Qual A Perda Implicada em Um Filho Que Não Nasceu

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

LUANA XAVIER PIZARRO

QUAL A PERDA IMPLICADA EM UM FILHO QUE NÃO NASCEU?

Belo Horizonte
2022
LUANA XAVIER PIZARRO

QUAL A PERDA IMPLICADA EM UM FILHO QUE NÃO NASCEU?

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para a obtenção do grau de Mestre
em Psicologia.

Área de concentração: Estudos Psicanalíticos.

Linha de Pesquisa: Conceitos Fundamentais


em Psicanálise e Investigação no Campo
Clínico e Cultural.

Orientadora: Profa. Dra. Ângela Maria


Resende Vorcaro.

Belo Horizonte
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

ATA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO DE LUANA XAVIER PIZARRO

Realizou-se, no dia 03 de junho de 2022, às 09:30 horas, online, da Universidade Federal


de Minas Gerais, a defesa de dissertação, intitulada Qual a perda implicada em um filho
que não nasceu, apresentada por LUANA XAVIER PIZARRO, número de registro
2020654720, graduada no curso de PSICOLOGIA, como requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em PSICOLOGIA, à seguinte Comissão Examinadora: Prof(a). Angela
Maria Resende Vorcaro - Orientador (UFMG), Prof(a). Ariana Lucero (UFES), Prof(a).
Cristina Abranches Mota Batista (Centro de Atendimento e Inclusão social).
A Comissão considerou a dissertação:

( x ) Aprovada

( ) Reprovada

Finalizados os trabalhos, a presente ata, lida e aprovada, vai assinada pelos membros da
Comissão.
Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2022.

Documento assinado eletronicamente por Angela Maria Resende Vorcaro, Servidor(a), em


03/06/2022, às 17:05, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto
nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

Documento assinado eletronicamente por Ariana Lucero, Usuária Externa, em 03/06/2022, às


21:50, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º do Decreto nº 10.543, de
13 de novembro de 2020.

Documento assinado eletronicamente por Cristina Abranches Mota Batista, Usuário Externo,
em 08/06/2022, às 15:18, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º
do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.

A autenticidade deste documento pode ser conferida no


site https://sei.ufmg.br/sei/controlador_externo.php?acao=documento_conferir&id_orgao_acesso_ex
terno=0, informando o código verificador 1504789 e o código CRC DC14D115.

Referência: Processo nº 23072.232557/2022-83 SEI nº 1504789


AGRADECIMENTOS

À profa. Ângela Vorcaro, por sua disponibilidade e generosidade em relação ao saber. Sua
aposta e sua presença em minha formação representam o leme que me dirigiu até aqui.
Obrigada por tanto.

À Daniela Couto, por seu apoio, disponibilidade e assertividade.

À Leila pela escuta e apoio de minha busca pela pesquisa em psicanálise.

Aos grupos de estudos orientados pela professora Ângela Vorcaro, espaço no qual pude ir aos
poucos costurando minhas perguntas de pesquisa. Carinhosamente a Ângela, Daniela, Ana
Carolina, Julianne, Ariadne, Ticiana, Vinícius, Carla e Danie.

Às professoras da banca de qualificação: Livia Moreto, Cristiane Grilo e Daniela Viola, que
tanto contribuíram para que eu pudesse avançar em meu texto.

Carinhosamente aos professores que se dispuseram a contribuir na banca da dissertação.


Obrigada, Ariana Lucero, Cristina Abranches e Márcia Fonseca.

Agradeço carinhosamente aos professores e aos funcionários do Programa de Pós-Graduação


em Psicologia da UFMG.

Aos colegas do mestrado, por todos os momentos de troca possíveis e imprescindíveis durante
esse recorte particular de estudos em plena pandemia. Especialmente a Helô, ao Hernani, ao
Israel e ao Vinícius.

Carinhosamente ao HU Betim Unimed-BH onde tive meu encontro com a assistência ao parto
e o acesso às famílias e aos bebês internados em UTI Neonatal, foi essa experiência que
motivou o trabalho desenvolvido nesta dissertação. Carinhosamente a Raquel, Jessica,
Luciana, Jamile e Dra. Solange.

Carinhosamente às mães e às famílias que dividiram comigo suas dores e suas histórias
durante um momento tão delicado que pode ser a perda de um bebê.

Aos amigos, por todo apoio durante este período. Carinhosamente a Ticiana, Silvia, Leandro,
João Paulo, Rô, Zeca pelo ouvido, pela presença e pela aposta.

Aos meus pais e às minhas irmãs, por acreditarem e por darem o suporte necessário para
tantas horas de estudo.

Às minhas tias e aos meus tios, que foram ouvidos e suporte nos momentos turbulentos.
Aos meus filhos, pela paciência nas muitas presenças ausentes que foram necessárias para me
dedicar a esta pesquisa.

Novamente aos meus filhos, às minhas sobrinhas e priminhas que foram os primeiros bebês
que me encantaram, e nossa interação me trouxe as primeiras interrogações sobre as relações
com bebês.

Ao Adriano, meu marido. Obrigada por ser meu porto seguro, por acreditar e me incentivar a
cada incerteza e principalmente por me apoiar incondicionalmente.
VERBO SER

Que vai ser quando crescer?


Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser. Esquecer.
Carlos Drummond de Andrade
RESUMO

PIZARRO, L. X. (2022). Qual a perda implicada em um filho que não nasceu? (Dissertação
de mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, Belo Horizonte.

Este trabalho explora o estudo freudiano que conduz o percurso desde o querer ser mãe até a
falta de satisfação do bebê. Os textos sobre a organização libidinal da mulher permitiram
partir da mãe e da mulher, passando pela adolescente, latente, menina e, por fim, pelo
neonato, investigando o que, em cada uma dessas passagens, a mulher perde, bem como os
modos pelos quais ela faz suplência, mesmo que parcialmente, a essas perdas. A escolha deste
caminho reverso teve o ponto de partida na maternidade. Dessa forma, foi possível explorar o
início da relação mãe e filho, ainda na gravidez, considerando a interação entre as
manifestações fisiológicas do corpo da mulher e o imaginário da gestante, ou seja, o que antes
do encontro de fato com seu filho já opera como conjunção a ele. A pesquisa buscou
investigar, a partir do aporte teórico da psicanálise, sobretudo das obras de Freud, os possíveis
impactos da perda do filho sobre os investimentos maternos da gestação e problematizar a
construção e a elaboração do luto. A investigação se deteve, mais especificamente, na
hipótese, muitas vezes aventada pela puérpera, de retorno ao estado gestacional. Supõe-se que
esse retorno parece significar, para as mães que perdem seus bebês durante a gestação, uma
possibilidade de suplantar imediatamente a dor da perda, como alternativa ao luto que esta
mobiliza. Conclui-se que a perda de um filho que não nasceu pode responder pela perda do
objeto de satisfação primária.

Palavras-chaves: Luto neonatal. Maternidade. Psicanálise. Objeto perdido.


ABSTRACT

Pizarro, L. X. (2022). What Is the Loss Involved in an Unborn Baby? (Master’s dissertation).
Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG, Belo Horizonte.

This paper explores the Freudian study that discusses the path women take from the moment
they decide to be a mom to the baby’s lack of satisfaction. The texts about the sexual
organization of women have allowed the analyses to start from the mother and the woman,
then the adolescent, the latent, the girl, and, finally, the newborn stage. Investigating what, in
each of these passages, the woman loses as well as how she replaces, even partially, these
losses. This reverse path starts with motherhood. In this way, it was possible to explore the
beginning of the mother-child relationship, still during pregnancy, considering the interaction
between the physiological manifestations of her body and her imaginary. That is, before the
actual meeting with her child, what are her interactions with the baby and her expectations
about the pregnancy. The research sought to investigate, from the theoretical contribution of
psychoanalysis, especially Freud’s works, the possible impacts of the loss of the baby on the
maternal investments of this pregnancy and to problematize the construction and elaboration
of mourning. The investigation focused, more specifically, on the hypothesis, often put
forward by the puerperia, of a return to the gestational state. It supposes that this return seems
to mean, for mothers who lose their babies during pregnancy, a possibility to immediately
overcome the pain of the loss as an alternative to the mourning that it mobilizes. It concludes
that the loss of an unborn child may account for the loss of the object of primary satisfaction.

Keywords: Perinatal loss. Motherhood. Psychoanalysis. Lost object.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8

2 OBJETIVO GERAL ........................................................................................................... 14


2.1 Objetivos específicos .................................................................................................... 14

3 CIRCUNSCRIÇÃO TEMÁTICA ..................................................................................... 15


3.1 O lugar dos filhos nas famílias .................................................................................... 15
3.2 Alguns elementos sobre as transformações da abordagem ao parto no discurso
social: do higienismo à atualidade .................................................................................... 23
3.3 O lugar da mãe do bebê natimorto no hospital-maternidade .................................. 31
3.4 Relato de situação cotidiana de perda perinatal no hospital-maternidade ............ 35

4 REFERENCIAL TEÓRICO .............................................................................................. 45


4.1 Do método de abordagem teórica ............................................................................... 45
4.2 A constituição do feminino e a maternidade.............................................................. 51
4.2.1 A escolha da mulher pela maternidade ................................................................... 52
4.2.2 Puberdade e adolescência femininas ...................................................................... 63
4.2.3 Latência ................................................................................................................... 66
4.2.4 Organização sexual infantil .................................................................................... 67
4.2.5 O desamparo e os primórdios da subjetivação ....................................................... 74

5 PERDA NEONATAL E CONTEMPORANEIDADE: CONSIDERAÇÕES FINAIS . 83

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88
8

1 INTRODUÇÃO

A possibilidade biológica de gerar, parir e amamentar um novo membro da


espécie, o qual será subjetivado, diferencia o corpo das mulheres, a despeito das
implicações da maternidade ultrapassarem enormemente um enquadramento puramente
biológico. Isto porque os elementos orgânicos e fisiológicos que sustentam a gravidez, o
parto e a amamentação são parciais à função da maternidade que, por sua vez, intervém
e ancora o percurso desde o desamparo absoluto do neonato até sua edificação
subjetiva.
Constata-se a impossibilidade de mensurar ou de hierarquizar graus de
relevância atribuíveis correlativamente aos fatores fisiológicos e às funções psíquicas
implicadas na trajetória do gerar ao cuidar. Contudo, a articulação entre a fisiologia e o
psiquismo maternos, parece-me, não pode ser desconsiderada.
A despeito de, no decorrer das épocas, a cultura sempre lhe ter conferido um
lugar não negligenciável, a maternidade está sempre envolta numa significação
irregulamentável, capaz de produzir os mais distintos destinos, sem, entretanto, chegar a
ser discernida plenamente. Condições subjetivas também determinantes atravessam os
empenhos biológicos específicos de um corpo apto a essa finalidade, em circunstâncias
que produzem uma experiência dificilmente assimilável e simbolicamente transmissível.
Não é à toa que orbitam, na cultura, tantos mitos e sacralidades em torno do amor às
mães e do amor das mães (Badinter, 1985).
Como demonstram as especificidades adquiridas pelas configurações familiares
apresentadas no último século, todos os empenhos na criação das crianças podem ser
compartilhados entre os homens e as mulheres, porém, nem mesmo a coloração dada
pela intervenção da ciência na procriação, por meio da fecundação laboratorial, das
cesarianas e das barrigas de aluguel, deslocou suficientemente os elementos implicados
na trama do sujeito quando, com seu corpo, gesta, pare e amamenta outro ser humano.
Cada gestação, parto e amamentação de um bebê é uma construção singular na
vida de uma mulher, que inventa uma relação mãe e filho, mesmo no caso de uma
mesma mulher na relação com outros filhos. Obviamente, a construção do laço que
enreda o neonato na rede simbólica familiar e social não é necessariamente determinada
por aquela que o gerou, pariu ou amamentou, como apontam todas as formas possíveis
9

de adoção vigentes, desde sempre, que demonstram a construção de um laço apoiado


nos cuidados sistemáticos dirigidos ao neonato, independentemente de quem os assuma.
Dessa perspectiva, assegura-se, com Iaconelli (2015), que nada pode prevenir
incidências desastrosas ou adequadas de uma mãe sobre seu filho, pois ter gerado um
bebê por vários meses no próprio útero pode produzir, em graus distintos, desde uma
ligação identificatória instantânea até o estranhamento entre a mãe e o bebê, tão comum
no pós-parto.
Entretanto, a experiência de acolhimento a urgências clínicas em
hospitais-maternidade me conduziu a algumas interrogações sobre os desdobramentos
da passagem da posição de mulher à condição de mãe, especialmente no momento do
parto, pois este especifica materialmente, no lugar do corpo feminino, o deslocamento
subjetivo implicado na transposição do filho imaginado ao bebê concreto a que se deu à
luz. Interessa salientar que, exatamente nesse tempo, compreendido entre o pré e o
pós-parto, a equipe de profissionais do hospital-maternidade está, por dever de ofício,
totalmente voltada à operacionalização dos protocolos técnicos reconhecidos, visando
preferencialmente a saúde biológica da mulher e de seu bebê. Foge, portanto, ao
exercício dessas práticas, nesse momento, uma detenção específica quanto ao que possa
capturar o que comparece de singular para cada parturiente.
Contudo, depois de escutar algumas mães que se remetiam ao parto como uma
significação lacunar que elas prefeririam esquecer, e relacionava-o seja ao abandono, à
devastação ou ao desamparo, a despeito do aparato articulado de pessoas que se
estabelecia em torno delas, passei a supor a necessidade de que elas apreendessem algo
da própria singularidade, que, por vezes, vinha à tona no momento anterior ao parto, no
próprio parto e nas relações estabelecidas no pós-parto. Minha hipótese é a de que esse
acontecimento tão particular para cada parturiente exigia um trabalho psíquico que
poderia fazer diferença qualitativa para a reconfiguração da condição de mulher, pois a
esta se acrescenta, doravante, a condição de mãe desse filho. Esse trabalho psíquico
materno poderia, talvez, além de lhe oportunizar mais estabilidade nesse deslocamento
de posição, trazer repercussões sobre o filho. Mesmo sabendo-os incalculáveis, os
efeitos de elaboração eram supostos em sua potencial positividade.
Foi a partir desse contexto, em que orientava minha atuação pela preservação
das condições psíquicas maternas no hospital-maternidade, que ressaltou, em minha
10

prática, o que tornei objeto de pesquisa desta dissertação, ou seja, o impacto subjetivo
da experiência do parto do bebê natimorto na vida da mãe, bem como suas
possibilidades de atravessamento.
De chofre, é necessário circunscrever a modalidade de perda a ser, aqui,
abordada. O Manual da Vigilância do Óbito Infantil e Fetal (Brasil, 2009), determina o
período perinatal começando em 22 semanas completas (ou 154 dias) de gestação e
terminando aos sete dias completos após o nascimento. Ainda, tendo como referência o
mesmo manual, considera-se natimorto ou óbito fetal a morte do produto da gestação
antes da expulsão ou de sua extração completa do corpo materno, independentemente da
duração da gravidez. O óbito indica o fato de, depois da separação de corpos, o feto não
respirar nem dar nenhum outro sinal de vida, como batimentos do coração, pulsações do
cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária.
A experiência com os atendimentos a mulheres que passaram por essa vivência
de óbito, de um filho ainda no ventre, demarca a peculiaridade psíquica da perda
suscitada na reflexão posta em jogo nesta dissertação. Em acolhimentos a parturientes
de bebês natimortos, diante da possibilidade de serem ouvidas a respeito de si no
momento da perda, muitas vezes, logo após a notícia da morte do bebê, essas mulheres
se calam a respeito da dor da perda atual, dedicando-se imediatamente ao planejamento
de uma próxima gestação. Em algumas situações, essas mulheres são apoiadas pelas
famílias nesse projeto e, em outras, escolhem-no mesmo estando sozinhas, durante a
espera pela operação do parto ou enquanto aguardam a recuperação para a alta
hospitalar. Nesse contexto, penso que cabe interrogar o aporte teórico da psicanálise
sobre a obstinada manifestação materna de retorno ao estado gestacional logo após a
perda de seu bebê. Este seria um modo de tratar o luto ou de anulá-lo?
O que chamou minha atenção foi a constância em que a constatação do filho
natimorto era contraposta pela fala que restabelecia imediatamente a presença desse
filho morto por meio da substituição de sua perda por um filho futuro que poderia até
preservar seu nome. Esse traço parecia ressaltar que o processo da perda não implicava
a mediação do trabalho psíquico do luto, suprimindo o tempo a ele necessário, o que
talvez determinasse não só seu adiamento, mas também a impossibilidade de construção
de um lugar simbólico diferenciado para um outro filho.
11

Apoiada na premissa lacaniana de que a linguagem humana ultrapassa as falas e


produz discursos estabelecidos socialmente, por serem estruturas em que subsistem
relações estáveis fundamentais nas quais as condutas dos sujeitos se inscrevem (Lacan,
1969-1970/1992), espero, nesta dissertação, cernir minha interrogação sobre o que
motivaria a lógica do modo de tratar o luto pelo filho que não nasceu. Por isso, meu
ponto de partida é o lócus dessa vivência: o contexto hospitalar em que a mulher
constata e onde são tratados, pelos dispositivos regulamentados, os desdobramentos
implicados nessa perda, tanto no que se refere aos cuidados médicos (curetagem ou
parto induzido) quanto ao acolhimento psicológico aí inserido. Espero destacar alguns
elementos prevalentes no modo de tratar a perda gestacional que talvez reverberem no
próprio funcionamento psíquico das mulheres.
Nesse ponto, a questão da supressão do luto será interrogada. Pretendo, portanto,
trilhar o caminho pelas elaborações freudianas em torno da perda primordial do objeto
de satisfação como condição da constituição subjetiva, bem como das modalidades
pelas quais o sujeito tenta resgatá-lo nos acontecimentos estruturantes que atualizam a
busca de suplência nas perdas subsequentes por meio da repetição. Limitando o alcance
deste trabalho especialmente às elaborações freudianas, farei o percurso de retorno da
mulher à adolescente, à menina até o neonato que nasce fêmea, tentando discernir como
cada um desses tempos elabora perdas anteriores. Com base nos apontamentos
freudianos, busco distinguir a especificidade psíquica da mulher e, nesta, a função da
maternidade, para chegar a hipotetizar, para a mulher em vias de tornar-se mãe, na
contingência de um filho natimorto, o que desdobrará o estudo a que me proponho: o
que perde a mulher quando seu filho não viveu? O que se coloca no cerne do que nessa
perda ela revisitaria?
Assim, a partir das referências consultadas, que compuseram a bibliografia
necessária para esclarecer o tema desta pesquisa, buscarei me debruçar no
atravessamento da mulher que pare um bebê natimorto e nas possíveis dificuldades na
elaboração desse luto para o qual usarei a nomenclatura de “luto perinatal”.
Em uma gestação, geralmente a mulher antecipa seu futuro filho como um bebê
imaginário, com o qual estabelece uma trama simbólica que o situa numa ordem
genealógica e mítica, que culmina no parto de um bebê. No parto, dá-se o encontro da
mulher/mãe com seu bebê objetivado concretamente, ou seja, essa materialidade
12

orgânica que se faz presente pelo modo como se apresenta na sua imagem e nas
manifestações próprias. A partir do encontro da mulher com seu bebê, após o
nascimento, essa mãe aos poucos se desvincula do bebê ideal, aquele bebê imaginado
pela gestante antes do nascimento, à medida que vai estabelecendo um laço com o bebê
que nasceu e com o qual continuará a se relacionar, agora concretamente. No caso de
bebês que morrem antes do parto, essa transformação do bebê imaginário em bebê de
fato é absorvida pela condição de morte e de perda. Retomo, então, o problema central
deste trabalho: o que pode representar, para a mulher, a contingência de que,
materialmente, seu bebê seja morte? A investigação será feita no sentido de aproximar
do que a mulher perde, além de seu bebê que não viveu, mas que parece estar aderido a
ele.
Aguiar e Zornig (2016) advertem que “nos casos de óbito fetal, o contato com o
bebê real só pode ser vislumbrado nas ultrassonografias, não tendo ocorrido
efetivamente um contato com o bebê real — o que aumenta a dificuldade da elaboração
do luto do filho imaginário” (p. 271). Para as autoras, o óbito fetal ocorre justamente no
momento em que estão sendo traçadas as primeiras formas de relacionamento entre a
mãe e o bebê, por isso é possível que o óbito, nesse período, seja potencialmente
problemático e tenda a ser vivido como traumático, uma vez que o objeto de amor
perdido não está firmemente reconhecido enquanto um objeto real1. Este interessante
apontamento franqueia a validade de minhas interrogações e fortalecem meu
empreendimento nesta dissertação. Afinal, se a perda de um filho que não viveu pode
ser considerada como potencialmente mais traumática pelo fato de o objeto perdido ser
imaginário, que valor psíquico estaria aderido a ele?
Entendo a relevância desta pesquisa questionando o impacto que o bebê
idealizado, perdido, pode ter na elaboração do luto para a mulher que o perdeu e
também na relação dessa mulher/mãe com o restante de sua prole. Um bebê perdido
estará sempre presente nos laços familiares, mas a elaboração de um luto perinatal pode
representar a possibilidade de uma nomeação e um espaço singular para esse membro,

1
Nota-se que as autoras adotam o termo “real” para se referirem à realidade material do bebê depois de
nascido. Observando o escopo desta dissertação, tal nomenclatura não será usada, de modo a não ser
confundida com a referência à dimensão real abordada por Lacan (1969-1970/1992, p. 154): “é no plano
do impossível que defino, como sabem, o que é real”, ou seja, o que implica o impossível de ser
formalizado, simbolizado. Para tratar do corpo ao natural do neonato, utilizo, então, os termos: bebê
concreto, materialmente visível, uma unidade orgânica objetivamente presente no mundo, exterior ao
corpo da mãe.
13

materialmente ausente, mas presente na história familiar. Nessa perspectiva, concordo


com Iaconelli (2007) sobre a importância de que as mulheres nessa condição encontrem
um lugar de fala para iniciar um trabalho de significação de sua perda: “uma escuta
sensível que vem ajudar os pais a nomearem sua dor, evitando maior sofrimento para si
mesmos e para gerações posteriores” (p. 621).
Para dimensionar o valor atribuído a um filho e até mesmo à representação de
sua perda, farei uma breve contextualização do lugar do filho nas famílias e o desenho
do investimento materno nos séculos XVII, XVIII e XIX.
Para aprofundar na experiência materna do parto do bebê natimorto, é preciso
contextualizar o modo de tratamento conferido ao parto no Brasil. Nesta investigação, o
percurso trilhado inicia-se na época em que havia o predomínio de partos realizados por
parteiras no âmbito domiciliar e vai até a introdução da obstetrícia e dos partos
hospitalares. Distinguem-se, nesses cenários, certos elementos que tendem a enquadrar
o parto como procedimento alheio às próprias parturientes, o que talvez incida sobre o
modo como elas se autorizam a sofrer as perdas gestacionais.
Adiante, irei circunscrever qual recorte de parto me proponho a trabalhar nesta
dissertação e como a mulher que perde um filho, antes mesmo de este nascer,
normalmente é acolhida nos âmbitos social e institucional. O contexto de acolhimento a
essas mulheres/mães reverberará nas possibilidades de elaboração de luto delas.
Descreverei, portanto, a partir de um relato de atendimento pontual, algo que me
fez interrogar e foi capaz de me fazer formular a questão do presente trabalho: a
necessidade apresentada por parte das mulheres que perdem seus bebês, ainda em seu
ventre, de retorno ao estado gestacional, trazendo, portanto, um ponto de repetição.
Após situar o leitor sobre as metodologias que orientaram esta pesquisa, trarei
um estudo sistemático dos textos freudianos que abordam o desenvolvimento libidinal
feminino. Dessa forma, partirei da mulher, a contar de sua perda (no caso gestacional),
passando pela adolescência, pela puberdade, pela latência, até o desenvolvimento
libidinal infantil, caminhando até o neonato do sexo feminino. Esse percurso pelos
textos freudianos tem o intuito de situar as perdas sofridas pelas mulheres em cada etapa
de seu desenvolvimento e suas possíveis substituições. Dessa forma, busco respostas à
minha questão principal: qual a perda implicada em um filho que não nasceu?
14

2 OBJETIVO GERAL

Investigar, em textos da obra de Freud, o percurso do desenvolvimento sexual


feminino, interrogando e circunscrevendo os efeitos subjetivos da perda de um filho que
não nasceu.

