Livro Volume I - Lógica
Livro Volume I - Lógica
Livro Volume I - Lógica
LÓGICA
Volume I
SACRATÍSSIMO
CORDI JESU
INSTITUTO
S ANTO
AGOSTINHO
www.institutosantoagostinho.org
Rua São Pedro, n° 48 – Florianópolis /SC
D666e
Dom Thiago Sinibaldi, Bispo titular de Tibiríades
Elementos de filosofia: v.1 - lógica / Dom Thiago
Sinibaldi. – 5ª.ed. - Florianópolis: Editora Instituto Santo
Agostinho, 2021.
312 p. ; 23 cm
ISBN 978-65-993723-0-8
CDU - 100
Leandra Ramos – Bibliotecária – CRB-14/698
AETERNI PATRIS
ENCÍCLICA DO PAPA LEÃO XIII
Sobre a restauração da filosofia cristã
Real, D. Luiz Filippe. Nosso Senhor tenha aquela alma, tão boa e virtuosa, no seio
da sua misericórdia, e lhe dê a recompensa do muito bem, que nos quis e nos fez!
AOS BENÉVOLOS LEITORES 25
mas também aos dos colégios seculares, aos leigos cultos, que
se interessam pelas coisas da ciência e da Religião, e, sobretudo,
aos sacerdotes, que, tendo feito seus estudos filosóficos em idade
juvenil, precisam de um estudo mais reflexivo e aturado, a fim de
adquirir a cultura indispensável para o digno e decoroso exercício
do seu altíssimo ministério.
Não seria desculpável que deixássemos de consignar aqui o
nosso vivo e profundo agradecimento — aos Exmos. e Revmos.
Bispos de Portugal e do Brasil, que logo acolheram com tanta
benevolência o nosso trabalho, — aos ilustrados professores, que
o adotaram como texto das suas lições, — aos bondosos autores
das lisonjeiras apreciações, que apareceram em revistas e jornais,
e a quantos nos confortaram com suas amáveis referências. 1
† THIAGO SINIBALDI
Bispo de Tiberíades
VENERABILI FRATRI
EMMANUELI EPISCOPO CONIMBRICENSI
LEO PP. XIII
Venerabilis Frater,
Salutem et Apostolicam Benedictionem.
Venerável Irmão,
Saúde e Bênção Apostólica.
Venerabilis Frater,
Salutem et Apostolicam Benedictionem.
Venerável Irmão,
Saúde e Bênção Apostólica.
Mas como poderemos nós raciocinar acerca do ente e dos seus atributos, se não
conhecermos o modo de raciocinar legitimamente? — Outros, como Gratry, seguin-
do a ordem da dignidade, sustentam que o estudo da Filosofia deve principiar pela
Teodicéia, porque, dizem, Deus é o Ser absoluto e necessário, de quem todas as coisas
recebem a existência e a inteligibilidade. Mas esses escritores confundem a ordem
da realidade com a ordem do conhecimento. Deus é o primeiro Ente na ordem da
realidade, porque tudo deriva d’Ele; mas não é o primeiro Ente na ordem do co-
nhecimento, porque é pelas criaturas que subimos ao Criador. — Outros, e são os
Cartesianos, seguindo a ordem psicológica, começam pela Psicologia (que é uma parte
da Antropologia); porque, dizem, sendo as faculdades da alma os meios, de que, como
de instrumentos, o homem se serve para alcançar a verdade, é necessário conhecer
primeiramente essas faculdades e por isso, a essência da alma, de que derivam. Mas a
razão aduzida não é convincente. Por quanto do fato de as faculdades da alma serem
os instrumentos de que nos servimos para a consecução da verdade, não se segue
que, para o reto uso dessas faculdades, seja necessário conhecê-las na sua natureza
e no seu princípio; porque, para isso, basta que se admita a sua existência e o seu
reto e legítimo modo de operar, assim como, para o reto uso do instrumento, não
é preciso que se conheça a qualidade da matéria, de que foi feito, mas basta que se
conheça a sua virtude ou operação natural, e o modo por que se emprega.
1 Cf. Summ. Th, Ia, q. 1, a. 5. — Podemos estabelecer a nossa tese sobre
outra base. O grau de perfeição ou excelência de uma ciência depende do seu grau
de abstração. Uma ciência é tanto mais perfeita, quanto mais é abstrata. Ora, ne-
nhuma ciência é mais abstrata que a Filosofia: e por isso, esta excede, em excelên-
cia, todas as outras ciências. Diz Taine: “Os três quartos dos homens consideram
como especulações ociosas as grandes sínteses do pensamento: e erram, porque a
formação dessas sínteses é o escopo da vida de um povo ou de uma idade, e é por
44 INTRODUÇÃO
meios, que são o silogismo, e a indução, porque esses são formados à luz
dos mesmos princípios racionais. Logo, a Filosofia é independente
da Teologia revelada.1
b) A Filosofia é inferior, em dignidade, à Teologia revelada. — É
inferior quanto ao objeto; porque a Filosofia, embora, pela luz natural
da razão, se eleve às causas supremas e até à Causa absolutamente pri-
meira, contudo não descobre senão poucas verdades, relativas a Deus,
e de um modo muito imperfeito; ao passo que a Teologia revelada,
guiada pela luz sobrenatural da Fé, descobre muitas outras verdades,
relativas a Deus, que transcendem a capacidade de toda a inteligência
criada. — É inferior quanto à certeza; porque a Filosofia é guiada, no
conhecimento dos princípios e na dedução das conclusões, pela luz
natural da razão, que pode enganar-se e muitas vezes se engana; ao passo
que a Teologia revelada é guiada — no conhecimento dos princípios,
que são os artigos da Fé, pela luz da ciência divina, que não se engana e
não pode enganar, — e na dedução das conclusões, pelo menos das que
se relacionam com esses artigos, pelo magistério infalível da Igreja. — É
inferior quanto ao fim, porque a Filosofia dispõe o homem para o fim
1 A Filosofia pertence aos grupos das ciências racionais, isto é, daquelas ci-
ências que a razão forma com as suas forças naturais, e por isso, é uma ciência au-
tônoma, independente de toda e qualquer ciência, mesmo da Teologia revelada. De
fato, a Filosofia já existia, quando apareceu a divina luz do Cristianismo, e não pode
dizer-se que, no aparecimento dessa luz, ela perdesse a própria independência: visto
que N. S. Jesus Cristo veio a este mundo, não para destruir a natureza, mas para a
aperfeiçoar e enobrecer. E todos sabem que, quando, no meado do século XIX, dois
escritores franceses, de Bonald e Lamennais, pretenderam obrigar a razão humana a
pedir os primeiros princípios e os primeiros motivos de certeza à Revelação sobre-
natural, a Igreja, não só não aceitou, mas reprovou e condenou essa pretensão, mais
generosa do que sábia. A ordem natural não pode fundar-se na ordem sobrenatural;
cada uma tem as suas bases. — Mas daí não se segue que a Filosofia deva prescindir
da Teologia revelada, ou da Fé. Esta permite à razão do filósofo seguir os próprios
princípios e as suas livres tendências, sem que seja dirigida, de um modo positivo e
direto, pela Revelação, contanto que evite de contradizer as verdades divinamente
manifestadas e de invadir uma esfera superior. É uma subordinação indireta, que
não se opõe à autonomia. Diz o Concílio Vaticano: “A Fé não proíbe às ciências
de servirem-se, cada uma na sua esfera, dos seus princípios próprios e do seu método
particular; mas, embora reconheça sempre esta justa liberdade, vela com cuidado
para que não aceitem erros, metendo-se em oposição com a doutrina divina, nem
invadam e perturbem, saindo dos seus limites, a esfera e as verdades da Revelação”
(Const. Dei Filius, c. 11).
46 INTRODUÇÃO
1 Alguns dizem que a Filosofia de Santo Tomás envelheceu, que não corres-
ponde às necessidades dos nossos tempos, nem conserva a força e a eficácia neces-
sária para confutar os adversários da verdade. Mas erram. Santo Tomás não deduz
as suas conclusões senão dos princípios e das essências das coisas: e, como os prin-
cípios são imutáveis e as essências necessárias, também as conclusões são imutáveis
e necessárias. Por isso, a doutrina do Angélico satisfaz às necessidades e exigências
da mente humana em todo e qualquer tempo, e tem a eficácia de confutar todas as
dificuldades dos adversários, em todos os tempos. A Filosofia escolástica de que
Santo Tomás é o principal representante, foi chamada justamente a Filosofia do senso
comum; e por isso, deve ser seguida por todos os que ainda não renunciaram a esse
bom senso. — Nem se diga que a Filosofia de Santo Tomás é contrária às descobertas
e ao progresso das ciências naturais. Santo Tomás não só não é contrário às ciências
naturais, mas, ensinando que a nossa inteligência não pode elevar-se ao conheci-
mento das coisas imateriais senão pelo conhecimento das coisas, ensinou, ao mesmo
tempo, com a palavra e com o exemplo, que o filósofo deve investigar diligentemente
os segredos da natureza e ocupar-se do estudo das ciências físicas. Os melhores na-
turalistas confessam que entre os princípios da Escolástica e as descobertas certas das
ciências naturais não só não existe verdadeira oposição, mas, pelo contrário, reina
a mais perfeita harmonia: o que teremos ocasião de mostrar no decurso desses ele-
mentos. E se houvesse, num caso determinado, uma verdadeira e averiguada opo-
sição (o que não é impossível, pois as ciências naturais não tinham, no século XIII,
o desenvolvimento, que têm hoje), o filósofo, amigo unicamente da verdade, não
deveria ter dúvida em rejeitar uma conclusão, embora defendida pelos mais afama-
dos mestres, ou pelo próprio Santo Tomás. É esta a norma inculcada pelo mesmo S.
P. Leão XIII na célebre Encíclica Aeterni Patris (4 agosto 1879).
LÓGICA
CAPÍTULO PRIMEIRO
Idéia e Termo
ARTIGO I
Idéia, sua definição e análise
são próprios de cada ser. Assim um certo homem, por exemplo, Pedro, é animal, é
racional, é branco, é alto, é sábio, etc. Alguns desses elementos, como animal, racional,
são comuns a todos os homens; outros, como branco, alto, etc., são próprios deste
homem, que se chama Pedro, e não de outro homem. Os elementos comuns consti-
tuem a essência, ou a natureza de Pedro, porque a essência do homem é constituída
pela animalidade e pela racionabilidade; ao passo que os outros estão fora da natureza.
Ora, a idéia de homem representa a essência, ou a natureza, desse ser, e não as proprie-
dades individuais, que o fazem distinguir dos outros homens. Na verdade, a idéia é
a forma de uma faculdade imaterial, como é a nossa inteligência. Mas uma faculdade
imaterial só pode receber uma coisa imaterial, como é a essência dos seres. As ima-
gens representativas das propriedades individuais dos seres só podem ser recebidas
nas faculdades da ordem inferior, que é a sensitiva.
Advertimos que a idéia pode ser tomada segundo o seu objeto material e se-
gundo o seu objeto formal. É tomada segundo o seu objeto material, quando se toma
no conjunto de todos os elementos, que a constituem; assim, quando digo: Pedro é
homem, a idéia de homem é tomada no conjunto de todos os elementos, que a consti-
tuem e que são a animalidade e a racionalidade. É tomada segundo o seu objeto formal,
quando se toma na parte dos seus elementos, que denota a diferença específica; assim
quando digo: o homem e o anjo conhecem o Criador, a idéia de homem é tomada apenas
num dos seus elementos — a racionalidade, pela qual o homem convém com o anjo e
que é a causa adequada desse conhecimento.
1 A idéia universal, como veremos, é formada pela abstração, enquanto a in-
teligência considera nos seres de uma espécie o que é comum a todos, sem se importar
do que é próprio de cada um. É só a este caráter de universalidade, de que são dotadas
as idéias, que devemos o poder de formar juízos e raciocínios. Assim, se posso dizer
com razão que Pedro é homem, Paulo é homem, só posso dizê-lo enquanto a idéia de
homem representa o que há de comum nos indivíduos humanos, prescindindo do que
é próprio de Pedro, de Paulo, etc.; porque se a idéia de homem representasse o que é
próprio de Pedro, não poderia dizer-se que Paulo é homem.
58 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO II
Divisão geral da idéia
1 A compreensão da idéia não pode aumentar nem diminuir, sem que a idéia
deixe de ser o que é; porque a compreensão denota a essência, e esta é incapaz de
aumento e de diminuição. A extensão da idéia, porém, pode aumentar ou diminuir,
sem que por isso, aumente ou diminua a sua compreensão; pois a extensão é uma coisa
extrínseca e acidental à idéia.
2 Um e o mesmo ser pode considerar-se em si, ou na inteligência. —
Considerado em si, o ser possui propriedades, de que a natureza a dotou, indepen-
dentemente do nosso pensamento. A idéia, que representa este ser, é real; tal é a
idéia de homem, considerado em si mesmo, isto é, nos seus elementos ou notas de
ser sensitivo e racional. — Considerado na inteligência, o ser possui ou pode possuir
atributos, que não possui na realidade e por isso, lhe foram dados, não pela natureza,
mas pela abstração e reflexão do nosso pensamento. A idéia, que representa esse ser,
é lógica; tal é a idéia de homem, considerado como espécie; porque na realidade não
existe o homem-espécie, mas existe unicamente o homem-indivíduo.
60 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
a idéia de sanidade, atribuída ao animal e ao alimento, porque o animal diz-se são por
si, enquanto a sanidade lhe convém intrinsecamente, ao passo que o alimento se diz são
só em ordem ao animal, isto é, só enquanto é causa de sanidade no animal.
b) A idéia análoga segundo a atribuição representa uma propriedade, a qual
se atribui a dois entes, — não enquanto a um convém intrinsecamente e ao outro em
ordem ao primeiro, — mas enquanto um e outro se referem a um terceiro, ao qual
essa propriedade convém principal e intrinsecamente; tal é a idéia de sanidade, atribuí-
da ao alimento e à cor, porque o alimento e a cor, não se dizem são senão em relação a
um terceiro, — ao animal, em que a sanidade se encontra principal e essencialmente,
visto que o alimento é causa da sanidade do animal, e a cor é sinal dessa sanidade.
— Por isso, na analogia de atribuição há, pelo menos, três termos, ao passo que na
analogia de proporção há só dois.
c) A idéia análoga segundo a proporcionalidade representa uma propriedade,
que se atribui a dois entes, não porque um se refere a outro, mas porque a relação dessa
propriedade com um ente é semelhante ou proporcionada à relação da mesma propriedade
com outro ente; tal é a idéia de rei, que se atribui ao homem e ao leão, porque a relação
do leão com os outros animais é semelhante à relação do soberano com os seus súditos,
isto é, o leão está para os outros animais como o soberano está para os seus súditos. —
Como se vê, a analogia de proporcionalidade encerra duas proporções e quatro termos
(embora nem sempre explícitos), e chama-se de proporcionalidade,por isso, mesmo que
a proporcionalidade é, como diz Santo Tomás, a proporção ou a semelhança entre duas
proporções: “Aequalitas proportionum vocatur proporcionalitas” (In V Met., lect. V).
A idéia análoga segundo a proporcionalidade pode ser análoga segundo a pro-
porcionalidade própria e segundo a proporcionalidade imprópria, ou metafórica. — É
análoga segundo a proporcionalidade própria, quando a propriedade, representada pela
idéia, se atribui aos dois termos analogados, porque num e noutro se encontra como
forma intrínseca, embora se não encontre em ambos do mesmo modo. Assim a idéia de
sapiência, quando se atribui a Deus e ao homem, é análoga segundo a proporcionalidade,
porque a relação da sapiência com a inteligência humana é semelhante à relação da mesma
sapiência com a inteligência divina, visto que numa e noutra inteligência a sapiência sig-
nifica o conhecimento das causas supremas; — e é análoga segundo a proporcionalidade
própria porque a sapiência é uma forma intrínseca tanto da inteligência divina quanto da
humana, embora na divina seja infinitamente mais perfeita do que na humana. — É
análoga segundo a proporcionalidade imprópria, ou metafórica, quando a propriedade
representada pela idéia se atribui aos dois termos analogados, porque num se encontra
como forma intrínseca e noutro como semelhança dessa forma. Assim, a idéia de riso,
quando se atribui ao homem e ao jardim, — é análoga segundo a proporcionalidade,
porque a relação do riso com a face do homem é semelhante a relação da amenidade
com o jardim; — mas é análoga segundo a proporcionalidade imprópria, ou metafórica,
porque o riso compete própria e intrinsecamente ao homem, ao passo que ao jardim só
compete por uma certa semelhança, que esse tem com o próprio riso do homem. — Essa
analogia de proporcionalidade imprópria, embora tenha o seu fundamento nas coisas,
contudo depende principalmente do arbítrio humano. — Donde se segue:
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 63
indivíduos, e desse modo representa-se-nos como uma coisa, a qual por tal modo
existe ou pode existir em muitos seres, que neles se multiplique e a cada um deles se
atribui. Assim (insistimos no mesmo exemplo) a humanidade, abstraída das circuns-
tâncias ou notas que a tornam concreta em Pedro, Paulo, etc., — é uma coisa, que se
encontra em muitos indivíduos, pois a humanidade existe em todos os homens, —
multiplica-se numericamente neles, porque há tantos homens quantos são os que têm
a humanidade, — e atribui-se a cada um deles, pois de cada indivíduo de natureza
humana podemos dizer que é homem.
A idéia universal difere — a) da transcendental, — b) da comum, — c) da coletiva,
— d) e da particular.
a) A idéia universal difere da transcendental. A idéia é transcendental, quando
representa uma coisa, que pode atribuir-se a todos os entes, existentes e possíveis:
tal é a idéia de ente, de verdadeiro, de bom, etc. Diz-se transcendental, porque trans-
cende, ou excede, todos os gêneros e todas as espécies. Ora, há uma grande diferença
entre a idéia universal e a transcendental. Por quanto, a idéia universal não representa
senão o que é próprio de uma determinada categoria de entes; ao passo que a trans-
cendental aplica-se a todos os seres, existentes e possíveis. Além disso, a idéia universal
representa uma coisa, que se atribui a todos os sujeitos, aos quais se estende, numa
significação unívoca ou idêntica (assim homem, aplicado a Pedro, a Paulo, etc., significa
sempre a mesma coisa); ao passo que a transcendental representa uma coisa, que se
atribui aos seus sujeitos numa significação análoga (assim ente, aplicado ao homem, à
planta, à pedra, não significa a mesma coisa).
b) A idéia universal difere da comum. Na verdade, a essência, indicada pela
idéia universal, multiplica-se nos sujeitos, a que se atribui, de modo que a essência de
um indivíduo, embora convenha especificamente com a essência de outro indivíduo,
todavia difere numericamente; assim são tantas as humanidades, quantos os homens.
Mas a essência, denotada pela idéia comum, embora se atribua a vários supostos,
todavia não exprime exigência de multiplicação numérica nos mesmos supostos, a que
se atribui. Assim a Essência Divina é comum às Três Pessoas, mas não pode chamar-
-se universal, porque não pode estar sujeita à multiplicação numérica, pois há um só
Deus (Cf. S. Th.; In 1 Sent., dist., 19, q. 4, a. 2 ad 2).
c) A idéia universal difere da coletiva (exército, rebanho). Porquanto, a uni-
versal pode ser atribuída a todos e a cada um dos sujeitos: mas a coletiva convém só à
coleção inteira dos sujeitos. Por exemplo, a idéia da planta, que é universal, atribui-se a
cada um dos vegetais, assim dizemos: “a figueira é planta, o pinheiro é planta, a flor é
planta”, ao passo que a idéia de exército, por ser coletiva, não convém a cada soldado,
porque não podemos dizer: “este soldado é o exército” (Sum. Th., Ia, q. 31, a. 1 ad 2).
d) A idéia universal difere da particular. Porquanto, como dissemos, a idéia
universal toma-se em toda a sua extensão, mas a particular só numa parte da sua exten-
são; assim quando dizemos “alguns homens” concebemos a essência humana existente,
não em todos os homens, mas só em alguns homens indeterminados. — Como se vê,
a idéia particular aproxima-se da singular, e às vezes chega a identificar-se com esta,
como neste exemplo: certo homem escreveu os Lusíadas.
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 65
ARTIGO III
Divisão da idéia universal-reflexa
— convém exclusivamente aos que têm essa essência, porque só os que têm uma es-
sência podem participar do que necessariamente deriva dela, — e convém sempre,
porque o ente não pode perder a propriedade, sem perder a essência. — Deve,
porém, advertir-se que uma qualidade, para ser verdadeira propriedade, deve deri-
var da essência completa, isto é, do conjunto de todos os elementos, que constituem a
essência; porque, se derivasse de um só elemento, não poderia convir exclusivamente
a uma espécie, mas conviria também a outra espécie, que é constituída por aquele
elemento; assim dormir, com relação ao homem, não é uma propriedade no sentido
rigoroso da palavra, porque deriva da essência incompleta do homem, isto é, deriva
do homem enquanto animal, e por isso, convém também ao bruto.
A propriedade distingue-se da espécie, do gênero e da diferença; porque esses
três universais constituem, no todo ou em parte, a essência; mas a propriedade emana,
ainda que necessariamente, da essência constituída.
1 O acidente distingue-se da propriedade; pois essa emana necessariamente da
essência constituída, e aquele pode aderir ou deixar de aderir à mesma essência.
— Note-se que uma qualidade, para ser acidente, não é necessário que possa e deva
separar-se realmente do sujeito, mas bata que possa separar-se mentalmente. Assim
a alvura do cisne é acidente; visto que, embora ela não possa separar-se realmente do
cisne, todavia podemos pensar que o cisne perca a alvura, sem perder a sua essência.
Das noções expostas resultam os seguintes corolários:
a) O gênero e a espécie atribuem-se em concreto aos entes, que lhes estão
subordinados, quando esses entes são substâncias, isto é, seres subsistentes por si;
assim dizemos: o homem é animal, e não podemos dizer: o homem é animalidade.
Porquanto, nesses juízos afirmamos a existência da identidade entre o sujeito e o
predicado. Ora, essa identidade não existiria, se a espécie e o gênero se atribuíssem
em abstrato à substância: pois a substância, por ser uma coisa completa, não é idêntica a
uma essência abstrata, a qual, excluído o sujeito a que adira, é uma coisa incompleta.
b) O gênero e a espécie atribuem-se em abstrato aos inferiores, quando esses
entes são acidentes, isto é, são entes que precisam de outro ente, a que adiram; assim
dizemos: a alvura é cor, e não podemos dizer: a alvura é colorida. Na verdade, o
gênero e a espécie, quando se atribuem ao acidente, devem exprimir o que é essencial
ao acidente, e não o que lhe é estranho; porque esses dois universais-reflexos são predi-
cados essenciais. Mas, se o gênero e a espécie se atribuíssem em concreto, exprimiriam
a essência do acidente, e também o sujeito, em que a essência existe e que, por ser um
ente substancial, é estranho à idéia de acidente.
c) A diferença, a propriedade, o acidente atribuem-se aos sujeitos em concreto;
assim dizemos: Pedro é racional, honesto, etc., pois esses três universais assumem a
forma de adjetivo, e todo adjetivo é concreto.
72 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO IV
Redução das idéias a categorias
1 Devemos explicar essas duas afirmações — que toda a idéia representa uma
essência e que a idéia de propriedade e de acidente não constitui a essência, mas uma coisa
que adere à essência já constituída. Na verdade, toda idéia representa uma essência. Essa
essência encontra-se, não só na substância, mas também, embora secundariamente, no
acidente; pois também o acidente é uma coisa determinada, e não é outra, e uma coisa é
o que é pela sua essência. O acidente, pois, tem a sua essência e todavia não constitui a
essência da substância. A substância tem a sua essência, constituída por elementos, que por
isso, chamam-se substanciais, e tem propriedades ou qualidades, cada uma das quais é
dotada de essência própria, a qual não constitui, mas modifica a própria substância.
2 Os antigos davam às categorias o nome de praedicamenta, porque essas, como
dizemos, representam os predicados, que se atribuem ou podem atribuir-se a um su-
jeito; assim como davam o nome de praedicabilia às cinco idéias universais-reflexas, de
que nos ocupamos no artigo antecedente. — As categorias diferem das cinco idéias
universais-reflexas, pois essas exprimem os diversos modos, porque uma coisa pode ser
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 73
As categorias não podem ser mais do que as dez indicadas no texto. Na ver-
dade, as categorias, representando os diversos predicados, que podem atribuir-se a
um sujeito, devem ser tantas, quantas são as perguntas, que podem fazer-se acerca
de um indivíduo. Ora, essas perguntas não são mais nem menos de dez. Assim,
acerca de Pedro, podemos perguntar: O que é? É homem (substância). É grande? É
pequeno (quantidade). — De quem é filho? É filho de Paulo (relação). — Como é? É
bom (qualidade). — O que está fazendo? Escreve (ação). — O que sofre? Sofre sede
(paixão). — Aonde? Em Coimbra (localização). Quando? Hoje (quandocação). — Como
está? Sentado (estado). — O que veste? A batina (hábito). Acabadas essas perguntas, já
não há mais que investigar. Logo, as categorias são dez.
Foi Aristóteles quem primeiro reduziu todas as idéias a dez categorias, que
são as enumeradas no texto. — Essa classificação é a mais completa e racional, que
se conhece. Na verdade, todo o predicado — ou exprime uma coisa, que existe em si,
— ou exprime uma coisa, que existe noutra, como no seu sujeito, que a sustenta. Se
a coisa existe em si, é substância; se existe num sujeito, é acidente. Substância e acidente
são, pois, as classes supremas, às quais se reduzem todos os predicados; porque tudo
o que existe em si está contido sob a categoria da substância, e tudo o que existe num
sujeito está contido sob a categoria do acidente. — O acidente subdivide-se em nove
74 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
classes. Porquanto, o que existe noutro ente, como no seu sujeito, refere-se a esse
por nove modos; pois que, — ou é a extensão das partes materiais do mesmo sujeito,
e é quantidade, — ou é uma perfeição, que determina o sujeito, e é qualidade, — ou é
uma ordem mútua entre o sujeito e outro indivíduo, e é relação, — ou é o exercício
da energia, de que o sujeito é dotado, e é ação, — ou é uma alteração, que o sujeito
recebe pela ação de uma causa externa, e é paixão, — ou é uma determinação do
sujeito quanto ao lugar, que ocupa, e é localização, — ou é a determinação do sujeito
quanto à duração, e é quandocação, — ou é uma disposição do sujeito no lugar, e
é estado, — ou é uma denominação, que se dá ao sujeito por causa do vestido, e é
hábito. — Aristóteles, expondo a sua doutrina no livro das Categorias, diz que não
entendeu dar uma enumeração nem absolutamente exclusiva, nem absolutamente
perfeita, mas que só desejou apresentar uma, que lhe pareceu a mais apta para uma
coordenação lógica das idéias e dos objetos.
Note-se a diferença entre o acidente universal, que é uma das cinco idéias
universais-reflexas, e o acidente categórico, de que nos ocupamos. O acidente univer-
sal significa uma qualidade contingente, que pode indiferentemente dar-se ou deixar de
dar-se no sujeito. O acidente categórico exprime um ente, que existe num sujeito, mas
abstrai do modo porque existe, não exprimindo se existe necessária, ou contingente-
mente. Por isso, entre a substância e o acidente universal pode colocar-se a proprie-
dade, que reside necessariamente na substância; mas entre a substância e o acidente
categórico não há meio termo, e a propriedade, pelo fato de existir no sujeito, reduz-se
ao acidente categórico (Sum. Th., Ia, q. 77, a. 1 ad 5).
Alguns filósofos apresentaram diversos sistemas de categorias.
As categorias de Victor Cousin são duas: Ente infinito e ente finito. — As de
Schleiermacher são duas: sujeito e predicado. — As de Lotze são três: reais, atributivas e
relativas. — As de Sigwart são quatro: coisa, propriedade, atividade e relação. — As de
Rosmint são três: ontológicas, dialéticas e ideológicas. — As de Spinoza e Descartes são
três: substância, atributo e modo. — As de Locke também são três: substância, modo e
relação. — As de Leibnitz e de Wolff são seis: substância, quantidade, qualidade, paixão,
ação e relação. — Renouvier estabeleceu a relação como base das categorias. — Para
Krause, a categoria fundamental é o ser, considerado nos três diferentes aspectos de
tese, antítese e síntese.
As mais célebres categorias, que os modernos opõem às de Aristóteles, são
as de Kant. Esse filósofo reduziu todas as idéias puras (meramente subjetivas) a doze
categorias, dispostas em quatro classes: Unidade, Pluralidade ou Multidão, Totalidade
(Quantidade), — Realidade ou Afirmação, Negação, Limitação (Qualidade), —
Substância e Modo ou Acidente, Causa e Efeito, Ação e Paixão (Relação), — Possibilidade
e Impossibilidade, Existência e Não-existência, Necessidade e Contingência (Modalidade).
De todas essas categorias diremos em geral — a) que algumas são de menos
para abranger todo o objeto, ou são demais e por isso, se incluem umas nas outras:
— b) que outras são falsas, porque não correspondem à realidade das coisas, ou se
fundam em falsos princípios.
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 75
exclusivamente pelo gênero supremo, considerado nos seus atributos reais e obje-
tivos, a categoria lógica é toda a série de predicados essenciais, compreendendo o
gênero supremo, os gêneros e as espécies intermédias, até à espécie ínfima.
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 77
Eis o quadro:
Substância
(gen. supr.)
Homem
(esp. ínf.)
Pedro, Paulo, André.1
ARTIGO V
Termo, suas espécies e propriedades
1 Ao termo não podem convir as divisões, que são próprias da idéia, con-
siderada em relação ao modo porque representa o objeto; pois o termo limita-se a
exprimir o objeto, existente na inteligência, mas prescinde do modo porque o mesmo
objeto é percebido.
2 Para conhecermos se um termo é positivo ou negativo, devemos considerar
a idéia, que ele exprime. Se a idéia é positiva, isto é, se representa uma perfeição ou
realidade, o termo é positivo: como também se a idéia é negativa, isto é, se denota
ausência de realidade ou perfeição, o termo é negativo. Assim são positivos os termos:
imenso, imortal, infinito etc.: e são negativos os termos: morte, pecado, vício, etc. — O
termo negativo distingue-se do privativo. Porquanto, o negativo denota apenas a au-
sência de realidade, sem indicar se o sujeito é capaz ou incapaz dessa realidade; ao
passo que o privativo significa a ausência de uma perfeição num sujeito, que a devia
possuir, tal como é o termo cego, com relação ao homem.
3 Como se vê, o termo conotativo exprime, ao mesmo tempo, duas coisas:
uma qualidade e um sujeito, ou uma substância, que a possui. O termo absoluto
denota diretamente o sujeito com as suas qualidades: o conotativo significa direta-
mente a qualidade, existente no sujeito. — Por isso, a denotação é a propriedade
de termo denotativo ou absoluto, enquanto esse indica um sujeito, ou uma substân-
cia: como a conotação é a propriedade do termo conotativo, enquanto ele indica
uma qualidade ou um atributo de um sujeito ou de uma substância. — O termo
absoluto, ou denominativo, costuma chamar-se também substantivo, e o conotativo
diz-se também adjetivo. Todavia o adjetivo tem mais extensão na Lógica do que na
Gramática; porque muitas vezes os termos, que na Gramática são substantivos, na
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 81
Lógica são adjetivos, ou conotativos: tais são os termos médico, pintor, músico, etc.,
que exprimem uma qualidade aderente a uma sujeito.
