor temporário da
FUNAI de Altamira 163 e eu, na função de “acompanhamento antropológico” 164. Nessas
apresentações, realizadas nas cinco aldeias contempladas pelos estudos, os engenheiros

162
Equivocação relaciona-se aos processos antropológicos de tradução e comparação. A proposta do
autor sobre a realização de boas traduções também poderiam se efetivar em outras expertises dos brancos
se estas estivessem dispostas a se deixarem influenciar pelas imagens e conceitos da “cosmopráxis
ameríndia”. Segundo o autor, é apenas tomando a própria antropologia como perspectiva
(perspectival), ou seja, como uma formação híbrida que resulta da imbricação entre discursos
antropológicos ocidentais e imagens conceituais transportadas pela cosmopráxis ameríndia,
fundamentada pela teoria perspectivista, unicultural e multinatural, que o processo de boas
traduções pode ser realizado. Com intenção de responder à questão: “como podemos restaurar
as analogias traçadas pelos índios amazônicos dentro dos termos de nossas próprias analogias?”
(idem, p,04), o autor propõe a noção de equivocação como um sentido para reconceituar, com a
ajuda da antropologia perspectivista ameríndia, a comparação enquanto procedimento
emblemático da disciplina. Trata-se de uma comparação que não é implícita, automática (ou
descontrolada), mas que inclui o discurso antropológico como um de seus termos. Uma boa
tradução antropológica é aquela que segue conceitos estrangeiros para deformar e subverter a
caixa de instrumentos conceituais próprias do tradutor, de modo que o inventismo da linguagem
original possa ser expresso dentro de outra linguagem (a antropológica).
163
O fortalecimento da Funai em Altamira era um das ações de condicionantes a serem cumpridas pela
Norte Energia. Em 2011 foram contratos alguns servidores temporários que após um ou dois anos de
trabalho foram dispensados sem serem incorporados pela instituição. Agradeço aqui a Rosamaria Lourdes
que acompanhou comigo as reuniões nas aldeias da Terá Indígena Trincheira-Bacajá para apresentação
dos resultados dos estudos. Sua presença foi fundamental para o processo de registro das críticas feitas
pelos Xikrin aos engenheiros; de forma que sua dedicação e amizade tornaram-se admiradas e
reconhecidas pelos Xikrin e por mim.
164
Clarice Cohn, não pode acompanhar a atividade devido ao seu adoecimento por malária, naquele
período.

193
utilizaram folders contendo as principais informações de cada um dos tópicos avaliados:
ictiofauna e consumo alimentar, navegação, qualidade da água.
As apresentações da versão final dos Estudos Complementares do Rio Bacajá
geraram muitos desentendimentos entre os Xikrin e os engenheiros. Isso porque, os
Xikrin perceberam que suas teorias sobre o rio Bacajá, a relação deste com o rio Xingu
e suas previsões de impacto, não estavam contempladas no documento, da forma como
eles desejavam que estivessem. Os conhecimentos [kukràdjà] que os Xikrin mostraram
aos pesquisadores das equipes haviam se transformado em gráficos matemáticos de
vazão do rio. Além disso, toda a teoria dos Xikrin sobre a relação do rio Bacajá com o
rio Xingu não estava presente no documento e era questionada pelos engenheiros.
Se, ao longo das atividades das equipes em campo, a grande maioria das
considerações, feitas pelos Xikrin, eram tratadas, pelos técnicos, como informações
importantes, sendo anotadas e gravadas por vários deles, a forma de apresentação dessas
informações na versão final dos Estudos Complementares do rio Bacajá, elaborado por
coordenação da LEME-Engenharia, assume outra forma. Tal forma implicou na
codificação de informações descritivas em dados numéricos para geração de gráficos e
tabelas. A codificação realizada para confecção do documento final dos estudos
desembocou num efeito de obliteração das falas dos Xikrin. Trechos mais descritivos
enviados pelos pesquisadores transformaram-se em números de gráficos que os Xikrin
consideraram punúre [obscuros, incorretos, não verdadeiros].
Os Xikrin questionaram os engenheiros durante as apresentações da versão
final dos estudos, querendo saber onde estavam todas as narrativas feitas aos
pesquisadores, os mapas que desenharam apontando para atividade madeireira e
previsão de aumento do risco de invasão na Terra Indígena, as histórias de cada lugar de
caça e pesca, das cachoeiras mais perigosas do rio, de como os mais velhos andavam
por toda a área antes do contato com o branco e, principalmente, da relação entre o rio
Bacajá e o rio Xingu que eles haviam explicado para os pesquisadores. A resposta
convencional dos engenheiros da LEME-Engenharia, que apresentavam os resultados
dos estudos, era a de que seria impossível que o documento contivesse todas as
informações colhidas, porque se assim o fizesse, o tamanho do documento seria
impraticável.
O principal ponto de desacordo entre os engenheiros que apresentavam os
estudos e os Xikrin recaiu sobre a relação hidrológica do rio Bacajá com o rio Xingu e

194
as previsões de impacto para o rio Bacajá com o barramento do rio Xingu, decorrente da
construção da hidrelétrica Belo Monte.
Os engenheiros apresentaram gráficos para defenderem suas teorias e tentavam
explicá-los aos Xikrin. Segundo os engenheiros, o impacto do barramento do rio Xingu
para o rio Bacajá não será significativo, porque a área de influência do rio Xingu no rio
Bacajá só atinge até uma determinada região, a cachoeira Percata, que se localiza antes
da demarcação da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, ou seja, fora da Terra Indígena.
Por esse motivo, segundo os engenheiros, o rio Bacajá não sofrerá “impactos
significativos” com o barramento do rio Xingu, decorrente de Belo Monte.

[...] A vida de vocês, Xikrin, aqui na Terra Indígena não será alterada
significativamente com a construção do empreendimento porque os
regimes de cheia, seca, vazante e enchente do rio Bacajá
permanecerão muito próximos do que ocorre hoje sem a barragem.

Para defender suas teorias, os engenheiros apresentaram alguns gráficos, dentre


eles:

195
Figura 27: Gráfico extraído do laudo “Estudos Complementares do Rio Bacajá” usado
nas reuniões de apresentação dos resultados nas aldeias em formato de folder.

Ao ser apresentado a esses gráficos, Meiti, um cacique antigo [benadjuro tüm],


levantou-se e falou de forma dura [kaben toxj] com o engenheiro apontando para ele sua
flecha esticada no arco, como se fosse flechá-lo. Depois que a liderança velha terminou
de falar, o cacique realizou a tradução.

196
Vocês estão falando mentira, falando errado, não sabem nada do rio
Bacajá, nem do rio Xingu. Vocês nem moram aqui e por isso não
sabem como tudo funciona. Vocês não podem vir na aldeia falar
mentira para nós. Vocês querem enganar nosso povo, sempre foi
assim. Os Xikrin sabem como vive o rio Bacajá e como vive o rio
Xingu. Os Xikrin sabem tudo aqui e nós contamos para vocês,
pedimos para escreverem no papel, para gravarem no gravador, para
vocês aprenderem e para vocês escreverem um documento verdadeiro,
correto, bonito. Eu sei que o rio Bacajá vai secar, todos os Xikrin
sabem, mas vocês não querem acreditar. Eu vou falar reto para você,
falar direto, porque Mẽbengôkre fala assim forte e reto, não enrola
ninguém. Quero apostar com você. Se vocês estiverem certos e o rio
Bacajá não secar com o barramento do Xingu, vocês voltarão aqui na
aldeia e poderão me amarrar num pau no meio da aldeia onde eu
ficarei amarrado três dias e três noites, sem comer e nem beber água.
Agora, se vocês estiverem errados e o rio Bacajá secar, ficar quente e
rápido eu vou te buscar e vou te amarrar aqui na aldeia por três dias e
três noites, sem água e sem comida. Vocês precisam aprender que os
Xikrin conhecem o rio Bacajá e sabem que ele vai secar se o rio Xingu
for barrado. Os Xikrin falam certo e vocês falam feio, falam mentira.

Cada um dos caciques antigos [benadjuro tüm] expressou seu


descontentamento com as falas dos engenheiros. Seguindo uma etiqueta de fala
Mẽbengôkre, apresentada no capítulo três, Os Xikrin expressavam seu
descontentamento com a apresentação do resultado dos Estudos Complementares do rio
Bacajá.

Vocês são kubẽn. Ninguém de vocês mora aqui na aldeia. Vocês não
conhecem nada, não sabem nada. E vocês querem vir aqui na nossa
aldeia para dizer que nós não conhecemos nosso rio, nosso mato.
Querem vir aqui para dizer que a gente não sabe nada, que o índio não
serve para nada. Não pode desse jeito. Nossos parentes estavam aqui
desde sempre por essa região. Vocês não. Eu era menino quando
apareceu o primeiro kubẽn. Antes não tinha kubẽn. Por isso eu falo. A
gente, os índios Mẽbêngôkre, a gente sabe que o rio vai secar e o
peixe vai morrer, vai ter muita malária aqui e todo mundo vai ficar
doente. Mas para vocês isso não importa.

Além de discordarem da hipótese dos engenheiros de que o rio Bacajá “não


secará de forma significativa após o barramento do rio Xingu”, os Xikrin alertavam para
uma relação hidrológica cujo ciclo de cheia e seca tem aproximadamente dez anos de
intervalo. Segundo os Xikrin, a cada período de dez anos (aproximadamente) os rios
Bacajá e Xingu vivenciam uma seca bastante severa e mais duradoura. Por esse motivo,
afirmavam que um ano de realização de estudos não era suficiente para que os
engenheiros entendessem e vissem esse período de seca.

197
Vocês não estão acreditando no que nós estamos falando. Os velhos
sabem que houve uma seca aqui muito brava, faz uns dez anos e muito
peixe morreu, a água engrossou e esquentou muito, não dava para
beber. Estamos dizendo que um ano de estudo é pouco porque
ninguém nunca estudou antes esse rio. Não dá para definir só com
esse estudo pequeno os impactos da usina.
(Bebeto, na época cacique liderança da aldeia Pot-Krô. Reunião de
apresentação dos Resultados dos Estudos, 2011).

A versão final dos Estudos Complementares do Rio Bacajá apresentada aos


Xikrin não lhes agradou. Frente a esse impasse, os Xikrin decidiram que suas teorias
sobre o rio Bacajá e Xingu, bem como suas previsões de impactos, deveriam estar
presentes no documento. Jovens e velhos uniram-se para redação de um documento que
explicasse suas teorias, seus saberes.
Ficou decido que as falas dos os Xikrin deveriam estar contidas neste
documento. Assim, ouvimos as gravações das reuniões com os engenheiros em que os
Xikrin questionavam os dados apresentados na versão final dos estudos para transcrevê-
las no papel e entregar para os representantes da LEME-Engenharia e da Norte Energia,
que acompanhavam a apresentação dos estudos.
Os trechos de falas priorizados pelos Xikrin para serem transcritos
relacionavam-se com seus conhecimentos sobre o rio Bacajá e suas previsões de
impacto.

Vocês não entendem isso. O rio precisa encher para os peixes subirem
e ir desovar nos igarapés. Se o rio ficar muito raso e com muita
cachoeira o peixe vai sumir. Já hoje, onde o rio corre mais os peixes
somem, vocês viram isso, nós mostramos para vocês.

O documento produzido nas aldeias onde ocorria a apresentação dos Estudos


Complementares do Rio Bacajá foi entregue em formato digitalizado em um pen drive
para os engenheiros responsáveis dos estudos. Os engenheiros explicaram que tal
documento só poderia fazer parte da versão redigida dos estudos em formato de anexo.
Os Xikrin não se sentiram satisfeitos ao saberem que, como anexo, suas falas ficariam
na parte final dos estudos.

Kukràdjà dos Xikrin Mẽbêngôkre não é uma coisa pequena. É algo


muito forte e muito bonito, não deveria estar só no final do
documento. Porque nós Xikrin Mẽbêngôkre sabemos muito sobre
nosso rio Bacajá, nós queremos que vocês aprendam isso, por isso
contamos muito para vocês, falamos muito. Nosso documento, que

198
vem do nosso kukràdjà, é muito mais verdadeiro e muito mais bonito
que esse estudo que vocês mostraram para gente.

Se, por um lado, as atividades das equipes dos estudos em campo eram
fundamentadas pelas colaborações dos Xikrin; por outro, o produto final gerado apagou
tais colaborações em nome da homogeneidade de apresentação dos dados, do modelo do
documento enquanto artefato, para remeter ao debate de Riles (2001, 2006). A estética
do modelo dos Estudos Complementares do Rio Bacajá acabou por obliterar o
posicionamento dos Xikrin, suas expressões acerca dos seus conhecimentos dos rios
Bacajá e Xingu e suas previsões de impacto em favor de análises numéricas e medições
matemáticas de vazão do rio Bacajá.
A crítica dos Xikrin ao formato final dos Estudos Complementares do Rio
Bacajá reforça o argumento de Riles (2001) acerca do procedimento de produção de
certos tipos de documentos que atua num eclipsamento mútuo de onde surge um modelo
de (re)conhecimento singular. Segundo a autora, a habilidade do exercício dos que
redigem os documentos reside em certos detalhes, em degraus de familiaridade com a
convenção estética, que nega e recusa a invenção de novos designs ou a transformação
de uma forma em outra. Nesse sentido, o objetivo de um documento é alcançar
satisfatoriamente uma estética de lógica e linguagem. Não há espaço para comentários,
interpretações ou reflexões no produto final do documento, tais exercícios são deixados
de lado no modelo pronto.

Documento: forma que não persuade da política dos brancos

Debates e reflexões sobre (des) encontros entre grupos indígenas ou regionais


com aparatos burocráticos de políticas estatais, paraestatais e empresariais tem
assumido grande interesse de pesquisas antropológicas recentemente165. Algumas dessas
pesquisas ao focar nos modos como os seus interlocutores agem criativamente em

165
Ver, por exemplo, Nahum-Claudel (2012) acerca da relação entre os Enawene e as práticas de
negociação com agências de governo e empresas privadas para construção da usina Telegráfica na parte
superior do rio Juruena; Coelho de Souza (2012) sobre um contrato entre os Kῖsedje (Suyá) e a empresa
de caçados Grendene; Cofacci de Lima (2012) sobre os efeitos da popularização do kampô no meio
urbano entre os Katukina; Andrello, (2012) sobre o reconhecimento pelo Estado brasileiro da Cachoeira
de Iauretê como patrimônio cultural do país e os efeitos na política-ritual dos grupos tukano e tariano;
Cohn (2001) sobre a contraposição entre as noções Xikrin de cultura e tradição e os conceitos de cultura e
civilização do pensamento ocidental.