2.1 Objetivos específicos

a) Questionar, por meio do texto freudiano, se a perda atual de um filho


natimorto é potencialmente uma repetição que, na mulher, retorna e a intima a
revisitar perdas de outrora;
b) Investigar, na abordagem de Freud, considerações sobre as modalidades pelas
quais a cultura transmite às mulheres as funções de maternagem, bem como o
relevo atribuído às funções fisiológicas de seu corpo;
c) Interrogar os elementos teóricos freudianos que apontem possíveis efeitos da
perda de um filho ainda nas entranhas do corpo.
15

3 CIRCUNSCRIÇÃO TEMÁTICA

Divido a circunscrição temática em quatro seções. Na primeira, busco investigar


o lugar dos filhos na família, fazendo um recorte social abrangendo os séculos XVII,
XVIII, XIX. Na segunda, apresento algumas transformações ocorridas no modo de
tratar o parto, principalmente como essas mudanças aparecem no discurso social, desde
o movimento higienista até a atualidade. Na terceira, intento localizar qual é o lugar da
mãe do bebê natimorto no hospital-maternidade e, por fim, na última seção, apresento
um relato de uma situação cotidiana de perda perinatal.

3.1 O lugar dos filhos nas famílias

Referidas pelos discursos socialmente predominantes ao longo dos tempos, as


crianças encarnaram valores distintos e, consequentemente, ocuparam diferentes
posições nas famílias. Contudo, entendo como um ponto importante na busca de
equacionar a pergunta principal desta pesquisa, relativa à perda implicada em um filho
que não nasceu, investigar uma das posições prevalentes dos filhos nas famílias, ao
longo do desenvolvimento da civilização ocidental, que fundou, em grande medida, a
ideologia brasileira.
Na Europa, a partir do século XVII, tão logo paridos, os bebês eram levados
para serem amamentados e cuidados por amas mercenárias2. Dessa forma, as crianças
passavam seus primeiros anos de vida longe de suas famílias e só depois retornavam,
quando e se vingassem (não era incomum que os bebês enviados às amas não
retornassem às famílias de origem por não sobreviverem a esses cuidados). Iniciada na
classe aristocrata, essa prática passou, depois, a integrar os costumes da burguesia,
chegando à generalização em todas as classes sociais no século XVIII.
Localizando o lugar das mães ao longo da história das famílias, Badinter (1985)
aponta o discurso cristão como um dos principais responsáveis pela evolução do papel
da mulher nas famílias (antes ocupando, assim como os filhos, um lugar de posse tanto
para o pai quanto para o marido), pelo conteúdo que pregava: a mulher deveria deixar
de servir ao marido para ter um lugar de companheira no lar, a seu lado. Para a filósofa,

2
Amas de leite eram mulheres contratadas para nutrir e cuidar das crianças em seus primeiros anos de
vida.
16

essa mudança de posição teve efeito no início do movimento (ainda atual) de


transformação das funções da mulher na família e de seu papel na maternidade.

A palavra de Cristo modificou, em boa parte, a condição da mulher. Na França,


até o fim do século XVIII, a igualdade proclamada pela Igreja traduziu-se num
certo número de direitos concedidos às mulheres. Pelo menos, às de classes
superiores. (Badinter, 1985, p. 30)

As passagens bíblicas que versam sobre a criação da humanidade e a


interpretação delas feita pela Igreja foram a base para a construção do lugar da mulher e
do feminino ao longo dos tempos. No contexto social entre os séculos XVII e XVIII, as
mulheres eram secundárias aos homens, e seu único mérito era ter um bom ventre,
portanto, eram tidas pelo marido como um bem, entre outros que ele possuía (Badinter,
1985).
Apesar desse início de transformação cultural, ainda era prevalente a soberania
do pai, subsidiada pela Igreja, como líder da família, e a relação da mãe com seus filhos
era orientada. Mãe e filhos estavam todos sob a tutela e o poder do pai. No decorrer do
século XIX, já foi possível testemunhar mães que se colocavam ao lado dos filhos
contra as decisões ou as punições paternas (Badinter, 1985). Essa mudança de
posicionamento materno me interessa na medida em que abre caminho para outras
construções do lugar da maternidade e do feminino na família.
A Igreja, mantendo-se como reguladora das condutas sociais pelo poder que lhe
era conferido, a partir dos séculos XII e XIII, passa a condenar o infanticídio e o
abandono dos filhos. Com a justificativa de que não era possível rejeitar ou negar um
presente dado por Deus, mulheres que ocultavam a gravidez eram, inclusive,
condenadas à pena de morte. Entretanto, como salienta Badinter (1985), a tentativa do
Estado de reduzir o infanticídio, no século XVII, criou as primeiras casas de
acolhimento a crianças abandonadas.
Para a autora, a escassez de amor nos séculos XVII e XVIII (que acabava
impulsionando o abandono de crianças) era motivada pela forma com a qual as famílias
eram formadas nesses tempos. Os casamentos não eram realizados por amor ou escolha,
mas por arranjos feitos pelas famílias e motivados pelas posses. “Não se trata, porém, de
negar a existência do amor em determinada época, o que seria absurdo. Mas é preciso
17

admitir que esse sentimento não tinha a posição nem a importância que hoje lhe são
conferidas” (Badinter, 1985, p. 50).
Por volta dos anos de 1760 a 1770, o lugar da criança na família começou a ter
destaque, a partir de obras que incitavam o amor materno como a base das famílias,
dando início a era da família moderna, como salienta a filósofa. Nesse mesmo contexto
social, a ternura materna era, para a igreja, como uma satisfação materna que
prejudicava o desenvolvimento dos filhos. “É mais esse estado de espírito leviano e
preguiçoso do que o excesso de amor e de cuidado dos pais pelos filhos que a teologia
do século XVII combate” (p. 60).
O novo modelo político de governo do Estado conferiu reconhecimento à
infância, o que implicou no estabelecimento de leis que a protegiam, bem como em uma
redistribuição dos responsáveis sociais (numa disputa de poderes entre justiça,
filantropia e medicina) por sua garantia (Donzelot, 1984). Essa mudança convoca a
medicina a diferenciar-se em especialidades médicas e, no século XVIII, surge a
pediatria como especificidade médica, pois, até então, a medicina não se dispunha a
tratar das crianças doentes. Os cuidados das crianças que adoeciam estavam, até então,
sob a responsabilidade materna, sendo uma função exclusiva da mãe. Para os médicos
da época, as doenças infantis eram mais difíceis de serem tratadas que as dos adultos,
pois crianças pequenas não falam.
Badinter (1985) justifica, em parte, a indiferença materna considerando a alta
taxa de mortalidade infantil da época. Essa seria uma forma de defesa, pois como se
apegar tanto a um ser que tem tantas chances de morrer antes de completar o primeiro
ano de vida? Uma das possibilidades de a mortalidade infantil ser tão alta era
justamente o envio das crianças aos cuidados das amas que viviam e cuidavam dos
bebês em situações precárias. Levando em conta as possibilidades de cada família se
dedicar aos cuidados de seus filhos, cabe a pergunta: por que as mães pertencentes às
mais altas classes e que não precisavam trabalhar preferiam entregar seus bebês aos
cuidados de terceiras?

Alguns dirão que as fontes escritas de que dispomos só dizem respeito, em geral,
às classes abastadas, para as quais se escreve e a propósito das quais se escreve e
que uma classe pervertida não condena a totalidade das mães. Podemos também
lembrar a atitude das camponesas de Montaillou que, na aurora do século XIV,
embalam, acariciam e choram os filhos mortos. Esse testemunho mostra
18

simplesmente que, em todos os tempos, houve mães amantes e que o amor


materno não é criação do século XVIII ou do século XIX. Isso, porém, não
prova de modo algum que tenha sido uma atitude universal. (Badinter, 1985, p.
86)

A autora, a partir de registros familiares dos séculos passados, pôde notar que os
pais pouco sentiam a morte de seus filhos pequenos e que não era incomum que eles
não estivessem presentes no velório deles, isso quando havia a possibilidade de saber da
morte a tempo do velório, pois muitos só ficavam sabendo muito tempo após o
ocorrido, devido ao fato de essas crianças estarem sob os cuidados de amas. Os registros
também indicavam que os pais pouco procuravam saber os motivos que causaram a
morte.
Vale ressaltar outro relato da filósofa (1985) que nos chama atenção: eram vistos
como curiosos os casos nos quais os pais sofriam pela morte de seus filhos pequenos.
Estes se apressavam em tentar explicar o motivo do sofrimento por um filho ainda
criança explicitando, talvez, uma defasagem já presente entre a ideologia proclamada e
os afetos parentais. Esse relato da autora me remeteu ao que ocorre nos dias de hoje
com as gestantes que perdem seu bebê antes do nascimento. Por não ser reconhecida no
contexto social, essa perda implica o estabelecimento de uma justificativa das mães ou
mesmo a ocultação de seu sofrimento.
Outro costume comum até o século XIX era a mãe amar mais um filho pelo seu
sexo ou posição de nascimento. “Como o amor, se era natural e portanto espontâneo,
poderia voltar-se mais para um filho do que para outro?” (Badinter, 1985, p. 91). Seria
possível selecionar o amor pelo menino em detrimento do amor pela menina, ou ainda o
filho mais velho pelo mais novo? “Não será isso uma confissão de que amamos a
criança em primeiro lugar pelo que nos proporciona socialmente e porque ela lisonjeia
nosso narcisismo?” (p. 91).
Amamentar seu bebê não era uma prática comum durante os séculos XVII e
XVIII, não sendo sequer recomendada pelos médicos da época, com a consideração de
que distanciava o marido da mulher, já afastados devido à orientação de não ser
aconselhado manter relações sexuais durante a gestação ou mesmo durante a
amamentação. A autora aponta outro inconveniente que justificava, para as famílias, a
prática do envio de seus bebês às amas de leite: o impacto que o ato de cuidar de um
bebê provocaria na vida social das mulheres. “Ela é um empecilho para a mãe não
19

apenas na vida conjugal, mas também nos prazeres e na vida mundana. Ocupar-se de
uma criança não é nem divertido, nem elegante” (p. 98). Durante esse período da
história, a criança não tinha o lugar na família que conhecemos hoje. Para as mulheres
da época, bastava ser mulher, e, para tanto, ela poderia esquecer as duas funções que,
até então, definiam-na: a de esposa e a de mãe, tarefas estas que só definiam a mulher
em relação ao outro.

Para compreender o comportamento de rejeição da maternidade pelas mulheres,


é preciso recordar-se de que nessa época as tarefas maternas não são objeto de
nenhuma atenção, de nenhuma valorização pela sociedade. São consideradas, na
melhor das hipóteses, normais, uma coisa vulgar. (Badinter, 1985, p. 99)

Nos séculos XVII e XVIII, a educação das crianças das classes burguesas e
aristocratas segue o mesmo ritual. No início da vida, as crianças são enviadas às casas
das amas, mais tarde, retornam ao lar para serem, após cinco ou seis anos de convívio
familiar, enviadas a um convento ou internato, deixando, dessa forma, um tempo bem
restrito de convívio com os pais. Badinter (1985) destaca que as pesquisas de
autoridades da época localizam a indiferença parental sobre esses filhos enquanto estão
sob os cuidados de terceiros, que quase nunca eram conhecidos da família ou traziam
consigo alguma referência. “Somos mesmo tentados a ver, nessa não interferência
indolente, uma espécie de substituto inconsciente do nosso aborto. A assustadora
mortalidade infantil no século XVIII é o mais gritante testemunho disso” (p. 137).
Após tantas evidências da mortalidade infantil e sua relação com a terceirização
dos cuidados dos bebês logo após o nascimento, no final do século XVIII, após 1760,
são publicadas várias orientações para que as mães comecem a se ocupar dos cuidados
de seus bebês e que os amamente. “Elas impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe
antes de tudo, e engendram o mito que continuará bem vivo duzentos anos mais tarde: o
do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho” (p. 145).
O novo imperativo, portanto, ao final do século XVIII, era a sobrevivência das
crianças e, para essa tarefa, era necessário convencer as mães a se aplicarem nas tarefas
esquecidas, aquelas ligadas ao cuidado materno dirigido ao bebê. Dessa forma, Badinter
(1985) reconhece que as mulheres foram seduzidas pelas personalidades mais influentes
da época, como médicos e padres, a acreditarem que seriam recompensadas com
felicidade e respeito se conseguissem ser boas mães.
20

As palavras “amor” e “materno” passam a ser associadas, conduzindo a um novo


olhar sobre a mãe perante sua maternidade. “Deslocando-se insensivelmente da
autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais a mãe, em detrimento
do pai, que entrará progressivamente na obscuridade…” (p. 146). Dessa forma, como
assevera a filósofa, as mulheres foram entendendo que, produzindo esse trabalho tão
importante para a sociedade, teriam uma importância nunca antes lhes atribuída, um
reconhecimento de sua utilidade.
Diferentes discursos foram dirigidos à sociedade para que todos apostassem na
importância de as mães se ocuparem de seus filhos, os quais, assim, teriam mais
chances de sobrevivência: um discurso econômico (e demográfico), dirigido apenas aos
homens mais esclarecidos, um filosófico, dirigido a ambos os sexos e um terceiro,
dirigido apenas às mulheres (Badinter, 1985).
No discurso econômico, de acordo com a filósofa, foi introduzida a importância
do aumento demográfico para o desenvolvimento da sociedade, e, para tanto, era
preciso melhorar as expectativas de vida dos bebês que nasciam. Dessa forma, foi
encomendado pelo ministro fisiocrata Bertin, ao médico do Rei, Joseph Raulin, uma
obra destinada às parteiras3 da província, no intuito de qualificar esse trabalho e
minimizar os acidentes, tão comuns na hora do parto.
Conforme aponta a autora, a partir do discurso filosófico, a ideia de igualdade
nos papéis familiares foi defendida e difundida naquele contexto social. O homem, pai,
não seria mais a autoridade familiar e tanto a criança quanto a mãe se beneficiam da
nova organização.

O poder, mais parental do que estritamente paterno, funda-se agora na fraqueza


da criança, “incapaz de zelar, ela mesma pela própria conservação”. É agora o
bem da criança que justifica a autoridade dos pais, e não um direito tanto
abstrato quanto absoluto. […] é a natureza da criança que exige o poder dos pais
e lhe impõe, ao mesmo tempo, justos limites. (Badinter, 1985, p. 162)

O terceiro discurso, dirigido apenas às mulheres, foi o da felicidade como


objetivo de vida do ser humano. Com a igualdade sugerida no discurso filosófico, foi
possível que, aos poucos, a mulher fosse se emancipando do marido e, com os filhos,
deixando de ser vista como propriedade familiar; assim, foi sendo construída a

3
No próximo tópico, será apresentado um breve estudo sobre a importância desse agente (as parteiras)
para o parto ao longo dos tempos.
21

possibilidade do casamento a partir da escolha. Dessa forma, o discurso da felicidade


estava diretamente ligado à possibilidade dos laços a partir do amor. “A procriação é
uma das doçuras do casamento: e que seria mais natural que amar em seguida os seus
frutos?” (Badinter, 1985, p. 178).
A partir da observação de alguns mamíferos na natureza, Rousseau (em
contraste com a imposição do amor incondicional) contrapõe o amor materno
espontâneo, com base em seus relatos que expõem a maternidade nesses animais. A
fêmea, após o parto, amamenta seus filhotes por uma necessidade dela, devido às dores
da descida do leite, no intuito de esvaziar o seio para cessar a dor. Em seguida, ela
amamenta seus filhotes por ter se afeiçoado a eles, ou por hábito, e continua
amamentando-os pela necessidade deles. Como evidencia Badinter (1985), “é a
necessidade, e não o amor que a leva primeiro a dar o seio, e que é, portanto, a primeira
causa da maternagem. Todos os que discorrem sobre o amor materno pouco falam sobre
esse aspecto” (p. 164).
A transformação da mulher dos séculos XVII e XVIII na “boa mãe” a partir do
século XIX não foi um processo célere e nem bem recebido por todas as mulheres, mas
gradualmente foi possível, com base nas promessas de um lugar reconhecido na
sociedade. Dessa forma, a era das provas de amor maternas teve início, a mulher se
sacrifica em prol do melhor para os filhos. “O primeiro índice de uma mudança de
comportamento é, certamente, a vontade nova de aleitar ela própria o filho” (Badinter,
1985, p. 202). Outra transformação que vale ser mencionada é que os bebês passaram a
não mais serem enfaixados, o que deixou seu corpo livre para brincar e interagir com
suas mães (acerca desse fato, pode-se também pensar que fica mais fácil para os bebês
conseguir convocar sua mãe, o que contribui com a construção do laço).
Bebês paramentados com faixas ficavam contidos e demandavam menos energia
das mães. Mas, a partir do momento que tais faixas foram descartadas, as mães
precisam dedicar mais tempo e energia a seus bebês. A saúde das crianças passa a ser a
principal preocupação dos pais. A filósofa relata que “a nova mãe, que se sente
responsável pela saúde do filho, não oculta sua ansiedade e pede mais conselhos e ajuda
ao médico. A presença desse novo personagem no seio da família se faz sentir cada vez
mais no século XIX” (p. 210).
22

Com a nova maternidade, as mulheres/mães eram exaltadas pelo desempenho de


seu papel e de sua função na sociedade, e, da mesma forma, as que não podiam sê-lo
eram “condenadas”. Da responsabilidade à culpa, foi um pequeno percurso. A mãe
passa a ser considerada o primeiro e mais fundamental educador, aquele que educa a
criança e, assim, desempenha o mais importante papel da sociedade. “Governando a
criança, a mãe governa o mundo” (Badinter, 1985, p. 258). A maternidade não se
restringe a dar à luz ao filho, ela se estende à lactante e à educadora.
O que pretendo indicar, a partir desse pequeno estudo sobre os diferentes lugares
das crianças nas famílias e da maternidade ao longo do desenvolvimento de nossa
sociedade, é como o discurso de uma época é capaz de dirigir o desejo feminino.

A psicanálise considera que o modo como os sujeitos constituem-se e


representam-se no laço social é perpassado pela lógica discursiva de cada época
e, dessa forma, o mal-estar do sujeito nos remete, em certa medida, a
transformações sociais, culturais, políticas e econômicas. (Vescovi, 2021, p. 19)

Paul-Laurent Assoun (1993) realizou um estudo fundamentado nos textos de


Freud sobre o feminino e, nele, fez uma importante distinção entre o desejo e o querer
feminino, inserindo, no cerne desse conflito, a constituição do desejo de uma mulher,
uma a uma e para cada uma de uma forma singular, A mulher. Sobre o querer feminino,
o psicanalista resgata a crítica feita pelo próprio Freud a seus textos, informando ter
dado pouca importância à ligação da menina com a mãe, na fase anterior ao Édipo. O
autor designa o querer feminino como o núcleo do inconsciente da mulher e desdobra a
paixão da mulher (A mulher, ou de cada mulher), o objeto dessa paixão e o gozo a dois,
de modo que a paixão “d’Ⱥ mulher” busca uma mulher que sustente essa paixão
(Assoun, 1993). Essa mulher do suporte seria a sua mãe, a primeira paixão de toda
mulher. Dessa forma, penso que o enigma da mulher, seu núcleo e seu querer, podem
ser decifrados a partir da mãe. “Depositam-se, assim, as diversas dimensões em que se
encena o tornar-se mulher, desde a ligação com a mãe até o objeto da castração,
passando pela relação com o pai e pela questão da ‘escolha’ do objeto e do amor ao
homem” (p. V).
Assoun (1991) também critica o desejo social de filho que se apoia no suposto
desejo “natural” da mãe em ter um filho, como se esse desejo feminino fosse algo
primitivo e, dessa forma, solidário ao social. “Talvez, haja algo de ‘maquinal’ e
23

compulsório em certas formas de desejo de filho nas mulheres e mesmo no princípio do


desejo de filho. Mas, doravante, o ‘imaginário social’ procriacionista interfere nisso. No
mínimo, ele acrescenta algo aí” (p. 3).

3.2 Alguns elementos sobre as transformações da abordagem ao parto no discurso


social: do higienismo à atualidade

Circunscrever o contexto em que a mulher/mãe se depara com o bebê natimorto


se faz pertinente na medida em que pode iluminar os indícios das formas sociais de se
tratar tal perda, inclusive, os modos da própria parturiente de enfrentar essa
contingência. Para traçar a curva do recente deslocamento ideológico desse processo,
começarei pelas mudanças sociais implicadas nas práticas higienistas até as adequações
atuais das instituições responsáveis pelo trato do parto, que ainda ressoam no discurso
socialmente estabelecido de nossa época.
Sustentando o pressuposto do equilíbrio das dimensões do indivíduo (física,
intelectual e moral), o higienismo é uma corrente de pensamento que emergiu na
Europa, no final do século XIX, prevalecendo até os anos de 1950, em resposta à maior
atenção social à saúde e à moral dos cidadãos. Considerando a doença como fenômeno
social que abrangia vários aspectos da vida humana, a preocupação com as condições de
salubridade passou a ter preponderância para a prevenção de contágios, epidemias e
mortes desnecessárias. Diante dos desafios envolvidos na preservação e na promoção da
saúde do contingente populacional, a perspectiva higienista avançou, por meio da
educação para a saúde, com a finalidade de aumentar a expectativa de vida, através de
melhores condições humanas (Fernandes & Oliveira, 2012). Além da promoção dos
cuidados sanitários nas residências e nas áreas urbanas (implantação de redes de esgoto,
cuidados com o lixo, afastamento de cemitérios, matadouros e indústrias dos centros de
aglomeração, etc.), a educação para a saúde mobilizava valores morais de organização,
controle e preservação das famílias contra a propagação de doenças venéreas e
infecciosas. Segundo Donzelot (1984), na Europa, as mães de família tornaram-se
importantes coadjuvantes: eram colaboradoras dos médicos nessa mudança social, por
aglutinarem o núcleo familiar e por informarem ao Estado as condições de saúde de
seus membros.
24

A cultura higienista no Brasil também se deu a partir do predomínio médico na


classe intelectual e de sua capacidade de influenciar as demais camadas sociais pelo
exercício da medicina. Nessa direção, a organização familiar e a readequação do papel
da mulher na família foram elementos importantes de transformação cultural. Martins
(2004) aponta que

os médicos oitocentistas tinham outra compreensão do papel da mulher na


família. Mais do que responsáveis pela transmissão dos valores morais do
catolicismo e da obediência à autoridade paterna, a mulher devia tomar para si a
missão de criar os filhos, formar novos indivíduos, assumir integralmente sua
função natural, empregando suas forças e todo seu tempo no exercício da
maternidade. Embora não se possa subestimar a importância da religião na
formulação dos discursos médicos sobre a maternidade, foram as ‘leis naturais’
que sustentaram sua visão sobre o papel da mulher-mãe. (p. 226)

Pode-se observar, nos dizeres de Martins (2004), a eleição da função da mulher


na agregação das famílias para alavancar a mudança de mentalidade social em relação
às práticas culturais. Seu posicionamento na maternidade, substancialmente instituído
como um papel natural da mulher, foi ainda mais favorecido como base fisiológica
determinante dessa ideologia que solidificava, na cultura, a correlação entre o
desempenho, dito feminino, e a maternidade. Entretanto, cabe salientar que essa
concepção, que faz equivaler mulher e mãe, calcando-se em leis naturais, foi contestada
no último século. Um exemplo é Roudinesco (2003) que, reportando-se aos destinos
freudianos atribuídos à mulher, considera equivocada toda argumentação naturalista.
Para a autora, que repercute grande parte do que os movimentos feministas do século
XX instituíram, não existe instinto materno. Também, a distinção da pulsão que
estabelece a fronteira entre o psiquismo e o corpo (Freud, 1915/2010), operada pelos
construtos da psicanálise, esclarece que, longe de o sujeito ser um corpo, o sujeito tem
um corpo (Lacan, 1972-1973/1982). Assim, advoga-se que a condição de um sujeito
cujo corpo pode parir confere uma especificidade não negligenciável ao sujeito que tem
esse corpo sem, entretanto, obturar as diferentes formas de exercício da maternidade
que explicitam não se tratar aí de instinto. Ao mesmo tempo, a determinação cultural
exige equacionar não apenas o ponto de que se trata na especificidade do corpo que
pare, mas as modalidades pelas quais esta condição biológica incide em cada mulher.
Esse tema será retomado mais adiante.
25

Nesse contexto, focalizarei, da importante passagem do higienismo no Brasil,


apenas o ponto relativo ao modo de parir que este propulsionou, pois, até então, a
assistência ao parto era restrita às parteiras e ocorria no âmbito domiciliar. Essas
mulheres eram conhecidas nas comunidades, tinham vínculos com as famílias e
conhecimentos dos costumes locais, mesmo com a introdução das escolas de medicina
no Brasil a partir do século XVIII4. A introdução da medicina nesse espaço inaugurou
não só a experimentação clínica que articulava a assepsia ao discurso
anatomopatológico, mas também produziu um discurso a partir da atuação da figura
masculina no saber e na prática obstétrica (Brenes, 1991, citado em Maia, 2010). Como
informa a pesquisadora,

a especialidade da obstetrícia só nasceu nas faculdades europeias de medicina na


primeira metade do século XIX. Para o surgimento da obstetrícia foi necessário
o cumprimento de dois pré-requisitos: que a mulher se tornasse alvo do interesse
médico e que a estrutura tripartite da medicina estivesse superada, já que a
obstetrícia é uma especialidade configurada de tal modo que não pode prescindir
da associação entre a clínica e a cirurgia. (Maia, 2010, p. 30)

A partir da suposição da classe médica a respeito das parteiras e seu não saber
científico, há um marco importante na história da higiene do parto no Brasil: a instrução
das “parteiras curiosas” — como são mencionadas em artigos de medicina —, por
médicos e enfermeiras ligados ao Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Criado em
1942, esse serviço visava a instruir e a vigiar o trabalho de parteiras no intuito de
reduzir os altos índices de mortalidade materno-infantil, registrados desde meados do
século XIX.

