DIP - Francisco de Vitoria de Indis
DIP - Francisco de Vitoria de Indis
DIP - Francisco de Vitoria de Indis
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PRIMEIRO COMENTÁRIO
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poderia, também por título oneroso, alienar licitamente seus bens. 19 – Os
bárbaros, nem por causa do pecado da infidelidade nem por causa de outros
pecados, estão impedidos de ser verdadeiros senhores tanto publica quanto
privadamente. 20 – Se para se ser capaz de domínio se requer o uso da razão.
21 – Se um menino pode ser senhor antes do uso da razão. 22 – Se o demente
pode ser senhor. 23 – Os bárbaros, sob pretexto de demência, não estão
impedidos de ser verdadeiros senhores, uma vez que não são dementes.
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q eqüivale a quaestio, “questão”; a está por articulus, “artigo”, divisões em partes da Suma
Teológica de São Tomás de Aquino.
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em boa fé e estão sob posse pacífica. Porque, como diz Aristóteles (Ética 3)5:
“se sempre alguém estiver deliberando, a questão se prolongará ao infinito”, e
assim não poderiam os príncipes nem seus conselheiros estar seguros e
convictos em sua consciência. E não se poderia dar nada por averiguado se se
devesse remontar desde os primórdios aos títulos de seu domínio [ditio].
Além disso, tendo sido nossos cristianíssimos príncipes, isto é, Fernando
e Isabel, os primeiros a ocupar aquelas regiões, e sendo o imperador Carlos V o
mais justo e religioso dos príncipes, não se pode acreditar que não tenham
averiguado e indagado exaustivamente tudo o que pudesse afetar a segurança de
seu estado [status] e de sua consciência, sobretudo em matéria de tal
importância. Por isso, pode parecer não somente supérfluo mas também
temerário discutir sobre tais coisas: isto pareceria procurar nó em junco 6 e
iniqüidade na casa do justo.
Para a solução desta objeção, deve-se considerar o que Aristóteles diz no
terceiro livro da Ética: assim como não existe investigação e deliberação sobre
coisas impossíveis ou necessárias, não há investigação moral sobre aquelas
coisas que, comprovada e notoriamente, são lícitas e honestas, nem,
inversamente, sobre aquelas coisas que comprovada e evidentemente são ilícitas
e desonestas. De fato, ninguém investigará de forma correta se se deve viver
com temperança, firmeza e justiça, ou agir com injustiça e torpeza, nem se se
deve cometer adultério ou perjúrio, ou respeitar seus pais, e demais questões
deste tipo. Certamente não seria essa investigação digna de um cristão; mas
quando nos propomos a fazer algo de que se pode, com toda razão, duvidar se é
correto ou vicioso, justo ou injusto, a tal respeito convém investigar e deliberar,
e não fazer algo temerariamente antes que se tenha descoberto e analisado o que
é lícito e o que não é. Tais são as coisas que, por um lado e por outro, têm a
aparência de bem e de mal, como são muitos tipos de transação, contrato e
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Trata-se do terceiro livro da Ética a Nicômaco.
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Expressão proverbial de origem latina, já registrada no comediógrafo Plauto (séc. III a. C.).
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negócio.
Em todos esses casos, alguém que pratica uma ação antes de deliberar e
estabelecer legitimamente que ela é lícita peca certamente, ainda que tal ação
seja lícita em si, e ele não pode ter como escusa a ignorância, já que esta, como
é evidente, não seria insuperável, uma vez que ele não faz o que está a seu
alcance para examinar o que é lícito e o que não é. Para que uma ação seja boa é
preciso, quando não há certeza, que se aja segundo a delimitação e a
determinação do sábio. De fato, esta é uma condição da boa ação (Ética 2);
sendo assim, se esse homem não consultou os sábios em um caso duvidoso, não
pode ser escusado. Mais ainda: mesmo supondo que tal ato fosse lícito em si,
depois de se duvidar com toda razão a seu respeito, está obrigado, seja quem
for, a consultar e a agir segundo o arbítrio dos sábios, ainda que porventura eles
estejam errados.
Assim, se alguém, sem o conselho dos doutos, estabelecesse um contrato
a respeito do qual pairam dúvidas sobre se é lícito ou não, sem dúvida erraria,
mesmo se, de resto, o contrato fosse lícito e ele próprio assim o julgasse, não a
partir da autoridade do sábio, mas a partir de sua própria inclinação e parecer.
Pela mesma razão, se alguém, num caso duvidoso, consultou os sábios e eles
determinaram que aquilo não era lícito, e tal pessoa, seguindo seu próprio juízo,
o fizesse, pecaria, mesmo se, de resto, aquilo fosse lícito em si.
Se alguém, por exemplo, em dúvida se tal mulher seria ou não sua esposa
legítima, consultasse se estava obrigado a cumprir suas obrigações conjugais, ou
se lhe seria lícito até mesmo exigi-lo, e os doutores respondessem que de
nenhum modo seria lícito, mas ele próprio, por afeição à esposa ou atendendo a
seu próprio desejo, não acreditasse neles, e julgasse que é lícito a si, certamente
pecaria tendo relações com a esposa, por mais que em si fosse realmente lícito,
pois que tal pessoa age contra a consciência que deveria ter.
Tem-se, de fato, o dever de acreditar nas coisas que dizem respeito à
salvação e que a Igreja estabeleceu como objeto de doutrina, sendo que em caso
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duvidoso seu arbítrio é lei. Assim como no foro contencioso, o juiz é obrigado a
julgar segundo as alegações e as provas, no foro da consciência, todos têm o
dever de julgar não de acordo com sua própria conveniência, mas de acordo
com argumentos racionais assim como pela autoridade dos sábios; do contrário,
seu juízo é temerário e ele se expõe ao perigo de errar, o que já é, em si, um
erro. Com efeito, assim como no Antigo Testamento (Deuterônimo. 17, 8-10 7)
se prescrevia: Se houver algo duvidoso entre sangue e sangue, causa e causa,
lepra e não lepra e vires variar o juízo dentro de tuas portas, levanta-te e sobe
até o lugar que o Senhor teu Deus escolher, vindo aos sacerdotes da raça de
Levi e ao juiz que ali estiver naquele momento; rogarás aos que julgarão um
juízo verdadeiro e farás tudo o que disserem os que presidem àquele lugar,
seguirás sua sentença sem te desviares nem para a direita, nem para a
esquerda.
Assim, digo eu, nas coisas duvidosas, todo mundo tem o dever de
consultar aos que a Igreja constituiu para tal fim, como os prelados, os
pregadores, os confessores e os peritos na lei divina e humana, pois que na
Igreja uns são os olhos, outros são os pés, etc. (1 aos Coríntios 12, 20) e Éfesos
4, 11: E ele próprio deu uns como Apóstolos, outros evangelistas, outros, por
sua vez, como pastores e doutores. E: Sobre a cátedra de Moisés se sentaram
escribas e fariseus. Tudo o que disserem a vós, guardai e realizai (Mateus, 23,
38). O mesmo preceitua Aristóteles no primeiro livro da Ética, a partir de
Hesíodo:
“Mas quem não se conhece e a ninguém presta ouvidos a fim de perceber
o que é o bem, é demente e inútil.”
Assim, para ter uma vida e uma consciência tranqüilas, não basta que
alguém julgue estar agindo bem, mas é necessário também que, nas coisas
duvidosas, se apoie na autoridade daqueles a quem isso compete. Com efeito,
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Na verdade, a indicação deveria ser 17, 8-11; o texto latino que seguimos, porém, traz 10 ao
invés de 11.
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A indicação correta deveria ser 23, 2-3.
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aos negociantes, não basta evitar fazer qualquer coisa que eles próprios julguem
ilícito, se, por outro lado, estabelecem, sem o conselho dos peritos, contratos
ilícitos.
Assim, não julgo verdadeiro o que o cardeal Caietano diz: se algo é
realmente lícito em si mesmo, caso surja alguma dúvida, por mais que os
pregadores ou os confessores, que têm autoridade de julgamento nesse campo,
digam que aquilo é ilícito, ou que um pecado venial é mortal, quem, por afeição
pela coisa, não acredita neles, mas forma para si a consciência de que aquilo
não é pecado mortal, não peca. Dá o exemplo de mulher que usa maquiagem e
outros ornamentos supérfluos, o que realmente não é pecado mortal; supondo
que pregadores e confessores dissessem que é mortal, se a mulher, por desejo
de se enfeitar, não lhes dá crédito, mas julga que é lícito ou que não é pecado
mortal, não peca mortalmente enfeitando-se assim. Isto, digo eu, é perigoso. De
fato, a mulher tem o dever de acreditar nos peritos em coisas que são
indispensáveis à sua salvação e se expõe ao perigo agindo contra aquilo que,
segundo o parecer dos sábios, é pecado mortal.
Por outro lado, em matéria duvidosa, se alguém deliberou com os sábios e
recebeu como resposta que aquilo é lícito, uma tal pessoa fica com a
consciência tranqüila até que, talvez, de novo seja aconselhado por tal
autoridade ou surjam razões do mesmo tipo que o levem a ter motivo justo para
duvidar ou mesmo acreditar no contrário. Isto é mais do que conhecido, uma
vez que ele faz o que está a seu alcance e, assim, sua ignorância é insuperável.
Disto, portanto, resultam as seguintes proposições:
1. PRIMEIRA: Em matéria duvidosa, todos têm o dever de consultar
aqueles a quem compete esclarecê-la, do contrário não está com a consciência
tranqüila, quer haja dúvida sobre uma coisa em si lícita, quer sobre uma coisa
em si ilícita.
2. SEGUNDA: Se, depois da consulta sobre a coisa duvidosa, foi
definido pelos sábios que aquilo era ilícito, todos estão obrigados a seguir seu
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parecer e quem faz o contrário não tem escusa, mesmo se, de resto, aquilo
fosse lícito.
3. TERCEIRA: Se, pelo contrário, depois da consulta sobre a coisa
duvidosa, concluem os sábios que aquilo era lícito, quem segue seu parecer
está tranqüilo, mesmo se aquilo, de resto, aquilo fosse ilícito.
Assim, retornando ao tema proposto, o negócio [negotium] dos bárbaros
não é por si tão evidentemente injusto que não se possa discutir sobre sua
justiça, nem, por outro lado, tão evidentemente justo que não se possa duvidar
de sua injustiça, mas aparenta ter algo de uma coisa e de outra. Em primeiro
lugar, quando vemos que todo aquele negócio é administrado por homens
doutos e bons, é de se acreditar que tudo é gerido com retidão e justiça. Depois,
quando ouvimos falar na matança e nas espoliações de tantas pessoas, de resto,
inofensivas, tantos senhores destituídos de suas possessões e privados de suas
riquezas, é com razão que se pode ter dúvidas sobre a justiça ou injustiça de
tais feitos. Assim, não só esta nossa discussão não parece de todo supérflua,
como também com isso fica clara a resposta à objeção.
Além disso, supondo que não houvesse nenhuma dúvida em toda esta
questão, não é nenhuma novidade estabelecer discussões teológicas a respeito
de matéria certa. De fato, também discutimos a respeito da Encarnação do
Senhor e outros artigos de fé, pois nem sempre as discussões teológicas são do
gênero deliberativo, mas, na maioria, do gênero demonstrativo, isto é,
encetadas não para investigar, mas para instruir.
E se alguém se apresentasse dizendo: “Ainda que tenha havido, por
vezes, algumas dúvidas acerca deste assunto, elas foram, porém, debatidas e
dirimidas pelos sábios e, assim, tudo já se administra de acordo com seu
conselho e não há necessidade de um novo exame.”
Responde-se, em primeiro lugar: Se assim é, bendito seja Deus!, nossa
discussão a nada obsta nem eu desejo levantar novas polêmicas.
Em segundo lugar, digo que tal elucidação não compete aos
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jurisconsultos ou, pelo menos, não somente a eles. Uma vez que aqueles
bárbaros, como direi imediatamente, não estavam submetidos por direito
humano [iure humano], suas coisas não devem ser examinadas pelas leis
humanas, mas pelas divinas, e portanto os juristas não estão suficientemente
capacitados para poderem, por si próprios, elucidar questões deste gênero. Na
verdade, nem mesmo estou certo de que algum dia tenham sido chamados para
a discussão e o esclarecimento desta questão juristas merecedores de se ouvir
em matéria tão importante. Tratando-se do foro da consciência, isto compete aos
sacerdotes elucidar, isto é, à Igreja. Assim, em Deuterônimo 17, 18, prescreve-
se ao rei que receba um exemplar da lei das mãos do sacerdote.
Em terceiro lugar, ainda que o essencial da matéria seja suficientemente
examinado e acertado, acaso não podem, em negócio de tamanha importância,
ocorrer outras dúvidas particulares que se poderiam com toda razão discutir?
Assim, julgaria estar prestes a realizar algo nem ocioso nem inútil, mas antes de
grande valia, se pudesse tratar desta questão à altura de sua importância.
4. Retornando, portanto, à questão, para que procedamos com ordem,
indaga-se primeiramente: Seriam os bárbaros verdadeiros senhores antes da
chegada dos espanhóis tanto privada quanto publicamente?; isto é, seriam eles
verdadeiros senhores de bens privados e possessões e haveria entre eles alguns
verdadeiros príncipes e senhores dos outros?
Poderia parecer que não, porque os servos não têm poder sobre as coisas.
“Pois o servo nada pode ter de seu” (Institut. per quas person. nobil. acquirere
liceat e, igualmente, Vobis; e ff. de acquirend. haered. l. Placet). Daqui se
conclui que tudo o que o servo adquire, adquire para seu senhor (Institut., de his
qui sunt sui vel alieni iuris, par. Nam apud omnes). Ora, esses bárbaros são
servos, logo... Prova-se a proposição menor porque, como diz Aristóteles com
elegância e acuidade, alguns são servos por natureza e a esses, evidentemente, é
melhor servir que dar ordens. São, por seu lado, tais que sua razão não basta
para reger nem sequer a eles mesmos, mas somente para receber ordens; sua
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força [vis] reside mais no corpo que no espírito. Ora, se realmente há quem seja
assim, acima de todos o seriam esses bárbaros, que de fato parecem pouco
diferir dos animais irracionais e são de todo incapazes de governar. E, sem
dúvida, é melhor que eles sejam governados por outros do que se governem a si
próprios. Aristóteles também diz que é naturalmente justo que pessoas assim
sirvam; portanto, pessoas assim não podem ser senhores.
Não obsta que antes da chegada dos espanhóis não tivessem outros
senhores, pois que não é descabido que haja escravo sem senhor, como observa
a glosa sobre a lei Si usum fructum, ff. de liberali causa. Mais ainda: tem-se
expressamente, nessa mesma lei e na lei Quod servus, de servo stipul., o caso de
um escravo que foi abandonado por seu senhor, do qual ninguém se apoderou e
de que qualquer um pode-se apoderar. Portanto, se os bárbaros eram servos,
deles podiam os espanhóis se apoderar.
5. Em sentido contrário, tem-se o fato de que eles se encontravam na
posse pacífica dos bens [rerum], tanto privada quanto publicamente. Portanto,
se não há prova em contrário, devem ser considerados inteiramente como
senhores e, na causa mencionada, não passíveis de ser destituídos da posse.
Para a elucidação, não desejo trazer à baila as numerosas coisas que
referem os doutores a respeito da definição e distinção do domínio [dominii],
que por mim mesmo também foram largamente aduzidas a propósito da
restituição ( 4 das Sentenças, distinção 15, e na Secunda Secundae q.62). Deixo-
as de lado, digo eu, para não omitir, ao abrir espaço a elas, coisas mais
necessárias. Por isso, preterindo-as, deve-se notar que se os bárbaros não tinham
domínio, não parece que se possa alegar outra razão que não por serem
pecadores, infiéis, ou por serem dementes [amentes]ou destituídos de juízo
[insensati].
Pois bem: houve os que defendiam que um título de domínio é a graça
[gratia] e, conseqüentemente, que os pecadores, pelo menos os que estivessem
em pecado mortal, não teriam nenhum domínio sobre coisa alguma. Esse foi o
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erro dos Pobres de Lião ou Valdenses e, posteriormente, de John Wicleff. Um
dos erros deste último, condenado no Concílio de Constança, foi: “Não existe
nenhum domínio civil enquanto se está em pecado mortal”. Do mesmo parecer
foi Armagh, no décimo livro De quaestionibus Armenorum c. 4 e no diálogo
Defensorium pacis. Contra ele escreveu Walden ( to. 1 De antiquitat. 1.3 c. 82 e
83 e to. 2 c. 3). Prova Armagh que tal domínio é reprovado por Deus (Oséias
8, 4): Eles próprios reinaram, e não por mim; arrogaram-se em príncipes, e
não os reconheci. E se acrescenta a causa: Fizeram da prata e do ouro seus
ídolos, para perecer, etc. Por isso, diz ele, carecem de justo domínio diante de
Deus.
É certo, porém, que todo domínio está sob autoridade divina, já que Deus,
Ele próprio, é o criador de tudo, e só pode ter domínio aquele a quem Ele
próprio o concedeu. Ora, não é coerente que o conceda aos desobedientes e aos
transgressores de seus preceitos. da mesma forma que também os príncipes
humanos não dão seus bens, como quintas ou castelos, a rebeldes e, se deram,
tiram-nos. Ora, através das coisas humanas devemos julgar as divinas (Romanos
1, 20). Portanto, Deus não concede domínio aos desobedientes. Assim, como
prova disto, Deus por vezes destitui tais homens do principado, como Saul (1.
Reis 15 e 16), Nabucodonosor e Baltazar (Dan. 4 e 5). Igualmente Gênesis 1,
26: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança para que presida aos
peixes do mar, etc. É evidente, portanto, que o domínio se funda na imagem de
Deus. Ora, ela não existe num pecador. Portanto, ele não é senhor.
Além disso, tal pessoa comete crime de lesa-majestade. Portanto, merece
perder o domínio.
Agostinho, por sua vez, diz que o pecador não é digno do pão de que se
alimenta. Portanto, muito menos será digno de domínio.
Por outro lado, o Senhor dera a nossos primeiros pais o domínio do
paraíso e, em razão do pecado, privou-os dele (Gênesis 1). Portanto...
É bem verdade que tanto Wicleff quanto Armagh não fazem distinção e,
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à primeira vista, parecem falar do domínio de soberania [dominium
superioritatis], que é o dos príncipes. Mas, como os argumentos procedem
igualmente a respeito de todo tipo de domínio, parecem por isso estar pensando
em todo tipo de domínio de maneira geral. Assim os compreende Conrado (De
contrac. 1. 1 q. 7), e bastante claramente o diz Armagh. Quem, portanto,
seguisse este parecer, poderia dizer que os bárbaros não tinham domínio, porque
sempre estavam em pecado mortal.
6. Mas, contra tal parecer, se estabelece esta proposição: O pecado mortal
não impede o domínio civil e o verdadeiro domínio.
Ainda que tal proposição tenha sido determinada no Concílio de
Constança, argüi, porém, Almain (4 d. 15 q. 2), seguindo d’ Ailly, que então
quem se encontra em necessidade extrema de comer pão ficaria perplexo, uma
vez que, de um lado, vê-se obrigado a comer o pão e, de outro, se não tem
domínio, toma o que é de outro. Portanto, essa pessoa não pode escapar ao
pecado mortal. Mas este argumento pouco procede, primeiramente porque nem
Armagh nem Wicleff parecem falar a respeito do domínio natural, mas civil; em
segundo lugar, nega-se essa conseqüência e se diria que em caso de necessidade
pode-se tomar o que é de outro. Em terceiro lugar, a pessoa não ficaria perplexa,
porque pode se penitenciar e, portanto, deve-se argumentar de maneira diversa.
Primeiramente, porque se o pecador não tem o domínio civil, a respeito
do qual parecem falar, portanto nem mesmo o natural; mas o conseqüente é
falso, logo também o antecedente. Provo a conseqüência. Porque também o
domínio natural provém de um dom de Deus, assim como o civil, e até mais,
porque o civil parece ser de direito humano. Portanto, se, por causa da ofensa a
Deus, o homem perdesse o domínio civil, pela mesma razão perderia também o
domínio natural. Ora, a falsidade do conseqüente se prova, porque não se perde
o domínio sobre seus próprios atos e sobre seus próprios membros, uma vez que
o pecador tem o direito de defender a própria vida.
Em segundo lugar, a Sagrada Escritura freqüentemente nomeia os reis que
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eram maus e pecadores, como fica evidente a respeito de Salomão, Achab e
muitos outros. Ora, não é rei quem não é senhor. Portanto...
Em terceiro lugar, devolvo o argumento concebido em prol da parte
contrária. O domínio se funda na imagem de Deus. Ora, o homem é a imagem
de Deus por natureza, isto é, pelas potências racionais [potentias rationales].
Portanto, o domínio não se perde pelo pecado mortal. A menor se prova a partir
de Agostinho (livro 9 do De Trinitate) e de outros doutores.
Em quarto lugar, Davi chamava Saul seu senhor e rei no tempo em que o
perseguia (1 Reis 16, e em outras passagens). Mais: o próprio Davi por vezes
pecou e nem por isso perdeu o reino.
Em quinto lugar, Gênesis 49, 10: Não se tirará de Judá o cetro nem, de
seus pés, o chefe,9 até que venha quem deve ser enviado, etc. No entanto,
muitos foram os maus reis. Portanto...
Em sexto lugar, o poder espiritual não se perde pelo pecado mortal;
portanto, nem o civil, que parece fundar-se muito menos na graça do que o
espiritual. Ora, o antecedente é evidente, pois que o mau presbítero consagra a
Eucaristia e o mau bispo sacerdotes, como é certo, embora Wicleff o negue, mas
o conceda Armagh.
Por último, de modo algum é verossímil que, tendo sido prescrito que se
obedecesse aos príncipes (Aos Romanos 13, 5 e 1 Pedro 2, 18): Obedecei a
vossos superiores, não somente aos bons como também aos maus, e que se não
tomasse o alheio, tenha querido Deus que fosse assim incerto quem eram os
verdadeiros príncipes e senhores.
Em suma, esta é uma heresia evidente e, assim como Deus faz nascer seu
sol sobre bons e maus e chove sobre justos e injustos, deu os bens temporais aos
bons e aos maus. Não se discutiu isto por haver alguma dúvida a respeito, mas
para que, a partir de um único crime, isto é, de uma heresia tão insensata,
A vulgata traz não “chefe” (dux), mas “o báculo do chefe” (baculus ducis); há outras
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divergências entre texto latino da edição de Vitoria por nós seguida e o latim da Bíblia.
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conheçamos todos os hereges.
7. Mas resta uma dúvida: se ao menos por causa da infidelidade se perde
o domínio. E assim parece, já que os heréticos não têm domínio. Portanto nem
os outros infiéis, já que não parecem estar em melhor condição. Ora, o
antecedente está claro no capítulo Cum secundum, de haereticis 1.6, onde se
prevê que os bens dos heréticos sejam por direito próprio [ipso iure]
confiscados.
Respondo através de proposições.
PRIMEIRA: A infidelidade não é impedimento para que alguém seja
verdadeiro senhor.
Esta é a conclusão de São Tomás (2.2 q. 10 a. 12). Prova-se,
primeiramente, pelo fato de a Escritura chamar reis alguns infiéis como
Senacherib, o Faraó e muitos outros reis. Em segundo lugar, por ser pecado
mais grave o ódio a Deus que a infidelidade e, entretanto, o ódio não impedir
ninguém de ser verdadeiro senhor; logo, tampouco a infidelidade. Da mesma
forma, Paulo (Aos Romanos 13, 5) e Pedro (1a. 2, 18) mandam prestar
obediência aos príncipes, que então eram todos infiéis, e que os servos
obedeçam aos senhores. Por sua vez, Tobias mandava devolver, como objeto de
furto, um cabrito tomado dos gentios (Tob. 2, 20-21), o que não aconteceria se
os gentios não tivessem domínio. Além disso, José fez toda a terra do Egito
tributária do faraó, que era infiel (Gênesis 47, 20-21).
Pode-se considerar também a razão aduzida por São Tomás: a fé não
tolhe nem o direito natural nem o humano. Ora, os domínios são de direito
natural ou humano. Portanto, não se tolhem domínios por falta de fé. Esse erro é
tão manifesto quanto o precedente.
Daqui resulta claro que nem dos sarracenos, nem dos judeus ou dos
outros infiéis é lícito tomar os bens que possuem pelo simples fato de serem
infiéis. Trata-se de furto ou roubo não menos que com cristãos.
8. Mas como há uma dificuldade especial quanto à heresia, seja esta a
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SEGUNDA PROPOSIÇÃO: No que toca ao direito divino, o herético não
perde o domínio de seus bens.
Isto é reconhecido por todos. Uma vez que a perda dos bens é um castigo
e não existe castigo na lei divina para essa condição [pro isto statu], é certo, no
que toca o direito divino, que não se perdem os bens por causa de uma heresia.
Além disso, esta proposição resulta claramente da primeira. De fato, se por
causa de outra infidelidade não se perde o domínio, portanto nem mesmo por
causa de uma heresia, pois que, no direito divino, nada de especial se previu,
quanto a isto, sobre a heresia.
9. Mas e por direito humano? Conrado, de fato, (De contractibus l.1 q.7
conclus. 2 e 3), parece sustentar que o herético, ipso facto, perde o domínio
sobre os seus bens, de forma que, no foro da consciência, priva-se de domínio.
