Titulo X Teoria Tridimensional Do Direito

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Capítulo XXXIV

O Termo "Direito" e Sua Tríplice Perspectiva Histórica


A Intuição Axiológica do Direito
191. No domínio das ciências físicas as palavras possuem quase sempre sentido claro e unívoco,
que não admite confusões. Para um físico ou um químico, os termos são, em geral, previamente
estabelecidos, por ser de antemão possível realizar um acordo terminológico, máxime quando as
formulações científicas se alçam ao plano da linguagem matemática ou dos símbolos convencionais.
Quando passamos, porém, para as ciências sociais ou humanas, encontramos palavras que
albergam uma multiplicidade de sentidos, razão pela qual Bergson já nos disse que as palavras são
prisões capazes de receber múltiplos conteúdos. É preciso, às vezes, partir tais esquemas e estruturas
formais, para penetrarmos na riqueza de seus significados. A multiplicidade de acepções é, aliás,
muito maior quando se trata daquelas palavras que o homem emprega com mais freqüência, porque
dizem respeito a exigências essenciais à própria vida.
É fácil perceber a extrema complexidade, por exemplo, da palavra liberdade, assim como do
termo igualdade, porquanto, através do tempo, esses vocábulos têm sido usados em sentidos diversos
e, muitas vezes, conflitantes. A mesma coisa acontece com a palavra Direito, cuja importância para a
vida humana explica perfeitamente a razão de tantos sentidos que se lhe agregaram. Por serem
palavras cujas raízes se aprofundam no mundo contraditório dos interesses e das preferências
humanas; por estarem sempre na funcionalidade de forças inovadoras que pretendem subordinar a
regularidade dos fenômenos naturais à pauta de fins almejados; por refletirem, em suma, todas as
aporias da existência humana, em uma incessante experiência de estimativas, as "palavras cardeais"
da cultura c da civilização (liberdade, justiça, igualdade etc.), todas elas não comportam a
univocidade peculiar às coisas neutras para o mundo dos valores.
É por tais razões que as vicissitudes da palavra "Direito" acompanham pari passu a história do
homem ou, diríamos melhor, o processar-se da Humanitas na História.
Qual foi a experiência humana da palavra Direito? Que conteúdo o homem viveu através desse
vocábulo? O estudo desta estimativa histórica poderá revelar verdades preciosas a quem deseje
penetrar na consistência da realidade jurídica. Vamos, portanto, buscar na História elementos que
possam esclarecer nosso problema.
Desejamos, desde logo, notar que não nos move o preconceito evolucionista de partir de dado
ponto da História, concebido como primitivo, para depois subirmos paulatinamente a outros pontos
considerados como sendo a expressão do melhor. A História não apresenta, muitas vezes, essa
progressão da perfectibilidade, como se assinalasse sempre uma passagem do mais rústico para o
mais polido.
O preconceito evolucionista tem impedido a compreensão de muitos fenômenos culturais, como
acontece, por exemplo, nos domínios da arte, onde ainda alguns porfiam em apresentar, para não dar
senão um exemplo expressivo, a arte do Renascimento como o esplendor evolutivo de uma arte que
teria sido rudimentar nos chamados "primitivos". Cada época, no entanto, realiza seus valores em sua
plenitude e em sua autenticidade, não sendo aconselhável querer destacar uma delas como grau de
um processo de ideação iluminística progressiva.
Da mesma forma, não vamos procurar na História o segredo de um Direito que se aperfeiçoou,
porque não se pode a priori excluir a possibilidade de ter sido a raiz primordial do Direito entrevista
nos primeiros contatos estimativos, numa intuição encoberta depois por experiências ligadas a
elementos extrínsecos ou instrumentais.
Mostrando que este nosso estudo não tem qualquer preconceito, senão o de verificar, pura e
simplesmente, como o Direito foi vivido pela espécie humana, vejamos que é que o homem terá
entendido, de início, por Direito, ou como se lhe apresentou o problema da juridicidade.
Quando falamos em Direito, especialmente para estudantes de Jurisprudência, a primeira noção
que surge é de um conjunto sistemático de regras obrigatórias, de normas, de leis, de comandos, que
determinam a prática de certos atos e a abstenção de outros. A idéia que se impõe, de imediato, no
espírito de um homem moderno, é a do Direito como norma, como lei ou como pauta
consuetudinária de agir.
Se, ao contrário, uma pessoa de formação fundamentalmente sociológica procura entender o
Direito, é levada a apreciá-lo como jato ou fenômeno social, subordinado a um conjunto de hipóteses
das quais resultarão sempre determinadas conseqüências.
192. Não foi provavelmente nem a primeira, nem a segunda destas compreensões que se
apresentou em primeiro lugar ao homem, quando seu espírito se entreabriu para aflorar estes
problemas.
Parece-nos lícito conjeturar que o homem viveu inicialmente o Direito como experiência e o
realizou como iate social, de envolta com os liames míticos e religiosos dos primeiros tempos, tal
como a Sociologia e a Antropologia nos ensinam, pois o fato jurídico, como fato histórico ainda
indefinido ou indistinto, foi concomitante ao viver do homem em sociedade. A consciência desse fato
surgiu, porém, mais tarde, e muito mais tarde ainda a consciência de que tal fato pudesse ser objeto
de ciência autônoma ¹.
1. Não há, pois, como confundir a história do fenômeno jurídico com o da "consciência estimativa" por ele
provocado. Do mesmo modo se não deve confundir a história dos fatos jurídicos com a história das doutrinas. Cf.
ROUBIER, Théorie Générale du Droit, cit., pág. 319.
Pode-se dizer que o Direito, de envolta com as demais expressões do viver coletivo, foi antes
vivido como um fato, e, ao mesmo tempo, como um fado a que o homem atribuía a força inexorável
e misteriosa dos enlaces cósmicos, talvez inspirado inicialmente, como sugere Cassirer, pela visão
dos astros, cuja "ordem" terá sido a primeira a ser arrancada do caos das impressões, dos desejos e
das vontades arbitrárias.
Aos poucos, esse vago e obscuro sentimento da ordem cósmica entrelaça-se e confunde-se com
outro sentimento, relativo à ordem de seu próprio mundo, de seus atos e comportamentos.
O homem, nos tempos primitivos, é governado, como se sabe, por um complexo de regras ao
mesmo tempo religiosas, morais, jurídicas, indiferençadas no bojo dos costumes, elaboradas no
anonimato do viver coletivo, exigidas por chefes e sacerdotes. Durou milênios o processo de
diferenciação das regras que hoje governam órbitas distintas de conduta, sendo possível que a
consciência do justo tenha sido precedida pela da força e da astúcia.
Momento decisivo na História da compreensão humana — em certo sentido é então que começa
verdadeiramente a História —, é aquele em que o fato passa a ter um significado percebido no plano
da consciência. Quando a "imagem do mundo"' começa a adquirir vida própria, enlaçando o passado
e o futuro, o homem supera o plano do fático e do natural, envolvendo-o no manto de sua imaginação
criadora. Sob certo prisma, é pela imagem e pela potenciação da imagem que o homem se supera,
naquilo que o ser humano possui de uniforme e de causado, inserindo, não importa se com plenitude
ou não de propósitos, algo de inédito e de autonomamente projetante no processo da Natureza.
Não se estranhe, pois, que o homem não tenha admitido, senão muito tardiamente, a possibilidade
de se estudarem a ordem natural e a ordem social segundo critérios objetivos e neutros,
independentemente de qualquer referência a forças transcendentes. A invocação de algo estranho à
Natureza em si mesma era uma afirmação poderosa do homem: no ato de admitir, miticamente, mais
do que o natural fático, punha o ser humano a distinção de seu próprio problema, para atualizar-se
progressivamente como ser capaz de pensamento e de síntese.
Compreende-se, pois, que o Direito, no seu substractum fático, tenha sido eclipsado pelo Direito
como conteúdo de estimativa, ligado ao sentimento do justo, revelado em expressões irracionais. A
primeira intuição foi a do Direito — ou melhor, da "ordem social" na qual o Direito estava em
gérmen, pois também ainda não se achava formalmente organizado o Poder —, a primeira imagem
talvez tenha sido uma imagem de valor, como vivência confusa de valores, permanecendo
inseparáveis a concepção do universo físico e a do mundo moral.
Conjeturando sobre as primeiras formas de compreensão da convivência humana, ou, mais
genericamente, sobre as primeiras reações produzidas pelo fenômeno da ordem social no espírito
humano — em épocas cujo início seria dificilmente determinável, oferecendo campo a múltiplas
hipóteses —, podemos admitir o reconhecimento ou a aceitação de certos valores hipostasiados, o
que quer dizer projetados para fora do homem e transformados em entidades por si bastantes.
Embora pareça paradoxal, a primeira conquista no plano da compreensão espiritual implicou uma
alienação do homem a potestades superiores, às quais atribuiu a origem daquilo que, na realidade,
brotava do íntimo de sua própria consciência. O homem, no assombro dos primeiros conhecimentos,
não se pôs como fonte constitutiva do conhecimento, na autoconsciência reveladora do espírito, mas
projetou fora de si, para tornar a receber como sendo gerado por outrem, o que no fundo era o fruto
de suas próprias virtudes criadoras.
No primeiro contato com a ordem social, com a força dos costumes, que o enlaçava e envolvia em
todos os momentos e circunstâncias; nessa "descoberta" de uma ordem que era produto de sua
própria experiência histórica, o homem não atribuiu a si mesmo a criação paulatina daquele mundo,
mas o concebeu como uma dádiva da divindade, graças a cuja interferência a natureza e a sociedade
eram arrancadas do caos.
Assim é que, lembra-nos Cassirer, a epopéia de Gildamés, os livros dos Vedas, a cosmogonia dos
egípcios, todas elas refletem, nesse ponto, concepção idêntica. No mito cosmogônico babilônico,
vemos Marduk dando combate ao caos informe, contra o monstro Tiamat. Depois de vencê-lo, o
herói instaura os eternos signos que simbolizam a ordem do universo e da Justiça, pois tudo quanto o
homem cria ainda sai de suas mãos rodeado de um mistério inescrutável ².
2. E. CASSIRER, Las Ciências de Ia Cultura, cit., pág. 8.
A mesma implicação entre mito e história observamos na Grécia, onde, ao elevar-se à consciência
do problema que nos ocupa, o ser humano primeiro reverenciou à deusa Justiça, receou seus
desígnios, obedeceu temeroso a seus comandos, antes de se subordinar aos mandamentos jurídicos
como expressão objetiva da convivência e expressão de sua atividade pessoal realizadora.
Têmis e Diké foram, entre os gregos, as personificações do sentido ideal que governa de maneira
obrigatória o comportamento social. Poderíamos dizer, com as devidas cautelas, que, de início, por
sua origem mítica, a ordem humana — na qual se englobava o Direito —, é sentida ou percebida
como algo que deve ser. O problema do dever ser impôs-se na primeira intuição do homem sobre a
regularidade ou pressão das forças sociais.
A Justiça é vista por uns pitagoricamente como expressão de harmonia aritmética, como
proporção. Por outros, como força que liga entre si os astros e os corpos, como aquela força que
determina a passagem do caos para o cosmos. A natureza é harmônica e cósmica, porque presidida
pela divindade suprema segundo os “conselhos" de Têmis, que de Júpiter gerou a filha Diké, a deusa
dos julgamentos, a deusa vingadora das violações da lei.
Por ser a Justiça um alvo a ser atingido, surgiu a noção do Direito como algo que traça uma
direção, como comportamento enquanto dirigido para o ideal personalizado em poderosa divindade.
Nessa intuição, o elemento mítico se entrelaça, de maneira prodigiosa, com a experiência humana
empírica.
É desnecessário lembrar aqui a importância dos mitos na formação do saber humano. Platão e
Aristóteles já puseram em altíssimo relevo a importância dos mitos para a Ciência, mostrando o papel
que representam as hipostasizações do homem no processo do conhecimento, porquanto representam
maneiras de penetrar no âmago da realidade, naquilo que a realidade tem de mais oculto. Podemos,
pois, dizer que a primeira intuição do Direito foi em termos de Justiça, ou, se quisermos empregar
palavras de nossos dias, em termos axiológicos.
Este sentimento do Direito como Justiça, como valor, como ideal, implicava a idéia de
obrigatoriedade, de comando, tanto assim que o ideal se divinizou; e a Justiça foi predicado atribuído
à própria divindade.
Servir à Justiça era servir a Deus, de maneira que o homem se sentiu ligado nos seus
comportamentos. Os laços resultantes do ideal de Justiça foram recebidos como leis. A lei, no seu
sentido primordial, é bem um laço, um enlace. O homem que cumpre a lei não faz outra coisa senão
respeitar um enlace que é de natureza divina. É por esta razão que o Direito primitivo obedece a um
ritual ou a um formalismo religioso, e o desrespeito ao rito eqüivale à violação do justo. O Direito,
aos poucos, foi se libertando desses elementos mitológicos ou míticos, mas guarda ainda algo de seu
sentido primordial.
Nós, homens civilizados — ou que nos consideramos tais —, pensamos que a obrigação jurídica é
um fato intuitivo e evidente, e não nos apercebemos de quanto custou à espécie humana chegar ao
ponto de compreender, por exemplo, a validade de uma obrigação jurídica por si mesma, por ser
mera expressão de uma declaração de vontade.
Quando dois homens contratam e pactuam direitos e deveres recíprocos, surge um laço que se põe
por si mesmo, como oriundo das vontades das partes e em razão da lei positiva que as faculta e
protege. Esta idéia é o produto de uma longa experiência histórica. A primeira expressão do dever
jurídico foi de natureza mítica ou religiosa e, consoante nos esclarecem os estudiosos do Direito
Romano primitivo, obligare aliquem significava, de início, ligar alguém por meio de fórmulas ou de
cerimônias religiosas, tanto assim que obligare ia de par com damnare. A fórmula arcaica damnas
esto significava: "que ele seja ligado a, obrigado a".
Para garantir o cumprimento de uma obrigação, sentiu-se necessidade de invocar-se uma potência
externa, uma potestade divina, pois o homem só se ligava em razão de algo transcedente, razão e
princípio do liame. Quando, para não dar senão um exemplo, um homem fazia empréstimo de um
boi, enlaçava-lhe os chifres e confiava o laço ao interessado, invocando a proteção da divindade, a
fim de que entre eles se estabelecesse um nexo, o que quer dizer um nó que somente a divindade
podia arbitrariamente desfazer ³.
3, Para uma visão geral da matéria, v. J AMES G. FRAZER, The Golden Bough, Nova Iorque, 1943, passim; HENRI
DECUGIS, Les Étapes du Droit des Origines à nos Jours, Paris, 1946, esp. cap. V, e G. DAVY, La Foi Jurée, Paris, 1922,
passim. Cf. MIGUEL REALE, Lições Preliminares de Direito, cit., págs. 167-173.
A idéia de enlace ainda ficou com esse sentido em nossa experiência jurídica. Ainda falamos em
"laço contratual", em "enlace matrimonial", e assim por diante. Guardamos nas palavras petrificadas
o conteúdo mítico que desapareceu.
Aqui, ocorre-nos lembrar que a própria palavra Justiça tem em sua raiz também o sentido de jus,
de jungere — unir. Os homens mais se ligaram por forças míticas do que pela autoconsciência de sua
própria valia. É só através do tempo que o Direito se humaniza, no sentido de encontrar em si
mesmo, no próprio homem, as razões de sua gênese. É muito controvertida, por certo, a etimologia
das palavras jus, justum e justitia. Segundo alguns, derivariam do radical sânscrito ju (yu), que quer
dizer ligar, como ainda se conserva nos termos "jungir" ou "jugo"; outros invocam a matriz védica
yòh, que corresponde à idéia religiosa de salvação ou propiciação; outros ainda aproximam, desde
Grócio e Viço, jus a Zeus ou Júpiter. É possível que tais explicações sejam antes harmonizáveis,
revelando-se que a primeira noção do jus expressou uma ligação propiciatória sob a proteção divina
4.
4. Sobre este problema, v. PIETRO DE FRANCISCI, Storia dei Diritto Romano, Milão, 1943, vol. I, págs. 327 e segs.
193. É preciso notar, entretanto, que, apesar de ter projetado para fora de si e de ter
antropomorfizado estes fenômenos nas divindades de Justiça, o homem sentiu que, no fundo, a
Justiça estava nele mesmo, ao colocar e compreender a Justiça também como uma virtus. Quando os
romanos se referiam ao Direito, eles o apresentavam como voluntas. Há uma correlação necessária e
essencial entre a intencionalidade do homem para o justo e o justo como aquilo a que o homem tende.
Quando os homens se sentiram ligados e aceitaram as leis de ligação, entenderam que elas
resultavam de algo superior ao próprio homem. Na idéia primordial de lei existe sempre a
consciência de uma força extrínseca à lei mesma, ditando o comando e tutelando-o. Onde se diz lei,
diz-se legislador, legislador que enuncia o caminho, a direção; e também legislador que garante o
cumprimento do que determina.
Não é demais recordar que o homem teve primeiro a noção de lei como "comando" ou
"imperativo", para depois concebê-la como relação objetiva entre fenômenos. A noção de lei
modelou--se, de início, sobre a noção de uma ligação entre ordem e obediência, pressupondo sempre
a pessoa do autor da norma e a do seu destinatário: — muitas vezes inclinamo-nos a pensar que
recebemos dos físicos e dos químicos o conceito de lei, quando, na realidade, foi o contrário que se
deu.
Nas primeiras cogitações sobre a natureza física, os homens também foram levados a conceber
um legislador governando o fato natural, como quem baixa um comando. O progresso das ciências
físico-matemáticas foi assinalado pela libertação cada vez maior do conceito de lei desse resíduo de
imperatividade.
Em precioso trabalho, escrito nos Estados Unidos e intitulado Sociedade e Natureza, Kelsen
estuda, ampla e profundamente, esta questão, mostrando como foram os cultores das ciências físico-
matemáticas que transladaram para seu domínio uma noção primordialmente própria da Religião, da
Ética e do Direito.
Os cultores das ciências exatas realizaram uma decantação formidável, no sentido de tornar as
relações entre os fatos meramente explicativas, sem qualquer referência a um legislador ou a uma
força estranha ao processo natural. Estes resultados foram tão grandes que os próprios juristas, por
sua vez, se impressionaram: — em determinado momento cuidaram de converter suas leis em leis
meramente explicativas, no que incorreram em grande equívoco. O que foi um progresso
extraordinário no campo das ciências exatas, muito embora não sejam de todo isentas de coeficientes
axiológicos, tornou-se deturpação nos domínios das ciências jurídicas e éticas, como já tivemos
ocasião de examinar pormenorizadamente.
Explicado este primeiro ponto, perguntamos se, depois de ter-se proposto o problema da Justiça, o
homem se preocupou logo com o fato da experiência humana concreta. Não. O Direito, como fato,
como acontecimento social e histórico, só foi objeto de ciência autônoma muito mais tarde, em
tempos bem chegados a nós, no decorrer do século passado. Trata-se, portanto, de uma ordem de
pesquisas muito recente no patrimônio da cultura universal.
A perquirição metódica do Direito como fato só começa a ser especificamente estudada na época
moderna. São Machiavelli, Bodin, Hobbes, Montesquieu ou Viço grandes cultores da experiência
social, jurídica ou política, mas a pesquisa do Direito como fenômeno configurável objetivamente
com estruturas próprias, só adquire consistência científica nos trabalhos sociológicos e históricos dos
séculos XIX e XX. A Sociologia do Direito é uma cogitação recente. E por ter aparecido por último,
muitos pensaram que vinha marcar o ápice de uma evolução científica, o apogeu de uma progressão
especulativa. . . 5
5. Cf. cap. XXXI. A Intuição Normativa do Direito