1 Todo termo conotativo é concreto: mas nem todo o concreto é conotativo;
assim o termo homem é concreto, mas não é conotativo. — O concreto pode ser, indife-
rentemente, adjetivo e substantivo; assim os termos sábio e homem são ambos concretos.
2 O termo universal, como a idéia universal, distingue-se do termo transcen-
dental, do comum, do coletivo, e do particular.
3 O termo pode ser equívoco, mas não a idéia. Porquanto o termo, sendo um
sinal convencional, pode empregar-se livremente para denotar entes diversos: mas a
idéia, por ser um sinal natural, não pode representar senão um único objeto. — Para se
conhecer se um termo é unívoco, ou equívoco, é preciso considerar os sujeitos aos quais
se atribui. Se os sujeitos convêm entre si não só na denominação, mas também na essên-
cia, o termo é unívoco; se os sujeitos não convém na essência, ainda que convenham na
denominação, o termo é equívoco. — É preciso evitar o uso dos termos equívocos: aliás o
meio, que nos foi dado por Deus para a manifestação dos nossos pensamentos, conver-
ter-se-á num instrumento de confusão e de ruína social. Quando, pois, se emprega um
termo, que tem diferentes significações, é necessário determinar o seu sentido.
82 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO VI
Definição e divisão
ele come, não enquanto é médico, mas enquanto é homem, que, aliás, pode pos-
suir e possui a ciência da medicina. — Para distinguirmos se a apelação é formal ou
material, devemos atender às seguintes regras: — 1.) O termo apelante emprega-se
sempre formalmente, e não materialmente. Assim, quando digo: o homem é bom, o
termo apelante bom toma-se formalmente, isto é, por causa da forma, que é a bondade
e que reside no sujeito; porque, se se tomasse materialmente, isto é, por causa do su-
jeito, o sentido da proposição seria: o homem é homem. — 2.) Quando o termo apelado
é concreto, toma-se materialmente, e não formalmente. Assim, quando dizemos: Deus
morreu por nós, o termo apelado, que é Deus, toma-se materialmente, isto é, por causa
do sujeito, e não formalmente, isto é, não por causa da forma, que é a Natureza divina:
porque não entendemos que morreu a natureza divina, mas que morreu o Sujeito,
ou a Pessoa, que possui a natureza divina, e morreu quanto à sua natureza humana.
84 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
1 A definição serve para fixar o estado da questão, ou para dar uma noção
exata das coisas, e assim evitar inúteis controvérsias.
A definição é o princípio e o termo da ciência. Partimos de uma definição in-
completa ou provisória, para chegarmos a uma definição completa, e perfeitamente
conhecida. É o que acontece com as idéias, que de obscuras e confusas se tornam
claras e distintas. A definição, pois, é o princípio para os que apreendem, mas é o
termo para os que já apreendem.
2 Relativamente à definição nominal, fazemos as seguintes observações: — 1a)
só devem ser definidos os termos obscuros, incertos e equívocos; — 2a) a definição comum
deve ser seguida sempre: aliás não seriam possíveis nem as ciências, nem as socieda-
des; — 3a) a definição particular só deve ser apresentada em caso de necessidade.
3 Acerca da definição real, notamos: — 1o) A definição essencial deve,
quando seja possível, preferir-se à descritiva; pois aquela explica a natureza das
coisas, e esta pára na superfície. — 2o) É absurdo exigir a definição essencial de
todas as coisas; pois, se tudo precisasse de definição, uma coisa devia ser definida
por outra, e esta por outra, até o infinito: o que é absurdo, porque, então, nenhu-
ma coisa podia ser definida. Por isso, todas as definições devem resolver-se em
certas noções elementares, que, por serem evidentes, não precisam de definição.
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 85
Essas noções são: ente, unidade, verdade, etc. Todavia dessas noções podemos fazer
uma descrição ou declaração por meio de noções, que sejam, relativamente a nós,
mais conhecidas. — Além disso, as mais elementares noções, por serem simplís-
simas e constarem de uma única nota, não podem estar sujeitas a uma verdadeira
definição, pois essa resolve a coisa nos seus vários elementos.
A definição descritiva, que explica a coisa por elementos extra-essenciais, di-
vide-se em própria, acidental, causal e genética. — Própria é a que explica a coisa pelas
propriedades, que derivam da essência da mesma coisa; como: o homem é capaz de
rir e de apreender a ciência. — Acidental é a que explica a coisa pelas suas qualidades
acidentais, que, no seu conjunto, só podem convir à mesma coisa; assim Virgílio (Acn.,
III) descreve Poliphemo: monstrum horrendum, informe, ingens, cui lumen ademptum,
trunca manum pinus regir, et vestigia firmat. — Causal é a que explica a coisa pelas
causas extrínsecas, que são — a eficiente (como: o homem foi criado por Deus), — a
exemplar (como: o homem foi criado à imagem de Deus), — a final (como: o homem
foi criado para que ame a Deus). — A genética é a que explica a coisa pela sua origem,
como: a eclipse do sol deriva da interposição da lua entre o sol e a terra. — A definição
descritiva só num sentido lato e impróprio se chama definição; porque, embora faça
distinguir uma coisa das outras, não explica o que é a coisa. — Todavia, esta defi-
nição emprega-se freqüentes vezes nas ciências, que não penetram no interno das
coisas, para lhes descobrir os elementos essenciais.
Devemos advertir que de muitas coisas pode dar-se uma definição absoluta,
e de muitas outras uma definição relativa. Dá-se uma definição absoluta das coisas,
que, pela sua natureza, não se referem a outras; e essa definição indica exclusiva-
mente os elementos, que constituem a essência da própria coisa; assim a substância é
susceptível de uma definição absoluta. Dá-se uma definição relativa das coisas, que se
referem essencialmente a outras; e essa definição indica também a coisa, à qual uma
outra se refere; assim a definição do acidente exprime a substância, à qual, o acidente
se refere. Diz Santo Tomás: “Substantia, quae habet quidditatem (essentiam) absolu-
tam, non dependet in sua quidditate ex alio, ita quod oporteat exteriorem essentiam
in eius definitione poni. Accidentia vero non habent esse nisi per hoc quod insunt in
subjecto, et ideo eorum quidditas est dependens a subjecto; et propter hoc oportet
quod subjectum accidentis in definitione ponatur” (In VII Met., l. 1).
1 Deve seguir-se essa regra, quando se deseja a definição lógica, que é a mais ex-
celente. — Todo o ente criado é composto de dois elementos essenciais, — um comum e
indeterminado, outro próprio e determinado. Pelo elemento comum e indeterminado, o ente
é semelhante aos outros: pelo elemento próprio e determinado, distingue-se dos outros
e forma uma classe especial. O elemento comum e indeterminado é o gênero; o próprio e
determinado é a diferença específica. Logo, a definição, para explicar a essência de um ente,
86 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
deve apresentar o gênero e a diferença. — Mas note-se que o gênero deve ser próximo; pois
o remoto não contém todas as notas essenciais da coisa definida. Assim, é falta esa defi-
nição: o homem é o vivente racional; pois que o vivente, sendo gênero remoto de homem,
não inclui a nota de animalidade, pela qual o homem é semelhante aos brutos, nem o
extrema do anjo, que também é vivente racional. — Se não podermos determinar o gênero
próximo e a diferença específica, ou porque o ente é simplicíssimo e não consta de vários
elementos, ou porque não temos um conhecimento distinto das coisas, devemos então
designar duas propriedades, das quais a primeira exprima a semelhança, que a coisa defi-
nida tem com as outras, e a segunda denote o que é exclusivamente próprio dela. Assim,
não podendo dar uma rigorosa definição de Deus, pois Ele é simplicíssimo e transcende
todos os gêneros e todas as diferenças, dizemos que Ele é o Ente dotado de perfeição infinita.
1 Isto é evidente; porque a definição serve para declarar uma coisa obscura
ou desconhecida. Por isso, na definição nominal, devemos empregar os termos mais
conhecidos, e, na definição real, devemos recorrer a conceitos, anteriormente expli-
cados. — Contradizem a esta regra — 1o) os que definem a coisa pela própria coisa,
como: homem é o ser que possui a humanidade; — 2o) os que empregam termos meta-
fóricos, indeterminados, equívocos ou insólitos, como: os olhos são as estrelas do homem;
— 3o) os que, sem necessidade, se servem de termos negativos, que indicam o que a
coisa não é, e não o que ela é, como: o homem é não-pedra. Dizemos — sem necessidade;
porque, às vezes, ou pela limitação da nossa inteligência, ou pela própria natureza
das coisas, devemos recorrer a termos negativos; assim, dizemos que Deus é imenso,
que o cego é o homem que não vê.
2 Sendo a definição como a diretriz de toda a investigação e discussão, deve
ser tal que possa, a cada instante e com facilidade, ser citada: o que não poderia fa-
zer-se, se não fosse breve. Por isso, quando se define o nome, empreguem-se somente
os termos necessários e suficientes para que se conheça a sua significação; e, quando
se define a coisa, indiquem-se somente aquelas notas, que explicam a mesma coisa e
a distinguem das outras: assim, é defeituosa esta definição: o homem é animal racional
e sagaz, porque a nota sagaz está contida na nota racional.
Aristóteles (II Post. Anal.) ensina dois métodos para procurar e encontrar
os elementos essenciais, de que se compõem a definição, especialmente lógica; um
chama-se descendente, outro ascendente. — O método descendente parte do que é mais
universal para descer ao que é menos universal. Por quanto, toma o gênero, ao qual
está sujeita a coisa, que se há de definir, e a esse gênero sucessivamente acrescenta
tantas diferenças específicas, quantas são necessárias para determinar e limitar o
CAPÍTULO PRIMEIRO – IDÉIA E TERMO 87
gênero, de modo que essa possa converter-se na coisa definida. Então temos a de-
finição; porque aquele gênero com as diferenças, à excepção da última, constitui o
gênero próximo, e a última diferença é a diferença específica. Assim, devendo definir
o homem, tomamos a substância com gênero, sob o qual o homem está contido; a esse
gênero de substância acrescentamos as diferenças corpórea, animada, sensitiva, racional,
e temos a definição lógica do homem; porque o gênero substância com as três primeiras
diferenças é o gênero próximo, e a última diferença racional é a diferença específica. — O
método ascendente, fazendo o caminho inverso, parte do que é menos universal para
subir ao que é mais universal. Porquanto, começa por comparar a coisa, que se há de
definir, com as coisas que mais lhe se aproximam. Essa comparação mostra que a coisa
tem um elemento comum como as outras coisas, pelo qual lhes é semelhante, e tem
outro elemento próprio, pelo qual difere das outras. O elemento comum é o gênero: o
elemento próprio é a diferença. Assim, querendo empregar esse método para definir o
homem, comparamos o homem com o bruto. Dessa comparação resulta que o homem
convém com o bruto enquanto é animal, mas difere do bruto enquanto é racional. Por
isso, animal é o gênero na definição de homem, e racional é a diferença.
1 Pela definição, que extrema o objeto de tudo o que lhe estranho, reconhe-
cemos a unidade do mesmo objeto; pela divisão, que distingue as partes ou elementos
do objeto, reconhecemos a sua pluralidade ou complexidade. Pela definição, o objeto
torna-se claro; pela divisão, distinto. A divisão, pois, é o complemento da definição. —
A utilidade da divisão é incontestável. A nossa inteligência é tão limitada, que não
pode, com um só olhar, compreender as coisas, sobretudo se são complexas, e, para
as compreender, deve esmiuçá-las e resolvê-las nas suas partes.
2 A divisão física pode ser — essencial, ou integral, ou potencial, ou acidental,
segundo o todo físico é composto de partes — essenciais (tal é o homem composto
de alma e corpo), — ou integrantes (tal é um organismo), — ou potenciais (tal é a nossa
alma, que é dotada de muitas e diversas potências ou faculdades), — ou acidentais (tal
é o todo artificial).
88 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
CAPÍTULO SEGUNDO
Juízo e Proposição
ARTIGO I
Juízo e proposição, sua divisão
O juízo, embora considerado nos seus elementos, seja uma coisa múltipla e
composta, todavia, considerando na sua essência, é uma coisa simplicíssima: pois
consiste na afirmação da conveniência ou da desconveniência entre o sujeito e o
predicado, e essa afirmação é uma coisa simplicíssima.
1 O juízo, considerando na sua matéria, divide-se em afirmativo e negativo,
enquanto o predicado convém ou não convém ao sujeito. Mas, se o consideramos
enquanto é ato da inteligência, o juízo é sempre afirmativo; pois sempre se afirma que
o predicado convém, ou não, ao sujeito.
2 Donde resulta — que o objeto do juízo direto é o próprio sujeito, a que se
atribui um predicado, e o objeto do juízo reflexo é a própria conformidade da inteligência
com a realidade, — e que o juízo reflexo inclui e supõe necessariamente o direto. —
Como também se vê o erro dos que dizem que a inteligência, para conhecer a sua
conformidade com a realidade objetiva, deve necessariamente refletir sobre os seus atos.
A inteligência, como dizemos no texto, conhece essa conformidade, pelo fato mesmo de
atribuir a um determinado sujeito um determinado predicado. Se não conhecesse, não
pronunciaria o seu juízo. — Isto, porém, não obsta a que a inteligência examine, pela
reflexão, o seu juízo primitivo e se convença, cada vez mais, da verdade do seu ato.
CAPÍTULO SEGUNDO – JUÍZO E PROPOSIÇÃO 91
ARTIGO II
Divisão da proposição simples
funda nas leis morais, e por isso, admite exceções; como: “os pais amam seus filhos”. —
Quando não é evidente a extensão do sujeito, a proposição reduz-se à universal, ou à
particular, ou à singular, conforme a natureza da matéria, de que se trata.
1 Da proposição afirmativa e negativa difere a proposição infinita, — a que
tem por predicado um termo infinito, como: o homem é não-planta. Essa proposição
não é afirmativa, nem negativa; porque não atribui ao sujeito o predicado, nem o
nega. Mas, embora não seja afirmativa nem negativa contudo participa de uma e de
outra. Participa da afirmativa, enquanto indica que pode convir ao sujeito um pre-
dicado, indeterminado, à exceção do que é significado pelo termo infinito; participa
da negativa, enquanto afasta do sujeito um predicado determinado.
2 Se ao sujeito faltasse uma só das notas, que constituem o predicado, não
poderia afirmar-se que este convém àquele.
3 Na proposição afirmativa dizemos que o sujeito está contido sob a ex-
tensão do predicado, mas não dizemos que só ele está contido: porque o predicado
pode conter outros sujeitos. O predicado tem maior extensão que o sujeito, embora
tenha menor compreensão.
CAPÍTULO SEGUNDO – JUÍZO E PROPOSIÇÃO 95
ARTIGO III
Divisão da proposição composta
por isso, deve atribuir-se a todos os indivíduos, que têm a mesma essência: assim,
a proposição “é necessário que todo o homem seja racional” corresponde a esta: “todo o
homem é racional”. Se o modo exprime impossibilidade, a proposição é universal-negati-
va, porque o que não pode convir a um sujeito, nem pode convir a algum indivíduo,
que se acha contido na extensão desse sujeito; assim, a proposição: “é impossível que
o homem seja bruto” — corresponde a esta: — “nenhum homem é bruto”. Se o modo
exprime possibilidade, a proposição é particular, porque o que convém possivelmente,
ou contingentemente, convém a alguns indivíduos; assim, esta proposição — “é possível
que o homem seja douto” — corresponde a outra: — “algum homem é douto”. — Quanto
à qualidade, a modal é afirmativa ou negativa, conforme o modo se afirma ou se nega;
assim, a proposição — “não é possível que o homem seja bom” — é negativa.
1 A razão aduzida pela causal será verdadeira, se existir um nexo entre a
mesma razão e a proposição simples, isto é, se na proposição simples o predicado
convier ao sujeito em virtude da razão aduzida; aliás será falsa, embora cada uma
das partes seja por si verdadeira. Por isso, é falsa esta proposição causal: “a alma
humana é espiritual, porque existe”, pois que a existência da alma não é a razão da
sua espiritualidade, embora seja verdade que a nossa alma é espiritual e que existe.
CAPÍTULO SEGUNDO – JUÍZO E PROPOSIÇÃO 97
ARTIGO IV
Qualidades das proposições
1 As contraditórias:
a) Não podem ser ambas verdadeiras, seja qual for a sua matéria. Porquanto,
afirmando uma o que a outra nega, se ambas fossem verdadeiras, uma coisa seria e
deixaria de ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Assim, quando digo — todos
os homens são justos, — afirmo que a justiça existe em todos os homens; mas quando
digo — alguns homens não são justos, — nego que a justiça existe em todos os homens.
Por isso, se fossem verdadeiras essas duas contraditórias, a justiça existiria e não exis-
tiria em todos os homens: o que é absurdo.
b) Não podem ser ambas falsas. Porquanto, se é falsa a afirmativa, é falsa,
porque o que se afirma, não é; e se é falsa a negativa, é falsa porque o que se nega, é.
Ora, como repugna que uma coisa, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, seja
e não seja, as contraditórias não podem ser ambas falsas. Assim, se é falsa esta proposi-
ção — todos os homens são justos, é falsa porque a justiça não se encontra em todos os
homens; e se é falsa esta outra — alguns homens não são justos, — é falsa, porque a
justiça se encontra em todos os homens, e por isso, se ambas são falsas, a justiça não se
encontra e se encontra em todos os homens: o que é absurdo.
A razão é, porque entre uma e outra não há meio termo, como não há meio
termo entre a afirmação e a negação. Uma coisa é, ou não é. — Repetimos que
as proposições singulares são contraditórias, quando diferem entre si na qualidade;
porque, para se excluírem reciprocamente, basta que uma seja afirmativa, e outra
negativa. Assim, são contraditórias as seguintes — Pedro é bom. Pedro não é bom.
100 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
1 As contrárias:
a) Não podem ser ambas verdadeiras, seja qual for a sua matéria. Na verdade,
uma afirma que a outra nega, e por isso, se ambas fossem verdadeiras, a mesma coisa
seria e deixaria de ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto.
b) Não podem ser ambas falsas, quando a matéria é necessária. Com efeito, nesse
caso, pelo fato de o predicado convir essencialmente ao sujeito, a contrária afirmativa é
verdadeira, pois o que convém essencialmente a um sujeito, não pode deixar de convir
também a todos os seres, que estão compreendidos na extensão desse sujeito: e por isso,
a contrária negativa é falsa; exemplo: todo o homem é racional — nenhum homem é racional.
c) Podem ser ambas falsas, quando a matéria é contingente. Porquanto, nesse
caso, o predicado, por não convir essencialmente ao sujeito, não se encontra em todos
os indivíduos, compreendidos no sujeito, nem falta em todos; e tanto pode ser falsa a
proposição contrária, que atribui a todos o predicado, como a que o não atribui a nin-
guém: como nestes exemplos: todo o homem é bom — nenhum homem é bom. — Entre as
proposições contraditórias e as contrárias dá-se essa diferença, que nas contraditórias
a negação de uma destrói a afirmação da outra, e entre elas não há meio termo: mas,
nas contrárias, a negação de uma não só destrói a afirmação da outra, mas chega a
outro extremo, e por isso, existindo entre extremos opostos um meio termo, entre
as contrárias há um meio termo, que é a proposição particular, afirmativa ou negativa
(Santo Tomás, in I Perih., l. 11).
2 As subcontrárias:
a) Não podem ser ambas falsas, seja qual for a matéria, de que tratam; aliás as
suas contraditórias, que são as contrárias, seriam ambas verdadeiras.
b) Não podem ser ambas verdadeiras, quando a matéria é necessária. Porque,
então, o predicado convém a todos e a cada um dos indivíduos, e por isso, a subcon-
trária afirmativa é verdadeira, e a negativa é falsa; como: alguns homens são racionais;
alguns homens não são racionais.
CAPÍTULO SEGUNDO – JUÍZO E PROPOSIÇÃO 101
CAPÍTULO TERCEIRO
Raciocínio e Argumentação
ARTIGO I
Raciocínio, seus elementos e divisão
ARTIGO II
Argumentação e silogismo
toda a planta é vivente: ora, toda a flor é planta: logo, toda a flor é vivente. — 2.a) Quando a
conclusão é uma proposição universal-negativa, procure-se um médio — ou que esteja
excluído da extensão do predicado, mas inclua o sujeito, — ou que esteja incluído na exten-
são do predicado, mas exclua o sujeito. A razão dessa regra é manifesta. No silogismo,
que tem por conclusão uma proposição universal-negativa, uma das premissas deve
ser e é negativa; e é negativa, porque o médio — ou repugna ao predicado, e convém
ao sujeito, — ou convém ao predicado, mas repugna ao sujeito. — De resto, na in-
venção do médio, o uso e a reflexão valem mais do que as regras.
1 Para se conhecer qual das duas premissas foi omitida, se a maior ou a menor,
é necessário examinar a que ficou. Se a premissa que ficou contém o extremo menor,
então foi omitida a premissa maior, que devia exprimir a relação, entre o extremo
maior e o termo médio. Se a premissa que ficou contém o extremo maior (como no
exemplo citado), então foi omitida a premissa menor, que devia exprimir a relação
entre o extremo menor (sujeito) e o termo médio.
2 Evidente é o princípio do silogismo afirmativo. Porquanto, se não pudesse
atribuir-se a um sujeito particular um predicado, atribuído já a um sujeito universal,
sob o qual o particular está contido, um e o mesmo predicado, ao mesmo tempo e
sob o mesmo aspecto, seria e não seria atribuído ao mesmo sujeito particular; —
seria atribuído, porque, quando é atribuído ao sujeito universal, atribui-se implici-
tamente a todos os sujeitos particulares, contidos na extensão do sujeito universal, e
por isso, àquele sujeito particular; — não seria atribuído, por hipótese. Não menos
evidente é o princípio do silogismo negativo. Com efeito, quando negamos a um
sujeito universal um determinado predicado, implicitamente negamos o mesmo pre-
dicado a todos os particulares, que estão contidos nesse sujeito universal; e por isso,
CAPÍTULO TERCEIRO – RACIOCÍNIO E ARGUMENTAÇÃO 109
não podemos, sem contradição, deixar de negar explicitamente tal predicado a algum
desses particulares, quando nos ocupamos diretamente do tal particular. — O princí-
pio, que regula o silogismo afirmativo, foi chamado pelos escolásticos dictum de omni,
e o princípio, em que se funda o silogismo negativo, foi denominado dictum de nullo.
Esses dois princípios, que regulam o silogismo afirmativo e negativo, e que,
como dissemos, são uma derivação dos princípios de conveniência e de desconveniên-
cia (ou de identidade e de discrepância), são chamados princípios lógicos, porque diri-
gem as operações intelectuais; enquanto os de conveniência e de desconveniência são
chamados princípios metafísicos, porque dizem respeito à realidade, e exprimem o
que são as coisas em si mesmas, independentemente da nossa inteligência. — Os
princípios lógicos, como metafísicos, fundam-se, como vimos, no princípio de contra-
dição. Desse princípio ocupa-se a Ontologia.
***
Depois de termos explicado a natureza do silogismo, devemos agora exa-
minar as objeções, aduzidas contra o seu valor lógico. Limitamo-nos a citar as de
Stuart Mill, de Spencer, de Bacon e Locke, que são apenas umas reproduções das que
foram apresentadas pelos escritores antigos, e que são atualmente propugnadas
pelos materialistas, positivistas e modernistas.
a) John Stuart Mill (Sistema da Lógica) procura demonstrar que o silogis-
mo é um sofisma, um círculo vicioso, visto que a verdade geral, que é expressa
pela premissa maior e de que a conclusão recebe toda a sua força, depende da
verdade já conhecida da mesma conclusão. Assim, nesse silogismo — todos os
homens são mortais; ora, Pedro é homem; logo, Pedro é mortal — conclui-se que esse
indivíduo é mortal, por serem mortais todos os homens, quando é certo que
se estabelece a premissa maior — todos os homens são mortais, por se saber que é
mortal cada um dos homens.
Poucas palavras em resposta. A premissa maior do silogismo — ou é um
juízo analítico, — ou é um juízo sintético. — Se é um juízo analítico, a sua verdade
não se funda na verdade da conclusão, mas na própria essência do sujeito e do
predicado; assim, nesse silogismo — todo o ser finito é contingente; ora, o mundo é ser
finito; logo, o mundo é contingente — afirma-se que todo o ser finito é contingen-
te, não por ser contingente o mundo, isto é, não pelo conhecimento da própria
conclusão, mas pela análise das duas idéias — finito e contingente. — Se a premissa
maior é um juízo sintético, baseado na observação e no raciocínio, como acontece no
seguinte silogismo — todos os homens são mortais; ora, Pedro é homem; logo, Pedro é
mortal, — também nesse caso da verdade daquela premissa não depende da ver-
dade da conclusão. Com efeito, a esta proposição universal — todos os homens são
mortais — não chega a nossa inteligência pelo conhecimento do particular; porque
o particular, por nós conhecido, refere-se ao passado, e não ao futuro, ao passo
que aquela proposição universal prescinde de todo o tempo, e abrange todos os
homens, passados e futuros, e, onde se encontra o homem, aí deve encontrar-
-se a morte, se as leis da natureza não sofrerem uma suspensão. O equívoco dos
110 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO III
Silogismo simples e suas regras
Além disso, o silogismo, como dissemos contra Mill, serve para descobrir e co-
nhecer distintamente novas verdades, só implicitamente contidas nos princípios
gerais. Diz Sortais: “Os progressos das ciências exatas atestam a fecundidade da
dedução. Se a objeção tivesse um fundamento, bastaria conhecer os axiomas, os
postulados e as definições geométricas, para se conhecer a geometria inteira. E
quando se diz que a premissa maior contém a conclusão, devemos entender que
ela contém a razão pela qual a conclusão é verdadeira, isto é, que a contém im-
plicitamente. Para que se torne explícita tal inclusão, não basta a maior; devemos
recorrer à menor, que mostra se a razão indicada na maior convenha ao sujeito da
conclusão” (Traité de Phil., v. II, n. 38).
c) Bacon e Locke rejeitam o silogismo e dizem que a indução é o único meio
para adquirir a ciência.
Essa opinião é falsa. A indução, como veremos, é um dos meios para a aqui-
sição da ciência, mas não é o único. — A legitimidade do silogismo é reconhecida por
sábios notáveis e insuspeitos. Leibnitz escreve (N. Ensaios, l. IV, c. 16): “Sustento que
a descoberta do silogismo é uma das mais belas e importantes do espírito humano;
o silogismo é uma espécie de matemática universal, cuja importância é desconhe-
cida, mas que encerra uma arte de infalibilidade”. — Cláudio Bernard (Introdução ao
estudo da medicina exp.): “O espírito humano funciona sempre por meio do silogismo.
Poderia demonstrar a minha proposição com argumentos fisiológicos”.
112 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
Regra iv. — O termo médio deve ser universal, ao menos em uma das
premissas. — Na verdade, se o médio é particular em ambas as premissas,
equivale a dois termos, pois exprime dois objetos ou indivíduos distintos,
e falta a comparação dos extremos com um e o mesmo médio; assim é
falso o seguinte silogismo:
2a) Se uma das premissas é particular, também deve ser particular a con-
clusão. Porquanto, se a conclusão fosse universal, sendo uma das premissas
ARTIGO IV
Figuras e modos do silogismo
90. Princípios das figuras. — Cada uma dessas figuras tem seus
princípios próprios. — A primeira e a segunda figura fundam-se nos dois
princípios, em que se funda o silogismo e que, como dissemos, são
uma derivação dos princípios de conveniência e de desconveniência. — A
terceira figura deve exprimir o seguinte princípio: Duas coisas, uma das
quais não está contida no gênero, em que está contida a outra, diferem entre
si. — A quarta figura baseia-se n axioma: Se alguns sujeitos, subordinados
a um gênero, pertencem também a outro gênero, esses dois gêneros têm em
comum alguns sujeitos.1
91. Leis das figuras. — Cada figura tem as suas leis próprias, que são
diferentes aplicações das oito regras do silogismo simples e que, por isso, não
se podem violar, sem que ao mesmo tempo sejam violadas essas regras. — As
leis das figuras são seis: uma para a primeira figura, três para a segunda, uma
para a terceira e uma para a quarta. São significadas nos seguintes versos:
Para a 1a figura I. Sit minor affirmans, maior vero generalis.
Para a 2ª figura II. Maior ubi affirmat, generalis tum minor esto.
III. Si minor affirmat, conclusio sit specialis.
IV. Si negat haec, maior generalis postulat esse.
substância; logo, alguma substância é homem — pode reduzir-se à primeira figura direta,
dizendo: — todo o animal é substância; ora, todo homem é animal; logo, todo homem é
substância. — Assim, esse silogismo da segunda (ou terceira) figura: — todo o bruto não
é racional; ora, todo o homem é racional; logo, todo o homem não é bruto — reduz-se à
primeira (direta), dizendo: — todo o racional não é bruto: ora, todo o homem é racional;
logo, todo o homem não é bruto. — Como também o seguinte silogismo da terceira (ou
quarta) figura: — todo o homem é racional; ora, algum homem é ímpio; logo, algum ímpio é
racional, — reduz-se à primeira (direta), dizendo: — todo o homem é racional; ora, algum
ímpio é homem; logo, algum ímpio é racional. — Repetimos — que, se a primeira figura
se desdobra, temos quatro figuras, — e que, se não se desdobra, só temos três.
1 Mas reconhece-se facilmente que os princípios, ou axiomas, que regem
a terceira e a quarta figura, são apenas diversos aspectos dos princípios, em que se
fundam a primeira e a segunda figura.
CAPÍTULO TERCEIRO – RACIOCÍNIO E ARGUMENTAÇÃO 119
O homem é animal;
Ora, o cão é animal;
Logo, o cão é homem.
(a)
AA EA IA OA
AE EE IE OE
AI EI II OI
AO EO IO OO
Cada figura, pois, tem 16 modos. E, como as figuras são quatro, todos os
modos são 64. — Mas nem todos esses modos são legítimos: pois alguns — EE, EO,
II, IO, OE, OI, OO — pecam contra a regra va ou a viiia. — E, assim, ficam 9 modos
úteis em cada figura, que são os seguintes:
(b)
AA EA IA OA
AE — IE —
AI EI — —
AO — — —
(c)
AA Cuja conclusão é A
AI Cuja conclusão é I
EA Cuja conclusão é E
EI Cuja conclusão é O
Na 2.a Figura, os modos — AI, AO, IE, OA — são ilegítimos: porque os dois
primeiros pecam contra a lei: se a maior é afirmativa, a menor deve ser universal, e os
outros dois pecam contra a lei: Se a conclusão é negativa, a maior deve ser universal.
CAPÍTULO TERCEIRO – RACIOCÍNIO E ARGUMENTAÇÃO 123
pecam contra a lei própria desta figura: uma premissa seja negativa; a maior, universal.
