Perspectivismo e Relativismo em Nietzsche PDF

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UNIVERSIDADE DE SO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
`

EDER RICARDO CORBANEZI

Perspectivismo e relativismo em Nietzsche

Verso corrigida
So Paulo
2013
EDER RICARDO CORBANEZI

Perspectivismo e relativismo em Nietzsche

Dissertao apresentada ao programa de Ps-


Graduao em Filosofia do Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da Universidade de So
Paulo, para obteno do ttulo de mestre em
Filosofia, sob a orientao da Prof. Dr.
Scarlett Marton.

Verso corrigida
So Paulo
2013
Aos meus pais, Silvio e Regina.

Ao meu irmo, Elton.

Nina.
Agradecimentos

Diversas pessoas, cada qual a seu modo, contriburam de maneira decisiva para a

realizao de meu mestrado.

Meu profundo agradecimento professora Scarlett Marton pela orientao dedicada e

solidria, exigente e estimulante, que no teve em vista exclusivamente a pesquisa de

mestrado, mas minha formao de maneira geral. Sou-lhe grato por ter me proporcionado a

possibilidade de viver diversas experincias acadmicas.

Aos colegas que durante as reunies semanais do Grupo de Estudos Nietzsche na USP

contriburam para a pesquisa: Alexander Gonalves, Andr Luiz Fvero, Braian Matilde,

Clia Benvenho, Danilo Bilate, Diana Decock, Eduardo Nasser, Geraldo Dias, Joo Neto,

Mrcia Oliveira, Rodolfo Ferronato, Saulo Krieger, Tiago Pantuzzi e Vincius de Andrade.

Agradeo em especial a Emmanuel Salanskis pelas leituras rigorosas de meus textos e

pelas valiosas observaes a respeito de minha pesquisa. Pelo trabalho dedicado, durante o

perodo em que coordenou as reunies do GEN, que influenciou de modo indelvel minha

postura diante dos textos filosficos.

Aos professores Mrcio Jos Silveira Lima, pela leitura do projeto de pesquisa, e

Andr Itaparica, pelos comentrios comunicao Perspectivismo e relativismo em Nietzsche,

que apresentei na 31 edio dos Encontros Nietzsche, assim como pelas relevantes indicaes

bibliogrficas. Aos professores Luis Rubira e Clademir Araldi, pelo acolhimento no 30

Encontros Nietzsche em Pelotas e pelas instrutivas conversas sobre a filosofia de Nietzsche e

sobre minha pesquisa.

Aos professores Eduardo Brando e Vnia Dutra de Azeredo pelas valiosas

contribuies no exame de qualificao.

A todos os funcionrios dos programas de graduao e de ps-graduao da USP pela


imprescindvel colaborao.

Ao professor Patrick Wotling pela superviso de meu estgio de pesquisa na

Universit de Reims Champagne-Ardenne, na Frana, de setembro de 2012 a fevereiro de

2013.

Ao DAAD pela bolsa para o Hochschulwinterkurs na Albert-Ludwigs-Universtt

Freiburg, na Alemanha, em janeiro e fevereiro de 2012.

Capes pela bolsa de financiamento no incio do mestrado.

FAPESP pela bolsa de financiamento para o mestrado na USP e pela Bolsa Estgio

de Pesquisa no Exterior (BEPE) para o estgio de pesquisa na Universit de Reims

Champagne-Ardenne.

Agradeo de modo muito especial ao meu irmo, grande amigo e companheiro de

todas as horas, Elton Corbanezi, pela convivncia inestimvel, por tudo o que j vivemos

juntos. Tambm pela leitura atenta da dissertao e pelas estimulantes e valiosas conversas

no apenas sobre a pesquisa.

No tenho palavras para agradecer aos meus pais, Silvio e Regina, sem cujo apoio

incondicional eu no poderia ter realizado meus estudos da maneira como pude. Pela

dedicao sem limites.

Sou imensamente grato Nina pela convivncia afetuosa e companheira. Pela

compreenso, pelo apoio e pela ateno durante todo o perodo do mestrado, em especial nos

momentos mais difceis.

Aos meus amigos-irmos Marcelo Campos, pela convivncia nos ltimos anos em So

Paulo, Gustavo Favaron, pela presena marcante mesmo a quilmetros de distncia, e Tiago

Bin, pelos momentos de descontrao. Aos amigos Adriano Mergulho, Arakin Monteiro,

Cleiton Paixo, Fabio Crocco, Gilberto Grego, Henrique Abarca, Leonardo Cruz, Leozito,
Thien Ferraz e Vitinho, pelos encontros revigorantes.

Aos meus amigos de Rio Claro: Brunei Mximo, Bruno Picarelli, Camilo Riani,

Daniela Schmidt, Danilo Tebaldi, Diogo Almeida, Eduardo Guilherme, Eduardo Perissinotto,

Felipe Bedran, Igor Eugnio, Ldia Camargo, Lilian Cruz, Mara SantAnna, Marcelo Rodini,

Morango, Paulo Barsotti e Sofia Etchebehere.

Aos meus amigos desde o perodo da graduao em Filosofia, Marcos Camolezi,

Pedro Franceschini, Rafael, Tiago Tedesco e Marco, pelas ricas e prazerosas conversas. Ao

Camolezi tambm pela leitura da dissertao.

Ao Lucas Massimo, que muito favoreceu minha estada na Frana.


RESUMO

CORBANEZI, E. R. Perspectivismo e relativismo em Nietzsche. 2013. 107 f. Dissertao


(mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de Filosofia,
Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

Esta dissertao investiga, por meio de uma leitura imanente da filosofia de Nietzsche, a

relao problemtica entre perspectivismo e relativismo em sua obra. Inscrito na efetividade,

concebida como vontades de potncia que se exercem de modo perspectivstico e

interpretante, o perspectivismo prope a ideia de que no existem fatos, mas apenas

interpretaes perspectivsticas. Cumpre ento perguntar se tal perspectivismo incorreria num

relativismo radical, segundo o qual todas as interpretaes seriam equivalentes. Procuraremos

mostrar que no possvel responder a esse problema de modo unilateral, com um simples e

taxativo sim ou no. Por um lado, o exame de seus escritos indica que Nietzsche no

pretenderia assumir a posio de um relativista radical na medida em que hierarquiza as

interpretaes e reivindica a superioridade de sua prpria interpretao de mundo. Mais do

que isso, sua filosofia aponta at mesmo para a inviabilizao daquele relativismo: ao associar

os conceitos de perspectiva e interpretao ao de valor, indica que toda perspectiva e toda

interpretao avaliam e hierarquizam, de modo que inexistiriam perspectivas e interpretaes

que efetivamente considerassem as demais como dotadas de mesmo valor. Por outro lado, se

admitida a concepo de uma efetividade perspectivstica e interpretativa, ento todo e

qualquer critrio estabelecido para hierarquizar as interpretaes teria de ser relativo a uma

perspectiva e a uma interpretao determinadas, no consistindo num critrio incondicionado

e objetivo. Assim, uma vez considerada a relatividade de todo critrio, ressurge o problema do

relativismo.

Palavras-chave: Perspectiva. Interpretao. Relativismo. Valor. Critrio.


ABSTRACT

CORBANEZI, E. R. Perspectivism and Relativism in Nietzsche. 2013. 107 f. Dissertation


(Master Degree) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Departamento de
Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2013.

This dissertation researches, through an immanent reading of Nietzsches philosophy, the

problematic relationship between perspectivism and relativism in his work. Intrinsic in the

reality, conceived as wills to power that express themselves in a perspectivist and interpretive

way, the perspectivism argues that there are no facts, but only perspectivist interpretations. So

it is necessary to ask whether such a perspectivism incur a radical relativism, according to

which all interpretations would be equivalent. We shall try to show that it is not possible to

answer this problem unilaterally, with a simple yes or no. On the one hand, the examination

of his writings indicates that Nietzsche would not intend to take the position of a radical

relativist, for he ranks the interpretations and claims the superiority of his own interpretation

of the world. More than that, his philosophy would point to the impossibility of that

relativism: since Nietzsche associates the concepts of perspective and interpretation with the

concept of value, he indicates that every perspective and every interpretation evaluate and

rank, so that there would not be perspectives and interpretations that effectively could

consider the others as equivalent. On the other hand, if we accept the conception of a

perspectivist and interpretive reality, so any criterion fixed in order to rank the interpretations

would depend on a certain perspective and interpretation, and thus it would not be an

unconditional and objective one. Hence, since we consider that any criterion is relative, the

problem concerning relativism resurfaces.

Keywords: Perspective. Interpretation. Relativism. Value. Criterion.


SUMRIO

NOTA LIMINAR 9

INTRODUO 12

CAPTULO 1: Perspectivismo e efetividade 22

CAPTULO 2: Critrio e hierarquizao das interpretaes 50

CAPTULO 3: O estatuto da concepo nietzschiana de efetividade 76

CONCLUSO 98

BIBLIOGRAFIA 103
NOTA LIMINAR

1) Sobre as citaes da obra de Nietzsche

As citaes sem indicao do autor se referem obra de Nietzsche.

Abreviamos os textos conforme a conveno proposta pela edio organizada por

Giorgio Colli e Mazzino Montinari na Kritische Studienausgabe, acrescentando as siglas em

portugus. Seguimos, assim, o padro estabelecido pelos Cadernos Nietzsche publicao do

Grupo de Estudos Nietzsche (GEN) da Universidade de So Paulo , disponvel no site da

revista (http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br).

I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:

I. 1. Textos editados pelo prprio Nietzsche:

GT/NT - Die Geburt der Tragdie (O nascimento da tragdia)

SE/Co. Ext. III - Unzeitgemsse Betrachtungen. Drittes Stck: Schopenhauer als Erzieher

(Consideraes extemporneas III: Schopenhauer como educador)

MA I/HH I Menschliches, Allzumenschliches (Erster Band) (Humano, demasiado humano

(vol. 1))

MA II/HH II Menschliches, Allzumenschliches (Zweiter Band) (Humano, demasiado

humano (vol. 2))

WS/AS - Menschliches, Allzumenschliches (Zweiter Band): Der Wanderer und sein Schatten

(Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra)

M/A - Morgenrte (Aurora)

FW/GC - Die frhliche Wissenschaft (A gaia cincia)


Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)

JGB/BM - Jenseits von Gut und Bse (Para alm de bem e mal)

GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Para a genealogia da moral)

WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner)

GD/CI - Gtzen-Dmmerung (Crepsculo dos dolos)

I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edio:

AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)

EH/EH - Ecce homo

II. Siglas dos escritos inditos inacabados:

PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na poca trgica

dos gregos)

WL/VM - Ueber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira

no sentido extramoral)

III. Sigla dos fragmentos pstumos:

Nachlass/FP

IV. Edies:

KGW = Werke: Kritische Gesamtausgabe

KSA = Smtliche Werke: Kritische Studienausgabe

V. Formas de citao:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arbico indicar a seo; no caso

de GM/GM, o algarismo romano anterior ao arbico remeter parte do livro; no caso de

Za/ZA, o algarismo romano remeter parte do livro e a ele se seguir o ttulo do discurso;

no caso de GD/CI e de EH/EH, o algarismo arbico, que se seguir ao ttulo do captulo,

indicar a seo.

Para os escritos inditos inacabados, o algarismo arbico ou romano, conforme o caso,

indicar a parte do texto.

Para os fragmentos pstumos, os algarismos arbicos, que se seguem ao ano, indicaro

o fragmento pstumo.

2) Tradues

Nas citaes da obra de Nietzsche, sempre que possvel adotamos a traduo de

Rubens Rodrigues Torres Filho publicada no volume Friedrich Nietzsche Obras

Incompletas (So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000). O recurso a essa traduo indicado

pela sigla RRTF, que abrevia o nome do tradutor. As demais tradues dos textos de

Nietzsche so de nossa responsabilidade.

Traduzimos tambm as citaes extradas dos textos cujos ttulos se encontram na

bibliografia em ingls, francs e alemo.


INTRODUO

Esta dissertao tem por objetivo investigar em que medida o perspectivismo de

Nietzsche incorre em relativismo, entendido como a concepo de que todas as interpretaes

se equivalem. Por um lado, uma leitura imanente de sua filosofia parece impedir a atribuio

de relativismo a ela, j que o filsofo estabelece um critrio para avaliar e hierarquizar as

interpretaes, as quais no so consideradas como dotadas de mesmo valor. Contudo, uma

leitura imanente tambm nos autoriza a perguntar se o pensamento de Nietzsche incorre em

relativismo na medida em que, ao criticar a concepo dogmtica de verdade, impossibilita a

instituio de um critrio absoluto para determinar objetivamente o valor e a hierarquia das

interpretaes.

A primeira dificuldade com a qual temos de nos ocupar diz respeito ao

estabelecimento dos termos para a formulao do problema a ser investigado. Que o

perspectivismo constitui um tema presente e relevante na filosofia de Nietzsche, atestam

diversas passagens da obra publicada (sobretudo a partir do Livro 5 de A gaia cincia e de

Para alm de bem e mal), bem como fragmentos pstumos da dcada de 1880 em que o tema

objeto de reflexo. No caso do relativismo, todavia, no existe a mesma evidncia: ao

contrrio, a julgar pelo nmero de referncias textuais ao termo Relativismus no corpus

nietzschiano apenas duas1 , poder-se-ia considerar o assunto praticamente ausente e, assim,

at mesmo negligencivel. No entanto, como no pensamos que a presena e a importncia de

um tema no interior de uma obra possam ser julgadas exclusivamente em funo do nmero

de ocorrncias de determinados termos, no concebemos, por conseguinte, que o relativismo

possa ser ao menos de maneira to rpida e irrefletida descartado da filosofia de

1
No terceiro pargrafo de Consideraes extemporneas III: Schopenhauer como educador e no Nachlass/FP
1885, 40[41], KSA 11.650.
12
Nietzsche; talvez, pelo contrrio, os escritos do filsofo ofeream elementos para se pensar

esse tema de modo aprofundado. Dada, porm, a quase inexistncia do termo relativismo na

obra de Nietzsche, impe-se a questo: de que maneira circunscrever o problema a ser

investigado? a partir da pesquisa sobre a relao entre os conceitos de efetividade

(Wirklichkeit), vontade de potncia, valor, perspectiva e interpretao que se torna possvel a

investigao acerca do perspectivismo e, a partir da, a pergunta por uma possvel presena do

relativismo na filosofia de Nietzsche. Isso porque o exame desses conceitos nos permite

formular a pergunta sobre uma possvel equivocidade em Nietzsche, na medida em que seu

pensamento combate o relativismo, embora, ao mesmo tempo, talvez o admita.

Se considerarmos o perspectivismo luz do conceito de vontade de potncia,

possvel afirmar que Nietzsche no relativista e, mais do que isso, que a sua filosofia

interdita o relativismo. A concepo nietzschiana de efetividade como vontades de potncia

que se exercem de modo perspectivstico e interpretante permite que Nietzsche estabelea um

critrio para avaliar e hierarquizar as perspectivas e as interpretaes: O critrio da verdade.

A vontade de potncia, como vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888,

16[86], KSA 13.516). O filsofo no relativista porque, de sua perspectiva, no considera as

interpretaes como equivalentes e, mais ainda, pretende que sua interpretao seja superior

s demais.

Alm de no ser relativista, o pensamento de Nietzsche aponta at mesmo para a

inviabilizao do relativismo como equivalncia de interpretaes. Ao afirmar que as

vontades de potncia se exercem de modo perspectivstico e interpretante, Nietzsche faz ver

que toda perspectiva e toda interpretao atribuem valores e hierarquizam, ou seja, que no

existe perspectiva ou interpretao que no atribua valor e que no hierarquize. Desse modo,

no existe perspectiva ou interpretao que possa efetivamente avaliar as demais como

13
equivalentes. Mesmo a interpretao que apregoa o relativismo, isto , que enuncia a

equivalncia de todas as perspectivas e interpretaes, expressa uma maneira de hierarquizar e

no deixa de aspirar prevalncia sobre outras interpretaes, por exemplo, sobre aquelas que

afirmam a desigualdade de valor entre as interpretaes. Por analogia, pode-se dizer: assim

como a interpretao dogmtica que arroga a posse da verdade dissimula precisamente seu

carter interpretativo, do mesmo modo uma interpretao relativista que afirma a equivalncia

de todas as interpretaes escamoteia sua pretenso de superioridade, ou seja, pretende

encobrir a efetiva no equivalncia.

Se considerarmos, porm, o conceito de vontade de potncia luz do perspectivismo,

ento podemos formular a segunda parte de nosso problema, isto , o outro lado daquela

equivocidade h pouco mencionada. A concepo de efetividade como perspectivstica e

interpretativa embasa a crtica de Nietzsche s noes de absoluto, incondicional, em si e

assim por diante, de modo que nenhum critrio pode ser tomado como critrio em si,

absoluto; em outros termos: todo critrio pode ser considerado como relativo a uma

determinada interpretao perspectivstica. essa relatividade do critrio que autoriza nossa

pretenso de investigar se a filosofia de Nietzsche incorre em relativismo, ou em que medida

a determinao de um critrio qualquer que seja suficiente para afastar definitivamente o

relativismo.

Essa investigao se justifica porque estudos que tratam do perspectivismo muitas

vezes procuram indicar que Nietzsche no incorre em relativismo ao estabelecer um critrio

para avaliar e hierarquizar as interpretaes as quais no so, portanto, consideradas

equivalentes , mas no chegam a perguntar pela relatividade de tal critrio. Ao afirmar que o

critrio de verdade adotado por Nietzsche a intensificao de potncia, Mller-Lauter (1974,

p. 22 e 45) faz ver que, coerente, a interpretao de Nietzsche , conforme seu critrio de

14
verdade, superior s outras interpretaes. Ao mostrar que, para efetuar a crtica dos valores, o

genealogista precisa de um critrio, Scarlett Marton (2000, p. 95-97) afirma que o critrio a

ser utilizado para avaliar o valor dos valores e que no pode, ele prprio, ser avaliado a

vida, entendida como vontade de potncia; assim, a autora defende que a genealogia repousa

numa cosmologia (MARTON, 2000, p. 96). Ao constatar que a ausncia de um critrio

levaria o genealogista a enredar-se no relativismo, Patrick Wotling (2009, p. 120 e seguintes)

sustenta que o conceito de sade fornece o critrio que articula a experincia de pensamento

de Nietzsche, que no outra coisa seno a interpretao das interpretaes (WOTLING,

2009, p. 124)2. A recusa de um critrio metafsico-realista de verdade no conduz o

perspectivismo ao relativismo, segundo Antnio Marques (2003, p. 195), graas ao critrio

fisiolgico, que evoca conceitos como sade, fraco e forte, utilizados no procedimento

de hierarquizao das perspectivas. Cline Denat (2010, p. 9), por sua vez, se prope a

defender que, longe de todo relativismo e de todo ceticismo, Nietzsche mostra que a

inelutvel variedade das interpretaes suscetvel de uma avaliao de ordem ao mesmo

tempo terica e prtica, cujos critrios permitem por fim compreender a legitimidade e a

coerncia da nova hiptese interpretativa que ele mesmo pretende propor.

Essas investigaes acerca do critrio estabelecido por Nietzsche so sem dvida

relevantes, mas elas no parecem ter por objetivo principal realizar uma pesquisa especfica

sobre a possvel ligao entre perspectivismo e relativismo. Para tanto, alm de examinar o

primeiro lado da equivocidade que expusemos acima, seria preciso ainda perguntar se a

filosofia de Nietzsche efetivamente permite que se estabelea um critrio que no seja relativo

perspectiva e interpretao que o institui. E caso no se chegue a outro resultado seno

2
Lembremos, rapidamente, que em seu texto O Relativismo como contraponto, Bento Prado Jr. (2004, p. 202)
tambm evoca a noo de sade: no exatamente, porm, para livrar Protgoras do relativismo, mas sim para
determinar um sentido positivo mnimo para o relativismo (como atitude filosfica possvel e sustentvel).
15
aquele que revela a relatividade do critrio, deve-se por fim questionar se essa relatividade do

critrio no implica um relativismo.

***

A metodologia adotada em nossa pesquisa consiste na leitura imanente da obra de

Nietzsche. Isso implica, de imediato, duas restries: em primeiro lugar, no nos

debruaremos sobre a histria da noo de perspectiva3; em segundo lugar, no examinaremos

o papel que a interlocuo de Nietzsche com determinados autores (como Pascal, Leibniz,

Kant, Drossbach e Teichmller) pode ter desempenhado na constituio de seu

perspectivismo. Mesmo que sejam relevantes, essas investigaes ultrapassam o escopo de

nosso mestrado.

O que entendemos, ento, por leitura imanente da obra de Nietzsche? Aqueles que se

propem a escrever sobre o filsofo adotam procedimentos metodolgicos diferenciados no

trato com seus escritos: alguns desqualificam os fragmentos pstumos, outros se restringem

aos fragmentos pstumos que vo ao encontro dos textos publicados e, por fim, h aqueles

que consideram todos os escritos, ou seja, fragmentos pstumos, cartas, textos publicados

antes do colapso do filsofo, em 1889, e textos preparados por Nietzsche para publicao. No

fundo, as diferentes metodologias utilizadas procuram haver-se com a seguinte pergunta: em

que consiste a obra de Nietzsche?

Diante dessa questo, amplamente discutida entre os pesquisadores da filosofia

nietzschiana, restringiremos nossa tomada de posio ao que diz respeito ao tema do

perspectivismo e aos autores que dele se ocupam. A abordagem de Maudemarie Clark, que

3
A esse respeito, ver PANOFSKY, E. La perspective comme forme symbolique. Paris: ditions de Minuit, 1975.
16
baseia sua argumentao na obra publicada, emblemtica no tocante desqualificao dos

fragmentos pstumos. A reduo do valor das anotaes pstumas se deixa entrever na

afirmao de que Nietzsche oferece a mais importante e longa declarao sobre seu

perspectivismo em Para a genealogia da moral (CLARK, 1990, p.128); para sustentar essa

proposio, preciso negligenciar que as reflexes sobre o perspectivismo se do no apenas

de modo mais recorrente, mas tambm mais diverso nas anotaes pstumas. A

desqualificao dos fragmentos pstumos se torna explcita na passagem em que, depois de

citar uma anotao indita, a autora afirma: Porque [grifo nosso] vem do Nachlass, essa

passagem no constitui evidncia contra minha interpretao das obras publicadas (CLARK,

1990, p. 146). O carter pstumo da passagem utilizado pela autora como justificativa e

argumento para sua desqualificao.

Em Nietzsches Perspectivism, Steven Hales e Rex Welshon adotam basicamente o

mesmo procedimento de Clark. Os autores tomam os escritos publicados como fundamentais

e conferem s notas inditas um carter suplementar e limitado, uma vez que, segundo eles,

podem ser evocadas apenas para realar uma ideia j presente na obra publicada, mas jamais

para min-la (HALES; WELSHON, 2000, p. 8). Nesse sentido, uma ideia que esteja

presente somente nos fragmentos pstumos, ou seja, que no se encontre igualmente nos

textos publicados, revela-se, aos olhos dos autores, insustentvel.

Defendemos que a investigao sobre o perspectivismo na obra de Nietzsche exige

uma confrontao metodolgica com todos os escritos, inclusive, portanto, com o material

indito4. A primeira razo simplesmente quantitativa: o nmero de passagens em que

Nietzsche toca no tema do perspectivismo, de modo mais ou menos direto, maior nas

anotaes inditas do que na obra publicada. Contudo, a mera superioridade numrica no

4
Nesse ponto, estamos ao lado de autores que, a despeito de suas abordagens diversas e at mesmo discordantes,
incorporam os fragmentos pstumos s suas reflexes sobre o perspectivismo, tais como Mller-Lauter, Scarlett
Marton, Antnio Marques, Danto e Nehamas.
17
teria valor se no contribusse de maneira significativa para revelar a riqueza e a diversidade

na prpria abordagem do perspectivismo. As anotaes pstumas expem ideias que nos

textos publicados no aparecem de modo to evidente: a relao entre perspectiva e fora, por

exemplo, apresenta-se de maneira muito mais explcita nas anotaes inditas do que nos

textos que o autor fez aparecer ao pblico5. Mas, mais do que isso, a considerao dos escritos

inditos contribui para tornar mais evidente o perspectivismo e o experimentalismo de que o

filsofo lana mo para refletir sobre o prprio perspectivismo, ou seja, faz ver como

Nietzsche aborda o tema a partir de diferentes pontos de vista e assim o transforma em objeto

de experimentos6.

Leiamos dois fragmentos pstumos redigidos em perodos prximos e notemos como

a relao entre os conceitos de perspectiva e de fora para prosseguirmos no exemplo

mencionado acima considerada de modo diferente em cada um dos textos. No primeiro,

Nietzsche escreve: Tambm no reino do inorgnico, para um tomo de fora entra em

considerao apenas sua vizinhana: as foras ao longe se equivalem. Aqui se encontra o

ncleo do perspectivstico, e por que um ser vivente totalmente egosta (Nachlass/FP

1885, 36[20], KSA 11.560). Em uma nota posterior, o filsofo assevera, ao contrrio, que o

mundo inorgnico a maior sntese de foras e por isso o mais elevado e venervel, uma

vez que ali falta o erro, a limitao perspectivstica (Nachlass/FP 1885-1886, 1[105], KSA

12.36).

A primeira anotao indica que Nietzsche j estendera, em 1885, a aplicao do

conceito de perspectiva ao domnio do inorgnico, ao passo que no fragmento posterior o

5
Verificar em particular o Nachlass/FP 1888, 14[184], KSA 13.370-371 e o Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA
13.373-374.
6
Scarlett Marton (2000, p. 32-34) mostra que a reflexo sobre o mesmo assunto a partir de mltiplos pontos de
vista caracterstica comum do perspectivismo e do experimentalismo de Nietzsche. Nesse sentido, pode-se
dizer que, considerado a partir de mltiplos pontos de vista, o prprio perspectivismo tratado de modo
perspectivstico e experimental.
18
filsofo reduz a abrangncia do carter perspectivstico, considerado como inexistente na

sntese de foras que constitui o mundo inorgnico. A despeito das diferentes proposies,

queremos fazer ver que as duas anotaes despertam interesse e devem ser levadas em conta

em uma investigao sobre o perspectivismo ao menos na medida em que fornecem indcios

de que Nietzsche se ocupa de maneira persistente com a pergunta sobre a extenso do carter

perspectivstico da existncia e de que uma possvel resposta a essa pergunta no elaborada

de uma vez por todas.

A multiplicidade das abordagens sobre o mesmo tema no significa, porm, que

Nietzsche no sustente uma posio ou que atribua o mesmo peso a proposies contrrias.

No seria possvel, parece-nos, utilizar o fragmento pstumo mencionado acima (Nachlass/FP

1885-1886, 1[105], KSA 12.36) para defender que Nietzsche restringe definitivamente o

alcance do carter perspectivstico ao orgnico. Se contextualizarmos esse fragmento, ou seja,

se o compararmos com outros escritos publicados e inditos, da mesma poca e de perodos

subsequentes , notaremos que, na obra de Nietzsche, a concepo de que o carter

perspectivstico se estende a toda a efetividade preponderante.

