Historiografia 2024 Claretiano
Historiografia 2024 Claretiano
Historiografia 2024 Claretiano
br/his-gs0009-
fev-2022-grad-ead/)
1. Introdução
Nesta disciplina, trataremos de aspectos teóricos e metodológicos da História.
Isto é, buscaremos compreender a história da ciência da História a partir de
questões epistemológicas (teoria do conhecimento) e hermenêuticas (interpre-
tação e compreensão). Ou seja, nos deteremos à historiogra�a, que, de forma
simplista, pode ser entendida com a escrita da história.
Dessa forma, teremos duas perspectivas para serem tratadas: a primeira delas
é a de compreender como, ao longo do tempo, a História foi pensada, de�nida
e escrita. Nessa direção, estudaremos a História da História, ou, para empre-
garmos uma outra expressão, a história da ; já a segunda será a
de compreender neste panorama os conceitos e procedimentos metodológicos
criados ao longo do tempo para a escrita da História.
2. Informações da Disciplina
Ementa
A disciplina de discute os processos de mudança nos paradig-
mas epistemológicos da historiogra�a, sendo esses as alterações promovidas
no fazer historiográ�co após a incorporação de novos temas, métodos e lin-
guagens pelos historiadores. Para isso, abordaremos a relação entre a História
e as outras Ciências Humanas, buscando na escrita da História a compreen-
são dos processos que envolvem a produção deste conhecimento na
Antiguidade, na Idade Média e no Renascimento. À vista disso, a análise se-
gue com base na construção historiográ�ca iluminista, positivista e metódica,
além de também apresentar e discutir a historiográ�ca marxista e a produzida
pela Escola dos Annales em suas 3 gerações. Ainda serão feitas análises acer-
ca da crise de paradigmas e produção historiográ�ca no século XXI por meio
das teorias do conhecimento histórico pós-moderno, perpassando a constru-
ção historiográ�ca acerca da História enquanto narrativa, discurso, literatura,
�cção, e representação, bem como as relações estabelecidas com a
e a Nova História Cultural. Por �m, a disciplina busca a compreensão
da construção do discurso historiográ�co através do tempo, a �m de se com-
preender, também, o atual estado da arte.
Objetivos Gerais
• Compreender o conceito de historiogra�a em sua epistemologia.
• Perceber os processos de mudança nos paradigmas epistemológicos da
historiogra�a.
• Localizar e relacionar as diferentes correntes historiográ�cas e suas prin-
cipais características.
• Re�etir sobre a ampliação de temas, métodos e fontes de pesquisa na pro-
dução do saber historiográ�co.
• Perceber as mudanças epistemológicas da História diante de sua relação
com as demais Ciências Humanas e contexto de produção.
Objetivos Especí�cos
• Identi�car a produção historiográ�ca na Antiguidade, na Idade Média e
no Renascimento.
• Compreender a contribuição historiográ�ca marxista e da Escola dos
Annales em suas três gerações para o fazer historiográ�co.
• Caracterizar a Micro-História e a Nova História Cultural em relação à his-
toriogra�a proposta pelos Annales.
• Entender o paradigma pós-moderno, compreendendo a História enquanto
narrativa, discurso, literatura, �cção e representação, bem como as rela-
ções estabelecidas com a Micro-História e a Nova História Cultural.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-
fev-2022-grad-ead/)
Objetivos
• Compreender o conceito de historiogra�a.
• Identi�car os tipos e funções da historiogra�a.
• Reconhecer os diferentes documentos e métodos de pesquisa.
• Perceber a relação da História com as demais ciências humanas.
Conteúdos
• A historiogra�a em seus tipos, funções, métodos e fontes de pesquisa.
• Processos de mudança nos paradigmas epistemológicos da historiogra-
�a.
• A relação entre a História e as demais Ciências Humanas.
Problematização
O que é historiogra�a? Como diferentes temas, métodos e fontes de pesquisa
transformam a construção do discurso historiográ�co? O que é uma quebra
de paradigma historiográ�co? Qual a relação da historiogra�a com as demais
ciências humanas?
1. Introdução
Neste primeiro ciclo de aprendizagem, veremos os diversos signi�cados que a
história assumiu em diferentes contextos e usos. Veremos como variados mé-
todos, temáticas e fontes de pesquisa determinam diferentes concepções de
história, que se transformaram ao logo tempo, sobretudo, em função dos diálo-
gos estabelecidos com as demais Ciências Humanas, que interferiram direta-
mente na construção das correntes historiogra�as.
É bom lembrarmos que nem todos os povos que �zeram História se preocupa-
ram em reconstituí-la, em narrá-la. Muitos, na verdade, procuraram explicar
seu passado de outras formas, utilizando-se, por exemplo, dos mitos.
a primeira forma de explicação que surge nas sociedades primitivas é o mito, sem-
pre transmitido em forma de tradição oral, ou seja, os mitos eram contados de gera-
ção a geração, preservando-se na memória daquele povo por meio da transmissão
oral. A historiadora Vavy Pacheco a�rma ainda que “o mito é sempre uma história
com personagens sobrenaturais, os deuses. Nos mitos os homens são objetos passi-
vos da ação dos deuses, que são responsáveis pela criação do mundo (cosmos), da
natureza, pelo aparecimento dos homens e pelo seu destino”. Assim, os mitos con-
tam em geral a história de uma criação, do início de alguma coisa. É sempre uma
história sagrada.
É claro que esses povos primitivos, como já dissemos, tiveram História, uma
vez que houve acontecimentos humanos ao longo do tempo; contudo, nunca
produziram História, pois não registraram nem narraram os acontecimentos
presenciados e vivenciados por eles.
Dessa forma, podemos a�rmar que a História, nesse segundo sentido, nasce na
Grécia Antiga entre os séculos 6º e 5º a.C. A partir desse momento, o homem
passou a sentir necessidade de registrar os fatos do passado, procurando ser
�el a eles.
Sobre a evolução desse processo até os dias atuais, isto é, como o homem es-
creveu e escreve sua História, veremos em breve. O que nos interessa no mo-
mento é de�nir que História tem esse duplo caráter: acontecimento humano
no tempo e reconstituição desses acontecimentos por meio da escrita sobre o
passado.
Desse modo, o trabalho do historiador é registrar os fatos, ser �el a eles, mas,
também, buscar interpretá-los, reconstituindo o passado de maneira a dar-lhe
sentido. Assim, toda História escrita é uma análise do passado, mas com as
preocupações do presente.
Nos termos colocados por Carr (1996, p. 79), “não há indicador mais signi�cati-
vo do caráter de uma sociedade do que o tipo de História que ela escreve ou
deixa de escrever”.
Em seu cotidiano, quando várias pessoas narram um acontecimento do passado, cada uma
delas faz isso de uma maneira diferente, apesar de o fato ser o mesmo. Re�ita sobre isso...
Com base nas a�rmações de Carr (1996) – de que é indicativo o modo como
uma sociedade escreve ou deixa de escrever sua História –, concluímos que a
historiogra�a, a História da História, é um aspecto essencial das sociedades
humanas e pode revelar suas visões de mundo.
Como escreveu Carr (1996, p. 63), História é “um processo contínuo de intera-
ção entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o passado e
o presente”. Assim, é impossível construir uma “História de�nitiva” ou
“História verdadeira”, uma “História única”, pois o historiador lida a todo o mo-
mento com essa dualidade de, por um lado, reconstituir o passado, e, por outro,
interpretá-lo.
Aprofunde seus conhecimentos com a leitura da obra: BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do
Historiador. Prefácio de Jacques Le Goff. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
Mas, evidentemente, o autor vai além dessa observação. A�rma que a História
só sobrevive se mantiver seu caráter estético, ou seja, sua beleza poética.
Assim, a História caminha entre a beleza e o rigor conceitual, entre o texto
bem escrito, por um lado, e o bem construído teoricamente, por outro. A
História é “uma ciência em marcha” e, além disso, está “na infância”, pois ne-
cessita ser (re)pensada a todo o momento, algo que à época de Bloch estava
apenas começando.
De�ne o eminente historiador que o objeto da História, ou seja, aquilo que ela deve investi-
gar, não é uma entidade metafísica como “o tempo”, mas sim o homem e, mais precisamen-
te, os homens no tempo, suas ações e práticas em todas as suas manifestações.
Nesse sentido, para Bloch (2001), onde houver seres humanos, existirá História
e, assim, algo a ser elucidado pelo historiador. Além disso, ele diz que somente
um historiador atento ao presente, conhecedor de seu tempo, pode inquirir, sa-
tisfatoriamente, os homens do passado, pois “o presente bem referenciado e
de�nido dá início ao processo fundamental do ofício de historiador: compre-
ender o presente pelo passado e, correlativamente, compreender o passado pe-
lo presente” (BLOCH apud LE GOFF, 2001, p. 25).
Para encerrar essa primeira abordagem sobre o que signi�ca o estudo da
História, gostaríamos de citar uma metáfora de Carr. Segundo ele, em um de-
terminado momento, os historiadores de�niam que História era um amontoa-
do de fatos. Portanto,
Essa concepção, nos últimos 50 anos, vem sendo substituída por uma mais
condizente com a realidade da produção histórica, isto é:
os fatos na verdade não são absolutamente como peixes na peixaria. Eles são como
peixes nadando livremente num oceano vasto e algumas vezes inacessível; o que o
historiador pesca dependerá parcialmente da sorte, mas principalmente da parte
do oceano em que ele prefere pescar e do molinete que ele usa – fatores estes que
são naturalmente determinados pela qualidade de peixes que ele quer pegar. De um
modo geral, o historiador conseguirá o tipo de fatos que ele quer. História signi�ca
interpretação (CARR, 1996, p. 49).
Borges (1985, p. 48) lembra que, “desde que existem sobre a Terra, os homens
estão em relação com a natureza (para produzirem sua vida) e com os outros
homens. Dessa interação é que resultam os fatos, os acontecimentos, os fenô-
menos que constituem o processo histórico”. Desse modo, o objetivo funda-
mental do historiador deve ser a reconstituição do passado. Para isso, são ne-
cessários levantamentos e estudos de fontes documentais desse passado.
Podemos concluir, então, que os documentos históricos não são absolutos, não falam por si, ou seja, que
eles dependem de uma análise do historiador.
Imagine, num exercício de análise contrafactual, que, por acaso, os nazistas tivessem ven-
cido a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Acreditamos que, para isso acontecer, eles nun-
ca poderiam ter perdido a longa luta travada em Stalingrado, na União Soviética.
Toda vez que aparecerem datas entre parênteses na frente de um nome, como, por exemplo, René
Descartes (1596-1650), estamos fazendo referência ao período em que viveu determinado pensador.
Assim, �ca claro que narrar o passado é um exercício de re�exão sobre os do-
cumentos históricos, sobre os registros que temos do passado, mas não ape-
nas isso. Devemos sempre nos perguntar sobre as motivações e razões para a
preservação de determinados fatos e não de outros.
É bom lembrar que quem produz o documento está imbuído de sua visão de
mundo, de sua forma de interpretar a situação em que se envolveu, de maneira
que não é neutro nem está acima dos fatos para julgá-los com “imparcialida-
de”. Como a�rma Carr (1996, p. 55), “os fatos e os documentos são essenciais ao
historiador. Mas que não se tornem fetiches”.
Em contrapartida, o historiador não pode cair na tentação de negar o docu-
mento, de apenas valorizar a interpretação que construiu em sua mente, de
buscar adaptar a realidade que estuda aos interesses de sua visão de mundo.
Novamente, podemos nos apoiar em Carr para elucidar essa relação entre do-
cumento e interpretação dos fatos.
Para ele, “o historiador começa com uma seleção provisória de fatos e uma in-
terpretação, também, provisória, a partir da qual a seleção foi feita”. Enquanto
está trabalhando no tema, “tanto a interpretação e a seleção quanto a ordena-
ção de fatos passam por mudanças sutis e talvez parcialmente inconscientes,
através da ação recíproca de uma ou da outra”. Por isso, “o historiador e os fa-
tos históricos são necessários um ao outro”, pois “o historiador sem seus fatos
não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem signi-
�cado” (CARR, 1996, p. 65).
Logo, essa ação mútua de historiador sobre os fatos e estes sobre o historiador
“envolve a reciprocidade entre presente e passado, uma vez que o historiador
faz parte do presente e os fatos pertencem ao passado” (CARR 1996, p. 65).
Para aprofundar seus estudos acerca desse assunto, sugerimos a leitura das seguintes obras:
Lucien Febvre. Olhares sobre a História. Lisboa: Edições ASA, 1996.
Lucien Febvre. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989.
Para Novais (2005), que é um dos mais importantes historiadores brasileiros, o
problema do anacronismo aparece de maneira cristalina em um tipo de
História especí�co: a chamada História “Nacional”, que tem por objeto a nação
e o Estado Nacional. Vejamos como ele apresenta o problema:
Na procura por essa boa História, além de ter que selecionar documentos e fa-
tos históricos para reconstituir o passado e procurar estabelecer �os conduto-
res para uma interpretação satisfatória dos acontecimentos humanos, o histo-
riador deve fugir da tentação de
, na medida em que
é impossível que estes o saibam e, portanto, impossível, também, analisá-los
dessa perspectiva.
Se a História, por seu lado, tem um objeto não delimitado, o grande debate den-
tro das Ciências Sociais é justamente saber onde delimitar os seus objetos.
Qual é a fronteira que divide a Sociologia da Antropologia, por exemplo?
Apesar do ataque que a História sofreu das outras Ciências Sociais, o funda-
mental é que, do ponto de vista do objeto, temos uma vantagem comparativa: o
objeto da História é toda a ação humana no tempo.
Por causa dessa amplitude de seu objeto, foi possível que, no momento em que
ocorreu uma crise das Ciências Sociais no último quarto do século 20, a
História respondesse a essa crise com uma ampliação dos objetos de estudo,
dedicando-se a temas que antes estavam negligenciados (o sexo, o amor, a fa-
mília, a criança, a mulher, entre outros).
Você acha que a História pode ser considerada o carro-chefe das Ciências Sociais?
:
Sugerimos a leitura da seguinte obra para o aprofundamento de seus estudos: VEYNE, Paul. Como se es-
creve a História. Lisboa: Edições 70, s/d.
Talvez você esteja se perguntando: mas isso signi�ca que a História não ne-
cessita das Ciências Sociais?
Em resumo, o historiador explica para reconstituir e o cientista social reconstitui para ex-
plicar. As demandas sociais que os �zeram surgir explicam essa diferença e, ao mesmo
tempo, o sentido de necessidade de apoiar-se um no outro.
Para saber mais sobre o assunto em questão, leia: BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais: a longa
duração. In: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 39-78.
Esta obra divide-se em três partes, cada uma das quais pretende ser uma tentativa
de explicação de conjunto.
A primeira trata de uma história, quase imóvel, que é a do homem nas suas rela-
ções com o meio que o rodeia, uma história lenta, de lentas transformações, mui-
tas vezes feita de retrocessos, de ciclos sempre recomeçados [...].
Acima desta história imóvel, pode distinguir-se uma outra, caracterizada por um
ritmo lento: se a expressão não tivesse sido esvaziada do seu sentido pleno,
chamar-lhe-íamos de bom grado história social, a história dos grupos e agrupa-
mentos. Qual a in�uência dessas vagas de fundo no conjunto da vida mediterrâni-
ca, eis a pergunta que a mim próprio pus na segunda parte da minha obra, ao es-
tudar, sucessivamente, as economias, os Estados, as sociedades, as civilizações, e
ao tentar, por �m, e para melhor esclarecer a minha concepção de história, mos-
trar como todas estas forças profundas atuam no complexo domínio da guerra. [...]
O tempo longo seria aquele em que as transformações são muito lentas, quase
imóveis, no qual o fundamental está na relação “homem e espaço”. Já o tempo
de média duração seria aquele em que as transformações ocorrem no nível
das estruturas sociais, com movimentos longos, resultando em grandes sínte-
ses econômicas, sociais, políticas, culturais. Por �m, o tempo curto, o tempo
jornalístico, seria o tempo do registro imediato, o tempo das paixões, dos acon-
tecimentos e da instantaneidade.
Observamos, pois, que cada uma das Ciências Sociais ajusta-se mais a um de-
terminado tempo do que a outro, e, na relação desses tempos, seria possível
estabelecer o contato entre as diversas ciências do homem. A História seria,
nesse sentido, o carro-chefe do processo, na medida em que ela, como vimos, é
a ciência social que melhor compreende o homem no tempo.
6. A história da historiogra�a
Entendido que a História pode assumir diferentes sentidos e funções nos di-
versos contextos e períodos em que foi produzida, agora veremos uma breve
linha do tempo da historiogra�a. Com isso, poderemos criar uma visão mais
ampla do desenvolvimento da disciplina, para que depois possamos abordar
de forma detalhada os principais paradigmas historiográ�cos que pautaram
e/ou in�uenciaram a historiogra�a até os dias atuais.
Para isso, assista aos vídeos a seguir, que, partindo do próprio conceito de his-
toriogra�a, abordam a produção na antiguidade, no medievo e nos séculos 18,
19 e 20, criando uma visão geral da evolução dessa área do saber ao longo do
tempo e destacando seus temas, métodos e fontes de pesquisa. Acompanhe.
7. O que é historiogra�a?
Eis um conceito simples de se explicar: em resumo, historiogra�a é a escrita
da História. Quem dera ser realmente tão simples. Este é um daqueles mo-
mentos em que ditados populares não são meros clichês: “a simplicidade é
complexa”. O problema reside no fato de que escrever a História implica consi-
derar contextos diferentes (do tema, do historiador), ideologias diversas (do
historiador, da editora, do público), fontes utilizadas para a pesquisa (escritas,
orais, iconográ�cas), questionamentos dirigidos a essas fontes, teoria empre-
gada para análise.
Vamos re�etir juntos sobre essa de�nição? Inicialmente, tomemos a frase “na-
da mais que a história do discurso”, ou seja, historiogra�a é o estudo de tudo o
que já foi dito sobre um tema em diferentes modos, lugares e tempos. Depois,
“um discurso escrito e que se a�rma verdadeiro”, ou seja, o que foi dito deve ser
considerado como discurso digno de ser acatado. E, por �m, “nunca uma soci-
edade se revela tão bem como quando projeta para trás de si a sua própria
imagem”. Em outras palavras, como não temos como nos desvencilhar total-
mente de nossas ideologias, de nossos conceitos, das marcas de nosso tempo,
sempre que apresentamos o resultado de uma pesquisa histórica, a marca de
nossa época �ca evidenciada. Resumindo, a historiogra�a é o produto de uma
era, é uma construção histórica.
Tipos de historiogra�a.
Funções da História.
1) Função a�rmativa A�rmar uma ideologia o�cial.
8. A historiogra�a na antiguidade
Antes de adentrar na produção de Heródoto e Tucídides, é importante enten-
dermos o contexto no qual a escrita da História nasceu: aquele da oralidade e,
também, da mitologia.
Para o Grego das épocas arcaica e clássica, a palavra representava o poder por
excelência. Vejamos o que o helenista Jean-Pierre Vernant tem a dizer a esse
respeito (o termo “Grego” é utilizado aqui em maiúsculo não só para caracteri-
zar os habitantes da Grécia, mas igualmente compreendendo-o como uma ca-
tegoria que inclui homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, todos incluí-
dos dentro de um contexto social e cultural maior):
Com base nessa assertiva, observamos que o logos ocupava um lugar central
nessa época da nascente razão. Mas não nos enganemos: logos e mythos não
eram totalmente excludentes, nem mesmo contraditórios. A razão, representa-
da pelo logos, nasce do mythos.
Por que devo vos falar de acontecimentos muito antigos quando estes são atestados
antes por boatos que circulam (akoaí) do que pelo que se viu com seu olhos aqueles
que nos ouvem (TUCÍDIDES, I, 73, 2).
Outros nomes podem e devem ser citados para esse período da historiogra�a:
Aristóteles, Políbio, Salústio, Tácito e Cícero.
Vale ressaltar aqui a diferença estabelecida por Aristóteles entre História e po-
esia. Reproduziremos, a seguir, uma das mais famosas passagens desse autor
em que esclarece este binômio contrário:
Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (...) –
diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam su-
ceder. Por isso, a poesia é algo de mais �losó�co e mais sério do que a História, pois
prefere aquele principalmente o universal, e esta o particular (ARISTÓTELES. 2003,
9, 50).
9. A historiogra�a no Medievo
A no Medievo está intrinsecamente ligada ao Cristianismo.
Basta lembrar que, durante muito tempo, a Igreja foi a detentora do saber.
Nesse período, os homens, suas obras e os acontecimentos só ganhavam im-
portância se vistos como resultados dos desígnios divinos.
Em 1870, ocorreu a derrota do exército francês na guerra franco-prussiana. Com essa derrota, a França
sentiu a necessidade de reescrever sua história e de construir sua identidade. O pensamento histórico ale-
mão teve grande in�uência nesse contexto. Dentre os autores mais conhecidos desse período, citamos:
Gabriel Monod, Charles Seignobos e Ernest Lavisse. Todos eles, ao lado de Theodor Mommsen, serviram
de modelo e inspiração para as gerações posteriores de historiadores franceses.
