Librandi - Escutar A Escrita

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Escutar a escrita: por uma teoria literária ameríndia

Article in O Eixo e a Roda Revista de Literatura Brasileira · December 2012


DOI: 10.17851/2358-9787.21.2.179-202

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Marilia Librandi
Princeton University
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Escutar a escrita: por uma
teoria literária ameríndia1
Marília Librandi-Rocha
Universidade de Stanford

Resumo: Este texto estabelece pontes entre a teoria da literatura e a etno-


antropologia contemporânea, e propõe repensar a noção de ficção a partir de
conceitos do mundo ameríndio. Ilustra a discussão uma análise da “lição de
escritura”, de Tristes trópicos, relida não como farsa, mas como força e arte.
Palavras-chave: Claude Lévi-Strauss, Nambikwaras, Eduardo Viveiros de
Castro.

Prova de que também meios insuficientes e


mesmo infantis podem servir para a salvação.
Kafka. “O Silêncio das Sereias”.

Este texto procura ler um certo silêncio, dizê-lo em palavras e talvez,


principalmente, engendrar a possibilidade de ouvi-lo. Como indaga Jean-Luc Nancy,

1. Esse texto é o resultado e a versão revista em português de duas


palestras: “Mimesis and Auditivity”, apresentada na Universidade de
Queensland, Austrália, em novembro de 2011, por ocasião de um
seminário dedicado à teoria da mimesis de Luiz Costa Lima; e “Thinking
about Literature as a Native”, palestra apresentada na Universidade de
Stanford em fevereiro de 2012, como parte da série “How I think about
Literature”.

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em À L’écoute, seria o pensamento ocidental capaz de ouvir ou, como ele propõe,
seria preciso inventar uma ontologia da escuta baseada na relação reverberante de
nosso corpo com seu entorno? Direção semelhante segue Michelle Boulous Walker
em seu livro Philosophy and the maternal body: reading silence. Como diz o
título de seu primeiro capítulo, “Speaking Silence”, o silêncio que eu gostaria de
ler (e de ouvir) é precisamente um silêncio falante, e foi produzido por um chefe
indígena Nambikwara.
Em 1938, esse índio desenhou algumas linhas em um pedaço de
papel diante do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Essas linhas reproduziam o gesto
da escrita sem, no entanto, gerarem um texto: eram linhas tortas e sinuosas
rabiscadas no papel. Como se sabe, Lévi-Strauss interpretou-as magnificamente
em seu capítulo, “Lição de Escritura”, em Tristes trópicos, publicado em 1955.
Doze anos depois, Jacques Derrida contrainterpretou violentamente a interpretação
de Lévi-Strauss em De la grammatologie, publicado em 1967. Tão violentamente,
que, em sua carta-resposta, Lévi-Strauss diz que Derrida o contestara com “a
2
delicadeza de um urso”. No entanto, apesar da grande diferença entre eles, ambos
os autores interpretaram essas linhas para criticar sua cultura de origem. Usando
distintas estratégias, o objetivo era criticar o domínio colonial europeu, no caso de
Lévi-Strauss, e a metafísica europeia dominante, no caso de Derrida. Mas o que
acontece com o ponto de vista Nambikwara sobre sua própria escrita? O que essa
lição nos diz sob o ponto de vista indígena? De certo modo, é possivel dizer que
nem Lévi-Strauss nem Derrida leram o traço do índio; nenhum dos dois leu o
silêncio desses traços como um contratexto em relação ao texto ocidental, e aquelas
linhas no papel continuam a ser um enigma, uma espécie de hieróglifo Nambikwara
virtual, já que essa escrita não foi preservada como os outros objetos indígenas
levados por Lévi-Strauss para o Musée de L’Homme em Paris. Como não há vestígio
material desses traços, apenas podemos saber deles a partir do modo como Lévi-
Strauss os analisa em seu ensaio, do modo como Derrida o contradiz, e do modo
como continuam a reverberar como questão em aberto.
Sabemos que o estruturalismo está ligado ao encontro de Lévi-Strauss
com os Nambikwaras, sua mais longa experiência de campo, de junho a setembro

2. Antes da publicação do livro, Derrida publicara trechos de sua análise


na revista Cahiers pour l’Analyse em 1966. É para essa revista que Lévi-
Strauss envia sua carta-resposta. Cf. LEVI-STRAUSS. http://
cahiers.kingston.ac.uk/vol08/cpa8.5.levi-strauss.html.

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de 1938, que lhe fornece o fundamento teórico de seu primeiro livro, As estruturas
elementares do parentesco, além de artigos anteriores, e de sua tese de 1948, La
3
vie familiale et sociale des indiens Nambikwara. Sabemos também que o pós-
estruturalismo derridiano vai se estabelecer a partir de uma revisão radical desse
mesmo encontro entre o antropólogo e o indígena Nambikwara. A questão que
permanece em aberto em nosso momento pós-estruturalista e pós-
desconstrucionista, o que ainda está para ser dito e pensado é, pois, o ponto de
vista indígena sobre essas linhas. A possibilidade de pensar filosoficamente esse
impensado tem finalmente começado a tornar-se possível através do trabalho de
revisão e recuperação do pensamento de Lévi-Strauss aliado à emergência dos
conceitos indígenas na obra do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e de outros
4
etnólogos que passaram a expor para nós o pensamento ameríndio.
Inspirada nessa nova antropologia e relacionando-a à teoria da
literatura, em especial à proposta por Luiz Costa Lima em sua revisão do conceito
de mímesis, proponho reler as linhas Nambikwaras não como farsa, mas como
força, como uma lição de escritura artística. Minha hipótese é que as linhas
Nambikwaras, tortas e sinuosas, podem ser lidas como o grau zero do jogo ficcional,
e podem revelar a estrutura daquilo que nossa cultura chama ficção e, por extensão,
arte. Nessa leitura, então, o antropólogo estrutural não seria (apenas) Lévi-Strauss,
mas também o próprio chefe Nambikwara.
A lição de escritura é, assim, a cena de origem de meu texto, e a
cena de origem (de um livro em planejamento) que vai me permitir pensar a
literatura brasileira e latino-americana a partir dela como sua variação. Comentando
Lévi-Strauss, diz Derrida: “Mas a cena não era a cena de origem, apenas a de
5
imitação de escritura”. Proponho, porém, repensar a cena enquanto cena de
origem, mas não da imitação e sim do jogo mimético, baseada na noção de mímesis
como “produção de diferença”, proposta por Luiz Costa Lima, e na noção de
“economia simbólica da alteridade”, proposta por Eduardo Viveiros de Castro.