A partir disso infere que ele não pode nem aliená-los, nem a alienação se
mantém, se for realizada. Prova-se a partir do capítulo Cum secundum leges, em
que o Papa parte da premissa de que, tão somente por causa de alguns crimes,
segundo as leis, os autores dos delitos perdem o domínio sobre seus bens; então
ele determina que seja também assim no crime de heresia. O mesmo parece
sustentar João Andréias no capítulo mencionado Cum secundum e se pode,
aparentemente, deduzir-se do capítulo 1, 4 do De haeresi, onde se interdiz aos
heréticos a venda, doação e todo e qualquer contrato de seus bens.
Assim obrigam as leis no foro da consciência, como ensina São Tomás
(1.2 q.96 a.4).
10. Mas, para com vistas ao esclarecimento, seja esta a TERCEIRA
PROPOSIÇÃO: O herético, desde o dia em que cometeu o crime incorre na
pena da confiscação dos bens.
Assim o sustentam em comum os doutores e é determinação expressa no
Directorium Inquisitorum (1.33 tít. 9) e na Summa Baptistana,10 no verbete
Absolut. 17, e parece definido naquele capítulo Cum secundum leges e no já
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mencionado 1. 4 c. De haereticis.
11. QUARTA PROPOSIÇÃO: Ainda assim, mesmo que não haja certeza
a respeito do crime antes da condenação, não é lícito ao fisco se apoderar dos
bens dos heréticos.
Este é o parecer de todos e é a determinação do capítulo citado Cum
secundum. Na verdade, seria contrário ao direito divino e natural que se
aplicasse o castigo antes da condenação de alguém.
12. Segue da terceira conclusão que, ainda que a condenação se tenha
dado após a morte, o confisco retroage ao tempo em que se cometeu o crime,
não importando em poder de quem seus bens tenham caído.
Essa também é a ilação de todos e, particularmente, do Panormitano, no
capítulo fid, de haereticis.
13. Em segundo lugar, segue-se que as vendas, doações e todo tipo de
alienação de bens perdem a validade a partir do dia em que se cometeu o crime.
Assim, proferida a condenação, todas elas são rescindidas pelo fisco e os bens
são tomados pelo próprio fisco, até mesmo sem a restituição aos compradores
do valor pago por eles. Esse também é o parecer de todos e, nomeadamente, do
Panormitano na passagem acima mencionada e como fica claro a partir do
capítulo 1. 4 De haereticis.
14. QUINTA PROPOSIÇÃO: Ainda assim, o herético é senhor no foro
da consciência antes de ser condenado.
Essa proposição parece contrária a Conrado, ao Diretório e a João
Andréias; no entanto, é a proposição de Silvestre no verbete Haeresis 1 § 8.
Sustenta-a e discute-a longamente Adriano (Quodl. 6 q.2), e o mesmo parece
dizer Caietano na Summa, no verbete poena.
Prova-se a proposição, primeiramente, pelo fato de que isto mesmo, ser
privado no foro da consciência, é um castigo. Portanto, de nenhum modo deve-
se infligi-lo antes da condenação. Nem sequer sei ao certo se o direito humano
poderia fazê-lo. Ademais, pode-se prová-lo claramente, pois, como fica evidente
15
naquele capítulo Cum secundum leges, do mesmo modo se confiscam os bens,
ipso facto, por causa de núpcias incestuosas. Da mesma forma, se uma mulher
livre que foi raptada se casar com seu raptor; mais: se alguém não pagar os
impostos costumeiros sobre mercadorias importadas, ipso facto seus bens são
confiscados. O mesmo acontece com quem exporta mercadorias ilícitas, como
armas e ferro, para os sarracenos: tudo isso fica claro no mencionado capítulo
Cum secundum leges e no capítulo De incestis nuptiis 1. cum ancillis, cap. De
raptu virginis, 1. una e De iudaeis cap. Ita quorundam e ff. De vectigal. 1. fin.
Mais: o Papa, no mencionado capítulo Cum secundum, diz expressamente que,
assim como há confisco naqueles casos, ele deseja que o mesmo aconteça por
causa de heresia. Ora, ninguém nega que o incestuoso, o raptor, quem
contrabandeia armas para os sarracenos e quem não paga os impostos
permaneçam verdadeiros donos de seus bens no foro da consciência. Sendo
assim, por que não também o herético? E o próprio Conrado também se
expressa da mesma forma a respeito daqueles casos e do herético, e mais grave
seria obrigar um homem já corrigido de sua heresia a entregar os bens ao fisco.
15. Segue-se, como corolário, que o herético pode licitamente viver de
seus bens.
16. Em segundo lugar, segue-se, ademais, que por título gratuito o
herético pode alienar seus bens; por exemplo, através de doação.
17. Segue-se, em terceiro lugar, que por título oneroso, por exemplo
vendendo ou dando em dote, se o crime pode ir a julgamento, não é lícito
aliená-los. É evidente, uma vez que assim se engana o comprador e ele é
colocado em risco de perder o bem e seu valor no caso de o vendedor ser
condenado.
16
18. Por último, segue-se que, se realmente não há o perigo do confisco,
pode também licitamente alienar por título oneroso [titulo oneroso], como, por
exemplo, no caso de um herético na Alemanha, de quem um católico poderia
licitamente comprar. Grave, de fato, seria se um católico não pudesse
licitamente, em alguma cidade dos luteranos, comprar de um herético um
terreno ou a ele vendê-lo, o que se daria se o herético não fosse, absolutamente,
senhor no foro da consciência.
19. De tudo isso se segue a CONCLUSÃO: Os bárbaros, nem por causa
do pecado de infidelidade, nem por causa de outros pecados mortais, estão
impedidos de ser verdadeiros senhores, tanto pública quanto privadamente,
nem, a esse título, podem os cristão apoderar-se de seus bens e de sua terra,
como profusa e elegantemente deduz Caietano (2.2 q. 66 a. 8).
Mas resta ainda a dúvida sobre se eles não seriam senhores pelo fato de
serem destituídos de juízo ou dementes.
20. Acerca disto, deve-se antes determinar se para que alguém seja capaz
de domínio se requer o uso da razão.
Conrado, no livro 1 q. 6, chega à conclusão de que o domínio convém a
uma criatura irracional tanto sensível quanto insensível. Prova-se com o fato de
que o domínio nada mais é que o direito de usar uma coisa em benefício
próprio. Ora, os brutos têm o direito [ius] sobre ervas e plantas, Gênesis 1, 29-
30: Eis que dei a vós toda erva que produz semente sobre a terra e todas as
árvores que têm em si próprias a semente de sua espécie, para que sirvam de
alimento a vós e a todos os animais da terra. Além disso, os astros têm o
direito de iluminar, Gênesis 1, 17-18: Colocou-os no firmamento do céu para
que brilhassem e presidissem ao dia e à noite. E o leão tem o domínio sobre os
outros animais que andam, daí ser chamado rei dos animais. E a águia é senhora
entre as aves, daí o Salmo 103, 17: A casa da águia é o guia deles. Do mesmo
parecer é Silvestre, no verbete dominium, no início, quando diz que os
elementos se dominam uns aos outros.
17
Mas respondo a isso por proposições:
PRIMEIRA: As criaturas irracionais não podem ter domínio. Isso é
evidente, já que o domínio é um direito, como admite também Conrado; mas as
criaturas irracionais não podem ter direito e, portanto, nem domínio. Prova-se a
menor: porque não podem sofrer injúria; logo, não têm direito. Prova-se a
assunção: porque se alguém impedisse o lobo ou o leão de tocar a presa ou o
boi ao pasto não lhes faria injúria, assim como quem fecha uma janela para que
o sol não ilumine, não faz injúria ao sol.
Pode-se confirmar: se os brutos têm domínio, logo, quem tirasse a relva
do cervo, cometeria um furto, já que tomaria o alheio contra a vontade de seu
senhor. Da mesma forma, as feras não têm domínio de si [dominium sui]; muito
menos, portanto, de coisas alheias. Prova-se a assunção: porque é lícito matá-
las impunemente ainda que por simples diversão; daí também o Filósofo, 11 na
Política 1, dizer que a caça das feras é justa e natural.
Além disso, as próprias feras e todos os irracionais estão sob o poder do
homem, muito mais que os servos. Portanto, se os servos não podem ter algo
seu, muito menos os seres irracionais [irrationalia].
A proposição é confirmada pela autoridade de São Tomás (1.2 q.1 a.1 e 2
e q. 6 a.2 e 1 Contra os gentios cap. 100): só a criatura racional tem domínio
sobre seu ato, já que, como ele próprio também diz em 1 q. 82 a. 1 ad 3,
“alguém é senhor de seus atos pelo fato de poder escolher isto ou aquilo”. Por
conseqüência, como também diz na mesma passagem, nem nós mesmos somos
donos dos desejos acerca do fim último. Se, portanto, os brutos não têm
domínio sobre seus atos, nem, então, sobre outras coisas.
E ainda que pareça estar-se discutindo sobre palavras, por certo é falar de
forma muito imprópria e incomum atribuir domínio aos irracionais. De fato, não
dizemos que alguém é dono senão daquilo que se encontra sob seu controle [in
sua facultate]. Afinal, falamos assim: Não está sob meu controle, não está em
meu poder [in mea potestate], uma vez que não sou senhor. Ora, os brutos, não
Aristóteles.
11
18
se movendo a si próprios, mas, antes, sendo movidos, como diz São Tomás (1,
2 na passagem acima), por essa razão precisa não têm domínio.
Nem conta o que diz Silvestre: o domínio por vezes não corresponde a
um direito, mas apenas a uma potência. Desse modo, o fogo tem domínio sobre
a água. Se isto basta para o domínio, então o bandido tem domínio para matar
uma pessoa, já que tem a potência para isto: e o ladrão tem potência para se
apossar de dinheiro.
Quanto a se dizer que os astros dominam e o leão é rei, é certo que isto se
diz metaforicamente e por figura.
21. Mas pode parecer duvidoso se a criança, antes do uso da razão,
possa ser dona, já que parece em nada diferir dos irracionais. E o Apóstolo (aos
Gálatas 4, 1): Por todo o tempo em que um herdeiro é meninote, em nada difere
de um servo. Mas o servo não é senhor; logo...
Acerca disto eis a SEGUNDA PROPOSIÇÃO: As crianças, antes do uso
da razão, podem ser donas.
Isto é óbvio, já que podem sofrer uma injúria [iniuria], logo têm direito
sobre as coisas. Portanto, também o domínio, já que ele nada mais é do que um
direito. Além disso, os bens do pupilo têm dono, o qual não é o tutor; logo, este
é o próprio pupilo. Além disso, as crianças são herdeiras. Ora, um herdeiro é
quem sucede no direito do defunto e é dono de uma herança ( lei Cum haeres ff.
de diver. et tempora praescrip., et Institut. de haered. qualit. et differentia, §
fin.). Da mesma forma, dissemos que o fundamento do domínio é a imagem de
Deus, que também está nas crianças. Também pode-se fazer referência ao
Apóstolo, naquela mesma passagem (Gál. 4, 1): Por todo o tempo em que um
herdeiro é meninote, em nada difere de um servo, ainda que seja dono de tudo.
enfim, a criança difere ainda do ser irracional porque, ao contrário do bruto, não
existe para um outro [propter alium], mas para si [propter se].
22. Mas e quanto aos dementes? Digo que os perpetuamente dementes
não têm, nem há esperança de que venham a ter, o uso da razão. Seja a
19
TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Parece que também podem ser donos, porque
podem sofrer injúria. Portanto, possuem direitos. Mas deixo aos jurisconsultos
dizer se podem ter domínio civil.
23. Seja o que for que se pense disto, eis a QUARTA PROPOSIÇÃO:
Nem demência estão impedidos os bárbaros de ser verdadeiros donos.
Prova-se. Porque, na realidade, não são dementes, mas têm, a seu modo,
o uso da razão. Isso é óbvio, já que têm alguma ordem [aliquem ordinem] em
suas coisas, pois têm cidades, que dependem de ordem, e têm matrimônios
regulamentados, magistrados, senhores, leis, ofícios, comércio, que requerem,
todas estas coisas, o uso da razão; têm, além disso, uma espécie de religião, e
não erram em coisas que para outros são evidentes, o que é indício de uso da
razão. Da mesma forma, Deus e a natureza não faltam nas coisas necessárias à
grande parte da espécie. Ora, o mais importante no homem é a razão, e
inutilmente se tem uma potência que não se concretiza em ato [quae non
reducitur ad actum]. Além disso, não terá sido por culpa sua que os bárbaros
ficaram durante tantos milhares de anos fora do estado de salvação [extra
statum salutis], uma vez que nasceram em pecado e não tinham o batismo nem
o uso da razão para buscar o necessário à salvação. Por isso, quanto a
parecerem tão insensatos e obtusos, julgo que isso advém, principalmente, de
sua educação má e bárbara, uma vez que até mesmo entre nós vemos muitos
dos rústicos pouco diferentes dos animais brutos.
Resta, portanto, de tudo o que se disse, que sem dúvida os bárbaros eram,
tanto pública como privadamente, tão verdadeiros senhores quanto os cristãos.
Assim, não se pode espoliar de seus bens seus príncipes ou simples particulares
sob o pretexto de que não seriam verdadeiros donos. E seria grave negar a eles,
que jamais cometeram qualquer injúria, o que concedemos a sarracenos e
judeus, inimigos perpétuos da religião cristã, que não negamos ter verdadeiro
domínio sobre seus bens, se, por outro lado, não ocuparam terras dos cristãos.
Resta responder aos argumentos em contrário: argüía-se que esses
20
homens parecem servos por natureza, já que têm pouca capacidade racional
para reger até mesmo a si próprios. A isto respondo que por certo não era do
entendimento de Aristóteles que tais homens, com pouca capacidade intelectual
[ingenio], sejam por natureza escravos [alieni iuris] e não tenham domínio quer
de si, quer das outras coisas. Esta, afinal, é uma servidão civil e legítima que
não torna ninguém servo por natureza. Nem quer o Filósofo que, se alguns são
por natureza fracos de mente, seja lícito apoderar-se de seus bens e dos seus
patrimônios, reduzi-los à servidão e vendê-los, mas quer ensinar que há neles
uma necessidade natural de serem regidos e governados por outros. E é bom
para eles que sejam submetidos a outros, assim como os filhos precisam estar
subordinados aos pais antes da idade adulta e uma esposa a seu marido. É
evidente que esta é a intenção do Filósofo, já que do mesmo modo diz que por
natureza alguns são senhores, obviamente os que têm força intelectual [valent
intellectu]. É certo, por outro lado, que ele não entende que tais homens possam
arrogar a si o controle sobre os outros sob pretexto de que são mais sábios, mas
porque por natureza têm a capacidade de comandar e reger. Assim, supondo
que esses bárbaros sejam a tal ponto ineptos e obtusos como se diz, nem por
isso se deve negar que têm domínio nem considerá-los como servos. É verdade
que, a partir dessa razão e a esse título, poderia surgir algum direito a submetê-
los, como diremos abaixo.
24. Resta agora a CONCLUSÃO acertada: Antes da vinda dos
espanhóis, eram eles verdadeiros donos, tanto pública quanto privadamente
21
SOBRE OS TÍTULOS NÃO LEGÍTIMOS COM OS QUAIS OS BÁRBAROS
DO NOVO MUNDO PUDERAM CAIR EM PODER DOS ESPANHÓIS
24
a menor. Primeiramente, a respeito do direito natural, porque, como bem diz
São Tomás (1, p. q. 92 a. 1 ad 2 e q. 96 a. 4), no direito natural os homens são
livres, exceto pelo domínio paterno e marital. De fato, por direito natural o pai
tem domínio sobre os filhos e o marido sobre a esposa. Portanto, não existe
ninguém que, por direito natural, tenha o império sobre o mundo. E, assim
como também diz São Tomás (2.2 q. 10 a. 10), o domínio e o governo
[praelatio] foram introduzidos pelo direito humano. Portanto, não dizem
respeito ao direito natural. E não haveria maior razão para que tal domínio
pertencesse aos alemães e não aos franceses.
Aristóteles, no primeiro livro da Política, diz que duplo é o poder: um,
familiar, como o do pai com relação aos filhos e o do marido com relação à
esposa, e este é natural. O outro é civil e, ainda que tenha origem na natureza e,
por isso, possa ser chamado com toda justiça natural (como faz São Tomás em
De regimine principum, cap.1, l.1, ao afirmar que o homem é um animal civil),
no entanto não se constituiu pela natureza, mas pela lei [lege].
Por outro lado, não lemos que houve, por direito divino, antes da vinda
de Cristo redentor, imperadores senhores do mundo, embora aquela glosa de
Bártolo ao extravagante Ad reprimendum aduza Daniel, falando a respeito de
Nabucodonosor: Tu és o rei dos reis; Deus do céu deu-te o reino, a firmeza, a
glória e o império e tudo aquilo em que habitassem os filhos dos homens. Mas
é certo que Nabucodonosor não recebeu o império de Deus de forma especial
[specialiter], mas do mesmo modo que os outros príncipes, como diz Paulo
(Rom. 13, 1): Todo poder vem do Senhor Deus, e os Provérbios (Prov. 8, 15):
Através de mim os reis reinam e os legisladores decretam o justo. E nem
mesmo teve império sobre todo o mundo, como julga Bártolo, pois que os
judeus não estavam sujeitos legalmente [iure] a ele.
Ademais, com isso mesmo se evidencia que ninguém era, por direito
divino, senhor de todo o mundo, já que o povo judeu estava livre de todo
estrangeiro; mais ainda: estava proibido na lei que fossem dominados por um
25
estrangeiro (Deuterônimo, 17, 15): Não poderás fazer rei um homem de outro
povo. Por mais que São Tomás (De regimine principum III, c. 4 e 5) pareça
dizer que o império dos Romanos lhes foi confiado por Deus por causa de sua
justiça e amor à pátria e das ótimas leis que tinham, não se deve entender com
isso que tinham o império por transmissão [traditione] ou instituição divina,
como Agostinho também diz (De civitate Dei, 18), mas que foi por obra da
providência divina que obtiveram o império sobre o mundo; porém o obtiveram
por direito humano, em virtude de guerras justas ou por outra razão qualquer, e
não do modo como Saul e Davi tiveram um reino provindo de Deus.
E isto facilmente compreenderá quem considerar o processo [ratione] e
as vicissitudes pelas quais os impérios e os domínios no mundo chegaram até
nós.
De fato, deixando de lado tudo o que precedeu o dilúvio, certamente
depois de Noé o mundo foi dividido em diversas províncias e reinos, quer isto
se tenha dado por regulamentação [ordinatione] do próprio Noé, que sobreviveu
ao dilúvio por 350 anos (Gênesis 9, 28) e que enviou colonizadores para
diversas regiões, como fica claro em Béroso o babilônico, quer, o que é mais
verossímil, pelo consenso mútuo dos povos, diversas famílias tenham ocupado
diversas províncias, como está no Gênesis 13, 9-10: Abraão disse a Lot: Eis
toda a terra diante de ti. Se fores à esquerda, eu manterei a direita; se tu
escolheres a direita, eu continuarei à esquerda. Daí Gênesis referir que pelos
bisnetos de Noé as nações e regiões foram divididas, quer em algumas regiões
primeiramente tenham começado a ser senhores através da tirania, como parece
ter acontecido com Nemrod, sobre o qual, em Gênesis 10, 8-9, vê-se que foi o
primeiro a ser poderoso na Terra; quer, reunindo-se alguns em um só lugar para
formar uma República, e por consenso geral tenham estabelecido para si um
príncipe. Afinal, é certo que, deste modo ou por outro não diferente,
começaram a existir domínios e impérios no mundo e, depois disso, quer por
direito hereditário, quer pelo direito de guerra ou a algum outro título,
26
sucederam-se até nossa época, pelo menos até o advento do Salvador. Com isso
fica claro que, antes do advento de Cristo, ninguém teve por direito divino o
império sobre o mundo, nem, a tal título, pode hoje o imperador arrogar-se o
domínio sobre o mundo e, conseqüentemente, nem mesmo sobre os bárbaros.
Mas, depois do advento do Senhor, poderia alguém alegar que, por
herança [traditione] de Cristo, era ele o único imperador no mundo, já que
Cristo, como homem, foi senhor do mundo, segundo aquela passagem de
Mateus 28, 18-19: Foi-me dado todo poder, etc., o que, segundo Agostinho e
Jerônimo, entende-se com referência a sua humanidade. E, como expressa o
Apóstolo (1 Cor. in fine, 15, 24-28): Tudo submeteu a seus pés. Portanto, assim
como deixou na Terra um único vigário nas coisas espirituais, deixou também
nas temporais, e este é o imperador. São Tomás (De regimine principum 1. 3. c.
13) diz que Cristo, desde seu nascimento, era o verdadeiro senhor e monarca do
mundo, e Augusto era seu vigário, mesmo sem saber. E claro é que não era seu
vigário nas coisas espirituais, mas nas temporais. Ora, uma vez que o reino de
Cristo, se foi temporal, foi sobre todo o mundo, portanto também Augusto era
senhor do mundo e pela mesma razão seus sucessores.
Mas não se pode dizer isto de modo algum. Primeiramente, porque é
duvidoso que Cristo, em sua humanidade, tenha sido o Senhor temporal do
mundo. O mais provável é que não, e o próprio Senhor parece tê-lo afirmado
naquela célebre passagem: Meu reino não é deste mundo. Por isso também São
Tomás diz ali que o domínio de Cristo se ordena [ordinatur] diretamente para a
salvação da alma e os bens espirituais, embora não se exclua das coisas
temporais na medida em que se conjuguem com as espirituais. De onde fica
claro que não é pensamento de São Tomás que o reino de Cristo fosse da
mesma espécie que um reino civil e temporal, mas que, com vistas à redenção,
tinha um poder onímodo, até mesmo nas coisas temporais. Mas, excluindo-se
tal fim, nenhum poder tinha. Além disso, mesmo supondo que tenha sido
senhor temporal, é devanear dizer que deixou aquele poder ao imperador,
27
quando nenhuma menção disto se fez em toda a Escritura.
E quanto ao que São Tomás diz sobre o fato de Augusto fazer as vezes de
Cristo, em primeiro lugar, de fato disse isto ali. Mas na terceira parte, quando
fala expressamente [ex professo] do poder de Cristo, não faz menção alguma
desse seu poder temporal.
Em segundo lugar, São Tomás entende que aquele era vigário de Cristo
na medida em que o poder temporal está sujeito ao poder espiritual e a seu
serviço. Deste modo os reis são servidores dos bispos, assim como a arte fabril
[ars fabrilis] está sujeita à eqüestre e à militar; mas, por outro lado, um soldado
ou um comandante não são fabricantes, mas têm de comandar o fabricante no
fabrico das armas. E São Tomás, naquela passagem de João 18, 36, diz
expressamente que o reino de Cristo não é temporal nem tal qual Pilatos o
compreendia, mas um reino espiritual que o próprio Senhor menciona na
mesma passagem: Tu dizes que eu sou rei. Eu nasci para isto e vim ao mundo
para isto: dar testemunho da verdade. Assim fica claro que se trata de mera
ficção dizer que, por herança de Cristo, há um único imperador e senhor do
mundo.
O que também se confirma cabalmente. De fato, se fosse de direito
divino, como o império poderia ter sido dividido em oriental e ocidental?
Primeiramente, entre os filhos do grande Constantino e, depois, pelo Papa
Estéfano, que transferiu o império ocidental aos germanos, como se tem no
capítulo mencionado Per venerabilem.
É, realmente, fruto de inépcia e ignorância o que a glosa diz ali, isto é,
que os gregos, depois disso, não foram imperadores. Jamais os imperadores
germanos pretenderam a tal título ser senhores da Grécia. E João o Paleólogo,
imperador de Constantinopla, foi reconhecido como legítimo imperador no
Concílio de Florença.
Além disso, o patrimônio da Igreja (como admitem os próprios juristas e
também Bártolo) não está sujeito ao imperador. E se tudo estivesse sujeito ao
28
imperador por direito divino, nem por doação alguma dos imperadores nem a
outro título qualquer poderia alguém se subtrair ao domínio do imperador,
assim como nem pode o Papa subtrair alguém ao seu poder. Além disso, nem o
reino dos espanhóis está sujeito ao imperador, nem o dos franceses, como
também se vê no capítulo mencionado Per venerabilem, ainda que a glosa
acrescente, por conta própria, que isto não se dá de direito [de iure], mas de fato
[de facto].
Por outro lado, os doutores concedem que as cidades que um dia
estiveram submetidas ao império puderam, por direito consuetudinário, subtrair-
se ao império, o que não ocorreria se essa sujeição se devesse ao direito divino.
Quanto ao direito humano, é certo que o imperador não é senhor do
mundo. É que isso aconteceria pela autoridade de uma lei, e tal não existe; se
existisse, não teria eficácia nenhuma, porque a lei pressupõe a jurisdição.
Portanto, se antes da lei o imperador não tinha jurisdição no mundo, a lei não
podia implicar a não súditos. Tampouco teve tal poder o imperador por legítima
sucessão, doação, permuta, compra, guerra justa, eleição ou qualquer outro
título legal, como é certo. Portanto, jamais o imperador foi senhor de todo o
mundo.
