Jfurlani, 11 - DOSSIÊ - SILVA, Érica C. Morais
Jfurlani, 11 - DOSSIÊ - SILVA, Érica C. Morais
Jfurlani, 11 - DOSSIÊ - SILVA, Érica C. Morais
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Recebido em: 20/06/2013
Aprovado em: 11/07/2013
Doutora em História e Cultura Política pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” –
Campus de Franca. Professora de História Antiga Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Introdução
A
ampliação dos estudos em história romana no contexto da Antiguidade Tardia
para regiões além da fronteira do Império, bem como a reaproximação com a
Arqueologia e o uso mais recorrente da cultura material, trouxeram novas
questões e produziram uma quantidade impressionante de novos estudos com ênfase
em aspectos como a compreensão da diversidade religiosa no tempo e no espaço. Essa
tendência atual traz novas reflexões ao tema que ora nos ocupa: a emergência de uma
nova compreensão acerca das atitudes cristãs frente aos judeus, que são igualmente
diversas no tempo e no espaço. De fato, as relações entre cristãos e judeus variavam de
região para região e de um contexto para outro. Guy Stroumsa (2008, p. 151-172)
demonstra a importância de compreendê-las na Antiguidade Tardia a partir dessas
novas perspectivas. Para ele, estudá-las fora dos limites do Império Romano pode trazer
novos dados à dinâmica dessas relações, como, por exemplo, o caso das comunidades
judaicas e cristãs no Império Sassânida, onde ambas eram minorias e, por isso mesmo,
poderiam apresentar similaridades em vários aspectos.
A relação entre as comunidades judaicas e cristãs é avaliada sob novos critérios
de comparação. A busca pelos aspectos que aproximavam o judaísmo do cristianismo,
em detrimento do destaque daquilo que os separavam, que os dividiam, que os
distanciavam e os diferenciavam, direciona os estudiosos para a investigação da
linguagem, da literatura que aponta similaridades significativas entre eles, como no caso
dos judeus e cristãos da Síria oriental, que compartilhavam a mesma língua, o aramaico
(STROUMSA, 2008, p. 163). O fato de cristãos e judeus estarem em concorrência direta
e, por vezes, numa situação de conflito violento, em que ambos os grupos
reivindicavam a mesma herança, os colocava em posições opostas e quase sempre
inviabilizava uma possível aproximação entre as comunidades, obscurecendo assim os
vários aspectos comuns à vida social (STROUMSA, 2008, p. 154). Outra contribuição à
mudança de perspectiva é proveniente de pesquisas fundamentadas na cultura material.
Os dados arqueológicos, geralmente, oferecem uma imagem mais positiva das
interações entre as comunidades, o que pode ser demonstrado pelos mosaicos das
sinagogas na Palestina, que apresentam temas que sugerem um topos comum entre
cristãos e judeus (STROUMSA, 2008, p. 160).
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Dado que na Antiguidade existiram várias cidades denominadas de Antioquia, destacamos que no
presente artigo Antioquia se referirá, em todos os casos, à cidade de Antioquia-de-Orontes, exceto
quando expresso em contrário.
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A maioria das prédicas de João Crisóstomo foi proferida durante seus anos como presbítero na cidade de
Antioquia, entre os anos de 386 a 397 d. C. Sobre a datação e proveniência das homilias e obras de João
O século IV d. C. foi uma época importante nas relações entre judeus e cristãos. A
conversão de Constantino implicou em novas dinâmicas e parâmetros. Não obstante, o
envolvimento do governo imperial não significou uma adesão irremediável e imediata
de toda a população de um vasto Império como o romano à fé que então se expande.
As leis imperiais, por exemplo, agiram efetivamente, mas em certas circunstâncias. Os
não cristãos não foram desprovidos de seus direitos no século IV d. C. Do ponto de vista
legal, a lei sobre os templos e os sacrifícios dos adeptos das demais religiões não
atingiram os não cristãos em seus direitos. Alan Cameron (2010, p. 59-74) argumenta
em favor da contínua e vívida existência de segmentos não cristãos influentes. Assim,
longe de serem incompatíveis, cristãos e não cristãos conviviam e ultrapassavam as
fronteiras identitárias. Não é por acaso que João Crisóstomo (De Statui, Hom., IV, 12;
Hom., V, 22; Hom., VI, 15; Hom., VII, 10; Hom., XV, 12), insistentemente, prega exortando
Crisóstomo, conferir The Homilies of St John Chrysostom: Provenance, Reshaping the Foundations, de Wendy
Mayer.
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A numeração dessas Epístolas segue a numeração de Richardus Foerster, presente em Libanii opera
recensuit Epistulae 840-1544, volume XI. Estas Epístulas podem ainda serem encontradas traduzidas para
o inglês na obra Greek and latin authors on Jews and Judaism. Volume two: from Tacitus to Simplicius, de
Menahem Stern. Na coleção da Loeb Classical Library, Libanius: autobiography and selected Letters –
volume II, as Epístolas 914 e 1251 podem ser encontradas sob a numeração 160 e 131, respectivamente
(NORMAN, 1992, p. 261 e 339; BRADBURY, 2004, p. 274-275).
seu “rebanho” que se dispa dos vícios e não frequente os espaços (teatro, hipódromo,
circo) considerados impróprios aos cristãos. Logo, pensar as relações entre judeus e
cristãos no século IV d. C. é considerar também o universo comum, o compartilhamento
de culturas sem as estruturas rígidas e monolíticas das categorias implicadas em uma
interpretação fundamentada em uma oposição estrita e sem interseções, como nas
fórmulas paganismo versus cristianismo e judaísmo versus cristianismo.
