Perspectivismo e Relativismo em Nietzsche PDF
Perspectivismo e Relativismo em Nietzsche PDF
Perspectivismo e Relativismo em Nietzsche PDF
Verso corrigida
So Paulo
2013
EDER RICARDO CORBANEZI
Verso corrigida
So Paulo
2013
Aos meus pais, Silvio e Regina.
Nina.
Agradecimentos
Diversas pessoas, cada qual a seu modo, contriburam de maneira decisiva para a
mestrado, mas minha formao de maneira geral. Sou-lhe grato por ter me proporcionado a
Aos colegas que durante as reunies semanais do Grupo de Estudos Nietzsche na USP
contriburam para a pesquisa: Alexander Gonalves, Andr Luiz Fvero, Braian Matilde,
Clia Benvenho, Danilo Bilate, Diana Decock, Eduardo Nasser, Geraldo Dias, Joo Neto,
Mrcia Oliveira, Rodolfo Ferronato, Saulo Krieger, Tiago Pantuzzi e Vincius de Andrade.
pelas valiosas observaes a respeito de minha pesquisa. Pelo trabalho dedicado, durante o
perodo em que coordenou as reunies do GEN, que influenciou de modo indelvel minha
Aos professores Mrcio Jos Silveira Lima, pela leitura do projeto de pesquisa, e
que apresentei na 31 edio dos Encontros Nietzsche, assim como pelas relevantes indicaes
2013.
FAPESP pela bolsa de financiamento para o mestrado na USP e pela Bolsa Estgio
Champagne-Ardenne.
todas as horas, Elton Corbanezi, pela convivncia inestimvel, por tudo o que j vivemos
juntos. Tambm pela leitura atenta da dissertao e pelas estimulantes e valiosas conversas
No tenho palavras para agradecer aos meus pais, Silvio e Regina, sem cujo apoio
incondicional eu no poderia ter realizado meus estudos da maneira como pude. Pela
compreenso, pelo apoio e pela ateno durante todo o perodo do mestrado, em especial nos
Aos meus amigos-irmos Marcelo Campos, pela convivncia nos ltimos anos em So
Paulo, Gustavo Favaron, pela presena marcante mesmo a quilmetros de distncia, e Tiago
Bin, pelos momentos de descontrao. Aos amigos Adriano Mergulho, Arakin Monteiro,
Cleiton Paixo, Fabio Crocco, Gilberto Grego, Henrique Abarca, Leonardo Cruz, Leozito,
Thien Ferraz e Vitinho, pelos encontros revigorantes.
Aos meus amigos de Rio Claro: Brunei Mximo, Bruno Picarelli, Camilo Riani,
Daniela Schmidt, Danilo Tebaldi, Diogo Almeida, Eduardo Guilherme, Eduardo Perissinotto,
Felipe Bedran, Igor Eugnio, Ldia Camargo, Lilian Cruz, Mara SantAnna, Marcelo Rodini,
Pedro Franceschini, Rafael, Tiago Tedesco e Marco, pelas ricas e prazerosas conversas. Ao
Esta dissertao investiga, por meio de uma leitura imanente da filosofia de Nietzsche, a
mostrar que no possvel responder a esse problema de modo unilateral, com um simples e
taxativo sim ou no. Por um lado, o exame de seus escritos indica que Nietzsche no
que isso, sua filosofia aponta at mesmo para a inviabilizao daquele relativismo: ao associar
que efetivamente considerassem as demais como dotadas de mesmo valor. Por outro lado, se
qualquer critrio estabelecido para hierarquizar as interpretaes teria de ser relativo a uma
e objetivo. Assim, uma vez considerada a relatividade de todo critrio, ressurge o problema do
relativismo.
problematic relationship between perspectivism and relativism in his work. Intrinsic in the
reality, conceived as wills to power that express themselves in a perspectivist and interpretive
way, the perspectivism argues that there are no facts, but only perspectivist interpretations. So
which all interpretations would be equivalent. We shall try to show that it is not possible to
answer this problem unilaterally, with a simple yes or no. On the one hand, the examination
of his writings indicates that Nietzsche would not intend to take the position of a radical
relativist, for he ranks the interpretations and claims the superiority of his own interpretation
of the world. More than that, his philosophy would point to the impossibility of that
relativism: since Nietzsche associates the concepts of perspective and interpretation with the
concept of value, he indicates that every perspective and every interpretation evaluate and
rank, so that there would not be perspectives and interpretations that effectively could
consider the others as equivalent. On the other hand, if we accept the conception of a
perspectivist and interpretive reality, so any criterion fixed in order to rank the interpretations
would depend on a certain perspective and interpretation, and thus it would not be an
unconditional and objective one. Hence, since we consider that any criterion is relative, the
NOTA LIMINAR 9
INTRODUO 12
CONCLUSO 98
BIBLIOGRAFIA 103
NOTA LIMINAR
revista (http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br).
SE/Co. Ext. III - Unzeitgemsse Betrachtungen. Drittes Stck: Schopenhauer als Erzieher
(vol. 1))
WS/AS - Menschliches, Allzumenschliches (Zweiter Band): Der Wanderer und sein Schatten
JGB/BM - Jenseits von Gut und Bse (Para alm de bem e mal)
PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na poca trgica
dos gregos)
WL/VM - Ueber Wahrheit und Lge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira
no sentido extramoral)
Nachlass/FP
IV. Edies:
V. Formas de citao:
Para os textos publicados por Nietzsche, o algarismo arbico indicar a seo; no caso
Za/ZA, o algarismo romano remeter parte do livro e a ele se seguir o ttulo do discurso;
indicar a seo.
o fragmento pstumo.
2) Tradues
Incompletas (So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000). O recurso a essa traduo indicado
pela sigla RRTF, que abrevia o nome do tradutor. As demais tradues dos textos de
se equivalem. Por um lado, uma leitura imanente de sua filosofia parece impedir a atribuio
interpretaes.
Para alm de bem e mal), bem como fragmentos pstumos da dcada de 1880 em que o tema
um tema no interior de uma obra possam ser julgadas exclusivamente em funo do nmero
1
No terceiro pargrafo de Consideraes extemporneas III: Schopenhauer como educador e no Nachlass/FP
1885, 40[41], KSA 11.650.
12
Nietzsche; talvez, pelo contrrio, os escritos do filsofo ofeream elementos para se pensar
esse tema de modo aprofundado. Dada, porm, a quase inexistncia do termo relativismo na
investigao acerca do perspectivismo e, a partir da, a pergunta por uma possvel presena do
relativismo na filosofia de Nietzsche. Isso porque o exame desses conceitos nos permite
formular a pergunta sobre uma possvel equivocidade em Nietzsche, na medida em que seu
possvel afirmar que Nietzsche no relativista e, mais do que isso, que a sua filosofia
interpretaes como equivalentes e, mais ainda, pretende que sua interpretao seja superior
s demais.
que toda perspectiva e toda interpretao atribuem valores e hierarquizam, ou seja, que no
existe perspectiva ou interpretao que no atribua valor e que no hierarquize. Desse modo,
13
equivalentes. Mesmo a interpretao que apregoa o relativismo, isto , que enuncia a
no deixa de aspirar prevalncia sobre outras interpretaes, por exemplo, sobre aquelas que
afirmam a desigualdade de valor entre as interpretaes. Por analogia, pode-se dizer: assim
como a interpretao dogmtica que arroga a posse da verdade dissimula precisamente seu
carter interpretativo, do mesmo modo uma interpretao relativista que afirma a equivalncia
ento podemos formular a segunda parte de nosso problema, isto , o outro lado daquela
assim por diante, de modo que nenhum critrio pode ser tomado como critrio em si,
absoluto; em outros termos: todo critrio pode ser considerado como relativo a uma
relativismo.
equivalentes , mas no chegam a perguntar pela relatividade de tal critrio. Ao afirmar que o
p. 22 e 45) faz ver que, coerente, a interpretao de Nietzsche , conforme seu critrio de
14
verdade, superior s outras interpretaes. Ao mostrar que, para efetuar a crtica dos valores, o
genealogista precisa de um critrio, Scarlett Marton (2000, p. 95-97) afirma que o critrio a
ser utilizado para avaliar o valor dos valores e que no pode, ele prprio, ser avaliado a
vida, entendida como vontade de potncia; assim, a autora defende que a genealogia repousa
sustenta que o conceito de sade fornece o critrio que articula a experincia de pensamento
fisiolgico, que evoca conceitos como sade, fraco e forte, utilizados no procedimento
de hierarquizao das perspectivas. Cline Denat (2010, p. 9), por sua vez, se prope a
defender que, longe de todo relativismo e de todo ceticismo, Nietzsche mostra que a
tempo terica e prtica, cujos critrios permitem por fim compreender a legitimidade e a
relevantes, mas elas no parecem ter por objetivo principal realizar uma pesquisa especfica
sobre a possvel ligao entre perspectivismo e relativismo. Para tanto, alm de examinar o
primeiro lado da equivocidade que expusemos acima, seria preciso ainda perguntar se a
filosofia de Nietzsche efetivamente permite que se estabelea um critrio que no seja relativo
2
Lembremos, rapidamente, que em seu texto O Relativismo como contraponto, Bento Prado Jr. (2004, p. 202)
tambm evoca a noo de sade: no exatamente, porm, para livrar Protgoras do relativismo, mas sim para
determinar um sentido positivo mnimo para o relativismo (como atitude filosfica possvel e sustentvel).
15
aquele que revela a relatividade do critrio, deve-se por fim questionar se essa relatividade do
***
o papel que a interlocuo de Nietzsche com determinados autores (como Pascal, Leibniz,
nosso mestrado.
O que entendemos, ento, por leitura imanente da obra de Nietzsche? Aqueles que se
trato com seus escritos: alguns desqualificam os fragmentos pstumos, outros se restringem
aos fragmentos pstumos que vo ao encontro dos textos publicados e, por fim, h aqueles
que consideram todos os escritos, ou seja, fragmentos pstumos, cartas, textos publicados
antes do colapso do filsofo, em 1889, e textos preparados por Nietzsche para publicao. No
perspectivismo e aos autores que dele se ocupam. A abordagem de Maudemarie Clark, que
3
A esse respeito, ver PANOFSKY, E. La perspective comme forme symbolique. Paris: ditions de Minuit, 1975.
16
baseia sua argumentao na obra publicada, emblemtica no tocante desqualificao dos
afirmao de que Nietzsche oferece a mais importante e longa declarao sobre seu
perspectivismo em Para a genealogia da moral (CLARK, 1990, p.128); para sustentar essa
de modo mais recorrente, mas tambm mais diverso nas anotaes pstumas. A
citar uma anotao indita, a autora afirma: Porque [grifo nosso] vem do Nachlass, essa
passagem no constitui evidncia contra minha interpretao das obras publicadas (CLARK,
1990, p. 146). O carter pstumo da passagem utilizado pela autora como justificativa e
e conferem s notas inditas um carter suplementar e limitado, uma vez que, segundo eles,
podem ser evocadas apenas para realar uma ideia j presente na obra publicada, mas jamais
para min-la (HALES; WELSHON, 2000, p. 8). Nesse sentido, uma ideia que esteja
presente somente nos fragmentos pstumos, ou seja, que no se encontre igualmente nos
uma confrontao metodolgica com todos os escritos, inclusive, portanto, com o material
Nietzsche toca no tema do perspectivismo, de modo mais ou menos direto, maior nas
4
Nesse ponto, estamos ao lado de autores que, a despeito de suas abordagens diversas e at mesmo discordantes,
incorporam os fragmentos pstumos s suas reflexes sobre o perspectivismo, tais como Mller-Lauter, Scarlett
Marton, Antnio Marques, Danto e Nehamas.
17
teria valor se no contribusse de maneira significativa para revelar a riqueza e a diversidade
textos publicados no aparecem de modo to evidente: a relao entre perspectiva e fora, por
exemplo, apresenta-se de maneira muito mais explcita nas anotaes inditas do que nos
textos que o autor fez aparecer ao pblico5. Mas, mais do que isso, a considerao dos escritos
filsofo lana mo para refletir sobre o prprio perspectivismo, ou seja, faz ver como
Nietzsche aborda o tema a partir de diferentes pontos de vista e assim o transforma em objeto
de experimentos6.
1885, 36[20], KSA 11.560). Em uma nota posterior, o filsofo assevera, ao contrrio, que o
mundo inorgnico a maior sntese de foras e por isso o mais elevado e venervel, uma
vez que ali falta o erro, a limitao perspectivstica (Nachlass/FP 1885-1886, 1[105], KSA
12.36).
5
Verificar em particular o Nachlass/FP 1888, 14[184], KSA 13.370-371 e o Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA
13.373-374.
6
Scarlett Marton (2000, p. 32-34) mostra que a reflexo sobre o mesmo assunto a partir de mltiplos pontos de
vista caracterstica comum do perspectivismo e do experimentalismo de Nietzsche. Nesse sentido, pode-se
dizer que, considerado a partir de mltiplos pontos de vista, o prprio perspectivismo tratado de modo
perspectivstico e experimental.
18
filsofo reduz a abrangncia do carter perspectivstico, considerado como inexistente na
sntese de foras que constitui o mundo inorgnico. A despeito das diferentes proposies,
queremos fazer ver que as duas anotaes despertam interesse e devem ser levadas em conta
de que Nietzsche se ocupa de maneira persistente com a pergunta sobre a extenso do carter
Nietzsche no sustente uma posio ou que atribua o mesmo peso a proposies contrrias.
1885-1886, 1[105], KSA 12.36) para defender que Nietzsche restringe definitivamente o
Assim, do exame dessas passagens resulta tambm a ressalva de que, embora sejamos
favorveis ao recurso aos fragmentos pstumos, defendemos que os escritos inditos em que o
preciso, antes, contextualizar cada anotao, isto , observar o perodo e o modo como foi
redigida e compar-la no apenas com outros escritos inditos, mas tambm com textos
torna possvel trazer luz os diferentes papeis que os mesmos termos desempenham, assim
19
como os diferentes sentidos que recebem, conforme o contexto em que so empregados.
***
fatos, mas apenas interpretaes perspectivsticas, traz consigo a pergunta pelo relativismo
segundo captulo que esse critrio se baseia na concepo de vida como vontade de potncia e
relativismo, preciso investigar como essa filosofia radicalmente perspectivista estabelece seu
critrio.
20
potncia, cujo estatuto, complexo, ser o objeto de investigao no terceiro captulo. Se
hiptese e de um ensaio, por outro lado o filsofo reivindica sua superioridade diante das
outras concepes de mundo. Com isso, indica mais uma vez que no pretenderia sustentar a
21
CAPTULO 1
Perspectivismo e efetividade
indicao de que tal carter se estende a toda a efetividade. Assim, procuramos evidenciar que
mesmo, tampouco noo de homem; em outras palavras, tentamos fazer ver que, inscrito na
uma mesma perspectiva e uma mesma interpretao possam ser efetivamente compartilhadas.
***
seo 374 de A gaia cincia sem dvida imprescindvel para a compreenso do tema.
primeira vista, contudo, essa passagem pode chamar a ateno por conta de uma certa
hesitao que Nietzsche deixa transparecer ao no oferecer uma resposta taxativa pergunta,
22
Nesse pargrafo, a despeito das irresolues, Nietzsche estabelece de maneira
peremptria um ponto fundamental, que indica uma limitao: mesmo no mais diligente
exame de si prprio, o intelecto humano no pode deixar de ver a si mesmo nessa anlise sob
suas formas perspectivsticas e apenas nelas (FW/GC 374, KSA 3.626). A partir desse ponto
Por que tal deciso no cabe ao intelecto? Precisamente porque, como mencionado, o
intelecto v-se apenas sob suas formas perspectivsticas. Da constatao dessa limitao
a enumerar:
7
Traduzimos auslegend e interpretirend por interpretante, que significa interpretador. Essa traduo evidencia
a diferena entre aquilo que interpreta (interpretante ou interpretador) e aquilo que passvel de ser
interpretado (interpretvel). Na lngua portuguesa, o adjetivo interpretativo soa de modo equvoco em
relao aos sentidos diferentes de interpretante e de interpretvel. A lngua alem possui um termo
equivalente ao adjetivo interpretativo em portugus, interpretativ, que Nietzsche emprega no seguinte
fragmento pstumo: O carter interpretativo [interpretative Charakter] de todo acontecer. No h nenhum
acontecimento em si. Tudo o que acontece um grupo de fenmenos escolhidos e reunidos por um ser
interpretante [interpretirenden Wesen] (Nachlass/FP 1885-1886, 1[115], KSA 12.38). Nessa passagem,
Nietzsche explora os dois sentidos do adjetivo interpretativo: ao indicar o carter interpretativo de todo
acontecer, faz ver que todo acontecer interpretvel e interpretante. Como se nota, a equivocidade sugerida pelo
adjetivo interpretativo tem relevncia para a delimitao do conceito de interpretao. Em nossa dissertao,
tambm temos em mente os dois sentidos (interpretvel e interpretante) nas ocasies em que utilizamos o
adjetivo interpretativo: ao nos referirmos efetividade como interpretativa, queremos dizer que ela consiste em
configuraes de vontades de potncia interpretantes (que interpretam) e interpretveis (que so, por sua vez,
interpretadas por outras configuraes de vontades de potncia).