3. Ver SOUZA e FAUSTO. Reconquistando o campo perdido, p. 90-91.


4. Apesar de não ser o foco de meu estudo, outra contribuição fundamental
para a compreensão do ponto de vista indígena vem dos estudos sobre
as práticas de escritas nas Américas, como o trabalho de Gordon
Brotherston e sua proposta de uma “gramatologia do Novo Mundo”, à
qual farei referência mais adiante.

5. DERRIDA. Gramatologia, p. 157.

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Importante assinalar que Viveiros de Castro foi aluno de Costa Lima, que o apresentou
à obra de Lévi-Strauss, por sua vez presença fundamental em sua tese Estruturalismo
e teoria da literatura, de 1970. O que estou fazendo é um retorno a essa fonte:
Lévi-Strauss, promovendo um reencontro entre Costa Lima e Viveiros de Castro
como nomes de duas disciplinas em contato: teoria da literatura e antropologia.
Meu intuito é avançar por linhas ainda a demarcar, e que se concentram em duas
direções principais: refletir sobre as bases teóricas para a proposta de uma
“antropologia da ficção”; e desenvolver o conceito “escritas de ouvido”, que,
partindo da intersecção escrita-oralidade, visa atingir o núcleo de uma mímesis
6
que parte não do olho, nem da mão, nem da boca, mas da escuta na escrita.
Proponho então o seguinte caminho para esse texto, que ensaia
uma primeira aproximação ao tema: 1) rever a cena, o mito de origem da “lição de
escritura”, onde ocorreu e quais suas circunstâncias; 2) relembrar a interpretação
proposta por Lévi-Strauss e, muito brevemente, a contrainterpretacão de Derrida;
e 3) reinterpretar a cena entre Lévi-Strauss e o índio a partir da teoria da mímesis
e do pensamento ameríndio. Antes, porém, importa saber o que é, ou como
ocupar um ponto de vista nativo. Para isso, vou sugerir alguns pontos possíveis
para uma aproximação entre a teoria literária e antropologia.

Pensando a literatura como nativa

Levando em conta os estudos sobre a presença dos indígenas na


literatura brasileira e latino-americana, minha pesquisa toma uma direção paralela,
mas distinta: busco repensar a literatura de matriz ocidental a partir de uma teoria
não ocidental, ou melhor, busco repensar a literatura não indígena com um
pensamento indígena, produzindo uma aproximação ressoante entre ambos, e
esperando que algo brilhe a partir desse contato.
Tento assim de certo modo estranhar nosso modo de pensar a
literatura, propondo revê-lo sob a perspectiva nativa, ou seja, incorporando o
pensamento ameríndio, e, a partir do que aprendo com esse pensar, sugerir a
possibilidade de tornarmo-nos nativos da literatura e seus mundos, como se

6. Sobre a noção de “antropologia da ficção”, ver o primeiro capítulo de


meu livro Maranhão-Manhattan. Sobre a noção de “escritas de ouvido”,
ver Librandi-Rocha. Writing by ear.

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fosse possível passarmos para “o lado de lá” a cada ato de leitura, assim como faz
o etnógrafo quando em seu trabalho de campo. Ocupar o ponto de vista nativo
significa, assim, a situação paradoxal de tornar-se estrangeiro em relação ao seu
próprio pensamento, estranhando-o, e ao mesmo tempo tornar-se nativo de um
pensamento estrangeiro, borrando os limites entre ambos. Para tornar esse exercício
possível, começo a perceber que é preciso alterar o modo de escrita, o que significa
incorporar na crítica literária uma certa dose de ficção, e praticar aquilo que
7
antropólogos australianos vêm chamando de “fictocriticism”. Esse movimento é
necessário não por querer emular a ficção, mas para poder avançar além ou aquém
do que a razão nos permite pensar, e conseguir assim, de certo modo, descontrolar
o controle do imaginário.
Assim, se, antropólogica e antropofagicamente pensar como nativo
significa ocupar um ponto de vista estrangeiro ao nosso próprio pensamento, a
antropologia que vem se destacando hoje é aquela que está produzindo a
descolonização de seu próprio pensar e mergulhando em outro regime de conceitos.
Essa nova direção proposta pelo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, o americano
Roy Wagner e a britânica Marylin Strathern, entre os nomes mais salientes, está
propondo uma equivalência epistemológica entre os mundos que Marshall Sahlins
bem denominou como the West and the rest para denunciar seu desequilíbrio. O
que essa nova antropologia busca é uma equivalência baseada na afirmação de
uma radical diferença. O pensamento ameríndio ou melanésio é distinto do nosso,
dizem eles, não porque tenham distintos pontos de vista sobre os mesmos objetos,
mas porque os mundos que eles pensam são outros. Assim, trata-se de descrever
e inscrever a diferença desse pensamento. Como diz Strathern, não é possível
falar do outro com o seu código, mas apenas através do nosso. É possível, porém,
tentar que o outro fale através de nós, atravessando-nos, criando brechas e inversões,
“obviações” em nosso pensar-dizer, interrompendo-nos, e fazendo aparecer coisas
8
que nós não somos capazes de ver ou dizer. Para isso, é preciso sofrer uma
transformação: é preciso que um pensamento outro fale pela nossa boca a partir
de um experimento antropológico ficcional, ou, o que é ainda mais preciso, a
partir de uma filosofia produzida pela antropologia. Esse ponto é importante e
será retomado adiante quando falarmos da diferença de leituras entre o antropólogo

7. Termo usado para definir o estilo dos textos e do pensamento de Michael


Taussig assim como o de seu colega Stephen Muecke.

8. Cf. STRATHERN. No limite de uma certa linguagem.

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Lévi-Strauss e o filósofo Derrida, e também quando realçarmos qual tipo de filosofia


se pode depreender de uma teoria literária renovada pelo pensamento ameríndio.
O que essa nova teorizacao antropológica extremamente complexa está propondo,
então, é um equilibrio epistemológico entre o pensamento ocidental e pensamentos
de povos estranhos a essa tradição, produzindo um contato e uma comparação
baseados em suas diferenças e não em busca de suas semelhanças. Como diz
repetidamente em seus textos Viveiros de Castro, a questão não é ter um ponto
de vista distinto sobre as mesmas coisas, mas pensar com um pensamento diferente
para compreender outras potencialidades das coisas e experimentar outras
imaginações.