2.SEGUNDA CONCLUSÃO: Supondo que o imperador fosse senhor do
mundo, nem por isso poderia se apoderar das províncias dos bárbaros,
constituir novos senhores e depor os antigos, ou cobrar impostos.
Prova-se. Também os que atribuem ao imperador o domínio do mundo
não dizem que se trata de um domínio por apropriação [per proprietatem], mas
somente por jurisdição [per iurisdictionem]. Tal direito não se estende ao ponto
de poder explorar províncias em benefício próprio ou doar, a seu arbítrio,
cidades ou, ainda, propriedades. Do que se disse, portanto, fica claro que a tal
título não podem os espanhóis se apoderar daquelas províncias.
O SEGUNDO TÍTULO que se alega e, de fato, invoca-se vivamente para
a justa posse daquelas províncias é o papel do Sumo Pontífice. Dizem que o
29
Sumo Pontífice é monarca também temporal de todo o mundo e,
conseqüentemente, podia constituir os reis das Espanhas príncipes daqueles
bárbaros e daquelas regiões; e assim se fez.
Acerca deste ponto é opinião de alguns jurisconsultos que o Papa tem
plena jurisdição nas coisas temporais sobre todo o mundo, acrescentando
também que o poder de todos os príncipes seculares derivou do Papa a eles.
Isso sustenta o Hostiense no cap. Quod super his, de voto, assim como o
arcebispo (terceira parte, título 22, cap. 5, § 8) e Agostinho de Ancona. Assim
se posiciona Silvestre, que ainda muito mais larga e benevolamente atribuiu tal
poder ao Papa no verbete Infidelitas § 7, no verbete Papa § 7. 10. 11 e 14 e no
verbete Legitimus § 4. Coisas admiráveis sobre isso diz ele naquelas passagens,
como, por exemplo, que o poder do imperador e de todos os outros príncipes é
subdelegado [subdelegata] com respeito ao Papa, que é derivado de Deus por
intermédio do Papa, que todo o poder deles depende do Papa e que Constantino
doou terras ao Papa em reconhecimento de seu domínio temporal, e, por outro
lado, o Papa doou a Constantino o império para seu usufruto [in usum] e
tributação. Mais: que Constantino nada doou, mas devolveu o que tinha sido
subtraído e que o Papa não exerce jurisdição nas coisas temporais além do
patrimônio da Igreja não por alguma falta de autoridade, mas para evitar o
escândalo dos judeus e para fomentar a paz, além de dizer ali muitas outras
coisas mais vãs e absurdas que estas.
Toda a comprovação desses se funda no seguinte: Do Senhor é a terra e
sua plenitude e Foi-me dado todo poder no céu e na terra; o Papa é vigário de
Deus e de Cristo; e Aos Filip. l. 2, 8: Cristo se fez por nós obediente até à
morte, etc. Dessa opinião parece ser também Bártolo naquele extravagante Ad
reprimendam, e parece apoiá-la São Tomás no fim do segundo livro das
Sentenças, cujas últimas palavras são a resposta ao quarto e último argumento:
o Papa detém a supremacia de um e outro poder, isto é, do secular e do
espiritual. E da mesma opinião é Herveus (De potestate Ecclesiae).
30
Estabelecido, portanto, este fundamento, dizem os defensores de tal
parecer: Primeiramente, que o Papa podia livremente constituir os reis da
Espanha príncipes dos bárbaros, na qualidade de supremo senhor temporal. Em
segundo lugar, dizem que, supondo que não o pudesse, se pelo menos os
bárbaros se recusam a reconhecer o domínio temporal do Papa sobre eles, por
este motivo mesmo pode fazer-lhes guerra e impor-lhes príncipes. Uma e outra
coisa se fez; de fato, primeiramente o Sumo Pontífice concedeu aquelas
províncias aos reis de Espanha; em segundo lugar, também aos bárbaros se
expôs e se tentou mostrar que o Papa é o vigário de Deus e faz as vezes Dele na
Terra e que, por isso, deveriam reconhecê-lo como seu superior; se eles
recusarem, já a justo título se deve fazer-lhes guerra e se apoderar das
províncias deles, etc. Isto segundo o que diz expressamente o Hostiense, na
passagem acima, bem como a Summa Angelica.
3. Mas como discuti de forma prolixa a respeito do domínio temporal do
Papa no comentário De potestate ecclesiastica, responderei aqui brevemente
por proposições.
PRIMEIRA: O Papa não é senhor civil ou temporal de todo o mundo,
falando de domínio e poder civil em sentido próprio. Esta é a conclusão de
Torquemada (l. 2 c. 113), de João Andréias e de Hugo (69 dist. Cum ad verum).
E confessa o doutíssimo Inocêncio, no mencionado cap. Per venerabilem, não
ter poder temporal no reino de França. Tal parece ser o pensamento expresso de
Bernardo no segundo livro De consideratione ad Eugenium. E o pensamento
oposto parece contrário ao preceito de Deus, que diz (Mateus 20, 25-26 e
Lucas 22, 25-26): Sabeis que os príncipes dos gentios os dominam, etc., não
será assim entre vós. Além de contrário ao preceito do Apóstolo (1 Petr. c.
último, 5,3): Não dominando sobre o clero, mas fazendo-os exemplo para o
rebanho. E se Cristo Senhor não teve domínio temporal, como acima se
discutiu como o mais provável, também de acordo com o pensamento de São
Tomás, muito menos o Papa o tem, ele que é vigário. Todos esses atribuem ao
31
Sumo Pontífice o que ele próprio nunca reconheceu. Mais: é o contrário que ele
confessa em muitas passagens, como se disse naquele comentário e se provou
suficientemente, assim como, acima, a respeito do imperador: não pode lhe
caber um domínio senão por direito natural, divino ou humano. Por direito
natural ou humano é certo que não. Quanto ao divino, em nenhum lugar se dá a
conhecer. Portanto, em vão e arbitrariamente o afirmam. E o que o Senhor disse
a Pedro, Apascenta minhas ovelhas, mostra suficientemente que se trata de
poder nas coisas espirituais, não temporais.
Além disso, demonstra-se que o Papa não é senhor em todo o mundo,
pois o próprio Senhor disse (João10, 16) que no fim do século se fará um só
redil e um só pastor. De onde resulta suficientemente acertado que, no presente,
nem todos são ovelhas de um único redil. Além disso, supondo que Cristo
tivesse este poder, é certo não ter sido transmitido ao Papa. É evidente, pois que
o Papa não é menos vigário de Cristo nas coisas espirituais que nas temporais.
Mas o Papa não tem jurisdição espiritual sobre os infiéis, como também
admitem os nossos adversários e parece ser o pensamento expresso do Apóstolo
(1. Cor. 5, 12): Por que tenho eu de julgar os que estão fora? Portanto, nem
mesmo nas coisas temporais.
Certamente é nulo o argumento: Cristo teve poder temporal em todo o
mundo, portanto também o Papa o tem. Afinal, Cristo sem dúvida tinha poder
espiritual em todo o mundo não menos sobre os fiéis que sobre os infiéis, e
podia apresentar leis que implicavam todo o mundo, assim como fez com o
batismo e os artigos da fé. No entanto, o Papa não tem aquele poder sobre os
infiéis, não poderia excomungá-los nem proibir seus casamentos nos graus
permitidos pelo direito divino. Portanto... Além disso, pelo fato de que, também
segundo os doutores, Cristo tampouco confiou o poder de excelência
[potestatem excellentiae] aos Apóstolos. Portanto, também de nada vale a
conseqüência: Cristo tinha poder temporal no mundo, logo também o Papa.
4. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Supondo que o Sumo Pontífice tivesse tal
32
poder secular em todo o mundo, não poderia confiá-lo aos príncipes seculares.
Isto é evidente, uma vez que esse poder estaria anexado ao papado, sem
que o Papa pudesse separá-lo do ofício de Sumo Pontífice, nem privar dele seu
sucessor, uma vez que o Sumo Pontífice sucessivo não pode ser inferior a seu
predecessor. E se um Pontífice tivesse confiado esse poder, seria nula tal cessão
[collatio] ou o Pontífice seguinte poderia revogá-la.
5. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: O Papa tem poder temporal no que diz
respeito às coisas espirituais, isto é, na medida em que é necessário à
administração das coisas espirituais.
Assim também pensa Torquemada (na passagem acima, c. 114) e todos
os doutores. E se prova. Porque a arte que tem em vista um fim superior é
imperativa e preceptiva das artes que miram fins inferiores, como se tem na
Ética 1. Ora, o fim do poder espiritual é a felicidade última [ultima felicitas];
mas o fim do poder civil é a felicidade política [felicitas politica]. Portanto, o
poder temporal está sujeito ao espiritual. Deste raciocínio lança mão Inocêncio
no c. Solitae, de maioritate et oboedientia.
Pode-se confirmá-lo, já que à pessoa a quem se confiou o encargo de
algum ofício, entende-se que se confiaram todas as coisas sem as quais o ofício
não pode ser exercido corretamente (De officio delegat. c. 1). Portanto, se o
Papa é, de acordo com a delegação de Cristo [ex commissione Christi], pastor
espiritual, e dada a possibilidade de que este ofício seja tolhido pelo poder civil,
como Deus e a natureza não podem faltar nas coisas necessárias, não se deve
duvidar de que lhe foi deixado tanto poder nas coisas temporais quanto é
necessário ao governo das espirituais.
Por essa razão pode o Papa invalidar as leis civis que são fomentadoras
de pecados, da mesma forma que derrogou as leis sobre a prescrição da má-fé,
como se revela no De praescript. c. fin. Também por essa razão, discordando os
príncipes quanto ao direito sobre algum principado e precipitando-se em
guerras, pode ele ser juiz, examinar o direito das partes e proferir a sentença,
33
que os príncipes têm o dever de aceitar, a fim de que não ocorram tantos males
espirituais quantos nascem necessariamente de uma guerra entre príncipes de
cristãos. Ainda que o Papa não o faça, ou não o faça amiúde, isto não se dá
porque ele não o possa, como diz o senhor Durando, mas porque teme o
escândalo: para que os príncipes não julguem que o faz por ambição ou por
temer uma rebelião de príncipes distanciados da Sede apostólica. Por essa
mesma razão pode, por vezes, depor reis e nomear outros, como já se fez. Por
certo ninguém verdadeiramente cristão deveria negar este poder ao Papa. Tal o
sustentam Paludano, Durando (De potestate ecclesiastica) e Henrique
Gandavense (Quodlib. 6 a. 23) e nesse sentido se devem compreender as
numerosas leis que dizem ter o Papa ambas as espadas; também os doutores
mais antigos o dizem, assim como São Tomás no segundo livro das Sentenças
2, já citado.
Mais: não duvido de que os bispos tenham deste modo autoridade
espiritual em seu episcopado pela mesma razão que o Papa a tem no mundo.
Por isso, falam insensatamente e agem insensatamente os príncipes ou os
magistrados que lutam para impedir que os bispos castiguem os seculares por
seus pecados através de penas pecuniárias, exílio ou outras penas temporais. De
fato, isto não está acima de seu poder, desde que não o façam por avareza e
para obter lucro, mas para atender à necessidade e utilidade das coisas
espirituais.
E desta passagem de novo se toma um argumento em prol da primeira
conclusão. É que, se o Papa fosse senhor do mundo, também o bispo seria
senhor temporal em seu episcopado, porque também em seu episcopado é
vigário de Cristo, o que, porém, os adversários negam.
6. QUARTA CONCLUSÃO: O Papa não tem nenhum poder temporal
sobre esses bárbaros nem sobre os outros infiéis.
Isto fica evidente a partir das primeira e terceira conclusões. Não tem
poder temporal, a não ser no que diz respeito a coisas espirituais. Mas não tem
34
poder espiritual sobre aqueles, como fica claro em 1 Cor. 5, 3-4. Portanto, nem
temporal.
7. Segue-se, como corolário, que mesmo se os bárbaros não quiserem
reconhecer algum domínio do Papa, nem por isso se pode fazer-lhes guerra e
se apoderar de seus bens. É evidente, já que tal domínio não existe.
Confirma-se isto claramente. De fato (como se dirá abaixo e até os
adversários admitem), supondo-se que os bárbaros não queiram acolher Cristo
como seu senhor, não podem, porém, ser alvo de guerra ou sofrer algum outro
mal. É o maior absurdo, então, o que aqueles dizem: podendo impunemente
não acolher Cristo, têm o dever de acolher seu vigário, do contrário podem ser
forçados a isso por uma guerra, ser espoliados de todos seus bens e até mesmo
sofrer o suplício.
Confirma-se mais uma vez. Segundo aqueles autores, a causa pela qual,
ainda que os bárbaros não queiram acolher a Cristo ou a sua fé, não se pode
obrigá-los, é que não se lhes pode provar cabalmente através de razões naturais
[per rationes naturales]. Ora, muito menos se pode provar o domínio do Papa;
portanto, também não podem ser obrigados a reconhecer este domínio.
Silvestre, por mais que fale largamente do poder do Papa, no entanto, no
verbete Infidelis 7º, sustenta expressamente, contra o Hostiense, que os infiéis
não podem ser obrigados por uma guerra a reconhecer este domínio nem a tal
título ser espoliados de seus bens. O mesmo sustenta Inocêncio, no capítulo
mencionado Quod super his, devoto. E não há dúvida de que São Tomás é deste
parecer (2.2, q. 66 ad 2), e também Caietano, comentando a passagem, quando
diz São Tomás que os infiéis não podem ser espoliados de seus bens, a não ser
que sejam súditos de príncipes temporais e por causas legais legítimas [propter
causas legum legitimas] pelas quais também se pode deles despojar os outros
súditos.
Mais: nem os sarracenos entre os cristãos foram alguma vez, a esse título,
espoliados de seus bens ou sofreram algum outro incômodo. De fato, se tal
35
título é suficiente para lhes fazer guerra, isto eqüivale a dizer que é em razão de
sua infidelidade que podem ser espoliados. O certo é que nenhum dos infiéis
reconhece tal domínio Ora, nenhum doutor há, nem mesmo entre os
adversários, que conceda isto, ou seja, que só a este título, a infidelidade, pode-
se espoliar alguém. Portanto, é um sofisma [sophisticum] completo o que esses
doutores dizem: se os infiéis reconhecem o domínio do Pontífice romano, não
podem ser molestados com uma guerra; mas o podem muito bem, se não o
reconhecem. De fato, nenhum o reconhece.
A partir disso fica evidente que tal título não é idôneo contra os bárbaros;
nem por ter o Papa concedido aquelas províncias como senhor absoluto, nem
por não reconhecerem aqueles o domínio do Papa, têm os cristãos motivo para
uma guerra justa contra eles. E é este o parecer que sustenta Caietano
largamente (2.2 q. 66, a.8 ad 2). Nem deve a autoridade dos canonistas nos
convencer do contrário, já que (como acima se disse) estas coisas se devem
tratar de acordo com o direito divino, e os mais numerosos autores e de maior
peso sustentam o contrário, entre os quais também está João Andréias; também
não têm eles algum texto em que apoiar-se. Também não se deve aceitar aqui a
autoridade considerável do arcebispo florentino, pois que seguiu Agostinho de
Ancona, assim como, de resto, costumam fazer os canonistas.
Do que se disse fica evidente que os espanhóis, quando por primeiro
navegaram em direção às terras dos bárbaros, não levavam consigo nenhum
direito de se apoderar de suas terras.
Por isso, há um OUTRO TÍTULO que se pode alegar: o direito da
descoberta; não se alegava, no início, algum outro. E foi com este único título
que navegou Colombo o Genovês. Parece idôneo esse título, já que o que está
abandonado se torna, por direito das gentes [iure gentium] e pelo natural,
propriedade de quem dele se apossa (Institut., De rerum divisione § ferae
bestiae). Portanto, como os espanhóis foram os primeiros a descobrir e tomar
aquelas províncias, segue-se que por direito as possuem, como se tivessem
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descoberto um deserto até aquele momento desabitado.
Mas sobre tal título, que é o terceiro, não é preciso estender-se porque,
como se provou acima, os bárbaros eram verdadeiros senhores tanto pública
quanto privadamente. Ora, o direito das gentes consiste em que se conceda ao
ocupante o que não é bem de ninguém, como vemos expressamente no
parágrafo mencionado ferae bestiae. Por isso, como aqueles bens não careciam
de dono, não são abarcados por aquele título. Assim, ainda que tal título possa
ter algum efeito junto com outro (como se dirá abaixo), no entanto, por si só em
nada justifica a apropriação deles, não mais do que se eles é que tivessem nos
descoberto.
Por isso se alega o QUARTO TÍTULO, a saber, por não quererem
abraçar a fé em Cristo, embora ela lhes seja proposta e, com insistência,
sejam aconselhados a fazê-lo.
Parece que esse título é legítimo para justificar a ocupação das terras dos
bárbaros. Primeiramente, porque os bárbaros têm o dever de abraçar a fé em
Cristo, já que aquele que crer e for batizado, será salvo; mas quem não crer
será condenado. Ora, ninguém é condenado senão por pecado mortal. E os Atos
dos Apóstolos ( 4, 12): Não há outro nome dado aos homens no qual seja
necessário salvar-nos. Sendo, pois, o Papa ministro de Cristo pelo menos nas
coisas espirituais, parece que pelo menos pela autoridade do Papa podem ser
forçados a abraçar a fé em Cristo. E se, instados, não quiserem abraçá-la, por
direito de guerra [iure belli] se pode agir contra eles. Mais: parece que também
os príncipes, por sua autoridade, o podem, já que são ministros de Deus e
vingadores, em sua ira, dos que agem mal (Rom. 13, 4). Ora, aqueles agem
pessimamente ao não abraçar a fé em Cristo. Portanto, podem ser forçados
pelos príncipes.
Em segundo lugar, porque, se os franceses não quisessem obedecer a seu
rei, poderia o rei da Espanha forçá-los a obedecer. Portanto, se se recusam a
obedecer a Deus, que é o Senhor verdadeiro e supremo, podem os príncipes
37
cristãos forçar aqueles bárbaros a obedecer, pois não parece que deva ser de
pior condição a causa de Deus que a dos homens.
E se confirma. Porque, como argüi Scoto (4 d. 4 q.9), sobre o batismo dos
filhos dos infiéis, antes deve alguém ser forçado a obedecer ao senhor superior
que ao inferior. Se, portanto, pudessem os bárbaros ser forçados a obedecer a
seus príncipes, muito mais a obedecer a Cristo e a Deus.
Em terceiro lugar, porque, se blasfemassem publicamente contra Cristo,
poderiam ser forçados com uma guerra a desistir de tais blasfêmias, como
admitem os doutores e é verdade. Poderíamos, de fato, persegui-los com uma
guerra se usassem do crucifixo para zombarias ou abusassem das coisas cristãs
de alguma forma ignominiosa, imitando, por exemplo, os sacramentos da Igreja
para ridicularizá-los, ou algo do gênero.
O que também é evidente. Com efeito, se fizessem uma injúria contra um
rei cristão, ainda que falecido, poderíamos vingar essa injúria. Muito mais,
então, se fizessem uma injúria contra Cristo, que é o rei e o senhor dos cristãos.
Nem se deve duvidar disso, já que, se Cristo vivesse entre os mortais e os
pagãos lhe fizessem uma injúria, não há dúvida de que poderíamos reparar a
injúria com uma guerra. Portanto, também agora. Ora, a infidelidade é pecado
maior que a blasfêmia, porque, como São Tomás diz e prova (2.2 q. 10 a. 3), a
infidelidade é o mais grave dentre os pecados que fazem parte da depravação
moral [perversitate morum], já que se opõe diretamente à fé, ao passo que a
blasfêmia não se opõe diretamente à fé, mas à confissão da fé. A infidelidade
também suprime o princípio da conversão a Deus, isto é, a fé; não o faz, porém,
a blasfêmia. Se, pois, por causa da blasfêmia contra Cristo podem os cristãos
perseguir os infiéis com uma guerra, portanto também por causa da própria
infidelidade. Confirma-o o fato de não ser a blasfêmia pecado tão grave quanto
a infidelidade, uma vez que por causa da infidelidade há a pena capital para o
cristão, através das leis civis; não, porém, por causa de blasfêmia.
8. À guisa de resposta, seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Os
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bárbaros, antes de ter ouvido algo sobre a fé em Cristo, não cometiam pecado
de infidelidade pelo fato de não acreditar em Cristo.
Esta proposição é, literalmente, a de São Tomás 2.2 q. 10 a. 1, onde diz
que, entre os que nunca ouviram falar em Cristo, a infidelidade não constitui
razão de pecado, mas, antes, de pena [poenae], pois que tal ignorância da
divindade derivou do pecado do primeiro pai. “Os que são (diz ele) infiéis desse
modo, são condenados por outros pecados que não pelo pecado de
infidelidade”. Por isso, o Senhor diz (João 15, 22): Se não tivesse vindo e falado
a eles, não teriam pecado. Explicando-o, Agostinho diz que fala do pecado dos
que não creram em Cristo. O mesmo parece dizer São Tomás (2.2 q. 10 a. 6 e q.
34 a. 2 ad 2).
Esta proposição contradiz muitos doutores e, primeiramente, o
Altissiodorense na questão Pode o falso insinuar-se na fé? (parte 3), onde diz
que ninguém pode ter uma ignorância insuperável não só a respeito de Cristo
como também de todo e qualquer artigo de fé, já que, se fizer o que está em seu
poder, Deus o iluminará quer através de um doutor intrínseco [doctor
intrinsecum], quer extrínseco [extrinsecum]. Assim, sempre é pecado mortal
acreditar em algo contrário aos artigos da fé. Dá o exemplo de uma velha a
quem o bispo pregasse algo contrário a um artigo da fé e, no geral, diz que a
ignorância do direito divino não escusa ninguém.
Da mesma opinião era Guilherme o Parisiense, que argumenta do mesmo
modo: “Ou tal pessoa faz o que está a seu alcance [quod in se est] e se
iluminará, ou, se não o faz, não tem escusa”.
E do mesmo parecer parece ter sido Gérson (Da vida espiritual da alma,
lição 4): “Unânime (diz) é o pensamento dos doutores no sentido de que nestas
coisas que são de direito divino não cabe uma ignorância insuperável, já que, a
quem faz o que está a seu alcance, Deus sempre assiste, pronto a iluminar sua
mente o quanto for preciso para a salvação e o impedimento de um erro”.
Também Hugo de São Vítor (1.2 p. 9ª c. 5) diz que ninguém fica escusado por
39
ignorância do preceito de receber o batismo, pois que, se não puser obstáculo
por sua própria culpa, poderá ouvir e saber, como no exemplo de Cornélio
(Atos 10, 4-5). Tal pensamento e opinião são relativizados por Adriano no
Quodlibetis q. 4: “As coisas que são, diz ele, de direito divino, são-no de duas
formas diferentes. Existem algumas a cujo conhecimento Deus não obriga todos
universalmente, como são as minúcias do direito divino e as dificuldades acerca
dele e acerca da Sagrada Escritura e dos preceitos; e a respeito destas coisas
pode muito bem caber uma ignorância insuperável, ainda que alguém faça tudo
o que está a seu alcance. Existem outras a cujo conhecimento Deus obriga
todos, como os artigos da fé, os preceitos universais da lei e a seu respeito é
verdade o que dizem os doutores, isto é, que não pode alguém ser escusado por
ignorância. De fato, se alguém fizer o que está a seu alcance, será iluminado por
Deus através de um doutor interno ou externo”.
Mas, ainda assim, a conclusão estabelecida parece ser expressamente a
opinião de São Tomás.
E se prova. Pessoas tais que jamais ouviram algo, por mais que, de resto,
sejam pecadoras, têm uma ignorância insuperável. Logo, tal ignorância não é
pecado. O antecedente fica claro a partir de Rom. 10, 14-15: Como acreditarão
se não ouvirem; ora, como ouvirão sem a prédica? Portanto, se a fé não lhes
foi pregada, têm uma ignorância insuperável porque não podem conhecê-la.
Nem Paulo condena os infiéis por não fazerem o que está a seu alcance
para se deixarem iluminar por Deus, mas por não crerem depois de terem
ouvido: Porventura (diz) não ouviram? E, na verdade, por toda a Terra correu
seu som. Por isso os condena, já que por toda a Terra foi pregado o evangelho.
De outro modo, não os condenaria, por mais que tivessem outros pecados.
De onde se conclui que também se engana Adriano em outro ponto
acerca do tema da ignorância. Diz no mesmo Quodlibet: “Também em matéria
de moral [morum], se alguém aplica todo empenho e diligência para conhecer o
que é preciso, não é isso suficiente para a justificação da ignorância, se através
40
da contrição dos pecados não se dispuser a ser iluminado por Deus”. Por
exemplo: se alguém, em dúvida sobre algum contrato, consulta os homens
doutos, colocando todo seu empenho em saber a verdade, e por fim o contrato é
julgado lícito, se porventura não é lícito e ele o concretiza, não seria escusado
por ignorância e estaria em pecado, já que não faz tudo o que está a seu alcance
para vencer a ignorância. Ainda que conste não ser iluminado por mais que se
disponha à graça, no entanto, não tem escusa se não suprimir este empecilho,
isto é, o pecado. Assim, se a respeito do mesmo caso e contrato, Pedro e João
têm dúvida e demonstram um empenho humano igual, ambos julgando que é
lícito, mas Pedro está em graça e João em pecado, Pedro tem uma ignorância
insuperável; João, superável. E se ambos realizarem o contrato, Pedro é
escusado; João não é escusado.
