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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 2, p. 9-30, jul./dez. 2017.

O ENSAIO DE CRÍTICA BIOGRÁFICA FRONTEIRIÇA: as fronteiras da


linguagem entre o bios e o lócus (Clarice Lispector a exemplo)

THE ESSAY OF CRÍTICA BIOGRÁFICA FRONTEIRIÇA: the language


borders between the bios and the locus (Lispector as an example)
EL ENSAYO DE CRÍTICA BIOGRÁFICA FRONTERIZA: las fronteras Del
lenguaje entre el bios y el lócus (Clarice Lispector como ejemplo)

Edgar Cézar Nolasco1


Resumo: Tendo como mote para a discussão a vida e a obra da escritora Clarice Lispector, a
discussão proposta visa contornar as especificidades inerentes, bem como os cuidados necessários,
que caracterizam e constituem, quase que obrigatoriamente, o que aqui denomino de ensaio de crítica
biográfica fronteiriça. Na base de tal discussão, faz-se imperante a noção tanto de bios quanto de
lócus, e por uma questão muito lógica: ambos convergem tanto para a vida quanto para o discurso
de todos os envolvidos: seja do analista (crítico, pesquisador etc) seja do analisado (obra, autor etc).
Postula-se que há um atravessamento entre as sensibilidades locais e biográficas de ambos, bem
como das linguagens ali imbricadas, quer estas sejam da ordem da vida, da ficção ou do ensaio.
Palavras-chave: Clarice Lispector; Ensaio de crítica biográfica fronteiriça; Fronteiras da linguagem.

Abstract: Having as a theme of a discussion the life and work of the writer Clarice Lispector, the
purposed discussion has the aim to compass the specificities intrinsic, even as the necessary cares,
that characterize and compose, almost necessarily, that here I call of Crítica biográfica fronteiriça.
In the base of that discussion, both ideas, bios and locus, are imperative and it happens because of
very a logic reason: they converge not only for life but also for the discourse of all people that are
involved: Analyst (reviewer, researcher) or analyzed (work, author). The postulated idea is that these
pillars have the atravessamento between the places and biographic sensibilities, likewise the
languages overlead there, whether there are of the order of life, fiction or essay. Therefore, the

1
Edgar Cézar Nolasco é professor da UFMS e Coordenador do Grupo de Pesquisa Núcleo de
Estudos Culturais Comparados – NECC – CNPq/UFMS e Pesquisador-visitante e Associado do
PACC-UFRJ. [email protected].

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theoretical postulates of the Crítica Biográfica (SOUZA), of the Crítica Pós-Colonial
(MIGNOLO) and the Crítica Biográfica Fronteiriça (NOLASCO) are fundamental.
Keywords: Clarice Lispector; crítica biográfica fronteiriça; Language borders; Border
epistemology.

Resumen: Teniendo como principio la discusión sobre la vida y la obra de la escritora Clarice
Lispector, lo que propongo es un trayecto alrededor de las especificidades inherentes y los cuidados
necesarios que caracterizan y constituyen, casi que obligatoriamente, lo que denomino ensayo de
crítica biográfica fronteriza. En la base de esta discusión prevalece la noción de bios así como la de
locus, por una lógica razón: ambos confluyen tanto para la vida como para el discurso de todos los
involucrados, bien sea el analista (crítico, investigador, etc) o el analisado (obra, autor, etc). Se
entiende, además, que hay un cruce entre las sensibilidades locales y biográficas de los dos, a la vez
que hay también un cruce entre los dos lenguajes ahí sobrepuestos, sea del orden de la vida, de la
ficción o del ensayo. Para tal comprensión, las premisas de la Crítica Biográfica (SOUZA), de la
Crítica Postcolonial (MIGNOLO) y de la Crítica Biográfica Fronteriza (NOLASCO) son
fundamentales.
Palabras claves: Clarice Lispector; crítica biográfica fronteriza; Fronteras del lenguaje;
Epistemología fronteriza.

