Oliveira Vianna entre o espelho e a máscara
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Sobre este e-book
Nos fragmentos do acervo documental de Oliveira Vianna, Giselle Venancio encontrou máscara e espelho. A máscara é aquela de uma subjetividade que não se pensava irrisória; o espelho, o de um homem público, cujo reflexo deveria, então, superar o seu próprio tempo.
Para que a máscara e o espelho de Vianna se tornassem visíveis, Giselle Venancio procedeu a uma rigorosa arqueologia desses resíduos. No seu modo de classificação, desvendou o código de sentido único, em forma de autobiografia, que lhes fora impresso. Atribuiu, com isso, densidade sociológica e histórica à suposta naturalidade do gesto organizador. Transformou o arquivo em campo de interrogação sobre o controle exercido na construção tensa, sob a força do nome próprio, de uma figura engrandecida de homem público em meio à trivialidade das relações da vida privada.
E o que diz "o morto" na letra morta do arquivo? A resposta a esta velha pergunta encerra, neste livro, um modo singular de história intelectual, que faz com que Oliveira Vianna mostre um rosto no espelho do seu tempo. E, no mesmo movimento, faz com que seja revelada a sua máscara, que nos chega, hoje, como identidade autoral de uma obra lavrada em grandes livros e tramada em pequenos papéis.
Andrea Daher
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Oliveira Vianna entre o espelho e a máscara - Giselle Martins Venancio
Coleção
HISTÓRIA & HISTORIOGRAFIA
Coordenação
Eliana de Freitas Dutra
Giselle Martins Venancio
Oliveira Vianna
entre o espelho e a máscara
PREFÁCIO
Roger Chartier
Sem a orientação de Andrea Daher
e Roger Chartier, este texto
não teria sido escrito.
Sem o carinho de Eliana Dutra,
ele não teria vindo a público.
Sem o amor de Henrique,
Igor, Tomás e Vitória,
ele nem mesmo teria sido sonhado.
Prefácio
Roger Chartier
Collège de France
Giselle Martins Venancio abre este livro elegante e erudito com um poema de Jorge Luis Borges, O espelho
, que exprime um duplo medo: o de encontrar no espelho a imagem de um outro, de uma máscara; e aquele, mais terrível, o de reconhecer nele sua própria alma, carregada de culpas e de sombra. Ela nos convida assim a nos determos em Borges e no conto que publicou em 1975, no Livro de areia: O espelho e a máscara
. Nessa fábula, que desloca a relação entre a máscara e o espelho, o poeta Ollan deve celebrar em versos seu rei vencedor. A primeira ode que compõe respeita as convenções e os exemplos, e é como um compêndio de toda a literatura irlandesa que a precedeu. Por sua execução, Ollan recebe um objeto que, como sua obra, mostra apenas o que já está lá: um espelho. Mas o rei, insatisfeito, lhe pede um segundo poema. O poeta o escreve ignorando as regras, todas as regras: da gramática, da versificação e da poética. Sua ode, desta vez, surpreende, maravilha e cativa seus auditores. Não é mais um reflexo do que é e do que foi; é uma criação que faz advir o que não era. A recompensa do poeta será uma máscara de ouro, como aquelas dos atores que dão vida a novos mundos ainda incriados. Assim entendida, a fábula do espelho e da máscara pode nos guiar na leitura da biografia intelectual
de Oliveira Vianna que Giselle Venancio nos oferece.
Ela nos permite, de fato, superar a oposição entre determinações objetivas e liberdades subjetivas que marcou os debates a propósito desse gênero historiográfico. Toda atenção era voltada, de um lado, às coações ignoradas pelos indivíduos e que, no entanto, fazem com que eles sejam o que são; de outro, às racionalidades conscientes operantes nos projetos, ações e escritos desses mesmos indivíduos. Essa oposição alimentou os confrontos entre abordagens sociológicas e análises micro-históricas, entre descrições estruturais de sistemas que capturam os indivíduos e a escuta dos atores, entendidos através de suas próprias palavras. Borges em seu conto e Giselle Venancio em seu estudo sugerem uma outra perspectiva, que amalgama o que o espelho
reflete (a herança, o habitus, as instituições) e aquilo que a máscara
inventa: a construção de um autor, a representação de si, a imagem pública.