Engana-se nisto, digo eu, como já foi por mim amplamente discutido na
Prima Secundae, na matéria sobre a ignorância. Afinal, seria espantoso dizer
que em nenhuma matéria de direito divino poderia o infiel ter uma ignorância
insuperável, quanto mais quem está em pecado mortal. Mais: segue-se que no
caso daquele Pedro que estava em graça e tinha uma ignorância insuperável
acerca da usura ou da simonia, pelo simples fato de cair em pecado mortal,
aquela ignorância se tornaria superável, o que é absurdo.
9. Por isso digo que para que a ignorância possa ser imputada e constitua
um pecado ou seja superável se requer uma negligência acerca de tal matéria,
por exemplo: alguém se recusou a ouvir ou não creu no que ouviu; pelo
contrário, para a ignorância insuperável basta que se tenha empregado todo o
empenho humano para conhecer, mesmo que, por outro lado, se esteja em
pecado mortal. Então, no que diz respeito a isto, igual é o juízo sobre o que vive
em pecado e sobre o que vive em graça agora e imediatamente após o advento
de Cristo ou sua paixão. Não poderia Adriano negar que, pouco depois da
paixão do Senhor, os judeus que estavam na Índia ou na Espanha tinham uma
ignorância insuperável a esse respeito, por mais que estivessem em pecado
41
mortal, como ele mesmo admite expressamente em 1 q. ad 4, na matéria sobre
a observação das leis. E é certo que os judeus ausentes da Judéia, estivessem
ou não em pecado mortal, tinham uma ignorância insuperável a respeito do
batismo ou da fé em Cristo. Portanto, assim como então podia dar-se uma
ignorância insuperável a respeito disso, também agora entre aqueles junto aos
quais não se fez o anúncio [annuntiatio] do batismo.
Mas se enganam esses doutores que julgam que, admitindo ignorância
insuperável a respeito do batismo ou da fé em Cristo, imediatamente se segue
que poderia alguém salvar-se sem o batismo ou a fé em Cristo. Com efeito, os
bárbaros aos quais não chegou a notícia da fé ou da religião cristã serão
condenados pelos pecados mortais ou pela idolatria, mas não pelo pecado de
infidelidade, como diz São Tomás (2.2, citado acima), porque, se fizessem o
que está a seu alcance, vivendo bem, em conformidade com a lei natural, em tal
circunstância o Senhor proveria e os iluminaria acerca do nome de Cristo. Nem
por isso, porém, segue-se que, se vivem mal, deva-se imputar a eles como
pecado a ignorância ou a infidelidade acerca do batismo e da fé cristã.
10. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Os bárbaros não têm o dever de
acreditar na fé cristã ao primeiro anúncio que se lhes faça dela, de tal forma
que pecariam mortalmente não crendo, apenas pelo fato de ser-lhes
simplesmente anunciado e proposto que Cristo é o salvador e o redentor do
mundo, sem milagres ou qualquer outra prova [probatione] ou convencimento
[suasione].
Prova-se esta conclusão a partir da primeira. Com efeito, se antes de ter
ouvido algo sobre a religião cristã estavam escusados, tampouco são obrigados,
por semelhante anúncio e exposição simples, uma vez que tal anúncio não é
nenhum argumento ou motivo para crer. Mais: como Caietano diz (2.2 q. 1 a.
4), “temerária e imprudentemente alguém creria em algo, sobretudo no que diz
respeito à salvação, se não soubesse que é um homem confiável quem o
afirma”. O que os bárbaros não sabem, uma vez que desconhecem quem ou
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quais são os que lhes propõem uma nova religião. E se confirma, pois que,
como diz São Tomás (2.2 q. 1 a. 4 ad secundum argumentum e a. 5 ad
primum), “as coisas que são da fé são visíveis e evidentes sob a razão do crível
[sub ratione credibilis]. É que o fiel não creria se não visse que tais coisas são
críveis ou pela evidência dos sinais, ou por algo do mesmo gênero”. Portanto,
quando não se apresentam sinais deste gênero nem algum outro capaz de
persuadir, não têm os bárbaros o dever de crer.
E se confirma, pois que, se ao mesmo tempo os sarracenos igualmente
propusessem, pura e simplesmente, sua seita aos bárbaros, como os cristãos,
não teriam o dever de crer neles, como é certo. Portanto, tampouco nos
cristãos que propusessem a fé sem nenhuma razão persuasiva, já que não
podem nem são obrigados a adivinhar qual é a verdadeira religião, a não ser que
aparecessem motivos mais prováveis em defesa de uma das partes. Isto, afinal,
seria crer demasiado rapidamente, o que é próprio de um coração leviano, como
diz o Eclesiastes (19, 5). E se confirma através de João 15, 24: Se não tivesse
feito sinais, etc., não teriam pecado. Portanto, quando não há sinal algum nem
motivos, não haverá pecado.
11. Dessa proposição segue que se somente daquele modo se propuser a
fé aos bárbaros e estes não a abraçarem, não podem por esta razão os
espanhóis fazer-lhes guerra nem, por direito de guerra, agir contra eles. É
evidente, já que são inocentes quanto a isto, e não fizeram injúria alguma aos
espanhóis.
E se confirma este corolário, pois que, como afirma São Tomás (2.2 q. 40
a. 1) para uma guerra justa se requer uma causa justa, isto é, aqueles que são
atacados devem, por alguma culpa, merecer o ataque. Por isso Agostinho diz (1.
83 Questões): “Guerras justas costumam definir-se as que vingam injúrias, se se
deve castigar uma nação ou uma cidade que não se preocupou em reparar o que
de ímprobo foi feito pelos seus ou devolver o que foi tirado injustamente”. E
este é o pensamento comum de todos os doutores, não apenas dos teólogos mas
43
também dos jurisconsultos, como o Hostiense, de Inocêncio e outros. Expressa-
o com eloqüência Caietano (2.2 q. 66 a. 8) e não conheço nenhum doutor que
pense o contrário. Assim, este não seria um título legítimo para ocupar as
províncias dos bárbaros e espoliar os primeiros senhores.
12. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Se os bárbaros, rogados e aconselhados
a ouvirem pacificamente os que estão falando sobre a religião, se recusassem a
ouvir, não estariam escusados do pecado mortal.
Prova-se. Porque, como supomos, eles têm erros gravíssimos a respeito
dos quais não têm razões verossímeis ou prováveis. Portanto, se alguém os
aconselha a ouvir e deliberar sobre as coisas que tocam à religião, eles têm,
pelo menos, o dever de ouvir e interrogar.
Além disso, é necessário à salvação crer em Cristo e ser batizado: Quem
vier a crer, etc. (Marcos, último capítulo16, 16). Mas não podem crer se não
ouvirem (aos Rom. 10, 14). Portanto, têm o dever de ouvir. Do contrário,
estariam fora do estado de salvação sem culpa sua, se não têm o dever de ouvir.
13. QUARTA PROPOSIÇÃO: Se a fé cristã for proposta aos bárbaros
de forma convincente [probabiliter], isto é, com argumentos convincentes
[probabilibus] e racionais e com uma vida honesta e aplicada, conforme à lei
natural, que é grande argumento para a confirmação da verdade, e isto não
uma só vez e de forma superficial, mas de maneira empenhada e aplicada, os
bárbaros têm o dever de abraçar a fé em Cristo, sob pena de pecado mortal.
Prova-se a partir da terceira conclusão. Porque, se têm o dever de ouvir,
logo também de aquiescer ao que ouviram, se são coisas racionais. E se
evidencia com toda clareza a partir daquele último capítulo de Marcos (16, 16):
Indo a todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for
batizado, será salvo; quem, porém, não crer, será condenado. Também através
daquela passagem dos Atos 4, 12: Não se deu outro nome aos homens através
do qual possamos nos salvar.
14. QUINTA PROPOSIÇÃO: Não me parece certo que a fé cristã tenha
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sido até aqui apresentada e anunciada aos bárbaros de tal forma que tenham o
dever de crer sob risco de um novo pecado.
Digo isto porque (como fica claro com a segunda proposição) não têm o
dever de crer a não ser que se apresente a eles a fé de maneira plausível e
convincente [cum probabili persuasione]. Ora, não ouço falar em nenhum
milagre ou sinal, nem exemplos de vida suficientemente religiosa, pelo
contrário: numerosos escândalos, atos cruéis e numerosas impiedades. Por isso,
não parece que a religião cristã lhes tenha sido pregada de forma
suficientemente adequada e piedosa a ponto de eles terem o dever de aquiescer.
Todavia, ao que parece, muitos religiosos e outros eclesiásticos, com sua vida,
exemplos e pregação empenhada, teriam aplicado em tal atividade suficiente
trabalho e dedicação, se não tivessem sido impedidos disto por outros cujo
interesse é muito diverso.
15. SEXTA PROPOSIÇÃO: Por mais que a fé tenha sido anunciada aos
bárbaros de forma convincente e suficiente e se tenham recusado a abraçá-la,
nem por essa razão, porém, é lícito persegui-los com uma guerra e espoliá-los
de seus bens. Esta é a conclusão expressa de São Tomás em 2.22 q. 10 a.8,
onde diz que os infiéis que nunca acolheram a fé, como os gentios e judeus, de
nenhum modo podem ser compelidos à fé. É a conclusão comum dos doutores
também no direito canônico e civil.
E se prova. Porque crer é próprio da vontade; ora, o temor diminui muito
do voluntário (Ética 3) e apenas por temor servil aceder aos mistérios e
sacramentos de Cristo é sacrilégio. Além disso, prova-se a partir do capítulo
Dos judeus: “Sobre os judeus prescreveu o Santo Sínodo que ninguém deve
usar da força para obrigá-los a crer, pois Deus se compadece de quem quer e
endurece a quem quer”. Não há dúvida de que o parecer do Concílio de Toledo
é que não se deve tratar os judeus com ameaças e terrores para que abracem a
fé.
E o mesmo diz expressamente Gregório no capítulo Qui sincera: “Quem
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com a melhor das intenções (diz ele) deseja conduzir à fé perfeita os estranhos à
religião cristã, deve lançar mão de brandura, não de aspereza, pois quem quer
que aja diversamente e, sob tal pretexto, quiser afastá-los da prática costumeira
de seus rituais, prova que atende mais a seus próprios interesses que aos de
Deus”.
Além disso, prova-se a proposição com o uso [ex usu] e o costume da
Igreja. Com efeito, jamais os imperadores cristãos, que tinham os mais santos e
sábios Pontífices em seu conselho, fizeram guerra aos infiéis por se recusarem
eles a abraçar a fé cristã. Além disso, guerra alguma é um argumento em prol
da verdade da fé cristã. Portanto, com uma guerra não se pode levar os
bárbaros a crer, mas apenas a fingir que crêem e abraçam a fé cristã, o que é
monstruoso e sacrílego, por mais que Escoto (em 4 d. 4, última questão) diga
que se agiria religiosamente se os infiéis fossem forçados pelos príncipes, com
ameaças e terrores, a adotar a fé. Com isto, porém, parece estar se referindo
somente aos infiéis que, por outro lado, são súditos de príncipes dos cristãos, a
respeito dos quais posteriormente se falará. Ora, os bárbaros não são como
esses. Por isso, julgo que nem mesmo Escoto afirmaria isto a respeito de tais
bárbaros. Fica evidente, então, que também esse título não é idôneo nem
legítimo para justificar a ocupação das províncias dos bárbaros.
Um outro título se alega seriamente e é o QUINTO TÍTULO, ou seja, os
pecados dos próprios bárbaros. Com efeito, dizem que, embora não se possa
molestá-los com uma guerra em razão de sua infidelidade ou por não abraçarem
a fé cristã, pode-se, porém, mover-lhes guerra por causa de outros pecados
mortais, que possuem em grande número e, segundo dizem, da maior
gravidade. Acerca dos pecados mortais, porém, fazem uma distinção: dizem
que há alguns pecados que não são contrários à lei natural, mas somente à lei
divina positiva e por estes não se pode molestar os bárbaros com uma guerra.
Outros, porém, são contra a natureza, como comer carne humana, o
concubinato indistinto com a mãe, irmãs e homens, e por estes se pode
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molestá-los com uma guerra e forçá-los a deles desistir. A razão de uma coisa e
outra é que acerca dos demais pecados que são contra a lei positiva não se pode
mostrar-lhes cabalmente que agem mal; acerca, porém, dos que são contra a lei
natural, pode-se mostrar-lhes que ofendem a Deus e, conseqüentemente, pode-
se obrigá-los a que não o ofendam mais.
Além disso, podem ser obrigados a observar a lei que eles próprios
professam. Ora, esta é a lei natural. Portanto... Esta é a opinião do arcebispo
florentino (terceira parte, tít. 22 c. 5 § 8), seguindo Agostinho de Ancona. O
mesmo diz Silvestre no verbete Papa § 7, e é a opinião de Inocêncio no capítulo
Quod super his, de voto, onde diz expressamente: “Creio que se os gentios, que
não têm senão a lei natural, agem contra ela, poderão ser punidos pelo Papa.
Argüi-se a partir de Gênesis 15-29, onde os sodomitas são punidos por Deus.
Ora, como os juízos de Deus nos servem de exemplos, não vejo por que o Papa,
que é vigário de Cristo, não possa fazer o mesmo”. Isto segundo Inocêncio. E
pela mesma razão poderão, pela autoridade do Papa, ser punidos pelos príncipes
cristãos.
16. Mas estabeleço a CONCLUSÃO: Os príncipes cristãos, mesmo com
a autoridade do Papa, não podem obrigar os bárbaros a abandonar os pecados
contra a lei natural, nem por esta razão puni-los.
Prova-se. Primeiramente, porque se pressupõe algo falso, isto é, que o
Papa tenha jurisdição sobre aqueles, como acima se disse. Em segundo lugar,
porque ou entendem os pecados contra a lei natural de uma forma geral
[universaliter], considerando-os tais o furto, a fornicação, o adultério, ou de
uma forma especial [peculiariter], considerando aqueles sobre os quais fala São
Tomás (2.2 q. 154 a. 11 e 12): diz-se pecado contra a natureza não somente o
que é contrário à lei natural, mas também contrário à ordem natural, o que aos
Coríntios 2 se chama imundícia segundo a glosa, como o concubinato com
crianças e animais ou de mulher com mulher, sobre os quais se fala em aos
Rom. 1, 27.
47
Atendo-se somente ao segundo tipo, argüi-se em contrário. Porque o
homicídio é pecado tão grave ou mais grave, de tal forma que, se por aqueles é
lícito punir, também o é por homicídio. Além disso, a blasfêmia é pecado tão
grave e tão evidente quanto estes. Portanto...
Atendo-se ao primeiro tipo, isto é, em sentido geral, o de todo pecado
contra a lei natural, não é lícito, porém, punir por fornicação. Portanto, nem por
outros pecados que são contra a lei natural. O antecedente é evidente, a partir de
1 aos Cor. 5, 9: Escrevi a vós numa epístola que não vos mistureis aos
fornicadores. E, além disso, se um irmão é nomeado entre os fornicadores ou
como adorador de ídolos, etc. E, abaixo: Pois que tenho eu de julgar o que
acontece fora?, onde São Tomás diz: “Os prelados aceitaram o poder somente
sobre os que se submeteram à fé”. Ali fica mais do que evidente que Paulo diz
não lhe competir o julgamento dos infiéis, fornicadores e idólatras.
Por outro lado, nem todos os pecados contra a lei natural podem mostrar-
se de forma evidente, ao menos para todos.
Além disso, isto seria como que dizer que, por causa da infidelidade, é
lícito combater os bárbaros, pois todos são idólatras.
Ademais, não é lícito ao Papa fazer guerra a cristãos por serem
fornicadores ou ladrões, nem mesmo por serem devassos, nem, por conseguinte,
pode confiscar suas terras e dá-las a outros príncipes. Desse modo, com efeito,
havendo muitos pecadores em toda província, todos os dias os reinos
mudariam.
E se confirma. Mais graves, de fato, são tais pecados entre os cristãos,
que sabem que são pecados, que entre os bárbaros, que desconhecem que são
pecados. Além disso, é estranho que o Papa não possa propor leis aos infiéis e
possa proferir sentenças e imputar-lhes penas.
Argüi-se também – e certamente parece convincente – que ou os bárbaros
devem obrigatoriamente sofrer as penas aplicadas por aqueles pecados, ou não.
Se não devem, logo nem o Papa lhes pode aplicar. Se devem, então também
48
estão obrigados a reconhecer o Papa como senhor e legislador. Portanto, se não
o reconhecerem, só por causa disto se pode fazer-lhes guerra; isso, porém, esses
próprios autores negam, como acima se disse. E, realmente, é estranho que
possam impunemente negar a autoridade e a jurisdição do Papa e, ao mesmo
tempo, porém, serem obrigados a acatar seu julgamento.
Além disso, não podem aceitar o julgamento do Papa os que não são
cristãos, pois o Papa não pode condená-los ou puni-los por nenhum outro
direito que não por ser o vigário de Cristo. Mas esses mesmos adversários, tanto
Inocêncio e Agostinho de Ancona quanto o arcebispo e Silvestre, confessam
que não se pode puni-los porque não aceitam Cristo. Portanto, nem pelo fato de
não aceitar o julgamento do Papa. Afinal, uma coisa pressupõe outra.
E se confirma que nem esse título nem o precedente são suficientes.
Também no Antigo Testamento, onde, porém, as coisas se decidiam pelas
armas, nunca o povo de Israel se apoderou das terras dos infiéis, quer por serem
eles infiéis e idólatras, quer por terem outros pecados contra a natureza – e os
tinham em grande quantidade, já que eram idólatras, e faziam coisas como
sacrificar seus filhos e filhas a demônios, mas apenas por um dom especial de
Deus, ou porque impediam sua passagem, ou os tinham ofendido.
Ademais, o que eles entendem por “professar a lei natural”? Se é
conhecê-la, não a conhecem toda; se é querer observar a lei da natureza, então,
por outro lado, também querem observar toda a lei divina. Com efeito, se
soubessem que a lei cristã é divina, desejariam observá-la. Portanto, não
professam a lei natural mais do que a cristã.
E sem dúvida, temos mais provas para demonstrar que a lei de Cristo
provém de Deus e é verdadeira, do que para provar que a fornicação é má ou
que se deve procurar evitar outras coisas também proibidas pela lei natural.
Portanto, se se pode obrigá-los a observar a lei natural, porque se pode prová-la,
então também se pode obrigá-los a observar a lei evangélica.
Resta um outro e SEXTO TÍTULO que se pode alegar, ou melhor, se
49
alega, isto é, por escolha voluntária. Com efeito, os espanhóis, quando chegam
até os bárbaros, dão a entender a eles como os reis de Espanha os envia para
proveito deles e os aconselham que o acolham e aceitem como senhor e rei. E
eles têm respondido que estão de acordo, e nada é tão natural quanto considerar
como válida a vontade de um senhor que quer transferir seu bem para um outro
(Institut. Sobre a divisão dos bens § por transferência [per traditionem].
De minha parte, estabeleço a CONCLUSÃO: Também esse título não é
idôneo.
É evidente, em primeiro lugar, pelo fato de que deveria estar ausente o
medo e a ignorância, que viciam toda escolha. Mas isto intervém com toda
intensidade naquele tipo de escolha e aceitação. Com efeito, os bárbaros não
sabem o que estão fazendo, pelo contrário: acontece de nem sequer
compreenderem o que os espanhóis estão lhes pedindo. Além disso, pedem-no
cercando com homens armados uma turba desarmada e receosa.
Por outro lado, tendo eles (como acima se disse) verdadeiros senhores e
príncipes, não pode o povo, sem outra causa racional [rationabili causa],
admitir novos senhores, em detrimento dos precedentes. Tampouco, por sua
parte, podem os novos senhores eleger um novo príncipe sem consentimento do
povo. Assim, não concorrendo em escolhas e aceitações desse gênero todos os
requisitos para uma escolha legítima, tal título não é, em absoluto, idôneo nem
legítimo para se apoderar daquelas províncias e ocupá-las.
Há um SÉTIMO TÍTULO que se pode alegar, qual seja, por dom
especial de Deus.
De fato, dizem (não sei quem) que Deus, em seu julgamento peculiar,
condenou todos esses bárbaros à perdição por causa de suas abominações e os
colocou em poder dos espanhóis, assim como, outrora, os cananeus em poder
dos judeus. Mas, a esse respeito, não desejo alongar-me, pois seria perigoso
crer em alguém que expressasse uma profecia contrária à lei comum e às regras
da Escritura, se sua doutrina não se confirmasse por meio de milagres. Nada
50
disso, porém, é dado a conhecer por profetas deste tipo. Além disso, supondo
que assim fosse: que Deus houvesse decretado a perdição dos bárbaros, nem
por isso, porém, segue que aquele que os pusesse a perder estaria sem culpa,
assim como não estavam sem culpa os reis da Babilônia que conduziam um
exército contra Jerusalém e levavam os filhos de Israel ao cativeiro, ainda que
realmente tudo se tenha realizado por uma peculiar providência de Deus, como
amiúde lhes fora predito. Nem Jeroboa fez bem em afastar de Roboa o povo de
Israel, ainda que isso tenha ocorrido por providência divina, assim como
também o Senhor ameaçara através do profeta. Oxalá não houvesse,
excetuando-se o pecado de infidelidade, no terreno moral, pecados maiores
entre alguns cristãos que entre aqueles bárbaros! Também está escrito (1 João 4,
1): Não creiais em todo espírito, mas ponde à prova os espíritos para saber se
provêm de Deus. E, como diz São Tomás (1, 2 q. 68): “Os dons são dados pelo
Espírito Santo para aperfeiçoar as virtudes. Por isso, quando a fé, a autoridade
ou a providência mostram o que se deve fazer, não se deve recorrer a seus
dons”. Baste isto sobre os títulos falsos e não idôneos para se apoderar das
províncias dos bárbaros.
Mas se deve notar que eu nada vi escrito a respeito desta questão nem
algum dia participei de uma discussão ou de um conselho sobre esta matéria.
Por isso, poderia acontecer de outros, talvez, fundarem o título e a justiça desta
negociação e desta soberania [principatus] em algum dos títulos mencionados
não sem alguma razão. Mas, de minha parte, não posso até aqui compreender
diversamente do que se disse. Por isso, se não houvesse outros títulos além
desses, muito mal se teria velado pela salvação dos príncipes ou, antes,
daqueles aos quais toca elucidar tais coisas. De fato, os príncipes seguem o
conselho de outros, pois que não podem examinar tais coisas por si só. Que
ganha, diz o Senhor, o homem obtendo como lucro o mundo inteiro, se isso o
levar à sua própria perda e a se prejudicar a si próprio? (Mateus, 16, 26 e
Marcos 8, 36 e Lucas 9, 25).
51
52
DOS TÍTULOS LEGÍTIMOS PELOS QUAIS OS BÁRBAROS PUDERAM
CAIR EM PODER DOS ESPANHÓIS
0
1. Como os bárbaros puderam cair em poder [ditionem] dos espanhóis em
razão da sociedade e da comunidade natural. – 2. Os espanhóis têm direito de
viajar até as províncias dos índios bárbaros e ali viver sem dano algum destes,
sendo que não podem ser por eles impedidos. – 3. É lícito aos espanhóis
negociar em meio aos índios bárbaros, porém sem prejuízo da pátria,
importando mercadorias de que eles carecem, etc. e trazendo ouro e prata ou
outras coisas que ali há em abundância, sem que os príncipes deles possam ser
empecilho a que os súditos exerçam o comércio entre os espanhóis, etc. – 4.
Aos bárbaros não é lícito impedir aos espanhóis a comunicação e a
participação daquelas coisas que são comuns entre eles, tanto aos cidadãos,
quanto aos hóspedes. – 5. Se entre os índios nascerem filhos de pais espanhóis
que ali têm domicílio e quiserem ser cidadãos, não se lhes pode vedar a
cidadania ou os privilégios dos demais cidadãos. – 6. Se os bárbaros quisessem
impedir aos espanhóis o comércio com eles próprios, etc., o que se deveria
fazer. – 7. Se os espanhóis, depois de todas as mais moderadas tentativas, não
podem obter a segurança ao lado dos bárbaros ou índios a não ser ocupando
suas cidades e submetendo-os, podem então fazê-lo licitamente, isto é, ocupar
as cidades e submetê-los? – 8. Quando e em que caso podem os espanhóis
tratar os bárbaros como a inimigos traiçoeiros e exercer contra eles todos os
direitos da guerra, espoliá-los, até mesmo escravizá-los, além de depor os
primeiros senhores e constituir novos. – 9. Se os bárbaros, para propagar a
religião cristã, poderiam cair em poder dos espanhóis. E os cristãos têm direito
de pregar e anunciar o Evangelho nas províncias dos bárbaros. – 10. O Papa
poderia confiar somente aos espanhóis o encargo de converter os índios
bárbaros, e a todos os demais não só proibir a pregação como também o
comércio, se isso fosse útil à propagação da religião cristã. – 11. Os bárbaros
não devem ser combatidos nem despojados de seus bens, se permitirem que os
espanhóis preguem o Evangelho livremente e sem impedimento, quer eles
abracem a fé ou não. – 12. De que modo podem ser reprimidos pelos espanhóis
(sem escândalo, porém) os bárbaros que, sejam seus senhores, seja o próprio
povo, impedem a divulgação do Evangelho. E o que se deve dizer dos que
admitem a pregação, mas impedem a conversão, matando ou punindo os
convertidos a Cristo, ou dissuadindo os outros. – 13. De que modo puderam os
bárbaros cair em poder dos espanhóis pelo fato de que, tendo sido convertidos
e tornados cristãos, querendo seus chefes, quer pelo uso da força, quer pelo
medo, trazê-los de volta à idolatria, foram protegidos pelos espanhóis e
recebidos sob sua tutela. – 14. Os bárbaros puderam cair em poder dos
espanhóis porque, convertida a Cristo boa parte deles, o Papa, pedindo-o eles
ou não, pôde, por uma causa racional, dar-lhes um príncipe cristão, como é o
53
rei dos espanhóis, repelidos os demais senhores infiéis. – 15. Se os bárbaros
poderão cair em poder dos espanhóis por causa da tirania de seus senhores, ou
por causa de leis tirânicas injustas contra os inocentes. – 16. Os bárbaros
índios puderam cair em poder dos espanhóis por verdadeira escolha
voluntária. – 17. Os bárbaros, a título de aliança e amizade, puderam cair em
poder dos espanhóis. – 18. Se os espanhóis poderiam submeter os bárbaros a
seu poder, se fosse assegurado que eles são dementes.
rainha Dido da acolhida hostil que teriam recebido inicialmente ao aportar em Cartago.
