Se Nao Fosse Por Voce - Laura Amorim
Se Nao Fosse Por Voce - Laura Amorim
Se Nao Fosse Por Voce - Laura Amorim
Laura Amorim
LEITURA CRÍTICA
Aurora D’Amico
Karoline Dias
REVISÃO
Camila Lima
ILUSTRAÇÃO CAPA
Sérgio Luiz
CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Deborah Célia Xavier
Prólogo
Questão 1) A investidura em cargo público depende de aprovação prévia
em concurso, que será sempre aberto no momento mais inoportuno para os
candidatos. (C) (E)
Questão 2) Não há implicações jurídicas relevantes em falar ao telefone
em locais públicos, salvo se na presença de desconhecidos de olhos azuis. (C)
(E)
Questão 3) Quando da contratação de um serviço, ao encontrar-se com o
encarregado do estabelecimento comercial, deve-se correr na direção contrária.
(C) (E)
Questão 4) Ao receber conselhos profissionais de terceiros qualificados e
intercambiar experiências, deve-se questionar e retrucar as orientações
recebidas. (C) (E)
Questão 5) É desaconselhável atender ligações de ex-namorados(as) a
qualquer tempo. (C) (E)
Questão 6) É inapropriado visar intensamente o interlocutor durante
explicações doutrinárias de matéria jurídica. (C) (E)
Questão 7)Uma decisão importante não deve ser tomada quando o
indivíduo se encontrar em estado exaltado, sob pena de os resultados serem
contrários àqueles esperados. (C) (E)
Questão 8) É mais prudente que a definição dos termos de um contrato
seja feita à distância ou as partes poderão despender mais tempo que o
desejado em seu estabelecimento. (C) (E)
Questão 9) A simulação é desacordo intencional entre a vontade real e a
declarada, com a concordância de ambas as partes, visando a ocultar certo fato
ou ostentar uma realidade que não existe. (C) (E)
Questão 10) A propaganda de um estabelecimento comercial a terceiros
pode resultar na prorrogação obrigatória de contrato diverso. (C) (E)
Questão 11) O ébrio eventual não é eximido da responsabilidade por
seus atos. (C) (E)
Questão 12) A prorrogação implícita de contratos pode gerar dúvidas
nas partes envolvidas quanto a sua vigência. (C) (E)
Questão 13) Quanto maior for a indisponibilidade temporal do indivíduo,
maior será a chance de seu veículo automotor ser avariado. (C) (E)
Questão 14) A preferência de marca não é vedada nas compras feitas
por estabelecimentos comerciais privados. (C) (E)
Questão 15) A extensão do vestuário do indivíduo é inversamente
proporcional à atenção dispendida às informações sendo apresentadas. (C) (E)
Questão 16) A simulação só produz efeitos jurídicos quando perante
terceiros. (C) (E)
Questão 17) Se enfermo, o indivíduo tem direito ao cuidado domiciliar
por terceiro de sua escolha. (C) (E)
Questão 18)Segundo o Código Civil, é nulo o negócio jurídico simulado,
mas subsistirá o que dissimulou, se válido na substância e na forma. (C) (E)
Questão 19)A refeição de um terceiro será sempre melhor que sua
própria, salvo se houver intercâmbio entre as partes. (C) (E)
Questão 20) No caso de bem indivisível e infungível, a impossibilidade
de sua fragmentação ou substituição implica na necessidade de permanência
da coisa inteira com o usufrutuário. (C) (E)
Questão 21) Em caso fortuito ou de força maior, tornando-se impossível
ou excessivamente onerosa a realização do negócio jurídico, o contrato poderá
ser resolvido, sem prejuízo do sofrimento de perdas e danos pelas partes. (C)
(E)
Questão 22) A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo durante os sonhos, a
qualquer hora. (C) (E)
Questão 23) A situação, mesmo já desfavorável, de um indivíduo pode
sempre ser agravada. (C) (E)
Questão 24) Considera-se em mora o devedor que não efetuar o
pagamento no tempo, lugar e forma que a convenção estabelecer. (C) (E)
Questão 25) Um convite não perde a validade mesmo na hipótese de
alteração na relação entre as partes. (C) (E)
Questão 26) É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato. (C) (E)
Questão 27) A realização de negócio personalíssimo exige a
disponibilidade de ambas as partes e, havendo incompatibilidade de horários,
será extensa e custosa a espera. (C) (E)
Bônus) Uma garrafa de bebida, mesmo não alcoólica, pode resultar em
nova declaração de vontade pelas partes. (C) (E)
Epílogo
Melissa: Olá, Sr. Concurseiro, tudo bem? Meu nome é Melissa!
Hum… Eu não espero que me diga seu nome, tá? (É claro.)
Venho acompanhando suas postagens há algumas semanas e
queria te agradecer! Elas têm me ajudado muito a entender mais
sobre a vida de concurseiro!
Sr. Concurseiro: Olá, Melissa. Tudo bem, e com você? Eu que
agradeço o interesse no meu conteúdo. Você também está
estudando?
Melissa: Para concursos, ainda não. Preciso derrotar o chefão da
faculdade primeiro.
Sr. Concurseiro: Ah, trabalhando no TCC?
Melissa: Isso. Mas, assim que me formar, espero ser contratada
como advogada pelo escritório onde estou estagiando e
começarei a estudar.
Sr. Concurseiro: E qual concurso quer prestar?
Melissa: Meu sonho é ser delegada :)
Sr. Concurseiro: Estarei na torcida.
D …
Melissa: Oii, sou eu de novo! Hum… Pra dizer a verdade, já
escrevi e apaguei essa mensagem algumas vezes e me prometi
que não faria isso de novo, então me desculpe por qualquer que
seja o resultado do que virá a seguir.
Sr. Concurseiro: Olá, Melissa, há quanto tempo! O que houve?
Fique à vontade.
Melissa: Ah, você está on-line? Certo, lá vai (peço desculpas de
antemão por estar me metendo, mas…). O que aconteceu é que,
hoje mais cedo, li seu texto dizendo que não vai mais prestar a
prova do MP em dois meses e eu queria que você… hum…
reconsiderasse?
Melissa: Eu entendo que o resultado no último concurso não foi o
que você esperava (nem o que eu esperava também, estava
torcendo por você!), mas… Bom, pelo menos de onde vejo, me
parece que essas coisas são assim mesmo e que até os mais
bem preparados candidatos podem ter um ou outro resultado
insatisfatório no meio do caminho.
Melissa: A verdade é que eu queria que você não desistisse
assim tão perto. Alguma coisa me diz que dessa vez você vai
conseguir, sabe? Já te acompanho há tempo o suficiente para
saber que você já está quase lá! Não conheço (apesar de, na
verdade, não te conhecer também) ninguém que seja tão
dedicado, disciplinado e comprometido como você.
Sr. Concurseiro: Tudo bem, você não está se metendo, até
porque quem compartilha tudo aqui sou eu, não é? Agradeço a
preocupação e a confiança em mim. Eu realmente fiquei
desapontado com a última prova e… não sei. Vou pensar, tudo
bem?
Melissa: Jura? Olha, é sério! Todas as vezes que você
compartilha seu controle de horas, de aulas e de questões,
conseguimos ver que você está fazendo a sua parte. Estamos
todos torcendo por você, mesmo que de longe, e não acho que
desistir por conta de um mau resultado seja a resposta. Você tem
ido bem nas questões e acho que essa prova foi um ponto fora da
curva. Na próxima, com certeza se sairá bem!
Sr. Concurseiro: Eu queria ter pelo menos metade dessa sua
confiança.
Melissa: Eu te passo por aqui! Toma! *confiança*
Sr. Concurseiro: Ah, obrigado, estou pronto para outra agora :)
Melissa: Promete que vai pensar, então? Só não vale pensar
demais, porque senão você fica sem tempo de estudar!
Sr. Concurseiro: Pode deixar, Melissa. Obrigado.
D …
Melissa: Acredito que você esteja merecendo os parabéns hoje,
não é? (P.S.: adorei o novo pseudônimo!)
Sr. Concursado: Obrigado, Melissa. Gostaria de aproveitar e
agradecer o apoio que me deu na véspera da prova.
Melissa: Ah, que isso, imagina! Tenho certeza de que você cairia
na real de um jeito ou de outro, mesmo sem eu me meter. De
toda forma, estou muito feliz por você! Espero que logo seja
minha vez!
Sr. Concursado: Já está firme nos estudos?
Melissa: Sim! Estou ainda tentando pegar o ritmo, conciliando
com o trabalho e tudo o mais, mas estou dando o meu melhor.
Sr. Concursado: Tenho certeza de que sim. Sempre que precisar
de alguma coisa, não hesite em me chamar por aqui, tá?
Melissa: Combinado, obrigada! Quando for aprovada (espero que
logo), vou te mandar minha mensagem de agradecimento!
Sr. Concursado: Vou esperar :)
D …
Se tem uma coisa que percebi nessa minha jornada como
concurseira é que as bancas organizadoras não têm nenhuma
compaixão pelos candidatos. E, pior, elas não param por aí:
parecem encontrar verdadeiro prazer em atormentar cada um dos
guerreiros anônimos que encontram a coragem para enfrentar essa
batalha — com probabilidades de sucesso muito inferiores às dos
Jogos Vorazes, diga-se de passagem.
Dentre os meios de tortura preferidos das bancas, e que acho
particularmente cruel, está a divulgação dos documentos mais
esperados pelos infelizes à meia-noite. Vários são os concurseiros
que quase quebram o botão F5 atualizando sites oficiais no meio da
madrugada, ansiosos pelo resultado de uma prova que pode mudar
suas vidas.
Outro instrumento muito utilizado para tirar o escasso sossego
dos candidatos, conspirando com o próprio órgão público, é a
abertura de um novo concurso do verdadeiro nada. Por que dar
alguma previsibilidade às pobres almas quando pegá-las de
surpresa é muito mais divertido?