23
haveria uma outra orientao da vida e um outro conceito de causa e efeito).
(FW/GC 374, KSA 3.626-627).
de nosso ngulo ou seja, a assero de que no podemos ver seno de nosso ngulo abre
uma possibilidade:
o carter perspectivstico do intelecto humano. Uma vez admitida, essa afirmao traz consigo
uma existncia sem interpretao, sem sentido, no se torna justamente absurda, nem se
perspectiva (para utilizar a mesma expresso que Nietzsche emprega no Nachlass/FP 1888,
24
interpretativo da existncia no obriga Nietzsche a restringir a aplicao de tal carter apenas
humano, Nietzsche censura a ridcula imodstia de decretar, a partir de nosso ngulo, que
somente desse ngulo se pode ter perspectivas. Em outras palavras, exatamente em virtude
da existncia ao homem mantm aberta outra possibilidade, que, como a anterior, no pode
ser afirmada nem descartada, a saber, a possibilidade de que o mundo encerre em si infinitas
interpretaes.
existncia aparece somente como possibilidade, esse pargrafo, embora estabelea pontos
maioria dos escritos em que Nietzsche trata de alguma maneira do tema: o tom hesitante em
8
No obstante as irresolues, a seo que ora analisamos estabelece elementos fundamentais do
perspectivismo. Esse texto fornece subsdios suficientes para inviabilizar a tese de Gerhardt (1989, p. 279) de
que o conceito de perspectiva tem validade apenas para o homem: Pertence aos pressupostos lgicos do
perspectivismo, se ele deve trazer expresso a especificidade de cada ser, que a rigor ele pode valer apenas
para o ser que vincula sentido ao conceito de perspectiva. Esse ser o homem. Nessa direo, Gerhardt (Ibid.,
p. 279) apresenta uma objeo tentativa de Nietzsche de universalizar o princpio humano do perspectivismo,
no restringindo suas consideraes ao homem e afirmando que toda vontade de potncia tem sua perspectiva
especfica. De fato, dizer que o intelecto humano v-se apenas em suas formas perspectivsticas, como faz o
autor de A gaia cincia, no significa restringir a aplicao do conceito de perspectiva apenas ao homem: trata-
se, antes, de inviabilizar tal pretenso. De resto, no se pode desconsiderar que, vinculando o conceito de
perspectiva ao de vontade de potncia, Nietzsche empreende uma crtica prpria noo de humano.
9
A mesma hesitao se encontra no talvez presente no seguinte fragmento pstumo: Que o valor do mundo
resida em nossa interpretao ( que talvez em algum lugar sejam possveis ainda outras interpretaes que no
meramente humanas ) [...] isso perpassa meus escritos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[108], KSA 12.114).
25
perspectivstico e interpretativo mais amplo do que o assinalado naquela seo. Isso pode
ser verificado por meio da articulao de algumas proposies presentes em Para alm de
fundamental de toda vida10; adiante, o filsofo define vida como vontade de potncia
(JGB/BM 13, KSA 5.27); e, mais frente, apresenta sua concepo do mundo como vontade
de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.55). Com efeito, ao asseverar o carter perspectivstico da
vida, Nietzsche faz ver que no est a pensar apenas no caso especfico do homem; e ao
definir, em seguida, vida e mundo como vontade de potncia, deixa entrever que o carter
potncia, como possvel observar no fragmento em que declara que todo elogiar e censurar
12.27)11.
10
A mesma ideia reaparece na seo 34, em que Nietzsche afirma: nenhuma vida teria subsistido, se no fosse
sobre o fundamento de estimativas perspectivsticas e aparncias [...] (JGB/BM 34, KSA 5.53, trad. de RRTF
modificada). Consideraes semelhantes esto presentes tambm em outros textos publicados, como o prefcio
de Humano, demasiado humano, elaborado na primavera de 1886, e o Ensaio de uma autocrtica, escrito para a
segunda edio de O nascimento da tragdia, publicada em 1886. No que se refere aos escritos pstumos, a
associao entre perspectiva e vida data de anos anteriores publicao de Para alm de bem e mal. Em um
fragmento pstumo de 1881, o filsofo escreve sobre nossa potncia lgico-criadora de, para todas as coisas,
afirmar perspectivas, em virtude das quais nos conservamos viventes (Nachlass/FP 1881, 15[9], KSA 9.637). Se
nesse fragmento apresenta as leis da perspectiva como erros ticos necessrios vida, em outra anotao do
mesmo perodo (Nachlass/FP 1881, 15[7], KSA 9.635) Nietzsche assevera que tais erros ticos esto presentes
j no primeiro ser orgnico, de modo a indicar de maneira assertiva e no apenas como possibilidade o
carter perspectivstico do orgnico em geral, e no apenas da vida humana. Assim, nos fragmentos pstumos
mencionados, as noes de perspectiva e de tica esto vinculadas de erro, que, por sua vez, aparece como
condio da vida em geral, e no apenas da vida humana.
11
Ver tambm Nachlass/FP 1885, 35[68], KSA 11.540, Nachlass/FP 1885-1886, 2[77], KSA 12.97 e
Nachlass/FP 1886-1887, 5[14], KSA 12.190.
26
necessrio perspectivismo, em virtude do qual todo centro de fora e no apenas o homem
constri o mundo inteiro a partir de si, isto , conforme sua fora, mede, apalpa, forma
(Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Nessa anotao, Nietzsche adverte ainda que os
fsicos deixaram de incluir no ser verdadeiro essa fora que pe perspectivas. No outro
fragmento, o filsofo atribui um carter perspectivstico a todo centro de fora e, mais do que
isso, aponta a indissociabilidade entre perspectiva e valorao como vlida para todo centro
de fora12: Todo centro de fora tem sua perspectiva para todo o resto, isto , sua valorao
totalmente determinada, seu modo de ao, seu modo de resistncia (Nachlass/FP 1888,
perspectiva e fora: toda fora se exerce de modo perspectivstico. Assim como o exame da
relao entre perspectiva e vida em Para alm de bem e mal nos conduziu por fim relao
entre perspectiva e vontade de potncia, nos dois fragmentos pstumos de 1888 a explicitao
do vnculo entre perspectiva e fora abre igualmente caminho para a pergunta sobre a relao
uma forma complexa da especificidade, o filsofo acrescenta: Minha concepo que cada
corpo especfico aspira a tornar-se senhor do espao inteiro e a estender sua fora ( sua
vontade de potncia) (Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Com essas palavras,
Nietzsche evidencia a relao entre fora e vontade de potncia, a qual j fora estabelecida h
algum tempo, conforme atesta uma clebre anotao de anos anteriores: O vitorioso conceito
12
Com essa associao, Nietzsche sugere que o estimar valores no ocorre apenas no domnio orgnico.
13
A relao entre perspectiva e fora encontra precedente, por exemplo, na anotao pstuma em que Nietzsche
afirma: Tambm no reino do inorgnico, para um tomo de fora entra em considerao apenas sua vizinhana:
as foras ao longe se equivalem. Aqui se encontra o ncleo do perspectivstico, e por que um ser vivente
totalmente egosta (Nachlass/FP 1885, 36[20], KSA 11.560). Essa breve anotao indica que o filsofo j
estendera, em 1885, o perspectivstico ao domnio do inorgnico, bem como vinculara os conceitos de
perspectiva e de fora. Leiamos outro fragmento em que Nietzsche tambm atribui um carter perspectivstico
fora: A plurivocidade do mundo como questo da fora, que considera todas as coisas sob a perspectiva de seu
crescimento (Nachlass/FP 1885-1886, 2[128], KSA 12.127).
27
de fora, com o qual nossos fsicos criaram Deus e o mundo, carece ainda de um
potncia (Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563)14. Esse texto, como mostra Scarlett
Marton, estratgico para entender a relao estabelecida por Nietzsche entre vontade de
potncia e fora, bem como para compreender a ampliao do alcance do conceito de vontade
de potncia:
da fora vontade de potncia, ento podemos pensar a relao entre perspectiva e fora,
14
Mencionemos tambm a seo 36 de Para alm de bem e mal, em que, depois de apresentar suas
suposies, Nietzsche afirma: com isso se teria adquirido o direito de determinar toda fora eficiente
univocamente como: vontade de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF). Ou ainda o pstumo em
que comea por afirmar que o mundo consiste numa soma fixa de foras sempre em fluxo e termina com a
assero de que este mundo o mundo da vontade de potncia e nada alm disso! (Nachlass/FP 1885,
38[12], KSA 11.611). Ao evocarmos essas passagens, tanto da obra publicada quanto dos fragmentos pstumos,
queremos indicar que os conceitos de fora e de vontade de potncia esto intimamente relacionados. Embora
no a abordem da mesma maneira (cf., por exemplo, a objeo de Mller-Lauter (1974, p. 35-36) interpretao
de Deleuze acerca do j mencionado Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563), os comentadores por mais
diferentes que sejam suas leituras no questionam a existncia mesma da relao entre vontade de potncia e
fora. A esse respeito Scarlett Marton (2000, p. 70) afirma: possvel, pois, pensar a vontade de potncia como
explicitao do carter intrnseco da fora. Mller-Lauter (1974, p. 15) chega a empregar os termos como
intercambiveis ao asseverar: Como jogo e contrajogo de foras, ou seja, vontades de potncias se revela o
mundo de que Nietzsche fala; ou ao afirmar: toda fora (isto , toda vontade de potncia) sempre est
relacionada com as outras foras por conflito ou acomodao (Ibid., p. 30). Heidegger (2007, v.2, p. 204), por
sua vez, declara: Nietzsche sempre compreende fora no sentido de poder, isto , como vontade de poder.
Em outra chave de leitura, Wotling (2009, p. 75), ao analisar as relaes entre vontade de potncia e fora,
defende: A linguagem da fora no representa, de fato, seno a metfora uma das metforas da vontade de
potncia [...].
15
Para diversos intrpretes, ao conceber a efetividade como multiplicidade de vontades de potncia e foras,
Nietzsche indica que entre orgnico e inorgnico no existe trao distintivo fundamental (MARTON, 2000, p.
72) nem diferena qualitativa (MLLER-LAUTER, 1974, p. 40). Segundo Mller-Lauter (Ibid., p. 32), nas
ocasies em que evocada, a diviso entre mundo orgnico e mundo inorgnico deve ser tomada como
heurstica: o que existe um mundo como quantidade limitada de foras em incessante alterao, e aqueles
mundos no existem por si. Assim, parece-nos que no possvel pesquisar o perspectivismo em Nietzsche
negligenciando sua concepo de efetividade, porque a prpria efetividade (e no apenas o domnio
orgnico) que caracterizada como perspectivstica e interpretativa. E os dois comentadores mencionados
abordam o perspectivismo justamente dessa meneira. Depois de afirmar que no quadro da cosmologia que
Nietzsche entende o interpretar, Scarlett Marton (2000, p. 221 e p. 222) complementa: Nietzsche acaba por
ressaltar o carter perspectivista do mundo; Mller-Lauter (1974, p. 57), por seu turno, afirma que, para
Nietzsche, todo ente interpreta, interpretao.
28
estabelecida nos fragmentos pstumos 14[184] e 14[186], ambos da primavera de 1888, como
uma relao entre perspectiva e vontade de potncia; segundo: se o conceito de fora serve,
entre outras coisas, para estender a atuao do conceito de vontade de potncia para tudo o
, assim, carter constitutivo de toda e qualquer perspectiva. Da Nietzsche afirmar: que toda
crer em novos horizontes isso perpassa meus escritos (Nachlass/FP 1885-1886, 2[108],
KSA 12.114). O segundo aspecto diz respeito ao modo de efetivar-se das perspectivas: uma
mutabilidade intrnseca a toda perspectiva no impede, por isso, que as vontades de potncia
vontades de potncia com que se relacionam, facilitando assim o domnio sobre seu entorno.
mostra por fim aparente, pois o conjunto dos escritos publicados e pstumos indica que o
carter perspectivstico est presente em toda a existncia. Isso significa dizer que todo
29
perspectivismo, segundo o qual todo centro de fora constri o mundo a partir de si
(Nachlass/FP 1888, 14[186], KSA 13.373). Mas quer dizer ainda que o prprio modo de
existncia de tudo o que existe tambm sempre relativo a uma determinada perspectiva,
***
A seo 374 de A gaia cincia a partir de cuja anlise iniciamos este captulo
determinar se existe algo cujo modo de existncia no seja relativo a uma determinada
relao ao alcance do carter interpretativo na existncia apenas aparente, uma vez que,
interpretante e interpretvel.
ser que o interprete: O carter interpretativo de todo acontecer, anota Nietzsche, para em
seguida precisar melhor o que essa sentena quer dizer: No h nenhum acontecimento em
si. Tudo o que acontece um grupo de fenmenos escolhidos e reunidos por um ser
30
mundo. O mundo diferentemente interpretvel, ele no tem nenhum sentido atrs de si,
16
Para referir-se ao conceito de interpretao, Nietzsche emprega termos como Interpretation, Auslegung,
Deutung e Ausdeutung. Nas notas acrescentadas s suas tradues da obra de Nietzsche para a lngua francesa,
Patrick Wotling considera que, mesmo sendo impossvel fazer uma distino absolutamente estrita entre esses
termos, o uso que o filsofo faz deles indica sentidos diferentes, conforme o contexto em que aparecem.
Recebendo conotao mais positiva, Auslegung tem com frequncia o sentido de explicitao e glosa de um
texto (texto em seu sentido metafrico e abrangente, segundo o qual todo fenmeno e todo processo
constituem um texto a ser decifrado), ao passo que Interpretation, Deutung e Ausdeutung carregam geralmente
sentido pejorativo, expressando a crtica de Nietzsche em relao a desvios, falhas e falsificaes inconscientes
ou desonestas das leituras, tradues e interpretaes (a respeito dessa diversidade de vocabulrio e de
sentidos, consultar algumas das notas de traduo sobre o termo interpretao, entre as quais as seguintes: 101,
104, 118, 132, 142, 145, 157, 195, 261, 309, 485, 556, 578, presentes em Par-del bien et mal, trad. de Patrick
Wotling. Paris: Flammarion, 2000). Embora em determinados momentos Nietzsche confira sentido a esses
termos tal como Wotling os distingue, o prprio tradutor assinala, como mencionamos, a impossibilidade de
realizar uma distino estrita dos sentidos mobilizados pelo filsofo. Com efeito, observa-se que em certas
ocasies Nietzsche emprega 1) os termos em acepes contrrias s delimitaes de Wotling, 2) como
intercambiveis termos que, conforme as observaes de Wotling, possuiriam diferentes sentidos, 3) o mesmo
termo com sentidos opostos. Para exemplificar o primeiro caso, leiamos o seguinte fragmento pstumo: Contra
o positivismo, que permanece no fenmeno h apenas fatos, eu diria: no, precisamente no h fatos, apenas
interpretaes [Interpretationen]. No podemos constatar nenhum factum em si [...]. Tudo subjetivo, dizem
vocs: mas isso j interpretao [Auslegung], o sujeito no nada dado, mas sim algo inventado-a-mais,
colocado-por-trs. Por fim, mesmo necessrio pr o intrprete (Interpreten) atrs da interpretao
[Interpretation]? Isso j inveno, hiptese. Enquanto em geral a palavra conhecimento tiver sentido, o
mundo ser cognoscvel: mas ele diferentemente interpretvel [deutbar], ele no tem nenhum sentido atrs de
si, mas sim incontveis sentidos[.] Perspectivismo (Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). Nesse
fragmento pstumo, Auslegung se refere a uma interpretao criticada por Nietzsche, a que postula a realidade
do sujeito. Em contrapartida, o filsofo emprega o adjetivo deutbar na ocasio em que utiliza a afirmao de que
o mundo interpretvel (deutbar) em favor de seu perspectivismo. Aqui, Auslegung e deutbar no tm os
sentidos indicados por Wotling. Em outras ocasies, Nietzsche utiliza como intercambiveis termos diferentes
(Auslegung e interpretiren), que, conforme as observaes de Wotling, teriam sentidos opostos. Tomemos como
exemplo o fragmento pstumo em que Nietzsche afirma que a estimativa moral de valor uma interpretao
[Auslegung], um modo de interpretar [interpretieren] (Nachlass/FP 1885-1886, 2[190], KSA 12.161). Por fim,
ocorrem situaes em que Nietzsche emprega o mesmo termo para caracterizar tcnicas de interpretao opostas.
No pargrafo 22 de Para alm de bem e mal, por exemplo, embora utilize as expresses schlechte
Interpretations-Knste e Ausdeutung para se referir schlechten Philologie da legalidade da natureza,
Nietzsche tambm emprega o termo Interpretation para referir-se precisamente arte de interpretao oposta
(entgegengesetzen Absicht und Interpretationskunst), isto , sua prpria arte de interpretao, assim como se
refere a ele prprio como Interpret e interpretao do mundo como vontade de potncia como Interpretation
(JGB/BM 22, KSA 5.37). Ou seja, o termo Interpretation aplicado tanto para caracterizar a arte de
interpretao criticada por Nietzsche quanto para reportar-se prpria interpretao de Nietzsche. ric Blondel
(1986, 139-140) tambm procura, mas de modo ligeiramente diferente, distinguir os sentidos que Nietzsche faz
operar no uso de palavras diversas para se referir ao conceito de interpretao: Portanto, h lugar para, por
respeito ao texto, distinguir, se possvel, a Deutung ou Auslegung (exegese, interpretao em sentido estrito) da
Interpretation, comentrio mais ou menos livre, glosa acrescentada infiel ao texto.