55
injúria aos espanhóis, se lhes impedissem o acesso a suas regiões.
Em décimo primeiro: eles próprios admitem todos os outros bárbaros, de
onde quer que venham. Portanto, cometeriam injúria não admitindo os
espanhóis.
Em décimo segundo: se aos espanhóis não fosse lícito peregrinar junto a
eles, isto seria por direito natural, divino ou humano. Pelo natural e divino, é
certo que é lícito. Se, porém, houvesse uma lei humana que impedisse, sem
alguma causa, o direito natural e divino, seria desumano e não seria racional,
conseqüentemente, não teria força de lei.
Em décimo terceiro lugar: os espanhóis são súditos dos bárbaros ou não.
Se não são súditos, estes não podem, então, impedi-los. Se são súditos, devem,
então, tratá-los bem.
Finalmente, em décimo quarto lugar: os espanhóis são próximos dos
bárbaros, como fica evidente a partir do Evangelho de Lucas 10, a respeito do
samaritano. Ora, eles têm o dever de amar os próximos (Mateus, 22, 39) assim
como a si mesmos. Portanto, não lhes é lícito proibir o acesso a sua pátria sem
motivo. Como diz Santo Agostinho: “Quando se diz: amarás a teu próximo, é
evidente que todo ser humano é nosso próximo”.
3. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: É lícito aos espanhóis negociar em meio
àqueles, porém sem dano da pátria; por exemplo, importando as mercadorias
de que eles carecem e exportando dali o ouro, a prata ou as outras coisas que
eles têm em abundância. Os seus príncipes não podem impedir os súditos de
exercer o comércio com os espanhóis nem, por outro lado, os príncipes dos
espanhóis podem impedir o comércio com eles.
Prova-se a partir da primeira. Primeiramente, porque também parece
direito das gentes que os peregrinos exerçam o comércio sem prejuízo dos
cidadãos.
Em segundo lugar, do mesmo modo se prova com o fato de que isto é
lícito por direito divino. Portanto, uma lei que o proibisse, sem dúvida não seria
56
racional [rationabilis].
Além disso, em terceiro lugar, os príncipes têm o dever de amar os
espanhóis por direito natural. Portanto, não lhes é lícito, se isso pode acontecer
sem detrimento deles, impedir o acesso a seus bens sem nenhuma razão.
Em quarto lugar, porque parecem agir contra o célebre provérbio: Não
farás ao outro o que não queres que façam a ti. E, em suma, é certo que os
bárbaros não podem impedir aos espanhóis seu comércio mais do que os
cristãos podem impedir os outros cristãos.
Claro é, porém, que se os espanhóis proibissem aos franceses o comércio
com eles, não pelo bem da Espanha, mas para que os franceses não tivessem
participação em algum proveito [utilitatem], a lei seria iníqua e contra a
caridade. Ora, se isto não pode ser prescrito por lei de forma justa, não pode
também concretizar-se, porque uma lei não é iníqua senão por causa da sua
execução. E como se diz na ff. De iustitia et iure: “a natureza estabeleceu,
como uma força entre todos os homens, uma espécie de parentesco”. Por isso, é
contra o direito natural que o homem seja adversário de outro homem sem
motivo algum. “Pois o homem para outro homem não é um lobo, como diz
Ovídio, mas um homem”.13
4. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Se há, entre os bárbaros, coisas comuns
tanto aos cidadãos quanto aos hóspedes, não é lícito impedir aos espanhóis o
acesso e a participação nelas.
Por exemplo: se é lícito a outros peregrinos extrair ouro num território
comum ou de rios, ou pescar pérolas no mar ou num rio, do mesmo modo não
se pode impedir os espanhóis, pura e simplesmente, contanto que aos cidadãos
e aos habitantes nativos isto não seja um peso.
Prova-se com a primeira e a segunda. Com efeito, se é lícito aos
espanhóis peregrinar e negociar em meio a eles, logo é lícito usar das leis e
Na literatura latina, vê-se que se trata de expressão proverbial; entretanto, a maneira como o
13
autor a expressa não remete a Ovídio, mas ao comediógrafo Plauto: Lupus est homo homini,
non homo (“Lobo, não homem, é o homem para o homem” - Asinaria, v. 495).
57
vantagens de todos os peregrinos.
Em segundo lugar, porque o que não está entre os bens de ninguém, por
direito das gentes é do ocupante (Institut., de rerum divis. § Ferae bestiae).
Portanto, se o ouro no campo, as pérolas do mar ou seja o que for que houver
nos rios não foi objeto de apropriação [non est appropriatum], por direito das
gentes será do ocupante, do mesmo modo que os peixes no mar. De fato, muitas
coisas parecem proceder do direito das gentes, o qual, derivando
suficientemente do direito natural, tem força manifesta para conferir o direito
[ad dandum ius] e obrigar [obligandum]. E, supondo que não derivem sempre
do direito natural, parece ser suficiente o consenso da maior parte do mundo,
sobretudo quando em prol do bem comum de todos.
Se, com efeito, depois dos primeiros tempos da criação do mundo ou de
sua reparação após o dilúvio, a maior parte dos homens decidiu que os legados
seriam por toda parte invioláveis, que o mar seria comum, que os capturados na
guerra seriam escravos e que seria conveniente que os hóspedes não fossem
expulsos, certamente isto deveria ter força, mesmo com a oposição de outros.
5. QUARTA PROPOSIÇÃO: Além do mais, se ali nascerem de um
espanhol e eles quiserem ser cidadãos, não parece que se possa vedar-lhes o
direito de cidadania ou os privilégios [commodis] dos outros cidadãos.
Falo de pais que ali têm domicílio. Prova-se. Porque parece ser do direito
das gentes que se diga cidadão de uma cidade também quem nasceu nela (ff. De
appel. 1. Cidadãos). E se confirma. Como o homem é um animal civil [animal
civile], quem nasceu numa cidade não é cidadão de outra. Se, portanto, não
fosse cidadão de sua cidade natal, não seria cidadão nenhuma, pelo que lhe
estaria vedado o gozo do direito natural e das gentes.
Mais: se alguém quisesse estabelecer domicílio em alguma cidade
daqueles, por exemplo, ao tomar esposa ou por uma outra razão qualquer pela
qual os peregrinos costumam se tornar cidadãos, não parece que se possa
proibi-los mais do que aos outros; conseqüentemente, parecem gozar dos
58
privilégios de cidadãos assim como os outros, desde que se submetam aos
mesmos encargos [onera] dos demais. É, também, a hospitalidade que se
recomenda em 1 Pedro 4, 9: Hóspedes um do outro e 1 a Tim. 3, 2 sobre o
bispo: O bispo deve ser hospitaleiro. Daí, por outro lado, ser em si um mal se
recusar a acolher hóspedes e peregrinos.
6. QUINTA PROPOSIÇÃO: Se os bárbaros quiserem impedir aos
espanhóis o direito das gentes nos casos supracitados, por exemplo, no do
comércio ou das outras coisas referidas, os espanhóis devem, primeiramente,
com razão e meios persuasivos [suasionibus], evitar o escândalo e demonstrar,
com todo tipo de argumento racional [omni ratione], que não vêm para
prejudicá-los, mas que desejam pacificamente ser tratados como hóspedes e
peregrinar sem incomodá-los em nada. Devem demonstrá-lo não com meras
palavras, mas, como se disse, também com argumentos racionais, segundo
aquele dito: aos sábios convém tentar tudo, antes, com palavras 14. Se, depois
da explicação racional [reddita ratione], os bárbaros não quiserem aquiescer,
mas ao invés disso usar a força, os espanhóis podem defender-se e tudo fazer
para a conveniência de sua segurança, já que é lícito repelir a força com a
força. E não apenas isso: se de outra forma não puderem estar em segurança,
podem traçar estratégias e edificar defesas. E, se forem alvo de uma injúria
podem, com a autoridade do príncipe, vingá-la com uma guerra e fazer valer
os outros direitos da guerra.
Prova-se: a causa de uma guerra justa é o objetivo de repelir e vingar uma
injúria, como se mencionou acima a partir de São Tomás 2.2 q. 40. Ora, os
bárbaros, impedindo aos espanhóis o direito das gentes, fazem-lhes injúria.
Portanto, se for necessário travar guerra para obter seu direito, podem fazê-lo
licitamente. Mas se deve notar que, sendo esses bárbaros por natureza
medrosos e, por outro lado, estúpidos e tolos, por mais que os espanhóis
desejem livrá-los do temor e assegurá-los de suas intenções pacíficas, aqueles
Terêncio, Eunuco, v. 789: Omnia prius experiri quam armis sapientem decet (“Convém que
14
60
todo empenho, através de ações e palavras, tivessem demonstrado que não
constituem obstáculo a que os bárbaros vivam pacificamente e sem dano às
suas coisas, ainda assim os bárbaros perseverassem em sua malícia e lutassem
por pôr à perda os espanhóis, neste caso estes já poderiam agir não como se
lidassem com inocentes, mas com inimigos pérfidos, exercer contra eles todos
os direitos da guerra, espoliá-los, reduzi-los à escravidão, depor os senhores
antigos e constituir novos; moderadamente, porém, segundo ao gênero de ação
[pro qualitate rei] e de injúrias.
Esta conclusão é suficientemente óbvia. Porque, se é lícito a eles declarar
guerra, logo também exercer os direitos da guerra. E se confirma, porque não
devem estar em melhor condição que outros por serem infiéis. Ora, tudo isto
seria lícito contra os cristãos, uma vez que se tratasse de guerra justa. Portanto,
também é licito contra aqueles. Da mesma forma, é direito geral das gentes que
tudo o que foi capturado em guerra pertença ao vencedor, como se tem na lei Si
quid in bello e na lei Hostes ff. De captivis e capítulo Ius gentium 1 dist. e, mais
expressamente, Institut., De rerum divisione § Item, quae ab hostibus, onde se
diz que por direito das gentes as coisas que tomamos dos inimigos se tornam
imediatamente nossas, a ponto de também homens serem reduzidos a servos
nossos.
Além disso, porque (como dizem os doutores em matéria de guerra) o
príncipe que tem uma guerra justa se torna, pelo próprio direito, juiz dos
inimigos, podendo assim puni-los juridicamente e condená-los de acordo com o
tipo de injúria.
E se confirma tudo o que acima se disse. Porque os legados, por direito
das gentes, são invioláveis, e os espanhóis são legados dos cristãos. Portanto, os
bárbaros têm o dever de, pelo menos, ouvi-los com benevolência e não os
repelir.
Esse, portanto, é o PRIMEIRO TÍTULO com os quais os espanhóis
puderam ocupar as províncias e o principado [principatus] dos bárbaros, com a
61
condição de que isto se faça sem dolo e fraude e de que não se forjem pretextos
para guerra. Com efeito, se os bárbaros permitissem que os espanhóis
negociassem pacificamente em seu meio, os espanhóis não poderiam, sob este
ângulo, alegar nenhum motivo justo para se apoderar dos bens deles, não mais
que dos bens dos cristãos.
9. OUTRO TÍTULO pode haver, qual seja, a propagação da religião
cristã. Em prol deste eis a PRIMEIRA CONCLUSÃO: Os cristãos têm o
direito de pregar e anunciar o Evangelho nas províncias dos bárbaros.
Esta conclusão é conhecida a partir daquele célebre passo: Pregai o
Evangelho a toda criatura, etc. Também: A palavra do Senhor não está atada
(2 Timóteo 2, 9).
Em segundo lugar, resulta evidente a partir do que se disse. Porque, se os
espanhóis têm direito de peregrinar e negociar entre aqueles, então podem
ensinar a verdade aos que querem ouvir, sobretudo a respeito do que toca à
salvação e à felicidade, muito mais que o que toca a algum ensinamento
humano. Em terceiro lugar, porque, de outra forma, os bárbaros estariam fora
do estado de salvação se não fosse lícito aos cristãos ir até eles para anunciar o
Evangelho. Em quarto lugar, porque a correção [correptio] fraterna faz parte do
direito natural, assim como também o amor [dilectio]. Assim, estando todos
aqueles não só em pecado como fora do estado de salvação, logo toca aos
cristãos corrigi-los e amá-los, ou melhor, parece que têm este dever. Em quinto
e último lugar, porque são nossos próximos, como acima se disse. Mas a cada
um confiou Deus a preocupação com seu próximo (Eclesiastes 17, 12).
Portanto, toca aos cristãos instruir àqueles, que ignoram as coisas divinas.
10. SEGUNDA CONCLUSÃO: Ainda que isto seja comum e lícito a
todos, no entanto, pôde o Papa confiar este encargo aos espanhóis e vedá-lo a
todos os demais.
Prova-se. Porque, embora o Papa, como se disse acima, não seja senhor
temporal, tem, porém, poder nas coisas temporais que dizem respeito às
62
espirituais. Portanto, como cabe ao Papa, sobretudo, cuidar da propagação do
Evangelho em todo o mundo, se da pregação do Evangelho naquelas províncias
os espanhóis pudessem se incumbir de forma mais proveitosa, ele pode
encarregá-los disto e vedá-lo a todos os demais. E não só vedar a pregação
como também o comércio, se isto fosse conveniente à propagação da religião
cristã, uma vez que pode ordenar as coisas temporais conforme seja útil às
espirituais. Se, portanto, for de tal modo conveniente, compete, então, à
autoridade e ao poder do Sumo Pontífice. Ora, parece de todo conveniente pelo
fato de que, se de outras províncias cristãs se afluísse indiscriminadamente
àquelas províncias, poderiam facilmente estorvar-se mutuamente e suscitar
rebeliões. Assim se impediria a tranqüilidade, perturbar-se-ia o trabalho da fé e
a conversão dos bárbaros.
Além disso, uma vez que os príncipes espanhóis, sob seus auspícios e
despesas, foram os primeiros de todos a empreender essa navegação e com
tanta felicidade descobriram o Novo Mundo, é justo que essa peregrinação seja
vedada aos demais e que só eles usufruam das descobertas. Assim como,
também para conservar a paz entre príncipes e propagar a religião, pôde o Papa
distribuir as províncias dos sarracenos entre os príncipes cristãos, a fim de que
um não entrasse no domínio do outro, da mesma forma poderia, para o bem da
religião, eleger príncipes, sobretudo onde antes não tivesse havido nenhum
príncipe cristão.
11. TERCEIRA CONCLUSÃO: Se os bárbaros permitirem que os
espanhóis preguem o Evangelho livremente e sem impedimento, mesmo sem
abraçar a fé cristã, não é lícito, por esta razão, empreender uma guerra contra
eles e, por outro lado, apoderar-se de suas terras.
Isto se provou mais acima, quando refutamos o quarto título e é evidente
por si próprio, já que nunca há uma guerra justa quando não houve nenhuma
injúria precedente, como diz São Tomás (2.2 q. 40 a. 1).
12. QUARTA CONCLUSÃO: Se os bárbaros, quer os próprios
63
senhores, quer também o povo, impedirem os espanhóis de anunciar livremente
o Evangelho, estes, fornecida previamente a razão para eliminar o escândalo,
podem pregar a eles contra sua vontade e velar pela conversão daquela gente.
E se para tal for necessário, podem também sustentar uma guerra ou
declará-la até que propiciem a oportunidade e a segurança para a pregação do
Evangelho. Tem-se o mesmo juízo se, ainda que permitindo a pregação,
impedirem a conversão, matando ou punindo de outra forma os convertidos a
Cristo, ou dissuadindo diversamente os demais por meio de ameaças.
É evidente, pois que com isto os bárbaros fazem injúria aos espanhóis,
como fica claro do que se disse; têm eles, portanto, justo motivo para guerra.
Em segundo lugar, também, porque se contrariaria o interesse [commodum] dos
próprios bárbaros, o que seus príncipes não podem fazer com justiça. Portanto,
em favor dos que são oprimidos e sofrem uma injúria, podem os espanhóis
mover guerra, sobretudo em questão de tamanha importância. A partir de tal
conclusão, fica também evidente, que, por essa mesma razão, se de modo
diverso não se pode encaminhar os assuntos da religião, é lícito aos espanhóis
se apoderar das terras e províncias daqueles, eleger novos senhores, depor os
antigos e levar a cabo, por direito de guerra, o que em outras guerras se poderia
licitamente fazer, conservando-se sempre a moderação e a razão para que não
se vá além do que é preciso. E que antes se renuncie ao próprio direito a
perpetrar o que não é lícito, e conduzindo tudo sempre mais no interesse dos
bárbaros que no do próprio lucro.
Mas se deve ter em grande consideração o que Paulo diz (1. aos Coríntios
6, 12): Tudo me é lícito, mas nem tudo é conveniente. Com efeito, tudo o que se
disse se entende falando do que é lícito em si. Com efeito, pode acontecer que,
com tais guerras, matanças e espoliações, antes se venha a impedir a conversão
dos bárbaros que a buscá-la e promovê-la. Por isso, deve-se manter a
preocupação de, acima de tudo, não criar obstáculo ao Evangelho. Com efeito,
se se criar, dever-se-ia desistir desta maneira de evangelizar e buscar uma outra.
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Quanto a nós, mostramos que, em si, estas coisas são lícitas.
Eu não duvido de que tenha sido necessário aos espanhóis usar da força e
das armas para que pudessem permanecer naqueles lugares; mas temo que se
tenha ido mais longe do que o direito e a justiça permitiam.
Esse, portanto, pôde ser o SEGUNDO TÍTULO LEGÍTIMO pelo qual os
bárbaros puderam cair em poder dos espanhóis. Mas sempre se deve sempre ter
diante dos olhos o que se acabou de dizer, para que aquilo que em si é lícito não
se torne um mal por alguma casualidade [per accidens], pois que o bem provém
da causa íntegra [ex integra causa], mas o mal através da circunstância [per
circumstantiam], conforme Aristóteles ( Ética 3) e Dioniso (4 c. De divinis
nominibus).
OUTRO TÍTULO pôde haver, que deriva desse e é: Se alguns dos
bárbaros foram convertidos a Cristo e seus príncipes, pela força ou pelo
terror, querem fazê-los voltar à idolatria, os espanhóis, por esta razão, também
podem, se de outra forma não for possível, mover-lhes guerra e obrigar os
bárbaros a desistir daquela injúria, contra os contumazes exercer os direitos
da guerra e, conseqüentemente, por vezes depor seus senhores, assim como em
outras guerras justas. E se pode estabelecer esse como o TERCEIRO TÍTULO,
e não apenas título de religião [titulus religionis], mas de amizade e aliança
humana. Com efeito, por terem alguns bárbaros se convertido à religião cristã,
tornaram-se amigos e aliados dos cristãos. E devemos fazer o bem a todos, mas
sobretudo aos que compartilham nossa fé (aos Gál. 6, 10).
14. OUTRO TÍTULO pode ser: Se boa parte dos bárbaros tivesse sido
convertida a Cristo, quer justamente [iure], quer injustamente [iniure], isto é,
através de ameaças ou terrores ou de outra forma injusta, contanto que fossem
cristãos de verdade, o Papa, por uma causa racional, poderia, a pedido deles
ou não, dar-lhes um príncipe cristão e tirar-lhes outros senhores infiéis. Prova-
se. Porque se assim fosse útil à manutenção da religião cristã, já que se teme
que sob senhores infiéis se tornem apóstatas, isto é, abandonem a fé, ou que
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sejam molestados por eles, em favor da fé pode o Papa substituir os senhores.
E se confirma. Porque, como dizem os doutores e, expressamente, São
Tomás (2.2 q. 10 a. 10), a Igreja poderia libertar todos os servos cristãos que
servem aos infiéis, ainda que, de resto, fossem cativos por força de lei
[legitimi]. E isto diz expressamente Inocêncio no capítulo mencionado Super
his, de voto. Portanto, mais ainda poderá libertar os outros súditos cristãos que
não estão adstritos como os servos.
E se confirma. Porque a esposa está tão presa ao marido quanto o súdito
ao senhor, ou mais, uma vez que aquele vínculo é de direito divino, e este não.
Ora, em favor da fé, liberta-se a esposa cristã de um marido infiel, se o marido
lhe molesta por causa da religião, como fica evidente a partir do Apóstolo 1 aos
Coríntios 7, 12-16, etc. e em Quanto, De divortiis. Mais: a tal ponto isto está
estabelecido pelo costume que pelo próprio fato de um dos cônjuges se
converter à fé, fica livre do parceiro que não a tem. Portanto, também a Igreja,
em favor da fé e para evitar riscos, pode libertar todos os cristãos da obediência
e sujeição a senhores infiéis, sem escândalo. E esse se estabelece como
TÍTULO LEGÍTIMO.
15. OUTRO TÍTULO poderia ser por causa da tirania dos próprios
senhores dos bárbaros ou de leis desumanas que prejudicam os inocentes, por
exemplo, porque sacrificam homens inocentes ou, por outro lado, matam
isentos de culpa para se alimentar de sua carne. Digo ainda que, sem a
necessidade de autorização do Pontífice, os espanhóis podem impedir aos
bárbaros todo e qualquer costume e ritual ímpio, porque podem proteger os
inocentes de uma morte injusta.
Isto se prova. Porque a cada qual confiou Deus a preocupação com seu
próximo, e todos aqueles são próximos. Portanto, seja quem for poderia
defendê-los de tal tirania e opressão, e isto toca sobretudo aos príncipes.
Além disso, comprova-o a passagem dos Provérbios 24, 11: Livra os que
são levados à morte, e não deixes de libertar os que são arrastados ao suplício.
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E isto não se compreende apenas em referência ao momento mesmo em que
são levados à morte, mas também pode-se obrigar os bárbaros a renunciar
totalmente a um tal rito. Se se recusam, por esta razão se pode declarar-lhes
guerra e exercer contra eles os direitos da guerra. E se de outra forma não se
pode eliminar um rito sacrílego, podem substituir seus senhores e introduzir um
novo principado [principatum]. Nesse sentido tem um fundo de verdade aquela
opinião de Inocêncio e do Arcebispo: por causa de pecados contra a natureza se
pode puni-los.
Não obsta que todos os bárbaros consintam em leis e sacrifícios assim,
nem que não queiram que os espanhóis os vinguem por isso. Com efeito, nisto
não são de direito seu [sui iuris] a ponto de poder entregar a si próprios ou a
seus filhos à morte. E esse poderia ser o QUINTO TÍTULO LEGÍTIMO.
16. OUTRO TÍTULO poderia ser por verdadeira escolha voluntária, por
exemplo, se os próprios bárbaros, compreendendo a administração sensata e a
humanidade dos espanhóis, voluntariamente quisessem aceitar como seu
príncipe o rei da Espanha, tanto os senhores quanto os demais. Isto, com efeito,
poderia dar-se e seria título legítimo também quanto à lei natural.
Qualquer República pode determinar um senhor para si. Para tal não seria
necessário o consenso de todos, mas parece bastar o consenso da maioria.
Porque, como em outro lugar discutimos, naquilo que toca ao bem da
República, o que é determinado pela maioria obriga até aos que não estão de
acordo, do contrário nada se poderia empreender no interesse da República, já
que é difícil que todos unanimemente cheguem a um mesmo parecer. Assim, se
em alguma cidade ou província a maioria da população fosse cristã e eles, em
favor da fé e pelo bem comum, desejassem ter um príncipe cristão, creio que
poderiam elegê-lo, mesmo com a oposição dos demais e ainda que
abandonando os outros senhores infiéis. Digo também que poderiam eleger um
príncipe não só para si, mas para toda a República. Assim como também os
franceses, pelo bem de sua República, substituíram os príncipes e, tirando de
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Quilderico o reino, confiaram-no a Pepino, pai de Carlos Magno. Tal
substituição o Pontífice Zacarias aprovou. E este pode se estabelecer como
SEXTO TÍTULO.
