Titulo X Teoria Tridimensional Do Direito
Titulo X Teoria Tridimensional Do Direito
Titulo X Teoria Tridimensional Do Direito
194. Na realidade, entre a terceira fase recente e a mais antiga, colocou-se uma outra, na qual o
Direito foi visto como norma ou como lex. Situa-se exatamente neste ponto o que chamamos
Jurisprudência. A importância do Direito Romano vem daí, de ter tomado contato com o Direito
como regra e de ter formulado a possibilidade de uma Ciência do Direito como ordem normativa. A
esta ciência os romanos denominavam Jurisprudência, que não era o estudo puro e simples dos
valores de Justiça, mas a indagação das concreções da Justiça no tempo, nas delimitações espácio-
temporais da experiência humana. Os romanos tiveram consciência de que a Justiça se revelava no
factum da conduta, como experiência humana.
A conhecida parêmia ex fato oritur jus não deve ser interpretada em sentido fisicalista, como uma
causa que gera um efeito, mas no sentido do encontro do ideal do justo com o fato concreto posto
como sua condição.
Parece-nos ter sido suficientemente provado, em face de algumas tentativas de reduzir-se o
Direito Romano a uma geometria abstrata de normas, que os jurisconsultos romanos jamais
separaram a "norma" de sua circunstancialidade fática, assim como de suas exigências ideais 6.
6. Nesse sentido, entre outros, R. V ON JHERING, L’Esprit du Droit Romain, trad. de Meulenaere, Paris, 1886; P IETRO
DE FRANCISCI, Storia dei Diritto Romano, Milão, 1943. Este segundo autor acentua a importância para o jurista do
conhecimento da relação entre elementos de estrutura e elementos finais, e da influência das mudanças destes sobre
aqueles (op. cit., pág. 70, nota 2).
Sob certo prisma é o sentido de concreção que assinala a grandeza dos jurisconsultos clássicos,
integrando em unidade o fato e o valor graças à terceira dimensão representada pela norma. Se os
gregos filosofaram sobre a Justiça, desde os pré-socráticos até os estóicos, os romanos preferiram
indagar da experiência concreta do justo. A experiência concreta do justo apresenta-se-lhes como lex
ou como norma. A Justiça é um valor, mas que deve ser medido na experiência social e que, para ser
medido, exige um tato especial, um senso particular. A ciência que se destina a estudar a experiência
humana do justo chamou-se Jurisprudência — por ser o senso prudente da medida. Para o jurista
romano, o que mais interessa é a regula júris, ou seja, a medida de ligação ou a medida do enlace que
a Justiça permite e exige, de tal modo que Justiça e Direito se tornam inseparáveis, considerado que
seja como um todo o conjunto da experiência jurídica 7.
7. Cf. nosso estudo "concreção de fato, valor e norma do Direito Romano clássico", em Horizontes do Direito e da
História, cit.
A expressão regula é de uma clareza extraordinária, não só porque conserva a antiga raiz — reg,
que determina a idéia de enlace ou comando —, como também porque lembra a idéia de medida e de
medida em concreção.
Em português, temos duas palavras que se originam de regulam: — uma é regra; a outra é régua.
Régua, segmento de direção, no plano físico; regra, sentido de direção no plano ético, linha de
comportamento.
O princípio diretor do jurista, segundo os romanos, é a ratio júris, cabendo-lhe indagar de cada
circunstância a sua ratio, a fim de estabelecer sua medida, sua regula: — a ratio júris determina a
regula júris.
Em sentido inverso, quando a regula júris já é dada, a interpretação não pode se fixar apenas nos
elementos literais ou gramaticais, porque deverá procurar atingir o espírito, a ratio legis. Foram estes
elementos que habilitaram o povo romano a constituir as categorias da Ciência Jurídica.
Ainda hoje, trabalhamos com categorias ou conceitos básicos formulados por eles, operando a
passagem progressiva de um saber empírico para o saber científico. Não puseram, como os gregos, o
problema do "dever ser" do Direito, mas foram homens práticos, quase pragmáticos, para os quais o
Direito foi brotando dos fatos, em contato com a experiência. Mas o jurisconsulto romano jamais
reduziu o Direito ao mero fato, como depois pretenderam fazer alguns sociólogos contemporâneos,
porque eles viram que o jurista domina sempre o fato com a sua voluntas, pondo uma regula, que é
regência segundo medida.
195. Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da experiência das estimativas históricas,
como os significados da palavra Direito se delinearam segundo três elementos fundamentais: — o
elemento valor, como intuição primordial; o elemento norma, como medida de concreção do valioso
no plano da conduta social; e, finalmente, o elemento fato, como condição da conduta, base empírica
da ligação intersubjetiva, coincidindo a análise histórica com a da realidade jurídica
fenomenologicamente observada.
Encontraremos sempre estes três elementos, onde quer que se encontre a experiência jurídica: —
fato, valor e norma. Donde podemos concluir, dizendo que a palavra Direito pode ser apreciada, por
abstração, em tríplice sentido, segundo três perspectivas dominantes:
1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na parte denominada Deontologia
Jurídica, ou, no plano empírico e pragmático, pela Política do Direito;
2) o Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do Direito ou Jurisprudência; e da
Filosofia do Direito no plano epistemológico;
3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia e da Etnologia do Direito; e
da Filosofia do Direito, na parte da Culturologia Jurídica.
Esta discriminação assinala, todavia, apenas um predomínio ou prevalência de sentido, e não uma
tripartição rígida e hermética de campos de pesquisa. A norma, por exemplo, representa para o jurista
uma integração de fatos segundo valores, ou, por outras palavras, é expressão de valores que vão se
concretizando na condicionalidade dos fatos histórico-sociais.
Antes de mostrar como é que essa integração se realiza, é necessário examinar, em suas linhas
gerais, algumas teorias que reconhecem o caráter tridimensional do Direito, resolvendo de maneira
diversa e até mesmo contrastante as relações entre os elementos, que a análise fenomenológica da
conduta já nos revelara, e que a História estimativa do Direito acaba de nos confirmar: ver-se-á,
assim, a tridimensionalidade reflexa no plano das interpretações doutrinárias.