Pois é.
É isso o que me pergunto quando, ao desligar o despertador às
seis da manhã do que seria uma quinta-feira inofensiva, corro os
olhos pelas dezenas de mensagens no grupo do concurso da
Polícia Civil de Minas Gerais. Meu estômago gela com a
compreensão.
Saiu o edital.
Minhas mãos tremem ao segurarem o celular.
Droga. É cedo demais, eu precisava de mais tempo.
Chuto as cobertas, sem me preocupar em arrumar a cama, e
corro para o banheiro para tomar uma ducha e me arrumar em
tempo recorde.
É, a corrida matinal vai ficar para amanhã.
Antes de sair do apartamento com uma banana na mão para
substituir o café da manhã, imprimo o edital. Preciso analisar tudo
com calma e me planejar: se terei pouco tempo, devo usá-lo da
melhor forma possível.
E assim, em menos de trinta minutos depois de acordar, estou no
meu bom e velho Gol prata, a caminho do escritório, com os cabelos
longos presos no rabo de cavalo de sempre e o blush cobre nas
bochechas bronzeadas. Depois de alguns anos trabalhando como
advogada, estou treinada em me maquiar depressa quando
necessário. Só não me peça para fazer nada muito elaborado,
principalmente depois do desastre com o delineado gatinho de
alguns meses atrás — não queira saber.
Ajeito meus óculos, que escorregava pela base do nariz. Já me
conformei que é impossível colocar as lentes de contato quando
estou com pressa. Como meu problema de vista é recente, ainda
levo minutos inteiros para tentar manter o olho aberto com meu
dedo se aproximando tanto. Não é bonito.
Ao meu lado, sobre o banco do passageiro, estão as poucas
folhas recém-impressas com todas as regras da batalha da minha
vida, que não deveria acontecer tão cedo. Segundo os boatos, a
prova seria somente daqui a uns seis meses, e eu estava contando
com cada um deles para fechar o estudo de algumas disciplinas e
consolidar os conhecimentos naquelas em que tinha dificuldade —
sério, amo Direito Penal, mas tem algumas coisas que não entram
na minha cabeça por nada. Se, em vez de advogar em um escritório
especializado em matérias tributárias, eu tivesse conseguido entrar
em algum criminal, a história talvez fosse outra.
Imagens dos últimos dois anos passam na minha mente
enquanto dirijo. Tanto esforço, tantas renúncias… Dia após dia,
acho que estou dando o meu melhor, mas será que será o
suficiente? Será que eu não poderia ter feito mais?
O trabalho no escritório é bem puxado, mas preciso dos três
anos de prática jurídica — e do dinheiro, por favor — para assumir o
cargo de delegada um dia. E, nossa, como quero aquele distintivo.
Mas será que este é mesmo meu momento?
Aliso meu casaco de linho bege, do conjuntinho monocromático
da vez, uma escolha rápida e certeira para momentos de desespero.
O dia já não começou fácil e, enquanto dirijo imersa em meus
pensamentos, uma luz se acende no painel, chamando minha
atenção. Coisa boa não é, mas não vou me preocupar com isso
agora: depois da prova, terei tempo de sobra para resolver qualquer
pepino. E chorar por causa da minha reprovação.
— Não, não, não. Mel, não começa — murmuro para mim
mesma.
Vamos lá, vai dar certo.
Tem de dar certo.
— Mel, vem ver Ele não está tão a fim de você comigo! Ainda
está no inicinho. — Mal passo pela porta da frente do nosso
apartamento, no topo de um dos muitos morros de BH, quando a
voz de Jéssica me chama do sofá da sala de TV.
É claro que qualquer divisão de cômodos no nosso apartamento
de 68 m² — que não seja em nossas duas suítes — é meramente
imaginária, mas decidimos, quando nos mudamos, que aquele canto
específico do cômodo conjugado com a cozinha seria nossa “sala
de TV”, onde Jeh instalou a televisão que trouxe do seu quarto na
casa dos pais.
— Ah, claro. Arrasou na escolha — respondo enquanto coloco as
chaves no aparador de madeira escura ao lado da porta. Apontando
para meu rosto com minha melhor expressão de “é sério isso?”,
completo: — Bem adequada à situação atual.
— Ah, você sabe que no final todo mundo fica bem, né? — Ela
morde a bochecha. — Ou quase.
Sim, eu sei. Já assistimos àquele filme umas três ou quatro
vezes ao longo dos anos.
— Vou passar. Estou toda atrasada com os estudos hoje.
Jeh aperta os olhos na minha direção.
— Você está sempre atrasada com os estudos — ela me acusa,
a colher de sorvete apontando para mim. — Essa desculpa não cola
mais.
Dou de ombros.
É verdade que tenho rejeitado muito seus convites ultimamente.
Entretanto, também é verdade que ela só me chama para assistir a
filmes durante a semana, pois de sexta em diante ela sempre tem a
companhia garantida do Paulo Henrique, seu namorado.
Jeh balança a cabeça, e seus cabelos negros, curtos e
escorridos acompanham o movimento, roçando seus ombros.
Sempre tive curiosidade de saber se esse corte long bob combinaria
comigo também, mas nunca consegui juntar a coragem necessária
para me despedir das minhas madeixas compridas, que até hoje
não se decidiram se são lisas ou onduladas — o máximo que me
arrisquei foi a fazer algumas mechas californianas nas pontas dos
meus fios castanhos, mas elas sumiram há alguns anos.
— Não entendo. Só um dia não vai atrapalhar tanto — continua.
— Você está claramente estressada por causa desse edital, dar
uma relaxada vai ser bom.
— Eu sei que um dia só, na teoria, não faz tanta diferença. Mas,
na prática, é outra história. — Lá vamos nós com essa conversa de
novo. — Se toda vez eu pensar “só hoje”, nunca vou conseguir
avançar direito nos estudos.
Jeh revira os olhos acinzentados.
Amo minha melhor amiga, mas ela não é das maiores
apoiadoras do meu sonho de ser servidora pública. Ou melhor, ela
não tem nada contra eu querer ser delegada, mas tudo contra eu ter
de trilhar o caminho que leva até lá — ou mesmo qualquer caminho
que envolva renúncia, disciplina ou trabalho duro, já que vai contra
seus princípios de “temos que aproveitar a vida”.
— Tá bom, tá bom… — ela cede, ainda a contragosto. — Sério.
Quando passar nessa prova, acho que vou comemorar mais que
você. Quero minha amiga de volta.
— Sem drama, Jeh — digo enquanto roubo uma colherada do
seu sorvete. — Você não me perdeu hora nenhuma, só não estou
mais tão livre como antes.
Jeh faz um beicinho, como última tentativa.
— Não adianta, eu estou lu…
— “Lutando pelo sonho”, né? — Ela faz um gesto resignado com
a mão. — Já sei, Mel, já sei.
Dou uma risada e concordo com a cabeça, indo em direção ao
quarto.
Depois de um banho rápido e de um lanche ainda mais rápido —
uma maçã com uma colher de sobremesa de Tahine, sério,
experimente —, pego meu notebook da bolsa e o coloco sobre a
mesa limpa e organizada. Sempre, antes de dormir, deixo tudo
preparado para o estudo do dia seguinte. Precisamos diminuir a
dificuldade e as desculpas, não é?
E são nessas pequenas ações que vejo quanto tenho melhorado
em meus métodos. Há dois anos e meio, quando embarquei no
estudo para concursos, eu fazia muita coisa errada; tanto no que diz
respeito aos métodos de estudo em si quanto na minha mentalidade
e na forma de encarar as sessões.
Nunca será fácil conciliar os estudos com o trabalho no escritório
— e todas as horas extras —, mas, com um bom planejamento e
disciplina para segui-lo, tenho conseguido me manter firme em um
ritmo desafiador e, pelo menos, sustentável.
Já não me pego mais com tanta frequência chorando no banho e
me questionando se todas as minhas renúncias valem mesmo a
pena: todos os almoços com meus pais e churrascos com os
amigos perdidos; todas as séries, filmes, livros e passeios que ficam
para depois; todas as noites maldormidas… Tenho conseguido lidar
melhor com a ansiedade e a dúvida que surgem no peito sempre
que vou mal em uma bateria de questões ou quando vejo o
astronômico número de inscritos em uma prova.
Já faz algumas semanas que não me pergunto se não seria
melhor deixar tudo isso para lá e voltar a ter uma vida “normal”. É
um progresso. E isto é outra coisa que aprendi: a importância de
reconhecer e comemorar os pequenos passos que damos no
caminho e cada pequena conquista. Talvez esse tenha sido o
principal ensinamento, o que me impediu de desanimar e desistir no
meio do caminho.
E, tudo isso, aprendi graças a ele, o administrador do blog De
Concurseiro a Concursado, sob o pseudônimo Sr. Concursado. É
engraçado como alguém que você nem conhece pode te ajudar
tanto.
O relógio indica oito da noite: passou da hora de começar.
Abro meu planejamento na lesma que chamo de computador,
agora é hora de Direito Constitucional. Solto um suspiro resignado.
Essa foi a primeira disciplina que estudei quando embarquei nessa
jornada. Com quase duzentas horas líquidas acumuladas, não há
nada de muito novo a ser visto, apenas revisões e resolução de
questões e mais questões — e elas insistem em me lembrar de que,
mesmo tendo estudado tudo várias vezes, sempre haverá algum
detalhe que não sei.
E que poderá me custar um ponto. E minha aprovação.
E meu futuro.
Ugh.
São quase oito da manhã quando chego à Focus — conforme o
folheto, eles abrem às sete horas aos sábados —, já de banho
tomado e com a endorfina da corrida matinal circulando no meu
sistema. Guardo os fones e fecho o aplicativo no celular assim que
“As It Was”, do Harry Styles, termina de tocar — não dá pra vir à pé
sem uma musiquinha, né?
