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eBook

EPIDEMIOLOGIA
DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

Manuel Carmo Gomes


EPIDEMIOLOGIA
DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

Manuel Carmo Gomes

Prefácio
Francisco Antunes
Título
Epidemiologia das doenças infecciosas

Autor
Manuel Carmo Gomes

Prefácio
Francisco Antunes

Capa
Pormenor de Plague in an Ancient City (c.1650-52), de Michael
Sweerts. Los Angeles County Museum of Art / Wikimedia commons

Edição
Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa
Av. Professor Egas Moniz, 1649-028 Lisboa
http://www.aefml.pt | [email protected]

ISBN 978-989-98104-6-4 (eBook)

A publicação deste livro resulta de uma parceria entre a


Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa e o
Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa.

Outubro de 2021 © Autor


ÍNDICE

Prefácio 13

Introdução histórica
1. Doenças transmissíveis na História da Humanidade 17
2. De Jenner, Pasteur e Koch à actualidade: fim do fatalismo 25
e início dos programas de controlo de doenças transmissíveis
3. Vacinação em massa e controlo de doenças infecciosas 29
4. História da compreensão e previsão de epidemias 31

Diversidade das doenças infecciosas


5. Doenças infecciosas e agentes etiológicos 37
6. Condições para a infecção 40
7. Formas de transmissão de microparasitas 41
8. Períodos de latência, incubação e infecciosidade. Recupera- 45
ção da infecção
Transmissão da infecção
9. Terminologia básica dos modelos para microparasitas 52
10. Modelação da transmissão: Contactos, incidência e força 55
de infecção
11. Anatomia dos contactos 58
12. Número básico de reprodução da infecção (R0 ) e número 61
de efectivos de reprodução
13. Anatomia de uma epidemia 64

Vacinação: Porque razão é tão difícil eliminar doenças


transmissíveis?
14. Vacinação e imunização 68
15. Imunidade de grupo 71
16. Dificuldade de eliminação de doenças infecciosas 74
17. SARS-CoV-2 78
9

Prof. Doutor Manuel Carmo Gomes | Doutorou-se em Biologia, em 1991, na


Memorial University of Newfoundland, Canada, e é Mestre em Probabilidades
e Estatística pela Universidade de Lisboa (1987). Presentemente, é Professor
Associado com agregação na Faculdade de Ciências da Universidade de Lis-
boa, onde tem uma experiência de 35 anos de ensino e supervisão de alunos
nas áreas de Dinâmica Populacional, Demografia, Epidemiologia, Dinâmica de
Doenças Transmissíveis e tratamento de dados em Biologia.

Iniciou colaboração com a Direcção Geral da Saúde (DGS) em 1995, sendo um


dos membros permanentes da Comissão Técnica de Vacinação (CTV), orgão
consultivo da DGS que desde 1998 supervisiona a vacinação em Portugal, com
destaque para o Programa Nacional de Vacinação. No âmbito da CTV, esteve
directamente envolvido nos programas de controlo do sarampo, tosse convul-
sa, meningite meningocócica, papiloma vírus humano (VPH) e pneumococo.
Desenvovleu colaboração com a DGS em outras áreas epidemiológicas, no-
meadamente, a mortalidade materna e a interrupção voluntária da gravidez.
Na recente pandemia COVID-19, participa desde Fevereiro 2020 em várias
iniciativas conjuntas com a DGS e o Instituto Ricardo Jorge, sendo membro
da CTVC-C (Comissão Técnica de Vacinação COVID-19), visando o acompanha-
mento da epidemiologia da doença e o auxílio às autoridades de saúde na
tomada de decisões.
10
11

Mantém como interesses científicos a Epidemiologia, o controlo de doenças


transmissíveis por vacinação e os métodos estatísticos em ciências da saúde.
É autor em dezenas de artigos peer-reviewed e de textos de divulgação sobre
vacinação e doenças transmissíveis.

Orcid ID: 0000-0002-2679-0974; Researcher ID: F-9633-2011; Scopus au-


thor ID: 36913958800

Publicações mais recentes em Doenças Infecciosas:

Viana J, Van Dorp CH, Nunes A, Gomes MC, Van Boven M, Kretzschmar ME,
Veldhoen M, Rozhnova G (2021). Controlling the pandemic during the SAR-
S-CoV-2 vaccination rollout: a modeling study. Nature Communications 12(1):
3674.

Monteiro S, Rente D, Cunha M, Gomes MC, Marques T, Lourenço A, Cardoso E,


Alvaro P, Silva M, Coelho N, Vilaça J, Meireles F, Brôco N, Carvalho M, Santos R
(2021). A Wastewater-based Epidemiology tool for COVID-19 Surveillance in
Portugal. https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2021.07.21.21260905v1

Gomes MC, Nunes A, Nogueira J, Rebelo C, Viana J, Rozhnova G (2020). Editorial:


Previsões sobre o futuro da pandemia: o papel dos modelos matemáticos. Acta
Médica Portuguesa Nov; 33(11):713-715. https://doi.org/10.20344/amp.15049
13

PREFÁCIO

Francisco Antunes*

A epidemiologia das doenças infecciosas é o estudo


dos factores que contribuem para a compreensão de como
as infecções emergem e se propagam e como se podem
prevenir e controlar. Os métodos epidemiológicos são usa-
dos para detectar os agentes patogénicos, determinar a sua
causalidade, compreender a patogénese e a história natural
das infecções e identificar as medidas para delinear inter-
venções eficazes para a prevenção e controlo. Pela sua rele-
vância, em particular no ensino das doenças infecciosas, no
16.º Curso de Pós-graduação em Doenças Infecciosas uma
das aulas é dedicada a este tema.
O Prof. Manuel Carmo Gomes tem mais de 35 anos
de experiência em Epidemiologia, em particular no âmbito

* Professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade


de Lisboa. Ex-director do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de San-
ta Maria, CHULN. Investigador-coordenador do grupo de investigação «Am-
biente e doenças infecciosas», do Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa.
14
15

da Comissão Técnica de Vacinação, envolvido nos progra-


mas de controlo do sarampo, tosse convulsa, meningite me-
ningocócica, vírus do papiloma humano e pneumococo e
é uma das figuras de maior visibilidade e credibilidade no
acompanhamento da pandemia COVID-19. A sua participa-
ção como docente do 16.º Curso de Pós-Graduação em Do-
enças Infecciosas é uma mais valia para a compreensão da
emergência e re-emergência das doenças infecciosas, como
ameaça à saúde pública a nível global.
A publicação deste eBook, da autoria do Prof. Manuel
Carmo Gomes, permite que os alunos e outros interessados
na Epidemiologia das Doenças Infecciossas tenham dis-
ponível para consulta uma fonte de informação que lhes
permita conhecer ou actualizar os conhecimentos sobre a
dinâmica das doenças transmissíveis ao longo da história
da humanidade.

Once civilisation has begun, the disease load that it harbours beco-
me one of the major weapons of its expansion
—William H. McNeill (1976). Plagues and people.

A edição deste eBook só foi possível pelo apoio que foi dado pela Associação
dos Estudantes da Faculdade de Medicina e pelo Instituto de Saúde Ambiental,
da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Um agradecimento muito
especial ao Dr. Ricardo Santos do Instituto de Saúde Ambiental, da Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa, pelo seu saber, disponibilidade e grande
entusiasmo com que abraçou a edição deste eBook.
17

INTRODUÇÃO HISTÓRICA

1 Doenças transmissíveis na História da


Humanidade
O parasitismo e as doenças transmissíveis são fenó-
menos naturais desde que existe vida na Terra. Os parasitas
causadores de doenças infecciosas em humanos evoluíram
a partir de parasitas de hospedeiros não humanos, nome-
adamente mamíferos, aves e artrópodes. O espectacular
sucesso dos humanos em dominar a ecologia do planeta,
teve como consequência que os próprios, os seus animais
domésticos e culturas passassem a fornecer um recurso na-
tural sem precedentes para os parasitas explorarem. Não
surpreende que os parasitas tenham evoluído e continuem
a evoluir para explorar este recurso, com o consequen-
te aparecimento de doenças, ditas emergentes, de que a
infecção por vírus da imunodeficiência humana (VIH) e a
18

síndrome de imunodeficiência adquirida (sida), os coronaví-


rus responsáveis pela síndrome respiratória aguda (SARS e
SARS-CoV-2) e o vírus da gripe H5N1 são, apenas, exemplos
muito recentes.
As doenças infecciosas, aqui designadas por doenças
transmissíveis, tiveram um papel na história da humanida-
de nem sempre devidamente apreciado. Desde que os ho-
minídeos primitivos desceram de uma vida predominante-
mente arborícola e o bipedismo se generalizou, há mais de
um milhão de anos, podem-se considerar quatro grandes
períodos na história das relações entre as doenças trans-
missíveis e a humanidade.

Da emergência dos hominídeos


ao Neolítico: os caçadores-colectores
O primeiro período foi o mais longo, abrangendo a pre-
sença do Homo erectus, dos Neandertais e, há 90 a 100 mil
anos, a emergência do Homo sapiens na Terra. Estes caçadores-
-colectores nómadas viviam em bandos de algumas dezenas ou
talvez centenas de elementos. Percorriam áreas relativamente
vastas e a sua densidade populacional era muito baixa. Inca-
pazes de preservar alimentos, deslocavam-se continuamente.
Não viviam em permanência perto de dejectos, fezes ou água
poluída pela civilização. Os seus bandos teriam contactos oca-
sionais uns com os outros, eventualmente haveria reuniões
para comércio ou rituais, mas as comunidades eram dema-
siado pequenas para sustentar as doenças características das
grandes populações – doenças como o sarampo, parotidite,
19

rubéola, tosse convulsa, febre tifóide, varíola ou mesmo a gripe


deviam ser praticamente inexistentes.
Eram contudo afectados por uma formidável quantida-
de de zoonoses, contraídas a partir da manipulação e consu-
mo de carne crua. Deviam, também, transportar quantidade
considerável de macroparasitas (e.g. céstodes, nematodes e
tremátodes). É provável que fossem comuns doenças como
o botulismo, carbúnculo, toxoplasmose, brucelose, tularémia,
leptospirose e triquinose. Predominavam as doenças crónicas
sobre as agudas e as epidemias com alta letalidade deviam ser
raras. Os agrupamentos deviam estar bastante afastados e em
movimento frequente, impedindo que um surto local se trans-
formasse em epidemia. Estes nómadas eram relativamente sau-
dáveis, quando em comparação com os padrões mais baixos
dos países subdesenvolvidos da actualidade. Durante este perí-
odo longo de nomadismo, as principais causas de morte foram
os acidentes, os ferimentos e as complicações daí derivadas.
Estima-se que a sua longevidade média rondasse os 40 anos
de idade.

Da revolução do Neolítico à Idade do


Bronze (cerca de -2500 anos)

O segundo período iniciou-se há 10-12 mil anos, com


a revolução agrícola do Neolítico – um período em que os
historiadores estimam que o planeta era habitado por cerca de
quatro milhões de humanos. O sedentarismo, a domesticação
de animais e os primórdios da agricultura dão início a uma
revolução epidemiológica de grandes dimensões, associada à
20

emergência de inúmeras doenças novas. Existem indícios de


que há cinco mil anos se iniciou a lavra da terra no velho mun-
do (médio oriente e vale do Nilo) e há quatro mil anos ini-
ciou-se a irrigação sistemática nos vales de grandes rios, como
Tigre e Eufrates, Nilo, Amarelo e Indo (no actual Paquistão).
Passa a haver contacto contínuo entre humanos e espécies que
variam de insectos a macacos. A irrigação, a lavra e a domesti-
cação são um convite ao contacto com agentes etiológicos no-
vos através dos vectores que os transportam – com destaque
para mosquitos, carraças e pulgas. A irrigação espalha formas
do ciclo de vida de parasitas que são libertados nas fezes e
na urina e as poças de água são meios de cultura de larvas
de mosquito. Dá-se a ascensão de doenças transportadas por
artrópodes (e.g. malária e doença do sono) e por água conta-
minada (e.g. schistosomose, shigelose, talvez a cólera e vários
agentes causadores de diarreia).
Neste período, surgem as primeiras multidões urbanas
e com elas aumentam os surtos de doenças que necessitam
de comunidades de grandes dimensões para se susterem. No
agricultor do Neolítico, doenças como gripe, varíola, sarampo
e parotidite devem ter começado como zoonoses esporádi-
cas a partir de animais domésticos, mas não devem ter tido
sustentabilidade mantida antes da população aumentar (estas
doenças têm requisitos de densidade populacional mínima,
sem o que desaparecem após um surto epidémico). Trata-se
de um período de adaptação de muitos agentes etiológicos
ao homem. Estimativas baseadas no conhecimento actual das
zoonoses, apontam para a partilha de cerca de 300 agentes
etiológicos com as espécies domesticadas e cerca de 100 com
21

as espécies selvagens. É provável que o Neolítico tenha sido o


principal período em que se deu esta adaptação. No Neolítico,
as doenças transmissíveis tornam-se, pela primeira vez, a prin-
cipal causa de morte nas comunidades humanas.