194. Na realidade, entre a terceira fase recente e a mais antiga, colocou-se uma outra, na qual o
Direito foi visto como norma ou como lex. Situa-se exatamente neste ponto o que chamamos
Jurisprudência. A importância do Direito Romano vem daí, de ter tomado contato com o Direito
como regra e de ter formulado a possibilidade de uma Ciência do Direito como ordem normativa. A
esta ciência os romanos denominavam Jurisprudência, que não era o estudo puro e simples dos
valores de Justiça, mas a indagação das concreções da Justiça no tempo, nas delimitações espácio-
temporais da experiência humana. Os romanos tiveram consciência de que a Justiça se revelava no
factum da conduta, como experiência humana.
A conhecida parêmia ex fato oritur jus não deve ser interpretada em sentido fisicalista, como uma
causa que gera um efeito, mas no sentido do encontro do ideal do justo com o fato concreto posto
como sua condição.
Parece-nos ter sido suficientemente provado, em face de algumas tentativas de reduzir-se o
Direito Romano a uma geometria abstrata de normas, que os jurisconsultos romanos jamais
separaram a "norma" de sua circunstancialidade fática, assim como de suas exigências ideais 6.
6. Nesse sentido, entre outros, R. V ON JHERING, L’Esprit du Droit Romain, trad. de Meulenaere, Paris, 1886; P IETRO
DE FRANCISCI, Storia dei Diritto Romano, Milão, 1943. Este segundo autor acentua a importância para o jurista do
conhecimento da relação entre elementos de estrutura e elementos finais, e da influência das mudanças destes sobre
aqueles (op. cit., pág. 70, nota 2).
Sob certo prisma é o sentido de concreção que assinala a grandeza dos jurisconsultos clássicos,
integrando em unidade o fato e o valor graças à terceira dimensão representada pela norma. Se os
gregos filosofaram sobre a Justiça, desde os pré-socráticos até os estóicos, os romanos preferiram
indagar da experiência concreta do justo. A experiência concreta do justo apresenta-se-lhes como lex
ou como norma. A Justiça é um valor, mas que deve ser medido na experiência social e que, para ser
medido, exige um tato especial, um senso particular. A ciência que se destina a estudar a experiência
humana do justo chamou-se Jurisprudência — por ser o senso prudente da medida. Para o jurista
romano, o que mais interessa é a regula júris, ou seja, a medida de ligação ou a medida do enlace que
a Justiça permite e exige, de tal modo que Justiça e Direito se tornam inseparáveis, considerado que
seja como um todo o conjunto da experiência jurídica 7.
7. Cf. nosso estudo "concreção de fato, valor e norma do Direito Romano clássico", em Horizontes do Direito e da
História, cit.
A expressão regula é de uma clareza extraordinária, não só porque conserva a antiga raiz — reg,
que determina a idéia de enlace ou comando —, como também porque lembra a idéia de medida e de
medida em concreção.
Em português, temos duas palavras que se originam de regulam: — uma é regra; a outra é régua.
Régua, segmento de direção, no plano físico; regra, sentido de direção no plano ético, linha de
comportamento.
O princípio diretor do jurista, segundo os romanos, é a ratio júris, cabendo-lhe indagar de cada
circunstância a sua ratio, a fim de estabelecer sua medida, sua regula: — a ratio júris determina a
regula júris.
Em sentido inverso, quando a regula júris já é dada, a interpretação não pode se fixar apenas nos
elementos literais ou gramaticais, porque deverá procurar atingir o espírito, a ratio legis. Foram estes
elementos que habilitaram o povo romano a constituir as categorias da Ciência Jurídica.
Ainda hoje, trabalhamos com categorias ou conceitos básicos formulados por eles, operando a
passagem progressiva de um saber empírico para o saber científico. Não puseram, como os gregos, o
problema do "dever ser" do Direito, mas foram homens práticos, quase pragmáticos, para os quais o
Direito foi brotando dos fatos, em contato com a experiência. Mas o jurisconsulto romano jamais
reduziu o Direito ao mero fato, como depois pretenderam fazer alguns sociólogos contemporâneos,
porque eles viram que o jurista domina sempre o fato com a sua voluntas, pondo uma regula, que é
regência segundo medida.
195. Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da experiência das estimativas históricas,
como os significados da palavra Direito se delinearam segundo três elementos fundamentais: — o
elemento valor, como intuição primordial; o elemento norma, como medida de concreção do valioso
no plano da conduta social; e, finalmente, o elemento fato, como condição da conduta, base empírica
da ligação intersubjetiva, coincidindo a análise histórica com a da realidade jurídica
fenomenologicamente observada.
Encontraremos sempre estes três elementos, onde quer que se encontre a experiência jurídica: —
fato, valor e norma. Donde podemos concluir, dizendo que a palavra Direito pode ser apreciada, por
abstração, em tríplice sentido, segundo três perspectivas dominantes:
1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada Deontologia
Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela Política do Direito;
2) o Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do Direito ou Jurisprudência; e da
Filosofia do Direito no plano epistemológico;
3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia e da Etnologia do Direito; e
da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia Jurídica.

Esta discriminação assinala, todavia, apenas um predomínio ou prevalência de sentido, e não uma
tripartição rígida e hermética de campos de pesquisa. A norma, por exemplo, representa para o jurista
uma integração de fatos segundo valores, ou, por outras palavras, é expressão de valores que vão se
concretizando na condicionalidade dos fatos histórico-sociais.
Antes de mostrar como é que essa integração se realiza, é necessário examinar, em suas linhas
gerais, algumas teorias que reconhecem o caráter tridimensional do Direito, resolvendo de maneira
diversa e até mesmo contrastante as relações entre os elementos, que a análise fenomenológica da
conduta já nos revelara, e que a História estimativa do Direito acaba de nos confirmar: ver-se-á,
assim, a tridimensionalidade reflexa no plano das interpretações doutrinárias.
Capítulo XXXV

O Tridimensionalismo Abstrato ou Genérico


Espécies de Teorias Tridimensionais
196. A análise fenomenológica da experiência jurídica, confirmada pelos dados
históricos sucintamente lembrados, demonstra que a estrutura do Direito é
tridimensional, visto como o elemento normativo, que disciplina os comportamentos
individuais e coletivos, pressupõe sempre uma dada situação de fato, referida a valores
determinados.
É preciso observar que a unidade ou a correlação essencial existente entre os
aspectos fático, axiológico e prescritivo do Direito não foi logo claramente percebida
pelos juristas e jusfilósofos, os quais, como vimos, foram antes tentados a
compreender o fenômeno jurídico à luz de um ou de dois dos elementos discriminados,
dando, assim, origem às teorias reducionistas, objeto de estudo no Título IX desta
obra.
Vimos, todavia, que, não obstante os propósitos de pureza metódica alimentados
pelos adeptos das doutrinas monistas, o desenvolvimento mesmo de suas concepções
veio a revelar os nexos que unem os três fatores, pondo o inevitável problema de sua
interdependência ou correlação.
Pois bem, as primeiras doutrinas que se aperceberam desse problema, fizeram-no de
modo abstrato, isto é, sem se desvin cularem integralmente de perspectivas setorizadas, mas
apenas procurando compô-las numa visão final e compreensiva, entendida, por sinal, de maneira
diversa e até mesmo conflitante.
Há autores, em verdade, que se limitam a reconhecer que uma visão integral do Direito só é
obtida mediante a consideração dos três aspectos supra discriminados, entendendo alguns ser tarefa
do jusfilósofo realizar uma síntese final das análises feitas separadamente pelos especialistas que
estudam o Direito como fato (sociólogos, etnólogos, psicólogos e historiadores do Direito); como
valor (axiólogos e politicólogos do Direito); ou como norma (juristas e lógicos do Direito). No
fundo, o que prevalece, nesse tipo de compreensão, é o antigo entendimento positivista da Filosofia
como uma "Enciclopédia do saber cientifico", com base nos resultados auferidos e aferidos em
distintos campos particulares de investigação. Quando se reconhece a viabilidade dessa composição
final, em maior ou menor grau, temos o que se poderia denominar "tridimensionalismo genérico de
tipo enciclopédico", cuja formulação mais completa nos é dada, como veremos, pela obra de Julius
Stone.
Jusfilósofos há, todavia, que não admitem possa haver conciliação entre os pontos de vista
teóricos elaborados pela Sociologia, pela Ciência ou pela Filosofia do Direito, cada uma delas
constituindo um campo a se, insuscetível de correlação, salvo no plano da ação prática ou da praxis.
É nesse sentido que se desenrola notadamente o pensamento de Gustav Radbruch
(tridimensionalismo genérico antinômico), bem como o de alguns autores que sofrem a influência do
perspectivismo de Ortega y Gasset ¹.
1. Sobre essas e outras modalidades do tridimensionalismo, cf. Miguel R EALE, Teoria Tridimensional do Direito, 4ª
ed., Saraiva, 1986, e infra, §§ 197 e segs. Há trad. castelhana desta obra de Juan Antonio Sardina Paranio, sob a égide da
Universidade de Santiago de Compostela, 1973, mas corresponde à edição de 1968, também republicada pela
Universidade de Valparaizo, Chile, na coletânea "Juristas Perenes".
Pois bem, o que denominamos tridimensionalismo específico assinala um momento ulterior no
desenvolvimento dos estudos, pelo superamento das análises em separado do fato, do valor e da
norma, como se se tratasse de gomos ou fatias de uma realidade decomponível; pelo reconhecimento,
em suma, de que é logicamente inadmissível qualquer pesquisa sobre o Direito que não implique a
consideração concomitante daqueles três fatores. Essa forma de compreensão da matéria veio se
constituindo, a partir de 1940, coincidindo, nesse ponto, as contribuições de Sauer com as nossas ²,
muito embora obedecendo a pressupostos metodológicos autônomos e distintos. Consoante se verá,
nossa teoria culminará na precisa determinação da tridimensionalidade como sendo uma das notas
essenciais e características da experiência jurídica, ponto de vista este depois compartilhado por
Luis Recaséns Siches 3.
2. Cf. MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito, São Paulo, 1940, sobretudo o capítulo final intitulado "ato, valor e
norma", e Teoria do Direito e do Estado, da mesma data, passim.
3. Cf. MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, cit., cap. II.
Não é demais acrescentar que, assim como há várias modalidades de concepções tridimensionais
genéricas, também há diferentes teorias tridimensionais específicas, merecendo realce a distinção
entre as que correlacionam os três elementos numa coordenação ou composição integrante, mas
estática, de perspectivas (como é o caso de Wilhelm Sauer e de Jerome Hall, aquele dando mais
ênfase ao valor; este, ao fato social) e as doutrinas que entendem só ser possível aquela integração
em virtude do processo dialético que governa a experiência jurídica (dialética de implicação-
polaridade ou de complementariedade, no nosso entender, dialética da razão vital, segundo Recaséns
Siches).
Ao longo deste capítulo e dos seguintes, melhor se compreenderão as distinções ora estabelecidas,
as quais podem ser compendiadas na figura seguinte:
Na primeira coluna, indicamos os elementos constitutivos da experiência jurídica — fato, valor e
norma; na segunda, assinalamos a nota dominante, que corresponde aos elementos discriminados
com o nome de eficácia, fundamento e vigência, cujos conceitos serão a seguir estudados, elaborando
noções já oferecidas nas páginas anteriores.
Como existem três elementos, surgiram as tentativas já examinadas de "setorização" do
fenômeno, motivo pelo qual na terceira coluna aparecem as diversas "concepções unilaterais": o
sociologismo jurídico, o moralismo jurídico e o normativismo abstrato.
Quando se procuram combinar os três pontos de vista unilaterais e, mais precisamente, os
resultados decorrentes de estudos levados a cabo separadamente, segundo aqueles pontos de vista,
configura-se o que chamamos de tridimensionalidade genérica do Direito.
Quando, ao contrário, não se realiza uma simples harmonização de resultados de ciências
distintas, mas se faz um exame prévio da correlação essencial dos elementos primordiais do Direito,
mostrando que eles sempre se implicam e se estruturam, numa conexão necessária, temos a
tridimensionalidade específica, que pode ser estática, ou dinâmica e de integração.
Neste último caso, a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma apreciação inicial
da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a
abranger, em unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito, com
conseqüências relevantes no que se refere aos problemas básicos das fontes do direito, dos modelos
jurídicos e da hermenêutica jurídica.
O Trialismo de Lask e o Monismo Neo-Hegeliano
197. Como já foi advertido, a interpretação tricotômica do Direito tem sido descortinada segundo
perspectivas diversas. Na ordem cronológica, e mesmo por sua importância fundamental na história
das idéias jurídicas contemporâneas, parece-nos merecer nossa imediata atenção a corrente que se
prende à Escola sudocidental alemã, notadamente na diretriz de Emil Lask, Frederico Münch e
Gustav Radbruch.
Em sua preciosa Filosofia Jurídica, Emil Lask (1875-1915), após uma análise percuciente do
historicismo de base empírica e do jusnaturalismo, conclui pela necessidade de seu "superamento",
por serem dois escolhos dos quais a Filosofia do Direito deve precaver-se.
O Direito Natural, escreve ele, quer extrair magicamente da absoluteza do valor o substrato
empírico; o historicismo pretende extrair magicamente do substrato empírico o absoluto do valor. O
primeiro, destruindo a autonomia do empírico pela hipostasização do valor, incorre no erro da a-
historicidade; o segundo, olvidando o valor das normas intemporais, destrói a possibilidade mesma
de toda Filosofia e de uma concepção do mundo. Mérito imortal de ambos, foi, porém, ter posto em
evidência o fático e o valioso.
Isto posto, o jovem mestre da Escola de Baden, cuja trajetória iria ser violenta e prematuramente
truncada na Primeira Grande Guerra, esboça todo um programa de trabalho no sentido de realizar a
síntese das correntes filosófico-jurídicas, até então contrapostas.
Essa orientação prenuncia e prepara, aliás, a linha central de sua doutrina quanto à síntese
necessária de "racionalismo" e "irracionalismo", "idealismo e realismo", graças ao caráter intencional
das categorias, sempre referidas a um conteúdo real ou ideal alheio a elas 4.
4. Nesse sentido, v. sua obra fundamental Die Logik der Philosophie und die Kategorienlehre, 1912. Cf. G.
GURVITCH, Les Tendences Actualles de Ia Philosophie Allemande, Paris, 1930, págs. 158 e segs.
Na Filosofia Jurídica, obra de 1905, ainda sob direto influxo da Filosofia dos valores de
Windelband e de Rickert, e sem o fecundo contato que depois iria tomar com as contribuições da
fenomenologia de Husserl e o reexame da dialética de Hegel, a solução apresentada esquematiza-se
em torno da categoria de cultura.
Partindo da antítese entre valor e realidade, em que se debatia o neokantismo, e tentando superá-
la, Emil Lask recorre ao mundo intermédio da cultura, nele incluindo o Direito. Este pode ser
estudado sob tríplice perspectiva: como realidade impregnada de significações normativas objetivas
(objeto da Jurisprudência ou Ciência do Direito, segundo o método jurídico-dogmático) como um
fato social (objeto da Sociologia Jurídica, segundo o método sócio-teorético), ou ainda como valores
ou significações, abstração feita da realidade a que aderem e que eles orientam (objeto da Filosofia
do Direito, segundo o método crítico ou axiológico) 5.
5. Cf. EMIL LASK, Filosofia Jurídica, Buenos Aires, 1946. V. EUSTAQUIO GALÁN, La Filosofia dei Derecho de Emil
Lask en Relación con el Pensamiento Contemporâneo y con el Clasico, Madri, 1944. V. MIGUEL REALE, Fundamentos do
Direito, cit., págs. 180 e segs. e o "Prefácio" de CABRAL DE MONCADA à tradução da Filosofia do Direito de GUSTAV
RADBRUCH. O pensamento de LASK foi estudado por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ FILHO, em sua tese de doutoramento na
Universidade de Mainz, lembrada na Bibliografia deste livro. Cf. do mesmo autor Conceito de Sistema no Direito, 1973,
cit.
Daí reconhecer o alcance da distinção feita por Jellinek entre Teoria Social do Direito e
Jurisprudência, segundo se considera o Direito como "um fator real da cultura, um sucesso da vida
social", ou como "um complexo de significações, mais exatamente, de significações normativas,
acerca de seu conteúdo dogmático"6.
6. Filosofia Jurídica, cit., pág. 63. Sobre a doutrina de J ELLINEK e sua significação na história do pensamento
filosófico-jurídico contemporâneo, v. nossos Fundamentos do Direito, 2.ª ed., cit., págs. 91 usque 134.
Essa contraposição ou antagonismo entre "realidade" e "significação", entre "ser" e "dever ser" só
se justifica, diz ele, à luz de uma concepção sistemática das ciências culturais; mas uma compreensão
histórica da cultura implica o reconhecimento de uma correlação: há um dever ser para o filósofo do
Direito como tal, cujo caráter dimana de uma validez absoluta, em uma instância supratemporal; e há
um dever ser para o cientista do Direito, que depende de um dado empírico, da vontade da
comunidade como momento de sua validez concreta 7.
Desse modo, o momento do dado empírico, do existente de fato, não é relevante apenas para a
doutrina do "ser do Direito", como parecem pensar Jellinek e outros, mas também para a doutrina do
"dever ser do Direito". A totalidade dos objetos captáveis pelo Direito cobre-se de certo modo, de um
manto teleológico, em uma compenetração entre significação jurídica e substrato real 8.
Discriminados, assim, os pontos de vista e as implicações entre os estudos filosófico, dogmático e
social do Direito, Emil Lask conclui pela afirmação de que o objeto da Jurisprudência não é a lei,
mas o Direito: "A lei, conjuntamente com o Direito consuetudinário, com a aplicação judicial da lei e
com outros pontos de apoio, não é nada mais do que um dos indícios dos quais a Jurisprudência deve
obter, mediante um esforço em parte criador, o sistema que se encontra atrás das normas realmente
válidas, queridas pelo legislador, e portanto, completamente positivas, de uma época determinada e
de uma determinada comunidade"9.
7. Ibidem, pág. 68.
8. Ibidem, págs. 68 e 74.
9. Ibidem, pág. 87.