Assim, do exame dessas passagens resulta tambm a ressalva de que, embora sejamos

favorveis ao recurso aos fragmentos pstumos, defendemos que os escritos inditos em que o

perspectivismo de algum modo considerado no devem ser evocados de maneira

indiscriminada e descontextualizada, como se todas as notas tivessem o mesmo peso.

preciso, antes, contextualizar cada anotao, isto , observar o perodo e o modo como foi

redigida e compar-la no apenas com outros escritos inditos, mas tambm com textos

publicados da mesma poca e de outros perodos. Alm de considerar os processos de

elaborao dos conceitos no interior da trajetria da obra de Nietzsche, esse procedimento

torna possvel trazer luz os diferentes papeis que os mesmos termos desempenham, assim

19
como os diferentes sentidos que recebem, conforme o contexto em que so empregados.

Trata-se de jamais perder de vista que Nietzsche, introduzindo o perspectivismo na

linguagem, no hesita em empregar os mesmos termos em diferentes acepes, subverter os

sentidos dos vocbulos, desterritorializar as palavras (MARTON, 2010, p. 141).

***

Estruturamos nossa pesquisa em trs momentos.

No primeiro captulo, investigamos o alcance do perspectivismo no pensamento de

Nietzsche: examinando a relao entre os conceitos de perspectiva, interpretao e vontade de

potncia, procuramos mostrar que o perspectivismo se inscreve na efetividade. Assim

considerado, o perspectivismo, cuja ideia central consiste na proposio de que no existem

fatos, mas apenas interpretaes perspectivsticas, traz consigo a pergunta pelo relativismo

radical, entendido como equivalncia de interpretaes.

Para livrar Nietzsche de um tal relativismo, argumenta-se com frequncia que o

filsofo estabelece um critrio para hierarquizar as interpretaes. Procuramos mostrar no

segundo captulo que esse critrio se baseia na concepo de vida como vontade de potncia e

tem por objetivo distinguir as estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo

de vida ascendente daquelas provenientes e fomentadoras de um modo de vida descendente.

No entanto, antes de associar o estabelecimento de um critrio com a supresso do

relativismo, preciso investigar como essa filosofia radicalmente perspectivista estabelece seu

critrio.

Apoiado na concepo de vida como vontade de potncia, o critrio estabelecido por

Nietzsche se baseia em ltima instncia em sua concepo de efetividade como vontade de

20
potncia, cujo estatuto, complexo, ser o objeto de investigao no terceiro captulo. Se

Nietzsche atribui a sua concepo de efetividade o estatuto de uma interpretao, de uma

hiptese e de um ensaio, por outro lado o filsofo reivindica sua superioridade diante das

outras concepes de mundo. Com isso, indica mais uma vez que no pretenderia sustentar a

posio de um relativista radical, segundo a qual as interpretaes seriam equivalentes. Faz-se

necessrio, no entanto, estabelecer o carter dessa superioridade reivindicada por uma

filosofia radicalmente perspectivista.

21
CAPTULO 1

Perspectivismo e efetividade

Com o objetivo de delimitar o alcance conferido por Nietzsche ao perspectivismo,

pretendemos mostrar que pergunta pela extenso do carter perspectivstico e interpretativo

da existncia, formulada no pargrafo 374 de A gaia cincia, o filsofo responde com a

indicao de que tal carter se estende a toda a efetividade. Assim, procuramos evidenciar que

os conceitos de perspectiva e de interpretao dizem respeito ao modo de exercer-se de

vontades de potncia, e no a uma noo de sujeito do conhecimento puro, uno e idntico a si

mesmo, tampouco noo de homem; em outras palavras, tentamos fazer ver que, inscrito na

efetividade, o perspectivismo no consiste numa teoria do conhecimento subjetivista nem

antropomrfica. Por fim, em consequncia das anlises precedentes, propomos que,

consistindo no modo de efetivar-se de vontades de potncia, as perspectivas e as

interpretaes so dotadas de carter radicalmente singular, o que impede a pretenso de que

uma mesma perspectiva e uma mesma interpretao possam ser efetivamente compartilhadas.

***

Quase sempre mencionada ao se tratar do perspectivismo na filosofia de Nietzsche, a

seo 374 de A gaia cincia sem dvida imprescindvel para a compreenso do tema.

primeira vista, contudo, essa passagem pode chamar a ateno por conta de uma certa

hesitao que Nietzsche deixa transparecer ao no oferecer uma resposta taxativa pergunta,

ali apresentada, pelo alcance do carter perspectivstico e interpretativo da existncia.

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Nesse pargrafo, a despeito das irresolues, Nietzsche estabelece de maneira

peremptria um ponto fundamental, que indica uma limitao: mesmo no mais diligente

exame de si prprio, o intelecto humano no pode deixar de ver a si mesmo nessa anlise sob

suas formas perspectivsticas e apenas nelas (FW/GC 374, KSA 3.626). A partir desse ponto

bsico, Nietzsche encadeia uma srie no de certezas, mas de incertezas e indeterminaes:

At onde se estende o carter perspectivstico da existncia, ou mesmo se ela


tem algum outro carter, se uma existncia sem interpretao, sem sentido,
no se torna justamente absurda, se, por outro lado, toda existncia no
essencialmente uma existncia interpretante isso no pode, como justo,
ser descoberto nem mesmo mediante os mais diligentes e meticulosamente
conscienciosos anlise e exame de si do intelecto. (FW/GC 374, KSA
3.626).7

Por que tal deciso no cabe ao intelecto? Precisamente porque, como mencionado, o

intelecto v-se apenas sob suas formas perspectivsticas. Da constatao dessa limitao

fundamental, decorrem mais limitaes, incertezas e impossibilidades, que Nietzsche continua

a enumerar:

No podemos ver para alm de nosso ngulo: uma curiosidade desesperada


querer saber quais outras espcies de intelecto e de perspectiva poderia
haver: por exemplo, se alguns outros seres podem sentir o tempo
regressivamente ou alternando progressiva e retrogradamente (com o que

7
Traduzimos auslegend e interpretirend por interpretante, que significa interpretador. Essa traduo evidencia
a diferena entre aquilo que interpreta (interpretante ou interpretador) e aquilo que passvel de ser
interpretado (interpretvel). Na lngua portuguesa, o adjetivo interpretativo soa de modo equvoco em
relao aos sentidos diferentes de interpretante e de interpretvel. A lngua alem possui um termo
equivalente ao adjetivo interpretativo em portugus, interpretativ, que Nietzsche emprega no seguinte
fragmento pstumo: O carter interpretativo [interpretative Charakter] de todo acontecer. No h nenhum
acontecimento em si. Tudo o que acontece um grupo de fenmenos escolhidos e reunidos por um ser
interpretante [interpretirenden Wesen] (Nachlass/FP 1885-1886, 1[115], KSA 12.38). Nessa passagem,
Nietzsche explora os dois sentidos do adjetivo interpretativo: ao indicar o carter interpretativo de todo
acontecer, faz ver que todo acontecer interpretvel e interpretante. Como se nota, a equivocidade sugerida pelo
adjetivo interpretativo tem relevncia para a delimitao do conceito de interpretao. Em nossa dissertao,
tambm temos em mente os dois sentidos (interpretvel e interpretante) nas ocasies em que utilizamos o
adjetivo interpretativo: ao nos referirmos efetividade como interpretativa, queremos dizer que ela consiste em
configuraes de vontades de potncia interpretantes (que interpretam) e interpretveis (que so, por sua vez,
interpretadas por outras configuraes de vontades de potncia).
23
haveria uma outra orientao da vida e um outro conceito de causa e efeito).
(FW/GC 374, KSA 3.626-627).

Em seguida, Nietzsche fornece uma informao digna de ser sublinhada: a limitao

de nosso ngulo ou seja, a assero de que no podemos ver seno de nosso ngulo abre

uma possibilidade:

Mas penso que hoje estamos ao menos afastados da ridcula imodstia de


decretar, a partir de nosso ngulo, que somente desse ngulo se pode ter
perspectivas. Ao contrrio, o mundo se tornou para ns outra vez infinito:
na medida em que no podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre
em si infinitas interpretaes. (FW/GC 374, KSA 3.627).

Na seo que estamos a examinar, Nietzsche afirma de maneira peremptria, portanto,

o carter perspectivstico do intelecto humano. Uma vez admitida, essa afirmao traz consigo

ao menos duas consequncias. A primeira delas evidencia que no podemos determinar at

onde se estende o carter perspectivstico da existncia, isto , no podemos garantir nem se

uma existncia sem interpretao, sem sentido, no se torna justamente absurda, nem se

toda existncia no essencialmente uma existncia interpretante. Devemos entender essa

impossibilidade de determinar o carter perspectivstico e interpretativo da existncia em dois

sentidos: em primeiro lugar, no podemos determinar se toda existncia interpreta e pe

perspectiva (para utilizar a mesma expresso que Nietzsche emprega no Nachlass/FP 1888,

14[186], KSA 13.373), ou seja, se h algum existente desprovido do carter perspectivstico e

interpretante; em segundo lugar, impossvel determinar se existe algo cujo modo de

existncia seja independente de uma determinada interpretao e de uma determinada

perspectiva em relao s quais esse algo existe como tal.

Todavia eis a segunda consequncia , a afirmao do carter perspectivstico do

intelecto humano bem como da indeterminao do alcance do carter perspectivstico e

24
interpretativo da existncia no obriga Nietzsche a restringir a aplicao de tal carter apenas

ao homem. Ao contrrio, ao conferir um carter perspectivstico e interpretativo ao intelecto

humano, Nietzsche censura a ridcula imodstia de decretar, a partir de nosso ngulo, que

somente desse ngulo se pode ter perspectivas. Em outras palavras, exatamente em virtude

do carter perspectivstico do intelecto humano permanece aberta a possibilidade no

comprovvel, mas tampouco passvel de ser definitivamente rejeitada de que o carter

perspectivstico e interpretativo se estenda a outros domnios da existncia que no apenas o

humano8. Alm disso, a impossibilidade de restringir o carter perspectivstico e interpretativo

da existncia ao homem mantm aberta outra possibilidade, que, como a anterior, no pode

ser afirmada nem descartada, a saber, a possibilidade de que o mundo encerre em si infinitas

interpretaes.

Se na seo 374 de A gaia cincia a extenso do carter perspectivstico a toda a

existncia aparece somente como possibilidade, esse pargrafo, embora estabelea pontos

fundamentais do perspectivismo, apresenta uma particularidade em comparao com a

maioria dos escritos em que Nietzsche trata de alguma maneira do tema: o tom hesitante em

relao determinao do alcance do perspectivismo 9. Ora, outros textos publicados no

mesmo perodo do Livro 5 de A gaia cincia, em que se encontra o pargrafo 374, do

mostras contundentes de que o efetivo alcance que Nietzsche confere ao carter

8
No obstante as irresolues, a seo que ora analisamos estabelece elementos fundamentais do
perspectivismo. Esse texto fornece subsdios suficientes para inviabilizar a tese de Gerhardt (1989, p. 279) de
que o conceito de perspectiva tem validade apenas para o homem: Pertence aos pressupostos lgicos do
perspectivismo, se ele deve trazer expresso a especificidade de cada ser, que a rigor ele pode valer apenas
para o ser que vincula sentido ao conceito de perspectiva. Esse ser o homem. Nessa direo, Gerhardt (Ibid.,
p. 279) apresenta uma objeo tentativa de Nietzsche de universalizar o princpio humano do perspectivismo,
no restringindo suas consideraes ao homem e afirmando que toda vontade de potncia tem sua perspectiva
especfica. De fato, dizer que o intelecto humano v-se apenas em suas formas perspectivsticas, como faz o
autor de A gaia cincia, no significa restringir a aplicao do conceito de perspectiva apenas ao homem: trata-
se, antes, de inviabilizar tal pretenso. De resto, no se pode desconsiderar que, vinculando o conceito de
perspectiva ao de vontade de potncia, Nietzsche empreende uma crtica prpria noo de humano.
9
A mesma hesitao se encontra no talvez presente no seguinte fragmento pstumo: Que o valor do mundo
resida em nossa interpretao ( que talvez em algum lugar sejam possveis ainda outras interpretaes que no
meramente humanas ) [...] isso perpassa meus escritos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[108], KSA 12.114).
25
perspectivstico e interpretativo mais amplo do que o assinalado naquela seo. Isso pode

ser verificado por meio da articulao de algumas proposies presentes em Para alm de

bem e mal. J no Prefcio do livro, Nietzsche designa o perspectivstico como a condio

fundamental de toda vida10; adiante, o filsofo define vida como vontade de potncia

(JGB/BM 13, KSA 5.27); e, mais frente, apresenta sua concepo do mundo como vontade

de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.55). Com efeito, ao asseverar o carter perspectivstico da

vida, Nietzsche faz ver que no est a pensar apenas no caso especfico do homem; e ao

definir, em seguida, vida e mundo como vontade de potncia, deixa entrever que o carter

perspectivstico se aplica a toda a existncia.

Enquanto na obra publicada a extenso do carter perspectivstico a toda a existncia

ainda no apresentada de maneira explcita, as anotaes pstumas permitem constatar que

o filsofo j formulara de modo mais evidente a relao entre perspectiva e vontade de

potncia, como possvel observar no fragmento em que declara que todo elogiar e censurar

uma perspectiva de uma vontade de potncia (Nachlass/FP 1885-1886, 1[64], KSA

12.27)11.

Dois fragmentos pstumos de um perodo posterior da primavera de 1888 indicam

que Nietzsche concebe a efetividade como perspectivstica. Um deles faz referncia ao

10
A mesma ideia reaparece na seo 34, em que Nietzsche afirma: nenhuma vida teria subsistido, se no fosse
sobre o fundamento de estimativas perspectivsticas e aparncias [...] (JGB/BM 34, KSA 5.53, trad. de RRTF
modificada). Consideraes semelhantes esto presentes tambm em outros textos publicados, como o prefcio
de Humano, demasiado humano, elaborado na primavera de 1886, e o Ensaio de uma autocrtica, escrito para a
segunda edio de O nascimento da tragdia, publicada em 1886. No que se refere aos escritos pstumos, a
associao entre perspectiva e vida data de anos anteriores publicao de Para alm de bem e mal. Em um
fragmento pstumo de 1881, o filsofo escreve sobre nossa potncia lgico-criadora de, para todas as coisas,
afirmar perspectivas, em virtude das quais nos conservamos viventes (Nachlass/FP 1881, 15[9], KSA 9.637). Se
nesse fragmento apresenta as leis da perspectiva como erros ticos necessrios vida, em outra anotao do
mesmo perodo (Nachlass/FP 1881, 15[7], KSA 9.635) Nietzsche assevera que tais erros ticos esto presentes
j no primeiro ser orgnico, de modo a indicar de maneira assertiva e no apenas como possibilidade o
carter perspectivstico do orgnico em geral, e no apenas da vida humana. Assim, nos fragmentos pstumos
mencionados, as noes de perspectiva e de tica esto vinculadas de erro, que, por sua vez, aparece como
condio da vida em geral, e no apenas da vida humana.
11
Ver tambm Nachlass/FP 1885, 35[68], KSA 11.540, Nachlass/FP 1885-1886, 2[77], KSA 12.97 e
Nachlass/FP 1886-1887, 5[14], KSA 12.190.
26
necessrio perspectivismo, em virtude do qual todo centro de fora e no apenas o homem

constri o mundo inteiro a partir de si, isto , conforme sua fora, mede, apalpa, forma

(Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Nessa anotao, Nietzsche adverte ainda que os

fsicos deixaram de incluir no ser verdadeiro essa fora que pe perspectivas. No outro

fragmento, o filsofo atribui um carter perspectivstico a todo centro de fora e, mais do que

isso, aponta a indissociabilidade entre perspectiva e valorao como vlida para todo centro

de fora12: Todo centro de fora tem sua perspectiva para todo o resto, isto , sua valorao

totalmente determinada, seu modo de ao, seu modo de resistncia (Nachlass/FP 1888,

14[184], KSA 13.371)13.

Em ambas as anotaes, Nietzsche estabelece de maneira cristalina a relao entre

perspectiva e fora: toda fora se exerce de modo perspectivstico. Assim como o exame da

relao entre perspectiva e vida em Para alm de bem e mal nos conduziu por fim relao

entre perspectiva e vontade de potncia, nos dois fragmentos pstumos de 1888 a explicitao

do vnculo entre perspectiva e fora abre igualmente caminho para a pergunta sobre a relao

entre perspectiva e vontade de potncia. Depois de afirmar que o perspectivstico apenas

uma forma complexa da especificidade, o filsofo acrescenta: Minha concepo que cada

corpo especfico aspira a tornar-se senhor do espao inteiro e a estender sua fora ( sua

vontade de potncia) (Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Com essas palavras,

Nietzsche evidencia a relao entre fora e vontade de potncia, a qual j fora estabelecida h

algum tempo, conforme atesta uma clebre anotao de anos anteriores: O vitorioso conceito

12
Com essa associao, Nietzsche sugere que o estimar valores no ocorre apenas no domnio orgnico.
13
A relao entre perspectiva e fora encontra precedente, por exemplo, na anotao pstuma em que Nietzsche
afirma: Tambm no reino do inorgnico, para um tomo de fora entra em considerao apenas sua vizinhana:
as foras ao longe se equivalem. Aqui se encontra o ncleo do perspectivstico, e por que um ser vivente
totalmente egosta (Nachlass/FP 1885, 36[20], KSA 11.560). Essa breve anotao indica que o filsofo j
estendera, em 1885, o perspectivstico ao domnio do inorgnico, bem como vinculara os conceitos de
perspectiva e de fora. Leiamos outro fragmento em que Nietzsche tambm atribui um carter perspectivstico
fora: A plurivocidade do mundo como questo da fora, que considera todas as coisas sob a perspectiva de seu
crescimento (Nachlass/FP 1885-1886, 2[128], KSA 12.127).
27
de fora, com o qual nossos fsicos criaram Deus e o mundo, carece ainda de um

complemento: preciso atribuir-lhe um mundo interior, que eu designo vontade de

potncia (Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563)14. Esse texto, como mostra Scarlett

Marton, estratgico para entender a relao estabelecida por Nietzsche entre vontade de

potncia e fora, bem como para compreender a ampliao do alcance do conceito de vontade

de potncia:

Com a teoria das foras, [Nietzsche] levado a ampliar o mbito de atuao


do conceito de vontade de potncia: quando foi introduzido, ele operava
apenas no domnio do orgnico; a partir de agora, passa a atuar em relao a
tudo o que existe. A vontade de potncia diz respeito assim ao efetivar-se da
fora. (MARTON, 2000, p. 68).15

A esse propsito, interessa-nos sublinhar dois pontos. Primeiro: se o carter intrnseco

da fora vontade de potncia, ento podemos pensar a relao entre perspectiva e fora,

14
Mencionemos tambm a seo 36 de Para alm de bem e mal, em que, depois de apresentar suas
suposies, Nietzsche afirma: com isso se teria adquirido o direito de determinar toda fora eficiente
univocamente como: vontade de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF). Ou ainda o pstumo em
que comea por afirmar que o mundo consiste numa soma fixa de foras sempre em fluxo e termina com a
assero de que este mundo o mundo da vontade de potncia e nada alm disso! (Nachlass/FP 1885,
38[12], KSA 11.611). Ao evocarmos essas passagens, tanto da obra publicada quanto dos fragmentos pstumos,
queremos indicar que os conceitos de fora e de vontade de potncia esto intimamente relacionados. Embora
no a abordem da mesma maneira (cf., por exemplo, a objeo de Mller-Lauter (1974, p. 35-36) interpretao
de Deleuze acerca do j mencionado Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563), os comentadores por mais
diferentes que sejam suas leituras no questionam a existncia mesma da relao entre vontade de potncia e
fora. A esse respeito Scarlett Marton (2000, p. 70) afirma: possvel, pois, pensar a vontade de potncia como
explicitao do carter intrnseco da fora. Mller-Lauter (1974, p. 15) chega a empregar os termos como
intercambiveis ao asseverar: Como jogo e contrajogo de foras, ou seja, vontades de potncias se revela o
mundo de que Nietzsche fala; ou ao afirmar: toda fora (isto , toda vontade de potncia) sempre est
relacionada com as outras foras por conflito ou acomodao (Ibid., p. 30). Heidegger (2007, v.2, p. 204), por
sua vez, declara: Nietzsche sempre compreende fora no sentido de poder, isto , como vontade de poder.
Em outra chave de leitura, Wotling (2009, p. 75), ao analisar as relaes entre vontade de potncia e fora,
defende: A linguagem da fora no representa, de fato, seno a metfora uma das metforas da vontade de
potncia [...].
15
Para diversos intrpretes, ao conceber a efetividade como multiplicidade de vontades de potncia e foras,
Nietzsche indica que entre orgnico e inorgnico no existe trao distintivo fundamental (MARTON, 2000, p.
72) nem diferena qualitativa (MLLER-LAUTER, 1974, p. 40). Segundo Mller-Lauter (Ibid., p. 32), nas
ocasies em que evocada, a diviso entre mundo orgnico e mundo inorgnico deve ser tomada como
heurstica: o que existe um mundo como quantidade limitada de foras em incessante alterao, e aqueles
mundos no existem por si. Assim, parece-nos que no possvel pesquisar o perspectivismo em Nietzsche
negligenciando sua concepo de efetividade, porque a prpria efetividade (e no apenas o domnio
orgnico) que caracterizada como perspectivstica e interpretativa. E os dois comentadores mencionados
abordam o perspectivismo justamente dessa meneira. Depois de afirmar que no quadro da cosmologia que
Nietzsche entende o interpretar, Scarlett Marton (2000, p. 221 e p. 222) complementa: Nietzsche acaba por
ressaltar o carter perspectivista do mundo; Mller-Lauter (1974, p. 57), por seu turno, afirma que, para
Nietzsche, todo ente interpreta, interpretao.
28
estabelecida nos fragmentos pstumos 14[184] e 14[186], ambos da primavera de 1888, como

uma relao entre perspectiva e vontade de potncia; segundo: se o conceito de fora serve,

entre outras coisas, para estender a atuao do conceito de vontade de potncia para tudo o

que existe e se o conceito de perspectiva se encontra intrinsecamente vinculado ao de vontade

de potncia, ento o conceito de perspectiva se aplica a tudo o que existe.

Associar os conceitos de perspectiva e de vontade de potncia significa dizer que uma

perspectiva sempre perspectiva de vontade de potncia. A partir disso, destacam-se dois

aspectos inerentes a toda perspectiva. Se as configuraes de vontades de potncia se

modificam constantemente, ento se pode depreender que uma perspectiva no permanece a

mesma, ou seja, no tem como caractersticas a identidade nem a estabilidade: a mutabilidade

, assim, carter constitutivo de toda e qualquer perspectiva. Da Nietzsche afirmar: que toda

fortificao e toda ampliao de potncia alcanadas abram novas perspectivas e signifiquem

crer em novos horizontes isso perpassa meus escritos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[108],

KSA 12.114). O segundo aspecto diz respeito ao modo de efetivar-se das perspectivas: uma

perspectiva efetiva-se sempre de modo a procurar impor-se e ampliar sua potncia. A

mutabilidade intrnseca a toda perspectiva no impede, por isso, que as vontades de potncia

que se exercem de modo perspectivstico procurem imprimir estabilidade e fixidez s outras

vontades de potncia com que se relacionam, facilitando assim o domnio sobre seu entorno.

Com efeito, uma vez introduzido na obra de Nietzsche, o conceito de perspectiva

adquire relevncia crescente no transcurso de seu pensamento. A hesitao presente na seo

374 de A gaia cincia com relao ao alcance do carter perspectivstico da existncia se

mostra por fim aparente, pois o conjunto dos escritos publicados e pstumos indica que o

carter perspectivstico est presente em toda a existncia. Isso significa dizer que todo

existente dotado de carter perspectivstico, isto , pe perspectivas: da a meno ao

29
perspectivismo, segundo o qual todo centro de fora constri o mundo a partir de si

(Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Mas quer dizer ainda que o prprio modo de

existncia de tudo o que existe tambm sempre relativo a uma determinada perspectiva,

donde a exclamao: Como se ainda restasse mundo, se se subtrasse o perspectivstico!

(Nachlass/FP 1888, 14[184], KSA 13.371).

***

A seo 374 de A gaia cincia a partir de cuja anlise iniciamos este captulo

merece ainda ateno porque vincula o conceito de interpretao ao de perspectiva. Ao faz-

lo, Nietzsche tambm indica ali a impossibilidade de estabelecer o alcance do carter

interpretativo da existncia. Isso significa, em primeiro lugar, que no podemos determinar se

toda existncia essencialmente interpretante e, em segundo lugar, que no podemos

determinar se existe algo cujo modo de existncia no seja relativo a uma determinada

interpretao. Contudo, assim como no caso do conceito de perspectiva, o tom hesitante em

relao ao alcance do carter interpretativo na existncia apenas aparente, uma vez que,

segundo a ideia preponderante na obra do filsofo, toda a efetividade interpretativa, isto ,

interpretante e interpretvel.

Assim, no existe acontecimento independente de interpretao, independente de um

ser que o interprete: O carter interpretativo de todo acontecer, anota Nietzsche, para em

seguida precisar melhor o que essa sentena quer dizer: No h nenhum acontecimento em

si. Tudo o que acontece um grupo de fenmenos escolhidos e reunidos por um ser

interpretante (Nachlass/FP 1885-1886, 1[115], KSA 12.38). S h acontecimento, assim

como s h mundo, na medida em que algo interpretado como acontecimento e como

30
mundo. O mundo diferentemente interpretvel, ele no tem nenhum sentido atrs de si,

mas incontveis sentidos, afirma em outra anotao pstuma, e arremata: perspectivismo

(Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315)16.