A atenuação da força política do clássico, do helenístico e do judaísmo ainda
presente e significativamente importante no século IV d. C., como quer uma
determinada historiografia convencional, é a negação de discursos que sugeririam uma
interpretação mais adequada à realidade da sociedade em que viveu João Crisóstomo e
Libânio,4 ambos nativos da cidade de Antioquia. Não podemos esquecer que as
narrativas explicam, interpretam, mas também criam espaços de poder e memória. O
risco é a perda de perspectiva. A busca das similaridades e dos paralelos é a busca da
restituição da circulação de ideias, do compartilhamento de culturas, da fluidez presente
em fronteiras que desejamos fixas, mas que são, na realidade, criação e recriação de
tradições e legados. Isso está presente tanto em João Crisóstomo como em Libânio. Isso
não significa pensar, contudo, que não havia conflitos, tensões e intolerância. De fato, a
problematização das relações judaico-cristãs em Antioquia durante o século IV d. C. se
relaciona, evidentemente, com conflitos, mas estes não estavam restritos a essas duas
comunidades, mas também ao amplo e complexo panorama da diversidade religiosa
presente numa cidade cosmopolita para os padrões da Antiguidade. Antioquia era não
somente um centro religioso, mas também um dos centros culturais e político-militares,
uma residência imperial das mais importantes do Império Romano, mesmo durante o
século IV d. C., e sua população mostrava-se heterogênea, dinâmica e fluida.
Antioquia-de-Orontes, como argumentam Wayne Meeks e Robert Wilken (1978,
p. 1), era uma cidade central tanto para a comunidade judaica quanto para os cristãos.
Os judeus, inclusive, eram parte dos primeiros povos a se instalarem na cidade, quando
esta foi fundada por Seleuco I Nicator, em 300 a. C., fato que faz com que a relação
judaico-cristã seja uma questão que também se explique a partir dos acontecimentos e
incidentes ocorridos desde a história de fundação da cidade (DOWNEY, 2009, p. 79-82;
MEEKS; WILKEN, 1978, p. 1; ZETTERHOLM, 2003, p. 31-32). Por intermédio da
documentação escrita e epigráfica, podemos afirmar que a comunidade judaica ainda
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Sofista neoplatônico, professor de retórica em Antioquia.
Esta Oratio de Patrociniis (Or., XLVII) se referia a uma denúncia impetrada por
Libânio contra a mudança nas práticas usuais de relações de patronato, sendo que os
judeus aparecem aqui como um exemplo da própria experiência vivida pelo sofista
(STERN, 1980, p. 586; HARMAND, 1955, p. 185). Do excerto acima citado, podemos
inferir duas importantes informações. Em primeiro lugar, que os judeus estavam
presentes e eram parte da sociedade romana tardo-imperial, como também, em
segundo lugar, contribuíam para uma nova modalidade de relações sociais que surgia
no interior do antigo sistema imperial romano. Como demonstra a correspondência de
Libânio, o sofista tinha relações estreitas com a comunidade judaica. Apesar de o relato
deste episódio nas Orações sobre o Patronato sugerir que as denúncias eram contra os
judeus, na realidade eram contra um novo tipo de relações sociais que emergia: a
substituição do patronato decurião pelo militar. Há uma extensa correspondência entre
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Inscrições provenientes do mosaico de uma sinagoga construída em Apameia, de um túmulo construído
em Beth She’arim, pertencente a uma família judaica de Antioquia (MEEKS; WILKEN, 1978, p. 53).
Libânio e o patriarca e líderes judeus da Palestina, ora oferecendo favores (Ep., 1097),
ora agindo no cenário político em prol da comunidade judaica e mediando conflitos
(Ep., 914; Ep., 1251). Assim, se, por um lado, as cartas evidenciam uma relação
importante entre Libânio e líderes judeus, por outro aproximam a Síria e a Palestina em
uma relação muito próxima, que, como argumenta Bernadette Brooten (2000, p. 29),
talvez fosse difícil de imaginar dado o contexto desta região na atualidade. Esse cenário
de laços estreitos presente em Libânio aparece de forma significativamente contrastada
com a imagem que, por vezes, aparece na obra de João Crisóstomo: de um ataque
hostil e ofensivo ao judaísmo e à cultura judaica, mediante a exortação para os cristãos
deixarem de lado as práticas judaizantes. O que nos parece possível argumentar é que
os judeus constituíam, no século IV d. C., uma importante força sociopolítica dentro do
Império e de Antioquia, tornando-se protagonistas de disputas importantes em torno
da atenção dos habitantes da cidade.
Considerações finais
Referências
Obras de apoio