Discurso Do Método - DeSCARTES

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DESCARTE, René.

Discurso do método

INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada
indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer
em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já
possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes
uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e
o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou razão,
é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas
opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas
apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e não
considerarmos as mesmas coisas. (p.6)

...meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem
conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a
minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hábeis
do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor coisa, são por isso
censuráveis. (p.7)

...é bom havê-las examinado a todas, até mesmo as mais eivadas de superstição e
as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o exato valor e evitar ser por elas enganado.
(p.8)

quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos estrangeiros


em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos das coisas que se
realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito ignorantes das que se
realizam no presente. (p.8)
...considerei que os povos que outrora haviam sido semi selvagens medida que o
desconforto dos crimes e das querelas a tanto os coagiu, não poderiam ser tão bem
policiados como aqueles que, desde o instante em que se reuniram, obedeceram às
leis de algum prudente legislador. (p.11)

...pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos adultos, e como por
muito tempo
foi necessário sermos governados por nossos apetites e nossos preceptores, que
eram com freqüência contrários uns aos outros, e que, nem uns nem outros,
nemsempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase impossível que nossos
juízos sejam tão puros ou tão firmes como seriam se pudéssemos utilizar totalmente
a nossa razão desde o nascimento e se não tivéssemos sido guiados senão por ela.
(p.12)

...o mundo compõe-se quase só de duas espécies de espíritos, aos quais ele não
convém de maneira alguma. A saber, daqueles que, julgando-se mais hábeis do que
realmente são, não podem impedir-se de precipitar seus juízos, nem ter suficiente
paciência para conduzir ordenadamente todos os seus pensamentos: disso decorre
que, se tivessem tomado uma vez a liberdade de duvidar dos princípios que
aceitaram e de se desviar do caminho comum, jamais poderiam ater-se à trilha que
é necessário tomar para ir mais direito, e permaneceriam perdidos ao longo de toda
a existência; depois, daqueles que, tendo bastante razão, ou modéstia, para
considerar-se menos capazes de diferenciar o verdadeiro do falso do que alguns
outros, pelos quais podem ser instruídos, devem antes ficar
satisfeitos em seguir as opiniões desses outros, do que esforçar-se por achar por si
mesmos outras melhores. (p.13)

...todos os que possuem sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são
bárbaros ou selvagens, mas que muitos utilizam, tanto ou mais do que nós, a
razão… (p.13)
...em lugar desse grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que
me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e
inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los. (p.14)

...nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal;
ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar
de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito
que eu não tivesse motivo algum de duvidar
dele. (p.14)

...o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas
quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. (p.14)

...o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples
e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus,
até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem
entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. (p.15)

...o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais
nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. (p.15)

...a fim de continuar a viver desde então de maneira mais feliz possível, concebi para
mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas
que eu quero vos anunciar. (p.17)

A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na


religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e
conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as
mais distantes do excesso… (p.17)

Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em


minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito
seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto.
(p.18)

Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que
ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em
geral, a de habituar-me a acreditar que nada existe que esteja completamente em
nosso poder, salvo os nossos pensamentos, de maneira que, após termos feito o
melhor possível no que se refere às coisas que nos são exteriores, tudo em que
deixamos de nos sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. (p.18)

Por fim, para a conclusão dessa moral, decidi passar em revista as diferentes
ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar escolher a melhor; e,
sem pretender dizer nada a respeito das dos outros, achei que o melhor a fazer seria
continuar naquela mesma em que me encontrava, ou seja, utilizar toda a minha
existência em cultivar minha razão, e progredir o máximo que pudesse no
conhecimento da verdade, de acordo com o método que me determinara. (p.19)

O que consegui muito bem, quer me parecer, ainda mais que, procurando descobrir
a falsidade ou a incerteza das proposições que analisava, não por fracas conjeturas,
mas por raciocínios claros e seguros, não encontrava nenhuma tão duvidosa que
dela não tirasse sempre alguma conclusão bastante correta, na pior da hipóteses a
de que não continha nada de correto. (p.20)
Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que
não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem
homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples
noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que
estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu
tomara até então por demonstrações. (p.22)

E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que
as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar
abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da
filosofia que eu procurava. (p.22)

...compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste
apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem depende de
qualquer coisa material. (p.23)

De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma
natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as
perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, ou seja, para dizê-lo numa única
palavra, que fosse Deus. (p.23)

Porém, se não soubéssemos de maneira alguma que tudo quanto existe em nós de
real e verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que
fossemnossas idéias, não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas
possuem a perfeição de serem verdadeiras. (p.25)

...quanto ao equívoco mais recorrente de nossos sonhos, que consiste em nos


representarem vários objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores, não
importa que ele nos dê a oportunidade de desconfiar da verdade de tais idéias,
porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que estejamos
dormindo, como ocorre quando os que têm icterícia vêem tudo da cor
amarela… Pois, enfim, quer estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos
nos deixar convencer exceto pela evidência de nossa razão.(p.26)

