Librandi - Escutar A Escrita
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Marilia Librandi
Princeton University
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All content following this page was uploaded by Marilia Librandi on 03 August 2018.
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O eixo e a roda: v. 21, n. 2, 2012
em À L’écoute, seria o pensamento ocidental capaz de ouvir ou, como ele propõe,
seria preciso inventar uma ontologia da escuta baseada na relação reverberante de
nosso corpo com seu entorno? Direção semelhante segue Michelle Boulous Walker
em seu livro Philosophy and the maternal body: reading silence. Como diz o
título de seu primeiro capítulo, “Speaking Silence”, o silêncio que eu gostaria de
ler (e de ouvir) é precisamente um silêncio falante, e foi produzido por um chefe
indígena Nambikwara.
Em 1938, esse índio desenhou algumas linhas em um pedaço de
papel diante do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Essas linhas reproduziam o gesto
da escrita sem, no entanto, gerarem um texto: eram linhas tortas e sinuosas
rabiscadas no papel. Como se sabe, Lévi-Strauss interpretou-as magnificamente
em seu capítulo, “Lição de Escritura”, em Tristes trópicos, publicado em 1955.
Doze anos depois, Jacques Derrida contrainterpretou violentamente a interpretação
de Lévi-Strauss em De la grammatologie, publicado em 1967. Tão violentamente,
que, em sua carta-resposta, Lévi-Strauss diz que Derrida o contestara com “a
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delicadeza de um urso”. No entanto, apesar da grande diferença entre eles, ambos
os autores interpretaram essas linhas para criticar sua cultura de origem. Usando
distintas estratégias, o objetivo era criticar o domínio colonial europeu, no caso de
Lévi-Strauss, e a metafísica europeia dominante, no caso de Derrida. Mas o que
acontece com o ponto de vista Nambikwara sobre sua própria escrita? O que essa
lição nos diz sob o ponto de vista indígena? De certo modo, é possivel dizer que
nem Lévi-Strauss nem Derrida leram o traço do índio; nenhum dos dois leu o
silêncio desses traços como um contratexto em relação ao texto ocidental, e aquelas
linhas no papel continuam a ser um enigma, uma espécie de hieróglifo Nambikwara
virtual, já que essa escrita não foi preservada como os outros objetos indígenas
levados por Lévi-Strauss para o Musée de L’Homme em Paris. Como não há vestígio
material desses traços, apenas podemos saber deles a partir do modo como Lévi-
Strauss os analisa em seu ensaio, do modo como Derrida o contradiz, e do modo
como continuam a reverberar como questão em aberto.
Sabemos que o estruturalismo está ligado ao encontro de Lévi-Strauss
com os Nambikwaras, sua mais longa experiência de campo, de junho a setembro
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de 1938, que lhe fornece o fundamento teórico de seu primeiro livro, As estruturas
elementares do parentesco, além de artigos anteriores, e de sua tese de 1948, La
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vie familiale et sociale des indiens Nambikwara. Sabemos também que o pós-
estruturalismo derridiano vai se estabelecer a partir de uma revisão radical desse
mesmo encontro entre o antropólogo e o indígena Nambikwara. A questão que
permanece em aberto em nosso momento pós-estruturalista e pós-
desconstrucionista, o que ainda está para ser dito e pensado é, pois, o ponto de
vista indígena sobre essas linhas. A possibilidade de pensar filosoficamente esse
impensado tem finalmente começado a tornar-se possível através do trabalho de
revisão e recuperação do pensamento de Lévi-Strauss aliado à emergência dos
conceitos indígenas na obra do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e de outros
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etnólogos que passaram a expor para nós o pensamento ameríndio.
Inspirada nessa nova antropologia e relacionando-a à teoria da
literatura, em especial à proposta por Luiz Costa Lima em sua revisão do conceito
de mímesis, proponho reler as linhas Nambikwaras não como farsa, mas como
força, como uma lição de escritura artística. Minha hipótese é que as linhas
Nambikwaras, tortas e sinuosas, podem ser lidas como o grau zero do jogo ficcional,
e podem revelar a estrutura daquilo que nossa cultura chama ficção e, por extensão,
arte. Nessa leitura, então, o antropólogo estrutural não seria (apenas) Lévi-Strauss,
mas também o próprio chefe Nambikwara.