Experimentar outras imaginações é o que a ficção produz


continuamente como possibilidade e exercício. No entanto, por que, apesar de
nossos melhores teóricos, os estudos literários continuam a ocupar uma posição
menor (cada vez mais desqualificada e em vias de desaparecimento) em relação
a outros campos de trabalho e de atuação? Por que é tão difícil deixar de pensar a
ficção como um segundo produto e dar-lhe direito de existência plena? Por que a
literatura de ficção continua menosprezada mesmo quando louvada?
Talvez, o pensamento corrente e dominante no West não nos permita
pensar a ficção, que seria similar ao rest. É em relação a esse ponto que sugiro uma
hipótese que me pareceu surpreendente: talvez haja uma espécie de
incompossibilidade entre nossos artefatos artísticos e nossas epistemologia,
cosmologia e ontologia. Se essa hipótese for válida, heuristicamente, por que não
supor que outras diferentes epistemologias, cosmologias e ontologias possam ser
mais afins aos nossos textos literários?
De modo geral e redutor, o que nossa “pop-filosofia moderna”, como
9
diz Viveiros de Castro, aquela que instaurou os grandes divisores natureza/cultura,
física/metafísica, texto/contexto, nos diz? Que nossos textos literários, nossos objetos
ficcionais, são muito bons, excelentes mesmo, mas de pouca utilidade, pois, afinal,
criam mundos que não existem, sendo “apenas” representação imaginária. Como

9. Ver VIVEIROS DE CASTRO, Metafisicas canibales.

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seres inteligentes e racionais, sabemos que não há nenhum corpo ali, signos são
abstrações, e o mundo está alhures. Seria infantil mantermo-nos no modo deceptivo.
Sentimos, mas é assim: a vida é dura, e o resto é literatura. Parece, assim, que a
literatura ocupa e é pensada como lugar do excesso: ou é um luxo (excesso
entendido como ócio) ou, seguindo a imagem do poema concretista, é um lixo
(excesso descartável em relação ao que é tido como útil). A raiz desse menosprezo
(ou a oscilação entre a mais-valia e a menos-valia) vem de que em nosso pensar
habitual funciona assim: nós existimos, os personagens, não; nós somos seres de carne
e osso, eles são seres de papel; nós pensamos, eles são imaginários; nós agimos, eles
são nossa projeção; nós temos e fazemos história, eles são estória de “mentira”.
Ocorre, porém, que há um pensamento diferente no mundo
amazônico e ameríndio. Um pensamento que advoga o perspectivismo (que não
é o mesmo que relativismo) e o multinaturalismo (reverso do multiculturalismo), e
que é mais afim ao mundo imaginário da ficção porque mais próximo do que
sonha a nossa melhor filosofia. Assim, se a “insurreição e alteração começam pelo
10
conceito”, diria que no campo dos estudos literários é o conceito de literatura ou
nosso modo de pensar a ficção que deve ser continuamente alterado e repensado,
é em busca dessa renovação que nos últimos anos venho tentando repensar o
campo da teoria da literatura a partir da antropologia ameríndia, pois o que eu
aprendo com o que os antropólogos me ensinam a respeito do pensamento
ameríndio e de seus modos de vida e de invenção, seus conceitos e sua cosmologia,
é muito mais afim a uma reconsideração do ficcional e vem juntar-se aos nossos
melhores teóricos do literário. Assim, o que Viveiros de Castro descreve como uma
“ontologia política do sensível” ou um “perspectivismo ontológico” é o que estou
querendo transpor para o campo da teoria da literatura. A cosmopolítica indígena,
sua filosofia, que passamos a conhecer através dessa “construção experimental”, é
o diferencial que precisamos para nos reenergizar e renovar. Por isso, faço minhas
as suas palavras e as aplico e desvio para o campo literário. Para testar a validade
dessa transferência, ou apropriação de conceitos antropológico-ameríndios, para o
campo da teoria literária, começo propondo algumas analogias.
Pela primeira, diria que os textos literários e os grupos indígenas
ocuparam dentro da tradição ocidental uma posição similar. É possível situá-los

10. VIVEIROS DE CASTRO. “Transformação” na antropologia, transformação


da “antropologia”. p. 7. In: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/
n58pdf.html.

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como análogos, não obviamente porque o indígena “não existiria” (apesar de seu
11
constante silenciamento, etnocídio e “epistemocídio” ), mas porque ambos, os
coletivos indígenas e os coletivos de ficção foram tidos ou como adorno e exotismo
ou como marginais em relação a um saber que vem de fora. Fora da ficção para
dizer o que a ficção é ou não é, ou fora dos grupos indígenas para descrever o que
eles faziam, mas provavelmente não sabiam. Ambos teriam, assim, um estatuto
refém do que está fora (“referente”, “realidade” ou “verdade”), e do que vem de
fora (o colonizador). Desse modo, se essa nova antropologia propõe radicalizar
12
uma equivalência entre o antropólogo e o nativo, proponho radicalizar a
equivalência entre os leitores (que estão fora da literatura) e os personagens (que
estão dentro da ficção) como parte de um experimento ficto-crítico. Radicalizar
uma equivalência entre nós e “eles” permite-nos pensar a ficção como uma outra
cultura dentro da nossa com a qual estabelecemos relação e que devemos respeitar
na sua diferença.
Retomando o par nativo-estrangeiro, é como se o texto de ficcão
fosse estrangeiro a nós que o criamos e que o lemos. Sugiro, pois, ler ao pé da letra
13
a ideia de Proust retomada por Deleuze de que a literatura é escrita em uma
língua estrangeira, assim como a ideia-chave da primeira teoria da literatura, a do
Formalismo russo, do discurso literário como ostranenie, estranhamento. Busco
então radicalizar essas noções, e sugerir que nos transformemos em etnólogos de
nossa própria ficção. Produzidas por nós, as vozes poéticas e os personagens são
nossos estranhos ou o estranho que há em nós. Eles são nossas potencialidades,
que visitamos e inventamos como quem é capaz de habitar e sonhar em uma
língua estrangeira.
Se, como diz Roy Wagner, “toda compreensão de uma outra cultura
14
é um experimento com a nossa própria”, sugiro que a invencão da ficção é um
experimento com nossa própria cultura como outra. Pensar a ficção como uma
outra cultura obriga-nos a retirar a ficção da posição secundária e subalterna, e
deixarmos de ser seus colonizadores (sempre explicando a literatura em função

11. Expressão de Bob Scholte apud VIVEIROS DE CASTRO. O nativo


relativo, p. 116.

12. VIVEIROS DE CASTRO. O nativo relativo, p. 126.


13. DELEUZE. Crítica e clínica, p. 9.
14. WAGNER, 1981, 12 apud VIVEIROS DE CASTRO. O nativo relativo, p. 124.

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do que ela diz sobre nós mesmos e nossa realidade) para passarmos a ser seus
interlocutores (multiplicando a ficção e seus mundos, e respeitando sua diferença
para aprender com ela e nos descolonizarmos de nós mesmos). Essa é a estrutura
da filosofia proposta por Viveiros de Castro: considerar os índios não como objetos
mas como interlocutores, para que um efetivo diálogo possa ocorrer (ou, retomando
o que se disse acima, para que se crie uma filosofia capaz de ouvir): “Interlocutor
dialógico mas também contrário antilógico, o pensamento ameríndio está disposto
15
em uma relação de tensão constitutiva com sua descrição antropológica”. Penso
que essa exata definição pode ser transposta para a relação da teoria literária com
o mundo ficcional. Nesse último caso, é preciso indagar e tentar responder: se
personagem não é gente, como estabelecer com eles uma relação de interlocução?