É assim que Peter Burke inicia e �naliza o seu livro A Revolução Francesa da
Historiogra�a: a Escola dos Annales, 1929-1989, em que descreve e analisa as
três gerações do movimento intelectual francês associadas à revista Annales
(o primeiro título da revista foi Annales d'histoire économique et sociale
[1929]), que teve como seus principais representantes Marc Bloch, Lucien
Febvre, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff, Emmanuel Le Roy
Ladurie, Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon, Michel Vovelle, en-
tre tantos outros.
3ª geração de 1968...
Fase também conhecida por História Nova ou Nova História. Essa geração
particularmente nos interessa, pois os questionamentos apresentados no de-
correr desta disciplina são oferecidos a nós pelos integrantes desse grupo ou
por estudiosos que questionaram os paradigmas da história a partir das dis-
cussões desse grupo. Por esse motivo, um item separado abordará o tema.
Mas esses objetos carecem de uma abordagem apropriada. Como você anali-
saria essas temáticas no tempo, melhor dizendo, a uma primeira vista?
Acredita ser capaz de reconhecer as atitudes perante a morte num breve espa-
ço de tempo? Os adeptos da história das mentalidades não apostaram nessa
possibilidade. Houve um aprofundamento nas pesquisas de longa duração:
“[...] tempos das estruturas, tempo quase imóvel da relação entre o homem e a
natureza” (VAINFAS, 1997, p. 134).
É óbvio, e você já estudou em outras disciplinas, que a Nova História não se re-
sumiu à História das Mentalidades. Para �nalizar, a sua atenção, nesse mo-
mento, deve voltar-se para o fato de que, com a introdução de novos proble-
mas, novas abordagens e novos objetos nos estudos historiográ�cos, o próprio
conceito de História mudou, o modo de se contar a história mudou, e a sua re-
lação com outras disciplinas também. São essas transformações que veremos
mais adiante.
Para auxiliá-lo numa re�exão crítica sobre a historiogra�a, após alguns frag-
mentos, foram inseridos comentários direcionando a leitura. Sugerimos que
após essa leitura dirigida, você busque pelo artigo na íntegra e elabore seu
próprio bloco de anotações. O artigo pode ser consultado na íntegra no clican-
do aqui (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&
pid=S0101-90742005000200008&lng=en&nrm=iso).
Encontramos algumas re�exões sobre a historiogra�a nas obras dos próprios his-
toriadores. Mas, na maior parte das vezes, essas re�exões são fragmentárias, estão
inseridas em polêmicas com outros historiadores ou trata-se de simples elogios
retóricos da historiogra�a. Na verdade, a mais completa investigação antiga sobre
a historiogra�a encontra-se em um pequeno tratado da autoria de Luciano de
Samósata, um escritor satírico nascido na Síria no século II da Era Cristã: Como se
deve escrever a história, a única obra antiga inteiramente dedicada à historiogra-
�a de um ponto de vista teórico que conhecemos.
Comecemos, portanto, pelo próprio ineditismo da obra: por que Luciano resolveu
escrever uma teoria da história? Por que escrever um tratado que nenhum outro
escritor da Antigüidade tivera necessidade ou interesse em escrever?
Observe este pequeno resumo da obra onde o autor do artigo descreve alguns
elementos do texto analisado. É interessante constatar que a crítica historio-
grá�ca já era utilizada nos primórdios da escrita da História.
Sendo uma obra de crítica, Como se deve escrever a história estava, portanto, viva-
mente inserida na prática historiográ�ca do século II d.C.. O que não signi�ca ne-
cessariamente que os vários exemplos ridículos de histórias e historiadores cita-
dos por Luciano tenham realmente existido. O próprio Luciano parece extrema-
mente irônico ao garantir a veracidade das histórias por ele criticadas:
História justa... verdadeira – eis a proposta de Luciano. Para elaborar essa crí-
tica, o autor parte do pressuposto de que muitas histórias estão fantasiadas;
não narram o que realmente teria acontecido. Muito disso estava relacionado
ao contexto no qual o historiador estava inserido (funcionário de governo, fun-
cionário direto ou escravo do imperador etc.). Podemos dizer que hoje em dia
também é necessário considerar o lugar do historiador?
Para Luciano, o poder romano era uma constatação evidente e explícita: ninguém
se atreveria a combatê-lo, pois ele já havia submetido e conquistado todos os po-
vos. Com efeito, a época da vida de Luciano, o século II d.C., foi o auge do poderio
imperial romano, o período dos Antoninos, e a di�culdade de se escrever uma his-
tória justa era que a maioria dos historiadores, “negligenciando contar o que ocor-
reu [os eventos], gastam seu tempo no elogio dos chefes e dos generais, elevando
os nossos até as nuvens e depreciando os do inimigo além de toda a medida”.
Luciano, embora não critique os romanos diretamente nem uma vez, resume seus
preceitos para a história dizendo que é necessário escrever a história “com o ver-
dadeiro […] mais do que com a adulação [kolakeía]”. Portanto, o alvo das críticas de
ambos eram os historiadores aduladores, intelectuais que estavam mais preocu-
pados com os favores dos poderosos do que com a narrativa dos eventos ou com o
rigor histórico, as preocupações de um verdadeiro historiador. Além disso, ao es-
crever em grego, ambos os autores visavam, evidentemente, a um público que fa-
lava grego e, certamente, suas críticas eram dirigidas aos historiadores que escre-
veram histórias romanas em grego. Ora, qual seria a relação possível entre esses
intelectuais gregos e seus senhores romanos senão a adulação e a troca de favo-
res?
Podemos ler, assim, em Luciano, uma forte oposição entre a verdade que a história
deveria possuir e a adulação que, na maior parte dos casos, era o que se lia nas
narrativas dos historiadores. A oposição central do Como se deve escrever a histó-
ria não é, portanto, entre verdade e mentira, como poderíamos pensar inicialmen-
te; é entre verdade e adulação, pois a história era um assunto político que exigia
imparcialidade e justiça.
Verdade x mentira... história x �cção? Será que podemos fazer tal associação?
Se a adulação não é uma escrita justa e verdadeira, ela não pode ser estudada
como um produto de uma situação? Em outras palavras, por que adular? A
quem atingir com o texto? Sabendo que muitos escritores antigos trabalhavam
diretamente ligados a órgãos do governo, como analisar a produção deles? Que
cuidados tomar quando da análise desse tipo de documento?
A única ação possível para Luciano contra o poder invencível de Roma e seus
aduladores era a crítica. Em diversas obras de Luciano os �lósofos cínicos – como
Diógenes, Crates, Menipo e outros – são encarregados dessa crítica que, mesmo
cômica e caricatural, não perde sua mordacidade. Eles são os médicos das paixões
– as doenças da mente humana – e o próprio Luciano, pela boca de Diógenes, nos
diz qual a função do crítico cínico: “Sou um libertador de homens e um médico de
suas paixões; para dizer tudo, quero ser um profeta da verdade e da franqueza.”
Não se pode deixar de observar que quase todas essas virtudes aparecem na de�-
nição do historiador ideal em Como se deve escrever a história:
Assim, pois, para mim, deve ser o historiador: sem medo, incorruptível,
livre [eleútheros], amigo da franqueza [parresías] e da verdade [aléthei-
as]; como diz o poeta cômico, alguém que chame os �gos de �gos e a ga-
mela de gamela; alguém que não admita nem omita nada por ódio ou
por amizade; que a ninguém poupe, nem respeite, nem humilhe; que se-
ja juiz equânime, benevolente com todos até o ponto de não dar a um
mais que o devido; estrangeiro nos livros, sem cidade, independente [au-
tónomos], sem rei, não se preocupando com o que achará este ou aquele,
mas dizendo o que se passou.
Assim, vemos que, para Luciano, o historiador deve ser uma espécie de �lósofo cí-
nico, livre e sem medo de ser sincero. Mais uma vez, é possível ligar essa passa-
gem ao problema da adulação: se o historiador cometesse o erro de bajular os po-
derosos, estaria abdicando de sua liberdade e de sua auto-su�ciência.
Para todos os lados que se olhe, a adulação surge como um pecado a ser evitado.
Como a adulação não devia ter espaço em uma obra de história, Luciano, para cri-
ticar esse vício, escreveu um pan�eto com a forma de uma teoria da história. Em
Como se deve escrever a história, os aspectos teóricos do tratado estão a serviço
da intenção crítica; uma crítica surgida das necessidades políticas do presente. Se
a circunstância da guerra e das histórias adulatórias que ela gerou não ocorresse,
imagino que Luciano não teria escrito um tratado sobre a história.
Segundo Luciano, seus conselhos funcionavam “de uma maneira dupla”; ensina-
vam os historiadores “a escolher isso e evitar aquilo”. Assim, ele começa a parte
teórica de seu tratado catalogando “os vícios que seguem nos calcanhares dos his-
toriadores medíocres” e ensinando, precisamente, como não se deve escrever a
história.
A posição de Luciano nessa guerra entre a �loso�a e a sofística é clara: ele se posi-
ciona contra a retórica vazia, simples discursos de aparato, sem conteúdo. Luciano
começou sua carreira como orador e nunca deixou de sê-lo, mas voltou o arsenal
da retórica e da sofística contra os �lósofos, so�stas, historiadores, gramáticos ou
qualquer outro que considerasse hipócrita ou mentiroso.
A retórica, para Luciano, deveria ser uma retórica idealizada que seguisse “as pe-
gadas de Demóstenes, Platão e alguns outros”. Mas a retórica dos antigos não
existia mais; fora substituída por uma retórica das aparências, simples ornamento
sem conteúdo ou utilidade. Restava apenas o “outro caminho”, trilhado por “muita
gente”. Esse era o caminho da retórica “moderna”, o caminho trilhado pelos “se-
gundos” so�stas, biografados por Filóstrato, que visavam apenas a ganhos materi-
ais.
Juntamente com a retórica sem conteúdo, Luciano renega o prazer dos discursos e
não lhes permite um lugar na história. No entanto, os maus historiadores acha-
vam que era possível distinguir entre o prazeroso e o útil quando se tratava de his-
tória. “Por essa razão”, prossegue, eles “trazem elogios para ela [a história], para
dar prazer e divertimento aos leitores”. Eles não sabem quão longe estão da verda-
de, pois “a história tem uma única tarefa e um único objetivo – o que é útil – e isso
deriva somente da verdade”. Por isso, os historiadores “não pode[m] admitir uma
mentira, mesmo em pequenas doses”, enquanto os oradores de sua época não se
importavam em mentir para obter seus resultados: o prazer dos ouvintes, a fama e
a fortuna resultantes do sucesso na carreira declamatória.
No entanto, Luciano concede que possa haver lugar para elogios em uma obra his-
toriográ�ca, desde que eles sejam controlados pelo interesse da posteridade e pela
utilidade. Tanto os elogios (épainoi) quanto as censuras (psógoi) deviam ser “cui-
dadosos e bem considerados, livres de contaminação pelos informantes, suporta-
dos pela evidência [metà apodeíxeon], curtos e não inoportunos, pois os envolvi-
dos não estão sendo acusados no tribunal”.
Ou seja, há um lugar para o elogio na historiogra�a, desde que “seja feito na hora
certa e que se mantenha dentro de limites razoáveis”. O grande problema, portan-
to, não parece ser o elogio em si, mas o exagero do seu uso. Além disso, quando
Luciano diz que o elogio na historiogra�a deve se basear em evidências (metà
apodeíxeon), mostra a antiga �liação daquela com a verdade e afasta-a ainda mais
da retórica epidítica. Com efeito, assim como a apódeixis da retórica aristotélica, a
história deveria partir de fatos verdadeiros e mostrar sua causa. Isto �ca bem cla-
ro no prefácio de Heródoto:
[...] esta é a demonstração da investigação [historíes apódexis] de
Heródoto de Halicarnasso, para que nem as coisas feitas pelo homem se
apaguem com o tempo, nem que as grandes e maravilhosas obras, algu-
mas realizadas [apodechthénta, i.e., demonstradas] pelos gregos, outras
pelos bárbaros, se tornem inglórias, tanto em outros respeitos, quanto
sobre a causa [aitíen] pela qual eles moveram guerra uns contra os ou-
tros.
Por �m, creio que vale a pena examinarmos uma pequena metáfora utilizada por
Luciano em seu manual. Segundo o sírio, o historiador deve deixar que sua inteli-
gência seja “semelhante a um espelho impoluto, brilhante, preciso quanto a seu
centro – e, qualquer que seja a forma dos fatos que recebe, assim os mostre, sem
nenhuma distorção, diferença de cor ou alteração de aspecto”.
Isso poderia signi�car que o historiador sempre vai acrescentar algo aos fatos,
malgrado sua precisão e imparcialidade? Talvez. Mas creio que isso seria ler
Luciano pensando em Hayden White. Luciano, como todos os antigos, acreditava
na possibilidade de “narrar a história tal como ela aconteceu”. Além do que, não
podemos esquecer que o espelho criticado por Platão e Aristóteles é o objeto, o dis-
co metálico que re�ete imagens. Na literatura grega, no entanto, o espelho aparece
quase sempre com um sentido �gurado. E esse sentido sempre se re�ete sobre o
plano moral....
A única tarefa do historiador é contar o que aconteceu. Quando um homem vai es-
crever história, deve ignorar todo o resto.
1
Como se deve escrever a história, 2. Luciano se refere à guerra iniciada pelo rei parto
Vologésio IV na primavera do ano 162 e vencida pelo co-imperador Lúcio Vero quatro anos de-
pois (o triunfo foi celebrado em 12 de outubro de 166). A edição consultada para as obras de
Luciano é Lucian in eight volumes. Londres, Cambridge, Mass.: William Heinemann,
Harvard University, 1913-1959; as traduções, exceto quando indicado, são minhas.
14. Considerações
Pudemos perceber durante os estudos deste ciclo que a história pode possuir
diversos usos e signi�cados em decorrência de cada contexto em que é produ-
zida, e que cada um desses contextos acaba por rever as temáticas, métodos e
fontes de pesquisa, elementos fundamentais da construção historiográ�ca.
No Ciclo 2 nos deteremos de forma mais profunda à historiogra�a produzida
na Antiguidade, no Medievo e no Renascimento, bem como suas principais
características. Devemos ter mente que é a compreensão da construção do
discurso historiográ�co ao longo do tempo que nos trará um melhor entendi-
mento do que é a disciplina hoje, o que buscaremos compreender no decorrer
do presente estudo.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-
fev-2022-grad-ead/)
Objetivos
• Perceber a função da história na Antiguidade por meio de seus princi-
pais autores.
• Compreender a historiogra�a medieval como referência cultural para a
Europa ocidental.
• Identi�car na historiogra�a renascentista uma nova perspectiva huma-
nista.
Conteúdos
A escrita da História e a compreensão dos processos que envolvem sua pro-
dução na Antiguidade, na Idade Média e no Renascimento.
Problematização
Qual o tipo e a função da história para a Antiguidade? Quais seus principais
autores? Quais as principais características e funções da historiogra�a medi-
eval? Quais as transformações que o renascimento trouxe para a historiogra-
�a?
1. Introdução
Como pontuado durante os estudos do Ciclo 1, devemos ter em mente que cada
grupo, sociedade e período histórico constrói seu discurso sobre o passado a
�m de responder a determinados propósitos e intuitos. Tais visões historio-
grá�cas possuem suas características próprias quanto aos seus métodos, te-
mas e fontes. É nessa direção que se apresenta como fundamental para o his-
toriador a compreensão do que podemos chamar de uma história da historio-
gra�a. Por este motivo é que neste ciclo vamos abordar de forma mais detida o
papel da história na Antiguidade com seus principais autores, a historiogra�a
medieval como referência cultural para a Europa ocidental e, por �m, a histo-
riogra�a renascentista em uma nova perspectiva humanista.
: segundo o dicionário Aurélio, é a designação comum aos primeiros escritores gregos, ou,
ainda, refere-se a autores de um glossário.
Acredita-se que o avanço da escrita da História guarde relações diretas com as transforma-
ções da sociedade grega entre meados do século 6º e 5º a.C.
A ruptura dessa ordem geral ocorreu no último século da era arcaica, com o adven-
to dos tiranos (c. 650-510 a.C.). Estes autocratas romperam a dominação das aristo-
cracias ancestrais sobre as cidades: eles representavam proprietários de terras
mais novos e riqueza mais recente, e estendiam seu poder a uma região muito mai-
or graças a concessões à massa sem proprietários dos habitantes das cidades. As
tiranias do século 6 realmente constituíam a transição crucial para a pólis clássica.
Foi durante seu período geral de predominância que as fundações militares e
econômicas da Grécia clássica foram lançadas.
O termo "antropomor�smo" origina-se da junção de duas palavras gregas: anthropos (homem) e morphe
(forma). Portanto, um antropomor�smo se dá quando os deuses se manifestam em forma humana ou são
atribuídos feições, sentimentos, atos e paixões do homem a divindades. Assim, para a civilização da
Grécia Antiga, os deuses eram antropomór�cos.
Logo, é nesse contexto e com esse papel que surge a História. Segundo
Fontana (1998, p. 18), “da fusão de revolução política e mudanças religiosas
surgiu a interpretação histórica da idade clássica: uma interpretação aristo-
crática, porém favorável à democracia e hostil aos velhos mitos em que se as-
sentava a sociedade da realeza e da oligarquia” .
Os “pais” da História
Depois de Hecateu de Mileto e os logógrafos, o grande salto da História grega,
rumo a seu auge, ocorreu com dois homens que tinham características distin-
tas, mas foram igualmente importantes: Heródoto e Tucídides.
Heródoto de Halicarnasso (c. 485 – c. 424 a.C.) era um historiador por inten-
ção. Isso ele deixa claro já na inauguração de sua obra sobre as Guerras
Médicas (490-479), em que diz que escrevia para “impedir que caíssem no es-
quecimento as grandes façanhas realizadas pelos Gregos e os Bárbaros”
(CARBONELL, 19987, p. 16).
Dessa forma, Heródoto simboliza uma era de transição, em que a História ten-
ta deixar de ser um gênero literário, mas não rompe totalmente com ele.
Esse rompimento apenas parcial com o gênero literário pode ser a explicação
de as obras de Heródoto terem sido escritas para serem lidas em público pelos
, como na velha tradição literária da Grécia. Talvez isso justi�que por
que, para Heródoto, a verdade se situa no lado do oral ou do observado, em de-
trimento do escrito.
Outro homem grego importante para a História é Tucídides (c. 460 – c. 400
a.C.), que se estabelece como historiador fazendo justamente uma crítica radi-
cal a Heródoto.
Já que as fontes seriam apenas o que pudesse ser observado, era tirada do his-
toriador qualquer possibilidade de analisar aquilo que estivesse distante de
seu tempo de vida. O saber histórico em Tucídides é, exclusivamente, o obser-
vado.
buscava as causas da conquista romana sobre todo o mundo grego e oriental. Seu método his-
tórico era a “procura das causalidades”. No início de sua Histórias, pergunta: “Que homem será tão néscio
ou negligente que não queira conhecer como e mediante que tipo de organização política quase todo o
mundo habitado, dominado em cinqüenta e três anos não-completos, caiu sob domínio de um único impé-
rio, o dos romanos?” (FONTANA, 1998, p. 25).
Políbio é fruto do mundo em transição da Grécia para Roma, como centro arti-
culador da vida econômico-social e cultural da Antiguidade europeia. É evi-
dente que, num contexto como esse, um homem exilado da Grécia para Roma,
que viveu e presenciou os dois contextos, é uma �gura privilegiada na busca
das causas dessas transformações.
Quando passamos dos historiadores gregos aos romanos, a di�culdade para inter-
pretar o pensamento que anima as suas obras aumenta. Temos, em primeiro lugar,
o problema dos proêmios: seguindo um costume que deriva dos retóricos gregos, os
historiadores latinos fazem preceder suas obras de exposições �losó�cas, onde se
insiste em sua preocupação pela imparcialidade e em seu propósito moralizador,
exposições que pouco ou nada têm a ver com a obra em si. Pelo que se refere à im-
parcialidade, é difícil admitir encontrá-la nos grandes historiadores da etapa �nal
da República e do primeiro século do Império, cujos vínculos com a política eram
claros. É difícil atribuir objetividade e propósitos moralizadores a Salústio (87-35
a.C.), político turbulento, acusado de crimes e abusos; a um Tito Lívio (59 a.C. – 17
d.C.), a quem se considerava como um defensor do regime implantado por Augusto,
ou a um Tácito (c.58 – c.120 d.C.), que expressava o rancor da classe senatorial, re-
duzida a um papel político secundário pelos imperadores, o que explica que nos te-
nha deixado uma imagem hostil e deformadora dos reinados de Tibério, Cláudio e
Nero.
Você acha que hoje a História continua sendo utilizada para justi�car a realidade social em
que vivemos?