Nietzsche estende o carter interpretante a toda a efetividade ao indicar que o

interpretar consiste no efetivar-se das vontades de potncia: A vontade de potncia

16
Para referir-se ao conceito de interpretao, Nietzsche emprega termos como Interpretation, Auslegung,
Deutung e Ausdeutung. Nas notas acrescentadas s suas tradues da obra de Nietzsche para a lngua francesa,
Patrick Wotling considera que, mesmo sendo impossvel fazer uma distino absolutamente estrita entre esses
termos, o uso que o filsofo faz deles indica sentidos diferentes, conforme o contexto em que aparecem.
Recebendo conotao mais positiva, Auslegung tem com frequncia o sentido de explicitao e glosa de um
texto (texto em seu sentido metafrico e abrangente, segundo o qual todo fenmeno e todo processo
constituem um texto a ser decifrado), ao passo que Interpretation, Deutung e Ausdeutung carregam geralmente
sentido pejorativo, expressando a crtica de Nietzsche em relao a desvios, falhas e falsificaes inconscientes
ou desonestas das leituras, tradues e interpretaes (a respeito dessa diversidade de vocabulrio e de
sentidos, consultar algumas das notas de traduo sobre o termo interpretao, entre as quais as seguintes: 101,
104, 118, 132, 142, 145, 157, 195, 261, 309, 485, 556, 578, presentes em Par-del bien et mal, trad. de Patrick
Wotling. Paris: Flammarion, 2000). Embora em determinados momentos Nietzsche confira sentido a esses
termos tal como Wotling os distingue, o prprio tradutor assinala, como mencionamos, a impossibilidade de
realizar uma distino estrita dos sentidos mobilizados pelo filsofo. Com efeito, observa-se que em certas
ocasies Nietzsche emprega 1) os termos em acepes contrrias s delimitaes de Wotling, 2) como
intercambiveis termos que, conforme as observaes de Wotling, possuiriam diferentes sentidos, 3) o mesmo
termo com sentidos opostos. Para exemplificar o primeiro caso, leiamos o seguinte fragmento pstumo: Contra
o positivismo, que permanece no fenmeno h apenas fatos, eu diria: no, precisamente no h fatos, apenas
interpretaes [Interpretationen]. No podemos constatar nenhum factum em si [...]. Tudo subjetivo, dizem
vocs: mas isso j interpretao [Auslegung], o sujeito no nada dado, mas sim algo inventado-a-mais,
colocado-por-trs. Por fim, mesmo necessrio pr o intrprete (Interpreten) atrs da interpretao
[Interpretation]? Isso j inveno, hiptese. Enquanto em geral a palavra conhecimento tiver sentido, o
mundo ser cognoscvel: mas ele diferentemente interpretvel [deutbar], ele no tem nenhum sentido atrs de
si, mas sim incontveis sentidos[.] Perspectivismo (Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). Nesse
fragmento pstumo, Auslegung se refere a uma interpretao criticada por Nietzsche, a que postula a realidade
do sujeito. Em contrapartida, o filsofo emprega o adjetivo deutbar na ocasio em que utiliza a afirmao de que
o mundo interpretvel (deutbar) em favor de seu perspectivismo. Aqui, Auslegung e deutbar no tm os
sentidos indicados por Wotling. Em outras ocasies, Nietzsche utiliza como intercambiveis termos diferentes
(Auslegung e interpretiren), que, conforme as observaes de Wotling, teriam sentidos opostos. Tomemos como
exemplo o fragmento pstumo em que Nietzsche afirma que a estimativa moral de valor uma interpretao
[Auslegung], um modo de interpretar [interpretieren] (Nachlass/FP 1885-1886, 2[190], KSA 12.161). Por fim,
ocorrem situaes em que Nietzsche emprega o mesmo termo para caracterizar tcnicas de interpretao opostas.
No pargrafo 22 de Para alm de bem e mal, por exemplo, embora utilize as expresses schlechte
Interpretations-Knste e Ausdeutung para se referir schlechten Philologie da legalidade da natureza,
Nietzsche tambm emprega o termo Interpretation para referir-se precisamente arte de interpretao oposta
(entgegengesetzen Absicht und Interpretationskunst), isto , sua prpria arte de interpretao, assim como se
refere a ele prprio como Interpret e interpretao do mundo como vontade de potncia como Interpretation
(JGB/BM 22, KSA 5.37). Ou seja, o termo Interpretation aplicado tanto para caracterizar a arte de
interpretao criticada por Nietzsche quanto para reportar-se prpria interpretao de Nietzsche. ric Blondel
(1986, 139-140) tambm procura, mas de modo ligeiramente diferente, distinguir os sentidos que Nietzsche faz
operar no uso de palavras diversas para se referir ao conceito de interpretao: Portanto, h lugar para, por
respeito ao texto, distinguir, se possvel, a Deutung ou Auslegung (exegese, interpretao em sentido estrito) da
Interpretation, comentrio mais ou menos livre, glosa acrescentada infiel ao texto.
31
interpreta, assevera o filsofo (Nachlass/FP 1885-1886, 2[148], KSA 12.139)17. O pargrafo

12 da segunda dissertao de Para a genealogia da moral mostra no apenas que tudo o que

existe depende de interpretao e que o interpretar inerente s vontades de potncia, mas

tambm em que consiste propriamente o exercer-se interpretante das vontades de potncia.

Nessa seo, Nietzsche sublinha a necessidade de que no se negligencie

que algo de existente, algo que de algum modo se instituiu, sempre


interpretado outra vez por uma potncia que lhes superior para novos
propsitos, requisitado de modo novo, transformado e transposto para uma
nova utilidade; que todo acontecer no mundo orgnico um sobrepujar, um
tornar-se senhor, e que, por sua vez, todo sobrepujar e tornar-se senhor um
interpretar de modo novo, um ajustamento, no qual o sentido e fim de at
agora tem de ser necessariamente obscurecido ou inteiramente extinto. [...]
todos os fins, todas as utilidades, so apenas sinais de que uma vontade de
potncia se tornou senhora de algo menos poderoso e, a partir de si,
imprimiu-lhe o sentido de uma funo. (GM/GM II, 12, KSA 5.313-314,
trad. de RRTF).

Ao trmino desse pargrafo, Nietzsche declara que a essncia da vida sua vontade

de potncia e destaca a supremacia que tm, por princpio, as foras espontneas,

agressivas, invasoras, criadoras de novas interpretaes, de novas direes e de formas

(GM/GM II, 12, KSA 5.316, trad. de RRTF)18. Uma coisa no tem um sentido, uma

direo, uma finalidade, uma funo, uma utilidade em si. Ao dizer que no h um sentido,

uma direo e assim por diante, Nietzsche constata pluralidade onde normalmente se v

unidade. Alm disso, ao afirmar que no h sentido, funo etc. em si, o filsofo quer fazer

ver que sentido, funo etc. so atribudos, criados, introduzidos: ou seja, no se encontram

dados de antemo para serem descobertos e extrados. Aqui, interpretar significa introduzir

17
A relao entre as noes de interpretao e de vontade de potncia to intrnseca que Patrick Wotling (2009,
p. 79) chega ao ponto de considerar que Nietzsche elabora um conceito fortemente sinttico, no qual rene
todas as determinaes da vontade de potncia: o conceito de interpretao.
18
Nietzsche tambm faz referncia s foras interpretantes no pargrafo 12 da terceira dissertao de Para a
genealogia da moral.
32
sentido, e no extrair sentido. No procurar o sentido nas coisas: mas introduzi-lo!, exclama

o filsofo (Nachlass/FP 1886-1887, 6[15], KSA 12.238)19.

A multiplicidade das configuraes das vontades de potncia, mais precisamente, o

interpretar dessas vontades de potncia determina a multiplicidade de sentidos, de funes que

constituem a histria de uma coisa, seja ela uma palavra, um rgo, uma instituio, e assim

por diante. O subjugar de determinadas vontades de potncia sobre outras vontades de

potncia consiste num processo interpretativo, de atribuio de sentidos, de direes. Assim,

19
Em outro fragmento pstumo (Nachlass/FP 1885-1886, 2[82], KSA 12.100), Nietzsche afirma: Introduzir
sentido [Sinn-hineinlegen] na maioria dos casos uma nova interpretao sobre uma antiga interpretao tornada
incompreensvel, que agora ela prpria apenas um signo. A concepo de que interpretar significa introduzir
e no extrair sentido se faz notar no prprio modo como o filsofo se expressa, a saber, utilizando de maneira
insistente o prefixo hinein, que transmite a ideia de introduo, associado a diversas palavras, o que resulta em
termos como hineininterpretirt, hineingedeutet, hineingelegt, hineingedichtet, sehen hinein. Alm disso,
Nietzsche emprega nessas situaes o caso acusativo, reforando a aluso ao movimento de introduo. Esse
procedimento se verifica de modo exemplar no Nachlass/FP 1887, 9[91], KSA 12.383-387, no qual se l: a
necessidade mecnica no um fato: ns, somente, a introduzimos por interpretao [hinein interpretirt] no
acontecer (Ibid., p. 383). Do mesmo modo, ns introduzimos [hineingedeutet] sujeito[,] agente[,] nas coisas
(Ibid., p. 383). E, apenas conforme o modelo do sujeito, ns inventamos e introduzimos por interpretao
[hineininterpretirt] a coisidade na confuso de sensaes (Ibid., p. 383). Adiante, escreve: Verdade no com
isso algo que estivesse a e algo que se pudesse encontrar, descobrir, mas sim algo que se deve criar e que d o
nome para um processo, mais ainda, para uma vontade de dominao, que em si no tem nenhum fim: introduzir
[hineinlegen] verdade, como um processus in infinitum, um ativo determinar, no um se tornar consciente de
algo que fosse em si fixo e determinado (Ibid., p. 385). Em outro fragmento pstumo (Nachlass/FP 1888,
14[152], KSA 13.335), o filsofo afirma: Acreditamos na vontade como causa at o ponto de, conforme nossa
experincia pessoal em geral, introduzirmos [hineingelegt] uma causa no acontecer. A ideia de introduo de
sentido e de valor parece constituir intrinsecamente o conceito de interpretao, mesmo nos casos em que
Nietzsche recorre aos termos Auslegung e auslegen, quer dizer, nos casos em que a palavra que designa o
conceito de interpretao composta com o prefixo aus, que indica, entre outros, os sentidos de exteriorizao e
de extrao. Se assim , ento no h uma pura extrao, isenta de toda introduo de sentido: em outras
palavras, todo auslegen tambm um hineinlegen. No pargrafo 353 de A gaia cincia, Nietzsche explora
morfolgica e semanticamente esses termos. Ali, depois de afirmar que a autntica inveno dos fundadores de
religio consiste em fixar uma espcie de vida e conferir-lhe uma interpretao (Interpretation), fazendo com
que parea possuir o mais elevado valor, exemplifica: Jesus (ou Paulo), por exemplo, encontrou a vida da gente
pequena numa provncia romana [...]: ele a interpretou, ele introduziu o mais elevado sentido e valor [er legte es
aus, er legte den hchsten Sinn und Werth hinein] e com isso a coragem para desprezar qualquer outra espcie
de vida [...] (FW/GC 353, KSA 3.589). A ideia de que todo auslegen consiste num hineinlegen est presente de
modo explcito tambm num dos poemas acrescentados segunda edio de A gaia cincia. Intitulado
justamente Interpretation, o poema comea assim: Leg ich mich aus, so leg ich mich hinein / Ich kann nicht
selbst mein Interprete sein (Scherz, List und Rache. Vorspiel in deutschen Reimen, 23, KSA 3.357). Esses
versos sugerem que o interpretador se introduz no interpretado, quando interpretador e interpretado so os
mesmos. Mas para alm desse caso especfico de identidade entre interpretador e interpretado , o filsofo
continuar a expor, com frequncia em tom crtico, outras situaes em que o intrprete se introduz no
interpretado: aos olhos de Nietzsche, a Revoluo Francesa aparece como um texto que desapareceu sob as
interpretaes daqueles que nele por tanto tempo e de maneira to apaixonada introduziram, por meio de
interpretao [hinein interpretirt], seus prprios entusiasmos e revoltas (JGB/BM 38, KSA 5.56). Se interpretar
consiste em introduzir sentido isto , se todo auslegen um hineinlegen , parece impossvel que o
interpretador no se imiscua, de alguma maneira, no interpretado.
33
uma interpretao sempre consiste em processos de subjugao, em que uma configurao de

vontades de potncia domina outra ou outras. Da se depreende que a concepo de

interpretao como introduo de sentidos, fins etc. se encontra subsumida por uma

concepo mais fundamental: interpretar significa assenhorar-se.

A vontade de potncia interpreta: na formao de um rgo se trata de uma


interpretao; a vontade de potncia delimita, determina graus, diferenas de
potncia. Em verdade, a interpretao ela mesma um meio para se tornar
senhor de algo. (Nachlass/FP 1885-1886, 2[148], KSA 12.139).

Como toda a efetividade e no apenas o domnio orgnico consiste em vontades

de potncia, o interpretar se exerce no somente no mbito orgnico: ele se d em toda a

efetividade. Se mantivermos em vista a ideia de que o conceito de fora serve para ampliar a

aplicao do conceito de vontade de potncia a tudo o que existe (MARTON, 2000, p. 68),

tem-se, por conseguinte, que no apenas o domnio orgnico, mas sim toda a efetividade

consiste em vontades de potncia, de modo que o interpretar se exerce no somente no

mbito orgnico, mas em toda a efetividade; deduz-se ainda que, mesmo nas ocasies em

que Nietzsche faz referncia s foras interpretantes (GM/GM III, 12, KSA 5.365), trata-se,

a rigor, de vontades de potncia interpretantes.

Ao afirmar que sentidos, direes, utilidades e funes so sempre

redeterminados em novos processos interpretativos, em que umas vontades de potncia

dominam outras, Nietzsche indica tambm que a interpretao, existente como vontade de

potncia, tem carter processual: A prpria interpretao, como uma forma da vontade de

potncia, tem existncia (no, porm, como um ser, mas como um processo, um vir-a-ser)

como um afeto (Nachlass/FP 1885-1886, 2[151], KSA 12.140). Dado que uma interpretao

sempre se constitui no efetivar-se de uma determinada configurao de vontades de potncia,

e j que as configuraes de vontades de potncia alteram-se constantemente, ento a

34
mudana, a no fixidez, faz parte da caracterizao da interpretao. A pluralidade e a

multiplicidade esto a tal ponto inscritas na concepo nietzschiana de interpretao, na

concepo nietzschiana de efetividade como interpretante e como interpretvel, que, como j

vimos, o filsofo afirma: no podemos rejeitar a possibilidade de que ele [o mundo] encerre

em si infinitas interpretaes (FW/GC 374, KSA 3.627). E se adverte que nessa infinidade

tambm se inclui alguma tolice de interpretao a nossa prpria humana, demasiado

humana, que ns conhecemos (FW/GC 374, KSA 3.627), por outro lado, precisamente o

carter processual e mltiplo das interpretaes permite a Nietzsche pensar a superao dessa

tolice de interpretao. Donde o filsofo pretender que toda elevao do homem traga

consigo a superao de interpretaes mais estreitas (Nachlass/FP 1885-1886, 2[108], KSA

12.114).

***

A investigao sobre a maneira como os conceitos de perspectiva e interpretao esto

relacionados ao de vontade de potncia indica que tais conceitos esto a servio no da

promoo, mas sim da crtica a noes como sujeito, subjetividade, subjetivismo e

intersubjetividade. A menos que se pretenda defender que a crtica empreendida pelo filsofo

noo de sujeito no realiza sua inteno, ento no h por que vincular perspectiva e

interpretao a sujeito20.

20
Ao colocarmo-nos ao lado de intrpretes que inscrevem o perspectivismo de Nietzsche na efetividade, como
Mller-Lauter (1974), ou na cosmologia, como Scarlett Marton (2000), distanciamo-nos de outros intrpretes
que restringem a abordagem do perspectivismo ao domnio do conhecimento ou que examinam o tema por
meio de noes, que consideramos inapropriadas, como as de sujeito e de subjetividade, sem dar voz
funo crtica que o perspectivismo desempenha precisamente contra essas noes. No captulo dedicado ao
perspectivismo em Nietzsche on truth and philosophy, Clark no menciona o conceito de vontade de potncia e,
alm disso, sugere que os termos perspectivstico e subjetivo so intercambiveis ao falar em carter
perspectivstico ou subjetivo (CLARK, 1990, p. 134). Tambm Gerhardt (1989), em seu artigo Die
Perspektive des Perspektivismus, no se desembaraa das noes de sujeito (Ibid., p. 267 e p. 268) e
35
Com frequncia Nietzsche conclama os filsofos a se guardarem da antiga, perigosa

fabulao conceitual que coloca um sujeito do conhecimento puro, sem vontade, indolor,

intemporal, assim como de conceitos contraditrios como razo pura, espiritualidade

absoluta, conhecimento em si (GM/GM III, 12, KSA 5.365). Com esses conceitos, exige-

se que se pense algo impensvel acerca do olhar: um olhar voltado para nenhuma direo. Tal

exigncia se revela um contrassenso inconcebvel na medida em que h apenas um ver

perspectivstico, apenas um conhecer perspectivstico (GM/GM III, 12, KSA 5.365)21.

Nietzsche denuncia o intuito de supresso do carter perspectivstico do olhar presente

em uma determinada concepo de sujeito, cujas caractersticas so unidade, identidade,

permanncia, desinteresse, pura racionalidade. A crtica a essa tentativa de supresso do

carter perspectivstico do olhar est presente na seguinte anotao: Eu[,] sujeito como

linha de horizonte. Inverso do olhar perspectivstico (Nachlass/FP 1885-1886, 2[67], KSA

subjetividade (Ibid., p. 268), assim como das de homem (Ibid., p. 281) e antropomorfismo (Ibid., p. 281),
o que o leva a defender a tese de que o perspectivismo no seno uma perspectiva antropolgica e humana.
Gerhardt (Ibid., p. 273) chega a mencionar que uma perspectiva expresso de foras, isto , de vontades de
potncia, cuja prtica dispor e dominar. No entanto, em vez de explorar o potencial crtico dessa afirmao
em relao, por exemplo, prpria concepo de sujeito , o autor dela conclui que o fundamento prtico do
perspectivismo assegurado pela especulativa metafsica da potncia de Nietzsche. E, mesmo vinculando a
noo de perspectiva de fora, mantm o conceito de sujeito: O perspectivstico apenas uma atividade
especfica de ao e reao de um sujeito, de um centro de foras, como diz Nietzsche (Ibid., p. 273). Em A
filosofia perspectivista de Nietzsche, Antnio Marques (2003, p. 10) insiste no perspectivismo como uma
epistemologia que desenvolve e radicaliza a filosofia transcendental, particularmente a de Kant, ao refletir sobre
o modo pelo qual o sujeito conhece. O perspectivismo representaria a tomada de conscincia das condies
antropolgicas de todo conhecer humano (Ibid., p. 9), bem como a radicalizao do uso regulador e no mais
constitutivo das categorias cognitivas, em funo agora da vontade de potncia. No entanto, a despeito de
associar perspectiva e vontade de potncia, Antnio Marques trata o perspectivismo sobretudo como uma teoria
do conhecimento. Alm disso, estabelece um vnculo estreito entre as noes de perspectiva e de sujeito e
considera o perspectivismo como antropomrfico (Ibid., p. 10) e antropocntrico (Ibid., p.66), sem mencionar
que, no limite, o perspectivismo implica a crtica a tais noes. Em uma direo oposta se encontra Deleuze, que
confere ao perspectivismo e ao conceito de vontade de potncia um carter extremamente crtico, inclusive
noo de sujeito. Deleuze (1973, p. 103) sustenta que Nietzsche [...] pensa ter encontrado o nico princpio
possvel de uma crtica total naquilo que ele chama seu perspectivismo. E, mais adiante, afirma: No o ser
racional, funcionrio dos valores em curso [...]. Mas ento quem faz a crtica? Qual o ponto de vista crtico? A
instncia crtica a vontade de potncia, o ponto de vista crtico aquele da vontade de potncia (Ibid., p. 107-
108).
21
Nessa passagem, ao utilizar aspas para caracterizar as noes de sujeito e de conhecimento em si, alvejadas por
sua critica, Nietzsche acentua o quo estrangeiras elas so em relao ao seu prprio pensamento: trata-se
meramente de fabulaes conceituais, conceitos contraditrios e afinal inconcebveis, ou seja, literalmente no
conceitos. Coisa em si to pouco lcita enquanto conceito quanto conhecimento em si, afirma num
fragmento pstumo do perodo de Para a genealogia da moral (Nachlass/FP 1886-1887, 5[14], KSA 12.189).
36
12.91). A imagem do horizonte possui nesse caso uma conotao negativa: mais do que a

ideia de limitao, ela sugere a disposio na mesma linha, disposio em que tudo se nivela,

em que se perdem as nuanas que o perspectivstico traz consigo. Em outras palavras, a

imagem denuncia a pretenso do sujeito de dispor tudo diante de si de maneira aparentemente

objetiva, neutra, impessoal, desinteressada. Todavia, essa ambio de, por meio daquela

noo de sujeito, suprimir o carter perspectivstico no passa de mera pretenso, pois, na

medida em que h apenas um olhar perspectivstico, exige do olhar um contrassenso, algo

inconcebvel. A constatao do carter perspectivstico do intelecto permite a Nietzsche

afirmar que o perspectivstico do mundo vai to fundo quanto alcana hoje a nossa

compreenso do mundo, assim como a classificar como apenas formas perspectivsticas

uma srie de noes com as quais trabalham fsicos e metafsicos: tomo, nmero, causa e

efeito, espao e tempo, meio e fim, ativo e passivo, substncia, indivduo, alma, faculdades da

alma, objeto e, por fim, sujeito (Nachlass/FP 1885, 40[39], KSA 11.648).

Assim, Nietzsche sustenta no s que os conceitos de interpretao e de perspectiva

no pressupem a noo de sujeito, mas que o prprio sujeito apenas forma

perspectivstica (Nachlass/FP 1885, 40[39], KSA 11.648), interpretao e inveno

(Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315)22. Destinado a criticar a crena positivista

segundo a qual h apenas fatos, o enunciado de que no h fatos, apenas interpretaes

no incorre, portanto, em subjetivismo. objeo de que tudo subjetivo, Nietzsche

responde antecipadamente: mas isso j interpretao, o sujeito no nada dado, mas sim

algo inventado-a-mais, colocado-por-trs. E, em seguida, complementa: Por fim, mesmo

22
Por isso, a despeito da vlida inteno de indicar o carter mltiplo intrnseco aos conceitos de perspectiva e
de interpretao em Nietzsche, Hofmann (1994, p. 50) utiliza noes a nosso ver inadequadas, como sujeito e
intersubjetividade, ao afirmar: Diferentes perspectivas existem, portanto, no apenas ao nvel intersubjetivo,
mas tambm no prprio sujeito, ao qual Nietzsche atesta multiplicidade e pluralidade perspectivsticas.
37
necessrio pr o intrprete atrs da interpretao? Isso j inveno, hiptese (Nachlass/FP

1886-1887, 7[60], KSA 12.315)23.

Desvinculadas dessa noo de sujeito, perspectivas e interpretaes se relacionam a

qu? No fragmento pstumo que acabamos de mencionar, Nietzsche afirma que so nossos

impulsos e seu pr e contra que interpretam, e complementa: Cada impulso uma espcie

de ambio por domnio, cada um tem sua perspectiva, que ele gostaria de impor como norma

a todos os impulsos restantes (Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). Em outra

anotao pstuma, o filsofo afirma que a interpretao mesma um sintoma de

determinados estados fisiolgicos; em seguida pergunta Quem interpreta?, e responde:

Nossos afetos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[190], KSA 12.161).

por relacionar perspectivas e interpretaes a impulsos e afetos que, em lugar da

teoria do conhecimento, Nietzsche pensa em uma doutrina das perspectivas dos afetos (

qual pertence uma hierarquia dos afetos) (Nachlass/FP 1887, 9[8], KSA 12.342). Se

retornarmos ao h pouco mencionado pargrafo 12 da terceira dissertao de Para a

genealogia da moral, leremos que a futura objetividade no depender nem de um puro

sujeito do conhecimento, nem de uma contemplao desinteressada, mas da diversidade

de perspectivas e interpretaes dos afetos (GM/GM III, 12, KSA 5.364-365): Quanto mais

afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos

empregar para essa mesma coisa, tanto mais completo ser nosso conceito dessa coisa, nossa

objetividade (GM/GM III, 12, KSA 5.365).

Ainda resta, porm, a pergunta: o que entende Nietzsche por impulsos e afetos? A

passagem de Para a genealogia da moral de que ora nos ocupamos oferece alguns indcios.

23
Leia-se, tambm, a seguinte passagem: Por que o mundo, que nos diz respeito, no seria uma fico? E a
quem pergunta: Mas fico no pertence um autor? no se poderia responder redondamente: Por qu? No
pertence esse pertence, talvez, fico? Ento no permitido, para com o sujeito, assim como para com o
predicado e o objeto, tornar-se com o tempo um pouco irnico? (JGB/BM 34, KSA 5.54, trad. de RRTF).
38
Nela, o filsofo faz ver que uma determinada concepo de sujeito e de conhecimento no

pode ser sequer imaginada porque quer conceber um olhar e um conhecimento que no

sejam perspectivsticos: para tanto, alm de ser preciso suspender todos os afetos, as foras

ativas e interpretantes devem ser inibidas, devem estar ausentes, afirma Nietzsche, fazendo

em seguida a ressalva de que se trata de foras, porm, por meio das quais, somente, ver se

torna um ver-algo (GM/GM III, 12, KSA 5.365). O filsofo vincula perspectivas e

interpretaes no apenas aos afetos, mas tambm fora, cujo carter intrnseco vontade de

potncia. As indicaes para uma resposta pergunta sobre o que so impulsos e afetos, aos

quais se vinculam perspectivas e interpretaes, so encontradas nas afirmaes de que, no

animal, possvel derivar todos os seus impulsos da vontade de potncia (Nachlass/FP 1885,

36[31], KSA 11.563), e de que a vontade de potncia a forma primitiva do afeto, de modo

que todos os outros afetos so somente suas configuraes (Nachlass/FP 1888, 14[121],

KSA 13.300).

O pargrafo 36 de Para alm de bem e mal mostra que a reflexo sobre os afetos e os

impulsos est vinculada reflexo sobre os conceitos de fora e de vontade de potncia. A

partir da nica realidade para a qual temos acesso, a dos impulsos e afetos, Nietzsche faz

nesse texto o ensaio de perguntar se o mundo mecnico, material, no teria a mesma

ordem de realidade que nossos afetos tm, se no seria uma forma mais primitiva do mundo

dos afetos, uma espcie de vida de impulsos, em que as funes orgnicas estivessem

sinteticamente interligadas. Suposto que se conseguisse explicar toda a nossa vida de

impulsos como a conformao e ramificao de uma nica vontade, a vontade de potncia, e

suposto que se pudessem reconduzir todas as funes orgnicas vontade de potncia, ento

se teria adquirido o direito de determinar toda fora eficiente univocamente como: vontade

39
de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF modificada24). Assim, partindo da

nica realidade que nos dada, a dos impulsos e afetos, Nietzsche pensa o mundo inorgnico

como uma forma primitiva desse mundo de afetos e impulsos; reconduzindo o mundo

orgnico dos afetos e impulsos vontade de potncia, determina toda fora eficiente, isto ,

no apenas o mundo orgnico, mas tambm o inorgnico, como vontade de potncia25.

Agora podemos compreender de maneira mais clara que o conceito de perspectiva no

se vincula s noes de sujeito e de subjetividade, tampouco de homem, mas sim a afetos e

impulsos e, portanto, a vontades de potncia.

De cada um de nossos impulsos fundamentais h uma diferente estimativa


perspectivstica de todo acontecer e vivncia. [...] O homem como uma
multiplicidade de vontades de potncia: cada uma com uma multiplicidade
de meios de expresso e formas. (Nachlass/FP 1885-1886, 1[58], KSA
12.25).