As duas finalidades centrais do programa de higiene materno-infantil eram o


treinamento e a supervisão de curiosas e a organização de serviços de partos em
domicílio, modalidade de atendimento considerada a melhor alternativa diante
das dificuldades de acesso das parturientes à assistência, fosse pela falta de
médicos ou de maternidades. A supervisão das parteiras e a organização do
serviço de partos em domicílio foram ações que deram vida ao programa de
assistência sanitária destinado à mãe e à criança, exigindo dos médicos,
enfermeiras, visitadoras e auxiliares responsáveis pelos serviços de saúde nas
localidades rurais atendidas pelo Sesp a “elevação do nível geral de práticas
obstétricas”. (Sesp, 1944, citado em Silva & Ferreira, 2011, p. 99)

4
Um estudo sobre o papel da mulher na comunidade, no contexto anterior a esse ponto, pode ser
encontrado em Foucault (1984), Aristóteles (1957) e Colling (2014).
26

Pode-se perceber um movimento de destituição do lugar social ocupado pelas


parteiras e a introdução, pelo discurso científico, da necessidade dos saberes médicos no
cuidado à população, o que foi sendo instituído aos poucos. É possível acompanhar, a
partir dos documentos confeccionados na época, o percurso da substituição da
valorização atribuída às parteiras pelo seu conhecimento do corpo feminino e da história
das comunidades pela introdução da soberania do saber médico e seu conhecimento
científico.

Se o treinamento de parteiras curiosas era notícia frequente nos boletins do Sesp,


neles também se conferia destaque à iniciativa sespiana de aprimoramento e
formação de agentes próprios no campo da higiene materno-infantil e da
obstetrícia, em claro contraponto ao treinamento das curiosas. As notícias davam
conta de que as ações da instituição no campo da assistência materno-infantil
eram executadas a partir de duas vertentes distintas: a da educação sanitária, na
qual se inseria o treinamento das parteiras; e a da especialização profissional, na
qual se investia no aprimoramento e na formação médico-científica dos seus
próprios agentes. (Silva & Ferreira, 2011, p. 98)

O predomínio dos partos naturais domiciliares realizados por parteiras não era
fruto apenas das escolhas delas ou das gestantes e de suas famílias, haja vista a escassez
de obstetras, já que a obstetrícia não era uma área almejada pelos profissionais da
medicina, como nos descreve Martins (2004).
A assistência médico-hospitalar ao parto e ao nascimento lhe conferem novos
significados. De evento fisiológico, familiar e social, o parto e o nascimento
transformam-se em ato médico, no qual o risco de patologias e de complicações se torna
a regra, e não a exceção. Maia (2010) ressalta que, a partir de então, inaugura-se outro
modelo de assistência ao parto: o modelo tecnocrático, que encontra, junto à medicina
obstétrica moderna, solo fértil para se legitimar no Brasil, em um contexto de
assistência à saúde predominantemente curativo e hospitalar.
Assim, se, por um lado, o saber científico demonstrou sua pertinência e
eficiência na redução dos índices de mortalidade infantil, a inserção do saber científico
obstétrico e da figura masculina no parto causou uma ruptura com a figura da parteira
— íntima da cultura e do próprio corpo feminino —, que era considerada por ter seu
olhar voltado à mulher que paria e ao seu bem estar: o parto, então, deixou de ser “coisa
de mulher” para tornar-se procedimento técnico. A consequente valorização social
desses elementos, devido à sua eficácia na promoção da vida, teria dado início, para
27

Maia (2010), à priorização do fruto do parto, o neonato, o que conduzia a uma


objetificação do corpo feminino.
Atribui-se à medicina moderna um modelo tecnocrático pelo fato de ela
considerar o corpo como uma máquina e o médico como um mecânico, aquele que a
conserta. Dessa forma, caso esse modelo tecnocrático seja aplicado especificamente na
obstetrícia e no próprio parto, o parto hospitalar cumpriria a função de consertar o corpo
da mulher que não consegue parir sozinha por algum “defeito”.
Maia (2010) também adverte que o corpo passou a ser percebido como máquina,
e que o principal objeto do obstetra é o útero e seu produto, em lugar da mulher. Dessa
forma, o parto é considerado como resultado do trabalho mecânico das contrações
involuntárias do útero. Essa imagem é fundamental na concepção da obstetrícia
moderna, pois ela elimina a mulher como sujeito do parto e coloca o médico nesse
lugar, cabendo a ele a condução ativa do parto. A cena do parto, que posiciona a mulher
deitada e de pernas para cima, arranjo justificado como colaboração para o ato médico,
afirmaria a imagem metafórica do deslocamento da mulher para o médico como sujeito
do parto. Estando o médico nessa posição, resta à mulher submeter-se a ele, o que se
contrapõe à proposta de assistência humanizada ao parto.
A visão tecnocrática prevaleceu na tomada da imagem fragmentada do
corpo-máquina e da mulher-útero associada à ideia do hospital como linha de produção
e, assim, permitiu que se instituísse uma assistência padronizada que inclui a prática de
deslocar a mulher durante o trabalho de parto. Nesse sentido, a própria área física das
maternidades expressaria tal concepção do processo da parturição: a mulher é
transferida de setor em setor na maternidade (pronto-atendimento, bloco obstétrico,
pré-parto e enfermaria), tendo, em cada um desses espaços do hospital, um número de
leito e equipes de referência diferentes.
Nos estudos da história da saúde pública, um outro ponto chama atenção,
relativo à abordagem escolhida para a indicação do tipo de parto. Esta não era orientada
a partir das possibilidades do corpo ou de indicações que levassem à abordagem
cirúrgica, como nos relata Tedesco et al. (2004), pois as representações de parto eram
estruturadas pelos sujeitos de acordo com a classe social da clientela: o parto estaria
mais relacionado a um ato instintivo para as mulheres das classes populares e a um ato
cultural para as mulheres das classes mais elevadas. Ao levar em conta os índices de
28

partos normais e cesarianas no Sistema Único de Saúde (SUS) e nos hospitais privados,
ainda hoje, constata-se que o tipo de parto também é uma marca do status social da
mulher.
Segundo Rocha e Ferreira (2020), os determinantes sociais mostram que as
mulheres de renda mais baixa, atendidas no sistema público, percebem-se menos
autônomas e mais vítimas de intervenções desnecessárias. Já as mulheres com maior
renda, usuárias da rede suplementar, apontam a receptividade do médico diante da
cesariana a pedido delas, porém não se sentem adequadamente informadas sobre as vias
de parto durante seu acompanhamento. Essa falta de informação mencionada pelas
mulheres caracteriza a qualidade da assistência prestada. O medo da dor e o temor de
sofrer violência na hora do parto apareceram nos discursos como fatores negativos do
parto normal, o que reflete o impacto da violência obstétrica na saúde e reforça a
importância da informação no processo de gestar e parir. A cesariana se destaca no
cenário médico, trazendo a discussão sobre o modo “normal” de nascer na sociedade
moderna. As altas taxas de cesarianas — a pedido ou baseadas em indicações não
clínicas, como comodidade do agendamento — caracterizam o novo perfil obstétrico.
Antes da implantação do SUS no Brasil, com a Constituição da República de
1988 e a regulamentação com as leis 8080 e 8142 de 1990, o modelo de assistência teve
foco curativo e hospitalar. Entretanto, a Constituição de 1988 (Brasil, 1988) é um marco
na redefinição das prioridades da política do Estado na área da saúde coletiva e
determina, em seu artigo 198, que as ações e os serviços públicos em saúde integram
uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único de saúde. O SUS
é organizado de acordo com os princípios da universalidade, que garante acesso a todos,
independentemente de contribuição; da equidade, que garante o atendimento das
necessidades dos indivíduos dando mais a quem necessita de mais; e da integralidade,
que oferta assistência em todos os níveis de complexidade à população. Sua
implementação tem como base as diretrizes de hierarquização, descentralização, com
gestão em cada esfera de governo, e participação da comunidade, garantindo controle
social das ações e dos serviços de saúde (Brasil, 1988).
Em 2003, foi criada, no Brasil, a Política Nacional de Humanização (PNH),
também denominada como “Humaniza SUS”. Trata-se de uma reformulação no modo
de cuidar da saúde no país, preconizando a construção dos processos de assistência à
29

saúde determinados pelo tripé: gestores, profissionais de saúde e usuários do SUS.


Ressalta-se, então, a necessidade de garantir a participação popular nas determinações
do Sistema Único de Saúde, a expectativa é que a assistência possa ser mais acolhedora,
ágil e resoluta, melhorando as condições de trabalho e de atendimento. A Política
Nacional de Humanização tem o intuito de reduzir as filas e o tempo de espera, com
ampliação do acesso, do atendimento acolhedor e resolutivo baseado em critérios de
risco, implantar o modelo de atenção com responsabilização e vínculo, garantir os
direitos dos usuários, valorizar o trabalho na saúde e manter a gestão participativa nos
serviços (Brasil, 2015b).
Interessa a esta dissertação focalizar, nesse novo contexto, que a humanização
do parto e do nascimento respondeu, com o movimento que busca resgatar a
humanidade e a individualidade da parturiente, ao anseio coletivo de melhor qualidade
da assistência médica, orientando-se na direção contrária à ideia da mulher-fábrica de
bebês e da maternidade como linha de montagem. Assim, o conceito de humanização se
desdobrou, passando a envolver o tecnicismo com práticas e atitudes que visam a
promover partos e nascimentos com privacidade, autonomia e protagonismo da mulher
(Brasil, 2001).

Em termos da assistência, o modelo humanístico propõe devolver ao parto seu


lugar como um evento fisiológico e afetivo. Nesse sentido, preconiza-se que a
mulher possa ter, caso queira, um acompanhante de sua escolha em todo o
processo do pré-parto, parto e puerpério; tenha liberdade de movimentação;
possa receber métodos não farmacológicos para alívio da dor; tenha privacidade
e a presença constante de um profissional capacitado para acompanhar o parto;
possa escolher a posição de parir; seja a primeira a ver seu bebê e a pegá-lo; e
tenha seu medo e sua dor percebidos como legítimos e integrantes do processo.
E, de maneira mais radical, humanizar significa vislumbrar o parto como uma
experiência de prazer e de gozo feminino. (Maia, 2010, p. 45)

Vale ressaltar, na aposta do parto humanizado, que se chega até a romantizar a


parturição, ao abordar o vislumbre da implicação do prazer e do gozo feminino.
Não há garantias de que o parto humanizado se configure como experiência
propriamente prazerosa, ficando, em certa medida, na dependência de condições
incomensuráveis, seja no plano físico ou psíquico. Entretanto, qualquer prática
hospitalar pauta-se pela preservação dos direitos civis das mulheres, como
30

acompanhamos na política vigente de humanização, que propõe interceder de modo a


garanti-los, colocando-se a serviço da saúde física e mental da puérpera e de seu bebê.
Nos grandes centros brasileiros, o parto hospitalar e medicalizado é uma
realidade instalada, e a garantia das políticas públicas, como a da humanização do parto,
está em processo de consolidação. Torná-las uma prática nas maternidades públicas e
privadas significa uma profunda mudança cultural e econômica, ainda em movimento.
Percebe-se que essa mudança está em curso no SUS, porém, na rede privada, esse
movimento deve ocorrer de forma mais lenta, a despeito de a Agência Nacional de
Saúde (ANS) promover, desde 2015, um projeto de incentivo à humanização do parto
para a rede suplementar de saúde, denominado “Parto Adequado” (Brasil, 2015a).
O projeto Parto Adequado, desenvolvido junto à ANS, o Hospital Israelita
Albert Einstein (HIAE) e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), com o apoio do
Ministério da Saúde, tem o objetivo de identificar modelos inovadores e viáveis de
atenção ao parto e ao nascimento, que valorizem o parto normal e reduzam o percentual
de cesarianas sem indicação clínica na saúde suplementar. Essa iniciativa visa ainda a
oferecer às mulheres e aos bebês o cuidado certo, na hora certa, ao longo da gestação,
durante todo o trabalho de parto e pós-parto, considerando a estrutura e o preparo da
equipe multiprofissional, a medicina baseada em evidências e as condições
socioculturais e afetivas da gestante e da família (Brasil, 2015a). A implementação de
protocolos de serviços profissionais voltados ao atendimento psíquico da equipe
hospitalar está incluída nesse projeto.
É desse contexto que recorto a especificidade de um tipo de parto que esta
dissertação procura alçar. Trago à tona um outro lado da maternidade, menos exposto, e
que parece manter-se à margem do discurso social, por ser uma modalidade de
maternidade que não produz filhos concretos: trata-se das perdas neonatais.
A constatação da morte do bebê ainda no útero materno torna necessária a
realização de um parto, pois a manutenção do bebê no corpo materno pode causar
complicações fisiológicas e psíquicas. Todavia, geralmente não se reconhecem as
implicações subjetivas da perda perinatal de um filho, antes que a convivência com ele
tenha ocorrido. A contingência da morte do bebê ainda no útero materno pode trazer
efeitos significativos da ordem de um sofrimento não localizável, no campo em que tal
perda tem lugar. Ao que tudo indica, o que está envolvido na realidade objetiva da
31

passagem da gestante à puérpera parece manter-se fora do alcance da captura da equipe


de saúde, na medida em que muitas contingências psíquicas persistem, escapando ao
controle protocolar almejado com vistas à saúde mental da parturiente. Localizar isso
que escapa da realidade psíquica da mulher, na cena hospitalar, pode circunscrever o
efeito do que também é inabordável pelo discurso social e conduz, enfim, ao que a
teoria psicanalítica pode apontar sobre o que ali comparece como algo fora da
representação.

3.3 O lugar da mãe do bebê natimorto no hospital-maternidade

Entre o que a mulher/mãe constitui como seu filho morto e a definição oficial de
óbito há, para estas, muitas vezes, um vão que nem sempre é transposto. Partirei aqui da
nomenclatura oficial (portaria número 72, de 11 de janeiro de 2010, artigo 2º, item III,
do Ministério da Saúde), que define o óbito fetal como:

a morte de um produto da concepção, antes da expulsão ou da extração completa


do corpo da mãe, com peso ao nascer igual ou superior a 500 gramas. Quando
não se dispuser de informações sobre o peso ao nascer, considerar aqueles com
idade gestacional de 22 semanas (154 dias) de gestação ou mais. Quando não se
dispuser de informações sobre o peso ao nascer e idade gestacional, considerar
aqueles com comprimento corpóreo de 25 centímetros cabeça-calcanhar ou
mais. (Brasil, 2010, s.p.)

Gestantes que perdem seus bebês antes desses cortes preestabelecidos, muitas
vezes, não são acolhidas no contexto hospitalar da mesma forma que a mãe que perdeu
um feto, com a justificativa de que o “produto era só” um embrião. Supõe-se que tal
abordagem reflita uma restrição silenciosa, conferida pelo discurso social estabelecido,
à morte, em especial, à morte de uma vida não realizada que, de certa forma,
desdobra-se também no modo quase secreto com que a mãe sofre o luto pelo seu bebê.
Para que uma mulher seja considerada mãe, essa nomeação assume consistência
a partir da especificidade de construção simbólica e imaginária dessa função, realizada
durante o período de duração da gestação, no que a mãe reconhece como tal. No caso da
contingência da perda do embrião, as modalidades de luto possíveis diante dessa
gestação malograda talvez estejam relacionadas à construção da relação da mulher com
a singularidade de sua gestação, o que não depende, necessariamente, da idade
gestacional do feto perdido.
32

Porém, sem conferir legitimidade a esse luto, não há qualquer atenção


institucional específica ao que pode significar, para as mulheres, o planejamento de uma
gestação e o fato de estar gestante. É o que Fonseca (2018) constata, ao relatar sua
experiência no acolhimento às mulheres em processo de reprodução assistida com
perdas gestacionais repetidas. A autora explicita a angústia de uma paciente na
contabilidade de suas perdas. Essa mulher, que havia perdido seis embriões, queixou-se
de que apenas dois foram contabilizados. Para ela, cada embrião tinha uma parte de seu
esposo e uma parte dela e estava em seu útero, mesmo não tendo sobrevivido por
muitos dias após sua implantação, portanto ela considerava cada um deles uma gestação
perdida. Fonseca (2018) denomina de “pequenos nadas” essas perdas dos filhos que
nem sempre podem ser contabilizados pelos cortes predeterminados, segundo as
definições oficiais de perda gestacional.
Ao mesmo tempo, é necessário ressaltar que as mulheres que perdem seus bebês
no final da gestação se deparam com um impasse semelhante ao que se reconhece na
perda embrionária, posto que a perda neonatal nem sempre encontra o acolhimento
psicológico hospitalar capaz de franquear, naquele momento, um passo para a
possibilidade de uma família chegar a elaborar o luto pelo seu bebê perdido.
Nesse ponto, também é preciso se debruçar sobre a diferença entre a noção
oficial do natimorto e a significação da perda de um bebê que não nasceu vivo, para
uma puérpera. Independentemente da idade gestacional do feto, tal perda pode ter uma
significação incomensurável para a mulher/mãe, implicando uma situação de luto que,
talvez, seja importante discernir, antes de propor uma modalidade clínica de
intervenção.
Para Freud (1915/2010), “via de regra, luto é a reação à perda de uma pessoa
amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal, etc.”
(p. 172). Segundo a definição acima, que distingue luto pela pessoa amada de luto por
uma abstração que ocupa seu lugar, quando se trata da possibilidade da elaboração do
luto por um bebê natimorto, referimo-nos a um bebê na posição de uma “pessoa amada”
perdida. Contudo, também é possível supor que, por ainda não ter nascido, seja mais
apropriado localizar o luto pela perda desse bebê como uma perda da “abstração” que
ocupa o lugar do bebê. Afinal, ainda que esse bebê esteja localizado intracorpo, sem um
“ser” concretamente presente, ele já ocupa um lugar no imaginário da mulher que tanto
33

se antecipa mãe quanto antecipa seu filho. Geralmente essa antecipação é a subjetivação
que ela pode suster a partir dos movimentos corporais e dos ritmos do feto,
reconhecidos em sua própria fisiologia. Essa construção tem a potência de conferir, a
ambos, uma forma de existência e, também, de constituir modalidades de laço.
No caso de a mãe se deparar com a realidade material do bebê, ela terá a morte
como um ponto imutável. A perda desse bebê “abstração”, em sua realidade psíquica,
que é, ao mesmo tempo, “a pessoa amada”, constitui uma mutilação cujo caráter talvez
paradoxal seja o de pertencer ao seu corpo e ao seu psiquismo. Esse momento configura
uma conjunção jamais reencontrada entre dois corpos, nem mesmo em qualquer ficção
da relação sexual. Esse ponto de perda pode ser tão inassimilável quanto impossível de
ser representado, o que localizaria o luto por essa perda numa dimensão real (conforme
a terminologia lacaniana). Nesse caso, um trabalho simbólico de elaboração do luto
poderia ficar em suspensão. Enquanto Freud (1917[1915]/2010) afirma entender “[…]
que o trabalho psíquico do luto leva o Eu a renunciar ao objeto, declarando-o morto e
oferecendo ao Eu o prêmio de continuar vivo” (p. 192), a circunstância do luto pela
perda de um filho que não viveu implicaria um tipo de renúncia corporal e narcísica
inexorável, que exigiria a permanência de algo vivo, e, para sustentá-lo, talvez seja
preciso suspender, paradoxalmente, o próprio trabalho psíquico. Admitir essa hipótese
exige delimitar o que permaneceria vivo, na mulher/mãe, do filho que nasceu morto.
Em muitos casos, o hiato simbólico deixado pelo natimorto parece não causar o
mesmo efeito no campo social, que, por vezes, ignora-o. A mãe, que passou os meses de
gravidez construindo o filho enquanto esperava seu nascimento, de repente, depara-se
com a contingência de que não há filho. Denominando esse hiato como um vazio,
Bromberg (2000) afirma que este será agravado se o bebê for logo retirado do contato
com a mãe, ou se ela não tiver qualquer contato com ele, supondo ser necessário que
essa mãe tenha lembranças do bebê para elaborar o luto. Para a autora, é necessário que
o natimorto seja percebido como um evento real, tangível, que pode ser absorvido,
elaborado e deixado pelo casal (principalmente) e também pelos irmãos, para que não
seja uma memória fantasmagórica, assombrando-os e paralisando seus relacionamentos,
como frequentemente ocorre.
Nessa perspectiva, já se observa comumente a prática dos membros da equipe
assistencial das maternidades de produzir, após a morte de um bebê, seja ainda no útero
34

ou depois de alguns dias de vida, lembranças para a família: uma caixinha com o
carimbo da placenta num papel, a etiqueta que ficava na mãozinha do bebê, o carimbo
dos pezinhos, a touca usada pelo bebê. Parece que as equipes que atuam nas
maternidades, ao produzirem essas recordações referenciais do filho morto, encontraram
um modo de lidar com os efeitos do bebê natimorto sobre os pais. A expectativa da
equipe é de que esse ato tenha um papel relevante na elaboração do luto pela perda do
bebê. Espera-se que o acolhimento humanizado possa ter a função de ao menos delinear
simbolicamente um marcador concreto que representaria o bebê que não voltou para
casa com os pais.
Outra prática das equipes na maternidade, na busca de caminhos para alavancar
a elaboração do luto materno, é a de facultar à família a possibilidade de decidir o
momento de dizer adeus ao bebê natimorto, após o parto. Em muitas oportunidades, esta
mestranda pôde acompanhar uma equipe que permite que a puérpera e seu companheiro
ou familiares fiquem com esse bebê o tempo que julgarem necessário. Se não é usual
que o feto morto volte para casa e ali permaneça com a família em um berço refrigerado
até as cerimônias de seu funeral, como ocorre alhures (Revista Crescer, 2021), esse
trabalho de reconhecimento social indica a dimensão incomensurável da perda do que
não pode ser perdido nem depois de morto.
Aguiar e Zornig (2016) ponderam que normalmente, após um óbito fetal, os pais
contam com poucas recordações do filho, o que poderia provocar uma sensação de
irrealidade e vazio. Relatam ainda que, comumente, outros familiares desmancham o
quarto do bebê e escondem os objetos já adquiridos para esses bebês pelos pais. Dessa
forma, salientam, os pais (especialmente a mãe) são privados de um importante ritual,
possivelmente aumentando a solidão experimentada. Há, por parte dos pais, um temor
de que os poucos traços que o bebê deixou possam ser apagados: “o luto após o
nascimento de um bebê morto não conta com experiências a serem relembradas após o
parto, sendo privadas de lembranças necessárias para entrada no trabalho do luto” (p.
270).
Por outro lado, no caso particular de natimortos ou, em menor grau, de mortes
neonatais, Bromberg (2000) afirma que o luto se torna ainda mais difícil se a morte for
seguida de perto por uma outra gravidez. No entanto, as famílias e a sociedade parecem
pressionar o casal que perdeu um filho, procurando fazer a reposição deste o mais
35

rapidamente possível, exacerbando a defesa da negação, como se a morte não tivesse


ocorrido, uma vez que logo haverá uma nova vida.
Foi da fala dos pais que, em minha experiência nos acolhimentos realizados
durante ou após um trabalho de parto de bebê natimorto ou mesmo após um processo de
curetagem5, um sintagma imperativo se ressaltou por sua presença recorrente: uma nova
gestação. Muitas famílias enxergam a possibilidade de pensar numa nova gestação que
seja levada até o nascimento, como estratégia de redução do sofrimento enfrentado no
momento atual de perda. Interrogo-me se esse pode ser o motivo da manifestação da
ânsia pelo retorno ao estado gestacional apresentado por muitas mulheres após a perda
de seu bebê e, assim, novamente, deparo-me com a virulência do que não pode ser
perdido na morte de um bebê que não viveu.

