Qual A Perda Implicada em Um Filho Que Não Nasceu
Qual A Perda Implicada em Um Filho Que Não Nasceu
Qual A Perda Implicada em Um Filho Que Não Nasceu
Belo Horizonte
2022
LUANA XAVIER PIZARRO
Belo Horizonte
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
( x ) Aprovada
( ) Reprovada
Finalizados os trabalhos, a presente ata, lida e aprovada, vai assinada pelos membros da
Comissão.
Belo Horizonte, 28 de janeiro de 2022.
Documento assinado eletronicamente por Cristina Abranches Mota Batista, Usuário Externo,
em 08/06/2022, às 15:18, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 5º
do Decreto nº 10.543, de 13 de novembro de 2020.
À profa. Ângela Vorcaro, por sua disponibilidade e generosidade em relação ao saber. Sua
aposta e sua presença em minha formação representam o leme que me dirigiu até aqui.
Obrigada por tanto.
Aos grupos de estudos orientados pela professora Ângela Vorcaro, espaço no qual pude ir aos
poucos costurando minhas perguntas de pesquisa. Carinhosamente a Ângela, Daniela, Ana
Carolina, Julianne, Ariadne, Ticiana, Vinícius, Carla e Danie.
Às professoras da banca de qualificação: Livia Moreto, Cristiane Grilo e Daniela Viola, que
tanto contribuíram para que eu pudesse avançar em meu texto.
Aos colegas do mestrado, por todos os momentos de troca possíveis e imprescindíveis durante
esse recorte particular de estudos em plena pandemia. Especialmente a Helô, ao Hernani, ao
Israel e ao Vinícius.
Carinhosamente ao HU Betim Unimed-BH onde tive meu encontro com a assistência ao parto
e o acesso às famílias e aos bebês internados em UTI Neonatal, foi essa experiência que
motivou o trabalho desenvolvido nesta dissertação. Carinhosamente a Raquel, Jessica,
Luciana, Jamile e Dra. Solange.
Carinhosamente às mães e às famílias que dividiram comigo suas dores e suas histórias
durante um momento tão delicado que pode ser a perda de um bebê.
Aos amigos, por todo apoio durante este período. Carinhosamente a Ticiana, Silvia, Leandro,
João Paulo, Rô, Zeca pelo ouvido, pela presença e pela aposta.
Aos meus pais e às minhas irmãs, por acreditarem e por darem o suporte necessário para
tantas horas de estudo.
Às minhas tias e aos meus tios, que foram ouvidos e suporte nos momentos turbulentos.
Aos meus filhos, pela paciência nas muitas presenças ausentes que foram necessárias para me
dedicar a esta pesquisa.
Novamente aos meus filhos, às minhas sobrinhas e priminhas que foram os primeiros bebês
que me encantaram, e nossa interação me trouxe as primeiras interrogações sobre as relações
com bebês.
Ao Adriano, meu marido. Obrigada por ser meu porto seguro, por acreditar e me incentivar a
cada incerteza e principalmente por me apoiar incondicionalmente.
VERBO SER
PIZARRO, L. X. (2022). Qual a perda implicada em um filho que não nasceu? (Dissertação
de mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG, Belo Horizonte.
Este trabalho explora o estudo freudiano que conduz o percurso desde o querer ser mãe até a
falta de satisfação do bebê. Os textos sobre a organização libidinal da mulher permitiram
partir da mãe e da mulher, passando pela adolescente, latente, menina e, por fim, pelo
neonato, investigando o que, em cada uma dessas passagens, a mulher perde, bem como os
modos pelos quais ela faz suplência, mesmo que parcialmente, a essas perdas. A escolha deste
caminho reverso teve o ponto de partida na maternidade. Dessa forma, foi possível explorar o
início da relação mãe e filho, ainda na gravidez, considerando a interação entre as
manifestações fisiológicas do corpo da mulher e o imaginário da gestante, ou seja, o que antes
do encontro de fato com seu filho já opera como conjunção a ele. A pesquisa buscou
investigar, a partir do aporte teórico da psicanálise, sobretudo das obras de Freud, os possíveis
impactos da perda do filho sobre os investimentos maternos da gestação e problematizar a
construção e a elaboração do luto. A investigação se deteve, mais especificamente, na
hipótese, muitas vezes aventada pela puérpera, de retorno ao estado gestacional. Supõe-se que
esse retorno parece significar, para as mães que perdem seus bebês durante a gestação, uma
possibilidade de suplantar imediatamente a dor da perda, como alternativa ao luto que esta
mobiliza. Conclui-se que a perda de um filho que não nasceu pode responder pela perda do
objeto de satisfação primária.
Pizarro, L. X. (2022). What Is the Loss Involved in an Unborn Baby? (Master’s dissertation).
Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais –
UFMG, Belo Horizonte.
This paper explores the Freudian study that discusses the path women take from the moment
they decide to be a mom to the baby’s lack of satisfaction. The texts about the sexual
organization of women have allowed the analyses to start from the mother and the woman,
then the adolescent, the latent, the girl, and, finally, the newborn stage. Investigating what, in
each of these passages, the woman loses as well as how she replaces, even partially, these
losses. This reverse path starts with motherhood. In this way, it was possible to explore the
beginning of the mother-child relationship, still during pregnancy, considering the interaction
between the physiological manifestations of her body and her imaginary. That is, before the
actual meeting with her child, what are her interactions with the baby and her expectations
about the pregnancy. The research sought to investigate, from the theoretical contribution of
psychoanalysis, especially Freud’s works, the possible impacts of the loss of the baby on the
maternal investments of this pregnancy and to problematize the construction and elaboration
of mourning. The investigation focused, more specifically, on the hypothesis, often put
forward by the puerperia, of a return to the gestational state. It supposes that this return seems
to mean, for mothers who lose their babies during pregnancy, a possibility to immediately
overcome the pain of the loss as an alternative to the mourning that it mobilizes. It concludes
that the loss of an unborn child may account for the loss of the object of primary satisfaction.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88
8
1 INTRODUÇÃO
prática, o que tornei objeto de pesquisa desta dissertação, ou seja, o impacto subjetivo
da experiência do parto do bebê natimorto na vida da mãe, bem como suas
possibilidades de atravessamento.
De chofre, é necessário circunscrever a modalidade de perda a ser, aqui,
abordada. O Manual da Vigilância do Óbito Infantil e Fetal (Brasil, 2009), determina o
período perinatal começando em 22 semanas completas (ou 154 dias) de gestação e
terminando aos sete dias completos após o nascimento. Ainda, tendo como referência o
mesmo manual, considera-se natimorto ou óbito fetal a morte do produto da gestação
antes da expulsão ou de sua extração completa do corpo materno, independentemente da
duração da gravidez. O óbito indica o fato de, depois da separação de corpos, o feto não
respirar nem dar nenhum outro sinal de vida, como batimentos do coração, pulsações do
cordão umbilical ou movimentos efetivos dos músculos de contração voluntária.
A experiência com os atendimentos a mulheres que passaram por essa vivência
de óbito, de um filho ainda no ventre, demarca a peculiaridade psíquica da perda
suscitada na reflexão posta em jogo nesta dissertação. Em acolhimentos a parturientes
de bebês natimortos, diante da possibilidade de serem ouvidas a respeito de si no
momento da perda, muitas vezes, logo após a notícia da morte do bebê, essas mulheres
se calam a respeito da dor da perda atual, dedicando-se imediatamente ao planejamento
de uma próxima gestação. Em algumas situações, essas mulheres são apoiadas pelas
famílias nesse projeto e, em outras, escolhem-no mesmo estando sozinhas, durante a
espera pela operação do parto ou enquanto aguardam a recuperação para a alta
hospitalar. Nesse contexto, penso que cabe interrogar o aporte teórico da psicanálise
sobre a obstinada manifestação materna de retorno ao estado gestacional logo após a
perda de seu bebê. Este seria um modo de tratar o luto ou de anulá-lo?
O que chamou minha atenção foi a constância em que a constatação do filho
natimorto era contraposta pela fala que restabelecia imediatamente a presença desse
filho morto por meio da substituição de sua perda por um filho futuro que poderia até
preservar seu nome. Esse traço parecia ressaltar que o processo da perda não implicava
a mediação do trabalho psíquico do luto, suprimindo o tempo a ele necessário, o que
talvez determinasse não só seu adiamento, mas também a impossibilidade de construção
de um lugar simbólico diferenciado para um outro filho.
11
orgânica que se faz presente pelo modo como se apresenta na sua imagem e nas
manifestações próprias. A partir do encontro da mulher com seu bebê, após o
nascimento, essa mãe aos poucos se desvincula do bebê ideal, aquele bebê imaginado
pela gestante antes do nascimento, à medida que vai estabelecendo um laço com o bebê
que nasceu e com o qual continuará a se relacionar, agora concretamente. No caso de
bebês que morrem antes do parto, essa transformação do bebê imaginário em bebê de
fato é absorvida pela condição de morte e de perda. Retomo, então, o problema central
deste trabalho: o que pode representar, para a mulher, a contingência de que,
materialmente, seu bebê seja morte? A investigação será feita no sentido de aproximar
do que a mulher perde, além de seu bebê que não viveu, mas que parece estar aderido a
ele.