Da mesma maneira, a pergunta por quem interpreta no pode, em sua resposta, evocar

as noes de sujeito e de subjetividade. Melhor: na medida em que o interpretar o exercer-se

de vontades de potncia e de foras, interdita-se a prpria pergunta quem interpreta?: No

se pode perguntar: quem, pois, interpreta?, mas o prprio interpretar, como uma forma da

vontade de potncia, tem existncia (no, porm, como um ser, mas como um processo, um

vir-a-ser) como um afeto (Nachlass/FP 1885-1886, 2[151], KSA 12.140).

Afirmar que a prpria interpretao tem existncia como vontade de potncia significa

dizer que no h algo que interpreta, algo entendido como um intrprete, um sujeito,

24
Traduzimos Affekt por afeto, e no por emoo, como faz Rubens Rodrigues Torres Filho.
25
Nosso objetivo aqui consiste apenas em indicar que, ao relacionar os conceitos de perspectiva e interpretao
aos de afeto, impulso e, poderamos acrescentar, instinto, Nietzsche os vincula aos conceitos de vontade de
potncia e de fora. Com razo, Vnia Dutra de Azeredo (2008, p. 86-91) defende que Nietzsche atribui a esses
conceitos uma significao prxima, at mesmo sinonmica em algumas passagens. Mas nem por isso, precisa a
intrprete, o emprego de um determinado conceito deixa de apresentar peculiaridades. Assim, se na maior parte
dos casos possvel substituir impulso por vontade de potncia, por outro lado impulso remete, com mais
facilidade, rede complexa de que os existentes seriam formados e no implica a compreenso de uma unidade,
primeira vista suscitado pelo termo vontade de potncia (Ibid., p. 89). Embora semanticamente prximos,
aqueles conceitos comportam, portanto, nuanas, cuja investigao no nosso objetivo.
40
um indivduo, uma coisa, uma causa, um agente. A interpretao o prprio exercer-

se das vontades de potncia, isto , de determinadas configuraes de vontades de potncia.

Nietzsche quer evitar que caiamos, uma vez mais, num equvoco cuja origem gramatical, a

saber, no engano de pensarmos o sujeito por detrs da ao, o sujeito separado da ao, o

sujeito como causa da ao. No caso particular da interpretao, o equvoco consistiria em

colocar o sujeito por detrs da interpretao, em compreender o interpretar como a ao de

um intrprete, em separar a interpretao (como ao ou como efeito) de um sujeito (como

agente ou causa da interpretao). Interpretao no ao de um agente, no efeito de uma

causa alis, til lembrar que sujeito e objeto, bem como causa e efeito, so, eles

prprios, interpretaes, e no fatos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[147], KSA 12.139).

***

Desvinculadas de noes como sujeito, indivduo e homem, perspectivas e

interpretaes consistem no exercer-se de configuraes de vontades de potncia radicalmente

singulares. No se deve entender que uma determinada configurao de vontades de potncia

e, por conseguinte, sua perspectiva e sua interpretao singular porque consiste numa

unidade simples, pois, para Nietzsche, como Mller-Lauter insiste, tudo aquilo que aparece

como unidade, como simples, efetivamente multiplicidade, organizao, conjunto em

incessante processo de modificao (MLLER-LAUTER, 1974, p. 14-18)26. Uma

determinada configurao de vontades de potncia singular em virtude de trs fatores:

porque ela no igual a nenhuma outra configurao de vontades de potncia, porque ela no

pode colocar-se simultaneamente no mesmo lugar de nenhuma outra configurao de

26
Toda unidade unidade apenas como organizao e conjunto (Nachlass/FP 1885-1886, 2[87], KSA
12.104).
41
vontades de potncia e, por fim, porque impossvel que alguma outra configurao de

vontades de potncia se coloque ao mesmo tempo em seu lugar, a fim de partilhar a mesma

perspectiva e a mesma interpretao. Do mesmo modo, uma determinada perspectiva ou

uma determinada interpretao radicalmente singular porque no igual a nenhuma outra,

porque no pode ocupar simultaneamente o mesmo lugar de nenhuma outra e porque no

pode ter seu lugar ocupado concomitantemente por nenhuma outra.

Mesmo que singulares, perspectivas e interpretaes no se encapsulam em si mesmas

numa espcie de solipsismo. No se pode falar em solipsismo porque, em primeiro lugar, no

h efetivamente algo como um sujeito ou um eu, que, para Nietzsche, so invenes, como j

procuramos mostrar; em segundo lugar, porque estamos a tratar de perspectivas e

interpretaes de vontades de potncia, que so necessariamente inter-relacionais: uma

determinada configurao de vontades de potncia no coloca em dvida a existncia de

outras configuraes, mas, ao contrrio, at mesmo a pressupe, pois s existe em relao.

Vontades de potncia, assim como perspectivas e interpretaes, s existem em relao umas

com as outras27.

Nietzsche procura determinar o carter dessa relao em diversas passagens. Num

fragmento pstumo, imediatamente antes de definir vontade de potncia como pathos, como

um produzir efeitos, o filsofo afirma que tudo o que existe so quanta dinmicos em uma

relao de tenso com todos os outros quanta dinmicos, cuja essncia em sua relao com

todos os outros quanta consiste em seu efetivar-se sobre os mesmos (Nachlass/FP 1888,

14[79], KSA 13.259). Em outro fragmento do mesmo perodo, Nietzsche assevera que a

nica realidade o querer-tornar-se-mais-forte de todo centro de fora no a

autoconservao, mas sim apropriao, querer-tornar-se-senhor, querer-tornar-se-mais,

27
Deleuze (1973, p. 7) preciso acerca desse ponto: O ser da fora o plural; seria propriamente absurdo
pensar a fora no singular. Uma fora dominao, mas tambm o objeto sobre o qual uma dominao se
exerce.
42
querer-tornar-se-mais-forte (Nachlass/FP 1888, 14[81]), KSA 13.261). Pouco adiante,

precisa o que quer dizer com quanta de fora ao afirmar que sua essncia consiste em

exercer potncia sobre todos os outros quanta de fora. Em ambos os fragmentos pstumos

que acabamos de evocar se trata de uma relao de tenso, de exerccio de potncia e

dominao. Se os quanta de fora sempre esto em busca de mais potncia, esse processo no

, porm, exclusivamente conflituoso: em alguns casos existem tambm arranjo e

unificao de foras. Foras que se arranjam ou se unificam estabelecem, por sua vez,

relaes tensas com outras foras, de modo que podemos constatar dois tipos de relao: de

uma parte, arranjo e unificao, e de outra parte, conflito e tenso. o que se depreende de

outro fragmento pstumo do mesmo perodo:

Todo corpo especfico aspira a tornar-se senhor de todo espao e estender


sua fora ( sua vontade de potncia:) e repelir tudo o que resiste sua
extenso. Porm, encontra-se constantemente com esforos iguais de outros
corpos e acaba por arranjar-se (unificar-se) com aqueles que lhe so afins o
bastante assim, ento, eles conspiram juntos por potncia. E o processo
prossegue... (Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373-374).

O que significa unificao? Talvez se pudesse imaginar que o verbo unificar

servisse para explicar o verbo arranjar, depois do qual vem imediatamente, entre parnteses,

grafado. No fossem as aspas, porm, a indicar que no se trata exatamente de unificao.

No se deve perder de vista que aquilo que se denomina unidade sempre uma simplificao

de uma efetiva multiplicidade arranjada e hierarquizada. Assim, nem mesmo aquilo que

Nietzsche designa entre aspas como unificao de diferentes configuraes de vontades

de potncia implica a assero de que elas efetivamente compartilham a mesma perspectiva e

a mesma interpretao, ocupam simultaneamente o mesmo lugar, um lugar comum28. Para que

28
Aqui, mostra-se pertinente perguntar se existe efetivamente comunicao entre perspectivas e interpretaes
diferentes e radicalmente singulares. Questionamos a possibilidade de perspectivas e interpretaes diferentes e
radicalmente singulares comporem entre si uma interseco.
43
houvesse essa interseco entre perspectivas diferentes, uma determinada perspectiva teria de

ser, ao mesmo tempo, ela prpria e outra; assim tambm no caso das interpretaes29. Isso no

possvel, como atesta o seguinte fragmento pstumo:

Ele [o mundo] essencialmente mundo de relaes: ele tem, sob certas


circunstncias, de cada ponto seu aspecto distinto: seu ser essencialmente
diferente em cada ponto: ele pressiona cada ponto, cada ponto lhe resiste e
essas somas so em todo caso totalmente incongruentes. (Nachlass/FP 1888,
14[93], KSA 13.271).

esse carter singular das perspectivas e das interpretaes que permite a Nietzsche

designar, no pargrafo 374 de A gaia cincia, a aspirao de conhecer outras perspectivas

como uma curiosidade desesperada. E exatamente contra essa passagem que Nehamas

precisa se posicionar para defender a tese de que possvel conhecer outras perspectivas. Em

seu artigo Immanent and Transcendent Perspectivism in Nietzsche, o autor afirma que a

aliana com outras criaturas com o mesmo propsito (grifo nosso) depende de uma

habilidade para entender aqueles organismos e suas perspectivas (NEHAMAS, 1983, p.

477). E acrescenta: Nesse sentido, nosso ponto de vista no limitado. Segundo Nehamas

(1983, p. 480-481), todo ser humano particular na medida em que possui caractersticas que

no partilha com ningum (o autor as denomina fatos mais subjetivos); por outro lado, possui

caractersticas que comunga com outros seres humanos (designadas como fatos mais

29
Depois de propor que possvel unificar perspectivas comuns, assim como ocorre com interesses e posies
comuns, Gerhardt (1989, p. 267) admite que se trata de uma difcil questo querer saber como possvel uma tal
unificao: Ademais, podemos nos unificar a perspectivas comuns, assim como podemos nos entender sobre
posies e interesses comuns. Como uma tal unificao de fato possvel uma difcil questo, que eu
infelizmente tenho aqui de deixar em aberto. A dificuldade de Gerhardt justificvel na medida em que no h
efetivamente perspectivas comuns, tampouco interesses e posies comuns. Por conseguinte, o que Gerhardt
denomina unio ou unificao de perspectivas, interesses e posies no pode ser entendido como comunidade
de perspectivas, interesses e posies: interesses e posies so sempre relativos a determinadas perspectivas,
jamais comuns. isso que se depreende do necessrio perspectivismo, em virtude do qual todo centro de fora
[...] constri o mundo inteiro a partir de si, isto , conforme sua fora, mede, apalpa, forma (Nachlass/FP 1888,
14[186], KSA 13.373); ou, ainda, da afirmao de que todo centro de fora tem sua perspectiva para todo o
resto, isto , sua valorao totalmente determinada, seu modo de ao, seu modo de resistncia (Nachlass/FP
1888, 14[184], KSA 13.371).
44
objetivos). Alm disso, os seres humanos tm caractersticas que partilham com outros

animais, como o caso dos mamferos. Nehamas defende que, em funo dessa

comunidade, podemos entender algo sobre o ponto de vista do que , por exemplo, ser um

morcego. Mas, para sustentar essa tese, Nehamas (1983, p. 477) obrigado a dizer, a respeito

do pargrafo 374 de A gaia cincia, que a metfora de no ser capaz de olhar para alm de

nosso prprio ngulo , aqui, infeliz. Assim, pe-se abertamente de encontro letra do texto

em que Nietzsche assevera: No podemos ver para alm de nosso ngulo: uma curiosidade

desesperada querer saber quais outras espcies de intelecto e de perspectiva poderia haver

(FW/GC 374, KSA 3.626).

Levando em conta essa afirmao de Nietzsche, no podemos efetivamente responder

pergunta what is it like to be a bat? seno de nossa prpria perspectiva: quer dizer, jamais

partilharemos a perspectiva daquilo que denominamos morcego, pois sempre a partir da

prpria perspectiva e no de seu exterior que se considera uma outra.

Em outra direo, todavia, o prprio Nietzsche utiliza expresses como tica

humana (Nachlass/FP 1880, 6[433], KSA 9.309 e Nachlass/FP 1881, 15[9], KSA 9.637),

interpretao humana (Nachlass/FP 1886-1887, 6[14], KSA 12.238) e intelecto humano

(FW/GC 374, KSA 3.626), entre muitas outras, sugerindo uma generalizao e, acima de

tudo, a partilha por uma multiplicidade da mesma perspectiva ou da mesma interpretao, o

que vai de encontro concepo de que as perspectivas e as interpretaes so radicalmente

singulares. Para compreender essa tenso, preciso levar em conta que, assim como, segundo

Mller-Lauter (1974, p. 32), a diviso entre os domnios orgnico e inorgnico cumpre uma

funo heurstica, expresses como tica humana e interpretao humana desempenham

o mesmo papel. Cabe, pois, ao leitor contextualizar tais expresses, assim como todo tipo de

generalizao: isto , deve consider-las sem perder de vista aquela compreenso de

45
efetividade segundo a qual vontades de potncia e suas respectivas perspectivas e

interpretaes so radicalmente singulares.

Os escritos de Nietzsche indicam que aquilo que se denomina tica humana que,

no contexto das passagens mencionadas, quer dizer o mesmo que perspectiva humana

significa uma efetiva mirade de nuances, ou seja, simplifica toda uma complexidade de

perspectivas existentes, bem como todas as consequncias que decorrem da constatao da

multiplicidade de perspectivas: diferentes maneiras de conceber o mundo e atribuir-lhe valor e

sentido, diferentes modos de vida etc.30 No decorrer de seus textos, Nietzsche faz referncias

a perspectiva moral, perspectiva religiosa, perspectiva do sacerdote, perspectiva da culpa,

perspectiva da casta cavalheiresca, perspectiva do monotesmo, perspectiva(s) do politesmo,

perspectiva gregria, perspectiva singular, perspectiva do escravo, perspectiva do senhor,

perspectiva transcendente, perspectiva da imortalidade, perspectiva da recompensa,

perspectiva do castigo, perspectiva de r (cujo olhar vai de baixo para cima), perspectiva de

pssaro (que, ao contrrio, olha de cima para baixo), perspectiva mais ampla, perspectiva mais

estreita, perspectiva da conscincia, perspectiva dos impulsos, e assim por diante. A variedade

de termos que nessas expresses acompanham e determinam a palavra perspectiva revela que

Nietzsche tem em vista uma efetividade complexa. Isso se verifica se observarmos a

complexidade da relao entre as diferentes perspectivas: sob a perspectiva religiosa, por

exemplo, h a perspectiva do monotesmo ou as perspectivas do politesmo, a perspectiva do

transcendente, a perspectiva da culpa etc.; aquilo que se denomina perspectiva da conscincia

para mencionarmos outro caso efetivamente a perspectiva de um impulso (ou de

30
Acerca desse ponto, Nehamas (1983, p. 476) tem o mrito de considerar, em seu artigo Immanent and
Transcendent Perspectivism in Nietzsche, que o ponto de vista humano ou a perspectiva humana um amplo e
inomogneo corpo de opinies, crenas, preconceitos, teorias, hbitos, modos e padres de comportamento. []
sua soma est em constante alterao e movimento, [...] descartando e incorporando informaes sobre ns
mesmos e o mundo. Em Life as Literature, Nehamas (2002, p. 68) afirma: O perspectivismo de Nietzsche
ento uma recusa a graduar pessoas e opinies em uma escala simples. Mas, alm de destacar a multiplicidade
de perspectivas, queremos sublinhar seu carter radicalmente singular.
46
impulsos) que predominou (ou predominaram) em relao a outros impulsos. Assim, na

expresso tica humana, a noo de humano, em funo de seu carter generalizador,

esconde uma efetividade complexa, de modo a tornar-se, no limite, uma noo vazia.

Considerando-se expresses como essa, preciso, pois, ter em mente no apenas que

Nietzsche entende homem como multiplicidade de vontades de potncia, mas tambm que

cada uma daquelas expresses simplifica e homogeneza de modo grosseiro uma efetividade

repleta de nuanas e multiplicidades, que a linguagem incapaz de significar.

Tal como no caso da expresso perspectiva humana, necessrio tambm nuanar a

expresso percepo humana de mundo. Relevante investigao sobre o perspectivismo

em Nietzsche, a concepo da existncia de uma percepo humana de mundo, qual estamos

presos, j mencionada em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral:

Custa-lhe [ao homem] esforo para reconhecer como o inseto ou o pssaro


percebem um mundo totalmente diferente que o do homem, e que a pergunta
sobre qual das duas percepes do mundo a mais correta totalmente sem
sentido, porque para isso precisar-se-ia ter medido com o critrio da
percepo correta, ou seja, com um critrio no existente. (WL/VM 1, KSA
1.884).

O tema da percepo de mundo continua a ser objeto de reflexo na obra de Nietzsche,

inclusive em textos em que o filsofo trata do perspectivismo. No pargrafo 374 de A gaia

cincia, o filsofo afirma que uma diferente maneira de sentir o tempo implica outra noo de

causa e efeito e outra orientao de vida. E ainda assevera numa anotao pstuma:

evidente que todo ser diferente de ns sente outras qualidades e, por conseguinte, vive em um

mundo diferente do que ns vivemos (Nachlass/FP 1886-1887, 6[14], KSA 12.238).

Embora Nietzsche faa referncia percepo de mundo do homem, uma vez mais

preciso evitar simplificaes. O prprio filsofo faz ver que no existe a percepo humana.

Mais ainda: se as perspectivas, interpretaes e percepes no so idnticas entre os


47
homens, elas no so idnticas (isto , no permanecem as mesmas) em cada homem. o

que podemos depreender desta passagem em que Nietzsche trata da percepo do tempo e do

espao:

O sentimento do homem de durao do tempo, assim como o sentimento de


espao, certamente diferente ao de cada animal, e quanto a esse ponto cada
homem ser diferente de cada homem. Uma hora nunca a mesma que uma
outra hora em uma outra cabea: e tambm nunca para ns mesmos
novamente. Mas tambm a mdia do sentimento de uma hora para cada
homem diferente! [...]. (Nachlass/FP 1880, 6[420], KSA9.306).

Nietzsche radicaliza o carter de multiplicidade, singularidade e diferena das

perspectivas e das interpretaes: unidade, igualdade, identidade (permanncia do mesmo),

universalidade do lugar a multiplicidade, diferena, fluxo, singularidade. No limite, isso

impede que se fale em uma perspectiva humana ou em uma interpretao humana:

preciso considerar essas expresses, assim como outras generalizaes muitas vezes

inevitveis, como simplificao de uma efetividade extremamente mais complexa.

Assim, perspectivas e interpretaes so singulares no na medida em que se reportam

a um homem ou a um indivduo, mas a configuraes singulares de vontades de

potncia31. A constatao da intransponvel singularidade das perspectivas e interpretaes

no implica que essa singularidade possa ser superada, que se possa interpretar a partir de

outra perspectiva. Mas aquela constatao tampouco tem por consequncia necessria a

resignao a essa limitao: ao contrrio, ela no impede que uma perspectiva se esforce para

olhar para outras perspectivas:

31
Ao trmino de seu artigo, Gerhardt (1989, p. 281) afirma: Ele [Nietzsche] quer informar as limitaes do
humano e, por isso, no pode resistir ao ensaio de tentar ultrapassar essas limitaes. preciso dizer, no
entanto, que mais do que indicar a limitao do humano, o perspectivismo de Nietzsche assevera a limitao de
toda perspectiva, isto , a impossibilidade de que uma perspectiva ultrapasse sua singularidade, de que seja mais
do que efetivamente .
48
A partir da tica do doente, olhar para os conceitos e valores mais sadios e,
inversamente, da plenitude e certeza da vida rica, olhar para baixo e ver o
secreto trabalho do instinto de dcadence esse foi meu mais longo
exerccio, minha experincia propriamente dita, e, se que em algo, foi nisso
que me tornei mestre (EH/EH, Por que sou to sbio, I, KSA 6.266, trad.
de RRTF).

No entanto, somente da prpria perspectiva que se pode olhar para outras. Assim,

ainda que se olhe para outras perspectivas, isso no significa que se enxergue para alm do

prprio ngulo, conforme se l no pargrafo 374 de A gaia cincia.

***

Procuramos mostrar que o perspectivismo se estende a toda a efetividade, a qual

consiste em vontades de potncia que se exercem de modo perspectivstico e interpretante. E

justamente a partir da concepo de uma efetividade perspectivstica e interpretativa que

Nietzsche formula uma das ideias centrais de seu perspectivismo, a saber, a proposio de que

no existem fatos, mas apenas interpretaes perspectivsticas. A constatao do carter

singular e limitado das interpretaes perspectivsticas nos conduz, porm, ao problema do

relativismo radical, que consiste em perguntar se todas as interpretaes seriam equivalentes.

49
CAPTULO 2

Critrio e hierarquizao das interpretaes

sua concepo de efetividade que fornece a Nietzsche um critrio para avaliar e

hierarquizar as interpretaes: O critrio da verdade. A vontade de potncia, como vontade

de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA 13.516). Ao estabelecer um

critrio, o filsofo explicita a pretenso de hierarquizar as interpretaes e de reivindicar a

superioridade de sua prpria interpretao32. Com efeito, a afirmao de que Nietzsche

estabelece um critrio e hierarquiza as interpretaes exerce com frequncia a funo de um

argumento visando a indicar que o filsofo no incorre em relativismo33.

Esse argumento traz consigo, porm, dois pressupostos principais. Em primeiro lugar,

pressupe, nos casos em que no se expe explicitamente, uma definio de relativismo como

equivalncia de interpretaes: se se consideram o estabelecimento de um critrio e a

hierarquizao das interpretaes suficientes para livrar Nietzsche de um relativismo, ento

relativismo tem de significar nesse caso a indistino das interpretaes e a inexistncia de

32
Ao afirmar que o critrio de verdade adotado por Nietzsche a intensificao de potncia, Mller-Lauter
(1974, p. 22 e p. 45) defende que a interpretao do filsofo , conforme seu prprio critrio de verdade, superior
s outras interpretaes. Considerando que, para efetuar a crtica dos valores, isto , para avaliar o valor dos
valores, o genealogista precisa de um critrio que no pode, ele prprio, ser avaliado, Scarlett Marton (2000, p.
95-97) sustenta que esse critrio a vida entendida como vontade de potncia, de modo que a genealogia
repousa numa cosmologia (Ibid., p. 96). Nessa tica, prossegue Marton (Ibid., p. 98), fazer qualquer
apreciao passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se contribui para favorec-la ou obstru-la; submeter
ideias ou atitudes ao exame genealgico o mesmo que inquirir se so signos de plenitude de vida ou de sua
degenerao; avaliar uma avaliao, enfim, significa questionar se sintoma de vida ascendente ou declinante.
33
Ao observar que a ausncia de um critrio conduziria o genealogista ao relativismo, Patrick Wotling (2009, p.
120 e seguintes) afirma que a noo de sade fornece o critrio que articula a experincia de pensamento de
Nietzsche, que no outra coisa seno a interpretao das interpretaes (Ibid., p. 124). Para Antnio Marques
(2003, p. 195), a recusa de um critrio metafsico-realista de verdade no conduz o perspectivismo ao relativismo
na medida em que o critrio fisiolgico, evocando noes como as de sade, fraco e forte, norteia a
hierarquizao das perspectivas. Cline Denat (2010, p. 9), por sua vez, sustenta que, longe de todo relativismo
e de todo ceticismo, Nietzsche mostra que a inelutvel variedade das interpretaes suscetvel de uma
avaliao de ordem ao mesmo tempo terica e prtica, cujos critrios permitem por fim compreender a
legitimidade e a coerncia da nova hiptese interpretativa que ele mesmo pretende propor.
50
hierarquizao, ou seja, a equivalncia das interpretaes34. O segundo pressuposto consiste

em considerar que livrar Nietzsche do relativismo como equivalncia de interpretaes

significa livr-lo de todo e qualquer relativismo.

Ao estabelecer um critrio e hierarquizar as interpretaes, o filsofo indica de fato

que no pretenderia assumir a posio de um relativismo radical, ou seja, no pretenderia

sustentar a ideia de que todas as interpretaes se equivalem. Mesmo assim, no nos parece

que o estabelecimento de um critrio e a hierarquizao das interpretaes impliquem

necessariamente o afastamento de todo e qualquer relativismo. Para saber se isso ocorre,

preciso antes investigar como esse pensamento peculiarmente caracterizado por um

perspectivismo e um antidogmatismo radicais institui o seu critrio de avaliao e de

hierarquizao. Eis o principal objetivo deste segundo captulo.

***

As reflexes de Nietzsche sobre o estabelecimento de critrios apresentam dois

aspectos principais: um crtico e outro propositivo. No que concerne ao primeiro, um

34
Essa a definio de relativismo oferecida, explcita ou implicitamente, por boa parte dos comentadores que
mencionam a relao entre perspectivismo e relativismo em Nietzsche. Segundo Nehamas (1985, p. 49), o
perspectivismo [...] no equivalente ao relativismo, pois o fato de que outros pontos de vista so possveis
no os faz por si s igualmente legtimos. O comentador insiste: Perspectivismo no resulta no relativismo que
considera que qualquer viso to boa quanto qualquer outra (Ibid., p. 72). Para Clark (1990, p. 144), sendo
compatvel com a ideia de que uma ou algumas perspectivas podem ser consideradas cognitivamente superiores
em relao a outras, o perspectivismo no implica incomensurabilidade e, assim, no incorre num relativismo
entendido como a concepo de que qualquer interpretao to boa quanto qualquer outra (Ibid., p. 139).
Monique Dixsaut (2012, p. 139), por seu turno, ao afirmar que toda perspectiva avaliao, portanto pe o
problema da hierarquia das diferentes avaliaes, sustenta que as vontades de potncia no se equivalem. E
pouco adiante, ao escrever que a multiplicidade das avaliaes no implica nenhum relativismo, mas evoca uma
hierarquia (Ibid., 141), sugere que o relativismo implicaria a ausncia de hierarquizao, ou seja, a equivalncia
das avaliaes. Em sua tese de doutorado, intitulada Perspectivismo e verdade em Nietzsche: da apropriao de
Kant ao confronto com o relativismo, Mrcio Jos Silveira Lima (2010, p. 146) defende que Nietzsche combate
o relativismo na medida em que ele posiciona-se contra a sua ideia fundamental: a de que todos os pontos de
vista se equivalem. Para Andr Itaparica (2010, p. 244), os comentadores que investigaram a ligao entre
perspectivismo e relativismo pressupuseram uma noo de relativismo segundo a qual todas as interpretaes
seriam equivalentes.
51
procedimento recorrente consiste em desmascarar a inadequao entre um determinado

critrio e a funo que se lhe atribui. Assim procede Nietzsche ao insistir durante toda a sua

obra que a lgica no um critrio da verdade em si nem da realidade em si35. Com a

linguagem, o homem colocou um mundo prprio ao lado do outro e acreditou [...] nos

conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, afirma o filsofo, e acrescenta:

Mesmo a lgica repousa sobre pressupostos, aos quais nada no mundo efetivo corresponde

(MA I/HH I 11, KSA 2.30-31, trad. de RRTF). Para responder afirmativamente pergunta

sobre a adequao entre os axiomas lgicos e a efetividade, escreve Nietzsche em um

fragmento pstumo de anos posteriores, seria preciso possuir de antemo um conhecimento

sobre o ente. Assim, tais axiomas servem somente como critrios e meios para criar o

conceito de efetividade apenas para ns, de modo que eles no contm nenhum critrio da

verdade, mas sim um imperativo sobre o que deve valer como verdadeiro (Nachlass/FP

1887, 9[97], KSA 12.389)36. A crena na lgica e nas categorias da razo como critrios da

verdade e da realidade em si repousa na ingenuidade de tomar a idiossincrasia

antropocntrica como medida das coisas, como norma sobre real e irreal: em suma, [em]

absolutizar uma condicionalidade (Nachlass/FP 1888, 14[153], KSA 13.336).