— Assim, ficam quatro modos legítimos que são:
(e)
AE Cuja conclusão é E
AO Cuja conclusão é O
EA Cuja conclusão é E
EI Cuja conclusão é O
(f)
AA Cuja conclusão é I
AI Cuja conclusão é I
EA Cuja conclusão é O
EI Cuja conclusão é O
IA Cuja conclusão é I
OA Cuja conclusão é O
ARTIGO V
Silogismo composto e sua divisão
silogismo em Bocardo — algum animal não é racional; ora, todo o animal é sensitivo; logo,
algum sensitivo não é racional. Se alguém concede as premissas mas nega a conclusão,
admite que é verdadeira a seguinte proposição, contraditória da conclusão negada,
— todo o sensitivo é racional. Forma-se, então, o seguinte silogismo: todo o sensitivo é
racional; ora, todo o animal é sensitivo; logo, todo o animal é racional. Portanto, quem
concede as premissas do primeiro silogismo mas nega a conclusão, deve admitir a
verdade dessas duas contraditórias — algum animal não é racional; todo o animal é
racional. — Essa prova de legitimidade vale para todos os modos imperfeitos, sem
exceção. — Agora vê-se melhor a arte, com que foram compostas essas palavras, que
exprimem os modos do silogismo. E todavia, “não há hoje um estudante que não
saiba rir-se de um Barbara ou de um Baroco: mas não há ninguém que não incline a
cabeça diante de um x ou de um y” (Gratry).
Como a proposição simples, o silogismo simples divide-se em absoluto e modal.
É absoluto, quando as duas premissas são proposições absolutas; é modal, quando pelo
menos uma das premissas é proposição modal. — Digamos alguma coisa acerca do
silogismo modal; porque ao absoluto deve aplicar-se tudo o que convém ao simples. —
O silogismo modal é tríplice — modal necessário, modal-impossível, e modal possível, ou
contingente. — É modal necessário, quando uma ou ambas as premissas são proposições
modais-necessárias, como: — é necessário que a criatura seja limitada; ora, é necessário
que todo o homem seja criatura; logo, é necessário que todo o homem seja limitado. —
É modal-impossível, quando uma premissa é modal-impossível, como: — é impossível que
as almas humanas sejam materiais; ora, a alma de Pedro é humana; logo, é impossível
que a alma de Pedro seja material. Dizemos — uma só, porque, se ambas as premissas
foram proposições modais-impossíveis, o silogismo não poderia ter conclusão, sendo ne-
gativa a proposição modal-impossível (Regra vi do Sil.). — É modal-possível, ou contingente,
quando uma ou ambas as premissas são proposições modais-contingentes, ou possíveis,
como: — é possível que todo o homem seja branco; ora, é possível que todo o homem
seja músico; logo, é possível que o músico seja branco. — Como um juízo exato acerca
do silogismo modal é muitas vezes difícil, sobretudo, porque a índole da conclusão
depende geralmente da índole da matéria exposta, por isso, para o processo se tornar
mais simples e seguro, convém reduzir o silogismo modal ao absoluto. Assim, este silo-
gismo modal-necessário: — é necessário que toda a substância extensa seja corpo; ora, é
necessário que toda a pedra seja substância extensa; logo, é necessário que toda a pedra
seja corpo, — reduz-se ao seguinte absoluto em Barbara; — toda a substância extensa é
necessariamente corpo; ora, toda a pedra é necessariamente substância extensa; logo,
toda a pedra é necessariamente corpo.
126 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
afirma categoricamente do todo o que, de um modo hipotético, foi afirmado das partes;
assim, a conclusão do citado dilema de Tertuliano é a seguinte: — logo, a lei por ti
promulgada é sempre e em todo o caso injusta; — 2o) contém em si dois entimemas,
como demonstra o exemplo dado; — 3o) difere do silogismo disjuntivo, porque esse,
admitida uma parte, exclui a outra, e vice-versa; ao passo que o dilema deduz de cada
uma das partes a mesma verdade contra o adversário.
Mas, para que o dilema conclua eficazmente, devem observar-se as três con-
dições enumeradas no texto: — 1a) A disjunção deve ser completa; aliás o adversário
encontrará uma porta de evasão. Assim, é ilegítimo o dilema de Cícero (De Sen.
XIX), quando, querendo demonstrar que não devemos ter medo da morte, disse
que a nossa alma — ou será eternamente feliz, — ou será mortal, e não se lembrou
de que a nossa alma pode ser também eternamente infeliz. — 2a) O nexo entre a con-
clusão e as partes da disjunção deve ser necessário; aliás o adversário tirar-se-á de todo
o embaraço, negando a necessidade da conclusão. Assim, vicioso é o argumento de
um filósofo, quando, querendo convencer um dos seus discípulos de que não devia
aceitar um emprego público, disse-lhe: “Ou tu cumprirás com os teus deveres, ou
não; no primeiro caso desagradarás aos homens; no segundo, a Deus”. Como vicio-
sa é a resposta do discípulo: “no primeiro caso, agradarei a Deus: no segundo, aos
homens”. Porquanto falta o nexo necessário entre a boa administração e o desagrado
dos homens, como não tem igual importância o desagrado de Deus e o desagrado
dos homens. — 3.a) Deve ser impossível a retorção; pois é pouco honroso ser ferido
pelas próprias armas. Falta também a essa condição o dilema do tal filósofo, que
queria levar o discípulo a não aceitar cargos públicos.
130 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO VI
Indução e suas espécies
sorites se resolve; ora, na primeira figura a maior deve ser universal. Mas se a primeira
premissa é particular, não há infração de nenhuma regra, porque essa premissa, na
resolução, ocupa o lugar da menor e só exige que também particular seja a conclusão. —
Finalmente, todas as proposições sejam afirmativas. Na verdade, se todas fossem nega-
tivas, resolver-se-ia o sorites em silogismos, compostos exclusivamente de proposições
negativas, e não haveria conclusão alguma. Se fosse negativa a primeira, como essa, na
resolução, constitui a menor do primeiro silogismo, teríamos um silogismo da primeira
figura com a menor negativa: o que é contrário à lei dessa figura. Se fosse negativa qual-
quer outra premissa, teríamos, na resolução, uma conclusão também negativa; e, como
esta seria a menor de um outro silogismo, haveria também a infração da mesma lei
da primeira figura. Mas, se a penúltima proposição for negativa, não deriva daí incon-
veniente algum, contanto que seja negativa também a conclusão. — É muito perigosa
essa espécie de argumentação, (que, para Tracy, todavia, é a mais simples e genuína):
porque a rápida sucessão das proposições não deixa à inteligência o tempo necessário
para refletir, e para ver onde pode esconder-se o sofisma. Por isso, se o adversário
recorre ao sorites, é necessário resolvê-lo em silogismos simples, conforme o conselho
do Cícero: “Vitiosi sunt sorites: frangile igitur eos, si potestis, ne molesti sint” (Acad., l. II).
132 LÓGICA – SEÇÃO PRIMEIRA
ARTIGO VII
Sofisma e suas espécies
CAPÍTULO PRIMEIRO
Verdade
ARTIGO I
Verdade, sua divisão e natureza
1 Veritas est adaequatio intellectus et rei: eis a definição clássica da verdade, dada
pelos escolásticos, ou, melhor, pelo senso comum. Na opinião dos homens, uma
pessoa possui a verdade, quando conhece um objeto como é em si mesmo, quando
o seu pensamento corresponde à realidade, quando há conformidade entre o que a
inteligência afirma do objeto e o que o objeto é em si mesmo. Diz Santo Tomás: “Per
conformitatem intellectus et rei veritas definitur” (Sum. Th., p. 1., q. 16, a. 2).
Dessa definição resulta, que, para a constituição da verdade, concorrem, —
como matéria remota, dois termos, real ou logicamente distintos, que são a inteligência
e o objeto, — como matéria próxima, a espécie ou imagem intelectual, representativa da
essência ou dalgum atributo do objeto, e a própria entidade do objeto, percebida também
pela inteligência mas de um modo confuso e indeterminado, — como forma, a união
intencional daquela imagem com a mesma entidade. Essa união, para a inteligência
humana, consiste na afirmação da conveniência objetiva da imagem ou forma com
o objeto existente, e é significada pela proposição, em que unimos o predicado, que
142 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
***
À verdade opõe-se o erro. Diremos da sua natureza, causas e remédios.
a) Natureza do erro. — O erro consiste na desconformidade da inteligência
com o objeto. A desconformidade, em que consiste o erro, ou a falsidade, por si importa
uma contradição, uma falta de concórdia da inteligência com o objeto, enquanto a
inteligência atribui a um objeto um predicado, que lhe não convém, ou nega-lhe um
predicado que lhe convém. — Aquela desconformidade, a qual consiste na falta de
compreensão do objeto, enquanto a inteligência não conhece o objeto tanto, quanto ele
é cognoscível, se é uma falta de adequação absoluta, não é uma falta de verdade, não é
um erro, ou uma falsidade. — O juízo, que traduz essa desconformidade ou discórdia
da inteligência com o objeto, é e diz-se errôneo, ou falso. — O erro, pois, não é uma
verdade incompleta, como afirmou Cousin, mas é a privação da verdade. Porque o erro
opõe-se à verdade, como a privação da forma se opõe à própria forma; a privação
não participa da forma, exclui-a. Assim, quem diz: a alma humana é mortal, não diz
uma verdade incompleta; diz o contrário da verdade. Por isso, o erro é um juízo, que
afirma não ser o que é, ou ser o que não é.
b) Causas do erro. — Algumas são internas, outras externas. — As causas
internas são comuns e particulares. As comuns derivam da natural propensão e facilidade,
que os homens têm de julgar — conforme o visível, sem se importar do invisível,
— conforme a disposição da inteligência, que nem sempre se regula com a devida
prudência, — conforme os afetos do coração, que pode rejeitar o que lhe é contrário.
As particulares derivam da condição e do temperamento dos indivíduos. — As causas
externas são várias, como a ignorância da Lógica, a leitura de livros, onde se ensina o
erro ou a verdade não é claramente exposta nem vitoriosamente defendida.
c) Remédios para o erro. — São muitos. Os principais são: — o amor da
verdade, — a pureza do coração, — o estudo acurado da Filosofia escolástica, — a
dúvida prudente, — a oração assídua e fervorosa.
144 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
de um modo explícito, ambos esses elementos do objeto, isto é, a essência e o ser. Ora,
tal ato é o juízo; pois esse, como se vê nas proposições, contém sempre a essência e o
ser. Assim, quando digo: Pedro é homem, não só denoto uma essência, que é a humani-
dade, mas afirmo que essa essência é, ou existe, e se encontra nesse indivíduo, que por
isso, é um ente real. — Nem podia ser doutro modo. A verdade ontológica das coisas
funda-se mais no ser delas, do que na sua essência. Com efeito, uma coisa tem tanto
de verdade, quanto tem de entidade; porque ente e verdadeiro são, na realidade, uma e
a mesma coisa (ens et verum convertuntur). Sendo assim, é claro que a verdade lógica
deve encontrar-se naquele ato, que, de um modo explícito, exprime não só a essência
das coisas, mas também o seu ser. Tal ato é o juízo. (Cf. I. Sent., Dist. 19, q. 5, a. 1).
Note-se que a inteligência é determinada ao juízo, logo, que lhe se manifeste
o ser das coisas. Para isso, não é preciso que ela reflita em si, — nem que tenha cons-
ciência da verdade do próprio juízo, ou da sua aptidão para conhecer, — nem que
esteja certa da suficiente manifestação do mesmo ser. Se a manifestação é tal, qual a
exige a faculdade perceptiva, a reação dessa, por meio de um juízo correspondente, é
um ato muito natural e necessário, por isso, mesmo que é uma faculdade perceptiva.
Se a verdade se encontra perfeitamente no juízo, também no juízo deve encon-
trar-se propriamente a falsidade, ou o erro. Porquanto, a falsidade só pode encontrar-se
propriamente naquele ato, em que a inteligência afirma que uma coisa é o que não é,
ou nega que é o que é. Ora, esse ato é o juízo. — Além disso, a falsidade é contrária
à verdade. Ora, como os contrários se referem ao mesmo sujeito (contraria sunt circa
idem), a falsidade deve encontrar-se naquele sujeito, em que se encontra a verdade.
Ora, a verdade encontra-se na inteligência enquanto compõe ou divide, isto é, enquanto
julga. Logo, também a falsidade deve encontrar-se na inteligência, enquanto julga
(Sum. Th., Ia, q. 17, a. 4).
Mas o erro, mesmo no juízo, é sempre uma coisa acidental, para a nossa inteligência.
Essa faculdade tende por si para a verdade; e, se erra, a culpa não se deve procurar nela,
mas em causas estranhas. — Tais causas dos erros reduzem-se a três classes: — fisiológicas,
psicológicas e morais. Reservando para mais tarde o estudo das causas fisiológicas, diremos
alguma coisa acerca das outras duas espécies. — As causas fisiológicas pode reduzir-se ao
influxo da imaginação, à falta de reflexão, à incerteza ou ambigüidade dos vocábulos, à ignorância
da arte do raciocínio. — As causas morais dos erros, sobretudo em matéria de Religião e de
Moral, são as paixões desordenadas. É um fato que o homem tem a tendência para julgar
como verdadeiro o que lhe agrada, e que o amor próprio, mais que o amor da verdade,
regula os seus juízos e não o deixa reconhecer os próprios erros. — Não admira que o
homem erre. O erro é compatível com uma inteligência finita e dependente, como é a
nossa. O que, porém, repugna à razão é a pertinácia no erro, à qual querem dar o nome
de caráter e que não é senão o privilégio dos insipientes. Diz Cícero: “Cujusvis hominis est
errare: nullius nisi insipientis in errore perseverare” (Filipp., XII, 2).
***
Que a verdade se encontre perfeitamente no juízo, isto é, que a nossa inte-
ligência, no juízo e pelo juízo, se ache em pleno acordo com o objeto, é ditado do
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 149
senso comum, mas negado por todos os subjetivistas. Dizem esses que a inteligência,
pelo juízo, une duas coisas separadas, como são o predicado e o sujeito, e que por
isso, a união e a identificação do predicado com o sujeito depende exclusivamente da
inteligência, e o juízo é inteiramente subjetivo e não corresponde à realidade, isto é,
não enuncia o que o objeto é em si mesmo, mas o que a inteligência pensou. — Ora,
isto é falsíssimo. A inteligência, quando julga, não é a causa por que um predicado
compete a um sujeito; mas não faz senão estabelecer e ratificar um fato, isto é, que
um predicado real está realmente contido num sujeito real; e por isso, a união do
predicado com o sujeito não é efeito do juízo, mas é anterior, é pressuposto ao juízo
e é a verdadeira causa dele. Assim, quando dizemos: Pedro e bom, entanto se forma
esse juízo e se afirma que a bondade convém a Pedro, enquanto se averiguou que na
realidade esse predicado está contido nesse sujeito, independentemente do nosso
pensamento. Logo, o predicado, no juízo, não convém ao sujeito, porque assim, o
julga a inteligência, mas a inteligência assim, o julga, porque o predicado convém ao
sujeito. — Quando, pois, se diz que a inteligência, no juízo, une o predicado com o
sujeito, não se entende que a inteligência une duas coisas realmente separadas, uma
da outra, mas deve entender-se que ela julga estarem unidas na realidade duas coisas
que tinham sido consideradas separadamente.
O principal adversário da objetividade dos juízos é Immanuel Kant. Como os
erros desse escritor são seguidos por muitos racionalistas, livres pensadores, pro-
testantes, pelos sequazes do modernismo (que o S. P. Pio X, na Encíclica Pascendi, 8
set. 1907, chamou a síntese de todas as heresias), devem aqui ser expostos e refutados.
O ponto de partida de todo o sistema subjetivista ou idealista de Kant é cons-
tituído pelos célebre juízos sintéticos a-priori. A escolástica, seguindo o bom senso,
tinha ensinado que há só duas espécies de juízos — o analítico, ou a-priori, e o sintético,
ou a-posteriori, conforme a conveniência do predicado com o sujeito é conhecida pela
razão, ou pela experiência; ou, por outras palavras, conforme o princípio da síntese ou
da união é interior, ou exterior, ao sujeito. Não há meio termo. Embora os elementos
do juízo analítico sejam dados pela experiência, contudo ele é sempre analítico; visto
que o motivo, por que nesse juízo (por exemplo, o círculo é redondo) o predicado se
atribui ao sujeito, não se funda na experiência, mas exclusivamente na própria natureza
do sujeito, e a verdade de tal juízo é independente de toda a experiência e subsistiria
sempre, embora não existisse a experiência. — O escritor alemão encontrou juízos
de uma terceira espécie, que não são nem completamente analíticos, ou a-priori, nem
completamente sintéticos, ou a-posteriori, mas participam de uns e de outros, e por
isso, são sintéticos a -priori. Exponhamos a sua teoria.
O juízo, diz Kant, — é analítico, quando o predicado está contido, ainda que
implicitamente, no conceito do sujeito, — é sintético, quando o predicado está comple-
tamente fora do conceito do sujeito, e por isso, a união de um com o outro importa
uma síntese. E conclui: “Por isso, são analíticos os juízos, em que não só há união, mas
também identidade entre o predicado e o sujeito, e são sintéticos aqueles, em que há
união sem identidade. Os analíticos podem chamar-se explicativos; os sintéticos, exten-
sivos: porque os primeiros nada acrescentam pelo predicado ao conceito do sujeito,
150 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
mas apenas dividem pela análise o mesmo conceito nos seus conceitos parciais, que se
percebiam nele (embora de um modo confuso), ao passo que os segundos acrescen-
tam ao conceito do sujeito um predicado, de que modo nenhum podia conceber-se
contido no mesmo sujeito, nem podia deduzir-se pela análise” (Crítica da razão pura,
Introd. IV). — Os juízos sintéticos, segundo Kant, subdividem-se em sintéticos a-priori,
e em sintéticos a-posteriori. São sintéticos a-priori, quando têm algum elemento, que
não é dado pela experiência, mas deriva espontaneamente da inteligência, e por isso,
exprime uma coisa universal e necessária. São sintéticos a-posteriori, ou empíricos, quando
se fundam exclusivamente na experiência, e por isso, exprimem uma coisa singular
e contingente. — Os sintéticos a-priori são verdadeiramente extensivos, e constituem
propriamente a ciência e são objeto da Metafísica; mas os sintéticos a-posteriori, por
serem particulares e contingentes, não são científicos, e, como os analíticos, não levam
a novos conhecimentos.
Mas como descobriu Immanuel Kant essa terceira espécie de juízos? A coisa
foi simples. Disse ele que um juízo analítico, para ser tal, deve ter três condições: 1a)
o seu predicado deve estar contido no conceito do sujeito, — 2a) deve ser necessário,
— 3a) deve ser universal. Se falta uma dessas condições, o juízo deixa de ser analítico.
Às vezes pode um juízo deixar de ter a primeira condição e possuir a segunda e a
terceira, isto é, pode um juízo não ter o predicado contido no conceito do sujeito e
contudo ser necessário e universal. Nesse caso o juízo — é sintético, porque o predicado
está fora do conceito do sujeito e só pela experiência se conhece a sua relação com o
mesmo sujeito, — mas é sintético a-priori, porque é universal e necessário, e por isso,
não se funda num dado da experiência, que é por si singular e contingente, mas deve
derivar exclusivamente da inteligência, e deriva dela, espontaneamente, a-priori, isto
é, por uma espécie de instinto ou de força mecânica. Todas as inteligências possuem
naturalmente umas formas, dotadas de universalidade e de necessidade, que, aplicadas
sucessivamente aos objetos da experiência, os tornam determinados e definidos. —
Kant apresenta vários exemplos desses juízos sintéticos a-priori. Citamos três: — todo
o efeito exige uma causa; — cinco mais sete são iguais a doze; — a linha reta é a mais breve
entre dois pontos. Esses juízos — são sintéticos, porque o predicado não está contido
no conceito do sujeito, — mas são a-priori, porque são dotados de universalidade e de
necessidade, isto é, porque o predicado convém sempre e necessariamente ao sujeito. —
Desses princípios Kant tira duas conseqüências: — 1a) os juízos analíticos, ou a-priori,
em que o sujeito e o predicado são termos universais, por serem necessários e universais
e, conseqüentemente, por derivarem espontânea e exclusivamente da inteligência,
não tem valor algum objetivo; — 2a) os juízos sintéticos a-priori, que têm um sujeito
de experiência, mas um predicado universal e necessário, por causa da completa subje-
tividade desse predicado, são também destituídos de valor objetivo.
Agora, uma breve crítica a essas afirmações do escritor alemão.
Antes de tudo, as definições do juízo analítico e sintético, embora tenham alguma
coisa de verdade, podem todavia prestar-se a equívocos e abrir a erros, sobretudo se
tenha em vista o sistema de Kant. Esse confunde sempre o sujeito com o conceito, pas-
sando do sujeito, isto é, da coisa, à qual se atribui um predicado, para o conceito; como se
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 151
Nem se insista com o escritor alemão que um conceito universal e necessário não pode
provir da experiência, cujo objeto é singular e contingente. Todas as coisas singulares
e contingentes têm em si um elemento universal e necessário, que é a essência delas,
abstraída de todas as condições individuais. (Sum. Th., Ia, q. 86, a. 3).
Vê-se também que, se os juízos analíticos e sintéticos a-priori, inventados por
Kant, não concorrem para o progresso da ciência (a qual tem por objeto as coisas,
e não os sonhos), os juízos analíticos e sintéticos, tomados no seu legítimo sentido,
servem admiravelmente para o desenvolvimento de todas as ciências, racionais e
experimentais.
Daqui a pouco, falaremos nas tais formas subjetivas, que aos juízos sintéticos
a-priori comunicariam a universalidade e a necessidade.
1 A conclusão parece-nos certa. Se a verdade é uma adequação da inteligência
com o objeto, e a idéia é uma semelhança com o objeto, e a idéia é uma semelhança do
próprio objeto, porque representa a essência dele, é claro que a inteligência, informada
pela idéia, se torna semelhante e adequada ao próprio objeto. Diz S. Tomás: “Nos
simples conceitos encontra-se a verdade, porque se conhece a coisa enquanto à sua
essência”. (In l. IX, Met., l. 11). E noutro lugar: “Ainda que o inteligível incomplexo (a
idéia) não seja nem verdadeiro nem falso, contudo, a inteligência, percebendo-o, é
verdadeira enquanto se torna adequada à coisa entendida”. (In III de Anima, l. 11). — Na
idéia, não há apenas a verdade ontológica, que é a essência do objeto, representada pela
própria idéia; mas há também a verdade lógica, porque a inteligência conhece essa
essência, e, conhecendo-a, lhe se torna semelhante, ou adequada. O conhecimento
154 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
enim est tam magna falsitas aestimantis tria esse quinque, sicut ejus qui aestimat tria
esse centum” (C. Gentes, l. 3, c. 139). A razão é manifesta. A falsidade não é apenas a
falta de verdade, mas é o contrário da verdade; ora, entre dois termos contrários, ou
opostos, há muitos pontos intermédios. Há, porém, uma excepção, e dá-se quando
a falsidade do juízo consiste na mera negação de alguma verdade; assim, a falsidade
destes juízos: — Deus não existe, o mundo não existe — não admite graus. — 2.o)
Admite vários graus com relação à inteligência. Com efeito, uma inteligência obtusa,
ou totalmente dominada pela vontade, pode cair e cai em erros, mais grosseiros do
que os erros, em que pode cair e cai uma inteligência perspicaz, ou menos sujeita à
influência da vontade. — 3.o) Admite vários graus com relação ao objeto, — ou enquanto
a um objeto podemos atribuir um maior ou menor número de notas, que lhe não
convém, ou negar-lhe um número maior ou menor das que lhe são próprias; — ou
enquanto um juízo falso em matéria necessária e imutável é mais falso que um juízo
falso em matéria contingente e mutável; assim, o juízo — Deus não existe — é mais falso
que o juízo — o mundo não existe.
1 A verdade lógica da nossa inteligência funda-se na verdade ontológica das
coisas percebidas. Por isso, como dizemos no texto, a verdade lógica é imutável ou
mutável, conforme imutável ou mutável é a verdade ontológica. Ora, a verdade ontológica
pode referir-se a Deus e às criaturas.
Deus, e só Ele, é essencial e absolutamente imutável; porque toda a mudança
denota imperfeição, e Deus é a perfeição infinita. Se Deus é absolutamente imutável,
também imutável é o conhecimento, que temos d’Ele. Porquanto, embora esse conhe-
cimento seja infinitamente inadequado e deficiente, contudo o que atribuímos a Deus,
realmente se encontra n’Ele, embora de um modo infinitamente elevado e superior
à nossa compreensão. Assim, quando dizemos que Deus é bom, é justo, etc., essas
perfeições absolutas existem realmente em Deus; e o nosso conhecimento, embora
158 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
***
A imutabilidade da verdade é negada por todos os sequazes do relativismo. O
nosso espírito, na opinião deles, não é perfeito quanto à inteligência, e não pode
conhecer absolutamente a objetiva verdade das coisas. Tudo o que conhecemos é
relativo aos nossos sentidos, ao nosso espírito, e à nossa experiência (Comte), a qual,
por sua vez, é relativa à nossa constituição (Kant). A verdade, portanto, não é uma
coisa, é uma vida, e, como tal, segue o destino da nossa existência. Ora, o espírito
160 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
até repele toda a hipótese, toda a restrição, todo o limite; e, comparado com Ele, todo
e qualquer outro ser é relativo, isto é, contingente, limitado. — Agora, perguntamos:
existirá exclusivamente o relativo, ou deverá existir também o absoluto? Se não qui-
sermos cair numa contradição pueril, devemos responder que, se existe o relativo,
isto é, se existe o ser, que se refere a um outro, deve forçosamente existir esse outro,
a que o primeiro se refere e que se diz e é absoluto. O relativo, enquanto tal, supõe
o absoluto; quem rejeita esse, deve rejeitar aquele. Logo, ou não existe coisa alguma,
ou existe também o absoluto. O próprio H. Spencer, evolucionista, diz: “O conceito
de relação traz consigo o conceito dos seus dois termos. Pretender que concebamos
a relação entre o relativo e o não-relativo, sem termos consciência de cada um dos
dois termos, é pretender que comparemos uma coisa, de que temos consciência, com
uma outra, de que não a temos; a comparação é um ato de consciência, que não pode
realizar-se, se não tivermos consciência de ambos os termos. Sendo assim, que juízo
deve fazer-se da afirmação — que o absoluto só se concebe como uma mera negação
da concebibilidade? Se o não relativo ou o absoluto não é presente ao pensamento
senão como uma mera negação, torna-se ininteligível a relação entre ele e o rela-
tivo, porque um dos termos da relação não se encontra na consciência. Se a relação
é ininteligível, ininteligível é o próprio relativo; donde a impossibilidade de todo o
pensamento” (Premiers principes, p. I, c. 4).
b) Os relativistas replicam: o absoluto, se existe, é incognoscível.
Resposta. E será ele incognoscível, porque é absoluto?... Porque, respondem, a
experiência limita-se a observar os fatos, os fenômenos, e não penetra até ao fundo
das coisas, para aí descobrir a essência... A resposta não satisfaz. Porquanto, há duas
espécies de experiência: uma vulgar, outra científica. Se a vulgar, que é comum a todos
os homens, não reflete, e limita-se a atestar os fatos, a científica, que é própria dos
sábios, não se limita a observar os fatos, mas dos fatos sobe às causas, e das proprie-
dades à essência. — De Dominicis, escritor insuspeito, comentando as citadas palavras
de Spencer, conclui: “O absoluto existe, e a ciência não pode prescindir dele. A ciência
exige imperiosamente que, além da existência do fenômeno, se admita qualquer outra
coisa, e que, sem essa qualquer outra coisa, o conhecimento não é fundado, não é
seguro, não é racional” (La dottrina della evoluzione, vol. 2, p. 56). — No decurso deste
tratado teremos ocasião de voltar ao assunto.
c) Os adversários acrescentam: embora não seja relativo tudo o que existe,
todavia é relativo todo o conhecimento humano, e por isso, é relativa toda a verdade
da nossa inteligência.
Respondemos que o conhecimento se pode chamar relativo à nossa inteligência
num sentido, e não se pode chamar relativo num outro.
Pode chamar-se relativo à nossa inteligência, enquanto um ato de uma faculdade
deve revestir e reveste a condição, o caráter, a natureza da própria faculdade. E nada
mais razoável. O ato é sempre proporcionado à faculdade, de que deriva. Por isso,
o conhecimento não só é relativo à inteligência dos diversos indivíduos humanos,
mas também à própria inteligência humana, considerada em si mesma; de modo que,
assim como, a inteligência humana é essencialmente finita e limitada, assim também,
162 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ARTIGO II
Certeza, sua divisão, existência e propriedades
de uma opinião, e, muitas vezes, nem é opinião, mas pertinácia (Sum. Th., II-II, q. 18,
a. 4; — De Ver., q. 6, a. 3); — 2o) a firmeza dessa adesão deve fundar-se em motivos
sólidos e seguros, de modo que a proposição, tida por certa, seja incompatível com a sua
contraditória, e assim, seja excluída a possibilidade do erro; — 3o) assim como, para a
perfeição da verdade lógica não basta que a inteligência se conforme com o objeto, mas
é necessário que conheça ainda essa conformidade, assim, também para a perfeição
da certeza não basta que a inteligência adira sem hesitação à verdade conhecida, mas
deve ainda conhecer claramente, mesmo ao próprio ato do juízo, que essa adesão é
incompatível com o erro.
Sendo a certeza uma adesão da inteligência à verdade, é claro que encontrar-se
onde e como se encontra a verdade, e por isso, no juízo de um modo perfeito, e na
idéia, ou simples apreensão, de um modo imperfeito, ou inicial. Quando um objeto se
manifesta convenientemente à inteligência e imprime nela a própria imagem, des-
pida das condições materiais ou individuais, a inteligência, reagindo nessa imagem,
forma a idéia do objeto, que a impressionou, e assim, alcança, embora de um modo
deficiente, a verdade, e a essa adere sem hesitação. — Como é natural, os escritores,
que não reconhecem na idéia um vislumbre de verdade, nem reconhecem nesse ato
um vislumbre de certeza.
Os filósofos apresentam outras definições de certeza. Uns dizem que a certeza
é a consciência da verdade; — outros, que é a impossibilidade da dúvida; — outros, que é a
verdade cabalmente demonstrada; — outros, que é a verdade conhecida nos seus princípios.
Essas definições são todas inaceitáveis. — É inaceitável a primeira; não só
porque não pode aplicar-se à certeza direta, que é verdadeira certeza, mas também
porque não exprime os elementos essenciais da certeza. — É inaceitável a segunda;
porque, além de ser negativa, não manifesta o que a certeza é em si mesma. — É ina-
ceitável a terceira; porque não abrange as verdades conhecidas imediatamente e que
são as mais certas. — É inaceitável a quarta; porque, para estarmos certos de uma
verdade, não é preciso conhecê-la sempre nos seus princípios, pois as verdades de fato
são percebidas imediatamente na sua realidade e são certíssimas.
166 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
própria, da existência dos seus atos internos e externos, dos seus parentes, dos seus
amigos, das suas habitações, e não achareis em ninguém a menor sombra de hesitação.
Crianças, velhos, homens, todos responderão a mesma coisa; e o seu olhar de espanto
vos dirá o seu pensamento. Mas é possível que um homem sério pergunte acerca de
coisas tão claras?” (Phil. fund., I. 1, c. 3). — Mas, dizem, não há certeza, onde não há
conhecimento explícito dos motivos. Não é assim. Se assim fosse, não haveria verdadeira
certeza se não de um mínimo número de verdade: o que é falso. “Os próprios filósofos,
diz Fénelon, estão invencivelmente convencidos de um grande número de verdades,
embora não as possam explicar claramente, nem confutar os argumentos contrários,
que dificultam a sua percepção” (Lettres).
1 Advirta-se a distinção entre o natural e o sobrenatural. Natural é tudo o que
convém a um ente em virtude da natureza, de que é dotado, ou que deriva e depende
dos princípios intrínsecos, de que a mesma natureza é composta: assim, é natural
para o homem o conhecimento de Deus pela consideração das criaturas. — Sobrena-
tural é tudo o que excede as faculdades e as exigências naturais da criatura; assim, é
sobrenatural para o homem o conhecimento intuitivo de Deus.