31
interpreta, assevera o filsofo (Nachlass/FP 1885-1886, 2[148], KSA 12.139)17. O pargrafo
12 da segunda dissertao de Para a genealogia da moral mostra no apenas que tudo o que
Ao trmino desse pargrafo, Nietzsche declara que a essncia da vida sua vontade
(GM/GM II, 12, KSA 5.316, trad. de RRTF)18. Uma coisa no tem um sentido, uma
direo, uma finalidade, uma funo, uma utilidade em si. Ao dizer que no h um sentido,
uma direo e assim por diante, Nietzsche constata pluralidade onde normalmente se v
unidade. Alm disso, ao afirmar que no h sentido, funo etc. em si, o filsofo quer fazer
ver que sentido, funo etc. so atribudos, criados, introduzidos: ou seja, no se encontram
dados de antemo para serem descobertos e extrados. Aqui, interpretar significa introduzir
17
A relao entre as noes de interpretao e de vontade de potncia to intrnseca que Patrick Wotling (2009,
p. 79) chega ao ponto de considerar que Nietzsche elabora um conceito fortemente sinttico, no qual rene
todas as determinaes da vontade de potncia: o conceito de interpretao.
18
Nietzsche tambm faz referncia s foras interpretantes no pargrafo 12 da terceira dissertao de Para a
genealogia da moral.
32
sentido, e no extrair sentido. No procurar o sentido nas coisas: mas introduzi-lo!, exclama
constituem a histria de uma coisa, seja ela uma palavra, um rgo, uma instituio, e assim
19
Em outro fragmento pstumo (Nachlass/FP 1885-1886, 2[82], KSA 12.100), Nietzsche afirma: Introduzir
sentido [Sinn-hineinlegen] na maioria dos casos uma nova interpretao sobre uma antiga interpretao tornada
incompreensvel, que agora ela prpria apenas um signo. A concepo de que interpretar significa introduzir
e no extrair sentido se faz notar no prprio modo como o filsofo se expressa, a saber, utilizando de maneira
insistente o prefixo hinein, que transmite a ideia de introduo, associado a diversas palavras, o que resulta em
termos como hineininterpretirt, hineingedeutet, hineingelegt, hineingedichtet, sehen hinein. Alm disso,
Nietzsche emprega nessas situaes o caso acusativo, reforando a aluso ao movimento de introduo. Esse
procedimento se verifica de modo exemplar no Nachlass/FP 1887, 9[91], KSA 12.383-387, no qual se l: a
necessidade mecnica no um fato: ns, somente, a introduzimos por interpretao [hinein interpretirt] no
acontecer (Ibid., p. 383). Do mesmo modo, ns introduzimos [hineingedeutet] sujeito[,] agente[,] nas coisas
(Ibid., p. 383). E, apenas conforme o modelo do sujeito, ns inventamos e introduzimos por interpretao
[hineininterpretirt] a coisidade na confuso de sensaes (Ibid., p. 383). Adiante, escreve: Verdade no com
isso algo que estivesse a e algo que se pudesse encontrar, descobrir, mas sim algo que se deve criar e que d o
nome para um processo, mais ainda, para uma vontade de dominao, que em si no tem nenhum fim: introduzir
[hineinlegen] verdade, como um processus in infinitum, um ativo determinar, no um se tornar consciente de
algo que fosse em si fixo e determinado (Ibid., p. 385). Em outro fragmento pstumo (Nachlass/FP 1888,
14[152], KSA 13.335), o filsofo afirma: Acreditamos na vontade como causa at o ponto de, conforme nossa
experincia pessoal em geral, introduzirmos [hineingelegt] uma causa no acontecer. A ideia de introduo de
sentido e de valor parece constituir intrinsecamente o conceito de interpretao, mesmo nos casos em que
Nietzsche recorre aos termos Auslegung e auslegen, quer dizer, nos casos em que a palavra que designa o
conceito de interpretao composta com o prefixo aus, que indica, entre outros, os sentidos de exteriorizao e
de extrao. Se assim , ento no h uma pura extrao, isenta de toda introduo de sentido: em outras
palavras, todo auslegen tambm um hineinlegen. No pargrafo 353 de A gaia cincia, Nietzsche explora
morfolgica e semanticamente esses termos. Ali, depois de afirmar que a autntica inveno dos fundadores de
religio consiste em fixar uma espcie de vida e conferir-lhe uma interpretao (Interpretation), fazendo com
que parea possuir o mais elevado valor, exemplifica: Jesus (ou Paulo), por exemplo, encontrou a vida da gente
pequena numa provncia romana [...]: ele a interpretou, ele introduziu o mais elevado sentido e valor [er legte es
aus, er legte den hchsten Sinn und Werth hinein] e com isso a coragem para desprezar qualquer outra espcie
de vida [...] (FW/GC 353, KSA 3.589). A ideia de que todo auslegen consiste num hineinlegen est presente de
modo explcito tambm num dos poemas acrescentados segunda edio de A gaia cincia. Intitulado
justamente Interpretation, o poema comea assim: Leg ich mich aus, so leg ich mich hinein / Ich kann nicht
selbst mein Interprete sein (Scherz, List und Rache. Vorspiel in deutschen Reimen, 23, KSA 3.357). Esses
versos sugerem que o interpretador se introduz no interpretado, quando interpretador e interpretado so os
mesmos. Mas para alm desse caso especfico de identidade entre interpretador e interpretado , o filsofo
continuar a expor, com frequncia em tom crtico, outras situaes em que o intrprete se introduz no
interpretado: aos olhos de Nietzsche, a Revoluo Francesa aparece como um texto que desapareceu sob as
interpretaes daqueles que nele por tanto tempo e de maneira to apaixonada introduziram, por meio de
interpretao [hinein interpretirt], seus prprios entusiasmos e revoltas (JGB/BM 38, KSA 5.56). Se interpretar
consiste em introduzir sentido isto , se todo auslegen um hineinlegen , parece impossvel que o
interpretador no se imiscua, de alguma maneira, no interpretado.
33
uma interpretao sempre consiste em processos de subjugao, em que uma configurao de
interpretao como introduo de sentidos, fins etc. se encontra subsumida por uma
efetividade. Se mantivermos em vista a ideia de que o conceito de fora serve para ampliar a
aplicao do conceito de vontade de potncia a tudo o que existe (MARTON, 2000, p. 68),
tem-se, por conseguinte, que no apenas o domnio orgnico, mas sim toda a efetividade
mbito orgnico, mas em toda a efetividade; deduz-se ainda que, mesmo nas ocasies em
que Nietzsche faz referncia s foras interpretantes (GM/GM III, 12, KSA 5.365), trata-se,
dominam outras, Nietzsche indica tambm que a interpretao, existente como vontade de
potncia, tem carter processual: A prpria interpretao, como uma forma da vontade de
potncia, tem existncia (no, porm, como um ser, mas como um processo, um vir-a-ser)
como um afeto (Nachlass/FP 1885-1886, 2[151], KSA 12.140). Dado que uma interpretao
34
mudana, a no fixidez, faz parte da caracterizao da interpretao. A pluralidade e a
vimos, o filsofo afirma: no podemos rejeitar a possibilidade de que ele [o mundo] encerre
em si infinitas interpretaes (FW/GC 374, KSA 3.627). E se adverte que nessa infinidade
humana, que ns conhecemos (FW/GC 374, KSA 3.627), por outro lado, precisamente o
carter processual e mltiplo das interpretaes permite a Nietzsche pensar a superao dessa
tolice de interpretao. Donde o filsofo pretender que toda elevao do homem traga
12.114).
***
intersubjetividade. A menos que se pretenda defender que a crtica empreendida pelo filsofo
noo de sujeito no realiza sua inteno, ento no h por que vincular perspectiva e
interpretao a sujeito20.
20
Ao colocarmo-nos ao lado de intrpretes que inscrevem o perspectivismo de Nietzsche na efetividade, como
Mller-Lauter (1974), ou na cosmologia, como Scarlett Marton (2000), distanciamo-nos de outros intrpretes
que restringem a abordagem do perspectivismo ao domnio do conhecimento ou que examinam o tema por
meio de noes, que consideramos inapropriadas, como as de sujeito e de subjetividade, sem dar voz
funo crtica que o perspectivismo desempenha precisamente contra essas noes. No captulo dedicado ao
perspectivismo em Nietzsche on truth and philosophy, Clark no menciona o conceito de vontade de potncia e,
alm disso, sugere que os termos perspectivstico e subjetivo so intercambiveis ao falar em carter
perspectivstico ou subjetivo (CLARK, 1990, p. 134). Tambm Gerhardt (1989), em seu artigo Die
Perspektive des Perspektivismus, no se desembaraa das noes de sujeito (Ibid., p. 267 e p. 268) e
35
Com frequncia Nietzsche conclama os filsofos a se guardarem da antiga, perigosa
fabulao conceitual que coloca um sujeito do conhecimento puro, sem vontade, indolor,
absoluta, conhecimento em si (GM/GM III, 12, KSA 5.365). Com esses conceitos, exige-
se que se pense algo impensvel acerca do olhar: um olhar voltado para nenhuma direo. Tal
carter perspectivstico do olhar est presente na seguinte anotao: Eu[,] sujeito como
subjetividade (Ibid., p. 268), assim como das de homem (Ibid., p. 281) e antropomorfismo (Ibid., p. 281),
o que o leva a defender a tese de que o perspectivismo no seno uma perspectiva antropolgica e humana.
Gerhardt (Ibid., p. 273) chega a mencionar que uma perspectiva expresso de foras, isto , de vontades de
potncia, cuja prtica dispor e dominar. No entanto, em vez de explorar o potencial crtico dessa afirmao
em relao, por exemplo, prpria concepo de sujeito , o autor dela conclui que o fundamento prtico do
perspectivismo assegurado pela especulativa metafsica da potncia de Nietzsche. E, mesmo vinculando a
noo de perspectiva de fora, mantm o conceito de sujeito: O perspectivstico apenas uma atividade
especfica de ao e reao de um sujeito, de um centro de foras, como diz Nietzsche (Ibid., p. 273). Em A
filosofia perspectivista de Nietzsche, Antnio Marques (2003, p. 10) insiste no perspectivismo como uma
epistemologia que desenvolve e radicaliza a filosofia transcendental, particularmente a de Kant, ao refletir sobre
o modo pelo qual o sujeito conhece. O perspectivismo representaria a tomada de conscincia das condies
antropolgicas de todo conhecer humano (Ibid., p. 9), bem como a radicalizao do uso regulador e no mais
constitutivo das categorias cognitivas, em funo agora da vontade de potncia. No entanto, a despeito de
associar perspectiva e vontade de potncia, Antnio Marques trata o perspectivismo sobretudo como uma teoria
do conhecimento. Alm disso, estabelece um vnculo estreito entre as noes de perspectiva e de sujeito e
considera o perspectivismo como antropomrfico (Ibid., p. 10) e antropocntrico (Ibid., p.66), sem mencionar
que, no limite, o perspectivismo implica a crtica a tais noes. Em uma direo oposta se encontra Deleuze, que
confere ao perspectivismo e ao conceito de vontade de potncia um carter extremamente crtico, inclusive
noo de sujeito. Deleuze (1973, p. 103) sustenta que Nietzsche [...] pensa ter encontrado o nico princpio
possvel de uma crtica total naquilo que ele chama seu perspectivismo. E, mais adiante, afirma: No o ser
racional, funcionrio dos valores em curso [...]. Mas ento quem faz a crtica? Qual o ponto de vista crtico? A
instncia crtica a vontade de potncia, o ponto de vista crtico aquele da vontade de potncia (Ibid., p. 107-
108).
21
Nessa passagem, ao utilizar aspas para caracterizar as noes de sujeito e de conhecimento em si, alvejadas por
sua critica, Nietzsche acentua o quo estrangeiras elas so em relao ao seu prprio pensamento: trata-se
meramente de fabulaes conceituais, conceitos contraditrios e afinal inconcebveis, ou seja, literalmente no
conceitos. Coisa em si to pouco lcita enquanto conceito quanto conhecimento em si, afirma num
fragmento pstumo do perodo de Para a genealogia da moral (Nachlass/FP 1886-1887, 5[14], KSA 12.189).
36
12.91). A imagem do horizonte possui nesse caso uma conotao negativa: mais do que a
ideia de limitao, ela sugere a disposio na mesma linha, disposio em que tudo se nivela,
objetiva, neutra, impessoal, desinteressada. Todavia, essa ambio de, por meio daquela
afirmar que o perspectivstico do mundo vai to fundo quanto alcana hoje a nossa
uma srie de noes com as quais trabalham fsicos e metafsicos: tomo, nmero, causa e
efeito, espao e tempo, meio e fim, ativo e passivo, substncia, indivduo, alma, faculdades da
alma, objeto e, por fim, sujeito (Nachlass/FP 1885, 40[39], KSA 11.648).
responde antecipadamente: mas isso j interpretao, o sujeito no nada dado, mas sim
22
Por isso, a despeito da vlida inteno de indicar o carter mltiplo intrnseco aos conceitos de perspectiva e
de interpretao em Nietzsche, Hofmann (1994, p. 50) utiliza noes a nosso ver inadequadas, como sujeito e
intersubjetividade, ao afirmar: Diferentes perspectivas existem, portanto, no apenas ao nvel intersubjetivo,
mas tambm no prprio sujeito, ao qual Nietzsche atesta multiplicidade e pluralidade perspectivsticas.
37
necessrio pr o intrprete atrs da interpretao? Isso j inveno, hiptese (Nachlass/FP
qu? No fragmento pstumo que acabamos de mencionar, Nietzsche afirma que so nossos
impulsos e seu pr e contra que interpretam, e complementa: Cada impulso uma espcie
de ambio por domnio, cada um tem sua perspectiva, que ele gostaria de impor como norma
teoria do conhecimento, Nietzsche pensa em uma doutrina das perspectivas dos afetos (
qual pertence uma hierarquia dos afetos) (Nachlass/FP 1887, 9[8], KSA 12.342). Se
de perspectivas e interpretaes dos afetos (GM/GM III, 12, KSA 5.364-365): Quanto mais
afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos
empregar para essa mesma coisa, tanto mais completo ser nosso conceito dessa coisa, nossa
Ainda resta, porm, a pergunta: o que entende Nietzsche por impulsos e afetos? A
passagem de Para a genealogia da moral de que ora nos ocupamos oferece alguns indcios.
23
Leia-se, tambm, a seguinte passagem: Por que o mundo, que nos diz respeito, no seria uma fico? E a
quem pergunta: Mas fico no pertence um autor? no se poderia responder redondamente: Por qu? No
pertence esse pertence, talvez, fico? Ento no permitido, para com o sujeito, assim como para com o
predicado e o objeto, tornar-se com o tempo um pouco irnico? (JGB/BM 34, KSA 5.54, trad. de RRTF).
38
Nela, o filsofo faz ver que uma determinada concepo de sujeito e de conhecimento no
pode ser sequer imaginada porque quer conceber um olhar e um conhecimento que no
sejam perspectivsticos: para tanto, alm de ser preciso suspender todos os afetos, as foras
ativas e interpretantes devem ser inibidas, devem estar ausentes, afirma Nietzsche, fazendo
em seguida a ressalva de que se trata de foras, porm, por meio das quais, somente, ver se
torna um ver-algo (GM/GM III, 12, KSA 5.365). O filsofo vincula perspectivas e
interpretaes no apenas aos afetos, mas tambm fora, cujo carter intrnseco vontade de
potncia. As indicaes para uma resposta pergunta sobre o que so impulsos e afetos, aos
animal, possvel derivar todos os seus impulsos da vontade de potncia (Nachlass/FP 1885,
36[31], KSA 11.563), e de que a vontade de potncia a forma primitiva do afeto, de modo
que todos os outros afetos so somente suas configuraes (Nachlass/FP 1888, 14[121],
KSA 13.300).
O pargrafo 36 de Para alm de bem e mal mostra que a reflexo sobre os afetos e os
partir da nica realidade para a qual temos acesso, a dos impulsos e afetos, Nietzsche faz
ordem de realidade que nossos afetos tm, se no seria uma forma mais primitiva do mundo
dos afetos, uma espcie de vida de impulsos, em que as funes orgnicas estivessem
suposto que se pudessem reconduzir todas as funes orgnicas vontade de potncia, ento
se teria adquirido o direito de determinar toda fora eficiente univocamente como: vontade
39
de potncia (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF modificada24). Assim, partindo da
nica realidade que nos dada, a dos impulsos e afetos, Nietzsche pensa o mundo inorgnico
como uma forma primitiva desse mundo de afetos e impulsos; reconduzindo o mundo
orgnico dos afetos e impulsos vontade de potncia, determina toda fora eficiente, isto ,
Da mesma maneira, a pergunta por quem interpreta no pode, em sua resposta, evocar
se pode perguntar: quem, pois, interpreta?, mas o prprio interpretar, como uma forma da
vontade de potncia, tem existncia (no, porm, como um ser, mas como um processo, um
Afirmar que a prpria interpretao tem existncia como vontade de potncia significa
dizer que no h algo que interpreta, algo entendido como um intrprete, um sujeito,
24
Traduzimos Affekt por afeto, e no por emoo, como faz Rubens Rodrigues Torres Filho.