Mas com essa ltima afirmao, mais do que evidenciar a inadequao entre o critrio

particular em questo a lgica e a funo que se lhe atribui a de servir como critrio da

verdade e da realidade em si , Nietzsche indica a impossibilidade, em ltima instncia, de

todo e qualquer critrio realizar essa funo. E isso pela seguinte razo: como a efetividade ,

35
Embora perpasse a obra de Nietzsche, essa ideia recebe diferentes abordagens conforme o contexto em que
figura: em A filosofia na poca trgica dos gregos, o filsofo evidentemente no reflete sobre o critrio lgico
luz do conceito de vontade de potncia, como far, por exemplo, nos fragmentos pstumos de 1888. Reflexes
sobre critrio lgico esto presentes, entre outros, nos seguintes textos: PHG/FT 11, KSA 1.844-847, PHG/FT
12, KSA 1.847-850, MA I/HH I 11, KSA 2.30-31, JGB/BM 4, KSA 5.18, Nachlass/FP 1887, 9[97], KSA
12.389-391 e Nachlass/FP 1888, 14[153], KSA 13.336-338.
36
No se trata de uma desqualificao absoluta da lgica, mas sim da pretenso de que ela valha como critrio
da verdade e da realidade em si. Nietzsche reconhece o papel das falsificaes lgicas para a conservao de um
determinado modo de vida (ver, por exemplo, JGB/BM 4, KSA 5.18 e Nachlass/FP 1888, 14[153], KSA 13.336-
338).
52
para Nietzsche, constituda por vontades de potncia que se exercem de modo perspectivstico

e interpretante, quer dizer, de modo condicionado e limitado, ento nenhum critrio, sendo

perspectivstico e interpretativo, pode ser absolutizado. Portanto, o caminho para a verdade e

a realidade em si, existam elas ou no, se encontra de antemo inviabilizado no apenas para

o critrio lgico, mas para todo e qualquer critrio.

Depois de tal crtica, como pode Nietzsche estabelecer um critrio? O primeiro ponto a

se considerar que o filsofo no conserva a mesma concepo de critrio por ele criticada:

Nietzsche lhe atribui um outro papel. O critrio no tem mais por funo distinguir a verdade

do erro, que no so mais considerados em oposio. Verdade: segundo o meu modo de

pensar, isso no designa necessariamente uma oposio ao erro, mas, nos casos mais

fundamentais, apenas uma posio de diferentes erros em relao uns com os outros, afirma,

acrescentando em seguida que um [erro] mais antigo, mais profundo do que outros, talvez

at mesmo inexterminvel, na medida em que um ser orgnico de nossa espcie no poderia

viver sem ele (Nachlass/FP 1885, 38[4], KSA 11.598). Aquilo que se denominara verdade

so precisamente os erros dos quais depende uma determinada espcie de seres vivos: o

valor para a vida que finalmente decide (Nachlass/FP 1885, 34[253], KSA 11.506).

Nietzsche tampouco procura um critrio para distinguir a realidade da aparncia (ou o

mundo real do mundo aparente), j que suprime tambm essa suposta oposio: Eu no

ponho, portanto, aparncia em oposio realidade, mas, ao contrrio, tomo aparncia

como a realidade. [...] Um nome determinado para essa realidade seria a vontade de

potncia (Nachlass/FP 1885, 40[53], KSA 11.654). Em um fragmento pstumo de anos

posteriores, defende que a oposio entre o mundo aparente e o mundo real se reduz

oposio mundo e nada (Nachlass/FP 1888, 14[184], KSA 13.371). E mundo aparente,

explicita o filsofo, significa um mundo considerado, ordenado, selecionado segundo

53
valores, [...] segundo o ponto de vista da utilidade com respeito conservao e

intensificao de potncia de uma determinada espcie de animal (Nachlass/FP 1888,

14[184], KSA 13.370).

Por fim, um critrio no poderia ter por funo distinguir a certeza da incerteza, uma

vez que a preferncia pela certeza em detrimento da incerteza repousa, segundo Nietzsche, em

preconceitos morais ou em motivos de utilidade (Nachlass/FP 1885, 40[10], KSA 11.632).

Perguntando pelo critrio da certeza, anota ento o filsofo, eu constatei [...] que a prpria

pergunta pela certeza j uma pergunta dependente, uma pergunta secundria (Nachlass/FP

1885-1886, 2[169], KSA 12.152). E em outro fragmento pstumo esclarece: a pergunta

pelos valores mais fundamental do que a pergunta pela certeza (Nachlass/FP 1886-1887,

7[49], KSA 12.311).

Com efeito, para Nietzsche, o conhecimento no consiste em um domnio puro,

desinteressado, objetivo, independente: em todo pensamento consciente, inclusive no aparente

autodomnio de movimento da lgica, exprimem-se estimativas de valor, que traduzem

exigncias fisiolgicas para a conservao de uma determinada espcie de vida (JGB/BM 3,

KSA 5.17). Desse modo, a reflexo sobre o critrio diz respeito aos valores e, portanto,

vida: Se falamos de valores, falamos sob a inspirao, sob a tica da vida: a vida mesma nos

coage a instituir valores; a vida mesma valora atravs de ns, quando institumos valores

(GD/CI, Moral como contranatureza, 5, KSA 6.86, trad. de RRTF).

No basta, porm, dizer que as estimativas de valor so sempre estimativas de valor

da vida; deve-se ainda perguntar, como faz o prprio Nietzsche na sequncia do texto: de

que vida? De que espcie de vida? (GD/CI, Moral como contranatureza, 5, KSA 6.86, trad.

de RRTF). Essas perguntas indicam que as estimativas de valor no so estimativas de valor

da vida, mas de uma determinada espcie de vida (GD/CI, Moral como contranatureza, 5,

54
KSA 6.86, trad. de RRTF). E necessrio sempre manter em vista essa preciso, ainda que

ela frequentemente no aparea de maneira explcita nos escritos do filsofo. Pois, enquanto a

primeira formulao sugeriria a concepo de uma vida em si, a segunda evidencia o carter

plural da vida: a unidade da palavra vida significa uma efetiva multiplicidade de modos de

vida.

Nietzsche rene e ao mesmo tempo distingue os diversos modos de vida em duas

denominaes gerais, a saber, vida ascendente e vida decadente: Eu distingo um tipo de vida

ascendente de um outro de decadncia, decomposio, fraqueza (Nachlass/FP 1888, 15[120],

KSA 13.481). Doravante, a funo do critrio nietzschiano ser, portanto, avaliar as

avaliaes e distinguir as estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo de

vida ascendente das estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo de vida

decadente37.

Segundo Nietzsche, viver consiste em estimar valores (Nachlass/FP 1882-1883, 5[1]

234, KSA 10.214)38. Mas ento temos de perguntar o que so estimativas de valor e de que

maneira elas se relacionam com a vida. Os valores no so dados de antemo, para ento

serem descobertos, nem so absolutos, incondicionais e universais. Os valores so, ao

contrrio, necessariamente constitudos a partir de estimativas: somente pelo estimar [das

Schtzen] h valor [Werth] (Za/ZA I, Dos mil e um alvos, KSA 4.75, trad. de RRTF). E toda

estimativa de valor (Werthschtzung) tem carter perspectivstico 39 e interpretativo; mais

precisamente, toda estimativa de valor relativa a uma determinada perspectiva e a um

determinado modo de interpretar. O conceito de interpretao indica, nesse contexto, que os

37
Trata-se da pergunta genealgica pelo valor dos valores (GM/GM Prefcio 6, KSA 5.253), que so tomados
como signos de degenerao ou de plenitude de vida (GM/GM Prefcio 3, KSA 5.250).
38
Ver tambm o Nachlass/FP 1883, 12[9], KSA 10.401.
39
[...] Existem apenas estimativas perspectivsticas [...] (Nachlass/FP 1884, 26[119], KSA 11.181). No
prefcio de Humano, demasiado humano (6, KSA 2.20, trad. de RRTF), o filsofo chama a ateno para a
necessidade de conceber o perspectivstico de toda estimativa de valor.
55
valores so introduzidos: Nossos valores so introduzidos por interpretao

(hineininterpretirt) nas coisas (Nachlass/FP 1885-1886, 2[77], KSA 12); o conceito de

perspectiva, por sua vez, faz ver que esse processo interpretativo de introduo de valores tem

uma provenincia determinada: Em toda estimativa de valor se trata de uma determinada

perspectiva: conservao do indivduo, de uma comunidade, de uma raa, de um Estado, de

uma igreja, de uma crena, de uma cultura (Nachlass/FP 1884, 26 [119], KSA 11.181).

As estimativas de valor so, por conseguinte, mltiplas. Mesmo a unidade de uma

palavra empregada para designar um determinado valor pode abrigar uma pluralidade de

sentidos, conforme a perspectiva avaliadora40. Na perspectiva avaliadora da moral nobre, o

valor bom, por exemplo, no possui o mesmo significado que na perspectiva avaliadora da

moral escrava. Ao perguntar-se quem mau no sentido da moral do ressentimento,

Nietzsche responde: Precisamente o bom da outra moral, precisamente o nobre, o

poderoso, o dominante, apenas recolorido, reinterpretado, revisto pelo olho venenoso do

ressentimento (GM/GM I, 11, KSA 5.274).

Do mesmo modo, no existe uma hierarquia em si dos valores, pois a hierarquizao

tambm depende da perspectiva avaliadora: a pergunta pelo valor dos valores se aplica tanto

instituio dos valores quanto a sua hierarquizao. Pensemos no valor verdade. Conforme

uma determinada perspectiva avaliadora, interpreta-se o verdadeiro como algo uno,

imutvel, universal, necessrio, absoluto, desinteressado, dado, benfico etc., enquanto se

vincula o erro ao transitrio, ao sensvel, ao prejudicial etc. Ento, procede-se

hierarquizao, o que em alguns casos quer dizer: confere-se verdade valor em si, supremo.

40
No segundo captulo de Nietzsche, das foras csmicas aos valores humanos, Scarlett Marton (2000, p. 94)
desenvolve a ideia de que uma mesma palavra pode designar valores diferentes, conforme a perspectiva
avaliadora que a considera. O conflito entre perspectivas avaliadoras distintas tambm examinado em A morte
de deus e a transvalorao dos valores, em Extravagncias (2009, p. 69-84). Aqui, a autora mostra que
Nietzsche contrape, por exemplo, a perspectiva avaliadora do homem do alm-do-homem. desses dois
livros que retiramos a expresso perspectiva avaliadora.
56
Ora, a filosofia do prprio Nietzsche critica esse modo de estimar e hierarquizar os valores ao

apontar que aquilo que se denominou verdade consiste numa determinada espcie de erros a

dos indispensveis a determinados modos de vida e ao sustentar assim que o erro tem at

mesmo o valor de uma condio vital.

Mltiplas, as estimativas de valor so sempre sintomas de diferentes modos de vida:

As estimativas de valor esto necessariamente relacionadas de alguma maneira s condies

de existncia, assegura Nietzsche, advertindo em seguida, porm, que nem por isso elas [as

estimativas de valor] seriam verdadeiras, ou seriam precisas (Nachlass/FP 1885, 34[247],

KSA 11.503)41. As estimativas de valor so sintomas em dois sentidos, uma vez que

possvel compreender a expresso condies de existncia tambm de duas maneiras.

De acordo com o primeiro sentido, condio quer dizer exigncia: as estimativas

de valor so sintomas das exigncias necessrias para que um determinado modo de vida se

conserve e/ou cresa em potncia42. Todavia, diga-se de passagem, um modo de estimar

valores no se desvencilha da crtica de Nietzsche pelo simples fato de conservar um

determinado modo de vida. Ademais, ainda que um determinado modo de estimar valores

favorea a conservao de um determinado modo de vida, da no decorre que tal modo de

estimar valores seja verdadeiro43.

A vida no argumento. Armamos para ns um mundo, em que podemos


viver ao admitirmos corpos, linhas, superfcies, causas e efeitos,
movimento e repouso, forma e contedo: sem esses artigos de f ningum
toleraria agora viver! Mas com isso ainda no so nada de demonstrado. A

41
Ver tambm o Nachlass/FP 1884, 26[45], KSA 11.159.
42
Sobre as estimativas de valor consideradas como condies de conservao e/ou crescimento de vida ou de
vontade de potncia: Nachlass/FP 1887, 9[38], KSA 12.352 e 9[39], KSA 12.353, assim como Nachlass/FP
1888, 11[73], KSA 13.36 e 11[96], KSA 13.45. Empregamos a frmula e/ou ao falarmos em conservao e/ou
crescimento de potncia para indicar que crescimento de potncia no significa necessariamente conservao: A
autoconservao somente uma das consequncias indiretas e mais frequentes do impulso por crescimento de
potncia (JGB/BM 13, KSA 5.27, trad. de RRTF). O impulso por mais potncia pode, ao contrrio, conduzir
uma certa configurao de vontades de potncia dissoluo.
43
Nietzsche insistir nessa ideia, como se l, por exemplo, no Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11, 152-153.
57
vida no argumento; entre as condies da vida poderia estar o erro.
(FW/GC 121, KSA 3.477-478, trad. de RRFT).

Por outro lado, mesmo no sendo verdadeiras, se todas as estimativas de valor fossem

pelo menos precisas (Nachlass/FP 1885, 34[247], KSA 11.503), ento elas necessariamente

traduziriam as exigncias de conservao e/ou de crescimento de potncia de um determinado

modo de vida: assim, em princpio bastaria que um modo de vida estimasse valores para que

ele necessariamente garantisse sua conservao e/ou seu crescimento. No entanto, embora o

prprio viver consista em estimar valores, no toda estimativa de valor que necessariamente

garante a conservao e/ou o crescimento de potncia do modo de vida ao qual ela se reporta.

o que sugerem as ltimas palavras do pargrafo 354 de A gaia cincia, destinadas a um

modo de estimar valores que supervaloriza uma conscincia que se desenvolveu e se refinou

em referncia utilidade do rebanho:

No temos, justamente, nenhum rgo para o conhecer, para a verdade;


sabemos (ou acreditamos ou imaginamos) precisamente o tanto que, no
interesse do rebanho humano, da espcie, pode ser til; e at mesmo o que
aqui denominado utilidade , por ltimo, simplesmente uma crena, uma
imaginao, e talvez precisamente aquela estupidez a mais fatal de todas, de
que um dia sucumbiremos. (FW/GC 354, KSA 3.593, trad. de RRTF).

No h til em si: o que se entende por utilidade j depende de uma interpretao

perspectivstica e, como tal, est sujeito ao engano44. Nesse caso, uma vez que a mencionada

44
Nesse sentido, preciso ler com cautela afirmaes como as de Grimm (1977, p. 70): Se, como Nietzsche
diz, o mundo uma iluso, uma falsificao, uma projeo ou interpretao de uma perspectiva particular, por
que devemos preferir uma interpretao particular acima de qualquer outra? No final das contas, elas so todas
falsas, como Nietzsche nos lembra constantemente. claro que o critrio a ser encontrado por qualquer um
desses erros no um critrio de veracidade, mas antes um de utilidade. E ainda: A utilidade de uma crena
particular (e todas as crenas so finalmente falsas em qualquer sentido absoluto) para a vida o nico critrio
com base no qual podemos julgar. [...] A verdade de uma ideia repousa em sua utilidade para o crescimento e o
realce da vida e da potncia, no em quo adequadamente corresponde a um parmetro fixo, eterno (Ibid., p.
73). Com efeito, Nietzsche defende que aquilo que se toma como critrio de verdade, a lgica e as categorias da
razo, serve de fato conservao e/ou ao aumento de potncia de uma determinada espcie de vida
(Nachlass/FP 1888, 14[122], KSA 13.302 e Nachlass/FP 1888, 14[153], 13.336); isso no significa, contudo, que
o prprio Nietzsche estabelea a utilidade como critrio. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que no existe
58
maneira de estimar valores pode levar o modo de vida ao qual ela se relaciona a sucumbir,

esse modo de estimar valores no sintoma das condies de vida conforme aquele

primeiro sentido de que falamos acima, isto , como exigncias necessrias para a

conservao desse modo de vida; ainda assim, tal modo de estimar valores continua a ser

sintoma de condies de vida, mas agora num segundo sentido, meramente circunstancial, a

saber, na medida em que aponta para um determinado modo de vida, para como se vive.

Mesmo no traduzindo necessariamente as exigncias de conservao e/ou de aumento de

potncia de um modo de vida, as estimativas de valor so sempre, pelo menos, signos que

apontam para determinados modos de vida, sejam eles destinados a se conservar, a crescer ou

a sucumbir.

O desconhecimento ou o esquecimento ou ainda a dissimulao de que as

estimativas de valor so constitudas de maneira perspectivstica e interpretativa por diferentes

modos de vida conduzem ao dogmatismo, ou seja, crena em valores universais dados e

verdadeiros e pretenso de apresentar-se como o nico modo vlido de estimar valores.

Nietzsche critica precisamente essa defeituosa tica que exige que nenhuma outra espcie

de tica possa mais ter valor, depois de tornar sacrossanta a sua prpria com os nomes Deus,

redeno, eternidade (AC/AC 9, KSA 6.175). Essa reivindicao de exclusividade

pressupe o ocultamento daquilo que assinalamos algumas pginas acima, isto , de que em

uma utilidade em si, mas utilidade segundo determinadas perspectivas avaliadoras, segundo determinados modos
de vida, que no so necessariamente aqueles considerados superiores por Nietzsche. Alm disso, como a
pergunta o que utilidade? ter sempre como resposta uma interpretao perspectivstica, a prpria
determinao do que seria ou no til estar sempre sujeita ao engano. Por fim, gostaramos de nos reportar ao
quarto captulo de Nietzsche: das foras csmicas aos valores humanos, em que, ao examinar a crtica do
filsofo ao utilitarismo ingls, representado por Stuart Mill, Scarlett Marton (2000, p. 154) mostra como
Nietzsche destri, uma a uma, todas as diretrizes da moral dos utilitaristas: utilidade, felicidade, igualdade:
Empenha-se em mostrar que adotam a perspectiva dos ressentidos, quando consideram um fato o valor bom
ter sido criado por aqueles a quem as aes foram teis, quando pretendem derivar a moralidade do fato de que a
felicidade alheia desejvel enquanto um fim, quando pressupem como fato a igualdade dos agentes, avaliando
as aes por suas consequncias. E por isso no s ratificam os valores apregoados pelos ressentidos como ainda
assumem o modo de proceder por eles adotado. Marton (Ibid., p. 156) faz ver que Nietzsche recorre, ento, ao
procedimento genealgico: relaciona os valores que apregoam com a avaliao de que procedem ( a perspectiva
dos ressentidos que os coloca) e julga essa avaliao tendo por critrio a vida ( o esgotamento fisiolgico que
nela se manifesta).
59
toda estimativa de valor se trata de uma determinada perspectiva: conservao do indivduo,

de uma comunidade, de uma raa, de um Estado, de uma igreja, de uma crena, de uma

cultura (Nachlass/FP 1884, 26 [119], KSA 11.181).

Nietzsche se contrape crena dogmtica na universalidade de valores absolutos e

verdadeiros porque ela hostil vida lembrando que a unidade da palavra vida sempre

significa uma efetiva pluralidade de modos de vida. No prefcio de Para alm de bem e mal

(KSA 5.12), o filsofo caracteriza a inveno platnica do bem em si como o pior, mais

persistente e mais perigoso dos erros dogmticos. Ao designar a ideia de bem em si no

apenas como erro, mas tambm como inveno, Nietzsche faz ver em primeiro lugar que

no existe bem em si como algo dado. Ao adjetiv-la como o mais perigoso de todos os

erros, indica que falar em bem em si significa negar o perspectivstico, a condio bsica

de toda vida. Tomar os valores como absolutos implica, pois, ir de encontro condio

bsica de toda vida, ou seja, ao carter perspectivstico de toda vida45.

Temos de deter-nos por um momento nesse ponto para articul-lo com o que dissemos

trs pargrafos acima, onde afirmamos que, sendo perspectivstico e interpretativo, um modo

de estimar valores no garante necessariamente a conservao do modo de vida ao qual

relativo. Levando isso em conta, legtimo perguntar primeiramente em que sentido o

perspectivstico a condio bsica de toda vida e, em seguida, por que uma estimativa de

valor dogmtica pode ser hostil vida.

No que diz respeito primeira questo, procuraramos respond-la dizendo que toda

vida necessariamente se conserva a partir de estimativas de valor perspectivsticas,

determinadas por condies singulares e nesse sentido o perspectivstico condio de toda

45
preciso, portanto, que se considere bem e mal como perspectivsticos (Nachlass/FP 1884, 26[178], KSA
11.196). Assim, Nietzsche tambm caracteriza a moral crist, que se pretende em posse de medidas absolutas,
como o perigo dos perigos e como hostil vida, na medida em que toda vida repousa em aparncia, arte,
engano, tica, necessidade do perspectivstico e do erro (GT/NT Prefcio 5, KSA 1.18).
60
vida; por outro lado, um modo perspectivstico de estimar valores no conserva

necessariamente o modo de vida ao qual se relaciona e nesse sentido, embora seja condio

de vida, o carter perspectivstico no garantia de vida.

Mas ento, para retomarmos a segunda questo, por que um modo dogmtico de

estimar valores hostil vida, ou mais hostil do que uma estimativa perspectivstica de

valor, que pode no garantir a conservao da vida qual se relaciona? Um modo dogmtico

de estimar valores pretende estar em posse de valores universais, o que no significa que

efetivamente esteja; ao contrrio, uma estimativa de valores pretensamente universais tambm

perspectivstica e interpretativa, embora se ignore ou se dissimule enquanto tal. Sendo

perspectivstico, um modo dogmtico de estimar valores pode at mesmo conservar um

determinado modo de vida; no entanto, justamente por ser perspectivstico, ele no conservar

necessariamente outros modos de vida, de sorte que poder ser hostil se for generalizado. E

precisamente aqui, na universalizao de valores supostamente universais, que reside o perigo

do dogmatismo vida, concebida como multiplicidade de modos de vida.

No caso de uma estimativa dogmtica de valores, a universalidade comporta, pois,

estes dois aspectos: trata-se de universalizar a crena de que os valores so universais e de

universalizar os prprios valores; assim, defende-se, por exemplo, que h um bem em si e

ento se determina o que o bem em si, que deveria ser considerado como tal por todas as

perspectivas. Por outro lado, a universalizao do carter perspectivstico como condio de

todos os modos de vida no significa a universalizao de uma perspectiva singular, isto , de

um modo singular de estimar valores, que deveria ento ser compartilhado por todos os

modos de vida; antes, se o carter perspectivstico condio de todos os modos de vida, cada

um dos diferentes modos de vida depende de sua perspectiva singular, de seu modo singular

61
de estimar valores46. nesse sentido que Nietzsche dirige ainda uma palavra contra Kant

como moralista:

Uma virtude tem de ser nossa inveno, nossa legtima defesa e nossa
necessidade personalssimas: em qualquer outro sentido, ela meramente
um perigo. O que no condiciona nossa vida a prejudica: uma virtude, por
um mero sentimento de respeito ao conceito de virtude, como quis Kant,
prejudicial. A virtude, o dever, o bem em si, o bem com o carter da
impessoalidade e da validade universal quimeras em que se expressam o
declnio, a derradeira perda de foras da vida, o chinesismo knigsberguiano.
O contrrio ordenado pelas leis mais profundas de conservao e
crescimento: que cada um invente para si sua virtude, seu imperativo
categrico. (AC/AC 11, KSA 6.177).

Como se nota, o conceito de vida ocupa um papel decisivo no procedimento

nietzschiano de avaliao e de hierarquizao das estimativas de valor. Ns j indicamos a

existncia de uma relao intrnseca entre vida e estimativas de valor: viver consiste em

estimar valores e as estimativas de valor, por sua vez, reportam-se a determinados modos de

vida, os quais dependem de seus respectivos e singulares modos de estimar valores.

Acrescentemos agora que todo modo de estimar valores traduz a afirmao de um

determinado modo de vida e a negao de outros modos de vida: Se no se tem um ponto de

vista determinado, no se pode falar sobre o valor de nenhuma coisa: isto , uma determinada

afirmao de uma determinada vida o pressuposto de todo estimar (Nachlass/FP 1884,

26[55], KSA 11.162). Enquanto, para Scrates e seus seguidores, toda concesso aos

instintos, ao inconsciente, conduz para baixo (GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA

6.72), Nietzsche, por seu turno, afirma: Ter de combater os instintos eis a frmula para a

46
Tambm podemos compreender dessa maneira a ideia de que a conservao e a superao de cada povo
dependem de seu modo de estimar valores, de estabelecer seu bem e seu mal, os quais so a voz de sua
vontade de potncia. Assim, no permitido a um povo, que tem em vista sua conservao, estimar valores do
mesmo modo que o povo vizinho os estima: pois aquilo que para um povo digno de elogio, para outro merece
censura (Za/ZA I, Dos mil e Um Alvos, KSA 4.74-76).
62
dcadence: enquanto a vida ascende, felicidade igual a instinto (GD/CI, O problema de

Scrates, 11, KSA 6.73, trad. de RRTF modificada).

No entanto, embora necessariamente julguemos a vida, os juzos de valor sobre a vida

so injustos (MA I/HH I 32, KSA 2.51) e nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros

(GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68, trad. de RRFT). E por qu? Precisamente por

conta do carter perspectivstico da vida e das estimativas de valor: o carter perspectivstico

das estimativas de valor a condio bsica de toda vida, porm esse mesmo carter

perspectivstico da vida e das estimativas de valor impede que o valor da vida possa no

apenas ser avaliado, mas ser avaliado de modo justo e verdadeiro.