2 Quem pode duvidar do fato da existência própria? Diz S. Tomás: “Nullus
unquam erravit in hoc, quod non perciperet se vivere” (De Ver., q. 10, a. 8 ad 2). Quem
pode negar os princípios da razão, como o princípio de contradição, de causalidade, etc.,
sem renunciar à própria razão? O mesmo Santo, falando desses princípios, diz: “Veris-
sima esse constat, intantum ut falsa esse nec possibile sit cogitare” (Post. Analy. l. 19).
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 169
canso, sem nenhum receio de errar, isto é, não pode deixar de alcançar
a certeza. Logo, a certeza existe.1
c) Deve admitir-se necessariamente a existência de uma coisa,
quando essa existência se afirma pelo fato mesmo de se negar. Ora, a
existência da certeza afirma-se pelo fato mesmo de se negar; porquanto,
quem nega a existência da certeza, entanto a nega enquanto tem a certeza
de que a certeza não existe. Logo, a certeza existe.2
1 Cícero expõe o mesmo argumento com as seguintes palavras: “Ut enim necesse
est lancem in libra ponderibus impositis deprimi, sic animum perspicuis cedere. Nam
quomodo non potest animal ullum non appetere id quod accommodatum ad naturam
appareat, sic non potest animus objectam rem perspicuam non approbare” (Acad., l.
II, c. 12). — Acrescente-se que, mesmo por confissão dos adversários, a ciência existe.
Ora, a ciência não pode existir nem conceber-se, se não se admitem alguns princípios
certos e por si evidentes; porque toda a demonstração, que produz a ciência, deve
partir de princípios, dotados dessas qualidades (De Ver., q. 11, a. 1). — O que dizemos
da ciência, deve aplicar-se às artes, às virtudes, à sociedade, e a muitas outras coisas, que
não poderiam subsistir, se não se admitissem, como certas, muitas verdades, relativas
à nossa vida individual e social.
2 A existência da certeza não pode ser rigorosamente demonstrada. Porquanto,
quem procura demonstrar uma coisa, supõe como certo que está raciocinando e que
o raciocínio tem a força de convencer, e por isso, supõe já a existência da certeza antes
de a demonstrar. Por isso, a nossa demonstração é apenas uma explicação reflexa. —
Nem precisa de ser demonstrada. A existência da certeza é um fato tão evidente, que se
impõe à nossa inteligência; o que se vê, não precisa de ser demonstrado. Nem pode
haver receio de errar; porque, como diz S. Tomás, “sicut circa ipsum introitum domus,
qui omnibus patet, et primo occurrit, nullus decipitur, ita etiam in consideratione
veritatis” (In II Met., l. 1).
a) Dizem: A inteligência não adquire a certeza, se não for dotada de aptidão
para isso. Ora, nunca poderá demonstrar-se que a inteligência tem essa aptidão;
porque cometer-se-ia um círculo vicioso, dando-se como provado o que havia de se
provar; pois a demonstração supõe e exige a certeza dos princípios, de que parte.
Resposta. A objeção contém o sofisma da passagem da ordem real para a
ordem lógica. É certo que, na ordem real, ou ontológica, primeiramente é a aptidão e
depois o ato das nossas faculdades; mas é falso que na ordem lógica, ou cognoscitiva, o
conhecimento dessa aptidão deva preceder o ato. Assim, eu não posso ouvir uma bela
melodia, se não tiver aptidão para isso: mas não é preciso que essa aptidão seja por
mim conhecida antes do ato, pois conhece-se e verifica-se no próprio ato, visto que
da existência do ato podemos deduzir a aptidão para o produzir. Por isso, a aptidão, de
que a nossa inteligência é dotada para alcançar a certeza, deve, na ordem real, preceder
os próprios conhecimentos certos, mas não é preciso que os preceda na ordem lógica,
isto é, não é preciso que antes conheçamos essa aptidão e depois alcancemos a certeza.
170 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
próprio dos espíritos levianos e que se funda nos delírios de uma imaginação doente.
Ora, a certeza física e a moral excluem todo o receio prudente de errar. Porquanto, a
certeza física funda-se nas leis físicas, e a moral nas leis morais. Ora, as leis físicas são
constantes, e só podem ser suspensas por Deus, que só as suspende por motivos graves
e em circunstâncias tais, que a suspensão pode ser facilmente averiguada. Logo, uma
proposição, que se funda nas leis físicas, é certa, e merece toda a adesão da inteligência,
enquanto não se provar claramente que se verificou o contrário, isto é, que se deu a exce-
ção; porque a exceção não se supõem, mas deve provar-se, e, até que se não prove, não
deve ser admitida. Assim, quando digo: este fogo queima, a proposição é certíssima, e
só um louco pode afirmar o contrário. — Como também constantes são as leis morais,
porque representam a natural ordenação da natureza humana para o bem: e por isso, se
num caso particular são violadas pela livre vontade humana, tal violação se manifesta
imediatamente pelas circunstâncias. Logo, uma proposição, que se funda nas leis morais,
é certa e merece a firme adesão da inteligência, até que se não provar com evidência
que, num caso particular, essas leis foram violadas; pois ninguém deve ser tido por mau,
senão depois de se provar a sua maldade. Assim, quando digo: esta mãe ama seus filhos,
a proposição é certeza, até que não se prova o contrário. — Quando, pois, se trata da
certeza física e da moral, embora não repugne o contrário, todavia, se não há motivos
verdadeiramente graves, o contrário não deve admitir-se, e a adesão deve ser e é firme,
porque exclui todo o receio prudente de errar. — Concedemos que, não repugnando
o contrário, seja possível o erro. Mas, nesse caso, o erro não se segue per se, mas per
accidens, e a certeza física e a moral não deixam de ter o nome e a realidade de certeza;
porque uma coisa deve ser avaliada pelo que é per se, isto é, pela sua natureza, e não
pelo que é per accidens, isto é, pelo que lhe pode acontecer por circunstâncias estranhas.
Muitos escritores não reconhecem senão a certeza metafísica, porque, dizem,
a certeza, a verdadeira certeza deve excluir todo o receio, tanto prudente como impru-
dente, e a possibilidade de todo o erro, tanto per se como per accidens. — Não dividimos
essa opinião. Todos os homens estão certos, firmemente certo de muitas verdades da
ordem física e moral, não suspeitam do oposto, e, em conformidade com essa convicção,
regulam a sua vida. Assim, todos o estão convencidos — de que o fogo queima, e não se
lançam numa fornalha acesa, embora seja, por um milagre, possível o contrário, — e
de que o abraço da mãe se pode aceitar, sem receio de que seja um atentado contra
a própria vida, embora isso não seja absolutamente impossível. Se, pois, os homens
descansam também nas verdades da ordem física e moral, essas verdades são tidas
como certas. Será uma certeza menos perfeita que a metafísica; mas é sempre certeza.
Objetam: A certeza física e a moral não existem. Porquanto, a certeza exclui
toda a dúvida. Ora, a certeza física e a moral não excluem toda a dúvida; porque,
estando as leis físicas e as morais sujeitas a exceções, podemos sempre suspeitar que
se tenha dado a exceção.
A resposta está dada; mas a repetição não será inútil. É falso que a certeza
física e a moral não excluem toda a dúvida, porque é falso que, em cada um dos casos
particulares, podemos suspeitar que se tenha dado a exceção nas leis físicas e morais. Na
verdade, uma exceção nas leis físicas só pode provir de Deus; e, como Deus não opera
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 173
caprichosamente, se não houver uma razão séria para fundamentar a exceção a essas leis
num determinado caso, toda suspeita acerca dessa exceção é infundada. Como também,
uma exceção às leis morais deriva do abuso da liberdade: por isso, se não houver uma razão
que demonstre esse abuso, toda a suspeita é irracional. — Embora, pois, uma exceção
seja possível em abstrato, todavia podemos saber com a certeza que, num caso concreto, não
se realizou, e isto basta para que o espírito adira firmemente à verdade, sem receio de
errar. — Repetimos que a possibilidade da exceção, se prova que a certeza física e a moral
não são tão perfeitas como a metafísica, não tira àquelas duas espécies a essência da certeza.
Agora uma advertência. A certeza física e a moral não podem exprimir-se pelas
seguintes fórmulas: — se Deus não suspende as leis físicas, este fogo queima: — se as
leis morais não são violadas, esta mãe ama seus filhos. A razão é clara. Sendo intrínseco
e essencial o nexo entre a condição e o condicionado, essas fórmulas não exprimem
a certeza física e a moral, mas a metafísica. — Essas duas espécies de certeza, física e
moral, devem exprimir-se pelas seguintes fórmulas: esse fogo queima, esta mãe ama
seus filhos. Porquanto, supõe-se nesses casos, e com razão, que as leis física e moral
seguem o seu curso ordinário, não havendo razões graves para se admitir o contrário.
1 A proposição é apenas uma conseqüência dos princípios expostos nos núme-
ros antecedentes. — Devemos, porém, fazer uma importante distinção. Se por certeza
se entende a firmeza da adesão à verdade, então a inteligência adere muito mais fir-
memente às verdades da Fé (divina) do que às verdades da ciência; porque o motivo,
em que se funda a Fé, sendo infalível, é mais forte que o motivo, em que se funda a
ciência. Mas, se por certeza se entende o descanso da inteligência na verdade conhecida,
então, embora a adesão às verdades da Fé seja mais firme do que a adesão às verdades
da ciência, contudo o descanso da inteligência é maior nas verdade da razão do que nas
da Fé; porque a adesão às verdades da razão é determinada pela verdade das coisas, que
se manifesta evidentemente à própria inteligência, ao passo que a adesão às verdades
da Fé é determinada pela vontade, que move e inclina a inteligência a aderir a uma
verdade, que se não vê, isto é, em que se não vê o nexo entre o predicado e o sujeito.
Daqui se segue que, se nas verdades da ciências, evidentemente conhecidas, a adesão
da inteligência é necessária e a dúvida é impossível, nas verdade da Fé a adesão é livre,
e um movimento indeliberado de dúvida pode levantar-se no espírito do crente (Cf. De
Ver., q. 10, a. 12 ad 6) — Lembramos que à firmeza da adesão não se opõe o movimento
indeliberado de dúvida, mas só a dúvida deliberada.
174 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ARTIGO III
A existência da certeza e o Ceticismo
ARTIGO IV
Universal e supremo motivo da certeza
inteligência, esta não pode permanecer indiferente, mas necessariamente deve perceber
o objeto e aderir a ele com firmeza. Exige-o a própria natureza da faculdade cognos-
citiva. Se assim não fosse, se a faculdade pudesse permanecer indiferente perante a
ação do objeto, deveríamos dizer que a faculdade não foi feita para o seu objeto, isto
é, que a faculdade não é faculdade: o que repugna.
Mais tarde explicaremos o modo, porque o objeto atua na inteligência e a deter-
mina à percepção. Limitamo-nos agora a dizer que não é possível o conhecimento, se o
objeto cognoscível não se une com a faculdade cognitiva. O objeto externo penetra no
órgão animado do sujeito, — não pela sua substância, porque o corpo é impenetrável, —
mas pela sua ação física, porque a ação do agente se encontra no paciente. Ora, esta ação é
a expressão, mais ou menos adequada, da natureza do objeto; porque o efeito é semelhante
à própria causa. O sujeito adverte e percebe, por intuição ou de um modo imediato, essa
ação estranha, que atua nele e o penetra, e, percebendo a ação, percebe o próprio agente,
o próprio objeto externo. Assim, o objeto se torna manifesto e visível, pela sua ação, à
faculdade perceptiva; e o sujeito, por tal evidência objetiva, está tão certo da existência
do objeto externo, como está certo da existência própria. — O objeto sensível tem dois
aspectos. Um aspecto é físico e exterior, e este cai sob a intuição dos sentidos; outro
é imaterial e interior, e este cai sob a intuição da inteligência. Este aspecto imaterial e
interior dos objetos sensíveis é representado por uma imagem espiritual, e é nessa e
por essa imagem que a inteligência vê o objeto e a ele adere com firmeza.
***
Dizemos que a inteligência deve necessariamente aderir ao objeto, ou à verdade,
quando esta lhe se torna visível ou evidente. — Mas há uma dúplice necessidade: de
especificação e de exercício. A necessidade é de especificação, quando uma faculdade é
por tal modo determinada a produzir um certo ato, que não pode produzir um ato
diverso, ou contrário; assim a vontade dos bem-aventurados ama necessariamente
Deus, e é impossível que o odeie. A necessidade é de exercício, quando uma faculdade
é por tal modo determinada a produzir o ato, que não pode deixar de o produzir;
assim os nossos olhos, quando são bem dispostos e convenientemente aplicados,
não podem deixar de perceber um objeto presente. — A esta dúplice necessidade
corresponde, em sentido oposto, uma dúplice indiferença, ou liberdade, que também
se chama de especificação e de exercício.
Feita essa distinção, pergunta-se: a necessidade, em que se acha a inteligência,
de aderir a um objeto, ou a uma verdade, que se torna evidente, é uma necessidade
de especificação, ou também de exercício? A essa pergunta damos a seguinte resposta.
a) O objeto, ou a verdade, quando se torna evidente, determina por tal modo
a adesão da inteligência, que esta não pode aderir à proposição contrária. É a neces-
sidade enquanto à especificação do ato. A conclusão é certíssima. Toda a faculdade,
como dissemos, deve necessariamente aderir ao bem, para o qual tende e que lhe
se manifesta convenientemente. Ora, o bem da inteligência é a verdade, e por isso,
quando esta se torna evidente, a inteligência não pode deixar de aderir a ela, e de
rejeitar a proposição contrária. — Além disso, se a inteligência pudesse deixar de aderir
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 181
*
Rejeitando a evidência objetiva, como universal e supremo motivo, ou critério
de certeza, os filósofos apresentaram outros motivos, ou critérios, — como eles os
denominam. Podem estes reduzir-se a duas classes: uns são intrínsecos, ou subjetivos,
outros são extrínsecos, ou objetivos.
a) Critérios intrínsecos. — Os critérios intrínsecos, ou subjetivos, são: a inteligên-
cia humana, a intuição direta e imediata da Verdade infinita, a idéia clara e distinta,
o princípio de contradição, a incompreensibilidade da proposição contraditória, o
testemunho da consciência, o instinto cego da natureza, o sentimento, a vontade
livre, a verificação da experiencia sensível. — De cada um destes critérios faremos
uma breve crítica.
a) A inteligência humana. — Não faltaram filósofos, desde os tempos de Protá-
goras até aos nossos dias, que ensinassem ser a inteligência humana a medida das coisas,
a única regra da verdade e da falsidade, do bem e do mal. — A opinião não poderia ser
mais absurda; porque é absurdo que uma e a mesma coisa seja, ao mesmo tempo e
sob o mesmo aspecto, verdadeira e falsa, boa e má, só porque a uns parece verdadeira
e boa e a outros parece falsa e má. É o relativismo, que leva ao cepticismo.
b) A intuição direta e imediata da Verdade infinita. — É a opinião dos ontólogos,
— Malebranche (1638-1715), Gioberti (1801-1853), Rosmini (1797-1855), — que
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 189
tanto no primeiro como no segundo sentido, essa incompreensibilidade não pode ser o
motivo ou critério supremo da certeza. — Não pode sê-lo no primeiro sentido; porque
aquela repugnância supõe já outro critério, que a manifeste. — Não pode sê-lo no
segundo; porque aquela incapacidade é subjetiva, mutável e relativa. Do fato, por eu
não compreender essa proposição — a terra gira em volta do sol — não pode deduzir-se
que seja certa a contraditória — a terra não gira em volta do sol.
f) O testemunho da consciência. — É a opinião de Galluppi e de alguns discípulos
de Kant. — Mas também essa é inaceitável. O testemunho da consciência só acusa a
existência dos fatos, que se realizam no espírito, mas não manifesta a essência deles; e
por isso, não manifesta a razão, o motivo, porque aderimos à verdade. — Além disso,
o ato da consciência é um conhecimento reflexo e refere-se totalmente ao sujeito pen-
sante. Ora, o motivo, ou critério da verdade deve estender-se não só ao conhecimento
reflexo, mas também ao direto, e referir-se não só ao sujeito, mas também, e sobretudo,
ao objeto. — Finalmente, a consciência é um meio que nos manifesta a evidência dos
nossos conhecimentos. Ora, o motivo, que nos torna certos de uma verdade, não é
a manifestação da evidência, mas é a própria evidência. Logo, o motivo, ou critério da
verdade não é o testemunho da consciência.
g) O instinto cego da natureza. — É a opinião de Reid (1710-1786), seguido
por Dugald Stewart (1773-1828). — Mas nem essa pode admitir-se. Porquanto,
esse critério repugna à natureza da nossa inteligência, a qual, sendo uma faculdade
cognoscitiva, não pode julgar com certeza, nem aderir firmemente a uma verdade,
se não lhe resplandece um motivo racional, como os olhos não podem ver sem luz.
Ora, o cego instinto da natureza é destituído de todo e qualquer motivo objetivo de
assenso, e por isso, não pode levar-nos à verdade, como um cego não pode indicar-
-nos o caminho. — Mais, a nossa certeza, se se baseasse no cego instinto da natureza,
além de irracional, seria exclusivamente subjetiva, porque não dependeria, de modo
algum, da intuição do objeto. Daí o subjetivismo e o ceticismo.
h) O sentimento. — É a opinião de Iacobi (1743-1819), chefe da escola senti-
mentalista na Alemanha. — Também este critério, afim ao precedente, é inaceitável.
Na verdade, o critério deve ser imutável. Ora, o sentimento é naturalmente mutável.
— Além disso, o critério da verdade deve ser um e o mesmo para todos os homens.
Ora, o sentimento, embora relativo à mesma coisa, varia conforme a diversidade do
carácter de cada um, da sua constituição física, da sua educação, dos seus costumes,
prejuízos, e mais condições pessoais. — Finalmente, o sentimento é cego, deve ser
guiado pela razão, e por isso, não pode ser norma da verdade, nem motivo da certeza.
i) A vontade livre. — É a opinião dos sequazes do pragmatismo e do imanen-
tismo, que dizem ser verdade só o que pode ser apetecido como bom e pode ser
útil para a vida prática. — Também este critério é inadmissível. Porquanto, se só
fosse verdade ou certo o que parece bom e útil, o homem seria a medida da verdade,
conforme a opinião de Protágoras, e coisas contraditórias seriam simultaneamente
verdadeiras; visto que, muitas vezes, para um é boa e útil uma contraditória, e para
outro é boa e útil outra contraditória. Ora, isto não só não é critério de verdade,
mas é a destruição de toda a verdade, porque não haveria a maneira de a distinguir
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 191
do erro. — Além disso, o ato da nossa livre vontade não pode ser o supremo motivo
da nossa certeza. Porquanto, o que é que provocará esse ato? Será um impulso cego,
ou um motivo intelectual? Se é um impulso cego, o ato da vontade não é livre, mas é
fatal e instintivo, e teremos todos os inconvenientes, apontados na opinião de Reid.
Se é um motivo intelectual, que dirige a nossa escolha entre opiniões diversas, acei-
tamos, com isso, o critério intelectualista, — a visibilidade do que é, como supremo
motivo da evidência. — Finalmente, o ato da vontade livre não pode ser o princípio
adequado da nossa adesão à verdade, nem às verdades da fé. Porquanto, a adesão
às verdades da fé, sendo um ato intelectual, deve fundar-se e funda-se em razões
certas, em motivos certos de credibilidade. Ora, estas razões, estes motivos são
percebidos pela inteligência. Logo, a livre vontade não pode ser o critério, o motivo
de verdade, ou de certeza.
j) A verificação da experiencia sensível. — É a opinião de Comte, Littré e de todos
os positivistas, que reconhecem como certo só o que foi verificado pela experiencia
sensível. — Não pode aceitar-se essa opinião. Antes de tudo, a experiência sensível pode
ser e é um meio para a percepção, direta ou reflexa, de algumas verdades, mas não é
o próprio motivo, que determina a inteligência à adesão. — Além disso, esse critério,
se serve para algumas hipóteses, não serve para todas as verdades, e por isso, não é
universal. A matemática e as ciências naturais admitem, como certas, muitas coisas,
que não foram, nem podem ser verificadas pela experiência sensível. Os astrônomos
predizem o fenômeno do eclipse, e estão certos de que se há de realizar, mesmo antes
de verificado pela experiência. — Finalmente, por ser essa opinião uma consequência
dos princípios do positivismo; refuta-se com todos os argumentos, que serão, mais
tarde, aduzidos contra esse sistema.
b) Critérios extrínsecos. — Os critérios extrínsecos, ou objetivos, são: a autori-
dade divina e a autoridade humana.
a) A autoridade divina. — É a opinião de N. Huet (1630-1751), G. de Bonald
(1754-1840), L. Bautain (1796-1867), precedidos, pelo menos na ordem do tempo,
pelo bracarense Francisco Sanchez (1562-1632), que dizia: “Nada se sabe, só a Fé
resolve toda a dúvida e ensina a verdade”. — Mas este critério da autoridade divina,
ou da Revelação sobrenatural, não é universal, nem é o primeiro na ordem do tempo.
— Não é universal; porque, se é critério das verdades da Fé, que nos são reveladas
por Deus, não é critério das verdades da ciência, que descobrimos pela luz natural
da razão. — Nem é o primeiro na ordem do tempo; porque não podemos admitir a
autoridade divina, se não estivermos anteriormente certos da existência de Deus, da
sua infalibilidade, do fato e da autenticidade da revelação, e de muitas outras verdades.
Por isso, o uso da razão precede a fé.
b) A autoridade humana. — É a opinião de R. de Lamenuais (1780-1854) e
L. Bonnety (1798-1879), que não reconhecem como certo senão o que o gênero
humano atesta. — A autoridade humana, embora seja um dos meios para alcançarmos
a certeza, contudo não é o critério universal da mesma certeza, nem é o primeiro na
ordem do tempo. Não é o critério universal; porque não se estende a muitas outras
verdades, que descobrimos pela luz natural da razão. Nem é o primeiro na ordem do
192 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ARTIGO V
A certeza e a objetividade das idéias universais
essência nos seus elementos, pode tornar a considerá-la, não já em relação aos mesmos
elementos, mas em relação aos indivíduos, em que se encontra ou pode encontrar-se.-
Neste caso concebe-se a essência como uma coisa que se refere a muitas, isto é, como
uma forma, que se encontra neste ou naquele indivíduo, sem que nunca se esgote
quanto à extensão. — No primeiro caso, temos o universal direto, que se concebe por
uma intuição direta; no segundo, temos o universal reflexo, que é o produto de uma
consideração reflexa.
Como se vê, para a formação do universal direto não se requer, da parte da
inteligência, se não uma abstração, pela qual, no objeto proposto, considere exclu-
sivamente a essência, prescindindo das notas ou propriedades individuais. Assim, a
humanidade, que se encontra em Pedro, Paulo, André, etc., enquanto se considera tal,
qual existe em cada um deles, é uma coisa singular e individual, porque a humanidade
de Pedro não é a humanidade de Paulo. Mas, se essa humanidade, pela ação da inte-
ligência, é depurada das propriedades individuais, de que se acha cercada no tempo
e no espaço, isto é, na sua subsistência real, torna-se imediatamente universal. Diz S.
Tomás: “Una et eadem natura, quae singularis erat et individuata per materiam in
singularibus hominibus, efficitur postea universalis per actionem intellectus depu-
rantis ipsam a conditionibus, quae sunt hic et nunc” (De Univ. t. 1). — Tal abstração
não é real, mas ideal; pois consiste em que a inteligência considera exclusivamente
a essência, que é o seu objeto próprio, prescindindo dos caracteres, de que se acha
cercada nos indivíduos. Tal abstração é legítima, e não pode ser causa ou ocasião de
erro. Quando abstraímos, não julgamos que uma essência existe em si mesma de um
modo abstrato e separada dos caracteres individuais, mas simplesmente considera-
mos a essência, e prescindimos dos caracteres individuais. Acontece o mesmo com
relação à percepção sensitiva. Podemos, por ex., perceber com os nossos olhos a cor
de um fruto, sem, contudo, lhe percebermos o sabor (Cf. Sum. Th., p. I, q. 85, a. 1 ad
1; — De potentiis animae, c. VI). Essa operação é proporcionada à natureza da nossa
inteligência. Sendo esta uma faculdade espiritual, isto é, independente e livre de toda
a matéria, a sua operação deve ser também independente e livre da matéria, e por isso,
livre e independente dessas condições deve ser o seu objeto. Ora, um objeto é livre e
independente das condições da matéria, quando se concebe de um modo universal.
Por isso, o mesmo objeto, que os sentidos percebem como singular, pela inteligência
é percebido como universal, conforme o célebre adágio de S. Sev. Boecio: “Singulare
dum sentitur, universale dum intelligitur”.
Se para a formação do universal direto é necessária e suficiente, da parte
da inteligência, a abstração, para a formação do universal reflexo, é necessária a
abstração e a comparação. — É necessária a abstração. Por quanto, o universal reflexo
é, própria e formalmente, uma coisa comum a muitas “unum versus alia”. Ora,
essa coisa una, que é a essência, subsiste de um modo material e concreto, e se acha
multiplicada, quanto ao ser, em muitos indivíduos. É, pois, necessário que adquira
uma subsistência intencional, pela qual ela, que é multíplice e divisa na realidade,
se torne una e indivisa na própria inteligência, e seja uma imagem, que represente
o que esses indivíduos têm de comum, ou de semelhante. — Mas não basta este
CAPÍTULO PRIMEIRO – VERDADE 195
tada pelo universal-direto, não existe nos entes reais pelo mesmo modo,
porque existe na inteligência.1
se dão à essência um novo modo de ser na inteligência, não lhe tiram o modo de ser, que
tinha na realidade, isto é, não transformam em ideais ou lógicos os elementos reais ou obje-
tivos, que a constituem, e que permanecem sempre o que eram, e formam o substratum, a
base do universal reflexo. — Nem podia ser de outro modo. A nossa inteligência, quando
forma o universal reflexo, não faz senão referir uma essência abstrata aos indivíduos reais,
em que ela se encontra ou pode encontrar-se, e por isso, a considera como uma coisa
comum a muitos entes. Ora, a inteligência não poderia considerar uma coisa como comum
a muitos entes, existentes na realidade, se nestes não existisse realmente essa coisa, comum
a todos, que não é senão a essência. — Portanto, — se o universal direto tem o seu funda
mento imediato ou próximo na realidade, porque a essência, que se considera em si mesma,
existe na realidade (embora na realidade não exista pelo mesmo modo porque existe na
inteligência), — o universal reflexo tem na realidade o seu fundamento mediato ou remoto,
porque a essência, que se considera como abstrata e comum a muitos entes, é uma coisa real
e objetiva. (Cfr. S. Tomás in I Sent., Dist. 19, q. 5, a.1) — Por isso, quando dizemos que o
universal é um ente lógico, ou ente de razão, — não nos referimos à essência, que se abstrai
dos indivíduos pela consideração direta da inteligência e que é real ou objetiva, anterior a
toda a consideração, — nem nos referimos ao universal, considerado no seu fundamento
(pois este também, como vimos, é real), — mas referimo-nos exclusivamente ao próprio
caráter da universalidade, enquanto se une acidentalmente à essência. Em poucas palavras:
no universal devemos considerar duas coisas: a essência e a forma de universalidade, que a
essência reveste. A essência é ente real; a forma de universalidade é ente lógico, ou de razão.
*
Onde existem os universais?... Eis uma das mais antigas e ruidosas questões, que
se tem agitado no campo da ciência. As muitas e diversas soluções, apresentadas pelos
filósofos, podem reduzir-se a três. A primeira é a dos que afirmam que os universais
não existem, de modo algum, nas coisas singulares e materiais, existentes na realidade.
A segunda é a dos que, pelo contrário, sustentam que os universais existem, enquanto
tais, na realidade. A terceira é a dos que, seguindo um caminho médio, ensinam que os
universais existem — em potência ou fundamentalmente na realidade, — em ato ou formal-
mente na inteligência. — Tendo suficientemente desenvolvido essa terceira opinião,
que é conhecida pelo nome de realismo moderado e que foi defendida por Aristóteles,
e depois por S. Boécio, pelo B. Alberto Magno, por S. Boaventura, e, sobretudo, pelo
Angélico S. Tomás de Aquino, resta-nos examinar e criticar as outras duas opiniões.
a) Primeira opinião. — A primeira opinião, a qual, como dissemos, afirma que
os universais não existem, de modo algum, na realidade, foi sustentada pelos sequazes
do nominalismo e do conceptualismo.
a) O nominalismo diz assim: os chamados universais não eram, no princípio,
senão nomes singulares, que denotavam indivíduos. Esses nomes singulares tiveram,
em seguida, um sentido mais lato e extenso, e foram empregados para denotar muitos
outros indivíduos, semelhantes aos conhecidos; daí a universalidade dos nomes.
Portanto, os universais existem exclusivamente nas palavras, não passam de simples
nomes, aos quais não corresponde nenhuma realidade da natureza e nenhum con-
202 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
divina, as coisas criadas medem, pela sua vez, a ciência humana. Essas
coisas, atuando na nossa inteligência, deixam aí impressa uma imagem,
que representa a essência, abstraída das condições materiais e por isso,
universal: de onde as idéias universais. Logo, as idéias universais têm o seu
fundamento supremo na realidade da Essência infinita de Deus.1
APÍTULO SEGUNDO
C
Meios para a aquisição da verdade
ARTIGO I
Inteligência e razão
1 Diz S. Tomás: “Nomen intellectus dupliciter accipi potest. Uno modo secundum
quod se habet ad hoc tantum a quo primo nomen impositum fuit (intelligere enim est
quasi intus legere); et sic dicimur proprie intelligere, cum aprehendimus quidditatem
rerum, vel intelligimus illa quae statim nota sunt intellectui, notis rerum qnidditati-
bus, sicut sunt prima principia, quae cognoscimus cum terminos cognoscimus... Alio
modo potest accipi intellectus communiter, secundum quod ad omnes operationes
se extendit, et sic comprehendit opinionem et ratiocinationem” (De Ver., q. 1, a. 12).
2 A inteligência, sendo faculdade imaterial, tem por objeto o imaterial. — O
imaterial é incomplexo ou complexo. O incomplexo é a essência das coisas; o complexo
é uma verdade. — A verdade, quando é dotada de evidência imediata e é percebida
pela simples inspeção dos termos, torna-se e é primeiro princípio da demonstração.
(Posterior., lib. I, lect. 7).
Expliquemos a natureza, desses princípios. Princípio, em geral, é uma coisa,
de que procede outra. Diz S. Tomás: “Principium est omne id, a quo aliquod pro-
cedit” (Sum. Th., p. I, q. 33, a. 1). Como a coisa, de que uma outra procede, pode ser
uma realidade, ou uma verdade, daí um dúplice princípio; — o princípio real, de que
procedem os entes reais, — e o princípio lógico, de que procede a demonstração. — O
princípio lógico pode ser primeiro e segundo. O primeiro é uma verdade, que — se
refere à nossa primeira idéia, que é a do ente, enquanto ente, — é anterior a toda a
tese e a toda a hipótese, — penetra, de um modo explícito ou implícito, em todas
as demonstrações, — e estende-se a todas as disciplinas e ciências. O segundo é uma
verdade, que — se refere a um particular modo do ente, — tem o seu fundamento
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 207
ordem, uma opera sempre do mesmo modo com relação à outra e alcança sempre
o seu escopo. Este nexo, essencial e necessário, existe também entre a faculdade
e o seu objeto próprio. — Objeto próprio de uma faculdade é o que primeiramente e
por si mesmo é percebido pela mesma faculdade. Diz S. Tomás: “Id quod est primo
et per se cognitum a virtute cognoscitiva est proprium objectum ejus” (Sum. Th. p.