Ouvi, recentemente, durante minhas aulas de Literatura Comparada 32


ministrada no PPGMEL, de um pós-graduando, que não pôr caso quer estudar o
corpo feminino nas personagens de romances de um autor brasileiro, que não
pretendia escrever seu trabalho em primeira pessoa por não partilhar, digamos,
desse modo de inscrição do sujeito pesquisador. Na hora, mas depois de ouvi-lo
atentamente, disse a ele que, em se tratando da inscrição do bios do sujeito pensante
em sua reflexão crítica (lembro que a discussão proposta na disciplina centrou-se
numa visada comparatista trans- envolvendo a teorização pós-colonial e
biográfica), a inscrição do sujeito em sua reflexão não estava assegurada no fato de
o texto ser escrito em primeira pessoa do singular2. Mas que muito pelo contrário:
muitas vezes o pesquisador assenta seu discurso crítico em primeira pessoa por
mero modismo, ou porque pensa que, ao assim o fizer, está mais próximo da questão
do outro, quando, na verdade, tal prática discursiva não passa de um mero disfarce
de envolvimento político, estético, social e mesmo ensaístico por parte do
pesquisador. Também devo ter comentado que nem sempre o texto

2
Ver meu texto A (DES)ORDEM EPISTEMOLÓGICA DO DISCURSO FRONTEIRIÇO, p. 47-
66. IN: CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Ocidente/Oriente: migrações.

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narrado em terceira pessoa assegura, digamos, uma maior impessoalidade por parte
do autor, já que a inscrição, ou, melhor dizendo, o compromisso teórico, crítico,
político e discursivo do pesquisador passaria, antes, pelo modo como ele se inscreve
enquanto intelectual na discussão que propõe. Todavia, aqui, não posso deixar de
dizer o óbvio, para não correr o risco de endossar o discurso hegemônico de uma
história e discurso abstratos e eivados de subjetividades linguajeiras: narrar ainda
em primeira pessoa faz uma grande diferença dentro de um projeto pedagógico-
científico que acreditou e reforçou, por séculos dentro do ocidente, que era mais
científico deixar de fora o corpo e, por extensão, as subjetividades do sujeito
intelectual, como se fosse possível separar sujeito e objeto no lócus enunciativo
crítico. Pensar, escrever em primeira pessoa ainda pode significar um gesto de des-
respeitar o pensamento moderno cartesiano hierárquico que excluiu sumariamente
as sensibilidades ao ignorar a presença do corpo na cena do discurso. Escrever em
primeira pessoa significa, mesmo que tardiamente neste século 21, subverter a
lógica do pensamento moderno científico e contribuir para desracializar o poder
falocêntrico que ainda impera na ordem do discurso.
Endossa essa velha prática moderna o modo de normalização científica
biográfica de nos reportamos aos ilustres intelectuais citados da história entrando
33
sempre pelo sobrenome e quase nunca, para não dizer nunca, pelo nome, como se
este pessoalizasse, nos aproximasse mais do outro, ao invés do ilustre sobrenome
que reforça e autentica uma hierarquia intelectual dentro do sistema de pensar
moderno. Sobre isso, aliás, intelectuais corajosos como Silviano Santiago3 e
Heloisa Buarque de Hollanda4 já trataram com a devida competência que a questão
demanda.

3
SANTIAGO. Epílogo em 1ª pessoa: eu & as galinhas d`angola, p. 242-252. “A minha primeira
pessoa começou a mentir descaradamente. E tanto menti, que já mentia sobre as mentiras que tinha
inventado. E a tal ponto minto, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser, de dizer a
verdade que me é própria, a própria verdade.” (SANTIAGO, 2004, p. 251)
4
Em seu livro Escolhas: uma autobiografia intelectual (2009), Heloisa comenta o que enfrentou por
ter redigido sua tese, publicada em 1979 com o título Impressões de viagem, em primeira pessoa.
Em suas palavras: “sem dissimulação, na primeira pessoa, escrevo Impressões de viagem, uma
tentativa de pensar o jogo de definições e redefinições das manifestações culturais das duas décadas
que havia percorrido. No final da introdução, confesso um risco: Esta análise corre e assume todos
os riscos de trabalhar a cultura em processo. Ainda que isto promova dificuldades no