Eis aí, per summa capita, o programa esboçado por Lask que permanece nos quadros de uma
ainda imprecisa tridimensionalidade genérica, na qual já está implícita, todavia, como a passagem
supra o demonstra, a necessidade de uma compenetração intra-sistemática e dinâmica dos três
elementos. A essa conclusão talvez o nosso Autor tivesse chegado aplicando ao mundo do Direito a
sua fecunda concepção da "intencionalidade" das categorias e a correlação dialética genialmente por
ele estabelecida entre matéria e forma segundo a categoria fundamental do valor 10.
10. Não cabe aqui desenvolver as conexões possíveis entre a dialética da implicação e da polaridade (cf. supra, cap.
XXVI) e a de LASK, ambas distantes do panlogismo dialético de H EGEL, pelo reconhecimento do alcance do elemento
alógico e material como irredutível às formas categoriais, embora suscetíveis de relativa apreensão por meio delas.
198. INTERMEZZO NEO-HEGELIANO — Da obra de Emil Lask partem múltiplas correntes, umas
conservando a sua colocação tridimensional, outras procurando superá-la mediante a integração dos
dois momentos (fato e norma) na unidade de um único processo de objetivação de valores, de
objetivação histórica da idéia ou do logos da justiça. Esta segunda tendência é a que se afirma no
neo-hegelismo jurídico, que assinala seus pontos mais salientes nos trabalhos de Frederico Münch,
Julius Binder, Karl Larenz e Giovanni Gentile.
Na posição neo-hegeliana, resolvida a antítese entre ser e dever ser, a via que se abre é a seguida
por Julius Binder, cuja passagem do neokantismo para o idealismo objetivo de Hegel revela toda a
riqueza e complexidade de motivos que se encerra na concepção culturalista do Direito.
Diz um mestre dinamarquês, Alf Ross, que todas as formas de culturalismo, dada a alegada
impossibilidade de explicar como a idéia ou o valor do justo possa ser constitutiva de uma ordem
normativa positiva, conservando-se os dois termos distintos e heterogêneos, tenderiam à solução
hegeliana, ou seja, à concepção da idéia como imanente na realidade. Nesse sentido, o professor de
Copenhague lembra o exemplo de Binder, evoluindo dos pressupostos da Escola neokantiana de
Baden (Philosophie des Rechts, 1925) para as teses radicais de Hegel, atualizadas na
Grundlegungung Rechtsphilosophie, de 1935 ¹¹.
O trialismo que ainda se conserva implícito na obra de Münch, resolve-se inteiramente no
monismo de Binder, fiel à dialética hegeliana da identidade dos opostos: o Direito passa a ser visto
como realidade ou validade concreta, tornada insubsistente qualquer distinção entre factum e valor,
só concebível de um ponte de vista abstrato e intelectualista, assim como lhe parece sem sentido "o
problema do fundamento da validade": "o Direito é conhecido, concebido e realizado enquanto
válido, e não pode ser conhecido, nem compreendido senão como Direito vigente"¹².
Essa doutrina, que tudo integra em unidade no desenvolvimento dialético do espírito, tem, de um
lado, o mérito de revelar a insuficiência de um trialismo estático ou abstrato, confinado na descrição
ab extra do fenômeno jurídico como se fosse um dado de natureza, mas, de outro, apaga ou torna
insubsistentes distinções que não são meras posições abstratas do intelecto, mas refletem estruturas
objetivas da realidade cultural do Direito.
É graças à dialética de complementariedade que pensamos ser possível satisfazer às exigências
históricas ou dinâmicas atendidas pelos neo-hegelianos, sem se resolverem, uns nos outros,
elementos que só têm significado como termos heterogêneos, embora necessariamente
correlacionáveis. Só assim, ser-nos-á dado evitar o caminho já experimentado por Hegel e que, no
dizer de Cassirer, sacrificou na Filosofia do Espírito o ideal ao fático e, na Filosofia da Natureza, o
fático ao ideal.
11. Cf. ALF ROSS, Towards a Realistic Jurisprudence — A Criticism of the Dualism in Law, Copenhague, 1946, pág.
38. Pensamos, no entanto, que a dialética de complementariedade, tal como se expõe neste livro, permite compreender o
processo normativo do Direito sem se cair na redução hegeliana.
12. BiNDER, La Fondazione della Scienza dei Diritto, cit pág. 154, e passim. Cf. cap. anterior, pág. 451. Aliás, após
dizer que "o ser do Direito consiste na sua validade", pois "um Direito não válido não é Direito", B INDER acrescenta que o
valer" (Geltung) e a "vigência" (Gültigkeit) são dois conceitos entre os quais não se pode estabelecer qualquer distinção
{op. cit., págs. 153 e 160).

