Um Olhar Fenomenológico
Um Olhar Fenomenológico
Um Olhar Fenomenológico
RELACIONAMENTOS ABUSIVOS:
UM OLHAR FENOMENOLÓGICO
Belo Horizonte
2022
Letícia Dias Pires
RELACIONAMENTOS ABUSIVOS:
UM OLHAR FENOMENOLÓGICO
Belo Horizonte
2022
30/05/2023, 09:10 SEI/UFMG - 2333131 - Folha de Aprovação
Folha de Aprovação
ANÁLISE FENOMENOLÓGICA DE PESSOAS QUE VIVENCIARAM UMA RELAÇÃO ABUSIVA
monografia defendida e aprovada, no dia dez de dezembro de 2022, pela Banca Examinadora designada pelo Colegiado do
CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CLÍNICA: GESTALT-TERAPIA E ANÁLISE EXISTENCIAL da Universidade Federal de
Minas Gerais constituída pelos seguintes professores:
Documento assinado eletronicamente por Valteir Goncalves Ribeiro, Chefe de seção, em 25/05/2023, às 09:56,
conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
Documento assinado eletronicamente por Claudia Lins Cardoso, Professora do Magistério Superior, em
29/05/2023, às 15:33, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de 13
de novembro de 2020.
The present study started from the interest of understanding the relationships between
intimate partners, taking into account the relationships that come to be understood as abusive.
Theme that has appeared recurrently in the clinic and currently much has been said about the
subject in the media and social networks. With this, the present study aimed to understand
abusive relationships in the light of phenomenology, so that with this understanding it is
possible to think about interventions in clinical management to assist these people who come
to us at the clinic. To achieve the proposed objective, a bibliographical survey was carried out
in order to approach the theme and get in touch with what has been produced on the subject.
After the studies, it can be understood that it is important to help people subjected to
experiences of violence to rescue their autonomy and find themselves again as a being of
possibilities, which can be achieved through a phenomenological posture, presenting itself as
a presence, welcoming with a listening without judgments and rescuing together with the
person the re-signification of their experiences.
1 INTRODUÇÃO……………………………………………………………………. 11
2 A CONCEPÇÃO DE SER………………………………………………………… 13
5 ALGUMAS CONCLUSÕES……………………………………………………… 32
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………… 35
11
1 INTRODUÇÃO
O interesse pelo tema surgiu pela presença constante da temática na clínica, rodas de
conversas com amigos, principalmente com mulheres, e também pela grande exposição que o
tema tem ganhado na mídia e nas redes sociais. Muitas pessoas tem trazido à tona o tema de
relacionamentos abusivos, compartilhando suas experiências de sofrimento e como essas
relações trouxeram vários impactos negativos.
No presente estudo, o relacionamento abusivo é compreendido como qualquer relação
afetiva em que exista a presença de violência, seja ela de forma explícita ou sutil. Sendo a
violência vivenciada na relação afetiva como mecanismo de dominação, opressão e controle.
(SOUZA, 2018). Destacando que um dos desdobramentos possíveis da vivência de relações
afetivas marcadas pela violência ou abusos, é o adoecimento psíquico daqueles que se sentem na
posição de vítimas.
Para se buscar compreender um pouco mais sobre relacionamentos humanos, é
importante elucidar qual a concepção de homem que aqui é trabalhada. O ser humano é
entendido, dentro da perspectiva heideggeriana, como Dasein, traduzido como ser-aí, em que
compreendemos que somos nosso próprio aí. A expressão “ser”, destaca como nos relacionamos
e nos comportamos em relação ao nosso próprio ser, o que será denominado existência para
Heidegger. Enquanto o termo “aí”, pensa o existir sempre situado em uma rede situacional, em
um mundo circundante, que não é compreendido como algo externo a nós, mas sim fazendo
parte de nossa existência. Ao irmos ao encontro do mundo, somos e estamos junto ao mundo, de
modo que a experiência de cada um com o mundo se constitui e se abre de forma única.
(BRAGA, FARINHA, MOSQUEIRA, 2019).
Fazendo essa leitura em Heidegger, podemos compreender o ser, enquanto sempre um
ser de possibilidades, pois nossa existência acontece nesse contínuo vir a ser. Contudo, nessa
condição de lançados no mundo, sem determinações prévias, existir é uma possibilidade e que
portanto, deixar de ser, também é. Vivemos com a constante possibilidade de deixarmos de ser,
que não aponta somente para a morte, mas também a todos os modos de ser nos quais nos
reconhecemos e nos compreendemos. Faz parte da liberdade do Dasein perceber e responder ao
se apresenta na abertura de mundo que somos, permitindo se desfazer e refazer as tramas de
sentido em que nosso ser, as coisas e os outros se encontram. (EVANGELISTA, 2017).
Com essa concepção de homem e retomando a temática dos relacionamentos abusivos,
que tem levado várias pessoas a buscarem a clínica, se faz importante compreender o que se
entende por relação abusiva, dentro dessa perspectiva. Com o intuito de se compreender como
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uma relação de abuso atravessa a existência das pessoas e como intervir nos processos de saúde.
Com isso, o principal objetivo desse estudo é compreender como a fenomenologia pode
contribuir no manejo clínico com pessoas que vivenciaram uma relação abusiva. Para isso,
também se propôs a compreender o conceito de relação abusiva à luz da fenomenologia e
investigar possibilidades de intervenções clínicas.
Para se atingir os objetivos propostos a pesquisa feita é de caráter exploratório. Já que o
objetivo é que através do estudo, a temática pudesse ser mais explorada e seus estudos mais
aprofundados, trazendo maior familiaridade ao tema. (GIL, 2002). A investigação do tema foi
realizada na modalidade qualitativa, buscando propiciar uma análise dos sentidos e das práticas
que envolvam o tema.