Como vou passar o dia todo estudando, escolhi uma roupa
confortável, mas também arrumadinha: uma calça pantacourt jeans;
uma camisa verde-pastel de algodão, com um discreto decote em
“V”; meu sapatênis bege favorito, para não falar “o de sempre”; e, é
claro, um cinto marrom para segurar a calça no lugar. Apesar de rir
dos memes “Concurseira x Concursada” que costumo ver na
internet, gosto de manter um mínimo de dignidade, mesmo ainda
estando no lado do “antes” da história.
Quando entro na casa usando a senha do portão eletrônico que
Carlos me passou, paro sem jeito frente à recepção vazia. Não
combinei um horário certinho com ele, então será que deveria ter
vindo mais tarde?
Antes que possa ir embora, no entanto, cruza a porta um rapaz
de pele castanho-dourada, com cabelos lisos bagunçados pela
cabeça e sardinhas discretas espalhadas pelo rosto bonito. Ele traz
uma mochila preta pendurada em um dos ombros, sobre a camisa
branca, e dois livros apoiados em seu braço; provavelmente um dos
alunos da salinha. Seu olhar salta da mesa vazia para mim.
— Primeiro dia? — pergunta, sua voz amigável como a de um
bom veterano, do tipo que te empresta os cadernos antigos para
xerocar.
— Sim! — respondo, minha própria animação me
surpreendendo. — Conversei ontem com o Carlos, e ele disse para
eu vir experimentar estudar aqui hoje. Mas acho que cheguei cedo
demais.
— Ah, relaxa. — Ele põe uma mecha do cabelo castanho-escuro
atrás da orelha e aponta para a plaquinha sobre a mesa, que
anuncia uma vaga para recepcionista. — A secretária se mudou da
cidade há algumas semanas, mas Carlos e o Maurício costumam
descer por volta das dez da manhã para ver se alguém precisa de
ajuda.
— Descer?
— Isso. — Ele aponta com o indicador para o teto. — Eles
moram aqui mesmo, no andar de cima. Mas não precisa esperar,
você pode escolher uma das cabines vazias e começar a estudar.
Já fez o tour?
Assinto.
— Tirando as cabines com o marcador laranja, que são dos
alunos integrais, todas as outras são rotativas mesmo, então você
pode pegar qualquer uma que estiver vaga.
— Ah, entendi, farei isso. Obrigada…?
— Rafael! — diz e me estende a mão. — Muito prazer. — Ele
alarga ainda mais seu sorriso. — Pode me chamar de Rafa.
Retribuo o cumprimento e o sorriso.
— Melissa, mas todos me chamam de Mel. Você estuda aqui há
muito tempo?
Ele aponta com a cabeça o caminho até a sala e, enquanto
andamos, responde:
— Faz quase um ano que venho aqui, acho que qualifica como
“muito tempo”. Estou estudando para, talvez no ano que vem,
prestar a prova do Ministério Público. E você?
— Quero tentar para delegado — respondo e, tentando aliviar um
pouco a pressão que eu mesma me coloco, completo: — Mas talvez
preste para inspetor ou escrivão neste ano. Está muito em cima.
Ele para e se vira para mim.
— Ah! O edital saiu nessa semana, não foi? Eita! Desespero em
onze, na escala de um a dez?
O olhar de Rafa se acende com uma luz divertida.
— Talvez quinze. — Eu rio. É reconfortante ser compreendida
sem precisar me explicar.
— Te confesso que me deu uma vontade de prestar esse! Estudo
há pouco mais de dois anos, e a primeira etapa é semelhante.
Quem sabe não tentamos juntos?
Concordo, sorrindo. Em vez de temer mais um concorrente, eu
me sinto um pouco melhor por ter alguém com quem trilhar essa
jornada.
Seguimos pelo corredor, onde ficam os armários, e paramos logo
em frente à sala de estudos, onde há um pequeno bufê com duas
garrafas térmicas e um pote de biscoitos, tudo organizado com
muito zelo. Rafael enche uma xícara de café, e eu, sem resistir ao
cheiro, sirvo-me de uma também. Engraçado, será que os donos
vieram mais cedo para preparar as bebidas?
— E tem água quente aqui, caso queira preparar um chá. —
Rafael aponta para a segunda garrafa.
— Certo. Acho que vou ficar com minha cafeína, mesmo.
Trocamos um sorriso de cumplicidade e entramos na sala de
estudos.
Logo que cruzo o batente da porta, os pelos dos meus braços se
arrepiam e me arrependo de não ter trazido uma blusa de frio — ou
mesmo um cobertor. Olho em volta e, mesmo sendo sábado de
manhã, já tem três alunos estudando em suas respectivas cabines.
Dois deles estão concentrados assistindo a videoaulas em seus
computadores enquanto tomam notas em seus cadernos, e o
terceiro devora um livro. Uma pequena chama aquece meu peito:
também quero dar o meu melhor.
Rafael caminha até uma das cabines com o adesivo azul —
então ele é um aluno integral — e destranca seu armário superior,
revelando vários livros e cadernos empilhados. Ele indica com a
cabeça uma mesa vazia ao seu lado, e lá me sento.
Tentando fazer o mínimo de barulho possível, apoio meu café na
superfície branca da mesa e tiro meu notebook, o estojo, caderno e
dois livros da mochila vermelha, assim como minha garrafa de água.
Guardo o que ainda não vou usar no armário superior, com cuidado
para não sacudir demais minha marmita na bolsinha térmica.
Sento-me na cadeira estilo escritório e a acho bem ergonômica e
confortável, mas não aconchegante demais a ponto de me dar sono.
Sem dúvida, é superior à que uso em casa, que vem me causando
dores lombares, mesmo com minha rotina rigorosa de alongamentos
e fortalecimento muscular. Mais um ponto a favor da salinha.
Depois de checar o cronograma do dia, abro o livro de
Criminologia e, com caneta em mãos, dou a largada no tempo.
Sorrio. É tão bom ter alguém com quem dividir essa caminhada.
Termino de me arrumar e, algumas horas mais tarde, depois de
muitas páginas lidas, nós duas entramos na copa da Focus, tomada
pelo delicioso cheiro de café novinho, e cumprimentamos Carlos,
que termina de arrumar as garrafas e se despede, sorridente, com
um aceno de cabeça. Amanda solta um “huuum!” e rimos. Pegamos,
cada uma, uma xícara da bebida e nos sentamos no pufe para
aproveitarmos o primeiro intervalo.
— E como vão as coisas em casa? — pergunto.
— Estão na mesma. — Minha colega gira o café na xícara,
criando um pequeno redemoinho negro. — Meus pais continuam
com a pressão para que eu assuma mais pacientes no consultório,
não aceitam que não gosto da odontologia como eles. Nunca gostei.
— Entendo, Mandi. — Dou um leve tapinha em seu ombro. —
Não chego a odiar a advocacia, mas não é o que quero fazer para
sempre.
Ela assente.
— Minha mãe duvida que eu seja capaz de passar em um
concurso tão concorrido, ainda mais competindo com pessoas que
têm formação em Direito.
— Ela te disse isso? — Arregalo os olhos.
Não consigo imaginar como me sentiria se minha mãe me
desacreditasse dessa forma. Ela, que sempre me apoiou em tudo
que quis tentar, que me ajudou a enxugar as lágrimas quando eu me
deparava com pedras no caminho, que se sacrificou para que eu
tivesse a chance de conquistar aquilo que ela não pôde… Se não
fosse pelo apoio dela, eu não seria metade do que sou hoje.
— Não com essas palavras, mas foi o que deu a entender. —
Amanda se vira para mim, um nevoeiro se formando em seus olhos.
— Quero muito passar no TRF mês que vem, Mel. Quero provar que
sou capaz e que posso, sim, construir uma carreira fora do
consultório.
— Estarei aqui torcendo. — Sorrio.
Amanda relaxa a expressão e se volta para a frente enquanto
termina de tomar seu café.
De repente, seu rosto se ilumina.
— Mel! — Ela salta do pufe e corre até o quadro de avisos na
parede oposta. — Teremos um treinamento físico no final do mês. É
perfeito para você, que é da área policial!
Inclino a cabeça.
— Um o quê?
— É um simulado para o TAF que a Focus promove
trimestralmente, mas é aberto a qualquer aluno — ela aponta para o
próprio nariz —, inclusive para quem é de outras áreas, como forma
de incentivar a prática de atividades físicas entre os concurseiros.
Mesmo eu, que não sou lá muito fitness, achei superlegal da última
vez!
Passo o olho pelo cartaz fixado. O simulado será conduzido por
um profissional de educação física, um tal de Guilherme, no último
domingo do mês. O encontro está marcado para as oito da manhã,
e as atividades vão até o meio-dia.
Interessante.
Nunca participei de algo do tipo, com certeza vai ser bom ver
como está meu desempenho em uma situação de prova e conferir
se minhas execuções dos exercícios ainda estão corretas. Apesar
de ter feito três ou quatro aulas com um personal quando comecei a
me preparar, há tempos, treino sozinha na academia do prédio.
— Vamos, Mel? Você vai adorar! — Mandi me sacode pelo
braço. — Ah, e sempre, depois do treinamento, Carlos e Maurício
nos levam a um restaurante para almoçarmos todos juntos. É muito
bom encontrar todo mundo!
Sorrio. Deve ser, mesmo.
— Claro, vamos, sim! Acho que vai ser uma boa.
Para não correr o risco de me esquecer, coloco o lembrete na
minha agenda no celular e reparo que será uma semana depois da
festa do escritório. Gelo por dentro, apesar do café quente que mal
acabei de tomar.
Ainda não sei o que vou fazer quanto à tal da festa. Aparecer
sozinha e encarar o olhar condescendente do Matheus enquanto ele
se diverte com outra mulher não é uma opção. Isso só mostraria que
ele estava certo.
“Não dá para ninguém ficar com você assim, Mel”, sua voz ecoa
em minha cabeça. “Você simplesmente não tem tempo pra gente,
nem se importa. Só quer saber de estudar. Está obcecada e
deixando de viver por causa disso.”