… pois a razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja
verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idéias ou noções devem
conter algum fundamento de verdade… (p.26)

...pelo fato de nossos raciocínios nunca serem tão evidentes nem tão completos
durante o sono como durante a vigília, apesar de que às vezes nossas imaginações
sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela nos sugere também que, não podendo
nossos pensamentos serem totalmente verdadeiros, porque não somos totalmente
perfeitos, tudo o que eles contêm de verdade deve encontrar-se inevitavelmente
naquele que temos quando despertos, mais do que em nossos
sonhos. (p.26)

Pois, enquanto a razão é um instrumento universal, que serve em todas as ocasiões,


tais órgãos precisam de alguma disposição específica para cada ação específica;
daí decorre que é moralmente impossível que numa máquina haja muitas e
diferentes para fazê-la agir em todas as ocasiões da vida, da mesma maneira que a
nossa razão nos faz agir. (p.35)

...penso haver refutado suficientemente mais acima, não existe outro que desvie
mais os espíritos fracos do caminho reto da virtude do que imaginar que a alma dos
animais seja da mesma natureza que a nossa… (p.36)

...à medida que não colhi outros frutos do método que emprego, exceto que fiquei
satisfeito em relação a algumas dificuldades que dizem respeito às ciências
especulativas, ou então que tentei pautar meus hábitos pelas razões que ele me
ensinava, não me considerei obrigado a nada escrever acerca dele. (p.37)

Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito
úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que seensina nas escolas,
é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual, conhecendo a força e as
ações do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que
nos cercam, tão claramente como conhecemos os vários ofícios de nossos artífices,
poderíamos utilizá-los da mesma forma em todos os usos para os quais são
próprios, e assim nos tornar como senhores e possuidores da natureza. (p.38)

...tenho certeza de que não existe ninguém, mesmo entre os que a professam, que
não confesse que tudo quanto nela se sabe é quase nada se comparado com o que
falta saber… (p.38)

...comunicando ao público todas as coisas que aprendesse, para que os últimos


começassem onde os precedentes houvessem acabado, e assim, somando as vidas
e os trabalhos de muitos, fôssemos, todos juntos, muito mais longe do que poderia ir
cada um em particular. (p.38)

...porque não há dúvida de que se tem mais cuidado com o que pensamos que deva
ser visto por muitos, do que com o que se faz apenas para si próprio, e,
freqüentemente, as coisas que se me afiguraram verdadeiras quando comecei a
concebê-las pareceram-me falsas quando decidi colocá-las no papel… (p.40)

...quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada em
comparação com o que
ignoro, e que não desanimo de poder aprender… (p.40)
,,,não que não possa haver no mundo muitos espíritos melhores que o meu, mas
porque não se pode
compreender tão bem uma coisa, e torná-la nossa, quando a aprendemos de
outrem, como quando nós mesmos a criamos. (p.41)

Mas até mesmo os melhores espíritos não devem desejar conhecê-los: pois, se
almejam falar de todas as coisas com conhecimento e obter a fama de sábios, irão
consegui-lo mais facilmente satisfazendo-se com a verossimilhança, que pode ser
encontrada sem muito esforço em todas as espécies de matérias do que procurando
a verdade, que só se descobre pouco a pouco em algumas, e que, quando se trata
de falar das outras, obriga a confessar sinceramente que nós as ignoramos. (p.42)

Porque, quanto a mim, cheguei à conclusão de que, se a partir da juventude me


tivessem ensinado todas as verdades cujas demonstrações procurei depois, e se eu
não tivesse dificuldade alguma em aprendê-las, talvez nunca soubesse algumas
outras, e ao menos nunca teria adquirido o hábito e a facilidade, que julgo possuir,
para sempre descobrir outras novas, conforme me esforço em procurá-las. (p.43)

Pois, a respeito das opiniões que são totalmente minhas, não as desculpo de serem
novas, tanto mais que, se se considerarem bem as suas razões, tenho certeza de
que serão julgadas tão simples e tão de acordo com o senso comum que parecerão
menos extraordinárias e menos estranhas do que quaisquer outras que se possa ter
acerca dos mesmos assuntos. (p.45)

Se os artesãos não puderem tão cedo executar a invenção que é explicada em


Dióptrica, não acredito que por causa disso se possa afirmar que ela é má: pois,
sendo que é necessário habilidade e experiência para construir e ajustar as
máquinas que descrevi, sem que nelas falte componente algum, admirar-me-ia mais
se eles conseguissem na primeira tentativa, da mesma forma se alguém
conseguisse aprender, num dia, a tocar o alaúde excelentemente apenas porque lhe
foi fornecida uma boa tablatura. (p.45)

E quanto aos que unem o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus
juizes, tenho certeza de que não serão de maneira alguma tão parciais em favor do
latim que recusem ouvir minhas razões porque as explico em língua vulgar. (p.45)

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