Da idade do bronze ao século xix


O terceiro período tem o seu início na idade do Bronze,
atravessa a idade do Ferro, a antiguidade clássica e chega aos
tempos modernos. Há 2500 anos antes da nossa era, a popula-
ção humana no planeta atinge cerca de 100 milhões de indiví-
duos, um salto notável desde os cinco milhões estimados para
o fim do Neolítico. Nos 700 anos seguintes duplicou. Surgem
cidades com cerca de 100 mil habitantes – as primeiras das quais
no vale do Tigre e do Eufrates, como Ur e Babilónia, ao longo
do Nilo, dos rios Indo e Amarelo. Estas cidades tornam-se capa-
zes de suportar verdadeiras epidemias. Na verdade, as grandes
urbes incrementam extraordinariamente todo o tipo de meca-
nismos de transmissão, nomeadamente por partículas infecio-
sas aerotranportadas, água contaminada, artrópodes vectores e
contactos íntimos. Simultaneamente, através do nascimento for-
necem um fluxo permanente de novos indivíduos susceptíveis,
os quais permitem a sustentação das doenças transmissíveis na
comunidade. Dá-se a explosão de doenças, como a varíola, o
sarampo, o tifo, a cólera e todos os tipos de doenças endémicas
dependentes da presença de grandes populações – as chamadas
crowd diseases na literatura anglo-saxónica.
Nos dois mil anos seguintes, a Europa, o Médio Oriente
e as Américas são testemunhas de pandemias de dimensões
22

dantescas, resultado da chegada de agentes infecciosos oriun-


dos de uma região do planeta a outras regiões, onde as popula-
ções eram inteiramente susceptíveis. Quando doenças actual-
mente familiares, como a varíola (hoje desaparecida), sarampo,
varicela, escarlatina e rubéola atingiram, pela primeira vez, as
grandes cidades da bacia do Mediterrâneo, vindas da Ásia Cen-
tral, Norte de África, Pérsia e Índia encontraram uma popula-
ção totalmente susceptível e foram arrasadoras. São numero-
sas as referências ao papel histórico das epidemias causadas
por doenças transmissíveis na antiguidade clássica e na Europa
Medieval. O sarampo e a varíola, suspeitas de envolvimento
na «grande praga» de Atenas e nas «pragas Antoninas», foram
particularmente devastadoras e, mais tarde, tornar-se-iam as
armas do colonialismo europeu nas Américas. Seguiu-se a pes-
te, a cólera e o tifo.
No século ii DC, as chamadas «pragas Antoninas» (pos-
sivelmente sarampo e varíola) invadiram o império romano,
causando grande mortalidade e perturbações económicas, que
desorganizaram o império e facilitaram as invasões bárbaras. O
império Han, na China, colapsou no século iii DC, após uma sequ-
ência de acontecimentos parecida. A derrota duma população de
milhões de Aztecas por Cortez e os seus 600 seguidores é, em
parte, explicada por uma epidemia de varíola que devastou os Az-
tecas, mas quase não afectou os espanhóis, dada a sua imunidade
adquirida na Europa. Os Aztecas não só sofreram mortalidades
elevadas como foram vítimas da ignorância, ao interpretarem a
epidemia como um favorecimento dos invasores pelos deuses. A
varíola propagou-se depois para sul, afectando os Incas, no Perú, e
beneficiando o sucesso de Pizarro poucos anos depois. À varíola
23

seguiu-se o sarampo e a difteria, importadas da Europa para a


América do Norte com efeitos devastadores nos nativos.
Na Europa, a peste bubónica ou «morte negra» foi tal-
vez a doença transmissível que maior terror inspirou ao longo
dos séculos. A peste já tinha chegado à Europa no século vi, na
época do imperador romano Justiniano, mas são melhor co-
nhecidas as vagas originadas a partir da Ásia durante o século
xiv, a partir de 1346. Estima-se que tenham causado a morte
de quase ⅓ da população europeia entre 1346 e 1350. Uma
tragédia de dimensões quase inimagináveis. A doença reapare-
ceu periodicamente, em várias partes da Europa ao longo de
mais de 400 anos. Por exemplo, em Londres, a «grande peste»
(1664-1666) liquidou cerca de ¼ da população da cidade; du-
rante a epidemia de França (1720-1722) morreu metade da
população de Marselha, 60% da cidade vizinha de Toulon e 44%
da população de Arles. As consequências políticas e económi-
cas, na Europa Medieval, foram tremendas, mas os mecanismos
de transmissão da peste nunca foram compreendidos na épo-
ca. No século xvii, existem relatos de vilas e pequenas cidades
infectadas que eram persuadidas a efectuar quarentenas, para
evitar a propagação da doença, mas esta medida não era eficaz.
A peste é transmitida entre os ratos, através das suas pulgas.
Quando um rato infectado é mordido por uma pulga e a infec-
ta, esta torna-se extremamente voraz e morde repetidamente
o rato hospedeiro, disseminando a doença pelo corpo do ani-
mal. Quando o rato morre, as pulgas deslocam-se para outros
ratos, espalhando a doença. À medida que as pulgas aumentam
e os ratos diminuem, aquelas deslocam-se então para os hos-
pedeiros humanos, dando início a uma epidemia, tal como as
24

conhecemos. Nos humanos, numa fase mais avançada da epide-


mia, pode surgir a forma pneumónica de peste, a qual pode-se
transmitir directamente entre indivíduos. As quarentenas não
são eficazes porque não evitam a propagação da peste pelos
ratos e respectivas pulgas. Uma das principais razões para a
importação da peste, a partir da Ásia, foi a passagem de mui-
tos navios comerciais, os quais, nos tempos medievais, estavam
invariavelmente infestados de ratos. Os navios com doentes
ficavam ancorados ao largo, mas os ratos vinham para terra em
pequenas embarcações de abastecimentos.
As grandes epidemias chegaram a reduzir populações da
euroásia em metade ou mesmo a ⅔. Em cerca de 150 anos (sé-
culos xvi-xvii), as populações nativas das Américas foram redu-
zidas a cerca de 10%. No México, por exemplo, estima-se que,
entre 1519 e 1530, a população índia foi reduzida de 30 para
três milhões de indivíduos. Com o tempo, acabou por ocorrer
um processo de homogeneização global da distribuição dos
microparasitas patogénicos no mundo. Esta homogeneização
aparenta ter ocorrido ao longo de grandes bandas latitudinais,
havendo cada vez menos populações inteiramente «virgens» a
infecções que existam na mesma banda de latitude.
Existe uma mensagem importante a reter da História.
Sempre que os humanos entraram em contacto com ecossis-
temas diferentes – quer directamente, penetrando num novo
habitat, quer indirectamente, através do contacto com indiví-
duos (humanos ou não) oriundos de um habitat diferente –
estabeleceram-se condições para os microparasitas invadirem
o recurso formado pelos novos hospedeiros, inteiramente
susceptíveis à infecção. Seguiram-se situações dramáticas de
25

morbilidade e de mortalidade, por vezes devastadoras. Após


um período mais ou menos longo de contacto contínuo, pa-
rasitas e hospedeiros acabam por se adaptar gradual e mu-
tuamente. A patogenicidade do parasita acaba por diminuir e,
por vezes, desaparece totalmente. Há vários exemplos, alguns
bem recentes que ilustram este processo. Foi isto que se pas-
sou quando os europeus chegaram às Américas e quando a
peste bubónica chegou à Europa em embarcações oriundas
do Oriente. No caso da peste, nunca chegou a haver um pro-
cesso de adaptação ao microparasita porque, após uma grande
epidemia, este refugia-se por longos períodos nos seus hospe-
deiros alternativos, pulgas e ratos, perdendo o contacto com
os humanos. Um fenómeno mais recente são as febres hemor-
rágicas tropicais (e.g. ébola, doença de Marburg, febre boliviana
e febre venezuelana), suspeitas de estarem associadas à pene-
tração de humanos na floresta tropical e, finalmente, a própria
infecção por VIH, suspeita de ter sido originada por contactos
quer físicos, quer fágicos, com macacos destas regiões.

2 De Jenner, Pasteur e Koch à actualidade:


fim do fatalismo e início dos programas
de controlo de doenças transmissíveis
Apesar de ter havido um declínio generalizado da
mortalidade na Europa, ao longo dos séculos xviii e xix,
paradoxalmente a frequência e magnitude das epidemias
aumentou, devido ao crescimento imenso dos centros ur-
banos, associado à crescente industrialização das socie-
dades. A grande reversão dos fenómenos epidémicos, que
26

testemunhámos em especial no decorrer do século xx, de-


veu-se à conjugação de algumas descobertas biomédicas,
num espaço de tempo relativamente curto. A relevância his-
tórica destes episódios é transversal à história da medicina,
da epidemiologia e da biologia. A eles estão associados os
nomes de Edward Jenner, John Snow, Louis Pasteur, Robert
Koch e Alexandre Flemming. As suas descobertas alteraram,
por completo, o fatalismo, que desde há, pelo menos, um
milhão de anos estava associado às doenças infecciosas na
vida dos hominídeos.
Em 1798, o médico inglês Edward Jenner investigou
a crença, comum entre os camponeses, de que os trabalha-
dores que lidavam com vacas doentes por varíola, a cha-
mada cowpox, desenvolviam pústulas semelhantes às dos
animais (uma condição benigna conhecida por vaccinia, do
latim vacca), não eram contagiados com a varíola. Jenner
inoculou um rapaz de oito anos saudável, que nunca tinha
tido nem varíola nem vaccinia, com pús de cowpox. O rapaz
teve sintomas benignos de vaccinia e, posteriormente, foi
inoculado com o vírus da varíola humana, mas não desen-
volveu a doença. Em resultado dessa observação, o vírus
causador da cowpox passou a substituir o vírus da varíola
na chamada técnica de variolação, que se praticava na Eu-
ropa, por importação do oriente. A variolação era a fricção
da pele de indivíduos saudáveis com tecido de pústulas
de varíola retirado de doentes, mas originava demasiadas
reacções adversas. A variolação com cowpox era benigna,
fenómeno que hoje é explicado pela menor infecciosidade
do vírus das vacas e pela sua introdução no corpo humano
27

através de uma via diferente da natural – a pele, em vez da


inalação – o que dá mais tempo ao sistema imunitário para
desenvolver defesas eficazes antes do vírus se multiplicar.
O sucesso de Jenner teve por consequência a inven-
ção da vacinação, tal como a conhecemos hoje. Jenner ino-
culou vários dos seus doentes e o mesmo fizeram outros
médicos contemporâneos, em toda a Europa. As primeiras
inoculações do vírus eram feitas directamente através da
pele, utilizando fragmentos de pústulas de cowpox. Só no
limiar do século xix é que o processo toma maiores dimen-
sões, com a cultura do vírus – também designada por vac-
cinia – na pele de bezerros e posteriormente usada para
várias inoculações. Esta técnica, conhecida por vacinação
(de vaccinia), estendeu-se à América em 1800 e, em 1805,
Napoleão Bonaparte ordenou a vacinação de todos os sol-
dados franceses. Cerca de 170 anos mais tarde, o vírus da
varíola seria erradicado do planeta, um dos maiores feitos
de sempre da medicina preventiva.
Em 1854, John Snow associou uma doença infecciosa
importante a um factor de risco. Após mapear os casos de
cólera em Londres, Snow observou que os surtos da doença
se distribuíam espacialmente em torno de certas fontes de
água, onde a população se abastecia. Concluiu que a cólera
era um «gérmen» invisível, presente na água, que provoca-
va a doença nas pessoas. A suspeita foi testada através do
encerramento destas fontes de abastecimento, com conse-
quente diminuição da incidência de cólera na população.
No tempo de Jenner, não tinha sido estabelecida,
ainda, uma relação de causa-efeito entre a presença de
28