A autora coloca diante do espelho de sua análise todas as relações que Oliveira Vianna mantém com as heranças que o modelaram. As origens sociais, a trajetória de uma família letrada mas empobrecida, os estudos de direito e a presença dos livros incorporaram nele um habitus, matriz de suas escolhas, de seus gostos, de seus gestos. Estes encontraram e tiraram proveito de outras realidades já existentes: as instituições eruditas que o acolhem (o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1924; a Academia Brasileira de Letras, em 1937), as revistas e jornais com que colabora e, de maneira menos imediata, as oposições que estruturam o campo intelectual e acadêmico de seu tempo: entre letras e ciências, entre boemia literária
e eruditos, entre as diferentes disciplinas.
O magnífico capítulo consagrado por Giselle à biblioteca de Oliveira Vianna marca a passagem entre o espelho e a máscara. A biblioteca é um espelho porque recebe, no espaço arranjado para este fim, as heranças literárias e os conhecimentos científicos já inscritos nas páginas dos livros. Com grande precisão, a análise aponta as escolhas feitas por Oliveira Vianna. Ainda que um busto de Eça de Queirós esteja presente na biblioteca, assim como todos os grandes clássicos da literatura mundial, a coleção, de mais de quatro mil títulos, é dominada pelas obras de ciências sociais, de direito e de jurisprudência que constituem mais da metade do acervo. Nesse conjunto, que acompanhou os cargos públicos de Vianna, as escolas sociológicas francesas estão bem representadas: a das investigações sociais de Le Play, a de Gabriel Tarde, a do Année sociologique de Durkheim, Mauss, Halbwachs ou Simiand. Para além desse inventário, a autora descreve os processos de constituição da biblioteca (as encomendas a livreiros ou as trocas com outros autores) e as técnicas de trabalho de Oliveira Vianna. Estas se inscreviam em práticas de longa duração que consistiam basicamente em extrair citações dos livros lidos, recopiá-las em folhas ou em fichas (os papagaios
de Vianna) e finalmente empregá-las em seus próprios livros, como demonstra o estudo das obras que ele cita e das epígrafes que utiliza em seus livros (ou capítulos).
Mas a biblioteca também é máscara, na medida em que constrói uma representação de seu dono, para ele mesmo, para os outros e para a posteridade. Oliveira Vianna pertence a essa família de intelectuais que organizaram o arquivo de si mesmos, conservando os livros adquiridos, é claro, mas também os esboços de seus trabalhos e as cartas recebidas (e, por vezes, até as cópias das cartas enviadas). Foi esse material que constituiu a base da biografia escrita por Giselle, mas o grande mérito da autora foi o de não se deixar enganar por ele. Tratou-o, de fato, como um instrumento manejado por Vianna para construir recursos e imagens. Ela mostra, por exemplo, como a autorrepresentação de um autor solitário, retirado em sua biblioteca, votado inteiramente à sua obra, não deve mascarar a realidade dos esforços perseverantes de Vianna para estabelecer, alimentar e reforçar, graças a uma intensa correspondência, redes de amizade e de sociabilidade, úteis intelectual, acadêmica e politicamente. Ou, ainda, que a autodefinição de Vianna como um sábio
não deve apagar o político
, como diria Max Weber, profundamente engajado no Estado Novo e em sua legislação corporativista.
Essa construção de si por si, ou, como escreve Giselle, essa fabricação da memória
, se fez tanto mais necessária em função das críticas dirigidas a Oliveira Vianna, seja pelo papel que desempenhou junto a Getúlio Vargas, seja por suas referências às teorias raciais, ou racistas, de Vacher de Lapouge. Mas já antes dessas críticas, acompanhadas pela negação da cientificidade de seus livros, Vianna desenvolvera diversas estratégias de legitimação de sua obra escrita. Giselle as examina cuidadosamente.
A primeira delas, utilizada desde as primeiras décadas do século XX, consistia na publicação de artigos em revistas (especialmente na Revista do Brasil) para conferir legitimidade intelectual a seus livros por vir. Daí o encontro com Monteiro Lobato e a publicação em 1920 do primeiro livro de Vianna, Populações meridionais do Brasil, nas Edições da Revista do Brasil, título reeditado dois anos depois por Monteiro Lobato e Companhia. A autora analisa com sutileza as relações epistolares – nunca interrompidas, mas intensamente afetadas pela colaboração de Vianna com o Estado Novo – entre o editor revolucionário
e o pensador autoritário, conservador e retrógrado
. Uma segunda estratégia de Oliveira Vianna foi a de ser seu próprio prefaciador. Para cada um de seus livros, e para cada reedição destes, escreveu prefácios que tentavam demonstrar a continuidade e a coerência da totalidade de sua obra – o que significava a um só tempo responder às críticas e afirmar o acerto, quando não o caráter antecipatório, de suas análises. Por fim, uma terceira estratégia consistiu no envio de seus livros a diversos homens de lei e de letras capazes de legitimar e propagar suas ideias tanto no mundo intelectual quanto no político.