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Até aqui quis apenas mostrar que é a partir de onde o estudioso crítico engasta
o seu lócus enunciativo que se esboça um traço que a seu modo autentica o discurso
crítico como um discurso do campo da Crítica Biográfica Fronteiriça. Ou seja, a
consciência fronteiriça do crítico da ancoragem de seu lócus enunciativo no
discurso proferido e defendido é o começo de uma reflexão que pode se encaminhar
para uma perspectiva de base biográfica fronteiriça. Já estou afiançando, ao mesmo
tempo, que isso por si só não basta. Se a presença do bios (do sujeito ou objeto
analisado, mas, sobretudo, e principalmente, do crítico) parece ser condição sine
qua non para a articulação de tal crítica, quero entender que o mesmo se dá com
relação à fronteira.5 Uma explicação necessária sobre esta: aqui ela não é tomada a
princípio em sua base territorial, mas, especificamente, enquanto uma episteme
outra, produtora de uma epistemologia fronteiriça por excelência. Entendo,
contudo, que quando o discurso reflexivo emerge de um lócus fronteiriço, como o
nosso daqui de Mato Grosso do Sul que, por sua vez, faz limite com outros países,
povos e culturas, a condição de fronteira, nossa condição de sujeitos atravessados
por um lugar em transe permanente, não deve ser ignorada, sob pena de o discurso
crítico ficar em parte dessituado.
Imbricado e como desdobramento dessa discussão, faz-se presente um outro
34
conceito caro e necessário ao discurso da Crítica Biográfica Fronteiriça _ o de
diferença colonial. De acordo com Mignolo, “na “/” [barra] que une e separa
modernidade e colonialidade, cria-se e estabelece-se a diferença colonial. Não a
diferença cultural, mas a transformação da diferença cultural em valores e

sentido da falta de uma perspectiva histórica mais definida, ou mesmo quanto à delimitação do
objeto de análise, traz, em contrapartida, a possibilidade tentadora de uma atuação crítica no próprio
desenrolar desse processo.” (HOLLANDA, 2009, p. 60-61)
5
Este texto é uma continuidade de outro texto intitulado de Crítica biográfica fronteiriça
(Brasil\Paraguai\Bolívia) no qual já trabalhei o conceito, entre outros, de ‘biolócus”, que é a junção
do bios e do lócus, sobretudo do sujeito crítico. Aqui dialogo diretamente com esse conceito ali
trabalhado. Ali eu dizia: “Trata-se do que passo a chamar de (bios = vida + lócus = lugar) biolócus.
Por essa conceituação compreendo, então, a importância de se levar em conta numa reflexão crítica
de base fronteiriça tanto o que é da ordem do bios (quer seja do “objeto” em estudo, quanto do sujeito
crítico envolvido na ação), quanto da ordem do lócus (o lugar a partir de onde tal reflexão é
proposta). (NOLASCO. Crítica biográfica fronteiriça (Brasil\Paraguai\Bolívia), p. 50.