Capítulo XXXV
Eis aí, per summa capita, o programa esboçado por Lask que permanece nos quadros de uma
ainda imprecisa tridimensionalidade genérica, na qual já está implícita, todavia, como a passagem
supra o demonstra, a necessidade de uma compenetração intra-sistemática e dinâmica dos três
elementos. A essa conclusão talvez o nosso Autor tivesse chegado aplicando ao mundo do Direito a
sua fecunda concepção da "intencionalidade" das categorias e a correlação dialética genialmente por
ele estabelecida entre matéria e forma segundo a categoria fundamental do valor 10.
10. Não cabe aqui desenvolver as conexões possíveis entre a dialética da implicação e da polaridade (cf. supra, cap.
XXVI) e a de LASK, ambas distantes do panlogismo dialético de H EGEL, pelo reconhecimento do alcance do elemento
alógico e material como irredutível às formas categoriais, embora suscetíveis de relativa apreensão por meio delas.
198. INTERMEZZO NEO-HEGELIANO — Da obra de Emil Lask partem múltiplas correntes, umas
conservando a sua colocação tridimensional, outras procurando superá-la mediante a integração dos
dois momentos (fato e norma) na unidade de um único processo de objetivação de valores, de
objetivação histórica da idéia ou do logos da justiça. Esta segunda tendência é a que se afirma no
neo-hegelismo jurídico, que assinala seus pontos mais salientes nos trabalhos de Frederico Münch,
Julius Binder, Karl Larenz e Giovanni Gentile.
Na posição neo-hegeliana, resolvida a antítese entre ser e dever ser, a via que se abre é a seguida
por Julius Binder, cuja passagem do neokantismo para o idealismo objetivo de Hegel revela toda a
riqueza e complexidade de motivos que se encerra na concepção culturalista do Direito.
Diz um mestre dinamarquês, Alf Ross, que todas as formas de culturalismo, dada a alegada
impossibilidade de explicar como a idéia ou o valor do justo possa ser constitutiva de uma ordem
normativa positiva, conservando-se os dois termos distintos e heterogêneos, tenderiam à solução
hegeliana, ou seja, à concepção da idéia como imanente na realidade. Nesse sentido, o professor de
Copenhague lembra o exemplo de Binder, evoluindo dos pressupostos da Escola neokantiana de
Baden (Philosophie des Rechts, 1925) para as teses radicais de Hegel, atualizadas na
Grundlegungung Rechtsphilosophie, de 1935 ¹¹.
O trialismo que ainda se conserva implícito na obra de Münch, resolve-se inteiramente no
monismo de Binder, fiel à dialética hegeliana da identidade dos opostos: o Direito passa a ser visto
como realidade ou validade concreta, tornada insubsistente qualquer distinção entre factum e valor,
só concebível de um ponte de vista abstrato e intelectualista, assim como lhe parece sem sentido "o
problema do fundamento da validade": "o Direito é conhecido, concebido e realizado enquanto
válido, e não pode ser conhecido, nem compreendido senão como Direito vigente"¹².
Essa doutrina, que tudo integra em unidade no desenvolvimento dialético do espírito, tem, de um
lado, o mérito de revelar a insuficiência de um trialismo estático ou abstrato, confinado na descrição
ab extra do fenômeno jurídico como se fosse um dado de natureza, mas, de outro, apaga ou torna
insubsistentes distinções que não são meras posições abstratas do intelecto, mas refletem estruturas
objetivas da realidade cultural do Direito.
É graças à dialética de complementariedade que pensamos ser possível satisfazer às exigências
históricas ou dinâmicas atendidas pelos neo-hegelianos, sem se resolverem, uns nos outros,
elementos que só têm significado como termos heterogêneos, embora necessariamente
correlacionáveis. Só assim, ser-nos-á dado evitar o caminho já experimentado por Hegel e que, no
dizer de Cassirer, sacrificou na Filosofia do Espírito o ideal ao fático e, na Filosofia da Natureza, o
fático ao ideal.
11. Cf. ALF ROSS, Towards a Realistic Jurisprudence — A Criticism of the Dualism in Law, Copenhague, 1946, pág.
38. Pensamos, no entanto, que a dialética de complementariedade, tal como se expõe neste livro, permite compreender o
processo normativo do Direito sem se cair na redução hegeliana.
12. BiNDER, La Fondazione della Scienza dei Diritto, cit pág. 154, e passim. Cf. cap. anterior, pág. 451. Aliás, após
dizer que "o ser do Direito consiste na sua validade", pois "um Direito não válido não é Direito", B INDER acrescenta que o
valer" (Geltung) e a "vigência" (Gültigkeit) são dois conceitos entre os quais não se pode estabelecer qualquer distinção
{op. cit., págs. 153 e 160).
O Trialismo de Radbruch
199. A POSIÇÃO RELATIVISTA DE R ADBRUCH — As insuficiências da tridimensionalidade
genérica ou abstrata revelam-se, em verdade, na obra daqueles autores que, desenvolvendo o
pensamento de Rickert e Lask, mais se mantiveram fiéis às posições de Kant.
Expressiva é, nesse ponto, a doutrina de Gustav Radbruch, cujas linhas gerais expusemos em
Fundamentos do Direito ¹³ e que ora nos cingimos a examinar em seu substractum tridimensional.
Radbruch renova a distinção entre realidade e valor, entre ser e dever ser, acrescentando, porém,
em oposição à doutrina de Stammler, não poder subsistir a simples antítese entre um e outro domínio.
"Pelo contrário", escreve ele, "entre a categoria juízo de existência e a categoria do juízo de valor é
preciso estabelecer ainda uma categoria intermédia: a dos juízos referidos a valores
(wertbezienhend); assim como, correspondentemente, entre as categorias de natureza e de ideal, é
preciso dar um lugar à categoria da cultura. Isto é: a idéia de Direito é, sem dúvida, um valor; o
Direito, porém, não é um valor, mas uma realidade referida a valores, ou seja, um fato cultural".
"Deste modo", conclui o antigo mestre de Heidelberg, "transitamos, pois, dum dualismo para um
trialismo nas maneiras possíveis de contemplar o Direito, se abstrairmos duma quarta maneira
possível que é ainda a da sua contemplação religiosa. Ora, é este trialismo que faz da Filosofia
Jurídica uma Filosofia cultural do Direito"14.