25
Nosso objetivo aqui consiste apenas em indicar que, ao relacionar os conceitos de perspectiva e interpretao
aos de afeto, impulso e, poderamos acrescentar, instinto, Nietzsche os vincula aos conceitos de vontade de
potncia e de fora. Com razo, Vnia Dutra de Azeredo (2008, p. 86-91) defende que Nietzsche atribui a esses
conceitos uma significao prxima, at mesmo sinonmica em algumas passagens. Mas nem por isso, precisa a
intrprete, o emprego de um determinado conceito deixa de apresentar peculiaridades. Assim, se na maior parte
dos casos possvel substituir impulso por vontade de potncia, por outro lado impulso remete, com mais
facilidade, rede complexa de que os existentes seriam formados e no implica a compreenso de uma unidade,
primeira vista suscitado pelo termo vontade de potncia (Ibid., p. 89). Embora semanticamente prximos,
aqueles conceitos comportam, portanto, nuanas, cuja investigao no nosso objetivo.
40
um indivduo, uma coisa, uma causa, um agente. A interpretao o prprio exercer-
Nietzsche quer evitar que caiamos, uma vez mais, num equvoco cuja origem gramatical, a
saber, no engano de pensarmos o sujeito por detrs da ao, o sujeito separado da ao, o
causa alis, til lembrar que sujeito e objeto, bem como causa e efeito, so, eles
***
e, por conseguinte, sua perspectiva e sua interpretao singular porque consiste numa
unidade simples, pois, para Nietzsche, como Mller-Lauter insiste, tudo aquilo que aparece
porque ela no igual a nenhuma outra configurao de vontades de potncia, porque ela no
26
Toda unidade unidade apenas como organizao e conjunto (Nachlass/FP 1885-1886, 2[87], KSA
12.104).
41
vontades de potncia e, por fim, porque impossvel que alguma outra configurao de
vontades de potncia se coloque ao mesmo tempo em seu lugar, a fim de partilhar a mesma
h efetivamente algo como um sujeito ou um eu, que, para Nietzsche, so invenes, como j
com as outras27.
fragmento pstumo, imediatamente antes de definir vontade de potncia como pathos, como
um produzir efeitos, o filsofo afirma que tudo o que existe so quanta dinmicos em uma
relao de tenso com todos os outros quanta dinmicos, cuja essncia em sua relao com
todos os outros quanta consiste em seu efetivar-se sobre os mesmos (Nachlass/FP 1888,
14[79], KSA 13.259). Em outro fragmento do mesmo perodo, Nietzsche assevera que a
27
Deleuze (1973, p. 7) preciso acerca desse ponto: O ser da fora o plural; seria propriamente absurdo
pensar a fora no singular. Uma fora dominao, mas tambm o objeto sobre o qual uma dominao se
exerce.
42
querer-tornar-se-mais-forte (Nachlass/FP 1888, 14[81]), KSA 13.261). Pouco adiante,
precisa o que quer dizer com quanta de fora ao afirmar que sua essncia consiste em
exercer potncia sobre todos os outros quanta de fora. Em ambos os fragmentos pstumos
dominao. Se os quanta de fora sempre esto em busca de mais potncia, esse processo no
unificao de foras. Foras que se arranjam ou se unificam estabelecem, por sua vez,
relaes tensas com outras foras, de modo que podemos constatar dois tipos de relao: de
uma parte, arranjo e unificao, e de outra parte, conflito e tenso. o que se depreende de
servisse para explicar o verbo arranjar, depois do qual vem imediatamente, entre parnteses,
No se deve perder de vista que aquilo que se denomina unidade sempre uma simplificao
de uma efetiva multiplicidade arranjada e hierarquizada. Assim, nem mesmo aquilo que
a mesma interpretao, ocupam simultaneamente o mesmo lugar, um lugar comum28. Para que
28
Aqui, mostra-se pertinente perguntar se existe efetivamente comunicao entre perspectivas e interpretaes
diferentes e radicalmente singulares. Questionamos a possibilidade de perspectivas e interpretaes diferentes e
radicalmente singulares comporem entre si uma interseco.
43
houvesse essa interseco entre perspectivas diferentes, uma determinada perspectiva teria de
ser, ao mesmo tempo, ela prpria e outra; assim tambm no caso das interpretaes29. Isso no
esse carter singular das perspectivas e das interpretaes que permite a Nietzsche
como uma curiosidade desesperada. E exatamente contra essa passagem que Nehamas
precisa se posicionar para defender a tese de que possvel conhecer outras perspectivas. Em
seu artigo Immanent and Transcendent Perspectivism in Nietzsche, o autor afirma que a
aliana com outras criaturas com o mesmo propsito (grifo nosso) depende de uma
477). E acrescenta: Nesse sentido, nosso ponto de vista no limitado. Segundo Nehamas
(1983, p. 480-481), todo ser humano particular na medida em que possui caractersticas que
no partilha com ningum (o autor as denomina fatos mais subjetivos); por outro lado, possui
caractersticas que comunga com outros seres humanos (designadas como fatos mais
29
Depois de propor que possvel unificar perspectivas comuns, assim como ocorre com interesses e posies
comuns, Gerhardt (1989, p. 267) admite que se trata de uma difcil questo querer saber como possvel uma tal
unificao: Ademais, podemos nos unificar a perspectivas comuns, assim como podemos nos entender sobre
posies e interesses comuns. Como uma tal unificao de fato possvel uma difcil questo, que eu
infelizmente tenho aqui de deixar em aberto. A dificuldade de Gerhardt justificvel na medida em que no h
efetivamente perspectivas comuns, tampouco interesses e posies comuns. Por conseguinte, o que Gerhardt
denomina unio ou unificao de perspectivas, interesses e posies no pode ser entendido como comunidade
de perspectivas, interesses e posies: interesses e posies so sempre relativos a determinadas perspectivas,
jamais comuns. isso que se depreende do necessrio perspectivismo, em virtude do qual todo centro de fora
[...] constri o mundo inteiro a partir de si, isto , conforme sua fora, mede, apalpa, forma (Nachlass/FP 1888,
14[186], KSA 13.373); ou, ainda, da afirmao de que todo centro de fora tem sua perspectiva para todo o
resto, isto , sua valorao totalmente determinada, seu modo de ao, seu modo de resistncia (Nachlass/FP
1888, 14[184], KSA 13.371).
44
objetivos). Alm disso, os seres humanos tm caractersticas que partilham com outros
animais, como o caso dos mamferos. Nehamas defende que, em funo dessa
comunidade, podemos entender algo sobre o ponto de vista do que , por exemplo, ser um
morcego. Mas, para sustentar essa tese, Nehamas (1983, p. 477) obrigado a dizer, a respeito
do pargrafo 374 de A gaia cincia, que a metfora de no ser capaz de olhar para alm de
nosso prprio ngulo , aqui, infeliz. Assim, pe-se abertamente de encontro letra do texto
em que Nietzsche assevera: No podemos ver para alm de nosso ngulo: uma curiosidade
desesperada querer saber quais outras espcies de intelecto e de perspectiva poderia haver
pergunta what is it like to be a bat? seno de nossa prpria perspectiva: quer dizer, jamais
humana (Nachlass/FP 1880, 6[433], KSA 9.309 e Nachlass/FP 1881, 15[9], KSA 9.637),
(FW/GC 374, KSA 3.626), entre muitas outras, sugerindo uma generalizao e, acima de
singulares. Para compreender essa tenso, preciso levar em conta que, assim como, segundo
Mller-Lauter (1974, p. 32), a diviso entre os domnios orgnico e inorgnico cumpre uma
o mesmo papel. Cabe, pois, ao leitor contextualizar tais expresses, assim como todo tipo de
45
efetividade segundo a qual vontades de potncia e suas respectivas perspectivas e
Os escritos de Nietzsche indicam que aquilo que se denomina tica humana que,
no contexto das passagens mencionadas, quer dizer o mesmo que perspectiva humana
significa uma efetiva mirade de nuances, ou seja, simplifica toda uma complexidade de
sentido, diferentes modos de vida etc.30 No decorrer de seus textos, Nietzsche faz referncias
perspectiva do castigo, perspectiva de r (cujo olhar vai de baixo para cima), perspectiva de
pssaro (que, ao contrrio, olha de cima para baixo), perspectiva mais ampla, perspectiva mais
estreita, perspectiva da conscincia, perspectiva dos impulsos, e assim por diante. A variedade
de termos que nessas expresses acompanham e determinam a palavra perspectiva revela que
30
Acerca desse ponto, Nehamas (1983, p. 476) tem o mrito de considerar, em seu artigo Immanent and
Transcendent Perspectivism in Nietzsche, que o ponto de vista humano ou a perspectiva humana um amplo e
inomogneo corpo de opinies, crenas, preconceitos, teorias, hbitos, modos e padres de comportamento. []
sua soma est em constante alterao e movimento, [...] descartando e incorporando informaes sobre ns
mesmos e o mundo. Em Life as Literature, Nehamas (2002, p. 68) afirma: O perspectivismo de Nietzsche
ento uma recusa a graduar pessoas e opinies em uma escala simples. Mas, alm de destacar a multiplicidade
de perspectivas, queremos sublinhar seu carter radicalmente singular.
46
impulsos) que predominou (ou predominaram) em relao a outros impulsos. Assim, na
esconde uma efetividade complexa, de modo a tornar-se, no limite, uma noo vazia.
Considerando-se expresses como essa, preciso, pois, ter em mente no apenas que
Nietzsche entende homem como multiplicidade de vontades de potncia, mas tambm que
cada uma daquelas expresses simplifica e homogeneza de modo grosseiro uma efetividade
cincia, o filsofo afirma que uma diferente maneira de sentir o tempo implica outra noo de
causa e efeito e outra orientao de vida. E ainda assevera numa anotao pstuma:
evidente que todo ser diferente de ns sente outras qualidades e, por conseguinte, vive em um
Embora Nietzsche faa referncia percepo de mundo do homem, uma vez mais
preciso evitar simplificaes. O prprio filsofo faz ver que no existe a percepo humana.
que podemos depreender desta passagem em que Nietzsche trata da percepo do tempo e do
espao:
preciso considerar essas expresses, assim como outras generalizaes muitas vezes
no implica que essa singularidade possa ser superada, que se possa interpretar a partir de
outra perspectiva. Mas aquela constatao tampouco tem por consequncia necessria a
resignao a essa limitao: ao contrrio, ela no impede que uma perspectiva se esforce para
31
Ao trmino de seu artigo, Gerhardt (1989, p. 281) afirma: Ele [Nietzsche] quer informar as limitaes do
humano e, por isso, no pode resistir ao ensaio de tentar ultrapassar essas limitaes. preciso dizer, no
entanto, que mais do que indicar a limitao do humano, o perspectivismo de Nietzsche assevera a limitao de
toda perspectiva, isto , a impossibilidade de que uma perspectiva ultrapasse sua singularidade, de que seja mais
do que efetivamente .
48
A partir da tica do doente, olhar para os conceitos e valores mais sadios e,
inversamente, da plenitude e certeza da vida rica, olhar para baixo e ver o
secreto trabalho do instinto de dcadence esse foi meu mais longo
exerccio, minha experincia propriamente dita, e, se que em algo, foi nisso
que me tornei mestre (EH/EH, Por que sou to sbio, I, KSA 6.266, trad.
de RRTF).
No entanto, somente da prpria perspectiva que se pode olhar para outras. Assim,
ainda que se olhe para outras perspectivas, isso no significa que se enxergue para alm do
***
Nietzsche formula uma das ideias centrais de seu perspectivismo, a saber, a proposio de que
49
CAPTULO 2
Esse argumento traz consigo, porm, dois pressupostos principais. Em primeiro lugar,
pressupe, nos casos em que no se expe explicitamente, uma definio de relativismo como
32
Ao afirmar que o critrio de verdade adotado por Nietzsche a intensificao de potncia, Mller-Lauter
(1974, p. 22 e p. 45) defende que a interpretao do filsofo , conforme seu prprio critrio de verdade, superior
s outras interpretaes. Considerando que, para efetuar a crtica dos valores, isto , para avaliar o valor dos
valores, o genealogista precisa de um critrio que no pode, ele prprio, ser avaliado, Scarlett Marton (2000, p.
95-97) sustenta que esse critrio a vida entendida como vontade de potncia, de modo que a genealogia
repousa numa cosmologia (Ibid., p. 96). Nessa tica, prossegue Marton (Ibid., p. 98), fazer qualquer
apreciao passar pelo crivo da vida equivale a perguntar se contribui para favorec-la ou obstru-la; submeter
ideias ou atitudes ao exame genealgico o mesmo que inquirir se so signos de plenitude de vida ou de sua
degenerao; avaliar uma avaliao, enfim, significa questionar se sintoma de vida ascendente ou declinante.
33
Ao observar que a ausncia de um critrio conduziria o genealogista ao relativismo, Patrick Wotling (2009, p.
120 e seguintes) afirma que a noo de sade fornece o critrio que articula a experincia de pensamento de
Nietzsche, que no outra coisa seno a interpretao das interpretaes (Ibid., p. 124). Para Antnio Marques
(2003, p. 195), a recusa de um critrio metafsico-realista de verdade no conduz o perspectivismo ao relativismo
na medida em que o critrio fisiolgico, evocando noes como as de sade, fraco e forte, norteia a
hierarquizao das perspectivas. Cline Denat (2010, p. 9), por sua vez, sustenta que, longe de todo relativismo
e de todo ceticismo, Nietzsche mostra que a inelutvel variedade das interpretaes suscetvel de uma
avaliao de ordem ao mesmo tempo terica e prtica, cujos critrios permitem por fim compreender a
legitimidade e a coerncia da nova hiptese interpretativa que ele mesmo pretende propor.
50
hierarquizao, ou seja, a equivalncia das interpretaes34. O segundo pressuposto consiste
sustentar a ideia de que todas as interpretaes se equivalem. Mesmo assim, no nos parece
***
34
Essa a definio de relativismo oferecida, explcita ou implicitamente, por boa parte dos comentadores que
mencionam a relao entre perspectivismo e relativismo em Nietzsche. Segundo Nehamas (1985, p. 49), o
perspectivismo [...] no equivalente ao relativismo, pois o fato de que outros pontos de vista so possveis
no os faz por si s igualmente legtimos. O comentador insiste: Perspectivismo no resulta no relativismo que
considera que qualquer viso to boa quanto qualquer outra (Ibid., p. 72). Para Clark (1990, p. 144), sendo
compatvel com a ideia de que uma ou algumas perspectivas podem ser consideradas cognitivamente superiores
em relao a outras, o perspectivismo no implica incomensurabilidade e, assim, no incorre num relativismo
entendido como a concepo de que qualquer interpretao to boa quanto qualquer outra (Ibid., p. 139).
Monique Dixsaut (2012, p. 139), por seu turno, ao afirmar que toda perspectiva avaliao, portanto pe o
problema da hierarquia das diferentes avaliaes, sustenta que as vontades de potncia no se equivalem. E
pouco adiante, ao escrever que a multiplicidade das avaliaes no implica nenhum relativismo, mas evoca uma
hierarquia (Ibid., 141), sugere que o relativismo implicaria a ausncia de hierarquizao, ou seja, a equivalncia
das avaliaes. Em sua tese de doutorado, intitulada Perspectivismo e verdade em Nietzsche: da apropriao de
Kant ao confronto com o relativismo, Mrcio Jos Silveira Lima (2010, p. 146) defende que Nietzsche combate
o relativismo na medida em que ele posiciona-se contra a sua ideia fundamental: a de que todos os pontos de
vista se equivalem. Para Andr Itaparica (2010, p. 244), os comentadores que investigaram a ligao entre
perspectivismo e relativismo pressupuseram uma noo de relativismo segundo a qual todas as interpretaes
seriam equivalentes.
51
procedimento recorrente consiste em desmascarar a inadequao entre um determinado
critrio e a funo que se lhe atribui. Assim procede Nietzsche ao insistir durante toda a sua
linguagem, o homem colocou um mundo prprio ao lado do outro e acreditou [...] nos
conceitos e nomes das coisas como em aeternae veritates, afirma o filsofo, e acrescenta:
Mesmo a lgica repousa sobre pressupostos, aos quais nada no mundo efetivo corresponde
(MA I/HH I 11, KSA 2.30-31, trad. de RRTF). Para responder afirmativamente pergunta
sobre o ente. Assim, tais axiomas servem somente como critrios e meios para criar o
conceito de efetividade apenas para ns, de modo que eles no contm nenhum critrio da
verdade, mas sim um imperativo sobre o que deve valer como verdadeiro (Nachlass/FP
1887, 9[97], KSA 12.389)36. A crena na lgica e nas categorias da razo como critrios da
antropocntrica como medida das coisas, como norma sobre real e irreal: em suma, [em]
Mas com essa ltima afirmao, mais do que evidenciar a inadequao entre o critrio
particular em questo a lgica e a funo que se lhe atribui a de servir como critrio da
todo e qualquer critrio realizar essa funo. E isso pela seguinte razo: como a efetividade ,
35
Embora perpasse a obra de Nietzsche, essa ideia recebe diferentes abordagens conforme o contexto em que
figura: em A filosofia na poca trgica dos gregos, o filsofo evidentemente no reflete sobre o critrio lgico
luz do conceito de vontade de potncia, como far, por exemplo, nos fragmentos pstumos de 1888. Reflexes
sobre critrio lgico esto presentes, entre outros, nos seguintes textos: PHG/FT 11, KSA 1.844-847, PHG/FT
12, KSA 1.847-850, MA I/HH I 11, KSA 2.30-31, JGB/BM 4, KSA 5.18, Nachlass/FP 1887, 9[97], KSA
12.389-391 e Nachlass/FP 1888, 14[153], KSA 13.336-338.