O Trialismo de Radbruch
199. A POSIÇÃO RELATIVISTA DE R ADBRUCH — As insuficiências da tridimensionalidade
genérica ou abstrata revelam-se, em verdade, na obra daqueles autores que, desenvolvendo o
pensamento de Rickert e Lask, mais se mantiveram fiéis às posições de Kant.
Expressiva é, nesse ponto, a doutrina de Gustav Radbruch, cujas linhas gerais expusemos em
Fundamentos do Direito ¹³ e que ora nos cingimos a examinar em seu substractum tridimensional.
Radbruch renova a distinção entre realidade e valor, entre ser e dever ser, acrescentando, porém,
em oposição à doutrina de Stammler, não poder subsistir a simples antítese entre um e outro domínio.
"Pelo contrário", escreve ele, "entre a categoria juízo de existência e a categoria do juízo de valor é
preciso estabelecer ainda uma categoria intermédia: a dos juízos referidos a valores
(wertbezienhend); assim como, correspondentemente, entre as categorias de natureza e de ideal, é
preciso dar um lugar à categoria da cultura. Isto é: a idéia de Direito é, sem dúvida, um valor; o
Direito, porém, não é um valor, mas uma realidade referida a valores, ou seja, um fato cultural".
"Deste modo", conclui o antigo mestre de Heidelberg, "transitamos, pois, dum dualismo para um
trialismo nas maneiras possíveis de contemplar o Direito, se abstrairmos duma quarta maneira
possível que é ainda a da sua contemplação religiosa. Ora, é este trialismo que faz da Filosofia
Jurídica uma Filosofia cultural do Direito"14.
13. Cf. págs. 192 e segs. da 2ª ed. da obra citada, à qual pedimos vênia para remeter o leitor, na trad. castelhana de
Júlio O. Chiappini, Buenos Aires, 1976, págs. 157 e segs.
14. Filosofia do Direito, trad. de Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, 2ª ed., pág. 41. R ADBRUCH esclarece, em nota
ao pé da página, que essa direção da Filosofia Jurídica, fundada por L ASK, é representada por MAX ERNST
MAYER,WILHELM SAUER, TATSOS, ADOLFO RAVÀ e KANTOROWICZ, sendo que este associa, tanto como ele, relativismo e
trialismo. Sobre o culturalismo de MAYER e RAVÀ, V. Fundamentai do Direito, págs. 171 e segs.
Posta, desse modo, a tridimensionalidade, como característica essencial do culturalismo jurídico,
Gustav Radbruch procura determinar as três maneiras por que podemos encarar o Direito. A atitude
da Ciência do Direito é a que refere as realidades jurídicas a valores, considerando o Direito como
fato cultural; a atitude da Filosofia do Direito é valorativa (bewertend), visto como considera o
Direito como um valor de cultura; havendo uma terceira atitude, superadora dos valores
(wertüberwindend) que considera o Direito na sua essência, ou como não dotado de essência: é a
atitude ou o tema da Filosofia religiosa do Direito 15.
A essa discriminação deve acrescentar-se uma outra, a atitude não valorativa, cega para os
valores, ou wertblind, própria da Teoria Social do Direito, da História do Direito, do Direito
Comparado ou da Sociologia Jurídica, que cuidam do Direito como "fato intercalado numa série
causai, como efeito e causa de outros fatos"16.
15. Op. cit.. pág. 13.
16. Op. cit., pág. 159. Sobre esse ponto, v. a observação de C ABRAL DE MoNCADA na nota 1 da pág. 13. Diremos,
logo mais, da impossibilidade de uma Sociologia Jurídica baseada em uma atitude cega para o mundo dos valores.
A Ciência Jurídica, propriamente dita, estuda, pois, não a vida do Direito, mas sim normas que se
acham imediatamente referidas a valores.
Como se vê, o trialismo de Radbruch desdobra-se em um tetralismo, mas o que é mais importante
ponderar é que todas as atitudes acima discriminadas, na concepção desse mestre do relativismo
jurídico, conduzem a conclusões irredutíveis e antinômicas.
As pesquisas do filósofo, do jurista e do sociólogo desenvolvem-se em planos distintos,
obedecendo a estruturas e a princípios metodológicos diversos, de maneira que se chega, afinal, ao
reconhecimento de que há três tipos de validade entre si antinômicas: a validade jurídica, que alguns
querem explicar em si mesma, por simples subsunção normativa (Kelsen etc.); a validade social, que
o sociologismo alicerça em processos de eficácia; e a validade ética, cuja fundamentação objetiva era
vão se tem procurado determinar 17.
17. Cf. RADBRUCH, "Le relativisme dans la philosophie du Droit", em Archives de Philosophie du Droit et de
Sociologie Juridique, 1934, 1-2, pág. 106: "Em lugar de um ato de verdade, que é impossível, o que se realiza é um ato de
autoridade. O relativismo jurídico desemboca no positivismo". Cf. nos mesmos Archives o estudo de Gurvitch, Une
Philosophie Antinomique du Droit, 1932, fase. 3-4, pág. 530.
Uma das partes mais vivas da obra de Radbruch consiste, a nosso ver, na análise do problema da
validade segundo três pris mas distintos, revelando as antinomias em que se envolve toda apreciação
puramente lógica ou mesmo lógico-transcendental dos três aspectos ou momentos da realidade
jurídica.
É com grande sutileza que Radbruch distingue as teorias jurídica, sociológica e filosófica da
obrigatoriedade do Direito, apontando as suas antinomias, assim como os absurdos a que chegariam,
se rigorosamente seguidas. O jurista, por exemplo, que fundasse a validade de uma norma tão-
somente em critérios técnico-formais, jamais poderia negar com bom fundamento a validez dos
imperativos baixados por um paranóico que por acaso viesse a ser rei. Aquele que fizesse repousar o
Direito em razões históricas ou sociológicas (teorias da força, do reconhecimento etc.) ver-se-ia
obrigado a avaliar o grau de obrigatoriedade do Direito pelo grau de sua real eficácia, falho de
critério para resolver em caso de conflito entre duas "ordens jurídicas"; e, finalmente, quem
identificasse o Direito e o Justo, deveria rejeitar toda lei positiva contrária a seus anseios de justiça, o
que nos levaria ao caos, pois não há meios científicos de determinação objetiva desse valor supremo
do Direito...18
18. RADBRUCH, Filosofia do Direito, cit., págs. III e segs.
Desse modo, o tríplice aspecto da validade corresponde ao tríplice problema dos valores do
Direito, às três exigências contidas na idéia do Direito: justiça, certeza jurídica (segurança e paz
social) e fim, entre as quais a História nos revela contradições inamovíveis, não cabendo à Filosofia
resolvê-las, pois "a sua missão não consiste em tornar a vida fácil, mas, pelo contrário,
problemática"19.
Daí a conclusão relativista ou cética de que todas as três formas de validade possuem um valor
relativo, referindo-se, como se referem, aos problemas da justiça, das condições sociais e de ordem,
nas quais se concentram todas as contradições insolúveis e inevitáveis da vida jurídica 20.
19. Idem, ibidem, pág. 110. PAUL ROUBIER aceita, em linhas gerais, a tricotomia de RADBRUCH segundo o prisma da
"obrigatoriedade do Direito", e em função dos valores de justiça, segurança jurídica (autoridade, paz, ordem) e progresso
social (felicidade, subsistência, abundância, cultura etc.). Além de preferir a expressão "progresso social", em seu
esquema, o mestre de Lyon afasta-se das antinomias do relativista germânico, observando que, "se a ordem de
sistematização dos valores não pode nos fornecer a chave da História do Direito e das instituições, em compensação, dá-
nos a ordem de importância dos valores", de maneira que a trilogia "ordem--justiça-progresso" representaria exatamente
uma ordem hierárquica de valores. Cf. PAUL ROUBIER, Théorie Générale du Droit, 2ª ed.. Paris, 1951, págs. 318 e segs.
Ao descrever a evolução da escala gradativa dos valores que informam o Direito, R OUBIER pondera que as instituições
jurídicas não se apresentam em uma série unilinear, como se o formalismo, baseado no valor de seguridade, fosse o modo
de vida jurídica das sociedades primitivas; o idealismo, fundado no valor de justiça, assinalasse o modo de vida das
sociedades em seu apogeu; e o realismo, preocupado com o bem-estar e o progresso, caracterizasse as sociedades às
portas da decadência. No fundo, formalismo, idealismo e realismo entrecruzam-se, de modo que devem ser todos
representados em uma sociedade em pleno desenvolvimento (op. cit., pág. 320). Cf. MIGUEL REALE, Teoria
Tridimensional do Direito, cit.
20. O relativismo de RADBRUCH foi atenuado nos últimos escritos desse eminente jusfilósofo, ao achegar-se a certas
teses do Direito Natural clássico. Cf. a 4ª edição da tradução portuguesa de sua Filosofia do Direito, Coimbra, 1961,
revista e acrescida dos últimos pensamentos do Autor, e uma nota esclarecedora de CABRAL DE MONCADA.
Fundamental, na última fase do pensamento de R ADBRUCH, é a renovação do conceito de natureza das coisas, com
imediata e larga repercussão no mundo jurídico ocidental. Cf. R ADBRUCH, Die Natur der Sach als juristische Denkform,
1963.
Os elementos fáticos, axiológicos e normativos justapõem-se, a seu ver, em função de
acontecimentos ligados às preferências de opinião refletida no livre jogo das atividades político-
partidárias, dada a legitimidade em tese de todas as soluções possíveis. Fica aberto, desse modo,
natural acesso à melancólica aceitação do fato consumado: "Se ninguém pode definir
dogmaticamente o justo, é preciso que alguém defina dogmaticamente, pelo menos, o jurídico,
estabelecendo o que deve observar-se como Direito. [. . . ] Quem se acha em condições de fazer
cumprir e respeitar o Direito, já com isso demonstra que é também competente para o definir" 21.
21. Filosofia do Direito, cit., págs. 110 e segs. Veremos que a positividade do Direito é expressão necessária de
exigências axiológicas a partir dos valores mais urgentes (a ordem e a paz) e que a interferência decisória do Poder não se
explica em virtude da relatividade dos valores em si, mas sim pela possibilidade de múltiplas realizações concretas, todas
conciliáveis com as exigências do justo.
Tridimensionalidade Implícita: Santi Romano e Hauriou
200. Fora do âmbito da teoria da cultura, é possível discriminar outras colocações jurídicas que
conservam uma estrutura tridimensional, ao menos implícita, como ocorre no campo do
institucionalismo.
À primeira vista, as posições de Maurice Hauriou e de Santi Romano, ambas marcadas por alto
senso de concreção, com repúdio às teorias redutoras do Direito, ou à norma ou ao fato, deveriam ser
consideradas bidimensionais, mas outro é o nosso modo de ver.
A concepção institucional do jurista italiano é de cunho estritamente jurídico, mantendo-se no
plano científico-positivo, sem qualquer subordinação da juridicidade a critérios deontológicos.
Contrário à redução do Direito à categoria das normas, reclamou ele, com vigor e penetração
exemplares, mais atenção para "outros elementos, de que se não tem geralmente conta e que, no
entanto, parecem ser mais essenciais e característicos"22.
22. Cf. SANTI ROMANO, L’Ordinamento Giuridico, 2ª ed., Florença, 1945.
A sua tese fundamental é a de que o Direito "antes de ser norma, antes de referir-se a uma simples
relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, posição da própria sociedade na
qual se desenvolve, e que ele constitui como unidade, como ente por si bastante"23.
23. Ibidem, pág. 22.
Desse modo, resolve ele o fenômeno jurídico no fenômeno social-institucional e este no
fenômeno jurídico, identificando-os, visto como instituição e norma nascem "uno actu", relacionadas
em "mútua implicação", consoante expressões de Messineo, a que Santi Romano dá seu apoio,
dizendo mesmo ter sido esse o teorema ou a série de teoremas que se propusera demonstrar em seu
trabalho 24.
24. Ibidem, pág. 35, nota à 2.ª ed.
Ao ilustre jurisconsulto peninsular pareceu dispensável, dado o plano de sua pesquisa de natureza
estritamente científico-positiva, propor-se o problema do valor, dos interesses ou dos fins, mas estes
resultam implícitos ou subentendidos em um dos termos da implicação acima referida, cujo processo
representa a dinâmica do Direito. Julga Santi Romano que uma pesquisa de Teoria Geral do Direito
deve situar-se em um "terreno histórico-empírico", e que a correlação instituição-norma basta-se a si
mesma no plano científico, embora sua necessidade possa também ser evidenciada por exigências de
ordem filosófica 25.
25. Ibidem, págs. 39 e 84, notas à 2.ª ed.
Ao objetar-lhe Giuseppe Capograssi que "um ordenamento jurídico só o é, e se realiza como tal,
enquanto referido a um princípio constitutivo da ação", Santi Romano não negou aquela
circunstância, reiterando, porém, que o jurista pode dela prescindir, visto como "um ordenamento é
porque é", e, enquanto vigora, é o ponto de partida das pesquisas do jurista, não sendo necessário ir
além, em busca de seu fundamento, do "porquê" e do "valor" de sua eficácia 26.
26. SANTI ROMANO, Frammenti di un Dizionario Giuridico, Milão, 1947, pág. 69. Cf. CAPOGRASSI, IL Problema della
Scienza dei Diritto, Roma, 1937, págs. 9 e segs.
Apreciando, em outra passagem de seu admirável Dicionário, a função do Direito como sendo a
de "estabilizar ou fixar certos momentos ou movimentos da vida social" Santi Romano abre uma
perspectiva de ordem filosófico-jurídica que deveria merecer especial atenção dos juristas.
Após ter reiterado a correlação entre fato institucional e ordem normativa, lembra "a necessidade
de religar melhor em unidade superior as duas esferas, que têm sido mantidas por demais separadas e
distintas uma da outra: a do ser, e, na categoria da atividade prática, a do dever. De maneira
particular, acrescenta, seria útil talvez analisar melhor os caracteres de algumas conexões entre
natureza e espírito, que poderiam esclarecer também as relações entre o Direito objetivo, entendido
na mencionada acepção (institucional), e o Direito subjetivo, porquanto se é verdade que não há
Física sem alguma Metafísica, não é menos verdade que não há Metafísica sem alguma Física"27.
27. Cf. Framment di un Dizionario, cit., pág. 86.
Pouco nos adianta Santi Romano sobre esse programa de trabalho, mas não diverge,
substancialmente, daquele que nos propusemos realizar desde 1939, com a diferença, porém, que
jamais nos pareceu prescindível, no plano da Teoria Geral do Direito da Ciência Jurídica, a
apreciação do elemento axiológico. Sem a indagação da dimensão axiológica do fato social não nos
parece possível nem mesmo a correlação pretendida por Santi Romano entre fato institucional e
norma jurídica. Em suma, a consideração estimativa impõe-se também no momento da pesquisa
cientifica do Direito, sem que isto implique passagem para o plano da Filosofia Jurídica. A não ser
assim, acaba-se atribuindo à "instituição", como acontece na teoria de um valor imanente,
equiparável, por isso, ao fato normativo posto por Petrasisky, Jellinek e Gurvitch na base da
fenomenologia jurídica.
O mesmo poder-se-á dizer, mutatis mutandis, da doutrina institucionalista francesa, de cunho
mais sociológico, e de mais ampla e viva compreensão filosófica.
Como já tivemos ocasião de examinar em outro trabalho, o institucionalismo de Maurice Hauriou,
cujas bases vieram se alargando ou se universalizando para todos os campos do Direito, graças a
Georges Renard, Jean Delos e Georges Gurvitch, representa uma poderosa força de superamento,
quer do formalismo jurídico, quer do sociologismo, ao qual, porém, paga tributo talvez excessivo.
Obedecendo às exigências de concreção, que têm constituído uma das notas dominantes do nosso
tempo, Hauriou revela plena consciência de que "o problema fundamental do Direito é a
transformação do estado de fato em estado de direito", procurando, esclarecer as conexões entre a
idéia de "ordem social" e a de "justiça", idéias objetivas que estão entre si como a maqueta de uma
estátua em relação ao ideal de beleza plástica 28.
28. Cf. HAURIOU, Précis de Droit Constiíutionnel, V ed., Paris, 1929, págs. 36 e 51.
O ideal de justiça deve ser permanentemente colimado, mas há um limite intransponível, como o
do artista que, ao retocar a maqueta, movido pelo desejo de perfeição, não deve comprometer o
equilíbrio estático da obra. Uma ordem social estabelecida contém sempre certa dose de justiça, mas
também ela se encontra praticamente em conflito com uma dose nova de justiça ainda não
incorporada 29.
29. Cf. HAURIOU, AUX Sources du Droit (Cahier de Ia nouvelle journée, n? 23), págs. 28 e segs., 47 e segs.
Merece ser lembrada a distinção por ele feita entre os valores segundo um critério de importância
e um critério de urgência, pois muitas vezes o Direito consagra os valores mais urgentes (acima de
tudo, a segurança, a ordem, a paz) e não os valores em si mesmos mais altos 30.
30. Idem, Ibidem, pág. 49. Vide os artigos de GURVITCH e DELOS no I vol. dos Archives de Philosophie du Droit, cit.,
1931; GURVITCH, Vldée du Droit Social, Paris, 1932, págs. 647 e segs., e A. D ESQUEYRAT, Vlnstitution, le Droit Objectif
et Ia Technique, Paris, 1933.
É historicamente, no plano da experiência concreta, que Hauriou coloca o problema da correlação
entre justiça e ordem, intimamente ligadas, mas em conflito potencial, por albergar o ideal de justiça
um sentido de insatisfação renovadora e mesmo revolucionária.
Ora, essas idéias diretoras do viver comum não planam acima da vida, como arquétipos
platônicos, mas se inserem na corrente da vida, penetram na realidade social, produzindo-se uma
verdadeira transubstanciação, que se revela no Direito Positivo, "un composé d'ordre social
soupoudré de justice"31.
31. Cf. MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito, cit., págs. 222 e segs., e a Bibliografia aí indicada. Cf. F RANCISCO
OLGIATI, Il Concetto di Giuridicità nella Scienza Moderna dei Diritto, cit., págs. 336 e segs.
Direito, por conseguinte, não é pura norma, mas é a própria realidade enquanto integrada por uma
idéia diretora que congrega as forças de quantos pretendam sua atualização. No plano jurídico as
idéias tornam-se fatos sociais, como disse Delos, e incorporam-se à realidade até se transformarem
em elementos do mundo exterior, em "instituições" 32.
32. Cf. JEAN DELOS, La Société Internationale et les Príncipes du Droit Public, 1929, págs. 80 e segs.
Como se vê, há no institucionalismo uma tridimensionalidade implícita (as "idéias" diretoras
incorporam-se nas "instituições" e produzem as "regras de Direito") representando uma das
expressões mais altas da adequação necessária entre os três elementos constitutivos da experiência
jurídica. Não será exagero dizer-se que as idéias mais fecundas de Hauriou tornaram-se como que
estáticas quando se passou a subordinar o institucionalismo à concepção clássica do Direito Natural,
esvaziando-se de seu conteúdo histórico essencial.
Para concluir este parágrafo, lembraremos que uma compreensão historicista do
institucionalismo, máxime por sua compreensão do significado do Poder na gênese do Direito, como
momento necessário da dinâmica valor-fato-norma, coincidiria, de certa forma, com as perspectivas
do que denominamos "concepção tridimensional concreta do Direito"33.
33. Os limites que nos impusemos neste Curso impedem-nos de apreciar outras doutrinas que traduzem uma
conjugação concreta entre os três elementos discerníveis na realidade jurídica. Sem falar em eminentes sociólogos do
Direito que, praticamente, ?e situam no plano dos institucionalistas, quanto aos pontos ora observados (E HRLICH, ROSCOE
POUND), lembramos o exemplo expressivo de B ARNA HORVATH, que não concebe o Direito apenas como forma e
conteúdo, mas como "correlação de conteúdo e de forma", superando o antagonismo entre "ser" e "dever ser", "realidade"
e "valor", vendo no Direito uma "combinação sinótica, mas não sintética, dos valores e dos fatos" (v. comunicação in Le
Problème des Sources du Droit Positif. publicado pelo Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia
Jurídica, Paris, 1934, pág. 122); e o de F RANCESCO ANTOLISEI que, nos seus Problemi di diritto Penale. 1940, ao examinar
a questão metodológica, bate-se ardorosamente pela "concretezza" do Direito, demonstrando que o problema do fim,
assim como o do fato social, não podem ser considerados metajurídicos, ou suscetíveis de serem abstraídos pelo jurista no
momento da pesquisa das normas. Ao contrário, são problemas que se impõem em qualquer estudo realista das normas de
Direito. (Cf. OLGIATI, op. cit., págs. 276 e segs.) Sobre esses e outros aspectos da questão, pedimos a atenção do leitor
para nosso livro Teoria Tridimensional do Direito, cit., e do estudos reunidos na coletânea organizada por T EÓFILO
CAVALCANTI, Estudos em homenagem a Miguel Reale, São Paulo, 1977.
O Trialismo Perspectivístico
201. Uma expressão digna de nota na corrente tridimensional nos é dada por Legaz y Lacambra e
Eduardo Garcia Máynez, ambos influenciados não só pelo culturalismo e pela Axiologia
contemporânea, como pela Teoria Pura de Hans Kelsen, cujas teses procuram conciliar graças a um
perspectivismo fundamental, haurido nas lições de Ortega y Gasset, e às contribuições de Nicolai
Hartmann e Max Scheler.
No belo ensaio que dedicou a Hans Kelsen, Legaz y Lacambra revela a série de problemas éticos
e fáticos implícitos na doutrina do mestre austríaco, afirmando que a realidade jurídica deve ser
apreciada segundo três ângulos visuais distintos: o fenomenológico, o aporético e o ontológico.
Descrito o Direito em seus elementos essenciais, consoante os pressupostos fenomenológicos de
Husserl, ascende-se à Aporética, que fixa e descreve as contradições que se mostram no fenômeno
jurídico. Uma delas refere-se, exatamente, à validez do Direito, que pode ser jurídica, ética ou
sociológica, cujos aspectos nem sempre têm sido rigorosamente distintos.
Como conciliar esses três pontos de vista, dado que um imperativo, formalmente válido, deve ser
incondicionalmente cumprido, mesmo sendo injusto ou não tendo correspondência efetiva no viver
comum? No plano aporético, não há como recusar a igual licitude dos pontos de vista ou perspectivas
com que se focaliza a questão, no que concorda com Radbruch.
É necessário, porém, superar o plano das aporias, colocando-se o estudioso acima dos pontos de
vista particulares, para abranger o Direito em seu "ser" autêntico. É o que pretende realizar a
Ontologia Jurídica, não para resolver aquelas contradições, "mas sim para ter mais clara consciência
das mesmas". De Metafísica, escrevia Legaz em 1933, há de bastar-nos "o minimum indispensável
para obter a explicação clara e simples dos fenômenos: esse minimum é a transcendência do ser —
aqui do ser jurídico — em face de todo objeto (Direito justo, Direito puro, Direito vigente. . .) e de
todo sujeito (método)"34.
34. Cf. Luís LEGAZ Y LACAMBRA, Kelsen, Barcelona, 1933, págs. 316 e segs. Cf. do mesmo autor, Introducción a Ia
Ciência dei Derecho, Barcelona, 1943, págs. 207 e segs.
Nos seus escritos posteriores, Legaz y Lacambra supera essas posições iniciais, estabelecendo a
unidade do Direito, apresentado como "uma forma de vida social que realiza um ponto de vista sobre
a justiça", — e, inspirando-se numa metafísica personalista, elabora uma doutrina do Direito Natural
reconduzida às matrizes do pensamento clássico. Isto não obstante, não encontramos na obra do
mestre de Madri uma plena integração dos três pontos de vista que tão nitidamente distingue 35.
35. Cf. LEGAZ Y LACAMBRA, Filosofia dei Derecho, 2.ª ed., cit., sobretudo os capítulos sobre Direito Natural e Teoria
da Justiça.
Em sentido paralelo situa-se a teoria de Eduardo Garcia Máynez, em um perspectivismo quase
radical, não se limitando a distinguir três aspectos de uma única realidade, ou três espécies diversas
de um só gênero, mas sustentando, ao contrário, a existência de "três noções distintas e irredutíveis
entre si": as de "Direito formalmente válido", de "Direito intrinsecamente válido" e de "Direito
Positivo".
O primeiro refere-se à vigência, ou seja, ao conjunto de requisitos extrínsecos a que deve uma
norma jurídica obedecer para ser considerada obrigatória 36. O Direito intrinsecamente válido é o
Direito justo, dotado de um fundamento ético, ao passo que o Direito Positivo, independente da
validez formal e da validez intrínseca, não é senão o Direito eficaz, isto é, efetivamente cumprido no
seio de uma comunidade.
36. Cf. GARCIA MÁYNEZ, La Definición dei Derecho, Ensayo de Perspectivismo Jurídico, México, 1948, págs. 17, 29
e segs. O termo vigência é empregado por nós comente como sinônimo de "validez formal" ou estritamente jurídica, para
distingui-la da "validez ética" (fundamento) e da "validez social" (eficácia). Neste sentido, L EGAZ Y LACAMBRA, Filosofia
dei Derecho, cit., pág. 503.
A positividade, segundo Máynez, não se refere ao valor objetivo, nem ao valor formal das normas
de Direito, mas apenas à sua eficácia, correspondendo ao fato da observância das normas.
Representa, consoante ensinamento de Kelsen, uma zona intermédia de aplicação, que não pode
atingir um limite superior de observância indefectível, nem descer a outro inferior de absoluto
descumprimento.
Abstração feita dessa discutível identificação entre eficácia e positividade, cuja determinação fica
entregue ao particularismo dos fatos contingentes, notemos que, segundo Máynez, os três conceitos
discriminados podem relacionar-se estreitamente, o que amiúde acontece, sem se implicarem, no
entanto, reciprocamente, pois é possível Direito vigente não Positivo, assim como Direito Positivo
não vigente.
Essa discriminação abstrata do Direito leva Máynez a conceber as três formas do Direito como
três círculos secantes, dando lugar a sete combinações diversas, segundo esta representação gráfica:
Mais longe não se poderia levar a abstração formal, em uma "ars" combinatória que desatende ao
dinamismo e à historicidade do Direito 37. É de notar-se que o jurista mexicano atenua o alcance de
suas conclusões quando, logo mais, esclarece que só pode haver vigência destituída de positividade,
ou vice-versa, no caso de uma norma singularmente considerada, e não quanto à totalidade da ordem
jurídica positiva. Não obstante essa ressalva, seu pensamento coloca-se em franco antagonismo à
inter-relação ou implicação necessária apontada por vários juristas entre os três elementos da
juridicidade 38.
37. GARCÍA MÁYNEZ, Op. cit., págs. 86 e segs. Compare-se com iguais círculos secantes, que S AUER nos oferece para
indicar o Direito, a Moral e o Costume, desde que considerados (note-se) "como normas sociais abstratas", isto é, apenas
quanto à Forma. (System der Rechts und Sozial-philosophie, 1949, pág. 209.)
38. Para SAUER, por exemplo, os três elementos não se colocam um ao lado do outro, como territórios limítrofes,
sendo antes três braços, três lados ou três raios de um único e mesmo todo; nem podem deixar de estar ligados uns aos
outros, por serem de natureza interligados. (Cf. Juristische Methodenlehre, cit., pág. 37.)
As delimitações, que Garcia Máynez nos oferece, esbarram com dificuldades, a nosso ver
insuperáveis, mesmo no plano teorético.
Ao determinar, por exemplo, os "supostos do Direito vigente", distribui-os em três classes:
lógicos, axiológicos e sociológicos. Por mais que Garcia Máynez pretenda se manter em um plano
puramente formal, ao caracterizar a vigência do Direito, o exame desta questão envolve
necessariamente elementos heterogêneos, não formais, como, por exemplo, "a referência à vontade
do Estado", ao fato do Poder 39, ou o reconhecimento, como "suposto sociológico'', de que "a
positividade é o normal do Direito". . . 40
39. GARCÍA MÁYNEZ, op. cit., pág. 109.
40. Idem, ibidem, pág. 110: "Quando não se trata de um único preceito, mas de todo um ordenamento jurídico, resulta
impossível aceitar a independência daqueles termos" (positividade e vigência), pois "a positividade normal do mesmo é
condição imprescindível de sua existência". Ora, isto demonstra não lhe assistir razão quando sustenta que entre vigência
e eficácia não há qualquer implicação.
Embora reiterando a afirmação central de seu trabalho de que "as notas de validez intrínseca,
validez formal e positividade não se implicam entre si", assim como também não se excluem, a parte
final do ensaio de Garcia Máynez representa uma original aplicação do objetivismo axiológico de
Max Scheler e Nicolai Hartmann, no terreno jurídico, colimando uma visão unitária do Direito.
Sintetizando ensinamentos desses mestres, lembra ele que os valores, enquanto princípios éticos,
têm de transcender seu ser ideal, para se introduzirem na ordem real da atividade humana, e que esta
atualização só se torna possível graças à consciência estimativa, sendo a finalidade ou, mais
precisamente, o ato teleológico a forma categorial de realização da conduta obrigatória 41.
41. Idem, ibidem, cap. VIII.
Com base nessas concepções, o mestre mexicano procura "ir além do Jusnaturalismo e do
Positivismo", para superar, como já o tentara Legaz y Lacambra, os pontos de vista irredutíveis do
dogmático, do sociólogo e do filósofo do Direito, assim como "a lógica imanente dessas três atitudes
típicas"42.
42. Idem, ibidem, págs. 197 e segs.
Para ele, os três tipos de Direito tornam impossível qualquer conciliação no plano teorético, assim
como uma definição única da "juridicidade", mas não é dito que, na órbita da ação, não possam
aqueles três elementos ser compreendidos unitariamente, desde que se reconheça "a relatividade
essencial dos valores jurídicos, em conexão com as cambiantes circunstâncias de espaço e de tempo",
salvando-se a objetividade dos valores mediante concessões às exigências da História: é o
desenvolvimento dialético da idéia do justo que, nas vicissitudes concretas da experiência (reformas,
revoluções etc.) possibilita a coincidência relativa, em uma única ordem jurídica, dos atributos da
validez intrínseca, da validez formal e da positividade 43.
Daí a consideração final do Direito apenas no terreno prático, segundo a relação dialética entre a
idéia de uma ordem intrinsecamente justa e a de uma organização social dotada da atribuição
exclusiva de formular e aplicar os preceitos do Direito.
Um dualismo entre teoria e prática surge, assim, na concepção que estamos examinando, na qual
dois mundos resultam justapostos, dominados por critérios metódicos diversos, ficando, uma ao lado
da outra, a "abstração" do perspectivismo e a "concreção" de uma dialética válida apenas no plano da
ação.
Uma compreensão integral do Direito, capaz de harmonizar suas exigências teoréticas e práticas,
o ser e o valor, a forma e o conteúdo, só será possível, no nosso entender, se nos movermos do
reconhecimento da implicação e da polaridade existente entre os elementos constitutivos do mundo
do Direito, ao mesmo tempo uno e multíplice.
Essa exigência de unidade, sem perda de vista da tridimensionalidade do Direito, é essencial, e é
sobre esta questão que têm sido elaborados alguns dos trabalhos de Filosofia Jurídica mais
representativos das Américas 44.
43. Op. cit., págs. 203 e segs.
44. Seja-nos lícito transcrever aqui o que escreveu C ARLOS COSSIO, em sua comunicação ao Congresso do Chile, em
1956: "Afirmar hoje que o Direito é cultura, é referir-se a um lugar-comum. Sem embargo, esta verdade ontológica ainda
não penetrou no seio da Ciência normativa do Direito, de forma a transmudar os conceitos dogmáticos fundamentais,
dando lugar a uma nova técnica judicial e forense. Afirmar, em consonância com aquela tese, que o Direito se apresenta
como fato, como valor e como norma, começa a ser também uma afirmação corrente no campo jusfilosófico. Essa é a
palavra de JEROME HALL, na América inglesa; de EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, na América espanhola; de MIGUEL REALE, na
América portuguesa, todos eles verdadeiros príncipes da inteligência em nosso domínio". (La Ley, 12 de junho de 1956,
pág. 4.)
Sobre a repercussão de nossa teoria da tridimensionalidade específica e dinâmica, nos meios filosófico-jurídicos, v. a
resenha de RECASÉNS SICHES a nosso livro Horizontes do Direito e da História, em Dianoia, México, 1957, págs. 404 e
segs.; o que escreve o mesmo Autor em seu Tratado General de Filosofia dei Derecho, cit., e, mais detalhadamente, em
Panorama dei Pensamiento Jurídico en ei Siglo XX, México, 1963, t. I, págs. 553-567.