4. Historiogra�a medieval
Em relação à historiogra�a produzida pelo medievo, devemos ter atenção ao
fato de que nesse período a Igreja Católica esteve à frente desta, ditando os te-
mas, fontes, métodos e sobretudo a forma e o intuito dessas produções. Por
meio da leitura dos textos a seguir, poderemos compreender como a produção
historiográ�ca do medievo criou uma visão providencial da história, na qual
os valores e a identidade cristã eram fundamentais. Tais textos também des-
tacam os principais nomes e características dessa corrente, explorando a rela-
ção do contexto histórico como condicionante da própria criação do discurso
historiográ�co medieval. Entretanto, essa produção vigorou somente até o
Renascimento, momento em que a historiogra�a foi criticada, abrindo cami-
nho para novas correntes de pensamento, a saber, a iluminista, a positivista e
a metódica.
Clio, de origem grega, signi�ca "glória" ou "fama". Filha de Zeus e Mnemósine, a memória, foi uma das no-
ve musas da mitologia grega. Com suas oito irmãs, chamadas “as cantoras divinas”, habitava o monte
Hélicon.
Segundo a mitologia, reunindo-se sob a assistência de Apolo, junto à fonte Hipocrene, as musas presidem
as artes e as ciências. Clio tem o dom de inspirar os governantes e restabelecer a paz entre os homens, e a
essa função é especialmente devotada. Além disso, ela é a musa da História e da criatividade, aquela que
divulgava e celebrava realizações. Ela preside a eloquência, sendo a �adora das relações políticas entre
homens e nações. É representada como uma jovem coroada de louros, trazendo, na mão direita, uma trom-
beta e, na esquerda, um livro intitulado Thucydide. Outras representações suas apresentam-na segurando
um rolo de pergaminho e uma pena, atributos que, às vezes, também acompanham Calíope. Clio é consi-
derada a inventora da guitarra, de forma que, em algumas de suas estátuas, ela traz esse instrumento em
uma das mãos e, na outra, um plectro (palheta).
Portanto, podemos concluir dessa a�rmação que mudanças na sociedade serão re�etidas
no modo como a História é escrita.
Fontana (1998, p. 28) a�rma a existência de “uma historiogra�a cristã que, ain-
da que escrita em latim, não surge da romana clássica por um processo de
evolução ou degeneração, mas antes responde a uma nova concepção da soci-
edade – à necessidade de justi�car um novo sistema de relações entre os ho-
mens”.
Esse novo sistema de relações entre os homens se dará em vista dos seguintes
fatores:
Essa forma de observar a História surge com Santo Agostinho, que, no século
5º, estabelece uma �loso�a da História fundamentada na visão cristã.
Figura 3 Pintura representando Santo Agostinho.
De acordo com o que a�rma Carbonell (1998, p. 41), Santo Agostinho, em “sua
Cidade de Deus, escrita nos anos 420, de�ne a história como a realização do
plano formado por Deus para a salvação dos homens”. Para Santo Agostinho,
havia a cidade de Deus e a cidade dos homens, mas “as duas cidades estão en-
trelaçadas uma na outra e intimamente mescladas, de tal modo que é impos-
sível separá-las, até o dia em que o juízo as separe”. Vários historiadores, em
geral vinculados à Igreja, escreveram suas obras interpretando o passado ba-
seados na perspectiva de Santo Agostinho sobre a existência de uma cidade
de Deus e de uma cidade dos homens. A primeira representa a pureza, e a se-
gunda, o pecaminoso.
Essa nova realidade social, que aparece em torno do século 9º no Ocidente eu-
ropeu, passou a predominar socialmente e, portanto, a necessitar de uma jus-
ti�cativa histórica para sua existência.
Dessa forma, a Igreja, que, segundo Fontana (1998), sem essa justi�cativa his-
tórica teria sua posição social colocada em perigo, veio em socorro do sistema
feudal, criando a chamada "teoria das três ordens", de maneira que a mais fa-
mosa é a do bispo Adalberon de Laon, realizada provavelmente entre 1025 e
1027. Segundo esse bispo:
[...] o domínio da fé é uno, mas há um triplo estatuto na Ordem. A lei humana impõe
duas condições: o nobre e o servo não estão submetidos ao mesmo regime. Os guer-
reiros são protetores das igrejas. Eles defendem os poderosos e os fracos, protegem
todo mundo, inclusive a si próprios. Os servos, por sua vez, têm outra condição.
Esta raça de infelizes não tem nada sem sofrimento. Fornecer a todos alimentos e
vestimenta: eis a função do servos. A casa de Deus, que parece uma, é portanto tri-
pla: uns rezam, outros combatem e outros trabalham. Todos os três formam um
conjunto e não se separam: a obra de uns permite o trabalho dos outros dois e cada
qual por sua vez presta seu apoio aos outros (JUNIOR, 1986, p. 72).
Surgia, então, a teoria das três ordens: o clero, a nobreza feudal guerreira e os
servos camponeses. Nesse sentido, Fontana (1998, p. 34) lembra que “a Igreja
reagia assim contra sua marginalização na nova ordem feudal, oferecendo-lhe
uma legitimação, ao mesmo tempo que a defendia e se defendia contra um
inimigo comum: a heresia popular igualitária”.
Abade da Calábria, Joaquim de Fiori articulou em seus textos a visão das três
ordens com alguns discursos proféticos, algo que lhe causou reprovações no
Concílio de Latrão, apesar do tom geral de elogios a sua obra. As mesmas críti-
cas sofreu a obra de Frei Dolcino, que levou a discussão profética para a cons-
trução de uma sociedade mais justa, in�uenciando, decisivamente, os movi-
mentos de reforma dentro da Igreja e as heresias populares.
Já no século 14, a Idade Média assistia à decadência do modelo das três or-
dens com o chamado renascimento comercial e das cidades. Nesse período,
uma grave crise atingiu em cheio o mundo feudal. As revoltas camponesas, a
peste e a fome espalharam-se pela Europa ocidental, ocasionando transforma-
ções cada vez mais radicais no sistema. Novamente, Fontana (1998, p. 38) es-
clarece as relações entre as transformações sociais e a escrita da História:
essa crise do século 14 tem sido denominada também crise do feudalismo, pois
acarretou transformações drásticas na sociedade, economia e vida política da
Europa, que praticamente diluiu as últimas estruturas feudais ainda predominan-
tes e reforçou, de forma irreversível, o desenvolvimento do comércio e da burgue-
sia.
Você consegue enxergar em seu cotidiano como o mundo das ideias está relacionado com a
realidade concreta, com as questões sociais?
• A crítica documental.
• A chegada de novos instrumentos de pesquisa.
• A difusão das produções em texto escrito.
Ainda que a suspeita de que se tratava de uma fraude havia sido já exposta por di-
versos autores, foi o humanista Lorenzo Valla, a serviço de Alfonso, o Magnânimo,
de Nápoles, e obrigado a defender o seu soberano contra as pretensões políticas do
papado, quem fez uma crítica demolidora do documento e pôs em evidência os
anacronismos, erros de linguagem e inexatidões de toda a ordem que continha.
Figura 4 A Escola de Atenas, afresco de Rafael (Raffaelo Sanzio). Roma, Stanza della Segnatura, Palácio do Vaticano.
Para Pasquier, o historiador deveria fazer uma crítica profunda às fontes e de-
�nir rumos em que pudesse explicar, logicamente, a sociedade com não me-
nos e�cácia do que as equações matemáticas.
Por �m, Bodin, que divide a História em três ramos: o natural, o sagrado e o
humano, defende que o historiador deve se ocupar do ramo humano, buscando
construir uma ciência que dê conta de explicar racionalmente a ascensão e
queda dos impérios e civilizações (CARBONELL, 1987).
No século 17, contudo, essa corrente histórica foi varrida da França para o sur-
gimento de outra que defendia a Igreja e o Absolutismo, uma espécie de
Renascimento da História Cristã medieval, mas com características da sua
época, destacando-se a defesa do absolutismo.
Por �m, a última leitura do presente ciclo de estudos será o artigo de José
Barros. Neste, o autor realiza um balanço da historiogra�a que tratou do perío-
do de passagem da antiguidade para o medievo por meio dos debates historio-
grá�cos pertinentes. Ou seja, para além da análise dos fatos e contextos objeti-
vos da história, Barros busca apresentar e re�etir sobre as diferentes propostas
de análise historiográ�cas, desde a medieval até a Nova História Cultural.
Assim, o autor enfatiza como os mesmos fatos e contextos podem ser inter-
pretados de formas distintas por diferentes correntes historiográ�cas ao longo
do tempo. Tal perspectiva de estudo se apresenta como fundamental para o
ofício do historiador na medida em que esse balanço historiográ�co se apre-
senta como prerrogativa básica para o estudo de qualquer tema.
4. Considerações
Como vimos, a história pode possuir diversos usos e signi�cados em decor-
rência de cada contexto em que é produzida, e cada um desses contextos aca-
ba por rever as temáticas, métodos e fontes de pesquisa, elementos fundamen-
tais da construção historiográ�ca. Nesse sentido, abordamos a historiogra�a
produzida na Antiguidade, no Medievo e no Renascimento, bem como suas
principais características.
Até lá!
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fev-2022-grad-ead/)
Objetivos
• Identi�car as características da historiogra�a iluminista e seus princi-
pais autores.
• Compreender a contribuição dos metódicos para a efetivação da história
como disciplina.
• Perceber as in�uências do positivismo na construção de uma metodolo-
gia pretensa como cientí�ca para a História.
Conteúdos
• Contexto de produção e propostas da historiogra�a iluminista.
• Contribuição dos metódicos para a efetivação da história como discipli-
na.
• As in�uências do positivismo na construção de uma metodologia de
pretensão cientí�ca para a História.
• A forma como essas correntes historiográ�cas contribuíram para a con-
solidação da História como uma área autônoma de conhecimento.
Problematização
Qual o contexto de produção e propostas da historiogra�a iluminista? Qual a
contribuição dos metódicos para efetivação da história como disciplina?
Quais as in�uências do positivismo na construção de uma metodologia para
História? De que forma estas correntes historiográ�cas contribuíram para a
consolidação da História como uma área autônoma de conhecimento?
1. Introdução
No presente ciclo de estudos, abordaremos as produções historiográ�cas dos
séculos XVIII e XIX. Iniciaremos com o contexto de produção e propostas da
historiogra�a iluminista na busca do rompimento com o paradigma medieval,
que coloca o homem como objeto de estudo por excelência em contraponto
com a visão providencial da história. Também abordaremos a escola metódica
e positivista, as quais trabalharam para efetivação da história como disciplina
na busca de uma construção historiográ�ca de caráter e pretensão cientí�ca,
características que permeiam o discurso historiográ�co até os dias de hoje.
Por �m, novamente ressaltamos que todas essas propostas acabam por repen-
sar os temas, métodos e fontes de pesquisa dentro de novos contextos de inter-
pretações e leituras, que, por sua vez, respondem à própria função e uso da
história neste período.
2. Historiogra�a e Iluminismo
O Iluminismo foi um importante movimento de renovação �losó�ca e intelec-
tual, que buscou o rompimento com a concepção de mundo medieval, pautada
no credo cristão. De forma simplista, podemos compreender que os iluminis-
tas buscavam colocar o homem como cerne do processo histórico, tendo por
base uma visão de pretensão racional da construção do discurso historiográ�-
co. Nessa direção, o homem passa a ser protagonista da história, abandonan-
do a visão providencial que pautou a produção medieval. Para isso, tivemos
decorrentes mudanças nos temas, métodos e fontes de pesquisa, sendo estas
balizadas por uma análise mais objetiva e �el dos documentos escritos e o�ci-
ais, criando, assim, uma nova concepção de história.
Mas, a�nal, qual a relação que podemos estabelecer entre esse período de mu-
danças e uma nova maneira de ver, conceber, interpretar e escrever a
História? O chamado século das luzes realmente foi decisivo no estabeleci-
mento de uma nova forma de se entender a História? Existiu nesse período
um grupo de autores que in�uenciaram gerações futuras de historiadores?
E você, acredita que o mesmo modo de raciocínio útil para as ciências naturais pode ser,
também, usado pela História? Quais seriam as implicações de se proceder de tal maneira?
Devemos mencionar ainda que, durante o século 18, sob o impacto das ideias
iluministas, ganharam forma as chamadas �loso�as da História, cuja visão te-
leológica a�rmava que a evolução da humanidade estava orientada para um
determinado �m.
Nas palavras de Bourdé e Martin (1983, p. 44), que escreveram o livro As esco-
las históricas, “o ponto em comum das diversas �loso�as da história era des-
cobrir um sentido para a história”.
A história é o relato dos fatos que se tem por verdadeiros, ao contrário da fábula,
que é o relato dos fatos que se tem por falsos. Há a história das opiniões, que não é
muito mais que a compilação dos erros humanos. A história das artes pode ser a
mais útil de todas, quando une ao conhecimento da invenção e do progresso das ar-
tes a descrição de seus mecanismos. A história natural, impropriamente chamada
história, é uma parte essencial da física. Tem-se dividido a história dos aconteci-
mentos em sagrada e profana; a história sagrada é uma seqüência das operações
divinas e milagrosas, pelas quais tem agradado a Deus conduzir no passado a na-
ção judia e pôr à prova no presente a nossa fé.
Além disso, conforme ensina Fontana (1998, p. 67), Voltaire foi responsável pe-
lo alargamento das perspectivas históricas, já que se empenhou “em superar o
estreito marco da história política tradicional, para construir em seu lugar, ‘a
do espírito humano’”.
Assim, podemos dizer que, para Voltaire, cabia à História se envolver com os
estudos dos motivos e das paixões que guiam as ações humanas, privilegian-
do as mudanças nos costumes e nas leis. Ademais, esse campo do saber deve-
ria abrir-se a tudo o que é humano, à diversidade das civilizações. No que diz
respeito à escrita da História, o historiador deveria procurar ser agradável, es-
crevendo de maneira breve e evitando acrescentar demasiadamente detalhes
inúteis e descrições numerosas em sua narrativa (BOURDÉ; MARTIN, 1983).
De acordo com o exposto até aqui, você deve ter percebido que a concepção
histórica de Voltaire privilegia os aspectos culturais da humanidade; daí a sua
preocupação com as mudanças nos costumes, com a diversidade das civiliza-
ções.
Esse iluminista também atribui uma grande importância aos feitos dos gran-
des homens (príncipes, militares, imperadores), conforme podemos depreen-
der de sua divisão em quatro grandes épocas para distinguir a evolução da
História humana:
[...] A uma visão de história que se funda na evolução do espírito humano, corres-
ponde uma concepção política que sustenta que é a ilustração dos homens, como
instrumento de modi�cação de sua consciência, que transformará o mundo. E a es-
sa concepção política corresponde, por sua vez, um programa de ação como o dos
ilustrados, que Voltaire pôs em prática, não só por meio de seus escritos, como tam-
bém dos seus combates pela justiça e pela tolerância [...].
:
Boa parte dos pensadores do Iluminismo francês publicava suas obras anonimamente ou fazendo uso de
pseudônimos. Voltaire, por exemplo, é um dos vários pseudônimos utilizados por François Marie Arouet.
• A distinção feita entre o que é meramente fruto do acaso e aquilo que tem
uma importância estrutural para explicar os fenômenos históricos, o que
possibilitaria, na concepção de Montesquieu, um estudo cientí�co da evo-
lução histórica.
• “Sua visão da evolução humana, como passagem por uma sucessão de
etapas de�nidas pela forma na qual os homens obtêm a sua subsistência”
(FONTANA, 1983, p. 69-70).
“o homem nasce livre e por toda parte se encontra sob grilhões” (ROUSSEAU).
Desse modo, o próprio processo histórico por que passou o homem o transfor-
mou num prisioneiro, corrompendo seu modo de vida original caracterizado
pela liberdade e independência. Em outras palavras, a origem da corrupção do
ser humano está em seu contato com a civilização, que o afastou gradativa-
mente de seu contato com a natureza e produziu a desigualdade entre as pes-
soas, bem como os problemas criados por ela.
Será que podemos, assim como os iluministas, acreditar que a História caminha rumo ao constante apri-
moramento do potencial humano?
Além disso, ele colocou em relevo que a direção da marcha da História depen-
de da permanência de algumas precondições e da intervenção dos indivíduos
para antecipar o tempo daquilo que aconteceria de modo inevitável no futuro.
Surge, a partir daí, uma nova maneira para explicar a realidade e os fenôme-
nos humanos, que a�rma haver uma lógica interna de funcionamento obtida
pelas ações do homem e pelos princípios que ordenam a vida em sociedade.
O que faz a sociedade funcionar são os interesses dos indivíduos, que, no en-
tanto, só ganham sentido se inseridos “na trama das ações recíprocas produ-
zidas, através das gerações, pela vida em comum dos indivíduos” (BODEI, 2001,
p. 33). Nesse sentido, por exemplo, para que eu sobreviva, sou, de certa manei-
ra, forçado a trocar meu trabalho com o dos outros. Assim, é preciso que os in-
teresses de uma pessoa coincidam com os interesses de outrem. Isso levando
em conta o funcionamento do mercado, ou seja, o aspecto econômico.
Smith a�rma que os homens dotados de certo egoísmo, ou seja, voltados para
seus próprios interesses, promovem o interesse da sociedade – mesmo sem
saber ou ter essa intenção – já que existe uma “ ” que os levam a
fazer isso.
:
O liberalismo era um modelo de pensamento que reclamava o progresso por meio da liberdade. Suas prin-
cipais características eram: a não-intervenção do Estado na economia, o individualismo, a liberdade de
mercado, a livre concorrência, a liberdade de contrato e a livre iniciativa.
Esse pensador identi�ca uma organização dinâmica da sociedade que sempre
evolui para um melhor bem-estar coletivo. Dessa forma, é possível explicar e
prever tanto o comportamento dos indivíduos quanto as relações sociais do
homem, já que a natureza humana é vista como universal e imutável.
Escola metódica
No decorrer do século 19, ocorreu uma incessante tentativa de estabelecimen-
to de uma historiogra�a cientí�ca – acompanhando os passos das propostas
iluministas – que apresentasse métodos e critérios de trabalho para o histori-
ador.
Seus princípios aparecem em dois textos: um foi redigido por Gabriel Monod,
para o lançamento da Revue Historique, em 1876; o outro é a obra Introdução
aos estudos históricos, escrita por Charles Seignobos e Charles-Victor
Langlois em 1898.
[...] A escola metódica quer impor uma investigação cientí�ca afastando qualquer
especulação �losó�ca e visando a objetividade absoluta no domínio da história;
pensa atingir os seus �ns aplicando técnicas rigorosas respeitantes ao inventário
das fontes, à critica dos documentos, à organização das tarefas na pro�ssão
(BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 97).
De acordo com a citação anterior, podemos notar a defesa de uma História ci-
entí�ca por parte dos metódicos e a crítica às especulações �losó�cas, especi-
almente aquelas que aparecem nas chamadas �loso�as da História.
A história se faz com documentos. Documentos são os traços que deixaram os pen-
samentos e os atos dos homens do passado. Por falta de documentos, a história de
enormes períodos do passado da humanidade �cará para sempre desconhecida.
Porque nada supre os documentos; onde não há documentos não há história
(LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 15).
Dessa forma, após a escolha do tema a ser estudado, o historiador deve reali-
zar a busca, a localização, a reunião e a classi�cação dos documentos, em uma
atividade conhecida como heurística. Além do mais, a crítica das fontes fazia-
se uma etapa fundamental, uma vez que tinha o objetivo de veri�car a autenti-
cidade e a credibilidade ou não dos registros deixados.
De acordo com essa lei dos três estados, o desenvolvimento histórico e cultural
da humanidade teria se desenvolvido em três etapas:
Vale lembrar que cada ramo do conhecimento passa por esses três estados, de
forma que apenas se torna ciência no estado positivo.
Essa ênfase no aspecto político foi alvo de crítica por parte dos marxistas, que
passaram a privilegiar os aspectos econômicos, baseando-se na análise dos
modos de produção – asiático, escravista, feudal, capitalista e socialista – co-
mo explicação do processo histórico.
:
A frase "Ordem e Progresso", escrita em nossa Bandeira, é um lema positivista, o que de-
monstra a forte in�uência dessa doutrina entre nossos republicanos.
Como já pudemos perceber com os estudos até aqui realizados, quando pensa-
mos em uma história da historiogra�a, estamos acompanhando as transfor-
mações de paradigmas frente às críticas e propostas metodológicas pertinen-
tes. Nessa direção é que nos debruçaremos na leitura do : "História e his-
toriogra�a nos séculos XIX e XXI: do cienti�cismo à História Cultural
(http://www.congressohistoriajatai.org/2010/anais2007/doc%20(51).pdf)", de
Simone Dantas, no qual a autora caracteriza a proposta cienti�cista da história
e apresenta a evolução crítica do discurso historiográ�co na busca de uma
história de caráter cultural e de crítica ao cienti�cismo. Assim, neste ciclo, já
podemos introduzir a tônica dos debates e paradigmas que abordaremos mais
a fundo nos próximos ciclos de estudos.