microrganismos patogénicos e as doenças. Havia a suspei-


ta da existência de microrganismos e do seu possível papel
causador de doenças. O holandês Anton van Leeuwenhoek
(1632-1723) construiu os primeiros microscópios e demons-
trou que os microrganismos de facto existem, dando maior
suporte à «teoria dos germens» que circulava na época. A
relação causa-efeito foi estabelecida, apenas, em finais da
década de 1870 por Pasteur e Koch. No curto período que
decorre entre 1870 e 1885, aqueles estabelecem cientifica-
mente, pela primeira vez, uma relação entre microrganismos
e doenças. Pasteur isolou o bacilo do carbúnculo e desen-
volveu uma vacina com antitoxina contra a raiva. Koch, em
1882, isolou o bacilo da tuberculose e, em 1883, identificou
o vibrião da cólera. Foi a primeira vez que a humanidade
adquiriu uma compreensão científica da causa das doenças
infecciosas, iniciando-se uma era completamente nova para
a medicina.
Louis Pasteur descobriu, também, que culturas anti-
gas da bactéria causadora da cólera em galinhas, nas quais
o meio de cultura não tinha sido regularmente renovado,
causavam uma infecção muito moderada de cólera quando
inoculadas nas galinhas. As velhas culturas revelaram-se,
portanto, muito menos patogénicas (o termo hoje usado
é «atenuadas») para as galinhas. Para homenagear Jenner,
Pasteur deu, então, o nome de vacina (como o «vírus da vac-
cinia» de Jenner) a qualquer preparação dum agente pa-
togénico atenuado, que fosse depois usada para imunizar
contra uma doença infecciosa. Por volta de 1885, Pasteur
desenvolve a vacina e o tratamento contra a raiva, uma
29

doença vírica fatal, transmissível, em geral, ao homem pela


mordedura de um mamífero infectado.
Em 1928, Alexandre Flemming descobre, acidental-
mente, a acção bactericida da penicilina, abrindo a porta à
descoberta dos antibióticos. A mortalidade causada pelas
infecções bacterianas caiu drásticamente, especialmente a
partir da década de 1940. Esta sucessão de vitórias, asso-
ciada à implementação e sucesso dos programas de vacina-
ção em massa, causou a falsa impressão de que as doenças
infecciosas poderiam ser um assunto que em breve faria
parte da arqueologia médica.

3 Vacinação em massa e controlo de


doenças infecciosas
Desde Edward Jenner, o desenvolvimento, ensaio, e
licenciamento de novas vacinas, não mais parou (Tabela 1).
Desde meados do século xx, a vacinação em massa tem per-
mitido manter sob controle mais de uma dezena de doenças
infecciosas humanas, pelo menos nos países industrializa-
dos. Apesar de não terem a sofisticação das vacinas actuais,
as vacinas anteriores à Segunda Guerra Mundial foram su-
ficientemente eficazes para reduzir drasticamente a mor-
bilidade e mortalidade causada por várias doenças, dando
credibilidade aos programas de prevenção contra doenças
infecciosas. A primeira administração à escala mundial de
uma vacina iniciou-se, em 1956, com a vacina da varíola e
teve o patrocínio da Organização Mundial de Saúde (OMS).
O objectivo era a erradicação e foi conseguido. O último
30

caso conhecido de varíola ocorreu na Somália, em 1977.


Animados pelo sucesso, muitos países desenvolvidos insti-
tuíram programas nacionais de vacinação (PNVs) universais
e gratuitos, ao longo da segunda metade do século xx.
Portugal iniciou o seu PNV em 1965, com cinco vaci-
nas (poliomielite, tosse convulsa, difteria, tétano e varíola)
e, desde então, o PNV português não parou de se expandir.
Em 2006, o PNV português foi, mais uma vez, actualizado,
com a introdução da nova vacina contra o meningococo-C,
a passagem da polio oral a injectável e a substituição da
pertussis celular pela acelular. Portugal é um dos países de
maior sucesso vacinal quer em termos de adesão da popu-
lação à vacinação, quer em termos de controlo documenta-
do de doenças infecciosas por vacinação. Portugal faz parte
dos países que declarou oficialmente a eliminação da po-
liomielite em Junho de 2002 e, desde 1999-2000, existem
razões para crer que o sarampo endógeno foi eliminado.
Doenças como a difteria, a rubéola, a parotidite e o tétano,
embora não eliminadas, podem-se considerar sob controlo,
no País. Estas são as doenças para as quais dispomos desde
há décadas de vacinas eficazes no PNV.
Ao contrário da vitória sobre a varíola, nunca o mundo
esteve próximo de conseguir a erradicação global de outra
doença infecciosa. Por que razão é tão difícil eliminar do-
enças infecciosas? Dever-se-ia esperar que tivéssemos já
conseguido alcançar esse objectivo unicamente com base
no sucesso dos PNVs? Há já algumas décadas que se conhe-
ce a resposta a estas perguntas, mas por agora fica adiada.
31

4 História da compreensão e previsão de


epidemias

A tentativa de compreender as causas das epidemias


e a previsão das mesmas tem uma história muito longa, que
remonta, pelo menos, à antiguidade clássica. Hipócrates
(459-377 AD) no seu ensaio Ares, Águas e Locais escreveu
que o temperamento, os hábitos pessoais e o ambiente
eram factores a ter em conta no aparecimento de epidemias,
uma observação ainda muito actual hoje em dia. Howe, em
1865, escreveu um livro sobre doenças epidémicas em que
enumerava em 31 pontos as «Leis da Pestilência». Entre
estes, o número dois é típico, pois pretende correlacionar
«O intervalo entre visitas periódicas da doença» (os surtos
epidémicos) com as revoluções da Lua em torno da Terra.
Os modelos explicativos, encontrados ao longo do tempo
para as epidemias, foram variados e ricos de imaginação.
Desde os menos inspirados, que se limitaram a atribuir a
responsabilidade das epidemias a deuses descontentes,
até aos sistemas de equações matemáticas, mais ou menos
complicados, que se utilizam actualmente, passando pelas
explicações pretensiosamente científicas, como é o caso da
de Howe, houve um caminho longo e tortuoso a percorrer.
Tortuoso porque a justeza das explicações encontradas não
evoluiu linearmente com o tempo. Compare-se, por exem-
plo, a sensatez da observação de Hipócrates com algumas
das explicações do princípio da década de 80 (do século
passado), que atribuíam a sida a um castigo divino.
32

Tabela 1 | Algumas das principais vacinas e respectiva data de desenvolvi-


mento

1798 Varíola 1974 Meningo-C


1885 Raiva 1981 Hepatite B
1897 Peste 1985 Haemophilus influenzae
1923 Difteria 1989 Tifóide
1926 Tosse convulsa 1991 Pertussis (acelular)
1927 Tuberculose 1999 Meningo-C (conjugada)
1927 Tétano 2006 Rotavirus
1935 Febre amarela 2006 Vírus do papiloma huma-
no (VPH)
1955 Polio injectável
1962 Polio oral 2009 Influenza H1N1
1964 Sarampo 2010 Pneumococo (conjugada)
1967 Parotidite 2013 Meningococo B
1970 Rubéola 2019 Ebola
1970 Carbúnculo (anthrax) 2019 Dengue
1974 Varicela 2020 SARS-CoV-2

A teoria epidemiológica moderna tem as suas raízes


nos princípios do século xx, pouco tempo depois de Pasteur,
Joseph Lister e Koch terem libertado as ciências biomé-
dicas das explicações baseadas em «miasmas» e «humo-
res» invisíveis, esclarecendo os mecanismos de contágio
elementares através dos quais os agentes infecciosos se
podem espalhar na população. Este conhecimento, aliado
33

à análise estatística dos dados epidemiológicos, consti-


tuiu os alicerces do futuro desenvolvimento da teoria ao
longo de todo o século. Roy Anderson (1982) atribuiu a
primeira grande contribuição para a epidemiologia teórica
a William Hamer (1906), que postulou uma associação en-
tre a evolução de uma epidemia e a taxa de contacto entre
indivíduos susceptíveis e indivíduos infecciosos. O traba-
lho de Hamer foi posteriormente desenvolvido por Ronald
Ross (conhecido pela descoberta do papel dos mosquitos
na transmissão da malária), numa série de publicações
pioneiras, entre 1911 e 1917, sobre a dinâmica da malária.
As ideias de Hamer e Ross foram exploradas por George
Soper (1929), que deduziu mecanismos responsáveis pelo
carácter periódico dos surtos epidémicos de várias doen-
ças e por William Kermack e Anderson McKendrick (1927),
autores do importante threshold theorems ou teorema da
densidade-limite. Segundo este teorema, a introdução de
indivíduos infectados numa população de hospedeiros
não originará um surto epidémico, a menos que a densi-
dade populacional dos susceptíveis ultrapasse um certo
valor crítico mínimo. O postulado de Hamer e os threshold
theorems são, actualmente, noções centrais da teoria ma-
temática da epidemiologia moderna.
Existe, actualmente, uma importante e relativamen-
te sofisticada literatura que pretende descrever, explicar
e prever os processos epidemiológicos nas populações. O
grosso desta literatura é dedicado à população humana o
que, em parte, se justifica pela importância que as doenças
transmissíveis têm, ainda, como causa de mortalidade na
34

nossa espécie. Não obstante, existe, ainda, muita relutân-


cia por parte de quem ensina e investiga em medicina em
recorrer às áreas da demografia matemática, da estatística
e da epidemiologia teórica, com o objectivo de interpretar
os padrões observados de propagação das infecções e de
planear e prever as consequências de programas para o
controle da doença. Uma possível explicação reside talvez
no hermetismo matemático em que a maior parte desta
literatura ainda está encerrada, pouco ou nada virada para
objectivos práticos de interpretação de dados reais. A ver-
dade, contudo, é que a relação entre uma infecção a nível
individual e a dinâmica da mesma infecção ao nível da po-
pulação, encerra aspectos que o médico mais experiente
teria dificuldade em intuir sem o auxílio de instrumentos
matemáticos.

Literatura

Sobre as doenças infecciosas na História da humanidade

Karlen A. 1995. Man and Microbes. Disease and Plagues in


History and Modern Times. Touchstone books, Simon
& Schuster, NY
McNeill WH. 1976. Plagues and People. Anchor Books, NY
Oldstone MBA. 1998. Viruses, Plagues, & History. Oxford Uni-
versity Press, Oxford.

Três livros fascinantes sobre o papel das doenças infeccio-


sas na história da humanidade. A escrita situa-se entre a
35

história da ciência e a divulgação científica. São bons livros


para férias ou fim-de-semana prolongado. A minha prefe-
rência vai para Karlen – é densamente informativo e útil.
McNeill é um professor de História e o seu livro tornou-se
um clássico, mas tem várias inexactidões técnicas.

Outras referências citadas

Anderson RM. 1982. Directly transmitted viral and bacte-


rial infections of man, p 1-37 In: Anderson RM (ed.)
Population Dynamics of Infectious Diseases. Theory and
Applications. Chapman and Hall, NY.
Hamer. 1906. Epidemic disease in England. Lancet, 1:733-
739
Kermack WO and McKendrick AG. 1927. A contribution to
the mathematical theory of epidemics. Proc Roy Soc
A 115:700-721.
Soper HE. 1929. Interpretation of periodicity in disease pre-
valence. J Royal Statistical Society 92:34-73.