Para isso foi feita uma revisão bibliográfica, para se ter contato com as contribuições dos
principais teóricos da abordagem. Assim se buscou textos e publicações que falassem sobre
fenomenologia e outros que abarcassem o tema da violência entre parceiros íntimos e os
desdobramentos dessa vivência.
Claro que o estudo não tem a intenção de esgotar a temática, ainda mais por entender o
fenômeno dos relacionamentos abusivos e da violência como extremamente complexos e
atravessados por diversas questões. Também tem-se o entendimento que o presente trabalho não
aborda todas essas questões e nem todos os recortes que podem ser possíveis de serem
trabalhados, além de ser uma escrita datada e possível neste presente momento. Mas se pretende
contribuir com os estudos e ampliar a compreensão sobre o tema e os entendimentos sobre
saúde.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos, o primeiro deles “A concepção de ser” traz a
concepção de homem adotada pelo trabalho, trazendo as contribuições, principalmente, de uma
fenomenologia heideggeriana. No segundo capítulo “Entendendo um pouco sobre violência”
temos um aprofundamento sobre o conceito de violência, relacionando esse fenômeno às
relações conjugais. O terceiro capítulo, intitulado “Fenomenologia e relacionamentos abusivos”
traz a exposição dos textos e publicações estudados e uma articulação com a fenomenologia com
o intuito de se pensar na intervenção clínica. Finalizando o trabalho temos algumas conclusões
que foram possíveis de serem pensadas após o estudo.
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2 A CONCEPÇÃO DE SER
Dentro da perspectiva heideggeriana, vamos olhar o ser como Dasein, palavra que
traduzida significa “ser-aí”. Compreender o ser desta maneira, revela que o entendemos como
aquele ente para o qual o ser é sempre uma questão. Nos relacionamos e nos comportamos em
relação ao nosso próprio ser, o que será denominado existência para Heidegger. Já o termo “aí”,
pensa o existir sempre situado em uma rede situacional, em um mundo circundante, que não é
compreendido como algo externo a nós, mas sim fazendo parte de nossa existência. Ao irmos ao
encontro do mundo, somos e estamos junto ao mundo, de modo que a experiência de cada um
com o mundo se constitui e se abre de forma única. (BRAGA, FARINHA, MOSQUEIRA,
2019).
estamos dizendo de uma abertura para o ser em geral e é nessa abertura, que se dá o mundo.
Portanto, nesta perspectiva, não se cabe falar sobre interno e externo, pois ser e mundo se
entrelaçam, ser é ser-no-mundo.
Entendendo o ser humano como ser de abertura, como ser-aí, podemos olhar a realidade
como um modo de compartilhar mundos, de coexistir. O Dasein também está sempre em
abertura para outro Dasein, enquanto existência buscamos “ser-com”. Tecendo nossa biografia
coexistindo com outras existências.
Compreendendo o ser enquanto abertura de mundo, sem pré determinações, é importante
que o método para se trabalhar com essa visão, dialogue com essa perspectiva. Para pensar o
fazer o clínico e olhar a realidade, vamos buscar o suporte da fenomenologia, que de forma
sucinta, é um método que pretende observar os fenômenos abrindo mão de todos os a prioris.
Fenômeno sendo entendido como tudo aquilo que se manifesta ou se mostra. E aqui já há algo
de grande importância para a construção de como a fenomenologia compreende a realidade.
Quando se diz que algo se mostra, estamos dizendo que ela se mostra a nós, ao ser humano, à
pessoa humana. E somos nós que buscamos o significado e o sentido daquilo que está se
mostrando a nós. (ALES BELLO, 2006).
“Todas as coisas que se mostram a nós, tratamos como fenômenos, que conseguimos
compreender o sentido. Entretanto o fato de se mostrarem não nos interessa tanto, mas, sim,
compreender o que são, isto é, o seu sentido” (ALES BELLO, 2006, p. 19). Estar diante de um
fenômeno, não significa dizer que saberemos qual seu sentido imediato e isso já diz de uma
forma de se compreender a realidade.
compreender como um modelo de estrutura familiar e social que gira em torno da autoridade de
um homem. Apesar desse modelo ter se enfraquecido com as diversas mudanças que
aconteceram ao longo dos anos, que trouxeram maior autonomia às mulheres e a outros grupos
mais vulneráveis e excluídos, ainda existem resquícios desse sistema na forma como a
sociedade continua se estruturando. Inclusive é possível observar esses resquícios nas ideias
machistas, que pode ser compreendido como um conjunto de ideias que impõe padrões de
comportamentos identitários a homens e mulheres (MOURA, HENRIQUES, 2014).
Nesse sentido podemos pensar que o patriarcado e as ideias machistas colocam a figura
do gênero masculino, ou do homem, como se este fosse o único ser capaz de criação. Como já
dito, no entendimento fenomenológico existencial, o ser humano, o Dasein, é compreendido
como ser de abertura, que, enquanto ser precisa se a ver com sua existência fazendo escolhas
diante do que emerge como possibilidades em sua clareira de mundo. Esse ideal patriarcal pode
restringir as possibilidades existentes para os grupos que são tidos como inferiores, as mulheres,
por exemplo.
Além disso, como Moura e Henriques (2014) nos pontuam, o machismo também
contribui para a naturalização do entendimento que existem seres inferiores, normalizando
relações de exploração e abusos. Seguindo a fala das autoras, o machismo também impõe
padrões de comportamentos e dita certos papéis sociais, que devem ser seguidos tanto por
homens quanto mulheres. Isso também pode ser compreendido como uma grande restrição ao
ser de possibilidades que somos, já que se pode abrir mão das várias possibilidades existentes de
modos de ser, para se encaixar nos papéis impostos, para não se sofrer com violências e abusos
advindos da estrutura social.