— Mel? — Amanda me salva do loop nada divertido em que eu
estava prestes a entrar.
— Hum… Estava só vendo as datas aqui no calendário — minto,
apertando o celular entre os dedos. — Faltam cerca de dois meses
e meio até minha prova, mas ainda não consegui me decidir para
qual cargo prestar. Eu me inscrevi nos dois, mas vou esperar mais
um pouco para ver qual dos boletos da taxa de inscrição pagar.
— Não daria para tentar os dois?
— É uma possibilidade — respondo —, mas, como há matérias
diferentes, fico com medo de tentar abraçar o mundo e acabar não
conseguindo ir bem em nenhum.
— Entendi. — É sua vez de colocar a mão em meu ombro. —
Mas você ainda tem tempo. Não precisa sofrer com isso agora. Siga
firme no que for possível adiantar, e, mais à frente, a gente vê isso
com calma.
— Uhum. Obrigada, Mandi.
— Vai ser seu primeiro concurso?
— Não, não. Prestei um como teste logo que comecei a estudar,
na prefeitura mesmo, além de outro, há um tempinho, para o
Tribunal daqui. Nele, até que fui bem, mas não sei se será o
suficiente. Ainda estou esperando o resultado.
— Para o TJ? Qual cargo?
— Sim. Para o cargo de técnico. Se for aprovada, vou poder sair
do escritório e trabalhar menos horas — explico, e Amanda
concorda, solidária. — Ficaria mais fácil conciliar com os estudos.
Atualmente, está bem puxado. Tem dia que passo mais de dez
horas no escritório, aí já viu, né?
— Entendo bem, Mel — diz enquanto deixamos as xícaras na
pia. — Quando sair o resultado, me conta, tá? Deve ter dado certo,
com certeza!
Voltamos para nossas cabines, onde muitas páginas a serem
lidas, questões a serem resolvidas e aulas a serem assistidas nos
aguardam.
Assim que escolho um dos chás para fazer — até eu sei que,
depois das nove da noite, cafeína não é uma boa —, completo:
Melissa: Falando sério, obrigada pela explicação mais uma vez,
consegui entender perfeitamente. Agora sei por que suas aulas
são tão concorridas.
Leonardo: Não.
Melissa: O quê??
Leonardo: Excelente.
Melissa: Isso.
Droga.
— Hum… Léo…
— É ele? — Sua voz é congelante.
— Não, não. É a Priscila e… — O promotor relaxa no banco ao
meu lado. — Bem, ela vai estudar na salinha também, a partir da
próxima semana.
— Ah… Certo. Que bom. Tomara que ela goste.
— Acho que você não pegou o ponto.
— Que é…? — Ele ergue uma sobrancelha, mas segue
concentrado ao virar o volante.
— Priscila acha que somos namorados, então…
— Ah, sim, claro.
Creio ter visto um lampejo de diversão iluminar seus olhos,
acompanhado de um leve sorriso, mas, um instante depois, não
estão mais lá.
— “Ah, sim, claro” — imito-o, engrossando a voz.
— O que foi isso? — Ele se vira para mim, os olhos arregalados
enquanto tenta conter uma risada.
— Não adianta se fazer de desentendido, sr. Namorado —
repreendo-o. Ele se contrai por um segundo, mas logo retoma a
expressão divertida. — Eu fiz todos os gestos possíveis para que
você parasse de falar, mas não, você tinha que ficar tagarelando
sobre a Focus. — Cruzo os braços. — Pois é, agora você vai ter que
me aguentar.
Ele ri. E sua risada é o melhor som que já ouvi.
Não consigo conter um sorriso, mas continuo com o drama:
— Teremos que continuar fingindo por pelo menos mais umas
duas semanas assim, para Priscila não desconfiar que sou uma
doida varrida.
— Esse vai ser nosso segredo, amor. Professor particular e
namorado nas horas vagas.
Faço uma risada irônica.
— Também não vou espalhar por aí que você é um doido varrido
por entrar nessa, lindo.
Ele balança a cabeça para os lados, ainda rindo.
— E o que acontece depois dessas duas semanas? — pergunta.
— Ah, aí a gente termina — declaro o óbvio, mas ele fica em
silêncio, então elaboro: — Pode ser um término amigável, sem
muito drama, mas você tem que parecer arrasado por alguns dias.
Sabe como é, eu faço muita falta.
Ele passa a mão pelos cabelos, e, sem tirar os olhos do caminho,
murmura:
— Você não faz ideia, Melissa.
Meu despertador dispara às nove da manhã, e meu corpo
protesta, revoltado. Normalmente, neste horário, eu já estaria saindo
do banho depois de ter corrido alguns quilômetros e treinado na
praça.
Pego o celular, ainda sofrendo para abrir os olhos, mas acordo
de uma vez quando vejo uma notificação na tela. Imagens da noite
anterior correm em minha mente. Será…? A decepção faz meus
ombros murcharem: é uma mensagem de Rafael perguntando sobre
o lanche de hoje da salinha, que ficamos de preparar juntos.
Quem você queria que fosse, Melissa?
Ignoro minha frustração e respondo o concurseiro, que se
prontificou a levar os salgados.
Melissa: Pode deixar os doces e as bebidas comigo, então, Rafa.
Vou comprar alguns bolinhos e biscoitos gostosos!
Melissa: ??
Leonardo: É minha teoria: no pós-edital, os problemas mais
aleatórios e terríveis surgem de uma vez só.
Sorrio. Típico.
Melissa: Não é, não, mentiroso.
Leonardo: Não fica do lado contrário, também.
Do tipo normal.
Leonardo: É sério, não é incômodo algum.
Melissa: Do mestrado?
Quase caio da cadeira quando meu alarme toca às 17h 50. Isso
sempre acontece, no trabalho ou no estudo, quando estou
concentrada, mas até hoje ainda não me acostumei.
Faltam dez minutos para minha carona chegar, e, se o frio em
minha barriga for qualquer indicativo, estou mais animada do que
deveria. Depois de salvar os arquivos em que estava trabalhando,
vou com minha bolsinha para o banheiro dar um “up” no visual. Sem
nenhum motivo especial, claro.
Aplico um pouco de pó sob os olhos, destaco meus cílios com o
rímel e coloco um pouco mais de cor nas bochechas com o blush
rosado. Então, solto o cabelo, antes preso em um coque, e ele cai
ondulado pelos ombros. Aliso o paletó do meu terninho favorito,
preto clássico, que visto sobre uma camiseta creme de seda
rendada, e dou uma última conferida no meu reflexo no espelho. Tá,
talvez tenha um motivo para eu querer ficar… apresentável.
As imagens do abraço de ontem passam na minha cabeça como
um filme. Já havíamos nos tocado antes, é claro. Principalmente na
noite da festa do escritório, foram várias as vezes em que seus
braços contornaram minha cintura ou suas mãos roçaram em minha
pele.
Mas sempre havia uma audiência, então eu tinha certeza de que
todos esses toques eram falsos. Mesmo parecendo reais, eram
apenas para que pudéssemos convencer os outros de que
estávamos em um relacionamento.
No entanto, ontem foi diferente. Éramos só nós dois. Não havia
outros olhos, não havia ninguém para enganar e… Um sorriso se
abre quando revejo Leonardo, na noite anterior, virando a esquina e
correndo à toda velocidade em minha direção, a preocupação
estampada em seu rosto. Não consigo deixar de me perguntar se
ele realmente se importa comigo, ou se me ajudar foi algo que ele
faria por qualquer um. Talvez ele se sinta de alguma forma
responsável pelos alunos da Focus e só esteja tentando ser
prestativo, talvez ele…
Meu telefone vibra com uma mensagem.
Leonardo: Estou aqui embaixo.
Melissa: Descendo!
Ele assente, sua expressão séria, e logo volta a olhar para a tela
de seu próprio notebook — top de linha, devo dizer. Esfrego as
mãos, tentando espantar o frio, enquanto o meu se arrasta
dolorosamente pelas telas de inicialização. Quando o dia está muito
quente, como hoje, sempre me esqueço de levar um casaco ao sair
de casa pela manhã. Talvez seja uma boa deixar um ou dois
casacos em um dos armários do corredor.
Passada a interminável espera, a tela de iniciar se mostra para
mim; mas, depois de fazer o login, ainda preciso aguardar,
impotente, os arquivos surgirem um a um na área de trabalho.
Ao meu lado, o promotor se levanta e desabotoa o paletó preto.
Franzo as sobrancelhas, não é possível que ele esteja com calor
nesse frio todo. Então, ele usa as mãos para puxar a lapela por
sobre os ombros e leva os braços para trás, fazendo o tecido
deslizar com pequenos impulsos. E assim, sem nenhum aviso
prévio, estou na primeira fila de uma apresentação de Magic Mike.
Os holofotes e luzes coloridas se acenderão a qualquer momento.
O paletó termina de escorregar por seus braços e, segurando-o
na mão esquerda, Leonardo se vira em minha direção. E é aí que
tenho certeza de que o filme teria sido bem melhor se ele tivesse
sido parte do elenco.
Controle-se, Melissa.
Leonardo analisa meu rosto por um longo instante. Devo estar
com alguma expressão engraçada, porque um sorriso atravessa seu
rosto. Ele se inclina para frente, levando o rosto a centímetros do
meu.
— Você está encarando — sussurra em meu ouvido, o hálito
quente me fazendo cócegas.
Esqueça a apresentação de Magic Mike, estou em queda livre —
e o frio na minha barriga pode provar.
Mimetizo uma risada irônica, sem emitir nenhum som, claro, e
balanço a cabeça para os lados, apertando os olhos. Tento
esconder minhas bochechas quentes virando-me para o
computador, que, com pena de mim, termina sua árdua e sofrida
inicialização.
Aleluia.