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hierarquias: raciais e patriarcais, por um lado, e geopolíticas, por outro.”
(MIGNOLO. Entrevista, 4/6) O que disse acima acerca do pensar em primeira
pessoa do plural de alguma forma só vem reforçar essa hierarquia e esse
patriarcalismo propostos por Mignolo. Sobre a questão dos “valores”, trato logo a
seguir. Ainda de acordo com a discussão feita por Mignolo na Entrevista, “Terceiro
Mundo”, por exemplo, e aqui estou pensando na América Latina (incluindo o
Brasil), não passa de uma classificação epistêmica, e quem a classifica controla o
conhecimento. Afirma ele que “a diferença colonial é uma estratégia fundamental,
antes e agora, para rebaixar populações e regiões do mundo.” (MIGNOLO.
Entrevista, p. 4-6) A geopolítica aí é fundamental na discussão, uma vez que
percebemos que o valor político nacional e o espaço geográfico dos países são
determinados por hierarquias políticas e econômicas. Nessa direção, a América
Latina, por exemplo, vem sempre a reboque dentro da distribuição de valores de
toda ordem. É por essa discussão sucinta feita aqui sobre a conceituação de
diferença colonial que esse conceito não pode ser ignorado quando se intenta pensar
a partir de uma crítica biográfica fronteiriça. Aliás, discurso crítico que não passe
pela diferença colonial não é um discurso de crítica biográfica fronteiriça.
Presa à discussão anterior acerca da diferença colonial, e talvez menos como
35
um conceito e mais como uma perspectiva crítica adotada pelo pesquisador, mas
não menos importante para as teorizações de base biográfica fronteiriça, é o modo
de pensar a partir de quaisquer visadas dualistas, maniqueístas do isto ou aquilo, do
certo ou errado, a exemplo de arte e não arte, conhecimento e não conhecimento,
cultura e não cultura etc. Pensar a partir de qualquer dualidade é reforçar a
colonialidade, uma vez que, como vimos acima, a diferença colonial é uma
estratégia empregada pelo pensamento moderno para rebaixar populações e regiões
do mundo e, por conseguinte, reforçar as exclusões de toda ordem que imperam no
mundo ocidental. Não bastam boas intenções intelectuais, pedagógicas e
discursivas para se aproximar e pensar melhor o outro da exterioridade; é preciso
engastar o lócus enunciativo do discurso em uma outra base epistemológica ainda
não contemplada pelo sistema do pensamento ocidental. Mais uma vez lembra-nos
Mignolo de que pelo fato de a diferença colonial transformar diferenças em valores,
a América Latina não é apenas diferente da Europa; “é uma zona inferior do mundo
com suas populações e suas faunas, seus crocodilos. E assim em tudo”, conclui o
crítico. (MIGNOLO. Entrevista, p. 4/6) Diante do exposto, podemos dizer que
pensar de acordo com a

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crítica biográfica fronteiriça é correlato a pensar por fora de qualquer tipo de
dualidade e de exclusão. E isso equivale a não supervalorizar um valor em
detrimento do outro: em tal leitura, um valor, digamos o estético, é tão importante
quanto os valores sociais, políticos e culturais. Nesse sentido, a leitura que acaba
por privilegiar um valor mais do que ao outro passaria por fora da política de
teorização da crítica biográfica fronteiriça. Pensar a partir de teorizações e não de
teorias, assim como estabelecer e propor uma relação trans- na ordem do discurso
crítico proposto contribuem para a consolidação de uma leitura sem disciplinas.
Vale reforçar que essa teorização que sustenta a base epistemológica da
Crítica biográfica fronteiriça vem alicerçada em duas categorias fundamentais para
a discussão crítica: o lócus e o bios6. Aqui, abro um parêntese para lembrar que é
essa aproximação entre os postulados da crítica pós-ocidental (Walter Mignolo),
que reinsere a questão do lócus e do a partir de em sua episitemologia proposta,
com os postulados da crítica biográfica brasileira (Eneida de Souza), que pontua a
importância de tudo aquilo que é do campo do bios dos sujeitos na cena do discurso
crítico, que me permitem propor um discurso crítico da fronteira que amalgama, no
bojo do discurso proposto, meu bios e meu lócus como condição sine qua non para
a diferenciação do que venho chamando de Crítica Biográfica Fronteiriça. A
presença do bios demanda a presença de outras histórias, pessoais ou alheias, de
36
vivências e sensibilidade biográficas minhas a partir de meu lócus histórico
determinado, sem ignorar a historicidade de meu corpo e sua presença na reflexão
crítica, bem como a inter-relação de meu corpo com o espaço de vivência, escolhas,
perdas e ganhos, atravessadas pelo desejo inconsciente, podem funcionar como um
sintoma para a teoria proposta do lugar no qual me encontro. Toda teoria resultante
de uma Crítica biográfica fronteiriça funciona como um sintoma do bios e do lócus
do sujeito que a pensou.
A seguir, visando tão somente ilustrar a reflexão que fiz até aqui, elejo Clarice
Lispector e sua obra para pontuar a inscrição de meu bios (enquanto crítico) na
reflexão que proponho, bem como mostrar, por conseguinte, que, ao invés de haver
perdas em tal aproximação biográfica, há ganhos teóricos e inventivos que nem eu
mesmo enquanto sujeito atravessado pela teorização proposta posso aferir de
antemão. Talvez pelo fato de o bios ser precedido por um
6
Ver meu ensaio CRÍTICA BIOGRÁFICA FRONTEIRIÇA. IN: CADERNOS DE ESTUDOS
CULTURAIS: Brasil/Paraguai/Bolívia. p. 47-63.