Mundos paralelos

Pelo conceito de “perspectivismo ameríndio” aprendemos que não


se trata de traduzir distintas visões de mundo, mas compreender a possibilidade
de distintos mundos coexistentes. Para o campo dos estudos literários, essa
reformulação implica um golpe de mestre na dicotomia representação-realidade
levando-nos a recriar nossa relação com a ficção como um mundo inventado,
ontologicamente pensável. Nesse caso, seria preciso investigar como o
perspectivismo ameríndio pode se unir ao perspectivismo teorizado por W. Iser
16
em relação à ficção. A partir da autopoiesis da criação de mundos possíveis, o
perspectivismo ficcional opera a duplicação de nosso mundo através do jogo iniciado
pela partícula do “como se”, que nos distancia e nos desobriga dos condicionantes
habituais, de modo a que possamos aceder a uma visão diferenciada, a uma espécie
de iluminação que nos faz rever a vida com olhos livres. No caso ameríndio, o
perspectivismo não significa uma representação mental, um distinto ponto de
vista sobre uma mesma realidade, mas a existência de distintas realidades a partir
das quais o ponto de vista, sempre humano, demasiado humano, se situa.
O mundo ameríndio, traduz Viveiros de Castro, é um mundo unificado
no qual a semiótica não está separada no sistema literal-metafórico, mas no qual

15. VIVEIROS DE CASTRO. “Transformação” na antropologia, transformação


da “antropologia”, p. 7. In: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/
n58pdf.html.

16. Cf. ISER. O fictício e o imaginário.

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todo ser está relacionado a outros seres em uma “economia simbólica generalizada”
17
baseada no processo de personificação. Nesse mundo unificado, há múltiplos
mundos simultaneamente possíveis, nos quais cada ser, plantas, animais,
personagens, espíritos, mortos, deuses, estão simultaneamente presentes e são
agentes, porque cada um é pessoa no seu próprio domínio. Trata-se de um mundo
18
de “humanidade imanente”. Cada ser vive em seu próprio coletivo, mas nem
por isso sua província (ou o que se chama real) pode ser considerada a única
verdadeira; os múltiplos mundos ecoam; basta praticar a difícil arte (para poucos) de
saber ouvi-los e acessá-los. Leitores de literatura, reconhecemo-nos nesse multiverso
ameríndio. Quando lemos um poema ou um romance mergulhamos em um mundo
no qual a divisão real/fictício deixa de atuar, mesmo que apenas durante o tempo de
leitura, como se transitássemos em mundos distintos, mas unificados.
Essas ideias são possíveis de serem pensadas porque sociedades
ameríndias baseiam-se em uma economia do dom. Distinto de nosso mundo, no
qual coisas e pessoas assumem a forma de objetos, no mundo da troca de dons
19
(exchange of gifts), coisas e pessoas assumem a forma de pessoas. Para conhecer
é preciso considerar nossos “objetos” de pensamento como pessoas. Se não se
personifica, diz Viveiros de Castro, não se entende nada, não se estabelece uma
relação de interlocução, mas de domínio. Como diz Strathern: “O próprio ato de
20
interpretação pressupõe a personificação do que está sendo interpretado”.
Nossos escritores sabem disso. João Guimarães Rosa disse duas coisas
sobre sua obra-prima, Grande sertão: veredas. Uma: “Riobaldo é meu irmão”. Duas:
21
“literatura tem de ser vida”. E se levarmos a sério, como um programa intelectual,
a afirmação de Guimarães Rosa: “literatura tem de ser vida”? Se levarmos essa
afirmação a sério (e também com humor), o que acontece? Acontece que outras
perguntas começam a aparecer, perguntas que não podemos fazer em nosso regime
habitual de pensamento, porque seriam e são classificadas como loucas e
incompetentes. Por exemplo: que tipo de vida possui um personagem de ficção?

17. VIVEIROS DE CASTRO. The gift and the given, p. 246.

18. VIVEIROS DE CASTRO. The gift and the given, p. 250-51.

19. VIVEIROS DE CASTRO. The gift and the given, p. 246.

20. STRATHERN apud VIVEIROS DE CASTRO. The gift and the given,
p. 249 (tradução minha).

21. ROSA. Diálogo com Guimarães Rosa, p. 67.

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Uma vida imaginária configurada no texto? Certo. Mas o que isso quer dizer? É
verdade que a ficção produz seres que não morrem. Parafraseando Barthes, não há
razão para que um dia a gente pare de falar de Romeu e Julieta, de Madame
Bovary, de Riobaldo, ou de Borges, personagem e autor de si mesmo enquanto
outros. É verdade também que os personagens não têm como alterar seu destino
já escrito, nem as palavras pronunciadas, mas nós nos relacionamos com eles, e
nessa relação eles e nós nos alteramos mutuamente.
Como diz em um texto incrivelmente importante a pesquisadora
Wai Chee Dimock, o texto literário, diferentemente de outros textos, muda com
seus leitores, o que a leva a conceituar o discurso literário como uma “ontologia
instável”. Basta lembrar que o Quijote de Borges/Pierre Menard não é o mesmo
Quijote de Cervantes, apesar de o texto ser idêntico. Por quê? Porque o texto
muda com o tempo e reverbera a inscrição histórica de quem o está lendo. Assim
também ocorre quando lemos e relemos grandes textos e poemas, pois os
personagens não mudam de sina, mas a cada releitura aparecem diversos da leitura
anterior. Por quê? Talvez seja preciso redescrever essa impressão no âmbito de
22
uma ontologia do ficcional como um mundo de presenças latentes.

A literatura como vivência

Isso me dá a liberdade inventiva de pensar a literatura como vivência.


Ler a literatura assim é um ato político de intervenção: é ter acesso e ser acessado
por outras vidas. Posso então sugerir que ler literalmente é, paradoxalmente, ler
contra a letra, colocar a letra do avesso, como a bela imagem de Robert Harrison
em seu livro Forests. As pedras, diz ele, têm uma dupla vida. As pessoas da cidade
veem apenas a parte visível a ser usada como material para construção de prédios
(ou de hidroelétricas como as que querem acabar com os rios e os povos da
Amazônia). Mas os provincianos, diz Harrison (e os indígenas, os ribeirinhos e
outros que vivem às margens das cidades), sabem que é preciso virar as pedras
para cima. Só então veremos a vida de insetos, larvas e formigas que se escondem
por baixo delas. Proponho que ler literatura como vida funciona assim também: a

22. Penso nos conceitos de “presença” e de “latência” como vêm sendo


elaborados por H. U. Gumbrecht. Ver seus livros Presence e Latenz. No
texto “Nuvens Invisíveis”, analiso o mundo de nuances e de latências
expresso no conto “Nenhum, Nenhuma”, de J. Guimarães Rosa.