Por �m, para complementar tais discussões, agora, assistiremos a um novo ví-
deo de Luiz Carlos Bento, intitulado "A História ciência e o Positivismo
(https://youtu.be/OxSAxZik3fQ)", em que se apresentam algumas re�exões so-
bre as discussões até aqui realizadas. Assim, ressalta-se a abordagem sobre as
relações entre as Ciências Naturais e Humanas, a tentativa de criação de leis
gerais para a análise histórica, a neutralidade das fontes e pesquisadores, o
historicismo e a herança deixada por esse paradigma para a historiogra�a
atual.
7. Considerações
Neste terceiro ciclo de estudos, pudemos compreender uma nova quebra de
paradigma historiográ�co, sendo esta a linha mestra de nossa disciplina, ou
seja, a de compreender a própria história da historiogra�a diante de suas
transformações, enfatizando os temas, métodos e fontes de pesquisa. Esse pa-
radigma da escola metódica e positivista se apresenta como de suma impor-
tância para a historiogra�a atual. Devemos ter atenção ao fato de que a histori-
ogra�a contemporânea, apesar de não ser metódica ou positivista, ainda guar-
da características metodológicas destas em maior ou menor grau. Também é
importante ressaltar que todas as escolas que seguiremos estudando acabam
por partir de críticas para com essa visão cienti�cista da história, para justi�-
car e criar suas próprias concepções historiográ�cas, assim, as re�exões e
conteúdos tratados neste ciclo continuarão a ser revistos e discutidos nos pró-
ximos ciclos de estudos.
(https://md.claretiano.edu.br/his-gs0009-
fev-2022-grad-ead/)
Objetivos
• Entender a contribuição do materialismo histórico para a historiogra�a.
• Analisar as re�exões metodológicas produzidas pela escola
dos Annales em suas 3 gerações.
• Compreender o surgimento da “história problema”, bem como a questão
da temporalidade no ofício do historiador.
• Compreender a história das mentalidades.
Conteúdos
• As contribuições e relações que o materialismo histórico teve na cons-
trução e renovação do discurso historiográ�co.
• A Escola dos Annales como uma das mais importantes rupturas de pa-
radigma historiográ�co, enfatizando o surgimento da “história proble-
ma”, por meio das relações estabelecidas com as demais Ciências
Humanas.
Problematização
Qual a contribuição do materialismo histórico para a historiogra�a? Qual a
contribuição da Escola do Annales para a renovação do discurso historiográ-
�co? O que é a “história problema”? Quais re�exões sobre a temporalidade tal
paradigma trouxe como novidade? Quais as principais características de
uma história dita cultural?
1. Introdução
Iniciando os estudos do presente ciclo, nosso primeiro foco será o materialis-
mo histórico. Tal paradigma, originado nos estudos de Karl Marx e Friedrich
Engels, busca a compreensão do processo histórico tendo por base a produção
e reprodução da vida material, sobretudo no que tange às relações de tensão
entre os grupos sociais envolvidos nesse processo. Já nosso segundo foco será
a Escola dos Annales, na qual buscaremos o entendimento e caracterização
das propostas interpretativas e metodológicas em suas três diferentes gera-
ções. Pautada nas relações entre a História e as demais Ciências Humanas, de
forma muito simplista, podemos pensar a primeira geração dessa escola con-
forme sua relação com o pensamento sociológico, a segunda geração pautada
pelo diálogo com a geogra�a e a terceira geração na psicologia social e antro-
pologia, das quais emprestam temas e métodos de abordagem. Por �m,
destaca-se a importância dessas duas correntes historiográ�cas para os deba-
tes atuais, uma vez que tais re�exões ainda balizam o ofício do historiador até
os dias de hoje.
2. O Materialismo Histórico
O materialismo histórico tem sua origem nos estudos de Karl Marx e Friedrich
Engels, nos quais se busca o entendimento do processo histórico tendo por ba-
se a produção e reprodução da vida material e as relações de tensão entre os
grupos sociais envolvidos nesse processo. Nesse sentido, veremos tal produ-
ção em seu contexto histórico, além de pontuar importantes conceitos como o
materialismo histórico, o materialismo dialético, a luta de classes, entre ou-
tros. Destaca-se, também, a apresentação que os autores fazem sobre as relei-
turas que o materialismo histórico sofreu até o século XX, bem como suas
perspectivas de renovação metodológica, a exemplo da Nova Esquerda
Inglesa.
Mas que lei era essa descoberta por Marx? Em que contexto ela foi produzida?
Como podemos observar sua in�uência na produção historiográ�ca desde en-
tão? Essas são as questões que iremos tratar nas páginas que se seguem.
Fique ligado!
Procure pesquisar por obras cinematográ�cas que tratam da época em questão, meados do século 19, em
que são abordadas as condições de trabalho dos operários das fábricas. Certamente, isso lhe ajudará a en-
tender melhor o contexto em que estavam incluídos os conceitos marxistas. Sugerimos que você assista,
especialmente, o �lme Germinal, do cineasta Claude Berri, na França, 1996.
Nessa mesma época, depois das barulhentas revoluções de 1830 (que tinham
no liberalismo e no nacionalismo as suas bandeiras), a Europa começava a as-
sistir novos levantes populares em 1848, agora com um novo ingrediente ideo-
lógico a se juntar aos antigos: o comunismo.
Em Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848, os seus autores, Marx
e Engels (1993, p. 66), diziam o seguinte:
A história de toda a sociedade até hoje é a história de luta de classes [...] Homem li-
vre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa pala-
vra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos ou-
tros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou
sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o
declínio comum das classes em luta.
Nessa fase, Marx procurou fazer a análise profunda das instituições econômi-
cas da sociedade capitalista. Dessa pesquisa surgiu sua obra mais importante,
O Capital, publicada originalmente em 1867. Contudo, em 1859, apareceu um
texto fundamental do universo marxista: o prefácio de Para a Crítica da
Economia Política.
Segundo Marx (1993, p. 56), “não é a consciência do homem que determina seu ser social, mas, ao contrá-
rio, seu ser social que determina sua consciência”.
Você concorda com essa frase? Re�ita sobre ela...
Assim, para Marx, a vida humana e suas relações sociais são determinadas
pelo modo que a produção material da sociedade é realizada. Como con-
sequência, o modo de produção material é o fator determinante da organiza-
ção política e das representações intelectuais de uma época.
Mas o fato é que esses dois autores criaram um novo método de estudo das re-
lações humanas no tempo e uma teoria de intervenção política revolucionária
de grande in�uência no século 20. Esses dois fatores são indissociáveis um do
outro.
Em outras palavras, a dialética da luta de classes era muito usada para o com-
bate da burguesia, do capitalismo, mas havia poucos estudos sobre o materia-
lismo histórico, que, no fundo, daria toda a base para o conceito da luta de
classes.
Por isso, devemos observar que ocorreram nessa fase muitas tentativas frus-
trantes e frágeis, do ponto de vista político, realizadas pelo stalinismo. No en-
tanto, algumas manifestações teóricas do materialismo histórico foram muito
profícuas nesse contexto.
No início de 1924, Lênin morreu. Num espaço de três anos, a vitória de Stalin no
PCUS selou o destino do socialismo e do marxismo na URSS nas décadas seguin-
tes. O aparelho político de Stalin suprimira ativamente as práticas revolucionárias
das massas dentro da Rússia e, no exterior, as desencorajava e sabotava. A consoli-
dação de um estrato burocraticamente privilegiado acima da classe operária era
assegurada por um regime policial cuja ferocidade desconhecia limites. Nestas
condições, a unidade revolucionária entre teoria e prática que tornara possível o
bolchevismo clássico foi irremediavelmente destruída. Na base, as massas foram
caladas, sua espontaneidade e autonomia pulverizadas pela casta que con�scara o
poder no país; no topo do Partido, os expurgos afastaram os últimos companheiros
de Lênin. Todos os trabalhos teóricos sérios foram interrompidos após a coletiviza-
ção. [...] O marxismo foi, em grande medida, reduzido a uma simples evocação na
Rússia, ao passo que Stalin atingia seu apogeu. O país mais avançado do mundo no
desenvolvimento do materialismo histórico, superando toda a Europa pela varieda-
de e vigor de seus teóricos, foi transformado, em não mais que uma década, em
uma atrasada terra de semi-analfabetos, notável apenas pelo rigor de sua censura e
pela crueza de sua propaganda.
Desse ponto de partida, Lukács derivaria, em boa medida por causa da sua infortu-
nada e complexa história política, a ocupar-se de questões mais estritamente �lo-
só�cas e culturais. Desvinculado de toda a militância, Korsh manteria a luta contra
Kautsky em O Materialismo Histórico (1929), tentaria uma lúcida revalorização da
vertente revolucionária do pensamento de Marx, no seu Karl Marx (1938), e conti-
nuaria delineando os pressupostos de um marxismo revolucionário, em escritos
como Por que sou marxista (1935). A morte surpreendeu-o trabalhando numa tenta-
tiva de atualização do pensamento marxista, pelo duplo caminho da sua extensão
do âmbito europeu ao mundial e da necessidade de adaptá-lo às mudanças ocorri-
das na sociedade capitalista e ao avanço das ciências.
Para organizar nossas ideias sobre o estudo das correntes comunistas que co-
existiam e se opunham, temos de rea�rmar o que já dissemos no início deste
tópico:
Você acha que sua visão de mundo é in�uenciada por algum dos conceitos do marxismo?
Dessa desilusão, emergiu uma nova maneira de lidar com o materialismo his-
tórico. A característica fundamental dessa nova forma de interpretar o mar-
xismo é a desarticulação do movimento político da prática intelectual.
Outra mudança prática foi o deslocamento geográ�co: se, antes, a maior parte
dos pensadores estavam na Europa oriental e do sul, nessa nova fase,
deslocou-se para a Europa ocidental e do norte, com a incorporação de pensa-
dores, também, da América, especialmente dos Estados Unidos.
No campo da historiogra�a, as in�uências desses autores do campo �losó�co tiveram forte presença. A
principal corrente de historiadores que surgem a partir da década de 1960 foi inglesa: Eric Hobsbawm,
Perry Anderson, Christopher Hill, Rodney Hilton, Edward Palmer Thompson entre outros de menor ex-
pressão.
Nessa sua a�rmação, percebemos que Vilar procura estabelecer uma relação
entre o marxismo por ele praticado e a historiogra�a surgida na França no sé-
culo 20, conhecida como Escola dos Annales. Talvez resida aí o canal para que
o marxismo continue vivo no século 21.
Você acha que os conceitos marxistas podem auxiliar na análise de nossa sociedade atual?
Até aqui, vimos que o materialismo histórico passou por profundas transfor-
mações ao longo desse um século e meio desde seu aparecimento em torno de
1850. Na construção teórica de seus fundadores, tratava-se de um arsenal teó-
rico com função de�nida, qual seja, a de dotar a classe trabalhadora de uma
teoria própria na luta contra o capitalismo burguês.
Em outras palavras, para Anderson (1983), o que se deve fazer é uma rea�rma-
ção dos princípios do materialismo histórico e buscar reorganizar a classe
operária para a conquista socialista, única alternativa viável para a sociedade
desigual atual.
À medida que o historiador é quem melhor conhece o mapa da evolução das socie-
dades humanas, quem sabe a mentira dos signos indicadores que marcam uma di-
reção única e quem recorda os outros caminhos que conduziam a outros destinos
distintos e talvez melhores, é a ele a quem toca, mais que a ninguém, denunciar os
enganos e reanimar as esperanças para começar o mundo de novo (FONTANA,
1998, p. 280 ).
Você já se questionou sobre o papel social, ou seja, o compromisso do historiador com seu
tempo?
É importante ressaltar que, embora o movimento dos Annales seja conhecido como escola,
ele nunca apresentou um eixo teórico de�nido. Na verdade, o que unia seus integrantes era
o projeto de se fazer uma história total, bem como o às e
.
Nos anos de 1928, Bloch resolveu retomar o projeto de seu amigo, fundando no
ano seguinte a revista dos Annales, que pretendia, ao mesmo tempo, apresen-
tar uma nova abordagem da história e se tornar um elo entre todas as ciências
humanas, acabando com as divisões até então existentes entre as disciplinas
(BURKE, 1997).
Inicialmente, a direção dos Annales coube a Marc Bloch e Lucien Febvre, que
trouxeram uma inegável contribuição para a renovação formal da História co-
mo disciplina acadêmica, apresentando novas fontes de pesquisa, novas téc-
nicas de investigação e novas abordagens históricas.
A partir de 1944, com a execução de Marc Bloch pelos nazistas, Febvre tornou-
se o único diretor dos Annales, e permaneceu no cargo até seu falecimento em
1956. Podemos observar, já nesse período, uma mudança no pensamento desse
movimento, especialmente se analisarmos os textos escritos por Febvre, nos
quais �ca explícito sua preocupação em relacionar todos os aspectos da vida
do homem entre si, já que passou a considerar que tudo estava relacionado a
tudo. Portanto, tudo seria válido para que se pudesse compreender o homem
em sua plenitude e complexidade.
Guiando-nos pelo título adotado em 1929, parecer-nos-ia ser uma História ‘econô-
mica e social’. Porém, já se viu que Febvre renegou essa de�nição original. Em 1941,
Febvre opina que a tarefa do historiador consiste em relacionar aspectos da vida
humana, sem se importar quais sejam; nenhum tem uma importância predomi-
nante: dá no mesmo tratar de relacionar os problemas econômicos de uma socie-
dade com a sua organização política, como sua �loso�a com as suas idéias religio-
sas.
Nessa fase, vieram à tona signi�cativos trabalhos de história quantitativa, demográ�ca, re-
gional e serial.
Após 1968, Fernand Braudel foi substituído no comando da revista por uma di-
reção coletiva, formada por André Burguière, Marc Ferro, Jacques Le Goff,
Emmanuel Le Roy Ladurie e Jacques Revel. Em um contexto de crise dos
grandes paradigmas históricos, a escola dos Annales passou a acompanhar os
modismos intelectuais, descaracterizando praticamentetodos os postulados
de seus antigos criadores. Assistimos, nesse momento, a um retorno da histó-
ria política e ao ressurgimento da narrativa dos acontecimentos históricos.
- É possível relacionar os variados temas que fazem parte do estudo de História com as di-
versas esferas do vivido?
- A História deve tentar reconstituir e explicar os acontecimentos históricos ou apenas
narrá-los?
Você pode estar se perguntando: o que a Escola dos Annales trouxe de inova-
dor em relação à história tradicional? Quais foram as principais mudanças
metodológicas apresentadas para a disciplina de História? Tente responder a
essas questões e compare com o conteúdo a seguir.
A corrente dos Annales tencionava alcançar uma história que fosse mais vas-
ta, abrangente e totalizante, ou seja, que apresentasse uma perspectiva mais
voltada para a análise da estrutura em detrimento do acontecimento. Em vir-
tude disso, seus fundadores se posicionaram contra as idéias de evolucionis-
mo e progresso da humanidade e se opuseram às análises destinadas ao estu-
do dos feitos de grandes homens (chefes militares e reis), exércitos e tratados
diplomáticos, até então preponderantes.
Fique atento a esse assunto, pois vamos analisá-lo no decorrer de nossos estu-
dos. Agora, pautaremos nossa conversa na contribuição da primeira geração
dos Annales para a constituição de um novo método histórico.
Marc Bloch refutou a de�nição de história como ciência do passado, já que, pa-
ra ele, é absurda a idéia de que o passado possa ser objeto de estudo. Então,
qual deveria ser o objeto de estudo da história, ou seja, aquilo que ela deve in-
vestigar?
[...] para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumo-
sa gênese, para formular corretamente os problemas, para até mesmo fazer uma
idéia deles, uma primeira condição teve que ser cumprida: observar, analisar a pai-
sagem de hoje. Pois apenas ela dá as perspectivas de conjunto de que era indispen-
sável partir.
Na concepção desse historiador, cada época seleciona seus temas, que falam
mais das inquietações de seu próprio momento do que do passado propria-
mente dito. Em outras palavras, cada época constrói a representação do pas-
sado à sua maneira. O historiador vive em um mundo que coloca seus proble-
mas particulares. O que o historiador faz é tentar veri�car se esses problemas
colocados pelo presente existiram no passado; se existiram como foi vivido
pelos homens da época. Em última análise, o que o historiador quer compre-
ender é a diferença entre os homens de ontem e os de hoje (FEBVRE, 1989).
A supervalorização dos documentos escritos por parte dos historiadores metódicos e positivistas serviu
como ponto de partida para a divisão do tempo histórico em pré-história e história? A primeira passou a
se referir ao período em que não havia registros escritos e a segunda iniciou-se com a invenção da escrita.
No seu entender, o pesquisador que estuda o período anterior à invenção da escrita real-
mente não faz história?
Assim, para estudar a sociedade não era necessário realizar uma incursão à
história. Embora a História e a Etnologia estivessem próximas em seu objeto,
método e o objetivo, havia uma distinção essencial que opunha essas duas
disciplinas.
Em 1935, Braudel veio para o Brasil, juntamente com outros intelectuais franceses como Lévi-Strauss, para
colaborar com a organização da recém-fundada Faculdade de Filoso�a, Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo (USP). Aqui permaneceu até 1937 e a�rmou que esse foi um dos períodos mais felizes de sua
vida.
Por �m, a última leitura deste ciclo é o artigo de Fernando Silva, que explora a
tônica das propostas dos Annales ao abordar a relação da História com as de-
mais ciências humanas. Nessa direção, o autor busca compreender a identi-
dade do ofício do historiador em relação à abertura da história para com as de-
mais ciências humanas, por meio de novos temas, métodos e fontes de pes-
quisa.
Sugerimos, agora, que você dê uma pausa na sua leitura e re�ita sobre sua
aprendizagem realizando a questão a seguir.
12. Considerações
Neste quarto ciclo de estudos, demos seguimento à compreensão da história
da Historiogra�a, enfatizando, neste momento, o materialismo histórico de
Marx e as propostas da Escola dos Annales em suas três distintas gerações.
Assim, destaca-se a importância dessas duas correntes para a construção do
discurso da historiogra�a atual, uma vez que tais re�exões ainda balizam o
ofício do historiador nos dias hoje, seja na historiogra�a brasileira seja ociden-
tal.
fev-2022-grad-ead/)
Objetivos
• Caracterizar a e a Nova História Cultural.
• Contextualizar a crise dos paradigmas historiográ�cos.
• Compreender a história como discurso, prática e representação.
• Identi�car a história entre a narrativa e a �cção.
• Perceber as críticas à Pós-moderna.
Conteúdos
• A Micro-história e a Nova História Cultural como novos paradigmas his-
toriográ�cos.
• A historiogra�a como discurso, prática e representação de acordo com
as novas propostas paradigmáticas.
• A produção historiográ�ca entre a narrativa e a �cção.
• A historiogra�a pós-moderna entre a crítica e a renovação metodológi-
ca.
Problematização
Quais as características da Micro-história e da Nova História Cultural? Como
conceitos como discurso, prática e representação in�uíram as novas propos-
tas paradigmáticas para a historiogra�a? De que forma a produção historio-
grá�ca pode ser pensada entre a narrativa e a �cção? Quais as críticas e a re-
novação metodológica propostas na historiogra�a pós-moderna?
1. Introdução
Já no �m do século XX, a Escola dos Annales foi perdendo espaço nos debates
epistemológicos da história, diante de novos referenciais, a exemplo das pro-
postas da Micro-história, da Nova História Cultural e do . Por
óbvio, essas novas propostas dialogam com a historiogra�a dos Annales; en-
tretanto, várias críticas e novas propostas foram apresentadas.
O passado não está pronto. Tudo isso foi veri�cado, analisado e discutido no
decorrer, especialmente, do século 20. O grupo da Nova História apresentou
uma grande produção a respeito do ofício do historiador. E, não bastassem to-
das essas mudanças e mais aquelas que afetaram os conceitos de História e
historiogra�a desde a Antiguidade, a partir dos anos 1960 e 1970, um novo
conceito vem contribuir com os debates sobre a “queda” dos tradicionais para-
digmas historiográ�cos. Trata-se do conceito de pós-modernismo. Essa ideia
não é fruto desse período, mas ganha força com a publicação do livro A condi-
ção pós-moderna, do �lósofo francês Jean-François Lyotard, em 1979.
Contra todo esse aparato surge, na França, como você já estudou, os Annales,
que, nos anos 1970, mais especi�camente, com a Nova História, irá de�nitiva-
mente divulgar a ideia de que o conhecimento não é objetivo, que é, ao contrá-
rio, subjetivo, que a verdade é relativa, que há mundos e passados diferentes e
que as explicações são, de fato, interpretações. O determinismo e o reducionis-
mo são rejeitados e a história global e a história universal são descartadas.
4. A micro-história
A proposta da Micro-história é reduzir a escala de observação do historiador
(incluindo espacialidade e temporalidade) na tentativa de buscar elementos
que, analisando em escala maior, passariam despercebidos. Seus objetos ge-
ralmente são práticas culturais especí�cas (festas religiosas, por exemplo),
ocorrências (um determinado crime, um julgamento especí�co, suicídios), ci-
dades, indivíduos, famílias ou lugares determinados. Entende-se que uma
micro-ocorrência fornece dados para a compreensão de uma característica
cultural maior.