O livro de Anderson é fácil de obter. As outras três refe-


rências são citadas por Anderson e por outros livros. São
demasiado antigas para se obterem com facilidade.
37

DIVERSIDADE DAS DOENÇAS


TRANSMISSÍVEIS

5 Doenças infecciosas e agentes etiológicos


Como em quase toda a literatura, doenças transmis-
síveis e doenças infecciosas são considerados sinónimos. O
dicionário de epidemiologia de John Last define uma doença
infecciosa da seguinte forma:

A illness due to a specific infectious agent or its toxic products that arises
through transmission of that agent or its products from an infected person,
animal or reservoir to a susceptible host, either directly or indirectly throu-
gh an intermediate plant or animal host, vector or inanimate environment.
—Last JM. 1988. A Dictionary of Epidemiology. Oxford Univ Press,
Oxford.

Há muitos termos e conceitos nesta definição que


requerem explicação. Começo pelos agentes infecciosos.
Estes agentes, causadores de doenças transmissíveis, são,
globalmente, designados por parasitas e englobam uma
38

grande diversidade de formas e ciclos de vida, tais como


vírus, bactérias, fungos, protozoários, nemátodos, céstodes,
e artrópodes. Por uma questão de conveniência prática e
porque os modelos epidemiológicos das doenças causadas
por estes agentes têm características muito diferentes, divi-
dem-se em dois grandes grupos:

a) Microparasitas (vírus, bactérias e protozoários)


– Caracterizam-se por serem muito mais pequenos
que os hospedeiros infectados, terem gerações curtas,
taxas de reprodução no hospedeiro extremamente
elevadas e tendência para induzirem, em geral, al-
gum grau de imunidade à reinfecção, por parte dos
hospedeiros que recuperam da primeira infecção. A
duração da infecção é, em geral, curta, relativamente
à esperança de vida do hospedeiro, mas há excepções,
de que VIH, agente etiológico da sida, é apenas um
exemplo. Devido ao tamanho muito reduzido dos mi-
croparasitas e às dificuldades associadas à sua conta-
gem no hospedeiro, a unidade de estudo da dinâmica
destas doenças é o próprio hospedeiro. O estudo da
doença na população segue a variação do número de
hospedeiros infectados (e.g. susceptíveis e imunes),
independentemente do número de microparasitas
existente.

b) Macroparasitas (nemátodes, tremátodes, cesto-


des e artrópodes) – Caracterizam-se por ter gerações
muito mais longas que os microparasitas. Os ciclos
39

de vida são, também, mais complicados, raramente


dependendo de um único hospedeiro. As respostas
imunes que desencadeiam e a própria patologia de-
pendem, em geral, da abundância de parasitas pre-
sentes no hospedeiro infectado. As infecções causa-
das por macroparasitas tendem a ser persistentes,
podendo os hospedeiros ser reinfectados continua-
mente, sem desenvolverem uma reacção imunitária,
que confira protecção completa. Dada a relativa fa-
cilidade (comparativamente aos microparasitas) com
que os macroparasitas podem ser contados dentro
(ou sobre) o hospedeiro, o seu número é, em geral, a
unidade de estudo.

A divisão entre micro e macroparasitas é evidente-


mente uma simplificação e corresponde a dois extremos
de um continuum. Muitos parasitas não são facilmente
enquadráveis nesta dicotomia. Por exemplo, as infecções
causadas por muitos protozoários têm uma dinâmica que é
bem representada pelos modelos usados para microparasi-
tas, contudo, os seus padrões de persistência na população
hospedeira (os hospedeiros são repetidamente reinfecta-
dos) são mais semelhante às características dos macro-
parasitas. Com esta simplificação pretende-se enfatizar a
dinâmica populacional da interacção parasita-hospedeiro e
desenfatizar as distinções taxonómicas convencionais. Os
refinamentos tendentes a um maior realismo podem ser
acrescentados mais tarde - para já é necessário apreender
as noções básicas importantes.
40

6 Condições para a infecção


Tanto os microparasitas como os macroparasitas com-
pletam os seus ciclos de vida passando de um meio infectado
para um hospedeiro susceptível. Contudo, a compreensão da
epidemiologia da infecção passa por um contexto bem mais
vasto do que, apenas, o dueto parasita-hospedeiro. Para que a
infecção ocorra é necessário reunir um conjunto de condições
biológicas e ambientais favoráveis que se resumem em cinco
pontos:

a) Tem de haver um hospedeiro susceptível, isto é,


capaz de ser infectado. Embora todos os hospedeiros
vivam mergulhados num mar de microrganismos, per-
manecem, em geral, saudáveis, porque possuem defesas
não específicas e específicas (mediadas por linfócitos B
ou T), que travam a susceptibilidade à infecção, desde
que o hospedeiro não se encontre imunodeprimido.

b) Tem de existir um parasita capaz de causar infecção.

c) Este parasita tem de ter um meio (ou reservatório)


favorável à sua propagação, i.e., onde possa viver, repro-
duzir-se e morrer. Reservatórios possíveis são os hospe-
deiros humanos, não-humanos e o meio ambiente.

d) Tem de haver uma porta de saída do reservató-


rio e uma porta de entrada no hospedeiro susceptível.
As portas de saída de um reservatório vivo são o trato
41

respiratório, o trato geniturinário (e.g. urina e sémen), o


tubo digestivo, os epitélios de revestimento (mucosas
e pele), a placenta (na passagem mãe-feto) e o sangue.
As portas de entrada são, em geral, as mesmas, embora
a transmissão pelo sangue requeira, por princípio, uma
solução de continuidade cutânea ou a contaminação
de uma mucosa. Alguns parasitas só causam doença no
hospedeiro por vias específicas. Por exemplo, Shigella dy-
sentery, causadora de diarreia grave, tem de ser ingerida;
Staphylococcus aureus pode causar doença quer entre
pelo trato respiratório (pneumonia), pele (furúnculo), trato
gastrintestinal (alimentos contaminados) ou pelo sangue
(causando bacteriemia).

e) O parasita tem de ser deslocado, directa ou indirec-


tamente, de um local para outro. O que abona da enor-
me diversidade de meios de transmissão possíveis.

7 Formas de transmissão de microparasitas

As doenças podem resultar quer de flora microbia-


na exógena ao hospedeiro (outros hospedeiros vivos, meio
ambiente), quer da flora endógena. A flora endógena in-
clui comensais habituais, em geral inofensivos, da pele, dos
tratos respiratório, gastrintestinal e geniturinário e inclui,
também, formas relativamente inactivas, que permanecem
no hospedeiro em estado «latente». Entre os vírus há exem-
plos familiares destes últimos, como os herpes (Herpes sim-
plex, Varicella zoster, vírus citomegálico e vírus Epstein-Barr)
42

e os vírus da imunodeficiência humana (VIH-1 e VIH-2). Ou-


tros exemplos muito comuns são as bactérias, por exemplo
Mycobacterium tuberculosis e Neisseria meningitidis e vários
fungos (e.g. Blastomyces dermatitidis e Histoplasma capsu-
latum). Para que a doença se desenvolva, a partir da flora
endógena, deve ter havido algures no passado infecção com
origem no exterior.
A transmissão é o mecanismo pelo qual um agente
patogénico exógeno alcança e infecta um hospedeiro. A
transmissão pode-se dar directa ou indirectamente, via um
ou mais intermediários. A transmissão directa pode ocorrer
por proximidade física entre os indivíduos (e.g. contacto
com aerossol emitido por espirro, tosse ou fala, beijo ou
contacto sexual) ou através de estádios mais ou menos
especializados do parasita, que penetram no hospedei-
ro, por exemplo por inalação, ingestão ou através da pele.
Um exemplo comum é a inalação de partículas víricas em
suspensão (e.g. gripe, rubéola, sarampo, parotidite e vari-
cela), mesmo quando não há proximidade física. Por vezes
distingue-se entre transmissão por gotículas (do inglês dro-
plet transmission) e transmissão por partículas infecciosas
(airborne transmission). No primeiro caso, é necessário estar
muito perto da fonte infecciosa de espirros, tosse ou fala.
No segundo caso, uma partícula infecciosa dissecada, muito
leve, pode permanecer no ar e ser transmitida a grande dis-
tância pelo sistema de ventilação.
Quando a transmissão directa decorre por contacto
sexual, diz-se tratar-se de uma infecção sexualmente trans-
missível (IST). O termo «doença venérea» é sinónimo, mas
43

caiu em desuso há algumas décadas. Estas infecções podem


ser sintomáticas (e.g. gonorreia e sífilis) ou assintomáticas
(e.g. VIH, hepatites B e C), pelo que se deve exprimir por IST.
A transmissão indirecta envolve os chamados vec-
tores intermediários (e.g. moscas, mosquitos, carraças e
mamíferos), que picam ou mordem e que servem como
hospedeiros intermédios da infecção. Exemplos são os
agentes causadores da malária, febre do Nilo Ocidental,
febre escaronodular e febre amarela. Neste caso o agente
pode viajar pelo ar a distâncias muito longas. O agente in-
feccioso está, em geral, altamente adaptado ao vector, mas
pode usá-lo apenas como meio de transporte (e.g. vírus da
febre amarela) ou pode ter com ele interacções biológicas
de que depende o seu próprio ciclo de vida (e.g. agente da
malária). Quando a infecção se transmite de animais verte-
brados para humanos, como é o caso da raiva, é designada
por zoonose.
No processo de transmissão indirecta pode estar,
ainda, envolvido um reservatório inanimado da infecção,
como por exemplo a água, no caso da cólera e da doença
do Legionário (Legionellae spp) ou o solo, no caso do tétano.
O esporo do tétano é capaz de permanecer viável durante
anos no solo ou em objectos inanimados, antes duma opor-
tunidade para se introduzir numa solução de continuidade
da epiderme, por exemplo por um ferimento. O reservatório
inanimado pode, também, ser um instrumento médico-ci-
rúrgico ou uma seringa.
É interessante notar que as doenças colocadas na ca-
tegoria de transmissão indirecta são muitas vezes as mais
44

«transmissíveis». Na verdade, deve haver muito poucas in-


fecções que não se transmitam caso o infectado e o suscep-
tível tenham um contacto muito íntimo, como por exemplo
a via sexual. Só os agentes patogénicos muito pouco resis-
tentes ao ambiente fora do hospedeiro é que necessitam,
em absoluto, deste tipo de contactos para se transmitirem.
Na maioria dos casos, a transmissão directa ou in-
directa da infecção dá-se entre membros coexistentes da
população hospedeira, a chamada transmissão horizontal.
Um caso especial de transmissão directa ocorre, contudo,
quando a doença é transmitida de um ascendente para
um descendente ainda não-nascido (ovo ou embrião). Nes-
te caso, diz-se que houve transmissão vertical, um tipo de
transmissão bastante frequente em artrópodes. No caso da
transmissão vertical em mamíferos, por exemplo, o feto é
infectado no útero por um agente transportado numa célu-
la da linha germinal ou através de infecção da placenta ou
do canal materno, durante o parto. Nos humanos, VIH, vírus
da rubéola, vírus citomegálico, vírus da varicela-zoster, ví-
rus herpes simplex, vírus da hepatite B e o agente da sífilis
são reconhecidos com capacidade de transmissão vertical.
A transmissão vertical permite que a chamada «densida-
de populacional crítica» tenha valores muito baixos. Esta
densidade crítica é a densidade mínima de hospedeiros
necessária para que a infecção se possa manter endémi-
ca e, quando existe transmissão vertical, mesmo com pou-
cos hospedeiros o endemismo é possível, desempenhando
portanto um papel importante na epidemiologia de alguns
microparasitas.
45