199
relação a esses encontros, trazem à tona críticas aos modelos ocidentais de burocracia e
política, permitindo-nos problematizar sobre como certas instituições se organizam e
como realizam seus projetos de intervenção e mapeamento.
As situações dos equívocos e desentendimentos entre os Xikrin e os
engenheiros da LEME-Engenharia, durante as apresentações dos resultados dos estudos,
é mais um exemplo de como os regimes indígenas podem ser considerados como um
tipo de saber menos objetivo, com menor estatuto de veracidade científica em relação
aos dados coletados pelos biólogos, às amostras de água coletadas, às leituras de
máquinas sobre fluxo de vazão do rio. Os regimes de saber Xikrin [kukràdjà] não foram
considerados, na versão final dos estudos, como possuindo o mesmo estatuto dos dados
apresentados pelos engenheiros e por isso foram obliterados por gráficos e modelos
matemáticos que colocaram as teorias Xikrin em situação de apagamento, em situação
de anexo, com estatuto inferior por serem consideradas informações de caráter
ilustrativo, menos importante do que os gráficos de vazão do rio Bacajá.
A decisão dos técnicos-redatores do documento acerca do que esconder e
mostrar no texto final dos Estudos Complementares do rio Bacajá faz parte de um jogo
ético e estético dos documentos enquanto artefatos (Riles, 2001). Nesse jogo, a
expertise dos técnicos-especialistas assume maior materialidade do que as falas dos
Xikrin, consideradas incapazes de gerarem dados concretos comprováveis.
Os engenheiros tornaram visíveis seus gráficos, seus cálculos de previsão
hidrológica; enquanto que os Xikrin tornavam visíveis, ao longo do trabalho de campo
das equipes dos estudos, seus modos de conhecimento, suas teorias de impacto com o
secamento do rio Xingu, a relação hidrológica do rio Xingu com o rio Bacajá, o saber, a
cultura, o conhecimento dos Mẽbengôkre [Mẽbengôkre kukràdjà]. Os Xikrin, ao
mostrar seus conhecimentos, queriam a elaboração de um documento
bonito/correto/verdadeiro [piôk nipey mejxtere] sobre o rio Bacajá e a região da Terra
Indígena. Ao insistirem em registar em documento suas concepções e saberes, os Xikrin
além de marcarem uma posição de que seus conhecimentos eram tão e são ainda mais
importantes que o dos engenheiros, agiam para tentar controlar os desacordos entre os
diferentes modos de conhecimento e mostrar seus conhecimentos [kukràdjà] como
verdadeiros.
As ações dos Xikrin para exercício de controle em relação às equivocações e
equívocos relacionados com o processo do licenciamento e construção de Belo Monte,
decorrentes da intensificação de contato com setores da empresa consorciada, podem ser

200
também apreciadas a partir do modo de seus engajamentos em projetos desenvolvidos
por empresas vinculadas à execução do PBA CI (Plano Básico Ambiental Componente
Indígena) e por instituições ambientais não governamentais de defesa da Amazônia.
Como descrevo no capítulo seguinte, ao se engajarem na execução de alguns desses
projetos, os Xikrin operam tentativas para exercício de controle dessas atividades com
intenção de torná-las corretas e verdadeiras [mejx kumrejx].

201
CAPÍTULO 7. Projeto

[...] Ele avança e enuncia, entre injunção e pedido:


_ Foto.
Os olhos do índio sobem dos pés até os joelhos do sr. Brown.
_ Um peso.
Bom, ao menos ele sabe o que é dinheiro. Era de esperar... Enfim, não é caro.
_ Sim, mas é preciso tirar a roupa! Foto, mas não com essa roupa!
O sr. Brown faz o gesto de abaixar as calças ao longo da pernas, ensina a desabotoar a
camisa. Despe o selvagem, desembaraça-o de suas velhas roupas imundas.
_ Eu tirando roupas, cinco pesos. [...]
Clastres, 2011, p.70

Este capítulo apresenta mais um elemento da crítica Xikrin à política dos


brancos, direcionada aos projetos. Para composição da crítica, apresento algumas
situações vividas em campo com o intuito de associar os brancos, especialmente os de
Belo Monte, ao egoísmo e sovinice. A composição da crítica à noção de projeto como
um artefato não persuasivo da política dos brancos será realizada a partir de duas
reflexões etnográficas: uma oficina de capacitação vinculada ao programa de
fortalecimento institucional, realizada na cidade de Altamira, com os membros da
Associação Bebô Xikrin (ABEX) para cumprimento das atividades de compensação do
Plano Básico Ambiental Componente Indígena (PBA CI) e a construção de casas de
alvenaria nas aldeias da TITB.
Durante a realização das atividades para capacitação de membros da ABEX
(Associação Bebo Xikrin) no que tange questões burocráticas vinculadas com
associações indígenas e modos de angariamento de recursos, realizadas em 2013, os
Xikrin presentes e o consultor contratado não concordaram em relação às definições
possíveis do conceito de projeto. A partir desse mal entendido, este capítulo discute
como o ponto de vista Xikrin destoava daquele do consultor e como esse
desentendimento expandiu-se para a situação de implantação de um projeto de
mitigação, a construção das casas alvenaria nas aldeias, levando os Xikrin, ao formular
suas críticas à política dos brancos, associar a imagem dos brancos com o egoísmo e a
sovinice.

202
O Programa de Fortalecimento Institucional é um dos dez eixos do Plano
166
Básico Ambiental Componente Indígena (PBA-CI). Os programas foram divididos
entre duas empresas e parcerias da Norte Energia com Associações Indígenas, como foi
o caso desse eixo, pactuado através de um Termo de Referência entre a empresa Norte
Energia e a ABEX (Associação Bebô Xikrin do Bacajá). Nesse termo de referência
foram estabelecidas atividades e ações, dentre elas as oficinas de capacitação para
fortalecimento institucional com os membros da associação. As atividades estavam
previstas para ocorrer durante um ano, uma em cada mês. A oficina que acompanhei foi
a primeira do cronograma de atividades e teve duração de cinco dias, ocorrendo nos
167
períodos de manhã e tarde numa das salas do prédio da Comunicação Indígena .A
divergência de opiniões entre os Xikrin da associação e o consultor especialista
contratado, para a realização das atividades que compunham o eixo de Fortalecimento
Institucional, sobre o conceito de projeto é destacada aqui como mais um dos elementos
de crítica à política dos brancos.
O objetivo da oficina que acompanhei era “ensinar os Xikrin que fazem parte
da ABEX (Associação Bebô Xikrin) a escreverem projetos para angariamento de
recursos de instituições não governamentais internacionais ou nacionais”. Num canto da
varanda, durante uma pausa para café, Bep Komati, presidente da associação, disse-me
que não estava entendendo o que o consultor falava e que, por sua vez, o consultor não
havia entendido o que era para ele fazer, ou seja, um projeto.
A metodologia utilizada pelo consultor foi mostrar aos Xikrin da ABEX um
edital em andamento do Instituto Ibero Americano da Fundação Interamericana (IAF)
168
que contava com financiamento parcial do FNMA (Fundo Nacional do Meio
Ambiente). A proposta de projeto desejada pelos membros da associação indígena era a

166
Entre eles: Programa de Fortalecimento Institucional, Programa de Comunicação para não indígena,
Programa de Gestão Territorial, Programa de Educação Escolar Indígena, Programa de Saúde Integrada
Indígena, Programa de Atividades Produtivas, Programa de Patrimônio Cultural Material e Imaterial,
Programa de Infraestrutura, Programa de Supervisão Ambiental do Meio Físico e Biótico.
167
A sede da casa de Comunicação Indígena é um espaço que conta atualmente com quatro funcionários
destinada para uso pelos índios de suas salas em casos de reuniões ou uso do rádio para comunicação nas
aldeias. Sua construção, decoração, equipamentos foram custeados como parte dos programas de
mitigação pela Norte Energia. Trata-se de um espaço bem decorado com motivos de arte indígena que
funciona em horário comercial durante os dias de semana. Enquanto isso, a Casa do Índio, devido a sua
reforma no ano de 2013, operou em uma locação improvisada para o recebimento dos índios durante suas
estadias em Altamira. Além de absurdamente pequena e mal arejada, a Casa do índio temporária tinha
sérios problemas elétricos, e chegou a pegar fogo nas fiações numa de minhas visitas ao local.
168
Inter-American Foundation.

203
169
criação de gado em duas das oito aldeias da TITB. A proposta dos Xikrin foi
prontamente rejeitada pelo consultor que tentava, em vão, convencer os índios de que o
edital em questão não aceitaria financiar um projeto como esse que, entre coisas,
“desmatava o ambiente e não se constituía como uma prática, nem tradicional nem
sustentável dos índios”. Os membros da ABEX não entendiam o motivo da rejeição.

Porque não vão financiar? Já existe uma área de pasto nas aldeias
Mrotidjam, Pot-Krô e Pykaykà. Já teve criação de gado nessas aldeias.
A gente quer isso de criar gado porque fazer farinha a gente já sabe, e
não precisamos de um projeto para fazer o que a gente sabe. O projeto
tem que fazer coisas novas para gerar renda. Farinha a gente já sabe
fazer, a gente já faz. Não precisa de projeto para fazer farinha.

O consultor estava empenhado em mostrar que um projeto como o de criação


de gado em Terras Indígenas não seria aceito pelos órgãos de sustentabilidade. E
perguntou: “Como vocês irão pagar pelas vacinas dos gados, sal e remédio?”. A
resposta dos Xikrin foi imediata: “Nós não vamos pagar nada, o projeto é quem vai
pagar isso!”. Ele insistiu: “O projeto pode até financiar a primeira fase de vacinação e
alimentação, mas depois vocês é que terão de arcar com todos esses gastos e como farão
isso?”. Bep Komati, não pestanejou: “A gente vende umas cabeças desse gado para
pagar”. E antes da indignação do consultor se transformar em fala, outro membro da
ABEX propôs: “Acho que seria melhor mesmo contratar uns kubẽ [brancos] para cuidar
do gado, tens uns colonheiro170 bons que criam gado no Plano Dourado”. De indignação
a inconformismo, assim a mudança na face do consultor podia ser percebida, de forma
que resolveu repetir o intervalo para o café.
Os Xikrin, alheios ao desentusiasmo e indignação do consultor permaneceram
na sala de reuniões onde se projetava o edital, acima referido, com espaços em branco a
serem preenchidos para o futuro envio do projeto e pediram para eu começasse a
171
preencher os papéis. O título do projeto, por eles escolhido, foi: “Mrỳ ti : Projeto de
geração de renda para os Xikrin Mẽbêngôkre da Trincheira-Bacajá”.
Quando o consultor retornou de seu solitário café, Kapôt (tesoureiro da ABEX)
tentou reanimá-lo para tentar fazê-lo entender e aceitar o que os Xikrin queriam como
projeto.

169
Para uma interessante análise sobre o desejo dos Karitiana em se tornarem fazendeiros, ver: Vander
Velden (2011).
170
Modo regional de chamar quem trabalha com criação de gado.
171
Bicho, animal grande, termo usualmente associado a bois e vacas.

204
Nós da ABEX temos que fazer as coisas para melhor a vida dos
parentes, a gente precisa fazer projetos para aumentar a renda dos
índios. Na aldeia tem muita comida, muita caça e muito peixe, muita
fruta e muita roça. Mas isso pode acabar logo. Quando o rio ficar
fraco e quente o peixe vai morrer, a caça vai embora e vamos precisar
ter dinheiro para comprar comida. O gado é bom porque também dá
para comer. Os velhos não comem gado, mas os jovens comem,
gostam de churrasco como fazem vocês, kubẽn. Farinha, a gente já
tem muita na aldeia. Agora a gente precisa de outra coisa, de projeto
grande mesmo que gere bastante renda para nosso povo.

Bep Komati seguiu após a fala de Kapôt.

Tem branco que pensa que o índio vai ficar para sempre nu na aldeia.
Não é mais assim não. As coisas mudam e porque o índio não pode
mudar também? Ou será que seremos obrigados a ficar para sempre
nu nas aldeias? Entendeu? A ABEX é a associação do índio e é o
índio que decide o que ele quer no projeto.

O consultor tentou algumas outras vezes convencer os Xikrin de que não seria
possível enviar o projeto de criação de gado para aquele tipo de edital que focava em
políticas de sustentabilidade, mas não teve sucesso. Bep Komati continuou dizendo:

A gente já escolheu o projeto. Queremos o projeto do gado. Queremos


contratar uns kubẽn para trabalhar no gado para gente. Como pode ser
que um edital escolha um projeto? Somos nós que dizemos o projeto
que queremos. Agora, você precisa preencher esses papéis para o
projeto começar logo. Não queremos enrolação. Estamos cansados de
sermos enrolados. Vocês kubẽn falam coisas incompreensíveis,
ficamos sem entender. E fazem isso para enganar a gente. Nós já
aprendemos isso.

O desentendimento sobre o conceito de projeto entre os Xikrin da ABEX e o


consultor tornava-se cada vez maior ao longo dos dias da semana. O desentendimento
ganhou mais força numa longa discussão acerca de um dos itens, a ser preenchido no
edital, nominado “contrapartida do proponente”. O consultor explicou que nesse item
deveriam estar descritas as contrapartidas da comunidade indígena, o que os Xikrin
iriam fazer para o projeto como trabalho e alimentação, por exemplo. Após a fala do
consultor, poucos tinham entendido o que era “contrapartida do proponente”, até que
um dos jovens arriscou uma explicação:

205
Acho que eu sei o que é isso. É a parte em que vamos trabalhar de graça para
o projeto, não é? Por exemplo, vamos cercar o pasto, nós mesmos, e não
vamos receber nada, nem a alimentação. Nós mesmos teremos que capinar e
cortar a madeira para as cercas. Nós teremos de fazer isso sem ganhar
nenhum dinheiro.

Um tanto desconsertadamente pela forma da explicação feita, o consultor


afirmou que era mais ou menos isso mesmo. Os demais membros da associação
começaram a rir, mas logo se posicionaram para falar.

Como assim, nós vamos ter que trabalhar no projeto? Que absurdo.
Isso não faz sentido. Como temos que trabalhar de graça no nosso
próprio projeto? E como assim, ainda teremos que trabalhar de graça?
Olha, eu acho que você não entende nada de projeto, porque onde já
se viu isso? Eu mesmo nunca vi isso de trabalhar de graça no próprio
projeto. No nosso projeto não vai ter isso não. Nós vamos contratar as
pessoas que vão trabalhar nele e o projeto vai pagar também o rancho
de todo mundo que tiver envolvido com o projeto.