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cada vez que viramos as páginas do livro, vemos vida pulsante ali dentro. E quando
lemos ajudamos essas vidas literárias a emergirem. É o mundo dos avessos.

O corpo da ficção

Nesse caso, para entender o ponto de vista de outrem é preciso


assumir seu corpo, “encorporá-lo”, pois o conceito de corpo ameríndio é um conceito
não biológico, mas metamórfico, como uma roupa que se veste e se desveste, a
23
depender da situação e dos encontros passíveis de alteração. Essa mesma noção
é expressa por Clarice Lispector no jogo ficcional que se estabelece entre ela e o
narrador Rodrigo S. M., seu duplo: “Nestes últimos três dias, sozinho, sem
personagens, despersonalizo-me e tiro-me de mim como quem tira uma roupa.
24
Despersonalizo-me a ponto de adormecer”. Se o corpo ameríndio é uma veste
transformacional, parte de uma cosmologia na qual um jaguar pode se transformar
em meu cunhado e vice-versa, o mundo da ficção também é, como definiu Karlheinz
Stierle, um mundo marcado pela metamorfose, outro conceito da teoria da literatura
a ser repotencializado pelo pensamento ameríndio. Outros conceitos do campo
literário a serem repensados incluem as noções de dialogismo e polifonia
bakhtinianos, e o conceito de estranhamento. Pois, a partir do momento em que o
pensamento ameríndio é levado a sério, e suas concepções traduzidas em conceitos
epistemologicamente tão válidos como noções da filosofia ocidental, podemos
adotar seus conceitos para repensar o mundo da ficção. Assim, se no mundo
ameríndio considera-se que todos (ou quase todos) são humanos em corpos
distintos, isso nos permite indagar que tipo de corpo tem um personagem de
25
ficção? Ou qual corporalidade envolve nossa relação com a ficção e a poesia? Vou
propor o seguinte. Para falar e ser ouvido, um personagem na página precisa do
corpo de seus leitores para interagir, para criar uma comunidade, de modo que
esse ser sem agenciamento individual possa agir, e sua voz possa ser ouvida. É
assim que, se a antropologia é filosofia com pessoas incluídas (“anthropology is
26
philosophy with the people in”, no original de Tim Ingold ), sugiro que a teoria

23. Ver VIVEIROS DE CASTRO, The gift and the given.

24. LISPECTOR. A hora da estrela, p. 80-81.

25. Agradeço essas questões sugeridas por Roberto Zular.

26. INGOLD apud VIVEIROS DE CASTRO. O nativo relativo, p. 127.

190
Belo Horizonte, p. 179-202

27
da literatura é filosofia com vida reverberando entre nós (leitores e textos).
Estabelecidas essas analogias entre teoria, ficção e antropologia, passo então a ler
o traço Nambikwara como uma inscrição que nos permite ver possibilidades latentes
em nossa relação com o texto literário.

A cena

Relembro rapidamente o episódio. Trata-se de uma cena de troca:


produtos da “civilização” seriam trocados por artefatos indígenas. Lévi-Strauss e o
chefe Nambikwara estão ambos diante de setenta e cinco índios em uma situação
tensa: “Diversos indígenas pareciam jamais ter visto um branco e sua acolhida
rebarbativa, o nervosismo manifesto do chefe, sugeriam que ele os trouxera um
pouco à força”. É então que ocorre um “extraordinário incidente”. Antes de relatá-
lo, Lévi-Strauss explica que, comparados aos Caduveo e aos Bororo, os Nambikwara
parecem “uma infância da humanidade” (p. 290), pois, diferente das outras tribos,
esse grupo não conhece a cerâmica; eles não têm canoas, nem dormem em rede;
não sabem escrever nem tampouco desenham. No entanto, antes de começarem
a troca de presentes, o chefe pede um bloco de papel, e quando Lévi-Strauss lhe
pergunta alguma coisa:

ele não me comunica verbalmente as informações que lhe peço, mas


traça sobre o seu papel linhas sinuosas e mas apresenta, como se ali
devesse ler a sua resposta. (…) está tacitamente entendido entre nós que
os seus riscos possuem um sentido que eu finjo decifrar; o comentário
verbal segue-se quase imediatamente, e me dispensa de pedir os
esclarecimentos necessários.

Quando todos os índios estão reunidos para a troca dos presentes, a


mesma cena se repete (como se a anterior fosse um ensaio antes da grande
encenação diante dos espectadores):

27. Veja-se a tradução com o comentário de Viveiros de Castro sobre a


definição de Ingold: “Uma filosofia com outros povos dentro, então: a
possibilidade de uma atividade filosófica que mantenha uma relação com
a não-filosofia – a vida – de outros povos do planeta, além de com a
nossa própria”. O nativo relativo, p. 127.

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Ora, mal havia ele reunido todo o seu pessoal, tirou dum cesto um papel
coberto de linhas tortas, que fingiu ler, e onde procurava, com uma
hesitação afetada, a lista dos objetos que eu devia dar em troca dos
presentes oferecidos…

Como uma cena teatral e performática, o chefe “finge ler”, e Lévi-Strauss classifica
a cena como uma “comédia”:

Essa comédia se prolongou durante 2 horas. Que esperava ele? Enganar-


se a si mesmo, talvez; mas, antes, surpreender os companheiros, persuadi-
los de que as mercadorias passavam por seu intermédio, que ele obtivera
a aliança do branco e participava dos seus segredos.