8 Períodos de latência, incubação e


infecciosidade. Recuperação da infecção
Habitualmente, a infecção começa com uma invasão
localizada de uma superfície epitelial e prossegue, após uma
ou mais fases de replicação do agente, com consequente
crescimento da população do microrganismo – a chamada
viremia – com a infecção dos órgãos alvos do agente (e.g.
pulmão, sistema nervoso ou pele). A taxa de crescimento
populacional depende, em parte, da resposta imunitária do
hospedeiro. Se for eficiente, a certa altura a taxa de cresci-
mento torna-se negativa e a população de microrganismos
decai até à extinção ou até níveis muito baixos (alguns vírus
podem persistir em níveis muito baixos durante muito tem-
po, causando viremias recorrentes, e.g. herpes simplex e vírus
da varicela-zoster). Um factor importante que pode determi-
nar se uma infecção desenvolve viremia ou não, é a dose (ou
volume do inóculo), isto é, o número de microparasitas que
realmente invade o hospedeiro. Uma dose maciça quase de
certeza origina viremia no hospedeiro.
Em geral, um hospedeiro infectado não se torna ime-
diatamente infeccioso, isto é, não adquire capacidade ime-
diata de transmitir a infecção. A capacidade de transmissão
depende da multiplicação do microparasita e da sua chega-
da aos tecidos ou fluídos do hospedeiro (e.g. saliva, excre-
ções do aparelho respiratório, fezes ou sangue), a partir dos
quais ele é transmitido para o exterior. O período de tempo
entre o instante da infecção e o momento em que começa a
haver capacidade de transmissão da infecção (em geral ini-
Doença (português/inglês) Agente etiológico (vírus) Incubação Latência Infecciosidade Imunidade Letalidade
Sarampo/measles morbillivirus da fam. Paramyxoviridae (ARN) 8-12 6-9 5-7 permanente baixa
Rubéola/rubella fam. Togaviridae (ARN) 16-20 7-14 13-15 permanente muito baixa
Varicela/chickenpox varicela-zoster virus (ADN) 14-17 8-12 10-20 permanente baixa
Parotidite/mumps fam. Paramyxoviridae (ARN) 10-20 10-18 7-11 permanente baixa
Varíola/smallpox orthopoxvirus da fam. Poxviridae (ADN) 10-14 8-11 2-3 permanente muito baixa/
baixa
Gripe/influenza fam. Orthomyxoviridae (ARN) 1-3 1-3 1-4 baixa baixa/média
Poliomelite/poliomyelitis Poliovirus 1, 2 e 3 (subgrupo dos picornavirus) 7-12 1-3 14-20 permanente média
(ARN)
sida/AIDS V. imunodeficiência humana (VIH-1 e VIH-2) (ADN) 8-10 anos 5-20 1-2 anos nula muito alta
Herpes/herpes simplex Herpesvirus hominis (VHS-1 e VHS-2) (ADN) ? ? Longa intermi- muito baixa
(recorrente) tente
Difteria/diphtheria Corynebacterium diphtheriae (Gram+) 2-5 14-21 longa média
Tosse convulsa/whooping cough Bordetella pertussis (Gram–) 7-10 6-7 15-21 permanente baixa/média
Escarlatina/Scarlet fever Streptococcus pyogenes (Gram+) 2-3 1-2 14-21 baixa
Tétano/tetanus Clostridium tetani (Gram+) 4-13 21-30 permanente alta
Febre tifóide/typhoid fever Salmonella typhi (Gram–) 5-50 7-21 curta baixa
Gonorreia/gonorrhea Neisseria gonorrhoeae (Gram–) 2-7 >30 muito baixa baixa
Tabela 2 | Algumas doenças causadas por microparasitas (vírus e bactérias). Entre os vírus distinguem-se os retrovírus (ARN) dos adeno-
vírus (ADN) e, entre as bactérias, as Gram+ das Gram–. Apresentam-se vários períodos epidemiologicamente relevantes na ausência de
tratamento – o período de incubação, de latência e de infecciosidade (em dias). Indica-se, também, a imunidade à infecção numa escala
nominal (imunidade activa, adquirida por vacinação ou recuperação da infecção/doença) e, também, a capacidade de a doença poder ser
fatal na ausência de tratamento adequado. As principais fontes são Anderson (1982) e Isselbacher et al. (1994).
47

ciado com a viremia), designa-se por período de latência. Na


maioria das infecções é difícil determinar o período de latên-
cia. Isto porque, por um lado, a ausência de manifestações
clínicas, sugerindo a presença do microparasita, torna muito
incerto o momento em que se deu a infecção e, portanto,
o início do período de latência. Por outro lado, a ausência
frequente de sintomas, quando se inicia a viremia e a trans-
missão, torna difícil a identificação do final do período de
latência.
Em geral, as manifestações clínicas da doença não
surgem, também, de imediato, após a infecção. O tempo de-
corrido entre o momento da infecção e o início dos sinto-
mas é denominado de período de incubação. O período de
incubação inclui o período de latência (quando este existe)
e prolonga-se, em geral, durante o período de infecciosi-
dade. O seu fim é identificado pelo início dos sintomas da
doença. Em muitas doenças, como é o caso de algumas ca-
racterísticas da infância (e.g. sarampo, varicela e rubéola), o
período mais infeccioso ocorre na fase final do período de
incubação. Este facto é importante, pois significa que o iso-
lamento do doente pouco tempo após o aparecimento dos
sintomas não é suficiente para travar a propagação da in-
fecção. O período de incubação conta-se, em geral, por dias
e é muito variável, não só de doença para doença, como de
indivíduo para indivíduo, dentro da mesma doença (Tabela
2). Isto deve-se a diferenças entre a capacidade de resposta
imunitária dos indivíduos, as quais, por sua vez, dependem
de factores genéticos e circunstanciais relacionados com o
estado dos indivíduos, a idade e o sexo.
48

Os sintomas causados por uma infecção têm uma ex-


pressão muito vasta. Apenas as infecções sintomáticas são
imediatamente detectáveis, porém, em epidemiologia de
ISTs, a capacidade de transmitir o agente infeccioso é mais
importante do que ser ou não sintomático. Muitas vezes um
hospedeiro infectado não tem sintomas, embora se possa
detectar serologicamente que o seu sistema imunitário
reagiu à infecção. Nesse caso, diz-se que teve uma infec-
ção subclínica (ou assintomática). Por exemplo, a maioria
dos casos de poliomielite cursam sem sintomas e, por isso,
passam indetectados, mas o risco de propagação do vírus
é factual. A infecção por SARS-CoV-2 é outro exemplo em
que a transmissão por assintomáticos é muito importante
para a sua epidemiologia. Um hospedeiro assintomático,
mas capaz de transmitir a infecção designa-se de portador.
A epidemiologia da polio e de SARS-CoV-2 não pode, por-
tanto, ser compreendida sem uma avaliação do número de
portadores. A maioria das infecções por vírus das hepatites
e da tuberculose são, também, inaparentes, mas a capacida-
de de transmissão da infecção é provada, pelo que têm de
ser identificadas para fins de controle. Num outro extremo,
estão doenças como o sarampo, em que a maioria dos casos
cursa com sintomas e só uma minoria é assintomática.
Entre o instante em que se dá a infecção e o início
da recuperação da doença existem períodos de tempo em
que o infectado tem capacidade para a transmissão da in-
fecção. No seu conjunto, formam o período de infecciosi-
dade, o qual se inicia logo após o período de latência e é
de grande importância para o epidemiologista. O período
49

de infecciosidade inicia-se, com frequência, ainda durante


o período de incubação e prolonga-se para lá deste, no pe-
ríodo sintomático. Contudo, em geral, termina antes do fim
dos sintomas. Infelizmente, para a maioria das doenças, não
existe muita informação disponível sobre os diferentes ní-
veis de capacidade de transmissão dos microparasitas, du-
rante o período de infecciosidade. Contudo, em algumas do-
enças, o período de infecciosidade é irregular, com picos de
maior transmissibilidade espaçados por períodos de baixa
ou nula transmissibilidade. A informação sobre este tipo de
fenómeno deriva, em geral, da observação do nivel de anti-
génios nos hospedeiros e não da observação de contágios
que origina. VIH é um exemplo deste tipo de irregularidade
na transmissão.
Um indivíduo que tenha sido infectado (a partir de
um assintomático ou sintomático) com um agente patogé-
nico ou que tenha sido vacinado, se mais tarde for de novo
infectado não mostra sinais clínicos da nova infecção, diz-se
imune. No entanto, pode-se demonstrar laboratorialmente
que um indivíduo imune reinfectado reagiu à reinfecção
aumentando a titulação de anticorpos contra o agente.
Chama-se a isto um boost ou estímulo natural do sistema
imunitário.
No caso das infecções víricas (viroses), após a recupe-
ração, os hospedeiros ficam, em geral, inteiramente imunes
a nova infecção. Na espécie humana esta imunidade dura,
por vezes, a vida inteira. Em geral, desconhece-se a razão
exacta para o facto da imunidade ser tão prolongada. Pode
ser devida a exposição de novo aos agentes infecciosos
50

(sem que ocorram sintomas), que dão repetidos impulsos


à resposta imunitária do hospedeiro, devido à presença de
clones de linfócitos (células-memória T e B) de longa du-
ração, capazes de reconhecer antigénios víricos e manter a
produção de anticorpos na ausência de infecção ou, ainda,
devido à presença do vírus no hospedeiro em densidades
muito baixas.
As bactérias são, em termos antigénicos, muito mais
complexas que os vírus. A resposta do sistema imunitário
às bactérias é diversificada e o seu sucesso depende, em
grande parte, do dano de componentes da parede celular
da bactéria. Os anticorpos produzidos são, em geral, espe-
cíficos de receptores na parede ou de toxinas produzidas
pela bactéria. A imunidade conseguida, após a recuperação
da infecção bacteriana, não é, por norma, nem tão completa
nem tão duradoura quanto a imunidade às infecções víri-
cas. No caso dos protozoários (e.g. Trichomonas) a resposta
imunitária é, também, mais complexa do que nas viroses.
Os protozoários são maiores que os virus e bactérias e
despoletam a produção de antigénios mais variados e em
maior quantidade. As infecções por protozoários tendem a
ser mais persistentes, podendo assumir caracteristicas cró-
nicas. A imunidade adquirida raramente confere protecção
total contra reinfecções e a sua eficácia aparenta depender
da duração e da intensidade das infecções anteriores. Em
geral, os mecanismos que permitem a persistência do para-
sita e as reinfecções são muito mal conhecidos.
51

TRANSMISSÃO DA INFECÇÃO

Do ponto de vista individual, o percurso de uma do-


ença é descrito pelo que se passa entre o momento da
infecção e o momento em que os sintomas terminam. Do
ponto de vista epidemiológico, é muito mais importante a
distribuição no tempo e no espaço dos contactos infeccio-
sos, tidos pelo indivíduo infectado, com outros indivíduos e
a forma como tal se repercute na propagação da infecção
pela população. Pode a infecção individual originar uma
epidemia? Pode esta infecção permanecer endémica na
população? Como é que as proporções de indivíduos infec-
tados e susceptíveis vão evoluir ao longo do tempo? Quais
as consequências das medidas de controle, como a vaci-
nação, para a epidemiologia da doença? Embora ao nível
individual a sintomatologia, a patologia e os mecanismos
de transmissão da maioria das doenças infecciosas este-
jam razoavelmente compreendidos, para responder a estas
52

perguntas há que ter em consideração um número muito


grande de factores supra individuais que complicam a in-
vestigação. Entre estes factores incluem-se a biologia do
agente infeccioso (e.g. ciclo de vida, taxas de reprodução e
de mortalidade), as características populacionais do hospe-
deiro (e.g. natalidade e mortalidade, rede de contactos en-
tre indivíduos, grau de imunidade, sex ratio, aspectos socio-
culturais e comportamentais) e as características da doença
em si (forma de transmissão, dependência relativamente a
factores climáticos). A complexidade do assunto implica,
por conseguinte, a necessidade de conceptualizar ou mo-
delar o problema, recorrendo a instrumentos apropriados,
nomeadamente modelos matemáticos. É um assunto que
extravasa largamente o âmbito do tema, contudo será em
seguida introduzida uma simbologia mínima, que tornará a
exposição mais fácil de compreender.

9 Terminologia básica dos modelos para


microparasitas
Ao estudar determinada doença infecciosa, o parasito-
logista e o médico preocupam-se em aprofundar os aspec-
tos que tornam a doença única entre muitas outras. Nesta
fase de introdução à epidemiologia de doenças transmissí-
veis, pelo contrário, o principal objectivo é estabelecer uma
terminologia e uma simbologia unificadoras, o mais abran-
gentes possível no mundo das doenças infecciosas. Se não
existisse um tal quadro unificador, cada doença tenderia
a desenvolver a sua própria literatura e terminologia, que
53

seriam mais ou menos crípticas para o exterior. Uma vez fei-


ta a unificação, será depois possível sistematizar as doenças
infecciosas, partindo do geral para o particular, com base
em critérios que se julguem relevantes. Então comece-se
pelas variáveis e parâmetros que são comuns a quase todos
os sistemas epidemiológicos.
Os indivíduos que compõem a população hospedeira
são divididos em quatro categorias:

Susceptíveis – categoria que inclui todos os indivídu-


os que podem contrair a infecção.
Latentes – inclui os indivíduos que já foram infecta-
dos, mas que, ainda, não têm a capacidade de trans-
missão.
Infecciosos – indivíduos capazes de transmitir a infec-
ção a outros, sejam sintomáticos ou assintomáticos.
Removidos – inclui todos os indivíduos que foram
removidos dos três grupos anteriores por qualquer
razão, nomeadamente porque adquiriram imunidade
ou porque foram isolados.