17. OUTRO TÍTULO poderia ser por causa dos aliados e amigos.
De fato, como os próprios bárbaros travam entre si guerras legítimas, e a
parte que sofreu injúria tem direito de declarar guerra, pode-se apelar aos
espanhóis para que venham em auxílio e repartir as recompensas da vitória,
como, segundo contam, fizeram os tlascaltecas, compondo-se com os espanhóis
para que os ajudassem a combater os mexicanos; teriam, por sua vez, tudo o
que por direito de guerra podia caber-lhes. Que esta seja uma causa justa de
guerra a defesa dos aliados e amigos não há dúvida, como também o declara
Caietano (2.2 q. 40 a. 1). É com toda justiça que pode uma República apelar a
estrangeiros para vingar as injúrias feitas por seus inimigos.
E se confirma. Porque, de fato, foi sobretudo dessa forma que os
Romanos estenderam seu império, isto é, enquanto prestavam auxílio aos
aliados e amigos. E em tal circunstância, empreendendo guerras justas, por
direito de guerra entravam na posse de novas províncias. Entretanto, o império
romano é aprovado como legítimo pelo beato Agostinho (Da cidade de Deus, 1.
3) e por São Tomás (Opúsculo 21). E Silvestre reconheceu Constantino o
Grande como imperador, e Ambrósio a Teodósio. Não parece, porém, que os
romanos tenham entrado na posse do mundo por outro título jurídico que não
por direito de guerra, cuja ocasião foi, sobretudo, a defesa e a vingança dos
aliados. O mesmo aconteceu com Abraão, que para vingar o rei de Salém e seus
aliados, que com ele tinham firmado um tratado, lutou contra quatro reis
daquela região (Gênesis 14, 18-24), dos quais ele próprio não recebera
nenhuma injúria. E esse parece ser o SÉTIMO E ÚLTIMO TÍTULO pelo qual
puderam ou poderiam cair os bárbaros e suas províncias sob o poder e domínio
dos espanhóis.
18. OUTRO TÍTULO poderia não, por certo, afirmar-se, mas ser trazido
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à discussão e a alguns parecer legítimo. Sobre ele, eu, de minha parte, não
ouso afirmar nada, mas nem de todo condenar. E é este: Ainda que esses
bárbaros, como se disse acima, não sejam de todo dementes, entretanto, pouco
distam dos dementes, e assim parece que não sejam idôneos para constituir ou
administrar uma República legítima mesmo em termos humanos e civis. Assim,
não possuem leis adequadas, nem magistraturas, e nem sequer estão
suficientemente capacitados para administrar o que diz respeito à família [rem
familiarem]. Assim, também carecem de letras e artes, não só das liberais, mas
também das mecânicas, de uma agricultura sistemática, de trabalhadores e
muitas outras coisas úteis, até mesmo das necessárias aos interesses humanos.
Poderia, portanto, alguém dizer que, para o bem deles próprios, poderiam
os príncipes espanhóis se encarregar de sua administração e nomear-lhes, em
suas cidades, prefeitos e governadores. Mais: até lhes dar novos senhores,
contanto que ficasse assegurado que isto lhes seria útil.
Isto, digo eu, poderia ser persuasivo, porque se todos eram dementes, não
há dúvida de que isto seria não apenas lícito como apropriadíssimo. Mais: os
príncipes teriam este dever assim como se se tratasse, simplesmente, de
crianças. Ora, parece, a este respeito, haver a mesma razão no que concerne aos
bárbaros e aos dementes, pois que em nada são capazes de governar a si
próprios, ou pouco mais que os dementes. Nem mesmo se diferenciam muito
das feras e das bestas, pois não se servem de alimento mais elaborado nem,
quase, melhores do que estas. Portanto, do mesmo modo poderiam ser
entregues ao governo dos mais sábios.
E isto se confirma aparentemente. De fato, se por alguma casualidade
todos os adultos entre eles perecessem e permanecessem as crianças e jovens
que tivessem algum uso da razão, mas entre os anos de puerícia e puberdade,
parece claro que poderiam os príncipes se encarregar deles e governá-los
enquanto estivessem em tal estado. Se se admite isto, parece certamente que
não se deve negar ser possível fazer o mesmo acerca dos seus pais bárbaros,
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supondo-se real o embotamento que a seu respeito referem os que estiveram
entre eles. Ele é muito maior, dizem, que o que, nas demais nações, há nas
crianças e dementes.
E, por certo, isto se pode fundamentar no preceito da caridade, já que eles
são nossos próximos e temos o dever de cuidar de seu bem. Mas que isto (como
disse) não seja proposto de maneira impositiva e ainda com a restrição de o
fazer pensando no bem e no interesse deles próprios, e não somente no proveito
dos espanhóis. Nisto, com efeito, está todo o perigo das almas e da salvação e a
isto poderia também ser útil o que se disse acima: alguns são por natureza
servos; afinal, assim parecem todos esses bárbaros, e assim poderiam, por esse
lado, ser governados como servos.
Mas de toda a discussão parece seguir que, se cessassem todos esses
títulos pelo fato de os bárbaros não oferecerem nenhum motivo para uma guerra
justa, nem desejarem ter príncipes espanhóis, etc., cessaria toda aquela
peregrinação e comércio, com grande prejuízo dos espanhóis, e até mesmo os
proventos dos príncipes sofreriam grande perda, o que não é aceitável.
Responde-se, primeiramente: não seria bom que cessasse o comércio,
porque, como já se declarou, há muitas coisas entre os bárbaros que eles
próprios têm em abundância e, pela troca, poderiam os espanhóis importar.
Além disso, há muitas outras coisas também que eles próprios dão por
abandonadas, ou são comuns a todos os que querem delas se apoderar. Os
lusitanos têm grande comércio com semelhantes povos, que não submeteram, e
com grande proveito [commodo].
Em segundo lugar, talvez os rendimentos do rei não fossem menores. De
fato, de forma igualmente justa se poderia cobrar um imposto sobre o ouro e a
prata que são importados dos bárbaros, a quinta parte ou ainda mais, de acordo
com a qualidade do produto. E com toda razão, já que a navegação foi
descoberta pelos príncipes e, graças a sua autoridade, estariam em segurança os
negociantes.
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Em terceiro lugar, é evidente que, depois de se ter feito ali a conversão de
muitos bárbaros, já não seria conveniente nem lícito ao príncipe abandonar
completamente a administração daquelas províncias.
SOBRE OS ÍNDIOS
ou do direito de guerra dos espanhóis sobre os bárbaros
SEGUNDO COMENTÁRIO
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espada perecerão. E não parece suficiente responder que tudo isto não se
apresenta sob a forma de preceito, mas de conselho, porque já seria um grande
inconveniente se todas as guerras empreendidas pelos cristãos fossem contrárias
ao conselho de Deus.
Em sentido contrário está o parecer de todos os doutos e o costume
tradicional na Igreja.
Para a explicação da questão, deve-se notar que, embora entre os
católicos haja razoável acordo a respeito desta matéria, Lutero, porém, que nada
deixou incontaminado, nega que aos cristãos seja lícito pegar em armas até
mesmo contra os turcos, baseando-se ora nas passagens da Escritura acima
transcritas, ora também no fato de que se os turcos, diz, invadem a cristandade,
esta é a vontade de Deus, à qual não é lícito resistir. Nesta matéria, entretanto,
não foi capaz de impor-se aos alemães, homens nascidos para as armas, ao
contrário de seus outros dogmas. E Tertuliano não parece estar muito longe
deste parecer, ele que discute, no livro De corona militis, se aos cristãos é
inteiramente conveniente a milícia. E, por fim, parece realmente se inclinar
para este parecer, ou seja, julgar que um cristão está proibido de ser soldado. A
ele, afirma, não é lícito nem mesmo litigar.
1. Mas, deixando de lado opiniões alheias, haja como resposta à questão
uma ÚNICA CONCLUSÃO: É lícito aos cristãos servir como soldado e travar
guerras.
Esta é a conclusão de Agostinho em muitas passagens. De fato, no
Contra Fausto e nas Questões 1. 83, no Das palavras do Senhor, no segundo
livro Contra os Maniqueus, no sermão Do filho do centurião e na epístola A
Bonifácio, expressou-a com eloqüência. E se prova a conclusão, como
Agostinho, a partir das palavras de João Batista (Lucas 3, 14) aos soldados: A
ninguém trateis mal, a ninguém façais injúria. “E se o ensinamento [disciplina]
cristão (diz Agostinho) de todo incriminasse as guerras, dar-se-ia no Evangelho,
de preferência, aos que o solicitavam, este conselho de salvação: depor as
75
armas e subtrair-se de todo à milícia. Foi-lhes dito, porém: A ninguém trateis
mal, contentai-vos com vossas pagas”.
Em segundo lugar, prova-se com a razão de São Tomás (2.2 q.40 a. 1): é
lícito desembainhar a espada e empregar as armas contra malfeitores internos e
cidadãos sediciosos, segundo aquele passo de Rom. 13, 4: Não sem razão leva
a espada; pois um ministro de Deus vinga-se, em sua ira, de quem faz o mal.
Portanto, também é lícito usar da espada e das armas contra inimigos externos.
Assim, se disse aos príncipes no Salmo 81, 4: Arrancai o pobre e libertai o
necessitado das mãos do pecador.
Em terceiro lugar, na lei natural [in lege naturae] isto foi lícito, como fica
evidente no caso de Abraão, que lutou contra quatro reis (Gênesis14, 14).
Igualmente na lei escrita, como fica evidente no caso de Davi e os Macabeus.
Ora, a lei evangélica não interdiz nada que por direito natural é lícito, como
afirma São Tomás elegantemente (1.2 q. 107, último artigo). Por isso é
chamada de lei da liberdade [lex libertatis] (Iac. 1 e 2). Portanto, o que era
lícito na lei natural e escrita não menos o é na lei evangélica.
É que não se pode conceber dúvidas sobre uma guerra defensiva, já que
é lícito repelir a força por meio da força (ff. Da justiça e do direito, 1. vim vi).
Em quarto lugar, prova-se também a respeito da guerra ofensiva, isto é, aquela
na qual não apenas se defendem ou mesmo se reclamam coisas, mas se pede
satisfação por uma injúria recebida. Prova-se, digo eu, pela autoridade do livro
de Agostinho, Questões 83, e o mesmo se vê no cap. Senhor 23 q. 2: Costuma-
se definir guerras justas as que vingam injúrias, se se deve punir uma nação
ou uma cidade que não se preocupou em vingar a improbidade feita pelos
seus ou devolver o que se tirou injustamente.
Uma quinta prova diz respeito à guerra ofensiva, porque até mesmo uma
guerra defensiva não pode ser travada adequadamente [commode] a não ser que
também se exerça a vingança sobre os inimigos que cometeram a injúria ou
tentaram cometê-la. Com efeito, os inimigos se tornariam mais audaciosos para
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de novo atacar, se por temor do castigo não fossem dissuadidos da injúria.
Uma sexta prova: porque o fim [finis] da guerra é a paz e segurança da
República, como diz Agostinho no Das palavras do Senhor e A Bonifácio. Ora,
não pode haver segurança na República se os inimigos não forem dissuadidos
da injúria pelo receio de uma guerra. Seria, com efeito, de todo iníqua a
condição da guerra se, sendo a República atacada injustamente pelos inimigos,
só fosse lícito à ela detê-los os inimigos para que não pudessem avançar mais
além.
Prova-se, em sétimo lugar, a partir do fim e do bem de todo o mundo. De
fato, o mundo não poderia mesmo permanecer num estado de felicidade [in
felici statu], pelo contrário, péssima seria a condição de tudo, se os tiranos,
ladrões e raptores pudessem impunemente cometer injúrias e oprimir os bons e
os inocentes, sem que fosse lícito a estes, por sua vez, punir os culpados.
Uma oitava e última prova: porque, na moral [in moralibus], o mais
poderoso argumento provém da autoridade e dos exemplos dos santos e dos
homens de bem. Ora, houve muitos que não só protegeram a pátria e seus bens
numa guerra defensiva, como também, numa guerra ofensiva, vingaram as
injúrias recebidas dos inimigos ou por eles tentadas, como fica evidente a
respeito de Jonas e Simão (Mach. 9, 38), que vingaram a morte de seu irmão
João nos filhos de Jambro. E, na Igreja cristã, fica evidente em Constantino o
Grande, Teodósio o Maior e outros ilustríssimos e cristianíssimos imperadores
cristãos, que travaram muitas guerras de uma e outra espécie, tendo, em seus
conselhos, os mais santos e doutos bispos.
2. SEGUNDA QUESTÃO: Quem tem autoridade para travar ou declarar
guerra?
3. A esse respeito, seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Qualquer um
pode empreender uma guerra defensiva, até mesmo um particular. Isto é
evidente. De fato, é lícito repelir a força com a força, conforme o texto citado
acima. Assim, qualquer um pode travar este tipo de guerra sem autorização de
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um outro, não só para defender sua pessoa, mas também suas coisas e bens.
4. Mas acerca dessa conclusão, surge uma primeira dúvida: Se alguém,
atacado por um ladrão ou inimigo, poderia repelir o agressor com o uso da
força, mesmo podendo evitá-lo fugindo?
O Arcebispo, por seu lado, responde que não. Porque já não se trata de
defesa com a moderação de uma defesa irrepreensível [cum moderamine
inculpatae tutelae]. Todo mundo, de fato, vê-se obrigado a se defender o
máximo possível com dano mínimo ao agressor. Se, porém, para resistir for
necessário matar ou ferir gravemente o agressor, sendo que se pode, entretanto,
escapar pela fuga, parece que se tem tal dever. Mas o Panormitano (c. Um dia,
Da restituição dos espoliados) distingue: com efeito, se o agredido viesse a
sofrer grande desonra fugindo, não é obrigado a fazê-lo, mas pode, revidando,
repelir a injúria. Se, porém, sua fama ou honra não fosse arranhada, como um
monge ou um camponês agredido por um homem nobre e forte, tem-se, antes,
o dever de fugir.
Bártolo, por sua vez (l. 1 ff. Das penas e em l. Dos sicários) sustenta,
indistintamente, que é lícito se defender e não se é obrigado a fugir, porque a
fuga é uma injúria (l. Igualmente, em Labeão ff. Das injúrias). Se, porém, em
defesa dos bens, é lícito resistir com armas, como consta no capítulo
mencionado Um dia e no cap. Dilecto, De sentent. excommunicat., livro 6),
muito mais para afastar a injúria corporal, que é maior do que a perda [iactura]
dos bens (l. In servorum, ff. Das penas). E tal opinião se pode sustentar com
confiabilidade [probabiliter] e bastante segurança, sobretudo quando o direito
civil o conceda, como na lei mencionada Furem. Ora, com a autoridade da lei
ninguém peca, pois que as leis dão o direito no foro da consciência. Por isso,
mesmo se por direito natural não fosse lícito matar em defesa dos bens, parece
que pelo direito civil tal se tornou lícito. E isto, excluindo-se o escândalo,
parece ser lícito não só ao laico como também ao clérigo e ao homem religioso.
5. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Qualquer República tem autoridade para
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declarar e fazer guerra.
Para prová-la, deve-se notar que há, quanto a isso, uma diferença entre
uma pessoa privada e a República. Porque uma pessoa privada tem certamente
o direito de defender a si e às suas coisas, como se disse. Mas não tem o direito
de vingar uma injúria e muito menos reclamar, após um intervalo de tempo, as
coisas que lhe foram subtraídas; é preciso que a defesa se faça na situação de
perigo, o que os jurisconsultos denominam in continenti. Assim, passada a
necessidade de defesa, cessa a licença para a guerra. Creio, porém, que a vítima
de uma injúria pode revidar imediatamente, mesmo se o agressor não devesse ir
além. Ora, alguém que, por exemplo, recebeu um tapa, poderia revidar
imediatamente com a espada, não para se vingar, mas para evitar a infâmia e a
ignomínia. Ora, uma República tem autoridade não só para se defender como
também para vingar a si e aos seus e reparar as injúrias. O que se prova, pois
que, como Aristóteles diz (Política 3), um Estado deve ser auto-suficiente [sibi
sufficiens]. Ora, ela não poderia suficientemente preservar o bem público e o
seu estado [statum], se não pudesse vingar a injúria e punir os inimigos. Com
efeito, tornar-se-iam (como se disse acima) os maus mais atrevidos e prontos
para cometer uma injúria, se pudessem fazê-lo impunemente. E, por isso, é
necessário à adequada administração das coisas mortais que esta autoridade seja
concedida à República.
6. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: O príncipe, quanto a isso, tem a mesma
autoridade que a República. Este é o parecer de Agostinho, expresso no Contra
Fausto: “A ordem natural apropriada à paz requer que a autoridade e a decisão
de empreender uma guerra sejam responsabilidade dos príncipes”. E se prova
racionalmente. Porque o príncipe não o é senão por escolha da República.
Portanto, faz as vezes dela e se investe de sua autoridade. Mais: quando os
príncipes são legítimos numa República, toda a autoridade reside neles; sem
eles, nada se pode realizar no âmbito público, tanto na guerra como na paz.
7. Mas toda a dificuldade está em determinar o que é uma República e a
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quem se diz, propriamente, príncipe. A isto se responde brevemente que uma
República, em sentido próprio, é uma comunidade perfeita [perfecta
communitas]. Mas isto mesmo é duvidoso: que é uma comunidade perfeita?
A esse respeito se deve notar que é perfeito o que é um todo. Denomina-
se, com efeito, imperfeito aquilo a que falta algo e, contrariamente, perfeito
aquilo a que nada falta. É, pois, uma República ou uma comunidade perfeita a
que é em si mesma um todo, isto é, que não é parte de outra República, mas tem
suas próprias leis, seu próprio conselho e seus próprios magistrados, como é o
reino de Castela e Aragão, o principado de Veneza e outros semelhantes. Nem
obsta, aliás, que haja muitos principados e Repúblicas sob o poder de um só
príncipe. Portanto, tal República, ou seu príncipe, tem autoridade para declarar
guerra – e só ela.
8. Mas a partir disso mesmo se pode duvidar, com toda razão, se quando
muitas Repúblicas ou príncipes assim tenham um único senhor ou príncipe,
eles podem por si próprios declarar guerra, sem autorização do príncipe
superior. Respondo que sem dúvida o podem, assim como os reis que estão
submetidos ao imperador podem guerrear entre si, sem esperar a autorização do
imperador. Porque (como se disse) uma República deve ser auto-suficiente e
não o seria sem tal faculdade.
9. Disso segue, e se evidencia, que outros régulos ou príncipes que não
presidem a uma República perfeita, mas são partes de uma outra, não podem
declarar guerra ou empreendê-la, como o duque de Alba ou o conde de
Benevento, pois são partes do reino de Castela e, conseqüentemente, não
presidem Repúblicas perfeitas. Mas, como isto tudo é, em grande parte, do
direito das gentes ou do humano, o costume pode propiciar a faculdade e a
autoridade para empreender uma guerra. Assim, se alguma cidade ou um outro
príncipe obteve, por costume antigo, o direito de travar guerra por conta
própria, não se lhe deve negar tal autoridade, mesmo se, de resto, não se tratar
de uma República perfeita. Igualmente, também a necessidade poderia conceder
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esta licença e autoridade. Com efeito, se num mesmo reino uma cidade atacasse
outra, ou algum dos duques um outro duque, e o rei não se importasse ou não
ousasse vingar as injúrias recebidas, a cidade ou o duque que sofreu uma injúria
poderia não só se defender como também declarar guerra, punir os inimigos e
até mesmo matar os malfeitores, já que, de outro modo, não poderia se defender
a contento. De fato, os inimigos não se absteriam da injúria se os que a sofrem
se contentassem apenas em se defender. Por essa razão, também se concede a
um homem privado o poder de agredir seu inimigo, se não lhe restar outro
meio para se defender da injúria. Isso basta para esta questão.
10. A TERCEIRA QUESTÃO é: Qual poderia ser a razão e a causa de
uma guerra justa? Tal questão é mais necessária ao tema dos bárbaros e sua
discussão.
Para ela, seja esta a primeira proposição: A diversidade de religião não é
causa de uma guerra justa. Ficou ela provada abundantemente no primeiro
comentário, quando impugnamos o quarto título que se pode alegar para a posse
dos bárbaros, isto é, o fato de que se recusam a abraçar a fé cristã. Este é o
parecer de São Tomás (2.2 q. 66 a. 8) e pensamento geral dos doutos, e não
conheço ninguém que pense o contrário.
11. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Não é justa causa de guerra a
ampliação do império.
Esta é por demais conhecida para que necessite de prova; de resto, seria
igualmente justa a causa de ambas as partes beligerantes, e, assim, todos seriam
inocentes. Disso segue, novamente, que não seria lícito matar aqueles que o
atacam, ainda que fosse uma guerra justa, o que implica em uma contradição.
12. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Não é causa justa de guerra a própria
glória ou um outro proveito do príncipe.
Esta também é conhecida. De fato, o príncipe deve ordenar a paz e a
guerra para o bem comum da República, e não se apropriar das rendas públicas
visando à sua própria glória ou interesse, muito menos expor seus concidadãos
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aos perigos. Há entre um rei legítimo e um tirano esta diferença: o tirano
organiza o governo com vistas a seu próprio proveito e interesse; um rei,
porém, com vistas ao bem público, como diz Aristóteles (Política 4, c. 10).
Além disso, tem autoridade conferida pela República, logo deve usá-la
para o bem desta. Além disso, as leis devem ser elaboradas com vistas não a
algum proveito privado [nullo privato commodo], mas ao interesse comum [pro
communi utilitate] dos cidadãos, como se tem em dist. 4, cap. Erit autem lex, a
partir de Isidoro. Logo, também as leis da guerra devem visar ao interesse
comum, e não ao interesse particular de um príncipe.
Além disso, nisto diferem os homens livres dos escravos, como diz
Aristóteles (Política 1, cap. 3 e 4): os senhores se servem dos escravos em seu
próprio interesse, não no dos escravos. Os homens livres, por sua vez, não o são
para os outros, mas para si mesmos. Daí os príncipes abusarem dos cidadãos
forçando-os a servir no exército e a contribuir com dinheiro para a guerra, não
com vistas ao bem público, mas para seu interesse particular, é tornar escravos
os cidadãos.
13. QUARTA PROPOSIÇÃO: A única e exclusiva causa justa para a
declaração de uma guerra é o recebimento de uma injúria.
Esta se prova, em primeiro lugar, com a autoridade de Agostinho
(Questões, livro 83): “Costuma-se definir guerras justas”, etc., conforme acima
se referiu. E é a determinação de São Tomás (2.2 q. 40 a. 1) e de todos os
doutos.
Além disso, uma guerra ofensiva existe para vingar uma injúria e punir os
inimigos, como se disse. Ora, não pode haver vingança quando não houve culpa
e injúria precedente. Portanto...
Ademais, um príncipe não tem maior autoridade sobre os estrangeiros
que sobre os seus. Ora, contra os seus não pode desembainhar a espada se não
cometeram uma injúria. Portanto, nem contra estrangeiros. E se confirma a
partir do que acima se transcreveu de Paulo (Rom. 13, 4) sobre o príncipe: Não
82
sem razão leva a espada, pois é um ministro de Deus: vinga-se, em sua ira, de
quem faz o mal. A partir disso, resulta evidente que não é lícito usar da ira da
espada contra os que a nós não fazem mal algum, uma vez que matar inocentes
é proibido pelo direito natural. Deixo de discutir, por ora, se porventura Deus
preceituaria algo de especial [specialiter], uma vez que Ele próprio é Senhor da
vida e da morte e poderia dispor de forma diversa segundo seu próprio direito
[pro suo iure].
14. QUINTA PROPOSIÇÃO: Não é toda e qualquer injúria suficiente
para declarar guerra.
Prova-se esta. Porque nem mesmo nas pessoas do povo e nos naturais do
país é lícito por qualquer culpa infligir castigos atrozes, como a morte, o exílio
ou o confisco dos bens. Portanto, sendo tudo o que se faz na guerra mais grave
e mais atroz, como os morticínios, os incêndios e as devastações, não é lícito,
por causa de injúrias leves, perseguir com uma guerra os autores das injúrias,
pois que segundo a gravidade do delito [iuxta mensuram delicti] deve ser a
quantidade dos golpes (Deut. 25, 2).
15. A QUARTA QUESTÃO diz respeito ao direito de guerra, ou seja, o
que, e em que medida, é lícito numa guerra justa.
Sobre ela seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Numa guerra é lícito
fazer tudo o que é necessário para a defesa do bem público.
Isso é evidente, uma vez que o objetivo de uma guerra é defender e
preservar a República. Tal é igualmente lícito a um particular para sua defesa,
como se provou. Portanto, muito mais é lícito à República e ao príncipe.
16. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: É lícito reaver todos os bens perdidos e
seu valor.
Esta também é por demais conhecida para que precise de prova. Para tal
fim, com efeito, é que se declara ou se empreende uma guerra.
17. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: É lícito ressarcir com os bens dos
inimigos as despesas da guerra e todos os danos infligidos injustamente por
83
eles.
Esta é evidente, uma vez que a tudo isto estão obrigados os inimigos que
cometeram a injúria. Portanto, o príncipe pode reclamar tudo aquilo e exigi-lo
com uma guerra. Além disso, como anteriormente se disse, não restando outro
caminho, é lícito a um particular reclamar toda dívida ao devedor.