36
No se trata de uma desqualificao absoluta da lgica, mas sim da pretenso de que ela valha como critrio
da verdade e da realidade em si. Nietzsche reconhece o papel das falsificaes lgicas para a conservao de um
determinado modo de vida (ver, por exemplo, JGB/BM 4, KSA 5.18 e Nachlass/FP 1888, 14[153], KSA 13.336-
338).
52
para Nietzsche, constituda por vontades de potncia que se exercem de modo perspectivstico
e interpretante, quer dizer, de modo condicionado e limitado, ento nenhum critrio, sendo
a realidade em si, existam elas ou no, se encontra de antemo inviabilizado no apenas para
Depois de tal crtica, como pode Nietzsche estabelecer um critrio? O primeiro ponto a
se considerar que o filsofo no conserva a mesma concepo de critrio por ele criticada:
Nietzsche lhe atribui um outro papel. O critrio no tem mais por funo distinguir a verdade
pensar, isso no designa necessariamente uma oposio ao erro, mas, nos casos mais
fundamentais, apenas uma posio de diferentes erros em relao uns com os outros, afirma,
acrescentando em seguida que um [erro] mais antigo, mais profundo do que outros, talvez
viver sem ele (Nachlass/FP 1885, 38[4], KSA 11.598). Aquilo que se denominara verdade
so precisamente os erros dos quais depende uma determinada espcie de seres vivos: o
valor para a vida que finalmente decide (Nachlass/FP 1885, 34[253], KSA 11.506).
mundo real do mundo aparente), j que suprime tambm essa suposta oposio: Eu no
como a realidade. [...] Um nome determinado para essa realidade seria a vontade de
posteriores, defende que a oposio entre o mundo aparente e o mundo real se reduz
oposio mundo e nada (Nachlass/FP 1888, 14[184], KSA 13.371). E mundo aparente,
53
valores, [...] segundo o ponto de vista da utilidade com respeito conservao e
Por fim, um critrio no poderia ter por funo distinguir a certeza da incerteza, uma
vez que a preferncia pela certeza em detrimento da incerteza repousa, segundo Nietzsche, em
Perguntando pelo critrio da certeza, anota ento o filsofo, eu constatei [...] que a prpria
pergunta pela certeza j uma pergunta dependente, uma pergunta secundria (Nachlass/FP
pelos valores mais fundamental do que a pergunta pela certeza (Nachlass/FP 1886-1887,
KSA 5.17). Desse modo, a reflexo sobre o critrio diz respeito aos valores e, portanto,
vida: Se falamos de valores, falamos sob a inspirao, sob a tica da vida: a vida mesma nos
coage a instituir valores; a vida mesma valora atravs de ns, quando institumos valores
da vida; deve-se ainda perguntar, como faz o prprio Nietzsche na sequncia do texto: de
que vida? De que espcie de vida? (GD/CI, Moral como contranatureza, 5, KSA 6.86, trad.
da vida, mas de uma determinada espcie de vida (GD/CI, Moral como contranatureza, 5,
54
KSA 6.86, trad. de RRTF). E necessrio sempre manter em vista essa preciso, ainda que
ela frequentemente no aparea de maneira explcita nos escritos do filsofo. Pois, enquanto a
primeira formulao sugeriria a concepo de uma vida em si, a segunda evidencia o carter
plural da vida: a unidade da palavra vida significa uma efetiva multiplicidade de modos de
vida.
denominaes gerais, a saber, vida ascendente e vida decadente: Eu distingo um tipo de vida
decadente37.
234, KSA 10.214)38. Mas ento temos de perguntar o que so estimativas de valor e de que
maneira elas se relacionam com a vida. Os valores no so dados de antemo, para ento
Schtzen] h valor [Werth] (Za/ZA I, Dos mil e um alvos, KSA 4.75, trad. de RRTF). E toda
37
Trata-se da pergunta genealgica pelo valor dos valores (GM/GM Prefcio 6, KSA 5.253), que so tomados
como signos de degenerao ou de plenitude de vida (GM/GM Prefcio 3, KSA 5.250).
38
Ver tambm o Nachlass/FP 1883, 12[9], KSA 10.401.
39
[...] Existem apenas estimativas perspectivsticas [...] (Nachlass/FP 1884, 26[119], KSA 11.181). No
prefcio de Humano, demasiado humano (6, KSA 2.20, trad. de RRTF), o filsofo chama a ateno para a
necessidade de conceber o perspectivstico de toda estimativa de valor.
55
valores so introduzidos: Nossos valores so introduzidos por interpretao
perspectiva, por sua vez, faz ver que esse processo interpretativo de introduo de valores tem
uma igreja, de uma crena, de uma cultura (Nachlass/FP 1884, 26 [119], KSA 11.181).
palavra empregada para designar um determinado valor pode abrigar uma pluralidade de
valor bom, por exemplo, no possui o mesmo significado que na perspectiva avaliadora da
tambm depende da perspectiva avaliadora: a pergunta pelo valor dos valores se aplica tanto
instituio dos valores quanto a sua hierarquizao. Pensemos no valor verdade. Conforme
hierarquizao, o que em alguns casos quer dizer: confere-se verdade valor em si, supremo.
40
No segundo captulo de Nietzsche, das foras csmicas aos valores humanos, Scarlett Marton (2000, p. 94)
desenvolve a ideia de que uma mesma palavra pode designar valores diferentes, conforme a perspectiva
avaliadora que a considera. O conflito entre perspectivas avaliadoras distintas tambm examinado em A morte
de deus e a transvalorao dos valores, em Extravagncias (2009, p. 69-84). Aqui, a autora mostra que
Nietzsche contrape, por exemplo, a perspectiva avaliadora do homem do alm-do-homem. desses dois
livros que retiramos a expresso perspectiva avaliadora.
56
Ora, a filosofia do prprio Nietzsche critica esse modo de estimar e hierarquizar os valores ao
apontar que aquilo que se denominou verdade consiste numa determinada espcie de erros a
dos indispensveis a determinados modos de vida e ao sustentar assim que o erro tem at
de existncia, assegura Nietzsche, advertindo em seguida, porm, que nem por isso elas [as
KSA 11.503)41. As estimativas de valor so sintomas em dois sentidos, uma vez que
de valor so sintomas das exigncias necessrias para que um determinado modo de vida se
determinado modo de vida. Ademais, ainda que um determinado modo de estimar valores
41
Ver tambm o Nachlass/FP 1884, 26[45], KSA 11.159.
42
Sobre as estimativas de valor consideradas como condies de conservao e/ou crescimento de vida ou de
vontade de potncia: Nachlass/FP 1887, 9[38], KSA 12.352 e 9[39], KSA 12.353, assim como Nachlass/FP
1888, 11[73], KSA 13.36 e 11[96], KSA 13.45. Empregamos a frmula e/ou ao falarmos em conservao e/ou
crescimento de potncia para indicar que crescimento de potncia no significa necessariamente conservao: A
autoconservao somente uma das consequncias indiretas e mais frequentes do impulso por crescimento de
potncia (JGB/BM 13, KSA 5.27, trad. de RRTF). O impulso por mais potncia pode, ao contrrio, conduzir
uma certa configurao de vontades de potncia dissoluo.
43
Nietzsche insistir nessa ideia, como se l, por exemplo, no Nachlass/FP 1884, 26[12], KSA 11, 152-153.
57
vida no argumento; entre as condies da vida poderia estar o erro.
(FW/GC 121, KSA 3.477-478, trad. de RRFT).
Por outro lado, mesmo no sendo verdadeiras, se todas as estimativas de valor fossem
pelo menos precisas (Nachlass/FP 1885, 34[247], KSA 11.503), ento elas necessariamente
modo de vida: assim, em princpio bastaria que um modo de vida estimasse valores para que
ele necessariamente garantisse sua conservao e/ou seu crescimento. No entanto, embora o
prprio viver consista em estimar valores, no toda estimativa de valor que necessariamente
garante a conservao e/ou o crescimento de potncia do modo de vida ao qual ela se reporta.
modo de estimar valores que supervaloriza uma conscincia que se desenvolveu e se refinou
perspectivstica e, como tal, est sujeito ao engano44. Nesse caso, uma vez que a mencionada
44
Nesse sentido, preciso ler com cautela afirmaes como as de Grimm (1977, p. 70): Se, como Nietzsche
diz, o mundo uma iluso, uma falsificao, uma projeo ou interpretao de uma perspectiva particular, por
que devemos preferir uma interpretao particular acima de qualquer outra? No final das contas, elas so todas
falsas, como Nietzsche nos lembra constantemente. claro que o critrio a ser encontrado por qualquer um
desses erros no um critrio de veracidade, mas antes um de utilidade. E ainda: A utilidade de uma crena
particular (e todas as crenas so finalmente falsas em qualquer sentido absoluto) para a vida o nico critrio
com base no qual podemos julgar. [...] A verdade de uma ideia repousa em sua utilidade para o crescimento e o
realce da vida e da potncia, no em quo adequadamente corresponde a um parmetro fixo, eterno (Ibid., p.
73). Com efeito, Nietzsche defende que aquilo que se toma como critrio de verdade, a lgica e as categorias da
razo, serve de fato conservao e/ou ao aumento de potncia de uma determinada espcie de vida
(Nachlass/FP 1888, 14[122], KSA 13.302 e Nachlass/FP 1888, 14[153], 13.336); isso no significa, contudo, que
o prprio Nietzsche estabelea a utilidade como critrio. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que no existe
58
maneira de estimar valores pode levar o modo de vida ao qual ela se relaciona a sucumbir,
esse modo de estimar valores no sintoma das condies de vida conforme aquele
primeiro sentido de que falamos acima, isto , como exigncias necessrias para a
conservao desse modo de vida; ainda assim, tal modo de estimar valores continua a ser
sintoma de condies de vida, mas agora num segundo sentido, meramente circunstancial, a
saber, na medida em que aponta para um determinado modo de vida, para como se vive.
potncia de um modo de vida, as estimativas de valor so sempre, pelo menos, signos que
apontam para determinados modos de vida, sejam eles destinados a se conservar, a crescer ou
a sucumbir.
Nietzsche critica precisamente essa defeituosa tica que exige que nenhuma outra espcie
de tica possa mais ter valor, depois de tornar sacrossanta a sua prpria com os nomes Deus,
pressupe o ocultamento daquilo que assinalamos algumas pginas acima, isto , de que em
uma utilidade em si, mas utilidade segundo determinadas perspectivas avaliadoras, segundo determinados modos
de vida, que no so necessariamente aqueles considerados superiores por Nietzsche. Alm disso, como a
pergunta o que utilidade? ter sempre como resposta uma interpretao perspectivstica, a prpria
determinao do que seria ou no til estar sempre sujeita ao engano. Por fim, gostaramos de nos reportar ao
quarto captulo de Nietzsche: das foras csmicas aos valores humanos, em que, ao examinar a crtica do
filsofo ao utilitarismo ingls, representado por Stuart Mill, Scarlett Marton (2000, p. 154) mostra como
Nietzsche destri, uma a uma, todas as diretrizes da moral dos utilitaristas: utilidade, felicidade, igualdade:
Empenha-se em mostrar que adotam a perspectiva dos ressentidos, quando consideram um fato o valor bom
ter sido criado por aqueles a quem as aes foram teis, quando pretendem derivar a moralidade do fato de que a
felicidade alheia desejvel enquanto um fim, quando pressupem como fato a igualdade dos agentes, avaliando
as aes por suas consequncias. E por isso no s ratificam os valores apregoados pelos ressentidos como ainda
assumem o modo de proceder por eles adotado. Marton (Ibid., p. 156) faz ver que Nietzsche recorre, ento, ao
procedimento genealgico: relaciona os valores que apregoam com a avaliao de que procedem ( a perspectiva
dos ressentidos que os coloca) e julga essa avaliao tendo por critrio a vida ( o esgotamento fisiolgico que
nela se manifesta).
59
toda estimativa de valor se trata de uma determinada perspectiva: conservao do indivduo,
de uma comunidade, de uma raa, de um Estado, de uma igreja, de uma crena, de uma
verdadeiros porque ela hostil vida lembrando que a unidade da palavra vida sempre
significa uma efetiva pluralidade de modos de vida. No prefcio de Para alm de bem e mal
(KSA 5.12), o filsofo caracteriza a inveno platnica do bem em si como o pior, mais
apenas como erro, mas tambm como inveno, Nietzsche faz ver em primeiro lugar que
no existe bem em si como algo dado. Ao adjetiv-la como o mais perigoso de todos os
erros, indica que falar em bem em si significa negar o perspectivstico, a condio bsica
de toda vida. Tomar os valores como absolutos implica, pois, ir de encontro condio
Temos de deter-nos por um momento nesse ponto para articul-lo com o que dissemos
trs pargrafos acima, onde afirmamos que, sendo perspectivstico e interpretativo, um modo
perspectivstico a condio bsica de toda vida e, em seguida, por que uma estimativa de
No que diz respeito primeira questo, procuraramos respond-la dizendo que toda
45
preciso, portanto, que se considere bem e mal como perspectivsticos (Nachlass/FP 1884, 26[178], KSA
11.196). Assim, Nietzsche tambm caracteriza a moral crist, que se pretende em posse de medidas absolutas,
como o perigo dos perigos e como hostil vida, na medida em que toda vida repousa em aparncia, arte,
engano, tica, necessidade do perspectivstico e do erro (GT/NT Prefcio 5, KSA 1.18).
60
vida; por outro lado, um modo perspectivstico de estimar valores no conserva
necessariamente o modo de vida ao qual se relaciona e nesse sentido, embora seja condio
Mas ento, para retomarmos a segunda questo, por que um modo dogmtico de
estimar valores hostil vida, ou mais hostil do que uma estimativa perspectivstica de
valor, que pode no garantir a conservao da vida qual se relaciona? Um modo dogmtico
de estimar valores pretende estar em posse de valores universais, o que no significa que
determinado modo de vida; no entanto, justamente por ser perspectivstico, ele no conservar
necessariamente outros modos de vida, de sorte que poder ser hostil se for generalizado. E
ento se determina o que o bem em si, que deveria ser considerado como tal por todas as
um modo singular de estimar valores, que deveria ento ser compartilhado por todos os
modos de vida; antes, se o carter perspectivstico condio de todos os modos de vida, cada
um dos diferentes modos de vida depende de sua perspectiva singular, de seu modo singular
61
de estimar valores46. nesse sentido que Nietzsche dirige ainda uma palavra contra Kant
como moralista:
Uma virtude tem de ser nossa inveno, nossa legtima defesa e nossa
necessidade personalssimas: em qualquer outro sentido, ela meramente
um perigo. O que no condiciona nossa vida a prejudica: uma virtude, por
um mero sentimento de respeito ao conceito de virtude, como quis Kant,
prejudicial. A virtude, o dever, o bem em si, o bem com o carter da
impessoalidade e da validade universal quimeras em que se expressam o
declnio, a derradeira perda de foras da vida, o chinesismo knigsberguiano.
O contrrio ordenado pelas leis mais profundas de conservao e
crescimento: que cada um invente para si sua virtude, seu imperativo
categrico. (AC/AC 11, KSA 6.177).
existncia de uma relao intrnseca entre vida e estimativas de valor: viver consiste em
estimar valores e as estimativas de valor, por sua vez, reportam-se a determinados modos de
vista determinado, no se pode falar sobre o valor de nenhuma coisa: isto , uma determinada
26[55], KSA 11.162). Enquanto, para Scrates e seus seguidores, toda concesso aos
instintos, ao inconsciente, conduz para baixo (GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA
6.72), Nietzsche, por seu turno, afirma: Ter de combater os instintos eis a frmula para a
46
Tambm podemos compreender dessa maneira a ideia de que a conservao e a superao de cada povo
dependem de seu modo de estimar valores, de estabelecer seu bem e seu mal, os quais so a voz de sua
vontade de potncia. Assim, no permitido a um povo, que tem em vista sua conservao, estimar valores do
mesmo modo que o povo vizinho os estima: pois aquilo que para um povo digno de elogio, para outro merece
censura (Za/ZA I, Dos mil e Um Alvos, KSA 4.74-76).