3.4 Relato de situação cotidiana de perda perinatal no hospital-maternidade

Por sua frequência, na prática hospitalar, repetir-se sistematicamente, o relato do


atendimento psicológico pontual de uma gestante será apresentado, de modo a permitir
ao leitor uma melhor aproximação da cena de perda, bem como das interrogações sobre
os efeitos da atuação de um profissional de saúde mental nesse contexto. Isso se
justifica pela importância de se localizar e demarcar algo do que se mostra sem se
deixar ver, encoberto no sofrimento materno, como condição preliminar a uma
condução da situação, de modo que esta não esteja fora de lugar, nem seja obscena (no
sentido ético).
Trata-se do acolhimento a uma gestante com 37 semanas de sua primeira
gestação, acompanhada de seu marido, que acabara de receber a informação que seu
bebê tinha morrido ainda em seu útero. Este foi solicitado pela equipe de enfermagem a
partir de interconsulta para atendimento no bloco obstétrico de uma maternidade
instalada em um hospital geral da rede suplementar de saúde, na grande Belo Horizonte.
Na condição de psicóloga, esta mestranda informa ao casal que havia comparecido para
oferecer um acolhimento psicológico. Maria6, de 23 anos de idade e casada com Vitor,
pai da bebê, então discorre sobre a sequência de fatos que a trouxeram ao hospital até
receber a notícia de que o coração da bebê havia parado de bater, constatando que ela

5
Cirurgia que consiste em esvaziar o interior de uma cavidade natural ou patológica com o auxílio de
uma cureta; raspagem.
6
Para respeitar o sigilo com relação à identidade dos pacientes, os nomes aqui utilizados são fictícios.
36

estava morta. Maria conta ter estranhado a falta de movimentos de sua bebê na barriga
nos últimos dias e por isso procurou o pronto atendimento hospitalar. Após ter realizado
exames clínicos e o obstetra de plantão não ter conseguido auscultar as batidas do
coração da bebê, Maria foi encaminhada para o exame de ultrassom que apontou o
óbito. Depois desse breve relato, Maria se cala. Diante do silêncio gerado, Vitor toma a
palavra, relatando que estava tudo certo com a gestação, que haviam feito ensaio
fotográfico no fim de semana anterior, que o quarto da filha já estava pronto e que eles
não sabiam o que havia ocorrido. O pai da bebê ressaltou também que o nome da filha
era Raissa e que o casal já havia decidido que, assim que a esposa pudesse engravidar,
eles voltariam a tentar novamente, sublinhando que a próxima filha teria o mesmo nome
da que foi perdida. O pai finalizou a fala informando que o casal teria uma filha com o
nome Raissa: “se essa não pôde nascer, a próxima poderia”.
A partir da afirmação do pai, fica a questão se seria importante para o casal
reconhecer essa Raissa, mesmo que morta, como parte da família, para que ela pudesse
ser representada através da fala do casal, podendo contribuir para a elaboração do luto,
fazendo parte da história da família e também para que a próxima filha do casal pudesse
ter um nome e significações próprias.
Nessa perspectiva, os pais foram por mim interrogados sobre como eles
conseguiriam diferenciar a Raissa que estava agora no útero da mãe da futura Raissa
que ainda não havia sido concebida. Não obtive resposta. O pai pareceu ignorar o
questionamento, sem vacilar. Entretanto, foi possível supor que Maria, após uma pausa,
colocou-se a refletir sobre o questionamento feito. Após alguns minutos em silêncio,
Maria retorna a falar dos procedimentos para o parto que faria e, sugerindo estar
ansiosa, diz aguardar o início do trabalho de parto: “estou no terceiro comprimido de
indução e espero entrar o quanto antes para poder voltar para casa”. O acolhimento se
encerrou naquele momento. No dia seguinte, o casal teve alta hospitalar antes de um
segundo encontro.
Vorcaro (2010) aponta que “localizar um saber insabido na singularidade do
sintoma, bordeando-o com um ato enunciativo de interrogação desse sintoma pelo
solicitante, é o desdobramento que se espera ocorrer no tempo de acolhimento” (p. 19).
Com base nessa indicação, interrogo-me se foi possível, em um único acolhimento, um
questionamento apenas ter tido efeito sobre a escolha dos pais. Minha aposta, a despeito
37

da brevidade da intervenção, foi a de que ouvissem, em algum lugar, uma outra


possibilidade, para além da determinação ali expressa de suplantar uma perda por meio
de uma reprodução que visaria a anulá-la.
Faz-se importante frisar que, não sendo incomum os encontros únicos em
serviços de urgência, é prática da equipe de psicologia da maternidade em questão, ao
final do acolhimento em casos de perda fetal, informar a mulher sobre a possibilidade
de encaminhamento para atendimento psicológico ambulatorial após a alta hospitalar.
Maria entendeu que poderia ser importante o acompanhamento e solicitou que fosse
encaminhada ao serviço. A obstetra responsável pelo parto, a partir da solicitação de
nosso serviço de psicologia, encaminhou Maria ao atendimento ambulatorial.
Como se sabe, em instituições hospitalares, os encontros entre analista e
paciente são restritos e a rotina de um único encontro é prevalente. Mesmo quando é
possível ampliar a atenção ao paciente, devido à internação de longa permanência, o
local de acolhimento geralmente não proporciona condições para o estabelecimento de
um setting clínico.
É admissível considerar que a prática de atendimento das solicitações aqui
abordadas, em parte, aproxima-se do registro daquilo que Freud (1913/2010)
denominou “tratamento por ensaio”:

[…] me habituei, tratando-se de um doente que conheço pouco, a aceitá-lo de


início provisoriamente, pelo período de uma ou duas semanas. Havendo
interrupção nesse período, poupamos ao doente a dolorosa impressão de uma
tentativa de cura fracassada. Fez-se apenas uma sondagem, para conhecer o caso
e decidir se é apropriado para a análise. Não dispomos de uma outra espécie de
prova além desse ensaio; […]. Mas esse ensaio preliminar já é o começo da
análise, e deve seguir as regras da mesma. Talvez se possa distingui-lo por
deixarmos o paciente falar, sobretudo, e lhe darmos apenas os esclarecimentos
que forem indispensáveis à continuação de sua narrativa. […] O começo do
tratamento com um período de prova de algumas semanas tem também uma
motivação relacionada ao diagnóstico. […] o psicanalista comete, num caso
desfavorável, um desacerto prático, torna-se culpado de um gasto inútil e
desacredita seu procedimento terapêutico. (p. 124-125)

O que justifica esses poucos encontros numa instituição hospitalar é,


primeiramente, conceber o cuidado em sua dimensão ética, diante da lacuna entre o que
os discursos estabelecem como limites da relação com o outro nas práticas sociais e a
relatividade de seu emprego. Distinguir essa diferença obriga o clínico a delinear
38

constantemente seu campo de ação para estabelecer novas ferramentas conceituais e


operacionais. Dessa forma, espera-se, potencialmente, reduzir os efeitos iatrogênicos
incidentes na situação hospitalar.
A permanência no hospital, regrada pelo tempo de internação necessária, limita
o encontro com o campo psíquico do paciente, por vezes, a um único encontro. Mesmo
assim, há possibilidade de acontecer alguma mudança no sujeito, a ponto de este
suportar o que antes lhe trazia sofrimento. Entretanto, pode-se considerar que o simples
fato de falar ao analista faz o sujeito retroceder diante do sofrimento, tomando distância
deste e, por consequência, produzindo um alívio imediato (Miller et al., 1997). Nesse
contexto, é plausível ao clínico apontar repetições e recordações, transformando-as
numa questão para o sujeito, a fim de “forçar” uma elaboração (Freud, 1914/2010a).
Reconheço que um contato que privilegie a escuta pode produzir efeitos no
sujeito. Seus efeitos constroem ou dissolvem uma demanda a depender do que eles
causam. Daí a importância da investigação das modalidades de intervenção, bem como
da tomada da própria prática como objeto de estudo.
A partir do acolhimento ao casal, refleti sobre o que poderia representar para
eles, e mais especificamente para a mulher, a possibilidade de uma nova gestação sem
que antes houvesse a elaboração do luto da anterior. Seria plausível entender que a
possibilidade do retorno ao estado gestacional teria o intuito velado de não sofrer a
perda atual? Nesse sentido, Rios, Santos e Dell’Aglio (2016) asseveram ser “importante
observar e intervir frente aos planos de uma nova gestação, logo após uma perda fetal.
A associação entre luto complicado e adaptação a uma nova gestação costuma se refletir
em sintomas depressivos e ansiosos por parte das mães” (p. 98).
Dessa perspectiva, a negação do sofrimento dos pais poderia funcionar como
desmentido da perda e obstruir a possibilidade de representação. O traumático é
entendido aqui como algo da ordem de uma experiência, cuja dimensão requer intenso
trabalho psíquico não encontrando condições de ser operada (Iaconelli, 2007). No caso
da mãe enlutada, aponta-se a falta de compreensão de sua dor como uma das variáveis
que dificultam sua elaboração.
Como alertam Aguiar e Zornig (2016), “sem que se falem dos fetos mortos e da
morte, a entrada dessa experiência na vida simbólica dos envolvidos será um grande
desafio, e assim a sombra dessa vida interrompida poderá perpassar gerações” (p. 279).
39

As autoras sistematizam, nessa passagem, a importância do trabalho subjetivo do luto,


que, como lembra Freud (1917[1915]/2010), “jamais nos ocorre ver o luto como um
estado patológico” (p. 172). Se o luto não é patológico, sendo considerado uma
resolução saudável após uma perda, questiono-me sobre o que pode tornar tão comum o
fato de que se tente ultrapassar essa etapa sem qualquer mediação.
Freud também aponta que “confiamos em que será superado após certo tempo, e
achamos que perturbá-lo é inapropriado, até mesmo prejudicial” (p. 172). Essa
observação leva-me a interrogar a modalidade de intervenção que poderia propiciar ou
perturbar um trabalho de luto. Talvez seja necessária uma reflexão sobre o acolhimento
que parta da diferenciação entre uma intervenção interrogativa e uma intervenção
imperativa.
Efetivamente, o trabalho clínico com a enlutada não é tarefa facilmente
delimitável. Fonseca (2018) relata a dificuldade da equipe em encontrar palavras para
acolher a mulher após a notícia de uma perda fetal. Em um depoimento na referida
publicação, uma profissional da equipe expressa a dificuldade de encontrar qual fala
direcionar à paciente, “[…] qual a palavra positiva […]” (p. 45). Aponto que a família
pode se encontrar nesse mesmo lugar da equipe que, no intuito de confortar, procura por
um discurso positivo. O objetivo, parece-me claro, é o de acalentar, mas o desfecho
parece levar essas mulheres a tomá-lo como censura a seu luto.
É digno de nota que o discurso social prevalente autoriza o sofrimento do luto
pela perda de pais, irmãos, cônjuges e filhos nascidos vivos. O que poderia haver na
perda de um bebê nascido morto que provoque a tentativa social de anulação do luto e
até a consideração de que este seria patológico? Entretanto, constata-se que essa perda
pode representar algo de insubstituível e intratável para a mulher que perde seu filho
antes de ele viver.
Em seu texto Luto e melancolia, Freud (1917[1915]/2010) diferencia o que
marca as duas possibilidades de elaboração de uma perda. No luto, é possível localizar a
perda de interesse pelo mundo externo devido à perda delineada de uma pessoa amada
ou de um ideal, o vazio, a falta. O sofrimento do enlutado tem endereço definido, e o
sujeito atravessa o período com alterações (justificadas pela perda do objeto amado)
consideráveis em suas atividades, e vai, aos poucos, podendo fazer a escolha de, apesar
da perda, continuar vivendo e, assim, elaborar o luto. Nos quadros de melancolia, a
40

perda de interesse é pelo próprio melancólico, que dirige a si mesmo investimentos


agressivos, vendo-se como desinteressante, indigno e, portanto, não merecedor de
qualquer investimento de amor.
Vale salientar ainda outro ponto marcante na diferenciação da melancolia: a falta
de definição do objeto perdido. A partir desse ponto salientado por Freud
(1917[1915]/2010), interrogo-me se o ambiente no qual a mãe vive interfere de modo a
impedir seu processo de elaboração do luto. Esse seria o caso de familiares ou de redes
de apoio que evitam tocar no assunto da perda do bebê, sustentando o discurso social de
que não há motivos para o sofrimento da mulher, uma vez que não houve convívio com
o bebê após o nascimento, tendo este nascido morto.
Pergunto-me se essa possível tentativa de atenuar a perda sentida pela mulher
pode ter o efeito de perda da consistência do objeto. A mulher talvez não consiga
endereçar sua dor a uma perda não reconhecida socialmente.
Discutir essa questão do objeto e sua consistência exige retomar o uso genérico
do termo objeto, bem como sua função em psicanálise, que, nesta dissertação, foi
apenas introduzida até aqui. Importa, primeiramente, esclarecer a definição
dicionarizada do termo, a partir da qual situarei sua função no texto freudiano.

Objeto é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade


percebida, a imagem fantástica, o significado expresso ou o conceito pensado. A
pessoa é objeto de amor ou de ódio, de estima, de consideração ou de estudo;
nesse sentido, o próprio é ou pode ser objeto. […] Todo fenômeno psíquico
inclui em si alguma coisa como objeto, embora nem sempre da mesma forma.
Na representação há algo de representado, no juízo algo reconhecido ou negado,
no amor algo de amado, no ódio algo de odiado, etc. […]. O nome objeto, será
reservado à matéria tratada na medida em que foi produzida e ordenada de forma
sistemática por meio da investigação; objetos são os objetivos da investigação.
(Abbagnano, 1901/1982, p. 695)

O Vocabulaire technique et critique de la philosophie acrescenta: “o que está


diante de nós… o que temos em vista”, fazendo oposição ao sujeito, uma vez que ele é
quem apreende o objeto como um objetivo (Lalande, 1926/1991, p. 793).
Uma pequena síntese do uso freudiano do termo objeto pode ser encontrada em
Lacan (1956-1957/1995). A partir de sua leitura de Freud, ele retoma primeiramente os
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) localizando o tema da descoberta do
objeto. O psicanalista reconhece a abordagem implícita ao objeto sempre que Freud
41

discorre sobre realidade e quando a ambivalência está implicada em relações


fundamentais. Uma terceira modalidade de abordagem do objeto em Freud é ressaltada
por Lacan: “o sujeito se faz de objeto para o outro, que há um certo tipo de relações em
que a reciprocidade, pelo viés de um objeto, é patente, e mesmo constituinte” (p. 13).
Assim, a posição de sujeito e objeto podem se alternar. Lacan retoma também que a
relação de objeto, para Freud, vem desde seu primeiro esboço da psicologia com o
Projeto para uma psicologia (1895), texto no qual o autor trata o objeto como objeto a
se reencontrar.

Não se trata em absoluto, do objeto considerado na teoria moderna como objeto


plenamente satisfatório, o objeto típico, o objeto por excelência, o objeto
harmonioso, o objeto que funda o homem numa realidade adequada, na
realidade que prova a maturidade — o famoso objeto genital. (Freud, 1895,
citado em Gabbi, 2003, p. 13)

Coelho (2001), a partir de sua leitura de Freud e Lacan, indica que Freud
apresenta uma série de variedades do uso do termo objeto na construção de sua teoria.
Em geral, Freud denomina de objeto as representações psíquicas. Já Lacan distingue, a
partir da obra freudiana, os tipos de objetos indicados a seguir.
Quando o texto freudiano aborda a escolha de objeto, ele está se referindo ao
objeto de amor, geralmente aos indivíduos tomados como tal. A mãe é o objeto
primordial de amor de todo neonato, e, no caso da menina, há a troca de objeto de amor
da mãe pelo pai.
Há também a referência ao próprio sujeito, ao Eu como instância psíquica que
pode ser tomado como objeto de desejo no caso de investimentos narcísicos. Portanto,
nessa representação, o próprio Eu é o objeto narcísico.
A partir de sua primeira teoria das pulsões, Freud (1915/2010) propõe que as
pulsões sexuais têm como base originalmente as pulsões de autoconservação. Portanto,
as escolhas anaclíticas (por apoio) de objeto se estabeleceriam com base no primeiro
modelo de relação no início da vida, quando a satisfação sexual se apoiava
principalmente no seio materno tomado como objeto. Constitui-se como objeto
pulsional todo objeto no qual, ou através do qual, a pulsão consegue atingir seu alvo
(Coelho, 2001).
Nessas várias versões do objeto suposto por um desejo, seja no amor, no
narcisismo ou nas pulsões, trata-se de figurações assumidas como suplência diante da
42

falta que causa o desejo, na ausência de satisfação que define o objeto na psicanálise,
ou, mais precisamente, como demonstrou Lacan (1964/1988), são semblantes do objeto
inobjetalizável que interessa à psicanálise.

***

Pude testemunhar, na prática do acompanhamento de mulheres atendidas em


maternidades, na maioria das vezes, famílias que, acolhendo a mulher após sua perda,
tentam tamponar a falta do bebê que morreu apontando novas possibilidades de
investimento a essa mulher, no intuito de reduzir seu sofrimento. Entretanto, não se trata
de tamponar a perda imediatamente, mas de lidar com ela para tratá-la. Como aponta
Bromberg (2000), o trabalho terapêutico com pacientes enlutadas possibilita que a mãe,
aos poucos, consiga investir sua libido em outros objetos, salientando, todavia, que esse
trabalho requer um tempo não negligenciável. Não lidar com esse luto pode implicar a
necessidade do trabalho terapêutico, tendo em vista a complexidade narcísica aí posta
em jogo, como argumentam Aguiar e Zornig (2016), nos casos de luto por bebês
nascidos mortos “[…] a mãe, gradualmente, precisará deixar morrer uma parte de si
mesma, tal qual uma amputação. Por essa particularidade, a ameaça melancólica é
consideravelmente maior nos casos de luto pré-natal do que em outros tipos de lutos”
(p. 278).
Uma mulher que perde seu bebê ainda na gestação conviveu, durante semanas
ou meses, com a possibilidade de ser mãe daquele bebê. Entende-se, portanto, essa
possibilidade como uma relação já estabelecida e articulada entre suas instâncias
psíquicas que terá que ser desfeita. Na impossibilidade de uma continuidade, a
mulher/mãe precisará de um tempo para compreender essa perda e viver seu processo
de luto de si mesma, o que implica reconstituir-se.
Considerando a distinção subjetiva de cada mulher, pode-se afirmar que,
enquanto algumas terão que se reconstituir como não mães a partir de sua perda, outras
não se sentem destituídas de sua condição de mãe após a perda de seu bebê. Para estas,
a possibilidade de reconstrução é como se apresentar como mãe sem ter objetivamente o
filho como testemunha.
Essa configuração foi capturada brilhantemente na obra cinematográfica Pieces
of a Woman (Peças de uma mulher), de 2020, dirigida por Kornél Mundruczó, que
43

apresenta uma mulher que perdeu sua filha logo após o parto e enfrentou algumas
questões em busca de sua reconstituição. O filme retrata situações com as quais, por
vezes, nos deparamos na clínica de mulheres que perderam seus bebês. Trata-se da mãe
da gestante que, contra a vontade da filha, decide o que fazer com o corpo do bebê
natimorto e cogita a possibilidade de processar a parteira que assistiu o nascimento
domiciliar. A interferência da família nas resoluções práticas que sucederão a perda
atropela as oportunidades que poderiam facilitar a elaboração de luto da mãe.
Outro ponto também presente na clínica e explicitado nesse filme é a expressão
de piedade que a mãe-sem-filho reconhece no modo como incide nela o olhar do outro,
situação que preferia não ter que lidar em sua tentativa de retomar sua vida.
O filme traz outro ponto latente que é a recuperação pela qual o corpo feminino
passa para se recobrar da perda ou do parto: o sangramento por dias, as contrações
uterinas, frequentemente produzindo leite para alimentar o filho que não mais existe.
Salienta-se que, quando não há filho, as mulheres precisam, muitas vezes, retornar ao
trabalho e lidar com esses processos corporais ao mesmo tempo.
Toda maternidade reconhecida no cotidiano por essa mãe, como o encontro com
outras mães com seus filhos, é capaz de reativar, nessa mulher-mãe-sem-filho, a perda
que sofreu. No filme, apesar da insistência da família em mover um processo na busca
de responsabilizar alguém pela morte da bebê, a mãe consegue colocar que não há
compensação em achar um culpado, uma vez que não há possibilidade de recuperar sua
bebê. É plausível estabelecer uma analogia entre esse acontecimento no filme e as
situações em que as famílias incentivam as mulheres que acabaram de perder seus bebês
a tentarem uma nova gestação, como se desse para compensar ou preencher uma perda.
É possível testemunhar a elaboração de algumas mulheres sobre o lugar atribuído a esse
filho que não nasceu, lugar que outro bebê não poderia ocupar, enquanto outras
mulheres acabam se deparando com essa constatação mais tarde.
É como se as pessoas ao redor da mulher que perdeu um bebê precisassem
oferecer uma compensação por algo insuportável para elas mesmas, sem franquear
espaço para simplesmente acolher a perda. Parece-me que, para isso, não há lugar no
discurso social.
Diante das várias alternativas de auxílio ou de acolhimento que possam ser
oferecidas à mulher que perdeu seu bebê, constata-se ser inviável estabelecer
44

procedimentos padronizáveis. Essa constatação me remete à especificidade da


singularidade reconhecida no atendimento psicanalítico e à importância de operar esses
acolhimentos sem cartilhas ou protocolos, pois cada mulher terá um tempo próprio e
fará escolhas específicas no enfrentamento de seu processo de luto.
O filme utiliza uma linha do tempo em torno da construção de uma ponte para a
travessia desse abismo subjetivo, implicando ainda uma desconstrução secundária: o
desencadeamento da impossibilidade do relacionamento do casal que não pode se
refazer. Dessa forma, cada um procurou sua via de reedificação. A mulher, com a
lembrança do cheiro de sua bebê e a semelhança deste com o cheiro de maçã, buscou na
germinação e no plantio da fruta sua própria reestruturação.
O psicanalista Marcelo Veras (2021), em seu perfil do Facebook, faz uma
importante leitura do mesmo filme, trazendo o que ele nomeia como o avesso da
depressão pós-parto: a estranheza provocada a partir da separação de corpos que ocorre
no pós-parto, separando o corpo das mães do corpo de seus filhos. Nas palavras do
psicanalista: “é o avesso do amor simbólico que tenta fazer que dois se tornem um. O
real do parto é que o Um se torna dois”.
A situação do filme é entendida como esse “avesso”, partindo do ponto que,
muitas vezes, a depressão pós-parto é um estranhamento da interação com esse outro
que é o bebê após o nascimento, vivido pela mãe que tentaria ler a nova relação pelas
lentes da expectativa da sociedade, tendo a maternidade como ideal do feminino. Outro
ponto importante trazido por Veras (2021) é que, frequentemente, uma análise não visa
a superar o luto, mas a construí-lo. A mulher que perde seu bebê consegue significar sua
perda e construir o lugar de seu bebê, apesar de morto, entretanto, isso pode gerar um
estranhamento que acaba vindo por outra via, a da sociedade. A mulher que se
reconstitui frente à maternidade a partir de um bebê que nasceu morto, muitas vezes,
parece estranha para as pessoas em seu entorno.
45

4 REFERENCIAL TEÓRICO

Para sustentar o percurso retroativo da mulher/mãe até os primórdios de sua


subjetivação, propondo reverter a suposta cronologia do desenvolvimento da condição
feminina, partirei do momento da perda atual do bebê, para revisitar os demais pontos
nodais salientados por Freud. Para percorrer esse caminho das especificidades do
feminino, selecionei alguns textos que explicitam as construções freudianas referentes a
cada ponto, de forma a fundamentar as elaborações desta pesquisa.