Por fim, se alguém fosse um juiz legítimo de uma e outra parte
beligerante, deveria condenar os agressores injustos e os autores da injúria, não
somente no sentido da restituição dos bens subtraídos como no do
ressarcimento das despesas da guerra e de todos os danos. Ora, um príncipe
que trava uma guerra justa, comporta-se na causa da guerra como um juiz,
conforme diremos logo a seguir. Portanto, também ele pode exigir tudo aquilo
dos inimigos.
18. QUARTA PROPOSIÇÃO: Não somente estas coisas são lícitas
como pode ir além o príncipe de uma guerra justa, o quanto for necessário
para obter dos inimigos a paz e a segurança. Ele pode, por exemplo, destruir a
fortaleza dos inimigos e em seu território erguer fortificações, se isto for
necessário para evitar perigo da parte dos inimigos.
Prova-se. Porque, como se disse acima, o fim da guerra é a paz e a
segurança. Portanto, a quem trava uma guerra justa são lícitas todas as coisas
necessárias para se obter a paz e a segurança. Além disso, a tranqüilidade e a
paz se contam entre os bens humanos, de onde segue que nem mesmo os
maiores bens proporcionam, sem a segurança, o estado de felicidade. Portanto,
se os inimigos abalam e turvam a tranqüilidade da República, é lícito vingar-se
deles pelos meios adequados.
O mesmo ocorre contra inimigos internos, isto é, contra os maus
cidadãos. Logo, também contra inimigos externos. O antecedente é óbvio: se
alguém na República cometeu uma injúria contra um cidadão, o magistrado não
só obriga seu autor a satisfazer ao ofendido, mas também, se se receia algo de
sua parte, a apresentar fiadores [fideiussores] ou afastar-se da cidade, para
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evitar o perigo que representa.
A partir disso fica evidente que, obtida a vitória e recuperados os bens, é
lícito exigir dos inimigos reféns, navios, armas e tudo o mais que, sem fraude e
dolo, for necessário para manter os inimigos no seu dever e evitar perigo de sua
parte.
19. QUINTA PROPOSIÇÃO: Não é lícito somente isto mas também,
depois de obtida a vitória, recuperados os bens e estabelecida a paz e a
segurança, vingar a injúria recebida dos inimigos, castigá-los e puni-los pelas
injúrias infligidas.
Para sua prova, deve-se notar que os príncipes não só têm autoridade
sobre os seus, mas também sobre os estrangeiros, a fim de que, reprimindo-os,
abstenham-se das injúrias – e isto por direito das gentes e pela autoridade de
todo o mundo. Mais: parece que isso se dá também por direito natural, uma vez
que, de outra forma, o mundo não poderia subsistir, se não houvesse nas mãos
de alguns força e autoridade para dissuadir os ímprobos e reprimi-los, a fim de
que não causem dano aos bons e aos inocentes. Ora, o que é necessário ao
governo e à conservação do mundo é de direito natural, e não há outra razão
pela qual se possa provar que a República tem, por direito natural, autoridade
para submeter ao suplício e às penas os seus cidadãos que são perniciosos à
República. E se a República tem tal poder sobre os seus, não há dúvida de que
o mundo também o tem sobre todos os homens perniciosos e nefastos, e isto
não apenas por meio dos príncipes. Portanto, é certo que os príncipes podem
punir os inimigos que praticaram uma injúria contra a República, e
especialmente depois de se ter empreendido a guerra segundo os ritos devidos
[rite] e a justiça, pois então os inimigos ficam submetidos ao príncipe como a
seu próprio juiz.
E ela se confirma. Porque realmente não se pode ter nem a paz nem a
tranqüilidade, que são o fim da guerra, se os inimigos não sofrerem males e
danos que os dissuadam de cometer de novo algo semelhante. Tudo isso
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também se prova e se confirma com a autoridade e os exemplos dos homens de
bem. Com efeito, como se mencionou acima, os Macabeus travaram guerras
não apenas para recuperar os bens perdidos, mas para vingar as injúrias. O
mesmo fizeram príncipes cristianíssimos e imperadores religiosíssimos. Além
disso, não se elimina a ignomínia e a desonra da República apenas desbaratando
os inimigos, mas afligindo-os e castigando-os com a severidade da pena. O
príncipe, por sua vez, tem o dever de defender e preservar não só as coisas
alheias, mas a honra e a autoridade da República.
De tudo o que se disse acima, nascem muitas dúvidas. Uma primeira
dúvida repousa acerca da justiça da guerra: se para uma guerra justa é
suficiente que o príncipe acredite que tem uma causa justa.
20. Quanto a isto, seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Nem sempre é
suficiente.
Prova-se, em primeiro lugar, com o fato de que em outras causas menores
não é suficiente nem ao príncipe nem a particulares que acreditem agir com
justiça, como se sabe. Podem, com efeito, errar de forma superável ou levados
por uma paixão [affectate], e para um ato bom não basta o parecer de cada qual,
mas é preciso que se aja segundo o juízo do sábio, como se evidencia na Ética
2. Além disso, do contrário seguiria que, na maior parte das vezes, haveria
guerras justas de uma e outra parte. Comumente, com efeito, não acontece de os
príncipes travarem guerra de má fé, mas de acreditarem que estão seguindo a
causa justa; assim, todos os beligerantes seriam inocentes e, conseqüentemente,
não seria lícito matá-los em combate. Além disso, até mesmo os turcos e os
sarracenos travariam guerras justas contra os cristãos, pois julgam estar
prestando um serviço a Deus.
21. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Para uma guerra justa, deve-se
examinar com grande empenho a justiça e as causas da guerra e ouvir
também as razões dos adversários, se quiserem dialogar de modo justo e reto.
Com efeito, em tudo o sábio (como diz o cômico)15 deve recorrer
Terêncio: a frase já fora citada no primeiro comentário.
15
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primeiro às palavras que às armas. Deve-se consultar os homens probos e
sábios, que falam com liberdade e sem ira, ódio ou paixão. Pois não se
distingue a verdade facilmente (como diz Crispo)16 quando estão presentes tais
sentimentos. Isto é evidente. De fato, se nas coisas da moral [in rebus
moralibus] é difícil chegar ao verdadeiro e ao justo, caso sejam tratadas de
forma negligente facilmente se errará, e tal erro não escusará seus autores,
sobretudo em matéria tão importante, que envolve o perigo e a desgraça de
muitos que, no fim das contas, são próximos a quem devemos amar como a nós
próprios.
22. SEGUNDA DÚVIDA: Têm os súditos o dever de examinar a causa
da guerra, ou podem militar sem nenhuma preocupação a esse respeito, do
mesmo modo que os litores podem executar o decreto do pretor sem nenhum
outro exame?
Sobre esta dúvida, seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Se um súdito
está certo da injustiça de uma guerra, não lhe é lícito militar nela, mesmo sob
ordem do príncipe. É evidente, pois que não é lícito matar um inocente sob não
importa que autoridade. Ora, os inimigos são inocentes nesse caso. Portanto,
não é lícito matá-los.
Além disso, um príncipe erra declarando guerra nesse caso. Ora, não só
os que agem mal, mas os que concordam com os que assim o fazem, são dignos
da morte (aos Rom. 1, 32). Portanto, os soldados que também lutam de má fé
não têm escusa. Além disso, não é lícito matar cidadãos inocentes a mando do
príncipe. Portanto, nem estrangeiros.
23. Disso segue, como corolário: Se os súditos têm consciência da
injustiça de uma guerra, não lhes é lícito nela servir, quer estejam errados,
quer não. É evidente, pois que o que não está de acordo com a fé, é pecado
(aos Rom. 14, 23).
24. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Senadores, régulos e, em geral todos os
que, quer tenham sido convocados, quer tenham vindo espontaneamente, são
Gaio Salústio Crispo, historiador romano da época de Cícero.
16
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admitidos ao conselho público ou do príncipe, devem e são obrigados a
examinar a causa da guerra justa.
É evidente, pois que todo aquele que pode impedir o perigo e o dano do
próximo tem esse dever, sobretudo quando se trata de perigo de morte e de
males maiores, como acontece na guerra. Ora, tais homens podem, com seu
conselho e autoridade, examinando as causas da guerra, evitá-la, se porventura
for injusta. Portanto, têm esse dever. Ademais, se por negligência desses se
travasse uma guerra injusta, eles pareceriam dar seu consentimento, já que a
cada um se imputa o que pode e deve impedir, se não o impede.
Além disso, o rei sozinho não basta para examinar as causas da guerra, e
é de se imaginar que possa vir a errar, ou mesmo que errará, para grande mal e
desgraça de muitos. Portanto, não só a partir do parecer do rei, mas de muitos
dos sábios e dos probos é que se deve travar uma guerra.
25.TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Os outros inferiores que não são
admitidos nem são ouvidos pelo príncipe ou em conselho público não têm o
dever de examinar as causas da guerra, mas podem, acreditando em seus
superiores, servir como soldado licitamente.
Prova-se, em primeiro lugar, com o fato de que não é possível, nem seria
conveniente, dar explicações sobre todos os negócios públicos à plebe. Por
outro lado, ainda que porque os homens de classe inferior entendessem a
injustiça da guerra, não poderiam impedi-la e seu parecer não seria ouvido.
Portanto, em vão examinariam as causas da guerra. Além disso, porque a tais
homens, até prova em contrário, deve ser um argumento suficiente em prol da
justiça da guerra o fato de que seja travada por iniciativa do conselho público e
da autoridade. Portanto, eles não precisam realizar um exame ulterior.
26. QUARTA PROPOSIÇÃO: Assim mesmo, poderia haver argumentos
e indícios da injustiça da guerra tais que nem a ignorância escusaria, por
servirem no exército, a esses súditos.
É evidente, porque poderia ser tal ignorância fingida e concebida por
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uma simpatia perversa pelos inimigos. Do contrário os fiéis seriam escusados
de seguir seus príncipes à guerra contra os cristãos e não seria lícito matá-los,
uma vez que é certo que crêem ter uma justa causa de guerra. Além disso,
escusar-se-iam os soldados que crucificaram Cristo levados pela ignorância,
seguindo o edito de Pilatos. Por fim, também se escusaria o povo judeu, que,
persuadido por seus maiorais, gritava: Acaba, acaba com ele, crucifica-o!
27. TERCEIRA DÚVIDA: Que se deve fazer quando a justiça da guerra
é duvidosa, isto é, quando de um e outro lado existem razões aparentes e
prováveis.
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO, no que toca aos próprios príncipes: Parece
que, se alguém está em posse legítima, enquanto permanecer a dúvida, não
pode um outro reclamá-la por meio da guerra e das armas. Por exemplo: se o
rei dos franceses está em posse legítima da Borgonha, se for duvidoso se tenha
direito a ela ou não, não parece que o imperador possa reclamá-la com as
armas. Por outro lado, nem o rei dos franceses o pode fazer a respeito de
Nápoles ou Milão, se é duvidoso a quem pertençam por direito.
Prova-se. Porque, na dúvida, é melhor a condição do possuidor
[possidentis]. Portanto, não é lícito espoliar o possuidor em caso duvidoso.
Além disso, se tal situação fosse levada diante de um juiz legítimo, nunca, em
caso duvidoso, o juiz espoliaria o possuidor. Portanto, supondo que aquele
príncipe que pretexta seu direito seja juiz naquela causa, ele não pode
licitamente espoliar o possuidor enquanto permanecer a dúvida sobre o direito.
Ademais, nas coisas e causas dos particulares, nunca em causa duvidosa
é lícito espoliar um possuidor legítimo. Portanto, tampouco nas causas dos
príncipes, já que as leis são feitas por eles. Se, assim, segundo as leis humanas
não é lícito, em causa duvidosa, espoliar um possuidor legítimo, então, com
toda justiça se pode lançar ao rosto dos príncipes: sofre a lei que tu próprio
apresentaste. Com efeito, o que cada um estabeleceu como direito para os
outros, do mesmo direito deve ele próprio se servir. Do contrário haveria
89
guerra justa de ambas as partes e nunca se poderia chegar a um termo. Se, com
efeito, em causa duvidosa é lícito a um reclamar alguma coisa pelas armas,
então ao outro é lícito defender-se. E depois que um a tivesse reavido, poderia
de novo o outro voltar a reclamá-la, e assim nunca as guerras teriam fim, para
desgraça e calamidade dos povos.
28. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Se uma cidade ou província a respeito
da qual há dúvida não tem possuidor legítimo, como, por exemplo, no caso de
ter sido abandonada com a morte de seu senhor e há dúvida sobre se o rei da
Espanha ou o da França é seu herdeiro, parece de direito [iure] que, se um
deles quiser fazer um acordo, dividindo ou recompensando o outro por sua
parte, este é obrigado a aceitar as condições, ainda que seja mais poderoso em
forças e possa, com as armas, apoderar-se de tudo, sendo que não teria causa
justa para a guerra.
Prova-se. Porque o outro não comete injúria, numa causa em que há
paridade de direitos [in pari causa], demandando uma parte igual. Além disso,
nas causas privadas, mesmo em matéria duvidosa não seria lícito se apoderar
de tudo. Do contrário, também aqui a guerra seria justa do ponto de vista de
ambas as partes. Além disso, um juiz justo a nenhum dos dois concederia e
atribuiria tudo.
29. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Quem tem dúvida sobre seu direito,
ainda que possua pacificamente, tem o dever de examinar a causa
cuidadosamente e ouvir pacificamente as razões da outra parte, se porventura
puder vir a saber o que é certo, quer em seu benefício, quer no do outro.
Prova-se esta com o fato de que já não possui de boa fé quem tem dúvida
e não se preocupa em saber a verdade. Além disso, em causa matrimonial, se
alguém, ainda que legítimo possuidor, começa a duvidar se tal mulher é sua ou
de outro, é certo que tem o dever de examinar o caso. Portanto, pela mesma
razão em outras causas.
Além disso, os príncipes são juízes em suas próprias causas, porque não
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têm superiores. Ora, é certo que se alguém, contra o possuidor legítimo, opõe
alguma objeção, o juiz tem o dever de examinar a causa. Portanto, também os
príncipes, em matéria duvidosa, têm o dever de examinar a causa.
30. QUARTA PROPOSIÇÃO: Examinada a causa, enquanto perdurar
racionalmente a dúvida, o possuidor legítimo não é obrigado a ceder a posse,
mas pode retê-la licitamente.
Em primeiro lugar, é evidente pelo fato de que o juiz não poderia espoliá-
lo. Portanto, ele próprio não é obrigado a ceder a posse nem no todo nem em
parte. Além disso, na causa matrimonial, em matéria duvidosa não se é
obrigado a ceder, como se tem no cap. Inquisitioni, de sententia excommunicat.
e no cap. Senhor, das segundas núpcias. Portanto, nem em outras causas.
Adriano (q. 2 Quodlib. 2) sustenta expressamente que quem duvida pode deter
licitamente a posse.
Isto no que tange aos próprios príncipes em matéria duvidosa. Mas, no
que diz respeito aos súditos em dúvida sobre a justiça da guerra, o mesmo
Adriano (Quodlib. 2), com relação ao primeiro argumento principal, diz que o
súdito em dúvida sobre a justiça da guerra, isto é, sobre se a causa que se alega
é suficiente, não pode licitamente, mesmo sob as ordens de seu superior,
militar em tal guerra. Prova-se. Porque ele se expõe ao risco do pecado mortal.
Além disso, porque o que não está em consonância com a fé, é pecado, o que,
segundo os doutores e a verdade, não se entende somente como o que vai contra
a consciência certa [certam] ou contra a opinativa [opinativam], mas também
contra a duvidosa [dubiam]. O mesmo parece sustentar Silvestre no verbete
Bellum 1 § 9.
31. Mas seja esta a QUINTA PROPOSIÇÃO: Em primeiro lugar, não se
deve duvidar de que numa guerra defensiva seja lícito aos súditos, em caso de
dúvida, seguir seu príncipe na guerra, ou melhor, que têm o dever de fazê-lo.
Mas também numa guerra ofensiva.
Prova-se. Em primeiro lugar, porque o príncipe, como se disse, não pode
91
nem deve sempre explicar aos súditos as razões da guerra. E se os súditos não
pudessem servir como soldados senão depois de conhecerem a justiça da
guerra, a República estaria sob sério perigo, entregue à injúria dos inimigos.
Além disso, em havendo dúvida, deve-se seguir a parte mais segura. Ora, se os
súditos, em caso de dúvida, não seguirem o seu príncipe na guerra, expõem-se
ao perigo de entregar a República aos inimigos, o que é muito mais grave do
que lutar contra inimigos havendo dúvida. Portanto, devem, de preferência,
lutar.
Acresce uma prova manifesta: um litor tem o dever de cumprir a sentença
do juiz ainda que não tenha certeza de que é justa. O contrário, com efeito, seria
muito perigoso. Além disso, é esse argumento que Agostinho parece defender
no Contra os maniqueus: “O justo, se porventura também servir como soldado
sob um rei sacrílego, pode, corretamente, a mando dele, guerrear, se há certeza
de que o que lhe foi ordenado não é contra o preceito de Deus, ou se não há
certeza de que o seja” (23 q. 1 Quid culpatur). Eis Agostinho a dizer com todas
as letras que, se não há certeza, isto é, se há dúvida sobre se isso é contra o
preceito de Deus, é lícito ao súdito guerrear. Nem Adriano pode descartar a
autoridade do parecer de Agostinho, por mais que o tente. Nossa conclusão,
pois, é, sem sombra de dúvida, esse posicionamento de Agostinho.
Nem vale dizer que tal homem deve eliminar a dúvida e se conscientizar
de que a guerra é justa, pois sempre pode acontecer que, falando em termos de
moral [moraliter loquendo], não o possa, assim como nas outras coisas
duvidosas. Quanto a Adriano, parece ter errado em julgar que, se tenho dúvida
sobre se esta guerra é justa para o príncipe ou se há uma causa justa para esta
guerra, segue-se imediatamente que eu tenha dúvida sobre se me é lícito ir a
esta guerra ou não. Com efeito, admito que de nenhum modo é lícito agir contra
a dúvida da consciência e, se tenho dúvida sobre se me é lícito fazer isto ou
não, peco se vier a fazê-lo. Mas não segue que, se tenho dúvida sobre se é justa
a causa desta guerra, tenho, portanto, dúvida sobre se me é lícito guerrear ou
92
servir como soldado nesta guerra. Mais: o contrário é o que se deduz. Se, com
efeito, tenho dúvida sobre se uma guerra é justa, segue-se que me é lícito
guerrear sob as ordens de meu príncipe; assim como não se segue que, se o litor
tem dúvida sobre se a sentença do juiz é justa, então tem dúvida sobre se lhe é
lícito cumpri-la; mais: sabe que tem o dever de cumpri-la. Da mesma forma, se
eu tenho dúvida sobre se esta mulher é minha esposa, não segue que duvide
também sobre se devo cumprir minhas obrigações para com ela.
32. A QUARTA DÚVIDA é se pode haver guerra justa de ambas as
partes.
Responde-se. PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Descartando-se a ignorância,
é claro que isso não pode acontecer.
Porque, se há certeza sobre o direito e a justiça da outra parte, não é lícito
guerrear contra ela, nem ofensiva nem defensivamente.
SEGUNDA: Supondo que haja ignorância provável [probabili] de um
fato ou de um direito, pode haver guerra justa em si para a parte em que se
encontra a verdadeira justiça; da outra parte, por sua vez, também há guerra
justa, isto é, escusada do pecado pela boa fé. Porque a ignorância insuperável
escusa por inteiro. De mais a mais, pelo menos da parte dos súditos isso pode
acontecer amiúde. Com efeito, supondo que o príncipe que trava uma guerra
injusta esteja ciente da injustiça da guerra, no entanto (como se disse) os
súditos podem, em boa fé, seguir seu príncipe. E assim, de ambas as partes, os
súditos combatem licitamente.
33. Mas disso se segue a QUINTA DÚVIDA: Quem por ignorância
serviu numa guerra injusta, se depois tiver certeza da injustiça da guerra, tem
o dever de restituir, quer falemos do príncipe, quer do súdito.
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Se, com efeito, se prova a injustiça da
guerra, tem-se, diante de tal conhecimento, o dever de restituir o que se tirou e
que ainda não se consumiu, isto é, tudo quanto o fez mais rico; não, porém, o
que já se gastou.
93
Porque é regra do direito que quem não é culpado não deve sofrer
prejuízo [damno]. Assim como quem de boa fé esteve no banquete esplêndido
de um ladrão, ao saber que se consumiram coisas roubadas, não tem o dever de
restituir senão, porventura, o que tivesse consumido em sua casa. Se, porém, se
teve dúvida sobre a injustiça da guerra depois de se submeter à autoridade do
príncipe, diz Silvestre, no verbete Bellum, primeiro § 9, que se está obrigado a
restituir tudo, pois se guerreou de má fé.
Assim, em conformidade com o que se disse acima, estabeleço uma
SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Tampouco este último está obrigado a restituir o
que gastou, da mesma forma que os outros. Pois, como já se disse, esta pessoa
lutou de boa fé e de forma lícita. Mas seria verdadeiro o que disse Silvestre se
duvidasse que lhe era lícito ir à guerra, pois nesse caso estaria agindo contra a
consciência.
Mas se deve levar em grande consideração que sempre é possível que
uma guerra seja justa e lícita em si mesma e, por outro lado, ilícita por alguma
circunstância acidental [per accidens].Pode ser, com efeito, que alguém tenha o
direito de reaver uma cidade ou província e, no entanto, em razão de um
escândalo, isso se torne absolutamente ilícito. De fato, uma vez que (como se
disse acima) as guerras devem ser travadas pelo bem comum, se para recuperar
uma cidade é necessário que advenham males maiores na República, como a
devastação de muitas cidades, grande morticínio de seres humanos, o
exasperamento dos príncipes, ocasiões de novas guerras para desgraça da
Igreja, além de dar aos pagãos a oportunidade de atacar e ocupar terras dos
cristãos, é fora de dúvida que o príncipe tem, então, o dever de renunciar a seu
direito e abster-se da guerra. Claro é, com efeito, que se o rei dos franceses, por
exemplo, tivesse direito de reaver Milão, mas com a guerra o reino da França e
a própria província de Milão sofreriam males intoleráveis e graves
calamidades, não lhe é lícito reavê-la, porque a própria guerra deve fazer-se
pelo bem da França ou de Milão. Uma vez que, pelo contrário, adviriam
94
grandes males de parte a parte, não pode a guerra ser justa.
Acerca de OUTRA QUESTÃO, quanto é lícito numa guerra justa, há
também muitas dúvidas.
34. PRIMEIRA: É lícito matar inocentes na guerra?
Parece que sim. Porque os filhos de Israel primeiramente mataram
infantes em Jericó (como fica claro em Josué 6, 21) e depois Saul (1 Reis 15, 3)
matou crianças em Amalec: em um e outro caso, sob a autoridade e o comando
do Senhor. Ora, tudo o que foi escrito, o foi para nos ensinar, como se revela
em Aos Romanos 15. Portanto, também agora, se a guerra for justa, será lícito
matar inocentes.
35. Acerca desta dúvida, seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Nunca é
lícito em si mesmo matar intencionalmente um inocente.
Prova-se, em primeiro lugar, com Êxodo 23: Não matarás o inocente e o
justo.
Em segundo lugar, o fundamento de uma guerra justa é a injúria, como
acima se demonstrou. Ora, a injúria não provém de um inocente. Portanto, não
é lícito recorrer à guerra contra ele.
Em terceiro lugar: não é lícito, na República, fazer que os inocentes
sejam punidos pelos delitos dos maus. Portanto, também não é lícito, pela
injúria dos maus, punir os que, entre os inimigos, são inocentes.
Em quarto lugar: do contrário, já haveria guerra justa de ambas as partes,
excluindo-se a ignorância, o que não pode acontecer, como se demonstrou. Essa
conseqüência é óbvia, porque é certo que os inocentes podem se defender
contra quem quer que tente matá-los.
Tudo isso se confirma com o Deuterônimo 20, 14: Manda-se aos filhos
de Israel que, depois de tomarem uma cidade, matem os outros, mas poupem
mulheres e criancinhas.
36. Disso se segue que também numa guerra contra os turcos não é lícito
matar crianças. É evidente, pois que são inocentes. Mais: nem mulheres, pois
95
que, no que diz respeito à guerra, presume-se que são inocentes, a não ser que,
por ventura, se tivesse certeza de que uma dada mulher fosse culpada. O
mesmo se deve dizer, entre os cristãos, a respeito de agricultores inofensivos, e
também a respeito das outras pessoas togadas e pacíficas, pois que se presume
que todos são inocentes até prova em contrário. Também por tal razão se segue
que não é lícito matar peregrinos nem hóspedes que se demoram junto aos
inimigos, pois que se presume serem inocentes, já que não são realmente
inimigos. Por fim se deve matar os clérigos, nem os religiosos, pois que se
presume serem inocentes na guerra, a não ser que haja prova em contrário,
como quando, por exemplo, lutam efetivamente.
37. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Dependendo da circunstância [per
accidens], porém, até mesmo de caso pensado, é lícito matar inocentes; por
exemplo, quando se assedia, com razão, uma fortaleza ou uma cidade na qual
se sabe que há muitos inocentes mas não se pode impedir que as máquinas, os
dardos ou o fogo ateado aos edifícios também vitimem os inocentes, assim
como os culpados.