De acordo com Peter Burke (2005, p. 60-64), a Micro-história foi uma reação
contra:
Repare que a numeração indica um movimento de fora para dentro. Esse seria
o modelo convencional. Já aquele seguido pela Micro-história pode ser repre-
sentado da seguinte maneira:
[...] a Micro-história deve ser de�nida como ‘campo’ e não como uma ‘corrente’ loca-
lizada de historiadores. E também não deve ser vista como restrita a uma determi-
nada temática. Na verdade, a princípio qualquer tema seria passível de ser aborda-
do a partir de um olhar micro-historiográ�co (BARROS, 2004, p. 167-168).
Mas o que caracteriza a Nova História Cultural? O que ela apresenta de novo
ou repensado? Quais suas contribuições para a difícil tarefa do historiador di-
ante do passado que não se revela, mas que clama por olhares?
Aqui, vale ressaltar que esse movimento não foi exclusivo no meio acadêmico
francês; pelo contrário, trata-se de um movimento internacional que encon-
trou eco na Inglaterra, Estados Unidos, Itália, Rússia, Alemanha, Holanda e
mesmo no Brasil.
O que é cultura?
Como compreender o que é a Nova História Cultural sem entendermos o que é
cultura? Não há como. Você já parou para pensar qual conceito de cultura uti-
liza no dia a dia, em seus estudos? Mas é possível entender o que é cultura?
Cardoso (2005) surpreende-nos ao divulgar uma pesquisa em que apontou a
existência de, aproximadamente, 164 conceituações diferentes para esse ter-
mo.
1. Para Bronislaw Malinowski (in BURKE, 2005, p. 43), cultura abrange “as
heranças de artefatos, bens, processos técnicos, idéias, hábitos e valores”.
2. Segundo Edward Tylor (in BURKE 2005, p. 43), cultura “é o todo complexo
que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e outras apti-
dões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”
(BURKE, 2005, p. 43).
3. De acordo com Clifford Geertz (in BURKE, 2005, p. 52), cultura:
A viragem antropológica
Na historiogra�a, encontramos a expressão inglesa “cultural turn”, que tam-
bém faz referência à viragem antropológica.
Uma última citação tem o objetivo de situá-lo, ainda mais, no contexto pós-
moderno:
Ninguém melhor do que o próprio autor para falar dele mesmo. Num bate-papo quase informal, Carlo
Ginzburg apresenta-se. Vejamos o que o estudioso da Micro-história tem a nos dizer sobre suas in�uênci-
as e contribuições. A entrevista completa encontra-se na revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n.
6, 1990, p. 254 -263.
Minha mãe, Natalia Ginzburg, Levi em solteira, era �lha de um histologista muito
conhecido e importante, professor da Universidade de Turim. Três dos alunos de
meu avô receberam o prêmio Nobel [...]
Depois da guerra, minha mãe recomeçou a escrever. É uma romancista muito co-
nhecida, e seus livros foram traduzidos em vários países, inclusive no Brasil. [...]
Quando eu era criança, sonhava em ser escritor, o que era até previsível já que mi-
nha mãe escrevia. Depois, pensei em ser pintor. Pintei na adolescência, cheguei a
estudar um pouco de pintura, mas, num determinado momento, percebi que não
era pintor. E o curioso é que tanto a literatura como a pintura têm a ver com o que
faço hoje. Existe uma dimensão literária no trabalho do historiador e tenho muita
consciência desse elemento. [...]
[...]
Mas há ainda um outro fato ligado a essa escolha. Havia na Scuola Normale um
historiador medievalista chamado Arsenio Frugoni, não tão importante como
Cantimori, mas muito bom professor, autor de um livro sutil e inteligente sobre um
herege queimado pela Igreja Romana no século XII. Assim que entrei para a uni-
versidade, ainda interessado em literatura, Frugoni tentou convencer-me a estu-
dar história e me deu um ensaio de Croce para ler. E o fato é que o primeiro livro
de história que eu havia lido era justamente a História da Europa, de Croce, um
pouco por in�uência familiar. Meu pai havia sido um discípulo de Croce [...] Aliás,
faço parte da última geração na Itália que leu realmente Croce. Depois disso, não
se leu mais. E isso foi importante para mim, mesmo que eu não goste de Croce. Há
coisas boas nele, mas faço uma história totalmente diferente da que ele propõe.
Voltando ao meu tempo de escola, Frugoni me deu o ensaio de Croce para ler, um
célebre ensaio sobre um marquês napolitano que abraçou o protestantismo no sé-
culo XVI. Comecei a lê-lo e percebi que não me interessava nem um pouco. Disse a
Frugoni que não ia estudar história, porque era uma disciplina que não me desper-
tava interesse. Depois de ter ouvido Cantimori e ter mudado de idéia, voltei a
Frugoni. Eu tinha que escolher um tema de estudo, e ele me sugeriu que trabalhas-
se com os Annales. Perguntei: “O que é isto?” É interessante que naquela época,
1958, houvesse alguém na Itália propondo os Annales como tema a um estudante
que não sabia do que se tratava. De toda forma, havia a coleção completa dos
Annales numa biblioteca de Pisa, o que prova que as ligações eram mais antigas.
Hoje existe na Itália uma idéia equivocada de que a in�uência dos Annales teria
começado nos anos 70, quando na verdade se iniciou muito antes.
O despertar para a História não é um caminho livre. Nem sempre o que estu-
damos nos chama a atenção. Mas neste processo de escolhas, as leituras são
imprescindíveis. Não é necessário um Croce, mas as obras dos estudiosos li-
gados aos Annales, são um belo começo.
Além desse encontro com Marc Bloch, houve outro fato fundamental. Li o livro de
um historiador italiano muito importante, Federico Chabod, sobre a história religi-
osa do Estado de Milão no século XVI e as primeiras reações à Reforma
Protestante. [...] Chabod havia trabalhado intensamente com os arquivos milane-
ses, e tinha encontrado uma minuta de documento o�cial em cujo verso havia al-
gumas frases sobre a predestinação que haviam sido riscadas. E Chabod fazia
uma análise maravilhosa desse documento esquecido, riscado, quase destruído,
[...] A análise de Chabod era realmente extraordinária, sobretudo sua idéia de recu-
perar um documento como aquele para a história. Hoje, pensando retrospectiva-
mente, acho que naquele momento, mesmo de uma forma obscura, compreendi o
que se podia fazer com a história.
Penso que não se deve ter medo de ser ignorante... Considero que o verdadei-
ro perigo está em nos tomarmos competentes”. Essas são assertivas de impac-
to. Procurar saber, não aceitar os fatos como dados, conhecer as diferentes re-
presentações de um mesmo tema é essencial ao historiador e ao professor de
História. Quando cremos que já sabemos muito ou que somos possuidores de
uma verdade inquestionável, adentramos no perigoso terreno de usos inade-
quados do passado.
Sim. No ano seguinte eu devia escolher um outro tema de estudo, e lembro que es-
tava passeando quando pensei: “Vou estudar as feiticeiras.” Eu não sabia nada so-
bre o
assunto, mas de uma forma totalmente imediata soube que o que me interessava
eram as
feiticeiras ou feiticeiros, e não a perseguição que sofreram. [...] Como eu não co-
nhecia nada, fui para a biblioteca e comecei a ler o verbete stregholeria na
Enciclopédia Italiana. [...] gosto muito de começar trabalhos completamente no-
vos, sobre coisas a respeito das quais não conheço nada. Sempre tento explicar
aos meus alunos que o que existe de realmente excitante na pesquisa é o momen-
to da ignorância absoluta. Penso que não se deve ter medo de ser ignorante, e sim
procurar multiplicar esses momentos de ignorância, porque o que interessa é jus-
tamente a passagem da ignorância absoluta para a descoberta de algo novo.
Considero que o verdadeiro perigo está em nos tomarmos competentes.
Certamente pesou nessa escolha a idéia de que os fenômenos religiosos são im-
portantes. Mas havia outra coisa também, que na época me escapou de uma ma-
neira surpreendente: a idéia de trabalhar com marginais, com hereges, podia estar
ligada ao fato de eu ser judeu. Reprimi completamente essa associação, e foi um
amigo que me alertou para ela numa conversa, como algo evidente. Havia ainda
outro elemento muito profundo em meu interesse pelas feiticeiras: a fascinação
pelos contos de fadas que minha mãe lia quando eu era criança. [...]
L.O. - O senhor falou em Croce. Vico também foi uma in�uência em seus anos de
formação?
Acredito que no fundo os livros de história talvez não tenham sido a coisa mais
importante que li. Acho que Guerra e paz de Tolstoi, por exemplo, me marcou mui-
to mais profundamente do que qualquer livro de história, inclusive os de Marc
Bloch. Assim também Dostoievski. Ou seja, os romances foram os livros que mais
me tocaram.
Devo mencionar ainda outra grande descoberta que �z em minha vida: o Warburg
Institute, em Londres. [...]
Uma ocasião, quando eu ainda estudava em Pisa, fui a Londres visitar minha mãe,
[...] Cantimori também estava lá, e me levou para conhecer o Warburg Institute.
Fiquei fascinado pelo instituto, pela história da arte, pela possibilidade de traba-
lhar com história da arte numa perspectiva mais ampla. Em 1964, quando estava
preparando meu livro Os andarilhos do bem, ganhei uma bolsa de um mês e fui
para Londres. Trabalhei como um louco, descobri a obra de Gombrich, sobretudo
Art and illusion, comprei os livros de Saxl, voltei para a Itália com uma mala cheia
de livros. Comecei a ler Gombrich, e foi uma experiência extraordinária, algo que
me marcou muito. Escrevi então um artigo sobre a tradição da Biblioteca Warburg,
que depois foi publicado na coletânea Mitos, emblemas, sinais. Enviei o artigo a
Gombrich, e a seu convite voltei a Londres por um ano. E isso para mim foi muito
importante.
Realmente, como todos sabem, a vida intelectual na Itália foi impregnada pelo
marxismo. Meu encontro com Gramsci sem dúvida foi muito importante. [...] Li
Hegel e Marx no curso de um intelectual comunista chamado Cesare Luporini, [...]
Acho que esta é uma pergunta importante porque tem implicações que vão muito
além do meu caso pessoal. Publiquei Os andarilhos do bem em 1966, e tive uma re-
senha anônima no Times Literary Supplement - era o texto de Hobsbawm, que
não o assinou. Alguns anos mais tarde, saiu outra resenha bastante elogiosa na
Bibliothèque de I'Humanisme et Renaissance. Era um texto de Bill Monter, um
historiador americano que trabalhou com feitiçaria, história espanhola, Inquisição
etc. [...] em 1973 fui para Princeton.
Quando cheguei aos Estados Unidos, descobri que havia pesquisadores que co-
nheciam Os andarilhos do bem. [...] Mas só no �nal dos anos 70, quando O queijo e
os vermes começou a ser traduzido, o caminho foi aberto. [...] O momento era pro-
pício, havia uma conjuntura internacional favorável, Braudel escreveu dizendo
que era um livro muito. bom, que devia ser traduzido...
Penso que a traduzibilidade de meus livros está ligada ainda a outro elemento.
Entre os historiadores italianos sempre prevaleceu, e prevalece até hoje, com raras
exceções, a tendência a escrever para pro�ssionais. Há muito de implícito no que
se escreve, e isso di�culta a tradução. [...] mas desde muito cedo decidi que gosta-
ria de trabalhar de maneira diferente, de escrever tanto para pro�ssionais quanto
para um público mais amplo. E foi o que �z em Os andarilhos do bem e O queijo e
os vermes. [...]
Tornar-se conhecido por suas pesquisas no meio acadêmico não é tarefa fácil.
Para além dos elogios, há inúmeros casos de obras importantes que caíram no
esquecimento em virtude das ferrenhas críticas recebidas. Também há o pro-
blema da tradução: se não se conhece bem a língua e os termos técnicos pró-
prios de cada teoria, corre-se o risco de se ter uma versão, e não uma tradução.
Isso implica uma leitura muito diferente daquela proposta pelo autor. Eni
Puccinelli Orlandi, em seu livro Interpretação (São Paulo: Pontes, 2004), fala
em “deslizamento de sentidos”. Porém, não podemos negar que, devido às tra-
duções, temos acesso às diferentes produções acadêmicas mundiais.
A.A.- Poderia nos falar um pouco sobre seu último livro, Storia noturna?
É o livro mais longo que escrevi, e no qual trabalhei mais de 15 anos, com longos
intervalos [...] Storia noturna foi um livro muito difícil de escrever, embora eu esti-
vesse muito apaixonado pela pesquisa. Durante muito tempo achei que não seria
capaz de terminá-lo. Publiquei-o em abril de 1989, mas mesmo agora tenho a im-
pressão de que foi escrito por alguém que não eu. É claro que quando penso no li-
vro, lembro de quando o escrevi, mas relendo alguns trechos sempre tenho senti-
mentos de surpresa. [...]
Storia noturna aborda o problema do sabá numa perspectiva ao mesmo tempo
histórica e morfológica. A primeira parte é histórica, a segunda é morfológica, e há
ainda uma terceira parte em que faço uma comparação entre as duas perspectivas
e tento operar uma convergência. Há uma conclusão e uma introdução teórica
bastante longa. Na primeira parte, começo com o sabá, ou seja, a reunião das feiti-
ceiras, vista pelos inquisidores, pelos juízes. Analiso a idéia de complô, que é algo
muito importante. Há um pequeno trecho na introdução em que falo do papel do
terrorismo, porque penso que há uma relação entre a percepção que tive dessa
idéia do complô e o terrorismo na Itália a partir de 1969. [...]
Na segunda parte, tento compreender aquilo que considero ser o núcleo folclórico
do sabá, ou seja, o vôo mágico e a metamorfose em animais. Coloquei-me o proble-
ma do núcleo folclórico e procurei recolher fenômenos com uma preocupação pu-
ramente formal, alheia a qualquer consideração de ordem histórica, cronológica
ou geográ�ca. Reconstituí séries de fenômenos ligados entre si do ponto de vista
estrutural, no nível da morfologia profunda, dispersos pelo continente eurasiano.
“A explicação histórica não basta”. A Nova História Cultural propõe essa leitu-
ra com a�nco. Daí o incentivo à interdisciplinaridade, à união e à justaposição
entre as Ciências Humanas. De modo mais especí�co, a defesa da estreita re-
lação entre a História e a Antropologia.
7. História e discurso
Para iniciar nossa discussão, retomaremos, a princípio, um fragmento da cita-
ção a seguir, quando Carbonell responde o que é historiogra�a. Na sequência,
veremos alguns autores de�nindo o que é a História.
Para você re�etir, foram selecionadas algumas de�nições de História que vie-
ram corroborar com uma das temáticas já discutidas: História enquanto dis-
curso. Nessa mesma linha, ainda encontramos conceituações que dizem ser a
História uma prática discursiva. O que tudo isso implica? Quais os resultados
dessa a�rmação? Uma primeira resposta já foi trabalhada anteriormente: se
História é um discurso e se o discurso é uma produção do tempo presente so-
bre o passado, então, História é a construção desse passado e não a sua descri-
ção. E, se o discurso traz em si a característica de ser algo criado por um histo-
riador (com uma história de vida e acadêmica próprias, com ideologias própri-
as), a História é interpretação e não a apresentação do real.
Mas se a História é um discurso, o que é discurso? Mais uma vez (e isso ocorre
demasiadamente em estudos historiográ�cos), estamos diante de um conceito
polissêmico. E, mais uma vez, você terá acesso a algumas de�nições que vêm
ao encontro de nossa temática. Assim, o discurso pode ser entendido como:
[...] a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; [...] o
discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no
segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais
põem em jogo senão os signos (FOUCAULT, 1996, p. 49).
[...] a forma por meio da qual os indivíduos proferem e apreendem a linguagem co-
mo uma atividade produzida historicamente determinada [...] o discurso é a prática
da linguagem.
História e Verdade
Segundo Schaff (1978, p. 92), a de�nição clássica de verdade é a seguinte: “é
verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade
tal como o enuncia”.
Mas há uma ressalva a ser feita: o que ocorre nesse ambiente pós-moderno
não é o abandono da verdade ou do real em troca da �cção, da mentira, do ilu-
sório ou da pura imaginação. O que ocorre é um afastamento da noção de ver-
dade absoluta rumo à compreensão de que, na História, as verdades são histó-
ricas, constituídas pelo e no discurso, a partir da análise de documentos.
Entretanto,
[...] já não é apenas a relação que os documentos mantêm com o real que importa
[...] por meio deles, o historiador já não pretende evocar toda a realidade, mas ape-
nas fornecer uma interpretação do ou dos subsistemas que distinguiu no seu seio
(BOURDÉ, 1990, p. 210).
[...] o essencial não é pensar em formular a questão? Em outras palavras, é mais im-
portante ter idéias do que conhecer verdades; [...] Ora, ter idéias signi�ca também
dispor de uma tópica, tomar consciência do que existe, explicitá-lo, conceituá-lo,
arrancá-lo à mesmice [...] É deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia
não ser. O real está envolto numa zona inde�nida de compossíveis não realizados; a
verdade não é o mais elevado dos valores do conhecimento.
Dois autores que representam bem esse tipo de História e que são os responsá-
veis pelo uso cuidadoso e pela divulgação dos conceitos de prática e represen-
tação são Michel de Certeau e Roger Chartier. Para além das familiaridades
teóricas entre ambos, eles analisaram a importância do livro como compo-
nente de diferenciação social e cultural no Ocidente.
Vamos conhecer um pouco mais sobre os problemas levantados por esses au-
tores e suas contribuições para a História Cultural? Então, caminhemos jun-
tos.
Os dois últimos títulos sugerem uma postura de De Certeau: ele criticava as vi-
sões monolíticas da Cultura. Para provar que esse conceito é mais valioso no
plural, procurou interpretar normas culturais por meio do cotidiano. Assim,
analisou as práticas das pessoas comuns. Tais práticas eram chamadas pelos
sociólogos que o antecederam de “comportamento” (de grupos, como eleitores,
por exemplo). Esses mesmos sociólogos consideravam as pessoas comuns
consumidoras inertes de artigos produzidos em grande escala. Porém, De
Certeau ressaltou a criatividade, a inventividade de determinados grupos po-
pulares diante dos “usos”, a “apropriação” e, especialmente, a “utilização” (re-
emploi) das obras (BURKE, 2005, p. 103).
Mas o cotidiano que interessou a De Certeau não é aquele aparente, pois “[...] o
que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível [...]” (DE CERTEAU, 1996,
p. 31). Ele desconsiderou a ideia de que as pessoas se deixam passivamente
ser levadas a ocupar um lugar, desempenhar um papel e consumir produtos
massi�cados. De Certeau, de outro modo, esclareceu-nos que o homem co-
mum, ordinário, reinventa o cotidiano de mil maneiras e não se permite cair
na conformação. Às essas manobras, en�m, à invenção do cotidiano, ele deu o
nome de táticas de resistência, artes de fazer, astúcias sutis, que, alterando os
usos dos objetos e seus códigos, estabelecem uma (re)apropriação do espaço.
De Certeau buscou, então, descobrir os meios para abalizar maneiras de fazer,
estilos de ação, em outras palavras, elaborar a teoria das práticas.
Com base no que foi exposto, propomos que re�ita sobre a seguinte questão:
será que, atualmente, a mídia é tão poderosa a ponto de destruir uma identida-
de popular (utilizando a estratégia da imposição forçada de modelos culturais)
e extinguir ou invalidar os espaços da recepção, do uso e da interpretação das
obras (sejam quais forem)?
As contribuições para as discussões historiográ�cas
Michel de Certeau pensava a história como produção do historiador, como um
discurso que insurge de uma prática e de um lugar institucional e social. Em
suas próprias palavras, a produção do historiador deveria ser considerada
[...] como a relação entre um lugar [...], procedimentos de análise (uma disciplina) e
a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’
de que trata, e essa realidade pode ser compreendida ‘como atividade humana’, ‘co-
mo prática’. Nessa perspectiva, [...] a operação histórica se refere à combinação de
um lugar social, de práticas “cientí�cas” e de uma escrita” (DE CERTEAU, 2000, p.
66).
Grande parte do que foi discutido aqui sobre as teorias de Michel de Certeau
compõem os questionamentos da atual historiogra�a: a historiogra�a pós-
moderna. As contribuições prestadas pelo autor podem ser observadas, em
maior ou menor medida, nas produções de diferentes historiadores vincula-
dos à História Cultural, dentre eles, Roger Chartier, a quem você está sendo
acenado a conhecer nas linhas a seguir.
De modo mais especí�co, suas pesquisas, assumidas como uma prática histó-
rica particular, giram em volta de três polos:
[...] de um lado, o estudo crítico dos textos, literários ou não, canônicos ou esqueci-
dos, decifrados nos seus agenciamentos e estratégias; de outro lado, a historia dos
livros e, para além, de todos os objetos que contém a comunicação do escrito; por
�m, a análise das práticas que, diversamente, se apreendem dos bens simbólicos,
produzindo assim usos e signi�cações diferenciadas (CHARTIER, 1991, p. 178).