Parte-se da ideia de que ao se encaixar nos papéis sociais impostos, isso evitará que se
sofra com as violências e abusos, mas talvez seja preciso questionar se seguir o que está sendo
imposto realmente evitará o abuso. Compreendendo a imposição como, já uma certa forma de,
violência, se encaixar ou não nos padrões exigidos, irá alterar a estrutura social presente que
alimenta essas ideias e organiza os modos de ser sociais? Talvez o que se possa ser evitado,
sejam as discriminações, pois as relações desiguais de poder ainda permanecem, favorecendo
que os abusos e violências continuem fazendo parte de nossa realidade. No próximo capítulo
essas discussões serão mais aprofundadas.
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Tem sido bastante comum em nossos tempos de hoje, encontrarmos diversos veículos de
comunicação e diversos estudiosos, famosos, influencers e pessoas que resolveram compartilhar
suas experiências nas mídias sociais, trazer à tona o tema de relacionamentos abusivos. Muito
tem se falado, de como essas relações trazem vários impactos negativos em quem as vivencia no
lugar de vítima.
Entendo aqui o relacionamento abusivo como qualquer relação afetiva em que exista a
presença de violência, seja ela de forma explícita ou sutil. A violência sendo vivenciada na
relação afetiva como mecanismo de dominação, opressão e controle (SOUZA, 2018). E um dos
desdobramentos possíveis da vivência de relações afetivas marcadas pela violência ou abusos, é
o adoecimento psíquico daqueles que se sentem na posição de vítimas.
Para compreender melhor o que se entende por relacionamento abusivo, se faz
importante discutir um pouco sobre violência, já que é a presença dela dentro da relação que a
define como abusiva. Outro ponto importante a deixar claro, é que vamos focar o estudo em
relações abusivas que acontecem entre parceiros íntimos.
Segundo estudos, as discussões sobre violência no Brasil tiveram seu início,
principalmente a partir da década de 1980. Nas últimas décadas, porém, tem se aumentado
bastante a produção de estudos dentro da área da saúde sobre violência, principalmente em casos
de violência contra mulher. Isso tem se justificado pela compreensão e reconhecimento da
gravidade desse fenômeno enquanto problema de saúde pública, tanto pela sua alta incidência
quanto pelas sérias consequências geradas à saúde física e psicológica dos que sofrem a
violência. (COELHO, SILVA, LINDNER, 2018).
Discutir o conceito de violência pode ser desafiador, visto que ele pode ter diversos
sentidos, que podem estar relacionados a ataque físico, emprego de força, ameaça ou até
comportamento ingovernável. Mas para ir ao encontro da perspectiva aqui trabalhada, que
compreende o ser sempre em relação, buscamos o conceito de Santos (1996) para nos ajudar a
jogar luz nesse conceito, segundo este autor:
A violência seria a relação social, caracterizada pelo uso real ou virtual da coerção, que
impede o reconhecimento do outro — pessoa, classe, gênero ou raça — mediante o uso
da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, configurando o oposto das
possibilidades da sociedade democrática contemporânea. (SANTOS, 1996, p. 291)
Indo ao encontro da fala do autor, Coelho, Silva e Lindner (2018) vão pontuar que é
importante se fazer uma diferenciação entre agressão (atos de violência) e conflito. Segundo as
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autoras, os maus-tratos são, na verdade, uma estratégia na resolução dos problemas, que podem
trazer danos aos envolvidos, e não consequências inevitáveis de um conflito. A violência e os
maus-tratos não são consequências de um conflito, pois este pode ser resolvido de diferentes
formas. O que as autoras pontuam é que a escolha por usar da violência como uma estratégia
para resolver um conflito, é um ato intencional. O que também está de acordo com a definição
que a OMS (Organização Mundial da Saúde) tem de violência, que trás uma clara relação entre
a intencionalidade do indivíduo que se envolve ou apresenta comportamento violento e a ação
praticada.
A OMS ainda propõe uma tipologia que aponta três grandes categorias de violência, que
refletem características daquele que pratica o ato violento. Elas seriam: (1) violência dirigida a si
mesmo (auto-infligida); (2) violência interpessoal e (3) violência coletiva. Cada uma dessas três
categorias são ainda mais divididas para retratar tipos mais específicos de violência (KRUG et
al, 2002).
A violência auto-infligida se subdivide em comportamento suicida e auto-abuso. Sendo
que o primeiro contém a presença de pensamentos suicidas, as tentativas de suicídio e os
suicídios que, de fato, se realizam. Já no auto-abuso, se considera atos contra si mesmo, como a
automutilação.
A violência interpessoal se divide em duas subcategorias, que são elas: violência da
família e de parceiro (a) íntimo (a) e violência comunitária. Na primeira subcategoria se diz da
violência que se desenrola entre membros da família e parceiros íntimos, que podem acontecer
dentro de casa, mas fora dela também. Já a violência comunitária acontece entre pessoas sem
laços de parentesco, que podem se conhecer ou não e geralmente se dão fora de casa.
Por último, a violência coletiva é subdividida em violência social, política e econômica.
Porém, de forma diferente das outras categorias, estas subdivisões pressupõem a possível
existência de motivos para a violência praticada pelos grandes grupos ou Estados.
No relatório da OMS, produzido por Krug et al (2002) também encontramos uma
classificação da violência de acordo com a natureza dos atos violentos, que são subdivididos
em: física, sexual, psicológica e envolvendo privação ou negligência. No entendimento da
OMS, esses quatro tipos de atos de violência podem ser encontrados em todas categorias antes
descritas, retirando a violência auto-infligida.