Aguiar e Zornig (2016) advertem que “nos casos de óbito fetal, o contato com o
bebê real só pode ser vislumbrado nas ultrassonografias, não tendo ocorrido
efetivamente um contato com o bebê real — o que aumenta a dificuldade da elaboração
do luto do filho imaginário” (p. 271). Para as autoras, o óbito fetal ocorre justamente no
momento em que estão sendo traçadas as primeiras formas de relacionamento entre a
mãe e o bebê, por isso é possível que o óbito, nesse período, seja potencialmente
problemático e tenda a ser vivido como traumático, uma vez que o objeto de amor
perdido não está firmemente reconhecido enquanto um objeto real1. Este interessante
apontamento franqueia a validade de minhas interrogações e fortalecem meu
empreendimento nesta dissertação. Afinal, se a perda de um filho que não viveu pode
ser considerada como potencialmente mais traumática pelo fato de o objeto perdido ser
imaginário, que valor psíquico estaria aderido a ele?
Entendo a relevância desta pesquisa questionando o impacto que o bebê
idealizado, perdido, pode ter na elaboração do luto para a mulher que o perdeu e
também na relação dessa mulher/mãe com o restante de sua prole. Um bebê perdido
estará sempre presente nos laços familiares, mas a elaboração de um luto perinatal pode
representar a possibilidade de uma nomeação e um espaço singular para esse membro,
1
Nota-se que as autoras adotam o termo “real” para se referirem à realidade material do bebê depois de
nascido. Observando o escopo desta dissertação, tal nomenclatura não será usada, de modo a não ser
confundida com a referência à dimensão real abordada por Lacan (1969-1970/1992, p. 154): “é no plano
do impossível que defino, como sabem, o que é real”, ou seja, o que implica o impossível de ser
formalizado, simbolizado. Para tratar do corpo ao natural do neonato, utilizo, então, os termos: bebê
concreto, materialmente visível, uma unidade orgânica objetivamente presente no mundo, exterior ao
corpo da mãe.
13
2 OBJETIVO GERAL
3 CIRCUNSCRIÇÃO TEMÁTICA
2
Amas de leite eram mulheres contratadas para nutrir e cuidar das crianças em seus primeiros anos de
vida.
16
admitir que esse sentimento não tinha a posição nem a importância que hoje lhe são
conferidas” (Badinter, 1985, p. 50).
Por volta dos anos de 1760 a 1770, o lugar da criança na família começou a ter
destaque, a partir de obras que incitavam o amor materno como a base das famílias,
dando início a era da família moderna, como salienta a filósofa. Nesse mesmo contexto
social, a ternura materna era, para a igreja, como uma satisfação materna que
prejudicava o desenvolvimento dos filhos. “É mais esse estado de espírito leviano e
preguiçoso do que o excesso de amor e de cuidado dos pais pelos filhos que a teologia
do século XVII combate” (p. 60).
O novo modelo político de governo do Estado conferiu reconhecimento à
infância, o que implicou no estabelecimento de leis que a protegiam, bem como em uma
redistribuição dos responsáveis sociais (numa disputa de poderes entre justiça,
filantropia e medicina) por sua garantia (Donzelot, 1984). Essa mudança convoca a
medicina a diferenciar-se em especialidades médicas e, no século XVIII, surge a
pediatria como especificidade médica, pois, até então, a medicina não se dispunha a
tratar das crianças doentes. Os cuidados das crianças que adoeciam estavam, até então,
sob a responsabilidade materna, sendo uma função exclusiva da mãe. Para os médicos
da época, as doenças infantis eram mais difíceis de serem tratadas que as dos adultos,
pois crianças pequenas não falam.
Badinter (1985) justifica, em parte, a indiferença materna considerando a alta
taxa de mortalidade infantil da época. Essa seria uma forma de defesa, pois como se
apegar tanto a um ser que tem tantas chances de morrer antes de completar o primeiro
ano de vida? Uma das possibilidades de a mortalidade infantil ser tão alta era
justamente o envio das crianças aos cuidados das amas que viviam e cuidavam dos
bebês em situações precárias. Levando em conta as possibilidades de cada família se
dedicar aos cuidados de seus filhos, cabe a pergunta: por que as mães pertencentes às
mais altas classes e que não precisavam trabalhar preferiam entregar seus bebês aos
cuidados de terceiras?
Alguns dirão que as fontes escritas de que dispomos só dizem respeito, em geral,
às classes abastadas, para as quais se escreve e a propósito das quais se escreve e
que uma classe pervertida não condena a totalidade das mães. Podemos também
lembrar a atitude das camponesas de Montaillou que, na aurora do século XIV,
embalam, acariciam e choram os filhos mortos. Esse testemunho mostra
18
A autora, a partir de registros familiares dos séculos passados, pôde notar que os
pais pouco sentiam a morte de seus filhos pequenos e que não era incomum que eles
não estivessem presentes no velório deles, isso quando havia a possibilidade de saber da
morte a tempo do velório, pois muitos só ficavam sabendo muito tempo após o
ocorrido, devido ao fato de essas crianças estarem sob os cuidados de amas. Os registros
também indicavam que os pais pouco procuravam saber os motivos que causaram a
morte.
Vale ressaltar outro relato da filósofa (1985) que nos chama atenção: eram vistos
como curiosos os casos nos quais os pais sofriam pela morte de seus filhos pequenos.
Estes se apressavam em tentar explicar o motivo do sofrimento por um filho ainda
criança explicitando, talvez, uma defasagem já presente entre a ideologia proclamada e
os afetos parentais. Esse relato da autora me remeteu ao que ocorre nos dias de hoje
com as gestantes que perdem seu bebê antes do nascimento. Por não ser reconhecida no
contexto social, essa perda implica o estabelecimento de uma justificativa das mães ou
mesmo a ocultação de seu sofrimento.
Outro costume comum até o século XIX era a mãe amar mais um filho pelo seu
sexo ou posição de nascimento. “Como o amor, se era natural e portanto espontâneo,
poderia voltar-se mais para um filho do que para outro?” (Badinter, 1985, p. 91). Seria
possível selecionar o amor pelo menino em detrimento do amor pela menina, ou ainda o
filho mais velho pelo mais novo? “Não será isso uma confissão de que amamos a
criança em primeiro lugar pelo que nos proporciona socialmente e porque ela lisonjeia
nosso narcisismo?” (p. 91).
Amamentar seu bebê não era uma prática comum durante os séculos XVII e
XVIII, não sendo sequer recomendada pelos médicos da época, com a consideração de
que distanciava o marido da mulher, já afastados devido à orientação de não ser
aconselhado manter relações sexuais durante a gestação ou mesmo durante a
amamentação. A autora aponta outro inconveniente que justificava, para as famílias, a
prática do envio de seus bebês às amas de leite: o impacto que o ato de cuidar de um
bebê provocaria na vida social das mulheres. “Ela é um empecilho para a mãe não
19
apenas na vida conjugal, mas também nos prazeres e na vida mundana. Ocupar-se de
uma criança não é nem divertido, nem elegante” (p. 98). Durante esse período da
história, a criança não tinha o lugar na família que conhecemos hoje. Para as mulheres
da época, bastava ser mulher, e, para tanto, ela poderia esquecer as duas funções que,
até então, definiam-na: a de esposa e a de mãe, tarefas estas que só definiam a mulher
em relação ao outro.
Nos séculos XVII e XVIII, a educação das crianças das classes burguesas e
aristocratas segue o mesmo ritual. No início da vida, as crianças são enviadas às casas
das amas, mais tarde, retornam ao lar para serem, após cinco ou seis anos de convívio
familiar, enviadas a um convento ou internato, deixando, dessa forma, um tempo bem
restrito de convívio com os pais. Badinter (1985) destaca que as pesquisas de
autoridades da época localizam a indiferença parental sobre esses filhos enquanto estão
sob os cuidados de terceiros, que quase nunca eram conhecidos da família ou traziam
consigo alguma referência. “Somos mesmo tentados a ver, nessa não interferência
indolente, uma espécie de substituto inconsciente do nosso aborto. A assustadora
mortalidade infantil no século XVIII é o mais gritante testemunho disso” (p. 137).
Após tantas evidências da mortalidade infantil e sua relação com a terceirização
dos cuidados dos bebês logo após o nascimento, no final do século XVIII, após 1760,
são publicadas várias orientações para que as mães comecem a se ocupar dos cuidados
de seus bebês e que os amamente. “Elas impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe
antes de tudo, e engendram o mito que continuará bem vivo duzentos anos mais tarde: o
do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho” (p. 145).
O novo imperativo, portanto, ao final do século XVIII, era a sobrevivência das
crianças e, para essa tarefa, era necessário convencer as mães a se aplicarem nas tarefas
esquecidas, aquelas ligadas ao cuidado materno dirigido ao bebê. Dessa forma, Badinter
(1985) reconhece que as mulheres foram seduzidas pelas personalidades mais influentes
da época, como médicos e padres, a acreditarem que seriam recompensadas com
felicidade e respeito se conseguissem ser boas mães.