62
dcadence: enquanto a vida ascende, felicidade igual a instinto (GD/CI, O problema de
so injustos (MA I/HH I 32, KSA 2.51) e nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros
(GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68, trad. de RRFT). E por qu? Precisamente por
das estimativas de valor a condio bsica de toda vida, porm esse mesmo carter
perspectivstico da vida e das estimativas de valor impede que o valor da vida possa no
Depois de afirmar que o valor da vida no pode ser avaliado, Nietzsche prossegue:
Por um vivente no, porque este parte interessada, e at mesmo objeto de litgio, e no juiz;
por um morto no, por uma outra razo (GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68, trad.
de RRFT). Mais adiante, o filsofo apresenta as exigncias necessrias para que se possa ter
acesso ao problema do valor da vida, mas ao mesmo tempo afirma a impossibilidade de que
Seria preciso ter uma posio fora da vida e, por outro lado, conhec-la to
bem quanto um, quanto muitos, quanto todos, que a viveram, para poder em
geral tocar o problema do valor da vida: razes bastantes para se
compreender que este problema um problema inacessvel a ns. (GD/CI,
Moral como contranatureza, 5, KSA 6.86, trad. de RRTF).
A fim de tentarmos compreender por que essas exigncias no podem ser satisfeitas,
a impossibilidade de se conhecer to bem a vida quanto um, quanto muitos e, por fim, quanto
63
todos os que a viveram47. Intitulado Ser necessariamente injusto, o pargrafo comea com a
afirmao de que todos os juzos sobre o valor da vida so ilogicamente desenvolvidos e, por
isso, injustos (MA I/HH I 32, KSA 2.51). A impureza do juzo, argumenta Nietzsche,
Em segundo lugar, tal impureza se deve ao modo como, a partir daquela apresentao
incompleta, produz-se uma soma que resultar no juzo sobre o valor da vida. Para
entendermos o que isso significa, til recorrermos a uma passagem do fragmento pstumo
com base no qual Nietzsche escreveu o pargrafo que ora examinamos; nele, o filsofo afirma
que a expresso lgica daquela soma falsa na medida em que a soma de nossas
experincias nunca pode dar o direito a um juzo sobre a vida (Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA
8.135-136). Aqui, a expresso nossas experincias pode referir-se tanto soma das
experincias de um vivente singular quanto soma das experincias de todos os viventes, mas
em nenhum dos dois casos se tem o direito lgico soma das experincias a partir da qual se
pudesse elaborar um juzo justo sobre o valor da vida. Conforme sugere o terceiro argumento
apresentado no pargrafo 32, a impureza dos juzos de valor sobre a vida decorre no apenas
do modo incompleto em que o material aparece, mas a fortiori do fato de que cada pedao do
resulta apenas de uma limitao quantitativa da apario do material, mas tambm da prpria
qualidade das avaliaes, que falsificam. Por fim, os juzos de valor sobre a vida so impuros
porque a medida com a qual medimos, nosso ser, no uma grandeza inaltervel, ao passo
47
O pargrafo 32 de Humano, demasiado humano foi elaborado a partir do Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA 8.131-
181, que diz respeito leitura do livro de Eugen Karl Dhring intitulado precisamente Der Werth des Lebens (O
valor da vida). Nesse fragmento pstumo, Nietzsche afirma que todos os juzos sobre o valor da vida so
conhecimentos impuros (Nachlass/FP 1875, 9[1], KSA 8.135). Com isso, o filsofo j indica a impossibilidade
de se cumprir a exigncia de conhecer a vida to bem, apresentada na passagem de Crepsculo dos dolos que
citamos acima.
64
que deveramos conhecer a ns mesmos como uma medida fixa para avaliar de maneira justa
a nossa relao com uma coisa qualquer (MA I/HH I 32, KSA 2.51-52).
Para defender a ideia de que os juzos de valor sobre a vida so impuros e injustos,
(indicado no primeiro argumento do pargrafo 32), mas tambm o carter falsificador de toda
reflexes sobre a vida. No pargrafo 354 de A gaia cincia, em que faz referncia ao seu
desenrola sem esse espelhamento, quer dizer, sem entrar na conscincia (FW/GC 354,
KSA 3.590, trad. de RRTF), para ento associar todo tornar-se consciente a um processo de
falsificao (FW/GC 354, KSA 3.593, trad. de RRTF). Ademais, o filsofo continuar a
que torna a sua soma incongruente (como apontado no segundo argumento do pargrafo 32),
assim como seguir sugerindo que as avaliaes tm carter transitrio (conforme indicado no
quarto argumento)49.
No prefcio escrito em 1886 para uma nova edio de Humano, demasiado humano,
vida mesma como condicionada pelo perspectivstico e sua injustia (MA I/HH I Prefcio, 6,
KSA 2.20, trad. de RRTF). Com essas palavras, o filsofo indica uma vez mais que temos de
48
Sobre a associao do conceito de perspectiva com as ideias de erro, iluso e limitao, ver o Nachlass/FP
1880, 6[441], KSA 9.311-312.
49
Sobre o carter incongruente da soma de perspectivas, ver Nachlass/FP 1888, 14[93], KSA 13.271. A respeito
da transitoriedade das perspectivas, o pargrafo 119 de Aurora (KSA 3.111-114) mostra de modo exemplar
como as avaliaes, relacionadas hierarquizao sempre reconfigurada dos impulsos, so transitrias.
65
ser necessariamente injustos, para lembrarmos o ttulo do pargrafo 32. A vida
estimativas de valor so, portanto, injustas. Se por um lado a vida depende de estimativas de
valor perspectivsticas e injustas, por outro lado as estimativas sobre o valor da prpria vida,
maneira mais prolongada na argumentao a respeito do carter injusto dos juzos de valor
sobre a vida, nas passagens de Crepsculo dos dolos em que trata do tema o filsofo insiste
valor sobre a vida, pr ou contra, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros, acrescenta
que tais juzos s tm valor como sintomas (GD/CI, O problema de Scrates, 2, KSA 6.68,
trad. de RRFT). Na medida em que a vida mesma valora atravs de ns, quando institumos
disso, um modo de estimar valores constitui no limite uma afirmao ou uma negao no da
vida em geral, mas de um determinado modo de vida. Essas ideias bsicas se configuram da
considerado sintoma de uma vida ascendente; se, porm, nega a concepo nietzschiana de
dolos em que, defendendo que os juzos de valor sobre a vida entram em considerao apenas
problema de Scrates e em Moral como contranatureza, que o modo de valorar dos reputados
66
No captulo O problema de Scrates, Nietzsche sustenta que em todos os tempos os
mais sbios julgaram que a vida no vale nada e, por isso, so decadentes (GD/CI, O
problema de Scrates, 1, KSA 6.67). Como assinala o prprio ttulo do captulo, o filsofo se
6.69). Para estabelecer a relao entre esses dois aspectos, Nietzsche evoca, no terceiro e no
da face de Scrates revelava que ele era um antro de maus apetites (GD/CI, O problema de
Scrates, 9, KSA 6.71, trad. de RRTF)50. Embora concordasse com esse testemunho, Scrates
afirmou que dominara tais apetites (GD/CI, O problema de Scrates, 9, KSA 6.71, trad. de
RRTF) por meio da racionalidade a todo preo (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA
Ocorre que o meio utilizado por Scrates seu remdio, sua cura, seu artifcio
pessoal de autoconservao51 foi visto como soluo geral, conforme atesta o moralismo
da filosofia grega a partir de Plato, que, como Scrates, equipara razo, virtude e felicidade,
assim como pretende contrapor aos desejos obscuros a luz clara da razo (GD/CI, O problema
de Scrates, 10, KSA 6.72). certo que, para Nietzsche, a anarquia, o desregramento ou a
tirania dos instintos so indcios de decadncia; mas o meio tomado como suposta salvao,
50
Esse episdio j fora mencionado no curso Introduo ao estudo dos dilogos platnicos (KGW II, 4.152).
51
Embora Scrates tenha se percebido e tenha sido percebido por todos como mdico e salvador da o fascnio
que exerceu , Nietzsche sugere que o prprio Scrates compreendeu, por fim, que no era efetivamente mdico
e salvador (GD/CI, O problema de Scrates, 11 e 12, KSA 6.72-73). No momento dessa autocompreenso,
Scrates, o mais esperto de todos os autoenganadores, teria tido alguma sabedoria (GD/CI, O problema de
Scrates, 12, KSA 6.73). Estrategicamente Nietzsche insinua a anuncia do prprio Scrates sua
interpretao.
67
isto , a contratirania exercida pela racionalidade a todo preo, tambm consiste numa
expresso de dcadence (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA 6.72, trad. de RRTF).
Assim como no se deve permitir a tirania dos instintos, no se deve preconizar a tirania da
razo, sobretudo na medida em que a racionalidade a todo preo traduz aqui a interdio de
toda e qualquer concesso aos instintos (GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA 6.72). Ora,
essa proibio generalizada de toda e qualquer concesso aos instintos teria de pressupor a
possibilidade de uma vida livre dos instintos, o que, para Nietzsche, inconcebvel. Alm
disso, sendo generalizada, tal proibio teria por consequncia a interdio at mesmo dos
instintos dos quais depende a vida ou ao menos a vida tal como Nietzsche a concebe52.
Desse modo, ainda que a tirania dos instintos ou da razo assim como a anarquia e o
travar uma guerra aos instintos ou racionalidade em si mesmos, mas tirania dos instintos
ou da razo, bem como anarquia e ao desregramento dos instintos. por isso que, enquanto
para aqueles filsofos toda concesso aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo
(GD/CI, O problema de Scrates, 10, KSA 6.72), Nietzsche afirma, em contraposio: Ter
felicidade igual a instinto (GD/CI, O problema de Scrates, 11, KSA 6.73, trad. de RRTF
todo preo, Scrates e seus seguidores negam a vida ou negam ao menos o que, para
Nietzsche, constituiria uma vida ascendente. Como os juzos de valor sobre a vida entram em
52
Mas suposto que algum tome os afetos de dio, inveja, avareza, despotismo como afetos condicionantes da
vida, como algo que deve estar presente de modo fundamental e essencial na economia global da vida, que por
conseguinte deve mesmo ser intensificado, se a vida mesma deve ser intensificada esse algum sofre de uma
tal direo de seu juzo como de uma mareao (JGB/BM 23, KSA 5.38). Nietzsche afirma ainda: Vida
mesma essencialmente apropriao, ofensa, subjugao do que estranho e mais fraco, opresso, dureza,
imposio de formas prprias, incorporao e no mnimo, no mais brando dos casos, explorao [...] (JGB/BM
259, KSA 5.207). Ver tambm GM/GM II, 12, 313-316.
68
considerao apenas como sintomas, Nietzsche conclui que, ao negarem a vida ou, mais
No captulo Moral como contranatureza, por sua vez, Nietzsche defende que quase
toda moral existente se voltou contra os instintos da vida (GD/CI, Moral como
contranatureza, 4, KSA 6.85). Nesse contexto, toma como caso paradigmtico a moral crist.
Ao visar aniquilao e castrao das paixes e dos desejos, a prtica da igreja , segundo
Nietzsche, hostil vida: Atacar as paixes pela raiz significa atacar a vida pela raiz
(GD/CI, Moral como contranatureza, 1, KSA 6.82). A prtica da igreja hostil vida no
apenas porque v nas paixes um inimigo e faz guerra contra ele, mas sobretudo em funo
do prprio modo como a igreja combate seus inimigos, ou seja, visando a sua aniquilao:
Em todos os tempos a igreja quis a aniquilao de seus inimigos (GD/CI, Moral como
compreenso do valor de se ter inimigos e de ser rico em antagonismos (GD/CI, Moral como
contranatureza, 3, KSA 6.84) ideia que est em concordncia com o carter dinmico da
certo modo de fazer guerra que procura aniquilar todo e qualquer inimigo, tal como o modo
cristo de combater.
inimizade (GD/CI, Moral como contranatureza, 3, KSA 6.84), a moral crist toma as paixes
69
e os desejos como inimigos e lhes declara guerra com o objetivo de aniquil-los, o que
constitui, na viso de Nietzsche, uma prtica hostil vida. Com efeito, se quase todas as
desses instintos (GD/CI, Moral como contranatureza, 4, KSA 6.85), a moral crist tornou
quase sacrossanta essa rebelio contra a vida (GD/CI, Moral como contranatureza, 5,
A partir desse ponto, o filsofo procede do mesmo modo que no captulo O problema
Disto se segue que tambm essa contranatureza de moral, que capta Deus
como contraconceito e condenao da vida, apenas um juzo de valor da
vida de que vida? De que espcie de vida? Mas eu j dei a resposta: da
vida declinante, da vida enfraquecida, cansada, condenada. Moral, como foi
entendida at agora [...] o prprio instinto de dcadence, que faz de si um
imperativo: ela diz: perea. (GD/CI, Moral como contranatureza, 5, KSA
6.86, trad. de RRTF modificada).
por sua vez, considerada como sintoma de um determinado modo de vida, ascendente ou
interpretao a respeito do que a vida. Ao avaliar o valor das estimativas de valor, Nietzsche
procura avaliar se um determinado modo de estimar valores afirma ou nega a sua prpria (a
70
de Nietzsche) concepo de vida. O critrio do filsofo no apenas distingue, mas pressupe
sua interpretao perspectivstica a respeito do que a vida. Aps afirmar que se deve
considerar o valor das estimativas de valor em relao vida, ele pergunta: Mas o que
vida?, e em seguida responde: Aqui se faz necessria uma nova e mais determinada verso
do conceito vida: minha frmula para isso diz: vida vontade de potncia (Nachlass/FP
isto? pretende obter uma resposta que revele a essncia de isto. No entanto, Nietzsche
trata-se sempre de o que isto para mim? (Nachlass/FP 1885-1886, 2[149] KSA 12.140).
perguntar o que vida?, Nietzsche introduz sua resposta, segundo a qual vida vontade de
potncia, precisamente por meio da modalizao minha frmula para isso. Dessa maneira,
uma modalizao para mim , que em O anticristo Nietzsche examina o modo cristo de
estimar valores: A vida mesma vale para mim como instinto de crescimento, de durao, de
com sua concepo de vida, caracteriza como bom tudo o que eleva o sentimento de
potncia, a vontade de potncia, a potncia mesma no homem, ao passo que considera ruim
71
tudo o que provm da fraqueza (AC/AC 2, KSA 6.170). Segundo Nietzsche, o
cristianismo tomou partido de tudo o que fraco, baixo, malogrado e fez um ideal a partir da
contradio com os instintos de conservao da vida forte (AC/AC 5, KSA 6.171). Fazer da
compaixo, por exemplo, uma virtude como fez o cristianismo implica ser hostil vida:
esse instinto depressivo e contagioso cruza aqueles instintos que visam a conservao e
elevao de valor da vida (AC/AC, 7, KSA 6.173, trad. de RRTF). Opondo-se aos afetos
tnicos que elevam a energia do sentimento vital (AC/AC, 7, KSA 6.172, trad. de RRTF
modificada), a compaixo tem por consequncia a perda de fora; alm disso, afirma
Nietzsche: o padecer [das Leiden] mesmo se torna, com a compaixo [das Mitleiden],
contagioso (AC/AC, 7, KSA 6.173, trad. de RRTF). O carter perigoso para a vida da
compaixo se mostra sobretudo na medida em que ela cruza a lei do desenvolvimento, que
conserva o que est maduro para sucumbir, arma-se em favor dos deserdados e condenados
da vida e, pela multido de malogrados de toda espcie que mantm firmes na vida, d vida
tambm a partir de sua concepo de vida que Nietzsche designa seu oposto: os
telogos e tudo o que tem sangue de telogo no corpo nossa inteira filosofia... (AC/AC 8,
KSA 6.174, trad. de RRTF). Para o filsofo, humildade, castidade, pobreza, santidade, em
uma palavra, causaram indizivelmente mais danos vida do que quaisquer terribilidades e
vcios, de modo que o padre no outra coisa seno negador, caluniador, envenenador da
vida (AC/AC 8, KSA 6.175, trad. de RRTF). Por isso Nietzsche assevera:
O que um telogo sente como verdadeiro tem de ser falso: com isso se tem
quase um critrio da verdade. [...] At onde alcana a influncia dos
telogos, o julgamento de valor est colocado de cabea para baixo, os
conceitos de verdadeiro e falso esto necessariamente invertidos: o que
mais prejudicial vida se chama aqui verdadeiro, o que a eleva,
72
intensifica, afirma, justifica e faz triunfar se chama falso. (AC/AC, KSA
6.175-176).
negativo: o que um modo de avaliar influenciado pelo telogo julga como verdadeiro ,
conforme a perspectiva avaliadora de Nietzsche, falso, pois aquela maneira de estimar valores
condena o que reala e eleva a vida tal como Nietzsche a compreende. Assim, o critrio de
critrio de uma verdade em si, como era a pretenso da lgica, por exemplo. Ao contrrio, o
filsofos amaram suas verdades (JGB/BM 43, KSA 5.60, grifo nosso). Por isso, os filsofos
do futuro sero novos amigos da verdade, mas de sua verdade, sem ignorar ou dissimular,
como os dogmticos, que aquilo que se determina como verdade sempre depende de uma
hiptese do mundo como vontade de potncia, hiptese sobre a qual repousa aquela
indicando com o pronome possessivo sublinhado que tal concepo tambm resulta de uma
interpretao perspectivstica.
53
Ver tambm, por exemplo, Nachlass/FP 1884, 26[15], KSA 11.153 e 1885, 40[39], KSA 11.649.