I. q. 85, a. 8). — A faculdade tem toda a sua razão de ser na existência e na índole
do seu objeto próprio, e, estando natural e necessariamente ordenada para ele,
natural e necessariamente o alcança, ou não se engana na apreensão do mesmo. Se
assim não fosse, se a faculdade pudesse enganar-se na apreensão do objeto próprio,
devia dizer-se que ela está e não está ordenada para o seu objeto; — está ordenada,
porque tende para esse objeto, — não está ordenada, porque o não alcança: o que
é absurdo. — Ora, o objeto próprio da inteligência é a essência das coisas; porque
é essa que primeiramente e por si é percebida pela inteligência. Ensina S. Tomás:
“Quidditas rei est proprie objectum intelectos” (De ver., q. 1. a. 12). — Portanto, a
inteligência não pode enganar-se na apreensão da essência das coisas. Diz S. Tomás:
“Ad proprium objectum unaquaeque potentia per se ordinatur, secundum quod ipsa.
Quae autem sunt hujusmodi, semper eodem modo se habent. Unde, manente
potentia, nou deficit ejus judicium circa proprium objectum. Objectum autem
proprium intellectus est quidditas (essentia) rei; unde circa quidditatem rei, per se
loquendo, intellectus non fallitur” (Sum. Th., p. I, q. 85. a. 6). — Pode a apreensão da
inteligência ser deficiente, imperfeita e mesmo negativa; mas nunca pode ser falsa. E
de que modo poderia ser falsa? Talvez porque, em vez de representar a essência de
uma coisa, representa a essência de outra? Mas nesse caso a apreensão é verdadeira
com relação à essência, que é representada, e, assim, é sempre verdadeira. — Se,
pois, a inteligência se engana, alguma vez, na simples apreensão de uma essência,
não se engana enquanto apreende simplesmente uma essência, mas enquanto nessa
apreensão enxerta, explícita ou implicitamente, um juízo. E esse juízo pode intro-
duzir-se por dois modos: — ou quando a essência de uma coisa se atribui a outra
(p. ex. quando a definição do círculo se atribui ao triângulo): — ou quando a uma
essência se atribui um elemento estranho (p. ex. quando se define o homem: animal
racional quadrúpede). Mas é claro que então o erro pertence propriamente ao juízo,
latente na apreensão, e não à própria apreensão. Essa é sempre verdadeira (Sum.
Th., p. I, q. 17, a. 3; q. 85, l. c.).
1 A falsidade encontra-se, própria e formalmente, no juízo, quando a um
sujeito atribuímos um predicado, que não lhe convém, ou quando lhe negamos um
predicado, que lhe convém. Ora, a nossa inteligência, quando apreende simplesmente,
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 209
uma essência, limita-se a considerar essa essência, sem lhe atribuir ou negar alguma
propriedade ou nota, de que está ou pode estar cercada na realidade, e por isso, a
apreensão não pode deixar de ser verdadeira. Abstrahentium non est mendacium; dizem
os escolásticos. A abstração, pela qual consideramos uma coisa sem outra, não é erro,
nem fonte de erros. O erro, como acabamos de dizer, começa, quando se pronuncia
um juízo, explícito ou implícito (Sum. Th. p. I, q. 85, a. 1 ad 1).
1 Chamamos a atenção sobre este argumento. A inteligência, enquanto é
um meio especial para a consecução da verdade, pronuncia, exclusivamente, aqueles
juízos, cujo predicado está contido na noção do sujeito. Ora, a inteligência ou tem a
noção do sujeito, ou não a tem. Se não a tem, não pode pronunciar nenhum juízo.
Se a tem, conhece, ao mesmo tempo, que o predicado convém, ou não convém
ao sujeito: e, quando afirma esta conveniência ou desconveniência por meio do
juízo, é impossível que se engane, como é impossível que não conheça o sujeito,
quando o conhece. Diz o Angélico Doutor: “Intellectus naturaliter et ex necessitate
inhaeret primis principiis”. (Summ. Th., p. I, q. 82, a. 2). — Na doutrina do S.
Doutor, a natureza dos primeiros princípios é tal que não só é necessário que eles
sejam por si verdadeiros, mas também é necessário que se veja essa verdade. Diz
assim: “Proprium horum principiorum (primorum) est quod non solum necesse
est ea vera per se esse, sed etiam necesse est videri quod sunt per se vera” (Post.
Analyt., I, l. 19). E não pode deixar de ser assim. Estes princípios exprimem todos o
princípio de identidade, ou deste recebem toda a força. O sujeito e o predicado são
e aparecem por tal modo unidos, que a afirmação ou a negação de um importa a
afirmação ou a negação do outro.
Daí se segue que, na apreensão dos primeiros princípios, a inteligência não se
engana — nem por si mesma, — nem por uma acidentalidade. Porque, estando o predicado
contido na definição ou essência do sujeito desses juízos, a inteligência entanto pode
enganar-se na apreensão dos princípios, enquanto pode enganar-se na apreensão do
sujeito. Ora, a inteligência não pode enganar-se na apreensão do sujeito desses prin-
cípios — nem por si mesma, nem por uma acidentalidade. Não pode enganar-se por si
mesma; porque o sujeito desses princípios constitui o objeto próprio da inteligência,
e esta não se engana na apreensão do objeto próprio. Não pode enganar-se por uma
acidentalidade; porque o engano, se é possível com relação aos conceitos mediatos ou
210 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
*
Muitos escritores têm desvirtuado a natureza dos primeiros princípios. — Faça-
mos um breve exame crítico de algumas dessas opiniões.
a) Kant afirma que, para explicar a necessidade evidente dos primeiros princípios
da razão, basta admitir um hábito cego e inato, que ele chama forma a priori da nossa
mentalidade. — Mas se assim fosse, todos os nossos juízos, que uma longa experi-
ência tornou habituais, — p. e., o fogo queima, o corpo é pesado, — teriam a mesma
necessidade evidente. E, todavia, não é assim; porque podemos conceber um fogo,
que não queima, e um corpo, que não é pesado. A necessidade evidente dos princípios
da razão, longe de ser o produto de um hábito cego, é o resultado da clara percepção
de uma relação necessária entre o sujeito e o predicado. O hábito poderá transfor-
mar um juízo reflexo em juízo espontâneo, algo confuso; mas um juízo espontâneo,
embora confuso, não é um juízo sintético a priori, que se enuncie necessariamente,
sem nenhuma razão, nem distinta nem confusa.
b) O mesmo Kant afirma que os primeiros princípios e, em geral, os juízos ana-
líticos se reduzem a uma tautologia (A = A). — Contestamos a afirmação de Kant. O
sujeito e o predicado, nos juízos analíticos, não são formalmente idênticos, e o predicado
exprime de um modo explícito e distinto o que o sujeito exprimia de um modo implícito
e confuso. Além disso, quando se compara o predicado com o sujeito, aparecem novas
relações entre esses dois termos, novos respeitos, que antes não apareciam. Finalmente,
se assim fosse, também a Matemática reduzir-se-ia a uma tautologia; o que nem o próprio
Kant admite, porque diz que as conclusões matemáticas são juízos sintéticos a priori.
c) Stuart Mill (Log, t, I, p. 202), seguido por todos os positivistas, diz que os
primeiros princípios, ou axiomas, são as mais universais induções da experiência sensível. —
Negamos que os primeiros princípios sejam as mais universais induções da experiência.
Porquanto, esses princípios exprimem verdades analíticas e metafisicamente necessários,
ao passo que as induções da experiência sensível, embora gerais, são por si sintéticas e
metafisicamente contingentes. Ora, o mais não pode identificar-se com o menos. Além
disso, a inteligência, para aderir aos primeiros princípios, deve perceber si existência de
um nexo necessário e imutável entre o predicado e o sujeito. Ora, a experiencia sensível,
só por si, é absolutamente incapaz de manifestar um nexo necessário e imutável: porque,
se atesta o fato do nexo, não pode atestar a natureza dele, isto é, não pode dizer se o
nexo é necessário ou contingente, imutável ou mutável. Logo, os primeiros princípios
não são as mais universais induções da experiência sensível.
*
Pergunta-se: onde têm seu fundamento os primeiros princípios?
Respondemos que os primeiros princípios têm o seu fundamento próximo
nos fatos da natureza, e o seu fundamento último na Inteligência de Deus, — Desen-
volvamos essa resposta.
a) Os primeiros princípios têm o seu fundamento próximo nos fatos da natureza.
Essa proposição tornar-se-á evidente, se considerarmos a origem dos nossos conhe-
cimentos intelectuais. O primeiro objeto, que a nossa inteligência percebe no estado
212 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
atual, é a essência das coisas materiais, e esta essência é o objeto próprio da mesma faculdade.
Diz S. Tomás: “Primum, quod intelligitur a nobis secundum statum praesentis vitae,
est quidditas rei materialis; quae est nostri intellectus obiectum” (Sum. Th., p. 1, q: 88, a.
3). — A apreensão da essência é o primeiro ato da inteligência. Percebendo a essência das
coisas, a inteligência percebe os elementos, de que a essência é constituída. O primeiro
destes elementos percebidos é o ente, e por isso, a primeira e universalíssima noção,
que está contida em todas as noções e em que todas se resolvem, é a noção de ente. —
Concebida a noção ou idéia de ente, a inteligência afirma imediatamente a repugnância
do ente com o não-ente, com o nada, e pronuncia o princípio de contradição: uma coisa que
é não pode deixar de ser enquanto é. Como também, a formação de outras idéias (depois
da do ente), por ex., das idéias de substância, de causa, de ordem, etc., da origem a outros
princípios, — ao princípio de causalidade, de razão suficiente, etc. — Essa prontidão e
facilidade, com que a nossa inteligência, depois da percepção da essência, pronuncia os
primeiros princípios, é chamada por S. Tomás hábito natural da inteligência humana, e os
mesmos princípios são chamados inatos. Mas, repetimos, os primeiros princípios podem
chamar-se inatos, não enquanto sejam infundidos por Deus na nossa inteligência no
momento da criação, — mas enquanto recebemos de Deus uma natural disposição para
os pronunciarmos, e enquanto os pronunciamos depois de uma facílima e simplicíssima
abstração. Diz S. Tomás: “Intellectus principiorum dicitur esse habitus naturalis; ex ipsa
enim natura animae intellectualis convenit homini quod statim, cognito quid est totum
et quid est pars, cognoscat quod omne totum est mains sua parte; et simile est in ceteris.
Sed quid sit totum et quid sit pars, cognoscere non potest nisi per species intellegibiles
a phantasmatibus acceptas” (Sum. Th., I-II, q. 51. a, 1). E o S. Doutor repete a cada passo
que o conhecimento dos primeiros princípios se funda no testemunho dos sentidos, e
por isso, nos fatos particulares: “Ipsorum principiorum cognitio in nobis ex sensibilibus
causatur; nisi enim aliquod totum sensu percepissemus, non possemus intelligere quod
totum esset maius parte” (C. Gentes, I. II, c. 83). Concluímos que os primeiros princípios
têm o seu fundamento próximo nos fatos da natureza.
b) Mas se os primeiros princípios têm o seu fundamento próximo nos fatos da
natureza, não têm nesses fatos o seu fundamento último (como pretendem os positivistas).
Os fatos são mutáveis e contingentes, ao passo que os primeiros princípios exprimem uma
verdade imutável, necessária, eterna, que não deixaria de ser o que é, embora não existisse
fato algum. — Dizemos, pois, que esses princípios têm o seu fundamento último na Inteligên-
cia de Deus. Porquanto, os princípios, sendo verdades, devem residir na inteligência, como
em seu sujeito. Essa inteligência não pode a do homem: porque os princípios impõem-se
à nossa inteligência, e devemos aceitá-los; eram verdades antes de nós os percebermos, e
não deixariam de o ser ainda que a nossa inteligência acabasse. Logo, a inteligência, em
que, como em sujeito próprio, residem os princípios, deve ser a de Deus; porque verdades
necessárias só podem ter o fundamento último numa inteligência necessária, e essa é a de
Deus. — Bossuet escreve: “Ainda que não houvesse na natureza algum triângulo, seria
sempre certo e indubitável que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois retos.
O que vemos na essência do triângulo é certamente independente de todo o triângulo
existente. Mais ainda: não é a inteligência que dá o ser à verdade; e por isso, ainda que
a inteligência fosse destruída, estas verdades subsistiram imutáveis” (Logique, I, 36). E
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 213
noutro lugar: “Se pergunto a mim mesmo onde e em qual sujeito estas regras subsistem
eternas e imutáveis, sou obrigado a admitir um Ser, onde a verdade é eternamente subsistente e
onde ela é sempre percebida; e este Ser deve ser a própria Verdade e deve ser a Verdade toda”
(Connais de Dieu et de soi-même, IV, 5). — Da Inteligência de Deus os princípios refletem-se
na inteligência humana, pelo fato desta ser efeito e semelhança daquela. Este reflexo,
porém, não é direto ou imediato, pois faz-se, como dissemos, por uma fácil abstração das
coisas particulares, que reproduzem em si os arquétipos da inteligência divina.
Para entendermos mais claramente essa altíssima doutrina, que é de S. Tomás
lembremo-nos de que Deus nos instrui e nos torna partícipes das suas idéias por meio
das coisas criadas, que são, por isso, outras tantas línguas, com que Ele nos fala na
ordem natural. Na verdade, dois elementos concorrem para a realização dos nossos
conhecimentos: a faculdade intelectual, e o objeto inteligível, que se une e manifesta à nossa
inteligência por uma espécie imaterial (Cf. Sum. Th., p. I, q. 105, a. 3). Ora, tanto a nossa
inteligência, quanto o objeto inteligível, tem a sua razão suprema, o seu fundamento último
em Deus. — Tem o fundamento último em Deus a nossa inteligência; porque essa é uma
imagem ou semelhança da Inteligência incriada, e a nossa luz intelectual é um raio da
luz divina, em que estão contidas as razões inteligíveis de todas as coisas. Diz S. Tomás:
“Ipsum lumen intellectuale, quod est in nobis, nihil est aliud quam quaedam participata
similitudo luminis increati, in quo continentur rationes (ideae) aetemae” (Sum. Th., p. I,
q. 84, a. 5). — Tem o fundamento último em Deus o objeto inteligível. Com efeito, todas
as coisas criadas foram feitas em conformidade com os arquétipos divinos, e não se
dizem e não são verdadeiras, senão enquanto reproduzem fielmente esses arquétipos.
Diz S. Tomás: “Res naturales dicuntur verae, secundam quod assequuntur similitudinem
specierum, quae sunt in mente divina” (Sum. Th., p. I, q. 16, a. 1). Sendo dotadas de ver-
dade, as coisas criadas são também dotadas de inteligibilidade, porque toda a verdade é
por si inteligível. Essa inteligibilidade é conatural e acessível à nossa inteligência, a qual,
por ser uma faculdade espiritual, mas existente na matéria, deve perceber o inteligível,
escondido sob a concreção da matéria. Deste modo, a inteligência humana, — confor-
mando-se com as coisas criadas, conforma-se com a inteligência divina, — percebendo
as essências das coisas criadas, percebe os próprios arquétipos divinos — e, pronunciando
os primeiros princípios, exprime os princípios da Inteligência divina, que os exprimiu e
reproduziu nas criaturas. — Estes princípios, sendo conhecidos por uma facílima e sim-
plicíssima abstração, não podem ser ignorados, muito menos contestados seriamente
por ninguém; e por isso, constituem o patrimônio da inteligência humana, enquanto
tal. E, como os primeiros princípios são os critérios diretores de todos os nossos juízos e
são um reflexo das razões ou idéias eternas de Deus, podemos dizer que o homem vê
tudo e julga de tudo nas razões ou idéias eternas de Deus. Tal é a doutrina de S. Tomás
(C. Gentes, I. III, c. 47; Sum. Th., p. I. q. 84. a. 5). — Para maior clareza, advertimos que os
arquétipos divinos representam os vários e infinitos modos, porque a Essência divina é
e pode ser representada na criação. Por isso, cada um desses modos representa a Essência
divina com limitação, e a nossa inteligência, quando descobre nas coisas criadas esses
arquétipos, não descobre a própria Essência divina senão de uma maneira muito defi-
ciente ou limitada. Em poucas palavras: as coisas criadas são reproduções ou imitações
fidelíssimas dos arquétipos divinos; mas estes são imitações finitas da infinita Essência
214 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
conhecimentos. Por isso, quando um objeto não é por si dotado de evidência imediata,
devemos recorrer a um termo médio, que nos mostra se há uma relação necessária, um
nexo essencial entre esse objeto e os objetos imediatamente evidentes. Existindo essa
relação, esse nexo, é claro que, — se são verdadeiros os objetos imediatamente eviden
tes, devem ser também verdadeiros os objetos, que não têm essa evidência imediata,
mas que estão relacionados com os que a têm, — como também se fossem falsos estes
segundos objetos, deveriam também ser falsos os que são imediatamente evidentes.
Diz S. Tomás: “Quaedam propositiones sunt necessariae, quae habent connexionem
necessariam cum primis principiis, sicut conclusiones demonstrabiles, ad quarum
remotionem sequitur remotio primorum principiorum. Et his intellectus ex necessitate
assentit, cognita conexione necessaria conclusionum ad principia per demonstrationis
deductionem” (Sum. Th., p. I, q. 82, a. 2). — Repetimos que a inteligência e a razão não
são duas faculdades distintas, mas denotam duas distintas funções da mesma facul-
dade intelectual, a qual descobre a relação entre dois termos — às vezes de um modo
imediato, — e outras vezes de um modo mediato por um termo médio. Por isso, alguns
escritores, dando o nome de razão à faculdade intelectual perceptiva, dividem-na em
razão intuitiva e em razão discursiva, em conformidade com essa dúplice função. (Cf.
Sum. Th., p. I, q. 89, a. 8; De Ver., q. 15. a. 1).
A razão pode ser teorética e prática. A teorética, ou especulativa, limita-se à
percepção da verdade; a prática aplica a verdade percebida à operação. Não são duas
faculdades, mas uma só, visto que o objeto da teorética é o mesmo que o da prática,
e à aplicação da verdade percebida à operação é uma coisa apenas acidental. — Kant
concede que a razão prática seja um meio legítimo para a consecução da verdade; mas
nega que tal seja a razão teorética. Mas engana-se. Se a razão prática se identifica com
a teorética, ou ambas são meios legítimos, ou ambas ilegítimos.
1 Para evitar repetições, remetemos o leitor para o que dissemos no cap. III
da I parte da Lógica acerca do raciocínio e suas espécies.
2 A razão não se engana por si, isto é, pela, sua própria natureza. Estando ela
naturalmente, orientada ou ordenada para a verdade, não pode dizer-se, sem uma
216 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
contradição flagrante, que ela está naturalmente orientada ou ordenada para o erro; e
seria naturalmente orientada ou ordenada para o erro, se se enganasse por si, pela sua
própria natureza. — Nem pode a razão mudar essa orientação, essa ordem; porque
não é uma faculdade livre, mas necessária, e uma faculdade, necessariamente ordenada
para um certo fim, não pode ser ordenada para outro fim contrário. Essa orientação,
ou ordenação da razão para a verdade refere-se também, e sobretudo, às verdades
mediatas, isto é, às verdades, que não são por si imediatamente evidentes, mas que são
deduzidas de outras verdades por meio do raciocínio. Porquanto, se a inteligência
angélica é naturalmente intuitiva, a humana é naturalmente discursiva. Percebida a
essência de uma coisa, e pronunciados os primeiros princípios, a nossa inteligência não
exauriu, não compreendeu tudo o que se refere a essa coisa, e precisa de completar o
seu conhecimento, e completa-o por meio do juízo, afirmativo ou negativo, passando
de uma proposição para outra, de uma verdade conhecida para outra desconhecida.
(De Ver., q. 15, a 1).
1 Nem pode ser de outro modo. Se a razão se enganasse na percepção das
verdades mediatas, dar-se-ia o engano — ou porque ela não pode estar certa da verdade
das premissas, — ou porque não pode estar certa do nexo lógico entre o antecedente e
o consequente. Ora, a razão pode estar certa — tanto da verdade das premissas, porque
estas são imediatamente evidentes, ou fundam-se e resolvem-se em verdades imediata-
mente evidentes, — como da verdade do nexo lógico entre o antecedente e o consequente,
porque podemos, pela reflexão, convencer-nos de que foram observadas as respectivas
leis lógicas e de que, por isso, a conclusão se funda e se resolve nos primeiros princípios,
nas verdades imediatamente evidentes. Logo, a razão não se engana na percepção das
verdades mediatas. — Como se vê, a razão, no seu movimento, parte da inteligência e
volta para a inteligência: esta é o começo e o termo daquela. Diz S. Tomás: “Quia motus
semper ab immobili procedit et ad aliquid quietum terminatur, inde est quod ratiocinatio
humana, secundum viam inquisitionis vel inventionis, procedit a quibusdam simpliciter
intellectis, quae sunt prima principia, et rursus, in via judicii, resolvendo redit ad prima
principia, ad quae inventa examinat” (Sum. Th., p. I, q. 79, a. 8).
Mas, se a nossa razão não pode enganar-se per se, pela sua própria natureza,
pode enganar-se per accidens, por um motivo que obsta à retidão do seu exercício. O
instrumento é bom; mas o modo, que nos servimos dele, pode ser defeituoso e con-
trário às regras da arte. E a arte do raciocínio é uma das mais complexas e delicadas.
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 217
159. Regras para a razão. — A razão, para que seja meio legítimo
para a aquisição da verdade, deve observar estas regras:
Iª. — Não deve sair da sua esfera, que é o imaterial. Para o conhe-
cimento do material é indispensável o exercício de outra faculdade. A
passagem do ideal para o real é sofisma.
IIª. — Estabelecidas as premissas, deve deduzir a conclusão con-
forme as leis do raciocínio. Da inobservância desta regra deriva a máxima
parte dos erros.
ARTIGO II
Consciência e memória intelectual
consciência, quando refere esse engano, como não mente quem refere historicamente
as mentiras dos outros. — Por isso, quando se trata da consciência, o objeto real e o
aparente confundem-se, identificam-se; porque a modificação do sujeito é sempre a
mesma, e a consciência, quando se limita a atestar a existência dessa modificação, é
sempre verdadeira; como verdadeira é a afirmação de um doente de olhos, quando
diz que vê todos os objetos de cor amarela, embora não sejam tais em si mesmos.
Erra quem julga, não quem refere.
1 Para que a alma perceba a própria existência e o que se passa nela, não é
preciso mais do que a essência da própria alma, que está intimamente unida com
a inteligência; pois é da essência da alma que derivam as operações, nas quais ela
é atualmente percebida. (S. Thom., De mente, a. 8). — Mas, repetimos, a facilidade,
com que a consciência percebe as operações e a própria alma, refere-se à existência das
operações e da alma; porque a percepção da natureza das operações e da alma pertence
à razão e é coisa muito difícil. (De Ver., q. 10, a. 8 ad 8).
Fizemos nós uma demonstração? Não. Limitamo-nos a uma simples expli-
cação. A demonstração não é possível, quando se trata dos fundamentos de toda a
ciência. — A veracidade ou legitimidade da consciência é de evidência imediata e não pode
ser demonstrada nem contestada sem petição de princípio. Quem quisesse defendê-la
ou contestá-la, já a supunha como certa. Porquanto, quem afirma ou nega que neste
momento pensa, já admite a existência do pensamento, porque afirmar ou negar é
pensar. Ora, admitir a existência do pensamento é admitir a veracidade da consciência.
Logo, a veracidade ou legitimidade da consciência não pode ser demonstrada nem
contestada sem petição de princípio.
Para a solução das principais dificuldades contra a veracidade da consciência,
fazemos as seguintes advertências. — 1º) Para que estejamos certos do testemunho,
ou ato da consciência, não precisamos de outra consciência. Consistindo ela no poder
de refletir e tendo por objeto o que se passa no íntimo do nosso espírito, pode ela
dobrar-se sobre si mesma e perceber o próprio ato. Por isso, para a certeza da consci-
ência, não é necessária uma nova faculdade, mas é suficiente um novo ato da mesma
faculdade. — 2º) Muitas vezes duvidamos se um fenômeno interior deriva desta ou
daquela faculdade; mas a dúvida não se refere à existência, mas sim à natureza do mesmo
fenômeno. Mas conhecer a natureza de um fenômeno, e por isso, a causa dele, é múnus
da razão, não da consciência. — 3º) Quando os loucos e os sonhadores afirmam que
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 221
veem e ouvem o que realmente não existe, esses enganos devem atribuir-se — não à
consciência, que se limita a referir o que se passa no espírito dos loucos e dos sonha
dores, e nisso ela é veraz, — mas sim à falta do uso legítimo do raciocínio, porque o
juízo relativo à correspondência entre os fenômenos internos e os externos pertence
à razão, e nos loucos e nos sonhadores a razão está desarranjada ou não funciona.
Pergunta-se: perceberá a consciência todas e cada uma das nossas operações
espirituais, de modo que não possa haver uma só operação inconsciente? — Uns
respondem que toda a operação espiritual é necessariamente e sempre percebida
pela consciência. Por isso, dividem a consciência em direta e reflexa. A direta seria
a presença da alma nos seus atos; e, como a alma está sempre presente nos seus
atos, concluem que não pode haver ato, que escape à consciência. Escreve Balmes:
“Dizer que os fenômenos existem na nossa alma e que não os tem presentes, é uma
contradição” (Phil. fund., l. I, c. 23). — Outros, porém, e com razão, admitem que
pode haver e há operações internas, de que não temos consciência. Antes de tudo,
repelem a distinção da consciência em direta e reflexa. A consciência direta seria uma
consciência não-consciência. O que constitui propriamente a consciência é a advertência.
Se não há advertência, não há nem pode haver consciência. A presença da alma nos
seus atos não é consciência, senão quando e porque reflete sobre eles. Ora, se é ver-
dade que a alma pode habitualmente perceber-se a si mesma nos seus atos, enquanto
tem sempre para isso uma grande e natural inclinação, não é verdade que, de fato,
ela se comtemple sempre e sem descanso. Para isso seria necessária uma atenção
demasiadamente intensa e constante, de que a nossa alma não é capaz. Logo, um
fato físico não é necessariamente um estado da consciência, ainda que que seja sempre
um estado da alma, de que podemos ter consciência por uma suficiente reflexão. A
idéia e a consciência da idéia distinguem-se, como se distinguem a visão do objeto
pensado e a visão do sujeito pensante. Podemos pensar, sem pensar no pensamento.
Todos admitem a legitimidade ou veracidade da consciência quanto ao objeto
direto, mas alguns rejeitam-na ou desvirtuam-na quanto ao objeto indireto. Limi-
tamo-nos a citar as opiniões de Kant, Descartes e Hamilton.
Kant, depois de ter negado, ou posto em dúvida, a objetividade do pensamento,
admite a veracidade da consciência, mas sustenta que esta, se pode perceber os fenômenos
internos, o eu fenomênico, não pode atingir o sujeito desses fenômenos, o eu numênico. —
A opinião de Kant é falsa em relação a esta última parte. Porquanto, pela consciência,
atingimos os fenômenos internos como nossos. Ora, não podemos atingi-los como
nossos, sem atingirmos, ao mesmo tempo, o sujeito deles, o eu numênico. É o que a
experiência atesta. Através dos nossos pensamentos, afetos, desejos, há sempre um
que pensa, ama, deseja; através dos variados fenômenos, que se sucedem, uns aos
outros, no nosso interior, descobrimos um sujeito, um númeno, que, no meio de
tantas vicissitudes, permanece sempre o mesmo e que se chama: eu. — E esse sujeito,
esse númeno, esse eu, a consciência não o percebe apenas como um fato fisiológico,
mas conhece-o também como um princípio de atividade, como uma causa das nossas
operações, como uma verdadeira substância indivídua, distinta e separada de todas as
outras substâncias; embora, repetimos, não perceba a natureza do eu.
222 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ARTIGO III
Sentidos externos e internos
reflexão: porque ou se atribui à memória o que ela não refere, ou se considera como
certo o que a memória refere como duvidoso. — A memória pode enfraquecer, pode
mesmo esquecer as coisas; mas o esquecimento não é erro, assim como não é erro a
ignorância, e no que ela evidentemente refere como certo não pode enganar-se, aliás
deixaria de ser memória, isto é, deixaria de ser a faculdade de conservar e reconhecer o
passado. — Aqui notamos que a memória intelectual, destinada para conservar as imagens
imateriais das coisas, é mais tenaz e menos móvel do que a memória sensitiva; porque
o órgão corpóreo, a que está ligada a memória sensitiva, é mais móvel, mais mutável
do que uma faculdade espiritual, como é a memória intelectual. (De Ver., q. 10, a. 2).
Como a memória pode esquecer e esquece o passado, é necessário robuste-
cê-la, exercitando-a continuamente, e auxiliando-a, aplicando a atenção às coisas
que desejamos reter, e ordenando as idéias de modo que a recordação de uma traga
naturalmente a recordação da outra. — Os principais dotes de uma boa memória são:
facilidade, tenacidade, fidelidade, prontidão. É fácil, quando sem esforço recorda os
conhecimentos passados; — é tenaz, se os conserva por muito tempo; — é fiel, se os
reconhece com exatidão, — é pronta, se os reproduz com celeridade.
1 O homem não só conhece as coisas imateriais, mas também as materiais. Para
a percepção das coisas imateriais, é dotado de faculdades imateriais; para a percepção
das coisas materiais, é dotado de faculdades materiais. A faculdade material não reside
exclusivamente na alma, nem exclusivamente no corpo, mas no composto de alma e
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 225
*
Na percepção dos sentidos externos poderá haver engano? Serão eles verazes
no que nos atestam? — Eis uma questão, que é a base de toda a teoria acerca do
conhecimento intelectual. Porquanto, dependendo o conhecimento intelectual do
conhecimento sensitivo quanto ao objeto (pois são os sentidos que subministram à
inteligência o material do pensamento), é claro que, se se enganam os sentidos, se
engana também a inteligência. — Tratemos, pois, da veracidade dos sentidos externos.