20
3
No próximo tópico, será apresentado um breve estudo sobre a importância desse agente (as parteiras)
para o parto ao longo dos tempos.
21
A partir da suposição da classe médica a respeito das parteiras e seu não saber
científico, há um marco importante na história da higiene do parto no Brasil: a instrução
das “parteiras curiosas” — como são mencionadas em artigos de medicina —, por
médicos e enfermeiras ligados ao Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp). Criado em
1942, esse serviço visava a instruir e a vigiar o trabalho de parteiras no intuito de
reduzir os altos índices de mortalidade materno-infantil, registrados desde meados do
século XIX.
4
Um estudo sobre o papel da mulher na comunidade, no contexto anterior a esse ponto, pode ser
encontrado em Foucault (1984), Aristóteles (1957) e Colling (2014).
26
O predomínio dos partos naturais domiciliares realizados por parteiras não era
fruto apenas das escolhas delas ou das gestantes e de suas famílias, haja vista a escassez
de obstetras, já que a obstetrícia não era uma área almejada pelos profissionais da
medicina, como nos descreve Martins (2004).
A assistência médico-hospitalar ao parto e ao nascimento lhe conferem novos
significados. De evento fisiológico, familiar e social, o parto e o nascimento
transformam-se em ato médico, no qual o risco de patologias e de complicações se torna
a regra, e não a exceção. Maia (2010) ressalta que, a partir de então, inaugura-se outro
modelo de assistência ao parto: o modelo tecnocrático, que encontra, junto à medicina
obstétrica moderna, solo fértil para se legitimar no Brasil, em um contexto de
assistência à saúde predominantemente curativo e hospitalar.
Assim, se, por um lado, o saber científico demonstrou sua pertinência e
eficiência na redução dos índices de mortalidade infantil, a inserção do saber científico
obstétrico e da figura masculina no parto causou uma ruptura com a figura da parteira
— íntima da cultura e do próprio corpo feminino —, que era considerada por ter seu
olhar voltado à mulher que paria e ao seu bem estar: o parto, então, deixou de ser “coisa
de mulher” para tornar-se procedimento técnico. A consequente valorização social
desses elementos, devido à sua eficácia na promoção da vida, teria dado início, para
27
partos normais e cesarianas no Sistema Único de Saúde (SUS) e nos hospitais privados,
ainda hoje, constata-se que o tipo de parto também é uma marca do status social da
mulher.
Segundo Rocha e Ferreira (2020), os determinantes sociais mostram que as
mulheres de renda mais baixa, atendidas no sistema público, percebem-se menos
autônomas e mais vítimas de intervenções desnecessárias. Já as mulheres com maior
renda, usuárias da rede suplementar, apontam a receptividade do médico diante da
cesariana a pedido delas, porém não se sentem adequadamente informadas sobre as vias
de parto durante seu acompanhamento. Essa falta de informação mencionada pelas
mulheres caracteriza a qualidade da assistência prestada. O medo da dor e o temor de
sofrer violência na hora do parto apareceram nos discursos como fatores negativos do
parto normal, o que reflete o impacto da violência obstétrica na saúde e reforça a
importância da informação no processo de gestar e parir. A cesariana se destaca no
cenário médico, trazendo a discussão sobre o modo “normal” de nascer na sociedade
moderna. As altas taxas de cesarianas — a pedido ou baseadas em indicações não
clínicas, como comodidade do agendamento — caracterizam o novo perfil obstétrico.
Antes da implantação do SUS no Brasil, com a Constituição da República de
1988 e a regulamentação com as leis 8080 e 8142 de 1990, o modelo de assistência teve
foco curativo e hospitalar. Entretanto, a Constituição de 1988 (Brasil, 1988) é um marco
na redefinição das prioridades da política do Estado na área da saúde coletiva e
determina, em seu artigo 198, que as ações e os serviços públicos em saúde integram
uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único de saúde. O SUS
é organizado de acordo com os princípios da universalidade, que garante acesso a todos,
independentemente de contribuição; da equidade, que garante o atendimento das
necessidades dos indivíduos dando mais a quem necessita de mais; e da integralidade,
que oferta assistência em todos os níveis de complexidade à população. Sua
implementação tem como base as diretrizes de hierarquização, descentralização, com
gestão em cada esfera de governo, e participação da comunidade, garantindo controle
social das ações e dos serviços de saúde (Brasil, 1988).
Em 2003, foi criada, no Brasil, a Política Nacional de Humanização (PNH),
também denominada como “Humaniza SUS”. Trata-se de uma reformulação no modo
de cuidar da saúde no país, preconizando a construção dos processos de assistência à
29
Entre o que a mulher/mãe constitui como seu filho morto e a definição oficial de
óbito há, para estas, muitas vezes, um vão que nem sempre é transposto. Partirei aqui da
nomenclatura oficial (portaria número 72, de 11 de janeiro de 2010, artigo 2º, item III,
do Ministério da Saúde), que define o óbito fetal como:
Gestantes que perdem seus bebês antes desses cortes preestabelecidos, muitas
vezes, não são acolhidas no contexto hospitalar da mesma forma que a mãe que perdeu
um feto, com a justificativa de que o “produto era só” um embrião. Supõe-se que tal
abordagem reflita uma restrição silenciosa, conferida pelo discurso social estabelecido,
à morte, em especial, à morte de uma vida não realizada que, de certa forma,
desdobra-se também no modo quase secreto com que a mãe sofre o luto pelo seu bebê.
Para que uma mulher seja considerada mãe, essa nomeação assume consistência
a partir da especificidade de construção simbólica e imaginária dessa função, realizada
durante o período de duração da gestação, no que a mãe reconhece como tal. No caso da
contingência da perda do embrião, as modalidades de luto possíveis diante dessa
gestação malograda talvez estejam relacionadas à construção da relação da mulher com
a singularidade de sua gestação, o que não depende, necessariamente, da idade
gestacional do feto perdido.
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se antecipa mãe quanto antecipa seu filho. Geralmente essa antecipação é a subjetivação
que ela pode suster a partir dos movimentos corporais e dos ritmos do feto,
reconhecidos em sua própria fisiologia. Essa construção tem a potência de conferir, a
ambos, uma forma de existência e, também, de constituir modalidades de laço.
No caso de a mãe se deparar com a realidade material do bebê, ela terá a morte
como um ponto imutável. A perda desse bebê “abstração”, em sua realidade psíquica,
que é, ao mesmo tempo, “a pessoa amada”, constitui uma mutilação cujo caráter talvez
paradoxal seja o de pertencer ao seu corpo e ao seu psiquismo. Esse momento configura
uma conjunção jamais reencontrada entre dois corpos, nem mesmo em qualquer ficção
da relação sexual. Esse ponto de perda pode ser tão inassimilável quanto impossível de
ser representado, o que localizaria o luto por essa perda numa dimensão real (conforme
a terminologia lacaniana). Nesse caso, um trabalho simbólico de elaboração do luto
poderia ficar em suspensão. Enquanto Freud (1917[1915]/2010) afirma entender “[…]
que o trabalho psíquico do luto leva o Eu a renunciar ao objeto, declarando-o morto e
oferecendo ao Eu o prêmio de continuar vivo” (p. 192), a circunstância do luto pela
perda de um filho que não viveu implicaria um tipo de renúncia corporal e narcísica
inexorável, que exigiria a permanência de algo vivo, e, para sustentá-lo, talvez seja
preciso suspender, paradoxalmente, o próprio trabalho psíquico. Admitir essa hipótese
exige delimitar o que permaneceria vivo, na mulher/mãe, do filho que nasceu morto.
Em muitos casos, o hiato simbólico deixado pelo natimorto parece não causar o
mesmo efeito no campo social, que, por vezes, ignora-o. A mãe, que passou os meses de
gravidez construindo o filho enquanto esperava seu nascimento, de repente, depara-se
com a contingência de que não há filho. Denominando esse hiato como um vazio,
Bromberg (2000) afirma que este será agravado se o bebê for logo retirado do contato
com a mãe, ou se ela não tiver qualquer contato com ele, supondo ser necessário que
essa mãe tenha lembranças do bebê para elaborar o luto. Para a autora, é necessário que
o natimorto seja percebido como um evento real, tangível, que pode ser absorvido,
elaborado e deixado pelo casal (principalmente) e também pelos irmãos, para que não
seja uma memória fantasmagórica, assombrando-os e paralisando seus relacionamentos,
como frequentemente ocorre.
Nessa perspectiva, já se observa comumente a prática dos membros da equipe
assistencial das maternidades de produzir, após a morte de um bebê, seja ainda no útero
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ou depois de alguns dias de vida, lembranças para a família: uma caixinha com o
carimbo da placenta num papel, a etiqueta que ficava na mãozinha do bebê, o carimbo
dos pezinhos, a touca usada pelo bebê. Parece que as equipes que atuam nas
maternidades, ao produzirem essas recordações referenciais do filho morto, encontraram
um modo de lidar com os efeitos do bebê natimorto sobre os pais. A expectativa da
equipe é de que esse ato tenha um papel relevante na elaboração do luto pela perda do
bebê. Espera-se que o acolhimento humanizado possa ter a função de ao menos delinear
simbolicamente um marcador concreto que representaria o bebê que não voltou para
casa com os pais.