13. Cf. págs. 192 e segs. da 2ª ed. da obra citada, à qual pedimos vênia para remeter o leitor, na trad. castelhana de
Júlio O. Chiappini, Buenos Aires, 1976, págs. 157 e segs.
14. Filosofia do Direito, trad. de Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, 2ª ed., pág. 41. R ADBRUCH esclarece, em nota
ao pé da página, que essa direção da Filosofia Jurídica, fundada por L ASK, é representada por MAX ERNST
MAYER,WILHELM SAUER, TATSOS, ADOLFO RAVÀ e KANTOROWICZ, sendo que este associa, tanto como ele, relativismo e
trialismo. Sobre o culturalismo de MAYER e RAVÀ, V. Fundamentai do Direito, págs. 171 e segs.
Posta, desse modo, a tridimensionalidade, como característica essencial do culturalismo jurídico,
Gustav Radbruch procura determinar as três maneiras por que podemos encarar o Direito. A atitude
da Ciência do Direito é a que refere as realidades jurídicas a valores, considerando o Direito como
fato cultural; a atitude da Filosofia do Direito é valorativa (bewertend), visto como considera o
Direito como um valor de cultura; havendo uma terceira atitude, superadora dos valores
(wertüberwindend) que considera o Direito na sua essência, ou como não dotado de essência: é a
atitude ou o tema da Filosofia religiosa do Direito 15.
A essa discriminação deve acrescentar-se uma outra, a atitude não valorativa, cega para os
valores, ou wertblind, própria da Teoria Social do Direito, da História do Direito, do Direito
Comparado ou da Sociologia Jurídica, que cuidam do Direito como "fato intercalado numa série
causai, como efeito e causa de outros fatos"16.
15. Op. cit.. pág. 13.
16. Op. cit., pág. 159. Sobre esse ponto, v. a observação de C ABRAL DE MoNCADA na nota 1 da pág. 13. Diremos,
logo mais, da impossibilidade de uma Sociologia Jurídica baseada em uma atitude cega para o mundo dos valores.
A Ciência Jurídica, propriamente dita, estuda, pois, não a vida do Direito, mas sim normas que se
acham imediatamente referidas a valores.
Como se vê, o trialismo de Radbruch desdobra-se em um tetralismo, mas o que é mais importante
ponderar é que todas as atitudes acima discriminadas, na concepção desse mestre do relativismo
jurídico, conduzem a conclusões irredutíveis e antinômicas.
As pesquisas do filósofo, do jurista e do sociólogo desenvolvem-se em planos distintos,
obedecendo a estruturas e a princípios metodológicos diversos, de maneira que se chega, afinal, ao
reconhecimento de que há três tipos de validade entre si antinômicas: a validade jurídica, que alguns
querem explicar em si mesma, por simples subsunção normativa (Kelsen etc.); a validade social, que
o sociologismo alicerça em processos de eficácia; e a validade ética, cuja fundamentação objetiva era
vão se tem procurado determinar 17.
17. Cf. RADBRUCH, "Le relativisme dans la philosophie du Droit", em Archives de Philosophie du Droit et de
Sociologie Juridique, 1934, 1-2, pág. 106: "Em lugar de um ato de verdade, que é impossível, o que se realiza é um ato de
autoridade. O relativismo jurídico desemboca no positivismo". Cf. nos mesmos Archives o estudo de Gurvitch, Une
Philosophie Antinomique du Droit, 1932, fase. 3-4, pág. 530.
Uma das partes mais vivas da obra de Radbruch consiste, a nosso ver, na análise do problema da
validade segundo três pris mas distintos, revelando as antinomias em que se envolve toda apreciação
puramente lógica ou mesmo lógico-transcendental dos três aspectos ou momentos da realidade
jurídica.
É com grande sutileza que Radbruch distingue as teorias jurídica, sociológica e filosófica da
obrigatoriedade do Direito, apontando as suas antinomias, assim como os absurdos a que chegariam,
se rigorosamente seguidas. O jurista, por exemplo, que fundasse a validade de uma norma tão-
somente em critérios técnico-formais, jamais poderia negar com bom fundamento a validez dos
imperativos baixados por um paranóico que por acaso viesse a ser rei. Aquele que fizesse repousar o
Direito em razões históricas ou sociológicas (teorias da força, do reconhecimento etc.) ver-se-ia
obrigado a avaliar o grau de obrigatoriedade do Direito pelo grau de sua real eficácia, falho de
critério para resolver em caso de conflito entre duas "ordens jurídicas"; e, finalmente, quem
identificasse o Direito e o Justo, deveria rejeitar toda lei positiva contrária a seus anseios de justiça, o
que nos levaria ao caos, pois não há meios científicos de determinação objetiva desse valor supremo
do Direito...18
18. RADBRUCH, Filosofia do Direito, cit., págs. III e segs.
Desse modo, o tríplice aspecto da validade corresponde ao tríplice problema dos valores do
Direito, às três exigências contidas na idéia do Direito: justiça, certeza jurídica (segurança e paz
social) e fim, entre as quais a História nos revela contradições inamovíveis, não cabendo à Filosofia
resolvê-las, pois "a sua missão não consiste em tornar a vida fácil, mas, pelo contrário,
problemática"19.
Daí a conclusão relativista ou cética de que todas as três formas de validade possuem um valor
relativo, referindo-se, como se referem, aos problemas da justiça, das condições sociais e de ordem,
nas quais se concentram todas as contradições insolúveis e inevitáveis da vida jurídica 20.
19. Idem, ibidem, pág. 110. PAUL ROUBIER aceita, em linhas gerais, a tricotomia de RADBRUCH segundo o prisma da
"obrigatoriedade do Direito", e em função dos valores de justiça, segurança jurídica (autoridade, paz, ordem) e progresso
social (felicidade, subsistência, abundância, cultura etc.). Além de preferir a expressão "progresso social", em seu
esquema, o mestre de Lyon afasta-se das antinomias do relativista germânico, observando que, "se a ordem de
sistematização dos valores não pode nos fornecer a chave da História do Direito e das instituições, em compensação, dá-
nos a ordem de importância dos valores", de maneira que a trilogia "ordem--justiça-progresso" representaria exatamente
uma ordem hierárquica de valores. Cf. PAUL ROUBIER, Théorie Générale du Droit, 2ª ed.. Paris, 1951, págs. 318 e segs.