Quando levo a mão ao mouse, no entanto, sou surpreendida por
um calor repentino e aconchegante: meus ombros e minhas costas
são abraçados pelo paletó de Leonardo. Levanto o rosto, surpresa,
em sua direção. Seus olhos, suaves, encontram os meus, e lhe
agradeço com um sorriso. Ele dá um leve aceno com a cabeça e,
ainda de pé, pega minha garrafa de água, vazia há algum tempo, e
sua própria xícara antes de sair da sala.
Tomo um susto tão grande com um cutucão na minha costela
que quase quebro o código de silêncio da sala. Dou um pulo,
virando-me em reflexo em direção à origem do gesto, e encontro
Priscila com um sorriso enorme e brincalhão no rosto. Ela junta as
mãos e, apenas com os lábios, exclama “que amor!” — posso ouvir
sua voz aguda em minha mente. Neste momento, a sensação de
queda livre se vai e um vazio se instala em meu peito.
Estamos atuando.
Ele só está cumprindo sua parte do combinado… não é? Alguns
dos momentos que passamos sozinhos invadem meus
pensamentos, contrariando minhas convicções cada vez mais
balançadas. Olhares, gestos, gentilezas e toques. O que os
explicaria, então?
Escolho ignorar a pequena chama de esperança que ameaça se
acender em meu peito.
Eu já conheço essa história. E não gosto nada de como ela
termina.
O cheiro de cloro está forte quando entro no clube, às oito da
manhã, para o simulado do TAF. Apesar do vento frio, meu corpo
está quente dos quase trinta minutos de caminhada da minha casa
até aqui — bem a justificativa que usei para negar a carona de
Leonardo, que comentou que viria ajudar no simulado. Encontro
Amanda me esperando próximo à entrada, e ela me guia até o local
de encontro dos alunos enquanto jogamos conversa fora.
Mesmo com o carro na oficina — e graças a toda a ajuda do Léo,
preciso admitir —, essa foi uma boa semana: além de bater as
metas de horas diárias, não perdi nenhum dia de treino; variei entre
corridas na rua, treinos de força na praça e musculação na
academia do prédio.
No entanto, está longe de ter sido uma semana normal. Pegando
quatro dias de carona com Leonardo — do escritório para a Focus,
e da salinha para casa —, acabamos passando muito tempo juntos.
Sozinhos. E ainda não consigo lidar muito bem com essa
proximidade.
Estar perto dele causa efeitos no meu corpo que preferiria
ignorar. Tá, quem quero enganar? Sim, eu me sinto atraída por ele.
Fisicamente, quero dizer. E não é minha culpa, esse tipo de atração
é incontrolável, quase que… instintiva, digamos assim.
Amanda mesmo disse que vários alunos da Focus têm uma
queda pelo professor — e que muitos só não admitem que têm.
Bom, não há para onde fugir quando o cara meio que preenche
quase todos os requisitos de um bom partido, e ainda alguns extras.
Chega a ser irritante.
É claro que sua personalidade fria e distante — pelo menos
como é conhecido por aqui — o faz perder alguns pontos, mas…
pelo menos comigo, não sei identificar a partir de quando,
exatamente, Leonardo tem se mostrado atencioso, prestativo e até
mesmo gentil, contrariando a imagem inicial que tive dele.
Inclusive, passando tanto tempo com ele, presenciei vários de
seus sorrisos.
E, nossa.
Se os alunos que ainda não admitem gostar dele vissem esses
sorrisos… teríamos uma nova estatística.
— Bom dia, pessoal! Sejam bem-vindos ao quarto simulado do
TAF organizado pela Focus Salas de Estudos. — Uma voz
masculina, poderosa e professoral toma a pista de corrida, onde
cerca de quinze alunos se reúnem em pequenas rodas. — Para
quem não me conhece, sou o Guilherme, personal trainer, e vou
assessorá-los hoje! — Ele abre um sorriso malicioso, encarando-nos
por trás de seus óculos escuros. — Não quero ver ninguém
enrolando, hein?
Meus olhos estudam o desconhecido. Seu cabelo castanho-
avelã, fino, farto e curto espeta-se despreocupado por toda a
cabeça, contrastando-se com o rosto liso, sem nenhum fio de barba
em seu maxilar marcado. Ele veste uma regata branca com uma
estampa geométrica em laranja e um short de academia azul-
escuro. Os tênis coloridos destacam-se contra as meias pretas que
quase chegam ao joelho, dando-lhe um ar de crossfiteiro dedicado.
No entanto, o que mais me chama a atenção é seu antebraço,
imobilizado por um gesso branco novinho e apoiado por uma tipoia.
É… Nada de demonstrações do professor. Entretanto, de todo
modo, ele ajudará nas instruções e no julgamento da minha
execução dos movimentos. Então um outro homem entra em meu
campo de visão.
Observo Leonardo se aproximar de Guilherme, a regata verde-
musgo fazendo um péssimo trabalho em esconder seu peitoral
largo, além de deixar seus braços torneados completamente à vista.
O short preto pelo menos tem um maior senso de profissionalismo e
quase chega aos joelhos — mas não faz milagres, e suas
panturrilhas seguem à mostra, mais grossas que meus braços.
— Eu te entendo, Mel. — Mandi dá três batidinhas brincalhonas
nas minhas costas. — Até porque aposto que esse é justamente o
motivo pelo qual aquelas ali, ó — ela indica com a cabeça um trio de
garotas empolgadas, do qual reconheço apenas Daniella —,
também vieram no último treinamento. Aliás, acho que você está
perdendo chances preciosas de se aproveitar mais desse colírio,
viu? Se um homem desses fosse meu namorado…
Fecho os olhos e expiro o ar em uma risada silenciosa.
— Ele não é, Mandi.
— Detalhes, detalhes — ela brinca.
— Longe disso — replico.
À nossa frente, os dois professores se cumprimentam com uma
batida na mão e um soquinho — sim, um soquinho — antes de
trocarem algumas palavras. Guilherme abre um largo sorriso e,
retomando sua voz de professor, anuncia:
— Como podem ver, hoje não poderei fazer as demonstrações.
— Ele ergue o gesso e o sacode no ar. — Mas o Leozinho, aqui —
ele dá uma cotovelada nas costelas do amigo —, vai mostrar tudo
direitinho para vocês. Eu mesmo o treinei, então não se preocupem.
Leozinho. Não consigo segurar uma risada, e os olhos safira me
fuzilam de longe.
— Eles são amigos? — sussurro para Amanda.
— Sim. O Guilherme me contou, no último simulado, que são
melhores amigos desde a época do colégio. Eles malham juntos
também, acho que são bem próximos.
É minha vez de encará-la:
— O Guilherme te contou, é? — Em um tom exagerado,
pergunto: — Tem mais alguma coisa que eu precise saber, senhorita
Amanda?
Ela levanta as duas mãos, as palmas viradas para mim.
— Nada mais, juro!
— Mas você — aperto os olhos — queria que tivesse?
Ela desvia o olhar, dando de ombros.
— Não estou procurando nenhum relacionamento nem nada —
diz, balançando os cachos presos em um alto rabo de cavalo. — No
fim, devo acabar sendo aprovada em algum outro estado, se tudo
der certo, e esse negócio de namorar à distância não é pra mim.
Encaro-a, desconfiada, mas não tenho tempo de perguntar mais
nada, porque o professor nos chama para o início da pista de
atletismo. Ele nos ensina alguns alongamentos e exercícios de
aquecimento. Tento, ao máximo, seguir os comandos sem precisar
olhar para Leonardo, quem faz todas as demonstrações — apesar
de meus olhos agirem por conta própria por mais vezes do que eu
gostaria.
Ao terminarmos, tem início o simulado de verdade.
— Pessoal, o primeiro exercício oficial que faremos hoje será o
teste de cooper. Lembrem-se: vocês têm doze minutos para
percorrerem a maior distância que conseguirem. Todos vão largar
juntos e, ao terminar o tempo, vejam onde pararam e quantas voltas
deram, por favor. Preparados? — Ele pega o cronômetro e leva o
apito à boca. — E… valendo!
O som agudo chega aos nossos ouvidos e todos disparamos
pela pista. Tentando simular a prova de verdade, não escuto minhas
músicas durante o teste. E, nossa, como é triste correr em silêncio.
Costumo montar várias playlists para escolher a melhor, a depender
do meu humor ou ânimo do dia, e isso sempre me ajuda.
Agora, no entanto, cada passo é acompanhado apenas pelo som
da minha respiração ofegante. Tento não deixar isso prejudicar meu
desempenho, seguindo firme, no ritmo mais rápido que consigo.
— Tempo! — grita Guilherme.
Paro de uma vez, levando as mãos aos joelhos em busca do
fôlego que se perdeu em algum lugar entre a segunda e a terceira
volta. Seco o suor que escorre na testa com a barra da minha
camiseta lilás, olho as marcas no chão e calculo meu resultado: corri
cerca de 2.400 metros. Com essa distância, não chego à nota
máxima — por um ponto —, mas já é um bom resultado, e ainda
tenho alguns meses pela frente para treinar.
Ok. Vai dar certo.
Guilherme anota nossos resultados no quadro branco,
posicionado no início da pista, e logo nos chama para a prova dos
cinquenta metros rasos — mais uma corrida. Dessa vez, os testes
são feitos em duplas e registramos nossos tempos no quadro.
Em seguida, ele nos guia até uma porção aberta do gramado
onde faremos as flexões de braço. Aguardando as orientações do
amigo, Leonardo se ajoelha.
— O movimento deve ser completo — explica o professor,
sinalizando com a cabeça para que Léo inicie a demonstração —, e
a caixa torácica deve encostar no chão para que a repetição seja
válida. Em seguida, os braços devem se esticar totalmente e, só
então, você poderá dar início à próxima flexão.
Leonardo faz, com uma facilidade ultrajante e em câmera lenta,
algumas repetições da flexão, atendendo a cada uma das
exigências de execução previstas no edital.