O que está em jogo nessa cena? Como se percebe, aparentemente


o chefe indígena age como um trickster tropical nos tristes trópicos fingindo que
lê e escreve algo inteligível para mostrar que domina o conhecimento e a linguagem
ocidental ao desenhar linhas tortas no papel. Lévi-Strauss não recusa, mas aceita
esse jogo que irá pôr em questão a instituição da escrita. Por quê? Estranhando seu
código pelo afastamento cômico produzido pelo falso texto, Lévi-Strauss vai ler o
engano dos traços indígenas no papel como revelando o engano maior causado
pela escrita que escraviza e faz com que impérios se sustentem: “Não se tratava
de conhecer, de reter ou de compreender, mas de aumentar o prestígio e a
autoridade de um indivíduo – ou de uma função – à custa de outrem” – era isso
que o “indígena ainda na idade da pedra adivinhara”. O intuito da argumentação é
mostrar que os traços do indígena no papel invertem a relação de aprendizado.
Quem aprende a lição de escrita é ele, Lévi-Strauss, e sua intenção é destruir o
argumento da superioridade da civilização do Ocidente e da escrita sobre esses
indígenas “da idade da pedra”.
Lévi-Strauss interpreta a cena como revelação de uma função (oculta)
da linguagem escrita: a dominação intensiva e por longos períodos de tempo de
um grupo sobre outro, a sujeição à lei e ao Estado, a manutenção de escravos e a
proletarização. Essa seria a função primeira da escrita que o gesto do índio revelaria.
As outras funções, a função de produzir e de armazenar conhecimento, a função
de planejar o presente e o futuro, e a função de produzir prazer estético seriam
secundárias em relação a essa função primeira, podendo muitas vezes serem usadas
para reforçar (e não para criticar) a função primeira da escrita. Escrever, diz Lévi-
Strauss, “parece ter favorecido mais a exploração de seres humanos do que sua

192
Belo Horizonte, p. 179-202

iluminação intelectual.” E continua: “Se minha hipótese for exata, é preciso admitir
que a função primária da comunicação escrita é facilitar a servidão”.
O uso do termo “função” por Lévi-Strauss parece remeter aos
estudos do Círculo Linguístico de Praga, que estabeleciam a função não como uma
28
propriedade “mas um modo de utilizar as propriedades de um certo fenômeno”.
Derrida criticará Lévi-Strauss por ele condenar a escrita em oposição a uma fala
supostamente inocente, repropondo assim a divisão etnocêntrica de povos com
ou sem escrita, mas, ao usar o termo função, vemos que Lévi-Strauss está se
referindo a um dos modos de utilizar a escrita que, segundo ele, é tanto mais
dominante quanto mais se mantém oculto. O que ele condena é a escrita como
produtora de cemitério e cadeia, a relação entre império-morte-sujeição mediados
29
pela cachaça veneno-remédio da escrita.

Derrida

Para o propósito desse texto, em relação a Derrida vou apenas dizer


que sua leitura tem o mérito de unir o antropólogo e o nativo, pois tanto a escrita
alfabética como o traço indígena são considerados como escritura, e estariam ambos
submetidos à deriva da différance, uma arquiviolência inicial que nos separa do
vocativo absoluto de uma fala plena. No entanto, para quem quer pensar a escritura
indígena e o ponto de vista nativo é a obra de Lévi-Strauss que nos permite pensar
a diferença. Gordon Brotherston, em um ensaio pioneiro na análise da oposição
entre Lévi-Strauss e Derrida, sugere usar o melhor de ambos para o campo dos
estudos das escritas ameríndias, criando assim “a possible grammatology (Derrida)
of America (Lévi-Strauss)”. E reconhece: “In the first place this involves firmly
establishing the New World as a term in its own right, beyond its role as a mere
correlative for European philosophy. Few have done this better than Lévi-Strauss,
30
in a famous paragraph from ‘Race and history’…”
Não é estranho? A différance de Derrida não nos deixa pensar a
diferença, pois afirma a semelhança. Já antropólogos como Marylin Strathern chegam

28. Mukarovsky apud Costa Lima. Poesia e experiência estética, p. 43.

29. Faço aqui referência ao provérbio quilombola citado por Lévi-Strauss


nesse mesmo capítulo: “Cemitério, cadeia e cachaça não é feito para uma
só pessoa”.

30. BROTHERSTON. Towards a grammatology of America, p. 203.

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a dizer que não é apenas necessário afirmar a diferença como é preciso radicalizá-
la se quisermos entender outrem. Ela diz que “escolheu exagerar deliberadamente
31
as diferenças, simplesmente porque isso nos obriga a parar para pensar”, e assim
poder entender outras concepções, outras descrições e outras imaginações
logicamente distintas da nossa.
Do mesmo modo, na economia simbólica da alteridade ameríndia,
proposta por Viveiros de Castro, e na mímesis revisitada por Costa Lima, a base de
semelhança existe para fazer falar e aparecer a diferença. Costa Lima reavalia um
conceito central do Ocidente, a mímesis, reconceitualizando-o a partir de uma
32
perspectiva à margem; Viveiros de Castro acentua o pensar ameríndio em
contraposição ao pensar ocidental colonial, como um pensar com o qual temos de
aprender não porque sejamos “corruptos” e eles “inocentes”, mas porque nos
abre as portas de outros mundos quando o nosso está em vias de desaparecer por
produzir destruição. O desafio é pensar ambos conjuntamente: de que modo a
epistemologia da mímesis por Costa Lima pode se encontrar com a ontologia da
diferença ameríndia? Qual mímesis está implicada no canibalismo como
incorporação da diferença para in-definição de uma identidade que tem no outro
seu ponto de fuga? Qual ontologia está implicada na mímesis de produção da diferença?
Como diz Costa Lima, as obras miméticas “produzem ‘seres’ no próprio ato de formulá-
los [pois] a mímesis de produção tem um caráter imediato e eminentemente
33
performativo”, como veremos agora na releitura da lição de escritura.

Arte

Se a lição da escritura ensina que a função primeira da escrita é


subordinar e sujeitar, meu objetivo é mostrar que essa mesma lição também ensina
outra coisa. Como vimos, a cena entre o antropólogo e o indígena compõe uma
“farsa”, uma “encenação”, um teatro. Para Lévi-Strauss, o índio produz uma imitação,
e sua meta é aumentar seu poder sobre o grupo. Na minha leitura, proponho

31. STRATHERN. No limite de uma certa linguagem, p. 173.


32. Cf: “e talvez sobretudo porque pensamos a partir de uma área
marginalizada, temos a oportunidade de tematizar a questão. Mas não se
trata de fazer o elogio de viver na margem (…)”. COSTA LIMA. Vida e
mímesis, p. 299.

33. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 278.