Antes de tudo, devemos advertir que nos sentidos não se encontra a verdade,
tomada no seu conceito formal, isto é, no seu conceito próprio, enquanto importa
uma adequação entre a faculdade perceptiva e o objeto percebido. Com efeito, para
que nos sentidos pudesse encontrar-se a verdade, tomada no seu conceito próprio,
deveriam eles perceber a relação de identidade ou de discrepância entre o sujeito e o
predicado, e, para isso, deveriam possuir várias idéias universais, sobretudo a idéia
universal da forma, em que os dois termos convêm, ou não convêm. Ora, as facul-
dades materiais, como são os sentidos, não podem perceber a relação entre o sujeito
e o predicado, porque tal relação é uma coisa abstrata ou universal, e essas faculdades
não são capazes de idéias universais. Logo, nos sentidos não se encontra a verdade,
tomada no seu conceito próprio ou rigoroso. — Se nos sentidos não existe a verdade,
tomada no seu conceito próprio ou rigoroso, nem se encontra neles o erro, ou a
falsidade, tomada também no seu conceito próprio ou rigoroso, enquanto exprime
uma desconformidade entre a faculdade perceptiva e o objeto percebido. Porquanto,
dá-se essa desconformidade, quando a faculdade perceptiva afirma — que a um sujeito
230 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
convém um predicado, que lhe não convém, — ou que a esse sujeito não convém
um predicado, que lhe convém. Ora, essa afirmação, supondo a percepção da relação
entre o predicado e o sujeito, não pode ser feita pela faculdade sensitiva. Logo, nos
sentidos não se encontra a falsidade, tomada no seu conceito próprio ou rigoroso. —
Em poucas palavras: a verdade e a falsidade encontram-se própria e rigorosamente
no juízo. Ora, os sentidos não são capazes de pronunciar um verdadeiro juízo. Logo,
a verdade e a falsidade não se encontram própria e rigorosamente nos sentidos. Diz
S. Tomás: “Proprie loquendo, veritas est in intellectu componente et dividente (h.
e. iudicante), non autem in sensu, neque in intellectu cognoscente quod quid est (h. e.
simpliciter apprehendente essentiam rei)” (Sum, Th., p. I, q. 16, a. 2). — Se, algumas vezes,
costumamos dizer que os sentidos julgam, enquanto distinguem um sensível de outro
sensível, que são objetos do mesmo sentido ou de sentidos diferentes, tomamos o
juízo em significação lata ou menos rigorosa.
Mas a verdade e a falsidade, se não se encontram formalmente na faculdade
sensitiva, podem encontrar-se nela materialmente, enquanto a apreensão ou percepção
dos objetos sensíveis corresponde, ou não, à realidade, isto é, enquanto percebe, ou
não, os entes objetivos, como são em si mesmos. Daí a pergunta: enganam-se, ou
não, os sentidos externos na percepção do seu objeto? — E como esse objeto é tríplice,
tresdobra-se a pergunta: enganam-se, ou não, os sentidos externos na percepção do
seu objeto próprio, comum e concomitante? — A estas perguntas vamos responder.
Repetimos que a nossa não é uma demonstração, — muito menos uma demons-
tração rigorosa: é apenas uma declaração, uma resposta aos adversários. Porquanto,
a veracidade dos sentidos externos é tão clara, tão imediatamente evidente, que não
precisa, nem pode ser demonstrada. — Não precisa. Na verdade, o senso comum apela
para o testemunho dos sentidos externos, como para a prova irrefragável da evidência
de uma coisa. Daí as expressões: toca-se com as mãos, mete-se pelos olhos dentro, etc.
— Não pode. Com efeito, toda a demonstração parte, em última análise, de princípios
universais; e esses são conhecidos pela inteligência. Ora, a operação da inteligência é
precedida pela operação dos sentidos externos. Logo, toda a demonstração pressupõe
a veracidade dos sentidos externos.
Essa convicção acerca da veracidade dos sentidos (como também da veracidade
de todos os outros meios) não é efeito de um cego instinto. Na verdade, o instinto é uma
inclinação, que deriva da natureza e pela qual operamos sem um conhecimento sufi-
ciente. Por isso, quando se trata de uma faculdade perceptiva, o instinto deve conceber-se
como uma inclinação, proveniente da natureza, para apreender um objeto, quando
o próprio objeto não impressiona por si a faculdade. Porquanto, se essa impressão
se realiza, a faculdade inclina-se para produzir o seu ato em virtude da sua energia
essencial; e tal inclinação não é, nem pode chamar-se instinto. Assim, ninguém dirá
que é o instinto que nos leva a julgar que o todo é maior que uma sua parte; mas todos
dirão que é a luz da razão, a energia intrínseca da nossa inteligência. A necessidade,
que, nestes casos, obriga a faculdade a afirmar a verdade, deriva do concurso de uma
dúplice causa de ordem exclusivamente cognitiva: da evidência do objeto e da ten-
dência da faculdade para o seu ato. A natural inclinação, pois, pela qual acreditamos
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 231
aplicado, não poderá receber, como devia, essa forma, ou a forma não representará
fielmente o objeto. De onde o engano ou a falsidade na percepção dos nossos senti-
dos. (O que dizemos dos sentidos, deve aplicar-se a todas as faculdades passivas, isto
é, determinadas ao ato pela impressão de um agente). Diz S. Tomás: “Sensus semper
apprehendit rem ut est, nisi sit impedimentum in organo vel io medio” (De Ver., q. 1,
a. 11; cf. Sum. Th., p, I, q. 17, a. 2). — Como se vê, o engano ou o erro — pode dar-se
nos sentidos enquanto, por uma causa acidental, não percebem uma coisa como é
em si mesma, — mas não pode dar-se enquanto acusam o estado próprio, a afecção
própria, embora possam ocasionar um juízo falso da parte de uma faculdade superior.
Assim, quando um doente diz que o açúcar é amargo, o testemunho do gosto é veraz,
porque efetivamente o doente tem essa sensação, embora se engane por atribuir o
amargo ao açúcar.
Se os sentidos podem enganar-se per accidens, mesmo com relação ao objeto
ou sensível próprio, se podem não representar e não referir as coisas como são em
si mesmas, é claro que podem também dar à inteligência (que se baseia no testemu-
nho deles) a ocasião de emitir juízos falsos acerca dos objetos externos. — Todavia a
inteligência pode conhecer o engano de um sentido e a sua origem (se depende da
indisposição do órgão ou da imperfeição do meio), e conhece-o por meio do mesmo
ou de outro sentido, ou pela reflexão própria. Conhecido, o engano do sentido cor-
rige-se facilmente. — Por isso, o juízo da inteligência, que sucede imediatamente à
percepção dos sentidos, é sempre e necessariamente verdadeiro, quando estamos
certos da boa disposição dos mesmos sentidos e da sua conveniente aplicação. — Na
Antropologia resolveremos algumas dificuldades contra a veracidade dos sentidos
externos (Cf. De Ver., q. 1, a. 11).
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 233
concomitante dos sentidos, ou ser sensível per accidens, são necessárias três condições:
— a) que esteja unida a uma outra coisa, que é sensível por si, — b) que seja percebida,
de algum modo, pelo sujeito senciente, aliás não seria sensível, — c) que seja conhecida
pelo senciente por meio de uma outra faculdade perceptiva, p. ex., pela inteligência,
ou por uma outra faculdade sensitiva superior. — Adverte o mesmo S. Doutor que o
sensível per accidens não é tudo o que pode ser percebido num objeto sensível, mas é o
que a inteligência imediatamente conhece após a impressão, que esse objeto exerceu
nos sentidos externos; assim, vendo um sujeito que fala ou caminha, percebemos, pela
inteligência, a vida dele, e dizemos: vejo que esse sujeito vive (De Anima, l. 3, lect. 13).
Que a percepção dos sentidos seja concreta, e não abstrata, é coisa manifesta.
Na percepção abstrata, opera-se uma análise, pela qual uma coisa se separa intencio-
nalmente de outra, isto é, pela qual uma coisa se considera sem outra. Ora, a análise é
uma operação própria da inteligência, e não dos sentidos. Os sentidos apresentam o
composto como é em si mesmo, na sua concreção. — Nem podia ser de outro modo.
O que alcançam os sentidos? Só a substância? Não, porque a substância não pode
atuar diretamente, por si mesma, nos sentidos, nem na inteligência. A substância
está envolvida nas qualidades sensíveis, e não pode operar nem ser percebida sem
elas... Só as qualidades sensíveis? Também não: porque as qualidades existem como
concretas, isto é, aderentes a um sujeito, operam como concretas, e por isso, devem ser
percebidas como concretas. Logo, a percepção dos sentidos é concreta.
Mas não devemos exagerar a parte dos sentidos na percepção do objeto
concomitante. Os sentidos limitam-se a apreender as qualidades sensíveis, como se
encontram na realidade, e por isso, concretas, isto é, existentes não em si mesmas,
mas num sujeito determinado, e essas qualidades concretas são por eles apresentadas
à inteligência. Eis tudo. Porquanto, se é certo que essas qualidades concretas, perce-
bidas pelos sentidos, constituem um composto, de acidentes e de substância, é certo
também que os sentidos não percebem que debaixo das qualidades existe um sujeito,
uma substância; não sabem o que é substância, nem o que é acidente; não distinguem
o elemento, que está em si, do elemento, que se apoia num sujeito. É a inteligência,
e só ela, que, recebendo dos sentidos as qualidades concretas, percebe imediatamente
— que estas, por isso, mesmo que são qualidades concretas, devem residir num sujeito,
numa substância, e que essa substância deve existir e deve ser dotada de uma natureza,
proporcionada e correspondente à natureza das qualidades.
Portanto os sentidos não se enganam per se, pela sua natureza, na percepção do
objeto concomitante. Mas, se não se enganam por si, os sentidos podem dar à inteligência
a ocasião de enganar-se, de emitir juízos falsos. Com efeito, os sentidos não percebem
diretamente a substância, mas apenas as qualidades concretas. Ora, pode acontecer que
as mesmas qualidades concretas se encontrem em substâncias diversas, (porque não
repugna que substâncias diversas tenham a mesma figura, a mesma cor, o mesmo peso,
etc.), e pode acontecer também que as qualidades concretas existam milagrosamente
sem sujeito, sustentadas pela virtude onipotente de Deus. Sendo assim, é claro que a
inteligência pode facilmente enganar-se, enquanto pode julgar — que certas qualidades
concretas pertençam a uma certa substância, quando realmente pertencem a uma outra
236 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
*
São três as opiniões dos filósofos acerca da percepção e da veracidade dos
sentidos externos.
1ª) Uns admitem — que os sentidos externos percebem, e de um modo imediato,
os corpos externos, — e que a veracidade dos mesmos sentidos é imediatamente evidente,
e não precisa nem pode ser demonstrada.
2ª) Outros sustentam que os sentidos externos não percebem, de modo algum,
os objetos externos; porque estes não existem, ou, se existem, não podem ser percebidos
pelos sentidos, — e por isso, negam, ou não discutem, a veracidade dos mesmos sentidos.
3ª) Outros afirmam — que a existência dos corpos externos nos é manifesta,
não por uma imediata percepção dos sentidos externos, mas por um outro meio, — e
que a própria veracidade dos mesmos sentidos não é imediatamente evidente, e precisa
de ser demonstrada.
Tendo exposto e defendido a primeira opinião, que é a de todos os escolásticos,
antigos e modernos, e de todos os Padres e Doutores da Igreja, vamos expor e refutar
diretamente a segunda e a terceira.
A) A segunda opinião, como dissemos, é a que, negando a existência dos
objetos externos, nega a percepção e a veracidade dos sentidos externos. Para os sequazes
dessa opinião, uma percepção externa é uma contradição; a percepção dos corpos signi-
fica apenas a percepção das nossas idéias, das modificações da nossa alma; o que vemos,
ouvimos e, em geral, sentimos, é apenas uma série de fenômenos internos do eu, uma
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 237
série de idéias ou de sensações meramente subjetivas, que, por uma ilusão, projetamos
para fora de nós. Nada é real; só existem as nossas idéias. O mundo é apenas uma idéia,
uma aparência sem realidade. — É o idealismo. Divide-se esse em: subjetivo e objetivo,
conforme as imagens ou aparências dos corpos, que a inteligência possui, se fazem derivar
unicamente — da atividade da alma, — ou de uma ação do próprio Deus. O idealismo
subjetivo foi defendido sobretudo por Fichte; o objetivo, por Berkeley.
O idealismo é falso em si e nas suas espécies.
a) O idealismo, em geral, é falso.
a) O idealismo baseia-se num falso fundamento. Porquanto, supõe ele que a
alma e o corpo são duas substâncias completas, uma estranha à outra, — que a alma está
relegada num ponto do organismo, sem meio de comunicação com a realidade externa,
— e que, por isso, não é possível uma impressão dos objetos, que, embora existissem,
seriam sempre incognoscíveis. Ora, esse fundamento, lançado por Descartes, é intei-
ramente falso. A alma e o corpo, como veremos na Antropologia, são duas substâncias
incompletas, e substancialmente unidas, de modo que formam uma só pessoa e uma só
natureza ou essência. Não é a alma só que sente, nem é o corpo só; mas é o composto de
alma e de corpo, é o órgão animado. Logo, o idealismo baseia-se num falso fundamento.
b) Se os objetos externos não existem na realidade, mas exclusivamente nas
nossas idéias, segue-se que os nossos sentidos externos percebem o que não está pre-
sente, o que não existe. Ora, uma percepção sem a coisa percebida, uma visão sem
a coisa vista, é simplesmente uma contradição. Logo, o idealismo, em geral, é falso.
b) O idealismo subjetivo é falso.
a) A causa das sensações não pode ser exclusivamente a atividade da nossa
alma. Porquanto, a nossa alma, quando se experimenta uma sensação, percebe que
é passiva e que essa sensação é uma operação passiva. Ora, o princípio e a causa motriz
de uma operação passiva não é o sujeito, que é por si indiferente, mas é o próprio
objeto. Diz S. Tomás: “Objectum comparatur ad actum potentiae passivae sicut prin-
cipiam et causa movens” (Sum. Th., p. I, q. 77, a. 3). Logo, a causa das sensações não
pode ser exclusivamente a atividade da alma.
b) Devendo o efeito ser proporcionado à própria causa, as sensações, se
derivassem exclusivamente da atividade da nossa alma, não poderiam representar
senão objetos simples e espirituais; porque simples e espiritual é a nossa alma. Ora, as
sensações representam coisas materiais e corpóreas, como os próprios adversários
confessam. Logo, as sensações não podem derivar exclusivamente da atividade da
alma. — Além disso, se as sensações derivassem unicamente da alma, não haveria
uma razão suficiente porque devessem representar, como efetivamente representam,
os objetos corpóreos e materiais como existentes fora de nós.
c) O idealismo objetivo é falso.
a) Atesta-nos a consciência que, quando experimentamos uma sensação,
experimentamos, pela mesma impressão, a sensação e a causa dela: assim, quando
nos aproximamos do lume, sentimos o calor do lume, e, ao mesmo tempo, o lume
quente. Ora, se a sensação fosse produzida por um agente extrínseco, como é Deus,
238 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
as nossas mãos, embora sentissem o calor, não poderiam sentir, como efetivamente
sentem, o calor do lume, nem o lume quente. Diz S. Tomás: “Si illa species caloris
in organo ab alio agente fieret, tactus, etsi sentiret calorem, non tamen sentiret
calorem ignis, nec sentiret ignem esse calidum, cum tamen hoc judicet sensus, cujus
judicium in proprio sensibili non errat” (De pot., q. 3, a, 7). Logo, as sensações não
derivam imediatamente de Deus, mas dos próprios objetos externos.
b) Se as sensações dos objetos externos derivassem exclusivamente da ação
de Deus, e não da ação imediata dos próprios objetos, a ação de Deus seria inútil e
má; — inútil, porque seria inútil produzir em nós a sensação de coisas materiais, se
estas não existissem realmente; — má, porque Deus nos enganaria, levando-nos
por um impulso irresistível a julgar como existente o que realmente não existe.
Ora, é absurdo e ímpio pensar que uma ação de Deus possa ser e seja inútil e má.
Logo, as nossas sensações não derivam exclusivamente da ação de Deus, mas da
ação imediata dos próprios objetos.
Se as nossas sensações têm por causa imediata os objetos externos, esses exis-
tem, e o testemunho dos sentidos externos, que nos acusa a existência dos objetos
externos, é legítimo ou veraz.
B) A terceira opinião, como dissemos, afirma — que a existência dos corpos
ou dos objetos externos não se manifesta por uma imediata percepção dos sentidos
externos, mas por um outro meio, — e que, por isso, a veracidade dos mesmos sen-
tidos externos não é imediatamente evidente. — Esse outro meio, distinto da imediata
percepção dos sentidos, que nos levaria a admitir com certeza a existência, dos
objetos ou corpos externos, é, — para Descartes, uma inclinação universal, prove-
niente de Deus, — para Malebranche, a Revelação sobrenatural, contida na S. Escritura,
— para Reid, um instinto natural, — para Cousin, Sentroul e outros neoescolásticos
de Louvain, o princípio de causalidade. — Façamos uma breve crítica das opiniões
enumeradas, mostrando que o emprego desses meios, longe de substituir o exercício
dos sentidos externos, pressupõe e exige necessariamente o exercício e a veracidade
dos mesmos sentidos.
a) Descartes ensina que uma inclinação universal, proveniente de Deus, nos
leva a admitir a existência dos corpos, — inclinação que não pode deixar de ser veraz,
por isso, mesmo que provém de Deus. Essa doutrina é falsa, pelas seguintes razões.
a) Na opinião de Descartes, o conhecimento do mundo seria posterior ao
conhecimento de Deus. Ora, dá-se exatamente o contrário. O conhecimento do
mundo é anterior ao conhecimento de Deus, porque é pelo finito que nos elevamos
ao infinito. Por isso, não poderíamos conhecer a Deus, se não acreditássemos
anteriormente na veracidade dos sentidos externos.
b) Além disso, como sabe Descartes que essa inclinação existe nos homens,
e que é universal e por isso, imputável ao próprio Autor da natureza? Ele não pode
saber isso, senão pela percepção sensitiva externa, que o mete em relação com os
outros homens. Logo, o juízo acerca dessa inclinação universal pressupõe a veracidade
dos sentidos externos.
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 239
subjetivas, limitam-se a provocá-las; não são causas eficientes, mas apenas ocasionais.
Ora, um fenômeno, se nos leva a conhecer, de algum modo, a natureza da sua causa
eficiente, não nos leva a conhecer a natureza da causa ocasional, que não se reflete
no efeito; um tiro de canhão não leva por si ao conhecimento do artilheiro, que o
disparou. Por isso, o mundo, se devesse ser conhecido pelas sensações subjetivas,
seria incognoscível na sua natureza. — Se, porém, se admite, com outros sequazes
desta opinião, que os corpos externos produzem, como causas eficientes, as nossas
sensações subjetivas, em tal caso, como a ação da causa eficiente é recebida e existe
no sujeito paciente, esse conhecerá a existência e a natureza da mesma causa, mas
conhecê-las-á por um modo imediato, isto é, pela imediata percepção dos sentidos,
sem ter a necessidade de recorrer ao raciocínio. Provar a existência do mundo pelo
raciocínio é explicar uma coisa clara por uma outra escura — Concluímos que a
existência dos corpos externos é imediatamente evidente, e por isso, imediatamente
evidente é também a veracidade dos sentidos externos.
1 Resumamos em poucas palavras o que deixamos dito. Os sentidos externos são
meios legítimos para a aquisição da verdade. É por eles que entramos em comunicação
com o mundo exterior. Dizer com os subjetivistas que por meio dos sentidos externos
só percebemos as nossas sensações, e não os objetos, é confundir a percepção externa
com a interna, é contradizer a consciência, a qual atesta que, pelos sentidos externos,
direta e imediatamente percebemos os objetos, e que só indireta ou mediatamente, por
um sentido interno, percebemos as nossas sensações.
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 241
basta para perceber as percepções dessa dúplice ordem — intelectual e sensitiva; porque
deve haver proporção entre a faculdade e o seu objeto direto.
1 A razão é sempre a mesma. Uma faculdade, que por si, pela sua natureza,
se engana na percepção do seu objeto, é e deixa de ser, ao mesmo tempo, uma
faculdade; porque pode e não pode alcançar o seu objeto. Ora, isto é absurdo. — É
claro que, para a percepção sensitiva interna ser verdadeira, devemos cumprir todas
as condições indispensáveis. — Mas, nesta percepção o engano é menos freqüente
que na percepção sensitiva externa. Porquanto, na percepção sensitiva externa, o
engano pode provir — não só do órgão, que pode não estar bem disposto, — como
também do meio, que pode alterar a ação do objeto no respectivo sentido; ao passo
que, na percepção sensitiva interna, o engano pode provir unicamente do órgão, que
pode não estar bem disposto, pois, aqui, não há meio entre o objeto e a faculdade,
mas o próprio objeto está por si unido com a respectiva faculdade, determinando-a
imediatamente ao ato.
Depois de termos provado a veracidade dos sentidos internos em geral, prova-
remos brevemente a veracidade de cada um deles em particular.
a) O sentido comum não se engana, na percepção do seu objeto.
a) Com efeito, esta faculdade atesta que vemos, ouvimos, gostamos, etc., que o
nosso organismo se acha num estado normal ou anormal, que sofremos ou gozamos.
Ora, esse testemunho é tão direto, espontâneo e irresistível, que é necessário — ou
admiti-lo como legítimo. — ou cair no mais completo e universal ceticismo. De fato,
ninguém, fora dos antigos céticos, contesta a veracidade do sentido comum.
b) Além disso, o sentido comum atinge a sensação dos sentidos externos enquanto
é subjetiva e adere ao sujeito senciente. Sendo assim, um engano será possível, se for
possível uma ação sem o objeto respectivo. Ora, isto é absurdo.
Para a solução das principais dificuldades contra a veracidade do sentido comum,
apresentamos os seguintes princípios: — 1º) Se, quando a nossa alma se acha absorvida,
com excessiva vivacidade, num pensamento ou num sentimento, o sentido comum
não percebe as modificações dos sentidos externos, a razão é porque essas modifica-
ções foram apenas materiais, e não vitais. — 2º) O sentido comum refere as sensações
subjetivas, como elas são: e, por isso, refere-as confusas, se são confusas, — distintas,
244 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
se distintas. A sua veracidade não exige mais. — 3º) Essa faculdade limita-se a atestar
os fatos internos: mas não emite nem pode emitir um juízo acerca da natureza ou da
causa desses fatos. Portanto, o erro relativo à natureza ou à causa dos fatos internos
deve imputar-se à imprudência da razão, e não ao testemunho do sentido comum. —
4º) O ato de perceber as sensações dos sentidos externos é próprio do sentido comum;
o ato de refletir voluntariamente sobre essas sensações é próprio da consciência. O
primeiro ato é permanente e essencial; o segundo é intermitente e acidental. — 5º)
As modificações orgânicas e sensíveis, se passarem a um estado permanente, deixam
de se manifestar ao sentido comum (porque a percepção de uma sensação exige uma
mudança no estado habitual do órgão), e só tornam a manifestar-se, quando se der
uma notável modificação nesse estado habitual.
b) A imaginação não se engana na percepção do seu objeto. Com efeito, o
ofício da imaginação é o de conservar e reproduzir as imagens sensíveis dos objetos
externos. Portanto, — ou ela não conserva e por isso, não reproduz essas imagens,
— ou as conserva e as reproduza. Se não as conserva, haverá nisso imperfeição, mas
não engano. Se as conserva e reproduz, não pode deixar de as conservar e reproduzir
fielmente. — Todavia, a imaginação pode ser ocasião de erro; enquanto a inteligên-
cia, habituada a dar um valor objetivo às próprias percepções, pode, sob a influência
daquela faculdade (que reproduz as imagens dos objetos, mesmo quando esses não
estão presentes), julgar como presente o que está realmente ausente. Mas, nesse caso,
o erro deve atribuir-se à inteligência.
c) A estimativa não se engana na percepção do seu objeto. Porquanto, os
juízos da estimativa ou são instintivos ou comparativos. Se são instintivos, são verdadei-
ros; porque a natureza de que derivam, não pode enganar. Se são comparativos, são
também verdadeiros; porque a razão, dadas as condições necessárias, é meio legítimo
para a aquisição da verdade.
d) A memória sensitiva não se engana na percepção do seu objeto. Na ver-
dade, ou conserva as sensações passadas, ou não as conserva. Se não as conserva,
mostra deficiência, mas não se engana: se as conserva, conserva-as como são, e
por isso, não se engana.
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 245
ARTIGO IV
Testemunho, suas espécies e transmissão
si mesma, nem nos princípios intrínsecos, — mas num princípio extrínseco, que é a autoridade.
No primeiro caso, o motivo da adesão é a autoridade da evidência; no segundo, é a evi-
dência da autoridade. — Por isso, a fé distingue-se da ciência, enquanto esta vê, e aquela
não-vê. Diz S. Tomás: “De ratione scientiae est quod habeat firmam inhaesionem cum
visione intellectiva; habet enim certitudinem procedeu tem ex intellectu principiorum.
Fides autem deficit a scientia in eo quod non habet visionem” (Sum. Th., 1-2, q. 67, a. 3).
E S. Agostinho já dissera: “Quid est fides? Credere quod non vides” (Tract.40 in Joan.).
Por isso, é preciso não confundir o magistério com a autoridade do mesmo
magistério. A verdade, proposta pelo magistério, pode o discípulo vê-la, pela luz da
própria inteligência, intimamente ligada com os primeiros princípios, e, neste caso,
adere a essa verdade, — não peta autoridade do magistério, — mas pela evidência da
coisa; e essa adesão é ciência. A verdade, proposta pelo magistério, pode o discípulo
deixar de a ver em si mesma, e, neste caso, se adere a ela, adere unicamente pela auto-
ridade do magistério; e essa adesão é fé. Portanto, o magistério não exclui a ciência.
A autoridade é constituída por dois dotes necessários e suficientes para que a
testemunha mereça crédito — a ciência e a veracidade. Em razão da ciência, a testemu-
nha não se engana; em razão da veracidade, não engana. — Alguns autores indicam
três requisitos para a autoridade da testemunha: capacidade, ciência e veracidade. Deve,
porém, notar-se que a capacidade está incluída na ciência; pois quem sabe, é capaz de saber.
O testemunho é mais breve, mais comum, mais seguro que os outros meios intrín-
secos. — É mais breve; porque, pela razão, chegamos a conhecer algumas verdades só
depois de muito tempo e de muitos esforços, ao passo que, pelo testemunho, conhecemos
muitas verdades em pouco tempo e com muita facilidade. — É mais comum porque
a maior parte dos homens, não podendo aplicar-se aos estudos, só pode receber a
verdade pelo testemunho, humano ou divino. — É mais seguro; porque a razão individual
está sujeita a freqüentes erros, ao passo que o testemunho humano é menos sujeito
ao engano, e o divirto é absolutamente infalível.
Os Kantistas, seguidos pelos modernistas, rejeitam toda e qualquer auto-
ridade, e admitem, como dissemos, a imanência como lei e norma de pensar. Diz
Blondel: “O pensamento moderno, com uma susceptibilidade ciumenta, considera
a noção de imanência como a condição própria da filosofia. É exatíssima a idéia que
nada pode entrar no homem sem que saia dele e não corresponda a uma necessidade de
expansão, — nada, nem como fato histórico, nem como doutrina tradicional, nem como
obrigação proveniente de fora; não há para ele verdade, que se aceite, nem preceito,
que imponha, sem que seja, de algum modo, autônomo ou autóctono” (Lettres sur les
exigences de la pensée contemp.).
Resposta. Concedemos que nada pode entrar no nosso espírito, sem que seja,
de algum modo, assimilado. Uma verdade, para se tornar nossa, deve ser percebida; o
ininteligível nunca será objeto da nossa inteligência. Mas negamos que a nossa inteli-
gência só deva admitir — as verdades, que nasceram dela, ou que ela descobriu, — ou
as verdades, que nos são agradáveis... Como poderá o método daimanência provar os
fatos históricos? Impossível. Um fato histórico, para ser autêntico deverá sair do nosso
espírito, ou corresponder às nossas necessidades de expansão? Não, com certeza. Um
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 247
não excedem as forças ou a compreensão da razão criada; de modo que a mesma razão,
entregue a si mesma, pode descobri-las e perceber o intrínseco nexo entre o sujeito e o
predicado. — Verdades sobrerracionais são as que excedem as forças ou a compreensão
da razão criada; de modo que a razão, entregue a si mesma, não as pode descobrir sem
a Revelação, nem, depois da Revelação, pode perceber o intrínseco nexo entre o predi-
cado e o sujeito. — As verdades sobrerracionais chamam-se, como indicamos, mistérios.
Expliquemos a natureza do mistério. — Mistério, em geral, é uma verdade
oculta. Uma verdade pode ser oculta por várias razões: — ou porque, embora seja por
si facilmente inteligível, contudo escapa à nossa experiência, tais são os segredos dos
corações; — ou porque, ainda que seja conhecida quanto à existência, contudo não se
percebe bem quanto à essência, assim dizemos que o mundo está cheio de mistérios; ou
porque não pode ser conhecida quanto à existência sem a Revelação, embora, depois
de revelada, facilmente se percebe quanto à essência, tais são todas as instituições de
caráter positivo, como, p. ex., a autoridade do Sumo Pontífice; — ou porque excede
por tal modo as forças ou a capacidade da razão criada, que sem a Revelação, não se
pode conhecer a sua existência, e, depois de revelada, não se pode demonstrar nem
perceber de modo algum a sua essência, ou o intrínseco nexo entre o sujeito e o predi-
cado. A verdade, que, por esse último modo, excede a capacidade da razão criada, é
e diz-se, própria e rigorosamente, mistério, que, por isso, se define: uma verdade, que
por si e absolutamente excede a capacidade da razão criada.
Advertimos que a distinção das verdades em racionais e sobrerracionais não se
funda em Deus, que é uma única e simplicíssima Verdade, mas, exclusivamente, na
capacidade da razão criada. — Advertimos também que o mistério se diz e é incom-
preensível, — não enquanto as palavras, que o exprimem, não tenham sentido algum
(como pretendem os racionalistas), — mas, enquanto, mesmo depois de revelado, a
razão criada não chega a compreender a essência dele, isto é, a intrínseca razão, pela
qual o predicado convém ao sujeito. Assim, no mistério da SS. Trindade, a nossa
razão percebe o que significa a unidade de natureza e a trindade de pessoas, embora
não compreenda porque e como podem três pessoas ser um só Deus. Por isso, quando
dizemos — Deus é uno na essência e trino nas pessoas, a afirmação da conveniência entre
o predicado e o sujeito funda-se exclusivamente na autoridade de Deus. — De onde
se vê a fatuidade dos incrédulos e racionalistas, quando dizem que os mistérios são
absurdos. O mistério, como dissemos, é um juízo composto de dois termos, cuja relação
é incompreensível para a inteligência criada. Se a relação entre dois termos de um juízo
é incompreensível, esse juízo não pode chamar-se absurdo. Porquanto, um juízo é
absurdo, quando compreendemos que o predicado repugna ao sujeito. Mas, se não se
compreende a relação entre os dois termos, não pode dizer-se que o juízo é absurdo,
nem que não é absurdo. Logo, os mistérios, por isso, mesmo que são mistérios, não
podem chamar-se absurdos. O que é sobre a razão, não pode dizer-se que é contra a razão.
c) A Revelação dos mistérios não repugna. — Se repugnasse a Revelação dos
mistérios, essa repugnância dar-se-ia — ou da parte de Deus, — ou da parte do homem,
— ou da parte dos próprios mistérios. Ora, essa repugnância não se dá — nem da parte
de Deus, — nem da parte do homem, — nem da parte dos próprios mistérios. — Não
250 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
se dá da parte de Deus; porque, com a manifestação dos mistérios, Deus não só não
deprime, nem humilha a nossa inteligência, mas, pelo contrário, eleva e nobilita essa
faculdade, descobrindo-lhe novos horizontes, que ela nunca teria podido descobrir.