Então é a nossa vez. Nós nos espalhamos pelo campo, e
Guilherme passa, um por um, por todos os alunos, contando e
validando as repetições, assim como dando dicas práticas de
execução. Na minha vez, ele se agacha ao meu lado e, como vem
fazendo com os demais alunos, pergunta meu nome.
— Ah… Então é você a famosa Melissa? — pergunta, sorrindo
de orelha a orelha.
Faço que sim com a cabeça. Será que Leonardo falou de mim?
O que será que disse? Encaro-o, esperando que elabore, mas o
professor se limita a balançar a cabeça e pedir para que eu comece.
Como a flexão de braço para as mulheres é feita com os joelhos
no chão, consigo completar as mais de vinte repetições necessárias
para chegar à nota máxima do teste. No entanto, não é uma tarefa
fácil. Depois da metade, preciso diminuir a velocidade da execução,
assim como aumentar as pausas entre uma e outra — sem sair da
posição, claro. Minha respiração fica irregular e subo com cada vez
mais dificuldade.
Mas não desisto até o fim, e uma chama de orgulho aquece meu
peito quando termino. É gratificante ver todo o esforço que emprego
diariamente gerando frutos. Ergo meu corpo e troco um sorriso com
Guilherme, que me parabeniza e deixa algumas dicas antes de
seguir para o próximo aluno.
O último exercício em terra firme é o de barra fixa, o terror dos
candidatos, por ser o que mais os desclassifica. Seguimos
Guilherme até o canto do gramado, onde se espalham barras de
diversas alturas, gangorras e balanços. Ele explica o exercício e,
como da última vez, pede para que Leonardo faça as
demonstrações.
— Lembrem-se, o queixo precisa ultrapassar a linha da barra
para que a repetição seja válida. Assim.
Leonardo dá um pequeno salto, segura com as duas mãos a
barra e, como quem levanta uma pluma, eleva-se até superar, com
folga, a altura desejada. Ele sustenta a posição enquanto Guilherme
dá mais algumas orientações e, por fim, desce lentamente.
O instrutor pede para que ele realize algumas repetições
seguidas conforme dá algumas dicas de execução e velocidade.
Leonardo obedece e faz o exercício com a maior facilidade do
mundo enquanto os alunos absorvem, concentrados, cada nova
explicação.
À exceção de mim, que não presto atenção em absolutamente
nada que não nos músculos das costas dele, marcados pela regata
escura, úmida com o suor. Se, no outro dia na salinha, pensei estar
no show do Magic Mike, o que é isso hoje? Pornô?
— Nove… Dez! Boa, Leozinho, valeu!
Ao saltar de volta para o chão, Leonardo se afasta da barra, bate
as mãos no short e limpa o suor da testa. Quando ele ergue a
cabeça, nossos olhos se cruzam, e me dou conta, tarde demais, de
que meu rosto denuncia minha estupefação. Ele curva um dos
cantos dos lábios para cima, em um sorriso, antes de desviar o
olhar.
— Eu disse, Mel — Mandi sussurra no meu ouvido —, esse seu
boy magia vale ouro.
Minhas bochechas queimam, mas, como já devo estar
avermelhada do esforço físico, não me preocupo em me esconder.
Dando continuidade ao simulado, Guilherme nos separa em dois
grupos e cada um forma uma fila à frente de uma das barras para a
realização dos testes individuais. O professor fica com o primeiro
grupo, ao passo que Leonardo vem em direção ao meu.
Engulo em seco e observo, do terceiro lugar na fila, um aluno
desconhecido fazer suas repetições, enquanto Léo faz a contagem
e avaliação da execução do exercício. Tenho até um pouco de pena
do meu colega: depois das demonstrações impecáveis de Leonardo,
qualquer um ali vai parecer desengonçado, inclusive eu.
Antes de mim, Amanda faz sua tentativa. Ela usa uma caixa de
madeira posicionada na lateral do equipamento para se elevar e
segura a barra com ambas as mãos, já com o queixo por cima,
seguindo o padrão do teste feminino, no qual não é necessária a
execução completa: a candidata deve sustentar seu peso pelo maior
tempo que conseguir. No caso de Amanda, exatos…
— Três segundos. — Leonardo pausa o cronômetro.
Mandi solta um risinho, indiferente ao resultado. Além de não ter
TAF nos concursos de tribunais, ela me disse não se interessar em
fortalecer os braços.
— Melissa — chama Leonardo.
Vou até o aparelho, posicionando-me, e olho para cima. Apesar
de não ser baixinha, estou longe de dar altura para conseguir subir
naquela barra sem ajuda, mesmo pulando. Miro, então, a caixa que
Amanda havia usado e faço menção de levar o pé até ela e… De
repente, não é mais necessário.
Em um segundo, estou no chão e, no outro, duas mãos calejadas
me seguram pela cintura e me erguem, como se eu não pesasse
nada, até a barra. Aperto o metal agora à minha frente para tentar
dar um fim àquele toque, mas meu namorado de mentira demora
um pouco mais que o necessário para me soltar. Pendurada, viro o
rosto para trás e encaro Leonardo, que, em resposta ao meu olhar
confuso, simplesmente sorri como se aquela fosse a situação mais
natural possível e dispensasse explicações.
Uma arfada seguida por alguns cochichos vindos da fila onde eu
estava me lembram de que estamos em público, e volto minha
atenção ao exercício. Como estou deixada abaixo da barra, sou
obrigada a fazer a primeira repetição e, só então, sustentar meu
queixo na altura prescrita. No entanto, não vejo problema nesse
esforço extra; na verdade, quanto mais, melhor.
O bip do cronômetro sinaliza o início da contagem. Mesmo eu
tendo conseguido, em meus treinos, segurar-me por tempo o
suficiente para obter a nota máxima, trinta segundos, o exercício
nunca se tornou fácil para mim. Por isso, não é nenhuma surpresa
quando, por volta dos vinte segundos, minhas costas e meus braços
reclamam.
— Trinta segundos — diz Leonardo, com a voz serena de quem
só está marcando o tempo. Antes que eu possa soltar a barra, no
entanto, ele continua: — Fique mais dez.
Aperto os lábios e aceito o desafio, puxando ainda mais forte a
barra. Minha respiração fica ofegante e meus músculos ardem com
o esforço, mas me recuso a soltar.
— Três, dois, um… — ele conta. — Deu!
Solto as mãos e logo meus pés chegam à areia, o alívio se
espalhando por meu corpo. Balanço os braços, satisfeita.
As incertezas que me tomam quando penso nas provas teóricas
não têm vez em se tratando do TAF. Isso porque o teste é, de certa
forma, previsível, de modo que posso comparar as minhas métricas
com aquelas exigidas na etapa e ter uma noção de como será meu
desempenho. Como estou agora, se não me lesionar e puder
continuar com os treinos, acredito ter uma chance altíssima de
conseguir uma boa pontuação na prova.
— Muito bom, Melissa. — Leonardo estende a mão em punho
em minha direção. — É só se manter assim que não terá problema
nenhum no TAF. A execução foi ótima também.
Pisco para a mão à minha frente. Hoje é o dia dos soquinhos,
então?
Retribuo o gesto e batemos as mãos. Ainda atordoada, caminho
até Amanda, que me espera sorrindo de orelha a orelha. Paro ao
seu lado, a alguns metros da barra, e me viro para ver a próxima da
fila fazer sua tentativa. A garota branquinha, com os cabelos loiros
presos em um rabo alto, espera ansiosa, por alguns instantes, até
sua expressão murchar e ela levar o pé à caixa de madeira.
Nada de elevador para ela.
— Tratamento VIP, hein, Mel? — Mandi brinca, dançando com as
sobrancelhas.
Viro o rosto, envergonhada, mas não consigo impedir o sorriso
que se abre.
Apesar de não ser minha peça mais bonita, estou satisfeita por
ter escolhido usar meu maiô preto para a natação. Nunca fui sócia
de nenhum clube e, mesmo tendo nadado bastante até me formar
na faculdade, onde tinha acesso a uma piscina semiolímpica, tenho
pouquíssimas oportunidades de praticar para essa prova — isso que
dá morar em uma cidade que não tem praia. E se alguém consegue
se concentrar nos movimentos com um biquíni ameaçando se soltar
a qualquer momento, esse alguém não sou eu.
Enquanto trocávamos de roupa no vestiário, as nuvens deram
uma pequena trégua e abriram espaço para um sol ousado de fim
de manhã. Bem a tempo de tornar a natação mais divertida.
Eu e Amanda entramos juntas na água morna, na porção da
piscina reservada pela Focus para aquela manhã, onde cerca de
metade dos alunos aproveita para dar uma relaxada enquanto os
outros não chegam.
— Nossa! — reclama minha amiga, de pé e brincando com o
movimento da água. — Estou morta. Ainda bem que essa é a última
prova.
— Também já estou cansada — concordo, boiando de barriga
para cima. — Quando fazemos os exercícios com toda essa
atenção e pressão, fica bem mais difícil.
Ela concorda com a cabeça.
— E tô com fome — reclama, torcendo os lábios. — Esperta é a
Priscila, que vai direto para o restaurante depois, sem ter que fazer
todo esse esforço. Você vai com a gente também, né?
— Vou, sim. Hoje pretendo tirar o resto do dia para descansar,
estou precisando.
Não obtenho nenhuma resposta.
Franzindo as sobrancelhas, piso no chão da piscina,
endireitando-me. Na minha frente, Amanda pisca duas vezes,
encarando boquiaberta algo do lado de fora. Eu me viro na direção
de seus olhos e é minha vez de ficar sem palavras. Mandi, no
entanto, encontra novamente as suas:
— Caralh…
— Amanda! — interrompo-a, tapando sua boca com a mão.
No entanto, quero dizer exatamente a mesma coisa.
— “Amanda” nada! — Ela se desvencilha. — Melissa do céu,
isso é algum tipo de sonho lúcido?