Estas quatro categorias não têm de estar sempre


todas presentes, quando se considera uma determinada
doença. A categoria de latentes, por exemplo, é frequente-
mente ignorada, quando se pode pressupor que o período
de latência é muito curto ou nulo. Os números absolutos
de indivíduos pertencentes a cada uma destas catego-
rias, são simbolizadas por S = susceptíveis, E = latentes,
I = infecciosos, R = removidos. Admitindo que as quatro
54

categorias cobrem de forma exaustiva todos os indivíduos


da população,

S + E + I + R = N [9.1]

sendo N o número total de indivíduos na população.


As proporções de indivíduos em cada categoria são repre-
sentadas por letras minúsculas s= S/N, e=E/N, i=I/N, r=R/N. A
sua soma iguala a unidade:

s+e+i+r=1

Nos modelos epidemiológicos, é muito frequente


pressupor que N, o efectivo populacional, é aproximada-
mente constante ou, pelo menos, que varia numa escala
temporal muito longa, comparativamente àquela escala em
que decorre o processo epidemiológico em estudo. De um
modo geral, este pressuposto é adequado a muitas popu-
lações de grandes dimensões, como é o caso da população
humana. Contudo, para o estudo de fenómenos epidemioló-
gicos, que decorrem numa escala temporal de muitos anos
numa população em crescimento, pode não ser adequado
pressupor N constante. No caso das populações humanas
dos países desenvolvidos, o pressuposto parece em geral
apropriado. Para populações humanas em países em vias
de desenvolvimento ou para não-humanas com grande va-
riabilidade de efectivo (e.g. artrópodes e populações mari-
nhas) só raramente o pressuposto será apropriado.
55

10 Modelação da transmissão: Contactos,


incidência e força de infecção
A capacidade de transmissão do agente patogénico é
uma propriedade fundamental das doenças transmissíveis
e desempenha um papel crucial na sua dinâmica, por isso,
lhe é dedicada uma atenção especial. Considere-se um in-
divíduo infeccioso. Durante um certo período de tempo ele
estabelece contactos com outros indivíduos da população,
sejam eles da fracção S, E, I ou R. Designe-se por contacto
efectivo, aquele em que a infecção pode ser transmitida,
caso o indivíduo contactado seja susceptível. O adjectivo
«efectivo» serve, portanto, para distinguir entre contactos
em que não possa haver contágio (mesmo que o outro in-
divíduo seja susceptível) e os que permitem contágio. Nas
secções que se seguem, sempre que se utilizar o termo con-
tacto, subentende-se que se está a referir a contacto efec-
tivo. Evidentemente, pode haver contactos efectivos com
susceptíveis, latentes, removidos ou outros infectados. Ape-
nas, no caso dos susceptíveis, a infecção será transmitida no
momento de contacto.
Designe-se por a o número médio de contactos
(efectivos) de um indivíduo infeccioso numa unidade de
tempo, por exemplo um dia (as unidades físicas de a são
‘número por unidade de tempo’, ou seja, tempo-1). Enten-
da-se que a é uma constante característica da infecção,
numa dada população, durante um período de tempo re-
lativamente longo; a não muda devido a campanhas de
vacinação, mas pode mudar devido a mudanças de hábitos
56

de higiene pessoal ou saúde pública, mudanças estas que


costumam ser lentas.
Como se entende, a refere-se aos contactos do infec-
cioso com indivíduos de qualquer categoria (S, E, I, R) da po-
pulação. Agora, suponha-se que os indivíduos pertencentes
a todas estas categorias estão homogeneamente misturados,
os contactos ocorrem aleatoriamente e a população é mui-
to grande. Se assim for, a proporção de contactos do infec-
cioso, que ocorre com indivíduos susceptíveis, será igual à
proporção de susceptíveis na população, isto é, s. O número
médio de contactos do infeccioso com susceptíveis por dia
será:

a s [9.2]

Se um infectado origina em média as novos infecta-


dos por dia, para saber qual é o número total de novos in-
fectados diários, isto é a incidência diária da infecção, basta
multiplicar as pelo número total de infectados, ou seja I.
Assim, a incidência diária (=número médio de susceptíveis
infectados por dia =número de novas infecções por dia),
será:

a s I = a SI/N = a i S [9.3]

A quantidade asI é o número de susceptíveis conver-


tidos em infectados durante o tempo a que a se refere.
Por outro lado, ai mede a «força» exercida pela infecção
sobre os susceptíveis, visando convertê-los em infectados;
57

ai é designada por força de infecção. Frequentemente será


representado por λ, isto é, λ= ai. A força de infecção pode,
ainda, ser interpretada como:

(i) A taxa de conversão de susceptíveis em infectados


por susceptível, uma vez que se obtém dividindo aiS
por S, sendo portanto, a incidência por susceptível.
(ii) A probabilidade, por unidade de tempo, de que um
susceptível seja infectado.

O conceito de força de infecção, introduzido por


Muench, em 1959, é usado modernamente pelos epidemio-
logistas matemáticos para modelar o processo de transmis-
são, mas não é a única forma de quantificar a transmissão.
Na literatura de cariz mais médica, é frequente aparecerem
análises baseadas na taxa de ataque (do inglês attack rate),
definida como o número de novos casos, por unidade de
tempo, divididos pelo número total de indivíduos expostos1
(em geral expressa por 1000 indivíduos).
Tal como a força de infecção, a taxa de ataque pode
ser definida para a população global ou para determinados
grupos etários. A taxa de ataque, porém, tem vulnerabilida-
des sérias para medir a transmissibilidade duma infecção.
Por definição, não tem em atenção o número de indivíduos
que são susceptíveis à infecção. Por exemplo, taxas baixas
de ataque da gripe no inverno de 2018, entre os maiores
1 Alguns autores (e.g. Giesecke 2002) definem a taxa de ataque como o nú-
mero de novos casos dividido pelo número de indivíduos expostos suscep-
tíveis. Quando assim é, estão a considerar a taxa de ataque como sinónimo
de força de infecção.
58

de 60 anos de idade comparativamente com os adolescen-


tes pode só significar que os mais velhos se vacinaram em
massa, conforme recomendado pelas autoridades de saúde,
não sendo por isso susceptíveis à gripe. Não significa que
a gripe ataca melhor os mais novos do que os mais velhos.
A força de infecção, por definição, divide o número de no-
vos casos pelo número de susceptíveis e evita este tipo de
problema.

11 Anatomia dos contactos


A transmissão duma infecção ocorre quando dois
hospedeiros «contactam» entre si. Porém, o significado
exacto da palavra «contacto», depende muito do contexto
da infecção em causa. A título exemplificativo, um contacto
pode significar uma picada de mosquito no caso da malária
ou do vírus do Nilo Ocidental, um contacto sexual no caso
da gonorreia, viajar no mesmo banco de autocarro no caso
da gripe e da tuberculose. O significado de «contacto» pode
até ser muito vago, por exemplo, no caso de infecção por
esporos de fungos dispersos no ar ou no caso de infecção
com o agente do tétano, no contexto de um ferimento em
contacto com objectos.
A forma mais fácil, fenomenológica, de abordar o as-
sunto, consiste em (1) assumir que os indivíduos têm um
certo número médio de contactos por unidade de tempo (C)
com outros indivíduos e que (2) existe uma probabilidade
média (p) de transmissão da infecção por contacto (especifi-
cando ou não a distribuição de probabilidades em torno de
59

p). Por outras palavras, p é a probabilidade de um contacto


ser adequado à transmissão. O número médio de contactos
adequados, atrás definido (a), será então a=pC. Nada impede
que se continue a usar a, mas valerá a pena pausar para
reflectir um pouco sobre p e C.
No que respeita a C, pode estar relacionado, entre ou-
tras coisas, com a densidade populacional. Quanto a p, este
deve variar de infecção para infecção e para diferentes ti-
pos de contactos. Tome-se o exemplo a infecção por VIH, em
que no contacto «apertar as mãos», p deve ser zero, pois a
infecção não se transmite dessa forma. Para relações sexu-
ais, p deve provavelmente estar entre 0,001 e 0,1 (Giesecke
2002), e para o contacto «transfusão sanguínea» (estando o
sangue do dador infectado), p deve ser praticamente igual
a 1.
Por volta de 1950, Hope Simpson realizou um estu-
do que visou medir o p de doenças da infância. Coligiu da-
dos de casos de sarampo, varicela e papeira, num distrito
de Inglaterra Ocidental, e procurou medir a probabilidade
de transmissão destas doenças entre irmãos vivendo de-
baixo do mesmo tecto. Para isso, teve de registar todas as
situações em que um irmão susceptível foi exposto a um
irmão doente, registando depois quantos destes expostos
realmente adoeceram. Os quocientes entre número de ir-
mãos que adoeceram e número total de irmãos expostos
foram sarampo: 201/251 = 0,8; varicela: 172/238 = 0,72;
papeira: 82/218 = 0,38. Se estes valores forem consideradas
boas aproximações a p, existem de facto diferenças apreci-
áveis entre a contagiosidade destas doenças. No entanto,
60

Simpson não tinha maneira de saber se todos os irmãos


supostamente susceptíveis, aquando da exposição, estavam
de facto susceptíveis ou se já estavam infectados (latentes
ou com uma forma subclínica da doença). Tal poderá ser
um problema para a infecção por vírus da papeira, que, com
frequência, é assintomática, podendo portanto o valor 0,38
ser uma subestimação de p.
O valor de p é influenciado pela duração média de
cada contacto, facto que pode ser mais importante para
umas doenças do que para outras. Por exemplo, a transmis-
são da tuberculose está correlacionada com situações em
que moram muitas pessoas no mesmo apartamento (Lie-
nhardt 2001). Tal sugere que a repetitividade ou a duração
dos contactos parece ser importante para contrair a infec-
ção. Já a gripe, pode ser adquirida num contacto esporádico
com um infectado. Em geral, consideram-se três situações,
isto é contactos instantâneos, contactos de curta duração
(comparativamente, por exemplo, ao período de infecciosi-
dade) e de média-longa duração (Diekmann and Heester-
beek 2000). Neste texto, considera-se, apenas, a situação
mais simples, em que os contactos envolvem sempre pares
de indivíduos e têm duração instantânea. Assumindo que
os indivíduos estão homogeneamente misturados e que os
contactos ocorrem aleatoriamente, a proporção de contac-
tos com as várias categorias de hospedeiros (S, I, R) é igual à
fracção dessas categorias na população (s, i, r). Foi seguindo
esta lógica que se chegou às equações [9.2] e [9.3].
61

12 Número básico de reprodução da infecção


(R ) e número efectivo de reprodução
0

O facto de até aqui se ter utilizado o dia como unidade


de tempo não retira generalidade ao raciocínio exposto. Poder-
-se-ia ter utilizado qualquer outra unidade de tempo, desde que
a população fosse suficientemente grande para que a, S e I não
se alterassem muito durante essa unidade de tempo. Contudo,
cada doença, caracteriza-se pelo seu próprio período médio de
infecciosidade, isto é o intervalo de tempo médio durante o qual
um indivíduo infectado é capaz de transmitir a infecção. É mais
natural exprimir o número de novos infectados numa unidade
de tempo menos arbitrária, mais adaptada às características da
própria doença – o período médio de infecciosidade (D).
D é o tempo médio durante o qual um indivíduo está
na categoria dos infecciosos. Representa um certo número de
unidades de tempo, por exemplo, na gripe são cerca de quatro
dias, no tétano cerca de um mês.
Recorde-se que a era o número médio de contactos,
por infeccioso, em um dia. Mas um dia era uma quantidade de
tempo arbitrária. Se se multiplicar a por D, obtém-se o núme-
ro de contactos num período de tempo muito particular, o
período de infecciosidade (evidentemente, para elaborar este
produto é necessário que a unidade de tempo a que a se refere
seja a mesma unidade de tempo de D).
O número médio de contactos de um infeccioso, enquanto é
infeccioso, é então:

R0= a D
62

Recordando que a=pC (secção 11), evidentemente po-


demos também escrever R0 = pC D.
A quantidade R0 é fundamental em epidemiologia e, se
bem que o mesmo conceito exista em Ecologia (onde é de-
signada por taxa líquida de reprodução), a sua representação
simbólica parece dever-se a Alfred Lotka (Dietz 1993), um
dos fundadores da Biologia Populacional. A designação cor-
recta para R0 é o número básico de reprodução (do inglês
basic reproduction number), embora uma parte da literatura
moderna (e.g. Anderson & May 1979, 1991) use a designação
«taxa básica de reprodução». O termo «taxa», contudo, não
é apropriado. Uma taxa quantifica um fluxo e tem dimensões
tempo-1, enquanto R0 não tem dimensões, é apenas um núme-
ro de contactos.
R0, introduzido em epidemiologia por Dietz (1975) e He-
thcote (1976), é uma medida da capacidade máxima da doença
para aumentar a prole de infectados. Suponha-se que um infec-
cioso, designado como infecção primária, é introduzido numa
grande população em que todos os indivíduos são susceptíveis.
R0 é o número médio de infecções secundárias directamente
causadas pela infecção primária, numa população inteiramente
susceptível. Se a dimensão da população for tal que se possa
desprezar as infecções que vão sendo produzidas, R0 determi-
na a velocidade inicial de crescimento da epidemia, pois cada
indivíduo infectado ramifica-se em R0 novos infectados, que,
por sua vez, originam, cada um deles, novos R0 infectados e, as-
sim, sucessivamente. Quando R0 > 1, a infecção tem capacidade
para invadir uma população totalmente susceptível, enquanto
que se R0 < 1, a infecção acaba por desaparecer.
63

Evidentemente, a partir de certa altura, há tantos indiví-


duos não-susceptíveis na população (uns já infectados outros
já imunes), que só uma parte dos R0 contactos ocorre com
susceptíveis e transmite a infecção. Assumindo que os contac-
tos se fazem aleatoriamente com os indivíduos de todas as ca-
tegorias (S, E, I, R), o número médio de contactos com suscep-
tíveis é R0s, sendo s a fracção da população que é susceptível.
A quantidade R0s é designada por número líquido de
reprodução (do inglês net reproduction number) ou por número
efectivo de reprodução (do inglês effective reproduction num-
ber). Representa o número de infecções secundárias causadas
por uma infecção primária numa população que não é intei-
ramente susceptível. Estas infecções secundárias vêm «substi-
tuir» o infeccioso que as origina.
É óbvio que para a infecção se propagar, numa população
não totalmente susceptível, é necessário que R0s >1, ou seja,
cada infeccioso tem de deixar, em média, mais de um infectado
que o substitua antes de deixar de ser infeccioso. Admitindo
que as características de transmissão na população (e, portan-
to, R0) se mantêm aproximadamente constantes, o destino da
infecção é então governado pela proporção de susceptíveis na
população.

NOTA: R0 e λ são formas complementares de modelar o processo


de transmissão. Enquanto R0 adopta a perspectiva do infeccio-
so – é o número de contactos que o infeccioso tem enquanto é
infeccioso, λ adopta a perspectiva do susceptível – é a probabili-
dade do susceptível ser infectado numa unidade de tempo.
64

De facto, R0 é estático, característico da infecção, mas s


é continuamente variável. Há factores que fazem s aumentar e
outros que o fazem s diminuir. Entre os primeiros, conta-se o
nascimento de novos indivíduos e a perca de imunidade por
parte daqueles que já foram imunes à infecção. O principal fac-
tor que faz s diminuir é o próprio processo de transmissão da
infecção (se houver um programa de vacinação em massa, será
este o principal factor de diminuição de s). O destino da infec-
ção na população é, então, governado pela correlação de forças
entre os factores que fazem s variar. É possível, por exemplo,
que se atinja um equilíbrio, no qual as entradas e saídas da
categoria dos susceptíveis mantêm a infecção na população.
Numa situação de equilíbrio (a prevalência da doença
mantém-se constante), cada indivíduo infectado deveria, em
média, dar origem a um (e só um) outro indivíduo infectado
que o «substitui». Quer dizer, no equilíbrio espera-se que R0s =
1. Este resultado, que vem ao encontro do senso comum, é de
grande importância e utilidade em epidemiologia.

13 Anatomia de uma epidemia


Em doenças transmissíveis, um indivíduo infecta
outro indivíduo, dando origem a uma cadeia de transmis-
são e, eventualmente, a uma epidemia. Um indivíduo que
transporta a infecção para um grupo é designado por caso
primário. Os que são infectados por este são os casos se-
cundários. Se estes forem infectados mais ou menos ao
mesmo tempo, os casos terciários surgirão, também, apro-
ximadamente ao mesmo tempo e pode-se falar de «ondas»
65

Figura 1 | A evolução de uma epidemia está relacionada com a disponibi-


lidade de susceptíveis e, portanto, da evolução do número de substitutos.

ou gerações de infectados. O primeiro caso numa cadeia


é, por vezes, designado caso índex. No mundo real, muitas
vezes o caso primário é investigado e conclui-se que afinal
outras pessoas já tinham adoecido antes deste, não poden-
do, portanto, ser o caso índex.
A ideia da dinâmica típica de uma epidemia é comum.
No início, o número de novas infecções, ainda muito poucas,
começa por aumentar exponencialmente, depois abranda,
atinge um máximo e a seguir decresce mais ou menos ra-
pidamente. Da exposição acima torna-se claro que, na fase
inicial da epidemia, R0s > 1. Assumindo que R0 permanece
constante, uma epidemia deve, então, ser despoletada quan-
do a proporção de susceptíveis é tal que torna o número de
substitutos > 1. A epidemia consome os susceptíveis com
uma rapidez maior do que aquela com que eles se renovam
66

e gera uma dinâmica de descida da fracção s. Esta dinâmica


faz com que cada infectado gere cada vez menos novos in-
fectados e, a certa altura, gera em média um novo infectado
e depois < 1 infectado secundário, invertendo a tendência
da epidemia. A figura 1 ilustra a evolução do número efec-
tivo de reprodução da doença durante a epidemia.
67

VACINAÇÃO:
PORQUE RAZÃO É TÃO DIFÍCIL
ELIMINAR DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS?

Nos últimos três séculos observaram-se mudanças


significativas nos padrões de mortalidade natural da espé-
cie humana nos países industrializados, com a esperança
média de vida a passar de cerca de 25 a 30 anos, em 1700,
para cerca de 75 a 80 anos, em 2000. O fenómeno não está
perfeitamente compreendido, mas parece dever-se, em
grande parte, à melhoria significativa dos padrões de hi-
giene e de nutrição, com consequente declínio do número
de mortes por doenças transmissíveis. O declínio global da
mortalidade não se deu de forma uniforme ao longo do
tempo. Apesar da tendência decrescente da mortalidade, a
frequência e dimensão dos surtos epidémicos aumentou
durante os séculos xviii e xix, principalmente em consequên-
cia da mudança de padrões de comportamento social e do
crescimento dos grandes centros urbanos em sociedades
cada vez mais industrializadas. No século xx esta tendência
68

foi revertida, principalmente devido ao desenvolvimento e


difusão de programas de vacinação capazes de imunizar
fracções significativas da população contra doenças causa-
das por microparasitas (Tabela 3).

14 Vacinação e imunização
Um programa de imunização contra uma doença in-
fecciosa tem dois efeitos principais. O mais óbvio, o efeito
directo, é que uma fracção de indivíduos da população pas-
sa a estar protegida contra a doença – aumenta portanto a
fracção r da população. O efeito indirecto, consequência do
anterior, é que diminui a força de infecção λ da doença. O
aumento da fracção r tem por consequência a diminuição
da fracção de infectados. Diminui, também, a probabilidade
de que o contacto de um indivíduo infeccioso ocorra com
um susceptível ou, vendo pela perspectiva dos susceptíveis,
diminuir a probabilidade de um indivíduo susceptível en-
trar em contacto com a infecção. Se houver menos candi-
datos a espirrar e tossir à nossa volta (porque r é maior),
diminui a probabilidade de contactos com a infecção.
Uma consequência do efeito indirecto é não ser, em
geral, necessário imunizar todos os indivíduos duma popu-
lação, para erradicar uma doença transmissível. Uma vez
imunizado um número suficiente de indivíduos, os efeitos
indirectos associados orientam o número de substitutos
a ser permanentemente < 1, de tal forma que a doença
não pode permanecer endémica na população. É útil sa-
ber isto, pois vacinar 100% da população pode ser muito
69

Tabela 3 | Datas de início da administração de algumas vacinas em Portugal.


O Plano Nacional de Vacinação (PNV), em que as vacinas são gratuitas e
administradas em massa, iniciou-se em 1965-66 (desde então tem sofrido
actualizações). Antes de 1965 eram administradas algumas destas vacinas
em menor escala, como a tabela indica.

Infecção Vacinação
Poliomielite Em 1960 davam-se já algumas dezenas de
milhar de vacinas
Desde 1965 mais de um milhão de vacinas
(0-10 anos)
Difteria Em 1960-1962 já se davam cerca de 200 mil
vacinas
A partir de 1963 mais de meio milhão (0-10
anos)
Tétano Em 1960-1962 já se davam cerca de 200 mil
vacinas
A partir de 1963 mais de 700 mil vacinas
Tosse convulsa Em 1960-1963 já se davam 100 a 300 mil
vacinas
Desde 1964 mais de meio milhão (0-10 anos)

Varíola Desde 1960 (quebras em 1963-64)


Sarampo Campanha em 1973
No PNV desde 1974, aos 15 meses de idade

Papeira No PNV desde 1987, aos 15 meses de idade


Rubéola No PNV desde 1987, aos 15 meses de idade
Haemophilus in- Desde Janeiro 2000
fluenzae

Meningococo C Desde Janeiro 2006


Vírus do papiloma Desde Outubro 2008
humano
70

dispendioso. Uma pergunta central emerge e à qual se de-


dicará aqui atenção especial – qual é a proporção mínima
da população que deve ser imunizada para se conseguir
eliminar uma doença ou obter um nivel pré-especificado
de controlo? Antes de entrar propriamente no assunto, al-
gumas definições eventualmente úteis para a compreensão
do resto do texto.
Uma consequência do efeito indirecto é não ser em
geral necessário imunizar toda a população para erradicar
uma doença transmissível. Uma vez imunizado um núme-
ro suficientemente alto de indivíduos, os efeitos indirectos
associados conduzem o número de substitutos a ser per-
manentemente < 1, de tal forma que a doença não pode
permanecer endémica na população.
Vacinação e imunização são muitas vezes usados
como sinónimos, contudo, vacinação refere-se, apenas, à
administração da vacina ou toxóide e a vacinação não ga-
rante sempre imunização. Imunização refere-se ao proces-
so de indução ou fornecimento de imunidade por qualquer
meio (incluindo vacinação) activo ou passivo. A imunização
activa é a indução de defesas imunitárias endógenas pela
administração de vacinas ou toxóides. A imunização passiva
é a promoção de protecção temporária pela administração
de substâncias imunizantes produzidas exógenamente. A
transmissão de anticorpos maternos para o feto, através da
placenta, os quais darão protecção contra muitas doenças
durante os primeiros meses de vida, é um processo de imu-
nização passiva. Os agentes da imunização incluem vacinas,
toxóides, preparações de imunoglobulinas (de animais ou
71

Definições
Antitoxina – um anticorpo derivado do soro de animais após estimulação com
antigénios específicos e usado para imunização passiva.
Eliminação de uma doença – deixa de haver casos de doença numa área ge-
ográfica restrita.
Erradicação de uma doença – a doença é eliminada a nível planetário.
Imunoglobulina – solução com anticorpos, derivada de sangue humano ou de
animais, através do fraccionamento de grandes quantidades de plasma com
etanol frio. Com interesse, principalmente para manutenção da imunidade
naqueles com deficiências imunitárias ou para imunização passiva. As for-
mulações são preparadas para administração intravenosa ou intramuscular.
Toxóide – toxina bacteriana modificada por forma a perder a toxicidade, mas,
mesmo assim, reter a capacidade de estimular a formação de antitoxina.
Vacina – suspensão de microparasitas vivos com acção atenuada ou mortos
ou de fracções antigénicas de microparasitas. É administrada com o objectivo
de induzir imunidade e evitar a doença.

de dadores) e, no futuro, poderão incluir células imuno-


competentes quer derivadas do próprio hospedeiro, quer
de linhagens mantidas in vitro ou, como recentemente com
SARS-CoV-2, ARN concebido para expressar antigénios es-
pecíficos que estimularão o sistema imunitário.