Ao final do dia, o consultor foi embora desolado e os Xikrin estavam certos de


que ele não sabia fazer um bom projeto. Os Xikrin fizeram uma ligação para um dos
empregados da Norte Energia dizendo que era para contratar outra pessoa, alguém que
entendesse mesmo de projeto, que não queriam mais aquele consultor. “Sabe, agora eu
entendi que alguns kubẽn que não sabem nada de projeto. Ou será que projeto é isso,
porque se for isso é uma coisa muito ruim mesmo. Acho que estão mesmo enganando a
gente.” disse Bep Komati.
A expectativa dos Xikrin da ABEX sobre como deveria ser um projeto
envolvia três características principais: o desenvolvimento de uma atividade nova, cuja
técnica ainda não fosse dominada por eles; o engajamento de trabalho dos brancos nessa
atividade, sem que eles precisassem dispor de seu tempo e ação; e a geração de renda
destinada a eles. Tal expectativa, não compartilhada pelo consultor, concordava com as
análises de Cohn (2008) sobre kukràdjà enquanto um mecanismo Mẽbêngôkre de busca
de novos aportes e saberes. Os Xikrin não estavam interessados em um projeto que
focasse em uma atividade ou tecnologia que já conhecem e dominam, como a produção
de farinha. Mesmo que essa atividade tenha sido aprendida com moradores locais da
região, atualmente é tratada como um conhecimento dos Xikrin, que a incorporaram em
seu cotidiano e que faz parte de seu modo de existência atual.
O desentendimento acerca do conceito de projeto entre os Xikrin da ABEX e o
consultor contratado para execução do programa de fortalecimento institucional é usado

206
aqui como um importante gancho para as críticas posteriores feitas por eles durante a
implantação do projeto de construção das casas de alvenaria. Isso porque, em ambas as
situações, como se verá a seguir, os brancos não se dispuseram a considerar a
possibilidade de levarem adiante as demandas apresentadas pelos Xikrin. A
desconsideração das demandas Xikrin em relação ao conceito de projeto marca uma das
características negativas da política dos brancos, a ineficácia que, por sua vez, está
intrinsicamente relacionada com o egoísmo como traço distintivo dos brancos e suas
ações. Antes de destacar a relação entre projeto e egoísmo como aspectos negativos da
política e das ações dos brancos, considero importante apresentar o modo Mẽbêngôkre
de produção de pessoas e convivialidade baseado no conjunto de práticas e
conhecimentos da cultura dos Xikrin, kukràdjà.
Assim, antes de apresentar a crítica ao modo de construção das casas de
alvenaria nas aldeias irei destacar a importância da casa no processo de criação e
formação das pessoas Mẽbengôkre. Para cumprir seu objetivo de evidenciar os
contrastes de perspectiva dos conceitos de casa como local de produção de pessoas e de
casa de alvenaria como incapaz, devido à sua forma, de cumprir essa função, pretendo
estender essa contraposição a uma oposição mais abrangente entre os Xikrin e a família
dos brancos, considerada negativamente como pautada por egoísmo e sovinice. Com
esse intuito, o capítulo é divido em três partes.
Na primeira parte discuto a importância da casa Mẽbêngôkre na criação e
formação de pessoas, marcadas por certos modos de se relacionar entre parentes afins,
consanguíneos e amigos formais. Inspirada na literatura especializada, especialmente
nas análises de Lea, esta parte do capítulo recorre a alguns eventos ocorridos em campo
que ajudam a reforçar a imagem de casa Mẽbêngôkre como meio fundamental para
produção de pessoas.
A segunda parte descreve, a parir da construção das casas de alvenaria nas
aldeias, como os Xikrin concebem a família dos brancos e sua correlação intrínseca ao
egoísmo. Dois acontecimentos são acionados para a apresentação dessa descrição: uma
visita dos Xikrin da aldeia Bacajá ao local de construção das casas de alvenaria na
aldeia Rap-Kô, que gerou críticas das mulheres, e uma visita de três homens Xikrin à
cidade de São Paulo, durante um evento de apresentação de fotografias de suas aldeias
que ocorreu no Conjunto Nacional em meados de abril de 2014. A narrativa sobre a
origem do homem branco também é destacada por ser referida pelos Xikrin para

207
descreverem as duas situações destacadas, além de ser o modo como explicam certas
atitudes dos brancos.
A terceira parte tem como intenção deslocar a crítica dos Xikrin ao projeto de
construção das casas de alvenaria nas aldeias, estendendo-a a uma crítica ao projeto
como um dos elementos negativos da política dos brancos. Para isso, apresento a
distinção operada pelas mulheres Xikrin, entre os Mẽbêngôkre, um tipo de gente que
compartilha modos corretos de viver e estar no mundo [kukràdjà], e os brancos de Belo
172
Monte [kubẽn do ngô byêt] , como um tipo de gente mentirosa e cujas ações são
sempre fracassadas por não produzirem as realizações das demandas dos Xikrin.
Concomitantemente, pretendo refletir analítica e criticamente acerca dos efeitos das
oposições analógicas entre casa Mẽbêngôkre e casa de alvenaria, desde o ponto de vista
Xikrin, para a desestabilização de conceitos caros à sociedade do analista como projeto
e política. Apresentar etnograficamente como os Xikrin pensam e descrevem certos
conceitos dos brancos permite operar deslocamentos em relação à própria definição
antropológica desses conceitos, de forma a tornar visível como os Xikrin se posicionam
em relação a eles.

Casa mẽbêngôkre [kikre]:o buraco do fogo

Nesta sessão, apresento algumas descrições analíticas e etnográficas que me


ajudam a mobilizar o conceito de casa Mẽbêngôkre [kikre], tal qual os Xikrin a
explicitam. Para além das diversas análises teóricas acerca desse tema em relação aos
povos Jê Setentrionais, e não tendo o intuito de me posicionar em algum dos lados desse
debate, pretendo, ao formular descritivamente o conceito de casa [kikre], definir uma
posição analítica contra a qual a noção de família dos brancos se oporá na segunda parte
deste capítulo 173.

172
Ngô beyêt é o termo acionado pelos Xikrin para se referirem à usina hidrelétrica de Belo Monte. A
tradução extensa do termo é ngô [água], beyêt [parada, barrada]. A formulação kubẽyêt também é usada
para referência aos brancos vinculados a Belo Monte e sua tradução pode assumir a imagem de: brancos
barrados ou brancos parados.
173
Inspiro-me em Marques (2002) e sua etnografia sobre a relação entre brigas de família e política no
sertão pernambucano. Segundo a autora, diferentemente do que é veiculado na mídia e mesmo entre
alguns analistas das Ciências Sociais, os sertanejos problematizam essa associação entre família e
política, deslocando a própria noção de família como um conceito em constante movimento: ora
aproximando-se de política e ora distanciando-se dela.

208
O conceito de casa na língua mẽbêngôkre é kikre. O termo, por sua vez, em sua
explicação literal pode ser traduzido como ki, fogo de pedra tipicamente mẽbêngôkre
onde os alimentos são assados, e kre, buraco. De forma literal, kikre pode assumir a
seguinte imagem: buraco do fogo. Ao serem indagadas sobre essa possibilidade de
tradução, as mulheres Xikrin da aldeia Bacajá disseram-me que o termo pode ser assim
traduzido, mas que não o fazem porque ficaria muito esquisito aos ouvidos dos brancos
esse tipo de formulação e que por esse motivo, optaram por simplificar essa tradução
para o termo casa174.
A noção de buraco é fundamental para os Xikrin por conter, em muitas
situações distintas, uma capacidade transformativa poderosa de produção de pessoas,
coisas e capacidade, além de ser usada para referir-se às práticas de plantio e colheita de
cultivares da roça. O tema do buraco aparece nas narrativas Mẽbêngôkre de origem da
humanidade, mencionadas na introdução quando passaram pelo buraco no céu e pelo
buraco do tatu, perderam sua condição inicial de gente-ave e passaram a viver e morar
no plano terrestre (Giannini, 1991). As sementes das plantas cultiváveis ao serem
colocadas no buraco da terra nascem e crescem podendo ser colhidas e usadas como
fonte alimentar. A ideia de buraco contida na terminologia kῖ kre implica em
movimentos de transformação. De modo que, o buraco do fogo ou a casa Mẽbêngôkre
reforça a imagem de ser um desses domínios transformadores que formam e produzem
corpos humanos e pessoas humanas (leia-se, gente Mẽbêngôkre).
O conceito de casa Mẽbêngôkre como domínio de transformação na produção
de pessoas depende da ação conjunta do buraco e do fogo. Certa tarde, enquanto eu
acompanhava as mulheres Xikrin da aldeia Bacajá na floresta [bà] para coleta de açaí
[kamere auapá], apontei para um buraco próximo a um tronco de árvore caído, dizendo:
Gowá, apiety nho kikre [Olhem, a casa ou o buraco de fogo do tatu]. Em meio a risadas,
uma mulher explicou: Ket, Bekwy. Okudjare. Apiety nho kre. Kikre, kêt [Não, está
errado. É um buraco do tatu, não é uma casa (buraco de fogo) do tatu]. Elas explicaram
que o tatu não tinha uma casa [kῖ kre], porque esses animais não fazem fogo e por isso o
local de sua morada é apenas buraco [kre]. Os tatus, por não terem fogo de pedra [kῖ]
não moram em casas e não assam os alimentos para comer.

174
Movimento consoante à tradução do termo kukràdjà como “cultura” e mẽreremejx como “festa de
aniversário”. Os Xikrin recorrem a esses movimentos de tradução para se referirem a diversas palavras
em português como, por exemplo, lanterna [rop nó: olho da onça], gato [mru kranh nhere: bicho de
cabeça redonda], avião [mãt kà; invólucro da arara].

209
Uma instigante descrição etnográfica sobre a relação entre os conceitos de
família e casa foi realizada por Beltrame (2013). Em sua etnografia sobre escola na
aldeia Mrotidjam, a autora apresenta uma imagem bastante interessante sobre a relação
dos conceitos de casa e família entre os Mẽbêngôkre. Durante um exercício de aula, a
professora não indígena propôs aos alunos que confeccionassem um desenho de suas
famílias. “O resultado da atividade foi que todos os estudantes fizeram o desenho de
uma casa da qual saía um caminho que levava para roça” (Beltrame 2013, p. 84; grifo
inserido por mim). Insatisfeita, a professora orientou que num desenho sobre família
deveriam estar presentes os membros das famílias (pai, mãe, irmãos, avós) e não a
imagem da casa e do caminho para roça.
Se os estudantes da escola desenharam suas casas e os caminhos das roças de
suas casas para referirem-se ao exercício proposto de desenhar a família, eles estavam
marcando uma diferença naquilo que se concebe como família e que tem na casa e na
roça sua exponencial expressão. Não existe na língua Mẽbêngôkre alguma palavra que
possa ser traduzida como família, e de fato, meus interlocutores não costumam
introduzir esse termo quando falam de si mesmos. Diferentemente do que ocorre para o
termo casa, que é associado à terminologia kikre, família não possui um equivalente na
175
língua Mẽbêngôkre . Quando querem referir-se sobre si para os brancos, os Xikrin
habitualmente acionam o termo “parentes” [ombikwá]176. No entanto, quando
incentivados a representarem (graficamente) seus parentes a imagem que pareceu
apropriada aos estudantes foi a da casa e do caminho da roça. Apesar de não haver o
equivalente Mẽbêngôkre ao termo de família, os estudantes da aldeia Mrotidjam,
entenderam que a representação gráfica desse conceito deveria passar pela imagem
associada entre casa e roça.
O conjunto casa e roça é aquilo que produz pessoas e corpos aparentados via
comensalidade. Os produtos das roças femininas compõem o processo de nutrição
(nurture) 177 dos corpos das pessoas que residem nas casas. As roças, nesse sentido, são

175
Além da palavra família, palavras como impacto, mitigação, projeto, estudos, condicionantes também
são referidas sempre em português.
176
Como já notado pela literatura especializada, o conjunto de terminologias de parentesco é bastante
complexo e depende, não só de quem se fala, mas também para quem se fala. Todos esses elementos
terminológicos triádicos referem-se à relação das pessoas entre si em relação aos seus pertencimentos
(mais próximos ou mais distantes) das casas e das relações de parentesco e afinidade entre as casas. Sobre
esse debate, ver Lea (2012b).
177
Conceito de Strathern (2014, p. 51,52) sobre as ideias de produção de pessoa entre os Hagen. Segunda
a autora, esse processo se associa a uma relação entre a ingestão de comida pelo corpo da criança e a
resposta positiva a essa ingestão, que cria ou reforça certas relações com os outros, consciência da

210
extensões das casas (Cohn, 2011) que operam nas transformações necessárias para o
crescimento e manutenção dos corpos das pessoas178.
As roças são atribuídas às mulheres que as cultivam, sendo associadas a elas
por meio de pertencimento, como, por exemplo: Mopkure nhô puru [roça de Mopkure,
roça que pertence à Mopkure]. O trabalho de abertura da roça é feito pelo casal, homem
e mulher, de modo que as primeiras roças de uma mulher serão produzidas após o seu
casamento e nascimento do primeiro filho ou primeira filha. Antes de se casar e abrir
sua própria roça, o que implica também em ter seu próprio forno de pedra [kῖ], as
mulheres auxiliam na manutenção das roças de suas mães (M, MZ) e de suas tias ou
avós (MM, FM, FZ).
A relação casa e roça pode ser pensada como fonte de uma dupla
transformação. A casa como buraco fogo que produz gente Mebêngôkre e a roça como
domínio das mulheres a partir do cultivo de plantas comestíveis que crescem nos
buracos dos plantios após a queima. Os alimentos produzidos na roça, cultivado pelas
mulheres, são os responsáveis, juntamente com as carnes de caça e consumo de peixe,
pelo fortalecimento e formação dos corpos saudáveis das crianças e dos adultos.

humanidade, aquisição de habilidades e capacidade de seguir regras. Para a autora, esse processo não se
refere à socialização, mas a relações de nutrimento e parentalidade.
178
Segundo análise de Cohn (2011, p. 64, p. 67), roças são partes cruciais dos saberes das mulheres
[menire kukràdjà], propiciadoras de redes de parentesco e afinidade na transmissão dos cultivares e,
principalmente, são uma imagem das relações com outros, análogas ao idioma da guerra por também
enriquecer o modo mẽbêngôkre de produção de distintividade e beleza. As mulheres Xikrin revelam-se,
então, engajadas no estabelecimento de relações com outros, na valorização de sua alteridade _de si e do
outro_ de modo a enriquecer seus próprios meios de criar o parentesco, as relações, a beleza. (Cohn,
idem, p. 69)

211
Figura 28: Roça após a queima. Foto: Arquivo pessoal da autora.

Cada mulher tem uma roça ou mais dependendo da quantidade de filhos/filhas


e netos/netas que possuir. Conforme a dona de uma casa vai ganhando crianças, ela
também aumenta o número de roças que irá cultivar e cuidar. As roças podem ser
abandonadas, por certo tempo, e reativadas anos mais tarde. Apesar de serem donas de
muitas roças, em geral as mulheres possuem alguma roça ativa próxima de sua casa.
As mulheres, como também destacam Cohn (2011) e Lea (2012), têm muito
orgulho de seus cultivares e gostam de mostrar o quanto suas batatas estão belas e
grandes. As roças, assim como as aldeias, são circulares e cada item é plantado
seguindo um esquema de preenchimento circular: bananas e mamões nas partes
externas, seguidos de mandiocas bravas e macaxeiras, milhos, carás e batatas na porção
central. Após a derrubada da área, as ramas de batatas e carás são plantadas e só depois
é que se faz a queima da roça. “O fogo ajuda as batatas e os carás crescerem fortes” 179.
Além da diversidade dos cultivares, um dos principais aspectos da relação
mulher, casa e roça é o mútuo pertencimento. Fisher (2000, p. 176) destaca essa
conexão relacional a partir de um desentendimento entre servidores da FUNAI local e
mulheres Xikrin, em meados dos anos noventa, acerca da abertura e plantio de uma roça

179
Um debate interessante sobre o plantio e o cultivo de batas e carás entre os Krahô foi realizado por
Morin (2016). Em seu trabalho, a autora mostra que as batas e os carás gostam do fogo da queima da roça
e por isso crescem em resposta à ação de suas cultivadoras.