Ao descrever a evolução da escala gradativa dos valores que informam o Direito, R OUBIER pondera que as instituições
jurídicas não se apresentam em uma série unilinear, como se o formalismo, baseado no valor de seguridade, fosse o modo
de vida jurídica das sociedades primitivas; o idealismo, fundado no valor de justiça, assinalasse o modo de vida das
sociedades em seu apogeu; e o realismo, preocupado com o bem-estar e o progresso, caracterizasse as sociedades às
portas da decadência. No fundo, formalismo, idealismo e realismo entrecruzam-se, de modo que devem ser todos
representados em uma sociedade em pleno desenvolvimento (op. cit., pág. 320). Cf. MIGUEL REALE, Teoria
Tridimensional do Direito, cit.
20. O relativismo de RADBRUCH foi atenuado nos últimos escritos desse eminente jusfilósofo, ao achegar-se a certas
teses do Direito Natural clássico. Cf. a 4ª edição da tradução portuguesa de sua Filosofia do Direito, Coimbra, 1961,
revista e acrescida dos últimos pensamentos do Autor, e uma nota esclarecedora de CABRAL DE MONCADA.
Fundamental, na última fase do pensamento de R ADBRUCH, é a renovação do conceito de natureza das coisas, com
imediata e larga repercussão no mundo jurídico ocidental. Cf. R ADBRUCH, Die Natur der Sach als juristische Denkform,
1963.
Os elementos fáticos, axiológicos e normativos justapõem-se, a seu ver, em função de
acontecimentos ligados às preferências de opinião refletida no livre jogo das atividades político-
partidárias, dada a legitimidade em tese de todas as soluções possíveis. Fica aberto, desse modo,
natural acesso à melancólica aceitação do fato consumado: "Se ninguém pode definir
dogmaticamente o justo, é preciso que alguém defina dogmaticamente, pelo menos, o jurídico,
estabelecendo o que deve observar-se como Direito. [. . . ] Quem se acha em condições de fazer
cumprir e respeitar o Direito, já com isso demonstra que é também competente para o definir" 21.
21. Filosofia do Direito, cit., págs. 110 e segs. Veremos que a positividade do Direito é expressão necessária de
exigências axiológicas a partir dos valores mais urgentes (a ordem e a paz) e que a interferência decisória do Poder não se
explica em virtude da relatividade dos valores em si, mas sim pela possibilidade de múltiplas realizações concretas, todas
conciliáveis com as exigências do justo.
Tridimensionalidade Implícita: Santi Romano e Hauriou
200. Fora do âmbito da teoria da cultura, é possível discriminar outras colocações jurídicas que
conservam uma estrutura tridimensional, ao menos implícita, como ocorre no campo do
institucionalismo.
À primeira vista, as posições de Maurice Hauriou e de Santi Romano, ambas marcadas por alto
senso de concreção, com repúdio às teorias redutoras do Direito, ou à norma ou ao fato, deveriam ser
consideradas bidimensionais, mas outro é o nosso modo de ver.
A concepção institucional do jurista italiano é de cunho estritamente jurídico, mantendo-se no
plano científico-positivo, sem qualquer subordinação da juridicidade a critérios deontológicos.
Contrário à redução do Direito à categoria das normas, reclamou ele, com vigor e penetração
exemplares, mais atenção para "outros elementos, de que se não tem geralmente conta e que, no
entanto, parecem ser mais essenciais e característicos"22.
22. Cf. SANTI ROMANO, L’Ordinamento Giuridico, 2ª ed., Florença, 1945.
A sua tese fundamental é a de que o Direito "antes de ser norma, antes de referir-se a uma simples
relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, posição da própria sociedade na
qual se desenvolve, e que ele constitui como unidade, como ente por si bastante"23.
23. Ibidem, pág. 22.
Desse modo, resolve ele o fenômeno jurídico no fenômeno social-institucional e este no
fenômeno jurídico, identificando-os, visto como instituição e norma nascem "uno actu", relacionadas
em "mútua implicação", consoante expressões de Messineo, a que Santi Romano dá seu apoio,
dizendo mesmo ter sido esse o teorema ou a série de teoremas que se propusera demonstrar em seu
trabalho 24.
24. Ibidem, pág. 35, nota à 2.ª ed.
Ao ilustre jurisconsulto peninsular pareceu dispensável, dado o plano de sua pesquisa de natureza
estritamente científico-positiva, propor-se o problema do valor, dos interesses ou dos fins, mas estes
resultam implícitos ou subentendidos em um dos termos da implicação acima referida, cujo processo
representa a dinâmica do Direito. Julga Santi Romano que uma pesquisa de Teoria Geral do Direito
deve situar-se em um "terreno histórico-empírico", e que a correlação instituição-norma basta-se a si
mesma no plano científico, embora sua necessidade possa também ser evidenciada por exigências de
ordem filosófica 25.
25. Ibidem, págs. 39 e 84, notas à 2.ª ed.
Ao objetar-lhe Giuseppe Capograssi que "um ordenamento jurídico só o é, e se realiza como tal,
enquanto referido a um princípio constitutivo da ação", Santi Romano não negou aquela
circunstância, reiterando, porém, que o jurista pode dela prescindir, visto como "um ordenamento é
porque é", e, enquanto vigora, é o ponto de partida das pesquisas do jurista, não sendo necessário ir
além, em busca de seu fundamento, do "porquê" e do "valor" de sua eficácia 26.
26. SANTI ROMANO, Frammenti di un Dizionario Giuridico, Milão, 1947, pág. 69. Cf. CAPOGRASSI, IL Problema della
Scienza dei Diritto, Roma, 1937, págs. 9 e segs.
Apreciando, em outra passagem de seu admirável Dicionário, a função do Direito como sendo a
de "estabilizar ou fixar certos momentos ou movimentos da vida social" Santi Romano abre uma
perspectiva de ordem filosófico-jurídica que deveria merecer especial atenção dos juristas.