4.1 Do método de abordagem teórica

Em minha experiência como responsável pela implantação do serviço de


psicologia e pelo atendimento nas unidades materno-infantil de hospital geral com
maternidade, pude constatar, ao longo de meu trabalho, que as demandas de
atendimento para acolhimento psicológico eram, geralmente, formuladas pela equipe
assistencial. Dessas demandas, o maior número de solicitações de acolhimento era
procedente do bloco obstétrico, especificamente para atender as mães que haviam
acabado de receber a notícia de que seu bebê havia morrido ainda no ventre materno.
Dentre os acolhimentos às gestantes de bebês natimortos, um ponto em comum
sempre se ressaltava, convocando minha atenção: a maioria das mulheres que passava
por esse momento emendavam, ao relato descritivo da perda de seu bebê, o anseio de
uma nova gestação. Escolhi uma situação representativa para referir ao leitor o que
geralmente ocorria no cotidiano dessa prática: o relato de um casal que havia acabado
de perder uma filha, nas últimas semanas de gestação, e que, após relatar o momento da
perda, imediatamente mencionou uma nova gestação. O casal complementou sua fala
salientando outra marca da repetição: o próximo bebê teria o mesmo nome do bebê que
acabara de morrer.
Em muitos acolhimentos, deparamo-nos com este ponto em comum: diante da
perda, as mulheres/mães apresentavam, como recurso, a convocação de uma nova
gestação. Entretanto, esse relato traz ainda a singularidade que nos captura e interroga,
na medida em que é reafirmada imediatamente por outro complemento. Além do
tamponamento da perda pela declaração da convicção de uma nova gravidez que
suplantaria a falta, apresenta uma segunda cobertura, em sua dupla repetição: a nova
gestação é acrescida da reprodução da nomeação do bebê.
46

Essa recorrência propulsou a elaboração da pergunta principal deste trabalho:


Qual a perda implicada em um filho que não nasceu? Reconheço aí o desdobramento de
uma interrogação singular que move meu próprio processo analítico, relativo à tensão
que articula a mulher com a maternidade. A afirmação de Rocha e Guerra (2020) de que
“o pesquisador permanece fora do lugar de sustentar a causa do desejo para um outro,
pois o tema de pesquisa é que está na causa do desejo, movendo-o como analisante” (p.
62) apoia a modalidade pela qual me aproximo de meu objeto de pesquisa. Para as
autoras,

a marca singular da construção de pesquisa em psicanálise, está ligada à


consideração do sujeito nesse processo. Nesse ponto que a psicanálise se difere
de outras ciências, pois considera o sujeito e seu inconsciente no processo de
construção da ciência. Da mesma forma, podemos pensar a construção de uma
questão de pesquisa e como os elementos inconscientes do pesquisador se
apresentam nessa elaboração. (p. 64)

Dentre os diversos campos teóricos possíveis para orientar tal leitura, situo,
como marco conceitual de partida, uma leitura da psicanalítica freudiana acerca da
sexualidade feminina. Minha proposta metodológica, portanto, abarca uma
reinterrogação de pontos específicos da obra freudiana, já problematizados por aqueles
que desdobraram suas assertivas, buscando os elementos que articulam a emergência do
sujeito, o desenvolvimento sexual diferencial da mulher e a conjugação do feminino à
maternidade. São muitos os trabalhos (Fonseca, 2018; Iaconelli, 2015; Jerusalinsky,
2011) que localizam as posições da mulher que ultrapassam a maternidade, em oposição
à ideologia que a toma como natural, ou discernindo que esta é apenas uma de suas
possibilidades. Todavia, esta dissertação se voltará ao recorte da função da própria
maternidade, a partir do que o efeito da perda dessa condição (as consequências casuais
da perda atual) pode elucidar o que está em jogo desde a perda primordial, percorrendo,
para tanto, a direção que orienta a feminilidade.
Tendo em vista que esta dissertação trata da perda implicada em um filho que
não nasceu, busca-se equacionar, por meio da obra freudiana, as particularidades
envolvidas na edificação da subjetivação feminina, para problematizar especialmente
seus modos de substituir as perdas implicadas em sua estruturação. Percorrerei o
caminho das construções da teoria freudiana que trilham as especificidades do feminino,
interrogando suas articulações a partir de minha experiência clínica, bem como do
47

diálogo com outros psicanalistas que abordaram essas questões que tangenciam o
estatuto da mulher e a função da maternidade nesse contexto.
Freud (1900/2019) adverte que “ao representar um desejo como realizado, o
sonho está nos levando para o futuro, de fato; mas esse futuro que o sonhador toma
como presente é modelado, pelo desejo indestrutível, à imagem e semelhança do
passado” (p. 675). Tomando este movimento do desejo persistente e sua atualização no
sonho como operação também incidente no “sonho da maternidade”, avanço na
consideração da suposição de que a conjunção mulher e mãe, na maternidade, esteja
relacionada à separação da própria mãe. Nessa direção, pode-se interrogar: será que a
construção da maternidade trataria do trajeto da interdição até a incorporação da mãe?
A pesquisa em psicanálise constitui um saber derivado da ciência, mas não se
enquadra como integrante desta, porque, diferentemente da ciência, que exclui as
manifestações subjetivas, prometendo com isso uma objetividade máxima, a psicanálise
inclui o sujeito em sua investigação, inserindo-o na série da sua experiência, ao
sustentar a hipótese do inconsciente. Essa consideração essencial permite delimitar o
campo de pesquisa da psicanálise (Vorcaro et al., 2016).
Fonseca (2018) lembra que, em psicanálise, o estudo da sexualidade feminina
abrange o enfrentamento de questões ligadas à divisão entre a mulher e a mãe e aos
impasses de ser mulher e de ser mãe. A partir de articulações teóricas propostas nos
textos de Sigmund Freud e contando com os trabalhos de autores que se basearam em
suas obras, a autora verifica a referência constante a um impossível de se dizer, tanto do
lado da mulher quanto da maternidade.
Reafirmando essa constatação, procurarei cernir as condições que envolvem esse
impossível de dizer, localizando, na abordagem freudiana à mulher, a função do objeto
perdido e de seus modos de tratá-lo no decorrer de sua edificação psíquica. Assim, o
ponto de partida é a delimitação das operações que cifram a experiência humana no
inconsciente, destacadas por Freud (1900/2019). Através da pesquisa bibliográfica da
literatura, busco, portanto, destacar a temática que abrange as vias das condições de
representabilidade do deslocamento e da condensação como mecanismos que trabalham
transmutando as perdas objetais, franqueando a indestrutibilidade do desejo.
Buscando me deter ao percurso retroativo da mulher/mãe até os primórdios de
sua subjetivação, ou seja, revertendo a suposta cronologia do desenvolvimento da
48

condição feminina, parto do momento da perda atual, para revisitar os demais pontos
nodais salientados por Freud. Para cada um desses pontos, foram destacados os
seguintes textos:

As escolhas das Sobre a sexualidade feminina (1931/2010), A feminilidade


mulheres (1933/2010).
Sobre as teorias sexuais infantis (1908/2015), Análise da fobia de um
O complexo de garoto de cinco anos (1909/2015), A organização genital infantil
castração (1923/2011), A dissolução do complexo de Édipo (1924/2011a), O
fetichismo (1927/2014).
A passagem da Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016), A
puberdade e o organização genital infantil (1923/2011), Algumas consequências
efeito da psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925/2011a).
adolescência
A experiência Projeto para uma psicologia (1895/2003), A interpretação dos
de satisfação e sonhos (1900/2019), Sobre as teorias sexuais infantis (1908/2015),
seus avatares Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2016), Os instintos
e seus destinos (1915/2010).
A repetição Além do princípio do prazer (1920/2010).
O luto Luto e melancolia (1917[1915]/2010), Inibição, sintoma e angústia
(1926/2014).

O estudo da repetição e do luto também apoiarão essa trajetória sobre as perdas,


na medida em que orientam modalizações do que se repete de modo inédito e se sofre
nas perdas. Com esses instrumentos teóricos, considero ser possível delimitar de que se
trata nos efeitos da perda de um filho que não viveu.
Para abordar a trama do texto freudiano, busquei pontualmente as diferenciações
de categorias implicadas no psiquismo, as quais Lacan denomina de dimensões (ou
dit-mansões) da realidade psíquica de qualquer sujeito: a dimensão simbólica, a
dimensão real e a dimensão imaginária, orientada pelo modo como Milner (2006) as
sistematizou, fazendo uma articulação com a leitura de Vorcaro (1997), por considerar
que essas distinções franqueiam apoios para fazer os discernimentos do que me parece
49

presente sob a sombra, nos textos freudianos. A articulação dessas categorias


heterogêneas apresenta a medida comum que as homogeneíza por desempenharem a
mesma função de sustentar juntas as duas outras:
Real: O real é isso em que o inconsciente se sustenta, a coisa inapreensível,
cúmulo de sentido que constitui enigma. Enquanto dimensão pura de existência (Há), é
obstáculo do qual nada pode ser deduzido. A incessante impossibilidade de se dizer
disso qualquer coisa faz com que esse existente sustente a repetição do indefinível.
Simbólico: O que faz com que o real possa ser tomado como ponto mergulhado
e situável num lugar do espaço é o simbólico (Há discernível). O termo que o escreve
em sua ausência, que lhe confere incidência no campo discursivo, sem o qual nada se
diria, permite a veiculação cifrada que o envolve, produzindo o deslizamento
substitutivo deste inapreensível, coincidindo com ele, sem equivaler a ele: há um.
Imaginário: Trata-se do reflexo dessa coisa, pelo que a representação responde,
suspendendo este deslizamento com uma intuição, com um sentido que toma corpo. O
imaginário faz a consistência do que o rodeia na mesma relação em que é capturado
pela imagem do seu corpo. O imaginário é a condição de representação desse ponto e de
sua circulação, no que ele é “como se fosse x”, parecido com outros e, portanto,
dessemelhante a outros: Há semelhança. É o que lhe atribui uma relação definível, que
o liga a outros, consistindo numa rede de semelhanças e dessemelhanças. A realidade
deste representável lhe permite deslocar-se de representação em representação,
atribuindo-lhes propriedades de semelhança e de dessemelhança.
Dessa maneira, faz-se importante salientar as implicações da pesquisa em
psicanálise que, desde Freud, não se reduz à aplicação de uma técnica (o que
reconduziria sua aplicação ao universal e não ao singular), pois a psicanálise é
transmitida a partir da articulação da clínica, da teoria e da investigação. Na clínica, a
transmissão do método psicanalítico é realizada a partir da interseção entre o analisante,
o analista e as manifestações inconscientes.
No que diz respeito à transmissão em psicanálise, pode-se marcar a diferença
entre a técnica e o método, posto que, enquanto a técnica opera com princípios que
instruem o manejo científico, o método traz a marca singular do sujeito que realiza a
transmissão, dado que cada analista tem seu próprio estilo. Cada pesquisador possui um
modo próprio de transmitir a psicanálise e o seu saber não todo. Como nos lembra
50

Vorcaro (2018), “transformar o atendimento clínico em um lugar de interrogação sobre


a própria teoria psicanalítica e sobre sua transmissão convoca o clínico a suportar o
insabido […]” (p. 43).
O lugar do saber, tão importante em pesquisas científicas, tem, na psicanálise,
um lugar apenas suposto. Nas palavras da autora:

O psicanalista tem uma relação direta com o saber do sujeito suposto. Ele nada
sabe desse saber suposto, mas ele tem um saber “em reserva”, que lhe permite
ordenar logicamente o não sabido. É o não saber do clínico que permite ao
sujeito a iniciativa de construir seu projeto de saber. (Vorcaro, 2018, p. 43)

Dessa forma, o não saber do analista, auxilia o analisante na possibilidade de


construir um saber próprio sobre si. Esse trabalho [analítico] só é possível de ser
realizado a partir do estabelecimento da transferência entre o analisante e o analista. É a
transferência que dá suporte para que o sujeito se depare com a angústia de que não
sabe tanto de si a ponto de buscar em um outro as respostas para suas questões.
Entretanto, a despeito de inicialmente o analisante demandar essas respostas ao analista,
supondo nele um saber, estas não serão respondidas por ele. Contudo, à medida que
permitem localizar a demarcação de um lugar, o próprio analisante poderá situá-lo como
um saber inconsciente.
Caso se considere que, de certa forma, a escuta da fala do analisante pode
produzir efeitos sobre o que até então era insabido, talvez se possa tomar os escritos
freudianos como textos cujos enigmas podem ser interrogados por uma leitura que
destaque algumas obscuridades porventura demarcáveis a partir do que a clínica
convoca o leitor, e que esta pesquisadora possa chegar a decifrar o que a interroga.
A partir dessa hipótese, propõe-se articular os elementos ainda dispersos na obra
freudiana, relativos à maternidade. Pode-se tomar o texto freudiano como lugar de um
saber ainda em espera, que exige novas releituras para dele depurar o que resta insabido.
Partindo desse princípio da potência de um discurso atravessado por nuances obscuras
não totalmente desdobradas, que convida a focalizar a função da maternidade para a
mulher, investigarei o que ela perde quando seu filho não nasceu. As ligações do que
essa perda pode revelar talvez sejam modos de suplantar a perda primordial do objeto,
e, por isso, pretendo lançar alguma luz sobre a relação entre a fisiologia e o psiquismo
51

da mulher, sobre a conjugação do narcisismo ao amor objetal e sobre a distinção e a


articulação entre os objetos narcísicos e pulsionais.
Em consonância com os pressupostos da pesquisa em psicanálise, optei por
situar esta investigação a partir dos seguintes elementos: um objeto (a perda implicada
em um filho que não nasceu) como aquilo a ser construído neste trabalho; um método,
que se configura a posteriori, na medida em que este vai contra a ideia de que o sucesso
de um problema proposto possa ser totalmente predeterminado; e uma experiência, que
escapa à lógica do que seria reproduzido em laboratório, mas é insistente
implicitamente.

4.2 A constituição do feminino e a maternidade

É importante lembrar que a mulher e a mãe de agora foi bebê e filha


anteriormente, ou seja, foi cuidada por uma mãe. Sendo assim, a relação dessa mulher
com o passado e com a maternidade impacta seus laços com os bebês que ela poderá vir
a ter um dia. Segundo Freud (1931/2010; 1933/2010), o percurso do desenvolvimento
sexual feminino e as escolhas objetais influenciarão a relação das mulheres com a
maternidade. Considerando que esta dissertação se origina a partir da realidade material
de uma prática clínica no hospital-maternidade e que esta experiência coloca em jogo a
dimensão da realidade psíquica da mulher na posição convocada pela maternidade, a
diferenciação freudiana entre realidade material e realidade psíquica se faz aqui
obrigatória. É desse lugar que partirei no estudo da feminilidade na maternidade.
Conforme apontam Leandro, Couto e Lanna (2013), a existência de diferentes
tipos de realidade é reconhecida por Freud desde 1895, quando ele denomina uma
“realidade do pensamento” e uma “realidade externa”. Ao discorrer sobre os sonhos,
Freud (1900/2019) também aponta que “o inconsciente é a verdadeira realidade
psíquica, tão desconhecido para nós, em sua natureza íntima, quanto a realidade do
mundo externo” (p. 607, grifos do autor). Nesse mesmo texto, sublinhando, então, a
existência da realidade psíquica, ele conclui: “vendo os desejos inconscientes reduzidos
à sua expressão última e mais verdadeira, pode-se dizer que a realidade psíquica é uma
forma de existência especial, que não deve ser confundida com a realidade material” (p.
614, grifos do autor).
52

Desde o início da constituição feminina, constata-se, no discurso social, a


aderência entre o feminino e a maternidade. Mesmo que Jerusalinsky (2011) focalize as
transformações da interação das mulheres, que vêm produzindo mudança em seus
modos de acesso à realização fálica, deixando, portanto, a maternidade como uma
escolha entre tantas outras, no decorrer da sua vida, a mulher depara-se com impasses
que colam os papéis de mãe e de mulher dos quais nem sempre ela consegue se
desvencilhar. Efetivamente, como demonstra Fonseca (2018), o “tornar-se mulher”
pode ser concebido “como um movimento contínuo e singular para cada menina. A
maternidade pode se inscrever como uma das respostas possíveis para esse incessante
questionamento do ser mulher” (p. 82).
A autora recupera, das assertivas psicanalíticas, que o filho pode ser localizado,
por muitas mulheres, como o que preencheria suas necessidades, e tudo na vida do
sujeito tende a girar em torno disso. Na medida em que representaria a essência da
inerente falta feminina, o filho representaria esse lugar de suplência, na posição de falo.
Guimarães (2014), fundamentada em Lacan (1966/1998), retoma a noção de falo
atribuindo-lhe a condição de função: “a função do falo se encontra no coração da nossa
experiência, porque ela remete ao vazio incluído no coração da demanda, isso que faz
sua repetição eterna, isso que constitui a pulsão” (p. 143).
Para melhor compreender as relações entre as questões femininas relativas ao
que lhe falta, articulando-as à possível representação da perda do bebê para uma mulher,
é importante trilhar os processos relativos à constituição feminina, de modo a
ultrapassar a vivência clínica concreta do hospital-maternidade, por meio do acesso à
realidade psíquica da mulher que, ali, coloca-se em jogo. Talvez, nessa direção, poderei
equacionar uma das possíveis respostas para o caso específico aqui apresentado, a saber:
que a notícia do falecimento do bebê desencadeie o planejamento imediato de uma
próxima gestação.
Investigarei, então, como a teoria freudiana contempla a realidade psíquica da
mulher.

4.2.1 A escolha da mulher pela maternidade

Freud (1905/2016) situa a escolha subjetiva do objeto sexual a partir das


relações que a criança estabeleceu com os pais, o que explicaria o fato de a primeira
53

escolha sexual dos jovens recair sobre uma pessoa mais madura, com características de
autoridade, que reavivaria no sujeito sua relação com os pais. Assim, ao tematizar os
efeitos ulteriores da escolha de objeto infantil, ele afirma que ninguém escapa
inteiramente da influência de uma fixação incestuosa da libido, por meio de
enamoramento por figuras capazes de reanimar retratos de sua mãe ou de seu pai, do
modo que predominou em sua mente desde a primeira infância. Enfim, as relações entre
uma criança e seus pais têm importância determinante na escolha de um objeto sexual,
e, por isso, Freud (1905/2016) entende que os distúrbios dessas relações produzem
graves efeitos em sua vida sexual adulta. Ciúme, brigas e infelicidade no casamento dos
pais também preparariam as bases para a mais grave predisposição a distúrbios de
desenvolvimento sexual ou a doenças neuróticas.
A despeito de Freud (1914/2010a) não tocar especificamente na maternidade ao
discorrer sobre o narcisismo, vale a pena abordá-lo na medida em que ele situa, de
modo geral, o efeito psíquico dos filhos sobre os pais, indicando a prevalência de uma
ordem narcísica orientadora dos cuidados da prole. Assim, ele reconhece as atitudes
ternas dos pais com seus filhos como uma revivescência de seu próprio narcisismo há
muito tempo abandonado. Dessa forma, os pais exaltam características (que para outros
observadores são banais) como perfeições e ocultam os defeitos. Os genitores buscam
também proporcionar aos filhos tudo o que não foi possível a eles enquanto eram
crianças. Dessa perspectiva, os pais, enxergando-se em seus filhos, dão-se uma nova
chance para neles se prolongarem. Segundo Freud (1914/2010a),

His Majesty the Baby, como um dia pensamos de nós mesmos. Ele deve
concretizar os sonhos não realizados de seus pais, tornar-se um grande homem
ou herói no lugar do pai, desposar um príncipe como tardia compensação para a
mãe. No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão
duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na
criança. O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa
senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor
objetal, revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora. (p. 37)

Efetivamente, essa afirmação contempla o que se pode supor do efeito da


própria perda narcísica implicada na morte de um filho: representando para os pais uma
continuidade, tal perda representa também o fracasso de um investimento narcísico já
transformado em amor objetal, ou seja, que tem o filho como objeto. Como se daria essa
passagem que transforma narcisismo em amor de objeto? O que permite essa
54

substituição? A aderência do amor próprio a um objeto de amor revelaria algo de não


representável da fisiologia do corpo gestante que processou essa mistura genética a
ponto de conceber sua perda como uma mutilação concreta?
É o próprio Freud (1930/2010) que, em O mal-estar na civilização, responde, ao
abordar as implicações da libido narcísica, cujo reduto original se constitui no Eu e nele
investe, permanecendo como seu quartel general em certa medida: “essa libido narcísica
volta-se para os objetos, torna-se então libido objetal e pode transformar-se novamente
em libido narcísica” (p. 85). Constata-se, assim, as transmutações de investimento em
que o Eu e o objeto podem se mesclar, e até mesmo se confundir, no narcisismo que
será atualizado no amor. O desamparo infantil desperta, para Freud (1930/2010), a
nostalgia da proteção paterna.
Assim, o psicanalista aborda a permanência desse sentimento no decorrer de
toda a vida, asseverando que ele “é duradouramente conservado pelo medo ante o
superior poder do destino” (p. 25). O tema do desamparo é ainda desdobrado nesse
mesmo texto que afirma encontrar-se, no adulto, a maior manifestação da desproteção:
“nunca estamos mais desprotegidos ante o sofrimento do que quando amamos, nunca
mais desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou seu
amor” (p. 39). Para Freud (1930/2010), enquanto a fome representa instintos que visam
a manter o ser individual, “o amor procura pelos objetos; sua função principal,
favorecida de toda maneira pela natureza, é a conservação da espécie” (p. 84).
Dessa forma, pode-se supor que, no caso da mulher que ressente a falta de seu
bebê antes que este tivesse nascido, a mãe antecipa aí a perda do amor que este objeto
lhe dispensaria, bem como a do próprio objeto de seu amor. Por esses investimentos ao
mesmo tempo narcísicos e objetais, é admissível conceber que essas apostas perdidas
impliquem aí a perda de uma parte de si. Interroga-se ainda se a significação dada ao
filho como continuidade narcísica seria um modo de atenuar o desamparo frente à
finitude.
Um feto que não sobrevive a partir da 22ª semana de gestação, ainda no ventre
materno, implica imperativamente na separação do corpo da mulher por meio de um
parto. Nessas condições, independentemente da via pela qual o parto for realizado, o
corpo da mulher-mãe precisará se recuperar do procedimento. Assim, ela terá que lidar
tanto com a dor física gerada pelo procedimento médico quanto com a dor psíquica
55

gerada pela perda de seu bebê. Ao diferenciar angústia, dor e luto, Freud (1926/2014) se
refere à condição de passagem de uma dor física para uma dor psíquica, explicitando
essa transposição como correspondente a uma mudança de investimento: o caráter
narcísico da dor física deve ser deslocado, transferindo a sensação de dor para seu
caráter objetal, de âmbito psíquico. Entretanto, um objeto altamente investido pode
desempenhar o papel do local do corpo investido pelo aumento do estímulo: “a natureza
contínua do processo de investimento e a impossibilidade de inibi-lo produzem o
mesmo estado de desamparo psíquico” (p. 123).
Pode-se considerar, a partir do escopo desta dissertação, que a perda do filho
natimorto abrange um condensado talvez pouco delimitável desse tipo de dor, “que não
pode mais ser precisamente definido” (Freud, 1926/2014, p. 123), ou seja, a dor do
parto do filho morto implica diretamente a dor do corpo materno sendo, ao mesmo
tempo, a dor psíquica da perda do objeto no qual a mãe investe toda sua libido. Para
Freud, “cabe ao luto a tarefa de executar esse desprender-se do objeto em todas as
situações em que o objeto era alvo de grande investimento” (p. 123). O luto, conforme
assevera o psicanalista, surge por influência do exame da realidade que exige que o
indivíduo se separe do objeto. Seu caráter doloroso se deve, portanto, à necessidade de
dissolver o investimento elevado e irrealizável que preside a ligação com um objeto que
não existe mais.
Se a perda de seu bebê implica uma identificação a ele e, portanto, ocasiona a
morte de uma parte de si mesma, pode-se constatar que, nesse caso, seria preciso um
trabalho de luto em duas instâncias: a da perda objetal de seu bebê e também a da perda
narcísica de sua parte de maternidade.
Interessa, neste contexto, também desdobrar a afirmação freudiana de que a
principal função do amor ao objeto filho é a conservação da espécie (Freud, 1930/2010).
Afinal, o psicanalista supõe que algo da espécie favoreceria esse amor. Se as
explicações freudianas sobre o psiquismo preservam certo aporte a uma referência
orgânica, genética, hormonal e funcional, que lhe permite até mesmo articular a
ontogênese à filogênese (Ferretti, 2014), pode-se, por um lado, atribuir esse fator à
localização, feita por Freud, de algo que escapa à teoria como um núcleo real de
impossível transposição simbólica, que só admite especulações míticas.
56