— Nem sé dá da parte do homem; porque o homem, se não pode compreender os
mistérios, quanto à essência, percebe-os quanto à existência, e essa percepção desperta
em nós um elevado sentimento da grandeza de Deus e um grande amor pela sua
infinita bondade, que se revelou, de um modo inefável, sobretudo nos benefícios da
Encarnação, da Redenção e da Eucaristia. — Nem se dá da parte dos próprios misté-
rios; porque as verdades sobrerracionais não são contrárias às verdades racionais, e se
os mistérios não têm a certeza, que nasce da evidência do nexo entre o predicado e o
sujeito, têm a certeza, que nasce da evidência da autoridade divina.
d) Relações entre a Revelação e a ciência, ou entre a Fé e a razão.
a) Entre a Revelação e a ciência, ou entre a Fé e a razão, não pode haver verdadeira
oposição. Porquanto, a luz da Fé e a luz da razão são dois raios, que partem do mesmo
Deus, que é a Luz incriada e infinita de toda a verdade. Ora, se entre dois raios, que
derivam do mesmo princípio, pode haver e há distinção, não pode haver e não há
oposição; aliás haveria oposição no próprio princípio: o que é absurdo. — Se é verdade
uma conclusão da razão, é absoluta verdade um artigo da Fé. Oraaà verdade não pode
ser oposta à verdade, mas só à falsidade. Uma contradição certa entre uma verdade
da Fé e uma verdade da ciência é impossível.
b) A Fé e a razão prestam-se mútuo auxílio, cada uma em conformidade com a
própria índole. Diz o Concílio Vaticano: “Neque solum Fides et ratio iuter se dissi-
dere nunquam possunt, sed opem quoque sibi mutuam ferunt” (Const. Dei Filius, c.
IV). — A razão auxilia a Fé, ou a Ciência auxilia a Revelação, ou a Filosofia auxilia a
Teologia revelada; e vice-versa.
c) A razão auxilia a Fé. (S. Thom. in Boet., de Trinitate, q. II, a. 3).
Em primeiro lugar, a razão demonstra certas verdades, que são preâmbulos ou
pressupostos com relação à Fé, e à Teologia revelada; tais são a existência e a personali-
dade de Deus, a possibilidade e o fato da Revelação sobrenatural, etc. Ora, a Fé pressupõe
estas verdades. Porquanto, a Fé não é uma experiência do divino na nossa alma, come
pretendem os chamados modernistas, mas é uma firme adesão da nossa inteligência a
verdades, que não são por si evidentes e que nos são propostas pelo magistério divino.
Mas, para que a nossa inteligência possa aderir a verdades, que não são por si evidentes,
é necessário que conheça, anteriormente, que Deus falou e por isso, que Deus existe.
Sem esse prévio conhecimento, o ato de Fé não só seria irracional, mas até seria impos-
sível. E como estas verdades — a existência de Deus, o fato da Revelação, etc., — não
são imediatamente evidentes, devem ser demonstradas. Essa demonstração é o ofício da
razão, ou da Filosofia. Por isso, a Fé pressupõe a razão, ou a ciência.
Em segundo lugar, a razão, ou a Filosofia, dá noções exatas de alguns termos,
que se encontram nos artigos da Fé, ou se empregam na Teologia, como os termos
de essência, de pessoa, de substância, de acidente, etc. — Tocamos um ponto muito
melindroso, mas muito importante.
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 251
A Teologia revelada recebe os seus princípios, que são os artigos da Fé, não de
uma ciência natural ou criada, mas exclusivamente da ciência divina, pela Revelação
sobrenatural. Esses artigos são uma participação, uma impressão das verdades divi-
nas na inteligência humana. As verdades divinas não podem penetrar e imprimir-se
na inteligência humana senão enunciadas e concretizadas num juízo; porque é no
juízo, que, para nós, se encontra propriamente a verdade. Ora, quando Deus revela
sobrenaturalmente uma verdade, não infunde na inteligência humana as idéias, que
constituem o juízo, em que se concretiza a própria verdade (tal infusão é possível,
mas não é o meio ordinário da Providencia), mas serve-se das idéias, que já existiam
na nossa inteligência, estabelece entre elas uma união, que teria escapado a toda a
mente criada, e deste modo manifesta as suas verdades. As nossas idéias, de que Deus
se serve e que une num juízo, foram abstraídas das coisas criadas, e importam uma
analogia ou semelhança, ainda que remotíssima, com a bondade divina; porque em
todas as coisas criadas existe um vestígio, mais ou menos perfeito, da essência infinita.
Portanto, em toda e qualquer verdade revelada, ou artigo de Fé, devemos
distinguir dois elementos — o humano e o divino. O elemento humano é constituído
pelas idéias, que existem naturalmente na nossa inteligência e que Deus une num
juízo; o divino consiste na própria união dessas idéias, feita por Deus num juízo, que
exprime a verdade revelada. — O elemento humano pressupõe-se ao divino; porque,
se não existissem na nossa inteligência essas idéias, a verdade revelada seria incom-
preensível para o homem, como é incompreensível esta verdade natural — o todo
é maior que parte — para quem ignora o que é o todo e o que é a parte. — Todavia,
apesar dessa pressuposição do elemento humano, a verdade revelada deve chamar-se
e é simplesmente divina e nova. É divina; pois é Deus, e só Ele, quem une e associa as
idéias preexistentes na mente humana, e por isso, forma o juízo, que exprime a verdade
revelada, visto que o juízo não consiste nas idéias, consideradas isoladamente, mas
na união dessas idéias; assim atribui-se a um homem um juízo, embora ele não tenha
inventado os termos, que o compõem. É nova; porque novo é o nexo, nova a união entre
as idéias, — nexo e união, que, como dissemos, teria escapado à inteligência humana.
Advertimos que a verdade divina, considerada na nossa inteligência, é ina-
dequada em relação à mesma verdade, considerada na própria inteligência de Deus,
mas não é falsa. É inadequada; porque as idéias humanas, abstraídas das coisas criadas,
não podem exprimir a grandeza infinita. Mas não é falsa; porque, como dissemos, as
coisas criadas são um reflexo, uma semelhança, um vestígio das perfeições do Criador.
As idéias, de que se compõe uma verdade revelada, devera exprimir-se por
meio de termos orais em fórmulas dogmáticas. Esses termos nada acrescentam à
verdade; limitam-se a manifestá-la. A Igreja, à qual pertence formular os dogmas,
escolhe esses termos, e fixa o sentido deles. Pode a Igreja empregar um termo, que
é próprio de uma escola; mas, então seria absurdo dizer que a dita escola influiu
na concepção do próprio dogma. Se uma escola emprega um termo no sentido, em
que o emprega a Igreja, a conclusão é que essa escola está no caminho da verdade.
Dadas estas explicações, é fácil assinar à razão, ou à Filosofia, o seu ofício
com relação à Fé, ou à Teologia revelada. Esse ofício consiste — em aceitar a ver-
252 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
constante, não só entre os povos selvagens, mas também entre os civilizados, de modo
que não seja esquecido com o andar do tempo e com o aumento da cultura; — 2º)
deve convir com os princípios da razão, de modo que, reduzido a esses princípios,
manifeste mais claramente a sua verdade; — 3º) não deve provir da ignorância, ou
dos prejuízos, ou da corrupção dos costumes, ou da superstição, ou do interesse, ou
de outras semelhantes causas. — É claro que a universalidade, de que deve ser dotado
um juízo de senso comum, é a moral. Se um ou outro indivíduo contesta um juízo de
senso comum, nem por isso, enfraquece o testemunho da humanidade. Há monstros
também na ordem moral.
Os juízos de senso comum constituem o patrimônio, de que está dotado o
gênero humano e que a todos e a cada um dos homens serve imensamente para o
uso da vida. Nessa distribuição, a natureza não foi exclusiva, nem parcial. — Todos
os homens, mesmo os selvagens, por isso, mesmo que têm o bem da inteligência,
deduzem dos comuns princípios a razão, ou das naturais inclinações, esses juízos, e
os deduzem com um raciocínio espontâneo, embora vulgar e imperfeito por falta de
disciplina. De fato, não é nada difícil deduzir — da vista do mundo a existência de
Deus, — ou do desejo da felicidade a imortalidade da alma, etc. — O que deixamos
dito é confirmado pela história de todos os povos.
Estes juízos não podem derivar senão da natureza racional. Por quanto, devendo
a causa ser proporcionada ao efeito, um efeito constante, universal e comum, como
é todo o juízo de senso comum, só pode derivar de uma causa constante, universal e
comum. Ora, a causa, dotada destes caracteres, não pode ser senão a natureza racional,
porque só esta, no meio de tantas divergências de opiniões, de estudos, de hábitos, de
caracteres, etc., existe sempre, por toda a parte, em todos os homens. Com razão escreve
Cícero: “Omni in re, consensio omnium gentium lex naturae putanda est”. (Tuscul.,
l. 1, n. 13). — Derivando da natureza racional, os juízos de senso comum não podem
ser falsos, ou errôneos; porque a natureza racional, feita ou criada unicamente para
alcançar a verdade, não está por si sujeita a engano. O erro deriva sempre de uma
causa contingente, particular, como é a ignorância, o prejuízo, a paixão, etc. A própria
natureza pode, por uma destas causas, desfalecer num ou noutro indivíduo, mas não
é possível que desfaleça em todos. (C. Gentes, l. II, c. 34).
De onde se vê — que a causa, ou o princípio, de onde derivam os juízos de
senso comum, é a razão humana, — e que o senso comum é a própria razão natural,
enquanto, sempre e em toda a parte, leva os homens a admitir verdades, imediata
ou mediatamente evidentes, sobretudo as que nos são necessárias para a vida física,
intelectual e moral.
Os tradicionalistas encontram essa causa exclusivamente na revelação, feita
por Deus ao primeiro homem e transmitida às seguintes gerações. — O erro desses
escritores está todo nesse advérbio exclusivamente; porque concedemos que a causa
adequada de muitas verdades, tidas como juízos do senso comum, seja o reto uso da
razão e a revelação primitiva.
Reid opina que o senso comum é um cego instinto da natureza, pelo qual somos
determinados a admitir as verdades fundamentais, não porque as vemos claramente,
256 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
mas porque uma força irresistível não nos deixa duvidar acerca delas. Balmes acres-
centa que o senso comum é um meio especial, que é distinto dos outros e que pode
chamar-se instinto intelectual. — Mas estas opiniões são falsas. A adesão da huma-
nidade a certos juízos fundamentais não é determinada por um instinto cego, mas
unicamente pela intuição da verdade; porque esses juízos ou são imediatamente
evidentes, ou percebem-se por um facílimo raciocínio. Além disso, a admissão de
um cego instinto intelectual deprime a natureza racional, tira à ciência a dignidade
de racional, e favorece o ceticismo.
Alguns dos modernos anti-intelectualistas, como Bergson, admitem, em teoria,
a força do senso comum, mas, na prática, contestam-na. Outros, como Le Roy, negam
que os juízos do senso comum (como também as verdades reveladas) tenham um valor
intelectual, e afirmam que esses juízos têm apenas a razão de preceitos ou regras para a
vida prática. Assim, o axioma, p. ex., 2 + 2 = 4 não contém nenhuma verdade racional,
mas nos insinua que devemos operar, como se 2 + 2 fossem = 4. — Mas essa teoria,
longe de ser uma explicação, é uma mutilação do senso comum. Os axiomas tiram a
força, não da utilidade, mas unicamente da verdade.
Identificando-se o senso comum com a inteligência e a razão, é claro — que aquele
não constitui um meio, distinto destes dois, — e que os seus juízos têm uma certeza
metafísica ou moral, conforme a natureza dos objetos. — Todavia o senso comum, pelo
fato de ser citado como autoridade, coloca-se também entre os meios extrínsecos, é
uma coisa moral e os seus juízos têm uma certeza moral, e não metafísica.
*
Se o testemunho humano-dogmático é infalível quanto aos juízos de senso comum,
não o é quanto a outros juízos. A inteligência humana pode errar e erra. Ora, um
testemunho, que está sujeito a erros, não pode produzir certeza, mas apenas uma
opinião, mais ou menos provável, segundo a maior ou menor autoridade das teste-
munhas. Por isso, o testemunho humano, quando ensina um dogma, ou uma verdade
científica, não é por si, enquanto testemunho, um meio infalível para a aquisição da
verdade. — Todavia esse testemunho é muito útil, porque leva a inteligência à des-
coberta da verdade; — e não só é útil para os ignorantes, que não têm a capacidade de
descobrir a verdade, de onde o adágio: peritis in arte credendum, — mas também é útil
para os sábios, que não podem abranger a esfera toda dos conhecimentos humanos,
e por isso, devem aceitar dos outros sábios as verdades, relativas a um ou outro ramo
de ciência. Aceitando esse testemunho, pode o homem enganar-se; mas, como diz S.
Agostinho, “etsi auctoritate decipi miserum sit, longe tamen est miserius ab eadem
non commoveri” (De util. credendi. c. 16).
Falamos na autoridade do testemunho humano-dogmático, enquanto é auto-
ridade. É neste sentido que S. Tomás diz: “Locus ab auctoritate, quae fundatur super
rationem humanam, est infirmissimus” (Sum. Th., p. I, q. 1, a. 8 ad 2). Por quanto,
se um homem aceita uma verdade proposta por outro, e aceita essa verdade, não
porque proposta por outro, mas porque fundada em boas razões, nesse caso não é
a autoridade o critério da doutrina, mas a doutrina é o critério da autoridade, e, por
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 257
meiro objetivo, e assim conclui para a existência da alma, do mundo e de Deus. Mas,
se ela chega a tais conclusões, nem por isso, esses existem fora de nós; o termo do
raciocínio é tão subjetivo, como o é o seu princípio. Porquanto, se se pretendesse
que a realidade fosse conforme com os discursos da razão, seriam inumeráveis as
antinomias, ou contradições, em que ela havia de cair fatalmente.
As principais antinomias são as quatro seguintes:
1ª) O mundo teve começo no espaço e no tempo, ou não teve;
2ª) O mundo resulta de elementos simples, ou compostos;
3ª) A liberdade existe no mundo, ou não existe;
4ª) Existe uma causa necessária do universo, ou não existe.
Em cada uma destas proposições disjuntivas, a tese está em contradição com
a antítese; e, todavia, os argumentos, que se aduzem em favor de uma, têm o mesmo
valor dos argumentos, aduzidos em favor de outra. Como poderá a razão sair desta
obscuridade e livrar-se desta tortura? O remédio é fácil. Essas proposições são con-
traditórias na ordem dos númenos, isto é, das realidades objetivas, mas não são tais
na ordem dos fenômenos, isto é, das aparências. Se se suprimir a realidade objetiva,
que se opõe à conciliação e à verdade de duas proposições contraditórias, cessará
toda a contradição; já não haverá motivo para controvérsias; a tese e a antítese serão
ambas verdadeiras; haverá a verdade subjetiva, que consiste na concórdia das idéias; e
isso basta. “Então as duas partes ficarão convencidas de que, se podem confutar-se
mutuamente, é porque discutem por um nada, e uma certa aparência transcendental
lhes representou (no tempo e no espaço) uma realidade, que não existia. A questão
não existe, porque não existe um objeto determinado; a questão, portanto é essen-
cialmente inútil, destituída de sentido... O vosso objeto só existe na vossa cabeça e
não pode existir fora dela” (Crítica da razão pura).
Todavia as verdades, que se referem à alma, ao mundo, a Deus, e que a razão
especulativa ou teorética não pode demonstrar, são promulgadas pela razão prática. Por-
quanto, a razão prática, inculcando que se deve evitar o mal e fazer o bem, deve implícita
e necessariamente admitir a liberdade e a imortalidade da alma, a realidade do mundo e
a existência de Deus; porque, se não se admitirem estas três verdades, não é possível
evitar o mal e fazer o bem. — A razão prática não demonstra estas verdades, atinge-as
pela fé, isto é, por uma certeza subjetiva e destituída de evidência; de modo que a alma,
o mundo, e Deus se apresentam como postulados, necessários e inexplicáveis. Assim
a fé toma o lugar da ciência.
Tal é a teoria de Kant acerca do conhecimento humano. A coisa é abstrusa,
mesmo porque o escritor alemão teve o gosto — de empregar algumas palavras estra-
nhas para exprimir as linhas fundamentais do sistema, — de mudar a significação usual
de muitas outras, — e, sobretudo, de ser obscuro para se mostrar profundo. A sua
vaidade levou-o a comparar-se com Copérnico; porque, assim como Copérnico fez
uma revolução na Astronomia, mostrando que não é o Sol que gira em volta da terra,
mas é a terra que gira em volta do Sol, assim também ele, Kant, fez uma revolução
na Filosofia, mostrando que não é a inteligência que se acomoda às coisas, para as
conhecer como são em si mesmas, mas são as coisas que se acomodam à inteligência,
260 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
revestindo as formas, que ela lhes aplica. — Todavia, nem o mérito da invenção é
devido a Manuel Kant. Há muitos séculos, Protágoras tinha dito: o espírito é a medida
(forma) das coisas, e não são as coisas a medida (forma) do espírito (Cf. Aristot., XI
Metaf., c. 5); e por esse seu ceticismo foi exilado de Athenas. Nos tempos mais recentes,
e anteriormente a Kant, tinham ensinado, com menos exagero, embora com maior
incoerência, essa teoria, entre outros. Descartes, Leibniz, Malebranche, Reid, Cousin,
sobretudo Hume, tanto que escreveu Compayré: “Ce n’est pas Kant, c’est Hume qui a
fondé la philosophie critique” (La philosophie de David Hume). — Não é nossa intenção
de refutar aqui todas e cada uma das animações de Kant: algumas já foram refutadas,
e outras o serão no decurso deste livro.
*
O criticismo de Kant é falso — nos seus fundamentos, — na sua essência, — nas
suas consequências.
A) É falso nos seus fundamentos.
a) O sistema parte de um princípio, que é a dúvida do valor da razão: e, para
averiguar se essa dúvida é, ou não, atendível, serve-se da mesma razão, e por isso, já
supõe como certo o que dá por duvidoso. A contradição é manifesta. — Se é natural
e legítimo que a nossa razão, suposta sempre a própria aptidão para alcançar a cer-
teza, reflita sobre os seus atos e reconheça os processos, que seguiu na investigação
da verdade; é ilegítimo e absurdo que se pretenda formar raciocínios e organizar
sistemas, quando não só se duvida da legitimidade da razão, mas se sustenta que
tudo é uma mera ilusão.
b) Um dos fundamentos do criticismo é a lei da imanência. Diz o escritor alemão
que o conhecimento, sendo um fato da consciência, não pode atingir o que está fora
dela, e por isso, é impossível a percepção da coisa em si mesma, do númeno. — Mas
essa base é insubsistente. O conhecimento é um fato da consciência, é um fato subjetivo
quanto ao seu princípio, que é a faculdade cognitiva: mas não é subjetivo quanto ao
termo, que é o objeto conhecido. Uma coisa conhecida em si mesma não se altera pelo
fato de ser conhecida, mas permanece sempre no seu estado de absoluta; porque não
é ela que se transforma na inteligência, mas é a inteligência, que, atuada pela forma
da coisa, lhe se torna semelhante, atingindo-a como é em si mesma, de modo que há
adequação entre o conceito da inteligência e a realidade da coisa.
c) Kant admite também que o nosso espírito, extraindo do próprio fundo
a verdade toda, é autônomo, isto é, independente de todo o objeto e de toda a regra
extrínseca da verdade, e por isso, deve rejeitar todo o elemento, que não é imanente
e autóctone, quer nas construções das ciências físicas, quer na elaboração das ciências
lógicas e morais. — Mas, se assim fosse, como opina Kant, para que havia os sábios
de suar tanto para interrogar a natureza e arrancar-lhe os segredos? E se eles julgam
indispensável meter-se em comunicação com os objetos externos, a razão é porque
essa comunicação fornece dados, que podemos conhecer. — Se o nosso espírito não
é independente dos objetos externos, nem é independente das leis lógicas e morais.
Estas leis dominam o homem, impõem-se imperiosamente à sua inteligência e à sua
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 261
vontade. Se são interiores, enquanto se tem consciência delas, são exteriores, enquanto
se impõem a cada um de nós. O homem percebe-as como verdadeiras, mas não é ele
que as torna tais. A ordem das coisas, que essas leis exprimem, é essencial e imutável,
e ficaria sempre a mesma, embora a razão do homem se escurecesse na loucura, ou
a sua vontade se corrompesse no vício.
d) A autonomia de nossa inteligência, se é uma glória, é também, segundo
Kant, uma necessidade, visto que, na percepção, o sujeito, que percebe, e o objeto,
que seria percebido, são separados por um abismo insuperável. — Ora, é falso que o
objeto seja sempre inacessível à faculdade perceptiva. Quando se trata da percepção
do sentido comum e da consciência, o sujeito e o objeto não somente não são distintos,
mas identificam-se. É impossível que o sujeito se separe do objeto e que o não atinja.
O sujeito consciente percebe-se a si mesmo imediatamente, como uma existência e uma
realidade certíssima, e descobre em si mesmo uma multidão de atos vitais, sensitivos,
intelectuais, de idéias objetivas. Dizer com Kant que nos percebemos a nós mesmos
através de formas a priori da nossa mentalidade, que alteram todos os objetos, mesmo
os objetos internos da consciência, é emitir uma hipótese gratuita e contraditória: —
gratuita, porque não só não se baseia em nenhuma experiência, mas é contrária a
toda a experiência, — contraditória, porque uma percepção sem um objeto percebido
é uma contradição... Quando se trata da percepção sensitiva externa, também neste
caso o sujeito e o objeto não estão distantes. O ato do agente encontra-se no paciente,
do modo que o agente e o paciente se acham reunidos num todo completo. Sendo
assim, é claro que o paciente, ou o sujeito, não precisa de sair de si mesmo, fora da
sua pele (como dizem os adversários), para perceber o agente, ou o objeto. É, pois,
falso que entre o objeto e o sujeito corra um abismo, que não é possível transpor.
B) É falso na sua essência.
a) A essência do criticismo consiste principalmente na hipótese das formas
inatas, a priori, que existiriam em gérmen no fundo do espírito e de que derivariam
a determinação, a necessidade, a universalidade, para os fenômenos da sensibilidade, para
os juízos da inteligência e para os princípios da razão. Ora, essa hipótese é gratuita,
inútil, irracional.
a) É gratuita. Ninguém tem consciência da existência de tais formas: e Kant
não aduz nenhum argumento sério. Existem certamente na inteligência humana
conceitos universais, que se aplicam às coisas singulares: mas esses não são meras
ilusões, não derivam a priori, espontaneamente, do fundo do espírito, mas têm o
seu fundamento num princípio extrínseco à nossa inteligência, nas próprias coisas
singulares, e por isso, não são formas impostas às coisas pela inteligência, mas são
formas impostas à inteligência pelas coisas.
b) É inútil. Kant admite as formas a priori, para explicar as notas de universali-
dade e de necessidade, que se encontram nos nossos pensamentos. Ora, para isso, não
era necessário recorrer a essas formas a priori. Desde o momento que se reconheça,
como é necessário reconhecer, que a nossa inteligência tem a força de penetrar no
âmago das coisas e descobrir nelas umas notas de universalidade e de necessidade, per-
cebe-se imediatamente que o conceito universal e o necessário têm o seu fundamento
262 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
nos objetos singulares e contingentes. — O que se diz dos conceitos, deve aplicar-se aos
juízos e aos princípios, que, sendo constituídos pelos conceitos, devem ter e têm o seu
fundamento, não numa necessidade subjetiva, mas numa realidade objetiva, extrínseca
ao ato cognitivo.
c) É irracional. Porquanto, todos os homens estão convencidos de que alguns
conceitos, como o da quantidade, da qualidade, etc., não são coisas subjetivas, como
afirma Kant, mas representam coisas objetivas, independentes do nosso pensamento.
— Além disso, se os conceitos universais e necessários não pudessem derivar da expe-
riência, por ser essa singular e contingente, nem poderiam derivar do nosso espírito,
que também é singular e contingente; porque omne agens agit sibi simile. — Ademais:
os conceitos de Kant são puros, isto é, sem conteúdo, sem matéria; ora, o conceito é
necessariamente o conceito de alguma coisa, e por isso, deve ter um conteúdo: aliás,
deixará de ser conceito, e será uma espécie de círculo quadrado.
b) Kant admite duas formas inatas e abstratas na sensibilidade: a do espaço e a
do tempo. Antes de tudo, não se concebe como é que formas abstratas possam ter por
princípio e por sujeito uma faculdade material e concreta, como é a sensibilidade. —
Além disso, todos os homens estão convencidos de que a experiência sensível percebe
certas determinações, ou formas, e, entre outras, a do espaço e do tempo, como inerentes
aos objetos externos, e independentes do nosso ato perceptivo. Separar, como faz
Kant, da forma pura do fenômeno, isto é, da forma subjetiva do espaço e do tempo, a
impressão sensível, que procede do objeto, é uma arbitrariedade sem fundamento.
— Ademais: na teoria de Kant, a matéria das nossas sensações, indeterminada por si
mesma, é determinada pelas formas inatas da sensibilidade; e assim a variedade, que
se encontra na figura e na duração dos objetos, depende exclusivamente do nosso
conhecimento. Ora, essa conclusão é contrária à experiência, a qual atesta — que a
variedade na figura e na duração das coisas é independente do nosso conhecimento,
— e que o nosso espírito não pode introduzir nessas representações do espaço e do
tempo a mais leve alteração ou mudança. — Finalmente, Kant admite a existência
da realidade extensa, embora dela só possa saber-se que é extensa, e acrescenta que
temos a representação da extensão pela aplicação da forma subjetiva do espaço. Ora,
isto também é contrário à experiência. Não é a idéia da extensão que deriva da idéia do
espaço, mas é a idéia do espaço, que, pela abstração e reflexão, deriva da idéia da extensão.
c) Com relação às formas inatas da inteligência, além das observações feitas,
apresentamos as seguintes.
a) Kant, fazendo a crítica da razão pura, começa pelo juízo, porque diz que
julgar é pensar, descobre os célebres juízos sintéticos a priori, e, para explicar as notas de
necessidade e universalidade, que se encontram nesses juízos, recorre às formas inatas
a priori, latentes no fundo do nosso espírito. — Uma arbitrariedade a apoiar outra
arbitrariedade!... Mas devemos notar o seguinte: Kant começa pelo juízo e omite a
questão importantíssima da noção, ou da idéia. Antes de investigar o modo porque
um predicado convém a um sujeito, é necessário conhecer a origem e o valor objetivo
desses termos. — Kant ocupou-se do juízo, do composto, e não das partes componentes;
e como o juízo não representa a realidade senão pelos seus termos, é claro que, pres-
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 263
favoráveis à tese não o são à antítese, e por isso, que a inteligência deve aceitar uma
parte das antinomias, e excluir outra. — Só acrescentaremos que o remédio, que foi
proposto por esse escritor para aliviar as torturas da razão e que, como vimos, consiste
na supressão da realidade objetiva, não é nada eficaz para o escopo. Porquanto, essa
supressão, se faz desaparecer o conflito do espírito com o objeto, não faz desaparecer,
antes intensifica o conflito do espírito consigo mesmo, enquanto ele é condenado a
uma perpétua ilusão, — recebendo ou formando representações, que nada representam,
— julgando como objetivas as propriedades das coisas externas, que afinal são apenas
modos da percepção e afecções do sujeito, — e admitindo a identidade e a verdade
simultânea de duas proposições contraditórias. E será essa uma concórdia de idéias?!...
Não admira, portanto, se a solução de Kant não satisfez ninguém. Alguns dos seus
sequazes, mais coerentes que o mestre, despenharam-se no fundo de um absoluto
ceticismo; outros, levados pelo instinto da reação, abraçaram o mais intemperante
dogmatismo. — Mas Kant confiava tanto na sua descoberta, que desejou aplicá-la
também ao regime das nações. Dizia que a metafísica divide os povos, porque admite
a realidade objetiva, e que, suprimida essa realidade, já não haveria motivo para lutas
entre os diversos países. Para esse sistema de pacificação, chegou a pedir o favor dos
Governos de então; ninguém atendeu ao pedido: só a Convenção nacional de França
lhe respondeu, honrando-o com o título de cidadão francês!...
Se Kant não trata bem a razão especulativa, declarando-a incapaz de perce-
ber a realidade e sujeita a perpétuas ilusões, não trata melhor a razão prática. Essa
também é cega; e, se admite algumas verdades, como a liberdade e a imortalidade da
alma, a realidade do mundo, a existência de Deus, admite-as, não como conclusões de
uma demonstração, mas unicamente como postulados, atingidos pela fé, isto é, por
uma certeza subjetiva, e destituída de toda evidência. A que estado reduziram esses
filósofos transcendentais a pobre razão humana!... Mas escutemos o que diz acerca
destes postulados de Kant um célebre escritor, que por fim percebeu toda a vaidade e
o absurdo deste sistema. Falamos de Ausonio Franchi, que na Última crítica escreve as
linhas seguintes: “Absurda e impossível torna-se toda a saída da consciência (razão
prática) fora de si mesma e toda a percepção de verdades transcendentes, apesar de todo
o recurso a qualquer postulado. E por onde havia de ir a consciência, saindo fora de si,
se fora dela não há nada? E como poderia ela conhecer as verdades transcendentes,
se além ou acima dela não há nada? Os postulados, que haviam de fazer o grande
milagre, referem-se à existência de Deus, à liberdade e à imortalidade da alma. Pois
bem, postular seriamente a existência de Deus, quando se tem dito que Deus com a
sua existência é um abismo de contradições, postular a liberdade e a imortalidade da
alma, quando se tem dito que a alma é um ente imaginário, não é porventura postular
que a filosofia se transforme em comédia, e que a razão se reduza por si, de propósito,
ao estado de loucura raciocinante? É certo que se alguém raciocinasse deste modo em
qualquer outra matéria, nas ocorrências da vida privada, doméstica, civil, seria tido
por todos, sobretudo pelos criticistas, como um demente digno de ser recomendado
à psiquiatria e ao manicômio; e deverá depois admirar-se como eminentemente
científico e superlativamente filosófico esse modo de raciocinar sobre matérias de
metafísica e de psicologia? (Vol. II, p. 430).
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 267
e) O criticismo, falso nos seus fundamentos e na sua essência, não é menos falso
nas suas consequências; porquanto, é a destruição da verdade, da ciência experimental,
da ciência especulativa, da ciência prática.
a) É a destruição da verdade. — A verdade, como dissemos, consiste na confor-
midade do nosso pensamento com as coisas: “Veritas consistit in adacquatione intellectus et
rei” (Sum. Th., p. I, q. 21, a. 2). Ela é imutável; porque fixo ou imutável é o elemento
objetivo, com que o pensamento se conforma. Mas, como no sistema de Kant não
há uma verdade ontológica fixa e imutável, ou, se há, é para nós completamente desco-
nhecida, nem, por consequência, pode haver uma verdade lógica. — No entretanto,
não querendo suprimir o vocábulo de verdade, desvirtuaram-lhe o sentido, dizendo
que a verdade consiste na concórdia das idéias, e que por isso, é a visão do que nos
parece, e não do que é. Essa seria a verdade subjetiva, e por isso, mutável e subjetiva,
em oposição à verdade objetiva, e por isso, fixa e absoluta. Daí a negação de todo o
dogma, filosófico e teológico.
b) É a destruição de toda a ciência experimental. — Porquanto, se o homem
pode perceber unicamente as próprias idéias, e não pode, de modo algum, atingir
os objetos como são em si mesmos, toda a ciência experimental será apenas a ciência
das nossas idéias, será uma psicologia. Diz S. Tomás: “Si ea quae intelligimus, essent
solum species, quae sunt in anima, sequeretur quod scientiae omnes non essent de
rebus, quae sunt extra animam, sed solum de speciebus intelligibilibus, quae sunt in
anima” (Sum. Th., p. 1, q. 85, a. 2). — É verdade que Kant quis limitar o seu ceticismo,
ou agnosticismo, ao domínio do sobressensível, ou da metafísica, e pretendeu ser
dogmático no domínio da experiência, quer nas ciências físicas, quer nas ciências
matemáticas e geométricas, que também são, de algum modo, experimentais; mas não
é com isso que se salva o valor das ciências experimentais. Porquanto, segundo Kant,
a própria percepção experimental, quer no seu conjunto quer nos seus elementos,
não passa, como vimos, de uma construção ou criação do espírito, que é determinada
pela natureza do sujeito pensante, e que seria diferente, se fosse diferente essa natu-
reza. Por isso, a ciência experimental não apreende o que é na realidade, mas apenas
os efeitos psicológicos do nosso espírito, proporcionados à sua estrutura e às suas
disposições presentes. Tudo é, pois, subjetivo. Os sábios, quando dizem que apresen-
tam os fenômenos astronômicos, físicos ou biológicos, não apresentam realmente
senão fenômenos psicológicos, que não têm relação alguma com os primeiros. Será
admissível tão grande desvario?... Não, com certeza. Não é o acordo de uma idéia
com outra idéia, que os sábios pretendem atingir, — mas é o acordo, cada vez mais
exato e perfeito, das suas idéias com a realidade, com os fatos, com as leis da natureza.
c) É a destruição de toda a ciência especulativa. — Porquanto, é possível por-
ventura uma ciência exclusivamente subjetiva? Não é possível. O acordo de várias
idéias falsas, embora logicamente ordenadas entre si, não pode constituir a verdade.