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lócus histórico, por uma História (pessoal), e mesmo sem descartar a idéia de que
na origem de qualquer História há o esboço de um bios, é que somos levados a
entender que toda escolha, assim como todo discurso, é uma escolha política. Logo,
quando digo que Clarice é minha neblina, estou afiançando que ela foi minha
escolha, e constitui meu sintoma (para o outro): por meio da teorização que se da a
partir de meu corpo, vou ao encontro de mim, procuro-me (como se lê na epígrafe
a seguir), apesar de me ser impossível escutar-me antes da teorização que se
formula. Nenhuma teoria antecede ao corpo do sujeito que a pensa.

CLARICE é minha neblina


Ó menino de olhos virginais,
procuro-te, mas tu não me ouves.
Não sabendo que és
o cocheiro de minha alma."
(Anacreonte)
Estou parafraseando G. Rosa em meu título, pois se trata, na verdade, do
sentimento confuso que Riobaldo sentia por Diadorim - sua neblina. Não é por
acaso que a palavra Diadorim traz em sua origem o sentido de dor de mim. A
37
neblina obnubilava seu sentimento, que o cegava por não entender. Agora, quando
falo que Clarice Lispector é minha neblina estou dizendo que ela é meu amor. E
transferência é amor, como vou mostrar. Quero, aqui, mesmo que de forma breve,
poder falar dessa transferência sem fim, cuja origem pode estar numa tarde de
dezembro, quando eu lia na Revolta o livro Perto do coração selvagem (1943).
Quero tratar aqui dessas sensações e sensibilidades do coração, da vida e da morte
- e sem medo de me perder nos arredores de um sentido possível que eu atribui a
essa relação amorosa e histórica, da qual vou tratar aqui, mesmo que breve e
demoradamente.
Nessa relação amorosa e lúcida da qual quero me deter aqui entre Clarice
Lispector e mim - seu insistente e persistente leitor, mas também poder-se-ia tratar
da relação entre sujeito e objeto, leitor e texto - constitui o campo emaranhado das
nossas relações e afetos denominado pela ciência do desejo de transferência:
Emaranhamentos entre pessoas, personagens, textos, discursos, comentários e
contracomentários, traduções e notas de rodapé e outras notas de rodapé de histórias
reais e imaginadas, cenas vistas e contadas, reconstruídas, revistas, negadas;
emaranhamento entre o desejo e a frustração, o domínio e a perda, a loucura e a

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razão [...] Resumindo, numa palavra, amor. Que alguns chamam de transferência. Que
alguns chamam de leitura. Que alguns chamam de escritura (SULEIMAN apud
ARROJO, p. 38)
A passagem, mais do que trazer a conceituação pelo que devemos entender
por transferência, traz a súmula do que gostaria de discorrer aqui: falar de meu
encantamento sem fim por Clarice Lispector e sua literatura; falar demoradamente
sobre seus textos, incluindo aqueles que li e que nunca vou entender. Durante
leituras intermináveis de alguns, a exemplo de Perto do coração selvagem, tive a
sensação de que estava sempre chegando tarde demais para compreendê-lo. A
leitura aí era o meu máximo. O sentido uma consequência; falar, principalmente
talvez, de histórias reais e imaginadas envolvendo a imagem fantasmática da
escritora e o desejo desconhecido de um jovem leitor que amava mas não sabia
ainda o que amava. Clarice viria a ser minha neblina e minha salvação, vida à fora.
Sem o saber, meu destino estava traçado numa página qualquer de um de seus tantos
livros memoráveis: atravessaria noites e noites solitárias lendo-os num quartinho do
hotel Pampulha em Belo Horizonte. Ali desobri, entre tantas outras coisas nem tão
prazerosas, que sentido não se resgata, mas se atribui. Desde então tornei-me um
"fabricador" de sentidos para os textos lidos por mim. Também sei
agora que, ao falar da vida de Clarice Lispector, valho-me da artimanha, ou 38
estratégia de leitor amoroso, que me permite falar de mim. É de mim que falo, e já
desde à porta de entrada para o que chamamos de leitura do texto literário. O crítico
também, e isso já aprendemos com Ricardo Piglia e Silviano Santiago, fala de si ao
falar do outro. Não é por acaso que a crítica é uma forma moderna de autobiografia;
de modo que, para mim hoje mais do que nunca antes, escrever sobre Clarice é
despojar os restos de meu bios por entre os sentidos que vou angariando para mim
em minha leitura; e me perdoem, mas como posso falar desse amor, dessa leitura,
dessa escritura, dessa relação transferencial se sou um sujeito enamorado e
diretamente envolvido na trama? Aqui Barthes com seus fragmentos amorosos me
dá uma piscadela. E eu continuo à francesa. Deixo a passagem para trás.
Mas aprendi com o filósofo de que "devemos fazer a anamnese da nossa
história acontecida, a fim de compreendermos por que estamos enfiados nessa hora
perigosa" (PESSANHA). Aprendi com o filósofo juliano G. Pessanha, como
também já tinha aprendido com o filósofo Jacques Derrida, e sobretudo com a
própria Clarice Lispector, a desconfiar de meus sentidos e meus sentimentos. E ai
de nós, de nossos desejos! Ai como doi, não é Drummond? Reconheço que