212
coletiva. Segundo o autor, tudo parecia correr conforme esperado até o momento do
plantio da roça, quando as mulheres recusaram-se a ceder exemplares de seus cultivares
pessoais. A recusa das mulheres ocorreu quando elas perceberem que não poderiam
plantar separadamente suas roças naquele espaço e não poderiam dividi-lo em pequenos
lotes. Elas negaram-se a contribuir com seus cultivares particulares valorizados num
espaço de roça genérica e coletiva, cujo controle seria difícil estabelecer.
Semelhante ao embaraço descrito por Fisher (2000), as mulheres Xikrin da
aldeia Pot-Kro viveram uma situação similar em 2013. Assim como os servidores da
FUNAI dos anos noventa, os consultores relacionados ao GATI 180 (Gestão Ambiental e
Territorial de Terras Indígenas) estavam empenhados em disponibilizar recursos para
financiamento de projetos sustentáveis na Terra Indígena como o caso de roça coletiva.
Porém a resolução das mulheres em relação ao projeto atual da roça coletiva foi distinta.
Se, por um lado, os embaraços que um projeto de roça coletiva impunham às mulheres
Xikrin permaneciam os mesmos; por outro, os efeitos desses embaraços e as saídas
encontradas por elas para superá-los diferenciaram-se.
As mulheres da aldeia Pot-Krô não se recusaram em ceder seus cultivares para
serem plantados na roça coletiva, desenvolvida com implantação e financiamento do
projeto pelo GATI. Elas sequer levantaram tal questão na reunião com os representantes
da instituição. O que não significou, por sua vez, que elas tenham aceitado ou
concordado com a proposta de abertura e manutenção de uma roça coletiva. O modo de

180
A PNGATI (Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas) se propõe a
fortalecer práticas indígenas de manejo e uso sustentável dos recursos naturais fortalecendo a contribuição
das Terras indígenas como áreas essenciais para conservação da diversidade biológica e cultural nos
biomas florestais brasileiros. Trata-se de uma ação conjunta entre Fundação Nacional do Índio (Funai),
Ministério do Meio Ambiente (MMA), The Nature Conservancy (TNC), Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD) e Fundo Mundial para o Meio Ambiente (GEF-Global Environment
Facility). Fonte de informação: http://cggamgati.funai.gov.br/index.php/projeto-gati/o-que-e-o-gati/>>
acesso em 13 de outubro de 2014. A proposta de formalização do projeto de roça coletiva surgiu na aldeia
Pot-Krô, durante a realização de oficinas para “Capacitação de Uso de GPS” em julho de 2013. Na
cozinha/varanda da casa de Ngrengarati eram preparadas as refeições servidas durante a oficina. Certa
tarde, um dos representantes do GATI, conversava com o cacique no intuito de explicar melhor o que era
a instituição e seus objetivos. Em sua explicação, o representante mencionou a existência de vários tipos
de projetos sustentáveis apoiados pelo órgão, destacando a existência de uma alínea denominada
“Pequenos Projetos”. Essa alínea, explicou, é formada pelo financiamento de projetos sustentáveis cujo
valor não ultrapasse quatro mil reais e serve como uma forma de aprender a organizar e executar um
projeto. Nesse momento, a conversa teve longa pausa e os Xikrin que estavam presentes, homens e
mulheres, conversaram longamente entre si, na língua mẽbêngôkre, sem que os representantes pudessem
acompanhar o diálogo. O cacique perguntou a um dos representantes: “E qualquer um que quiser pode
participar?”. Frente a uma resposta afirmativa, mais uma vez instaurou-se uma conversa entre os Xikrin
presentes que terminou com a afirmação, feita pelo cacique: “Então, as menire [mulheres] querem fazer
esse pequeno projeto”.

213
subversão da coletividade da roça foi justamente a realização de uma divisão interna e
silenciosa por elas desse espaço, conforme suas roças domésticas.
Acompanhei, junto com Stephanie Tselouiko181, a abertura, a queima e o
plantio da roça grande [puru tire]. Não é intenção deter-me na descrição desse processo,
mas reter dele, a criatividade das mulheres Xikrin em seu modo de engajamento com o
projeto da roça coletiva. Ao aceitarem a realização do projeto da roça coletiva, as
mulheres Xikrin desenvolveram estratégias para manter suas roças domésticas
separadas umas das outras, de modo a que cada uma pudesse reconhecer suas roças
182
singularmente e cuidar do crescimento dos cultivares de modo distinto . Sendo as
roças extensões das casas e das mulheres das casas (e vice-versa), o conceito de roça
coletiva não faz sentido, pois seria como supor casas e mulheres coletivas ou indistintas.
Outro evento que ajuda na montagem do conceito de casa para os Xikrin
ocorreu durante a primeira campanha da equipe de técnicos, contratada pela LEME-
Engenharia para realização dos Estudos Complementares do Rio Bacajá (ECRB),
discutido no capítulo anterior. Os biólogos contratados para elaboração do estudo de
impacto ambiental eram responsáveis por coletar dados acerca dos padrões de consumo
alimentar nas cinco das oito aldeias contempladas. Em suas primeiras atividades, a
equipe dos técnicos viu-se com um problema para a realização da coleta dos dados. As
mulheres Xikrin não queriam permitir que seus alimentos fossem pesados pela equipe
de pesquisadores e escondiam deles toda e qualquer sorte daquilo que iriam consumir.
Para as mulheres Xikrin, os alimentos consumidos nas casas não deveriam ser
quantificados, visto que esse tipo de conhecimento não deveria circular entre casas
diferentes. Acusações de egoísmo e sovinice poderiam vir à tona se um parente de outra
casa, ao saber a quantidade de alimento (especialmente de carne de caça), se sentisse
mal contemplado com a distribuição oferecida a ele pela dona da casa. Por esse motivo,
as mulheres Xikrin tratavam de esconder dos pesquisadores os alimentos e os impediam
de entrarem em suas cozinhas. Além disso, a contagem das pessoas de cada casa feita
pelos pesquisadores gerou um dado equivocado quando esse número foi usado como
divisor da quantidade de alimento. Isso porque, ao serem perguntadas sobre quantas
pessoas moravam ou pertenciam à sua casa, as mulheres elencavam todas as pessoas
181
Para uma reflexão sobre as definições Mẽbengôkre de mata e roça, a partir dos processos de
etnomapeamento desenvolvidos entre os Xikrin do Bacajá, ver Tseluiko (2015). A antropóloga realizou
um curta metragem chamado “No caminho da roça” tematizando a abertura da roça grande que pode ser
visto em: https://www.youtube.com/watch?v=M9uqoxVL3_k.
182
Como já notou Lea (2012), acusações de roubo de cultivares de roças alheias podem gerar brigas e
embates muito conflituosos entre as mulheres.

214
que saíram de suas casas (que foram produzidas na casa), inclusive aqueles que não
moravam mais naquela residência ou que residiam em outra aldeia.
Entre os Mẽbêngôkre, Xikrin e Kayapó, casas devem seguir uma etiqueta
específica de visualidade e implica num modo restritivo de circulação de pessoas. As
casas devem ser dispostas espacialmente em um círculo e devem ser todas semelhantes
em relação à sua forma e tamanho, além de estarem adequadamente localizadas nesse
círculo da aldeia (Lea, 1995, 2012). A visualidade espacial das casas é a marca da aldeia
circular e deve estar correta para que a aldeia seja considerada um lugar adequado para
se viver.
Em termos desejáveis, segundo descrevem os autores e autoras da literatura
especializada dos povos Mẽbêngôkre, uma casa é ocupada pela família extensa
uxorilocal, ou seja: pai, mãe, suas filhas, os respectivos maridos delas e os netos. A
uxorilocalidade entre os Mẽbêngôkre, em termos ideais, desloca os filhos de uma casa a
se mudarem, após adquirirem matrimônio, para a casa de suas esposas, e
consequentemente de sua sogra, seu sogro, sua cunhada e os maridos delas.
Comumente, no entanto, como também notou Lea (1995, p. 207), o cumprimento dos
padrões residenciais uxorilocais não é seguido à risca e é comum que os arranjos de
habitação sejam feitos de modos distintos, a depender de uma série de circunstâncias.
Mesmo sem que o padrão residencial ideal seja aplicado, a resposta de uma mulher,
responsável por uma casa, quando perguntada sobre quem mora nela, irá elencar: seu
marido, as suas filhas, os seus filhos, os seus genros, os seus netos e netas; incluindo
casos em que essas pessoas não residam na casa naquele momento. Além disso, o
acesso de pessoas às outras casas depende do estabelecimento de relações de parentesco
183
e amizade formal [krab djwo] . O acesso às casas é restrito e deve ser respeitado,
inclusive pelos antropólogos que estão na aldeia, de forma que a insistência em entrar
em casas que não compõem as relações de parentesco às quais o antropólogo foi
vinculado é visto como mau comportamento.
Em geral, as casas mebêngôkre aparecem na literatura como periféricas em
relação à casa do guerreiro [ngàb], que ocupa o espaço central do círculo. É comum na
literatura da etnologia indígena clássica e contemporânea, a presença de um debate
183
O debate sobre o tema da amizade formal é bastante extenso na etnologia indígena americanista. Dito
de maneira rápida, os amigos formais, entre os mẽbêngôkre, são herdados pela linhagem paterna e não
são responsáveis pela nominação ou fabricação de uma criança, atuando em cerimônias rituais e
imprimindo relações de vergonha/respeito [pi’am] ou jocosidade/brincadeira [bitchaere]. Análises sobre
esse tipo de relação são encontradas em toda bibliografia clássica especializada: Cohn (2000, 2005),
Fisher (2000), Gordon (2006), Vidal (1977), Lea (1986, 2012), Verwjver (1992).

215
sobre política ritual 184, onde se mostram os aspectos políticos presentes na elaboração e
execução de rituais, e se dá destaque à execução de rituais e ao espaço da casa central
[ngàb] enquanto produtores de pessoas e coletivos. Segundo essa abordagem, entre os
povos Jê, especialmente entre os Mẽbengôkre, a relação entre ritual e política é
associada ao domínio masculino e ao centro da aldeia [ngàb], lócus das realizações
cerimoniais e espaço de realização da política. Vanessa Lea (1986, 2012), ao criticar o
dualismo implicado no modelo de descrição da teoria antropológica do HPBC (Harvard
Central-Brazil Project), propõe o exercício de invertermos nosso olhar e tomarmos as
Casas185 circularmente dispostas como englobantes do espaço central e da casa central.
Seguindo o procedimento de Lea (1986, 1995, 2012), Casas ou Matricasas passam a ser
consideradas como politicamente tão ou mais importantes por atuarem na transmissão
de bens e prerrogativas rituais e serem responsáveis pelos orquestramentos das
cerimônias.
Mesmo considerando a importância das análises de Lea e sua proposta de
inversão do concentrismo, que caracterizou as descrições da organização social
Mẽbengôkre, tomando as casas como englobantes do espaço cerimonial e desassociando
os efeitos políticos das ações ao domínio do masculino, sugiro que o modelo
dumontiano do englobamento dos contrários pode gerar outros mal-entendidos porque
acaba por manter a divisão entre esfera pública e doméstica, mesmo quando a última é
tomada como a estrutura englobante da relação.

184
Nos estudos etnológicos sobre os povos Jê Setentrionais, principalmente após a publicação dos autores
vinculados ao HPBC (Havard Project Brazil Central) coordenado por Maybury-Lewis (1979), política e
ritual são tratados como conceitos análogos ou extensivos uns dos outros. Segundo essa bibliografia,
incluindo o artigo de Turner (1979), as práticas rituais e a casa central seriam então a forma predominante
do espaço da política. Consequentemente, ainda segundo essa abordagem, a casa central, presente na
maioria das aldeias dos povos Jê Setentrionais, seria o espaço político por excelência ocupado e mantido
pelos homens. De modo que as mulheres, relegadas ao espaço doméstico da periferia das casas, ocupar-
se-iam de processos mais naturais ou apolíticos como o cuidado das crianças e o preparo alimentar.
Posteriormente, a relação entre política e ritual também foi discutida em Turner (1966, 1992, 1995), que
manteve a definição da política Mẽbengôkre como predominantemente masculina; Fisher (1991, 2001)
associou o faccionalismo e a formação de aldeias como um modo de operação da política entre esses
povos; Cohn (2001, 2005) associou a importância política das guerras com outros processos correlatos na
produção da pessoa Mebêngôkre; Vidal (1977, 1992) destacou a relação entre os grupos de idade
masculinos e formação de guerreiros e lideranças; Lea (1986, 1994, 1999, 2012) argumentou sobre como
a política não opera exclusivamente do centro cerimonial público associado ao masculino e apontou para
a importância política de atuação das mulheres comumente associadas ao doméstico como apolítico.
185
Respeito aqui a utilização dos termos casa e matricasa em letra maiúscula tal como defendidos por Lea
(1986, 1999, 2014) que se inspira no conceito de casa enquanto pessoal moral de Levi-Strauss (1979).