Em sua análise dos prefácios escritos para si mesmo por Oliveira Vianna, Giselle recorda a seguinte definição do gênero: textos normalmente breves que abrem um livro, os prefácios têm o objetivo de apresentar o que vem a seguir de modo a suscitar no leitor o intenso desejo de lê-lo
. O autor deste prefácio foi um leitor apaixonado da versão original deste livro, erudito e pulsante. Ele só pode esperar que o prazer intelectual que teve se converta, para vocês, leitores deste prefácio, em ardente e imediato desejo de ler este belo livro.
Espelhos
Quando menino, eu temia que o espelho me mostrasse outro rosto ou uma cega Máscara impessoal que ocultaria algo na certa atroz. Temi também que o silencioso tempo
do espelho se desviasse do curso cotidiano dos horários do
homem e hospedasse em seu vago extremo imaginário
seres e formas e matizes novos. (Não disse isso a ninguém, menino tímido.) Agora temo que o espelho encerre o
verdadeiro rosto de minha alma, lastimada de sombras e de culpas, o que Deus vê e talvez vejam os homens.
Jorge Luis Borges, Poesia, 2009, p. 282.
Arquivar a própria vida é pôr-se no espelho
, já afirmou Philippe Artières (1998, p. 11). Pôr-se diante de cristais que, nas metáforas dos escritos borgeanos, parecem sempre nos apontar os modos como vemos o mundo, e como nos vemos no mundo. Espelhos que refletem, que deformam, que informam menos, mais, ou distinto, do que consideramos de nós mesmos. Cristal que espreita
e que, em seu reflexo, arma um sigiloso teatro
(BORGES, 2008, p. 73). Arquivar-se é pôr-se no espelho, de tal forma a exibir a exemplaridade da própria existência, redefinindo-se na pluralidade dos acontecimentos. Arquivar-se é pôr-se no espelho, é, de certa forma, engajar toda a existência na inquietude de pôr em ordem certo número
¹ de eventos e ações.
Francisco José de Oliveira Vianna arquivou-se. Ao longo de sua vida, organizou um arquivo pessoal, ordenando acontecimentos que balizaram sua existência, estabelecendo coerências, construindo continuidades e linearidades em sua trajetória. Assim, Vianna almejou deixar definido o seu lugar social, suas relações com os seus pares e uma espécie de esboço de sua própria biografia. Na gestão e organização de um sem número de contradições e tensões
(POLLAK, 1989, p. 13), elaborou sua versão. Numa escrita fragmentária, deixou inscrito o seu caráter modelar de homem público e a grandeza de sua produção intelectual.
Porém, não registrou tudo. Elaborou modos de se expor e de se ocultar. Silenciou sobre diversos aspectos de sua trajetória. Nesse espelhar-se e ocultar-se, mostrou-se o homem público e o intelectual, ocultou-se a dimensão privada de sua vida, num jogo de reflexos, que, como cristais fiéis ou deformantes, elaboravam representações de Vianna, que contribuíam para a produção de sua construção autoral. Seu arquivo privado não guarda nenhuma linha mais explícita sobre sua vida pessoal. Há esparsas referências à vida familiar. Os documentos explicitam, entre registros e lacunas, lembranças e esquecimentos, o dizível e o indizível, o memorável e o imemorial.
O acervo organizado por Vianna é, assim como todo arquivo pessoal, um locus privilegiado de análise histórica, pois registra uma forma de acumulação privada que possui como marca identitária específica o nome próprio do titular. Não que ele represente um conhecimento mais verdadeiro
sobre Oliveira Vianna, porém, assegura a possibilidade de mudança de foco a partir da redução do campo de observação e a compreensão de configurações intelectuais múltiplas que exibem representações elaboradas sobre esse intelectual. A análise desse acervo permite a compreensão das relações estabelecidas entre as representações subjetivas do titular do arquivo e aquelas que se constroem sobre ele, podendo, dessa forma, contribuir para o trabalho do historiador, revelando dimensões negligenciadas em outros tipos de abordagens históricas.