Como você deve ter percebido, o próprio Chartier faz uso de um dos conceitos
trabalhados por De Certeau: “práticas”. O que podemos aferir desse uso? Que
Chartier tomou essa noção como um fato dado? Não. Para ele, “práticas” dife-
rentes resultam em “apropriações” diversas, em representações múltiplas.
Vamos compreender um pouco mais sobre sua produção?
O conceito de representação
No interior da História Cultural, mais precisamente na Nova História Cultural,
o conceito de representação ganhou espaço juntamente com os conceitos de
mito, imaginário, memória etc. No entanto, quando esse conceito ou noção
(uma vez que o termo ainda é analisado) é lido, é a Chartier que ele nos remete.
Mas o que signi�ca e como ele utiliza essa ideia?
Para Chartier, seja qual for o uso, a representação deve ser compreendida co-
mo:
[...] o produto do resultado de uma prática. A literatura, por exemplo, é representa-
ção, porque é o produto de uma prática simbólica que se transforma em outras re-
presentações [...] Então, um fato nunca é o fato. Seja qual for o discurso ou meio, o
que temos é a representação do fato. A representação é uma referência e temos que
nos aproximar dela, para nos aproximarmos do fato. A representação do real, ou o
imaginário é, em si, elemento de transformação do real e de atribuição de sentido
ao mundo (MAKOWIECKY, 2003, p. 4).
Nesse contexto, uma pergunta apresenta-se aos nossos olhos: se o fato não
existe enquanto instância concreta, pois ele é produzido, como, tomando um
livro de História como exemplo, devemos encarar as representações ofereci-
das? Nas palavras de Chartier, como nos apropriar da obra? Ou: qual o uso que
fazemos do conhecimento adquirido? Aqui, entramos com o conceito de apro-
priação de Chartier (1991, p. 180):
a apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações,
referidas as suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas especí�cas
que as produzem.
Explicando um pouco mais, para esse historiador cultural, o que mais interes-
sa não é necessariamente a apropriação, mas o uso que fazemos dela.
REPRESENTAÇÃO
O MENDIGO PRÁTICA CULTURAL
CULTURAL
O mendigo conhecido
O mendigo é visto como
FINAL DO SÉULO 11 é bem acolhido na co-
instrumento de salvação
ATÉ INÍCIO DO 13 munidade ou no mos-
para o rico.
teiro.
Criação de institui-
ções hospitalares, ca-
SÉCULO 13 ORDENS O mendigo deve ser estima-
ridades paroquiais,
MENDICANTES do por seu valor humano.
esmolas de príncipes,
projetos de educação.
Reeducação e, em ca-
Passa a ser visto como um
sos mais extremos,
CAPITALISMO vagabundo, um criminoso,
punições exemplares
um perigo para o sistema.
(incluindo a prisão).
Vamos, agora, buscar compreender um pouco mais sobre esses conceitos usa-
dos por Chartier tomando como suporte suas pesquisas sobre a história da lei-
tura ou, mais precisamente, sobre a “recepção” das obras (de literatura ou não)
(cf. BURKE, 2005).
A questão é simples: como é que um texto, que é o mesmo para todos que o lêem,
pode transformar-se em instrumento de discórdia e de brigas entre seus leitores,
criando divergências entre eles e levando cada um, dependendo do seu gosto pes-
soal, a ter uma opinião diferente?
Não obstante, a experiência mostra que ler não signi�ca apenas submissão ao me-
canismo textual. Seja lá o que for, ler é uma prática criativa que inventa signi�ca-
dos e conteúdos singulares, não redutíveis às intenções dos autores dos textos ou
dos produtores dos livros. Ler é uma resposta, um trabalho, ou, como diz Michel de
Certeau, um ato de “caçar em propriedade alheia” (CHARTIER, 2001, p. 214).
Resumindo, faz-se necessário ponderar que a leitura é sempre uma prática re-
pleta de gestos, espaços e hábitos. Essas práticas diferentes distinguem as co-
munidades de leitores e as tradições de leitura. Podemos, então, concluir que
“os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que outros transformam
em objetos impressos” (CHARTIER, 1991, p. 182). “[...] a transformação das for-
mas através das quais um texto é proposto autoriza recepções inéditas, logo
cria novos públicos e novos usos” (CHARTIER, 1991, p. 186-187). Mas uma nova
ressalva deve ser feita: as “intenções” dos autores ou editores são fortes o su�-
ciente para sufocar as recepções que diferem do que foi proposto e, em contra-
partida, não é sempre que o leitor se propõe às novidades criativas. O que deve
ser considerado na análise dessa relação é, desse modo, como se dão o contro-
le e a criatividade. “É preciso, portanto, substituir as representações rígidas e
simplistas de dominação social ou difusão cultural” (CHARTIER, 2001, p.
236-237).
A seguir, você poderá ler fragmentos de uma entrevista concedida por Roger
Chartier, em 16 de setembro de 2004, à cientista política Isabel Lustosa quando
de sua vinda ao Brasil por ocasião do Seminário de História Cultural realizado
na Casa Rui Barbosa – Rio de Janeiro. Nessa entrevista, Chartier fala de sua
noção de História, de sua produção e de autores e temas diversos. Por meio
dessa leitura, você poderá conhecer um pouco mais desse historiador e com-
preender mais afundo alguns conceitos utilizados pela historiogra�a.
"Não posso aceitar a idéia que está identi�cada com o pós-modernismo de que to-
dos os discursos são possíveis porque remetem sempre à posição de quem o enun-
cia e nunca ao objeto", a�rma o historiador em entrevista exclusiva.
Quem é Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a sua história de vida?
Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudência com questões pessoais. Acho
que, quando a gente fala de si, constrói algo impossível de ser sincero, uma repre-
sentação de si para os que vão ler ou para si mesmo. Gostaria de lembrar, a este
propósito, o texto de Pierre Bourdieu sobre a ilusão biográ�ca ou a ilusão autobio-
grá�ca. Bourdieu critica este tipo de narrativa em que uma vida é tratada como
uma trajetória de coerência, como um �o único, quando sabemos que, na existên-
cia de qualquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, as oportunida-
des. Outro aspecto da ilusão biográ�ca ou autobiográ�ca é pensar que as coisas
são muito originais, singulares, pessoais [...] Ao fazer um relato autobiográ�co é
quase impossível evitar cair nesta dupla ilusão: ou a ilusão da singularidade das
pessoas frente às experiências compartilhadas ou a ilusão da coerência perfeita
numa trajetória de vida [...] Pierre Nora lançou a idéia de “ego-história” numa cole-
tânea de ensaios onde estão reunidas oito autobiogra�as: George Duby, Jacques Le
Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autores conhecidos falando sobre sua traje-
tória pessoal ou relacionando-a com a escolha de determinado período ou campo
histórico. Mas pessoalmente considero muito difícil evitar o anedótico ou o dema-
siado pessoal nesse tipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu
próprio destino social? Acho que é preciso primeiro situar-se dentro do mundo so-
cial e daí fazer um esforço de dissociação da personagem: a personagem que fala
e a personagem sobre a qual se fala, que é o mesmo indivíduo. Isto posto, podemos
entrar, com uma certa cautela, na resposta à sua pergunta. Nasci em Lyon e per-
tenço a um estrato social fora do mundo dos dominantes, sem tradição no meio
acadêmico. Minha trajetória escolar e universitária foi conseqüência desta origem
[...] Para entendê-la é preciso um certo conhecimento da realidade social do pós-
guerra na França, entre os anos 1950 e 60, quando predominava o sistema de re-
produção, mas onde havia também alguma possibilidade de ascensão para gente
de outra origem social. Acho, no entanto, que quando há este tipo de tensão entre
uma forma dominante de escola e uma individualidade de origem diferente que
consegue furar este sistema sempre se mantém algo dessa tensão, dessa di�cul-
dade.
A minha geração foi, no Brasil, talvez a última em que a leitura dos clássicos da li-
teratura universal era um hábito. Acho que isso criou um universo de referência
para a nossa geração que é diferente dos jovens de hoje. De que maneira esse uni-
verso de referências culturais originadas da leitura dos clássicos está na base da
visão de mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de que maneira esse
universo de referência cultural mais ampliado contribuiu para a aceitação de
abordagens interdisciplinares?
Chartier: Não devemos pensar que o passado era necessariamente melhor [...]
Acho, ao contrário, que hoje se lê mais do que nos anos 1950. Inclusive porque o
computador não é apenas um novo veículo para imagens ou jogos. Ele é responsá-
vel também pela multiplicação da presença do escritor nas sociedades contempo-
râneas [...] Podem não ser necessariamente leituras fundamentais, enriquecedo-
ras, mas são leituras. Não se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo ao de-
saparecimento da cultura escrita. O problema é qual cultura escrita persiste [...] O
fato de que os textos lidos pelos adolescentes no computador, suas leituras predi-
letas, não pertençam àquele repertório de�nido como literário não é necessaria-
mente algo ruim. O problema está numa certa discrepância entre essa nova cultu-
ra e os modelos de referência que, a nosso ver, seriam mais consistentes e forne-
ceriam mais recursos para a compreensão do mundo social, a compreensão de si
mesmo e a representação do outro. Para isto não tenho resposta, mas me parece
que há duas posições que se deve evitar. Uma é a que considera que essa presença
da literatura na realidade cotidiana pertence a um mundo de�nitivamente desa-
parecido. Não me parece um diagnóstico adequado, pois há, na atualidade, um es-
forço dentro da escola e fora da escola para preservar a cultura literária [...] A outra
posição é a dos que pensam que não há nada de proveitoso, útil ou fundamental
nesse novo mundo. Postura que me parece muito inadequada quando pensamos
nas possibilidades educativas criadas pelas novas tecnologias, nas diversas expe-
riências para a alfabetização, para a transmissão do saber à distância. Acho que é
responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicação, dos editores, asse-
gurar a transmissão de um saber sobre o mundo, através de projetos que vinculem
a dimensão estética ou a dimensão cientí�ca com a existência cotidiana. Para que
as pessoas não sejam totalmente submetidas às leis do mercado, à incerteza ou à
inquietude, o essencial é dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o
mundo em que vive e a sua própria situação neste mundo. Esse saber que pode vir
da sociologia, da literatura, da história, possibilitaria a resistência às imposições
dominantes que vêm de todas as partes: dos discursos ideológicos, das mensa-
gens dos veículos de comunicação, da cultura de massa etc [...] Mas me parece
que, se há um caminho não literário para se adquirir saber sobre o mundo social,
por que procurar os instrumentos mais vulneráveis para decifrar esse mundo?
Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os historiadores buscavam uma forma de saber
controlado, apoiado sobre técnicas de investigação, de medidas estatísticas, con-
ceitos teóricos etc. Acreditavam que o saber inerente à história devia se sobrepor à
narrativa, pois achavam que o mundo da narrativa era o mundo da �cção, do ima-
ginário, da fábula. Desta perspectiva os historiadores rechaçaram a narrativa e
desprezaram os historiadores pro�ssionais que seguiam escrevendo biogra�as,
história factual e tudo isso. A tradição francesa dos Annales foi uma das que levou
mais longe essa tendência. Hoje, no entanto, a situação tornou-se muito mais
complicada. Uma das razões é que autores como Hayden White e Paul Ricoeur
mostraram que, mesmo quando os historiadores utilizam estatísticas ou qualquer
outro método estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quando dizem
que tal coisa é conseqüência ou causa de outra, estabelecem uma ordem seqüen-
cial, se valem de uma concepção da temporalidade, que é a mesma de uma novela
e de um relato historiográ�co.
Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos, atuam
no discurso dos historiadores quase como personagens, havendo toda uma forma
de personi�cação das entidades coletivas ou abstratas. Dessa forma o historiador
não pode evitar a narração, inclusive quando a rechaça conscientemente. Pois a
escrita da história por si mesma, pela maneira de articular dos eventos, pela utili-
zação da noção de causalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e
com as mesmas �guras de uma narrativa de �cção. É a partir desse parentesco
entre a narrativa de �cção e a narrativa histórica que se coloca a questão: onde es-
tá a diferença? Alguns críticos pós-modernos adotaram um relativismo radical e
decidiram que não havia diferença e que a história era �ccional não apenas no
sentido da forma. Ou seja: não diziam que não há verdade na história, mas que a
verdade do saber histórico era absolutamente semelhante à verdade de uma nove-
la. Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo espe-
cí�co no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas especí�cas.
Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou
uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os docu-
mentos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de
prova. Coisas com as quais um novelista não deve se preocupar. Portanto, se é pre-
ciso adotar essas técnicas em particular, é porque há uma intenção diferente no
fazer história: que é restabelecer a verdade entre o relato e o que é o objeto deste
relato. O historiador hoje precisa achar uma forma de atender a essa exigência de
cienti�cidade que supõe o aprendizado da técnica, a busca de provas particulares,
sabendo que seja qual for a sua forma de escrita esta pertencerá sempre à catego-
ria dos relatos, da narrativa. Alguns historiadores decidiram então que não valia à
pena lutar contra algo inevitável e passaram a utilizar-se dos recursos mais per-
suasivos da narrativa a serviço de uma demonstração histórica [...] Acho que a si-
tuação atual não é a de uma oposição absoluta entre a narrativa como �cção e a
história como saber, mas de um saber que se escreve através da narrativa e daí ser
necessária uma re�exão sobre que tipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde
se respeite o discurso do saber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um
público de leitores. Não é uma tarefa fácil, mas há exemplos que demonstram que
pode ser feito.
Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford está em parale-
lo ao de Hayden White. Acho que é algo legitimo fazer historiadores e antropólo-
gos re�etirem sobre a própria escrita. Durante muito tempo a escrita foi vista co-
mo um meio neutro para falar sobre o passado ou para descrever o outro. Daí ter
sido fundamental fazer dela um objeto de re�exão, tal como fez White, ao pensar
sobre o papel, na escrita do historiador, de elementos como a retórica e as �guras
que se manejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford com
relação aos dispositivos que os antropólogos utilizam em seu trabalho. Outra con-
tribuição fundamental dessa corrente foi a idéia de que há uma descontinuidade
necessária entre o presente e o passado [...] a qual não pode ser anulada pela idéia
de universalidade e de compreensão de si próprio [...] Mas tanto no texto de White
quanto no de Clifford há um relativismo absoluto. Não posso aceitar a idéia que
está identi�cada com o pós-modernismo de que todos os discursos são possíveis
porque remetem sempre à posição de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acor-
do com essa visão, o discurso é sempre autoproduzido: não diz nada sobre o objeto
e diz tudo sobre quem o escreveu. Parece-me uma conclusão equivocada [...] ,por-
que, tanto no caso da história quanto no da antropologia, uma produção de saber é
possível e necessária [...] Esta justaposição de situações históricas ou situações
antropológicas onde não existe nenhuma comunicação, nenhum intercâmbio,
nem sequer de saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo que
poderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razão pela qual estou
completamente em desacordo com essa postura pós-moderna, essa idéia de que
não há nenhuma possibilidade de conhecimento. É diferente dizer que esse co-
nhecimento sempre esteve organizado a partir dos esquemas de percepção, de
classi�cação e compreensão do observador. E que, se existem formas de desconti-
nuidade culturais, é preciso, assim mesmo, fazer um esforço para entender o pas-
sado e o outro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu um saber,
e me parece que os trabalhos fundamentais da história e da antropologia demons-
tram que este saber não só é possível como também pode ser oferecido ao outro
para conhecimento de si mesmo [...] Parece-me que, assim, temos a circulação da
força crítica do saber. Se isso for destruído, cai-se num relativismo absoluto. O que
me parece seria uma conclusão trágica e ao mesmo tempo muito ideológica.
[...] Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que há algo espe-
cí�co no discurso histórico, pois este é construído a partir de técnicas especí�cas.
Pode ser uma história de eventos políticos ou a descrição de uma sociedade ou
uma prática de história cultural, para produzi-la o historiador deve ler os documen-
tos, organizar suas fontes, manejar técnicas de análise, utilizar critérios de prova
[...].
O que ele vem enfatizar é que, a despeito de a história se utilizar do estilo “nar-
rativo” ao modo de uma �cção, o historiador não produz uma história mentiro-
sa. A verdade relativa que ele defende é aquela que segue o passo a passo da
pesquisa: levantamento e seleção de fontes, análise criteriosa destas, uso de
um arcabouço teórico. Não se trata de “inventar” a história, mas de apresentar
uma “representação” dela.
Neste momento temos a sensação de que tudo se tornou possível: práticas que ha-
viam sido banidas por um conjunto de acordos internacionais no pós-guerra vêm
sendo implementadas pelos EUA na guerra no Iraque ou ao manterem pessoas
presas sem julgamento em Guantânamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda de for-
ça de organismos internacionais, como a ONU. Na medida em que sabemos que as
grandes idéias são �ltradas e incorporadas à agenda do senso comum, a perspec-
tiva radicalmente relativista do pós-moderno não teria in�uído de alguma forma
nesse tipo de política, esvaziando a con�ança em algumas conquistas do huma-
nismo e da cultura do Ocidente?
Em seu livro “O grande massacre dos gatos”, Robert Darnton adota as idéias e os
métodos de Clifford Gertz, dando tratamento etnográ�co a um objeto de estudo
histórico. Esse foco ampliado sobre um detalhe me parece produzir uma visão dis-
torcida do objeto. De que forma você vê esse tipo de investigação?
O autor direciona nosso olhar para uma questão crucial ao historiador: grande
parte de suas fontes são escritas, textuais. Mas quem as escreveu? A mando
de quem? Com que �nalidade? Em que contexto? E, ainda, podemos nos per-
guntar sobre a materialidade do texto: papiros? Pergaminho? Tablete de bron-
ze ou terracota? Num vaso ou escudo? Na parede de um templo ou de um bor-
del? O pesquisador deve considerar todas essas questões e muitas outras an-
tes de narrar a história. É essencial que ele, como diz Chartier, pense a articu-
lação e a distância entre práticas e representações (ou discursos) conceitual e
metodologicamente.
Você já orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo você leu muito sobre o
Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessas leituras como você vê o
Brasil?
Chartier: Acho que há aqui uma circulação entre os campos disciplinares da an-
tropologia, da história e da sociologia cultural mais forte que em outros lugares. O
campo da educação, por exemplo, que em muitos países é muito especializado,
aqui me parece estar bastante integrado ao mundo das ciências sociais. A maior
parte dos trabalhos que orientei tratam de uma forma ou de outra do mundo das
práticas culturais, da história da publicação e da circulação dos textos e um pouco
também do mundo social, da história da vida privada, das estruturas sociais do
Brasil colônia. Há uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigação. O
problema é que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta de interes-
se por outros territórios. Todo mundo está muito preso a seu próprio campo de in-
vestigação e não se dá conta de que é possível aprender muito com estudos sobre
temas que não são os seus. Isso impede que circulem numerosos trabalhos que
mereceriam ter um reconhecimento mais forte. Para divulgar esses trabalhos que
têm uma força metodológica ou teórica inspiradora, seria preciso fazer com que
editoras norte-americanas traduzissem obras latino-americanas para o público
que não lê em espanhol [...] Tradução de Ana Carolina Delmas
Isabel Lustosa
É cientista política, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e au-
tora de Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (Companhia
das Letras, 2000). Disponível em <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos
/2479,3.shl (http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2479,3.shl)>. Acesso em:
28 maio 2009.
9. História e narrativa
Quanto às considerações sobre a História como narrativa, neste momento,
abordaremos as possibilidades e di�culdades de construção narrativa do dis-
curso histográ�co, sobretudo, em relação à �cção e literatura, que se apresen-
tam como o cerne da crítica pós-moderna para com as correntes historiográ�-
cas anteriores.
Os debates sobre os campos de atuação da História e demais Ciências Sociais
acabaram por discutir a inter, multi e transdisciplinaridade. Com isso, a rela-
ção da História e da Literatura entrou na pauta. Do mesmo modo, essa relação
também se inseriu no contexto da discussão sobre a verdade histórica. Ora,
quem produz a verdade? Ela pode ser objetiva? Como você já estudou ao longo
da disciplina, o pós-modernismo não acredita nessa objetividade da verdade;
assim, a História deve rever suas pretensões a um lugar entre as ciências
(contribuições para essa temática já foram dadas por Valéry, Heidegger, Sartre,
Lévi-Strauss e Michel Foucault). Entretanto, não é fácil “descer o degrau”, ou
se deslocar dele rumo à plataforma da Literatura ou da Arte. Estas são o fardo
da História: suas tentativas de justi�car o seu ofício. Aos que criticam suas
ambiguidades, ela (a História) responde que nunca quis ser ciência. Aos que a
criticam por não utilizar a representação literária, ela se posiciona como se-
miciência.
Admitia-se, dessa forma, que, para além do conteúdo, a forma era importante
na escrita da história. Essa forma proposta era a narrativa, mesmo que esta le-
vantasse questionamentos sobre a cienti�cidade da História. A�nal, escrever
uma narrativa é também escrever uma �cção.