— Mas nem esse acordo é possível. Com efeito, todo o acordo deve ser regulado por
princípios. Mas, se, para os Kantistas, não existe nenhum princípio absolutamente
certo, a não ser o princípio de contradição, — e se esse mesmo princípio é, como os
outros princípios, um hábito cego e inato de alguns espíritos, de que outros podem
268 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ser destituídos, — não temos a certeza absoluta de que não podemos atribuir e negar,
ao mesmo tempo, a mesma coisa à mesma idéia. E, não tendo essa certeza, nem pode-
mos estar certos de ter alcançado o acordo entre as nossas idéias, e o próprio acordo
é impossível. Desse modo, passa-se fatalmente do ceticismo objetivo e parcial para o
ceticismo subjetivo e total, para o niilismo do pensamento. A destruição da ciência
objetiva traz consigo a destruição de toda a ciência, mesmo da subjetiva.
d) É a destruição de toda a ciência prática. — Kant admite que a lei do dever
proclama, no fundo das nossas consciências, a distinção entre o bem e o mal. Mas
perguntamos: As idéias morais de dever, de bem, de mal, etc., são objetivas, ou mera-
mente subjetivas? Se são objetivas, porque rejeita ele a objetividade das idéias teoréticas?
— Se são meramente subjetivas e ilusórias, com qual direito poderá ele impô-las a si
mesmo e aos outros? Kant responde que não pode impor essas idéias a ninguém por
meio de uma demonstração; limita-se a impô-las a si mesmo por um ato de fé; crê
no dever, na liberdade, na sanção divina, na imortalidade da alma, e crê porque sente
a necessidade de crer. Por isso, esse ato de fé é cego, não é racional nem humano. E
assim a Moral, a mais imperativa das ciências, funda-se numa crença cega, que não
pode impor-se a ninguém! — Foram, portanto, lógicos os discípulos de Kant, trans-
formando a Moral obrigatória em Moral facultativa, e desvirtuando as idéias de dever,
de liberdade, etc. Para eles, a Moral não passa de uma técnica, de uma arte, sem um
ideal certo, sem preceitos certos, sem obrigações, sem sanção. Se uma doutrina não
é criadora de forças e de felicidade senão pela certeza, que tem e que dá, concluímos
que o criticismo, tendo destruído pela base a certeza, deve aniquilar todas as forças
de ação e toda a felicidade da vida humana.
Não podemos deixar de advertir que esse ceticismo de Kant não só destrói a
verdadeira Filosofia, mas também a Teologia revelada. Se o homem não pode nem
deve aceitar nenhuma regra extrínseca de verdade absoluta e superior a ele; se ele
deve rejeitar tudo o que não é o produto imanente da própria personalidade, toda
a autoridade — divina e humana — é posta de parte, como coisa absurda ou inútil.
Nada de testemunho externo, nada de Revelação sobrenatural. O que se chama dogma
deve sair, como toda a crença e toda a regra de vida, do fundo íntimo do homem,
deve ser o fruto do esforço vital da alma. A religião, que se diz revelada, é o produto
espontâneo da consciência humana, que vai procurando um ser superior. Os dogmas
são concepções provisórias, sujeitas a mudanças e a progressivas evoluções, tendo por
norma unicamente a lei do progresso humano. (Cf. Farges, La crise de la certitude;
T. Pesch, le Kantisme).
*
Os neokantistas, para salvar de algum modo a certeza objetiva dos nossos
conhecimentos, modificaram o sistema do mestre, e assim nasceram o voluntarismo,
o pragmatismo, o dogmatismo moral, e o anti-intelectualismo. — Poucas palavras para
cada uma destas opiniões.
a) Voluntarismo. — Foi ensinado por Renouvier, — o verdadeiro fundador do
neocriticismo, e seguido por Secretan. Afirma que a certeza objetiva dos nossos conhe-
CAPÍTULO SEGUNDO – MEIOS PARA AQUISIÇÃO DA VERDADE 269
CAPÍTULO TERCEIRO
Método
ARTIGO I
Ponto de partida — Verdades imediatamente evidentes
ser universal, sem excetuar a própria evidência. — Ora, isso não é impossível. Sendo
o estado primitivo do nosso espírito uma tábua rasa, na qual nada está escrito mas
tudo se pode escrever e se vai escrevendo gradualmente, é claro que, pela reflexão,
podemos regressar a esse estado inicial, seguir a gradual evolução das nossas certezas,
espontâneos ou adquiridas, e determinar a razão e o modo porque cada uma delas
se gravou tão profundamente na nossa inteligência, que nenhuma dúvida real tem
podido abalar. O resultado desse exame psicológico seria — não só a eliminação
de muitas opiniões vencivelmente errôneas, produtos de prejuízos, de paixões, de
leviandades, — mas também a convicção de que muitas certezas, — como a existência
do mundo e de nós mesmos, a aptidão natural das nossas faculdades perceptivas,
etc., foram adquiridas, não pela cega propensão da nossa mentalidade, mas pela
evidência imediata das coisas. Deste modo, a evidência objetiva aparecer-nos-ia como
o motivo da todas as nossas certezas. — Nem há aqui uma contradição. Contradição
haveria, se admitíssemos a evidência, depois de se ter negado ou duvidado dela de
um modo positivo. Mas não fizemos isso. Admitimos efetivamente a evidência
antes do exame reflexo: só, no decurso desse exame, fizemos abstração de todas as
nossas certezas evidentes, ficamos indiferentes com relação a elas, para adquirirmos
a convicção de que essas certezas tinham efetivamente por motivo a evidência obje-
tiva. Uma coisa é a dúvida positiva, proveniente de uma razão positiva de duvidar;
outra coisa é a dúvida negativa, proveniente de uma ignorância fictícia de todas as
certezas espontâneas, mesmo, da evidência. É essa dúvida fictícia e universal o ponto
de partida na descoberta da verdade. S. Tomás diz da Metafísica: “Ista scientia sicut
habel universalem considerationem de veritate, ita etiam ad eam pertinet universalis
dubitatio de veritate; et ideo non particulariter sed simul universalem dubitationem
prosequitur” (In III Metaph., lec. I). Esse exame, pela verificação das nossas certe-
zas, faz com que — a nossa confiança espontânea na aptidão das nossas faculdades,
e na evidência objetiva, se transforme em confiança reflexa, — as nossas certezas
naturais se tornem certezas científicas, — e o acordo entre a atividade espontânea e
a atividade reflexa da nossa natureza, posto agora em evidência, nos convença de
que a máquina humana está maravilhosamente organizada.
b) Se, porém, se trata, não de descobrir, mas de demonstrar aos outros uma
verdade já descoberta, então é evidente que o ponto de partida, se pode ser a dúvida
particular, pelo menos fictícia, da verdade demonstrável, não pode ser a dúvida universal,
nem real nem fictícia. Uma discussão com um adversário, ou com um discípulo, deve
partir — de verdades, anteriormente admitidas por ambas as partes, — de princípios, já
demonstrados ou admitidos e capazes de servirem de premissas para a demonstração.
Sem isso, toda a demonstração é absolutamente impossível. Assim como nada poderia
mover-se, se tudo precisasse de ser movido; assim também nada poderia provar-se, se
tudo precisasse de ser provado. O movimento do pensamento, como todo e qualquer
movimento, precisa de um motor não movido, ou imóvel. Concluímos que o ponto
de partida, na demonstração, não pode ser a dúvida universal, nem real nem fictícia.
Dissemos que o ponto de partida pode ser a dúvida particular, pelo menos
fictícia, da verdade demonstrável. Qual é a índole dessa verdade, de que podemos legi-
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 275
*
Agora algumas palavras acerca do sistema de Descartes, relativo à presente
questão. Esse escritor, no livro “Discours de la méthode”, estabelece a dúvida universal
como o ponto de partida nas investigações e demonstrações científicas, e como meio
seguro para distinguir a verdade da falsidade. Damos o resumo do sistema. — O
homem, para levantar em bases firmes o edifício científico, deve colocar-se no estado
de dúvida universal. Mas, principiando a duvidar de tudo, logo percebe, pelo testemunho
da consciência, que não pode duvidar da existência do próprio pensamento; porque
duvidar é pensar. Admitida a existência do pensamento, deve admitir a existência
do sujeito pensante. Daí a sentença: penso, logo existo. Essa sentença é o primeiro
princípio, o fundamento de toda a filosofia, e dela deriva o grande critério: tudo o
que é conhecido clara e distintamente, é verdade. Em seguida, analisando os objetos do
pensamento, encontra na sua inteligência a idéia do infinito. Nessa idéia percebe-se
claramente a existência de Deus. Logo, Deus existe. Se Deus existe, o homem não
pode enganar-se — nem na percepção das verdades imediatamente evidentes, — nem
na percepção dos fenômenos externos; aliás o erro refundir-se-ia no próprio Deus,
Autor das faculdades humanas.
Do livro citado não aparece claramente se a dúvida universal é, para Descartes,
real, ou apenas fictícia. É certo, porém, que esse escritor não é cético; porque a dúvida
universal não é para Descartes, como é para os céticos, o termo das investigações, mas
é apenas o início, de que parte para chegar à certeza.
Todavia, o sistema não pode admitir-se pelas seguintes razões:
a) A dúvida universal é, para Descartes, real ou fictícia. — Se é real, ela é impossível
como estado normal do nosso espírito. Há verdades tão evidentes, que se impõem ao
nosso espírito, sem nos deixarem a possibilidade da dúvida. — Se é fictícia, é impos-
sível como fundamento das demonstrações. Duvidando de tudo, mesmo dos primeiros
princípios da razão e da nossa capacidade de alcançar a verdade, não é possível resolver
276 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
a dúvida por meio do raciocínio, que supõe, como coisas certas, aqueles princípios
e aquela capacidade. Diz muito bem Rabier: “Descartes meteu-se no estado de um
homem, que, pelo receio de se apartar do verdadeiro caminho, corta as próprias
pernas e assim não pode dar mais um passo” (Logique).
b) Descartes começa por admitir como certo um só fato: a existência do pensamento.
Mas um fato, embora incontestável, embora verdade real, se não é esclarecido por um
princípio racional, por uma verdade ideal, permanece sempre estéril, infecundo. Se
penso, que consequência poderá daí tirar a ciência? — Se penso, responde Descartes, existo:
eis a consequência. Mas não vê ele que essa consequência não se pode tirar e não se
tirou senão pela aplicação de um princípio ideal — o princípio de causalidade, de que ele
duvida e que, todavia, admite como certo? Sendo assim, a dúvida universal de Descartes
não é universal. Mas, se a sua boa-fé está salva, a sua lógica está muito comprometida.
c) A célebre sentença — penso, logo existo — é, na opinião de Descartes, o
primeiro princípio, o fundamento de toda a filosofia, e dela deduz três coisas: — o
princípio “tudo o que é concebido clara e distintamente, é verdade”, — a existência de Deus,
percebida claramente na idéia de Deus, — a veracidade das nossas faculdades, fundada
na própria veracidade de Deus. Ora, essa sentença — penso, logo, existo — quer seja
um raciocínio (como diz Gassendi), quer seja a simples análise de um fato interno
(como pensa Cousin), não pode ser o primeiro princípio de toda a demonstração filo-
sófica; não só porque o primeiro princípio não pode ser um fato, como é a existência
do pensamento, mas também porque o primeiro princípio é, como vimos, o de
contradição. — Além disso, aquele princípio — tudo o que é concebido de um modo claro
e distinto, é verdade — é uma consequência de um fato e de um fato particular, como
é a existência do pensamento de Descartes. Ora, se esse escritor dúvida de todos os
primeiros princípios, não tem o direito de generalizar um fato particular, nem pode
deduzir dele uma regra geral, aplicável a todos os fatos.
d) Descartes demonstra — a veracidade da nossa razão pela existência e vera-
cidade de Deus, — e a existência e a veracidade de Deus pela veracidade da nossa
razão; e assim demonstra o primeiro pelo segundo, e o segundo pelo primeiro: o
que é um círculo vicioso. — Do fato de Deus ser o princípio da ordem ontológica e de
toda a existência, não se segue que a idéia de Deus seja o princípio da ordem lógica e
de todos os nossos conhecimentos.
e) Esse sistema leva ao idealismo. Descartes somente tem como certo o tes-
temunho da consciência. Mas a consciência é uma faculdade interna, cuja ação está
limitada à ordem subjetiva. Para que, pois, possa o homem passar da ordem subjetiva
para a objetiva, é necessária uma outra faculdade, distinta da consciência. — Como
também, a consciência, se atesta a existência e a operação das outras faculdades, não
atesta a veracidade delas, e não julga dos objetos, próprios das outras faculdades. —
Além disso, é um contrassenso deduzir da existência da idéia do infinito a existência
real de Deus. De uma idéia só segue uma idéia; e a idéia do infinito pode ser formada
pela nossa inteligência.
f) O sistema da dúvida universal não só leva ao idealismo, mas também ao
ceticismo universal. Se Descartes duvida da própria evidência, não é possível admitir,
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 277
ARTIGO II
Processo — Método analítico e sintético
Foi para evitar esses equívocos que, no texto, apresentamos as definições dos
dois métodos muito explícitas, dizendo que o método analítico vai dos objetos que
têm mais para os que têm menos compreensão, e que o sintético vai dos objetos que têm
menos para os que têm mais compreensão. Por isso, estas palavras — particular, geral,
todo, parte, — consideram-se na sua compreensão, e não na sua extensão; assim, quem
do conceito de animal desce para o conceito de homem, realiza um processo sintético.
1 (Cf. S. Th., in II Metaph., lect. 5). — Estando certos de uma verdade, devemos
pôr em prática a seguinte regra de Bossuet: “Não deve abandonar-se uma verdade
demonstrada, seja qual for a dificuldade de a conciliar com outra verdade”.
2 Como o método analítico faz muito uso da indução, devem observar-se
cuidadosamente todas as regras, que demos, para que essa espécie de argumentação
seja legítima e nos leve ao conhecimento da verdade.
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 283
*
Os filósofos não estão de acordo com relação à índole do método científico, e
propõem diversos métodos, conforme a diversidade do meio, de que, na opinião deles,
o homem se serve para adquirir a ciência. — Esse meio é intrínseco ou extrínseco. — Se
é extrínseco, — ou é a tradição, e temos o método tradicionalista, — ou é o conjunto dos
diversos sistemas, e temos o método eclético. — Se é intrínseco, — ou é a visão de Deus,
conhecido por um modo direto e intuitivo, e temos o método ontológico, — ou consiste
exclusivamente nos sentidos, e temos o método empírico, — ou é exclusivamente a
razão, e temos o método idealista, — ou é a razão auxiliada pelos sentidos, e temos o
método analítico-sintético. — Logo, os métodos são seis, a saber: tradicionalista, eclético,
ontológico, empírico, idealista e analítico-sintético.
Destes métodos faremos uma breve exposição com a crítica respectiva.
a) Método tradicionalista. — Esse método, seguido por Huet, Bautain,
Lameunais, Ventura, faz consistir o meio dos nossos conhecimentos na tradição ou
Revelação sobrenatural; pois os seus sequazes afirmam que a nossa razão é tão fraca
que não pode levar-nos à aquisição de nenhuma verdade.
Este método, embora se aceite na Teologia revelada, que tira os princípios da
Revelação sobrenatural, não pode aceitar-se nas ciências humanas, cujos princípios se
baseiam na luz natural da razão, ou na experiência sensível. — Além disso, é falso
que a nossa razão não possa alcançar nenhuma verdade científica sem o auxílio
284 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
da Revelação. — Finalmente, se a razão fosse tão fraca que não pudesse chegar ao
conhecimento de nenhuma verdade, não poderia demonstrar o fato e a legitimidade da
Revelação sobrenatural, e assim nem poderíamos aceitar essa Revelação: daí o ceticismo.
b) Método eclético. — O método eclético, chamado também sincretismo, foi
proposto por V. Cousin. Partindo do princípio que o erro é uma verdade incompleta,
Cousin ensina que o verdadeiro método consiste em reunir os diversos sistemas, que
tratam do mesmo assunto e que se completam mutuamente, para assim formar um
só sistema.
É evidente falsidade do ecletismo. Primeiramente o erro não é uma verdade
incompleta, mas é a negação da verdade. — Demais, é impossível reunir as diversas
doutrinas filosóficas para formar um só sistema, porque esse único sistema seria um
cumulo de contradições. Assim os materialistas dizem que a nossa alma é material: os
espiritualistas sustentam que ela é espiritual; o ecletismo reuniria os dois sistemas e diria
que a nossa alma é espiritual e material. Poderia conceber-se coisa mais absurda? — É
verdade que alguns ecléticos mais moderados fazem consistir o seu método em tirar
dos diversos sistemas só as verdades, para com elas formar um corpo de doutrina.
Mas, ainda assim, esse método é incompleto, exclusivamente histórico, e perigoso. — É
incompleto; porque, para fazer aquela escolha, é necessário um outro critério, baseado
em princípios certos, e o ecletismo supõe esses princípios, mas não os ensina. — É
exclusivamente histórico, quando é certo que as ciências hão de progredir, não pela
narração das verdades adquiridas, mas pela descoberta de outras ainda não conheci-
das. — É perigoso, porque, sem um critério precedente, seguro e firme, é muito fácil
cair no erro ou no ceticismo.
c) Método ontológico. — O método ontológico, seguido por Malebranche,
Gioberti, Rosmini, Tiberghien (sequaz do panenteísmo), consiste em colocar na visão
intuitiva e direta de Deus e do seu conteúdo, que é o mundo, o meio do conhecimento
das coisas criadas.
Tal método também deve rejeitar-se. Esse modo de perceber as criaturas no
Criador, além de ser contrário à natureza da nossa razão, que se eleva ao conheci-
mento de Deus pelas criaturas, e não vice-versa, é desmentido pela nossa consciência.
d) Método empírico. — O método empírico, seguido pelos materialistas e
positivistas — Comte, Littré, Stuart Mill, Bain, Taine, Wundt, Spencer, etc., consiste em
admitir, como certo, só o que é atestado e verificado pela experiência sensível, rejei-
tando os princípios da razão, o testemunho da consciência, o valor do silogismo, etc.
Este método é inaceitável pelas seguintes razões:
1º) É falso — que a única fonte de certeza é a experiência sensível, — que os
primeiros princípios da razão são falsos, — que o silogismo não tem valor demons-
trativo, — que o testemunho da consciência engana.
2º) O método empírico limita-se a acumular fatos, sem se importar de os anali-
sar severamente e de procurar as suas mais elevadas causas; por isso, foi chamado “o
método da formiga”. — Ora, esse processo é anticientífico; pois não só não favorece,
mas até contraria o progresso das próprias ciências naturais, porque estas ciências,
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 285
como observa Claudio Bernard, progridem, não tanto pela acumulação dos fatos
averiguados, como pela luz da idéia, que encerra a explicação dos fatos conhecidos e a
“antecipação dos desconhecidos” (Fenômenos da vida). Diz Helmholtz: “O conhecimento
dos fatos é nada; a ciência só começa, quando começam a descobrir-se as causas e as
leis desses fatos” (Revue scient.).
3º) Esse método rejeita o silogismo, e baseia-se exclusivamente na indução.
— Isto chama-se mutilar a razão e a ciência. O silogismo, como dissemos, longe de
obstar ao progresso da indução, favorece-o. Porquanto, a indução descobre as leis dos
fenômenos sensíveis, — leis, que são certas ou hipotéticas. Ora, o silogismo explica as leis
certas, confirma as hipotéticas, e, pelo método da analogia e da dependência, descobre
leis novas. — Além disso, a indução, como já notamos, nas mãos dos materialistas
e dos positivistas, é uma arma inútil e sem força. Na verdade, esses escritores, não
baseando a indução no princípio de causalidade, reduzem-na a um sofisma, qual é a
passagem do particular para o geral, sem razão suficiente.
Apraz-nos aqui citar o juízo, que do método positivista deu M. Pasteur. No dis-
curso de recepção na Academia Francesa, em 27 de abril de 1882, Pasteur censurou
o positivismo por esse ter confundido a observação vulgar com a experimentação, e
por ter feito tão pouco uso desta última. Eis as suas palavras. “O experimentador,
que interroga e explora a natureza, encontra-se incessantemente diante de fatos,
que não são ainda manifestos e não existem, na maior parte, senão na potência das
leis naturais. O desconhecido no possível e não no realizado: eis o seu domínio, e
para o explorar recorre a esse maravilhoso método experimental, do qual se pode
dizer com verdade que, se não basta para tudo, engana raras vezes e somente os que
dele se servem mal. Esse método elimina certos fatos, provoca outros, interroga a
natureza, obriga-a a responder, e só se detém quando o espírito se dá por plena-
mente satisfeito. O atrativo dos nossos estudos, o encanto da ciência, se assim nós
podemos exprimir, consiste em que, em toda a parte e sempre, podemos apresentar
a justificação dos nossos princípios e a prova das nossas descobertas. O erro de
Augusto Comte e de M. Littré consiste em confundir esse método com o método
restrito da observação. Alheios ambos à experimentação, dão à palavra “experiência” o
sentido, que se lhe dá na conversação vulgar, inteiramente diverso do sentido, em
que se toma na linguagem científica. No primeiro caso, a experiência é a observação
das coisas, é a indução que mais ou menos legitimamente conclui do passado para o
possível. O verdadeiro método experimental vai até à prova sem réplica. As condições e
o resultado quotidiano do trabalho do homem de ciência dispõem o seu espírito a
não atribuir uma idéia de progresso senão a uma idéia de invenção. Para julgar, pois,
do valor do positivismo, o meu pensamento foi procurar nele a invenção. Todavia
não a encontrei... M. Littré e Augusto Comte acreditavam e fizeram acreditar aos
espíritos superficiais que o seu sistema se baseava nos mesmos princípios de método
científico, que teve por fundadores Arquimedes, Galileu, Pascal, Newton, Lavoisier.
Foi daí que veio a ilusão dos espíritos. A que erros conduz essa pretendida identidade
dos dois métodos! Arago dissera de Comte: “Ele não possui títulos matemáticos,
nem grandes nem pequenos”.
286 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
ARTIGO III
Termo do movimento — Ciência
*
Declaremos a natureza da demonstração, seus elementos e espécies.
a) Demonstração. — Demonstração é o raciocínio, que parte de premissas
certas. A demonstração, pois, difere das outras espécies de raciocínio, não quanto à
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 291
forma, mas quanto à matéria; porque as outras espécies prescindem daquela certeza
nas suas premissas.
Advertimos que demonstração, em geral, é o raciocínio pelo qual o espírito progride
de uma verdade conhecida para outra desconhecida. — Divide-se em apodítica, dialética
e sofística, conforme parte de premissas certas, prováveis, ou falsas. A apodítica produz a
certeza; a dialética, a opinião; a sofística, o erro. — Só a apodítica é estritamente demonstração.
b) Elementos da demonstração. — Os elementos da demonstração são quatro,
a saber: tese, princípio, meio e conclusão. — A tese é a verdade, que deve ser demons-
trada; — o princípio é a proposição maior, em que se funda a conclusão; — o meio é a
proposição menor, exprimindo que a conclusão está contida no princípio; — a conclusão
é a própria tese, enquanto deduzida das premissas, em que estava contida. Ex.
(Tese) A alma humana é imortal;
(Princípio) O espírito é imortal;
(Meio) Ora, a alma humana é espírito;
(Conclusão) Logo, a alma humana é imortal.
Digamos alguma coisa acerca dos quatro elementos da demonstração.
a) A tese deve ser uma verdade, que deva e possa ser demonstrada; aliás a
demonstração será inútil ou impossível.
b) O princípio, em que se baseia a conclusão, deve ser imediatamente evidente,
ou deve fundar-se nos primeiros princípios.
c) O meio deve indicar a causa próxima e necessária, porque o predicado
convém ao sujeito.
d) A conclusão não é sempre da mesma natureza. Quando a proposição maior é
um axioma e a menor é uma verdade de fato ou de experiência, a conclusão é necessária
e absolutamente verdadeira; como neste exemplo: todo o efeito tem a sua causa; ora, o
mundo é efeito; logo, o mundo tem a sua causa. — Quando a maior é uma verdade de fato
e a menor é uma proposição singular, a conclusão não é necessariamente verdadeira,
como: os mortos não ressuscitam; ora, Lázaro é morto; logo, Lázaro não ressuscita.
c) Terminologia da demonstração. — Na demonstração, sobretudo mate-
mática, empregam-se palavras, que precisam de explicação. — São as seguintes:
a) Definição. Desta já tratamos na Lógica formal.
b) Proposição teorética e prática. — A teorética afirma o que uma coisa é; ex. “o
triângulo é uma figura”. A prática declara o que se pode ou deve fazer; ex. “devemos
amar a pátria”.
c) Axioma é uma proposição teorética e indemonstrável, porque a sua verdade
se torna evidente pela simples inspeção dos termos.
d) Postulado é uma proposição prática e imediatamente evidente pela simples
explicação dos termos; ex. “de um ponto podemos tirar uma linha até ao outro ponto”.
e) Teorema é uma proposição teorética, que se deve demonstrar.
f) Problema é uma proposição prática, que se deve ou pode resolver.
292 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
g) Lema é uma proposição, que uma ciência presta a outra para lhe servir de
base nas demonstrações.
h) Corolário é uma proposição, que emana evidentemente de outra proposição
já demonstrada e não precisa de nova demonstração.
i) Escólio é a nota que, acrescentada a uma proposição, ou a esclarece, ou a
defende das objeções dos adversários.
d) Espécies de demonstração. — A demonstração pode ser — a) direta e
indireta. — b) a priori e a posteriori, — c) absoluta e relativa, — d) pura, empírica e mista.
a) Demonstração direta e indireta. — É direta, quando se prova que o predicado
convém ao sujeito por causa de algumas propriedades, que esse possui; assim conclu-
ímos que a nossa alma é espiritual, porque é independente da matéria. — É indireta,
quando se conclui que uma proposição é verdadeira, porque, admitindo-se a contrária,
resultaria o absurdo; assim provamos que os bons devem receber o prêmio, pois, no
caso contrário, dar-se-ia o absurdo que Deus é injusto.
b) Demonstração a priori e a posteriori. — E a priori, quando da causa descemos ao
seu efeito: assim, pelo fato de a alma humana ser espiritual (causa) demonstramos que
ela é imortal (efeito). — É a posteriori, quando do efeito subimos à sua causa; assim da
existência do mundo (efeito) subimos ao conhecimento da existência de Deus (causa).
Estas duas espécies de demonstração, reunidas, formam uma outra espécie,
que se chama circular ou regressiva, e que se dá quando, depois de termos subido dos
efeitos para a causa, descemos desta para aqueles. Esse processo é de grandíssima
vantagem e leva ao perfeito conhecimento das coisas e das suas relações.
c) Demonstração absoluta e relativa. — É absoluta, quando a conclusão se infere
de premissas por si certas; assim a existência de Deus demonstra-se pela contingência
das coisas visíveis. É relativa, quando a conclusão se tira de premissas admitidas pelos
adversários, embora falsas; assim refutamos os céticos, servindo-nos dos seus princípios.
d) Demonstração pura, empírica e mista. — É pura, quando ambas as premissas
são proposições analíticas. — E empírica, quando ambas as premissas são proposições
sintéticas. — É mista, quando uma premissa, é analítica e outra é sintética.
1 Por isso, um objeto, que é materialmente uno, pode ser formalmente multíplice;
como também um objeto, que é materialmente multíplice, pode ser formalmente uno.
Assim o organismo animal, embora seja materialmente uno, é formalmente multíplice,
porque pode ser considerado sob diversos aspectos — na sua constituição, nos seus
elementos, funções, mudanças, etc.; — como, pelo contrário, o sol, a lua, as plantas,
CAPÍTULO TERCEIRO – MÉTODO 293
1 Essa classificação, que é devida aos Escolásticos, é a mais perfeita das muitas
que se têm apresentado. Na verdade, ela é racional no seu fundamento e completa
na sua divisão. — É racional no seu fundamento. Porquanto, o aspecto geral, sob o
qual a ciência considera qualquer objeto, é a sua abstração, pois não há ciência do
concreto; e por isso, os diversos graus da abstração devem distinguir as diversas classes
das ciências. — É completa na sua divisão; pois não há ciência, que não se reduza a
alguma das cinco classes. Na verdade, toda a ciência ou é especulativa, ou é prática.
Se é especulativa, está subordinada à Física, ou à Matemática, ou à Metafísica. Se
é prática, está subordinada à Lógica ou à Moral, conforme aperfeiçoa os atos da
inteligência ou os da vontade.
É imenso o empenho, que os modernos filósofos mostram para resolver o problema
da classificação das ciências. — Problema que tem apenas uma importância secundária.
As principais classificações, apresentadas pelos escritores, são as de Bacon, de
Ampère, de A. Comte, e de A. Spencer.
a) Bacon tomou por base da sua classificação as três faculdades da alma, que
são a imaginação, a memória e a razão, e assim divide todas as ciências em três classes.
À imaginação corresponde a poesia; à memória, a história, que é civil ou natural; à razão,
a filosofia e a teologia.
Esta classificação não pode aceitar-se. A ciência é um sistema de conhecimentos.
Ora, os conhecimentos são diversos, enquanto se reterem a diversos objetos formais. As
ciências, pois, distinguem-se pelos objetos formais, e não pelas faculdades cognitivas. — Além
disso, a poesia não é ciência; a razão e a memória são indispensáveis em todas as ciências.
b) Ampère toma por base da sua classificação o objeto material, e assim divide
as ciências em cosmológicas e noológicas, segundo consideram objetos materiais ou
espirituais. — As ciências cosmológicas dividem-se em cosmológicas propriamente ditas
e em fisiológicas. As cosmológicas propriamente ditas são a matemática e a física. As fisio-
lógicas são as naturais e as médicas. — As ciências noológicas dividem-se em noológicas
296 LÓGICA – SEÇÃO SEGUNDA
SINOPSE DA LÓGICA
LÓGICA
Proêmio..................................................................................................51
Sinopse da Lógica................................................................................299
Agradecimento....................................................................................303