O arquivo de Vianna, embora, possivelmente, de caráter autobiográfico (HEYMANN, 1997), não é uma construção narrativa exclusivamente pessoal. Ele guarda a leitura e a escrita de si próprio, ao mesmo tempo em que as múltiplas leituras e escritas de todos aqueles que passaram por seu processo de elaboração e organização. Sem dúvida, o arquivo constitui uma representação de Oliveira Vianna que pode ser decodificada através de um trabalho interpretativo de seus documentos. Como observa Pomian (1992), ao contrário dos monumentos que remetem ao passado num simples olhar, os arquivos e documentos precisam ser decifrados e criticados, pois, segundo ele, o arquivo é uma memória objetiva, porém virtual. É a leitura histórica que o (re)atualiza e o (re)significa.
O arquivo privado pessoal de Oliveira Vianna constitui, assim, uma metáfora a ser decifrada que pode, na medida em que é explorado e analisado, informar sobre aspectos até então ignorados sobre ele e suas relações sociais. Entrar nesse arquivo e reconstituir a tessitura mais ou menos visível de sua atividade como leitor, escritor, professor, jurista e sociólogo é um dos desafios deste livro. Ao desenredar-se a trama do arquivo, elabora-se uma biografia intelectual de Francisco José de Oliveira Vianna, levando-se em conta a sua escrita autobiográfica inscrita nos suportes materiais que compõem o acervo, bem como a fabricação de representações sobre esse intelectual construídas por outros indivíduos e grupos também inscritos nessa documentação, além de outras.
Assim, o arquivo privado e a biblioteca pessoal de Oliveira Vianna sugerem uma escrita (auto)biográfica que instiga a sua problematização e convida à elaboração de uma biografia intelectual, compreendida como trajetória.²
Dessa forma, este livro se insere na tradição de um tipo de produção historiográfica que (re)valoriza os vestígios escritos associados aos indivíduos, principalmente aqueles nos quais são registradas suas escolhas, intenções e ações públicas, com vistas a contribuir para o conhecimento do papel dos indivíduos na construção dos laços sociais
(CHARTIER, 1994, p. 97-113), buscando relativizar o que, nas palavras ácidas de Bourdieu (1987, p. 43), significa a oposição cientificamente absurda entre indivíduo e sociedade
.
Ao circunscrever-se o âmbito desta investigação, buscou-se sobrepor as diversas séries documentais no tempo, de modo a, por exemplo, encontrar-se o mesmo indivíduo em contextos sociais diversos (GINZBURG, 1989, p. 173-174), proposta que acabou por se aproximar daquelas realizadas pelos historiadores que destacaram como objeto de análise a escrita biográfica.
A biografia, embora sempre presente como gênero de escrita, foi retomada pelos historiadores, nos anos 1990, como um modo de superar o constante desafio diante do qual as análises sociais oscilam, de forma pendular, ora priorizando os sistemas normativos que se impõem aos indivíduos, ora destacando atores históricos que obedecem a um modelo de racionalidade radicalmente livre dos condicionamentos sociais. Talvez seja este o motivo que tenha levado Giovanni Levi a afirmar, em texto de 1989, que os escritos biográficos consolidavam a maioria das questões metodológicas da historiografia contemporânea […], sobretudo as relações com as ciências sociais, os problemas das escalas de análise e das relações entre regras e práticas, bem como aqueles, mais complexos, referentes aos limites da liberdade e da racionalidade humanas
(1996, p. 167-182).
Essa valorização da biografia, no entanto, não foi realizada sem oposições. Alguns historiadores temeram que isso significasse uma capitulação diante de uma história tradicional, e afirmavam que se corria o risco de abandonar a história-problema para voltar a uma história cronológica, baseada em uma frágil conceituação (LORIGA, 1998). Acreditava-se que o destaque dado a um destino individual poderia levar os historiadores a um abandono das reflexões mais voltadas para o social e um retorno à antiga ideia de valorização do herói, do gênio, do excepcional.³
Como resposta a essa crítica, os historiadores interessados no gênero biográfico produziram uma prática historiográfica original. O foco no destino individual foi visto por eles como uma forma de enriquecer a análise social, tornando suas variáveis mais numerosas, mais complexas e também mais móveis (REVEL, 1998, p. 23). Interessava a esses historiadores conhecer um grande número de experiências distintas vividas por um mesmo indivíduo em contextos diversos. Marcada por reflexões múltiplas, essas narrativas histórico-biográficas questionavam a ilusão de uma identidade [individual] específica, coerente e sem contradição
(LEVI, 1996, p. 173) associando-a à necessidade de reconstruir o contexto, a
superfície social em que age o indivíduo numa pluralidade de campos, a cada instante
(p. 169).