A lição de escritura é, assim, a cena de origem de meu texto, e a
cena de origem (de um livro em planejamento) que vai me permitir pensar a
literatura brasileira e latino-americana a partir dela como sua variação. Comentando
Lévi-Strauss, diz Derrida: “Mas a cena não era a cena de origem, apenas a de
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imitação de escritura”. Proponho, porém, repensar a cena enquanto cena de
origem, mas não da imitação e sim do jogo mimético, baseada na noção de mímesis
como “produção de diferença”, proposta por Luiz Costa Lima, e na noção de
“economia simbólica da alteridade”, proposta por Eduardo Viveiros de Castro.
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Importante assinalar que Viveiros de Castro foi aluno de Costa Lima, que o apresentou
à obra de Lévi-Strauss, por sua vez presença fundamental em sua tese Estruturalismo
e teoria da literatura, de 1970. O que estou fazendo é um retorno a essa fonte:
Lévi-Strauss, promovendo um reencontro entre Costa Lima e Viveiros de Castro
como nomes de duas disciplinas em contato: teoria da literatura e antropologia.
Meu intuito é avançar por linhas ainda a demarcar, e que se concentram em duas
direções principais: refletir sobre as bases teóricas para a proposta de uma
“antropologia da ficção”; e desenvolver o conceito “escritas de ouvido”, que,
partindo da intersecção escrita-oralidade, visa atingir o núcleo de uma mímesis
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que parte não do olho, nem da mão, nem da boca, mas da escuta na escrita.
Proponho então o seguinte caminho para esse texto, que ensaia
uma primeira aproximação ao tema: 1) rever a cena, o mito de origem da “lição de
escritura”, onde ocorreu e quais suas circunstâncias; 2) relembrar a interpretação
proposta por Lévi-Strauss e, muito brevemente, a contrainterpretacão de Derrida;
e 3) reinterpretar a cena entre Lévi-Strauss e o índio a partir da teoria da mímesis
e do pensamento ameríndio. Antes, porém, importa saber o que é, ou como
ocupar um ponto de vista nativo. Para isso, vou sugerir alguns pontos possíveis
para uma aproximação entre a teoria literária e antropologia.
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fosse possível passarmos para “o lado de lá” a cada ato de leitura, assim como faz
o etnógrafo quando em seu trabalho de campo. Ocupar o ponto de vista nativo
significa, assim, a situação paradoxal de tornar-se estrangeiro em relação ao seu
próprio pensamento, estranhando-o, e ao mesmo tempo tornar-se nativo de um
pensamento estrangeiro, borrando os limites entre ambos. Para tornar esse exercício
possível, começo a perceber que é preciso alterar o modo de escrita, o que significa
incorporar na crítica literária uma certa dose de ficção, e praticar aquilo que
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antropólogos australianos vêm chamando de “fictocriticism”. Esse movimento é
necessário não por querer emular a ficção, mas para poder avançar além ou aquém
do que a razão nos permite pensar, e conseguir assim, de certo modo, descontrolar
o controle do imaginário.
Assim, se, antropólogica e antropofagicamente pensar como nativo
significa ocupar um ponto de vista estrangeiro ao nosso próprio pensamento, a
antropologia que vem se destacando hoje é aquela que está produzindo a
descolonização de seu próprio pensar e mergulhando em outro regime de conceitos.
Essa nova direção proposta pelo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, o americano
Roy Wagner e a britânica Marylin Strathern, entre os nomes mais salientes, está
propondo uma equivalência epistemológica entre os mundos que Marshall Sahlins
bem denominou como the West and the rest para denunciar seu desequilíbrio. O
que essa nova antropologia busca é uma equivalência baseada na afirmação de
uma radical diferença. O pensamento ameríndio ou melanésio é distinto do nosso,
dizem eles, não porque tenham distintos pontos de vista sobre os mesmos objetos,
mas porque os mundos que eles pensam são outros. Assim, trata-se de descrever
e inscrever a diferença desse pensamento. Como diz Strathern, não é possível
falar do outro com o seu código, mas apenas através do nosso. É possível, porém,
tentar que o outro fale através de nós, atravessando-nos, criando brechas e inversões,
“obviações” em nosso pensar-dizer, interrompendo-nos, e fazendo aparecer coisas
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que nós não somos capazes de ver ou dizer. Para isso, é preciso sofrer uma
transformação: é preciso que um pensamento outro fale pela nossa boca a partir
de um experimento antropológico ficcional, ou, o que é ainda mais preciso, a
partir de uma filosofia produzida pela antropologia. Esse ponto é importante e
será retomado adiante quando falarmos da diferença de leituras entre o antropólogo
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seres inteligentes e racionais, sabemos que não há nenhum corpo ali, signos são
abstrações, e o mundo está alhures. Seria infantil mantermo-nos no modo deceptivo.