Entretanto, por outro lado, pode-se também refletir sobre a incidência, nos pais,
dos efeitos imaginários causados pela materialidade implicada na transmissão
propriamente genética. Uma concepção por meio de relação sexual ou mesmo através
de inseminação artificial, quando os pais são os doadores dos produtos genéticos, gera
bebês que carregam suas características e, em geral, são supostas por eles como capazes
de conduzir algo além de suas marcas biológicas (como semelhanças físicas objetivas).
Os pais, geralmente, incluem, nessa carga biológica, seus próprios modos de
comportamento social, apesar de estes serem fatores supostos, mas indeterminados
cientificamente. A carga genética, portanto, ultrapassaria a herança transmitida pela
experiência familiar e cultural como um saber. Assim, ao se reconhecerem por
semelhança de imagem, nos filhos, a transmissão geracional da cultura é suposta, pelos
pais, apoiada pela transmissão genética.
Vale ainda considerar a especificidade do investimento da mulher em um filho, a
partir do prisma do óbito de um feto. Na realidade psíquica materna, trata-se da perda de
seu bebê, no qual ela reconhece uma produção narcísica própria. Não será raro que ela
se identifique com este objeto perdido, morto, e por isso precisará também deixar
morrer uma parte de si mesma. A dificuldade de delinear o objeto perdido no processo
de luto do bebê natimorto sofre, todavia, o acréscimo de um outro marcador: a situação
em que o bebê, morto, ainda habita o corpo materno. Nesse caso, ela é a sepultura
provisória que carrega consigo a própria maternidade e seu produto, que, até então,
estava acolhido no ventre. Ressalta-se ainda que seu sofrimento nem sempre é
reconhecido no contexto social, na medida em que, objetivamente, a maternidade está
associada à presença de um filho. No caso da mãe do bebê natimorto, esse filho só se
presentifica como ausente, já morto, e só estará com ela enquanto ela mesma for sua
sepultura provisória.
Pode-se supor que há, portanto, uma ruptura brusca de estado feminino, a
mulher e gestante passa da plenitude, momento no qual carrega seu bebê no ventre e
aposta seus investimentos narcísicos, tendo anexo a seu corpo o falo (colocado em
função pelo feto), ao momento no qual recebe a notícia da morte de seu bebê e passa a
ser essa sepultura viva da promessa da maternidade.
Afirmando servir-se de sua escrita para isolar com mais cuidado o que já havia
dito, em seu texto Sobre a sexualidade feminina, Freud (1931/2010) ressalta alguns
57

aspectos da mulher, recolhidos do que ouviu delas em análise. Devido à racionalização


incompreendida dos seus sentimentos, a mulher é capaz de se queixar de ter recebido
muito pouco da mãe durante a infância; de ter sido amamentada por pouco tempo; de ter
sido seduzida pela mãe e que, depois, esta teria lhe impedido a masturbação; de a mãe
não ter lhe dado o genital correto, além de tê-la obrigado a dividir seu amor com outros,
irmãos e pai.
Entretanto, Freud (1931/2010) adverte que todas essas queixas parecem
insuficientes para justificar a hostilidade atual que a mulher preserva em relação a sua
mãe. Vale notar que, para abordar o feminino, Freud tenha se voltado para sua oposição
ao homem, dizendo que “a contínua comparação com situações no caso do homem
certamente será interessante para a nossa apresentação” (p. 288).
Considerando primeiramente sua assertiva da bissexualidade constitutiva
humana, ele afirma que esta “aparece muito mais nitidamente na mulher do que no
homem” (p. 289). Enquanto a sexualidade masculina é orientada por uma única zona
sexual, a mulher possui a vagina e o clitóris, que é definido como análogo ao pênis e
que se prolonga como clitóris viril na vida sexual de modo não ainda compreendido:
“não sabemos como se justificam biologicamente essas peculiaridades da mulher; e
ainda menos podemos atribuir-lhes um propósito teleológico” (p. 289).
Vale recuperar que a oposição entre masculino e feminino abordada nesse texto
sobre a feminilidade é ressaltada nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no
qual Freud (1905/2016) diferencia três sentidos dessa oposição:

É indispensável compreendermos claramente que os conceitos “masculino” e


“feminino”, cujo teor parece tão inequívoco para a opinião geral, estão entre os
mais confusos da ciência, podendo ser decompostos em pelo menos três
orientações diversas. Emprega-se “masculino” e “feminino” ora no sentido de
atividade e passividade, ora no sentido biológico, e também no sociológico. O
primeiro desses significados é o essencial, e o mais proveitoso na psicanálise.
Em conformidade com ele foi que designamos a libido […] como masculina,
pois o instinto é sempre ativo, mesmo quando coloca para si uma meta passiva.
O segundo significado, o biológico, é aquele que permite a definição mais clara.
Nele, masculino e feminino são caracterizados pela presença de espermatozoides
ou óvulos, respectivamente, e pelas funções que deles decorrem. […] O terceiro
significado, o sociológico, nasce a partir da observação dos indivíduos
masculinos e femininos em sua existência efetiva. Tal observação mostra que,
no caso do ser humano, nem no sentido psicológico nem no biológico se acha
uma pura masculinidade ou feminilidade. (p. 139, nota de rodapé acrescentada
em 1915)
58

A oposição masculino e feminino é abordada em Algumas consequências


psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (Freud, 1925/2011a): “todos os
indivíduos, graças à disposição bissexual e à herança genética cruzada, reúnem em si
caracteres masculinos e femininos, de modo que a masculinidade e a feminilidade puras
permanecem construções teóricas de conteúdo incerto” (p. 298). Para Freud, portanto, a
diferenciação pura entre os sexos só está estabelecida nas células germinativas. Como
destaca Gaufey (2015), “essa força genética do humano reforça a opinião comum sobre
a ideia de uma diferença irredutível, porque se sabe que ela está inscrita na intimidade
microscópica de cada uma de nossas células” (p. 39).
Ao abordar as possibilidades do desenvolvimento sexual feminino, Freud
(1931/2010) explicita os efeitos da castração na mulher, afirmando que ela os reconhece
e “com isso também a superioridade do homem e sua própria inferioridade, mas
também se revolta contra essa situação desagradável” (p. 291). A partir da castração,
três possibilidades se abrem para a mulher. A primeira é que, percebendo a inferioridade
do clitóris em relação ao pênis do menino, ela reprime a vida sexual e mesmo as
atitudes masculinas frente a outros campos. Uma segunda possibilidade é a rejeição de
tal inferioridade: esperando tardiamente ainda ser contemplada com um pênis, tem uma
atitude masculina, dando origem ao “complexo de masculinidade”, o que, em alguns
casos, resulta na homossexualidade. A terceira possibilidade desemboca na normal
configuração feminina (Freud, 1931/2010). Parece, aos olhos do psicanalista, que a
feminilidade definitiva só poderia ser tomada a partir da escolha objetal direcionada ao
sexo oposto, o que providencia o ingresso da menina no complexo de Édipo.
Retornando à castração, Prates (2001), em seus estudos sobre a organização
genital infantil, fundamentado em Freud, afirma: “só se pode falar em complexo de
castração quando a representação de uma perda une-se ao falo” (p. 36). Entendendo o
bebê como substituto do falo, posso supor que quando a mãe perde um bebê é a
castração que ela revisita.
Quando a mulher, dizendo aqui uma por uma, deseja um filho, ela se recorda.
Recorda em ato, na atualidade, de uma moção psíquica, de um voto interior. Esse voto
então é restabelecido, mesmo sem ter ciência de que o faz. O produto desse
desconhecimento é o bebê. Toda criança real é filha do desejo. A mulher madura que
deseja um filho está confrontada com a revivescência de um voto edipiano. Ela busca,
59

no real do filho cobiçado, a figura desse objeto primitivo, uma busca por reencontros
palpáveis (Assoun, 1991).
Reconhecendo a ambiguidade sistemática entre amor e ódio, Freud (1931/2010)
também afirma que, em um primeiro casamento de mulheres jovens apaixonadas, a
atitude amorosa fracassaria tanto quanto com a mãe “em virtude dos inevitáveis
desenganos e do acúmulo de ocasiões para a agressão” (p. 297). Um segundo casamento
poderia superar esses limites. Reafirmando que a psicanálise o ensinou “a conceber uma
única libido para mulheres e homens, ressaltando que só as metas, ou modos de
satisfação são ativos ou passivos” (p. 303), o psicanalista aponta que a atividade fálica é
ressaltada na mulher, além da insistente e complexa relação com a própria mãe.
Pode-se concluir, desse texto, que, a despeito dos processos em jogo na
subjetivação feminina, ele quase se limita a abordar os avatares que antecedem o
tornar-se mulher. Veremos, na Conferência A feminilidade (1933/2010), a explicitação
da dificuldade freudiana em abordar a mulher. Desde os Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, fazendo uma diferenciação entre a sexualidade feminina e a masculina,
Freud (1905/2016) aponta aspectos desse problema:

a importância do fator da superestimação sexual pode ser mais bem estudada no


homem, pois apenas a sua vida amorosa se tornou acessível à pesquisa; a da
mulher ainda está envolvida numa obscuridade impenetrável, em parte devido ao
estiolamento causado pela civilização, em parte devido à convencional reserva e
insinceridade das mulheres. (p. 43)

Ainda no mesmo texto, o autor acrescenta algo sobre a maternidade que nos
interessa, em uma nota feita em 1920: há na mulher uma ausência de superestimação
sexual dirigida ao homem, “mas quase nunca ela deixa de mostrá-la em relação ao filho
que gerou” (p. 43). Essa constatação de Freud sobre o fato de a mulher mostrar a
superestimação do filho gerado me remete novamente à pergunta desta pesquisa: o que
ocorre com a mulher quando seu filho morre, ou seja, de que perda se trata quando a
geração de um filho não implica em seu nascimento?
Vescovi (2021), citando a mesma passagem dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, pontua que, mesmo diante da obscuridade da vida sexual das mulheres,
Freud não deixa de perceber a dimensão da relação da mulher com seu filho, bem como
o lugar de objeto supervalorizado que o bebê poderia vir a ocupar para sua mãe. Como
60

percebemos na clínica, essa supervalorização também é direcionada ao bebê depois de


morto, mesmo que essa morte aconteça antes do seu nascimento.
Na conferência sobre A feminilidade, Freud (1933/2010) salienta que é um
equívoco a conclusão de que as características passivas sejam provenientes do sexo
feminino enquanto as ativas do masculino. Segundo o autor, pode-se fazer essa
referência apenas no que diz respeito ao encontro sexual, no qual o óvulo feminino está
estático e os espermatozoides masculinos vão em sua direção. Ele afirma que nem
mesmo os cuidados com a cria devem ser tomados como função feminina, fazendo uma
analogia a algumas espécies de animais macho e fêmea que dividem a criação dos filhos
e a outras em que o macho se responsabiliza por ela.
Entretanto, Freud (1905/2016) também considerou que a mulher, na posição de
mãe, dedica sentimentos à sua cria que se originam de sua própria vida sexual, nas
palavras do psicanalista:

acaricia, beija e embala a criança, claramente a toma como substituto de um


objeto sexual completo. […] evita cuidadosamente proporcionar mais excitações
aos genitais do filho do que o que parece inevitável na higiene corporal. Mas o
instinto sexual não é despertado apenas pela excitação da zona genital, como
sabemos; […] Ela está apenas cumprindo sua tarefa quando ensina a criança a
amar […]. (p. 144-145)

Não é, portanto, desavisado que Freud (1933/2010) retoma o período no qual


ainda acreditava na teoria da sedução, quando suas pacientes mulheres relatavam terem
sido seduzidas por seus pais. Ele constatou que esses relatos eram falsos, derivados de
fantasias de sedução pelo pai, a expressão do típico complexo de Édipo. Em
contraponto à fantasia de sedução pelo pai, na fase pré-edípica da menina, a sedutora é a
mãe. No entanto, segundo o autor: “a fantasia toca no terreno da realidade, pois foi
realmente a mãe que, nos procedimentos de cuidados corporais, estimulou, e talvez
tenha despertado pela primeira vez as sensações de prazer nos genitais” (p. 324).
Fazendo uma analogia entre os comportamentos femininos e os masculinos
relacionados à inveja, Freud (1933/2010) explica que o excesso da inveja feminina teria
origem na inveja do pênis: “não é que essas características estejam ausentes nos
homens, ou que nas mulheres elas não tenham outras raízes além da inveja do pênis,
mas estamos inclinados a atribuir a essa última influência o excedente que há nas
mulheres” (p. 330).
61

Assoun (1993) conclui que a maternidade, para a mulher, não é a realização de


um processo natural, significa “confrontar-se de um só golpe” com o lote dos conflitos
femininos. Para o autor, o desejo de um filho é o indicativo que o nó fora desatado.
“Sua emergência coincide com a dissolução do esplendor do objeto imaginário
primitivo” (p. XVIII).
Quando, mais tarde, a mulher engravida, esse desejo pode ser realizado.
Contudo, Freud (1933/2010) salienta que isso ocorre particularmente se o bebê esperado
for um menino, que traz consigo o pênis almejado: “assim, o antigo desejo masculino de
possuir um pênis ainda opera através da feminilidade consumada. Mas talvez devamos
antes reconhecer esse desejo de pênis como um desejo feminino por excelência” (p.
334). Dessa forma, “só a relação com um filho (bebê do sexo masculino) traz à mãe
uma satisfação ilimitada; de todas as relações humanas, ela é absolutamente a mais
perfeita e mais isenta de ambivalência” (p. 340).
O autor ainda salienta um outro ponto, dirigido à explicação dos desdobramentos
da inveja do pênis na mulher. Para Freud (1933/2010), a feminilidade tem um grau
maior de narcisismo e este também influencia sua escolha objetal, de maneira que, para
a mulher, ser amada é uma necessidade mais forte que amar. A inveja do pênis também
influencia a vaidade física da mulher, ela valoriza ainda mais os encantos dessa vaidade
como compensação da inferioridade sexual originária: “atribuímos o propósito
originário de ocultar o defeito do genital à vergonha, considerada uma característica
feminina por excelência, mas que é muito mais convencional do que se poderia pensar”
(p. 338). Pontuo a relevância dada por Freud à técnica inventada pela mulher de trançar
e tecer, enquanto contribuição da mulher à humanidade, a partir dos pelos que recobrem
as áreas genitais. “O passo que faltava dar era fazer os fios, que estavam espetados na
pele e só se emaranhavam, unirem-se uns aos outros” (p. 338).
Assoun (1993) versa sobre a questão do desejo do filho que, para o autor,
impõe-se a todas as mulheres como prova de um laço que deve ser desatado e um
acesso que perpassa o amor pelo homem, a um mais-além realizado do anseio fálico (o
que é renegado pelo artifício representado pelo desejo maquinal de ter um filho). Nas
palavras do autor, desejo maquinal “que se pretende essencialmente sem sujeito” (p.
VIII). Entendo o que o autor chama de “desejo maquinal de ter um filho” como um
desejo que independe do sujeito que esse filho possa vir a ser, o desejo cru, sem objeto,
62

desejo no qual o produto da realização (gestação) ainda não está aí implicado. Penso
que seria admissível entender que esse objeto faz aí as vezes da função do objeto
narcísico.
Na teoria freudiana de que é mais importante para a mulher ser amada do que
amar, deparamo-nos com o lugar da mulher no contexto social e toda a trama tecida
para que ela seja posta nesse lugar de objeto, no qual ela é colocada e a ele adere. Freud
(1927/2014), em seu texto sobre o fetichismo, faz uma análise do momento no qual o
menino percebe que a mãe é fálica e não se atém a esse fato até se deparar com a
ameaça de castração. Para suportar a hipótese da mulher como castrada, o fetiche
aparece como substituto ao pênis da mãe. Nas palavras do psicanalista: “o fetiche é o
substituto para o falo da mulher (da mãe), no qual o menino acreditou e ao qual —
sabemos por quê — não deseja renunciar” (p. 304). Ainda evidenciando tal objetivação,
Freud faz uma analogia entre o fetichismo e a mutilação que a cultura chinesa impõe ao
pé feminino, que deve conservar um pequeno tamanho. “É como se o homem chinês
quisesse agradecer à mulher por se haver submetido à castração” (p. 310).
Para o psicanalista, a mulher pode resgatar sua relação primária com a mãe, bem
como reproduzir a infelicidade do casamento parental:

Sob o impacto da própria maternidade, pode ser revivida uma identificação com
a própria mãe, contra qual a mulher havia se rebelado até o casamento, e atrair
para si toda libido disponível, de maneira que a compulsão à repetição reproduz
um casamento infeliz dos pais. (Freud, 1933/2010, p. 339)

Interessa, entretanto, interrogar o que ocorre quando essa identificação com a


mãe não chega a se realizar, pois seu bebê não nasceu (voltando à pergunta principal
desta pesquisa). Seria possível atribuir outros desdobramentos da compulsão à
repetição, posta em jogo na função do luto diante da perda de um filho? Ela poderia
incidir sobre outras relações da mulher?
Enfim, ressalta-se que Freud (1933/2010) parece estar, ao final dessa
conferência, constrangido, e atribui à feminilidade um caráter fragmentário e
incompleto. Assim ele a finaliza: “se quiserem saber mais sobre a feminilidade, então
perguntem às suas próprias experiências de vida, ou voltem-se aos poetas, ou esperem
até que a ciência possa lhes dar informações mais profundas e mais bem articuladas” (p.
341).
63

Parece-me importante notar, nesse texto, que Freud, aos 70 anos de idade,
durante uma sessão com a analisante Marie Bonaparte, informou-a: “a grande questão
sem resposta, à qual eu mesmo nunca pude responder apesar dos meus 30 anos de
estudos da alma feminina, é a seguinte: O que quer a mulher?” (Bertin, 1989, p. 250).
Como lembra Assoun (1993), não se pode tomar tal interrogação apenas como
reconhecimento de um fracasso, posto que ela evidencia muito mais a constatação de
haver, na mulher, algo que ultrapassa a sistematização teórica em sua busca de
universalização. Afinal, nessa interrogação está posta a afirmação do artigo definido “a”
para situar “mulher”, o que franqueia a leitura de não ser possível aplicar o pronome
indefinido plural “todas” ao gênero “mulher”, pois, em psicanálise, só se trata delas uma
a uma, como asseverou Lacan (1972-1973/1982), na medida em que há, nelas, algo
impossível de ser generalizado. Não se entende, portanto, haver resposta linear a esse
questionamento do psicanalista. Por isto, buscarei, no decorrer deste trabalho, apenas
melhor circunscrever o desejo que poderia estar implicado no querer de “algumas”
mulheres assoladas pela perda de um filho que nasceu morto.

4.2.2 Puberdade e adolescência femininas

Longe de se restringir a uma manifestação fenomenológica da sexualidade, a


transposição da masturbação para a realização do ato sexual, operada na passagem da
criança ao adulto, implica o deslocamento da libido dos seus objetos primários para os
objetos secundários, e um tempo de latência é exigido para compreender a castração.
Apesar de atribuir muita importância à latência e à puberdade, Freud (1905/2016)
afirma que o essencial está cumprido com o Édipo, por volta dos cinco anos:

A inclinação infantil para seus pais é sem dúvida a mais importante, porém não a
única, das sendas que, renovadas na puberdade, marcam o caminho para a
escolha de um objeto. Outros pontos de partida com a mesma origem
possibilitam ao homem, apontando-lhe sempre da sua infância, desenvolver mais
de uma série sexual e plasmar condições totalmente variadas para a eleição de
objeto. (p. 152)

Assim, Freud (1905/2016), em seu texto os Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade, conceitua as manifestações sexuais a partir da puberdade após a latência.

O traço do afeto de uma criança por seus pais é revivido na puberdade, indicando o
caminho para sua escolha de um objeto, mas a mesma origem primitiva possibilita
64

desenvolver mais de uma linha sexual, estabelecendo condições muito variadas para sua
escolha de objeto. Assim, os primeiros impulsos após a puberdade são desorientados,
mas não provocam danos permanentes. É com hesitação que a escolha de objeto
encontra seu caminho até o sexo oposto, e a inversão responde a um número não
pequeno de pessoas. Relações competitivas com os pais, educação por pessoas do sexo
masculino, nos homens, e a hostilidade com o próprio sexo, devido à tutela materna
exacerbada, influenciam decisivamente a escolha de objeto homossexual. De acordo
com o psicanalista, a perda prematura de um dos pais e a absorção total do amor da
criança pelo genitor remanescente determinam o sexo da pessoa que será mais tarde
escolhida como objeto sexual e pode abrir caminho para a inversão permanente.
O autor consegue atribuir uma evolução na manifestação sexual masculina que
durante a infância tinha como satisfação o próprio corpo, mas, enquanto púbere, busca
um objeto externo. Ainda no mesmo raciocínio, explicita que “o maior montante de
prazer está ligado ao ato final do processo sexual. O instinto sexual se põe agora a
serviço da função reprodutiva” (Freud, 1905/2016, p. 122).
Partindo da evolução masculina da sexualidade, o psicanalista informa que a
percepção da sexualidade feminina é de que há uma espécie de involução, causada por
uma nova onda de repressão, negando sua sexualidade. Nas palavras do autor: “o
homem é mais coerente, e também mais acessível à nossa compreensão, enquanto na
mulher há inclusive uma espécie de involução” (p. 121).
Assoun (1993) marca o ponto no qual Freud faz referência ao narcisismo da
mulher na puberdade quanto ao desenvolvimento de seu corpo, como se a púbere se
fixasse em seu corpo, de quem ama só a si própria ou prefere fazer-se amar. Ele
esclarece que o surgimento desse corpo de mulher é exaltado, pois pode convocar o
olhar do outro (paterno e, depois, masculino). “O amor pelo outro pode depender da
imagem amorosa por ela despertada — como que a partir do seu nascimento — nesse
outro” (p. XI).
Na continuidade dessa evolução sexual, ele salienta o crescimento dos órgãos
sexuais masculinos e uma mudança da zona erógena feminina do clitóris para a vagina,
enquanto o homem mantém a mesma zona desde a infância. Essas condições se ligam
intimamente à natureza da feminilidade. O autor menciona então a possibilidade de o
corpo feminino gerar um produto (o bebê) e de acolher esse produto para a formação de
65

um novo ser, “constituindo assim um aparelho altamente complicado” (Freud,


1905/2016, p. 123). Parece que, para o autor, a mulher não estaria pronta para a relação
sexual como estaria para a maternidade.
Para Freud (1926/2014), a organização genital que fora interrompida na infância
após o complexo de Édipo, seguido pelo período de latência, reinicia-se com grande
vigor na puberdade. É importante lembrar que esse retorno retoma o caminho que havia
seguido na infância.
Na conferência sobre a feminilidade, Freud (1933/2010) pontua a importância de
abordar o desenvolvimento sexual feminino a partir de duas expectativas: a primeira é
que a constituição feminina não se dará sem a revolta (de uma suposta inferioridade em
relação ao menino) e a segunda é que ela se dará de forma definitiva antes da
puberdade.
No campo social, após sua inserção na maternidade, a mulher acaba, por vezes,
tendo que suprimir suas manifestações femininas e sua sexualidade devido ao
comportamento que a cultura espera das mães. Entretanto, existe mulher para além da
maternidade, inclusive na puberdade. É o que Marcos e Mendonça (2020) relatam,
acerca da relação entre a mãe e a mulher, em uma instituição de acolhimento a mães
adolescentes. A partir de um trabalho de escuta psicanalítica realizada nessa instituição,
as autoras ressaltam a dificuldade do funcionamento institucional de dar espaço para
que essas mães pudessem aparecer também como mulheres, como se fosse possível
separar a mulher da mãe que ali fora acolhida. Assim, todas as manifestações vindas das
adolescentes, que marcavam sua presença como mulher, com desejos não direcionados
a seus filhos, eram tidas como inconvenientes em relação às normas da instituição.