Mas o medo da �cção não era o único que vagava pelos escritórios das univer-
sidades; havia, também, o receio do retorno da narrativa histórica tradicional
que enfatizava os grandes feitos dos grandes homens em grandes aconteci-
mentos, a qual custou a ser negligenciada. No entanto, o que vimos foi uma
nova narrativa que considerou o cotidiano das pessoas comuns e os aconteci-
mentos triviais. Passamos, então, a observar um interesse nas “práticas narra-
tivas” de uma cultura: “[...] as histórias que as pessoas naquela cultura ‘contam
a si mesmas sobre si mesmas’” (BURKE, 2005, p. 158).
En�m,
Em resumo, para White (2006), o que ocorre é que há uma inabalável relativi-
dade na representação do fenômeno histórico e, por isso, também, ele trata a
produção dos historiadores como “[...] uma estrutura verbal na forma de um
discurso narrativo em prosa” (WHITE, 1995, p. 11); dito de outra forma, esse crí-
tico literário não reluta em considerar as narrativas históricas como �cções
verbais, cujos conteúdos são tão inventados como achados, e cujas formas
apresentam muito em comum com as narrativas literárias (WHITE, 1994).
Ainda de acordo com White, o exemplo citado e toda e qualquer decisão por
este ou aquele tipo de elaboração de enredo permite que se justi�que que cer-
tos eventos, agentes, ações, agências e resignações que ocupem um dado ce-
nário histórico ou seu contexto serão ignorados (WHITE, 2006).
Os tropos linguísticos
Para Hayden White, o historiador não tem de pensar apenas na escolha do ti-
po de enredo, mas, igualmente, na escolha de um dos quatro tropos linguísti-
cos: metáfora, metonímia, sinédoque e a ironia (as três últimas entendidas co-
mo espécies da primeira). Se assim o historiador faz (utiliza-se de tropos), en-
tão a distinção que existe entre a História e a �cção é de forma e não de con-
teúdo, ou seja, tanto a História quanto a Literatura produzem uma narrativa
�ccional.
Para você compreender melhor: os tropos são desvios do uso literal da lingua-
gem que geram �guras de linguagem, ou seja, as �guras de linguagem são táti-
cas literárias que o historiador pode utilizar no texto para conseguir um efeito
determinado na interpretação do leitor.
Para aprofundar seus conhecimentos acerca do debate entre História e Literatura, o texto a seguir
mostrou-se um importante instrumento de re�exão; por isso, há a sua disponibilização na íntegra. Ele é
encontrado, em sua versão eletrônica, em Nuevo Mundo Mundos Nuevos (http://nuevomundo.revues.org
/1560), Debates, 2006.
velha-nova
Por vezes, esta aproximação da história com a literatura tem um sabor de dejà vu,
dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se
está “reinventando a roda”. A sociologia da literatura desde há muitos anos cir-
cunscrevia o texto �ccional no seu tempo, compondo o quadro histórico no qual o
autor vivera e escrevera sua obra. A história, por seu lado, enriquecia por vezes
seu campo de análise com uma dimensão “cultural”, na qual a narrativa literária
era ilustrativa de sua época. Neste caso, a literatura cumpria face à história um
papel de descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha da concepção bele-
trista de ser um sorriso da sociedade[...]
Entendemos que, atualmente, estas posturas foram ultrapassadas, não porque não
tenham valor em si – no caso da contextualização histórica da narrativa literária
- ou porque sejam consideradas erradas – caso de enfocar a literatura somente co-
mo passatempo. Tais posturas se tornam ultrapassadas pelas novas questões que
se colocam aos intelectuais neste limiar do novo século e milênio. Chamemos
nosso tempo pela já desgastada fórmula da “crise dos paradigmas”, que questio-
nou as verdades e os modelos explicativos do real, ou entendamos nosso mundo
pelo recente enfoque da globalização, dotado hoje de forte apelo, o que parece evi-
dente é que nos situamos no meio de uma complexi�cação e estilhaçamento da
realidade, onde é preciso encontrar novas formas de acesso para compreendê-la.
A rigor, cada geração se coloca problemas e ensaia respostas para respondê-los,
valendo-se para isso de um arsenal de conceitos que se renova no tempo.
Preferimos concentrar nosso enfoque numa perspectiva que, a nosso ver, tem se
revelado profícua neste giro do olhar sobre o mundo e que redimensiona, por sua
vez, as relações entre a história e a literatura. Referimo-nos aos estudos sobre o
imaginário, que abriram uma janela para a recuperação das formas de ver, sentir e
expressar o real dos tempos passados.
O estudo sobre o imaginário é bem mais amplo do que tentar buscar a “menta-
lidade” de uma época, ao mesmo tempo, é a busca por marcas mentais (sensi-
bilidades e emoções). Neste contexto, a narrativa contribuiu muito para a es-
crita da história. A�nal, como falar de emoções que não de uma forma literá-
ria? O óbvio mostrou-se criticável, porém.
1
Conceito amplo e discutido , o imaginário encontra a sua base de entendimento
na idéia da representação. Neste ponto, as diferentes posturas convergem: o ima-
ginário é sempre um sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no
lugar da realidade, sem com ela se confundir, mas tendo nela o seu referente.
Mesmo que os seguidores da História Cultural sejam freqüentemente atacados por
negarem a realidade, acusação absurda e mesmo ridícula, nenhum pesquisador,
em sã consciência, poderia desconsiderar presença do real.
Clío se aproxima de Calíope, sem com ela se confundir. História e literatura cor-
respondem a narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espa-
ço, mas que são dotadas de um traço de permanência ancestral: os homens, desde
sempre, expressaram pela linguagem o mundo do visto e do não visto, através das
suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a imagem, a música.
O que nos interessa, [...], é discutir o diálogo da história com a literatura, como um
caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, [...]
Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para
con�rmá-lo ou negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda pa-
ra ultrapassá-lo. Como narrativas, são representações que se referem à vida e que
a explicam. Mas, dito isto, que parece aproximar os discursos, onde está a diferen-
ça? Quem trabalha com história cultural sabe que uma das heresias atribuídas a
esta abordagem é a de a�rmar que a literatura é igual à história [...]
A sintonia �na de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita, pode
ser encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos
com o fato de Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem existido ou
não. Existiram enquanto possibilidades, como per�s que retraçam sensibilidades.
Foram reais na “verdade do simbólico” que expressam, não no acontecer da vida.
São dotados de realidade porque encarnam defeitos e virtudes dos humanos, por-
que nos falam do absurdo da existência, das misérias e das conquistas grati�can-
tes da vida. Porque falam das coisas para além da moral e das normas, para além
do confessável, por exemplo.
Mas, a rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o mes-
mo nos domínios da História?
Neste campo temos também um narrador – o historiador – que tem também tare-
fas narrativas a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cru-
zamentos entre eles, elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intri-
ga montada e se vale das estratégias de retórica para convencer o leitor, com vis-
tas a oferecer uma versão o mais possível aproximada do real acontecido.
Por outro lado, no aprofundamento destas questões, constata-se que tem sido tra-
dicional reservar à literatura o atributo da �cção, negando esta condição ou práti-
ca ao campo da história6.
Num giro de análise, poderíamos também acrescentar que o fato histórico é, em si,
também criação pelo historiador, mas na base de documentos “reais” que falam
daquilo que teria acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda uma
7
distinção ingênua e radical entre res factae e res �ctae , como se fosse possível
chegar, por meio de documentos reais, a uma verdade incontestável e, por outro
lado, por meio de artifícios, �car no mundo da fantasia ou pura invenção.
Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros,
o caminho do historiador é montado através de estratégias que se aproximam das
dos escritores de �cção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, de-
cifração de enredo, uso e escolha de palavras e conceitos.
Há, sem dúvida, uma de�nição corrente, explícita no conhecido dicionário Aurélio,
que afasta da história a �cção: em uma primeira acepção, �cção é o ato de �ngir,
simular, e em outra, signi�ca coisa imaginária, fantasia, invenção, criação. Tal de-
�nição corresponde a um estatuto reconhecido, a um senso comum que chega até
a academia: a história é diferente, é a narrativa organizada dos fatos acontecidos,
logo, não é �ngimento ou engodo, delírio ou fantasia.
8
Preferimos de�nir a �cção na sua acepção que, como diz Natalie Davis estava
ainda presente no século XVI, antes do cienti�cismo do século XIX converter a
história na “rainha das ciências” e de colocar, não no seu horizonte mas no seu
campo efetivo de chegada, a verdade verdadeira do acontecido. Este posiciona-
mento antigo nos fala da �cção/�ngere como uma criação a partir do que existe,
como construção que se dá a partir de algo que deixou indícios. A palavra �ctio,
corrobora Ginzburg, está ligada a �gulus, oleiro9, ou seja, aquele que cria a partir
de algo. No caso do historiador, este algo que existiu seriam as fontes, traços da
evidência de um acontecido, espécie de provas para a construção do passado. Na
complementação deste entendimento, que afasta a �cção da pura fantasia, Carlo
Ginzburg cita Isidoro de Sevilha, quando este escreveu dizendo que falso era o não
10
verdadeiro, �ctio [�ctum] era o verossímil.
Fontes como “restos” e como representações. Esse passado que ganha signi�-
cado não pode ser compreendido como único. Essa é uma das ênfases que
vêm sendo trabalhadas neste artigo. Essa é uma re�exão que deverá fazer par-
te de seu cotidiano de professor e pesquisador em História.
Mas, a rigor, é o historiador que transforma estes traços em fontes, através das
perguntas que ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento ou
fonte, portador de um signi�cado e de um indício de resposta às suas indagações,
o historiador transforma a natureza do traço. Transforma o velho em antigo, ou
seja, rastro portador de tempo acumulado e, por extensão de signi�cações. Como
fonte, o traço revela, desvela sentidos.
A rigor, o historiador tem o mundo à sua disposição. Tudo para ele pode se conver-
ter em fonte, basta que ele tenha um tema e uma pergunta, formulada a partir de
conceitos, que problematizam este tema e o constroem como objeto. É a partir daí
que ele enxergará, descobrirá, coletará documentos, amealhando indícios para a
decifração de um problema. Cabe ao historiador, a partir de tais elementos, expli-
car o como daquele ocorrido, inventando o passado.
Mas, se ele inventa o passado, esta é uma �cção controlada, o que se dá em primei-
ro lugar pela sua tarefa de historiador no âmbito do arquivo, no trato das fontes.
Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a partir
de uma hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colocadas as
questões ou problemas. E, neste caso, a partir deste particular e especí�co ponto
de vista, podemos dizer que, quando a história coloca determinadas perguntas, ela
se debruça sobre a literatura como fonte.
Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análi-
se se introduz, que é a da especi�cidade e riqueza do texto �ccional.
A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará
acesso especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras
fontes não lhe dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por ve-
zes cifrada, as imagens sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo
ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma
indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto lite-
rário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente
para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu
A verdade da �cção literária não está, pois, em revelar a existência real de perso-
nagens e fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa
temporalidade dada. Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o historiador
que se volta para a literatura o que conta na leitura do texto não é o seu valor de
documento, testemunho de verdade ou autenticidade do fato, mas o seu valor de
problema. O texto literário revela e insinua as verdades da representação ou do
simbólico através de fatos criados pela �cção.
Sem dúvida que esta dimensão poderá ser contestada, sob o argumento de que só
a “literatura realista”, na linha de Balzac ou Zola, poderia ser alternativa ao histori-
ador para recuperar as sensibilidades de uma temporalidade determinada, atuan-
do como aquele plus documental de que se falou. Mas o que queremos a�rmar é
que mesmo a literatura que reinstala o tempo de um passado remoto ou aquela
que projeta, �ccionalmente, a narrativa para o futuro são, também, testemunhos
do seu tempo.
Romances da Cavalaria no século XIX dão a ver o imaginário que o mundo nove-
centista construía sobre a Idade Média, assim como a �cção cienti�ca de um Jules
Verne possibilita a leitura das utopias do progresso que embalavam os sonhos e
desejos dos homens do século passado. Deste ponto de vista, tudo é, sob o olhar do
historiador, matéria “histórica” para a sua análise.
Em suma, entendemos que todas estas questões enunciadas que, pensamos, reve-
la a riqueza de uma velha-nova história, se encontram ao abrigo da postura que se
convencionou chamar de história cultural. Esta, a partir de seus pressupostos e
preocupações, proporciona uma abertura dos campos de pesquisa para a utiliza-
ção de novas fontes e objetos, entre as quais se encontra o texto literário.
2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.
9 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Nove re�exões sobre a distância. São Paulo,
Companhia das Letras, 2001, p. 55.
11 Expresso por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e li-
terárias e o seu uso pela história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadei-
ro das coisas de mentira: entre a arte e a história. Estudos históricos. Arte e histó-
ria. Rio de Janeiro, FGV, nº30, p. 56-75.
Ao �nalizar essa leitura, talvez uma pergunta seja colocada: e a Bíblia? Se ela é
um texto narrativo que busca apresentar um ocorrido verossímil, é uma fonte
literária de que a História pode fazer uso ou é uma fonte histórica que traz ele-
mentos da Literatura. Ou, ainda, o texto bíblico é �cção ou verdade (mesmo
que relativa)? Para saber mais, sugerimos a leitura do livro As Origens da
Bíblia e os Manuscritos do Mar Morto, de Edgard Leite. São Paulo: Centro de
História e Cultura Judaica, 2009.
[...] de que lugar social ou institucional fala o autor? Quais são as motivações pro-
fundas, as suas escolhas metodológicas, até mesmo as suas opções políticas ou �-
losó�cas? Procedendo deste modo, evitam-se muitos erros de interpretação e per-
das de tempo (BOURDÉ, 1990, p. 215).
Com base no exposto, tomando a Nova História Cultural como uma forte re-
presentante pós-moderna, vemos que suas contribuições permitiram que hou-
vesse uma nova construção e uma interpretação do real, que a linguagem ga-
nhasse em importância, que o imaginário fosse revisitado e que a função her-
menêutica da interpretação e a problemática do discurso-texto-contexto en-
trassem em cena (ARAÚJO, 2007).
Entretanto, como você pôde perceber, não é de hoje que sabemos que as histó-
rias sempre são escritas e reescritas, considerando-se os diferentes contextos
(dos historiadores e seu público). As novas fontes e os novos métodos permiti-
ram que essas mesmas histórias fossem mais bem escritas, do mesmo modo
que viabilizaram os debates, no pensamento ocidental, em torno de binômios
como “[...] razão e vida, experiência imediata e abstração, atualidade e
História” (ALMEIDA, 2003, p. 81-82).
[...] não se espera que Constable e Cézanne tenham procurado a mesma coisa numa
dada paisagem e, quando se compara suas respectivas representações de uma pai-
sagem, não se espera ser necessário fazer uma escolha entre elas e determinar que
é a mais correta. [...] Aplicado à escrita da História, o cosmopolitismo metodológico
e estilístico [...] obrigaria os historiadores a abandonarem a tentativa de retratar
uma parcela particular da vida, do ângulo correto e na perspectiva verdadeira [...] e
a reconhecer que não há essa coisa de visão única e correta... Pois deveríamos re-
conhecer que o que constitui os próprios fatos é o problema que o historiador apre-
senta às fontes [...]
Porém, uma outra contribuição do relativismo cultural foi sua crença de que
não há uma única história: a do Ocidente civilizado. O etnocentrismo da histo-
riogra�a ocidental abriu as portas para o reconhecimento e valorização das
histórias dos povos conquistados. Entre aqueles que discutirão as novidades
do pós-guerra, estão alguns dos historiadores presentistas. “O historiador pre-
sentista é um relativista porque acredita que um dos elementos principais no
trabalho de interpretação das fontes é o próprio cotidiano do historiador”
(SILVA, 2006, p. 352).
Pois bem, como não criticar uma História que considera tudo como verdade
relativa? Ou seja, se nenhuma verdade pode ser refutada, então tudo (todas as
teorias) é possível? E, se toda verdade é relativa e, por conseguinte, não objeti-
va, a História não é ciência? Então, qual o lugar dela, uma vez que também se
rejeitou o adjetivo de �cção? Se brigaram tanto pelo distanciamento da velha
história política, por que enfatizar demasiadamente o cultural? Não é um re-
torno do absolutismo de um conceito? Não lhe parece que, em última análise,
está ocorrendo a “dissolução da própria história?” (cf. MÜLLER, 2007, p. 69)
O próprio Peter Burke, ao �nal de seu livro O que é História Cultural?, a�rma
que não defendeu e não acredita que a história cultural seja a melhor forma de
história. Segundo ele, é imperativo um empreendimento histórico coletivo, ou
seja, a união das histórias econômica, política, intelectual e social para uma
visão da história como um todo, pois, mais cedo ou mais tarde, acontecerá
uma reação contra a “cultura” (cf. BURKE, 2005, p. 163).
Finalizando nossas discussões, �ca uma re�exão. Foucault (apud O’brien 2001,
p. 37) teria dito: “Não me perguntem quem sou e não me peçam que continue
sendo o mesmo”. Tomando suas palavras como uma espécie de verdade obje-
tiva (se é que ela existe), podemos, ao �nal desta disciplina, concluir que: não
perguntem o que é a História ou a sua escrita, nem mesmo peçam que conti-
nuem sendo as mesmas!
Tentar esboçar o quadro da religião ou religiosidade de uma dada sociedade não é uma tarefa das
mais simples. Muitas di�culdades surgem, objeções nos assaltam e pré-conceitos nos acompanham.
Nesse sentido, ainda mais complicado torna-se o estudo de uma religiosidade já morta, como é o ca-
so daquela grega e a aplicação para aquela sociedade, do sentido de religião ou religiosidade tais
quais entendemos hoje, pois tratava-se de uma prática religiosa sem deus único, sem igreja, sem cle-
ro, sem dogmas, sem promessa de imortalidade, como é o caso do Cristianismo, ao qual estamos to-
dos nós inseridos (de maneira direta ou indireta). Portanto, nossas referências religiosas devem ser
deixadas de lado ao analisar aquele contexto.
Essas diferenças são compreendidas somente quando comparamos as mais diversas religiões e suas
práticas. Mas, em um sentido particularmente importante, todas as sociedades, sejam elas antigas,
sejam elas contemporâneas, encontraram-se sempre diante de realidades incontroláveis e não hu-
manas, ou seja, privadas de signi�cação. A religião, nesses momentos, foi uma das respostas possí-
veis para explicação dessas realidades incontroláveis, que surgiam perante os homens sem uma
causa aparente. Diferentemente da Física, a História da Humanidade e da Cultura não conhece rígi-
das leis de causalidade, mas apenas relações elásticas de probabilidade entre certos tipos de situa-
ções e certos tipos de reações por parte das sociedades humanas; por esse motivo, explicar racional-
mente não satisfazia o espírito daqueles que buscavam entender o mundo.
Sabendo que a religião é uma das respostas aplicadas pelo homem aos seus grandes questionamen-
tos, uma pergunta apresenta-se: a religião em si mesma constitui um fenômeno autônomo, ou seja,
posso estudá-la em detrimento de outros setores da sociedade em questão? E a prática religiosa, ou
seja, podemos desvincular a religiosidade dos setores social e artístico, por exemplo? Portanto, a reli-
gião não existe em si e para si, mas em função de fatos sociais, políticos, econômicos etc. Nesse sen-
tido, alguns autores dizem que o estudo da História da Religião não é mais que um caso particular da
História da Civilização ou, simplesmente, da História, e outros a�rmam que o aspecto religioso da vi-
da social contribui a compor, juntamente com os demais aspectos (econômico, técnico, político, jurí-
dico, estético etc.), um conjunto signi�cativo no qual um fator somente é compreendido se tomado
em relação aos outros.
Esse fato leva-nos a crer que não existe nenhuma religião individual, mas apenas religiões de grupos
humanos. Nestas, os indivíduos podem aderir-se total, parcialmente ou de uma maneira particulari-
zada, assim como também não se inserirem. O que é individual é a "religiosidade", ou seja, o modo
particular de participar na religião. Com base nesse dado, o historiador não deve aceitar a pressupo-
sição de que religião ou a religiosidade é inata ao homem (não estamos aqui questionando se o ho-
mem é um ser religioso por natureza ou não, mas considerando que aquela religião ou religiosidade
praticada por ele lhe foi apresentada, portanto, teve sua construção particular para cada homem).
Qual seria, então, a tarefa da História das Religiões? As respostas apontam que não é das mais fáceis:
reconstituir conjuntos de doutrinas, crenças, práticas e instituições historicamente atestadas ou po-
sitivamente veri�cáveis; examinar as religiões em suas complexidades e singularidade, em meio e
épocas determinados; reconstrução da gênese, genealogia e destino das religiões; explicar a religião
levando em consideração seu relacionamento com outros aspectos da vida em sociedade, circuns-
tâncias e condições históricas, in�uências recebidas ou experimentadas, que poderiam conduzir sua
religião a uma evolução ou série cronológica de estágios onde cada um está relacionado com o pre-
cedente.