Após ter reiterado a correlação entre fato institucional e ordem normativa, lembra "a necessidade
de religar melhor em unidade superior as duas esferas, que têm sido mantidas por demais separadas e
distintas uma da outra: a do ser, e, na categoria da atividade prática, a do dever. De maneira
particular, acrescenta, seria útil talvez analisar melhor os caracteres de algumas conexões entre
natureza e espírito, que poderiam esclarecer também as relações entre o Direito objetivo, entendido
na mencionada acepção (institucional), e o Direito subjetivo, porquanto se é verdade que não há
Física sem alguma Metafísica, não é menos verdade que não há Metafísica sem alguma Física"27.
27. Cf. Framment di un Dizionario, cit., pág. 86.
Pouco nos adianta Santi Romano sobre esse programa de trabalho, mas não diverge,
substancialmente, daquele que nos propusemos realizar desde 1939, com a diferença, porém, que
jamais nos pareceu prescindível, no plano da Teoria Geral do Direito da Ciência Jurídica, a
apreciação do elemento axiológico. Sem a indagação da dimensão axiológica do fato social não nos
parece possível nem mesmo a correlação pretendida por Santi Romano entre fato institucional e
norma jurídica. Em suma, a consideração estimativa impõe-se também no momento da pesquisa
cientifica do Direito, sem que isto implique passagem para o plano da Filosofia Jurídica. A não ser
assim, acaba-se atribuindo à "instituição", como acontece na teoria de um valor imanente,
equiparável, por isso, ao fato normativo posto por Petrasisky, Jellinek e Gurvitch na base da
fenomenologia jurídica.
O mesmo poder-se-á dizer, mutatis mutandis, da doutrina institucionalista francesa, de cunho
mais sociológico, e de mais ampla e viva compreensão filosófica.
Como já tivemos ocasião de examinar em outro trabalho, o institucionalismo de Maurice Hauriou,
cujas bases vieram se alargando ou se universalizando para todos os campos do Direito, graças a
Georges Renard, Jean Delos e Georges Gurvitch, representa uma poderosa força de superamento,
quer do formalismo jurídico, quer do sociologismo, ao qual, porém, paga tributo talvez excessivo.
Obedecendo às exigências de concreção, que têm constituído uma das notas dominantes do nosso
tempo, Hauriou revela plena consciência de que "o problema fundamental do Direito é a
transformação do estado de fato em estado de direito", procurando, esclarecer as conexões entre a
idéia de "ordem social" e a de "justiça", idéias objetivas que estão entre si como a maqueta de uma
estátua em relação ao ideal de beleza plástica 28.
28. Cf. HAURIOU, Précis de Droit Constiíutionnel, V ed., Paris, 1929, págs. 36 e 51.
O ideal de justiça deve ser permanentemente colimado, mas há um limite intransponível, como o
do artista que, ao retocar a maqueta, movido pelo desejo de perfeição, não deve comprometer o
equilíbrio estático da obra. Uma ordem social estabelecida contém sempre certa dose de justiça, mas
também ela se encontra praticamente em conflito com uma dose nova de justiça ainda não
incorporada 29.
29. Cf. HAURIOU, AUX Sources du Droit (Cahier de Ia nouvelle journée, n? 23), págs. 28 e segs., 47 e segs.
Merece ser lembrada a distinção por ele feita entre os valores segundo um critério de importância
e um critério de urgência, pois muitas vezes o Direito consagra os valores mais urgentes (acima de
tudo, a segurança, a ordem, a paz) e não os valores em si mesmos mais altos 30.
30. Idem, Ibidem, pág. 49. Vide os artigos de GURVITCH e DELOS no I vol. dos Archives de Philosophie du Droit, cit.,
1931; GURVITCH, Vldée du Droit Social, Paris, 1932, págs. 647 e segs., e A. D ESQUEYRAT, Vlnstitution, le Droit Objectif
et Ia Technique, Paris, 1933.
É historicamente, no plano da experiência concreta, que Hauriou coloca o problema da correlação
entre justiça e ordem, intimamente ligadas, mas em conflito potencial, por albergar o ideal de justiça
um sentido de insatisfação renovadora e mesmo revolucionária.
Ora, essas idéias diretoras do viver comum não planam acima da vida, como arquétipos
platônicos, mas se inserem na corrente da vida, penetram na realidade social, produzindo-se uma
verdadeira transubstanciação, que se revela no Direito Positivo, "un composé d'ordre social
soupoudré de justice"31.
31. Cf. MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito, cit., págs. 222 e segs., e a Bibliografia aí indicada. Cf. F RANCISCO
OLGIATI, Il Concetto di Giuridicità nella Scienza Moderna dei Diritto, cit., págs. 336 e segs.
Direito, por conseguinte, não é pura norma, mas é a própria realidade enquanto integrada por uma
idéia diretora que congrega as forças de quantos pretendam sua atualização. No plano jurídico as
idéias tornam-se fatos sociais, como disse Delos, e incorporam-se à realidade até se transformarem
em elementos do mundo exterior, em "instituições" 32.
32. Cf. JEAN DELOS, La Société Internationale et les Príncipes du Droit Public, 1929, págs. 80 e segs.
Como se vê, há no institucionalismo uma tridimensionalidade implícita (as "idéias" diretoras
incorporam-se nas "instituições" e produzem as "regras de Direito") representando uma das
expressões mais altas da adequação necessária entre os três elementos constitutivos da experiência
jurídica. Não será exagero dizer-se que as idéias mais fecundas de Hauriou tornaram-se como que
estáticas quando se passou a subordinar o institucionalismo à concepção clássica do Direito Natural,
esvaziando-se de seu conteúdo histórico essencial.
Para concluir este parágrafo, lembraremos que uma compreensão historicista do
institucionalismo, máxime por sua compreensão do significado do Poder na gênese do Direito, como
momento necessário da dinâmica valor-fato-norma, coincidiria, de certa forma, com as perspectivas
do que denominamos "concepção tridimensional concreta do Direito"33.