O Trialismo de Roscoe Pound e Julius Stone


202. As teorias tridimensionais genéricas até agora examinadas, apesar de seus pontos de vista
divergentes, revelam, por assim dizer, um perfil cultural comum, pois todas resultam de prévias
colocações metodológicas, em função de problemas universais, como, por exemplo, o da relação
entre ser e dever ser, entre realidade e valor, o mundo da Natureza e o mundo da História.
Nos países de língua inglesa, ao contrário, o tridimensionalismo tem-se desenvolvido em maior
contato com a experiência sociológica, obedecendo a exigências metódicas postas mais pelas
conjunturas da pesquisa positiva do que à luz de pressupostos filosóficos. Nos Estados Unidos da
América, tais pressupostos ficam, de certa forma, subentendidos ou implícitos no âmbito daquele
amplo "naturalismo", de cunho epistemológico e pragmático, que constitui como que o lugar
geométrico para o qual convergem as mais vivas expressões do pensamento yankee, a. que o
neopositivismo veio dar nova feição, sem desviá-lo, contudo, de suas diretrizes fundamentais.
O certo é que, desde Roscoe Pound, passou-se a perceber a insuficiência das explicações
unilaterais do Direito, orientando-se grande parte da doutrina no sentido de soluções marcadamente
pragmáticas, sem se vislumbrar, entre fato, valor e norma, qualquer possibilidade de conflitos ou de
antinomias: a colocação do assunto no plano prático da ação levou, desde logo, os jusfilósofos do
Common Law a superar antíteses de cunho intelectualístico e abstrato.
O que prevalece, entre os autores anglo-americanos, é antes a preocupação de ordenar em unidade
orgânica, para pleno conhecimento do Direito, as contribuições alcançadas pelo filósofo, pelo
sociólogo e pelo jurista, sem que qualquer deles se desvincule da especificidade da respectiva tarefa.
Chegam, como se vê, embora por outras vias, a uma conclusão paralela à dos mestres da área
romanística, germânicos ou latinos, sob o influxo direto ou indireto de Lask e Radbruch.
Referindo-se à nossa concepção, ao que denomina "fórmula Reale", segundo a qual "o Direito
consiste de normas, cuja compreensão não é possível sem se ter em vista a sua vinculação social e os
valores que nela se realizam", Josef L. Kunz escreve:
"Essa tricotomia é plenamente reconhecida por Roscoe Pound; e sobre ela se erige toda a grande
obra de Stone. Também Cairns julga necessário encarar o Direito sob esses pontos de vista — o
sociológico, o lógico e o filosófico 45. Do mesmo modo, está essa tricotomia como base da obra de
Kelsen, na qual ele delimita a sua Teoria do Direito perante uma Teoria da Justiça e uma Sociologia
Jurídica"46.
45. Cf. as obras de CAIRNS, Law and the Social Sciences, 1935; The Theory of Legal Science, 1941, e Legal
Philosophy from Plato to Hegel, 1949. A obra fundamental de Julius S TONE é The Province and Function of Law, 2ª ed.,
1950, completada por Social Dimensions of Law and Justice, Stanford, 1966.
46. Cf. JOSEF L. KUNZ, Sobre a Problemática da Filosofia do Direito nos Meados do Século XX, cit., págs. 23 e 37.
Acrescenta Kunz que hoje vai se evidenciando, mais e mais, a conclusão de que as três formas de
interpretação são necessárias à completa compreensão do Direito, tal como o declara expressamente
Roscoe Pound 47, de maneira que se impõe a solução destes problemas: qual a relação entre as três, e
qual a que cada uma delas e todas em conjunto mantêm com a Ciência do Direito?48
47. Idem, ibidem, pág. 29. Josef L. KuNZ lembra, a propósito, esta afirmação de V ERDROSS: "A uma integral
contemplação do Direito. . . só se pode chegar através da combinação desses três modos de observação".
48. Idem, ibidem.
Com a sua habitual clareza, Roscoe Pound pondera que as diferentes Escolas de juristas no século
passado não fizeram senão observar elementos distintos do agregado complexo que denominamos
Direito. Os adeptos da corrente analítica cuidaram exclusivamente do corpo dos preceitos
estabelecidos, em virtude dos quais um resultado legal definido é ligado a uma definida situação de
fato. Os juristas de tendência historicista preocuparam-se mais com as idéias e técnicas tradicionais e
os "costumes" condicionadores de decisões conformes às exigências da vida, e, finalmente, o jurista
filósofo foi tentado a ver mais os fins éticos, as exigências ideais do Direito, o que chamou "lei
natural", como padrão de aferição de lei positiva 49.
49. ROSCOE POUND, Law and Morals, cit., págs. 23 e segs.
Após analisar essas três posições, o antigo mestre de Harvard conclui que os três pontos de vista
("law by enactment", "law by convention" e "law by nature") se completam reciprocamente, donde o
artifício das separações radicais 50.
50. Idem, il)idem, págs. 113 e segs.
É ainda no âmbito da que denominamos "tridimensionalidade genérica" que se situam duas
posições aparentemente antagônicas como as de Kelsen e de Stone.
Julius Stone é de opinião que há três ramos na Jurisprudência, que ele denomina respectivamente
de Analytical Jurisprudence, Sociological (or Functional) Jurisprudence e Theories of Justice (or
Criticai or Censorial Ethical Jurisprudence) discordando do ponto de vista de Kelsen quando exclui
da Ciência Jurídica as duas últimas ordens de pesquisa. "Alio intuitu", escreve ele, "a divisão 'Teoria
Pura do Direito', 'Sociologia do Direito' e 'Filosofia da Justiça' já foi claramente estabelecida por
Kelsen. Essa c substancialmente a divisão aqui adotada, se bem que Hans Kelsen a faça visando
excluir as últimas do campo da Jurisprudência. Nosso propósito é, ao contrário, regularizar c
consolidar o lugar de todas as três. O objetivo de Kelsen, ao pôr aquela distinção, tem sido às vezes
desacreditar a Jurisprudência Sociológica ou a Teoria da Justiça como campos apropriados de
indagação de natureza jurídica."51.
Esclarece Stone que a Jurisprudência analítica é mera análise de termos jurídicos e uma pesquisa
sobre as "inter-relações lógicas" de proposições jurídicas, razão pela qual poderia ser vista como uma
Lógica do Direito; a Jurisprudência Sociológica tem por objeto observar e interpretar os efeitos do
Direito sobre o homem e do homem sobre o Direito e, finalmente, a Teoria da Justiça destina-se a
valorar em termos de dever ser os conteúdos, os objetos e os efeitos do Direito.
Como se vê, a posição de Stone ainda não chega ao reconhecimento de que o Direito é sempre
tridimensional em sua estrutura ou consistência, qualquer que seja a ciência que dele cuide,
devendo-se dar um sentido bem mais profundo à observação sutil de Alfred Verdross quando vê o
Direito Positivo preso entre os pólos da Axiologia e da Sociologia: "Sua cabeça eleva-se até o mundo
do valor, do qual só pode derivar sua validez normativa; seus pés estão plantados no firme campo
sociológico da real conduta humana."52
51. Cf. Julius STONE, The Province and Function of Law, cit., pág. 30, n'? 111. Análoga tricotomia encontra-se em W.
FRIEDMANN, Legal Theory, 2.ª ed., Londres, 1949.
52. Apud William EBENSTEIN, La Teoria Pura dei Derecho, cit., pág. 71. EBENSTEIN aproxima com razão o pensamento de
VERDROSS ao de RECASÉNS SICHES, como se pode ver em Los Temas de Ia Filosofia dei Derecho, e especialmente em seu livro Vida
Humana, Sociedad y Derecho, México, 2* ed., 1945. Em seu Tratado General de Filosofia dei Derecho, RECASÉNS já assume, porém,
uma posição de "tridimensionalidade específica". Cf. de V ERDROSS, La Filosofia dei Derecho del Mundo Occidental, trad. de Mario de
Ia Cueva, México, 1962.