Depois de afirmar que o valor da vida no pode ser avaliado, Nietzsche prossegue:

Por um vivente no, porque este parte interessada, e at mesmo objeto de litgio, e no juiz;

por um morto no, por uma outra razo (GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68, trad.

de RRFT). Mais adiante, o filsofo apresenta as exigncias necessrias para que se possa ter

acesso ao problema do valor da vida, mas ao mesmo tempo afirma a impossibilidade de que

tais condies sejam cumpridas:

Seria preciso ter uma posio fora da vida e, por outro lado, conhec-la to
bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em
geral tocar o problema do valor da vida: razes bastantes para se
compreender que este problema um problema inacessvel a ns. (GD/CI,
Moral como contranatureza, 5, KSA 6.86, trad. de RRTF).

A fim de tentarmos compreender por que essas exigncias no podem ser satisfeitas,

examinemos o pargrafo 32 de Humano, demasiado humano. Nesse texto o filsofo j indica

a impossibilidade de se conhecer to bem a vida quanto um, quanto muitos e, por fim, quanto

63
todos os que a viveram47. Intitulado Ser necessariamente injusto, o pargrafo comea com a

afirmao de que todos os juzos sobre o valor da vida so ilogicamente desenvolvidos e, por

isso, injustos (MA I/HH I 32, KSA 2.51). A impureza do juzo, argumenta Nietzsche,

deve-se primeiramente incompletude com que o material no caso, a vida se apresenta.

Em segundo lugar, tal impureza se deve ao modo como, a partir daquela apresentao

incompleta, produz-se uma soma que resultar no juzo sobre o valor da vida. Para

entendermos o que isso significa, til recorrermos a uma passagem do fragmento pstumo

com base no qual Nietzsche escreveu o pargrafo que ora examinamos; nele, o filsofo afirma

que a expresso lgica daquela soma falsa na medida em que a soma de nossas

experincias nunca pode dar o direito a um juzo sobre a vida (Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA

8.135-136). Aqui, a expresso nossas experincias pode referir-se tanto soma das

experincias de um vivente singular quanto soma das experincias de todos os viventes, mas

em nenhum dos dois casos se tem o direito lgico soma das experincias a partir da qual se

pudesse elaborar um juzo justo sobre o valor da vida. Conforme sugere o terceiro argumento

apresentado no pargrafo 32, a impureza dos juzos de valor sobre a vida decorre no apenas

do modo incompleto em que o material aparece, mas a fortiori do fato de que cada pedao do

material j resulta necessariamente de um conhecimento impuro: quer dizer, a impureza no

resulta apenas de uma limitao quantitativa da apario do material, mas tambm da prpria

qualidade das avaliaes, que falsificam. Por fim, os juzos de valor sobre a vida so impuros

porque a medida com a qual medimos, nosso ser, no uma grandeza inaltervel, ao passo

47
O pargrafo 32 de Humano, demasiado humano foi elaborado a partir do Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA 8.131-
181, que diz respeito leitura do livro de Eugen Karl Dhring intitulado precisamente Der Werth des Lebens (O
valor da vida). Nesse fragmento pstumo, Nietzsche afirma que todos os juzos sobre o valor da vida so
conhecimentos impuros (Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA 8.135). Com isso, o filsofo j indica a impossibilidade
de se cumprir a exigncia de conhecer a vida to bem, apresentada na passagem de Crepsculo dos dolos que
citamos acima.
64
que deveramos conhecer a ns mesmos como uma medida fixa para avaliar de maneira justa

a nossa relao com uma coisa qualquer (MA I/HH I 32, KSA 2.51-52).

Para defender a ideia de que os juzos de valor sobre a vida so impuros e injustos,

Nietzsche apresenta no pargrafo examinado quatro argumentos que antecipam diversos

elementos que posteriormente sero associados ao conceito de perspectiva. Sustentando o

aspecto perspectivstico de toda avaliao, o filsofo sublinhar no apenas o carter limitado

(indicado no primeiro argumento do pargrafo 32), mas tambm o carter falsificador de toda

avaliao (presente no terceiro argumento)48. E essas ideias continuaro a orientar suas

reflexes sobre a vida. No pargrafo 354 de A gaia cincia, em que faz referncia ao seu

perspectivismo e fenomenalismo, Nietzsche sustenta que a parte preponderante dessa vida se

desenrola sem esse espelhamento, quer dizer, sem entrar na conscincia (FW/GC 354,

KSA 3.590, trad. de RRTF), para ento associar todo tornar-se consciente a um processo de

falsificao (FW/GC 354, KSA 3.593, trad. de RRTF). Ademais, o filsofo continuar a

indicar que, perspectivsticas, as avaliaes traduzem condies radicalmente singulares, o

que torna a sua soma incongruente (como apontado no segundo argumento do pargrafo 32),

assim como seguir sugerindo que as avaliaes tm carter transitrio (conforme indicado no

quarto argumento)49.

No prefcio escrito em 1886 para uma nova edio de Humano, demasiado humano,

alm de chamar a ateno para o perspectivstico de toda estimativa de valor, Nietzsche

afirma a injustia necessria de todo pr e contra, a injustia como indissocivel da vida, a

vida mesma como condicionada pelo perspectivstico e sua injustia (MA I/HH I Prefcio, 6,

KSA 2.20, trad. de RRTF). Com essas palavras, o filsofo indica uma vez mais que temos de

48
Sobre a associao do conceito de perspectiva com as ideias de erro, iluso e limitao, ver o Nachlass/FP
1880, 6[441], KSA 9.311-312.
49
Sobre o carter incongruente da soma de perspectivas, ver Nachlass/FP 1888, 14[93], KSA 13.271. A respeito
da transitoriedade das perspectivas, o pargrafo 119 de Aurora (KSA 3.111-114) mostra de modo exemplar
como as avaliaes, relacionadas hierarquizao sempre reconfigurada dos impulsos, so transitrias.
65
ser necessariamente injustos, para lembrarmos o ttulo do pargrafo 32. A vida

condicionada pelo perspectivstico, e o perspectivstico injusto: perspectivsticas, as

estimativas de valor so, portanto, injustas. Se por um lado a vida depende de estimativas de

valor perspectivsticas e injustas, por outro lado as estimativas sobre o valor da prpria vida,

pr ou contra, tambm sero perspectivsticas e injustas.

Enquanto no pargrafo 32 de Humano, demasiado humano Nietzsche se detm de

maneira mais prolongada na argumentao a respeito do carter injusto dos juzos de valor

sobre a vida, nas passagens de Crepsculo dos dolos em que trata do tema o filsofo insiste

principalmente no aspecto sintomatolgico de tais juzos. Depois de afirmar que os juzos de

valor sobre a vida, pr ou contra, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros, acrescenta

que tais juzos s tm valor como sintomas (GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68,

trad. de RRFT). Na medida em que a vida mesma valora atravs de ns, quando institumos

valores, as estimativas de valor sempre se reportam a um determinado modo de vida. Alm

disso, um modo de estimar valores constitui no limite uma afirmao ou uma negao no da

vida em geral, mas de um determinado modo de vida. Essas ideias bsicas se configuram da

seguinte maneira no procedimento de avaliao das avaliaes empreendido por Nietzsche: se

afirma a concepo nietzschiana de vida, um determinado modo de estimar valores

considerado sintoma de uma vida ascendente; se, porm, nega a concepo nietzschiana de

vida, considerado sintoma de uma vida decadente.

Esse procedimento transparece precisamente nos dois captulos de Crepsculo dos

dolos em que, defendendo que os juzos de valor sobre a vida entram em considerao apenas

como sintomas de modos de vida, Nietzsche procura mostrar, respectivamente em O

problema de Scrates e em Moral como contranatureza, que o modo de valorar dos reputados

mais sbios e o modo cristo de valorar so sintomas de um modo de vida decadente.

66
No captulo O problema de Scrates, Nietzsche sustenta que em todos os tempos os

mais sbios julgaram que a vida no vale nada e, por isso, so decadentes (GD/CI, O

problema de Scrates, 1, KSA 6.67). Como assinala o prprio ttulo do captulo, o filsofo se

detm sobretudo no exame do caso de Scrates, considerado paradigmtico na medida em que

representa o caso extremo de uma situao geral de degenerescncia entre os atenienses

(GD/CI, O problema de Scrates, 9, KSA 6.71). Segundo Nietzsche, indicam a decadncia em

Scrates no apenas o desregramento e a anarquia dos instintos, confessados pelo prprio

Scrates, mas tambm a superfetao do lgico (GD/CI, O problema de Scrates, 4, KSA

6.69). Para estabelecer a relao entre esses dois aspectos, Nietzsche evoca, no terceiro e no

nono pargrafos do captulo, o testemunho do fisionomista Zpiro, segundo o qual a feira

da face de Scrates revelava que ele era um antro de maus apetites (GD/CI, O problema de

Scrates, 9, KSA 6.71, trad. de RRTF)50. Embora concordasse com esse testemunho, Scrates

afirmou que dominara tais apetites (GD/CI, O problema de Scrates, 9, KSA 6.71, trad. de

RRTF) por meio da racionalidade a todo preo (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA

6.73, trad. de RRTF).

Ocorre que o meio utilizado por Scrates seu remdio, sua cura, seu artifcio

pessoal de autoconservao51 foi visto como soluo geral, conforme atesta o moralismo

da filosofia grega a partir de Plato, que, como Scrates, equipara razo, virtude e felicidade,

assim como pretende contrapor aos desejos obscuros a luz clara da razo (GD/CI, O problema

de Scrates, 10, KSA 6.72). certo que, para Nietzsche, a anarquia, o desregramento ou a

tirania dos instintos so indcios de decadncia; mas o meio tomado como suposta salvao,

50
Esse episdio j fora mencionado no curso Introduo ao estudo dos dilogos platnicos (KGW II, 4.152).
51
Embora Scrates tenha se percebido e tenha sido percebido por todos como mdico e salvador da o fascnio
que exerceu , Nietzsche sugere que o prprio Scrates compreendeu, por fim, que no era efetivamente mdico
e salvador (GD/CI, O problema de Scrates, 11 e 12, KSA 6.72-73). No momento dessa autocompreenso,
Scrates, o mais esperto de todos os autoenganadores, teria tido alguma sabedoria (GD/CI, O problema de
Scrates, 12, KSA 6.73). Estrategicamente Nietzsche insinua a anuncia do prprio Scrates sua
interpretao.
67
isto , a contratirania exercida pela racionalidade a todo preo, tambm consiste numa

expresso de dcadence (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA 6.72, trad. de RRTF).

Assim como no se deve permitir a tirania dos instintos, no se deve preconizar a tirania da

razo, sobretudo na medida em que a racionalidade a todo preo traduz aqui a interdio de

toda e qualquer concesso aos instintos (GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA 6.72). Ora,

essa proibio generalizada de toda e qualquer concesso aos instintos teria de pressupor a

possibilidade de uma vida livre dos instintos, o que, para Nietzsche, inconcebvel. Alm

disso, sendo generalizada, tal proibio teria por consequncia a interdio at mesmo dos

instintos dos quais depende a vida ou ao menos a vida tal como Nietzsche a concebe52.

Desse modo, ainda que a tirania dos instintos ou da razo assim como a anarquia e o

desregramento dos instintos sejam ndices de decadncia, no se trata, para Nietzsche, de

travar uma guerra aos instintos ou racionalidade em si mesmos, mas tirania dos instintos

ou da razo, bem como anarquia e ao desregramento dos instintos. por isso que, enquanto

para aqueles filsofos toda concesso aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo

(GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA 6.72), Nietzsche afirma, em contraposio: Ter

de combater os instintos eis a frmula para a dcadence: enquanto a vida ascende,

felicidade igual a instinto (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA 6.73, trad. de RRTF

modificada). Proibindo qualquer concesso aos instintos em nome de uma racionalidade a

todo preo, Scrates e seus seguidores negam a vida ou negam ao menos o que, para

Nietzsche, constituiria uma vida ascendente. Como os juzos de valor sobre a vida entram em

52
Mas suposto que algum tome os afetos de dio, inveja, avareza, despotismo como afetos condicionantes da
vida, como algo que deve estar presente de modo fundamental e essencial na economia global da vida, que por
conseguinte deve mesmo ser intensificado, se a vida mesma deve ser intensificada esse algum sofre de uma
tal direo de seu juzo como de uma mareao (JGB/BM 23, KSA 5.38). Nietzsche afirma ainda: Vida
mesma essencialmente apropriao, ofensa, subjugao do que estranho e mais fraco, opresso, dureza,
imposio de formas prprias, incorporao e no mnimo, no mais brando dos casos, explorao [...] (JGB/BM
259, KSA 5.207). Ver tambm GM/GM II, 12, 313-316.
68
considerao apenas como sintomas, Nietzsche conclui que, ao negarem a vida ou, mais

precisamente, a concepo nietzschiana de vida , tais sbios so decadentes.

No captulo Moral como contranatureza, por sua vez, Nietzsche defende que quase

toda moral existente se voltou contra os instintos da vida (GD/CI, Moral como

contranatureza, 4, KSA 6.85). Nesse contexto, toma como caso paradigmtico a moral crist.

Ao visar aniquilao e castrao das paixes e dos desejos, a prtica da igreja , segundo

Nietzsche, hostil vida: Atacar as paixes pela raiz significa atacar a vida pela raiz

(GD/CI, Moral como contranatureza, 1, KSA 6.82). A prtica da igreja hostil vida no

apenas porque v nas paixes um inimigo e faz guerra contra ele, mas sobretudo em funo

do prprio modo como a igreja combate seus inimigos, ou seja, visando a sua aniquilao:

Em todos os tempos a igreja quis a aniquilao de seus inimigos (GD/CI, Moral como

contranatureza, 3, KSA 6.84).

Mas, para Nietzsche, um dos triunfos sobre o cristianismo consiste justamente na

espiritualizao da inimizade, que, contrariamente prtica da igreja, traduz-se na

compreenso do valor de se ter inimigos e de ser rico em antagonismos (GD/CI, Moral como

contranatureza, 3, KSA 6.84) ideia que est em concordncia com o carter dinmico da

vida concebida como vontades de potncia que se ultrapassam a si mesmas defrontando-se

com resistncias e superando-as. Assim, Nietzsche no se ope guerra em geral, pois

renuncia-se vida grandiosa, se se renuncia guerra (GD/CI, Moral como contranatureza,

3, KSA 6.84); antes, conforme mencionamos, o filsofo se contrape mais precisamente a um

certo modo de fazer guerra que procura aniquilar todo e qualquer inimigo, tal como o modo

cristo de combater.

Dessa maneira, longe da espiritualizao da sensibilidade e da espiritualizao da

inimizade (GD/CI, Moral como contranatureza, 3, KSA 6.84), a moral crist toma as paixes

69
e os desejos como inimigos e lhes declara guerra com o objetivo de aniquil-los, o que

constitui, na viso de Nietzsche, uma prtica hostil vida. Com efeito, se quase todas as

morais existentes se voltaram contra os instintos da vida e representaram uma condenao

desses instintos (GD/CI, Moral como contranatureza, 4, KSA 6.85), a moral crist tornou

quase sacrossanta essa rebelio contra a vida (GD/CI, Moral como contranatureza, 5,

KSA 6.86, trad. de RRTF).

A partir desse ponto, o filsofo procede do mesmo modo que no captulo O problema

de Scrates: j que o problema do valor da vida inacessvel, aquela condenao da vida s

entra em considerao enquanto sintoma de uma determinada espcie de vida. Como

sempre um determinado modo de vida que institui valores,

Disto se segue que tambm essa contranatureza de moral, que capta Deus
como contraconceito e condenao da vida, apenas um juzo de valor da
vida de que vida? De que espcie de vida? Mas eu j dei a resposta: da
vida declinante, da vida enfraquecida, cansada, condenada. Moral, como foi
entendida at agora [...] o prprio instinto de dcadence, que faz de si um
imperativo: ela diz: perea. (GD/CI, Moral como contranatureza, 5, KSA
6.86, trad. de RRTF modificada).

Uma vez que o problema do valor da vida se mostra inacessvel, os julgamentos a

respeito do valor da vida s entram em considerao como sintomas. Em primeiro lugar, um

determinado modo de estimar valores no afirma ou nega a vida em geral, mas um

determinado modo de vida. A afirmao ou a negao de um determinado modo de vida ,

por sua vez, considerada como sintoma de um determinado modo de vida, ascendente ou

decadente. Portanto, o procedimento nietzschiano de avaliao das estimativas de valor no

pode prescindir de uma determinada concepo de vida, isto , de uma determinada

interpretao a respeito do que a vida. Ao avaliar o valor das estimativas de valor, Nietzsche

procura avaliar se um determinado modo de estimar valores afirma ou nega a sua prpria (a

70
de Nietzsche) concepo de vida. O critrio do filsofo no apenas distingue, mas pressupe

uma deciso: as estimativas de valor que afirmam a concepo nietzschiana de vida so

superiores s estimativas de valor que a negam.

O prprio Nietzsche oferece indicaes de que o critrio que estabelece depende de

sua interpretao perspectivstica a respeito do que a vida. Aps afirmar que se deve

considerar o valor das estimativas de valor em relao vida, ele pergunta: Mas o que

vida?, e em seguida responde: Aqui se faz necessria uma nova e mais determinada verso

do conceito vida: minha frmula para isso diz: vida vontade de potncia (Nachlass/FP

1885-1886, 2[190], KSA 12.161). Formulada de maneira dogmtica, a pergunta o que

isto? pretende obter uma resposta que revele a essncia de isto. No entanto, Nietzsche

toma o cuidado de explicitar o carter perspectivstico da pergunta o que isto?: No fundo,

trata-se sempre de o que isto para mim? (Nachlass/FP 1885-1886, 2[149] KSA 12.140).

Esse carter perspectivstico, explicitado pelo acrscimo da modalizao para mim,

ocultado no apenas na formulao dogmtica da pergunta, mas igualmente na resposta

dogmtica, que se pretende impessoal e incondicionada. Procedendo de outro modo, ao

perguntar o que vida?, Nietzsche introduz sua resposta, segundo a qual vida vontade de

potncia, precisamente por meio da modalizao minha frmula para isso. Dessa maneira,

o filsofo indica o carter perspectivstico da resposta e ao mesmo tempo da pergunta.

justamente a partir de sua prpria concepo de vida, novamente apresentada por

uma modalizao para mim , que em O anticristo Nietzsche examina o modo cristo de

estimar valores: A vida mesma vale para mim como instinto de crescimento, de durao, de

acumulao de foras, de potncia (AC/AC 6, KSA.172, trad. de RRTF). Em concordncia

com sua concepo de vida, caracteriza como bom tudo o que eleva o sentimento de

potncia, a vontade de potncia, a potncia mesma no homem, ao passo que considera ruim

71
tudo o que provm da fraqueza (AC/AC 2, KSA 6.170). Segundo Nietzsche, o

cristianismo tomou partido de tudo o que fraco, baixo, malogrado e fez um ideal a partir da

contradio com os instintos de conservao da vida forte (AC/AC 5, KSA 6.171). Fazer da

compaixo, por exemplo, uma virtude como fez o cristianismo implica ser hostil vida:

esse instinto depressivo e contagioso cruza aqueles instintos que visam a conservao e

elevao de valor da vida (AC/AC, 7, KSA 6.173, trad. de RRTF). Opondo-se aos afetos

tnicos que elevam a energia do sentimento vital (AC/AC, 7, KSA 6.172, trad. de RRTF

modificada), a compaixo tem por consequncia a perda de fora; alm disso, afirma

Nietzsche: o padecer [das Leiden] mesmo se torna, com a compaixo [das Mitleiden],

contagioso (AC/AC, 7, KSA 6.173, trad. de RRTF). O carter perigoso para a vida da

compaixo se mostra sobretudo na medida em que ela cruza a lei do desenvolvimento, que

a lei da seleo: instrumento capital para a intensificao da dcadence, a compaixo

conserva o que est maduro para sucumbir, arma-se em favor dos deserdados e condenados

da vida e, pela multido de malogrados de toda espcie que mantm firmes na vida, d vida

mesma um aspecto sombrio e problemtico" (AC/AC, 7, KSA 6.173, trad. de RRTF).

tambm a partir de sua concepo de vida que Nietzsche designa seu oposto: os

telogos e tudo o que tem sangue de telogo no corpo nossa inteira filosofia... (AC/AC 8,

KSA 6.174, trad. de RRTF). Para o filsofo, humildade, castidade, pobreza, santidade, em

uma palavra, causaram indizivelmente mais danos vida do que quaisquer terribilidades e

vcios, de modo que o padre no outra coisa seno negador, caluniador, envenenador da

vida (AC/AC 8, KSA 6.175, trad. de RRTF). Por isso Nietzsche assevera:

O que um telogo sente como verdadeiro tem de ser falso: com isso se tem
quase um critrio da verdade. [...] At onde alcana a influncia dos
telogos, o julgamento de valor est colocado de cabea para baixo, os
conceitos de verdadeiro e falso esto necessariamente invertidos: o que
mais prejudicial vida se chama aqui verdadeiro, o que a eleva,
72
intensifica, afirma, justifica e faz triunfar se chama falso. (AC/AC, KSA
6.175-176).

Tem-se quase um critrio de verdade na medida em que se trata de um critrio

negativo: o que um modo de avaliar influenciado pelo telogo julga como verdadeiro ,

conforme a perspectiva avaliadora de Nietzsche, falso, pois aquela maneira de estimar valores

condena o que reala e eleva a vida tal como Nietzsche a compreende. Assim, o critrio de

Nietzsche para avaliar e hierarquizar as estimativas de valor depende de sua prpria

interpretao a respeito da vida: O critrio da verdade. A vontade de potncia, como vontade

de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA 13.516).

Ao falar em critrio da verdade, no nos parece que Nietzsche tenha em vista o

critrio de uma verdade em si, como era a pretenso da lgica, por exemplo. Ao contrrio, o

filsofo considera dogmtica a pretenso de estar em posse de uma verdade em si,

incondicionada. A despeito do predomnio dessa pretenso, sustenta que at agora todos os

filsofos amaram suas verdades (JGB/BM 43, KSA 5.60, grifo nosso). Por isso, os filsofos

do futuro sero novos amigos da verdade, mas de sua verdade, sem ignorar ou dissimular,

como os dogmticos, que aquilo que se determina como verdade sempre depende de uma

interpretao perspectivstica, sempre possui uma provenincia determinada, conforme sugere

no pargrafo 43 de Para alm de bem e mal o uso de um pronome possessivo ao lado da

palavra verdade53. Se o critrio nietzschiano da verdade depende de uma interpretao da vida

como vontade de potncia, no pargrafo 36 do mesmo livro (KSA 5.55), ao elaborar a

hiptese do mundo como vontade de potncia, hiptese sobre a qual repousa aquela

concepo de vida, o filsofo destaca: vontade de potncia como minha proposio,

indicando com o pronome possessivo sublinhado que tal concepo tambm resulta de uma

interpretao perspectivstica.
53
Ver tambm, por exemplo, Nachlass/FP 1884, 26[15], KSA 11.153 e 1885, 40[39], KSA 11.649.
73
Mas no basta conceber a vida como vontade de potncia, pois as vontades de

potncia se exercem como vida ascendente e como vida decadente. Assim, a intensificao de

potncia no implica necessariamente um modo de vida ascendente. Da Nietzsche precisar:

A vontade de potncia, como vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888,

16[86], KSA 13.516).

As vontades de potncia se exercem como um modo de vida decadente na medida em

que inventam uma outra vida e um outro mundo considerados melhores e mais verdadeiros, a

partir dos quais estimam valores. A esse respeito Nietzsche assevera:

Fabular sobre um outro mundo, que no este, no tem nenhum sentido,


pressupondo que um instinto de calnia, apequenamento, suspeio contra a
vida no tenha potncia em ns: neste ltimo caso vingamo-nos da vida com
a fantasmagoria de uma outra vida, de uma vida melhor. (GD/CI, A
razo na filosofia, 6, KSA 6.78, trad. de RRTF).

E em seguida o filsofo afirma que a diviso entre um mundo verdadeiro e um

mundo aparente constitui somente uma sugesto da dcadence, um sintoma de vida

declinante (GD/CI, A razo na filosofia, 6, KSA 6.79, trad. de RRTF). Segundo a

avaliao do filsofo, como vimos, quase toda moral traduz a negao e a condenao dos

instintos da vida; mas o cristianismo, caso paradigmtico, diz no para os desejos mais

baixos e mais elevados da vida e toma Deus como inimigo da vida (GD/CI, Moral como

contranatureza, 4, KSA 6.85), pois do conceito de Deus so eliminados os pressupostos da

vida ascendente, isto , tudo o que forte, bravo, senhorial, orgulhoso (AC/AC 17, KSA

6.184, trad. de RRTF).

Um modo de estimar valores que traduz um modo de vida ascendente diz sim a esta

vida e a este mundo, sem inventar outra vida e outro mundo. O artista trgico no um

pessimista porque diz precisamente sim, at mesmo, a todo problemtico e terrvel,

74
dionisaco (GD/CI, A razo na filosofia, 6, KSA 6.79, trad. de RRTF). E na mesma

direo Nietzsche insiste:

A tragdia est to longe de demonstrar algo sobre o pessimismo dos


helenos no sentido de Schopenhauer que ela tem de valer, ao contrrio, como
sua decisiva rejeio e contrainstncia. O dizer sim prpria vida mesmo
em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida se
alegrando no sacrifcio de seus tipos mais elevados prpria
inesgotabilidade isso eu denominei dionisaco, isso eu adivinhei como a
ponte para a psicologia do poeta trgico. (GD/CI, O que devo aos antigos, 5,
KSA 6.160).

***

Ao estabelecer um critrio para avaliar e hierarquizar as interpretaes, Nietzsche

indica que no pretenderia assumir a posio de um relativista radical, isto , no contaria

sustentar que as interpretaes so equivalentes. No entanto, ao investigarmos como a

filosofia perspectivstica de Nietzsche instaura esse critrio, procuramos mostrar que no se

trata de um critrio neutro, objetivo, independente e absoluto, mas sim relativo a uma

determinada interpretao perspectivstica. Com efeito, baseado na concepo de vida como

vontade de potncia, o procedimento de avaliao das interpretaes repousa em ltima

instncia na concepo nietzschiana da efetividade como vontade de potncia, cujo estatuto

temos de investigar de modo mais aprofundado.

75
CAPTULO 3

O estatuto da concepo nietzschiana de efetividade

Ao apresentar sua concepo de mundo como interpretao, hiptese e ensaio,

Nietzsche sublinha seu carter antidogmtico e ao mesmo tempo oferece indicaes sobre seu

estatuto, que se revela, de fato, complexo. Se confere a essa concepo de mundo um estatuto

interpretativo, no pretende, todavia, que sua interpretao seja apenas mais uma, mas, ao

contrrio, reivindica sua superioridade diante das demais; se a designa como hiptese e

ensaio, com isso no quer sugerir que resulta de uma formulao arbitrria, mas, antes, de um

procedimento rigoroso. Assim, mais uma vez o filsofo no se coloca na posio de um

relativista radical que afirmaria a equivalncia de todas as interpretaes de mundo: alm de

hierarquizar as outras interpretaes, ele considera a sua prpria superior s demais. Cumpre

agora examinar a complexidade do estatuto da concepo nietzschiana de efetividade e tentar

estabelecer o carter daquela superioridade reivindicada por uma filosofia radicalmente

perspectivista.