Somos não-toda mães. Exibe-se a impossibilidade de encerrar o feminino na


mãe. O gozo não é domável, ele escapa a normas e regras. A maternidade é
frequentemente apontada como saída clássica em direção à feminilidade […]. A
maternidade não é capaz de encerrar a questão do feminino. (Marcos &
Mendonça, 2020, p. 94)

Como a especificidade da adolescência franqueia a definição dentre as escolhas


femininas? As monografias freudianas nos iluminariam a respeito delas? Seguirei
pesquisando.
66

4.2.3 Latência

Freud (1905/2016) aborda o tempo de latência como fator constitucional:

Parece fora de dúvida que o recém-nascido traz consigo os germes de impulsos


sexuais que continuam a se desenvolver por algum tempo, mas depois
sucumbem a uma progressiva supressão […]. Durante esse período de latência
total ou parcial, são formados os poderes psíquicos que mais tarde se colocarão
como entraves no caminho do instinto sexual e, ao modo de represas, estreitarão
seu curso (a repugnância, o sentimento de vergonha, as exigências ideais na
estética e na moral). Com as crianças civilizadas temos a impressão de que é
obra da educação construir tais represas, e certamente a educação faz muito
nesse sentido. (p. 78-80)

Atribuindo à latência um condicionamento fixado hereditariamente no


organismo, que pode ocorrer sem o auxílio da educação, Freud (1905/2016) assevera:

Quando o carinho dos pais é bem sucedido ao evitar que o instinto sexual da
criança desperte prematuramente — antes que estejam presentes as condições
físicas da puberdade —, com tal força que a excitação psíquica abre caminho até
o sistema genital de forma inequívoca, então ele pode cumprir sua tarefa de
guiar a criança na escolha do objeto sexual, na época da maturidade. Certamente
que o mais fácil, para a criança, seria escolher como objeto sexual as pessoas
que ama desde a sua infância, com uma libido amortecida, por assim dizer. Com
o adiamento da maturação sexual, porém, ganhou-se tempo para erguer, ao lado
de outras inibições sexuais, a barreira contra o incesto, para acolher as
prescrições morais que excluem expressamente da escolha objetal, como
parentes sanguíneos, as pessoas amadas da infância. A observância dessa
barreira é, antes de tudo, uma exigência cultural da sociedade, que tem de
defender-se contra a absorção, pela família, dos interesses de que necessita para
produzir unidades sociais mais elevadas, e por isso atua, com todos os meios, no
sentido de afrouxar em cada indivíduo, especialmente no jovem, os laços com a
família, que eram os únicos decisivos na infância. (p. 147)

Enfim, Freud afirma literalmente o que permite localizar o caráter bifásico da


sexualidade. Nos acréscimos feitos aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade em
1915, encontram-se outras maneiras de apresentar a questão dos “dois tempos da
escolha de objeto”:

O seguinte processo pode reclamar o nome de típico: a escolha de objeto se


realiza em dois tempos, em duas ondas. A primeira se inicia entre 2 e 5 anos e o
período de latência a detém ou a faz retroceder: se caracteriza pela natureza
infantil de suas metas sexuais. A segunda sobrevém com a puberdade e
determina a conformação definitiva da vida sexual. […] a eleição de objeto da
67

época da puberdade tem que renunciar aos objetos infantis e começar de novo
como corrente sensual. (Freud, 1905/2016, p. 143)

Entre a sexualidade infantil e a sexualidade adulta, o período de latência implica


no esquecimento da sexualidade infantil, e o sujeito trabalha sua inclusão no campo
social. Assim, a aquisição de conhecimento operada pela sua educação, conduz a
criança a deslocar-se do autoerotismo para enlaçar-se em outra erótica. Nessa
perspectiva, a adolescência é um momento de passagem em que o sujeito procura saber
o que perdeu na infância, aparelhando-se para o encontro com o outro sexo. Portanto,
logo após a latência, a adolescência confrontará a desmontagem da promessa edípica,
construindo uma outra versão de sua realização (Vorcaro, & Capanema, 2010).

4.2.4 Organização sexual infantil

No que se refere ao desenvolvimento sexual feminino e masculino, a figura


materna é o primeiro objeto de amor estabelecido.
Situando distintas temporalidades (que podem ser coexistentes, progressivas,
regressivas ou paralelas), a partir do que o termo “fases” permite supor na
metapsicologia, Freud (1905/2016) explica sua teoria do desenvolvimento sexual
infantil. Para o psicanalista, a primeira satisfação do neonato advém do movimento
fisiológico de sucção, mais especificamente, daquela sucção que já não busca mais pelo
alimento, mas movimenta toda cavidade oral embalando o sono do bebê: “a sucção
deleitosa absorve completamente a atenção, e conduz ao adormecimento ou, inclusive, a
uma reação motora da natureza de um orgasmo” (p. 83).
Freud aponta ainda que os lábios da criança se comportam como uma zona
erógena anteriormente ligada à satisfação meramente orgânica da alimentação. Dessa
forma, a atividade sexual se apoia em funções de conservação da vida, para, depois,
trilhar seus próprios caminhos.
Portanto, na sucção, segundo Freud, encontram-se as três características
essenciais de uma manifestação sexual infantil: apoia-se em uma função vital do corpo,
não tem objeto sexual e é autoerótica, tendo sua meta dominada por uma zona erógena.
A meta sexual infantil é a satisfação a partir da estimulação da zona erógena escolhida.
A necessidade de repetição da satisfação se apresenta de duas formas: uma
sensação de tensão, que possui antes um caráter de desprazer, e um estímulo
68

condicionado que é projetado na zona periférica. “Seria questão de substituir a sensação


de estímulo projetada, na zona erógena, pelo estímulo externo que anula a sensação de
estímulo, ao gerar a sensação de satisfação” (Freud, 1905/2016, p. 90). Para ser anulado,
um estímulo precisa de outro, produzido no mesmo local.
Assim como na zona oral, a zona anal a torna adequada por favorecer também
outra função vital do corpo. Segundo Freud (1905/2016), essa zona mantém um grau
considerável de suscetibilidade sexual ao longo da vida. Sua estimulação, pela criança,
consiste em conter o bolo fecal, para que este se acumule, provocando contrações
musculares e, na passagem pelo ânus, provoque grande estímulo na mucosa, como
sensações de dor e de volúpia. “Um dos melhores indícios de futuro nervosismo ocorre
quando um bebê se recusa obstinadamente a evacuar o intestino ao ser posto sobre o
vaso, ou seja, no momento desejado por quem dele cuida, e reserva essa função para
quando ele próprio desejar” (p. 92). O que lhe importa, nesse caso, é um prazer
secundário ligado à defecação. O conteúdo intestinal ou o produto do intestino dos
bebês é claramente tratado por eles como parte do próprio corpo, constituindo, segundo
o psicanalista, o primeiro presente que contempla o querer do outro.
Deslocando, agora, para a parte contígua, portanto, a outra zona erógena do
corpo da criança, o órgão genital, que, para Freud (1905/2016), não desempenha um
papel principal, mas está destinado a desempenhar no futuro. As atividades dessas
zonas, nos meninos e meninas, são, para o autor, o começo da vida futura sexual
“normal”. O prazer que a estimulação nessa área do corpo produz é percebido pela
criança e desperta, nela, a necessidade de repeti-lo, o que constitui a atividade que
levará à masturbação infantil. Esse momento, no qual os genitais ainda não assumiram
seu papel posterior, é nomeado por Freud (1905/2016) de organização pré-genital.
Dessa forma, pode-se entender que a vida sexual infantil é essencialmente
autoerótica. Freud supõe que já na infância ocorre a escolha do objeto, como uma
aproximação da forma definitiva da vida sexual após a puberdade. O autor entende que
a escolha do objeto ocorre em dois tempos, os quais são separados pelo período de
latência.

Já na infância se realiza, com frequência ou com regularidade, uma escolha de


objeto que apresentamos como característica da fase de desenvolvimento da
puberdade: em que todos os empenhos sexuais se dirigem para uma só pessoa,
na qual buscam atingir suas metas. Esta é, então, a maior aproximação à forma
69

definitiva da vida sexual após a puberdade que é possível na época da infância.


A única diferença está em que na infância a reunião dos instintos parciais e sua
subordinação, sob o primado dos genitais, ou não são obtidas ou o são muito
imperfeitamente. (Freud, 1905/2016, p. 110)

Esse texto traz a importante diferenciação entre a infância e a escolha do objeto


para o sujeito já adulto, quando a obtenção do prazer ficará a serviço da função
reprodutiva e os instintos parciais estarão sob o primado de uma única zona erógena,
que busca alcançar um objeto externo.
Freud (1925/2011a) diferencia a percepção dos dois sexos quando o menino e a
menina se deparam pela primeira vez com o genital do outro. O menino, quando
visualiza a região genital da menina, pouco se interessa, nada vê. Somente depois,
quando a ameaça de castração teve influência sobre ele, é que o evento é resgatado.
Após essa revelação, o menino sai disso por meio do complexo de Édipo, temendo a
castração. Com a menina é diferente: “ela viu, sabe que não tem e quer ter” (p. 291). A
partir desse reconhecimento, a menina passa para uma nova posição. Em algum
momento posterior, ela abandona o desejo de possuir um pênis e passa ao desejo de ter
um filho, e então toma o pai como objeto amoroso. Esse ponto interessa à pesquisa por
trazer a maternidade como saída para o feminino.
O psicanalista explicita que as brincadeiras com bonecas, no princípio,
representam a relação da menina com sua mãe, na cena em que a menina representa a
mãe e a boneca a representa. A partir do afloramento do desejo do pênis, a boneca
desloca-se então ao papel de filha do pai e “a partir daí, torna-se a meta do desejo
feminino mais intenso” (Freud, 1933/2010, p. 333). Com base no que foi exposto, Freud
situa o destino da inveja do pênis nas determinações femininas. Para ele, “a situação
feminina só se estabelece se o desejo do pênis for substituído pelo desejo do filho,
portanto, se o filho entrar no lugar do pênis, de acordo com uma velha equivalência
simbólica” (p. 333).
Como afirma Guimarães (2014, p. 140), “a mola da entrada na posição feminina
é a decepção: o desejo do pênis, que a mãe lhe recusou, ela espera agora obter do pai.
Mas em algum momento ela vai ter de renunciar à esperança que lhe dá seu esboço de
órgão fálico.” Para a autora, é na relação fantasística que a castração intervém, como
uma amputação simbólica de algo imaginário.
70

A partir de sua constatação de que a mulher é castrada, o menino pensa que ele
também pode perder seu pênis. Para Freud (1927/2014), essa constatação desperta, no
menino, uma porção de narcisismo de que a natureza dotou esse órgão. Desperta,
portanto, um mecanismo designado pelo psicanalista como a palavra mais antiga da
terminologia da psicanálise, o “recalque”7. Segundo Freud, a percepção permaneceu,
mas uma ação enérgica foi realizada para sustentar a recusa. “Não é certo dizer que a
criança, depois de fazer sua observação da mulher, manteve intacta a crença de que ela
tem um falo. Conservou essa crença, mas também a abandonou” (p. 305). Para o
psicanalista, este conflito entre a percepção e o desejo só é possível pela via do
inconsciente. Na sua psique, a mulher continua tendo um pênis que não é o mesmo
pênis de antes: algo ocupa seu lugar, substituindo-lhe, tornando-se o herdeiro do
interesse que antes era dirigido a ele.
No entanto, uma particularidade, para a mulher, é que, com a constatação da
ausência do pênis (castração) e a consequente percepção da diferença do órgão sexual
de meninos e meninas, ela se sente desfavorecida por não ter um pênis. Dessa forma,
direciona seu olhar à figura paterna, trocando assim de objeto, no intuito de que o pai
possa lhe dar um pênis. Freud (1933/2010) afirma que “a situação feminina se
estabelece apenas quando o desejo pelo pênis, ou seja, quando a criança, conforme uma
velha equivalência simbólica, toma o lugar do pênis” (p. 333). Então, o desejo da
menina de ter um pênis é substituído pelo desejo de ter um bebê, desejo esse que
posteriormente poderá ser realizado através da maternidade.
Vescovi (2021) apresenta a hipótese de que o desejo de ter um filho do pai na
infância é realizado na vida adulta quando a mulher tem um filho. Para a autora, isso
pode ser explicado pela lógica freudiana que versa sobre o desejo da mulher, dessa
forma, o desejo da menininha seria o desejo do pênis que se transforma em desejo de ter
um filho do pai e esse, por sua vez, na vida adulta, passa a ser o desejo de ter um filho.
Desse modo, Freud parece ter encontrado a resposta para o enigma da feminilidade (“O
que quer uma mulher?”), a mulher quer ter um bebê (Vescovi, 2021). A partir dos
esclarecimentos da autora, é possível pensar que a mulher, desde a mais tenra infância,

7
Na edição utilizada para esse texto, a palavra usada é repressão, mas, por entender a palavra “recalque”
como melhor tradução para explicar o processo, optei por usá-la.
71

trabalha para transformar seu desejo em um desejo possível, aqui, pensando na


maternidade como realização.
Freud (1924/2011a), no texto dedicado à dissolução do complexo de Édipo no
menino, relata a constatação da menina da inferioridade de seu clitóris, quando
comparado ao pênis do menino, e explica:

A renúncia ao pênis não é tolerada sem uma tentativa de compensação. A garota


passa — ao longo de uma equação simbólica, poderíamos dizer — do pênis ao
bebê, seu complexo de Édipo culmina no desejo, longamente mantido, de
receber do pai um filho como presente, de lhe gerar um filho. (p. 212)

No texto de Freud (1908/2015), Sobre as teorias sexuais infantis, pode-se


perceber o percurso da investigação infantil sobre a origem dos bebês. O autor aborda o
questionamento infantil de como os bebês podem sair de uma atividade realizada pelos
pais e, a partir da interrogação, manifestam esse interesse nas brincadeiras infantis, nas
fantasias de serem eles mesmos pais de um bebê algum dia.
Para Freud (1908/2015), a curiosidade que leva a criança à investigação da
pergunta “de onde vêm os bebês?” não ocorre de maneira espontânea. A busca infantil
sobre a origem dos bebês surge na necessidade egoísta que os governa. A criança, após
ter um irmão ou perceber a chegada de um bebê em outra família, busca entender de
onde veio o novo ser. Para o autor, as fantasias utilizadas pelos adultos para explicar a
origem dos bebês às crianças nem sempre fazem sentido para elas, que vivem, nessa
oportunidade, seu primeiro conflito psíquico. A criança aceita a fantasia contada pelos
adultos para ser uma criança boazinha e suspende a reflexão de suas próprias
descobertas. “Mas esse conhecimento precoce é sempre mantido em segredo, e depois
reprimido e esquecido conforme o destino posterior da pesquisa sexual infantil” (p.
398).
Na obra A organização genital infantil, Freud (1923/2011) retoma alguns pontos
do texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade e define uma linha que parece
desconsiderar o genital feminino, reduzindo o desenvolvimento sexual infantil a quem
tinha o pênis e a quem não o tinha. Para o autor, prevalece a oposição entre ativo e
passivo e, mais tarde, a oposição entre genital masculino e castrado. Nas suas palavras:
“o masculino reúne o sujeito, a atividade e a posse do pênis, o feminino assume o objeto
e a passividade. A vagina é então estimada como abrigo do pênis, torna-se herdeira do
72

ventre materno” (p. 175). Dessa forma, a teoria freudiana marca, mais uma vez, a
passividade esperada da mulher e da maternidade como saída mais evidente para o
feminino.
Enfatizando a mãe como primeiro objeto de amor da menina, Freud (1933/2010)
destaca a importância do amor da menina pela sua mãe, na fase pré-edípica, antes de
substituí-la pela figura paterna. Ele ainda explica que a intensidade desse amor pode
comparecer como rejeição, no caso de mulheres homossexuais, no abandono da mãe
como objeto de amor. Nas palavras do autor: “a transposição de ligações afetivas da
mãe como objeto para o pai como objeto constitui o conteúdo principal do
desenvolvimento que levou à feminilidade” (p. 292). Dessa forma, Freud conclui que o
intenso amor da menina direcionado ao pai no complexo de Édipo só é possível por ser
herdeiro desse primeiro objeto de amor que a mãe representou primordialmente.
Interrogo-me quando e por que a menina abandona a mãe, seu primeiro objeto
de amor. Freud responde essa pergunta a partir de três possibilidades. A primeira é
explicada a partir do ciúme que a menina tem de outras pessoas com sua mãe, como
irmãos e até mesmo o próprio pai, esse amor da menina com a mãe requer
exclusividade, mas a mãe pode ser abandonada quando a criança percebe que não é seu
único investimento de amor. Uma segunda possibilidade é a de simplesmente
abandoná-la, já que esse amor não tem meta, ou não encontra uma satisfação plena. A
terceira hipótese abordada por Freud é que, ao se confrontar com a castração, a menina
substitui o objeto materno. Tomando o pai como objeto, dá origem ao complexo de
Édipo (Freud, 1931/2010).
Para Assoun (1993), um fator importante na troca de objeto da menina, passando
da mãe para o pai, é este ter sido o objeto de uma eleição, a menina se decide pelo pai,
deixando para traz a paixão primeira que nutria pela mãe, sendo essa escolha um
movimento próprio da menina. “Um amor que se mantenha na linha, por estar ancorado
no desejo” (p. IX). O psicanalista ainda aponta o pai como o que lhe resta para escolha,
um resto precioso, o último que sobra, e, dessa forma, ela acaba fazendo da realidade
um ideal. “Assim encontrando e forjando razões para amar. É assim que a mulher,
partindo do impossível, torna-se racional” (p. XI).
Vescovi (2021) conclui que a troca de objeto da mãe pelo pai passa pela
impossibilidade de a mãe lhe dar um filho (segundo a autora, a menina deseja a
73

princípio um filho da mãe), a menina precisa, então, trocar o objeto da mãe para o pai.
Essa impossibilidade de satisfação da menina por parte da mãe é, sem dúvida, fonte da
ambivalência da relação mãe-filha.
Essa troca implica a operação do recalque, ou seja, a exigência para que a
renúncia à satisfação ocorra (Clemens & Souza, 2020). Para as autoras, o sexual é o
objeto privilegiado do recalque, o sexual, aqui, é o prazer que pode ser obtido a partir do
objeto, bem como a segurança e os cuidados obtidos através do objeto de amor, nesse
caso, a mãe ou o cuidador do bebê. Renunciar a esse objeto é fazer uma renúncia mais
penosa que a renúncia dita sexual.
Freud (1905/2016) interroga a função da amnésia infantil no desenvolvimento
do sujeito, para concluir que a maioria de nós se esquece das experiências sexuais
vivenciadas na infância e esse esquecimento pode contribuir com o estranhamento, no
contexto social, da sexualidade infantil. Nas palavras do autor: “não nos ocorreu, até o
momento, assombrarmo-nos com essa amnésia, mas teríamos boas razões para isso” (p.
75).
É válido interrogar, junto a Freud, qual seria a meta da menina em relação à
mãe. O autor responde que as metas são tanto passivas quanto ativas, desde o ato de
mamar. Inicialmente, o bebê é amamentado pela mãe, mas, em seguida, ele mesmo se
torna ativo na sucção. Também nas brincadeiras infantis, a menina pode passar de
passiva (quando recebe os cuidados da mãe) à ativa, através de representações nas
brincadeiras infantis, enquanto aplica todos os cuidados que normalmente são
direcionados a ela mesma pela mãe (Freud, 1931/2010).
Para o psicanalista, o afastamento da mãe é um passo importante para o
desenvolvimento da menina. Não pode ser visto como mera mudança de objeto, pois os
anseios ativos foram atingidos pelo impedimento de alcance da meta e, portanto, foram
abandonados pela libido. Dessa forma, a troca de objeto de amor, tendo o pai como
objeto, é realizada através de anseios passivos. “O desenvolvimento da feminilidade
está agora livre para a menina, desde que não seja limitado pelos restos da superada
ligação pré-edípica à mãe” (Freud, 1931/2010, p. 303).
O primeiro florescimento da sexualidade infantil já estava fadado ao declínio
pela incompatibilidade entre seus desejos e a realidade, bem como à insuficiência do
estágio infantil do desenvolvimento. Seu declínio foi penoso e doloroso, a perda e o
74

fracasso desse amor deixaram atrás de si um dano permanente à autoestima em forma


de ferida narcísica. “A pesquisa sexual à qual o desenvolvimento físico da criança
impõe limites, não levou a uma conclusão satisfatória; daí o lamento posterior: ‘Não
consigo realizar nada, nada dá certo para mim’” (Freud, 1920/2010, p. 180).
Assim, da mesma forma que ocorreu a seu primeiro laço (com a mãe), também o
laço amoroso com o genitor do sexo oposto sucumbiu à desilusão: a espera por
satisfação, o ciúme no nascimento do irmão, as exigências escolares foram inúteis. Em
seu lugar, constata-se a diminuição do afeto antes demonstrado, palavras sérias, alguns
castigos, enfim, todo desdém de que era alvo. Essas são demonstrações de como chega
ao fim o típico amor desse período da infância. “Todas essas situações não desejadas e
emoções dolorosas são repetidas pelo neurótico na transferência e revividas com grande
habilidade” (p. 180).

4.2.5 O desamparo e os primórdios da subjetivação

A formação do psiquismo, a despeito de encontrar uma formulação teórica


suficiente muito cedo, com a construção de um Projeto para uma psicologia (Freud,
1895, citado em Gabbi, 2003), conduziu poucos psicanalistas de crianças a aí se
deterem. Por não terem estendido a prática clínica a neonatos (que não brincam nem
falam) e, talvez, por ser uma hipótese de trabalho especulativa cuja lógica
correlacionava a localização de um aparelho psíquico interposto ao sistema nervoso
central, esse esforço freudiano foi, muitas vezes, tomado como um antecedente à
psicanálise propriamente dita.
Apesar de Freud (1909/2015) ter buscado, em crianças, uma prova mais direta
de suas teses, constata-se, com o próprio Freud (1905/2016), que a observação
contemporânea das crianças deve ser combinada à teoria psicanalítica, fruto da
investigação de adultos, pois “a observação de crianças tem a desvantagem de trabalhar
com objetos facilmente mal compreendidos, a psicanálise é dificultada pelo fato de
poder alcançar seus objetos e suas conclusões apenas mediante enormes rodeios […]”
(p. 112).
Distinguindo a singularidade em que o sujeito se constitui, as tentativas de
padronização dos momentos e das operações de instalações psíquicas, por tratarem do
acontecimento do inconsciente, não são submersíveis nem à mera observação direta e
75

nem a uma cronologia etária. Caso orientadas apenas por observações do


desenvolvimento do organismo, as pesquisas sobre as origens do psiquismo fracassam.
Freud (1895, citado em Gabbi, 2003), em seu Projeto para uma psicologia
explica os mecanismos de funcionamento do psiquismo do neonato que levam a
sensações de satisfação, prazer e dor. Nesse trabalho, encontra-se a exposição dos
primórdios da subjetivação a partir do funcionamento biológico do neonato. Para o
psicanalista, os estímulos e as respectivas respostas do organismo são regulados
inicialmente pela quantidade de estímulos recebidos desde o ambiente externo. O
organismo busca sua organização através da eliminação desses estímulos. Entretanto,
além dos estímulos externos, “o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento
corporal, estímulos endógenos, que devem ser igualmente eliminados. Estes se originam
em células corporais e resultam nos grandes carecimentos: fome, respiração e
sexualidade” (p. 176). Percebidos internamente, os estímulos endógenos só se
apaziguam a partir de sensações a serem recebidas do mundo exterior. Diante da tensão
ocasionada pelo acúmulo interno de energia, reflexamente o neonato tem uma descarga
motora que só pode ser manifestada através do grito ou de espasmos que não têm
efetividade imediata.
Porém essas manifestações convocam o que Freud nomeia de ajuda externa, o
Nebenmench, o humano ao lado (conforme tradução de Osmyr Gabbi Jr., 2003), que
então proverá esse estímulo através do alimento, por exemplo.
Portanto, o organismo está submetido a dois tipos de estímulos: os internos e os
externos. “Enquanto os estímulos externos podem ser imediatamente ‘eliminados’, os
estímulos endógenos consistem em um afluxo constante de excitação a que o organismo
não pode escapar” (Freud, 1895, citado em Gabbi, 2003, p. 194). Esse afluxo é
nomeado por Freud como “‘mola pulsional’ do funcionamento do aparelho psíquico”
(p. 194).
Somente uma ação específica, realizada pelo agente de seus cuidados, em geral a
mãe, contemplará o carecimento do bebê: “o organismo humano é, a princípio, incapaz
de promover essa ação específica. Ela efetua-se por ajuda externa, na medida em que,
por meio da eliminação pelo caminho da alteração interna, um indivíduo experiente
atenta para o estado da criança.” (Freud, 1895, citado em Gabbi, 2003, p. 196). A trilha
da eliminação dos estímulos internos de fome manifestados pelo grito de descarga do
76

bebê, recrutando o auxílio externo, é função secundária de mais alta importância na


comunicação: “o desamparo inicial do ser humano é a fonte originária de todos os
motivos morais” (p. 196). A mãe, acolhendo o desamparo de seu bebê, interpreta seu
pedido de socorro e o atende por meio do que supõe aplacar seu desconforto.