Outra prática das equipes na maternidade, na busca de caminhos para alavancar
a elaboração do luto materno, é a de facultar à família a possibilidade de decidir o
momento de dizer adeus ao bebê natimorto, após o parto. Em muitas oportunidades, esta
mestranda pôde acompanhar uma equipe que permite que a puérpera e seu companheiro
ou familiares fiquem com esse bebê o tempo que julgarem necessário. Se não é usual
que o feto morto volte para casa e ali permaneça com a família em um berço refrigerado
até as cerimônias de seu funeral, como ocorre alhures (Revista Crescer, 2021), esse
trabalho de reconhecimento social indica a dimensão incomensurável da perda do que
não pode ser perdido nem depois de morto.
Aguiar e Zornig (2016) ponderam que normalmente, após um óbito fetal, os pais
contam com poucas recordações do filho, o que poderia provocar uma sensação de
irrealidade e vazio. Relatam ainda que, comumente, outros familiares desmancham o
quarto do bebê e escondem os objetos já adquiridos para esses bebês pelos pais. Dessa
forma, salientam, os pais (especialmente a mãe) são privados de um importante ritual,
possivelmente aumentando a solidão experimentada. Há, por parte dos pais, um temor
de que os poucos traços que o bebê deixou possam ser apagados: “o luto após o
nascimento de um bebê morto não conta com experiências a serem relembradas após o
parto, sendo privadas de lembranças necessárias para entrada no trabalho do luto” (p.
270).
Por outro lado, no caso particular de natimortos ou, em menor grau, de mortes
neonatais, Bromberg (2000) afirma que o luto se torna ainda mais difícil se a morte for
seguida de perto por uma outra gravidez. No entanto, as famílias e a sociedade parecem
pressionar o casal que perdeu um filho, procurando fazer a reposição deste o mais
35
5
Cirurgia que consiste em esvaziar o interior de uma cavidade natural ou patológica com o auxílio de
uma cureta; raspagem.
6
Para respeitar o sigilo com relação à identidade dos pacientes, os nomes aqui utilizados são fictícios.
36
estava morta. Maria conta ter estranhado a falta de movimentos de sua bebê na barriga
nos últimos dias e por isso procurou o pronto atendimento hospitalar. Após ter realizado
exames clínicos e o obstetra de plantão não ter conseguido auscultar as batidas do
coração da bebê, Maria foi encaminhada para o exame de ultrassom que apontou o
óbito. Depois desse breve relato, Maria se cala. Diante do silêncio gerado, Vitor toma a
palavra, relatando que estava tudo certo com a gestação, que haviam feito ensaio
fotográfico no fim de semana anterior, que o quarto da filha já estava pronto e que eles
não sabiam o que havia ocorrido. O pai da bebê ressaltou também que o nome da filha
era Raissa e que o casal já havia decidido que, assim que a esposa pudesse engravidar,
eles voltariam a tentar novamente, sublinhando que a próxima filha teria o mesmo nome
da que foi perdida. O pai finalizou a fala informando que o casal teria uma filha com o
nome Raissa: “se essa não pôde nascer, a próxima poderia”.
A partir da afirmação do pai, fica a questão se seria importante para o casal
reconhecer essa Raissa, mesmo que morta, como parte da família, para que ela pudesse
ser representada através da fala do casal, podendo contribuir para a elaboração do luto,
fazendo parte da história da família e também para que a próxima filha do casal pudesse
ter um nome e significações próprias.
Nessa perspectiva, os pais foram por mim interrogados sobre como eles
conseguiriam diferenciar a Raissa que estava agora no útero da mãe da futura Raissa
que ainda não havia sido concebida. Não obtive resposta. O pai pareceu ignorar o
questionamento, sem vacilar. Entretanto, foi possível supor que Maria, após uma pausa,
colocou-se a refletir sobre o questionamento feito. Após alguns minutos em silêncio,
Maria retorna a falar dos procedimentos para o parto que faria e, sugerindo estar
ansiosa, diz aguardar o início do trabalho de parto: “estou no terceiro comprimido de
indução e espero entrar o quanto antes para poder voltar para casa”. O acolhimento se
encerrou naquele momento. No dia seguinte, o casal teve alta hospitalar antes de um
segundo encontro.
Vorcaro (2010) aponta que “localizar um saber insabido na singularidade do
sintoma, bordeando-o com um ato enunciativo de interrogação desse sintoma pelo
solicitante, é o desdobramento que se espera ocorrer no tempo de acolhimento” (p. 19).
Com base nessa indicação, interrogo-me se foi possível, em um único acolhimento, um
questionamento apenas ter tido efeito sobre a escolha dos pais. Minha aposta, a despeito
37
Coelho (2001), a partir de sua leitura de Freud e Lacan, indica que Freud
apresenta uma série de variedades do uso do termo objeto na construção de sua teoria.
Em geral, Freud denomina de objeto as representações psíquicas. Já Lacan distingue, a
partir da obra freudiana, os tipos de objetos indicados a seguir.
Quando o texto freudiano aborda a escolha de objeto, ele está se referindo ao
objeto de amor, geralmente aos indivíduos tomados como tal. A mãe é o objeto
primordial de amor de todo neonato, e, no caso da menina, há a troca de objeto de amor
da mãe pelo pai.
Há também a referência ao próprio sujeito, ao Eu como instância psíquica que
pode ser tomado como objeto de desejo no caso de investimentos narcísicos. Portanto,
nessa representação, o próprio Eu é o objeto narcísico.
A partir de sua primeira teoria das pulsões, Freud (1915/2010) propõe que as
pulsões sexuais têm como base originalmente as pulsões de autoconservação. Portanto,
as escolhas anaclíticas (por apoio) de objeto se estabeleceriam com base no primeiro
modelo de relação no início da vida, quando a satisfação sexual se apoiava
principalmente no seio materno tomado como objeto. Constitui-se como objeto
pulsional todo objeto no qual, ou através do qual, a pulsão consegue atingir seu alvo
(Coelho, 2001).
Nessas várias versões do objeto suposto por um desejo, seja no amor, no
narcisismo ou nas pulsões, trata-se de figurações assumidas como suplência diante da
42
falta que causa o desejo, na ausência de satisfação que define o objeto na psicanálise,
ou, mais precisamente, como demonstrou Lacan (1964/1988), são semblantes do objeto
inobjetalizável que interessa à psicanálise.
***
apresenta uma mulher que perdeu sua filha logo após o parto e enfrentou algumas
questões em busca de sua reconstituição. O filme retrata situações com as quais, por
vezes, nos deparamos na clínica de mulheres que perderam seus bebês. Trata-se da mãe
da gestante que, contra a vontade da filha, decide o que fazer com o corpo do bebê
natimorto e cogita a possibilidade de processar a parteira que assistiu o nascimento
domiciliar. A interferência da família nas resoluções práticas que sucederão a perda
atropela as oportunidades que poderiam facilitar a elaboração de luto da mãe.
Outro ponto também presente na clínica e explicitado nesse filme é a expressão
de piedade que a mãe-sem-filho reconhece no modo como incide nela o olhar do outro,
situação que preferia não ter que lidar em sua tentativa de retomar sua vida.
O filme traz outro ponto latente que é a recuperação pela qual o corpo feminino
passa para se recobrar da perda ou do parto: o sangramento por dias, as contrações
uterinas, frequentemente produzindo leite para alimentar o filho que não mais existe.
Salienta-se que, quando não há filho, as mulheres precisam, muitas vezes, retornar ao
trabalho e lidar com esses processos corporais ao mesmo tempo.
Toda maternidade reconhecida no cotidiano por essa mãe, como o encontro com
outras mães com seus filhos, é capaz de reativar, nessa mulher-mãe-sem-filho, a perda
que sofreu. No filme, apesar da insistência da família em mover um processo na busca
de responsabilizar alguém pela morte da bebê, a mãe consegue colocar que não há
compensação em achar um culpado, uma vez que não há possibilidade de recuperar sua
bebê. É plausível estabelecer uma analogia entre esse acontecimento no filme e as
situações em que as famílias incentivam as mulheres que acabaram de perder seus bebês
a tentarem uma nova gestação, como se desse para compensar ou preencher uma perda.
É possível testemunhar a elaboração de algumas mulheres sobre o lugar atribuído a esse
filho que não nasceu, lugar que outro bebê não poderia ocupar, enquanto outras
mulheres acabam se deparando com essa constatação mais tarde.
É como se as pessoas ao redor da mulher que perdeu um bebê precisassem
oferecer uma compensação por algo insuportável para elas mesmas, sem franquear
espaço para simplesmente acolher a perda. Parece-me que, para isso, não há lugar no
discurso social.