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confiar nos sentidos que produzo, confiar em meus sentimentos com relação ao
outro, e com relação ao texto e à vida do outro, pode soar como uma prevaricação.
Antes não tivesse conhecido Nietzsche. (E antes não tivesse conhecido Clarice
Lispector e sua literatura abissal).
De acordo com a passagem anterior do filósofo, se me encontro aqui nessa
hora perigosa, neste encontro sobre Clarice Lispector, falando dela, é por que me
tornei um estudioso de sua obra. E essa constatação não teria sido possível antes de
eu percorrer todo o caminho (intelectual e pessoal) que me trouxe até aqui, agora,
neste dia de 18 de outubro de 2017. Clarice Lispector, estudar a obra e a vida de
Clarice, tornou-se para mim minha possibilidade e minha condição de princípio.
Minha vida, a escolha de minha vida, passa por Clarice Lispector. E, por
conseguinte, a teoria que produzo e articulo tornou-se para mim meu sintoma. A
teoria é um sintoma do homem (PESSANHA). Busquei percorrer esse caminho,
desteci o texto de outrem, e acabei por tecer minha própria teia biográfica. "Nós
somos, pura e simplesmente, história; o histórico é a própria raiz de nosso ser.
Mesmo nossos afetos mais caros ou nossas crenças mais íntimas são,
paradoxalmente, o que há de mais público; são, paradoxalmente, o não-nosso”
(p.104), ensina-nos Pessanha. Meu bios pode anteceder ao meu desejo, mas não
antecede ao meu histórico, nem à história que me constitui como sujeito. Ah quanta
39
pretensão eu tive tantas vezes, ao ler a obra de Clarice Lispector, de confiar em
meus sentidos e em meus bons sentimentos de leitor: tive a certeza muitas vezes de
que havia compreendido o sentido último do objeto texto. Ah como o leitor é uma
figurinha pernóstica, prepotente e presunçosa. Ainda hoje repito isso para meus
alunos, talvez para eu mesmo, inconscientemente, escutar melhor. Aprender a
escutar leva o tempo de uma vida. Reconheço que confiei demais em meus
sentimentos acerca de Clarice Lispector, primeiro, no meu afã de jovem leitor,
depois, por conta do despreparo teórico mesmo, até entender que por trás deles há
juízos e valores estéticos, morais e filosóficos que nos esperam pacientemente com
nossa boa consciência cega. Nada fraternal nem familiaresco, pelo contrário, até
meio raivoso, porque o sentimento da raiva também é histórico, menciono
Nietzsche para eu mesmo escutar mais e melhor: "Confie em seu sentimento - isso
significa obedecer mais ao seu avô e à sua avó e aos avós deles do que aos deuses
que estão em nós..." (Apud PESSANHA, p. 105). Agora sei, e posso dizer: o que
busquei a vida inteira em Clarice Lispector, e não encontrei, ou o encontrei em
parte, e que de alguma forma continuo buscando até hoje, como o faço agora, já
está de alguma forma em mim, inscrito em mim, em meu corpo.