33. Os limites que nos impusemos neste Curso impedem-nos de apreciar outras doutrinas que traduzem uma
conjugação concreta entre os três elementos discerníveis na realidade jurídica. Sem falar em eminentes sociólogos do
Direito que, praticamente, ?e situam no plano dos institucionalistas, quanto aos pontos ora observados (E HRLICH, ROSCOE
POUND), lembramos o exemplo expressivo de B ARNA HORVATH, que não concebe o Direito apenas como forma e
conteúdo, mas como "correlação de conteúdo e de forma", superando o antagonismo entre "ser" e "dever ser", "realidade"
e "valor", vendo no Direito uma "combinação sinótica, mas não sintética, dos valores e dos fatos" (v. comunicação in Le
Problème des Sources du Droit Positif. publicado pelo Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia
Jurídica, Paris, 1934, pág. 122); e o de F RANCESCO ANTOLISEI que, nos seus Problemi di diritto Penale. 1940, ao examinar
a questão metodológica, bate-se ardorosamente pela "concretezza" do Direito, demonstrando que o problema do fim,
assim como o do fato social, não podem ser considerados metajurídicos, ou suscetíveis de serem abstraídos pelo jurista no
momento da pesquisa das normas. Ao contrário, são problemas que se impõem em qualquer estudo realista das normas de
Direito. (Cf. OLGIATI, op. cit., págs. 276 e segs.) Sobre esses e outros aspectos da questão, pedimos a atenção do leitor
para nosso livro Teoria Tridimensional do Direito, cit., e do estudos reunidos na coletânea organizada por T EÓFILO
CAVALCANTI, Estudos em homenagem a Miguel Reale, São Paulo, 1977.
O Trialismo Perspectivístico
201. Uma expressão digna de nota na corrente tridimensional nos é dada por Legaz y Lacambra e
Eduardo Garcia Máynez, ambos influenciados não só pelo culturalismo e pela Axiologia
contemporânea, como pela Teoria Pura de Hans Kelsen, cujas teses procuram conciliar graças a um
perspectivismo fundamental, haurido nas lições de Ortega y Gasset, e às contribuições de Nicolai
Hartmann e Max Scheler.
No belo ensaio que dedicou a Hans Kelsen, Legaz y Lacambra revela a série de problemas éticos
e fáticos implícitos na doutrina do mestre austríaco, afirmando que a realidade jurídica deve ser
apreciada segundo três ângulos visuais distintos: o fenomenológico, o aporético e o ontológico.
Descrito o Direito em seus elementos essenciais, consoante os pressupostos fenomenológicos de
Husserl, ascende-se à Aporética, que fixa e descreve as contradições que se mostram no fenômeno
jurídico. Uma delas refere-se, exatamente, à validez do Direito, que pode ser jurídica, ética ou
sociológica, cujos aspectos nem sempre têm sido rigorosamente distintos.
Como conciliar esses três pontos de vista, dado que um imperativo, formalmente válido, deve ser
incondicionalmente cumprido, mesmo sendo injusto ou não tendo correspondência efetiva no viver
comum? No plano aporético, não há como recusar a igual licitude dos pontos de vista ou perspectivas
com que se focaliza a questão, no que concorda com Radbruch.
É necessário, porém, superar o plano das aporias, colocando-se o estudioso acima dos pontos de
vista particulares, para abranger o Direito em seu "ser" autêntico. É o que pretende realizar a
Ontologia Jurídica, não para resolver aquelas contradições, "mas sim para ter mais clara consciência
das mesmas". De Metafísica, escrevia Legaz em 1933, há de bastar-nos "o minimum indispensável
para obter a explicação clara e simples dos fenômenos: esse minimum é a transcendência do ser —
aqui do ser jurídico — em face de todo objeto (Direito justo, Direito puro, Direito vigente. . .) e de
todo sujeito (método)"34.
34. Cf. Luís LEGAZ Y LACAMBRA, Kelsen, Barcelona, 1933, págs. 316 e segs. Cf. do mesmo autor, Introducción a Ia
Ciência dei Derecho, Barcelona, 1943, págs. 207 e segs.
Nos seus escritos posteriores, Legaz y Lacambra supera essas posições iniciais, estabelecendo a
unidade do Direito, apresentado como "uma forma de vida social que realiza um ponto de vista sobre
a justiça", — e, inspirando-se numa metafísica personalista, elabora uma doutrina do Direito Natural
reconduzida às matrizes do pensamento clássico. Isto não obstante, não encontramos na obra do
mestre de Madri uma plena integração dos três pontos de vista que tão nitidamente distingue 35.
35. Cf. LEGAZ Y LACAMBRA, Filosofia dei Derecho, 2.ª ed., cit., sobretudo os capítulos sobre Direito Natural e Teoria
da Justiça.
Em sentido paralelo situa-se a teoria de Eduardo Garcia Máynez, em um perspectivismo quase
radical, não se limitando a distinguir três aspectos de uma única realidade, ou três espécies diversas
de um só gênero, mas sustentando, ao contrário, a existência de "três noções distintas e irredutíveis
entre si": as de "Direito formalmente válido", de "Direito intrinsecamente válido" e de "Direito
Positivo".
O primeiro refere-se à vigência, ou seja, ao conjunto de requisitos extrínsecos a que deve uma
norma jurídica obedecer para ser considerada obrigatória 36. O Direito intrinsecamente válido é o
Direito justo, dotado de um fundamento ético, ao passo que o Direito Positivo, independente da
validez formal e da validez intrínseca, não é senão o Direito eficaz, isto é, efetivamente cumprido no
seio de uma comunidade.
36. Cf. GARCIA MÁYNEZ, La Definición dei Derecho, Ensayo de Perspectivismo Jurídico, México, 1948, págs. 17, 29
e segs. O termo vigência é empregado por nós comente como sinônimo de "validez formal" ou estritamente jurídica, para
distingui-la da "validez ética" (fundamento) e da "validez social" (eficácia). Neste sentido, L EGAZ Y LACAMBRA, Filosofia
dei Derecho, cit., pág. 503.
A positividade, segundo Máynez, não se refere ao valor objetivo, nem ao valor formal das normas
de Direito, mas apenas à sua eficácia, correspondendo ao fato da observância das normas.
Representa, consoante ensinamento de Kelsen, uma zona intermédia de aplicação, que não pode
atingir um limite superior de observância indefectível, nem descer a outro inferior de absoluto
descumprimento.
Abstração feita dessa discutível identificação entre eficácia e positividade, cuja determinação fica
entregue ao particularismo dos fatos contingentes, notemos que, segundo Máynez, os três conceitos
discriminados podem relacionar-se estreitamente, o que amiúde acontece, sem se implicarem, no
entanto, reciprocamente, pois é possível Direito vigente não Positivo, assim como Direito Positivo
não vigente.