Sentimos, mas é assim: a vida é dura, e o resto é literatura. Parece, assim, que a
literatura ocupa e é pensada como lugar do excesso: ou é um luxo (excesso
entendido como ócio) ou, seguindo a imagem do poema concretista, é um lixo
(excesso descartável em relação ao que é tido como útil). A raiz desse menosprezo
(ou a oscilação entre a mais-valia e a menos-valia) vem de que em nosso pensar
habitual funciona assim: nós existimos, os personagens, não; nós somos seres de carne
e osso, eles são seres de papel; nós pensamos, eles são imaginários; nós agimos, eles
são nossa projeção; nós temos e fazemos história, eles são estória de “mentira”.
Ocorre, porém, que há um pensamento diferente no mundo
amazônico e ameríndio. Um pensamento que advoga o perspectivismo (que não
é o mesmo que relativismo) e o multinaturalismo (reverso do multiculturalismo), e
que é mais afim ao mundo imaginário da ficção porque mais próximo do que
sonha a nossa melhor filosofia. Assim, se a “insurreição e alteração começam pelo
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conceito”, diria que no campo dos estudos literários é o conceito de literatura ou
nosso modo de pensar a ficção que deve ser continuamente alterado e repensado,
é em busca dessa renovação que nos últimos anos venho tentando repensar o
campo da teoria da literatura a partir da antropologia ameríndia, pois o que eu
aprendo com o que os antropólogos me ensinam a respeito do pensamento
ameríndio e de seus modos de vida e de invenção, seus conceitos e sua cosmologia,
é muito mais afim a uma reconsideração do ficcional e vem juntar-se aos nossos
melhores teóricos do literário. Assim, o que Viveiros de Castro descreve como uma
“ontologia política do sensível” ou um “perspectivismo ontológico” é o que estou
querendo transpor para o campo da teoria da literatura. A cosmopolítica indígena,
sua filosofia, que passamos a conhecer através dessa “construção experimental”, é
o diferencial que precisamos para nos reenergizar e renovar. Por isso, faço minhas
as suas palavras e as aplico e desvio para o campo literário. Para testar a validade
dessa transferência, ou apropriação de conceitos antropológico-ameríndios, para o
campo da teoria literária, começo propondo algumas analogias.
Pela primeira, diria que os textos literários e os grupos indígenas
ocuparam dentro da tradição ocidental uma posição similar. É possível situá-los
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como análogos, não obviamente porque o indígena “não existiria” (apesar de seu
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constante silenciamento, etnocídio e “epistemocídio” ), mas porque ambos, os
coletivos indígenas e os coletivos de ficção foram tidos ou como adorno e exotismo
ou como marginais em relação a um saber que vem de fora. Fora da ficção para
dizer o que a ficção é ou não é, ou fora dos grupos indígenas para descrever o que
eles faziam, mas provavelmente não sabiam. Ambos teriam, assim, um estatuto
refém do que está fora (“referente”, “realidade” ou “verdade”), e do que vem de
fora (o colonizador). Desse modo, se essa nova antropologia propõe radicalizar
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uma equivalência entre o antropólogo e o nativo, proponho radicalizar a
equivalência entre os leitores (que estão fora da literatura) e os personagens (que
estão dentro da ficção) como parte de um experimento ficto-crítico. Radicalizar
uma equivalência entre nós e “eles” permite-nos pensar a ficção como uma outra
cultura dentro da nossa com a qual estabelecemos relação e que devemos respeitar
na sua diferença.
Retomando o par nativo-estrangeiro, é como se o texto de ficcão
fosse estrangeiro a nós que o criamos e que o lemos. Sugiro, pois, ler ao pé da letra
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a ideia de Proust retomada por Deleuze de que a literatura é escrita em uma
língua estrangeira, assim como a ideia-chave da primeira teoria da literatura, a do
Formalismo russo, do discurso literário como ostranenie, estranhamento. Busco
então radicalizar essas noções, e sugerir que nos transformemos em etnólogos de
nossa própria ficção. Produzidas por nós, as vozes poéticas e os personagens são
nossos estranhos ou o estranho que há em nós. Eles são nossas potencialidades,
que visitamos e inventamos como quem é capaz de habitar e sonhar em uma
língua estrangeira.