194
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perceber o potencial mimético dessa cena ou o que essa cena nos ensina sobre a
função mimética. Minha questão é: como podemos ler essas marcas não em relação
ao que elas revelam sobre a imitação do poder da escrita, mas sobre o que elas
revelam em relação à escrita artística? Em outras palavras: que tipo de mímesis
está envolvida na “farsa”, na encenação do chefe indígena que finge escrever
diante do antropólogo? É apenas uma imitação e uma cópia falhada, ou seria
34
exagerado dizer que esse traço põe “a máquina da mímesis em funcionamento”?
Como já disse, minha hipótese é que essa cena pode ser lida como o grau zero do
jogo mimético, fazendo-nos lembrar alguns dos aspectos mais sutis envolvidos na
experiência estética.
A escrita alfabética condenada por Lévi-Strauss é revista a partir de
uma outra escrita, a da inscrição em uma cena de troca. O fato é que esse falso
texto escrito põe em questão a verdadeira escrita ou põe em questão a verdade
da escrita. O truque do trickster indígena abala os fundamentos da escrita. Ele
imita para ser igual ao antropólogo, e ter o mesmo poder de decifrar letras, mas
seu gesto produz no receptor uma diferença, a consciência da farsa. O texto sem
letras faz, assim, falar o “frame” que move a cultura letrada pela sua subversão
cômica. Digamos que a arte nasce do gesto do índio; a mímesis artística tem como
arquétipo esse gesto inconsequente, o de uma cópia que vai se transformar em
mímesis, pois a partir de uma base de semelhança produz uma diferença. Seu
gesto também cria instabilidade semântica, que vai gerar o esforço interpretativo
de Lévi-Strauss no momento de insônia. O sonho do índio (escrever como os
brancos) vai acordar o antropólogo de seu sono e despertar a crítica de sua cultura
de origem: “Ainda atormentado por esse incidente ridículo, dormi mal e enganei a
insônia rememorando a cena das trocas”.

Poesia e experiência estética

No ensaio “Poesia e experiência estética”, Luiz Costa Lima aborda


nossa dificuldade em definir o que é poesia como uma dificuldade intrínseca à
própria poesia, porque o poema implica uma experiência que elimina a distância
entre sujeito e objeto, ao mesmo tempo em que produz o distanciamento do eu.

34. COSTA LIMA. Entrevista, p. 344.

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A poesia é um movimento antinarcísico, o que significa a experiência de o eu


experimentar-se como outro. Para definir a poesia é preciso então refletir sobre
como experimentamos a poesia. É em relação a esse difícil exercício que o texto
de Costa Lima nos oferece algumas respostas-chave. A primeira delas, que eu
gostaria de sublinhar, afirma que a experiência estética implica “a suspensão
35
provisória do império do semântico”.
Em nosso cotidiano, estamos sujeitos ao “império do semântico”: é
preciso compreender as mensagens que estamos constantemente recebendo e
enviando para que a vida funcione e para evitar o caos. No entanto, para que a
experiência estética ocorra é preciso que, por um momento, apenas por um
momento, um mínimo caos se dê, uma pequena crise ocorra. Esse intervalo é o
momento da suspensão semântica, quando nos aliviamos do peso das mensagens,
e sentimos uma espécie de suspensão ou leveza (mesmo quando lemos os poemas
mais tristes), suspensão que ocorre e dura apenas um curto intervalo de tempo.
Esse momento de suspensão ocorre quando uma certa configuração sintática atrai
nossa atenção e nos distrai do significado, fazendo-nos sentir, por um momento,
suspensos no vazio.
Quando esse pequeno intervalo ocorre, expõe Costa Lima,
confrontamo-nos com os limites do conhecido e beiramos o desconhecido. A
experiência estética gera assim uma crise, porque ela nos mostra os limites da
razão, como uma experiência que permite a penetração de algo que a razão não
nos deixa compreender. Desse modo, na experiência estética, o movimento vai
de um momento de suspensão para um momento de suspeita (entendido como a
reocupacão semântica posterior através de uma reaproximação crítico-interpretativa).
Gostaria de reter essa aguda definicão da experiência estética como
um momento de suspensão seguido de um momento de suspeita, e realçar estas
três outras passagens: 1) a experiência estética é comparável “a uma perda de
peso, provocada por qualquer evento que nos faça perder o sentido de orientação,
36
sem que, por isso, nos desatine”; 2) “as artes constituem a única forma discursiva
em que… a comunicação não é o vetor primordial”, e 3) “sua vitalidade está na
37
resposta que provoca, não na mensagem que transmite”. Com essas idéias em
mente, voltemos à cena entre o antropólogo e o indígena.

35. COSTA LIMA. Poesia e experiência estética, p. 46-47.

36. COSTA LIMA. Poesia e experiência estética, p. 48.

37. COSTA LIMA. Poesia e experiência estética, p. 52.

196
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Pelo aspecto da suspensão e da suspeita, notamos que as linhas


tortas do índio são um excesso em relação ao momento da suspensão semântica,
porque não há nenhuma mensagem inscrita ali. Não se trata de um poema, nem
mesmo de um desenho. Lévi-Strauss vê as linhas e imagina um sentido (por
exemplo: arcos a serem trocados por um facão); o índio vai dizer sim ou não, e
essa encenação vai continuar por duas horas. Ao produzir esse excesso de
“suspensão do império do semântico”, essas linhas geram uma crise no seu receptor,
gerando a “lição”. Lévi-Strauss aprende algo importante sobre a escrita; algo que
até então nunca tinha aparecido com tanta clareza para ele antes dessa experiência,
que ele vai interpretar em um texto, seu livro, que toma a forma de um ensaio
(que seria preciso analisar). Ou seja, a suspensão total do significado gera uma crise
também radical no receptor, que, sem poder dormir, rememora o ocorrido, e então
o reocupa semânticamente através de uma crítica generalizada à função da escrita.
Quanto ao aspecto da perda do sentido de orientação, podemos
dizer que é exatamente isso que ocorre com Lévi-Strauss logo após o “extraordinário
incidente”: “Sem que o percebesse, vi-me de repente sozinho no mato,
38
desorientado”. É assim que à cena “grotesca” do chefe escrevendo, segue-se a
cena “ridícula” do antropólogo perdido. Lévi-Strauss perde seu burro, suas armas e
seu material fotográfico. Quando então ouve vozes de dois índios que “tinham
voltado sobre seus passos”, e o tinham rastreado: “encontrar o meu material foi
para eles brincadeira de criança”. Os índios, que não sabem escrever, sabem rastrear
as linhas marcadas no terreno, relação que também mereceria uma análise à parte.
Quanto aos terceiro e quarto aspectos ressaltados: o de que a arte
não tem a comunicação como seu principal vetor, e sua vitalidade reside na resposta
que provoca, diria que as linhas Nambikwara são “extraordinárias” porque solicitam
uma interação performática entre ambos os atores, Lévi-Strauss e o índio, para
produzir um resultado conjunto. Sem essa interação não há “encenação”. Lévi-
Strauss finge ler, e lê em voz alta, e o índio finge escrever; na junção colaborativa
dos dois se produz a lição de escritura. Como diz Costa Lima: “A mímesis de
39
produção tem um caráter imediato e eminentemente performativo”. Nesse sentido,
é o espaço do silêncio e do vazio (aqui representados pelo risco de linhas onduladas)
que faz as vozes ao redor do texto funcionarem.

38. LEVI-STRAUSS. Tristes trópicos, p. 315.

39. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 278.