***

Ao atribuir um estatuto interpretativo a sua concepo de mundo como vontade de

potncia, Nietzsche procede de modo coerente com sua prpria concepo de mundo. De um

lado, o filsofo apresenta seu pensamento da vontade de potncia como ensaio de uma

nova interpretao de todo acontecer (Nachlass/FP 1885, 39[1], KSA 11.619); de outro,

afirma o carter interpretativo de todo acontecer (Nachlass/FP 1885-1886, 1[115], KSA

12.38) e sustenta que as vontades de potncia se exercem de modo interpretante: A vontade


76
de potncia interpreta (Nachlass/FP 1885-1886, 2[148], KSA 12.139). Assim, o estatuto da

doutrina concorda com o contedo da doutrina; mais do que isso: o contedo da doutrina

determina seu estatuto54.

luz dessa concepo de mundo, Nietzsche defende que mesmo as pretensas

verdades absolutas e explicaes de mundo no so seno interpretaes de mundo55, as quais

resultam de diferentes configuraes de vontades de potncia. Mas o filsofo hierarquiza as

interpretaes, mostrando que no as toma como equivalentes. Procede assim, por exemplo,

no pargrafo 14 de Para alm de bem e mal. Ali, afirma que a fsica apenas uma

interpretao e uma disposio do mundo [...] e no uma explicao do mundo (JGB/BM 14,

KSA 5.28). No entanto, adverte que, para a sua poca, ela vale como mais, [...] como

explicao (JGB/BM 14, KSA 5.28). Isso porque a fsica repousa na crena nos sentidos,

tendo os olhos e os dedos a seu favor. Assim, est em conformidade com o sensualismo

popular que serve como o cnone de verdade numa poca de gosto plebeu, para a qual o que

explica o que se deixa ver e tocar (JGB/BM 14, KSA 5.28). A fsica ento fascina e

persuade.

Em oposio a esse sensualismo popular, Nietzsche evoca o modo platnico de

pensar, que era um modo nobre de pensar, cujo fascnio repousa desta vez na resistncia

contra a evidncia dos sentidos (JGB/BM 14, KSA 5.28). Embora considere o modo

54
Nesse sentido, concordamos com a afirmao de Vnia Dutra de Azeredo: Introduzir a interpretao nos
domnios do mundo a partir de uma interpretao foi, a nosso ver, o exerccio filosfico de Nietzsche,
consistindo seu empenho em aniquilar as noes de fato e de fundamento (2008, p. 45).
55
Interpretao de mundo, no explicao de mundo, anota frequentemente o filsofo (por exemplo, no
Nachlass/FP 1885, 42[1], KSA 11.691 e no Nachlass/FP 1885-1886, 1[121], KSA 12.39). Nietzsche escreve
ainda interpretao, no explicao (ver Nachlass/FP 1885-1886, 2[78], KSA 12.98, Nachlass/FP 1885-1886,
2[82], KSA 12.100-101 e Nachlass/FP 1886-1887, 5[50] (30), KSA 12.203). Encontra-se tambm a frmula:
interpretao, no conhecimento (Nachlass/FP 1885-1886, 2[70], KSA 12.92 e Nachlass/FP 1885-1886, 2[82],
KSA 12.101). Nessa direo, sustenta que o mundo no passvel de conhecimento, mas sim interpretvel
(Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). L-se ainda: o que, somente, pode ser conhecimento?
Interpretao, no explicao (Nachlass/FP 1885-1886, 2[86], KSA 12.104). Alm disso, Nietzsche defende
que o que se acredita tratar-se de explicao consiste a rigor em descrio (por exemplo, em FW/GC 112,
KSA 3.472).
77
platnico de pensar superior, Nietzsche no o toma por isso como uma explicao de mundo,

mas sim como uma interpretao do mundo (JGB/BM 14, KSA 5.28). Nem a filosofia

dogmtica, nesse caso representada por Plato, nem a cincia, representada pela fsica,

produzem explicaes de mundo, mas apenas interpretaes de mundo. A superioridade de

uma determinada interpretao em relao a outra no a transforma, pois, numa explicao.

Nietzsche procede de modo semelhante ao conferir um estatuto interpretativo a sua

prpria concepo de mundo como vontade de potncia. Apresentando-se como velho

fillogo, ele inclui a concepo de legalidade da natureza dos fsicos entre as artes-de-

interpretao ruins: tal concepo, diz aos fsicos, s subsiste graas a vossa interpretao e

filologia ruim no nenhum fato, nenhum texto (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de

RRTF modificada). Tomando a interpretao dos fsicos como algo a ser, por seu turno,

interpretado, Nietzsche afirma que ela constitui somente um arranjo ingenuamente

humanitrio e uma distoro de sentido, com que dais [os fsicos] plena satisfao aos

instintos democrticos de alma moderna (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). Para o

filsofo, a concepo de legalidade da natureza quer ver por toda parte igualdade diante da

lei, donde a concluso de que se trata de um maneiroso pensamento oculto, em que mais

uma vez est disfarada a plebeia hostilidade contra tudo o que privilegiado e senhor de si

[...] (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF).

Em seguida, Nietzsche evoca a sua prpria concepo de mundo como vontade de

potncia, introduzindo-a, no entanto, como o resultado de uma arte de interpretao oposta

dos fsicos, isto , como o resultado de uma boa arte de interpretao. Ao atribuir um estatuto

interpretativo a sua concepo de mundo, no a apresenta como uma explicao: nesse

sentido, ela continuar a ser, portanto, somente interpretao (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad.

de RRTF). Mas nem por isso o filsofo a considera como apenas mais uma interpretao, ou

78
seja, como equivalente s outras interpretaes. Antes, considera sua interpretao superior s

demais: e no apenas porque ele a reconhece como uma interpretao, ao passo que os

dogmticos pretendem fazer com que suas interpretaes se passem por explicaes ou

verdades absolutas, mas sobretudo porque sua interpretao decorre, segundo ele, de uma boa

arte de interpretao.

Com efeito, o conceito de interpretao no significa um procedimento homogneo.

De modo geral, as interpretaes se distinguem em artes boas de interpretao e em artes

ruins de interpretao. bem verdade que Nietzsche qualifica as interpretaes mais

frequentemente de modo depreciativo do que elogioso: exaltada e artificial (MAI/HH I 143,

KSA 2.139), infame (M/A 13, KSA 3.26, trad. de RRTF), falsa (Nachlass/FP 1885,

34[48], KSA 11.435) e arbitrria (Nachlass/FP 1888, 14[151], KSA 13.333) so alguns dos

adjetivos empregados para desqualificar determinados modos de interpretar. Mas a

depreciao de uma interpretao pode ser ainda mais especfica: ao referir-se a uma

desavergonhada arbitrariedade da interpretao (M/A 84, KSA 3.79), por exemplo, o

filsofo sugere que a prpria caracterizao de uma interpretao como arbitrria pode

comportar nuances, havendo desde arbitrariedades mais sutis at outras mais grosseiras, desde

arbitrariedades involuntrias at outras voluntrias, as quais configuram casos extremos,

veementemente criticados por Nietzsche. De resto, em boa parte das ocasies em que

menciona a arte de ler e de interpretar corretamente, trata-se justamente de apontar para a

raridade desses casos (Nachlass/FP 1876-1877, 23[22], KSA 8.441 e 23[108], KSA 8.441) e

de incitar a um tal procedimento de leitura e interpretao.

Desde o perodo em que era professor de filologia na Basilia, notando que os

fillogos haviam desaprendido a ler, Nietzsche j exortava: Temos de aprender novamente a

79
ler (KGW II, 3.373)56. Como no considerava os procedimentos de leitura equivalentes,

insistia na necessidade de se adquirir um mtodo correto de transmisso e de hermenutica

(KGW II, 3, 388). Para o estabelecimento e a interpretao dos documentos escritos, que

devem por fim visar a uma compreenso total da antiguidade, seriam necessrios, entre outros

requisitos, lgica rigorosa, conhecimento lingustico e sentido sutil para as possibilidades de

corrupo do texto (KGW II, 3.375) sentido que Nietzsche continuar a exercitar, criticando

tanto a corrupo de textos em sentido estrito (do texto bblico, por exemplo, corrompido pela

igreja, que, desonesta, introduz de maneira fraudulenta uma passagem a ser posteriormente

utilizada no sentido da profecia crist, cf. M/A 84, KSA 3.80) quanto a corrupo de textos

em sentido amplo (tal como do texto da natureza, preparado previamente pelos metafsicos

para que se adapte explicao que eles tm pronta de antemo, cf. WS/AS 17, KSA 2.551-

552, trad. de RRTF). Em seu curso de filologia, Nietzsche j exigia rigor moral e

preconizava uma leitura lenta e desconfiada, que pe prova cada fato e cada passagem

(KGW II, 3.375). E tais recomendaes continuaro a ecoar em textos posteriores, nos quais o

filsofo exigir o cultivo de uma boa arte de leitura e de interpretao: No se foi fillogo

em vo, -se ainda talvez, quer dizer, um professor da lenta leitura, escreve no ltimo

pargrafo do prefcio de Aurora (KSA 3.17). A filologia, prossegue Nietzsche ali, ensina a

ler bem, isto , a ler lenta e profundamente, de modo atento e cuidadoso, com segundas

intenes, deixando portas abertas, com dedos e olhos delicados (M/A Prefcio 5, KSA

3.17)57.

Assim, no sem motivo que no pargrafo 22 de Para alm de bem e mal Nietzsche

se coloca na posio de um velho fillogo, qualificado para apontar artes ruins de

56
Trata-se aqui de anotaes para o curso intitulado Encyclopdie der klassischen Philologie.
57
Nietzsche designa a filologia, em um sentido muito geral, como a arte de ler bem e de poder decifrar
fatos [...] sem falsific-los com interpretao, sem perder, na exigncia de compreenso, o cuidado, a pacincia, a
sutileza (AC/AC 52, KSA 6.233). Sobre a filologia como a arte da lenta leitura, ver ainda o Nachlass/FP 1876,
19[1], KSA 8.332.
80
interpretao entre as quais se encontra a concepo de legalidade da natureza dos fsicos

, incapazes at mesmo de estabelecer fatos ou textos. Mas se no curso de introduo aos

estudos de filologia clssica Nietzsche j mostrava que o estabelecimento de um texto ou de

um fato depende de um rigoroso procedimento interpretativo, os conceitos de texto e de

interpretao se tornaro cada vez mais plurvocos e desempenharo papeis diversos no

pensamento do filsofo; o que permanecer sempre, contudo, ser a exigncia de uma boa

arte de interpretao e de leitura, assim como, em contrapartida, a crtica s artes ruins de

interpretao e de leitura.

certo que Nietzsche continuar a servir-se dos conceitos de interpretao e de texto

em seu sentido estrito, isto , relacionados a documentos escritos: isso ocorre, por exemplo,

nas ocasies em que exige uma leitura interpretativa de seus prprios textos (GM/GM

Prefcio, 8, KSA 5.255-256) ou em que critica o procedimento cristo de estabelecimento e

de interpretao de textos, arte de ler mal caracterizada pela improbidade e pela

desavergonhada arbitrariedade da interpretao (M/A 84, KSA 3.79). Mas Nietzsche amplia

consideravelmente o uso desses conceitos: a ponto de considerar todo tipo de fenmeno como

um texto a ser interpretado. assim que o filsofo toma as disposies, inclinaes e aes do

santo como uma escrita, que foi, no entanto, falsamente interpretada, segundo uma arte

de interpretao to exaltada e artificial quanto a pneumtica interpretao da bblia (MA

I/HH I 143, KSA 2.139); que designa a conscincia como um comentrio mais ou menos

fantstico sobre um texto desconhecido, talvez incognoscvel (M/A 119, KSA 3.113); que se

refere Revoluo Francesa como um texto que, todavia, desapareceu sob as interpretaes

daqueles que nele por tanto tempo e de maneira to apaixonada introduziram, por meio de

interpretao, seus prprios entusiasmos e revoltas (JGB/BM 38, KSA 5.56); que define a

filologia, em um sentido muito geral, como a arte de ler bem e de poder decifrar fatos:

81
sejam eles livros, notcias de jornais, destinos ou fatos meteorolgicos (AC/AC 52, KSA

6.233). Por fim, Nietzsche se referir ao prprio mundo como um texto ou um fato a ser

interpretado (JGB/BM 22, KSA 5.37)58.

As passagens em que Nietzsche trata da relao entre texto e interpretao do, porm,

margem a algumas dificuldades. Em uma srie de escritos, o filsofo sugere que no h fatos

(e, portanto, textos)59 em si mesmos e que, por isso, preciso que primeiramente se introduza

um sentido por meio de interpretao para que, somente ento, tenha-se um fato ou um texto:

No h nenhum fato em si, mas sim um sentido deve sempre primeiramente ser introduzido

para que possa haver um fato (Nachlass/FP 1885-1886, 2[149], KSA 12.140). Nesse caso, o

prprio estabelecimento de um fato ou de um texto, em sentido estrito ou amplo, j consiste

num procedimento interpretativo; em outras palavras: a interpretao no um procedimento

posterior ao estabelecimento de um fato ou de um texto. E embora no seja necessrio

estabelecer todos os textos do mesmo modo como a filologia clssica os estabelece, ainda

assim podemos dizer que toda leitura (tanto a leitura que visa a estabelecer um texto quanto a

leitura de um texto j estabelecido) consiste num procedimento interpretativo.

Por outro lado, diversos escritos de Nietzsche apontam, ao menos aparentemente, para

outra direo: ao afirmarem que a boa arte de leitura aquela que no falsifica o texto com

interpretaes, essas passagens sugerem uma separao entre texto e interpretao. Depois de

58
A respeito dessa extenso dos conceitos de texto e de interpretao, Mller-Lauter (1974, p. 44) indica que
Nietzsche utiliza com prazer a relao filolgica texto-interpretao para o esclarecimento das relaes
fundamentais da efetividade. ric Blondel (1986, p. 145), por sua vez, sustenta que Nietzsche estende os
mtodos da filologia a tal ponto que a cultura e a realidade devem ser consideradas como textos a serem
filologicamente interpretados (Ibid., p. 137). Tambm atribuindo um papel central a uma concepo mais ampla
de filologia na filosofia de Nietzsche, Patrick Wotling (2009, p. 58) defende que, depois de criticar o conceito
idealista de realidade, o pensador alemo estabelece o texto da realidade-aparncia, o qual se mostrar legvel
como vontade de potncia.
59
Nas notas para o curso Enciclopdia da filologia clssica, Nietzsche utiliza, entre outros, o termo Thatsache
(KGW II, 3.375) como sinnimo de texto em sentido estrito, isto , como documento escrito. Posteriormente o
mesmo termo continuar a ser empregado, ao menos em algumas passagens, como sinnimo de texto: no mais
apenas em sentido estrito, mas tambm em sentido amplo, como o caso do pargrafo 52 de O anticristo, que
citamos pouco acima. Nietzsche tambm empregar o termo Thatbestand como sinnimo de texto, como se
verifica no j mencionado pargrafo 22 de Para alm de bem e mal, no qual o filsofo afirma que a concepo
da legalidade da natureza dos fsicos no nenhum fato (Thatbestand), nenhum texto.
82
defender que a concepo de legalidade da natureza dos fsicos no nenhum fato,

nenhum texto, o filsofo insiste: isso interpretao, no texto (JGB/BM 22, KSA 5.37,

trad. de RRTF modificada). E nessa mesma direo caracteriza a filologia, em um sentido

muito geral, como poder decifrar fatos sem falsific-los com interpretao (AC/AC 52,

KSA 6.233).

Seria possvel ento separar texto de interpretao? Parece-nos que no. Como, para

Nietzsche, todo acontecer tem carter interpretativo, efetivamente impossvel suprimir a

interpretao da leitura (e, assim, at mesmo do estabelecimento) de um texto ou de um fato

(sejam tais conceitos considerados em seu sentido estrito ou em seu sentido amplo). Contudo,

como vimos, o conceito de interpretao no designa um procedimento homogneo, mas uma

multiplicidade de modos de interpretao que podem ser, de maneira geral, caracterizados

como artes ruins de interpretao ou artes boas de interpretao. Assim, nas ocasies em que

afirma que uma boa arte de leitura aquela que no falsifica o texto com interpretaes, o

filsofo exige que se evite uma arte ruim de interpretao, mas no que se suprima toda

interpretao, o que seria efetivamente impossvel. Ao dizer que a legalidade da natureza

[...] no nenhum fato, nenhum texto, Nietzsche se refere a um determinado modo de

interpretar, precisamente interpretao dos fsicos, ou seja, vossa interpretao e

filologia ruim, que fazem parte das artes-de-interpretao ruins (JGB/BM 22, KSA 5.37,

trad. de RRTF modificada). Os fsicos no conseguem sequer estabelecer um texto ou um fato

no porque interpretam pois todos, inclusive Nietzsche, interpretam , mas sim porque

procedem segundo uma arte ruim de interpretao.

A filologia ruim, que se vale de uma arte ruim de interpretao, seria caracterizada por

trs infraes metodolgicas principais60. A primeira delas, indicada no pargrafo 17 de O

60
Essa a interpretao de Patrick Wotling (2009, p. 45-48).
83
andarilho e sua sombra (WS/AS 17, KSA 2.551-552), consiste na violao das regras de

estabelecimento do texto por falsificao, manipulao e corrupo; essa violao, designada

como falta de probidade, prepara o texto para que ele se adapte a uma explicao

previamente formulada. A segunda infrao a confuso entre texto e interpretao, que

caracteriza a falta de filologia: ao texto original se sobrepe uma interpretao, que passa

a ser considerada como texto, sob o qual desaparece, por fim, aquele texto original; essa

segunda infrao cometida, por exemplo, pelos fsicos (JGB/BM 22, KSA 5.37).

Estreitamente vinculada s duas precedentes, a terceira infrao, desqualificada como

mentirosa e delirante, consiste em abordar o texto munido de uma interpretao global

inteiramente pr-estabelecida, que ento sobreposta ao texto a ser interpretado

(WOTLING, 2009, p. 48); essa ltima infrao exemplificada pela exegese crist do texto

bblico (Nachlass/FP 1885, 34[48], KSA 11.435)61.

Mas seria possvel evitar absolutamente essas infraes? De que maneira? Para tentar

evit-las, deve-se em primeiro lugar tomar conscincia de que todo procedimento de

confrontao com um texto, em sentido estrito ou em sentido amplo, necessariamente um

procedimento interpretativo. Assim, mesmo que no seja possvel separar texto e

interpretao, evitar-se- tomar a prpria interpretao como um texto isento de interpretao,

como fizeram os fsicos (JGB/BM 22, KSA 5.37) e os intrpretes da Revoluo Francesa

(JGB/BM 38, KSA 5.56): no, contudo, porque se considere possvel chegar a um texto ou a

um sentido originais, livres de toda e qualquer interpretao, mas sim porque se ter

61
Ver ainda FW/GC 357, KSA 3.600, trad. de RRTF: Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da
bondade e custdia de Deus; interpretar a histria em honra de uma razo divina, como constante testemunho de
uma ordenao tica do mundo com intenes finais ticas; interpretar as prprias vivncias, como a
interpretavam h bastante tempo homens devotos, como se tudo fosse providncia, tudo fosse aviso, tudo fosse
inventado e ajustado por amor da salvao da alma: isso agora passou, isso tem contra si a conscincia, isso,
para toda conscincia mais refinada, passa por indecoroso, desonesto, por mentira, efeminamento, fraqueza,
covardia por esse rigor, se que por alguma coisa, que somos justamente bons europeus e herdeiros da
mais longa e mais corajosa autossuperao da Europa.
84
conscincia de que toda relao com um texto constitui um procedimento interpretativo, ou

seja, de que sempre se trata de interpretao.

certo que, como vimos, Nietzsche critica frequentemente a arbitrariedade de

determinadas interpretaes (Nachlass/FP 1888, 14[151], KSA 13.333), a introjeo do

prprio intrprete naquilo que interpreta (JGB/BM 38, KSA 5.56) e, de maneira geral, o

acrscimo, por meio de interpretao, de algo exterior ao processo interpretado (JGB/BM 17,

KSA 5.31 e Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). E, com efeito, ao se tomar

conscincia de que impossvel deixar de interpretar e de que, mesmo quando se procura

extrair sentido, interpretar consiste basicamente em introduzir sentido a partir de uma

perspectiva determinada62, ento se pode, na medida do possvel, procurar evitar ao mximo

proceder de modo arbitrrio, adotando-se um procedimento metdico, guiado por cautela,

pacincia, ateno, desconfiana, lentido, rigor moral e tudo o que prescreve Nietzsche nas

passagens em que trata da arte de ler e interpretar bem.

Todavia, assim como a tomada de conscincia do carter perspectivstico da existncia

no implica a superao ou a supresso de tal carter, a tomada de conscincia do carter

interpretativo no possibilita sua superao ou supresso: sendo todo interpretar

perspectivstico e consistindo em introduzir sentido, legtimo duvidar que mesmo um

procedimento que seja consciente de seu carter interpretativo e que proceda com rigor

metodolgico resulte numa leitura sem qualquer arbitrariedade, sem distores e sem

introduo de sentido. Antes, sendo interpretativa e perspectivstica, toda leitura implica

introduo de sentido, arbitrariedade e distoro, ainda que involuntariamente e ainda que tais

procedimentos passem despercebidos. Assim, se h elementos constituintes das artes ruins de

interpretao que no podem ser completamente suprimidos, ento esses elementos tero de

62
Ver nota 19, no primeiro captulo.
85
estar em alguma medida presentes tambm nas artes boas de interpretao: portanto, no

limite, no possvel efetuar uma distino absoluta entre artes de interpretao boas e artes

de interpretao ruins.

Essas consideraes no tm por consequncia, contudo, o desprezo ao rigor

metdico, como se no importasse o modo como uma interpretao, uma hiptese e um

ensaio so formulados. Ao contrrio: ao mesmo tempo em que atribui a sua concepo de

mundo como vontade de potncia o estatuto de interpretao, de hiptese e de ensaio,

Nietzsche toma o cuidado de insistentemente explicitar o rigor metodolgico com que

procede em sua formulao. Pois tambm com base nesse rigor metodolgico que o filsofo

considera sua concepo de mundo superior s demais. A leitura do pargrafo 22 de Para

alm de bem e mal nos mostrou que Nietzsche toma sua concepo de mundo no como

apenas mais uma interpretao, mas como resultante de uma boa arte de interpretao, o que

lhe confere superioridade diante das demais interpretaes. A leitura do pargrafo 36 do

mesmo livro, por sua vez, indica de modo exemplar que Nietzsche apresenta sua concepo

de mundo no como uma hiptese e um ensaio precipitados (JGB/BM 192, KSA 5.113) e

incompletos (Nachlass/FP 1888, 14[188], KSA 13. 176), como outros por ele criticados, mas

como uma hiptese e um ensaio formulados com rigor metodolgico.

Esse rigor repousa na parcimnia de princpios, j evocada no pargrafo 13 de Para

alm de bem e mal (KSA 5.28, trad. de RRTF). No pargrafo 36 do mesmo livro (KSA 5.54-

55, trad. de RRTF), a ateno a essa economia de princpios se revela em diversos momentos

da argumentao: por exemplo, quando, aps supor que nada outro est dado como real, a

no ser nosso mundo de apetites e paixes (grifo nosso), Nietzsche pergunta se esse dado

no basta para, a partir de seu semelhante, entender o assim chamado mundo mecnico

(grifo do autor); ao afirmar que esta uma moral do mtodo, a saber: no admitir vrias

86
espcies de causalidade, enquanto o ensaio de bastar-se com uma nica no tiver sido levado

at seu limite extremo (grifo nosso); ao escrever: quanto basta, para termos de arriscar a

hiptese, se por toda parte onde so reconhecidos efeitos no vontade que faz efeito sobre

vontade (grifo nosso); ao dizer: suposto, enfim, que desse certo explicar toda a nossa vida

de impulsos como a conformao e ramificao de uma forma fundamental da vontade ou

seja, da vontade de potncia (grifo do autor); e, por fim, ao concluir o pargrafo com a

proposio de que o mundo [...] seria justamente vontade de potncia, e nada alm disso

(grifo nosso). Como se nota, a exigncia de parcimnia de princpios deve resultar numa

hiptese que se aplique ao maior nmero possvel de fenmenos: e, com efeito, Nietzsche

formula uma hiptese cujo alcance o prprio mundo.

Ao concluir o pargrafo com a afirmao de que o mundo [...] seria justamente

vontade de potncia, e nada alm disso, Nietzsche reitera, empregando o verbo no modo

conjuntivo, o carter hipottico de sua concepo. preciso notar, no entanto, que o filsofo

atribui um carter de necessidade como atesta o emprego do verbo modal mssen

formulao hipottica de pontos fundamentais da argumentao que resultar na concepo de

mundo como vontade de potncia: isso ocorre, por exemplo, na passagem em que afirma que

temos [mssen] de fazer o ensaio de pr hipoteticamente a causalidade da vontade como a

nica; e tambm linhas abaixo, onde escreve: quanto basta, para termos [muss] de arriscar

a hiptese, se por toda parte onde so reconhecidos efeitos no vontade que faz efeito

sobre vontade (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF). Em suma: hipteses, mas

hipteses necessrias.

O carter necessrio da formulao dessas hipteses decorre, entretanto, da admisso

de determinadas proposies, as quais, por seu turno, so apresentadas como suposies e at

mesmo como crenas:

87
A pergunta , por ltimo, se reconhecemos efetivamente a vontade como
eficiente, se acreditamos na causalidade da vontade: se o fazemos e no
fundo a crena nisso justamente nossa crena na prpria causalidade ,
temos de fazer o ensaio de pr hipoteticamente a causalidade da vontade
como a nica. (JGB/BM 36, KSA 5.55, trad. de RRTF).

Precisemos que aquelas proposies, das quais Nietzsche retira hipteses apresentadas

como necessrias, no parecem usufruir do mesmo estatuto aos olhos do filsofo, se se leva

em conta o conjunto de seus textos. Por um lado, algumas proposies poderiam ser

consideradas como subscritas pela prpria filosofia de Nietzsche, a saber: a suposio de que

no podemos descer ou subir a nenhuma outra realidade, a no ser precisamente a realidade

de nossos impulsos, sendo possvel pensar o chamado mundo mecnico como uma pr-

forma da vida; da mesma maneira, a suposio de que seria possvel explicar toda a nossa

vida de impulsos como a conformao e ramificao de uma forma fundamental da vontade

ou seja, da vontade de potncia, como minha proposio63; e, por fim, a suposio de que

seria possvel reconduzir todas as funes orgnicas a essa vontade de potncia e [de que]

nela tambm se encontrasse a soluo do problema da gerao e nutrio (JGB/BM 36, KSA

5.55, trad. de RRTF)64.