Diante das várias alternativas de auxílio ou de acolhimento que possam ser
oferecidas à mulher que perdeu seu bebê, constata-se ser inviável estabelecer
44
4 REFERENCIAL TEÓRICO
Dentre os diversos campos teóricos possíveis para orientar tal leitura, situo,
como marco conceitual de partida, uma leitura da psicanalítica freudiana acerca da
sexualidade feminina. Minha proposta metodológica, portanto, abarca uma
reinterrogação de pontos específicos da obra freudiana, já problematizados por aqueles
que desdobraram suas assertivas, buscando os elementos que articulam a emergência do
sujeito, o desenvolvimento sexual diferencial da mulher e a conjugação do feminino à
maternidade. São muitos os trabalhos (Fonseca, 2018; Iaconelli, 2015; Jerusalinsky,
2011) que localizam as posições da mulher que ultrapassam a maternidade, em oposição
à ideologia que a toma como natural, ou discernindo que esta é apenas uma de suas
possibilidades. Todavia, esta dissertação se voltará ao recorte da função da própria
maternidade, a partir do que o efeito da perda dessa condição (as consequências casuais
da perda atual) pode elucidar o que está em jogo desde a perda primordial, percorrendo,
para tanto, a direção que orienta a feminilidade.
Tendo em vista que esta dissertação trata da perda implicada em um filho que
não nasceu, busca-se equacionar, por meio da obra freudiana, as particularidades
envolvidas na edificação da subjetivação feminina, para problematizar especialmente
seus modos de substituir as perdas implicadas em sua estruturação. Percorrerei o
caminho das construções da teoria freudiana que trilham as especificidades do feminino,
interrogando suas articulações a partir de minha experiência clínica, bem como do
47
diálogo com outros psicanalistas que abordaram essas questões que tangenciam o
estatuto da mulher e a função da maternidade nesse contexto.
Freud (1900/2019) adverte que “ao representar um desejo como realizado, o
sonho está nos levando para o futuro, de fato; mas esse futuro que o sonhador toma
como presente é modelado, pelo desejo indestrutível, à imagem e semelhança do
passado” (p. 675). Tomando este movimento do desejo persistente e sua atualização no
sonho como operação também incidente no “sonho da maternidade”, avanço na
consideração da suposição de que a conjunção mulher e mãe, na maternidade, esteja
relacionada à separação da própria mãe. Nessa direção, pode-se interrogar: será que a
construção da maternidade trataria do trajeto da interdição até a incorporação da mãe?
A pesquisa em psicanálise constitui um saber derivado da ciência, mas não se
enquadra como integrante desta, porque, diferentemente da ciência, que exclui as
manifestações subjetivas, prometendo com isso uma objetividade máxima, a psicanálise
inclui o sujeito em sua investigação, inserindo-o na série da sua experiência, ao
sustentar a hipótese do inconsciente. Essa consideração essencial permite delimitar o
campo de pesquisa da psicanálise (Vorcaro et al., 2016).
Fonseca (2018) lembra que, em psicanálise, o estudo da sexualidade feminina
abrange o enfrentamento de questões ligadas à divisão entre a mulher e a mãe e aos
impasses de ser mulher e de ser mãe. A partir de articulações teóricas propostas nos
textos de Sigmund Freud e contando com os trabalhos de autores que se basearam em
suas obras, a autora verifica a referência constante a um impossível de se dizer, tanto do
lado da mulher quanto da maternidade.
Reafirmando essa constatação, procurarei cernir as condições que envolvem esse
impossível de dizer, localizando, na abordagem freudiana à mulher, a função do objeto
perdido e de seus modos de tratá-lo no decorrer de sua edificação psíquica. Assim, o
ponto de partida é a delimitação das operações que cifram a experiência humana no
inconsciente, destacadas por Freud (1900/2019). Através da pesquisa bibliográfica da
literatura, busco, portanto, destacar a temática que abrange as vias das condições de
representabilidade do deslocamento e da condensação como mecanismos que trabalham
transmutando as perdas objetais, franqueando a indestrutibilidade do desejo.
Buscando me deter ao percurso retroativo da mulher/mãe até os primórdios de
sua subjetivação, ou seja, revertendo a suposta cronologia do desenvolvimento da
48
condição feminina, parto do momento da perda atual, para revisitar os demais pontos
nodais salientados por Freud. Para cada um desses pontos, foram destacados os
seguintes textos:
O psicanalista tem uma relação direta com o saber do sujeito suposto. Ele nada
sabe desse saber suposto, mas ele tem um saber “em reserva”, que lhe permite
ordenar logicamente o não sabido. É o não saber do clínico que permite ao
sujeito a iniciativa de construir seu projeto de saber. (Vorcaro, 2018, p. 43)
escolha sexual dos jovens recair sobre uma pessoa mais madura, com características de
autoridade, que reavivaria no sujeito sua relação com os pais. Assim, ao tematizar os
efeitos ulteriores da escolha de objeto infantil, ele afirma que ninguém escapa
inteiramente da influência de uma fixação incestuosa da libido, por meio de
enamoramento por figuras capazes de reanimar retratos de sua mãe ou de seu pai, do
modo que predominou em sua mente desde a primeira infância. Enfim, as relações entre
uma criança e seus pais têm importância determinante na escolha de um objeto sexual,
e, por isso, Freud (1905/2016) entende que os distúrbios dessas relações produzem
graves efeitos em sua vida sexual adulta. Ciúme, brigas e infelicidade no casamento dos
pais também preparariam as bases para a mais grave predisposição a distúrbios de
desenvolvimento sexual ou a doenças neuróticas.
A despeito de Freud (1914/2010a) não tocar especificamente na maternidade ao
discorrer sobre o narcisismo, vale a pena abordá-lo na medida em que ele situa, de
modo geral, o efeito psíquico dos filhos sobre os pais, indicando a prevalência de uma
ordem narcísica orientadora dos cuidados da prole. Assim, ele reconhece as atitudes
ternas dos pais com seus filhos como uma revivescência de seu próprio narcisismo há
muito tempo abandonado. Dessa forma, os pais exaltam características (que para outros
observadores são banais) como perfeições e ocultam os defeitos. Os genitores buscam
também proporcionar aos filhos tudo o que não foi possível a eles enquanto eram
crianças. Dessa perspectiva, os pais, enxergando-se em seus filhos, dão-se uma nova
chance para neles se prolongarem. Segundo Freud (1914/2010a),
His Majesty the Baby, como um dia pensamos de nós mesmos. Ele deve
concretizar os sonhos não realizados de seus pais, tornar-se um grande homem
ou herói no lugar do pai, desposar um príncipe como tardia compensação para a
mãe. No ponto mais delicado do sistema narcísico, a imortalidade do Eu, tão
duramente acossada pela realidade, a segurança é obtida refugiando-se na
criança. O amor dos pais, comovente e no fundo tão infantil, não é outra coisa
senão o narcisismo dos pais renascido, que na sua transformação em amor
objetal, revela inconfundivelmente a sua natureza de outrora. (p. 37)
gerada pela perda de seu bebê. Ao diferenciar angústia, dor e luto, Freud (1926/2014) se
refere à condição de passagem de uma dor física para uma dor psíquica, explicitando
essa transposição como correspondente a uma mudança de investimento: o caráter
narcísico da dor física deve ser deslocado, transferindo a sensação de dor para seu
caráter objetal, de âmbito psíquico. Entretanto, um objeto altamente investido pode
desempenhar o papel do local do corpo investido pelo aumento do estímulo: “a natureza
contínua do processo de investimento e a impossibilidade de inibi-lo produzem o
mesmo estado de desamparo psíquico” (p. 123).
Pode-se considerar, a partir do escopo desta dissertação, que a perda do filho
natimorto abrange um condensado talvez pouco delimitável desse tipo de dor, “que não
pode mais ser precisamente definido” (Freud, 1926/2014, p. 123), ou seja, a dor do
parto do filho morto implica diretamente a dor do corpo materno sendo, ao mesmo
tempo, a dor psíquica da perda do objeto no qual a mãe investe toda sua libido. Para
Freud, “cabe ao luto a tarefa de executar esse desprender-se do objeto em todas as
situações em que o objeto era alvo de grande investimento” (p. 123). O luto, conforme
assevera o psicanalista, surge por influência do exame da realidade que exige que o
indivíduo se separe do objeto. Seu caráter doloroso se deve, portanto, à necessidade de
dissolver o investimento elevado e irrealizável que preside a ligação com um objeto que
não existe mais.
Se a perda de seu bebê implica uma identificação a ele e, portanto, ocasiona a
morte de uma parte de si mesma, pode-se constatar que, nesse caso, seria preciso um
trabalho de luto em duas instâncias: a da perda objetal de seu bebê e também a da perda
narcísica de sua parte de maternidade.
Interessa, neste contexto, também desdobrar a afirmação freudiana de que a
principal função do amor ao objeto filho é a conservação da espécie (Freud, 1930/2010).
Afinal, o psicanalista supõe que algo da espécie favoreceria esse amor. Se as
explicações freudianas sobre o psiquismo preservam certo aporte a uma referência
orgânica, genética, hormonal e funcional, que lhe permite até mesmo articular a
ontogênese à filogênese (Ferretti, 2014), pode-se, por um lado, atribuir esse fator à
localização, feita por Freud, de algo que escapa à teoria como um núcleo real de
impossível transposição simbólica, que só admite especulações míticas.