Nesse sentido, Maurizio Gribaudi (1998), por exemplo, propôs acompanhar itinerários individuais que permitiam fazer aparecer a multiplicidade de experiências, a pluralidade de seus contextos de referências e as contradições internas e externas das quais eram portadoras. A ideia de itinerário sugeria um rompimento com a visão tradicional da biografia como um relato linear e cronológico, recuperando a relação, e não reforçando a antítese, entre o social e o individual.
A concepção aproximava-se, assim, da noção de trajetória, como elaborada por Pierre Bourdieu (1996a, p. 81-82), que opunha à ideia de narrativa biográfica, com base no pressuposto de que a vida constitui um todo coerente e orientado que se desenrola numa ordem cronológica, o conceito de trajetória partindo da noção do real como fragmentário e descontínuo.
Embora Giovanni Levi critique a proposta elaborada por Bourdieu, por considerar que esta mantinha sua ênfase nos aspectos mais deterministas e insconscientes
das ações humanas – ao se remeter à relação entre "habitus de grupo e habitus individual" (LEVI, 1996, p. 175) –, pode-se sugerir, indubitavelmente, que a noção de trajetória permite investigar, como propõe o próprio Levi, os interstícios
que os sistemas gerais de normas deixam aos atores
(p. 179).
Assim, apropriando-se das reflexões derivadas tanto da escrita de Pierre Bourdieu quanto da de Michel de Certeau, Roger Chartier elaborou uma proposição historiográfica que buscava identificar as maneiras por meio das quais os atores sociais investem de sentido suas práticas e seus discursos, evidenciando como em contextos diversos e mediante práticas diferentes […], estabelece-se o paradoxal entrecruzamento de restrições transgredidas e de liberdades restringidas
(CHARTIER, 2001, p. XIII).
Ao tomar em diálogo as obras de Pierre Bourdieu e Michel de Certeau, frequentemente lidas em oposição termo a termo – Bourdieu como aquele que destaca um mundo social e um poder implacáveis; em contraposição a Certeau, que centra sua reflexão na inventividade dos indivíduos –, Chartier evidencia o fato de que, lidas em conjunto, essas obras apontam para uma rica forma de trabalhar o mundo social. Segundo sua leitura, Certeau demonstra que a liberdade, a inventividade e a possibilidade criativa situam-se, necessariamente, no interior de regras ou códigos sociais, e Bourdieu destaca, a partir dos conceitos de senso prático e estratégia, que as condutas e os comportamentos individuais não são, jamais, redutíveis às determinações sociais (VENANCIO, 2014).
Da análise proposta por Roger Chartier derivam questões que norteiam o que se pretende investigar neste livro: Em que medida um arquivo e uma biblioteca pessoal dão a ler uma trajetória por meio de autorrepresentações e representações múltiplas de seus titulares? É possível ler esses acervos como um lugar de registro consciente das escolhas cultural e socialmente determinadas realizadas pelos agentes sociais? Pode-se, a partir da investigação desses documentos, verificar o caráter intersticial da liberdade que dispõem os agentes
(LEVI, 1996, p. 180) para manipular, negociar e interpretar os sistemas normativos – contraditórios – nos quais se inserem?⁴ Uma trajetória intelectual elaborada a partir dos documentos presentes em um acervo privado pessoal permite entrever as ações individuais, bem como geracionais e de inserção em tradições intelectuais, em um processo de construção autoral?
São essas as questões que conduzem a reflexão realizada ao longo deste livro.