216
Figura 29: Aldeia Bacajá, vista de uma das casas do círculo. Foto: arquivo pessoal da autora.

A espacialidade da aldeia circular mẽbêngôkre pode ser considerada como uma


das formas mais perceptíveis da relação entre beleza e visualidade, juntamente com as
pinturas e os ornamentos corporais. A disposição circular das casas deve ser
cuidadosamente organizada e mantida, de modo que a distância entre cada casa e a casa
do meio [ngàb] deve ser a mesma, bem como a distância das casas entre si. A posição
de cada casa no círculo precisa respeitar certas disposições que se alinham a relações de
parentesco entre as casas. As casas das filhas de uma mulher são construídas ao lado da
casa da mãe e quando não há espaço no círculo, as novas casas podem ser construídas
atrás da casa com quem se vinculam. Pude observar, na aldeia Bacajá, a construção da
casa do casal recém-chegado Koitu e Bepnhô ao lado da casa da mãe dele. Koitu
explicou-me que sua casa foi construída ao lado da casa da mãe de seu marido porque a
casa de sua própria mãe, ou casa de onde ela saiu, fica em outra aldeia.
Na maior parte do tempo, mulheres e crianças ocupam o espaço externo das
casas onde está o kῖ [fogo de pedra] coberto por um telhado de palha com paredes de
barro. Esse espaço externo pode ser considerado como a cozinha das casas e conta com
redes para o sono das crianças menores vigiado por suas mães, avós ou irmãs mais
velhas. É comum que mães e filhas compartilhem esse espaço, de modo que as filhas
que já possuem filhos fazem o seu próprio fogo. Se não estão nas roças, em expedições
na mata ou banhando no rio, as mulheres provavelmente estarão na parte externa de
suas casas ou das casas de suas mães. Os homens passam a maior parte do tempo na
mata, para as caçadas, e no rio, para as pescarias e quando retornam para a aldeia

217
costumam encontrar-se na cada do meio [ngàb]. Durante a noite, as mulheres sentam-se
na frente das suas casas ou das casas de suas mães em esteiras para conversar e
fumarem cachimbo.

Figura 30: Mopkure colocando as batatas para assarem no forno de pedras [kῖ], juntamente com os
berarubus de carne [mrỳ kupu]. Foto: Arquivo pessoal da autora.

Uma casa é bonita [kikre mejx, kikre rajx] quando comporta muitas crianças e é
orgulho para uma mulher ou homem possuir muitos netos e netas. A beleza do mundo
depende da produção correta de pessoas mẽbêngôkre (Cohn, 2000). Nesse sentido, os
Xikrin consideram que os brancos são fracos [rerekre] e preguiçosos [mukangare]
porque possuem poucos filhos e netos. Segundo eles, o erro das casas de alvenaria,
construídas nas aldeias está associado ao modo econômico, digamos, de como os
brancos fazem parentes. Por produzirem poucos filhos, os brancos pensam que casas
pequenas são suficientes para o crescimento e desenvolvimento deles e não conseguem
entender a necessidade Mẽbêngôkre de certos tipos de casa. Os Xikrin dizem que o fato
da família do branco ser pequena, com poucos filhos, é associado ao seu próprio

218
surgimento no mundo que se relaciona, por sua vez e entre outras coisas, a ações de
egoísmo e sovinice.

Projeto de construção das casas de alvenaria nas aldeias

Nessa sessão, apresento a associação depreciativa, feita pelos Xikrin, em


relação à família dos brancos e ao projeto de construção das casas de alvenaria nas
aldeias como uma das ações de mitigação decorrente do processo de licenciamento e
construção de Belo Monte. Para isso, destaco dois eventos em que os Xikrin acionaram
o mito de origem dos brancos para os explicarem: a visita à construção das casas de
alvenaria na aldeia Rap Ko e a apreciação de Tedjere Xikrin sobre os moradores de rua
em São Paulo.
Durante minha mais recente pesquisa de campo entre os Xikrin da aldeia
Bacajá, da Terra Indígena Trincheira-Bacajá, entre os meses de novembro de 2014 a
março de 2015, uma longa conversa entre os guerreiros e os caciques resultou numa
visita à obra de construção das casas de alvenaria que havia sido iniciada na aldeia Rap-
Kô, localizada próxima da aldeia Bacajá. Os Xikrin estavam preocupados com o
formato das casas de alvenaria, especialmente após uma conversa com Maradona,
cacique da referida aldeia, que disse ser impossível fazer com que aqueles kuben, os
brancos que trabalhavam na obra e eram responsáveis por ela, ouvissem ou
compreendesse suas indicações para a construção do que considerava casas bonitas.
Após dois dias de conversas no ngàb [casa do guerreiro], os homens da aldeia Bacajá
foram até a aldeia Rap-Kô para verem como as casas estavam sendo construídas. A
visita ocorreu poucos dias após a execução das festas rituais de final de ano e o assunto
sobre o projeto de construção das casas de alvenaria compôs boa parte da fala dos
homens sobre o início do ano novo [ano nỳ] e os planejamentos desejados.
Ao chegarem ao local, os homens fotografaram as construções em vários
ângulos. E enquanto realizam o registro fotográfico comentavam a condição indesejada
das casas como o tamanho pequeno, a ausência de varanda traseira, a presença de
paredes internas, o uso de telhas de amianto, a fragilidade dos tijolos de oito furos

219
utilizados, a ausência de armadores de rede nas paredes, o espaço pequeno entre uma
casa e outra, a falta de coesão no círculo 186.
De volta à aldeia Bacajá, os homens que realizaram a visita mostraram as fotos
para as mulheres que não haviam ido ao local. Frente ao descontentamento geral,
causado pelas imagens fotográficas das casas, e respondendo à minha pergunta sobre os
motivos do projeto de construção segundo aquele padrão, as Xikrin afirmaram: “Esses
kubẽn não entendem. Não sabem como fazer casa para o índio Mẽbengôkre que precisa
de casa grande e espaçosa porque as nossas casas tem muitas crianças”.
Ao verem as imagens das casas de alvenaria, as mulheres da aldeia Bacajá
criticaram a forma das casas.

As casas são pequenas e feias. Os brancos não sabem fazer casas


mẽbêngôkre. Os Mẽbêngôkre possuem muitas crianças, a casa tem que ser
grande e bonita, não pode ser feia. Ninguém viu o desenho das casas feito
pelos brancos, ninguém sabia que seriam assim tão pequenas.

As mulheres Xikrin mostraram-se bastante aborrecidas com as fotografias


trazidas pelos homens que foram visitar a construção das casas de alvenaria na aldeia
Rap-Ko. Elas disseram que não foram consultadas sobre o formato e tamanho das casas
e que ninguém lhes havia mostrado o desenho de como seriam essas casas. Segundo
elas, antes das casas serem construídas, os brancos de Belo Monte deveriam ter ido às
aldeias para mostrar a todos esse projeto das casas que iriam construir.

Tudo é feito aqui de forma errada. Os brancos da Norte Energia nunca


aparecem nas aldeias para mostrar as coisas e dizer o que vão fazer. Parece
que eles decidem tudo sozinhos. Se a casa é para a gente morar, então é nas
aldeias que deveriam ter sido feitas as reuniões para a construção dessas
casas. As mulheres deveriam ter sido informadas. O pessoal da Norte
Energia faz reuniões em Altamira e quem está nas aldeias não pode
participar. Se pelo menos eles viessem buscar as pessoas, elas teriam ido,
mas não fazem isso. E quando o pessoal vai para cidade não tem garantia
nem da alimentação que custa caro lá. Não podemos sair da aldeia e levar
nossos filhos e netos sem saber como iremos comer. Quando tem que decidir
alguma coisa, a decisão precisa ser feita em cada uma das aldeias com todo
mundo junto.

186
Após esse período, as casas de alvenaria da aldeia Bacajá começaram a ser construídas. Estive na
aldeia durante as primeiras fases da construção e as principais críticas destinavam-se ao local escolhido
para edificação das casas: longe, uns vinte minutos de caminhada, da margem do rio Bacajá. Os Xikrin
disseram-me que segundo a empresa construtora, não seria possível que as casas fossem construídas onde
está a aldeia atual porque seria preciso atravessar o rio Bacajá, que por ter diminuído seu fluxo de vazão,
não suportaria uma balsa com todos os equipamentos necessários. Os construtores ainda disseram que o
terreno próximo à margem, do outro lado de onde hoje está fixada a aldeia, estava muito arenoso para que
as casas fossem construídas no local.

220
Figura 31. Construção das casas de alvenaria na aldeia Rap Kô. Foto: Arquivo pessoal da
autora.

A conversa das mulheres sobre as fotos das casas de alvenaria que estavam
sendo construídas na aldeia Rap Ko se estendeu até tarde da noite naquele dia. Elas
marcavam seu descontentamento com as casas de alvenaria e criticavam os brancos de
Belo Monte por serem mentirosos e egoístas e por só fazerem as coisas boas para eles
próprios. “Se fossem para eles morarem, duvido que fariam essas casas que estão
fazendo aqui para gente”. Explicaram-me que os brancos são assim sovinas e não sabem
viver com os parentes, não sabem compartilhar as coisas, não querem ajudar ninguém,
só pensam neles mesmos. “Existem alguns brancos que querem ser diferentes, que
gostam de Mẽbêngôkre, que querem aprender como viver com os parentes, mas a
maioria não é assim, muitos brancos são gente ruim, mentirosa e egoísta”.
Quando eu perguntei se elas sabiam por que os brancos eram assim, Irekà
contou o mito da origem dos brancos.

Antigamente havia um homem mẽbêngôkre que estava matando seus filhos.


Durante a noite, ele colocava remédio do mato no xixi de seus filhos a fim
de matá-los. Uma de suas filhas e um de seus filhos, no entanto,
conseguiram sobreviver. Ela ficou adulta e se casou. Numa noite, o marido
dela viu seu sogro espreitando-a enquanto ela fazia xixi para, enfim, aplicar
o veneno e matá-la. O marido disse para o sogro: “não pode matar não, pare

221
com isso”. Pela manhã, o marido foi até a casa do guerreiro [ngàb] e contou
a todos da aldeia que seu sogro estava matando os filhos. O pessoal da aldeia
perseguiu o homem assassino para matá-lo, bateram muito nele, mas ele não
morreu, ficou vivo de novo. O homem fugiu. Passado alguns dias, a mulher
do homem assassino avisou a todos da aldeia que ele estava voltando.
Novamente bateram nele, mas ele não morreu. O homem disse à sua mulher
que pegaria suas penas de papagaio e arara e partiria da aldeia. Assim o fez e
sumiu. O homem sumiu e fez muitas coisas: roça, casa, fez tudo. Certa vez,
um amigo formal [kradjwo] do homem fugido estava caçando no mato,
longe da aldeia, e avistou o homem desaparecido. O jovem voltou para
aldeia e contou para todos que havia visto o homem. O amigo formal disse
para o filho do homem sumido: “vi seu pai, ele fez muitas coisas, tem muita
fumaça, eu vi”. Os homens da aldeia quiseram ir até o local para ver as
coisas todas que o homem fizera. Chegaram ao local e o viram o trabalhando
na roça: “Pai [djwunuá], você fez muitas coisas”. O homem cortou o milho e
deu para seu filho levar para aldeia, levou todos para dentro da casa e fez
café para beberem, ninguém conhecia o café até então. Dentro da casa, havia
muitas coisas: espingarda, facão, enxada, machado, miçangas. Havia
também arcos, flechas e bordunas. O homem tinha feito sozinho todas essas
coisas. Entregou para seu filho facão e espingarda. O filho só carregou
consigo o facão, o machado e o arco com flechas, pois achou a espingarda
muita pesada. Depois de entregar as coisas, disse para o filho: “Agora você
vai embora rápido porque eu vou atirar em você”. Todos saíram correndo e
voltaram para aldeia. Os homens contaram para as mulheres o que tinham
visto na casa do homem. No outro dia, as mulheres rasparam o cabelo,
pintaram-se. As mulheres se arrumaram e foram até a casa do homem. Os
homens da aldeia haviam ido caçar e não viram as mulheres saindo. As
mulheres saíram e as crianças ficaram na aldeia. As mulheres chegaram na
casa e foram pegar as coisas do homem para levarem para aldeia. O homem,
chamado Mekaprãn, entregou as coisas para elas e as levou para dentro de
sua casa. Dentro da casa, o Mekaprãn esquartejou sua antiga esposa com o
facão e trancou as portas para evitar a fuga das demais. Algumas correram
muito e conseguiram escapar, outras ficaram trancadas na casa. Os homens
mẽbêngôkre voltaram da caça para a aldeia e perceberam a ausência das
mulheres. Eles foram correndo para a casa de Mekaprãn, pois sabiam que
elas queriam pegar as miçangas. No caminho, eles viram algumas mulheres
correndo e gritando. Os homens chegaram à casa de Mekaprãn e viram que
haviam muitas mulheres trancadas. Mekaprãn conseguiu escapar com as
mulheres que havia aprisionado, pois havia construído um barco de motor.
Mekapran colocou as mulheres e a casa onde estavam trancadas no barco e
foi embora para o outro lado do rio. Os homens mẽbêngôkre ficaram muito
tristes, voltaram para aldeia e cortaram os cabelos. Entraram em luto. Muitas
crianças ficaram sem suas mães. Mekaprãn levou as menire [mulheres
mẽbêngôkre] e não voltou mais. Mekaprãn virou kuben [estrangeiro, branco]
e as menire que foram trancadas viraram kubenire [mulheres brancas].
Assim foi que começou a família e a casa do kubẽn.
Narrativa contada por Irekà Xikrin, aldeia Bacajá, 2015.