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Essa tipologia, mesmo imperfeita e longe de ser universalmente aceita, fornece uma
estrutura útil para se compreender os complexos padrões de violência que ocorrem no
mundo, bem como a violência na vida diária das pessoas, das famílias e das
comunidades. (...) Contudo, tanto na pesquisa quanto na prática, as fronteiras entre os
diferentes tipos de violência nem sempre são tão claras (KRUG et al, 2002, p. 7).
Coelho, Silva e Lindner (2018) também trazem para discussão outra classificação da
violência, mas agora se atentando ao grupo a qual ela é cometida. Elas buscam definir e
diferenciar conceitos como: violência intrafamiliar, violência doméstica, violência contra
mulheres, violência no casal, violência nas relações afetivas e violência por parceiros íntimos. A
construção teórica das autoras será apresentada para nos ajudar a compreender as relações
abusivas. Já que em nosso entendimento, as relações abusivas que receberão nossa atenção neste
estudo, se enquadram na subdivisão de violência interpessoal e entre parceiros íntimos.
Alguns desses termos podem ser usados de forma sinônima em várias situações, por isso
é importante citar algumas diferenças existentes. A violência intrafamiliar integra a categoria de
violência interpessoal e podemos compreendê-la como toda ação ou omissão que possa afetar e
causar dano/prejuízo ao bem-estar, a integridade física e psicológica ou a liberdade e o direito ao
desenvolvimento integral de algum membro da família. Diante aos vários estudos sobre família,
esse termo acaba sendo compreendido de forma mais ampla que a violência doméstica e a contra
mulher, por levar em conta crianças, irmãos, homens e idosos. “Pode ser cometida dentro ou
fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função
parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em relação de poder à outra” (BRASIL,
2001, p 15).
Falando um pouco sobre o termo “violência doméstica”, Coelho, Silva e Lindner (2018)
assinalam que o termo é descendente do movimento feminista dos anos de 1960 e que apresenta
certas limitações pela sua conotação social e espacial circunscrita à violência que acontece
somente dentro do ambiente doméstico. Acabam ficando de fora, por exemplo, a violência que
se apresenta nas ruas, a urbana, a que pode acontecer dentro de um namoro, bem como em
outras vivências de conjugalidade, como as não heterossexuais.
As autoras também trazem uma breve discussão sobre o termo violência contra mulheres,
muitas vezes usado como sinônimo de violência de gênero. Recorrendo a Krug (2002), o termo
é entendido como todo ato de violência contra pessoas do sexo feminino, que tenha ou possa ter
como consequência dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico. As ameaças de tais atos,
coação ou privação de liberdade tanto em esfera pública ou privada, também são consideradas
partes dessa violência.
Ainda seguindo a argumentação de Coelho, Silva e Lindner (2018), elas nos dizem que
alguns estudos optam por usar o termo violência no casal. O termo é usado para caracterizar um
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processo que pode ocorrer antes, durante ou depois da constituição de uma relação formal entre
duas pessoas, seja do mesmo sexo ou de sexos diferentes. Essa violência pode acontecer tanto
dentro como fora do espaço doméstico/familiar e é compreendido como um comportamento
hostil que acontece de forma consciente e intencional que traz danos físicos, psíquicos, jurídicos,
econômicos, sociais, morais e sexuais como consequências.
As autoras destacam que não existe um consenso de qual termo deve ser utilizado para os
casos de violência nas relações afetivas. Segundo elas existe uma primazia dentro do contexto
internacional, que faz com que o termo violência de gênero seja o mais utilizado, o que acontece
na Espanha e em alguns outros países. Porém, alguns organismos internacionais, ONGs e até
mesmo a legislação brasileira, adotam o termo de violência contra mulher ou contra mulheres. O
que para as autoras, limita a definição da violência e mantém certo teor heteronormativo e o
lugar de vitimização da mulher (COELHO, SILVA, LINDNER, 2018).
Adentrando um pouco mais no contexto brasileiro, o Ministério da Saúde nos coloca que
a violência física acontece quando uma pessoa se encontra em uma relação de poder com a
outra, em que se pode provocar ou tentar provocar dano, de forma não acidental. Seja por meio
do uso de força física ou uso de algum tipo de arma que possa produzir ou não lesões externas,
internas ou ambas. Esse entendimento também engloba agressões físicas e a intenção de praticar
tais agressões, ou seja, as ameaças também são consideradas (BRASIL, 2002).
Existem diversos tipos de violências, desde tapas, empurrões, chutes, socos e por aí vai,
mas Coelho, Silva e Lindner (2018), ao recorrerem à vários estudos, pontuam que a violência
entre parceiros íntimos nem sempre está ligada somente a vitimização das mulheres. Em um
estudo realizado por Zaleski et al (2010) sobre violência entre parceiros íntimos, foi verificado
que as mulheres acabam usando da violência com maior frequência em situações de autodefesa.
Já os homens, fazem uso da violência com o intuito de intimidar e/ou mostrar autoridade a
parceira.
Com tudo o que já foi exposto, é possível perceber que a violência física entre parceiros,
principalmente íntimos, é um fenômeno que afeta muitas e diversas pessoas, além de os atos
trazerem graves consequências. Pessoas que já sofreram algum tipo de abuso, seja físico ou
sexual, podem apresentar mais problemas de saúde em comparação às pessoas que não sofreram
abusos (COELHO, SILVA, LINDNER, 2018). E esse entendimento mais uma vez nos mostra
como a violência está diretamente ligada à saúde, entendida como bem-estar físico, psicológico
e social.