56
Entretanto, por outro lado, pode-se também refletir sobre a incidência, nos pais,
dos efeitos imaginários causados pela materialidade implicada na transmissão
propriamente genética. Uma concepção por meio de relação sexual ou mesmo através
de inseminação artificial, quando os pais são os doadores dos produtos genéticos, gera
bebês que carregam suas características e, em geral, são supostas por eles como capazes
de conduzir algo além de suas marcas biológicas (como semelhanças físicas objetivas).
Os pais, geralmente, incluem, nessa carga biológica, seus próprios modos de
comportamento social, apesar de estes serem fatores supostos, mas indeterminados
cientificamente. A carga genética, portanto, ultrapassaria a herança transmitida pela
experiência familiar e cultural como um saber. Assim, ao se reconhecerem por
semelhança de imagem, nos filhos, a transmissão geracional da cultura é suposta, pelos
pais, apoiada pela transmissão genética.
Vale ainda considerar a especificidade do investimento da mulher em um filho, a
partir do prisma do óbito de um feto. Na realidade psíquica materna, trata-se da perda de
seu bebê, no qual ela reconhece uma produção narcísica própria. Não será raro que ela
se identifique com este objeto perdido, morto, e por isso precisará também deixar
morrer uma parte de si mesma. A dificuldade de delinear o objeto perdido no processo
de luto do bebê natimorto sofre, todavia, o acréscimo de um outro marcador: a situação
em que o bebê, morto, ainda habita o corpo materno. Nesse caso, ela é a sepultura
provisória que carrega consigo a própria maternidade e seu produto, que, até então,
estava acolhido no ventre. Ressalta-se ainda que seu sofrimento nem sempre é
reconhecido no contexto social, na medida em que, objetivamente, a maternidade está
associada à presença de um filho. No caso da mãe do bebê natimorto, esse filho só se
presentifica como ausente, já morto, e só estará com ela enquanto ela mesma for sua
sepultura provisória.
Pode-se supor que há, portanto, uma ruptura brusca de estado feminino, a
mulher e gestante passa da plenitude, momento no qual carrega seu bebê no ventre e
aposta seus investimentos narcísicos, tendo anexo a seu corpo o falo (colocado em
função pelo feto), ao momento no qual recebe a notícia da morte de seu bebê e passa a
ser essa sepultura viva da promessa da maternidade.
Afirmando servir-se de sua escrita para isolar com mais cuidado o que já havia
dito, em seu texto Sobre a sexualidade feminina, Freud (1931/2010) ressalta alguns
57
no real do filho cobiçado, a figura desse objeto primitivo, uma busca por reencontros
palpáveis (Assoun, 1991).
Reconhecendo a ambiguidade sistemática entre amor e ódio, Freud (1931/2010)
também afirma que, em um primeiro casamento de mulheres jovens apaixonadas, a
atitude amorosa fracassaria tanto quanto com a mãe “em virtude dos inevitáveis
desenganos e do acúmulo de ocasiões para a agressão” (p. 297). Um segundo casamento
poderia superar esses limites. Reafirmando que a psicanálise o ensinou “a conceber uma
única libido para mulheres e homens, ressaltando que só as metas, ou modos de
satisfação são ativos ou passivos” (p. 303), o psicanalista aponta que a atividade fálica é
ressaltada na mulher, além da insistente e complexa relação com a própria mãe.
Pode-se concluir, desse texto, que, a despeito dos processos em jogo na
subjetivação feminina, ele quase se limita a abordar os avatares que antecedem o
tornar-se mulher. Veremos, na Conferência A feminilidade (1933/2010), a explicitação
da dificuldade freudiana em abordar a mulher. Desde os Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, fazendo uma diferenciação entre a sexualidade feminina e a masculina,
Freud (1905/2016) aponta aspectos desse problema:
Ainda no mesmo texto, o autor acrescenta algo sobre a maternidade que nos
interessa, em uma nota feita em 1920: há na mulher uma ausência de superestimação
sexual dirigida ao homem, “mas quase nunca ela deixa de mostrá-la em relação ao filho
que gerou” (p. 43). Essa constatação de Freud sobre o fato de a mulher mostrar a
superestimação do filho gerado me remete novamente à pergunta desta pesquisa: o que
ocorre com a mulher quando seu filho morre, ou seja, de que perda se trata quando a
geração de um filho não implica em seu nascimento?
Vescovi (2021), citando a mesma passagem dos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade, pontua que, mesmo diante da obscuridade da vida sexual das mulheres,
Freud não deixa de perceber a dimensão da relação da mulher com seu filho, bem como
o lugar de objeto supervalorizado que o bebê poderia vir a ocupar para sua mãe. Como
60
desejo no qual o produto da realização (gestação) ainda não está aí implicado. Penso
que seria admissível entender que esse objeto faz aí as vezes da função do objeto
narcísico.
Na teoria freudiana de que é mais importante para a mulher ser amada do que
amar, deparamo-nos com o lugar da mulher no contexto social e toda a trama tecida
para que ela seja posta nesse lugar de objeto, no qual ela é colocada e a ele adere. Freud
(1927/2014), em seu texto sobre o fetichismo, faz uma análise do momento no qual o
menino percebe que a mãe é fálica e não se atém a esse fato até se deparar com a
ameaça de castração. Para suportar a hipótese da mulher como castrada, o fetiche
aparece como substituto ao pênis da mãe. Nas palavras do psicanalista: “o fetiche é o
substituto para o falo da mulher (da mãe), no qual o menino acreditou e ao qual —
sabemos por quê — não deseja renunciar” (p. 304). Ainda evidenciando tal objetivação,
Freud faz uma analogia entre o fetichismo e a mutilação que a cultura chinesa impõe ao
pé feminino, que deve conservar um pequeno tamanho. “É como se o homem chinês
quisesse agradecer à mulher por se haver submetido à castração” (p. 310).
Para o psicanalista, a mulher pode resgatar sua relação primária com a mãe, bem
como reproduzir a infelicidade do casamento parental:
Sob o impacto da própria maternidade, pode ser revivida uma identificação com
a própria mãe, contra qual a mulher havia se rebelado até o casamento, e atrair
para si toda libido disponível, de maneira que a compulsão à repetição reproduz
um casamento infeliz dos pais. (Freud, 1933/2010, p. 339)
Parece-me importante notar, nesse texto, que Freud, aos 70 anos de idade,
durante uma sessão com a analisante Marie Bonaparte, informou-a: “a grande questão
sem resposta, à qual eu mesmo nunca pude responder apesar dos meus 30 anos de
estudos da alma feminina, é a seguinte: O que quer a mulher?” (Bertin, 1989, p. 250).
Como lembra Assoun (1993), não se pode tomar tal interrogação apenas como
reconhecimento de um fracasso, posto que ela evidencia muito mais a constatação de
haver, na mulher, algo que ultrapassa a sistematização teórica em sua busca de
universalização. Afinal, nessa interrogação está posta a afirmação do artigo definido “a”
para situar “mulher”, o que franqueia a leitura de não ser possível aplicar o pronome
indefinido plural “todas” ao gênero “mulher”, pois, em psicanálise, só se trata delas uma
a uma, como asseverou Lacan (1972-1973/1982), na medida em que há, nelas, algo
impossível de ser generalizado. Não se entende, portanto, haver resposta linear a esse
questionamento do psicanalista. Por isto, buscarei, no decorrer deste trabalho, apenas
melhor circunscrever o desejo que poderia estar implicado no querer de “algumas”
mulheres assoladas pela perda de um filho que nasceu morto.
A inclinação infantil para seus pais é sem dúvida a mais importante, porém não a
única, das sendas que, renovadas na puberdade, marcam o caminho para a
escolha de um objeto. Outros pontos de partida com a mesma origem
possibilitam ao homem, apontando-lhe sempre da sua infância, desenvolver mais
de uma série sexual e plasmar condições totalmente variadas para a eleição de
objeto. (p. 152)
O traço do afeto de uma criança por seus pais é revivido na puberdade, indicando o
caminho para sua escolha de um objeto, mas a mesma origem primitiva possibilita
64
desenvolver mais de uma linha sexual, estabelecendo condições muito variadas para sua
escolha de objeto. Assim, os primeiros impulsos após a puberdade são desorientados,
mas não provocam danos permanentes. É com hesitação que a escolha de objeto
encontra seu caminho até o sexo oposto, e a inversão responde a um número não
pequeno de pessoas. Relações competitivas com os pais, educação por pessoas do sexo
masculino, nos homens, e a hostilidade com o próprio sexo, devido à tutela materna
exacerbada, influenciam decisivamente a escolha de objeto homossexual. De acordo
com o psicanalista, a perda prematura de um dos pais e a absorção total do amor da
criança pelo genitor remanescente determinam o sexo da pessoa que será mais tarde
escolhida como objeto sexual e pode abrir caminho para a inversão permanente.
O autor consegue atribuir uma evolução na manifestação sexual masculina que
durante a infância tinha como satisfação o próprio corpo, mas, enquanto púbere, busca
um objeto externo. Ainda no mesmo raciocínio, explicita que “o maior montante de
prazer está ligado ao ato final do processo sexual. O instinto sexual se põe agora a
serviço da função reprodutiva” (Freud, 1905/2016, p. 122).