73
Mas no basta conceber a vida como vontade de potncia, pois as vontades de
potncia se exercem como vida ascendente e como vida decadente. Assim, a intensificao de
que inventam uma outra vida e um outro mundo considerados melhores e mais verdadeiros, a
avaliao do filsofo, como vimos, quase toda moral traduz a negao e a condenao dos
instintos da vida; mas o cristianismo, caso paradigmtico, diz no para os desejos mais
baixos e mais elevados da vida e toma Deus como inimigo da vida (GD/CI, Moral como
vida ascendente, isto , tudo o que forte, bravo, senhorial, orgulhoso (AC/AC 17, KSA
Um modo de estimar valores que traduz um modo de vida ascendente diz sim a esta
vida e a este mundo, sem inventar outra vida e outro mundo. O artista trgico no um
74
dionisaco (GD/CI, A razo na filosofia, 6, KSA 6.79, trad. de RRTF). E na mesma
***
trata de um critrio neutro, objetivo, independente e absoluto, mas sim relativo a uma
75
CAPTULO 3
Nietzsche sublinha seu carter antidogmtico e ao mesmo tempo oferece indicaes sobre seu
estatuto, que se revela, de fato, complexo. Se confere a essa concepo de mundo um estatuto
interpretativo, no pretende, todavia, que sua interpretao seja apenas mais uma, mas, ao
contrrio, reivindica sua superioridade diante das demais; se a designa como hiptese e
ensaio, com isso no quer sugerir que resulta de uma formulao arbitrria, mas, antes, de um
hierarquizar as outras interpretaes, ele considera a sua prpria superior s demais. Cumpre
perspectivista.
***
potncia, Nietzsche procede de modo coerente com sua prpria concepo de mundo. De um
lado, o filsofo apresenta seu pensamento da vontade de potncia como ensaio de uma
nova interpretao de todo acontecer (Nachlass/FP 1885, 39[1], KSA 11.619); de outro,
doutrina concorda com o contedo da doutrina; mais do que isso: o contedo da doutrina
interpretaes, mostrando que no as toma como equivalentes. Procede assim, por exemplo,
no pargrafo 14 de Para alm de bem e mal. Ali, afirma que a fsica apenas uma
interpretao e uma disposio do mundo [...] e no uma explicao do mundo (JGB/BM 14,
KSA 5.28). No entanto, adverte que, para a sua poca, ela vale como mais, [...] como
explicao (JGB/BM 14, KSA 5.28). Isso porque a fsica repousa na crena nos sentidos,
tendo os olhos e os dedos a seu favor. Assim, est em conformidade com o sensualismo
popular que serve como o cnone de verdade numa poca de gosto plebeu, para a qual o que
explica o que se deixa ver e tocar (JGB/BM 14, KSA 5.28). A fsica ento fascina e
persuade.
pensar, que era um modo nobre de pensar, cujo fascnio repousa desta vez na resistncia
contra a evidncia dos sentidos (JGB/BM 14, KSA 5.28). Embora considere o modo
54
Nesse sentido, concordamos com a afirmao de Vnia Dutra de Azeredo: Introduzir a interpretao nos
domnios do mundo a partir de uma interpretao foi, a nosso ver, o exerccio filosfico de Nietzsche,
consistindo seu empenho em aniquilar as noes de fato e de fundamento (2008, p. 45).
55
Interpretao de mundo, no explicao de mundo, anota frequentemente o filsofo (por exemplo, no
Nachlass/FP 1885, 42[1], KSA 11.691 e no Nachlass/FP 1885-1886, 1[121], KSA 12.39). Nietzsche escreve
ainda interpretao, no explicao (ver Nachlass/FP 1885-1886, 2[78], KSA 12.98, Nachlass/FP 1885-1886,
2[82], KSA 12.100-101 e Nachlass/FP 1886-1887, 5[50] (30), KSA 12.203). Encontra-se tambm a frmula:
interpretao, no conhecimento (Nachlass/FP 1885-1886, 2[70], KSA 12.92 e Nachlass/FP 1885-1886, 2[82],
KSA 12.101). Nessa direo, sustenta que o mundo no passvel de conhecimento, mas sim interpretvel
(Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). L-se ainda: o que, somente, pode ser conhecimento?
Interpretao, no explicao (Nachlass/FP 1885-1886, 2[86], KSA 12.104). Alm disso, Nietzsche defende
que o que se acredita tratar-se de explicao consiste a rigor em descrio (por exemplo, em FW/GC 112,
KSA 3.472).
77
platnico de pensar superior, Nietzsche no o toma por isso como uma explicao de mundo,
mas sim como uma interpretao do mundo (JGB/BM 14, KSA 5.28). Nem a filosofia
dogmtica, nesse caso representada por Plato, nem a cincia, representada pela fsica,
fillogo, ele inclui a concepo de legalidade da natureza dos fsicos entre as artes-de-
interpretao ruins: tal concepo, diz aos fsicos, s subsiste graas a vossa interpretao e
filologia ruim no nenhum fato, nenhum texto (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de
RRTF modificada). Tomando a interpretao dos fsicos como algo a ser, por seu turno,
humanitrio e uma distoro de sentido, com que dais [os fsicos] plena satisfao aos
instintos democrticos de alma moderna (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). Para o
filsofo, a concepo de legalidade da natureza quer ver por toda parte igualdade diante da
lei, donde a concluso de que se trata de um maneiroso pensamento oculto, em que mais
uma vez est disfarada a plebeia hostilidade contra tudo o que privilegiado e senhor de si
dos fsicos, isto , como o resultado de uma boa arte de interpretao. Ao atribuir um estatuto
sentido, ela continuar a ser, portanto, somente interpretao (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad.
de RRTF). Mas nem por isso o filsofo a considera como apenas mais uma interpretao, ou
78
seja, como equivalente s outras interpretaes. Antes, considera sua interpretao superior s
demais: e no apenas porque ele a reconhece como uma interpretao, ao passo que os
dogmticos pretendem fazer com que suas interpretaes se passem por explicaes ou
verdades absolutas, mas sobretudo porque sua interpretao decorre, segundo ele, de uma boa
arte de interpretao.
KSA 2.139), infame (M/A 13, KSA 3.26, trad. de RRTF), falsa (Nachlass/FP 1885,
34[48], KSA 11.435) e arbitrria (Nachlass/FP 1888, 14[151], KSA 13.333) so alguns dos
depreciao de uma interpretao pode ser ainda mais especfica: ao referir-se a uma
filsofo sugere que a prpria caracterizao de uma interpretao como arbitrria pode
comportar nuances, havendo desde arbitrariedades mais sutis at outras mais grosseiras, desde
veementemente criticados por Nietzsche. De resto, em boa parte das ocasies em que
raridade desses casos (Nachlass/FP 1876-1877, 23[22], KSA 8.441 e 23[108], KSA 8.441) e
79
ler (KGW II, 3.373)56. Como no considerava os procedimentos de leitura equivalentes,
(KGW II, 3, 388). Para o estabelecimento e a interpretao dos documentos escritos, que
devem por fim visar a uma compreenso total da antiguidade, seriam necessrios, entre outros
corrupo do texto (KGW II, 3.375) sentido que Nietzsche continuar a exercitar, criticando
tanto a corrupo de textos em sentido estrito (do texto bblico, por exemplo, corrompido pela
igreja, que, desonesta, introduz de maneira fraudulenta uma passagem a ser posteriormente
utilizada no sentido da profecia crist, cf. M/A 84, KSA 3.80) quanto a corrupo de textos
em sentido amplo (tal como do texto da natureza, preparado previamente pelos metafsicos
para que se adapte explicao que eles tm pronta de antemo, cf. WS/AS 17, KSA 2.551-
552, trad. de RRTF). Em seu curso de filologia, Nietzsche j exigia rigor moral e
preconizava uma leitura lenta e desconfiada, que pe prova cada fato e cada passagem
(KGW II, 3.375). E tais recomendaes continuaro a ecoar em textos posteriores, nos quais o
filsofo exigir o cultivo de uma boa arte de leitura e de interpretao: No se foi fillogo
em vo, -se ainda talvez, quer dizer, um professor da lenta leitura, escreve no ltimo
pargrafo do prefcio de Aurora (KSA 3.17). A filologia, prossegue Nietzsche ali, ensina a
ler bem, isto , a ler lenta e profundamente, de modo atento e cuidadoso, com segundas
intenes, deixando portas abertas, com dedos e olhos delicados (M/A Prefcio 5, KSA
3.17)57.
Assim, no sem motivo que no pargrafo 22 de Para alm de bem e mal Nietzsche
56
Trata-se aqui de anotaes para o curso intitulado Encyclopdie der klassischen Philologie.
57
Nietzsche designa a filologia, em um sentido muito geral, como a arte de ler bem e de poder decifrar
fatos [...] sem falsific-los com interpretao, sem perder, na exigncia de compreenso, o cuidado, a pacincia, a
sutileza (AC/AC 52, KSA 6.233). Sobre a filologia como a arte da lenta leitura, ver ainda o Nachlass/FP 1876,
19[1], KSA 8.332.
80
interpretao entre as quais se encontra a concepo de legalidade da natureza dos fsicos
pensamento do filsofo; o que permanecer sempre, contudo, ser a exigncia de uma boa
interpretao e de leitura.
em seu sentido estrito, isto , relacionados a documentos escritos: isso ocorre, por exemplo,
nas ocasies em que exige uma leitura interpretativa de seus prprios textos (GM/GM
desavergonhada arbitrariedade da interpretao (M/A 84, KSA 3.79). Mas Nietzsche amplia
consideravelmente o uso desses conceitos: a ponto de considerar todo tipo de fenmeno como
um texto a ser interpretado. assim que o filsofo toma as disposies, inclinaes e aes do
santo como uma escrita, que foi, no entanto, falsamente interpretada, segundo uma arte
I/HH I 143, KSA 2.139); que designa a conscincia como um comentrio mais ou menos
fantstico sobre um texto desconhecido, talvez incognoscvel (M/A 119, KSA 3.113); que se
refere Revoluo Francesa como um texto que, todavia, desapareceu sob as interpretaes
daqueles que nele por tanto tempo e de maneira to apaixonada introduziram, por meio de
interpretao, seus prprios entusiasmos e revoltas (JGB/BM 38, KSA 5.56); que define a
filologia, em um sentido muito geral, como a arte de ler bem e de poder decifrar fatos:
81
sejam eles livros, notcias de jornais, destinos ou fatos meteorolgicos (AC/AC 52, KSA
6.233). Por fim, Nietzsche se referir ao prprio mundo como um texto ou um fato a ser
As passagens em que Nietzsche trata da relao entre texto e interpretao do, porm,
margem a algumas dificuldades. Em uma srie de escritos, o filsofo sugere que no h fatos
(e, portanto, textos)59 em si mesmos e que, por isso, preciso que primeiramente se introduza
um sentido por meio de interpretao para que, somente ento, tenha-se um fato ou um texto:
No h nenhum fato em si, mas sim um sentido deve sempre primeiramente ser introduzido
para que possa haver um fato (Nachlass/FP 1885-1886, 2[149], KSA 12.140). Nesse caso, o
estabelecer todos os textos do mesmo modo como a filologia clssica os estabelece, ainda
assim podemos dizer que toda leitura (tanto a leitura que visa a estabelecer um texto quanto a
Por outro lado, diversos escritos de Nietzsche apontam, ao menos aparentemente, para
outra direo: ao afirmarem que a boa arte de leitura aquela que no falsifica o texto com
interpretaes, essas passagens sugerem uma separao entre texto e interpretao. Depois de
58
A respeito dessa extenso dos conceitos de texto e de interpretao, Mller-Lauter (1974, p. 44) indica que
Nietzsche utiliza com prazer a relao filolgica texto-interpretao para o esclarecimento das relaes
fundamentais da efetividade. ric Blondel (1986, p. 145), por sua vez, sustenta que Nietzsche estende os
mtodos da filologia a tal ponto que a cultura e a realidade devem ser consideradas como textos a serem
filologicamente interpretados (Ibid., p. 137). Tambm atribuindo um papel central a uma concepo mais ampla
de filologia na filosofia de Nietzsche, Patrick Wotling (2009, p. 58) defende que, depois de criticar o conceito
idealista de realidade, o pensador alemo estabelece o texto da realidade-aparncia, o qual se mostrar legvel
como vontade de potncia.
59
Nas notas para o curso Enciclopdia da filologia clssica, Nietzsche utiliza, entre outros, o termo Thatsache
(KGW II, 3.375) como sinnimo de texto em sentido estrito, isto , como documento escrito. Posteriormente o
mesmo termo continuar a ser empregado, ao menos em algumas passagens, como sinnimo de texto: no mais
apenas em sentido estrito, mas tambm em sentido amplo, como o caso do pargrafo 52 de O anticristo, que
citamos pouco acima. Nietzsche tambm empregar o termo Thatbestand como sinnimo de texto, como se
verifica no j mencionado pargrafo 22 de Para alm de bem e mal, no qual o filsofo afirma que a concepo
da legalidade da natureza dos fsicos no nenhum fato (Thatbestand), nenhum texto.
82
defender que a concepo de legalidade da natureza dos fsicos no nenhum fato,
nenhum texto, o filsofo insiste: isso interpretao, no texto (JGB/BM 22, KSA 5.37,
muito geral, como poder decifrar fatos sem falsific-los com interpretao (AC/AC 52,
KSA 6.233).
Seria possvel ento separar texto de interpretao? Parece-nos que no. Como, para
(sejam tais conceitos considerados em seu sentido estrito ou em seu sentido amplo). Contudo,
como artes ruins de interpretao ou artes boas de interpretao. Assim, nas ocasies em que
afirma que uma boa arte de leitura aquela que no falsifica o texto com interpretaes, o
filsofo exige que se evite uma arte ruim de interpretao, mas no que se suprima toda
filologia ruim, que fazem parte das artes-de-interpretao ruins (JGB/BM 22, KSA 5.37,
no porque interpretam pois todos, inclusive Nietzsche, interpretam , mas sim porque
A filologia ruim, que se vale de uma arte ruim de interpretao, seria caracterizada por
60
Essa a interpretao de Patrick Wotling (2009, p. 45-48).
83
andarilho e sua sombra (WS/AS 17, KSA 2.551-552), consiste na violao das regras de
como falta de probidade, prepara o texto para que ele se adapte a uma explicao
caracteriza a falta de filologia: ao texto original se sobrepe uma interpretao, que passa
a ser considerada como texto, sob o qual desaparece, por fim, aquele texto original; essa
segunda infrao cometida, por exemplo, pelos fsicos (JGB/BM 22, KSA 5.37).
(WOTLING, 2009, p. 48); essa ltima infrao exemplificada pela exegese crist do texto
Mas seria possvel evitar absolutamente essas infraes? De que maneira? Para tentar
como fizeram os fsicos (JGB/BM 22, KSA 5.37) e os intrpretes da Revoluo Francesa
(JGB/BM 38, KSA 5.56): no, contudo, porque se considere possvel chegar a um texto ou a
um sentido originais, livres de toda e qualquer interpretao, mas sim porque se ter
61
Ver ainda FW/GC 357, KSA 3.600, trad. de RRTF: Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da
bondade e custdia de Deus; interpretar a histria em honra de uma razo divina, como constante testemunho de
uma ordenao tica do mundo com intenes finais ticas; interpretar as prprias vivncias, como a
interpretavam h bastante tempo homens devotos, como se tudo fosse providncia, tudo fosse aviso, tudo fosse
inventado e ajustado por amor da salvao da alma: isso agora passou, isso tem contra si a conscincia, isso,
para toda conscincia mais refinada, passa por indecoroso, desonesto, por mentira, efeminamento, fraqueza,
covardia por esse rigor, se que por alguma coisa, que somos justamente bons europeus e herdeiros da
mais longa e mais corajosa autossuperao da Europa.
84
conscincia de que toda relao com um texto constitui um procedimento interpretativo, ou
prprio intrprete naquilo que interpreta (JGB/BM 38, KSA 5.56) e, de maneira geral, o
acrscimo, por meio de interpretao, de algo exterior ao processo interpretado (JGB/BM 17,
KSA 5.31 e Nachlass/FP 1886-1887, 7[60], KSA 12.315). E, com efeito, ao se tomar
pacincia, ateno, desconfiana, lentido, rigor moral e tudo o que prescreve Nietzsche nas
procedimento que seja consciente de seu carter interpretativo e que proceda com rigor
metodolgico resulte numa leitura sem qualquer arbitrariedade, sem distores e sem
introduo de sentido, arbitrariedade e distoro, ainda que involuntariamente e ainda que tais
interpretao que no podem ser completamente suprimidos, ento esses elementos tero de
62
Ver nota 19, no primeiro captulo.