No seria fcil, porm, sustentar que a crena na causalidade, que no fundo a crena

na causalidade da vontade, desfruta igualmente do assentimento de Nietzsche: mesmo

reconhecendo a utilidade prtica da noo de causalidade, o filsofo no deixou de, com

frequncia, apontar seu carter ilusrio, que provm precisamente da crena na causalidade da

vontade. E esse ponto no lhe passou despercebido durante a formulao do pargrafo 36 de

Para alm de bem e mal, como atesta o seguinte fragmento pstumo:

63
A vida, como a forma do ser que nos mais conhecida, especificamente uma vontade de acumulao de
fora [...] A vida, como um caso singular: daqui a hiptese sobre o carter global da existncia (Nachlass/FP
1888, 14[82], KSA 13.262).
64
Ver Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563 e Nachlass/FP 1888, 14[174], KSA 13.360.
88
A pergunta , por fim: se ns reconhecemos a vontade efetivamente como
eficiente? Se ns a reconhecemos como tal, ento naturalmente ela s pode
fazer efeito sobre algo que de sua espcie: e no sobre matria. Ou se
deve considerar todo efeito como iluso (pois ns nos formamos a
representao de causa e efeito apenas segundo o modelo de nossa vontade
como causa!) e ento nada de modo algum compreensvel: ou se deve
tentar pensar todo efeito como sendo de mesma espcie, como atos de
vontade, portanto fazer a hiptese, se todo acontecer mecnico, na medida
em que contm uma fora, precisamente ato de vontade. (Nachlass/FP
1885, 40[37], KSA 11.647).

Nietzsche afirma de fato que um quantum de potncia caracterizado pelo efeito

(Wirkung) que ele produz e ao qual ele resiste e que a relao entre os quanta dinmicos

consiste em seu efetivar-se (Wirken) uns sobre os outros (Nachlass/FP 1888, 14[79], KSA

13.258 e 259). No entanto, o filsofo no parece conceber o efetivar-se dos quanta de

potncia baseado em nossa crena na causalidade (JGB/BM 36, KSA 5.55), mas

simplesmente em termos de exercer (auszuben) potncia sobre todos os outros quanta de

fora (Nachlass/FP 1888, 14[81], KSA 13.261). Mas por que, mesmo correndo o risco de

evocar o to criticado par causa e efeito e de associar o efetivar-se dos quanta de potncia

noo de causalidade, o filsofo admite no pargrafo 36 de Para alm de bem e mal nossa

crena na causalidade para ento afirmar que temos de fazer o ensaio de pr

hipoteticamente a causalidade da vontade como a nica?

Procedendo assim, Nietzsche lana mo de mais um meio para evidenciar a

superioridade de sua hiptese de mundo diante das outras, pois mesmo admitindo a crena na

causalidade, a partir da qual se formam outras concepes de mundo, como a mecanicista, o

filsofo chega necessariamente formulao da hiptese da vontade de potncia. Uma vez

admitida a crena na causalidade65, torna-se ento necessrio fazer o ensaio de pr

hipoteticamente a causalidade da vontade como a nica, o que conduzir necessariamente


65
A crena na causalidade no uma crena qualquer, pois sem ela a espcie poderia perecer; assim, ela faz
parte daquelas admisses denominadas verdades (Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11.152-153).
89
formulao das seguintes hipteses: se por toda parte onde so reconhecidos efeitos no

vontade que faz efeito sobre vontade e se todo acontecer mecnico, na medida em que uma

fora ativa nele, no justamente fora de vontade, efeito de vontade (JGB/BM 36, KSA

5.55, trad. de RRTF); e a sequncia da argumentao levar, por fim, determinao de toda

fora eficiente e do prprio mundo como vontade de potncia.

Admitindo o pressuposto do adversrio, isto , a crena na causalidade, Nietzsche faz

ver que tal adversrio no retira de seu prprio pressuposto a consequncia necessria, ou

seja, a formulao da concepo do mundo como vontade de potncia. Mas temos de precisar

ainda que, embora conduza necessariamente formulao da hiptese do mundo como

vontade de potncia, a crena na causalidade no desempenha o papel de uma condio sine

qua non, pois a formulao da hiptese da vontade de potncia no depende da crena na

causalidade, a qual ser de fato frequentemente criticada por Nietzsche. Assim, mesmo

podendo formular a hiptese da vontade de potncia sem supor a crena na causalidade, o

filsofo a admite no contexto do pargrafo 36 com o propsito de derrotar o adversrio a

partir do pressuposto do prprio adversrio.

O carter hipottico da concepo de mundo como vontade de potncia , portanto,

complexo. Nietzsche coloca em sua base suposies de diferentes estatutos: algumas delas

podem ser consideradas proposies de sua prpria filosofia, ao passo que a suposio da

causalidade, apresentada como uma crena, no representa uma proposio do prprio

Nietzsche, embora seja incorporada para desempenhar uma funo especfica no pargrafo 36

de Para alm de bem e mal. Mesmo que a crena na causalidade no seja uma condio

necessria para a elaborao da hiptese da vontade de potncia, se aquela crena for

admitida, ento se deve necessariamente formular a hiptese da vontade de potncia: desse

modo, Nietzsche mostra que as concepes de mundo baseadas na crena na causalidade no

90
retiram de seu prprio pressuposto aquela consequncia necessria, ou seja, a elaborao da

hiptese da vontade de potncia. J a admisso das outras suposies isto , das suposies

que consideramos proposies do prprio pensamento de Nietzsche necessria para a

formulao da hiptese da vontade de potncia: e no se trata apenas de dizer que a admisso

daquelas suposies implica necessariamente a formulao da hiptese da vontade de

potncia, mas de dizer tambm que sem a admisso daquelas proposies a formulao da

hiptese da vontade de potncia seria impossvel.

As consequncias retiradas de determinadas proposies, apresentadas como

suposies, so necessrias, mas ainda assim hipotticas; e uma hiptese continua a ser uma

interpretao, e no uma explicao ou uma verdade absoluta. As ltimas palavras do

pargrafo 22 de Para alm de bem e mal evidenciam que Nietzsche no recebe como uma

acusao a atribuio de um estatuto interpretativo sua concepo de mundo: Posto que

tambm isto seja somente interpretao, diz aos fsicos, e sereis bastante zelosos para

fazer essa objeo? ora, tanto melhor! (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). Contrria

seria a atitude de um dogmtico, para o qual a afirmao do carter interpretativo de suas

pretensas explicaes e verdades absolutas soaria como uma grave objeo. As ltimas

palavras do mencionado pargrafo mostram tambm que o fato de Nietzsche considerar sua

concepo de mundo superior s demais interpretaes, na medida em que resulta de uma boa

arte de interpretao, no o conduz a pretender que ela seja mais do que uma interpretao: ao

contrrio, ela continua a ser somente interpretao.

Do mesmo modo, na sequncia do livro, no pargrafo 36, a atribuio de um estatuto

hipottico concepo de mundo de Nietzsche no lhe soa como objeo: antes, o prprio

filsofo insiste em conferir esse estatuto a sua proposio. Com efeito, essa maneira de

proceder se encontra em consonncia com uma postura mais geral de Nietzsche, que consiste

91
no apenas em defender que as pretensas verdades e explicaes no so mais do que

hipteses, mas tambm em deslegitimar a prpria aspirao de transpor o domnio das

hipteses:

Na cincia as convices no tm nenhum direito de cidadania [...]: somente


quando elas se resolvem a rebaixar-se modstia de uma hiptese, de um
ponto de vista provisrio de ensaio, de uma fico regulativa, pode ser-lhes
concedida a entrada e at mesmo um certo valor dentro do reino do
conhecimento. (FW/GC 344, KSA 3.574, trad. de RRTF).

Por isso Nietzsche designa o mecanicismo, por exemplo, como hiptese (Nachlass/FP

1885, 34[247], KSA 11.504), interpretao ou descrio de mundo, mas no como uma

explicao de mundo (JGB/BM 14, KSA 5.28 e Nachlass/FP 1885, 36[34], KSA 11.564-565)

e ainda menos como uma verdade absoluta.

Tomar uma hiptese como hiptese , para Nietzsche, um sinal de fora e, portanto, de

superioridade. Eu considero todas as morais existentes at agora como construdas a partir de

hipteses sobre os meios de conservao de um tipo, afirma o filsofo em uma anotao

pstuma (Nachlass/FP 1884, 26[263], KSA 11.219), para em seguida advertir: Mas a espcie

de esprito existente at agora era ainda demasiadamente fraca e incerta de si mesma para

captar uma hiptese como hiptese e, no entanto, tom-la como regulativa necessitou da

crena. Em contrapartida, declara: At que ponto algum capaz de viver baseado em

hipteses, como navegando em mares abertos, em vez de crenas, eis a mais elevada medida

de plenitude de fora. Todos os espritos inferiores perecem (Nachlass/FP 1884, 25[515],

KSA 11.148).

Considerar um ndice de plenitude de fora a capacidade de reconhecer que se vive

baseado em hipteses no significa sugerir que as hipteses tm o mesmo valor: antes, aos

olhos de Nietzsche as hipteses no se equivalem e devem ser julgadas tambm conforme o

92
rigor de sua elaborao. Com efeito, ao designar uma determinada interpretao como

hipottica, o filsofo frequentemente lhe confere um sentido depreciativo. Depois de afirmar

que a noo de sujeito consiste numa interpretao, em algo inventado-a-mais,

Nietzsche acrescenta: Por fim, ainda necessrio pr o intrprete atrs da interpretao? Isso

j inveno, hiptese (Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). Nessa passagem,

hiptese significa inveno e interpretao ou melhor, para dizer de modo mais preciso e

retomando o vocabulrio do pargrafo 22 de Para alm de bem e mal: trata-se de uma

hiptese resultante de uma arte ruim de interpretao. Em outro texto, o pargrafo 192 de

Para alm de bem e mal (KSA 5.113), Nietzsche afirma que no incio de todo saber e

conhecer [...] se desenvolveram primeiramente hipteses precipitadas, invenes, a boa e

estpida vontade de crena, a falta de desconfiana e pacincia. Tambm nesse caso as

hipteses so desqualificadas e, poderamos novamente dizer, associadas a artes ruins de

interpretao66.

por isso que, alm de reconhecer o carter hipottico de sua proposio, postura que

indica plenitude de fora, Nietzsche se esfora tambm para proceder com rigor metodolgico

e assim elaborar uma hiptese que possa se pretender superior s demais.

***

A concepo de mundo como vontade de potncia pode ser considerada superior no

apenas porque resulta de uma boa arte de interpretao e porque consiste numa hiptese

rigorosamente formulada, mas tambm porque se trata de uma concepo de mundo passvel

66
Veja-se ainda a referncia depreciativa de Nietzsche s hipteses de Paul Re (GM/GM Prefcio, 4 e 7,
KSA5.250-251 e 254).
93
de ser afirmada pelas estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo de vida

ascendente.

As concepes de mundo traduzem modos de estimar valores e, inversamente, os

modos de estimar valores partilham de certos pressupostos presentes em determinadas

interpretaes de mundo. Assim, a concepo de legalidade da natureza dos fsicos , para

Nietzsche,

Somente um arranjo ingenuamente humanitrio e uma distoro de sentido,


com que dais plena satisfao aos instintos democrticos de alma moderna!
Por toda parte igualdade diante da lei nisso a natureza no est de outro
modo nem melhor do que ns: um maneiroso pensamento oculto, em que
mais uma vez est disfarada a plebeia hostilidade contra tudo o que
privilegiado e senhor de si [...]. (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF).

Ao satisfazer os instintos democrticos e ao pretender a igualdade por toda a parte,

uma concepo de mundo que prope a legalidade da natureza traduz um modo de valorar

que hostil ao que privilegiado e senhor de si.

Por outro lado, com a inteno e a arte de interpretao opostas, Nietzsche se

apresenta como um intrprete capaz de, tendo em vista os mesmos fenmenos, decifrar

precisamente a imposio tiranicamente irreverente e inexorvel de reivindicaes de

potncia, a falta de exceo e a incondicionalidade que h em toda vontade de potncia

(JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). No domnio moral, essa concepo de mundo s

pode ser afirmada por um modo senhorial de estimar valores, marcado no pela aspirao por

igualdade, mas sim pelo pathos da distncia:

Foram antes os bons, eles prprios, isto , os nobres, poderosos, mais


altamente situados e de altos sentimentos, que sentiram e puseram a si
mesmos e a seu prprio fazer como bons, ou seja, de primeira ordem, por
oposio a tudo o que inferior, de sentimentos inferiores, comum e plebeu.
Desse pathos da distncia que tomaram para si o direito de criar valores
[...]. O pathos da nobreza e da distncia, como foi dito, o duradouro e
dominante sentimento global e fundamental de uma espcie superior de
senhores, posta em proporo com uma espcie inferior, com um abaixo
94
essa a origem da oposio bom e ruim. (GM/GM I, 2, KSA 5.259,
trad. de RRTF modificada).

No entanto, no mbito da moral, aquela concepo de mundo apresentada por

Nietzsche, segundo a qual cada potncia, a cada instante, tira sua ltima consequncia

(JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF), tem de ser negada pelo modo de atribuir valores

proveniente de uma espcie fraca de homens, que separa a fora das exteriorizaes da fora,

como se por trs do forte houvesse um substrato indiferente, ao qual fosse livre exteriorizar ou

no a fora (GM/GM I, 13, KSA 5.279). Conduzidos por um instinto de autoconservao e

seduzidos pela gramtica, os fracos postulam o sujeito como um substrato livre, separado e

autor da ao; desse modo, eles, os fracos, podem responsabilizar os fortes por exteriorizarem

sua fora e ao mesmo tempo podem interpretar sua prpria impotncia e sua prpria fraqueza

como algo voluntrio. Mas, adverte Nietzsche,

Exigir da fora que no se exteriorize como fora, que ela no seja um


querer-dominar, um querer-subjugar, um querer-assenhorar-se, uma
aspirao por inimigos e resistncias e triunfos, to absurdo quanto exigir
da fraqueza que ela se exteriorize como fora. (GM/GM I, 13, KSA 5.279).

justamente a medida de fora de uma poca que determina, afirma Nietzsche ao

dar a ver seu conceito de moderno, quais virtudes lhe so proibidas ou permitidas: ou uma

poca possui as virtudes da vida ascendente e resiste s virtudes da vida declinante, ou uma

poca, equivalendo a uma vida declinante, necessita das virtudes de declnio e odeia tudo o

que se justifica apenas a partir da plenitude, da abundncia de foras (WA/CW, Eplogo,

KSA 6.50). Na esfera dos valores morais, a maior oposio se d entre a moral crist, que

nega o mundo (Deus, alm, abnegao, meras negaes) , e a moral dos senhores,

que, sendo linguagem simblica da vida ascendente, da vontade de potncia como princpio

95
da vida, traduz uma afirmao do mundo (WA/CW, Eplogo, KSA 6.51), precisamente do

mundo como vontade de potncia.

J procuramos mostrar que o critrio estabelecido por Nietzsche A vontade de

potncia, como vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA

13.516) visa a distinguir as estimativas de valor provenientes e fomentadoras de uma

espcie de vida ascendente daquelas provenientes e fomentadoras de uma espcie de vida

decadente. Superior, o primeiro modo de estimar valores traduz a afirmao da concepo

nietzschiana de vida e de mundo como vontade de potncia, ao passo que o segundo, sua

negao. A concepo de mundo como vontade de potncia, por sua vez, superior

precisamente na medida em que afirmvel apenas por um modo de estimar valores

proveniente de uma espcie de vida ascendente.

Mas, considerado desse modo, o pensamento de Nietzsche no incorreria em

circularidade? Relevante, esse tema no escapou ao prprio filsofo. Deixa-se ver, por

exemplo, na seo 9 de Para alm de bem e mal, em que dirige a seguinte afirmao aos

estoicos: com todo seu amor pela verdade, vocs se foram de modo to duradouro, to

persistente, to hipnoticamente inflexvel a ver a natureza de modo falso, isto , estoico, at

que vocs no podem mais v-la diferentemente. Em seguida, porm, a crtica direcionada

particularmente aos estoicos generalizada:

Mas esta uma antiga, eterna histria: o que ento ocorreu com os estoicos
ocorre ainda hoje, to logo uma filosofia comece a acreditar em si prpria.
Ela sempre cria o mundo conforme a sua imagem, ela no pode fazer
diferentemente; filosofia esse impulso tirnico mesmo, a mais espiritual
vontade de potncia, de criao do mundo, de causa prima. (JGB/BM 9,
KSA 5.22).

Nessa passagem, Nietzsche atribui circularidade a toda filosofia ao afirmar que, to

logo uma filosofia comece a acreditar em si prpria, ela sempre cria o mundo conforme a

96
sua imagem. E o filsofo sugere que isso se aplica inclusive a ele, na medida em que explica

at mesmo o tema da circularidade luz de sua prpria interpretao do mundo como vontade

de potncia: toda filosofia circular, criando o mundo sua prpria imagem, porque toda

filosofia vontade de potncia.

A atribuio de circularidade soaria como objeo a Nietzsche? Assim como aquela

pretensa acusao de que a concepo do mundo como vontade de potncia seria somente

interpretao no consiste efetivamente, aos olhos de Nietzsche, numa objeo; assim como,

portanto, a sua filosofia reconhece o seu carter interpretativo em vez de procurar dissimul-

lo talvez seja legtimo dizer que a filosofia de Nietzsche tambm se reconheceria como

circular, sem entender por isso uma objeo, em vez de tentar dissimular esse carter (o da

circularidade), que , conforme indica o pargrafo 9 de Para alm de bem e mal, constitutivo

de toda filosofia. A circularidade parece vinculada constatao de que toda filosofia se

encontra presa a sua perspectiva, a sua interpretao, a sua maneira de valorar, a partir das

quais constri o mundo seu mundo.

Assim, circunscrito em sua perspectiva, Nietzsche consequente ao reivindicar a

superioridade de sua interpretao, de acordo com o critrio por ela engendrado. Porm, isso

no significa que, para alm da perspectiva do pensamento de Nietzsche, essa pretenso seja

necessariamente legtima67.

67
Que direito Nietzsche pode fazer valer, pergunta Mller-Lauter (1974, p. 56), para sua pretenso de que
sua interpretao da efetividade como antagonismo de interpretaes perspectivsticas seja mais do que uma
perspectiva meramente humana, seja at mesmo mais do que apenas a singular perspectiva do filsofo
Nietzsche? No h, parece-nos, direito para que essa pretenso seja mais do que uma mera pretenso. O
perspectivismo de Nietzsche parece indicar que uma perspectiva singular no pode ser mais do que : at pode
pretend-lo, mas isso no significa que efetivamente seja. A constatao do carter perspectivstico no implica a
superao desse carter perspectivstico. Uma perspectiva at pode olhar para outras ou tentar ocupar o lugar de
outras, mas sempre far isso a partir de sua prpria perspectiva. Por outro lado, dado o carter dinmico e
limitado das perspectivas, concordamos com a afirmao de Mller-Lauter (Ibid., p. 58) segundo a qual a
interpretao das interpretaes de Nietzsche no se entende a si prpria como uma filosofia absoluta, de modo
que a interpretao de Nietzsche inclui em si mesma, como um aspecto essencial, a possibilidade, sim, a
necessidade de sua prpria ampliao e, com isso, modificao (Ibid., p. 59).
97
CONCLUSO

O perspectivismo se encontra inscrito na efetividade, concebida por Nietzsche como

vontades de potncia que se exercem de modo perspectivstico e interpretante. Assim

compreendido, o perspectivismo traz consigo a pergunta pelo relativismo radical, que pode

ser formulada da seguinte maneira: se no h seno interpretaes perspectivsticas, seriam

ento as interpretaes equivalentes?

Para livrar Nietzsche de um tal relativismo, argumenta-se com frequncia que o

filsofo estabelece um critrio para avaliar e hierarquizar as interpretaes argumento que

deixa transparecer, nos casos em que no aparece explicitamente, a pressuposio da

mencionada concepo de relativismo como equivalncia de interpretaes. De fato, ao

vincular o perspectivismo ao problema da ordenao hierrquica (MA I/HH I Prefcio, 6,

KSA 2.20, trad. de RRTF) e ao estabelecer um critrio A vontade de potncia, como

vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA 13.516) para

avaliar e hierarquizar as interpretaes, a filosofia de Nietzsche indica que ele no pretenderia

sustentar um relativismo entendido como equivalncia de interpretaes. Com esse critrio, ao

contrrio, o filsofo distingue as estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um

modo de vida ascendente das estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo

de vida decadente, sendo aquelas superiores a estas.

certo que aquele critrio depende da concepo nietzschiana de efetividade como

vontade de potncia, qual o filsofo confere um estatuto interpretativo e hipottico. Por

outro lado, Nietzsche pretende a superioridade de sua concepo de efetividade, que resulta de

uma boa arte de interpretao, que consiste numa hiptese rigorosamente formulada e que,

por fim, apresenta-se como uma concepo de mundo afirmvel pelas estimativas de valor
98
provenientes e fomentadoras de um modo de vida ascendente. Com isso, Nietzsche no

considera as interpretaes de mundo equivalentes e, mais ainda, reivindica a superioridade

de sua prpria interpretao, indicando uma vez mais que no sustentaria um relativismo

compreendido como equivalncia de interpretaes.

No limite, a concepo nietzschiana de efetividade aponta at mesmo para a

inviabilizao daquele relativismo. A pergunta pela equivalncia das interpretaes traz em

seu bojo a ideia de valor, pois consiste literalmente em perguntar se as interpretaes tm o

mesmo valor. Mas, ao afirmar que as vontades de potncia se exercem de modo

perspectivstico e interpretante e ao vincular os conceitos de perspectiva e interpretao ao de

valor, Nietzsche indica que toda perspectiva e toda interpretao atribuem valores e

hierarquizam, de modo que no existem perspectivas e interpretaes que, abstendo-se de

hierarquizar, pudessem efetivamente avaliar as demais como equivalentes. Ademais, inexiste

um ponto de vista transcendente s interpretaes que pudesse objetivamente afirmar sua

equivalncia.

No entanto, embora indique que Nietzsche no defenderia um relativismo entendido

como equivalncia de interpretaes, o estabelecimento de um critrio para hierarquizar as

interpretaes no esgota a investigao sobre a ligao entre perspectivismo e relativismo. O

estudo sobre como esse pensamento radicalmente perspectivista e antidogmtico estabelece

um critrio oferece elementos para determinar o prprio estatuto do critrio, qualquer que seja

ele: se o perspectivismo se encontra inscrito na concepo nietzschiana de efetividade, ento

todo e qualquer critrio ser relativo a uma determinada interpretao perspectivstica, no

consistindo, de modo algum, num critrio absoluto e incondicionado; por conseguinte, a

hierarquia estabelecida por tal critrio tambm ser relativa a uma determinada interpretao

99
perspectivstica. Essa relatividade de todo e qualquer critrio implica, portanto, um certo

relativismo, no mais entendido, porm, como equivalncia de interpretaes.

Assim, mesmo se o estabelecimento de critrio indica que Nietzsche no professaria

um relativismo como equivalncia de interpretaes, por outro lado o problema do relativismo

ressurge se o considerarmos em outra acepo, que o aproxima do perspectivismo. Nesse

sentido, pode-se considerar a existncia de um relativismo em Nietzsche que, assim como o

perspectivismo, afirma que os valores no so absolutos nem dados de antemo para serem

descobertos, mas sim instaurados relativamente a interpretaes perspectivsticas. Um

relativismo que, da mesma maneira que o perspectivismo, da no extrai como consequncia a

assero de que as estimativas de valor se equivalem, mas antes as avalia e as hierarquiza, no

deixando de reconhecer que essa avaliao e essa hierarquizao so relativas a uma

determinada interpretao perspectivstica. Pode-se pensar um relativismo que, seguindo na

mesma direo que o perspectivismo, da relatividade das interpretaes no conclui por sua

coexistncia pacfica, mas por uma coexistncia conflituosa, em que as interpretaes

procuram impor-se umas s outras. Pode-se, por fim, considerar um relativismo que, de

maneira semelhante ao perspectivismo, no preconiza o conformismo a respeito dos valores

em vigor, mas antes assume a tarefa de critic-los.

Desse modo, procuramos defender que, embora o exame de seus textos indique que

Nietzsche no sustentaria um relativismo entendido como equivalncia de interpretaes, o

estabelecimento de um critrio no suficiente para que se deixe de atribuir um relativismo a

seu pensamento. Em primeiro lugar, porque nem todo relativismo afirma a equivalncia de

interpretaes; em segundo, porque possvel formular uma concepo de relativismo

coincidente com o perspectivismo de Nietzsche.

100
Mas resta ainda uma considerao que, apesar de filosoficamente menos importante e

frutfera, no pode deixar de ser feita. Essa observao nos permite indicar que, se a filosofia

de Nietzsche no incorre diretamente num relativismo entendido como equivalncia de

interpretaes, por outro lado ela deixa aberta a possibilidade para um tal relativismo.

Como procuramos mostrar, por um lado a concepo nietzschiana de efetividade

caminha at mesmo na direo da inviabilizao do relativismo como equivalncia de

interpretaes. No entanto, essa concepo de efetividade, ainda que coerente, relativa a

uma determinada interpretao perspectivstica sem dvida uma interpretao que o filsofo

avalia como superior s demais, mas ainda assim uma interpretao e no uma verdade

incondicional. Relativa a uma perspectiva e a uma interpretao determinadas, a concepo de

efetividade que aponta para a inviabilizao do relativismo como equivalncia de

interpretaes deixa, por outro lado, aberta a possibilidade para a existncia de outras

interpretaes, inclusive a do relativismo enquanto equivalncia de interpretaes.

Isso no significa, porm, que a concepo de efetividade nietzschiana seja incoerente

ou incorra em autocontradio e em autorrefutao: no se pode empregar contra Nietzsche os

mesmos argumentos que o Scrates de Plato mobiliza contra Protgoras em Teeteto. Toda

interpretao, segundo Nietzsche, relativa a uma determinada perspectiva. Se Nietzsche

apresenta sua concepo de efetividade como uma interpretao e no como uma verdade

incondicional, isso no significa que ele admita que uma outra concepo de efetividade,

vlida para uma outra perspectiva determinada e contrria a sua, possa contradizer e refutar a

sua prpria concepo enquanto vlida para si prprio; e, inversamente, a concepo de

efetividade de Nietzsche, vlida para ele, no pode contradizer e refutar a outra concepo de

efetividade enquanto vlida para a perspectiva que a engendra. Portanto, o que vale para

Nietzsche a sua concepo de efetividade, que no professa o relativismo radical, mas que,

101
por outro lado, apresenta-se como uma interpretao e no como uma verdade incondicional,

de modo que ela se relativiza e, por conseguinte, deixa aberta a possibilidade para uma outra

concepo de efetividade que possa valer para a perspectiva que a engendra. Considerada,

porm, do ponto de vista da concepo nietzschiana de efetividade, a concepo de um

relativismo como equivalncia de interpretaes se revela afinal como algo literalmente

inconcebvel.

102
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