Mas além da violência física, é importante esclarecer que também pode existir entre
parceiros íntimos, outra natureza de violência, que é a psicológica. Para definir esse tipo de
violência é imprescindível levar em conta os atos que a constitui, que são: insulto, humilhação,
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degradação pública, intimidação e ameaça. Esse tipo de agressão pode ser bastante comum e
acontecer em uma proporção até muito maior do que a violência física. Esse tipo de ato, de
modo geral, acaba por afetar diretamente a autoestima e autoimagem da pessoa que sofre.
Inclusive, importante destacar, que algumas pessoas acabam usando da violência psicológica
para tentar impedir que seu/sua companheiro/a termine a relação, revele os maus tratos ou até
mesmo fuja. Podemos pensar esses casos até como exemplos de tortura, por uso desse tipo de
violência (COELHO, SILVA. LINDNER, 2018).
Para o Brasil (2002), a violência psicológica é toda ação ou omissão que causa ou visa
causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa que a sofre. E
ampliando ainda mais o entendimento sobre a violência psicológica, a Brasil (2005) cita como
exemplos de violência psicológica contra mulheres as seguintes situações e atos
Na legislação brasileira a violência psicológica foi reconhecida por meio de lei em 2018,
o que configura um grande avanço no combate a todos os tipos de violência. Porém, como bem
pontuam Coelho, Silva e Lindner (2018), o reconhecimento pela lei ainda não faz com que esse
tipo de violência seja considerado nos serviços públicos de saúde e nas instituições policiais
como algo grave que deve ser levado em conta.
No texto da lei (Lei nº 11.340), a violência psicológica é apresentada como
[...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar
suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação
do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica
e à autodeterminação (BRASIL, 2006, p.3)
Importante pontuarmos que a violência psicológica é descrita em uma lei, que ganhou o
nome de Maria da Penha, que diz respeito a violência contra mulher e familiar, baseada no
gênero. Em tudo o que já foi exposto, colocamos como a violência é um fenômeno que atinge
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diversas pessoas e grupos, porém alguns grupos de pessoas aparecem como mais vulneráveis a
sofrer com a violência, como pessoas negras, mulheres, crianças, pessoas lgbtqiap+, pessoas
com deficiências e idosos.
Com isso, se faz importante compreender, além da violência, os contextos nos quais
estamos inseridos, que levam a que determinados grupos possam sofrer mais com a violência do
que outros. Ao pensarmos na violência contra mulher, se faz relevante considerarmos a condição
de repressão feminina ao qual as mulheres viveram ao longo dos anos.
Além dos altos índices de mulheres que buscam ajuda por sofrer violências de seus
parceiros íntimos, coexiste com essa realidade um conjunto de crenças sociais que fortalece
atitudes violentas e culpabilizantes para com as mulheres. Essas crenças são alimentadas por um
conjunto de convicções machistas, presente nas relações humanas há milênios, que se apoiam
numa série de argumentos que, de modo histórico, as colocaram no papel de Outro masculino
(BEAUVOIR, 1970).
Moura e Henriques (2014) fizeram estudos, dentro de uma perspectiva sócio-histórica,
com o objetivo de compreender os fatores envolvidos no fenômeno de culpabilização de
mulheres vítimas de violência. Em seu levantamento bibliográfico, as autoras constataram que
os estudos sobre a História das mulheres somente receberam algum destaque a partir da década
de 1980. E apenas a partir disso, que foi possível questionar a perspectiva universalizante dos
estudos da História, se destacando a necessidade de inclusão dos estudos de gênero. Processo
que não ocorreu sem resistências, principalmente de historiadores inclinados a considerar o
sujeito da história como universal, como se homens e mulheres fossem igualmente atuantes e
igualmente representados. Não se pode esquecer, que durante anos, mulheres foram impedidas
de ocupar diversos espaços e cargos.
Em sua pesquisa, Moura e Henriques (2014) analisaram a representação da mulher em
diferentes contextos sociais como na história, religião cristã católica e mídia, com o objetivo de
buscar identificar como estes aparelhos influenciam e reforçam os estereótipos de gênero
existentes.
A religião tem explicações para várias questões existenciais do ser humano, o que acaba
a colocando como mais do que uma referência espiritual, pois inspira costumes e crenças. Além
do que essas explicações podem influenciar econômica e politicamente as leis que regem
determinados países. E pensando no cristianismo e nas religiões em geral é possível encontrar
uma visão dualista que faz uma separação entre bem e mal, santa ou pecadora. É possível
constatar isso nas duas personagens femininas presentes na história cristã, Maria e Eva. A
primeira representando a santidade, a mulher virtuosa, quase assexuada, enquanto Eva é a
pecadora, a tentadora dos homens, exemplo de desobediência (MOURA, HENRIQUES, 2014).
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controvérsias quanto a sua compreensão, mas em princípio, podemos entender como um modelo
de estruturação familiar e social que gira em torno da autoridade de um homem, seja ele o pai ou
o marido, sobre as mulheres e homens mais jovens. As autoras também nos trazem como esse
modelo foi se modificando ao longo dos anos, com o avanço da legislação, abolição da
escravidão e o início da democracia enfraqueceu esse lugar do patriarca como único detentor do
poder. A entrada das mulheres no mercado de trabalho, também permitiu a elas mais
possibilidades de independência financeira e socialização. Além disso, a criação de métodos
contraceptivos possibilitou maior autonomia feminina no campo sexual e reprodutivo, já que
passou a ser possível certo planejamento reprodutivo, a mulher poderia planejar quando e se
desejaria ter filhos, o que contribuiu para a desvinculação da atividade sexual exclusiva à
procriação. As mulheres poderiam também ter prazer.