Capítulo XXXVI

O Tridimensionalismo Específico e a Unidade da Experiência


Jurídica
A Trilateralidade Estática de Wilhelm Sauer
203. As teorias tridimensionais genéricas se, de um lado, têm o mérito de repudiar as concepções
unilaterais ou reducionistas da experiência jurídica, de outro, não logram preservar a unidade do
Direito, limitando-se, quando muito, a uma combinação extrínseca de perspectivas.
Na realidade, enquanto não se teve clara percepção da essencialidade dos três apontados fatores e
de sua correlação na vida do Direito, não se atingiu o cerne do problema. Poder-se-ia dizer que, a
rigor, a teoria tridimensional só se aperfeiçoa quando se afirma, de maneira precisa, a
interdependência dos elementos que fazem do Direito uma estrutura social necessariamente
axiológico-normativa. Como já dissemos, essa tomada de consciência do problema central verificou-
se, concomitantemente, na obra do jusfilósofo e penalista alemão Wilhelm Sauer e nos nossos
escritos de 1939-1940, sem que um tivesse conhecimento do outro.
São profundas as diferenças entre as nossas concepções, a começar pelo sentido universal ou
cósmico do tridimensionalismo de Sauer, quando, a nosso ver, só se pode falar em
tridimensionalidade com referência ao plano da cultura, pois, os bens que o homem constitui, através
da História, pressupõem sempre uma base fática, um valor determinante da ação, e uma forma ou
norma final, consoante exposto nas páginas deste livro, destinadas à análise fenomenológica da
conduta. Para Sauer, ao contrário, tanto o mundo da natureza como o da cultura são apresentados
com estruturas trivalentes, no âmbito de uma concepção que já foi acertadamente qualificada de
"panteísmo crítico", e cuja singularidade consiste em apresentar a realidade toda como uma
combinação de "mônadas de valor", as quais dariam sentido aos fatos, expressos em esquemas
formais ou normativos.
O tridimensionalismo de Sauer resulta de seu propósito de tomar contato com a vida jurídica,
entendida como realização de valores, parecendo-lhe que a sua compreensão unitária só seria
possível com o superamento do positivismo e do idealismo ¹.
Levado por esse desejo de visão global e complexiva, reclamara, logo de início, a necessidade de
estudar-se o Direito segundo três perspectivas, correspondentes a três ordens de saber: o filosófico, o
sociológico e o jurídico-formal, cada uma delas insuficiente para uma plena captação da juridicidade.
São três ramos do saber, escreve ele, que disputam o conhecimento filosófico do Direito: a Filosofia
do Direito, a Jurisprudência e as Ciências Sociais. Correspondem elas a orientações em parte
intercorrentes, e em parte distintas, em razão da diversidade das perspectivas e do centro de
gravidade de seu processo de trabalho. Se os pontos de vista do jurista e do sociólogo são unilaterais,
como simples prolongamento de suas disciplinas particulares, não pode a Filosofia Jurídica deixar de
revisar as próprias conclusões à luz daqueles ensinamentos ². Como se vê, numa primeira fase o
pensamento de Sauer corresponde ao da Escola de Baden.
1. Cf. WiLHELM SAUER, Grundlagen der Gesellschaft — Eine Rechts-Staats und Sozialphilosophie, 1924, págs. 32
e segs.
2. SAUER, Lehrbuch der Rechts und Sozialphilosophie, Berlim, 1929, págs. 11 e segs.; SAUER, "Der Universale
Gedanke in der Rechtsphilosophie", in Studi Filosofico-Giuridici dedicati a Giorgio Del Vecchio, vol. II, pág. 365;
"Sécurité Juri-dique et Justice", in Introduction à l'Étude du Droit Compare (Recueil d'Êtudes en VHonneur d'Edouard
Lambert), vol. III, pág. 34.
Mais tarde, essa justaposição de perspectivas suscitou-lhe um problema, o de saber se a
tridimensionalidade não corresponde a uma discriminação ôntica, inerente à realidade jurídica
mesma, antes de resultar de mera atitude metódica do sujeito observador. Essa indagação, repetimos,
foi feita por Sauer por volta de 1940³ ou seja, na mesma época em que o problema se configurava,
em termos análogos, ao autor deste Curso"4.
Pode dizer-se que, desde então, o trialismo ou, como ele prefere dizer, a "trilateralidade"
(Dreiseiten) passou a representar, concomitantemente, a ratio essendi e a ratio cognoscendi do
Direito na doutrina de Sauer, que se esmerou em exageros analíticos, procurando determinar
tridimensionalmente uma série de questões jurídicas particulares.
Consoante já lembrado, para esse antigo mestre de Köningsberg, não só o Direito, mas qualquer
objeto do conhecimento apresenta três dimensões, indicadas como sendo Stoff (Materie), Form
(Norm), Regulativ (Idee, Werty)5.
3. Cf. W. SAUER, Juristische Methodenlehre, Stuttgart, 1940, págs. 37 e segs., 214 e segs.
4. Cf. Fundamentos do Direito, 1.ª ed. de 1940, cit., especialmente o capítulo intitulado "Falo, Valor e Norma".
Como resulta das páginas deste Curso, para nós a tridimensionalidade caracteriza apenas o mundo da cultura, enquanto
que para SAUER se estende também ao piano da natureza.
5. System der Rechts und Sozialphilosophie, Basiléia, 2ª ed., pág. 47. Já em 1940, em Juristische Methodenlehre,
SAUER estendera a teoria trilateral (Dreiseitenlehre) a todos os planos do saber (op. cit., págs. 38 usque 42).
Na segunda edição de seu System der Rechts und Sozialphilosophie, de 1949, subordina, mais
rigorosamente, a sua concepção tridimensional do Direito à tridimensionalidade mesma do
pensamento e da pesquisa. No quadro esquemático que nos oferece da "estrutura do conhecimento
teorético", são discriminadas, por exemplo, três dimensões, respectivamente, no plano das categorias
lógicas (matéria ou fato; forma ou estrutura; lei fundamental ou valor); no plano da. pesquisa
filosófica (vida, cultura, eternidade); no domínio científico (Ciências da vida: Psicologia, História e
Sociologia material; Ciências estruturais ou legais: Lógica, Matemática, Ética e Dogmática Jurídica;
e Ciências fundamentais: Filosofia social. Filosofia da cultura, Gnoseologia, Metafísica etc.).
É nesse quadro gnoseológico de uma "cosmovisão tridimensional" que Sauer discrimina as
províncias do conhecimento jurídico, apresentando, verbi gratia, a "ordem jurídica" como dimensão
formal da "ordem vital", cujas dimensões material e valorativa seriam, respectivamente, os Costumes
(Sitte) e a Moral 6.
Nos domínios particulares do Direito, aplica ele os mesmos cânones epistemológicos, perdendo-
se em uma série de distinções que nos parecem artificiais, embora engenhosas, como as feitas ao
relacionar fato, norma e valor, respectivamente, com vida, estrutura e idéia 7, de maneira que a sua
tridimensionalidade se converte em "esquema de interpretação", mantendo-se em um plano estático,
desligado da experiência jurídica como processo histórico. Não nos explica, com efeito, como é que
os três elementos se integram em unidade, nem qual o sentido de sua interdependência no todo. Falta
a seu trialismo, talvez em virtude de uma referibilidade fragmentada ao mundo infinito das "mônadas
de valor", falta-lhe o senso de desenvolvimento integrante que a experiência jurídica reclama 8.
A correlação que Sauer estabelece entre os elementos fático e normativo graças às "mônadas de
valor" — cujo conceito não chega, aliás, a determinar com a devida clareza — não vai além de uma
justaposição de esferas autônomas, no fundo incomunicáveis, como bem observa Renato Cirell
Czerna, redundando numa tridimensionalidade estática e, como tal, incapaz de dar-nos a unidade do
Direito, reclamada pela teoria tridimensional como sua "ratio essendi".
6. System, cit., pág. 49.
7. Cf. nesse sentido, W. SAUER, Juristische Elementarlehre, Basiléia, 1944, pág. 53.
8. Cf. RENATO CIRELL CZERNA, "A Justiça como História", in Estudos de Filosofia do Direito, 1952, págs. 119 e segs.
e Ensaio de Filosofia Jurídica e Social (Direito e Comunidade), São Paulo, 1965, págs. 181 e segs.
Pressupostos do Tridimensionalismo Dinâmico
204. A nosso ver, duas são as condições primordiais para que a correlação entre fato, valor e
norma se opere de maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se
que ele desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico da
experiência ética; a outra è relativa à implicação que existe entre o valor e a história, isto é, entre as
exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade histórico-social como valor, dever ser t fim.
Do exame dessas duas condições é que resulta a natureza dialética da unidade do Direito, como
passamos a expor.
Dizemos que o valor constitui a experiência jurídica porque os bens materiais ou espirituais,
construídos pelo homem através da História, são, por assim dizer, "cristalizações de valor", ou
"consubstanciações de interesses". Na parte propedêutica deste Curso e, a seguir, nos capítulos
destinados à fenomenologia da ação e da conduta, já vimos como toda atividade humana se destina a
satisfazer um valor ou a impedir que um desvalor sobrevenha. As valorações são, pois, um dos
ingredientes ônticos do processo cultural, inseparável da "vida quotidiana" (Lebenswelt).
Além disso, todo valor implica uma tomada de posição do espírito, isto é, uma nossa atitude
positiva ou negativa, da qual resulta, concomitantemente, a noção de dever (se algo vale, deve ser; se
algo não vale, não deve ser) e a razão legitimadora do ato, por estar "a serviço de um valor". Daí
termos afirmado que o valor, sobre ser o elemento constitutivo da experiência ética, é a razão
deontológica da ação, fornecendo critério aferidor de sua legitimidade. O valor realiza-se, desse
modo, como uma sucessão de elementos normativos, cada um dos quais traduz as valorações
humanas concretizadas através do tempo, sem que nem mesmo a totalidade de tais momentos
normativos logre exaurir a potencialidade inerente ao mundo dos valores. Esse o motivo da essencial
historicidade do Direito, como experiência sempre renovada de valores, cuja unidade só pode ser de
processus.
Por outro lado, como será possível conhecer uma experiência ôntica e deontologicamente
axiológica, senão através de juízos de valor, como são os próprios do intelecto enquanto procura "as
conexões de sentido" das realidades humanas? O mundo da cultura, (e nele o mundo do Direito) só
pode ser objeto de "compreensão": a via de acesso às realidades valiosas, aos bens de cultura como
"intencionalidades objetivadas", é-nos dada pelos juízos de valor. O espírito humano, em suma, para
realizar-se como valor originário (o valor-fonte, tantas vezes por nós lembrado) dá vida a realidades
valiosas; põe e legitima o dever de realizá-las, no conjunto e seqüência do processo histórico; assim
como fornece os meios adequados à sua compreensão". Isto posto, analisemos o que se passa na
experiência do Direito.
204-A. VALOR, DEVER SER E FIM — O fenômeno jurídico manifesta-se ou existe porque o
homem se propõe fins. Não é possível que se realize, por exemplo, um contrato, sem que algo mova
os homens à ação. Quem contrata é impelido pela satisfação de um valor ou de um interesse, por um
objetivo a atingir, por um fim qualquer que constitui o ato, dando-lhe vida e significado como razão
de seu dever ser.
Um fim outra coisa não é senão um valor posto e reconhecido como motivo de conduta. Quando
reputamos algo valioso e nos orientamos em seu sentido, o valioso apresenta-se como fim que
determina como deve ser o nosso comportamento. Não existe possibilidade de qualquer fenômeno
jurídico sem que se manifeste este elemento de natureza axiológica, conversível em elemento
teleológico. Quem primeiro viu, no século passado, a importância fundamental da idéia de fim no
mundo jurídico foi Jhering, legando-nos seu admirável O Fim no Direito, onde nos lembra que sem a
idéia de fim não pode haver compreensão do fenômeno jurídico.
9. Sobre o papel, ao mesmo tempo, ôntico, gnoseológico e deontológico do valor, como expressão da "consciência
intencional", v. MIGUEL REALE, O Direito como Experiência, Ensaios I e VIII e Experiência e Cultura, cit., capítulo VII,
"Valor e Experiência", págs. 171-206.
Não é por outra razão que suas concepções filosófico-jurídicas podem ser apontadas como
precursoras do culturalismo contemporâneo, não obstante seu empirismo fundamental 10.
Os valores, que nos movem à ação, são por nós percebidos graças a um processo inicialmente
emocional, não redutível desde logo a fórmulas ou a categorias racionais. Nem tudo no valor é
suscetível de ser explicado racionalmente. As vias de acesso até o mundo das estimativas jurídicas
são muito complexas, e já vimos que Max Scheler nos fala de "um conhecimento estimativo, ou
intuição do valioso, fundados no sentimento e na preferência e, em última palavra, no amor e no
ódio"¹¹. Por outro lado são, muitas vezes, impulsos emotivos, inesperadas inclinações simpatéticas
que determinam nossa conduta c orientam ou contrastam nossas deliberações. Mas, para que se possa
falar em dever, é mister que se converta em fim, isto é, em algo situado e representado racionalmente
como valioso.
10. o antecedente de J HERING pode e tem sido invocado por juristas-sociólogos, por culturalistas e, em geral, por todos aqueles que
propugnam a volta da Jurisprudência à realidade social, sem perda de seu signo distintivo, que é a normatividade.
11. SCHELER, Ética, cit., vol. I, pág. 101.
Este ponto parece-nos digno de apreciação mais demorada. O jurista não pode se contentar com
uma vaga e intuitiva referência a valores, porquanto deve necessariamente elevar-se ao plano de sua
compreensão racional. É próprio do jurista pensar em termos de segurança e de certeza, com aquilo
que se costuma chamar forma. O Direito exige "estrutura formal", racionalidade, distinção e clareza,
sem o que seria absurdo declarar-se obrigatório este ou aquele outro comportamento. A conversão do
elemento axiológico, em fim é um trabalho de ordem racional. Quando, com efeito, consideramos
algo como sendo um fim, com esta palavra estamos indicando e precisando algo de valioso a ser
atingido, e cuidamos de proporcionar meios idôneos à consecução do resultado posto racionalmente
como objetivo da ação.
É aqui que se põe um problema crucial, qual seja o da relação entre valor e fim. Há muito tempo
— e nossa monografia sobre os Fundamentos do Direito, cuja 1.ª edição é de 1940, bem o revela —,
essa questão se coloca em plano relevante, convencido como estamos da necessidade de situar
nitidamente os campos da Axiologia e da Teleologia à luz das indagações fundamentais da Ética, tais
como as de Max Scheler e de Nicolai Hartmann, muito embora discordemos de sua objetivação
ontológica dos valores.
No capítulo de sua Ética dedicado exatamente ao estudo das relações entre os fins e os valores,
afirma Max Scheler que todo intento de uma Ética material resultaria comprometido "se algo só fosse
valioso enquanto pudesse ser compreendido como meio para um fim qualquer". O grande crítico do
formalismo kantiano, após reconhecer que um dos méritos irrecusáveis da Ética de Kant reside na
condenação de qualquer forma de Ética que repute bons ou maus os valores na medida de certos fins,
acrescenta que, se um valor resultasse de determinado fim (por exemplo: — do bem--estar da
comunidade), já não poderia ser reconhecido como um valor moral em si, autônomo, porquanto teria
de fundamentar o seu sentido exclusivamente no fato de ligar-se a um meio capaz de servir ao fim
visado ¹². Isto posto, como explicar a ligação entre valor e fim?
Ao analisar a relação existente entre o dever ser ideal e os valores, Max Scheler afirma que ela
"se rege fundamentalmente por dois axiomas: primeiro, tudo o que é positivamente valioso deve
existir; segundo, tudo o que é negativamente valioso não deve existir. A conexão aqui estabelecida
não é recíproca, mas sim unilateral. Todo dever ser está fundado sobre os valores; os valores,
todavia, não estão de maneira alguma fundados sobre o dever ser"¹³. Acrescenta Scheler que os
valores não se referem ao plano da existência humana, que só se liga ao dever ser.
12. MAX SCHELER, Êlica, cit., vol. I, pág. 61.
13. /dem, ibidem, págs. 266 e segs.
Reportando-nos ao exposto na Propedêutica relativamente à Axiologia — onde pensamos ter
mostrado a impossibilidade de uma separação entre o mundo dos valores e a História, discordando,
nesse ponto, do ontologismo estimativo de Scheler e Hartmann 14—, não compreendemos como os
valores possam ser "dados de um modo indiferente com relação à existência ou à não-existência,
enquanto que todo dever ser está referido necessariamente à esfera da existência".
14. Cf. Parte I, págs. 200 e segs. deste Curso.
Ora, se "todo dever ser é forçosamente um dever ser de algo", como lapidarmente nos lembra
Max Scheler, e se todo dever ser se funda em valores, é sinal que estes também se referem à
existência humana, na sua temporalidade total, ou seja, ao passado, ao presente e ao futuro de nosso
existir. No fundo, o dever ser é o valor mesmo em sua projeção temporal, no sentido histórico de seu
desenvolvimento total, não ficando circunscrito apenas à perspectiva do futuro 15.
Concebendo os valores como existentes em si e por si, esbarra a Axiologia scheleriana ou
hartmanniana em uma dificuldade, ao afrontar o problema da atualização ou realização dos valores,
os quais, se fossem concebidos como simples princípios teoréticos da esfera ética ideal, não poderiam
ser considerados "princípios éticos" no rigor desta expressão.
Como os valores não podem se evaporar na "essencialidade", observa Hartmann, e o ethos do
homem tem um caráter "atual", têm eles que transcender a esfera das "essencialidades" e dos objetos
ideais e inserir-se no mundo flutuante dos atos morais. Como essa transcendência se opera é uma
questão metafísica que a Ética pode ignorar, bastando-lhe o fato irrecusável de que os valores atuam,
como é atestado pela consciência 16.
15. Quanto às passagens de SCHELER citadas no período supra, v. op. cit., pág. 267. Como se vê, reiteramos, no texto,
nossa opinião de que a objetividade dos valores não exclui, absolutamente, sua referibilidade ao plano da consciência.
Neste sentido, cf. W. MARSHALL URBAN, The Intelligible World, Metaphysics and Value, Londres, Nova Iorque, 1929,
pág. 151, para quem os valores "existem" (tomado este termo em sua acepção ampla) "só para pessoas ou para vontades",
com uma "existência imperativa".
16. Cf. Nicolai HARTMANN, Ethics, cit., vol. I, cap. XVII, págs. 236 e segs.
Daí a distinção que Hartmann amplamente desenvolve entre dever ser ideal e dever ser atual ou
positivo, representando o primeiro a simples afirmação de que o valioso deve ser, sem expressar, com
isto, uma obrigação; enquanto que o segundo, referindo-se à ordem da realidade, insere-se no plano
da existência, convertendo-se em conduta valiosa c imperativa graças ao homem, à sua "consciência
estimativa". Ao comparar as conexões entre os seres ideais e a realidade, graças à adequação dos
homens àqueles arquétipos ideais, o mestre germânico aponta as diferenças que passam entre as
"estruturas lógicas ideais" e os "valores". Se as primeiras apenas se ajustam ou não aos fatos sem
influir sobre eles, permanecendo indiferentes ou inertes, já os segundos não ficam indiferentes aos
fatos que se lhes contrapõem: a consciência moral sente aquela oposição, nega o que a contradiz,
contrapõe ao "real" a sua própria estrutura, na forma de um dever ser 17.
17. Ibidem, págs. 232 e segs.; cap. XVIII, págs. 247 e segs.
Consoante nosso entender, nada há que objetar a essa caracterização atuante e positiva do valor
perante o real, mas ela só nos parece possível desde que se admitam dois outros princípios: que os
valores não são simples objetos ideais; que não há valor ou dever ser indiferentes ao plano da
existência, visto como todo valor em si é condicionante da experiência histórica e na História se
revela, sem que esta esgote suas virtualidades estimativas.
O homem não é apenas o mediador entre a esfera ideal do valioso e a realidade, porque os valores
se manifestam no ente Homem, único ente em que a Ontologia e a Axiologia confluem, visto como
só ele é enquanto deve ser, e deve ser por ser o que é. Como é na História que se realizam os valores,
podemos concluir que todo fim constitui a determinação do dever ser de um valor no plano da
praxis.
O problema da anterioridade lógica dos valores é também o problema de sua objetividade, pois
são os fins que, como expressão do dever ser, devem pressupor os valores: se assim não fosse, todos
os fins acabariam por ficar à mercê das múltiplas inclinações subjetivas em conflito.
Não cabe aqui por certo discutir se a objetividade pressupõe necessariamente uma esfera
ontológica autônoma de valores, ou se ela se compreende, como nos parece mais aceitável, nos
