Pandemência
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Pandemência
2021
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PANDEMÊNCIA
Ao proferir a sentença suprema de que "na terra se encontra tão somente duas
estirpes humanas: a dos virtuosos e a dos torpes", Victor Frankl apresentou-nos não só
uma poderosa ferramenta analítica, mas um criterioso barômetro moral para sopesar a
atual conjuntura que experimentamos neste primogênito quinquênio do XXI: uma
dicotomia marcante entre a percepção do real e o domínio do imaginário, que
flagrantemente arrebata-nos da compreensão sólida da lei natural.
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Inevitavelmente, tal perspectiva nos conduz por um caminho que culmina em
uma brutalização generalizada da concepção teórico-normativa da lei natural e, inclusive,
na própria manifestação prática dessa ordenação.
Se esses dois tipos de indivíduos (os virtuosos e os torpes) não são distintos no
sentido estrito de sua condição humana, eles certamente são e se destacam - dada a
magnitude de seu antagonismo - por meio da observação de suas ações e discursos, a
ponto de sugerir que pertencem a “raças” totalmente distintas. Daí surge a indagação: a
existência dessas duas estirpes gerou essa cultura peculiar, ou foi o avanço e o progresso
dessa cultura que exacerbou a dicotomia entre elas? Essa questão permanece suspensa no
ar, aguardando reflexões mais aprofundadas.
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influência no tecido social contemporâneo. Cada vez mais, o âmbito territorial das leis
positivadas se sobrepõe e se afasta da concepção de lei que transcende a esfera da
produção humana, aquela que é, por si só, uma realidade objetiva, independentemente de
qualquer construção imaginativa. Talvez nunca antes tenha ocorrido uma distensão tão
marcante entre essas leis, o que nos leva a ponderar que, entre a ordem do mundo e a
ordem da consciência individual, há um verme, uma enfermidade, que, provisoriamente,
denominaremos pandemência.
Por intermédio da união desses dois termos, insinuamos a tese de que a gradual,
lenta e contínua depressão da noção de lei natural, insidiosamente substituída em todas
as esferas por uma miríade de leis positivadas, sempre secundárias e antagônicas à mesma
- pela hostilidade de seus critérios e exercícios críticos -, está relacionada, em grande
medida, a perda constante e progressiva da capacidade cognitiva, mnemônica e, inclusive,
de apreensão simples do sentido comum. Tal fenômeno está conduzindo as consciências
individuais a um estado de fragilidade tão exacerbada que se torna incapaz de discernir
certas realidades em seu próprio contexto existencial.
Para a plena elucidação dessa tese, seria necessário não menos que um tratado
abrangente, abordando as múltiplas vertentes que nos conduziram a tal sugestão sobre o
tema. Entretanto, em virtude das limitações impostas pela brevidade deste texto, é
impossível empreender tal trabalho. Contudo, isso não invalida a possibilidade de
vislumbrarmos, ainda que de forma intuitiva, a plausibilidade de tal argumento. Cientes
dessa restrição, devemos agora buscar compreender, ao menos de forma elementar, o
conceito de lei natural.
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A Lei Natural pode ser concebida como o objeto captado pela razão na
percepção da proporcionalidade existente entre os seres e a estrutura intrínseca do real.
Trata-se de um delicado e sólido equilíbrio, uma unidade fundante de ordem material e
imaterial na qual o ser humano deve se orientar, uma vez que é dotado de capacidade
intelectual para apreendê-la. Ela representa uma ordenação estabelecida por uma razão
transcendente, a Razão Divina, na qual o ser humano participa - e é convocado a participar
ativamente - à medida que age em consonância com a causa última de sua natureza
racional.
A Lei Natural está presente no ser humano de forma passiva e ativa, conforme
suas inclinações inatas, e se completa quando este, por meio do exercício da razão, deduz
e faz escolhas que o conduzem a alcançar essa direção natural. Trata-se de uma ordenação
que é imposta à razão humana, sendo indispensável para preservarmos nossa verdadeira
natureza e integridade como seres dotados de espírito. Abandonar essa lei é como sofrer
uma amputação parcial de nossa essência e condição como seres racionais e espirituais.
É sabido que a Lei Natural, que precede e fundamenta todas as leis positivadas,
configura-se como um instrumento propício para a plenitude natural não apenas dos
indivíduos, mas também da sociedade como um todo, por ser intrinsecamente vinculada
à natureza humana. Considerando que a sociedade é uma entidade fundamentada na
realidade da natureza humana, fruto da união racional e ordenada de múltiplos indivíduos,
será por meio das ações individuais que se imporá a desintegração coletiva, em um jogo
calculado de desordem. Tal estratégia tem como objetivo a normatização de um caos
moral perene e reprodutivo, que inevitavelmente recairá sobre as gerações futuras. Trata-
se de um engenhoso e sinistro método de estabelecer o reinado da antinatureza,
propiciando a ascensão de uma república universal positivista, que se revelará como um
verdadeiro reino das trevas.
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Os movimentos sociais contemporâneos, impregnados por uma pluralidade
ideológica abrangente - que engloba reivindicações relacionadas aos direitos
reprodutivos, raciais, sexuais e, mais recentemente, sanitários -, manifestam-se como
moldes psíquicos para a formação de enfermidades ansiosas que abalam a função
pontifícia do ser humano. Tal função exige que o homem aja em consonância com sua
natureza, a fim de concretizar o propósito para o qual é convocado a participar. A ânsia
humana deve ser toda direcionada a esta correspondência, e é justamente contra isso que
tais forças trabalham.
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secundária, integrando-se a ela apenas sob o prisma de uma inclinação meramente
material e determinística.
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fundamenta-se na edificação de leis grotescas a partir de um universo verbal específico;
e culmina em um "novo mundo" destituído de sentido humano, hostil à presença de almas
íntegras. Para tanto, o estado de demência coletiva - por conseguinte, individual - deve
ser profundo, abrangente e onipresente, não deixando qualquer recanto do globo fora dos
limites da “normatividade” que se deseja inculcar.
Nesse contexto, não há praga mais insidiosa e destrutiva do que aquela que,
sorrateiramente, devasta não apenas os corpos, mas também as almas, deixando-os
aparentemente ilesos, mas profundamente vencidos em sua essência. A saúde física,
muitas vezes, é preservada, ocultando as chagas da imoralidade e da degeneração
espiritual que se instalam como uma espécie de maldição silenciosa.
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reconhecer a gravidade do embate em que estamos inseridos e resistir com vigor a essa
investida perversa. Somente por meio da união de mentes lúcidas, da preservação dos
valores essenciais e da firmeza inabalável em nossa fé, podemos confrontar e superar essa
ameaça que nos rodeia.
Que a nossa força seja inquebrantável, que nossa busca pela verdade e pela
justiça seja incansável. Pois somente assim poderemos restabelecer a ordem, a harmonia
e a integridade que nos são tolhidas diariamente. A pandemência é um desafio que exige
de nós uma resposta à altura, um chamado para resgatarmos o melhor de nós mesmos e
protegermos a chama divina que habita em cada ser humano.
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