Por ser tão complexa a sua função, a História das Religiões pode e deve ser relacionada a qualquer
outra disciplina das Ciências Humanas, podendo, assim, proporcionar matéria a essas disciplinas,
como também tomar emprestado delas seus dados, teorias e métodos.
Mas falar em História das Religiões implica de�nirmos o conceito de religião. Mais uma tarefa arris-
cada, a�nal, nenhuma civilização arcaica ou clássica possuía um termo que correspondia à religião,
como, hoje, concebemos daquela derivada do latim “religio”, “relegere” ou “religare”. O próprio termo
latino, em tempos antigos, não possuía a acepção moderna de religião: indicava um conjunto de obe-
diências, advertências, regras e interdições que não faziam referência à adoração da divindade, às
tradições míticas ou às celebrações das festas nem às outras manifestações consideradas, na atuali-
dade, religiosas. Portanto, apontamos um paradoxo aqui: pode se ter uma religião sem possuir o con-
ceito; em outras palavras, nosso conceito é aplicado a vários fenômenos que, nessas civilizações, não
se distinguiam entre religiosos ou não.
Querer de�nir religião é querer dar um signi�cado preciso a um termo por natureza polissêmico, for-
jado por nós e que empregamos com as mais vagas e imprecisas signi�cações. No entanto, há duas
vantagens nas mais diferentes de�nições pré-fabricadas desse conceito: por um lado, por ser aberto
demais, o conceito abarca a totalidade dos fenômenos que consideramos religiosos; por outro, a au-
sência de uma de�nição fechada do termo evita a redução a uma ordem sistemática dos mais varia-
dos fenômenos. Nós, historiadores, devemos dar a devida importância ao fato de que os fenômenos
religiosos tomam formas diversas, apresentando-se modi�cadas em seu detalhe ou em sua composi-
ção, segundo as particularidades do sistema religioso do qual dependem, segundo a época e os indi-
víduos. Devemos relevar, ainda, o fato de que esses fenômenos não são puramente históricos; dessa
forma, não podem ser considerados, pelo historiador, como puros acontecimentos, mas, ao contrário,
este deve buscar compreendê-los, experimentá-los e penetrar em seus sentidos. Para tanto, para que
tal tarefa se realize, é necessário ter em mãos dados que comprovem nossas teses; a�nal, o historia-
dor pode constatar e interpretar fatos comprovados, mas não formular juízos sobre épocas remotas e
não documentadas.
Mas onde podemos encontrar a manifestação da religião? Nas civilizações ditas primitivas, a reli-
gião manifesta-se nos detalhes: alimentação, vestuário, disposição das habitações, relações com pa-
rentes e estranhos, atividades econômicas e divertimento. A religião forma parte de sua vida e não
há motivo para que a distinga dos outros aspectos de sua existência. E, dentro de uma ótica religiosa,
podemos de�nir como sagrado as ideias, as doutrinas, as convicções, as crenças, os relatos, as ações
individuais, as normas, as proibições, as relações, as pessoas, os animais, as plantas, os materiais, os
objetos naturais ou fabricados, de lugares ou épocas diferentes. Mesmo com toda essa diversidade de
documentos em mãos, muitos estudiosos �zeram do complexo algo simples, ou seja, com teorias re-
ducionistas ou generalizantes, �zeram do universo religioso uma mera fabulação, pura imaginação
humana.
O primeiro ponto a ser analisado é o que se refere a algumas abordagens que foram aplicadas ao es-
tudo da religiosidade grega. Desde o século 19 até o meado do nosso século, esses estudos eram, em
sua maioria, comparativistas. Seus autores elaboravam a análise partindo do ponto de vista do
Cristianismo, que tornava o politeísmo uma prática herege, incorreta, maliciosa e até mesmo insana.
O Cristianismo era colocado como superior, a prática correta, a maneira mais e�caz de contato entre
homens e deuses – nesse caso, entre o homem pecador e o Deus único. Alguns historiadores do sé-
culo 19, principalmente, iniciavam suas pesquisas com a conclusão já formulada: houve uma religião
grega, politeísta, mas, em todos os seus aspectos, inferior à religião cristã, que promove a salvação
das almas. Já no século 20, as conclusões foram um pouco diferentes. O mito passa a ser visto como
verdade essencial, construção regrada, estrutura elementar do pensamento humano. Porém, mais
uma vez, a comparação, dessa vez em relação aos selvagens da América, da Austrália, em alguns ca-
sos, torna-os linguagem de um povo infantil, ainda em processo de evolução. Assim, por mais racio-
nal que seja, qualquer classi�cação das religiões resulta �ctícia ou incompleta. Desse modo, podemos
excluir o postulado evolucionista, pois não é simples conceber a ideia de que todas as religiões teri-
am partido do simples ao complexo, da inferior ao superior, tendo um mesmo estado inicial.
Igualmente, é complicado aceitar uma classi�cação segundo uma linha contínua de evolução que
classi�ca tipologicamente: religiões da natureza ou religiões de civilização.
Algumas destas abordagens implicavam três tipos de atitudes acerca da religião: separação da reli-
gião cristã das outras religiões tidas como falsas, pagãs ou supersticiosas, subordinação da religião
cristã a todo o resto ou, ainda, a união de todas as religiões num mesmo grupo.
Com o estruturalismo de Lévi-Strauss e a comparação de Dumézil, na metade do século 20, foi alcan-
çada a ideia de que uma religião é um sistema, um pensamento articulado, uma explicação do mun-
do. Esta conclusão foi possível após observar as estruturas, os mecanismos, os equilíbrios constituti-
vos da religião e da religiosidade de�nidos discursiva ou simbolicamente.
No entanto, nosso propósito é o de evidenciar a religiosidade da sociedade grega e, nesse caso, não
temos como deixar de citar os estudos acerca da mitologia, uma das componentes desse estilo religi-
oso. Esses mesmos estudiosos anteriormente citados, na sua maioria, entendiam o mito ou a mitolo-
gia de forma mais abrangente, como engano, fabulação natural, espontânea, aberração da linguagem
primitiva, escândalo, histórias selvagens e absurdas, ou, ainda, aventuras infames e ridículas
(DETIENNE, 1992).
Jean-Pierre Vernant cita, como exemplo de estudos realizados dentro de uma perspectiva cristã, o
trabalho de A.-J. Festugière, que a�rma que só o culto diz respeito ao religioso, e, por esse motivo, a
mitologia deve ser excluída desse campo. Não concordando com essa postura, Vernant escreve que,
sem a mitologia "[...] ser-nos-ia bem difícil conceber os deuses gregos" (VERNANT, 1992, p. 10). E
completa: o historiador da religião grega deve guardar-se de cristianizar a religião antiga, que não é
menos rica ou complexa e organizada intelectualmente que as de hoje; são diferentes.
A tarefa do historiador é assinalar o que pode ter de especí�co na religiosidade dos gre-
gos, nos seus contrastes e suas analogias com os outros grandes sistemas, politeístas e
monoteístas, que regulamentam as relações dos homens com o além (VERNANT, 1992, p.
11).
E essa posição é observada em suas obras referentes à mitologia e religião gregas. Vernant, embora
tenha comparado, em alguns momentos, as duas formas religiosas, não o fez como um etnólogo que
superestima uma cultura em detrimento da outra; ele analisou o politeísmo grego por ele mesmo,
não fez pré-julgamentos, não iniciou seus estudos com ressalvas. O autor buscou respostas que es-
clareçam o "estilo religioso grego", como ele mesmo denominou. O politeísmo e o mito grego, para o
autor, não eram entendidos como erros que se opõem à verdade cristã.
Vernant observou que o que o grego tinha de especí�co nas relações com o sobrenatural é que ele
estabelecia contato com "potências". O mundo era constituído por entidades divinas que exerciam
seus poderes em domínios de�nidos, cada qual com seus poderes, segundo modalidades de ação que
lhes eram próprias. Podemos citar alguns casos. Zeus, por exemplo, era especialmente o deus da luz,
que encarnava o céu e comandava os seus movimentos regulares, como os dias e as estações. Zeus
signi�cava uma soberania justa e ordenada. Era respeitado por todos os outros deuses e, especial-
mente, pelos homens. Hades, o deus do Inferno, rei dos mortos, tinha o poder de tornar os homens in-
visíveis, recebendo-os após a morte. Afrodite, deusa do amor e da fertilidade, podia interferir na vida
sentimental dos humanos pelo prazer de lhes ver sob seu domínio. No entanto, essas divindades do
politeísmo grego
[...] não eram eternas, perfeitas, oniscientes ou onipotentes; não criaram o mundo, nasce-
ram nele e dele [...] A Lua, o Sol, a luz do dia, a noite, ou uma montanha, uma gruta, uma
nascente, um rio ou um bosque podiam ser interpretados e sentidos como qualquer uma
das divindades do panteão (VERNANT, 1994, p. 10).
A relação não se estabelecia entre sujeitos (Criador e criação). O homem grego não buscava a
salvação pessoal e não pensava no bem individual. Era uma busca pelo bem-estar da cidade, dos ci-
dadãos, do homem grego em geral. Por essa preocupação coletiva e pelo fato de a religiosidade estar
mesclada ao social, percebemos, na Grécia, uma espécie de “religião cívica”.
Essa relação entre pessoas e potências, que se dava no plano cívico-religioso, permitiu uma
consideração de Vernant:
se os deuses são os da cidade e se não há cidade sem divindades protetoras velando por
sua proteção [...] é a assembléia do povo que tem o poder sobre as coisas sagradas, os as-
suntos dos deuses. Ela �xa os calendários religiosos, edita as leis sagradas [...] Dado que
não há cidades sem deuses, os deuses cívicos têm, em troca, necessidade de cidades que
os reconheçam, adotem e os façam seus (VERNANT, 1994, p. 15).
De um certo modo, é-lhes necessário, como escreve Marcel Detienne, “tornar-se cidadãos para ser in-
teiramente deuses” (VERNANT, 1996, p.16)
O que se pode notar, na religiosidade grega, era que as atividades políticas, ou seja, as magistraturas,
tinham algo de divino e que as festividades em honra aos deuses tinham algo de mundano, como
por exemplo, as festas à Dioniso, onde o deus era celebrado em meio a embriaguez e orgias.
Mas como era possível esta relação homem-Potência? Se colocada de maneira bem clara, a resposta
é: basta cumprir os rituais e acreditar nos discursos mitológicos. Mas o mundo grego não era tão
simples assim. Para comunicar-se com as Potências, os homens utilizavam-se de três recursos es-
pecí�cos que constituíam a linguagem religiosa: mito, rito e representação �gurada, melhor dizendo,
o contato dava-se por meio das expressões verbal, gestual e �gurada.
A expressão verbal, ou oral, é a própria transmissão e perpetuação dos mitos, que ocorria, inicial-
mente, por intermédio das mulheres, que agiam como "nossas avós", contando as lendas antigas e,
em um outro momento, por intermédio dos poetas, que passaram essa tradição oral para a forma es-
crita, garantindo, de maneira mais e�caz, o prolongamento da tradição. O discurso mitológico era
formado por relatos da criação do mundo, de lutas entre as potências e de feitos heroicos. Todo mito,
analisado sob a perspectiva do estruturalismo, possui uma composição própria e uma coerência in-
terna que explicam fatos humanos, que justi�cam atitudes, usos e costumes. Era pelo e com o mito
que a divindade se tornava personagem viva, presente e atuante entre os humanos. Manter os mitos
na vida do homem grego era garantir-lhe a tradição, o aperfeiçoamento da técnica de memorização
que, por suas etapas (controle da respiração e da mente), já era uma comunhão com os deuses. Mas
por que, nas civilizações onde estes existiam, se criam os mitos? Os pensadores gregos já se pergun-
tavam e, para dar uma justi�cativa à crença tão difundida em seu mundo cultural, sustentavam que
os mitos, absurdos do ponto de vista racional, escondiam verdades profundas sob a aparência de
contos fantásticos, ou que continham um fundo histórico real deformado pela imaginação popular,
além de garantir a estabilidade da realidade existente.
Mas lembremos que, nos séculos 6º e 5º a.C, Hecateu de Mileto, Anaximandro, Heródoto, Platão, entre
outros, estavam questionando fortemente estes discursos míticos que passaram a ser repensados e,
por vezes, negados. No entanto, mesmo se rejeitados, estes relatos eram os únicos instrumentos de
informação sobre o além. Eram os mitos que permitiam uma lucidez maior sobre como o homem de-
via agir para não tornar-se um cidadão sem história, uma vez que, eram estes mitos que revelam sua
origem, sua estirpe, sua tradição familiar e cívica.
Mais um fator de relevância que deve ser observado: por fazer parte de uma tradição oral, os mitos
ganharam inúmeras versões. Transmiti-lo somente era possível por meio da técnica de memoriza-
ção já citada anteriormente. Assim, temos de aceitar o fato de que uma nova versão poderia apagar
ou recobrir alguns pontos da versão precedente, uma vez que a materialidade desta última residia na
voz do intérprete, do aedo que a apresentava ao seu público. No entanto, mesmo com algumas modi-
�cações, os mitos passavam pela aprovação dos ouvintes que os recebiam como sendo um pequeno
trecho de sua história passada (a memória, considerada por Vernant como uma categoria psicológi-
ca de extrema importância para os gregos, uma vez que torna possível a perpetuação da tradição, foi
também estudada por Marcel Detienne, 1992).
Em relação aos ritos, eles representavam a forma mais estável e completa da relação entre homens e
seres sobre-humanos. Dirigir preces a um ser sobre-humano signi�cava, antes de tudo, atribuir-lhe
uma existência. Os ritos eram menos explícitos e didáticos que os mitos, pois, cada gesto, cada pala-
vra tinha um sentido especí�co, simbólico. Toda cerimônia ritual, na sua grande maioria, contava
com sacrifícios, que podiam ser oferecidos às divindades celestes ou infernais. Em cada caso, havia
particularidades que diferenciavam o ritual de maneira marcante. Esses ritos podiam, por um lado,
ser realizados em forma de festas solenes, onde os deuses convidados estavam presentes, estabele-
cendo a comunicação entre a terra e o céu. Por outro, podiam ser vistos como uma carni�cina, uma
cozinha ritualizada. Faz-se necessário esclarecer que os sacrifícios ocorriam fora do templo, residên-
cia permanente dos deuses, e eram realizados em altares externos, no bomos, que era um bloco de al-
venaria quadrangular. Vernant descreve o sacrifício de um animal oferecido a uma divindade celes-
te. Vejamos os passos que, necessariamente deviam ser seguidos:
[...] um animal doméstico, enfeitado, [...] é conduzido em procissão ao som de �autas até o
altar, aspergido com água lustral e com um punhado de grãos de cevada [...]. A cabeça da
vítima é arrancada então; corta-se-lhe a garganta. O sangue que jorra sobre o altar é reco-
lhido num recipiente. O animal é aberto: extraem-lhe as entranhas, especialmente o fíga-
do, que se examina para saber se os deuses aceitam o sacrifício. Nesse caso, a vítima é
imediatamente esquartejada. Os ossos longos, [...], são colocados sobre o altar [...]. Certos
pedaços, internos, são postos para grelhar sobre o altar no mesmo fogo que expede à di-
vindade a parte que lhe cabe, estabelecendo assim o contato entre a Potência sagrada
destinatária do sacrifício e os executantes do rito [...] (VERNANT, 1996, p. 62).
Nos casos de sacrifícios a deuses infernais, os homens não podiam tocar na vítima, não comiam de
maneira alguma sua carne, sendo o sangue derramado diretamente em fendas na terra que o levava
aos deuses. Nesse caso, a vítima devia desaparecer, ser totalmente queimada.
No entanto, faz-se necessário dizer que esses sacrifícios não deviam ser compreendidos como uma
comunhão com os deuses. Não se partilhava do corpo ou sangue da divindade, mas da vítima. O sa-
crifício tinha a função de estabelecer contatos, e não experiências sobrenaturais, e, ainda, con�rma-
vam a distância entre homens e deuses.
Trata-se, como vimos, de práticas bem complexas. Por meio delas, a relação homem-deus
estabelecia-se. Se aceito o sacrifício, a guerra poderá ser travada, a colheita realizada, o adolescente
poderá adentrar na vida adulta, um novo templo construído, en�m, aceita-se a imolação de uma víti-
ma, a vida social e política poderá tomar seu rumo. Eis o que signi�cava religião cívica.
En�m, o último recurso para se estabelecer o contato com as potências: a representação �gurada.
Sabe-se que os gregos conheceram todas as formas de expressão simbólica das divindades, a saber,
pedra bruta, máscara, �guras de animais, monstros ou mesmo �guras humanas. Conforme o mo-
mento, os gregos privilegiavam o uso desta ou daquela representação. Do 8º a.C ao 7º século a.C, o
formato dessas representações não tinha relação direta com a ideia do divino. Foram nos séculos 5º
a.C e 4º a.C que esses símbolos �gurados se transformaram em imagens. Nestas,
[...] estão imbuídos valores religiosos que exprimem certas forças: beleza, graça, esplen-
dor, juventude, saúde, vigor, vida, movimento, [...], que pertencem particularmente à di-
vindade e que o corpo humano, mais do que outro, re�ete na �or da idade [...] (VERNANT,
1973, p. 286).
Essa representação humanizada do divino foi sentida, principalmente, a partir das apresentações
das tragédias ao grande público grego. Os tragediógrafos foram uns dos primeiros a elaborar a ideia
do deus-homem. Para encenar suas peças, era preciso criar um �gurino apropriado para representar
os deuses. Dessa forma, alguns atributos foram criados, como asas, máscaras e tridentes, entre ou-
tros. E é por meio desses atributos que identi�camos os deuses expressos nos vasos, nas ânforas e
nos lécitos gregos. A esse respeito, Sarian (1987), no artigo A expressão imagética do mito e da reli-
gião nos vasos gregos e de tradição grega está de acordo. Ao analisar a iconogra�a do teatro trágico,
no tocante ao ciclo de Orestes (trilogia de Ésquilo), Agamenon, Coéforas e Eumênides, a autora obser-
va que deve ser ressaltado o papel que o teatro desempenhou em relação à representação �gurada: ao
ser encenada, a peça sugeriu imagens e formas (humanas ou bestiais) aos pintores dos vasos. Nesse
artigo, Sarian cita o caso das Erínias, deusas infernais que perseguiam Orestes pelo matricídio que
este cometeu. Foi a partir da representação teatral que as Erínias ganharam formas humanas na ce-
râmica. É a religiosidade presente na arte. É a perpetuação dos mitos que estava sendo garantida.
Mas há uma ressalva a ser feita:
Todas essas �guras não são equivalentes nem convêm indiferentemente a todos os deu-
ses ou todos os aspectos de um mesmo deus. Cada uma delas tem seu modo próprio de
traduzir no divino certos aspectos, de presenti�car o além, de inscrever e localizar o sa-
grado no espaço aqui na terra [...]. Cada forma de representação implica, para a divindade
�gurada, um modo particular de manifestar-se aos humanos e de exercer, através de suas
imagens, o tipo de poder sobrenatural do qual possui o domínio (VERNANT, 1992, p.
32-33).
Muitos outros exemplos poderiam ser citados aqui, que testemunhariam a religiosidade grega. Os
gregos acreditavam em seus deuses, em suas manifestações, em seus auxílios. O grande número de
discursos míticos, o riquíssimo vocabulário sobre a representação �gurada, a abundância de estátuas
divinas evidenciam que o grego era um homem religioso, que vivenciava sua crença, que respeitava
as tradições, en�m, que olhava para a Lua e via Selene, assim como a noite era Nix, olhava para o Sol
e via Hélios, assim como o dia era Hemera. Mais do que simples nomes daquilo que, para nós, mo-
dernos, são astros, em grego, eram nomes de divindades.
Concluindo, a religiosidade grega foi algo real, vivido e sentido. Os mitos, os ritos e a representação
�gurada �zeram parte da rede religiosa de um povo que construiu sua religiosidade que a presenteou
com santuários independentes, separados do espaço profano (e também neste), ou seja, os gregos cri-
aram seus locais sagrados, organizaram seu calendário religioso, cantaram e pintaram seus deuses e
heróis. A religiosidade grega é uma construção histórica. Vernant objetivou em suas análises com-
preender e nos fazer compreender esse estilo religioso, tão particularizado, do homem grego (saben-
do da multiplicidade dele). Suas metas foram alcançadas. Ele deixou evidente essa religiosidade e
expôs pormenores e especi�cidades de uma crença apoiada numa tradição que englobava a língua, o
estilo de vida doméstico, o gestual, os sistemas de valores, as normas da vida em sociedade, o sentir
e o pensar.
15. Considerações
Neste quinto ciclo de estudos, pudemos compreender o atual estado do debate
historiográ�co, desde o �m do século XX até os dias atuais. Passamos pela
Micro-história, pela Nova História Cultural e pelo Pós-modernismo, percebe-
mos que os aspectos culturais passaram a ter primazia diante de uma percep-
ção eminentemente política ou social, trabalhando com renovadas interpreta-
ções e conceitos.