Se, como diz Roy Wagner, “toda compreensão de uma outra cultura
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é um experimento com a nossa própria”, sugiro que a invencão da ficção é um
experimento com nossa própria cultura como outra. Pensar a ficção como uma
outra cultura obriga-nos a retirar a ficção da posição secundária e subalterna, e
deixarmos de ser seus colonizadores (sempre explicando a literatura em função
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do que ela diz sobre nós mesmos e nossa realidade) para passarmos a ser seus
interlocutores (multiplicando a ficção e seus mundos, e respeitando sua diferença
para aprender com ela e nos descolonizarmos de nós mesmos). Essa é a estrutura
da filosofia proposta por Viveiros de Castro: considerar os índios não como objetos
mas como interlocutores, para que um efetivo diálogo possa ocorrer (ou, retomando
o que se disse acima, para que se crie uma filosofia capaz de ouvir): “Interlocutor
dialógico mas também contrário antilógico, o pensamento ameríndio está disposto
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em uma relação de tensão constitutiva com sua descrição antropológica”. Penso
que essa exata definição pode ser transposta para a relação da teoria literária com
o mundo ficcional. Nesse último caso, é preciso indagar e tentar responder: se
personagem não é gente, como estabelecer com eles uma relação de interlocução?
Mundos paralelos
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todo ser está relacionado a outros seres em uma “economia simbólica generalizada”
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baseada no processo de personificação. Nesse mundo unificado, há múltiplos
mundos simultaneamente possíveis, nos quais cada ser, plantas, animais,
personagens, espíritos, mortos, deuses, estão simultaneamente presentes e são
agentes, porque cada um é pessoa no seu próprio domínio. Trata-se de um mundo
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de “humanidade imanente”. Cada ser vive em seu próprio coletivo, mas nem
por isso sua província (ou o que se chama real) pode ser considerada a única
verdadeira; os múltiplos mundos ecoam; basta praticar a difícil arte (para poucos) de
saber ouvi-los e acessá-los. Leitores de literatura, reconhecemo-nos nesse multiverso
ameríndio. Quando lemos um poema ou um romance mergulhamos em um mundo
no qual a divisão real/fictício deixa de atuar, mesmo que apenas durante o tempo de
leitura, como se transitássemos em mundos distintos, mas unificados.
Essas ideias são possíveis de serem pensadas porque sociedades
ameríndias baseiam-se em uma economia do dom. Distinto de nosso mundo, no
qual coisas e pessoas assumem a forma de objetos, no mundo da troca de dons
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(exchange of gifts), coisas e pessoas assumem a forma de pessoas. Para conhecer
é preciso considerar nossos “objetos” de pensamento como pessoas. Se não se
personifica, diz Viveiros de Castro, não se entende nada, não se estabelece uma
relação de interlocução, mas de domínio. Como diz Strathern: “O próprio ato de
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interpretação pressupõe a personificação do que está sendo interpretado”.
Nossos escritores sabem disso. João Guimarães Rosa disse duas coisas
sobre sua obra-prima, Grande sertão: veredas. Uma: “Riobaldo é meu irmão”. Duas:
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“literatura tem de ser vida”. E se levarmos a sério, como um programa intelectual,
a afirmação de Guimarães Rosa: “literatura tem de ser vida”? Se levarmos essa
afirmação a sério (e também com humor), o que acontece? Acontece que outras
perguntas começam a aparecer, perguntas que não podemos fazer em nosso regime
habitual de pensamento, porque seriam e são classificadas como loucas e
incompetentes. Por exemplo: que tipo de vida possui um personagem de ficção?
20. STRATHERN apud VIVEIROS DE CASTRO. The gift and the given,
p. 249 (tradução minha).
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Uma vida imaginária configurada no texto? Certo. Mas o que isso quer dizer? É
verdade que a ficção produz seres que não morrem. Parafraseando Barthes, não há
razão para que um dia a gente pare de falar de Romeu e Julieta, de Madame
Bovary, de Riobaldo, ou de Borges, personagem e autor de si mesmo enquanto
outros. É verdade também que os personagens não têm como alterar seu destino
já escrito, nem as palavras pronunciadas, mas nós nos relacionamos com eles, e
nessa relação eles e nós nos alteramos mutuamente.