Prova-se. Porque, do contrário, não se poderia travar guerra contra os
próprios culpados, e se frustraria a justiça dos combatentes. Assim como, por
outro lado, se uma cidade é tomada de assalto injustamente e se defende
justamente, é lícito lançar máquinas e dardos contra os assediadores e os
acampamentos dos inimigos, mesmo se dando que entre aqueles haja algumas
crianças ou inocentes. No entanto, deve-se levar em consideração o que pouco
atrás se disse: é preciso tomar cuidado para que, com a própria guerra, não
surjam males maiores do que os que com ela se evitariam. Se, com efeito, para
garantir a vitória na guerra, pouco contribui o assédio de uma fortaleza ou
cidade onde se encontra a guarnição dos inimigos e muitos inocentes, não
parece que seja lícito, para atacar uns poucos culpados, matar muitos inocentes,
ateando fogo ou empregando máquinas ou por outro meio pelo qual se
aniquilam inocentes e culpados indistintamente. Por fim, não parece jamais
96
lícito matar inocentes, mesmo acidentalmente e sem intenção, a não ser quando
não se pode empreender e travar de outra maneira uma guerra justa, segundo
aquele passo de Mateus, 13, 29: Deixai crescer o joio, para que, colhendo-o,
não arranqueis pela raiz também o trigo.
38. Mas acerca disto se pode duvidar: Seria lícito matar inocentes que
ofereceriam perigo no futuro? Por exemplo, os filhos dos sarracenos são
inocentes, mas se deve temer com razão que, tornados adultos, lutem contra os
cristãos e declarem guerra pondo-os em perigo. Também se presume que
aqueles da população civil adulta dos inimigos que não são soldados sejam
inocentes; mas esses, posteriormente, serão recrutados e representarão um
perigo. Seria lícito matá-los?
E parece que sim, pela mesma razão pela qual, dependendo da
circunstância, é lícito matar outros inocentes. Além disso, no Deuterônimo 20,
13 se prescreve aos filhos de Israel que, tendo tomado de assalto alguma
cidade, matem todos os púberes. Não se deve, então, presumir que todos fossem
inocentes.
Responde-se a isso: ainda que se pudesse, talvez, defender que, em tal
caso, se possa matá-los, no entanto, creio que de nenhum modo é lícito, pois
que não se deve praticar o mal para evitar outros males maiores. E é intolerável
que se mate alguém por causa de um pecado futuro. Além disso, existem outros
remédios para deles se precaver no futuro, como a prisão, o exílio, etc., como
logo a seguir diremos. De onde se segue que, já obtida a vitória, ou no
momento mesmo em que se trava a guerra, se se tem certeza da inocência de
algum soldado e os outros soldados podem libertá-lo, devem fazê-lo.
Ao argumento em contrário, respondo que aquele fato ocorreu por uma
ordem especial de Deus, que, irado e indignado contra aqueles povos, quis levá-
los à ruína completa, assim como lançou, sobre Sodoma e Gomorra, fogo que
tragasse tanto culpados quanto inocentes. Ele próprio, porém, é o Senhor de
tudo, e não conferiu tal licença através de uma lei comum.
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E àquela passagem do Deut. 20 se poderia responder do mesmo modo.
Mas, como ali se deu uma lei de guerra [lex belli] comum para todo o tempo
vindouro, parece, antes, que o Senhor disse aquilo pelo fato de que, na verdade,
todos os púberes, numa cidade inimiga, são considerados culpados e não se
pode diferenciar os inocentes dos culpados. Por isso, pode-se matar a todos.
39. A SEGUNDA DÚVIDA é: seria lícito, numa guerra justa, espoliar
os inocentes?
Seja esta a PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: É certo que é lícito espoliar
inocentes de bens e coisas de que os inimigos se servirão contra nós, como
armas, navios e máquinas.
É evidente. Porque, de outra forma, não poderíamos obter a vitória, que é
o fim da guerra. Além do mais, também é lícito tomar dinheiro dos inocentes,
queimar e estragar grãos, matar cavalos, se assim é necessário para debilitar as
forças dos inimigos. Daí se segue, como corolário, que, se a guerra se
perpetuar, é lícito, entre os inimigos, espoliar a todos indistintamente, tanto
culpados quanto inocentes, pois com seus recursos os inimigos alimentam uma
guerra injusta e, contrariamente, debilitam-se suas forças ao se espoliar seus
cidadãos.
40. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Se é possível travar guerra a contento
sem espoliar os agricultores ou outros inocentes, parece que não é lícito
espoliá-los.
É isto que Silvestre sustenta no verbete Bellum 1 § 10, pois que a guerra
se funda na injúria. Portanto, não é lícito usar do direito de guerra contra
inocentes, se de outra forma se pode reparar a injúria. Mais: acrescenta Silvestre
que se houver uma causa justa para espoliar inocentes, terminada a guerra, o
vencedor tem o dever de restituir-lhes tudo o que resta.
Mas não julgo que isso seja necessário, porque, como se diz abaixo, se
foi por direito de guerra que isso se deu, todas as coisas passam a servir ao
interesse [in favorem] e ao direito dos que travam uma guerra justa. Assim, se
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foram capturadas licitamente, julgo que não estão sujeitas a restituição. De
qualquer forma, o que Silvestre afirma é pio e não deixa de ser provável
[improbabile]. Quanto a espoliar peregrinos e hóspedes que estão em meio aos
inimigos, não é de nenhum modo lícito se não há certeza sobre sua culpa, pois
que não se contam entre os inimigos.
41. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Se os inimigos se recusam a restituir
coisas tiradas por injúria e quem foi lesado não puder de outra forma
recuperá-las a contento, este pode exigir satisfação de qualquer dos lados, seja
dos culpados, seja dos inocentes.
Da mesma forma, se ladrões franceses fizerem presa em território
espanhol e o rei da França não quiser obrigá-los à restituição, embora o possa,
podem os espanhóis, com a autoridade de seu príncipe, espoliar mercadores ou
agricultores franceses, por mais que sejam inocentes. É que, embora a princípio
a República ou o príncipe da França não incorresse em culpa, já está em culpa
pelo fato de não se preocupar em vingar, como diz Agostinho, o que de
ímprobo foi feito pelos seus, e o príncipe lesado pode exigir satisfação de todo e
qualquer membro e parte da República. Assim, as cartas de marca [litterae
marcharum]17 ou de represálias [repraesaliarum], concedidas pelos príncipes
em tais casos, não são injustas em si mesmas, já que, por negligência e injúria
de um outro príncipe, ao lesado permite seu príncipe que ele possa reaver seus
bens até mesmo a partir dos inocentes. São, porém, perigosas e oferecem
ocasião a rapinas.
42. TERCEIRA DÚVIDA: Supondo que não seja lícito matar crianças e
outros inocentes, porventura seria lícito aprisioná-los e escravizá-los?
Para seu esclarecimento seja esta a PROPOSIÇÃO ÚNICA: É lícito
aprisionar inocentes, da mesma forma que é lícito espoliá-los. É que liberdade
e prisão são considerados bens da fortuna.
Assim, quando a guerra é de tal condição que é lícito espoliar
Autorizações que os Soberanos dão aos seus corsários, para interceptarem inimigos com os
17
100
momento mesmo do embate na batalha, quer durante o assédio, quer durante a
defesa de uma cidade, é lícito matar indistintamente todos os que lutam contra
nós, e, em geral, enquanto a situação oferecer risco.
Isto é evidente, pois os beligerantes não poderiam ter sucesso de outra
maneira que não eliminando todos os que são um obstáculo e opõem
resistência.
Mas a dúvida como um todo e a dificuldade é saber se, obtida já a vitória
e quando não há mais perigo da parte dos inimigos, é lícito matar todos os que
pegaram em armas contra nós. E parece claramente que sim. Porque, como se
disse acima, entre os preceitos militares que deu o Senhor (Deut. 20, 10), há o
de que, após a tomada de uma cidade dos inimigos, sejam mortos todos os seus
habitantes. As palavras daquela passagem são: Todas as vezes que chegares a
uma cidade para tomá-la de assalto, primeiramente lhe oferecerás a paz. Se a
aceitar e abrir-te suas portas, toda a população que nela habita será salva e te
servirá pagando tributo. Se, porém, se recusar a fazer um tratado e iniciar uma
guerra contra ti, tu a tomarás de assalto. Quando o Senhor teu Deus a entregar
em tuas mãos, passarás pelo fio da espada tudo o que nela há do gênero
masculino, poupando mulheres e crianças.
46. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Obtida a vitória e com as coisas já fora
de perigo, é lícito matar os culpados.
Prova-se com o fato de que (como já se disse) uma guerra não é
planejada apenas para reaver coisas, mas para vingar uma injúria. Portanto, é
lícito matar os seus autores. Isto é lícito contra os próprios cidadãos malfeitores.
Portanto, também contra estrangeiros, porque (como se disse acima) o príncipe
em guerra, por direito de guerra, tem autoridade sobre os inimigos, assim como
o juiz e o príncipe legalmente constituído. Além disso, porque, ainda que não
haja perigo da parte dos inimigos no presente, no entanto, não se teria
segurança no futuro.
47. TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Para tão somente vingar uma injúria,
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nem sempre é lícito matar todos os culpados.
Prova-se. Porque também entre os cidadãos não seria lícito, ainda que
fosse o delito de toda uma cidade ou província, matar todos os delinqüentes,
nem numa rebelião geral seria lícito matar e causar a desgraça de todo o povo.
Assim, por um fato semelhante, Teodósio teve o acesso à Igreja proibido por
Ambrósio. O contrário seria contra o bem público, que é o fim [finis] da guerra
e da paz. Portanto, também não é lícito matar todos os culpados dentre os
inimigos. É preciso, então, levar em conta a injúria recebida dos inimigos, o
dano causado e os outros delitos e, a partir dessa reflexão, proceder à vingança
e à punição, descartando-se toda e qualquer atrocidade e desumanidade. A esse
propósito, com efeito, Cícero (De officiis II18) diz que se deve punir os
culpados na medida em que a eqüidade e a humanidade o permitam. E Salústio:
“Nossos antepassados, diz, homens religiosíssimos, nada tomavam aos
vencidos além da licença para cometer a injúria”. 19
48. QUARTA PROPOSIÇÃO: Por vezes também é lícito e convém matar
todos os culpados.
Prova-se. Porque também se trava guerra para gerar paz e segurança. Ora,
por vezes não se pode obter segurança de outra forma que não eliminando todos
os inimigos. Isto se vê sobretudo contra os infiéis, dos quais nunca, sob
nenhuma condição, se pode esperar a paz. Por isso, o único remédio é eliminar
todos que podem portar armas, desde que já tenham incorrido em culpa. E
assim se deve entender aquele preceito do Deut. 20, 10.
De resto, porém, numa guerra entre cristãos, não julgo que isto seja
lícito. Com efeito, como sobreviriam necessariamente escândalos (como se tem
em Mateus 18, 7) e guerras entre príncipes, se sempre o vencedor matasse todos
os adversários, causariam a desgraça da espécie humana e da religião cristã, e o
mundo logo seria reduzido a um deserto. Travar-se-iam guerras,
De Coniuratione Catilinae XII, 3-4. O texto de Vitória não reproduz com exatidão o
19
original de Salústio.
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desgraçadamente, não pelo bem público, mas para a calamidade pública. É
preciso, portanto, que a medida dos golpes corresponda à gravidade do delito e
que a não vingança não vá além. Nisso também se deve ter em conta que
(como se disse acima) os súditos não têm o dever de examinar as causas da
guerra, mas podem acompanhar seu príncipe à guerra, contentando-se com a
sua autoridade e a do conselho público. Assim, em sua maior parte, de um lado
e de outro, ainda que a guerra seja injusta de um dos lados, os soldados que
vêm à guerra e lutam nela, ou defendem e atacam cidades, são inocentes. Por
isso, depois de já terem sido vencidos e não mais representar perigo, creio que
não se pode matar a nenhum deles sequer, se se presume que vieram de boa fé
ao combate.
49. SEXTA DÚVIDA: Seria lícito matar os que se renderam ou os
prisioneiros, supondo-se também que eram culpados?
Responde-se que, falando em abstrato, nada obsta que os capturados
numa guerra justa ou os que se renderam, se eram culpados, possam ser mortos,
salvaguardada a eqüidade. Mas como na guerra muitas coisas foram
estabelecidas pelo direito das gentes, parece geralmente aceito, pelo costume e
pelos usos [usu] da guerra, que não se matem os prisioneiros, depois de obtida a
vitória e superado o perigo (a não ser que sejam fugitivos). E deve-se manter o
direito das gentes do modo como entre os homens de bem se costumou mantê-
lo. Quantos aos que se renderam, não tenho lido nem ouvido falar a respeito de
tal costume. Mais ainda: nas rendições das fortalezas das cidades, costumam os
que se renderam precaver-se com a condição de terem a vida salva e irem-se
sãos e salvos, temendo, naturalmente, serem mortos, se se renderem simples e
incondicionalmente. Isto lemos que por algumas vezes se fez. Assim, não
parece iníquo que alguns dos mais culpados sejam mortos a mando do príncipe
ou de um juiz, se a cidade se render sem tomar tais precauções.
50. SÉTIMA DÚVIDA: Se todas as coisas conquistadas numa guerra
justa passariam a ser dos conquistadores e dos ocupantes.
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PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Não se deve duvidar que tudo o que foi
conquistado numa guerra justa, até a plena satisfação das coisas subtraídas
por injúria e também das despesas, passam a ser dos ocupantes.
Nem carece de prova esta proposição, porque esse é o fim da guerra. Ora,
deixando de lado o exame da restituição e da satisfação e atendo-se ao direito
de guerra, deve-se distinguir: capturados na guerra são bens móveis, como
dinheiro, roupas, prata e ouro; ou imóveis, como campos, cidades e fortalezas.
51. Baseando-nos nisso seja esta a SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Todos os
bens móveis, por direito das gentes, passam a ser do ocupante, ainda que
excedam a compensação dos danos.
Isto resulta evidente a partir da lei Si quid in bello e da lei Hostes ff. De
captivis et captivitate, do Ius gentium 1 dist., e mais expressamente, na Instituti,
De rerum divis. § Item ea quae ab hostibus, onde se diz que, por direito das
gentes, as coisas que se tomam aos inimigos imediatamente passam a ser
nossas, a ponto de até mesmo os homens livres serem reduzidos à condição de
escravos nossos. Ambrósio, no livro De patriarchis, diz que, quando Abraão
venceu os quatro reis, a presa pertencia a ele, o vencedor, ainda que tenha se
recusado a aceitá-la (Gênesis 14, 15 e 24 q. 5). E se confirma pela autoridade
do Senhor (Deut. 20, 14), que diz a respeito de uma cidade que deve ser
expugnada: Toda presa dividirás com o exército e comerás dos espólios de teus
inimigos. Este parecer é o que sustenta Adriano no tema De restitutione,
referindo-se à questão particular da guerra. E também Silvestre diz, no verbete
Bellum § 2 e § 9, que quem lutou com justiça não é obrigado a restituir a presa
(23 q. 2, Si de rebus). A partir disso infere que as coisas capturadas numa
guerra justa não se destinam a compensar o débito principal. O mesmo sustenta
também o Arquidiácono (23 q. 2 c. Dominus noster), e também Bártolo, na lei
mencionada Si quid in bello. Isto se entende mesmo se o inimigo está disposto
a satisfazer os outros pelo dano e pelas injúrias. Ao que, porém, Silvestre
estabelece um limite, e faz bem: até o ponto em que, segundo a eqüidade, tenha
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havido plena satisfação pelo dano e pela injúria. Com efeito, não se deve
entender que, se os franceses arrasarem uma aldeia ou uma desconhecida
cidade da Espanha, seria lícito aos espanhóis também (se pudessem) fazer presa
em toda a França, mas o seria somente na proporção do modo e do tipo de
injúria, segundo o arbítrio do homem de bem.
52. Mas a partir desta conclusão surge uma DÚVIDA: Seria lícito
entregar aos soldados uma cidade para o saque?
Responde-se e seja esta a TERCEIRA PROPOSIÇÃO: Isto não é ilícito
em si mesmo se é necessário à condução da guerra, à dissuasão dos inimigos
ou para excitar os ânimos dos soldados.
Assim diz Silvestre no verbete Bellum § 10. Como também é lícito
incendiar uma cidade por um motivo racional [ex rationabili causa]. Entretanto,
como de tais permissões se seguem muitos atos selvagens e cruéis, além de toda
humanidade, cometidos por soldados bárbaros, tais como o massacre e tortura
de inocentes, a violação de virgens, o estupro de mães de família e a espoliação
de templos; por isso é sem dúvida extremamente iníquo entregar uma cidade ao
saque quando não há necessidade e causa de monta, é mais do que, sobretudo
se cristã. Mas se as necessidades da guerra o exigirem, não é ilícito, ainda que
seja de esperar que os soldados cometam algumas atrocidades e abominações
daquela espécie, que, porém, seus comandantes têm o dever de proibir, fazendo
tudo o que estiver a seu alcance para os impedir.
53. QUARTA PROPOSIÇÃO: Não obstante tudo isso, não é lícito aos
soldados, sem autorização do príncipe ou do comandante, realizar saques ou
atear incêndios, já que eles próprios não são juízes, mas executores; agindo
diversamente, são obrigados a restituir.
54. Mas no que diz respeito a bens e coisas imóveis, a dificuldade é
maior, e seja esta a QUINTA PROPOSIÇÃO: Não há dúvida de que é lícito se
apoderar do território, das fortalezas e cidades dos inimigos e retê-los, na
medida em que isso for necessário à compensação dos danos sofridos.
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Por exemplo, se os inimigos destruíram nossa fortaleza, incendiaram a
cidade, as florestas, ou as vinhas e olivais, será lícito se apoderar, por seu
turno, do território dos inimigos, ou de sua fortaleza ou cidade e retê-los em
nossa posse. Se, com efeito, é lícito receber dos inimigos a compensação pelas
coisas subtraídas, é certo que, por direito divino e natural, é lícito receber essa
compensação em bens móveis tanto quanto em imóveis.
55. SEXTA PROPOSIÇÃO: Para garantir a segurança e evitar perigo
da parte dos inimigos, é lícito tomar e reter alguma fortaleza ou cidade deles
necessária à nossa defesa ou para tolher-lhes a ocasião de, a partir dali, virem
a nos causar dano.
56. SÉTIMA PROPOSIÇÃO: Também por causa da injúria recebida e a
título de pena ou castigo [in vindictam], é lícito, na proporção do tipo de
injúria recebida, multar os inimigos com parte de seu território ou, também por
esta razão, apoderar-se de sua fortaleza ou cidade.
Mas isto, como dissemos, se deve fazer com moderação, e não na medida
de tudo o que com a força e o poder das armas se pode tomar e expugnar. E se
as necessidades e a estratégia [ratio] da guerra reclamam que uma parte maior
do território seja ocupada e mais cidadãos sejam capturados, é preciso que,
restabelecida a paz e terminada a guerra, sejam restituídos, somente se retendo
o que for justo para a compensação dos danos e despesas e para a vingança da
injúria, salvaguardada a eqüidade e a humanidade, pois que a pena deve ser
proporcional à culpa. Seria intolerável que, se os franceses se entregassem a
saques entre os rebanhos dos espanhóis ou incendiassem uma aldeia, fosse
lícito apoderar-se de todo o reino da França.
Que a tal título seja lícito se apoderar de parte do território ou de alguma
cidade dos inimigos, fica evidente a partir daquela passagem do Deut. 20, 15,
onde se concede licença na guerra para se tomar uma cidade que tenha se
recusado a aceitar a paz. Além disso, é lícito punir desse modo os malfeitores
internos, isto é, privando-os de casa, campo ou fortaleza, de acordo com o tipo
106
de delito. Portanto, também os externos.
Assim, um juiz de instância superior [superior iudex] pode muito bem
multar o autor de uma injúria tomando dele uma cidade ou fortaleza. Portanto,
também o príncipe que foi lesado poderá fazer isto, já que por direito de guerra
se tornou uma espécie de juiz.
Da mesma forma, foi a esse título que o Império Romano cresceu e
ampliou-se, isto é, ocupando, por direito de guerra, cidades e províncias dos
inimigos de quem tinham recebido uma injúria. No entanto, o império dos
romanos é defendido como justo e legítimo por Agostinho, Jerônimo,
Ambrósio, Tomás e outros santos doutores. Parece mesmo que foi aprovado por
Deus, quando diz: Dai a César o que é de César, e por Paulo, que apelou a
César e em Aos Romanos 13, 1 recomenda submissão aos poderes mais altos e
aos príncipes, além do pagamento de tributos a todos que, naquele tempo,
tinham autoridade conferida pelo império romano.
57. OITAVA DÚVIDA: Seria lícito impor tributos aos inimigos
vencidos?
Responde-se que sem dúvida nenhuma é lícito, não só para compensar os
prejuízos como também em razão da pena e para efeito de vingança.. Isto fica
bastante evidente a partir do que se disse acima e daquela passagem do
Deuterônimo 20, 11, onde se diz que, depois de se vir a uma cidade para a
expugnar por justa causa [ex iusta causa], se ela os receber e abrir suas portas,
todo o povo que nela se encontra será salvo e os servirá pagando tributo, e isto
ficou estabelecido pelo direito e pela prática da guerra [usus belli].
58. NONA DÚVIDA: Seria lícito depor príncipes dos inimigos,
estabelecer novos e constituir ou reter para si o principado?
PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: Não é lícito fazê-lo a torto e a direito, por
qualquer causa de guerra justa, como resulta evidente do que se disse. De
fato, a pena não deve exceder a extensão e o tipo de injúria. Mais ainda: deve-
se restringir as penas e ampliar os favores, o que é não apenas a regra do
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direito humano como também do natural e do divino. Portanto, supondo que a
injúria recebida dos inimigos seja causa suficiente de guerra, nem sempre será
suficiente para eliminar o principado do inimigo e depor seus príncipes
legítimos e naturais, pois que isto seria absolutamente cruel e desumano.
59. SEGUNDA PROPOSIÇÃO: Não se deve negar que por vezes
possam sobrevir causas suficientes e legítimas para substituir os príncipes ou
para tomar nas mãos o principado. Isto se dá em proporção ao número e à
atrocidade dos danos e das injúrias, sobretudo quando de outra forma não se
pudesse obter a segurança e a paz, da parte dos inimigos, e pairasse um
grande perigo sobre a república, se não se fizesse isto.
Isto é evidente. Com efeito, se é lícito se apoderar justificadamente de
uma cidade , como se disse, então também o é destituir o príncipe da cidade. O
mesmo raciocínio [ratio] se tem a respeito da província e do príncipe da
província, se se apresentar uma causa maior. Mas se deve notar acerca das
dúvidas 6, 7, 8 e 9, que por vezes, ou melhor, amiúde, não só os súditos como
também os próprios príncipes que não têm realmente uma causa justa, travam a
guerra de uma boa fé tal que podem ser escusados de toda culpa. Esse é o caso
quando a guerra é feita após exame minucioso e apoiada no parecer dos doutos
e dos homens de bem. Como não se deve punir ninguém sem culpa, em tal
caso, por mais que seja lícito ao vencedor reaver as coisas subtraídas e,
eventualmente, as despesas da guerra, no entanto, não seria lícito matar a
ninguém depois de se obter a vitória, nem tomar posse e exigir, em coisas
temporais, mais do que reclama a justa satisfação. É que tudo o mais não se
pode fazer senão a título de pena, a qual não deve recair sobre os inocentes.
A partir de tudo isso se podem estabelecer uns poucos preceitos
[canones] e regras de combate [regulae belligerandi].
60. PRIMEIRO PRECEITO: Supondo que o príncipe tenha autoridade
para travar a guerra, antes de mais nada não deve buscar ocasiões e
pretextos para ela, mas, se for possível, fazer a paz com todos os inimigos,
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como Paulo prescreveu em Aos Romanos 12, 20. Deve, então, refletir sobre o
fato de que os outros são nossos próximos, aos quais devemos amar como a
nós mesmos, e que temos todos um único Senhor comum, diante de cujo
tribunal devemos prestar contas. Com efeito, é o supra-sumo da monstruosidade
buscar causas, e se alegrar em as ter, para matar e arruinar homens que Deus
criou e pelos quais Cristo morreu. Pelo contrário: é coagido e contra a vontade
que se deve chegar à necessidade de uma guerra.
SEGUNDO PRECEITO: Uma vez declarada a guerra, por causas justas,
é preciso empreendê-la não para a desgraça do povo contra o qual se tem de
guerrear, mas para a obtenção de seu direito [iuris sui], a defesa de sua pátria
e de sua República e para que daquela guerra surja um dia a paz e a
segurança.
TERCEIRO PRECEITO: Obtida a vitória e terminada a guerra, deve-se
usar da vitória com moderação e modéstia cristã, e o vencedor deve se
postar como um juiz entre duas Repúblicas, uma que foi lesada e a outra que
cometeu a injúria, para que, não como acusador, mas como juiz, profira a
sentença com a qual se possa dar satisfação à República lesada. Mas, na
medida do possível, com a menor desgraça e mal da República culpada,
castigando os culpados tanto quanto for lícito, sobretudo porque, na maior parte
das vezes, entre os cristãos, toda a culpa está nos príncipes. De fato, os súditos
lutam pelos príncipes de boa fé. E é mais do que iníquo o que diz o poeta:
Verso de Horácio (Epistulae I, 2, 14), que se refere à rixa entre Agamêmnon e Aquiles,
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