Porém todas essas mudanças e conquistas de autonomia das mulheres ao longo dos anos,
não acabou de vez com os ideais patriarcais. A presença de resquícios dessas ideias ainda são
muito presentes em nosso contexto, como no machismo. O machismo pode ser compreendido
como um sistema ideológico que impõe padrões identitários a homens e mulheres, ao mesmo
tempo em que também contribui para a criação de mitos que fundamentam relações de
exploração entre os sexos. Isso também acaba legitimando e naturalizando a posição da mulher
como sendo inferior ao homem, como se este lugar fosse o de destino de toda mulher. Esse
conjunto de ideias pode provocar uma forte rejeição a qualquer padrão de comportamento que
não se assemelhe aos ideais impostos, tanto para mulheres e homens. Sendo importante ressaltar
que, apesar das mulheres serem bastantes prejudicadas pelo machismo, os homens também são,
já que essa ideologia prende a todos em uma obrigação de cumprir um papel social que pode
restringir as possibilidades de escolhas e atuação social (MOURA, HENRIQUES, 2014).
Para reforçar o quanto esse tipo de violência não atinge somente mulheres, é importante
compreender que a violência contra mulher pode ser entendida como uma categoria de análise
da violência de gênero. Mas o termo se trata de algo muito mais complexo, pois também
abrange a violência de homens contra homens, de mulheres para mulheres e até mesmo de
mulheres contra homens ou crianças e violência contra homossexuais. O que a define como
violência de gênero seria a motivação baseada em uma ideologia de dominação masculina
(SAFFIOTI, 2004). Como nos colocam Moura e Henriques (2014) a estrutura social patriarcal
se utiliza da violência para garantir a permanência de seus princípios, impondo certa correção a
qualquer comportamento fora dos padrões ditados, e as mulheres, junto a outros grupos mais
vulneráveis, acabam sendo as principais vítimas dessa estrutura.
O fenômeno da violência contra a mulher evidencia a dificuldade da sociedade em se
desfazer de antigos modelos de pensamento, que foram herdados de uma organização social
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que, com os avanços sociais dos últimos anos, tem se tornado obsoleto. E o fato de os valores
morais, que se referem às mulheres, não conseguirem acompanhar as mudanças em seu status
social, impossibilita o pleno desenvolvimento feminino de uma condição de igualdade e
simultaneamente encobre as raízes do fenômeno da violência (MOURA, HENRIQUES, 2014).
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Foram escolhidas então sete publicações, que não diretamente trazem o conceito de
relação abusiva, mas trazem discussões sobre conjugalidade e violência doméstica dentro da
perspectiva fenomenológica existencial. As publicações serão brevemente apresentadas e serão
articuladas com os estudos já feitos e apresentados até aqui.
As publicações serão: Conjugalidade: uma leitura a partir da noção de comunidade em
Edith Stein, de Almeida e Romagnolli (2019); A experiência vivida de mulheres na
conjugalidade contemporânea: uma perspectiva fenomenológico-existencial, de Benevides e
Boris (2020); Relacionamento amoroso conjugal duradouro na contemporaneidade: uma análise
fenomenológica de vivências, de Albertoni e Lages (2018); Vivência da violência conjugal: fatos
do cotidiano de Monteiro e Souza (2007); Não há você sem mim: histórias de mulheres
sobreviventes de uma tentativa de homicídio de Azevedo e Dutra (2015); Base teórica para
estudos exploratórios da experiência consciente da violência psicológica de Pimentel e Mindello
(2012); O resgate do conceito de pessoa na violência doméstica: um olhar da gestalt-terapia de
Flores e Magnabosco (2019) e Entre elas: A violência doméstica nas relações lésbicas de Xavier,
Emiliano e Dias (2019).
No trabalho de Almeida e Romagnolli (2019) as autoras fazem um estudo sobre a obra
de Edith Stein que apresenta a intersubjetividade como condição para a constituição do eu e do
nós. As autoras também trabalham a definição de Stein para comunidade que permite
compreender a conjugalidade em seus aspectos constitutivos, em que ela é destacada como
espaço de formação de subjetividades, que pode conduzir temas como autoformação,
criatividade, ética, alteridade, abertura e responsabilidade individual e coletiva. Também trazem
como as análises de Stein, a partir de seu conceito de pessoa, podem também elucidar como o
processo de formação, especificamente correlacionado à identificação e repetição dos modelos
intrafamiliares e sociais, é dirigido por leis de sentido e não se reduz à esfera psíquica,
mostrando a possibilidade de autoconfiguração e reconfiguração de si e da conjugalidade.
Nessa perspectiva a comunidade, sendo entendida como o ambiente mais favorável para
a autoconfiguração, se pode considerar que a construção do nós pode ser um processo de
crescimento, amadurecimento e transformação, que vai se efetivando à medida que cada um se
depara com um espaço para tornar-se si mesmo. Pois se proporciona o contato com a alteridade,
o que pode ser aplicado ao vínculo conjugal, que faz com o que o sujeito entre em contato com o
diferente do outro, que pode movê-lo a olhar para dentro de si. E esse confronto pode
possibilitar que o eu pessoal coloque em jogo a autoformação, tomando as provocações que se
estabelecem, em direção a si ou no sentido inverso (ALMEIDA, ROMAGNOLLI, 2019).
27
Com essa contribuição, podemos pensar o quanto em uma relação em que existe
violência, todo esse processo pode se comprometer. Entendendo a violência como uma relação
desproporcional de poder, em que um domina o outro, podemos supor que essa abertura para a
alteridade pode ser vivenciada com desgaste, imposições, sofrimento e restrições.