Se o indivíduo prestativo realizou o trabalho da ação específica no mundo


externo para o desamparado, então esse foi capaz, por meio de dispositivos
reflexos, de executar sem demora o desempenho necessário no interior do seu
corpo para cancelar o estímulo endógeno. Assim, a totalidade representa uma
vivência de satisfação, tendo as consequências mais decisivas para o
desenvolvimento funcional do indivíduo. (Freud, 1895, citado em Gabbi, 2003,
p. 196)

O estado de desprazer do neonato, causado pelo desequilíbrio homeostático do


seu organismo, aciona inicialmente os trilhamentos neuronais do ainda incipiente
sistema nervoso, carregando-os com força suficiente para produzir a alucinação do
objeto que apaziguaria, provocando a descarga muscular do excesso que produzira a
alucinação. Logo constatada a ausência de satisfação e, portanto, a desilusão, o fracasso
desse engate conduz o desenvolvimento da atenção e a consequente possibilidade de
diferenciar o registro de trilhamento do circuito neuronal necessidade-satisfação, do
registro objetivo da percepção da presença do objeto que o substitui.
Origina-se, então, por intermédio da vivência de satisfação, uma facilitação entre
duas imagens recordativas. Com a eliminação própria da satisfação, a quantidade de
energia de origem interna (Qn’) também é retirada das imagens recordativas. Com o
retorno da necessidade, a ocupação prossegue também para ambas recordações e as
anima. Nesse processo primário, a imagem recordativa do objeto é a primeira a ser
afetada pela animação desejante. Essa animação de desejo resulta em uma alucinação.
Se, em consequência disso, a ação reflexa de descarga for iniciada, haverá
necessariamente desilusão, pois a imagem recordativa não satisfaz. É o que tornará
necessário ao organismo diferenciar uma alucinação do objeto que lhe satisfez pela
percepção real de um objeto efetivamente presente. Isso será feito por meio do
recrutamento da atenção ao exterior. De acordo com Freud (1895, citado em Gabbi,
2003), diferentemente do processo primário, será introduzido um processo secundário,
possibilitado pela inibição da alucinação (redução do investimento) exercida pelo Eu,
77

que assim se forma. Assim, a atenção ao exterior e a inibição da alucinação formatam o


Eu.
Freud (1895, citado em Gabbi, 2003) insere esse modo de alucinação a partir do
que ele denomina vivência de satisfação. Amparando o filhote humano, a mãe alimenta
seu bebê e lhe permite uma eliminação temporária do estímulo interno da fome que lhe
gerava desprazer. Entretanto, a fome do bebê retornará posteriormente, e os estímulos
internos voltarão a manifestar sua urgência. Nessa situação, remontando à satisfação
primordial, o bebê a alucina. Porém, sem o seio que o alimenta, não haverá satisfação,
mas apenas decepção, pois a manifestação do desprazer permanece. Enquanto um
pensar reprodutivo, a alucinação não contempla a necessidade. Com o investimento de
cargas na atenção ao mundo exterior e a concomitante inibição da alucinação, pode se
instituir o pensar judicativo, que compara a alucinação com a presença concreta e,
portanto, julga a existência do objeto como signo da realidade (alimento). Alcança-se,
enfim, a meta, pelo juízo de realidade.
O princípio do prazer é então substituído pelo pensar judicativo que avalia a
existência e a presença de objetos satisfatórios na realidade. Estes sempre terão, entre si,
atributos de semelhança e diferença com relação à satisfação almejada, mas, a despeito
de suas distinções, guardam um núcleo comum inapreensível a ser perseguido como o
que falta à satisfação.
Em seu trabalho Luto e melancolia, Freud (1915/2010) usa o termo exame de
realidade (“teste de realidade” no texto de 1926 e “juízo de realidade” em seu trabalho
de 1895) para tratar da elaboração do processo do luto. Para o autor, “o exame da
realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido
seja retirada de suas conexões com esse objeto” (p. 173).
Freud (1926/2014) informa que a necessidade do bebê em ter a percepção da
mãe deve-se ao fato de que ela satisfaz rapidamente todas as suas necessidades. A
situação que ele precisa evitar, tendo a mãe sempre por perto, é a insatisfação. O autor
também sugere que a insatisfação deve ser análoga à vivência do nascimento para o
bebê, uma repetição da situação de perigo. Dessa forma, Freud propõe que a angústia do
bebê se revela como produto do desamparo biológico ao qual, durante seu início de
vida, ele está suscetível.
78

Assoun (1991) marca o início do processo de transformações femininas no


trauma de separação vivido pelo neonato, que Freud denomina como uma experiência
de dor anterior à angústia e ao luto: quando está em jogo perder a mãe de vista e a
impossibilidade de antecipar o tempo que dura a ausência. Para o autor, a angústia da
perda da mãe continua marcada por essa experiência de separação, de tal forma que o
medo de perder o objeto permanece como o pivô de todas as turbulências que vêm
depois.
Freud (1920/2010) percebeu uma estratégia do bebê para lidar com a angústia de
separação. A partir da brincadeira de uma criança pequena em seu berço, pôde notar que
ela jogava para longe de si um carretel, segurando consigo a linha presa a ele. Quando
jogava o carretel, o menino falava o-o-o-o (interpretado como fort, “foi embora”),
depois, o menino puxava a linha fazendo o carretel reaparecer e emitia um alegre da
(“está aqui”). O psicanalista considera que a ausência da mãe para uma criança pequena
não pode ser agradável ou indiferente. Assim, concluiu que “a ausência tinha que ser
encenada, como precondição para o agradável reaparecimento, que seria o verdadeiro
propósito do jogo” (p. 173).
Esta representação da mãe como objeto desejado com o qual a criança exercita e
superpõe, na linguagem, o afastamento e a aproximação é o desdobramento simbólico
operado pela criança a partir de sua urgência vital, que remonta ao texto Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, no qual Freud (1905/2016) faz uma analogia entre a
necessidade de alimento, a fome e a necessidade sexual. Assim como a fome daria
nome à necessidade de alimento, a libido nomeia a necessidade sexual.
A libido, nesse momento inicial da atividade sexual, apoia-se nas funções que
servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. Essa passagem
pode ser exemplificada:

Quem vê uma criança largar satisfeita o peito da mãe e adormecer, com faces
rosadas e um sorriso feliz, tem que dizer que essa imagem é exemplar para a
expressão da satisfação sexual na vida posterior. Então a necessidade de repetir a
satisfação sexual se separa da necessidade de nutrição […]. (Freud, 1905/2016,
p. 86)

A perda do seio, por ocasião do desmame e, em seguida, com a experiência da


cessão das fezes no controle esfincteriano, incrementou o exercício das trocas
simbólicas, localizando a demanda materna ao mesmo tempo em que distinguia uma
79

posição em que poderia preencher o que, também, faltava à mãe. Tal localização
permite ao bebê reconhecer-se no lugar do que supriria a falta insinuada pela mãe, por
meio do que pedia ao filho. Instaura-se, então, um segundo narcisismo, em que a
criança pode se supor como o que falta à mãe, promovido por certas possibilidades de
identificação, de reciprocidade, de ciúme, de frustrações e gratificações.
Desse lugar, franqueia-se então um grande ganho de autonomia para a fala, e
para os deslocamentos da marcha.
Para Freud, então, como a primeiríssima satisfação sexual se dá através da
alimentação, o instinto sexual tem um objeto fora do corpo, o seio da mãe. Esse objeto,
para o bebê, é perdido somente depois, quando é possível para a criança formar uma
ideia total da pessoa a qual pertence o órgão que lhe traz satisfação. Ainda um ponto
importante na relação com esse primeiro objeto é que a criança aprende a amar outras
pessoas (que acolhem seu desamparo e satisfazem suas necessidades), seguindo o
modelo de sua relação com a lactente.
Cada bebê é implicado em um tecido discursivo familiar que precede seu
nascimento: posição, nome e história correlativos às redes de significação são
estabelecidos na família desde antes da sua concepção. Independentemente do momento
particular de vida da mãe ou da família, cada um está implicado numa trama cuja teia
repercute em significações a ele atribuídas. É nesse lugar simbólico, em que é inserido
por meio do agenciamento de seus cuidadores, que o bebê se constituirá singularmente
como sujeito do inconsciente (Lacan, 1954-1955/1985).
Assim, a constituição do sujeito depende das trocas estabelecidas entre o bebê e
aquele que faz função de agente materno, impulsionando um circuito simbólico
complexo: mesmo antes do nascimento, a gestante interage com seu bebê e interpreta
seus movimentos no ventre como uma forma de interação, depositando todo o
investimento da relação com o filho e apostando no sujeito que ele será.
Entretanto, vale lembrar que tal circuito simbólico assim estabelecido determina
não apenas o investimento pulsional e narcísico do agente materno no filho, mas
também o próprio movimento pulsional da criança. Como o suporte fisiológico do
neonato assume estatuto simbólico e imaginário? Essa interrogação me conduz a um
rápido percurso que articule a noção freudiana de Nebenmench (o indivíduo prestativo)
ao conceito de pulsão.
80

Freud trabalha o conceito de pulsão, com essa nomenclatura específica, a partir


de 1915, em seu texto As pulsões e seus destinos (Freud, 1915/2010). Mesmo
considerando que, no início da vida, os primeiros estímulos recebidos, percebidos e
eliminados contribuem para que o neonato possa perceber, “na eficácia de sua atividade
muscular, um ponto de apoio para distinguir um ‘fora’ de um ‘dentro’” (p. 55), Freud
não se limita a tal contribuição muscular para situar a pulsão.
A princípio, os estímulos externos atingem o corpo, agindo como força
momentânea que provoca reflexos fisiológicos de descarga ou fuga. Estimulados por
uma ação externa, têm como reflexo uma ação de descarga do próprio corpo que os
elimina. Já os instintos pulsionais oriundos do próprio corpo são estímulos internos que
o corpo não pode eliminar nem deles fugir. Trata-se, neste caso, da pulsão, força
constante que exige modificações externas ao corpo que visem a eliminá-la. Na pulsão,
a força vem de dentro do corpo e dela não é possível se livrar por meio da descarga:
“uma denominação melhor para o estímulo instintual é ‘necessidade’; o que suprime
essa necessidade é a ‘satisfação’. Ela pode ser alcançada por meio de uma modificação
pertinente (adequada) da fonte interior de estímulo” (Freud, 1915/2010, p. 54).
Como foi dito, Freud (1895, citado em Gabbi, 2003) acentuara anteriormente a
necessidade de uma relação com o indivíduo experiente (Nebenmench), informado das
necessidades da criança, para mediar uma satisfação que o bebê não tem como obter por
seus meios. Já com o esboço do registro dessa experiência de satisfação, ao novamente
estar exposta a uma necessidade (e, portanto, ansiar pela satisfação que a aplaque), o
bebê rememora a satisfação antes obtida, acessando seus traços. Entretanto, sem o
suporte da pessoa auxiliar, o bebê só pode encontrar a satisfação com a alucinação
desta, o que, fisiologicamente, logo comparece como insistência da insatisfação, pois a
alucinação não a dissolve. O fracasso dessa rememoração do anseio e da satisfação sob
modo alucinatório, que se esboça na excitação motora, conduz a pessoa experiente (que
está a seu lado) a lhe trazer objetos de satisfação semelhantes, reconhecidos como
capazes de aliviá-la. Oferecendo outras modalidades de presença dela mesma, outros
objetos com propriedades semelhantes, mas não idênticas àquele perdido, estes
ganharão estatuto de compensação ou suplência. Assim, instaura-se uma divisão dos
complexos perceptivos do objeto em uma parte não assimilável (as imagens mnésicas
do objeto “perdido” da satisfação) e outra parte revelada pelas substituições que o
81

compensam. Desse modo, a pessoa auxiliar sustenta, intermediando, o domínio da


excitação diante da necessidade, organizando uma percepção complexa, mas estável, do
objeto de satisfação, composto de uma parte assimilável (com propriedades de
satisfação) e outra que se mantém desconhecida (presente antes de se construírem redes
de memória suficientes para capturá-lo).
Assim, não sendo possível a eliminação das pulsões pela ação do próprio
organismo, o sistema nervoso se vê obrigado a renunciar à intenção de eliminá-las, o
que requer uma complexidade maior em sua tarefa, buscando, portanto, a redução
máxima do nível dos estímulos pulsionais (possivelmente com a aceitação de objetos de
prazer mais próximos e/ou com a postergação e a continuidade da busca do reencontro
do objeto de satisfação perdida). “Talvez possamos concluir, então, que eles, os
instintos e não os estímulos externos, são os autênticos motores dos progressos que
levaram o sistema nervoso, tão infinitamente capaz, ao seu grau de desenvolvimento
presente” (Freud, 1915/2010, p. 56). O psicanalista conclui que o organismo precisa
trabalhar para regular os estímulos que o atingem, seja desde fora ou desde dentro do
próprio corpo, e que até mesmo o mais evoluído aparelho psíquico está submetido ao
princípio do prazer: “seguramente no sentido de que a sensação de desprazer está ligada
ao aumento, e a sensação de prazer ao decréscimo do estímulo” (p. 57).
Freud entende a pulsão como o conceito-limite entre o somático e o psíquico.
Nas palavras do psicanalista: “como o representante psíquico dos estímulos oriundos do
interior do corpo e que atingem a alma, como uma medida do trabalho imposto à psique
por sua ligação com o corpo” (p. 57).
A pulsão é, portanto, a fronteira de dois processos distintos, um somático e outro
psíquico. Tendo sua fonte no somático, na tensão originária da excitação de um órgão, é
muda e cega. Só no psiquismo, ela manifesta o que lhe corresponde como imposição
que exige o trabalho de converter a excitação corporal em moção psíquica, de onde é
tomada como objeto da teoria psicanalítica.
No psiquismo, a substituição e a condensação dos traços do objeto perdido da
satisfação culminarão na localização da mãe como o objeto mais próximo do objeto de
satisfação perdido, no qual a criança encontra amparo, investe amor e se reconhece.
Este breve estudo sobre a primeira alteridade e a pulsão é interessante, pois
permite voltar à interrogação: um filho poderia figurar, para sua mãe, a materialização
82

desse objeto perdido, especialmente quando ele não nasceu? Depois de todas as
suplências, deslocamentos e condensações que tentam compensar a condição de perda
que se inaugura com o próprio advento de um psiquismo que o reatualizam de várias
formas e por tantos meios até chegar à sua perda primeira, constato que, antes de
provocar outras perdas, o filho que não nasceu pode comparecer, no psiquismo materno,
como tamponamento da falta constitutiva da subjetivação. Não é difícil concluir que
esse filho obturador tenha suas faces de impossível real, contemple o ordenamento da
série simbólica materna e adquira consistência imaginária.
83

5 PERDA NEONATAL E CONTEMPORANEIDADE: CONSIDERAÇÕES


FINAIS

O objetivo inicial deste projeto era a pesquisar os primórdios da subjetivação de


bebês internados em UTI neonatal, a partir dos impactos da internação e da separação
do agente materno, na formação inicial do psiquismo. Entretanto, após o
acompanhamento sistemático de mães e bebês internados nessas UTI’s, pude perceber
que só chegaria a abordar o psiquismo do bebê se, antes, atinasse na relevância dos
impactos do rompimento das expectativas maternas geradas quando, após o parto,
configura-se uma urgência que leva à separação imediata de seus bebês que necessitam
de cuidados intensivos.
Afinal, não era apenas a separação precoce que incidia sobre o bebê, mas os
efeitos dessa separação nas condições psíquicas da mãe em sustentar-se na posição de
mãe enquanto era substituída pelos cuidados intensivos.
Assim, ao me perguntar como a impossibilidade de cuidados do próprio filho
pode impactar o psiquismo da mulher e o que disso reverberaria no psiquismo do
próprio bebê, julguei procedente investigar essas vivências partindo da problematização
do que aí aparece como mais crítico, nas consequências, para a mãe, do parto seguido
da separação do bebê.
Foi o que me conduziu, em minha pesquisa, até o bloco obstétrico, local em que
o parto do filho natimorto coloca em jogo a captura das possibilidades e dos limites da
elaboração do luto perinatal pela mulher.
Os estudos necessários para a construção desta dissertação foram capazes de dar
contorno e trazer à luz os impasses pelos quais passam, ainda hoje, as mulheres que
perdem seus bebês ainda em seu ventre e precisam, portanto, construir a possibilidade
de um processo de luto a partir das expectativas já vividas em relação a seus bebês,
ainda imaginários.
As possibilidades de uma mãe sofrer a perda de um filho na contemporaneidade
foram autorizadas pelo lugar que a criança adquiriu para a família e para a sociedade ao
longo dos séculos. Esse lugar reconhecido da infância, detalhado anteriormente neste
texto, orientou a mulher a um investimento de outra ordem na maternidade e, com isso,
84

a perda de um filho tomou outra proporção, diferente daquela possível nos séculos XVII
e XVIII (Badinter, 1985).
Talvez seja possível afirmar que o luto de uma mãe que perde um filho é
reconhecido pela sociedade a partir da relação que se estabeleceu entre essa dupla e de
todo o investimento materno que é preciso para cuidar de uma criança. Quando retorno
ao nicho específico da maternidade, aqui investigado, no qual a mãe perde seu bebê
antes mesmo de seu nascimento, busco, na literatura psicanalítica e especialmente em
textos freudianos, os pontos que podem delinear a perda para essa mãe.
Durante a gestação, também há investimento materno, aposta e, particularmente,
há a aproximação dessa mulher com sua própria experiência enquanto bebê de sua mãe,
bem como a aproximação de sua mãe (a partir do momento que a mulher vê a si mesma
como mãe). A proximidade desses bebês e maternidades ainda na esfera do imaginário
me remeteu à revivescência de cada mulher enquanto bebê e ao retorno ao seu primeiro
objeto de amor, sua mãe.
Paul Laurent Assoun (1993) chama a paixão inicial pela mãe de “paixão
primitiva”, um mal de amor originário e incurável. O psicanalista localiza, nas trocas de
objeto da menina, a base para o torna-se mulher. Assoun denomina o amor incurável da
menina pela mãe como um amor sem saída e sem objetivo e, por isso, para não se
entregar a essa loucura e se perder, a menina se vê obrigada a trocar de objeto. Nas
palavras do autor: “é preciso haver uma ‘alternância’ àquele outro amor que era ‘sem
saída’” (p. VII).
Retornando às elaborações de Freud (1915/2010) quanto a saída do processo de
luto, ele afirma que esta se dá a partir do momento no qual o enlutado (a mãe) aceita
que o objeto do luto está morto, mas que ela ainda vive e pode escolher continuar
vivendo. Para o analista, essa seria, portanto, uma saída.
Tomando, como ponto de partida para a saída do luto, a indicação de Freud
(1915/2010), em Luto e melancolia, de que é preciso deixar o objeto morrer para poder
viver, é possível afirmar que a mulher que perde seu filho ainda no ventre não tinha
estabelecido a consideração de aspectos singulares do bebê. A mulher teria apenas uma
construção própria que se aproximava dela mesma enquanto bebê. Como se poderia
supor a construção desse luto? Qual parte, de si própria, será preciso que ela deixe
morrer?
85

A partir dos estudos sistemáticos do percurso freudiano pelo desenvolvimento da


sexualidade feminina, esta pesquisa me permitiu localizar que a realização da
maternidade, ou seja, o investimento da mulher adulta em ter um filho, parece suprir a
ameaça do fracasso do casamento imaginarizado, especialmente quanto ao desencontro
sexual do casal ou ao limite da conjunção civil entre dois sujeitos.
Freud nunca deixou de situar o caráter de esforço que é o tornar-se mulher, e o
fato de que esse é um trabalho contra a corrente, posto que representa a posição
contrária da visão naturalista da maternidade. O desejo de ter um filho não se reduz nem
à história nem ao social, mas ao simbólico. “Foi lhe preciso jogar o falo contra mãe, foi
preciso se ‘animar’ a idealizar o pai contra o amor da mãe. Foi preciso ainda, decidir-se
a amar um homem contra a fascinação fálica” (Assoun, 1991, p. 18). Dessa forma, a
mulher é tomada — o que é muito característico do ‘tornar-se mulher’ — por uma
dependência amorosa excessiva, com esse sentimento bastante curioso de ser sempre
largada.
Para as mulheres que escolhem a via de sua união ao homem, constituindo um
casal que franquearia a maternidade, esta pode ter sido uma promessa equacionada
desde a adolescência quanto a própria realização libidinal, que superaria, em oposição, a
constatação do fracasso do funcionamento dos próprios pais na composição de um
casamento feliz. A adolescência teria então respondido pela incidência das
transformações da puberdade e o retorno da visada erótica sobre o corpo feminino.
Na autonomia que a puberdade desperta, demarca-se o abandono das balizas
parentais que orientavam o funcionamento da infância no tempo da latência, carregando
a consequente perda da, até então necessária, dependência psíquica dos pais. Nos
tempos da latência, os interesses sexuais foram perdidos em prol do investimento
civilizatório em que se ergueram os diques que frearam os investimentos libidinais
mantidos, em geral adormecidos. Vergonha, asco e pudor em relação à libido
conduziram o investimento nos conhecimentos partilhados pela civilização, regendo o
período compreendido entre o complexo de castração e a puberdade, ao adormecer os
fatores libidinais que mobilizarão o púbere.
A submissão à lei da interdição do incesto, que impôs a perda do pai como
objeto de amor, teria sido contemplada ao final da organização genital infantil e
substituída, na latência, pelo investimento na função civilizatória do saber.
86

Anteriormente, a tomada do pai como aquele que vai lhe dar um filho suplantara, desde
a constatação de que a mãe não tem pênis, a descrença na própria teoria até então
formulada pela menina de que seu pênis iria crescer ou de que a mãe lhe daria o órgão.
A perda narcísica da mãe como objeto primário de amor localiza o momento
anterior, em que a criança ainda não diferenciava os sexos e supunha a onipotência
materna, que a protegia e a complementava. Até então, a plenitude da mãe como sua
referência imediata a deixava totalmente à mercê dos caprichos maternos. Fomentada
pelo investimento social que já a situava como menina muito antes de descobrir a
diferença sexual, a criança podia identificar-se à mãe e à referência da posição desta na
família, como demonstram as brincadeiras de casinha a que se dedicava.
Enquanto ainda estava no lugar de infans, antes de distanciar-se suficientemente
da mãe para constituir a imagem desta, em sua consistência onipotente, o seio materno
respondera às urgências do bebê, que o supunha seu, atestando a superação do
desamparo constitutivo, na medida em que o alimentava ao mesmo tempo que o
imantava narcisicamente, edificando os primeiros passos das trocas com a mãe. Todo
esse percurso de substituições entre perdas e ganhos, sempre parciais, retrocede, assim,
até o estabelecimento de uma primeira perda: a do objeto de satisfação.
O movimento da repetição diferida da reprodução do idêntico contempla a
modalidade pela qual os desastres das perdas são procedidos de acontecimentos que as
substituem e que, assim, atenuam-nas. Desse modo, foi possível articular a série que
vai, a posteriori, da perda do filho ao objeto perdido da satisfação, localizando a lacuna
a partir da qual a mulher tece sua constituição.
Se ainda hoje, no contexto social, é preciso construir a possibilidade de
elaboração do luto enquanto mãe de um bebê que não nasceu, isso se justifica pela
construção ainda recente da especificidade da infância em nossa cultura, datada do final
do século XVIII, início do século XIX (Badinter, 1985). Retornando à lógica freudiana:

Dizemos que o ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e
a mulher que o cria e nisso pressupomos o narcisismo primário de todo
indivíduo, que eventualmente pode se expressar de maneira dominante em sua
escolha de objeto. (Freud, 1914/2010, p. 33)
87

A mulher, durante sua constituição, precisa trocar de objetos para que a


realização de seu querer seja possível, desde a representação do amor impossível pela
mãe até a gestação que é a realização desse querer da mulher (Assoun, 1993).
A gestante, quando se percebe mãe, aproxima-se de seu amor primordial, aquele
que deu origem ao objeto fora do Eu. Nessa perspectiva, a perda implicada num filho
que não nasceu pode significar, para cada mulher, ter que novamente renunciar ao amor
pela mãe.
88

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