Como diz em um texto incrivelmente importante a pesquisadora
Wai Chee Dimock, o texto literário, diferentemente de outros textos, muda com
seus leitores, o que a leva a conceituar o discurso literário como uma “ontologia
instável”. Basta lembrar que o Quijote de Borges/Pierre Menard não é o mesmo
Quijote de Cervantes, apesar de o texto ser idêntico. Por quê? Porque o texto
muda com o tempo e reverbera a inscrição histórica de quem o está lendo. Assim
também ocorre quando lemos e relemos grandes textos e poemas, pois os
personagens não mudam de sina, mas a cada releitura aparecem diversos da leitura
anterior. Por quê? Talvez seja preciso redescrever essa impressão no âmbito de
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uma ontologia do ficcional como um mundo de presenças latentes.
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cada vez que viramos as páginas do livro, vemos vida pulsante ali dentro. E quando
lemos ajudamos essas vidas literárias a emergirem. É o mundo dos avessos.
O corpo da ficção
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da literatura é filosofia com vida reverberando entre nós (leitores e textos).
Estabelecidas essas analogias entre teoria, ficção e antropologia, passo então a ler
o traço Nambikwara como uma inscrição que nos permite ver possibilidades latentes
em nossa relação com o texto literário.
A cena
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Ora, mal havia ele reunido todo o seu pessoal, tirou dum cesto um papel
coberto de linhas tortas, que fingiu ler, e onde procurava, com uma
hesitação afetada, a lista dos objetos que eu devia dar em troca dos
presentes oferecidos…
Como uma cena teatral e performática, o chefe “finge ler”, e Lévi-Strauss classifica
a cena como uma “comédia”:
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iluminação intelectual.” E continua: “Se minha hipótese for exata, é preciso admitir
que a função primária da comunicação escrita é facilitar a servidão”.
O uso do termo “função” por Lévi-Strauss parece remeter aos
estudos do Círculo Linguístico de Praga, que estabeleciam a função não como uma
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propriedade “mas um modo de utilizar as propriedades de um certo fenômeno”.
Derrida criticará Lévi-Strauss por ele condenar a escrita em oposição a uma fala
supostamente inocente, repropondo assim a divisão etnocêntrica de povos com
ou sem escrita, mas, ao usar o termo função, vemos que Lévi-Strauss está se
referindo a um dos modos de utilizar a escrita que, segundo ele, é tanto mais
dominante quanto mais se mantém oculto. O que ele condena é a escrita como
produtora de cemitério e cadeia, a relação entre império-morte-sujeição mediados
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pela cachaça veneno-remédio da escrita.
Derrida
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a dizer que não é apenas necessário afirmar a diferença como é preciso radicalizá-
la se quisermos entender outrem. Ela diz que “escolheu exagerar deliberadamente
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as diferenças, simplesmente porque isso nos obriga a parar para pensar”, e assim
poder entender outras concepções, outras descrições e outras imaginações
logicamente distintas da nossa.
Do mesmo modo, na economia simbólica da alteridade ameríndia,
proposta por Viveiros de Castro, e na mímesis revisitada por Costa Lima, a base de
semelhança existe para fazer falar e aparecer a diferença. Costa Lima reavalia um
conceito central do Ocidente, a mímesis, reconceitualizando-o a partir de uma
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perspectiva à margem; Viveiros de Castro acentua o pensar ameríndio em
contraposição ao pensar ocidental colonial, como um pensar com o qual temos de
aprender não porque sejamos “corruptos” e eles “inocentes”, mas porque nos
abre as portas de outros mundos quando o nosso está em vias de desaparecer por
produzir destruição. O desafio é pensar ambos conjuntamente: de que modo a
epistemologia da mímesis por Costa Lima pode se encontrar com a ontologia da
diferença ameríndia? Qual mímesis está implicada no canibalismo como
incorporação da diferença para in-definição de uma identidade que tem no outro
seu ponto de fuga? Qual ontologia está implicada na mímesis de produção da diferença?
Como diz Costa Lima, as obras miméticas “produzem ‘seres’ no próprio ato de formulá-
los [pois] a mímesis de produção tem um caráter imediato e eminentemente
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performativo”, como veremos agora na releitura da lição de escritura.
Arte
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perceber o potencial mimético dessa cena ou o que essa cena nos ensina sobre a
função mimética. Minha questão é: como podemos ler essas marcas não em relação
ao que elas revelam sobre a imitação do poder da escrita, mas sobre o que elas
revelam em relação à escrita artística? Em outras palavras: que tipo de mímesis
está envolvida na “farsa”, na encenação do chefe indígena que finge escrever
diante do antropólogo? É apenas uma imitação e uma cópia falhada, ou seria
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exagerado dizer que esse traço põe “a máquina da mímesis em funcionamento”?