Olhando agora para a publicação de Benevides e Boris (2020) que é um artigo resultado
de uma pesquisa de mestrado, que teve como objetivo compreender como as mulheres
experienciam os atuais papéis que assumem nas relações conjugais contemporâneas e no
exercício da maternidade, e quais sentidos elas conferem a essas vivências. Através da pesquisa
feita, os autores encontraram em seus resultados que mesmo com instrução formal e
independência financeira das mulheres, os papéis femininos na conjugalidade pouco tem se
transformado em relação ao acúmulo de responsabilidades que recaem sobre elas. A crença de
que existe uma essência feminina ainda atravessa a experiência vivida por essas mulheres na
maternidade, na relação conjugal e no trabalho, mostrando que ainda existem vários obstáculos a
frente para a resolução de problemas sociais que perpassam a história de vida dessas mulheres.
A pesquisa acaba indo ao encontro do que Moura e Henriques (2014) também relatam em
seus estudos. Apesar de várias mudanças no contexto e das várias conquistas das mulheres, ainda
existem fortes resquícios de ideais patriarcais e machistas que se fazem presentes dentro das
relações, das crenças e do que se espera socialmente de homens e mulheres. E a imposição de
tais papéis engessam os modos de ser possíveis, contraindo as possibilidades de ser existentes
para ambos.
Como também nos pontua Zanello (2018) o casamento se configurou como espaço
legalmente instituído de submissão da mulher e também de reconhecimento social necessário de
“mulher bem sucedida”. Além disso, como nos coloca a autora, o casamento também teria outra
função que deveria ser cumprida como meta própria do relacionamento, que seria a
maternidade1. Destacando que os estudos de Zanello (2018) mostram que no conjunto de crenças
sociais, a manutenção do casamento, o “fazer dar certo” e o cuidado com a prole, são
compreendidos como responsabilidades essencialmente femininas.
O trabalho de Albertoni e Lages (2018) teve como objetivo central investigar como se
configura a estrutura da experiência de relacionamentos amorosos conjugais duradouros na
contemporaneidade. Em suas análises no modo como os sujeitos organizam suas experiências,
se compreendeu a estrutura desses relacionamentos como integradora de amor desromantizado e
1
Em seus estudos Zanello (2018) trás dois conceitos importantes para compreender os processos de
subjetivação de forma gendrada, que são: dispositivo amoroso e dispositivo materno. O primeiro diz
respeito ao processo de subjetivação das mulheres que tem como fator identitário o olhar de um homem,
que as “escolhe”, seu valor e identidade são definidos por esse olhar. Já o dispositivo materno atravessa
o processo de subjetivação das mulheres, ao naturalizar a mescla entre a capacidade de procriar com a
capacidade de cuidar/maternar. Como se fossem características que fazem parte da essência de
qualquer mulher.
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possibilidades, cristalizar a abertura de mundo, é enfraquecer algo que é essencial em todo ser e
que nos constitui enquanto existência, levando o ser ao adoecimento.
A publicação de Azevedo e Dutra (2015) é um estudo que objetiva compreender os
sentidos da experiência de homicídio seguido de suícidio, a partir de mulheres que sobreviveram
a este ato. Dentro de uma perspectiva fenomenológica-hermenêutica as autoras pontuam que a
historicidade construiu sentidos para a existência dessas mulheres, com relatos de
relacionamentos descritos com forte ciúme, fantasias de traição e marcados por um cuidado na
relação que limitavam sua existência a ser-para-o-marido, e elas acabam ocupando um lugar de
objeto na relação. E o que faziam essas mulheres continuarem a escolher estar na relação era
esse sentido que elas tinham para a sua existência. Esse modo de cuidar da relação, fazia com
que essas mulheres reduzissem sua existência à vida conjugal, existindo a partir da referência do
marido, perdendo-se de si mesmas, assumindo os discursos do marido, da cultura e outras
referências.
No contato com suas entrevistadas, Azevedo e Dutra (2015) observaram que na vida
dessas mulheres havia no discurso, vindo de seus companheiros, a afirmação de que a existência
delas não seria mais possível se não fosse ao lado deles. E o sentido dado às suas existências,
que designava seus caminhos a construção de uma família, dava uma referência para suas vidas,
que seria viver um amor e cuidar de seus filhos. E como já pontuado, esse sentido as movia para
continuar nas relações.
Aqui também podemos citar os estudos de Zanello (2018) que pontuam, que ao longo
dos anos, foi se ensinado que para ser uma mulher bem sucedida era preciso construir um
caminho que a levassem ao casamento e a maternidade, e a manutenção dessas relações caberia
à mulher. Além disso, como nos colocam Moura e Henriques (2014) essas também seriam as
características da mulher virtuosa, fortalecendo os papéis de gêneros e as visões estereotipadas
desses papéis.
No trabalho de Pimental e Mindello (2012) há um exame de textos que discutem a
concepção de consciência para analisar as relações entre a experiência consciente e violência
psicológica, dentro do contexto familiar, tendo em vista intervenções preventivas que
possibilitem rever os vínculos familiares e a sociabilidade pública. Partindo do entendimento
que na lógica interna da violência psicológica se estabelecem práticas irracionais, que em
consequência, os atores que a vivenciam não manifestam a consciência da existência do outro
e/ou de si mesmo. Os autores compreendem por práticas irracionais, pensamentos destituídos de
autocrítica, crítica social e de compreensão de campo. Eles também destacam que o
ressentimento e o desejo de vingança podem acabar se tornando o principal móvel de ação de
quem sofre a violência psicológica, o que pode levar essas pessoas a atravessarem a fronteira da
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uma visão reducionista de muitos profissionais, pois mesmo que a Lei Maria da Penha seja
extensiva à comunidade lésbica, os cuidados e medidas muitas vezes é pensado somente em
casos de casais heteroafetivos.