15 Imunidade de grupo
Diz-se que uma população adquiriu imunidade de
grupo21para uma dada doença, quando existe um número
suficiente grande de indivíduos imunes, homogeneamente
distribuídos na população, de tal forma que a doença não
2 Imunidade de grupo é uma tradução do termo herd immunity frequente
na literatura anglo-saxónica, o qual tem raízes em trabalhos pioneiros com
animais domésticos.
72

se propague, caso seja introduzida na dita população. A


imunidade de grupo garante, portanto, não invasibilidade
da população pela infecção e, por maioria de razão, não
sustentabilidade da infecção, caso esta fosse endémica.
É intuitivo que para a infecção não alastrar, melhor, para
diminuir a sua incidência ao longo do tempo é necessário
que, em média, cada infectado contamine menos do que
um indivíduo susceptível antes de recuperar da infecção.
Por outras palavras, é necessário que o número de substi-
tutos seja sempre < 1,

R0s < 1 [15.1]

Suponhamos que uma fracção (p) de toda a popu-


lação é imunizada. Há portanto (1-p) indivíduos não imu-
nizados. Estes (1-p) poderão ser todos susceptíveis, mas
provavelmente haverá menos de (1-p) susceptíveis, dado
que alguns destes (1-p) já haviam adquirido imunidade de
forma natural antes do programa de imunização (foram in-
fectados e recuperaram). Portanto,

s ≤ 1-p

A quantidade crítica R0s é ≤ R0 (1-p),

R0 s ≤ R0 (1-p)
73

Se for possível garantir que o lado direito desta de-


sigualdade é < 1,

R0 (1-p) < 1 [15.2]

fica assegurado que a desigualdade [15.1] é verdadei-


ra. Designe-se a proporção crítica de indivíduos a vacinar
para que [15.2] seja verdadeira por pc. De [15.2] tira-se de
imediato

pc = 1 - 1/R0 [15.3]

equação esta que nos dá a primeira indicação da


fracção mínima da população que deve estar imunizada para
garantir que haja imunidade de grupo contra uma doença
caracterizada por R0. Se bem que o resultado [13.3] deva
ser aperfeiçoado para ter em atenção situações de maior
realismo, para já constitui uma aproximação válida cujas
consequências se podem examinar. A tabela 4 ilustra a re-
lação entre o número de reprodução da doença e a referida
fracção, segundo [15.3].
Por exemplo, se R0=5, é necessário imunizar 80% da
população para garantir imunidade populacional. Uma do-
ença com um número de contactos mais elevado requer
maior proporção de imunizados, como seria intuitivamente
de esperar. Se tudo o resto for igual (e.g. eficiência da vaci-
na e facilidade de administração) doenças com R0 elevado
devem, portanto, ser mais difíceis de erradicar da população
do que doenças com baixo R0.
74

Tabela 4 | Aumento da fracção crítica de indivíduos a imunizar (Pc) para


conseguir satisfazer a equação [15.1], em função do número básico de repro-
dução da doença, R0, de acordo com a equação [15.3].

R0 pc
2 0,5
5 0,8
10 0,9
15 0,93
20 0,95

16 Dificuldade
infecciosas
de eliminação de doenças

Um problema adicional na eliminação das doenças


transmissíveis é o que decorre da eficácia das vacinas. De-
fine-se a eficácia da vacina (EV) como a fracção dos vacina-
dos que, de facto, adquirem imunidade. Não existem vacinas
que sejam 100% eficazes. Existe quase sempre uma peque-
na proporção de indivíduos vacinados que não obtém a
imunidade que se esperaria. Esta proporção varia em geral
entre 3% e 10%, mas pode ser superior para certas vacinas
(Tabela 5).
A fracção crítica a imunizar por vacinação (pc) deve
satisfazer a relação pvEV ≥ pc, sendo pv a fracção da po-
pulação que foi vacinada. Por exemplo, numa doença para
a qual R0=10 e EV=0,95, a proporção da população que é
75

Tabela 5 | Eficácia de vacinação (EV) para doenças comuns nos humanos


(Keusch & Bart 1994).

Doença EV (%)
Tuberculose (BCG) 0-80
Cólera 50
Gripe 40-70
Febre tifóide 50-70
Tosse convulsa 80
Peste (?)90
Difteria 95
Rubéola 95
Tétano 95
Sarampo 95
Papeira 95
Poliomielite 97
Raiva 100

necessário vacinar não é de 90%, mas sim de 95%. A equa-


ção [13.3] implica então que a imunidade de grupo só é
conseguida se a fracção vacinada for:

[16.1]
76

Na Tabela 6 apresentam-se estimativas do grau de


cobertura da população, que um programa de vacinação
deve ter para eliminar algumas doenças, para as quais exis-
tem estimativas de, simultaneamente, R0 e EV. Apesar dos
vários pressupostos simplificadores, inerentes à equação
[16.1], a Tabela 6 dá uma indicação grosseira das doenças
que são mais fáceis de controlar e da dificuldade que existe,
em geral, em eliminar doenças infecciosas.
A Tabela 6 sugere que obter imunidade de grupo
para uma doença transmissível pode ser muito difícil, pois
a proporção de indivíduos a manter imunizados, de forma
sustentada, é, em geral, muito elevada. As equações [15.3] e
[16.1] pressupõem vacinação à nascença durante décadas
ou, em alternativa, uma campanha de vacinação em massa
de grandes dimensões, seguida de vacinação à nascença
ininterrupta. Só assim é possível manter as percentagens
da Tabela 6, não obstante a entrada contínua de recém-nas-
cidos susceptíveis, na população.
A varíola, em particular, aparenta ser uma das do-
enças que requer menor cobertura vacinal e isso explica,
em parte, o sucesso alcançado com a erradicação desta
doença (Tabela 6). De facto, o único caso de erradicação
duma doença à escala do globo é o da varíola. Por volta
de 1958, conseguiu-se a eliminação do vírus por vacina-
ção na maior parte dos países ocidentais. A doença, con-
tudo, permaneceu endémica em vários países em vias de
desenvolvimento. Em 1958, a OMS iniciou um programa
à escala mundial para erradicar a varíola. Não obstante
terem sido atingidos níveis muito elevados de vacinação
77

Tabela 6 | Estimativas da cobertura vacinal necessária para erradicar doen-


ças infecciosas, Pv, em função de valores típicos do seu R0 e da eficácia da
vacina, de acordo com a equação [16.1]. Todos os valores da tabela devem
ser considerados aproximados.

R0 típico EV (%) típica Pv (%)


Varíola 5 95 84
Poliomielite 6 97 86
Difteria 6 95 88
Rubéola 8 95 92
Parotidite (papeira) 10 95 95
Tosse convulsa 13 80 115
Sarampo 15 95 98

em países ainda afectados, o progresso foi lento, com a


doença persistindo ainda por muito tempo. O último caso
oficialmente registado ocorreu na Somália em 1977. A
erradicação foi conseguida com uma combinação de va-
cinação geral, isolamento dos doentes e vacinação dos
possíveis contactos do doente. O R0 da varíola, contudo,
parece ser relativamente baixo – R0 ≈ 4-5 (estimativas ob-
tidas na Índia). Além disso, trata-se duma doença de diag-
nóstico fácil, cuja vacina é estável mesmo em condições
de armazenamento primitivas. Parece razoável especular
que, atendendo às dificuldades que houve em eliminar a
varíola, com um R0 baixo, deve ser extremamente difícil
erradicar doenças com R0 mais elevado.
78

O sarampo, por exemplo, apesar de ser uma doença


de etiologia semelhante à da varíola, com sintomatologia
facilmente detectável e de curta duração, tem estimativas
de R0 superiores a 10 (com correspondentes valores de Pc
superiores a 90%), o que o torna uma doença de eliminação
muito mais difícil que a varíola. Por outro lado, o valor rela-
tivamente baixo de R0 para a poliomielite foi, provavelmen-
te, uma importante causa da aparente erradicação da doen-
ça na maioria dos países desenvolvidos. Em Junho de 2002,
a OMS declarou a polio eliminada da sua Região Europeia,
na qual se encontra Portugal. A imunização contra a tosse
convulsa, pelo contrário, levanta várias dificuldades, desig-
nadamente acerca da eficácia da vacina, da necessidade
de várias doses da mesma e de receios acerca de possíveis
efeitos neurológicos (não obstante a frequência destes ron-
dar 1 em cada 300.000 vacinados, no caso da vacina whole
cell); o valor relativamente alto de R0 para a tosse convulsa
complica, substancialmente, o problema e caso a eficácia
da vacina não seja melhorada, suscita a impossibilidade de
eliminação da doença (Tabela 6).

17 SARS-CoV-2
É quase impossível discutir imunidade de grupo, em
2021, sem uma referência à actual pandemia causada por
vírus SARS-CoV-2.
Existe já ampla evidência de que as vacinas disponí-
veis para este vírus são eficazes contra a infecção sintomá-
tica e, especialmente, eficazes para as formas mais graves
79

da doença. Além disso, existe, também, evidência crescen-


te de que reduzem o risco de infecção assintomática e de
transmissão por parte dos vacinados. A protecção contra a
infecção e a transmissão, acima representada por EV, é fun-
damental para impedir a circulação do vírus na comunidade
e alcançar imunidade de grupo.
Prosseguem actualmente os estudos que permitirão
a avaliação com mais rigor do impacto da vacinação na
transmissão. Não obstante, estudos recentes sugerem que
a infecção confirmada é, significativamente, reduzida na po-
pulação que está completamente vacinada. Para a variante
Delta de SARS-CoV-2, a qual domina presentemente a epi-
demiologia na Europa e na América do Norte, as estimati-
vas de EV contra infecção sintomática (não necessariamen-
te grave) situam-se predominantemente entre 75% e 80%
com duas doses das vacinas de mRNA e entre 30% e 40%
com uma dose apenas. Os valores de EV para doença grave
e hospitalização são mais elevados, isto é 90% a 98% com
duas doses e 70% a 88% com uma dose.
No que respeita ao R0 (número de reprodução na au-
sência de medidas de controlo e com seroprevalência nula),
os valores médios estimados para o início da epidemia de
SARS-CoV-2, em Portugal, oscilam entre 2,1 e 2,5 (Viana et
al 2021, Caetano et al 2021). Estes valores foram estimados
quando predominava o clade A2 do vírus (mutação D614G
na proteína spike), a qual predominou na Europa e em Por-
tugal, em 2020, e é menos transmissível do que a variante
Delta. Esta última aumentou em importância desde janeiro
de 2021 e representa presentemente (Setembro de 2021)
80

cerca de 100% dos casos em Portugal. Estima-se que a va-


riante Delta é 110% a 150% mais transmissível do que a
variante original, o que pressupõe a estimativas do seu R0
entre 4 e 6. Algumas autores apontam mesmo para um va-
lor do R0 superior, aproximadamente 7.
Combinando estes valores de R0 com as estimativas
de protecção, conferida pelas vacinas contra a infecção,
termino, como proposta de exercício aos leitores, usarem a
equação 16.1 para se aperceberem das razões pelas quais
a variante Delta veio lançar nuvens de pessimismo rela-
tivamente à possibilidade de imunidade de grupo contra
SARS-CoV-2.

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