85
estar em alguma medida presentes tambm nas artes boas de interpretao: portanto, no
limite, no possvel efetuar uma distino absoluta entre artes de interpretao boas e artes
de interpretao ruins.
procede em sua formulao. Pois tambm com base nesse rigor metodolgico que o filsofo
alm de bem e mal nos mostrou que Nietzsche toma sua concepo de mundo no como
apenas mais uma interpretao, mas como resultante de uma boa arte de interpretao, o que
mesmo livro, por sua vez, indica de modo exemplar que Nietzsche apresenta sua concepo
de mundo no como uma hiptese e um ensaio precipitados (JGB/BM 192, KSA 5.113) e
incompletos (Nachlass/FP 1888, 14[188], KSA 13. 176), como outros por ele criticados, mas
alm de bem e mal (KSA 5.28, trad. de RRTF). No pargrafo 36 do mesmo livro (KSA 5.54-
55, trad. de RRTF), a ateno a essa economia de princpios se revela em diversos momentos
da argumentao: por exemplo, quando, aps supor que nada outro est dado como real, a
no ser nosso mundo de apetites e paixes (grifo nosso), Nietzsche pergunta se esse dado
no basta para, a partir de seu semelhante, entender o assim chamado mundo mecnico
(grifo do autor); ao afirmar que esta uma moral do mtodo, a saber: no admitir vrias
86
espcies de causalidade, enquanto o ensaio de bastar-se com uma nica no tiver sido levado
at seu limite extremo (grifo nosso); ao escrever: quanto basta, para termos de arriscar a
hiptese, se por toda parte onde so reconhecidos efeitos no vontade que faz efeito sobre
vontade (grifo nosso); ao dizer: suposto, enfim, que desse certo explicar toda a nossa vida
seja, da vontade de potncia (grifo do autor); e, por fim, ao concluir o pargrafo com a
proposio de que o mundo [...] seria justamente vontade de potncia, e nada alm disso
(grifo nosso). Como se nota, a exigncia de parcimnia de princpios deve resultar numa
hiptese que se aplique ao maior nmero possvel de fenmenos: e, com efeito, Nietzsche
vontade de potncia, e nada alm disso, Nietzsche reitera, empregando o verbo no modo
conjuntivo, o carter hipottico de sua concepo. preciso notar, no entanto, que o filsofo
mundo como vontade de potncia: isso ocorre, por exemplo, na passagem em que afirma que
nica; e tambm linhas abaixo, onde escreve: quanto basta, para termos [muss] de arriscar
a hiptese, se por toda parte onde so reconhecidos efeitos no vontade que faz efeito
sobre vontade (JGB/BM 36, KSA 5.54-55, trad. de RRTF). Em suma: hipteses, mas
hipteses necessrias.
87
A pergunta , por ltimo, se reconhecemos efetivamente a vontade como
eficiente, se acreditamos na causalidade da vontade: se o fazemos e no
fundo a crena nisso justamente nossa crena na prpria causalidade ,
temos de fazer o ensaio de pr hipoteticamente a causalidade da vontade
como a nica. (JGB/BM 36, KSA 5.55, trad. de RRTF).
Precisemos que aquelas proposies, das quais Nietzsche retira hipteses apresentadas
como necessrias, no parecem usufruir do mesmo estatuto aos olhos do filsofo, se se leva
em conta o conjunto de seus textos. Por um lado, algumas proposies poderiam ser
consideradas como subscritas pela prpria filosofia de Nietzsche, a saber: a suposio de que
de nossos impulsos, sendo possvel pensar o chamado mundo mecnico como uma pr-
forma da vida; da mesma maneira, a suposio de que seria possvel explicar toda a nossa
ou seja, da vontade de potncia, como minha proposio63; e, por fim, a suposio de que
seria possvel reconduzir todas as funes orgnicas a essa vontade de potncia e [de que]
nela tambm se encontrasse a soluo do problema da gerao e nutrio (JGB/BM 36, KSA
No seria fcil, porm, sustentar que a crena na causalidade, que no fundo a crena
frequncia, apontar seu carter ilusrio, que provm precisamente da crena na causalidade da
63
A vida, como a forma do ser que nos mais conhecida, especificamente uma vontade de acumulao de
fora [...] A vida, como um caso singular: daqui a hiptese sobre o carter global da existncia (Nachlass/FP
1888, 14[82], KSA 13.262).
64
Ver Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563 e Nachlass/FP 1888, 14[174], KSA 13.360.
88
A pergunta , por fim: se ns reconhecemos a vontade efetivamente como
eficiente? Se ns a reconhecemos como tal, ento naturalmente ela s pode
fazer efeito sobre algo que de sua espcie: e no sobre matria. Ou se
deve considerar todo efeito como iluso (pois ns nos formamos a
representao de causa e efeito apenas segundo o modelo de nossa vontade
como causa!) e ento nada de modo algum compreensvel: ou se deve
tentar pensar todo efeito como sendo de mesma espcie, como atos de
vontade, portanto fazer a hiptese, se todo acontecer mecnico, na medida
em que contm uma fora, precisamente ato de vontade. (Nachlass/FP
1885, 40[37], KSA 11.647).
(Wirkung) que ele produz e ao qual ele resiste e que a relao entre os quanta dinmicos
consiste em seu efetivar-se (Wirken) uns sobre os outros (Nachlass/FP 1888, 14[79], KSA
potncia baseado em nossa crena na causalidade (JGB/BM 36, KSA 5.55), mas
fora (Nachlass/FP 1888, 14[81], KSA 13.261). Mas por que, mesmo correndo o risco de
evocar o to criticado par causa e efeito e de associar o efetivar-se dos quanta de potncia
noo de causalidade, o filsofo admite no pargrafo 36 de Para alm de bem e mal nossa
superioridade de sua hiptese de mundo diante das outras, pois mesmo admitindo a crena na
vontade que faz efeito sobre vontade e se todo acontecer mecnico, na medida em que uma
fora ativa nele, no justamente fora de vontade, efeito de vontade (JGB/BM 36, KSA
5.55, trad. de RRTF); e a sequncia da argumentao levar, por fim, determinao de toda
ver que tal adversrio no retira de seu prprio pressuposto a consequncia necessria, ou
seja, a formulao da concepo do mundo como vontade de potncia. Mas temos de precisar
causalidade, a qual ser de fato frequentemente criticada por Nietzsche. Assim, mesmo
complexo. Nietzsche coloca em sua base suposies de diferentes estatutos: algumas delas
podem ser consideradas proposies de sua prpria filosofia, ao passo que a suposio da
Nietzsche, embora seja incorporada para desempenhar uma funo especfica no pargrafo 36
de Para alm de bem e mal. Mesmo que a crena na causalidade no seja uma condio
90
retiram de seu prprio pressuposto aquela consequncia necessria, ou seja, a elaborao da
hiptese da vontade de potncia. J a admisso das outras suposies isto , das suposies
potncia, mas de dizer tambm que sem a admisso daquelas proposies a formulao da
suposies, so necessrias, mas ainda assim hipotticas; e uma hiptese continua a ser uma
pargrafo 22 de Para alm de bem e mal evidenciam que Nietzsche no recebe como uma
tambm isto seja somente interpretao, diz aos fsicos, e sereis bastante zelosos para
fazer essa objeo? ora, tanto melhor! (JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). Contrria
pretensas explicaes e verdades absolutas soaria como uma grave objeo. As ltimas
palavras do mencionado pargrafo mostram tambm que o fato de Nietzsche considerar sua
concepo de mundo superior s demais interpretaes, na medida em que resulta de uma boa
arte de interpretao, no o conduz a pretender que ela seja mais do que uma interpretao: ao
hipottico concepo de mundo de Nietzsche no lhe soa como objeo: antes, o prprio
filsofo insiste em conferir esse estatuto a sua proposio. Com efeito, essa maneira de
proceder se encontra em consonncia com uma postura mais geral de Nietzsche, que consiste
91
no apenas em defender que as pretensas verdades e explicaes no so mais do que
hipteses:
Por isso Nietzsche designa o mecanicismo, por exemplo, como hiptese (Nachlass/FP
1885, 34[247], KSA 11.504), interpretao ou descrio de mundo, mas no como uma
explicao de mundo (JGB/BM 14, KSA 5.28 e Nachlass/FP 1885, 36[34], KSA 11.564-565)
Tomar uma hiptese como hiptese , para Nietzsche, um sinal de fora e, portanto, de
pstuma (Nachlass/FP 1884, 26[263], KSA 11.219), para em seguida advertir: Mas a espcie
de esprito existente at agora era ainda demasiadamente fraca e incerta de si mesma para
captar uma hiptese como hiptese e, no entanto, tom-la como regulativa necessitou da
hipteses, como navegando em mares abertos, em vez de crenas, eis a mais elevada medida
KSA 11.148).
baseado em hipteses no significa sugerir que as hipteses tm o mesmo valor: antes, aos
92
rigor de sua elaborao. Com efeito, ao designar uma determinada interpretao como
Nietzsche acrescenta: Por fim, ainda necessrio pr o intrprete atrs da interpretao? Isso
hiptese significa inveno e interpretao ou melhor, para dizer de modo mais preciso e
hiptese resultante de uma arte ruim de interpretao. Em outro texto, o pargrafo 192 de
Para alm de bem e mal (KSA 5.113), Nietzsche afirma que no incio de todo saber e
interpretao66.
por isso que, alm de reconhecer o carter hipottico de sua proposio, postura que
indica plenitude de fora, Nietzsche se esfora tambm para proceder com rigor metodolgico
***
apenas porque resulta de uma boa arte de interpretao e porque consiste numa hiptese
rigorosamente formulada, mas tambm porque se trata de uma concepo de mundo passvel
66
Veja-se ainda a referncia depreciativa de Nietzsche s hipteses de Paul Re (GM/GM Prefcio, 4 e 7,
KSA5.250-251 e 254).
93
de ser afirmada pelas estimativas de valor provenientes e fomentadoras de um modo de vida
ascendente.
Nietzsche,
uma concepo de mundo que prope a legalidade da natureza traduz um modo de valorar
apresenta como um intrprete capaz de, tendo em vista os mesmos fenmenos, decifrar
(JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF). No domnio moral, essa concepo de mundo s
pode ser afirmada por um modo senhorial de estimar valores, marcado no pela aspirao por
Nietzsche, segundo a qual cada potncia, a cada instante, tira sua ltima consequncia
(JGB/BM 22, KSA 5.37, trad. de RRTF), tem de ser negada pelo modo de atribuir valores
proveniente de uma espcie fraca de homens, que separa a fora das exteriorizaes da fora,
como se por trs do forte houvesse um substrato indiferente, ao qual fosse livre exteriorizar ou
seduzidos pela gramtica, os fracos postulam o sujeito como um substrato livre, separado e
autor da ao; desse modo, eles, os fracos, podem responsabilizar os fortes por exteriorizarem
sua fora e ao mesmo tempo podem interpretar sua prpria impotncia e sua prpria fraqueza
dar a ver seu conceito de moderno, quais virtudes lhe so proibidas ou permitidas: ou uma
poca possui as virtudes da vida ascendente e resiste s virtudes da vida declinante, ou uma
poca, equivalendo a uma vida declinante, necessita das virtudes de declnio e odeia tudo o
KSA 6.50). Na esfera dos valores morais, a maior oposio se d entre a moral crist, que
nega o mundo (Deus, alm, abnegao, meras negaes) , e a moral dos senhores,
que, sendo linguagem simblica da vida ascendente, da vontade de potncia como princpio
95
da vida, traduz uma afirmao do mundo (WA/CW, Eplogo, KSA 6.51), precisamente do
potncia, como vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA
nietzschiana de vida e de mundo como vontade de potncia, ao passo que o segundo, sua
negao. A concepo de mundo como vontade de potncia, por sua vez, superior
circularidade? Relevante, esse tema no escapou ao prprio filsofo. Deixa-se ver, por
exemplo, na seo 9 de Para alm de bem e mal, em que dirige a seguinte afirmao aos
estoicos: com todo seu amor pela verdade, vocs se foram de modo to duradouro, to
que vocs no podem mais v-la diferentemente. Em seguida, porm, a crtica direcionada
Mas esta uma antiga, eterna histria: o que ento ocorreu com os estoicos
ocorre ainda hoje, to logo uma filosofia comece a acreditar em si prpria.
Ela sempre cria o mundo conforme a sua imagem, ela no pode fazer
diferentemente; filosofia esse impulso tirnico mesmo, a mais espiritual
vontade de potncia, de criao do mundo, de causa prima. (JGB/BM 9,
KSA 5.22).
logo uma filosofia comece a acreditar em si prpria, ela sempre cria o mundo conforme a
96
sua imagem. E o filsofo sugere que isso se aplica inclusive a ele, na medida em que explica
at mesmo o tema da circularidade luz de sua prpria interpretao do mundo como vontade
de potncia: toda filosofia circular, criando o mundo sua prpria imagem, porque toda
pretensa acusao de que a concepo do mundo como vontade de potncia seria somente
interpretao no consiste efetivamente, aos olhos de Nietzsche, numa objeo; assim como,
portanto, a sua filosofia reconhece o seu carter interpretativo em vez de procurar dissimul-
lo talvez seja legtimo dizer que a filosofia de Nietzsche tambm se reconheceria como
circular, sem entender por isso uma objeo, em vez de tentar dissimular esse carter (o da
circularidade), que , conforme indica o pargrafo 9 de Para alm de bem e mal, constitutivo
encontra presa a sua perspectiva, a sua interpretao, a sua maneira de valorar, a partir das
superioridade de sua interpretao, de acordo com o critrio por ela engendrado. Porm, isso
no significa que, para alm da perspectiva do pensamento de Nietzsche, essa pretenso seja
necessariamente legtima67.
67
Que direito Nietzsche pode fazer valer, pergunta Mller-Lauter (1974, p. 56), para sua pretenso de que
sua interpretao da efetividade como antagonismo de interpretaes perspectivsticas seja mais do que uma
perspectiva meramente humana, seja at mesmo mais do que apenas a singular perspectiva do filsofo
Nietzsche? No h, parece-nos, direito para que essa pretenso seja mais do que uma mera pretenso. O
perspectivismo de Nietzsche parece indicar que uma perspectiva singular no pode ser mais do que : at pode
pretend-lo, mas isso no significa que efetivamente seja. A constatao do carter perspectivstico no implica a
superao desse carter perspectivstico. Uma perspectiva at pode olhar para outras ou tentar ocupar o lugar de
outras, mas sempre far isso a partir de sua prpria perspectiva. Por outro lado, dado o carter dinmico e
limitado das perspectivas, concordamos com a afirmao de Mller-Lauter (Ibid., p. 58) segundo a qual a
interpretao das interpretaes de Nietzsche no se entende a si prpria como uma filosofia absoluta, de modo
que a interpretao de Nietzsche inclui em si mesma, como um aspecto essencial, a possibilidade, sim, a
necessidade de sua prpria ampliao e, com isso, modificao (Ibid., p. 59).
97
CONCLUSO
compreendido, o perspectivismo traz consigo a pergunta pelo relativismo radical, que pode
vontade de vida de vida ascendente (Nachlass/FP 1888, 16[86], KSA 13.516) para
outro lado, Nietzsche pretende a superioridade de sua concepo de efetividade, que resulta de
uma boa arte de interpretao, que consiste numa hiptese rigorosamente formulada e que,
por fim, apresenta-se como uma concepo de mundo afirmvel pelas estimativas de valor
98
provenientes e fomentadoras de um modo de vida ascendente. Com isso, Nietzsche no
de sua prpria interpretao, indicando uma vez mais que no sustentaria um relativismo
valor, Nietzsche indica que toda perspectiva e toda interpretao atribuem valores e
equivalncia.
um critrio oferece elementos para determinar o prprio estatuto do critrio, qualquer que seja
hierarquia estabelecida por tal critrio tambm ser relativa a uma determinada interpretao
99
perspectivstica. Essa relatividade de todo e qualquer critrio implica, portanto, um certo
perspectivismo, afirma que os valores no so absolutos nem dados de antemo para serem
mesma direo que o perspectivismo, da relatividade das interpretaes no conclui por sua
procuram impor-se umas s outras. Pode-se, por fim, considerar um relativismo que, de
Desse modo, procuramos defender que, embora o exame de seus textos indique que
seu pensamento. Em primeiro lugar, porque nem todo relativismo afirma a equivalncia de
100
Mas resta ainda uma considerao que, apesar de filosoficamente menos importante e
frutfera, no pode deixar de ser feita. Essa observao nos permite indicar que, se a filosofia
interpretaes, por outro lado ela deixa aberta a possibilidade para um tal relativismo.
uma determinada interpretao perspectivstica sem dvida uma interpretao que o filsofo
avalia como superior s demais, mas ainda assim uma interpretao e no uma verdade
interpretaes deixa, por outro lado, aberta a possibilidade para a existncia de outras
mesmos argumentos que o Scrates de Plato mobiliza contra Protgoras em Teeteto. Toda
apresenta sua concepo de efetividade como uma interpretao e no como uma verdade
incondicional, isso no significa que ele admita que uma outra concepo de efetividade,
vlida para uma outra perspectiva determinada e contrria a sua, possa contradizer e refutar a
efetividade de Nietzsche, vlida para ele, no pode contradizer e refutar a outra concepo de
efetividade enquanto vlida para a perspectiva que a engendra. Portanto, o que vale para
Nietzsche a sua concepo de efetividade, que no professa o relativismo radical, mas que,
101
por outro lado, apresenta-se como uma interpretao e no como uma verdade incondicional,
de modo que ela se relativiza e, por conseguinte, deixa aberta a possibilidade para uma outra
concepo de efetividade que possa valer para a perspectiva que a engendra. Considerada,
inconcebvel.
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