O surgimento dos brancos, como destacado na narrativa acima, está


associado a erros de conduta do ancestral Mẽbêngôkre: matar os filhos, não morrer ou
viver novamente após a surra, sair do convívio dos parentes e ir morar longe e sozinho,
ameaçar o filho de morte, esquartejar a esposa, trancar as mulheres mẽbêngôkre dentro

222
da casa, fugir com as mulheres aprisionadas. Por outro lado, a casa construída pelo anti-
herói mítico também age como fonte transformativa, transformando-o em branco com
chapéu, espingarda, enxada e facão. A casa do branco vincula-se também à produção de
bens tecnológicos, desejados pelos Mẽbêngôkre. Interessante notar que a produção da
tecnologia só é operada quando o anti-herói distancia-se dos seus parentes e passa a
viver sozinho em sua casa. Esse movimento de abandono dos parentes Mẽbêngôkre é
acionado pelo Xikrin em diversas situações para explicar o modo egoísta como os
brancos promovem suas relações entre si e suas relações com os índios, principalmente
em relação aos projetos que executam nas aldeias.
Em uma visita a São Paulo para participação em um evento no Conjunto
nacional, referente à comemoração ao dia do índio, Tedjere Xikrin, um cacique antigo
da aldeia Bacajá, mostrou-se inconformado com a presença de pessoas morando nas
calçadas da Avenida Paulista. O evento contou também com a presença de Karangré
Xikrin, cacique antigo (sogro de Tedjere) e Bep Komati Xikrin, na época presidente da
ABEX (Associação Bebo Xikrin). Após a montagem da exposição, saímos para que
meus amigos Xikrin pudessem conhecer algumas localidades da cidade de São Paulo.
Afora a dimensão arquitetônica gigantesca que chamava a atenção dos Xikrin, a cena
que mais lhes incomodou foi a presença contínua de pessoas que moravam na rua ao
longo das calçadas da suntuosa avenida.

Tedjere: Porque essas pessoas estão aqui? Dormindo e comendo aqui?


Thais: Porque elas não têm casa onde morar.
Tedjere: Como assim? Elas não tem casa? E a mãe e o pai delas ou algum
irmão ou irmã, não podem morar com elas? Não tem nenhum parente dela
aqui? Todo mundo tem parente para ir morar com ele.
Thais: Não sei. Às vezes o parente não quer morar com a pessoa.
Tedjere: Mora com outro. O que não pode é ficar assim sozinho no mundo
sem ter lugar certo para comer e dormir. Muito feio isso. Vocês brancos
fazem tudo errado, desde sempre. Vou explicar. É por isso que mẽbêngôkre
tem assim muitos parentes, muitos filhos e netos, e depois muitos genros,
noras, cunhados e cunhadas, muita gente. É preciso muita gente para se
viver. E preciso respeitar os parentes para se viver. Todos os parentes devem
ter a mesma fala e não ficar brigando. Os brancos não sabem viver com os
parentes por isso ficam cada vez mais egoístas e feios [odjy, punu]. Você
sabe como o branco apareceu no mundo? Conhece a história de Mekaprãn?
Pois é. Isso é o que você tem que saber.

Interessante notar que afirmação de Tedjere Xikrin sobre a incapacidade dos


brancos em viver corretamente entre parentes ou em produzir pessoas enquanto parentes
não é abalada pela exacerbada quantidade de pessoas que habitam as cidades, como São

223
Paulo. É como se os brancos, mesmo produzindo grandes quantidades de pessoas,
produzissem essas grandes quantidades egoisticamente, sem se associarem
187
adequadamente umas às outras, sem serem parentes verdadeiros . Os brancos
reproduzem-se muito, mas de forma errada, diriam os Xikrin. É como se nos dissessem
que eles, os Mẽbengôkre, são melhores em qualidade de pessoa, enquanto os brancos
são maiores em quantidade.
Uma casa bonita é uma casa com muitas crianças e uma aldeia bonita é uma
aldeia com muitas casas. Mas não se trata de quantidade, mas de qualidade de pessoas
produzidas. Não adianta um mundo com muitas pessoas egoístas, esse mundo nunca
será bonito. O que os brancos parecem precisar aprender é como produzir muitas
pessoas boas, com comportamentos adequados, pessoas generosas e que sabem viver
entre parentes.

Projeto: forma que não persuade da política dos brancos

Ao apresentar algumas situações de implantação de projetos, bem como o


debate sobre o conceito de projeto com o consultor contratado para execução do
programa de fortalecimento institucional, argumento que seja possível dividir tais
situações segundo duas maneiras. De um lado, aquelas em que é possível vislumbrar o
que Almeida (2013) chama de “encontro pragmático” e, de outro, aquelas que
evidenciam uma “guerra de ontologias”.
A primeira maneira, inspirada nos escritos de Tsing (2005) sobre os mal
entendidos dos Muratu com os ambientalistas, permite que, apesar de tais
desentendimentos seja possível que as pessoas engajem-se numa atividade comum,
como a retirada de empresas madeireiras da área. Esses engajamentos distintos numa
mesma ação promovem a possibilidade daquilo que Almeida (2013) chama de
“encontros pragmáticos”, encontros de ontologias diferentes (a dos ribeirinhos e dos
técnicos ambientais) para a realização de uma ação compartilhada (a manutenção dos
animais de caça nas áreas de floresta). A abertura e plantio para execução do projeto da
roça coletiva pelas mulheres Xikrin da aldeia Pot-Krô pode ser um exemplo desse tipo

187
Agradeço a Jorge Villela, por chamar a atenção sobre este ponto, ao comentar uma versão preliminar
desse texto.

224
de encontro. Apesar de não concordarem sobre a ideia de roça coletiva, mulheres Xikrin
e representantes da instituição GATI engajaram-se nessa atividade comum.
A segunda maneira, diferentemente da primeira, não permite que engajamentos
diferentes se conectem numa atividade comum. É o caso do projeto de construção das
casas de alvenaria nas aldeias, que não respondiam às indicações dos Xikrin. Não houve
engajamento comum nessa atividade, mesmo com a participação de alguns homens
Xikrin nas reuniões em Altamira para definição do desenho das casas. Para os Xikrin, as
casas de alvenaria, do modo como estão construídas, não são capazes de se constituírem
como local adequado de produção de pessoas Mẽbêngôkre, devido ao seu tamanho
pequeno e à presença de muitas divisões internas. Trata-se, nesse caso, de uma “guerra
de ontologias”, para usar outra expressão de Almeida (2013).
Devido à incomunicabilidade entre o conceito de casa bonita [kikre rajx] para
os Xikrin e o projeto de construção das casas de alvenaria nas aldeias, é possível
contrastar o modo de existência Mẽbêngôkre, pautado pela generosidade entre parentes,
e o modo de existência da política dos brancos de Belo Monte, pautado por ações
egoístas e sovinas.
A casa mẽbêngôkre [kikre] pode ser pensada como um buraco do fogo de onde
188
brotam pessoas e parentes, que reforçam cotidianamente seu convívio e
comensalidade. As mulheres tem nesse sentido um papel fundamental porque são
responsáveis pelo cozimento das carnes de caça e peixe que irão servir de alimento, pelo
cultivo e preparo dos tubérculos das roças, pelas pinturas nos corpos das crianças e dos
homens, pela gestação das crianças, pelo ensino e transmissão de prerrogativas
cerimoniais a suas netas, pela incorporação de parentes afins em suas casas como os
genros e cunhados. É possível afirmar que as mulheres são as principais responsáveis
pela criação de pessoas a partir das casas, das pessoas que brotam de suas casas. O
conjunto casa e roça é parte das práticas de conhecimento das mulheres Xikrin. E ao se
depararem com o projeto de construção das casas de alvenaria nas aldeias, através das
fotografias trazidas por seus maridos, filhos e netos, afirmam o seu descontentamento e
o egoísmo dos brancos de Belo Monte, desinteressados em agir conforme as
necessidades dos Xikrin. A prática de generosidade entre parentes de uma casa ou de
188
O idioma do brotamento é visto também na execução dos rituais mereremejx, rituais de nominação,
onde o neto ou neta e levado ou levada sobre os ombros de seu avô ou avó figurando a imagem de um
broto ou galha que surge do corpo dos avós, recebendo deles os nomes e as prerrogativas rituais
específicas de cada casa. A etnografia de Guerreiro Júnior (2012) entre os Kalapalo, povo Karib do Alto
Xingu, PIX (Parque Indígena do Xingu) também aponta para a aproximação entre parentesco e um
idioma vegetal.

225
casas distintas depende de um certo modo de convívio e distribuição alimentar que a
família dos brancos não vivenciam. O cotidiano das casas Mẽbêngôkre, à beira do fogo
constantemente aceso, marcado pela produção e distribuição de alimentos, é uma ação
realizada pelo engajamento de homens e mulheres que tem intenção de expurgar formas
egoístas de convívio. Mas isso não significa que todas as pessoas de uma aldeia
compartilhem igualitariamente tudo o que consomem ou possuem. As casas
mẽbêngôkre também são produtoras de distintividades, como certas prerrogativas
cerimoniais, direitos de transmissão onomástica, produção e uso de certos adornos
corporais, entre outras coisas. Mas a grande questão para o sistema da socialidade
mẽbêngôkre é como fazer circular as prerrogativas entre casas distintas, ou seja, não se
trata de um investimento para a manutenção dessas prerrogativas, mas justamente o
contrário disso, um investimento para fazer essas coisas (nomes, funções cerimoniais e
adornos) circularem para outras casas até a chegada do momento de retorno à casa de
origem para novamente serem postos à circulação.
As casas dos brancos também são pensadas como um lugar de produções
transformativas como a criação do homem branco e de itens tecnológicos. Mas se a casa
Mẽbêngôkre é a expressão da relação de compartilhamento e circulação de parentes de
coisas, alimentos, nomes, prerrogativas cerimoniais; o projeto de construção das casas
de alvenaria pelos brancos é a expressão de atos egoístas, e remete às ações do anti-
herói como a prisão das mulheres Mẽbêngôkre, que desintegram o modo correto de
como os parentes devem agir.
A família do branco, fruto do trancamento de mulheres mẽbêngôkre e da fuga
para lugares longínquos, é associada pelos Xikrin à característica originaria de egoísmo
e sovinice. A casa de alvenaria, construída nas aldeias, reflete essa inaptidão dos
brancos ao parentesco porque não são capazes de compreender a casa como um espaço
de produção de pessoas e que deve ser feita segundo alguns critérios formais como
amplo espaço interno e a ausência de divisões internas. Os Xikrin sabem que os brancos
de Belo Monte, quando para si próprios, constroem casas de alvenaria grandes e
espaçosas, mas que o fato de não quererem realizar esse tipo de construção nas aldeias
reforça seu caráter egoísta e sovina.
Se a criação do homem branco passa pela construção de uma casa solitária,
com portas e janelas é possível que as casas de alvenaria em construção promovam
alguma transformação análoga? As mulheres Xikrin mostraram suas preocupações em
relação aos efeitos possíveis das pequenas casas de alvenaria. Levando em conta que os

226
Xikrin não estão interessados em se tornarem brancos, um tipo de gente marcada pelo
egoísmo e por atitudes desprezíveis, o que as atuais situações de impactos e dos projetos
das políticas de mitigação parecem promover é um desafio que envolve a manutenção
dos modos de existência Mẽbêngôkre. Fica a cargo dos Xikrin o esforço de transformar
a casa de alvenaria feita pelos brancos egoístas nas aldeias em um espaço de produção
de gente pautada justamente pela atitude oposta, a generosidade, condição para a
produção de pessoas Mẽbêngôkre. Em contrapartida, a cargo dos brancos de Belo
Monte parece restar a inaptidão em compreender e respeitar esses modos de existência
dos povos Mẽbengôkre marcado pela convivialidade, circulação e partilha de bens e
alimentos.

227
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a
máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em máquinas de
pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vivas ou revolucionárias suscetíveis
de recolocar em questão o Estado triunfante?
Deleuze, G; Guatarri, F, 1997, p. 18.

Na orla do rio Xingu, os Xikrin aguardavam o funcionário da empresa Norte


Energia retornar do horário do almoço. A sombra das grandes mangueiras e a brisa das
águas do rio Xingu amenizavam o calor. O escritório da empresa, na cidade de
Altamira, tinha sua entrada virada de frente para o rio, alvo do barramento. Os primeiros
e segundos de caciques de todas as aldeias da Terra Indígena Trincheira-Bacajá estavam
à espera do funcionário. Algumas mulheres e crianças também estavam presentes.
Estávamos em 2011 e o Plano Emergencial estava em operação. Alguns
funcionários da Funai de Altamira também haviam sido convidados pelos Xikrin para
participar da reunião. Os Xikrin queriam saber como ficaria a distribuição do recurso
após a abertura de três novas aldeias, porque haviam ouvido falar que a empresa não as
iria incluir nessas ações de mitigação.

Ficamos sabendo que os brancos de Belo Monte não querem fazer nenhum
repasse do dinheiro para as novas aldeias. Esses brancos estão dizendo que
nós só queremos dinheiro e por isso começamos a abrir novas aldeias na
Terra Indígena. Nós queremos o dinheiro sim, esse dinheiro é nosso. Nós
estamos fazendo novas aldeias porque queremos ter mais controle contra os
invasores, queremos proteger nosso mato e nossas aldeias. Esses brancos
estão chegando por causa dessa obra. Isso é impacto da obra, por isso a
empresa tem que pagar para todas as aldeias que existem: novas ou antigas.
Nós somos índios e podemos fazer novas aldeias onde e quando quisermos.

Seu Tucum, cacique da aldeia Pykayaka, disse-me isso após meia hora de
atraso do funcionário da empresa que só retornou ao escritório por volta das três horas
da tarde. A abertura das novas aldeias gerou reações negativas da empresa consorciada
tanto em relação ao repasse do valor mensal do chamado Plano Emergencial quanto em

228
relação à abrangência da coleta de dados por parte das equipes dos Estudos
Complementares do Rio Bacajá que não incorporaram as novas aldeias em suas
atividades.
Com intenção de retomar os argumentos apresentados ao longo da tese, irei
agora destacar o contraste de duas outras imagens. A imagem que os Xikrin esforçaram-
se para transmitir aos brancos de Belo Monte e a imagem que esses brancos
expressaram sobre os Xikrin. A primeira imagem resultou de operações analógicas de
contraste, realizadas pelos primeiros entre os modos de existência Mẽbêngôkre,
kukràdjà, e a política dos brancos; ao passo que a segunda decorreu do modo como os
Xikrin descreveram as ações, consideradas egoístas, dos brancos que em muitas
ocasiões os descaracterizavam como gananciosos. A operação realizada neste final de
tese é consoante com a importância metodológica da imagem e dos artefatos, incluindo
eventos e performances, discutidas na introdução, como a maneira encontrada para a
organização, reflexão e análise de minhas experiências de pesquisa junto aos Xikrin, e
para o fortalecimento da crítica feita por eles à política dos brancos.
Em muitas situações, como reuniões no canteiro de obras e no escritório da
Norte Energia na cidade de Altamira, os brancos de Belo Monte posicionaram-se
contrários à abertura de novas aldeias na Terra Indígena Trincheira-Bacajá, alegando
que os Xikrin estavam agindo exclusiva e deliberadamente para captação de maiores
recursos da verba mensal do Plano Emergencial. Em vários desses momentos, esses
brancos acusavam os Xikrin de agirem como pessoas gananciosas e interesseiras e
afirmavam que não iriam pagar pelo “capricho de índio nenhum porque essa não era
obrigação da empresa”. Algumas dessas atribuições negativas dos brancos de Belo
Monte aos Xikrin foram inclusive veiculadas em mídias, especialmente durante a
189
ocupação do canteiro de obras em 2012. Em uma dessas acusações, Bep Komati 190
respondeu:

Então é assim, desse jeito? Vocês, brancos podem barrar um rio para ter
dinheiro, para o governo ter dinheiro e nós não podemos ter dinheiro de

189
As críticas aos Xikrin estão presentes em: http://amazonia.org.br/2012/06/%C3%ADndios-
surpreendem-com-longa-lista-de-compensa%C3%A7%C3%B5es/comment-page-1/;
http://ecologiaemfoco.blogspot.com.br/2012/06/reivindicacoes-dos-indios-troca-por.html;
http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/as-reivindicacoes-das-tribos-indigenas-em-belo-monte.
Acessado em 16 de outubro de 2012 e 12 de agosto de 2016.
190
Bep Komati foi, durante bastante tempo, o segundo cacique da aldeia Mrotidjam quando também se
tornou presidente da Associação Bebo Xikrin. Com a abertura da aldeia Rap Kô, ele passou a se dedicar
exclusivamente às funções da presidência da Associação.