quadros de uma doutrina que supere as posições, tanto do subjetivismo como do ontologismo
axiológicos, sendo os valores concebidos como algo de inseparável dos seres a que dão sentido e
significado, assim como do processo espiritual em que a significação mesma se constitui. É esse
processo espiritual que, em sua universalidade, condiciona as relações e as estruturas culturais,
tornando-as, assim, irredutíveis a qualquer processo de ordem puramente psicológica, emocional ou
não. Por serem momentos ou dimensões do espírito o qual outorga sentido aos entes, é que os valores
não se resolvem, nem se esgotam na experiência de um sujeito empírico, embora não possam
prescindir da experiência subjetiva. Daí a insuficiência do psicologismo estimativo, máxime quando
praticamente subordina a idéia de valor à idéia de fim suscetível de realização em função de meios
idôneos. É por serem dimensão essencial do espírito em sua universalidade, que os valores obrigam,
obedecendo o homem, no fundo, a si mesmo, à Humanitas revelada no fluir da experiência histórica.
Talvez não esteja distante deste pensar a tese hartmanniana sobre o homem "mediador entre o
valor e a realidade", porquanto nos mostra que o homem não se limita a discernir ou sentir o vahoso,
mas tem o poder de decidir, de "tomar uma atitude com referência ao que compreende", por ser a
liberdade fulcro do mundo das estimativas. É esse poder de transformar as exigências do ideal em
forças modeladoras do existente que a seu ver assinala a grandeza de nossa espécie 18.
18. Cf. Ethics, cit., vol. III, cap. I, págs. 19 e segs.
Abstração feita, todavia, dessa diferença na maneira de situar os valores, não resta dúvida que há
um manancial precioso de ensinamentos na obra de Max Scheler e de Nicolai Hartmann para quem
pretenda compreender a experiência jurídica nos seus enlaces de valor, dever ser e fins, sem os quais
a tensão entre fatos e valores não atinge o momento da normatividade jurídica.
De grande alcance se nos apresentam, assim, as observações de ambos para a compreensão da
integração normativa que será examinada no capítulo seguinte, tomadas, porém, as suas teorias como
ponto de partida para uma compreensão ao mesmo tempo histórica e axiológica.
Nomogênese Jurídica
205. Não resta dúvida que seria errônea qualquer redução do dever ser ao rumo de um processo
causai de valorações, como se, dado um valor, deste só pudesse resultar um único "dever ser". Se a
experiência axiológica obedecesse às linhas de um determinismo de valorações, a História do
homem, e a História do Direito, em particular, não apresentariam tantos contrastes e contradições. Se
todo valor implicasse uma só e única forma de dever ser, dando sentido à experiência humana e nela
e por ela se realizando, deveríamos chegar à conclusão de que o dever ser da existência obedeceria,
em última análise, mais a tendências e inclinações empíricas e contingentes do que à vis attractiva
dos valores concebidos como "fontes de ação".
Eis por que, a nosso ver, valor, dever ser e fim são momentos que se desenrolam na unidade de
um processo, que é a experiência total do homem, processo este que não é unilinear e simétrico, mas
antes denso de coerências e contradições, de avanços e recuos, de pausas e de acelerações de ritmo,
de serenidades e de crises, obedecendo sempre a um ideal de adequação entre realidade e valor, ideal
perene, porque conatural e próprio do homem, o único ente que, originariamente, é enquanto deve
ser, com poder de transfundir essa qualidade aos "bens culturais" que instaura.
Pois bem, o Direito insere-se nesse processo de integração do ser do homem no seu dever ser,
representando um de seus fatores primordiais, sendo, como é, uma das mais poderosas tomadas de
contato do homem com o dever ser de sua existência individual e social, em uma clara postulação de
fins.
Necessário é, pois, ponderar que o momento normativo da conduta como "conduta jurídica"
corresponde à formulação racional de uma preferência, a uma "medida de agir" em função de valores
a realizar ou a preservar, de modo que a normatividade implica uma tomada de posição, uma
voluntas que põe, concomitantemente, a exigência de meios adequados.
O fim não pode ser concebido sem o valor, mas é também certo que a idéia de fim é sempre o
termo de um processo de compreensão racional, porque quem diz fim, diz também mediação, ou seja,
diz também meio. Quando nos propomos algo como fim, estamos reconhecendo a possibilidade de
existirem meios para atingirmos um resultado: — o nexo ou relação de meio a fim é sempre nexo
racional, pois implica a verificação de que certo fato funcionará como "condição" ou "causa" de uma
conseqüência previsível.
Ninguém melhor do que Hartmann cuidou dos problemas postos pelo "nexo teleológico", ao
mostrar-nos que, na atualização dos fins, os meios funcionam como causas e os fins correspondem
aos efeitos. O processo finalístico é dependente do causai, não podendo existir ação, cuja estrutura é
sempre teleológica, a não ser em um mundo causalmente determinado.
Desde Kant se sabe que é possível a coexistência de determinismo e liberdade, mas é preciso
acentuar, mais e mais, que "uma vontade livre com o seu modo finalístico de eficácia é somente
possível em um mundo determinado causalmente. Semelhante mundo — ontologicamente
considerado — não se situa em relação antitética para com a liberdade da vontade"19.
19. HARTMANN, Ethics, cit., vol. III, págs. 77 e segs. Cf. nossas observações sobre esta matéria em O Estado
Moderno, São Paulo, 3ª ed., 1935, págs. 41 e segs.
Desse modo. dá-se a interferência da vontade na ordenação dos fins e na ordenação dos meios,
donde a necessária inserção do Poder no processo mesmo da normatividade jurídica. É, com efeito,
através de um processo ao mesmo tempo axiológico e teleológico. que surge a norma de Direito, a
qual se apresenta, formalmente, como esquema geral de opção pela conduta reconhecida de valor
positivo e. como tal, preservada; ou então de valor negativo e, como tal, vedada 20.
20. O ato de reconhecimento é por nós apreciado aqui apenas quanto à correlação valor-fim, que assinala um
momento culminante da experiência axiológica.
Poder-se-ia, no entanto, observar, com WILBUR MARSHALL URBAN, que o reconhecimento (acknowledgement,
anerkennen), ou melhor, o "mútuo reconhecimento" é um dos aspectos essenciais do valor, condição de sua comunicarão
inteligível. (The Intelligible World, cit., pág. 144.)
Sobre a inserção do Poder no processo nomogenético, v. os complementos do parágrafo seguinte, no qual se
esclarece em que acepção especial se emprega, aqui, a palavra Poder, como "ato decisório munido de garantia
específica."
Imagine-se um legislador diante de uma situação de fato a que deva atender com providências
normativas: — o ato de legislar implica consciência especial dos problemas, uma característica
"atitude de dever ser", isto é, a certeza de que lhe cabe "optar", eleger uma via, da qual resultará a
tutela de um campo de interesses reputados legítimos. Não se trata de um sociólogo dedicado a
descobrir conexões entre os fatos, nem de um psicólogo empenhado em seguir os reflexos de um ato
ou de uma deliberação do plano da vida interior: — o momento de legislar tem significado próprio
enquanto alberga sempre um sentido de "dever ser" ao qual é inerente uma opção entre diversas vias
possíveis.
O estudo do fato raramente é simples, oferecendo, ao contrário, múltiplos graus de complexidade,
o que reveste a obra legislativa de crescente caráter técnico. Pense-se, por exemplo, no fenômeno
universal da crise edilícia, na carência de prédios para comércio e residência, reclamando o Estado
leis excepcionais de amparo aos inquilinos sem ofensa ao direito de propriedade. Eis um fato que se
oferece à cogitação e à estimativa do legislador, exigindo dele grave opção, um conjunto de medidas
que envolvem pressupostos de ordem teorética e um atento exame de todos os elementos e
circunstâncias, desde os fatores de natureza social, aos de caráter econômico e financeiro, como os
decorrentes do êxodo rural e do crescimento vertiginoso e desproporcionado dos centros urbanos. A
tais fatores acrescente-se também o próprio Direito já existente, garantidor de interesses e pretensões
individuais, e temos toda a complexidade do quadro dentro do qual se processa a obra legislativa.
O fato, Dor conseguinte, que condiciona o aparecimento de uma norma jurídica particular nunca é
acontecimento isolado, mas um conjunto de circunstâncias, estando o homem rodeado por uma série
de fatores que solicitam sua atenção, provocam sua análise e despertam atitudes de reação ou de
aplauso, de simpatia ou de repulsa. É por isso que, na 4ª edição de meu livro Teoria Tridimensional
do Direito, acrescento um capítulo final dando realce ao conceito husserliano de "vida quotidiana"
(Lebenswelt), no qual estamos todos imersos, os legisladores, os juizes e os juristas enquanto homens
comuns.
Por outro lado, verifica-se a mesma complexidade quando se examinam os múltiplos valores que
condicionam o ato de escolha de determinado grupo de regras jurídicas, ou até mesmo de uma única
norma de direito, ficando prejudicadas as demais vias possíveis. Há, pois, um complexo de fins e
valorações, uma série de motivos ideológicos (diversidade de pontos de vista programáticos ou
doutrinários, assim como divergência ou conflito de interesses de indivíduos, grupos e classes
sociais) condicionando a decisão do legislador, cuja opção final assinala o momento em que uma das
possíveis proposições normativas se converte em norma Jurídica.
Podemos comparar, para facilidade de compreensão, o "campus" nomogenético à imagem (fig.
infra) de um raio luminoso
Complexo fático
(impulsos e exigências axiológicas) que, incidindo sobre um prisma (o multifacetado domínio dos
fatos sociais, econômicos, técnicos etc.), se refrata em um leque de "normas possíveis", uma das
quais apenas se converterá em "norma jurídica", dada a interferência do Poder.
É, repito, a co-participação opcional da autoridade (seja ela a de um órgão legislativo ou
judicante, ou ainda o poder difuso no corpo social) que converte em norma, armando-a de sanção,
uma dentre as muitas vias normativas possíveis, dando, assim, origem a um modelo jurídico, que é
uma estrutura normativa da experiência destinada a disciplinar uma classe de ações, de forma
bilateral atributiva. O modelo jurídico assim positivado é momento de um processo, podendo sofrer
alterações semânticas através do tempo. Tais mudanças de sentido, ligadas ao caráter criador do ato
interpretativo, eqüivalem a verdadeiras criações normativas, independente da providência, às vezes
tardia ou desnecessária, da revogação parcial ou total da norma originariamente formulada.
Cada modelo jurídico, em suma, considerado de per si, corresponde a um momento de integração
de certos fatos segundo valores determinados, representando uma solução temporária (momentânea
ou duradoura) de uma tensão dialética entre fatos e valores, solução essa estatuída e objetivada pela
interferência decisória do Poder em dado momento da experiência social.
No exemplo que demos, a decisão é do poder estatal expresso através de órgãos determinados
(Congresso e Presidente da República) , mas o ato culminante de decidir, sem o qual não se instaura
direito novo nem se altera substancialmente direito antigo, pode ser também o resultado do poder
social difuso em uma comunidade, visto como o chamado direito costumeiro não é senão a
consagração de reiterados atos anônimos de decidir. Pode ainda um modelo jurídico resultar no plano
privado, em virtude de atos fundados na autonomia da vontade: temos, então, os modelos negociais,
ao lado dos legais, consuetudinários e jurisdicionais.
Ora, é esse caráter concreto da norma jurídica, em razão de seus enlaces fáticos e axiológicos, que
corresponde ao "ser de situação" que é o ser humano.
O homem não pode ser concebido como um ente solto, ou isolado, no espaço ou no tempo.
Vivemos, em maior ou menor medida, em função do já dado, sendo as inovações, por mais radicais
que nos pareçam, sempre dependentes de condições e eventos que se situam atrás de nós no tempo e
estão presentes na particularidade do mundo que ora nos circunda. Daí dever dizer-se que o homem
que interessa ao Direito não é um abstrato homo juridicus, mas um ser concreto, que carrega consigo
todas as suas circunstâncias. Não podemos erradicar o homem do meio social, do condicionamento
histórico em que existe e tenta realizar-se. Sem atendermos à condicionalidade histórico-social do
homem como personagem do Direito, arriscamo-nos a mutilar a experiência jurídica, privando-a de
uma de suas características fundamentais.
Quando dizemos, pois, que no Direito existe um elemento de fato, não nos referimos a
determinado fato empírico, mas ao complexo de todas as circunstâncias já positivadas na experiência
jurídica, como um sistema vigente de forças, de natureza psicológica, histórica, econômica,
geográfica etc.
É, por conseguinte, num condicionamento fático e axiológico que se processa a gênese da norma
de Direito: — a regra jurídica, em verdade, representa o momento conclusivo de um processo
espiritual de natureza dialética, no qual o fato passa pelo crivo ou pelo critério das estimativas do
Poder e se consubstancia nos esquemas de fins que devem ser atingidos.
Processo Normativo e Poder
206. Se, na experiência jurídica, o fato e o valor não se compõem sem a interferência do Poder, é
mister determinar melhor o papel deste no processo nomogenético.
O aparecimento de cada regra jurídica marca o momento culminante de uma experiência jurídica
particular, a qual é solidária das demais através de conexões múltiplas, umas aparentes e facilmente
identificáveis, outras subentendidas ou ocultas nas tramas das relações sociais. Daí poder-se dizer que
os valores são como que fachos luminosos que, penetrando na realidade social, se refrangem em um
sistema dinâmico de normas, cada uma delas correspondente a uma decisão.
O fenômeno cultural, já o dissemos várias vezes, implica sempre uma nossa atitude positiva ou
negativa em face dos "dados da natureza", assim como uma reelaboração ou reafirmação de atitudes
passadas, ante o que se poderia, cum grano salis, denominar os "dados na História". Cultura, no
fundo, não é outra coisa senão o conjunto das posições do espírito, e de suas projeções, em face da
natureza e da vida. Homem culto é aquele que tem o seu espírito aberto às vibrações múltiplas dos
valores, sendo tanto mais culto quanto maior sua capacidade de tomar posição perante as estimativas
humanas; o homem pronto a entusiasmar-se diante de um quadro de Rembrandt ou ao ouvir um
concerto de Bach; que sabe examinar com interesse a expressão gráfica de um problema econômico
ou as conquistas da Ciência e da Técnica, é um homem culto. É tanto mais culto quanto mais rica sua
compreensão de valores, o que não quer dizer que cada homem não possa ou não deva desenvolver
sua vocação específica, concentrando em um setor da experiência as energias de seu espírito. O
verdadeiro especialista, no entanto, não se estiola em uma visão parcial da vida, mas enriquece o seu
mundo com as perspectivas de outras imantações axiológicas.
Muitos julgam que o homem livre é o trancado em si mesmo, ligado apenas pelo círculo de seus
interesses, quando, na realidade o homem é tanto mais livre quanto mais multiplica os seus pontos de
contato ou de interferência com outros grupos. George Simmel, desenvolvendo estudos a respeito da
matéria, diz que a personalidade se multiplica em função do número de círculos sociais de que o
indivíduo é partícipe, o que deve ser entendido no sentido de "participação" efetiva e autêntica, nada
tendo que ver com o borboletear inconstante que assinala os seres superficiais e medíocres.
Todos, em geral, temos um centro axiológico de gravidade, que garante o equilíbrio de nosso ser
pessoal. É uma garantia de especificação, assim como de co-participação criadora, de comunhão com
os demais seres e seus problemas. Tomar posição é encontrar-se, e esse encontro envolve sempre
uma referência a algo que se põe como válido em relação a nós mesmos.
Esta aparente digressão tem por fim demonstrar que uma tomada de posição é inseparável de toda
experiência axiológica, manifestando-se, tanto no plano individual como no coletivo, como um ato
decisório, resultante de um ato de preferência entre valores.
Por aí se vê que o problema do Poder não deve ser concebido sem conexão com a experiência
axiológica, como se fosse uma força material geradora das regras de direito: — a exigência
axiológica, que determina pautas de agir, põe, concomitante Q paralelamente, o problema de sua
garantia, como se esclarecerá logo mais, envolvendo e delimitando o Poder que participa do processo
normativo.
Toda regra jurídica é resultante de uma escolha, às vezes identificável no espaço e no tempo,
muitas vezes oculta nas dobras dos usos e costumes. O físico, quando examina fatos, não escolhe
nem põe uma lei que inove em relação aos fatos mesmos, mas procura explicá-los com rigor, graças
ao seu poder de integrar em sínteses ordenatórias os elementos dispersos e fragmentários do real. O
físico só cria na medida em que apreende, explica e sintetiza os fatos; mas o legislador cria na medida
em que escolhe e decide, armando de força a escolha feita, a qual pode ter por fim contrapor-se a um
fato, como o da criminalidade. Toda norma legal é uma opção entre vários caminhos, pois não é dito
que só haja uma via legitima perante uma mesma exigência axiológica, numa dada situação de fato.
A correlação essencial entre nexo normativo e Poder é de suma importância para uma
compreensão realista do Direito, devendo notar-se que a decisão, que é a alma do Poder, não se
verifica fora do processo normativo, mas inserindo-se nele, para dar-lhe atualidade ou concreção: o
Poder, no fundo, é um ato decisório munido de garantia especifica.
Seria errôneo, no entanto, asseverar que o Direito seja fruto de mera decisão. O decisionismo, que
tende a exagerar o fator volitivo ou de opção na gênese do fenômeno jurídico, incide no engano de
conceber a decisão como um ato isolado, destacado do conjunto das circunstâncias sociais e dos
motivos axiológicos que cercam quem deve decidir, olvidando que quem decide, por mais força que
detenha, è também condicionado pelo "mundo da vida quotidiana" (Lebenswelt) em que se acha
situado.
A liberdade implica, sempre, limites, e toda decisão constitui momento vertical em um processo
de estimativas, que se converte em processo normativo.
A norma de direito envolve, na realidade, um fato que, iluminado por valores, dá lugar a uma
atitude humana e a uma decisão. Daí, repetimos, a importância do problema do Poder no processo de
formação de cada complexo de relações jurídicas, visto como existe sempre um ato de decisão, de
opção e de ação conseqüente, marcando o surgimento da norma, no quadro das múltiplas vias de
possível e legítimo acesso ao mundo dos valores.
Não assiste razão a Radbruch quando diz que é a impossibilidade de determinação do justo, ou,
por outras palavras, a "incognoscibilidade do Direito justo" que funda e legitima a validade do
Direito Positivo: — "Se não é possível fixar e estabelecer aquilo que é justo, deve ao menos ser
possível estabelecer aquilo que ficará sendo o Direito, e isso deve estabelecê-lo uma autoridade que
se ache em condições de poder impor a observância daquilo que precisamente foi estabelecido"²¹.
É certo que o Poder consagra a norma e a torna efetivamente obrigatória, mas a obrigatoriedade
do Direito Positivo não resulta, a nosso ver, da incognoscibilidade dos valores do justo, e sim da
relatividade de suas possíveis projeções concretas.
Consoante observa Max Scheler, a relação entre os valores e as normas tem como conseqüência
um fato básico para a Ética em geral, bem como para a história das idéias morais: — "Todos os
imperativos e normas podem variar, embora se reconheçam os mesmos valores, não só ao longo da
História, como nas diversas comunidades; podem inclusive ser variáveis, contendo os mesmos
princípios ideais de dever ser. (...) Essa possibilidade de variação dos imperativos, que contém os
mesmos valores (inclusive quando se expressam em iguais princípios de dever ser ideal), acentua-se
em certas circunstâncias, a tal ponto que podem se basear em valores iguais imperativos que
expressam coisas opostas"22.
21. RADBRUCH, Filosofia do Direito, cit., págs. 27, 103 e 118. No fundo, é o pensamento de relativistas como J ELLINEK, MAX WEBER OU KELSEN. Cf.
WILLIAM EBENSTeiN, La Teoria Pura dei Derecho, cit., pág. 133.
22. MAX SCHELER, Ética, cit., vol. 1, pág. 276.