A primeira parte – Espelhos – é constituída por dois capítulos. No primeiro, intitulado Cartogramas, a análise é particularizada pela compreensão do lugar ocupado por Oliveira Vianna no espaço da produção intelectual de Niterói e do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX. Pretendeu-se traçar uma anatomia⁵ do mundo das letras nessas duas cidades, buscando-se identificar a formação do campo intelectual e a trajetória de Vianna nesse espaço. Nessa análise, a noção de campo, proposta por Bourdieu, foi fundamental. Visto que os acontecimentos biográficos se definem prioritariamente como alocações e deslocamentos no espaço social, o campo – pensado como o microcosmo social no qual se produzem bens culturais – permite elaborar uma visão da sociedade a partir da observação de cada agente ou de cada instituição em suas relações objetivas com todos os outros.⁶ Assim, foi primordial perceber como se posicionaram os diversos intelectuais diante das instituições que compunham os espaços intelectuais, em Niterói e no Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século XX, e como Vianna neles se inseria a partir da análise das instituições às quais pertencia, e de sua correspondência social. A trajetória de Oliveira Vianna é pensada em relação aos seus pares, buscando-se estabelecer –, em contraposição a uma análise dos pensamentos individuais –, uma história da intelectualidade nesse lugar e período. Para esse fim, buscou-se identificar as redes de sociabilidade estabelecidas entre os intelectuais, com destaque especial para a utilização da correspondência passiva de Oliveira Vianna, presente em seu acervo privado.
O segundo capítulo, chamado Trajetórias no espelho, trata especificamente do processo de formação acadêmica de Oliveira Vianna, assim como de seu itinerário profissional em suas contingências históricas. Como se formava um intelectual? Em que medida sua formação permitiu ou limitou suas escolhas profissionais? Quais eram os seus valores? Quais os caminhos possíveis para os letrados? Através das cartas, bilhetes e outros documentos, investiga-se, nesse capítulo ainda, o processo de aposentadoria de Oliveira Vianna, pois esse foi um momento singular no qual a rede de amizades, urdida ao longo de sua vida, criou o capital simbólico que lhe permitiu posicionar-se de forma excepcional, mesmo numa situação em que sua trajetória profissional apontava para uma posição decadente.
¹ Costa Lima refere-se ao comentário feito por Maurice Blanchot – segundo ele um dos melhores intérpretes de Kafka – que, diante da obsessão com que este último perseguia a criação literária teria se surpreendido e perguntado: Como se pode engajar toda a existência na inquietude de pôr em ordem um certo número de palavras?
. Tomamos aqui livremente a frase de Blanchot para nos referirmos à ação deliberada de pôr em ordem a existência num processo de arquivamento pessoal nos acervos privados (BLANCHOT apud COSTA LIMA, 1993, p. 39).
² Bourdieu (1996a, p. 81-82) define trajetória como […] uma série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço ele próprio em devir e submetido a transformações incessantes. […] Os acontecimentos biográficos definem-se antes como alocações e como deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente, nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição dos diferentes tipos de capital que estão em jogo no campo considerado. […] Isso é, não podemos compreender uma trajetória, a menos que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou; logo o conjunto de relações objetivas que vincularam o agente considerado ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e que se defrontaram no mesmo espaço de possíveis
.
³ Sabina Loriga (1998, p. 248) afasta-se dessa noção do gênio e do heroi. Porém destaca que a biografia não deve ser pensada do ponto de vista dos casos típicos: […] numa […] perspectiva elaborada nos últimos anos pela micro-história não é necessário que o indivíduo represente um caso típico; ao contrário, vidas que se afastam da média levam talvez a refletir melhor sobre o equilíbrio entre a especificidade do destino pessoal e o conjunto do sistema social
.
⁴ Esta última questão é derivada diretamente das proposições de Giovanni Levi ao analisar os usos da biografia. Levi (1996, p. 179-180) destaca a biografia como uma elaboração privilegiada para se investigar a relação entre normas e práticas, indivíduo e grupo, determinismo e liberdade, racionalidade absoluta e racionalidade limitada.
⁵ Robert Darnton utiliza a expressão anatomia da república das letras
ao analisar os relatórios que um inspetor do comércio livreiro chamado Joseph D’Hémery produziu, quando investigou os indivíduos que escreviam livros em Paris, ao longo do século XVIII. Segundo Darnton, ao proceder essa investigação, D’Hémery possibilitou que se esboçasse um perfil do intelectual no apogeu do Iluminismo
(DARNTON, 1986, p. 191-245).
⁶ Segundo Bourdieu (1996, p. 53), […] os campos de produção cultural propõem, aos que neles estão envolvidos, um espaço de possíveis que tende a orientar sua busca definindo o universo de problemas, de referências, de marcas intelectuais […] esse espaço de possíveis é o que faz com que todos os produtores de uma época sejam ao mesmo tempo situados, datados e relativamente autônomos em relação às determinações diretas do ambiente econômico e social […]
.