229
nenhuma forma? Vamos ficar sem o rio, sem a caça, sem o peixe, e vocês
querem que fiquemos sem nenhum dinheiro também? Isso não está certo.
Vocês estão agindo errado. Nós temos direito de abrir nossas aldeias, isso é
da nossa cultura, da cultura do índio.

Essa posição enunciada por Bep Komati era compartilhada pelos Xikrin que
191
demandavam a efetividade das ações de mitigações por parte da empresa
consorciada. Os Xikrin queriam evidenciar seus direitos de acessar os programas e as
promessas feitas pelos brancos de Belo Monte. Entretanto, o posicionamento dos
Xikrin, em vários momentos, foi tratado pelos membros da empresa como uma
justificativa para desqualificação de sua “indianidade”. Expressões como “esses índios
só querem dinheiro e caminhonete” foram anunciadas muitas vezes pelos funcionários
da empresa, desmoralizando as reivindicações Xikrin e as apresentando como
inapropriadas.
Os Xikrin, por sua vez, reiteravam sua posição em relação à obrigação do
empreendedor para o cumprimento das ações de mitigação, bem como seus direitos na
abertura de novas aldeias. Bep Komati afirmou em muitos desses momentos:

Os brancos nos ensinaram a usar roupas, chinelos, facões e espingardas.


Agora, eles não querem nos pagar indenizações, não querem nos dar
dinheiro para comprarmos essas coisas. Os brancos no ensinaram a navegar
de canoa pelo rio. Agora vão barrar o rio Xingu. Eles dizem que se tivermos
dinheiro, voadeira e carro, iremos perder nossa cultura. Mas o branco não
sabe nada da cultura dos índios mẽbêngôkre. Nós sabemos da nossa cultura e
por isso dizemos: ninguém perde a cultura por ter dinheiro e poder comprar
as coisas que desejam. Da nossa cultura a gente cuida. Iremos abrir quantas
aldeias quisermos. O que nos preocupa é o que iremos comer, se o rio Bacajá
secar. O que nossos filhos e netos irão comer quando Belo Monte começar.
Quem tem que resolver isso é aquele que fez Belo Monte.

Os Xikrin anunciavam a abertura de novas aldeias como parte de sua cultura,


como seus modos de existência que deveriam ser respeitados e reconhecidos como
corretos pelos brancos de Belo Monte. Nesse sentido, quero reiterar que os Xikrin,
mesmo nos processos de fissão e abertura de novas aldeias, não deixavam à vista dos
brancos nenhum de seus desentendimentos, expressando-se como um coletivo de

191
Na ação civil pública do MPF contra a Norte Energia, já mencionada no capítulo cinco, o Plano
Emergencial é descaracterizado como ação de mitigação e considerado como mais um impacto decorrente
da construção do empreendimento. Meu uso do termo “ações de mitigação” não se refere portanto
exclusivamente ao Plano Emergencial, mas a todas as medidas que deveriam ter sido pela empresa em
relação aos impactos da obra. Segundo os Xikrin, essas ações nunca chegaram a se concretizar do modo
desejado.

230
pessoas que compartilham modos de existência, kukràdjà, e vivem a “era dos
impactos”. Os Xikrin, ao fazerem isso, estavam tentando controlar como sua imagem
deveria ser percebida pelos brancos de Belo Monte. Os Xikrin queriam garantir que
fossem vistos e compreendidos pelos brancos de Belo Monte de determinadas maneiras.
O posicionamento dos Xikrin em relação aos processos de abertura das novas
aldeias diferiu do modo como esses processos foram descritos pela literatura
192
antropológica especializada. Processos de fissão de aldeia, que a literatura
especializada nomina como faccionalismo, são recorrentes entre os diversos grupos
Mẽbengôkre (Xikrin e Kayapó). A Terra Indígena Trincheira-Bacajá, por exemplo,
originou-se com uma aldeia, Bacajá, que posteriormente se dividiu fundando a aldeia
Pot-Kro. A aldeia Pot-kro, por sua vez, dividiu-se formando a aldeia Pykayaka. A aldeia
Bacajá dividiu-se mais uma vez, fundando a aldeias Pytako e Mrotidjam. Em 2010, a
configuração da TITB era de cinco aldeias situadas à margem do rio Bacajá: Pykayaka,
193
Pot-Kro, Pytako, Bacajá, Mrotidjam . Em 2011, durante a realização da coleta de
dados pelas equipes dos Estudos Complementares do Rio Bacajá, três novas aldeias
foram inauguradas: Kamoktiko, Krãnh, Kenkudjoe. A aldeia Rap Ko, única longe da
margem do rio é a aldeia mais recente, inaugurada em 2014, sendo formada por pessoas
das aldeias Mrotidjam e Pytako.
A literatura antropológica especializada sobre os povos Mẽbengôkre há muito
discute os processos de fissão de aldeias, divisão de categorias de idade e guerras
internas como importante característica da organização social desses povos. Segundo a
bibliografia, os processos de divisão interna e fissão de aldeia fazem parte da produção
Mẽbêngôkre de humanidade. Nesse sentido, se levarmos em conta a análise
antropológica em questão, movimentos de fissão e abertura de novas aldeias são
características dos modos como os Mẽbengôkre se relacionam entre si.
Conforme notaram os autores interessados do tema do faccionalismo
Mẽbêngôkre, processos de fissão e divisão de aldeias normalmente se relacionam com
brigas entre pessoas de grupos de idade distintos decorrentes de divergência de
opiniões, acusações de adultério, fofocas, ou pelo desejo de algum guerreiro em assumir
uma posição de chefia e criar sua própria aldeia. Os processos de divisão das aldeias da

192
Especialmente em: Verswjiver (1992) e Turner (1991, 1992). Para uma apreciação sobre a
positividade da guerra entre os Mẽbengôkre-Xikrin após o contato com os brancos, ver: Cohn (2003,
2005).
193
Para uma apreciação histórica do processo de formação e divisão de aldeias na Terra Indígena
Trincheira-Bacajá, ver: Cohn (2005), Fisher (2000).

231
Terra Indígena Trincheira-Bacajá também se relacionaram com esses aspectos. Aqui,
entretanto, não irei focar nos motivos internos desses processos de fissão, mas no modo
como os Mẽbengôkre-Xikrin expressaram o aumento das aldeias para os brancos de
Belo Monte, levando em conta a posição contrária destes últimos, desde o ponto de
vista dos Xikrin.
Não quero afirmar qualquer equívoco analítico por parte da literatura sobre o
chamado faccionalismo Mẽbengôkre. O que gostaria de ressaltar é a mudança de ênfase
realizada pelos Xikrin quando viram a abertura das novas aldeias criticada pelos brancos
de Belo Monte como uma ação gananciosa que visava o aumento de acesso ao recurso
financeiro do Plano Emergencial. Ao invés de se referirem positivamente às suas
disputas internas, os Xikrin evidenciavam-se como um coletivo unido que trabalhava
junto e trataram a abertura das aldeias como característica de seus modos de existência,
kukràdjà. Os Xikrin ao se posicionarem dessa maneira estavam tentando controlar a
imagem que queriam transmitir a esses brancos que, por não compreenderem nem
respeitarem os modos de existência Mẽbengôkre, foram associados pelos Xikrin às
características negativas de egoísmo e sovinice.
Mas os Xikrin não foram desqualificados pelos brancos apenas em relação à
abertura das novas aldeias. As listas elaboradas pelos Xikrin e entregues mensalmente
ao funcionário da empresa Norte Energia, durante a operação do Plano Emergencial,
também foram alvos de constantes críticas pelos brancos de Belo Monte. As críticas
relacionavam-se tanto com relação à repetição e quantidade de itens listados quanto com
relação à presença de certos bens de consumo considerados luxuosos. Um exemplo foi o
questionamento do funcionário da empresa sobre a presença de uma grande quantidade
de colchões “ortobom” nas listas de todas as aldeias Xikrin. Eu estava na aldeia Bacajá
quando a lista foi feita pelos Xikrin, que me pediram para transcrever os itens. Dias
antes, nas inúmeras conversas entre os Xikrin de todas as aldeias da Terra Indígena
Trincheira-Bacajá pelo rádio, foi decidido que todas as aldeias incluiriam os colchões
em suas listas e que tinham que ser daquela marca que era a melhor. O segundo cacique,
com a lista em mão, foi para cidade de Altamira. Quando ele retornou, durante a entrega
dos itens que era realizada no ngàb [casa do meio], com a presença de todas as pessoas
da aldeia, explicou que não havia conseguido trazer os colchões porque o funcionário da
empresa disse que colchões não eram apropriados para os índios, que por “serem índios
deveriam dormir em redes”. Os Xikrin enviaram então um rádio para a Funai de
Altamira solicitando que autorizassem a entrega dos colchões no mês seguinte.

232
Outra situação também envolvendo as listas ocorreu durante a já mencionada
ocupação no canteiro de obras do Sitio Pimental de Belo Monte, quando membros da
empresa Norte Energia divulgaram para a imprensa as listas das aldeias que continham
194
as exigências feitas pelos Xikrin para retirada da ocupação. Algumas reportagens
chamaram a atenção dos Xikrin. Os textos continham críticas severas ao conteúdo das
listas entregues pelos índios aos representantes da Norte Energia para negociação da
desocupação do canteiro de obras. Cada aldeia escreveu sua própria lista, contendo os
mesmos pedidos que tinham suas quantidades diferenciadas. Durante o período de
confecção das listas, eu tinha a função de transcrever para o computador cada uma delas
que eram lidas por mim em voz alta para que todos os Xikrin presentes pudessem ouvir.
Por vezes, quando algum item era mencionado com parte da lista de uma aldeia, que
não estava presente nas litas das demais aldeias, os Xikrin pediam que o acrescentasse
nas listas das demais. O trabalho dos Xikrin para composição das listas foi exaustivo e
minucioso. Ao final, as listas de todas as aldeias terminaram por conter os mesmos
itens, dispostos por ordenações e quantidades distintas.
As listas continham desde construção de prédios escolares, contratação de
professores para continuidade do ciclo escolar, até aquisição de caminhonetes de tração
nas quatro rodas, equipamentos de vídeo e áudio, poste de telefonia celular e internet. A
divulgação da lista gerou um desconforto entre os brancos devido à audácia dos Xikrin
em pronunciarem suas demandas por bens de consumo, considerados itens de luxo
como as caminhonetes e micro-ônibus. Além do que, as partes das listas que foram
publicadas na imprensa destacavam apenas os itens considerados mais polêmicos por
serem de consumo de luxo como as caminhonetes, por exemplo. Os itens como
construção de prédios escolares, a reforma de postos de saúde e aquisição de
medicamentos foram ocultados pela reportagem.
Ao adicionarem nas listas, de modo não hierárquico, caminhonetes, construção
de novos postos de saúde e melhorias na educação escolar indígena, os Xikrin
apresentam-nas como fórmulas não domesticadas de agrupamentos ou taxonomias que
não se enredam numa epistemologia única. 195
Situações parecidas foram descritas por Gordon (2003, 2006) a partir da
relação dos Xikrin do Catete com a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), por meio

194 Vide nota 184.


195
Tal como se pode ver também na análise e descrições de listas não domesticáveis que não se
enquadram num esquema taxonômico de resumo ou sumulas realizada por Law e Mol (2002).