Essa discriminação abstrata do Direito leva Máynez a conceber as três formas do Direito como
três círculos secantes, dando lugar a sete combinações diversas, segundo esta representação gráfica:
Mais longe não se poderia levar a abstração formal, em uma "ars" combinatória que desatende ao
dinamismo e à historicidade do Direito 37. É de notar-se que o jurista mexicano atenua o alcance de
suas conclusões quando, logo mais, esclarece que só pode haver vigência destituída de positividade,
ou vice-versa, no caso de uma norma singularmente considerada, e não quanto à totalidade da ordem
jurídica positiva. Não obstante essa ressalva, seu pensamento coloca-se em franco antagonismo à
inter-relação ou implicação necessária apontada por vários juristas entre os três elementos da
juridicidade 38.
37. GARCÍA MÁYNEZ, Op. cit., págs. 86 e segs. Compare-se com iguais círculos secantes, que S AUER nos oferece para
indicar o Direito, a Moral e o Costume, desde que considerados (note-se) "como normas sociais abstratas", isto é, apenas
quanto à Forma. (System der Rechts und Sozial-philosophie, 1949, pág. 209.)
38. Para SAUER, por exemplo, os três elementos não se colocam um ao lado do outro, como territórios limítrofes,
sendo antes três braços, três lados ou três raios de um único e mesmo todo; nem podem deixar de estar ligados uns aos
outros, por serem de natureza interligados. (Cf. Juristische Methodenlehre, cit., pág. 37.)
As delimitações, que Garcia Máynez nos oferece, esbarram com dificuldades, a nosso ver
insuperáveis, mesmo no plano teorético.
Ao determinar, por exemplo, os "supostos do Direito vigente", distribui-os em três classes:
lógicos, axiológicos e sociológicos. Por mais que Garcia Máynez pretenda se manter em um plano
puramente formal, ao caracterizar a vigência do Direito, o exame desta questão envolve
necessariamente elementos heterogêneos, não formais, como, por exemplo, "a referência à vontade
do Estado", ao fato do Poder 39, ou o reconhecimento, como "suposto sociológico'', de que "a
positividade é o normal do Direito". . . 40
39. GARCÍA MÁYNEZ, op. cit., pág. 109.
40. Idem, ibidem, pág. 110: "Quando não se trata de um único preceito, mas de todo um ordenamento jurídico, resulta
impossível aceitar a independência daqueles termos" (positividade e vigência), pois "a positividade normal do mesmo é
condição imprescindível de sua existência". Ora, isto demonstra não lhe assistir razão quando sustenta que entre vigência
e eficácia não há qualquer implicação.
Embora reiterando a afirmação central de seu trabalho de que "as notas de validez intrínseca,
validez formal e positividade não se implicam entre si", assim como também não se excluem, a parte
final do ensaio de Garcia Máynez representa uma original aplicação do objetivismo axiológico de
Max Scheler e Nicolai Hartmann, no terreno jurídico, colimando uma visão unitária do Direito.
Sintetizando ensinamentos desses mestres, lembra ele que os valores, enquanto princípios éticos,
têm de transcender seu ser ideal, para se introduzirem na ordem real da atividade humana, e que esta
atualização só se torna possível graças à consciência estimativa, sendo a finalidade ou, mais
precisamente, o ato teleológico a forma categorial de realização da conduta obrigatória 41.
41. Idem, ibidem, cap. VIII.
Com base nessas concepções, o mestre mexicano procura "ir além do Jusnaturalismo e do
Positivismo", para superar, como já o tentara Legaz y Lacambra, os pontos de vista irredutíveis do
dogmático, do sociólogo e do filósofo do Direito, assim como "a lógica imanente dessas três atitudes
típicas"42.
42. Idem, ibidem, págs. 197 e segs.
Para ele, os três tipos de Direito tornam impossível qualquer conciliação no plano teorético, assim
como uma definição única da "juridicidade", mas não é dito que, na órbita da ação, não possam
aqueles três elementos ser compreendidos unitariamente, desde que se reconheça "a relatividade
essencial dos valores jurídicos, em conexão com as cambiantes circunstâncias de espaço e de tempo",
salvando-se a objetividade dos valores mediante concessões às exigências da História: é o
desenvolvimento dialético da idéia do justo que, nas vicissitudes concretas da experiência (reformas,
revoluções etc.) possibilita a coincidência relativa, em uma única ordem jurídica, dos atributos da
validez intrínseca, da validez formal e da positividade 43.
Daí a consideração final do Direito apenas no terreno prático, segundo a relação dialética entre a
idéia de uma ordem intrinsecamente justa e a de uma organização social dotada da atribuição
exclusiva de formular e aplicar os preceitos do Direito.
Um dualismo entre teoria e prática surge, assim, na concepção que estamos examinando, na qual
dois mundos resultam justapostos, dominados por critérios metódicos diversos, ficando, uma ao lado
da outra, a "abstração" do perspectivismo e a "concreção" de uma dialética válida apenas no plano da
ação.
Uma compreensão integral do Direito, capaz de harmonizar suas exigências teoréticas e práticas,
o ser e o valor, a forma e o conteúdo, só será possível, no nosso entender, se nos movermos do
reconhecimento da implicação e da polaridade existente entre os elementos constitutivos do mundo
do Direito, ao mesmo tempo uno e multíplice.
Essa exigência de unidade, sem perda de vista da tridimensionalidade do Direito, é essencial, e é
sobre esta questão que têm sido elaborados alguns dos trabalhos de Filosofia Jurídica mais
representativos das Américas 44.
43. Op. cit., págs. 203 e segs.
44. Seja-nos lícito transcrever aqui o que escreveu C ARLOS COSSIO, em sua comunicação ao Congresso do Chile, em
1956: "Afirmar hoje que o Direito é cultura, é referir-se a um lugar-comum. Sem embargo, esta verdade ontológica ainda
não penetrou no seio da Ciência normativa do Direito, de forma a transmudar os conceitos dogmáticos fundamentais,
dando lugar a uma nova técnica judicial e forense. Afirmar, em consonância com aquela tese, que o Direito se apresenta
como fato, como valor e como norma, começa a ser também uma afirmação corrente no campo jusfilosófico. Essa é a
palavra de JEROME HALL, na América inglesa; de EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, na América espanhola; de MIGUEL REALE, na
América portuguesa, todos eles verdadeiros príncipes da inteligência em nosso domínio". (La Ley, 12 de junho de 1956,
pág. 4.)