Em nossa direção, vem o promotor.
Sem camisa.
Se a imagem dele de regata foi afrontosa… temos aqui um
verdadeiro crime, então — e, se me empenhar o suficiente, posso
processá-lo por ato obsceno ou algo do tipo. A luz do sol se reflete
em seu torso, demarcando o contorno do peitoral firme, onde
quicam, ao ritmo de suas passadas, duas correntinhas douradas,
um pingente cada. Pelo visto, é, sim, possível sentir ciúmes de
objetos inanimados.
Em seguida, meus olhos escapam até os músculos de seu
abdome definido e me frustro por não conhecer mais sobre a
anatomia humana para criar uma descrição à altura da cena para
Jéssica mais tarde. Na verdade, nem sabia que tínhamos todos
esses músculos na região das costelas. Mas, agora que sei, acho
que eles se tornaram meus favoritos.
Leonardo continua se aproximando, os pés descalços guiando
seus passos com confiança, e vejo com mais clareza seus oblíquos
— sim, esses eu conheço das aulas de abdominais — e… uau.
Essa é a tal da “entradinha”. E essas veias… Como veias podem
ser sexy? Tem alguma coisa errada comigo?
Com certeza.
Ele agora usa um short preto mais curto e, na linha da cintura,
uma fina faixa branca denuncia a sunga que usa por baixo. Se ele
tirar aquele short, vamos ter problemas.
Então é possível ter um corpo assim na vida real? Eu achava que
esses físicos só existiam em filmes ou… nem sei onde.
Na verdade, sei, sim. Nos meus sonhos.
— Nossa, dá pra lavar umas boas roupas nesse tanquinho, Mel.
— Amanda me tira do transe, e consigo desviar o olhar, ou sou eu
quem acabaria sendo processada.
Rimos juntas, e não posso deixar de concordar com a cabeça.
Uma vez, o Sr. Concursado escreveu um post sobre disciplina; e
um trecho marcante foi o de que, normalmente, quando alguém é —
ou, melhor, se torna — disciplinado, essa aplicação reflete-se nas
mais diversas áreas de sua vida.
Sem dúvida, para ser aprovado no concurso do MP, um dos mais
difíceis e concorridos do país, Leonardo precisou desenvolver uma
disciplina enorme para os estudos. Ele deve ter estendido essa
força de vontade a outras áreas, como, talvez, para uma dieta
saudável e atividades físicas constantes.
Isso explica por que, nas duas vezes em que liguei para ele, ele
estava na academia; ou mesmo seu comentário de que não comia
doces no dia em que montei o lanche na salinha — sou quase uma
criminosa por ter maculado aquele corpo perfeito com meu bolo de
chocolate. Quase, pois, pelo visto, não houve dano algum.
Amanda olha para os lados como quem procura algo e, de
repente, murcha. Acompanho seu olhar e encontro Guilherme vindo
em nossa direção, com as mesmas roupas de antes, incluindo o
gesso em seu braço.
— Decepcionada, Mandi? — provoco-a, e é minha vez de quicar
as sobrancelhas.
— Ah, não dispenso um bom show. — Ela tenta parecer
indiferente e dá de ombros. — Mas fica para o próximo simulado.
— Então você já presenciou o tal “show” do Guilherme antes? —
Faço o sinal de aspas quando digo “show”, e ela assente, apertando
os lábios. — Mandi, sua safada!
Guerreamos com a água até que ela ergue as mãos em
rendição.
Os dois amigos param à beira da piscina, e Leonardo se senta
na borda, as mãos apoiadas ao lado do corpo, e afunda os dois pés
na água. Ele está tão perto que preciso firmar os pés no chão para
não ser arrastada por sua gravidade.
Léo ergue o olhar e me pega encarando-o.
Nós nos prendemos em um jogo silencioso de “quem piscar
primeiro perde”, até que ele se rende com um sorriso e abaixa a
cabeça, desviando os olhos em direção à água.
— Bom, pessoal — chama Guilherme —, essa é a última prova
do dia. Depois dela, almoço!
Trocamos sussurros animados, mas logo todos voltam a prestar
atenção às instruções. O professor explica as regras da natação e
pede para que Leonardo demonstre alguns movimentos para ilustrar
as proibições — tenho certeza de que vários de nós não
conseguiram prestar muita atenção à execução do exercício,
inclusive eu.
Por fim, Guilherme se compromete a observar cada um dos
alunos e dar dicas individualizadas, apesar de marcarmos os
tempos em duplas, como nos tiros. Ele nos divide em três grupos.
Como eu e Amanda ficamos com outros três alunos no segundo,
esperamos no canto da piscina enquanto os primeiros se
posicionam dentro d’água.
Nessa prova, cada aluno precisa percorrer cinquenta metros, em
nado livre, no menor tempo possível. É similar ao teste de corrida de
cinquenta metros rasos, em que precisamos dar o máximo por um
curto intervalo. É do tipo que mata.
Guilherme apita e água se espalha por todo lado com o bater dos
pés dos alunos. Os primeiros de cada dupla vão e voltam na piscina
e, ao analisarem os visores dos cronômetros, alguns comemoram,
ao passo que outros se lamentam. O professor visita aluno por
aluno, dando orientações pontuais a cada um.
Agora é a vez do outro membro das duplas, que se impulsiona
na parede após o agudo do apito ressoar pela piscina. Passo os
olhos pelos nadadores, tentando identificar falhas ou vícios que
possa corrigir em mim.
Até que algo parece estranho.
Mandi segura meu antebraço, e, arfando, grita para Guilherme, à
nossa frente.
— Gui, alguma coisa aconteceu com a Dani! — Ela aponta com o
dedo para a colega.
Sigo a direção indicada e lá está Daniela, na raia mais à direita,
no meio do seu percurso de ida. Ela não avança mais, apenas bate
freneticamente os braços tentando manter o rosto para fora d’água.
Sem pensar, começo a correr em direção à colega, para pular na
raia mais próxima a ela e tentar ajudá-la. Entretanto, antes que o
faça, sou ultrapassada por Leonardo, que, em um segundo, já está
na piscina passando o braço pela cintura de Daniela. Parando de
bater os braços, ela os prende atrás do pescoço de seu salvador e
se deixa levar até a borda.
Solto o ar aliviada.
Neste momento, ofereço minha mão para auxiliar a garota a sair
da água, o que faz com dificuldade. Ainda com uma expressão de
muita dor em seu rosto e ofegante, ela tenta esticar a perna à sua
frente, mas não consegue. Guilherme faz alguns testes
movimentando seu pé e tenta acalmá-la, enquanto me afasto para
dar-lhes espaço.
— Deve ser uma câimbra — Mandi diz, chegando atrás de mim,
a apreensão transparecendo em sua voz.
Concordo com a cabeça.
Neste momento, todos pararam de nadar e assistem ao resgate,
preocupados com a colega. Então, Leonardo se ergue, com Daniela
outra vez em seus braços à lá lua de mel, e sai, anunciando que a
levará à enfermaria.
Sou obrigada a desviar o olhar.
Vê-lo se afastando com outra em seus braços faz algo arder
dentro de mim. E o pior é que nem tenho o direito de me sentir
assim. Ele não é meu de verdade.
Nunca foi.
Meus olhos se fecham com a claridade do meio-dia quando saio
do vestiário com os cabelos lavados e a mochila no ombro, sobre a
alça do meu vestido cinza de algodão. As luzes e cores dançam
soltas, até que tomam forma e revelam Leonardo logo à minha
frente, escrevendo algo no celular com um dos pés apoiado no muro
alaranjado.
Ele veste uma bermuda bege, com dois bolsos laterais, e uma
camisa cinza-clara de tecido frio e leve, a gola em “V” contornando
seu pescoço adornado pelas correntinhas. Seus cabelos,
escurecidos pela umidade, estão jogados para o lado e para trás;
algumas mechas finas ainda se rebelam, caindo sobre o rosto
corado pelo sol.
Leonardo levanta apenas os olhos e, ao me ver, ergue a cabeça.
Ele me estuda de cima a baixo e vejo-o engolir em seco. Paro de
andar em meio a um passo, e as pedrinhas pretas que contornam a
barra do vestido imitam o som de um chocalho ao baterem contra
minhas coxas. Desviando o olhar, eu me forço a seguir o caminho
para encher minha garrafinha no filtro, que, conforme as instruções
de Amanda, fica na lateral do prédio da academia.
Ignorando minha ignorada, ele se impulsiona com o pé e vem em
minha direção. Caminhamos lado a lado em silêncio, até que
pergunto:
— Daniela está bem?
— Sim — responde, a voz inexpressiva. — Ela distendeu o
músculo da panturrilha, mas nada muito grave. O médico da
enfermaria fez algumas massagens e colocou uma compressa.
Depois do resgate, quando vimos que tudo ficaria bem,
Guilherme retomou o simulado até que todos pudéssemos nadar
pelo menos uma vez.
— Que bom — digo, apenas, apressando os passos.
Não sei por que estou brava, mas estou. A imagem de Leonardo
com Daniela em seus braços insiste em me assombrar, fazendo
meu peito queimar e um gosto amargo preencher minha boca.
Minhas sobrancelhas apertam meus olhos e, se me conheço bem,
uma expressão carrancuda toma conta do meu rosto.
Qual é, Mel? Ela não tem culpa de ter tido uma câimbra. Nem
ele, por ajudar.
Em silêncio, viro à direita, entrando no beco entre o prédio da
academia e o dos vestiários, e consigo ver o filtro ao fim do corredor.
— Está com ciúmes? — Leonardo pergunta, de repente, com a
voz leve.
Eu o ignoro, apertando o passo, mas ele segura meu punho,
obrigando-me a parar de andar. Procuro seu rosto e encontro o
esboço de um sorriso ameaçando surgir em seus lábios. Desvio o
olhar, torcendo para que ele não veja a resposta nos meus olhos.