Máscaras
Escolher a própria máscara é o primeiro gesto
voluntário humano. E solitário. Mas quando
enfim se afivela a máscara daquilo
que se escolheu para representar-se e
representar o mundo, o corpo ganha uma
nova firmeza, a cabeça ergue-se altiva
como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo, 1999, p. 80.
Francisco José de Oliveira Vianna é autor de vasta obra e referência incontornável quando se trata de pensar o Brasil. Intelectual de grande destaque na primeira metade do século XX, a ele são atribuídos os primeiros estudos de Sociologia realizados no país, assim como a inspiração e concepção da regulamentação legal dos direitos trabalhistas.
Ao longo de cerca de trinta anos, Oliveira Vianna escreveu textos, artigos, livros, prefácios, discursos, constituiu-se como autor, sentido fundador da própria noção de construção da sua obra (FOUCAULT, 2001). Elaborou sua máscara, uma expressão de si, um autorretrato perene para seus leitores, uma identidade autoral, composta, fragmentariamente, por meio de diversas narrativas.⁷
Se, como já afirmou João Hansen (1992, p. 11), para a experiência imediata da opinião, a noção de autor aparece como autoevidente
, e no sentido dado pelo senso comum, um texto é necessariamente reflexo das características mais particulares de seus autores, desde os escritos de Michel Foucault, nos anos 1970, a condição autoral desnaturalizou-se ao ser definida como um dispositivo, uma função
, produzida por operações complexas que se estabelecem no afastamento radical entre o nome do autor e o indivíduo real, entre uma categoria do discurso e o eu subjetivo
(CHARTIER, 2013, p. 29).
Os modos de Vianna falar de si mesmo, através da organização de seus documentos, e na letra de seus textos, buscavam tanto conformar a recepção de seus escritos junto à crítica e ao seu público leitor quanto organizar a percepção da particularidade e originalidade de sua obra e de sua personalidade, conformando uma autenticidade autoral.
Um dos objetivos deste livro é destacar a trajetória de Oliveira Vianna, em seu processo de constituição de uma identidade autoral. Acredita-se que a ação de Vianna na escrita de seus textos e prefácios, bem como na ação de organização de sua escrita (auto)biográfica pela organização de seu acervo, conformou grande parte do processo de apropriação de sua identidade, particularmente, de sua formação, autopercepção e designação como autor.⁸
Desse modo, analisa-se, na segunda parte deste livro – Máscaras –, as complexas relações estabelecidas no processo de construção da identidade autoral de Oliveira Vianna.
No capítulo intitulado A biblioteca: máscara e espelho investiga-se a biblioteca privada de Oliveira Vianna com o objetivo de se compreender, através da análise do conjunto de livros, aspectos de seu itinerário intelectual e de suas práticas de leitura. Esse capítulo analisa o processo de formação do acervo da biblioteca, bem como o seu percurso de leitor e os vestígios da maneira pela qual se realizou a sua produção escrita.
No último capítulo, denominado Máscaras: dispositivo autoral, esboça-se sua trajetória editorial, reconhecendo-se que a produção intelectual de Vianna insere-se numa problemática mais ampla, relacionada à qualificação social na qual se inseria. E busca-se investigar em que medida o trabalho de seus editores contribuiu para a transformação de Vianna em um dos autores considerados referência fundamental na história do pensamento social brasileiro.
⁷ Segue-se aqui a ideia de autorretrato sugerida por Eneida Maria Souza (1999) – ao tomá-la de Michel Beujour – em Autoficções de Mário
para compreender a configuração autoral.
⁸ A escolha da perspectiva individual não é aqui, evidentemente, contrária à social. A ideia é, como já se disse, reconhecer a ação de um sujeito entre outros, conciliar a singularidade e o coletivo, como propõe Jacques Revel, ao assinalar que o individualismo metodológico tem limites, já que é de um conjunto social – ou melhor, de uma experiência coletiva – que é sempre preciso procurar definir as regras de constituição e de funcionamento
(REVEL, 1998, p. 21).
Correspondências:
entre espelho e máscara
Ao longo de todo o livro, optou-se por utilizar o conjunto de correspondências passivas conservadas no arquivo de Vianna como fio condutor da análise das suas