233
das definições das ações de indenização a serem cumpridas pelos representantes da
instituição. Uma série de movimentos da Companhia tinha como objetivo a
deslegitimação dos Xikrin do Cateté em relação aos seus pedidos e demandas para a
realização das ações indenizatórias. A CVRD atuou para jogar a opinião pública contra
os índios, divulgando as listas de pedido, apresentadas como absurdas, por conterem
bens de consumo e artigos de luxo como caminhonetes e avião bimotor. Com a intenção
de defender os Xikrin do Cateté, alguns indigenistas argumentaram que os índios
estavam sendo alvos de aproveitadores e induzidos por eles a proporem tais pedidos
(absurdos), sendo impelidos ao consumo excessivo por comerciantes locais
oportunistas.
O efeito dessa situação foi, argumenta Gordon (2006, p. 37), uma dupla
deslegitimação das demandas Xikrin: ou eram considerados sujeitos de suas demandas
e, por isso, questionados quanto à sua integridade moral indígena, ou se argumentava
em favor dessa integridade moral ao apresentá-los como alvos de oportunistas e não
sujeitos de seus desejos. Esse efeito decorreu, ainda segundo argumento do autor, de
nossa incapacidade em enxergar positiva e autenticamente as relações dos índios com
objetos da sociedade industrial capitalista.
Minha hipótese sobre a formulação da imagem dos Xikrin como gananciosos
pelos brancos de Belo Monte, retomando a discussão da introdução a partir das
considerações de Strathern (2014) sobre artefatos, é que essa incapacidade relaciona-se
ainda com a primazia do formato histórico de pensamento nas sociedades ocidentais
euroamericanas. Os índios, ao serem descritos como anteriores ao advento moderno
capitalista, tendem a ocupar uma posição moral de obrigação em nunca se filiarem a
esse advento, sendo impelidos a nunca cederem às pressões dos bens de consumo e
devendo assim manter-se tradicionais, primitivos, índios. Para os Xikrin, não há
contradição lógica no interesse pelos bens e mercadorias de consumo dos brancos. Se
196
seguirmos a sugestão de Strathern (2014), o argumento indígena é contra-histórico.
Isso porque, se se levar em conta o conjunto das narrativas mitológicas Mẽbengôkre,
toda a tecnologia e conjunto de seres (humanos e não humanos) são parte de processos
de captura, roubo, empréstimos e trocas desses povos ancestrais com a mais diversa
sorte de seres e entidades associados à alteridade como animais, inimigos, índios de

196
Para uma apreciação desse debate entre os ameríndios de forma mais geral, ver: Sztutman (2012).

234
197
outras etnias, brancos ancestrais e atuais, espíritos, fenômenos meteorológicos. Não
há, portanto, para os Xikrin, nenhum equívoco ou problema moral em desejarem e
agirem estrategicamente para obter bens e tecnologias dos brancos.
Entretanto, de modo distinto ao procedimento analítico de Gordon (2006), que
afirma os interesses dos Xikrin do Catete pelos bens e mercadorias dos brancos como
uma operação do sistema cosmológico Mẽbengôkre, minha intenção ao longo da tese
foi destacar a avaliação crítica dos Xikrin do Bacajá à política dos brancos. Minha
opção se justifica porque as relações de negociação e pactuação das ações mitigatórias
entre os Xikrin do Bacajá e a Norte Energia nunca foram consideradas satisfatórias,
tampouco generosas, segundo meus interlocutores de pesquisa. A preocupação dos
Xikrin do Bacajá não era como lidar com o aumento das aquisições de bens,
mercadorias e dinheiro dispendidos pelo empreendedor. Ao contrário, suas
preocupações sempre foram como garantir que o empreendedor cumprisse os acordos
de mitigação e as condicionantes estabelecidas como exigências para a continuidade do
licenciamento da obra. As preocupações dos Xikrin do Bacajá sempre foram de garantir
que a Norte Energia se responsabilizasse pelo efeito mais temido da obra, o secamento
do rio Bacajá em decorrência do barramento do Xingu. Em outras palavras, os Xikrin
movimentaram-se para tentarem garantir que a Norte Energia se responsabilizasse com
a drástica mudança da paisagem dos ciclos de cheia e seca dos rios e a relação desse
fluxo de água com o acesso e sobrevivência das espécies de peixes e animais de caça.
Não foi minha intenção, portanto, refletir, como fez Gordon, sobre o modo
como o sistema cosmológico Mẽbêngôkre lida com a incorporação dos objetos
produzidos em escala industrial que, segundo o autor, está diretamente relacionado com
a existência de uma “economia política e simbólica Xikrin” em constante transformação
e operada a partir de relações de alteridade. O que esta tese quis destacar não foi uma
análise antropológica sobre como os Xikrin são capazes de agir em relação aos efeitos
de certas políticas dos brancos, como um movimento de indigenização da modernidade,
para usar uma terminologia de Sahlins (1997), recuperada por Fausto (2006) na
apresentação do livro de Gordon (2006). O que se quis destacar aqui foi uma análise
Xikrin sobre a política dos brancos e seus artefatos depreciativos, privilegiando a
imagem que os Xikrin quiseram transmitir aos brancos de Belo Monte como um grupo

197
Debate presente em grande parte das etnografias dedicadas aos povos Mebengokre. As análises sobre
o centrifuguismo inerente aos processos de expansão e continuação da cultura [kukràdjà], realizadas por
Cohn (2005), são uma importante reflexão sobre o modo caraterização e descrição antropológicas acerca
dos modos de organização dos Xikrin e suas relações de alteridade.

235
de pessoas que compartilham certos modos de existência ou cultura [kukràdjà] e vive
conjuntamente a era dos impactos com o barramento do rio Xingu.
Mas ao assumirem essa imagem, os Xikrin não estavam querendo afirmar seu
completo desinteresse pelas ações de mitigação e aquisição de bens, dinheiro e
mercadorias. Como muitos autores e autoras já relataram, incluindo Gordon (2006), o
interesse pelas coisas produzidas pelos brancos existe desde, pelo menos, os processos
de estabelecimento do contato. Vidal (1977, 1986) apresenta alguns relatos dos Xikrin
do Cateté afirmando que a decisão em se aproximar dos brancos foi comumente descrita
como uma decorrência do interesse desses índios em acessar os itens tecnológicos e
mercadorias [mojxa mex]198 e cachorros [rop krore]. Assim como a autora, Verswjiver
(1992) também destaca, em sua análise histórica dos grupos Mẽbengôkre Kayapó, as
divisões de grupos de idade, as fissões de aldeias e os deslocamentos pela região dos
rios Xingu e Araguaia como uma consequência das correntes discussões sobre o aceite
ou não do estabelecimento de relações pacíficas com os brancos. Segundo o autor, os
grupos que defendiam a manutenção do distanciamento argumentavam acerca dos
perigos desse encontro que poderiam ao final significar o fim dos Kayapó; por outro
lado, os grupos que defendiam a proximidade com os brancos argumentavam em favor
da facilidade e comodidade na aquisição de itens que os interessavam como facões e
espingardas. 199
Assim, conforme os autores acima, a aposta dos Mẽbengôkre (Kayapó e
Xikrin) pela intensificação de contato pacífico com os brancos foi justificada devido à
facilidade de aquisição de bens e mercadorias. Levando isso em conta, as tentativas dos
brancos de Belo Monte em expressar a imagem dos Xikrin como pessoas gananciosas
perdem o sentido porque a condenação referente às ações indígenas para garantir o
fluxo dessas aquisições são parte de seu modo de existência, kukràdjà. As acusações
dos brancos de Belo Monte aos Xikrin como gananciosos não seriam então mais uma
expressa demonstração do egoísmo e da sovinice de pessoas que, ao mesmo tempo em
que barram um rio, querem ensinar aos Xikrin o que é preciso fazerem para se portar
adequadamente como índios?
Além de serem criticados pelos brancos de Belo Monte a partir da abertura de
novas aldeias na Terra Indígena Trincheira-Bacajá e pela confecção das listas dos itens

198
De modo literal: coisa boa, coisa bela.
199
Para esse debate entre os Xikrin do Bacajá ver Cohn (2005) e Fisher (2000) e entre os Xikrin do
Cateté, ver Vidal (1977, 1991).

236
a serem adquiridos pelo empreendedor, durante o Plano Emergencial, os Xikrin também
causaram a indignação de de indigenistas e ambientalistas contrários à construção de
Belo Montem, devido ao seu posicionamento em favor das mitigações e contrários à
200
realização do empreendimento. O posicionamento ambivalente dos Xikrin em
relação à hidrelétrica gerou inúmeros e perniciosos mal-entendidos usados contra eles
por veículos de mídias e pela própria empresa acionista Norte Energia.
Um desses equívocos se deu justamente a partir do interesse dos Xikrin pelo
pelas ações de mitigação decorrentes do impacto do empreendimento. Os Xikrin
explicaram-me que nunca foram a favor da construção da usina em si, mas, sim,
estavam interessados nas políticas de mitigação que tal empreendimento deveria
cumprir. Diversas vezes ouvi-los dizer: “queremos as mitigações, não queremos o
barramento do rio”.
Tal posicionamento, como eu venho sugerindo, longe de ser um escândalo
moral, explicita tanto o fracasso das políticas públicas destinadas aos povos indígenas
na região quanto o modo específico dos Xikrin em se engajarem criticamente em
relação à política dos brancos de Belo Monte. Desse modo, ao quererem as mitigações e
não os impactos da obra de Belo Monte, os Xikrin oferecem-nos uma importante crítica
ao modo de funcionamento da política dos brancos e seus artefatos depreciativos e
fracassados.
Espero ter conseguido sustentar a hipótese que essas posições ambivalentes,
mas não contraditórias, dos Xikrin em relação aos processos de negociação vinculados
ao processo de implantação de Belo Monte concordavam com suas tentativas e esforços
de exercerem controle sobre os processos de inovação e expansão do complexo
kukràdjà ao mesmo em que apresentavam importantes críticas ao modo de
funcionamento da política dos brancos de Belo Monte como exponencial máximo da
sovinice e da avareza.
Durante as reuniões para apresentação dos resultados dos Estudos
Complementares do Rio Bacajá, os caciques e guerreiros de todas as aldeias afirmaram
aos técnicos e engenheiros da empresa LEME, realizadora dos estudos, e aos
funcionários da Norte Energia, sua posição em relação ao desejo pela mitigação e a
repulsa do impacto.

200
O termo ambivalente refere-se a discussão promovida por Jullien (2005), mencionada na introdução,
sobre a disposição do oriente à ambivalência da conjunção “e” em contraste com a obsessão do ocidente à
ambiguidade exclusivista da conjunção “ou”.

237
Queremos as mitigações, queremos o rádio de comunicação da Norte
Energia, queremos casas mais bonitas, escolas e posto de saúde melhor,
queremos mais voadeiras e estradas e pista de pouso na aldeia. Queremos o
dinheiro. Mas não queremos o Belo Monte aqui.

A assertiva foi embaraçosa aos ouvidos dos brancos de Belo Monte que
tentavam explicar aos Xikrin que suas premissas ambivalentes eram insustentáveis. Mas
os Xikrin insistiam.

A gente já escolheu, a gente quer a aldeia melhor com mais material e não
quer Belo Monte no rio, porque o rio é a vida dos Xikrin. Quem vai defender
o rio? Belo Monte que não é, Norte Energia também não. Nós vamos
defender o rio para os nossos filhos e para os netos e filhos dos nossos netos
também.

Querer exclusivamente a mitigação é uma ação para efetuar controle da


situação, é negar a política dos brancos como artefato de persuasão. Querer mitigação é
expandir e inovar kukràdjà, de modo a se desassociarem da política dos brancos e da
barragem.
O desejo dos Xikrin por mitigações não os desqualifica enquanto Xikrin, de
seu ponto de vista. Ao contrário, ao desejar mitigações e indenizações agem para
produção de pessoas e coisas belas. O que os Mẽbengôkre entenderam com muita
perspicácia é não haver, nesse jogo das mitigações, compensações e impactos, entre
diversas instituições e agências de governo, nem heróis e nem vilões. Trata-se de um
jogo com atores de todos os tipos com seus interesses em disputa. Um jogo que insiste
em remeter ao índio o papel de mero observador, tratá-lo como o impedimento do
progresso, ou como o oportunista, capitalista, que só pensa em lucro financeiro. Nesse
sentido, os Xikrin tentaram e continuam a tentar, nessa disputa egoísta da política dos
brancos, extrair e produzir beleza por meio das relações em que estão envolvidos. Os
Xikrin, ao criticarem a política dos brancos e seus artefatos, agiram para apresentar sua
cultura [kukràdjà] como modo de existência que proporciona a conquista do belo, do
bom, do correto, do verdadeiro.
Querer mitigação e não querer impacto reflete a imagem de fortalecimento do
modo de existência e cultura Mẽbêngôkre [kukràdjà] que se distancia da política dos
brancos e seus artefatos. Mas isso, e com esse argumento pretendo finalizar essas
considerações finais, não significa que se deva imaginar uma oposição entre política e
cultura. Os Xikrin, ao incorporarem para si o termo cultura em português e negarem o
238
termo política (dos brancos), não o incorporando em suas traduções, marcam uma
posição crítica em relação a como eles percebem dos impactos de Belo Monte.
Também como já discutido na introdução, diferentemente do que ocorre com a
palavra cultura, utilizado pelos Xikrin para se referirem em português ao conceito
kukràdjà, o termo política só é acionado para se referirem aos brancos e nunca
associados a si mesmos. Política dos brancos e seus artefatos, entre os Xikrin, envolvem
características depreciativas, às quais eles não se associam.
Levar a sério essa posição crítica dos Xikrin em relação ao conceito de política
permite que se questione o modo como os antropólogos operam suas traduções quando
descrevem os modos de vida daqueles com quem trabalham. Els Lagrou (2011), por
exemplo, afirma em um artigo sobre arte kaxinawá que inexiste esse conceito na língua
nativa e que ao dizer arte, ela, a antropóloga, refere-se a um conjunto de ética e estética
que embasam as tecnologias para execução de grafismos, trançados de cestarias ou
produção de cerâmica. Seria possível, seguindo o argumento de Lagrou, afirmar a
existência de um conjunto de procedimentos éticos/estéticos que equivale entre os
Xikrin ao que nós, antropólogos, consideramos ser política. Apesar de ser um caminho
argumentativo promissor, o que propus neste trabalho, no entanto, é evitar tais analogias
e considerar como dado de reflexão antropológica as analogias feitas pelos Xikrin sobre
política e a forma depreciativa que relacionam ao termo.
Poderíamos ser levados a pensar que os processos de expansão e inovação do
complexo kukràdjà, devido aos perigos a que se expõem, deveriam ser congelados ou
pelo menos ter sua velocidade de incorporação de exteriores diminuída nesses
momentos históricos de intensificação de contato com certos setores da burocracia
nacional. Esse tipo de pensamento preservacionista, como opção mais lógica da
salvaguarda, é um daqueles equívocos sobre os desentendimentos mútuos entre nós e os
índios, para referir à reflexão wagneriana, apresentada no capítulo cinco. Entre os
Xikrin, processos de homogeneização levam à morte, ao fim da vida, como já
apontaram Gordon (2006) e Cohn (2005b). Um rio estático e seco é um rio morto, como
disse Beb Tok ao ver o rio Xingu dividido pela parede da ensecadeira.
A imagem que esta tese pretendeu evidenciar ao levar em conta a crítica Xikrin
à política dos brancos é a do conjunto de pessoas Mẽbengôkre, que compartilham
modos de existência, saíram do buraco da água e vivem os impactos do barramento do
rio Xingu. Por fim, o que se pretendeu com esta tese não foi um esforço descritivo para
dar aos Xikrin o poder de situar o mundo dos brancos ou a política dos brancos. Porque,

239
como argumenta Stengers (2014), as minorias (no sentido de Deleuze) já têm esse
poder. Nós, os brancos, precisamos aprender a ouvir o modo como eles nos situam. Isso
é os levar absolutamente a sério.

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ANEXOS

Mapa de localização da Terra Indígena Trincheira-Bacajá em relação ao estado do Pará.


Fonte: Instituto Socioambiental.

254
Mapa de localização da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e seu entorno. Fonte: The
Nature Conservancy.

255
Terra Indígena Trincheira-Bacajá em relação ao empreendimento da hidrelétrica de
Belo Monte. Fonte: EIA-RIMA, p. 21, 2006.

256
Empreendimento hidrelétrico de Belo Monte em relação às Terras Indígenas. Fonte:
Instituto Socioambiental.

257
Imagem aérea da aldeia Bacajá. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

258

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