— Claro que não. — Claro que sim. — Eu não teria motivos para
isso. — Respiro fundo e minha voz sai quase como um sussurro. —
Nós não temos nada de verdade. — Pigarreio. — Inclusive, se você
quiser terminar nosso namoro de mentira, tudo bem. Sei que já
passamos muito do tempo combinado e imagino que você tenha
seus… sei lá… rolos.
Assim que as palavras deixam minha boca, eu me arrependo.
Até agora, não me deixei pensar muito sobre Leonardo com outras
mulheres, porque… ugh. Dói só de imaginar. Mas ouvi-lo confirmar
com as próprias palavras vai doer bem mais.
Ele solta meu punho e corre a mão pelos cabelos úmidos, sua
expressão séria enquanto estuda meu rosto.
— Eu não tenho — diz, fechando os olhos e balançando a
cabeça para os lados.
Quando os abre novamente, um lampejo decidido ilumina seu
rosto e seus olhos são um oceano de possibilidades. Leonardo dá
dois passos em minha direção e, sem que eu precise mandar, meus
pés caminham para trás, tentando manter nossa distância.
Meus pés sabem da verdade. Eles sabem como
verdadeiramente me sinto perto do homem à minha frente, ao
mesmo tempo que sabem o que acontecerá se me aproximar. Eles
tentam fugir por mim.
Mas não conseguem.
Meu coração acelera quando meu calcanhar e as palmas das
minhas mãos chegam à parede do prédio branco. Meus olhos
encontram os de Leonardo, que leva o antebraço à parede sobre
minha cabeça e se inclina para frente. O cheiro refrescante de seu
xampu me faz querer enterrar meu rosto em seus cabelos e só…
respirar.
Os dedos da sua mão livre pousam em meu ombro e, queimando
por onde passam, deslizam até minha mão, entrelaçando-se aos
meus. Uma bomba de adrenalina explode em mim quando ele se
aproxima ainda mais e, levando sua boca até meu ouvido, sussurra:
— Melissa… — O calor de sua respiração alcança meu pescoço,
e os pelos da minha nuca se arrepiam em resposta. — Você sabe
que… não tem mais ninguém.
O alívio me toma ao ouvir essas palavras.
Fecho os olhos e inclino meu rosto para o lado até sentir sua
pele quente contra a minha. Um grunhido escapa do fundo da sua
garganta quando sente meu toque, e o som faz meus joelhos
bambearem.
Ele gira o rosto sobre o meu, nunca desfazendo nosso contato,
até repousar sua testa sobre a minha. Ao meu redor, o clube fica
silencioso, apenas o som de nossas respirações ofegantes
preenchendo o vácuo.
Leonardo desentrelaça nossos dedos, e os meus, em reflexo,
vão até seu braço, segurando seus músculos firmes. Em seguida,
ele desfaz o contato de nossos rostos e, traçando com um dedo o
contorno do meu maxilar, guarda uma mecha ainda molhada do
meu cabelo atrás da orelha e descansa, por fim, a mão no meu
pescoço.
Abro os olhos, e o azul-escurecido dos seus suga toda minha
visão.
Não pisco.
Não desvio o olhar.
Não respiro.
A antecipação faz a adrenalina correr em minhas veias quando
seu olhar toma seu tempo em meus lábios, e sinto que vou
enlouquecer.
Por favor…
Ele se aproxima, parando apenas quando milímetros nos
separam. Seu corpo rijo se aperta contra o meu enquanto ele estuda
meu rosto, em busca de algum sinal de recusa ou incerteza. Sei que
não encontra nada. Seu olhar se ilumina, e ele inclina a cabeça,
aproximando-se em um movimento lento, quase imperceptível,
como que me dando a oportunidade de pará-lo, se assim quisesse.
Eu não quero.
Seus lábios roçam suavemente os meus, enviando uma onda de
choque por meu corpo, mas logo se afastam alguns milímetros,
como se Leonardo também a tivesse sentido. Nossas respirações
se fundem em um único arfar enquanto seu coração bate forte
contra mim.
Neste momento, ao perceber sua própria inquietação, minhas
inseguranças são ofuscadas pelo desejo. Eu quero mais. Preciso de
mais. Subo minha mão livre até seu rosto, seu calor parece certo
sob minha palma fria.
Nós nos olhamos, como que para nos certificarmos de que o
outro está ali mesmo, que este momento é real. A gravidade entre
nós se torna forte demais, e ele se inclina mais uma vez.
— … irmos logo para o… Ah! — exclama uma voz feminina
conhecida.
Abro os olhos abruptamente, assustada, e nós dois nos viramos
em direção à entrada do beco, onde Amanda parou entre um passo
e outro, as duas mãos cobrindo a boca.
Leonardo se afasta depressa, colocando as mãos nos bolsos da
bermuda, ao mesmo tempo que saio da parede e passo as mãos
pelo cabelo, em uma tentativa inútil de fingir que nada estava
acontecendo.
— É… — diz Mandi, desconsertada. — Vou… te esperar ali pra
gente ir pro restaurante, Mel.
Antes que eu possa responder, Leonardo diz com voz inalterada:
— Eu levo vocês.
Alguns minutos depois, estamos os três no carro. Léo dá a
partida e seguimos em um silêncio constrangedor. Na tentativa de
aliviar o clima, ligo o rádio e coloco minha playlist favorita, no modo
aleatório. Arrependo-me imediatamente quando o refrão de “Are You
Gonna Kiss Me or Not”, da dupla Thompson Square, toca nos alto-
falantes. Olho para Amanda, desesperada, e ela arregala os olhos
para mim de volta, apertando os lábios.
Em um segundo, inundamos o carro com nossas gargalhadas; e
mesmo Leonardo, que dirige sério ao meu lado, abre um leve
sorriso e balança a cabeça para os lados, em censura.
Passo para a próxima e “Dirty Little Secret”, de The All-American
Rejects, só serve para me lembrar da minha preferência por
músicas românticas — e, bem, é estranho ouvi-las agora, logo
depois de… O que foi aquilo, afinal? Um quase beijo?
Aliás, onde diabos eu estava com a cabeça?
Entre outras risadas, encontro uma playlist pública de músicas
para malhar, e um rap pesado faz os alto-falantes tremerem. Ótimo,
com isso eu consigo lidar.
Meu celular vibra em meu colo com uma notificação da amiga do
banco de trás.
Amanda: MEU DEUS! DESCULPA, MEL!
Melissa: Nada de mais, deve ser só uma gripe mesmo, mas hoje
acordei com um pouco de febre e o corpo ruim… Vou dar uma
descansada para ver se melhoro.
Aguardo alguns minutos, mas ele não responde mais. Será que
já está no trabalho?
Jéssica volta com uma bacia de água e gelo e uma toalha de
rosto branca e felpuda. Ela recolhe meu prato e o copo de suco —
ambos vazios, muito obrigada — e me ajuda a me deitar. Eu me
aconchego sob o cobertor e ela coloca o tecido molhado sobre
minha testa.
— Mel, tenho que ir agora. — Sua expressão é séria e
preocupada. — Seu celular está carregado? — Faço que sim com a
cabeça. — Ótimo. Eu vou ficar com o meu o tempo todo. Se você
piorar ou precisar de mais alguma coisa, é só me chamar, tá?
— Obrigada, Jeh. Eu vou dormir um pouco agora e acho que
estarei melhor quando acordar.
Espero.
— Vai estar, sim. — Minha colega sorri de leve e dá uma
apertadinha na minha mão antes de ir embora.
Respiro fundo. Não queria que ele fosse tão bom para mim, isso
torna as coisas tão mais difíceis.
Melissa: Não cabe. Fui mal de verdade, não foi um bom dia.
Leonardo: Sinto muito mesmo.
Desde esse dia, venho procurando formas de te contar sobre essa minha
“dupla identidade”, odiando o fato de escondê-la de você, mas… Bom,
nunca falei disso aqui para ninguém, nem sabia por onde começar.
Também não sabia, e ainda não sei, como você reagiria.
Ficaria feliz? Com raiva? Eu conseguiria corresponder às expectativas que
criou sobre mim?
Tentei procurar pelo momento certo, mas, antes que pudesse encontrá-lo
você se afastou. E eu entendo. Hoje sei das experiências que teve, dos
babacas que não souberam te dar valor nem cuidar de você, dos seus
medos e das suas inseguranças.
Mas não consigo aceitar essa sua ideia de que está fadada a estar
sempre sozinha.
Você merece muito mais do que isso. Merece alguém que te ampare, te
ajude e te dê carinho e segurança. Eu sei que você não depende de
ninguém e que é muito bem capaz de se cuidar sozinha, mas não precisa
ser assim.
Você não precisa carregar todo o peso do mundo nas costas. Não precisa
suportar o peso das suas responsabilidades nem dos seus sonhos
sozinha. Pode dividi-lo um pouco comigo e deixá-lo um pouco mais leve.
Eu jamais me colocaria entre você e seu sonho, até porque, em algum
momento, ele se tornou meu também. Mais do que ninguém, quero estar
ao seu lado enquanto você luta e aplaudi-la ao conquistar o que sempre
quis. Quero compartilhar a felicidade que chegará aos seus olhos e
comemorar com você, quem sabe na mesma praia a que fui?
Venho tentando só torcer de longe, mas me afastar parece mais errado a
cada dia, principalmente quando sei que eu poderia te ajudar neste
momento tão importante, como fez comigo quando precisei. Entretanto,
ainda assim, se for de sua vontade, continuarei distante.
Vou te esperar, pelo tempo que for necessário.
E, nem que seja só para que saiba que sempre terá para onde voltar,
estarei aqui.
Leonardo.
Tetê: Pelo visto meu crush nele vai permanecer platônico… T.T
Isabela: Como vamos saber o final? Ela vai aceitá-lo, né? Pelo
amor!
Alexandra: Tomara que ela vá correndo até ele e lhe lasque logo
um beijo.