Como já disse, minha hipótese é que essa cena pode ser lida como o grau zero do
jogo mimético, fazendo-nos lembrar alguns dos aspectos mais sutis envolvidos na
experiência estética.
A escrita alfabética condenada por Lévi-Strauss é revista a partir de
uma outra escrita, a da inscrição em uma cena de troca. O fato é que esse falso
texto escrito põe em questão a verdadeira escrita ou põe em questão a verdade
da escrita. O truque do trickster indígena abala os fundamentos da escrita. Ele
imita para ser igual ao antropólogo, e ter o mesmo poder de decifrar letras, mas
seu gesto produz no receptor uma diferença, a consciência da farsa. O texto sem
letras faz, assim, falar o “frame” que move a cultura letrada pela sua subversão
cômica. Digamos que a arte nasce do gesto do índio; a mímesis artística tem como
arquétipo esse gesto inconsequente, o de uma cópia que vai se transformar em
mímesis, pois a partir de uma base de semelhança produz uma diferença. Seu
gesto também cria instabilidade semântica, que vai gerar o esforço interpretativo
de Lévi-Strauss no momento de insônia. O sonho do índio (escrever como os
brancos) vai acordar o antropólogo de seu sono e despertar a crítica de sua cultura
de origem: “Ainda atormentado por esse incidente ridículo, dormi mal e enganei a
insônia rememorando a cena das trocas”.
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Ressonância
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qualidade da imagem poética citando Óssip Mandelstam, quando o poeta diz que
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o olho é um “órgão dotado de acústica”, ou seja, que “o olho é capaz de ouvir”.
Em seu livro Lines, Tim Ingold discute em certo momento “Como a
página perdeu sua voz”. Ele cita uma história contada pelo antropólogo Peter
Gow ocorrida entre os Piro da Amazônia peruana: “A história refere-se a um indivíduo,
Sangama, conhecido como o primeiro homem Piro a aprender a ler”. Esse índio
descreveu a leitura assim: “Eu sei como ler o papel... Ele fala comigo... O papel
tem corpo...”. Outro grupo indígena, os Panoans, diz Ingold, “usam a charmosa
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expressão ‘o papel fala [com a gente]’ ”; e Ingold conclui: “Para o leitor moderno
ocidental… o papel não é mais do que uma superfície sobre a qual se projetam
imagens gráficas de sons verbais. Sangama, porém, não via imagens de sons; ele
ouvia os próprios sons falarem, como se estivessem dirigindo-se a ele diretamente.
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Ele ouvia com seus olhos…” Como se vê, poetas e índios têm uma relação
similar com a escrita e a leitura como escuta. A reverberação é importante para
entender o efeito de encantamento produzido pelo texto literário de ficção, como
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mana que emana da página escrita e produz “the magic voice of a book”.
Conclusão
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porque ela diz o que não sabe plenamente”. Finalmente, nesse encontro com o
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desconhecido, a arte produz a distância do eu, é um momento antinarcísico.
Assim, diz ele, o impulso básico da mímesis na arte é o de “experimentar-se como
outro,” o que implica “um processo de experimentação da alteridade, enquanto
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fascinante e desconhecida”. E ele conclui com uma frase crucial: “Antes que
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espelho, do ponto de vista do sentido a mímesis é miragem”.
Finalmente, se essa hipótese funcionar, podemos pensar a escrita
Nambikwara não como uma cópia falhada da escrita ocidental, mas como um tipo
diferente de inscrição (aquela que o Ocidente também produz em suas ficções) e
que lida com potencialidades, com latências e com silêncios: “Nos discursos da
mímesis (...) o irrepresentável está sempre latente, sempre em vias de poder-se
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tematizar”. Precisamente porque não produz cópia nem imitação, o jogo mimético
abre a possibilidade de emergir uma diferença a partir da produção de uma miragem,
que eu traduzo como reverberação e ressonância. Essa é a lição indígena da mímesis
ameríndia. No silêncio de seu traço se inscreve um diferencial que desafia o
pensamento.
Abstract: This essay establishes links between literary theory and contemporary
ethno-anthropology, and proposes a rethinking of the notion of fiction through
the use of Amerindian concepts. To demonstrate, the essay considers “The
Writing Lesson” from Tristes Tropiques, and rereads the lesson not as a farce,
but as force and art.
Keywords: Claude Lévi-Strauss, Nambikwaras, Eduardo Viveiros de Castro.
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Referências
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