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Ressonância

Lévi-Strauss diz que havia um entendimento tácito entre ele e o


chefe indígena sobre o fato de que ambos estariam representando uma cena
baseada em um roteiro mudo. Posso dizer que essas linhas “dirigiam” sua interação
através de um texto imaginário escrito em lugar algum. Era um puro silêncio
reverberante. Um gesto ondulatório que é possível comparar ao modo como
desenhamos ou representamos ondas sonoras. Posso então dizer que essas linhas
representam o grau zero de experiência estética, se considerarmos que o grau
zero da poesia e da ficção é nada mais nada menos que uma reverberação, ou a
ressonância de um movimento.
É esse aspecto que me interessa desenvolver para poder descrever
o efeito sutil de personagens de ficção em um texto: a impressão de que ouvimos
suas vozes. Não podemos ouvi-los, mas é como se isso fosse possível. Esse efeito
(ou desejo) é traduzido pelo gesto do índio que espera escutar algo das linhas que
ele mesmo rabiscou. Lévi-Strauss conta que o chefe esperava um retorno sonoro
de suas linhas e ficou decepcionado por sua mudez. Ele esperava receber de volta
um som, uma voz dizendo-lhe alguma coisa: “Ele próprio como que se ilude com
a sua comédia; cada vez em que a sua mão termina uma linha, examina-a
ansiosamente, como se a significação devesse brotar, e a mesma desilusão se pinta
no seu rosto”.
Quando lemos ficção, estamos imersos em uma expectativa similar.
Um personagem de papel não fala, não tem corpo, e é mudo. Mas quando lemos
uma novela ou um conto ou um poema, essa mudez reverbera em silêncio na
nossa mente. A voz implícita, cosa mentale, voces paginarum, como diziam monges
medievais, tem o efeito de um murmúrio, de um lamento, ou de um apelo. Para
falar e para ser ouvido, o personagem no papel precisa da atuação ativa dos
leitores, que precisam interagir, criar uma comunhão para que esse ser sem voz
fale. Essa magia de cooptação é o que o texto escrito de ficção produz mais do
que qualquer outro texto. Somos levados para dentro desse mundo sem fundo, da
pura superfície das letras, e aquelas formas escritas ganham vida ao serem lidas.
Esse aspecto sonoro, aural, da mímesis escrita e silenciosa aparece
no ensaio de Costa Lima sobre “Poesia e experiência estética” em dois momentos
importantes. Na abertura do texto, encontramos a seguinte epígrafe, retirada de
um verso do poema “Pieces” de Wallace Stevens: “There is a sense in sounds
beyond their meaning”. Quase ao final de seu texto, Costa Lima exemplifica a

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qualidade da imagem poética citando Óssip Mandelstam, quando o poeta diz que
40
o olho é um “órgão dotado de acústica”, ou seja, que “o olho é capaz de ouvir”.
Em seu livro Lines, Tim Ingold discute em certo momento “Como a
página perdeu sua voz”. Ele cita uma história contada pelo antropólogo Peter
Gow ocorrida entre os Piro da Amazônia peruana: “A história refere-se a um indivíduo,
Sangama, conhecido como o primeiro homem Piro a aprender a ler”. Esse índio
descreveu a leitura assim: “Eu sei como ler o papel... Ele fala comigo... O papel
tem corpo...”. Outro grupo indígena, os Panoans, diz Ingold, “usam a charmosa
41
expressão ‘o papel fala [com a gente]’ ”; e Ingold conclui: “Para o leitor moderno
ocidental… o papel não é mais do que uma superfície sobre a qual se projetam
imagens gráficas de sons verbais. Sangama, porém, não via imagens de sons; ele
ouvia os próprios sons falarem, como se estivessem dirigindo-se a ele diretamente.
42
Ele ouvia com seus olhos…” Como se vê, poetas e índios têm uma relação
similar com a escrita e a leitura como escuta. A reverberação é importante para
entender o efeito de encantamento produzido pelo texto literário de ficção, como
43
mana que emana da página escrita e produz “the magic voice of a book”.

Conclusão

Se esse “evento extraordinário” é comparável a uma experiência


estética, posso agora reverter a direção de meu argumento e dizer que a experiência
estética é comparável ao encontro entre um antropólogo e um nativo. Esse encontro
significa: deixar de lado seu conhecimento adquirido – por um momento – e
conectar-se a alguém ou algo que escapa ao seu saber. Nesse encontro, é preciso
confrontar-se com o desconhecido; é preciso experimentar o outro, é preciso
sofrer uma metamorfose.
De modo similar, Costa Lima propõe que impulso mimético na arte
corresponde a um processo de transformação ou de metamorfose em função de
um apelo e de um impulso pelo desconhecido: “se a obra da mímesis fascina é

40. COSTA LIMA. Poesia e experiência estética, p. 53.

41. INGOLD. Lines, p. 34; 36 (tradução minha).

42. INGOLD. Lines, p. 36-37 (tradução minha).

43. Cf. MENARD.

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44
porque ela diz o que não sabe plenamente”. Finalmente, nesse encontro com o
45
desconhecido, a arte produz a distância do eu, é um momento antinarcísico.
Assim, diz ele, o impulso básico da mímesis na arte é o de “experimentar-se como
outro,” o que implica “um processo de experimentação da alteridade, enquanto
46
fascinante e desconhecida”. E ele conclui com uma frase crucial: “Antes que
47
espelho, do ponto de vista do sentido a mímesis é miragem”.
Finalmente, se essa hipótese funcionar, podemos pensar a escrita
Nambikwara não como uma cópia falhada da escrita ocidental, mas como um tipo
diferente de inscrição (aquela que o Ocidente também produz em suas ficções) e
que lida com potencialidades, com latências e com silêncios: “Nos discursos da
mímesis (...) o irrepresentável está sempre latente, sempre em vias de poder-se
48
tematizar”. Precisamente porque não produz cópia nem imitação, o jogo mimético
abre a possibilidade de emergir uma diferença a partir da produção de uma miragem,
que eu traduzo como reverberação e ressonância. Essa é a lição indígena da mímesis
ameríndia. No silêncio de seu traço se inscreve um diferencial que desafia o
pensamento.

Listening to Literature: Toward an Amerindian Literary Theory

Abstract: This essay establishes links between literary theory and contemporary
ethno-anthropology, and proposes a rethinking of the notion of fiction through
the use of Amerindian concepts. To demonstrate, the essay considers “The
Writing Lesson” from Tristes Tropiques, and rereads the lesson not as a farce,
but as force and art.
Keywords: Claude Lévi-Strauss, Nambikwaras, Eduardo Viveiros de Castro.

44. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 254.

45. CELAN apud COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 255.

46. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 254.

47. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 255.

48. COSTA LIMA. Vida e mímesis, p. 286.

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