Compreende-se, desse modo, que a variação dos valores in concreto não compromete sua
objetividade. A atualização dos valores depende sempre do exame das circunstâncias e de critérios
contingentes de conveniência e oportunidade, dos quais decorre a preferência por esta ou aquela
dentre as múltiplas vias compatíveis com as mesmas exigências axiológicas.
Feita essa ressalva, que se nos afigura essencial, não se pode recusar à doutrina de Radbruch o
mérito de ter reconhecido a conexão inevitável entre a positividade do Direito e o fenômeno da
organização do Poder.
Tem-se generalizado ultimamente uma tendência abstratista visando a um "reino ideal do
Direito", sem os perigos e os riscos que seriam representados pelo Poder, confundido facilmente com
a força e o arbítrio. Mais do que ninguém, Hans Kelsen contribuiu para essa ilusória concepção da
juridicidade, sendo dele a afirmação suspicaz de que quem levanta o véu que encobre o Direito e abre
bem os olhos, descobre a cabeça de Górgona do Poder ²³.
Deste assunto já cuidamos em outras obras, notadamente em Teoria do Direito e do Estado 24
mas não é demais salientar que, como diz Hauriou, a exigência ideal que põe a regra de Direito põe
também o Poder. O mestre francês, pertencente àquela família de juristas que sabe ser o pior inimigo
do Direito aquele que fecha os olhos para o problema do Poder, esclarece-nos que a norma jurídica
não emana dos fatos, à guisa de leis físicas, porque seu surgimento implica a consideração do Poder,
que não é aceito em si mesmo, mas em nome e em razão da "instituição" a que se destina.
23. Cf. William Ebenstein, La Teoria Pura dei Derecho, cit., pág. 131. Sobre esta matéria, v. o capítulo que
dedicamos às "Pretensões do objetivismo jurídico contra o Poder", in Teoria do Direito e do Estado, 4ª ed., cit., págs. 66
e segs., e o ensaio "O Poder na Democracia", inserto em Pluralismo e Liberdade, cit.
24. Cf. nossa Teoria do Direito e do Estado, cit., notadamente os caps. IV: — "Ordem Jurídica e Poder" e X: —
"Análise do Poder de Império".
Alargando essa concepção institucional diríamos que, considerada a totalidade do processo
histórico do Direito de uma comunidade e não cada uma de suas expressões, não raro conflitantes, o
processo geral de atualização do Direito segue pari passu o do Poder, o qual faz-se cada vez mais
Direito, integrando-se nas normas que positiva: — a convergência do Direito e do Poder é o infinito
de uma lei social.
O fato do Poder não interessa, em suma, ao mundo jurídico senão e enquanto se ordena
normativamente, inserindo-se, sob certo aspecto, no processo de integração normativa, pois, como
dissemos à guisa de conclusão de Teoria do Direito e do Estado, "o Poder tem isto de característico
que, quanto mais ele concorre à positivação do Direito, mais se prende ao Direito declarado e mais
por este é circunscrito"25.
25. Op. cit., pág. 78, onde desenvolvo a tese da Jurisfação do Poder.
Direito e Poder são termos inseparáveis, mas será vão querer reduzir o primeiro ao segundo,
pretendendo transformá-lo em simples qualidade ou energia da norma de direito, da própria regra em
seu momento de eficácia concreta, como tem sido sustentado, por exemplo, por Georges Burdeau,
um dos mais sutis estudiosos do Poder 26.
26. Sobre a teoria do Poder de G EORGES BURDEAU, V. as considerações que já fizemos em 1940, em Teoria do Direito
e do Estado, págs. 94 e segs., com base em um ensaio, cujas teses fundamentais foram confirmadas e desenvolvidas em
seu Traité de Science Politique, Paris, vol. 1.
Assim como a integração normativa não esgota as virtualidades axiológicas (há sempre uma nova
exigência do justo, da paz etc.), da mesma forma a ordem jurídica não envolve e integra em seu
processo a totalidade das exigências fáticas, entre as quais se põem as oriundas do Poder, donde se
origina também a dinâmica bipolar e implicadora da juridicidade.
Não se pode afirmar, em suma, que, quando o Poder especifica a norma jurídica, através de uma
decisão, o faça fora do processo de atualização normativa do valor: ao contrário, o ato de decisão, a
tomada de posição axiológica, em virtude da qual a regra jurídica se constitui ou se aperfeiçoa, faz
parte integrante do mencionado processo, razão pela qual o Poder não surge como uma 4ª dimensão.
561o, a decisão do Poder, seja ele estatal, costumeiro, jurisdicional ou negociai, somente se torna
possível e atual em correlação, ou melhor, em função das valorações que o condicionam e que
legitimam a opção normativa in concreto. Faça-se abstração da correlação axiológico-normativa, e o
Poder se põe como mera força, insuscetível de qualificação jurídica positiva.
De outro lado, se fizermos abstração do "quantum" de positivação representado pelo Poder, as
exigências axiológico-jurídicas se esvaem em modelos normativos inoperantes, o que demonstra que
o problema do Poder só se compreende devidamente como o faz a teoria tridimensional, isto é, como
momento da tensão fático-axiológica na concreção do processo nomogenético 27.
27. Sobre os reflexos dessa concepção do Poder e da normatividade no concernente à teoria das fontes e dos modelos jurídicos, v. nossas Lições
Preliminares de Direito e O Direito como Experiência, cits.

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