Partindo da evolução masculina da sexualidade, o psicanalista informa que a
percepção da sexualidade feminina é de que há uma espécie de involução, causada por
uma nova onda de repressão, negando sua sexualidade. Nas palavras do autor: “o
homem é mais coerente, e também mais acessível à nossa compreensão, enquanto na
mulher há inclusive uma espécie de involução” (p. 121).
Assoun (1993) marca o ponto no qual Freud faz referência ao narcisismo da
mulher na puberdade quanto ao desenvolvimento de seu corpo, como se a púbere se
fixasse em seu corpo, de quem ama só a si própria ou prefere fazer-se amar. Ele
esclarece que o surgimento desse corpo de mulher é exaltado, pois pode convocar o
olhar do outro (paterno e, depois, masculino). “O amor pelo outro pode depender da
imagem amorosa por ela despertada — como que a partir do seu nascimento — nesse
outro” (p. XI).
Na continuidade dessa evolução sexual, ele salienta o crescimento dos órgãos
sexuais masculinos e uma mudança da zona erógena feminina do clitóris para a vagina,
enquanto o homem mantém a mesma zona desde a infância. Essas condições se ligam
intimamente à natureza da feminilidade. O autor menciona então a possibilidade de o
corpo feminino gerar um produto (o bebê) e de acolher esse produto para a formação de
65
4.2.3 Latência
Quando o carinho dos pais é bem sucedido ao evitar que o instinto sexual da
criança desperte prematuramente — antes que estejam presentes as condições
físicas da puberdade —, com tal força que a excitação psíquica abre caminho até
o sistema genital de forma inequívoca, então ele pode cumprir sua tarefa de
guiar a criança na escolha do objeto sexual, na época da maturidade. Certamente
que o mais fácil, para a criança, seria escolher como objeto sexual as pessoas
que ama desde a sua infância, com uma libido amortecida, por assim dizer. Com
o adiamento da maturação sexual, porém, ganhou-se tempo para erguer, ao lado
de outras inibições sexuais, a barreira contra o incesto, para acolher as
prescrições morais que excluem expressamente da escolha objetal, como
parentes sanguíneos, as pessoas amadas da infância. A observância dessa
barreira é, antes de tudo, uma exigência cultural da sociedade, que tem de
defender-se contra a absorção, pela família, dos interesses de que necessita para
produzir unidades sociais mais elevadas, e por isso atua, com todos os meios, no
sentido de afrouxar em cada indivíduo, especialmente no jovem, os laços com a
família, que eram os únicos decisivos na infância. (p. 147)
época da puberdade tem que renunciar aos objetos infantis e começar de novo
como corrente sensual. (Freud, 1905/2016, p. 143)
A partir de sua constatação de que a mulher é castrada, o menino pensa que ele
também pode perder seu pênis. Para Freud (1927/2014), essa constatação desperta, no
menino, uma porção de narcisismo de que a natureza dotou esse órgão. Desperta,
portanto, um mecanismo designado pelo psicanalista como a palavra mais antiga da
terminologia da psicanálise, o “recalque”7. Segundo Freud, a percepção permaneceu,
mas uma ação enérgica foi realizada para sustentar a recusa. “Não é certo dizer que a
criança, depois de fazer sua observação da mulher, manteve intacta a crença de que ela
tem um falo. Conservou essa crença, mas também a abandonou” (p. 305). Para o
psicanalista, este conflito entre a percepção e o desejo só é possível pela via do
inconsciente. Na sua psique, a mulher continua tendo um pênis que não é o mesmo
pênis de antes: algo ocupa seu lugar, substituindo-lhe, tornando-se o herdeiro do
interesse que antes era dirigido a ele.
No entanto, uma particularidade, para a mulher, é que, com a constatação da
ausência do pênis (castração) e a consequente percepção da diferença do órgão sexual
de meninos e meninas, ela se sente desfavorecida por não ter um pênis. Dessa forma,
direciona seu olhar à figura paterna, trocando assim de objeto, no intuito de que o pai
possa lhe dar um pênis. Freud (1933/2010) afirma que “a situação feminina se
estabelece apenas quando o desejo pelo pênis, ou seja, quando a criança, conforme uma
velha equivalência simbólica, toma o lugar do pênis” (p. 333). Então, o desejo da
menina de ter um pênis é substituído pelo desejo de ter um bebê, desejo esse que
posteriormente poderá ser realizado através da maternidade.
Vescovi (2021) apresenta a hipótese de que o desejo de ter um filho do pai na
infância é realizado na vida adulta quando a mulher tem um filho. Para a autora, isso
pode ser explicado pela lógica freudiana que versa sobre o desejo da mulher, dessa
forma, o desejo da menininha seria o desejo do pênis que se transforma em desejo de ter
um filho do pai e esse, por sua vez, na vida adulta, passa a ser o desejo de ter um filho.
Desse modo, Freud parece ter encontrado a resposta para o enigma da feminilidade (“O
que quer uma mulher?”), a mulher quer ter um bebê (Vescovi, 2021). A partir dos
esclarecimentos da autora, é possível pensar que a mulher, desde a mais tenra infância,
7
Na edição utilizada para esse texto, a palavra usada é repressão, mas, por entender a palavra “recalque”
como melhor tradução para explicar o processo, optei por usá-la.
71
ventre materno” (p. 175). Dessa forma, a teoria freudiana marca, mais uma vez, a
passividade esperada da mulher e da maternidade como saída mais evidente para o
feminino.
Enfatizando a mãe como primeiro objeto de amor da menina, Freud (1933/2010)
destaca a importância do amor da menina pela sua mãe, na fase pré-edípica, antes de
substituí-la pela figura paterna. Ele ainda explica que a intensidade desse amor pode
comparecer como rejeição, no caso de mulheres homossexuais, no abandono da mãe
como objeto de amor. Nas palavras do autor: “a transposição de ligações afetivas da
mãe como objeto para o pai como objeto constitui o conteúdo principal do
desenvolvimento que levou à feminilidade” (p. 292). Dessa forma, Freud conclui que o
intenso amor da menina direcionado ao pai no complexo de Édipo só é possível por ser
herdeiro desse primeiro objeto de amor que a mãe representou primordialmente.
Interrogo-me quando e por que a menina abandona a mãe, seu primeiro objeto
de amor. Freud responde essa pergunta a partir de três possibilidades. A primeira é
explicada a partir do ciúme que a menina tem de outras pessoas com sua mãe, como
irmãos e até mesmo o próprio pai, esse amor da menina com a mãe requer
exclusividade, mas a mãe pode ser abandonada quando a criança percebe que não é seu
único investimento de amor. Uma segunda possibilidade é a de simplesmente
abandoná-la, já que esse amor não tem meta, ou não encontra uma satisfação plena. A
terceira hipótese abordada por Freud é que, ao se confrontar com a castração, a menina
substitui o objeto materno. Tomando o pai como objeto, dá origem ao complexo de
Édipo (Freud, 1931/2010).
Para Assoun (1993), um fator importante na troca de objeto da menina, passando
da mãe para o pai, é este ter sido o objeto de uma eleição, a menina se decide pelo pai,
deixando para traz a paixão primeira que nutria pela mãe, sendo essa escolha um
movimento próprio da menina. “Um amor que se mantenha na linha, por estar ancorado
no desejo” (p. IX). O psicanalista ainda aponta o pai como o que lhe resta para escolha,
um resto precioso, o último que sobra, e, dessa forma, ela acaba fazendo da realidade
um ideal. “Assim encontrando e forjando razões para amar. É assim que a mulher,
partindo do impossível, torna-se racional” (p. XI).
Vescovi (2021) conclui que a troca de objeto da mãe pelo pai passa pela
impossibilidade de a mãe lhe dar um filho (segundo a autora, a menina deseja a
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princípio um filho da mãe), a menina precisa, então, trocar o objeto da mãe para o pai.
Essa impossibilidade de satisfação da menina por parte da mãe é, sem dúvida, fonte da
ambivalência da relação mãe-filha.
Essa troca implica a operação do recalque, ou seja, a exigência para que a
renúncia à satisfação ocorra (Clemens & Souza, 2020). Para as autoras, o sexual é o
objeto privilegiado do recalque, o sexual, aqui, é o prazer que pode ser obtido a partir do
objeto, bem como a segurança e os cuidados obtidos através do objeto de amor, nesse
caso, a mãe ou o cuidador do bebê. Renunciar a esse objeto é fazer uma renúncia mais
penosa que a renúncia dita sexual.
Freud (1905/2016) interroga a função da amnésia infantil no desenvolvimento
do sujeito, para concluir que a maioria de nós se esquece das experiências sexuais
vivenciadas na infância e esse esquecimento pode contribuir com o estranhamento, no
contexto social, da sexualidade infantil. Nas palavras do autor: “não nos ocorreu, até o
momento, assombrarmo-nos com essa amnésia, mas teríamos boas razões para isso” (p.
75).