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Talvez não em minha consciência, porque ela também pode ter sido invadida
alhures. Meu corpo, não; meu corpo é histórico. Eu penso a partir de meu corpo.
Descartes pelo avesso. Minha leitura sobre Clarice Lispector, meu texto sobre ela,
não podem ser nunca meu lugar de descanso. Antes talvez sejam o lugar aonde eu
chego para existir, e depois pensar, comer, dormir, sonhar, morrer quem sabe? Uma
convicção tardia e necessária: eu só posso falar de minha Clarice Lispector. Minha
neblina e minha ignorância.
Precisamos aprender a dizer adeus a quem amamos. Quero aqui, hoje, nesse
evento de homenagem, dizer adeus a Clarice Lispector. E descubro que até para
dizer adeus àquele que amamos é preciso aprender. Mais uma vez, o filósofo
Jacques Derrida, com o seu Adeus a Emmanoel Lévinas (2004), me ajuda nessa hora
confusa de despedida sem adeus. Confesso que nunca aprendi, sequer pensei, em
ter que dizer adeus à minha Clarice em minha vida. Houve a morte antes de nosso
primeiro encontro. De modo que falo de uma Clarice que independe da condição de
morte ou vida. Falo de uma sobrevida. Sempre que me dirigi, e continuo fazendo
isso agora, a Clarice Lispector, me dirigia a uma persona de alguém que existira,
cuja persona se me insinuava na letra, somada a uma persona que eu fabricava na
dificuldade de meu trabalho, mas o bom de tudo é que ao final um rosto quase
desvelado se erigia, querendo sempre esgarçar um quase-sorriso para mim. Talvez
40
mais do que minha neblina, Clarice tenha significado para mim a pergunta que eu
fizera outrora e que continuo fazendo até hoje, quarenta anos depois, "uma certa
não-pergunta numa resposta que não terá, enquanto eu viver, um final para mim"
(DERRIDA, 2004, p.20).
Tenho vontade de pôr no centro deste texto-homenagem a Clarice Lispector,
e já o faço agora, que a morte não teve meu consentimento para morrer,
parafraseando as belas palavras de um grande psicanalista, autor do belo livro O
perfume das acácias(1997).
Lévinas dissera e Derrida repete, em Adeus a Emmanoel Lévinas, que "eu sou
responsável pelo outro enquanto ele é mortal". Quando conheci Clarice, já tinha
havido a morte, como já disse, mas ainda hoje não posso dizer que a morte do outro
não me afetou, não afetou minha identidade de alguma forma, não afetou meu jeito
de pensar sobre esse outro. Clarice escreveu a morte - talvez sua morte, a morte do
outro, a morte de toda a humanidade. Não por acaso, a morte está plantada no meio
de sua escritura. Em parte, aprendi a contornar a morte da\na escritura-escritora,
mas ela me incomoda - "uma culpabilidade de sobrevivente".

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Fazendo alusão ao que Derrida diz acerca do amigo morto Lévinas, cada vez que
leio ou releio Clarice Lispector, como faço agora, sinto-me inundado de gratidão e
de admiração, e sobressai aquela vontade louca e séria de falar dela para além da
vida ou da morte, para além da letra, para além do tempo, na infância de um sentido
que ainda não existe.

REFERÊNCIAS
ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução e psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, Ed.,
1993.
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel lévinas. São Paulo: perspectiva, 2004.
MARTINS, Geraldo Majela. O perfume das acácias. Belo horizonte: Casa Cambuquira,
1997.
NOLASCO, Edgar Cézar. A (des)ordem epistemológica do discurso fronteiriço. In:
CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: Ocidente/Oriente: migrações. Campo Gradne:
Editora UFMS, Vol. 8, N. 15, Jan./Jun. 2016. p. 47-66.
PESSANHA, Juliano Garcia. Ignorância do sempre. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 41

Artigo Recebido em: 29 de novembro de 2017.


Artigo Aprovado em: 18 de dezembro de 2017.

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