Sobre a repercussão de nossa teoria da tridimensionalidade específica e dinâmica, nos meios filosófico-jurídicos, v. a
resenha de RECASÉNS SICHES a nosso livro Horizontes do Direito e da História, em Dianoia, México, 1957, págs. 404 e
segs.; o que escreve o mesmo Autor em seu Tratado General de Filosofia dei Derecho, cit., e, mais detalhadamente, em
Panorama dei Pensamiento Jurídico en ei Siglo XX, México, 1963, t. I, págs. 553-567.
Capítulo XXXVI
Compreende-se, desse modo, que a variação dos valores in concreto não compromete sua
objetividade. A atualização dos valores depende sempre do exame das circunstâncias e de critérios
contingentes de conveniência e oportunidade, dos quais decorre a preferência por esta ou aquela
dentre as múltiplas vias compatíveis com as mesmas exigências axiológicas.
Feita essa ressalva, que se nos afigura essencial, não se pode recusar à doutrina de Radbruch o
mérito de ter reconhecido a conexão inevitável entre a positividade do Direito e o fenômeno da
organização do Poder.
Tem-se generalizado ultimamente uma tendência abstratista visando a um "reino ideal do
Direito", sem os perigos e os riscos que seriam representados pelo Poder, confundido facilmente com
a força e o arbítrio. Mais do que ninguém, Hans Kelsen contribuiu para essa ilusória concepção da
juridicidade, sendo dele a afirmação suspicaz de que quem levanta o véu que encobre o Direito e abre
bem os olhos, descobre a cabeça de Górgona do Poder ²³.
Deste assunto já cuidamos em outras obras, notadamente em Teoria do Direito e do Estado 24
mas não é demais salientar que, como diz Hauriou, a exigência ideal que põe a regra de Direito põe
também o Poder. O mestre francês, pertencente àquela família de juristas que sabe ser o pior inimigo
do Direito aquele que fecha os olhos para o problema do Poder, esclarece-nos que a norma jurídica
não emana dos fatos, à guisa de leis físicas, porque seu surgimento implica a consideração do Poder,
que não é aceito em si mesmo, mas em nome e em razão da "instituição" a que se destina.
23. Cf. William Ebenstein, La Teoria Pura dei Derecho, cit., pág. 131. Sobre esta matéria, v. o capítulo que
dedicamos às "Pretensões do objetivismo jurídico contra o Poder", in Teoria do Direito e do Estado, 4ª ed., cit., págs. 66
e segs., e o ensaio "O Poder na Democracia", inserto em Pluralismo e Liberdade, cit.
24. Cf. nossa Teoria do Direito e do Estado, cit., notadamente os caps. IV: — "Ordem Jurídica e Poder" e X: —
"Análise do Poder de Império".
Alargando essa concepção institucional diríamos que, considerada a totalidade do processo
histórico do Direito de uma comunidade e não cada uma de suas expressões, não raro conflitantes, o
processo geral de atualização do Direito segue pari passu o do Poder, o qual faz-se cada vez mais
Direito, integrando-se nas normas que positiva: — a convergência do Direito e do Poder é o infinito
de uma lei social.
O fato do Poder não interessa, em suma, ao mundo jurídico senão e enquanto se ordena
normativamente, inserindo-se, sob certo aspecto, no processo de integração normativa, pois, como
dissemos à guisa de conclusão de Teoria do Direito e do Estado, "o Poder tem isto de característico
que, quanto mais ele concorre à positivação do Direito, mais se prende ao Direito declarado e mais
por este é circunscrito"25.
25. Op. cit., pág. 78, onde desenvolvo a tese da Jurisfação do Poder.
Direito e Poder são termos inseparáveis, mas será vão querer reduzir o primeiro ao segundo,
pretendendo transformá-lo em simples qualidade ou energia da norma de direito, da própria regra em
seu momento de eficácia concreta, como tem sido sustentado, por exemplo, por Georges Burdeau,
um dos mais sutis estudiosos do Poder 26.
26. Sobre a teoria do Poder de G EORGES BURDEAU, V. as considerações que já fizemos em 1940, em Teoria do Direito
e do Estado, págs. 94 e segs., com base em um ensaio, cujas teses fundamentais foram confirmadas e desenvolvidas em
seu Traité de Science Politique, Paris, vol. 1.
Assim como a integração normativa não esgota as virtualidades axiológicas (há sempre uma nova
exigência do justo, da paz etc.), da mesma forma a ordem jurídica não envolve e integra em seu
processo a totalidade das exigências fáticas, entre as quais se põem as oriundas do Poder, donde se
origina também a dinâmica bipolar e implicadora da juridicidade.
Não se pode afirmar, em suma, que, quando o Poder especifica a norma jurídica, através de uma
decisão, o faça fora do processo de atualização normativa do valor: ao contrário, o ato de decisão, a
tomada de posição axiológica, em virtude da qual a regra jurídica se constitui ou se aperfeiçoa, faz
parte integrante do mencionado processo, razão pela qual o Poder não surge como uma 4ª dimensão.
561o, a decisão do Poder, seja ele estatal, costumeiro, jurisdicional ou negociai, somente se torna
possível e atual em correlação, ou melhor, em função das valorações que o condicionam e que
legitimam a opção normativa in concreto. Faça-se abstração da correlação axiológico-normativa, e o
Poder se põe como mera força, insuscetível de qualificação jurídica positiva.
De outro lado, se fizermos abstração do "quantum" de positivação representado pelo Poder, as
exigências axiológico-jurídicas se esvaem em modelos normativos inoperantes, o que demonstra que
o problema do Poder só se compreende devidamente como o faz a teoria tridimensional, isto é, como
momento da tensão fático-axiológica na concreção do processo nomogenético 27.
27. Sobre os reflexos dessa concepção do Poder e da normatividade no concernente à teoria das fontes e dos modelos jurídicos, v. nossas Lições
Preliminares de Direito e O Direito como Experiência, cits.