É válido interrogar, junto a Freud, qual seria a meta da menina em relação à
mãe. O autor responde que as metas são tanto passivas quanto ativas, desde o ato de
mamar. Inicialmente, o bebê é amamentado pela mãe, mas, em seguida, ele mesmo se
torna ativo na sucção. Também nas brincadeiras infantis, a menina pode passar de
passiva (quando recebe os cuidados da mãe) à ativa, através de representações nas
brincadeiras infantis, enquanto aplica todos os cuidados que normalmente são
direcionados a ela mesma pela mãe (Freud, 1931/2010).
Para o psicanalista, o afastamento da mãe é um passo importante para o
desenvolvimento da menina. Não pode ser visto como mera mudança de objeto, pois os
anseios ativos foram atingidos pelo impedimento de alcance da meta e, portanto, foram
abandonados pela libido. Dessa forma, a troca de objeto de amor, tendo o pai como
objeto, é realizada através de anseios passivos. “O desenvolvimento da feminilidade
está agora livre para a menina, desde que não seja limitado pelos restos da superada
ligação pré-edípica à mãe” (Freud, 1931/2010, p. 303).
O primeiro florescimento da sexualidade infantil já estava fadado ao declínio
pela incompatibilidade entre seus desejos e a realidade, bem como à insuficiência do
estágio infantil do desenvolvimento. Seu declínio foi penoso e doloroso, a perda e o
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Quem vê uma criança largar satisfeita o peito da mãe e adormecer, com faces
rosadas e um sorriso feliz, tem que dizer que essa imagem é exemplar para a
expressão da satisfação sexual na vida posterior. Então a necessidade de repetir a
satisfação sexual se separa da necessidade de nutrição […]. (Freud, 1905/2016,
p. 86)
posição em que poderia preencher o que, também, faltava à mãe. Tal localização
permite ao bebê reconhecer-se no lugar do que supriria a falta insinuada pela mãe, por
meio do que pedia ao filho. Instaura-se, então, um segundo narcisismo, em que a
criança pode se supor como o que falta à mãe, promovido por certas possibilidades de
identificação, de reciprocidade, de ciúme, de frustrações e gratificações.
Desse lugar, franqueia-se então um grande ganho de autonomia para a fala, e
para os deslocamentos da marcha.
Para Freud, então, como a primeiríssima satisfação sexual se dá através da
alimentação, o instinto sexual tem um objeto fora do corpo, o seio da mãe. Esse objeto,
para o bebê, é perdido somente depois, quando é possível para a criança formar uma
ideia total da pessoa a qual pertence o órgão que lhe traz satisfação. Ainda um ponto
importante na relação com esse primeiro objeto é que a criança aprende a amar outras
pessoas (que acolhem seu desamparo e satisfazem suas necessidades), seguindo o
modelo de sua relação com a lactente.
Cada bebê é implicado em um tecido discursivo familiar que precede seu
nascimento: posição, nome e história correlativos às redes de significação são
estabelecidos na família desde antes da sua concepção. Independentemente do momento
particular de vida da mãe ou da família, cada um está implicado numa trama cuja teia
repercute em significações a ele atribuídas. É nesse lugar simbólico, em que é inserido
por meio do agenciamento de seus cuidadores, que o bebê se constituirá singularmente
como sujeito do inconsciente (Lacan, 1954-1955/1985).
Assim, a constituição do sujeito depende das trocas estabelecidas entre o bebê e
aquele que faz função de agente materno, impulsionando um circuito simbólico
complexo: mesmo antes do nascimento, a gestante interage com seu bebê e interpreta
seus movimentos no ventre como uma forma de interação, depositando todo o
investimento da relação com o filho e apostando no sujeito que ele será.
Entretanto, vale lembrar que tal circuito simbólico assim estabelecido determina
não apenas o investimento pulsional e narcísico do agente materno no filho, mas
também o próprio movimento pulsional da criança. Como o suporte fisiológico do
neonato assume estatuto simbólico e imaginário? Essa interrogação me conduz a um
rápido percurso que articule a noção freudiana de Nebenmench (o indivíduo prestativo)
ao conceito de pulsão.
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desse objeto perdido, especialmente quando ele não nasceu? Depois de todas as
suplências, deslocamentos e condensações que tentam compensar a condição de perda
que se inaugura com o próprio advento de um psiquismo que o reatualizam de várias
formas e por tantos meios até chegar à sua perda primeira, constato que, antes de
provocar outras perdas, o filho que não nasceu pode comparecer, no psiquismo materno,
como tamponamento da falta constitutiva da subjetivação. Não é difícil concluir que
esse filho obturador tenha suas faces de impossível real, contemple o ordenamento da
série simbólica materna e adquira consistência imaginária.
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a perda de um filho tomou outra proporção, diferente daquela possível nos séculos XVII
e XVIII (Badinter, 1985).
Talvez seja possível afirmar que o luto de uma mãe que perde um filho é
reconhecido pela sociedade a partir da relação que se estabeleceu entre essa dupla e de
todo o investimento materno que é preciso para cuidar de uma criança. Quando retorno
ao nicho específico da maternidade, aqui investigado, no qual a mãe perde seu bebê
antes mesmo de seu nascimento, busco, na literatura psicanalítica e especialmente em
textos freudianos, os pontos que podem delinear a perda para essa mãe.
Durante a gestação, também há investimento materno, aposta e, particularmente,
há a aproximação dessa mulher com sua própria experiência enquanto bebê de sua mãe,
bem como a aproximação de sua mãe (a partir do momento que a mulher vê a si mesma
como mãe). A proximidade desses bebês e maternidades ainda na esfera do imaginário
me remeteu à revivescência de cada mulher enquanto bebê e ao retorno ao seu primeiro
objeto de amor, sua mãe.
Paul Laurent Assoun (1993) chama a paixão inicial pela mãe de “paixão
primitiva”, um mal de amor originário e incurável. O psicanalista localiza, nas trocas de
objeto da menina, a base para o torna-se mulher. Assoun denomina o amor incurável da
menina pela mãe como um amor sem saída e sem objetivo e, por isso, para não se
entregar a essa loucura e se perder, a menina se vê obrigada a trocar de objeto. Nas
palavras do autor: “é preciso haver uma ‘alternância’ àquele outro amor que era ‘sem
saída’” (p. VII).
Retornando às elaborações de Freud (1915/2010) quanto a saída do processo de
luto, ele afirma que esta se dá a partir do momento no qual o enlutado (a mãe) aceita
que o objeto do luto está morto, mas que ela ainda vive e pode escolher continuar
vivendo. Para o analista, essa seria, portanto, uma saída.
Tomando, como ponto de partida para a saída do luto, a indicação de Freud
(1915/2010), em Luto e melancolia, de que é preciso deixar o objeto morrer para poder
viver, é possível afirmar que a mulher que perde seu filho ainda no ventre não tinha
estabelecido a consideração de aspectos singulares do bebê. A mulher teria apenas uma
construção própria que se aproximava dela mesma enquanto bebê. Como se poderia
supor a construção desse luto? Qual parte, de si própria, será preciso que ela deixe
morrer?
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Anteriormente, a tomada do pai como aquele que vai lhe dar um filho suplantara, desde
a constatação de que a mãe não tem pênis, a descrença na própria teoria até então
formulada pela menina de que seu pênis iria crescer ou de que a mãe lhe daria o órgão.
A perda narcísica da mãe como objeto primário de amor localiza o momento
anterior, em que a criança ainda não diferenciava os sexos e supunha a onipotência
materna, que a protegia e a complementava. Até então, a plenitude da mãe como sua
referência imediata a deixava totalmente à mercê dos caprichos maternos. Fomentada
pelo investimento social que já a situava como menina muito antes de descobrir a
diferença sexual, a criança podia identificar-se à mãe e à referência da posição desta na
família, como demonstram as brincadeiras de casinha a que se dedicava.
Enquanto ainda estava no lugar de infans, antes de distanciar-se suficientemente
da mãe para constituir a imagem desta, em sua consistência onipotente, o seio materno
respondera às urgências do bebê, que o supunha seu, atestando a superação do
desamparo constitutivo, na medida em que o alimentava ao mesmo tempo que o
imantava narcisicamente, edificando os primeiros passos das trocas com a mãe. Todo
esse percurso de substituições entre perdas e ganhos, sempre parciais, retrocede, assim,
até o estabelecimento de uma primeira perda: a do objeto de satisfação.
O movimento da repetição diferida da reprodução do idêntico contempla a
modalidade pela qual os desastres das perdas são procedidos de acontecimentos que as
substituem e que, assim, atenuam-nas. Desse modo, foi possível articular a série que
vai, a posteriori, da perda do filho ao objeto perdido da satisfação, localizando a lacuna
a partir da qual a mulher tece sua constituição.
Se ainda hoje, no contexto social, é preciso construir a possibilidade de
elaboração do luto enquanto mãe de um bebê que não nasceu, isso se justifica pela
construção ainda recente da especificidade da infância em nossa cultura, datada do final
do século XVIII, início do século XIX (Badinter, 1985). Retornando à lógica freudiana:
Dizemos que o ser humano tem originalmente dois objetos sexuais: ele próprio e
a mulher que o cria e nisso pressupomos o narcisismo primário de todo
indivíduo, que eventualmente pode se expressar de maneira dominante em sua
escolha de objeto. (Freud, 1914/2010, p. 33)
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