Aqui mais uma vez vemos como os papéis impostos impedem que fenômenos que não se
enquadram completamente na norma social, sejam invisibilizados ou menorizados, inclusive por
profissionais de saúde.
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5 ALGUMAS CONCLUSÕES
Com esse entendimento podemos também supor que a violência interpessoal juntamente
com a questão da restrição de possibilidades, pode levar ao abuso, pois nesse ponto, a pessoa
pode apenas repetir a estrutura relacional sem conseguir acessar e criar novos significados e
propósitos para o ser-aí. Ao não se reconhecer enquanto Dasein, a pessoa vitimizada pela
violência pode somente enxergar como possibilidade os padrões impostos pelo seu contexto
social. Como nos apontam Flores e Magnabosco (2019), as mulheres vítimas de violência
doméstica, se perdiam de si mesmas, deixando de se reconhecerem enquanto sujeitos de
autonomia, que poderiam escolher e até criar novos modos de ser, diferentes dos impostos por
seus companheiros.
Os trabalhos de Xavier, Emiliano e Dias (2019) e o de Flores e Magnabosco (2019) nos
colocam como a postura do profissional de saúde se faz importante no acolhimento das vítimas
de violência. E com essas contribuições podemos refletir o que se objetivou este trabalho de
pensar em intervenções no manejo clínico para atender esse público vítima de violência nas
relações conjugais.
Pessoas vítimas de violência doméstica, por conta de todo o processo de perda de
autonomia, de terem sua autoestima e autoimagem atingidas pela violência, podem ter perdido
também sua capacidade de se verem enquanto sujeitos de possibilidades (FLORES,
MAGNABOSCO, 2019). E nesse sentido, podemos colocar que o acolhimento e o resgate da
autonomia seja já uma importante intervenção com pessoas submetidas a violência.
Outro ponto compreendido através dos estudos, é que as pessoas, principalmente as
mulheres vitimizadas, para dar conta de saírem do contexto de violência precisam ampliar suas
possibilidades de escuta (MONTEIRO, SOUZA, 2007). Nesse sentido, podemos pensar que a
postura fenomenológica, em que o profissional se oferece como presença ao ser que ali chega,
para acolher e escutar sem julgamentos, deixando que o fenômeno se revele e buscando junto a
acolhida construir e reconstruir a teia de sentidos e significados que suas vivências tem, também
pode se configurar como uma potente intervenção clínica.
Ao entrar em contato com todo o material estudado, é possível pensar que a violência ao
restringir os modos de ser das vítimas, as cristalizando, inclusive, nesse lugar de vítima, tira do
sujeito sua possibilidade de se reconhecer enquanto ser, o que por si só já pode ser uma grande
violência. Finalizo o trabalho compreendo que enquanto psicóloga, se faz importante estar atenta
ao quanto quem chega a clínica perdeu a sua autonomia e segue repetindo estruturas e padrões
impostos, sem acessar sua capacidade de criar e ver sentido nos seus modos de ser. O trabalho
clínico então deve buscar junto à pessoa, resgatar sua liberdade de poder ser, auxiliando que ela
se reconheça novamente enquanto sujeito e possa integrar suas experiências buscando escolher o
que faz sentido a sua própria história. As restrições de possibilidades podem até fazer com que a
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pessoa vitimizada perca também sua capacidade de se reconhecer como esse contínuo poder ser,
que se constrói à medida que se vai existindo. Resgatar e auxiliar que a pessoa se reconheça
sendo responsável por construir a própria vida, a despeito dos papéis sociais impostos e
exigidos. Resgatando o poder de escolha e o de agir, fortalecendo a coragem de fazer e se fazer
diferente, lidando com críticas e pressões sociais. Fazer o resgate disso também se faz
importante para auxiliar que a pessoa reencontre suas potencialidades e auxilia no
fortalecimento de si.
O desafio se faz presente, já que o conjunto de crenças, a estruturação social e os padrões
de comportamentos impostos nos atravessam de formas explícitas e sutis, sendo presentes,
inclusive, para nós profissionais. Principalmente ao falarmos das mulheres, que permanecem no
lado mais frágil e vulnerável nessas relações de poder e por conta disso, acabam sofrendo mais
as consequências dessas violências. Outro ponto a ser ressaltado, é que se faz necessário que
tanto homens e mulheres profissionais psi se capacitem sobre as temáticas sociais e de gênero,
para que a escuta clínica não desconsidere o mundo cultural, social e econômico que fazem parte
do ser-no-mundo, em uma tentativa de se evitar uma hipervalorização do psíquico. Para que
nosso trabalho possa ser um passo importante na construção de uma realidade com mais pessoas
autônomas, livres e mais conscientes do que escolhem para si mesmas.
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REFERÊNCIAS
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histórias de mulheres sobreviventes de uma tentativa de homicídio. Rev. Subj., Fortaleza , v.
15, n. 2, p. 201-213, ago. 2015 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000200004&lng
= pt&nrm=iso> Acesso 24 nov 2022.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. 4ª Edição. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1970.
BRASIL. Lei n° 11.340 de 7 de Agosto de 2006. Lei Maria da Penha: cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher... Diário Oficial da União. Brasília,
DF, 8 ago. 2006
COELHO, Elza Berger Salema; SILVA, Anne Caroline Luz Grüdtner da; LINDNER,
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<https://unasus-cp.moodle.ufsc.br/pluginfile.php/143561/mod_resource/content/19/MOOC-Tip
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