Uma Família Inesperada para o Mafioso - Aline Pádua

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1° edição – junho 2023

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS A ALINE PÁDUA

Edição: AAA Design

Ilustração: Letícia K. Designer

Revisão: Sônia Carvalho


Sumário
Nota
Playlist
Sinopse
Prólogo
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
“E sei que você morre por mim
Bônus
Nota
Redes Sociais
Outros Livros
UMA GRAVIDEZ INESPERADA
CEO INESPERADO – meu ex-melhor amigo
O BEBÊ INESPERADO DO COWBOY
FELIZ NATAL, TORRES
UMA FAMÍLIA INESPERADA PARA O VIÚVO
GRÁVIDA DO CEO QUE NÃO ME AMA
O CASAMENTO DO CEO POR UM BEBÊ
A FILHA DO VIÚVO QUE ME ODEIA
GRÁVIDA EM UM CASAMENTO POR CONTRATO
UM CASAMENTO DE MENTIRA PARA O CEO
GRÁVIDA DO COWBOY QUE NÃO ME AMA
UMA FILHA INESPERADA PARA O CEO
UMA FILHA INESPERADA NA MÁFIA
GRÁVIDA DO MAFIOSO QUE NÃO ME AMA
REJEITADA POR UM MAFIOSO
Nota

Olá, minha gente!

Prontas para continuarmos a Família Kang?

Chae Kang já deu as caras nos três livros anteriores que

envolvem os Kang. Eles estarão listados abaixo.

Eu recomendo a leitura dos anteriores, mas não é

necessária a leitura de outro livro para o entendimento deste!

Um aviso importante é que os personagens são

estrangeiros, e então falam várias línguas, e em alguns momentos

será especificado qual falarão, e em outras não.

E um ALERTA: esse livro contém linguagem e


descrições explícitas, tratando-se de abusos psicológico e

físico, violência e luto.


E se mesmo assim, escolheu essa história, espero de

coração, que seja um bom tempo ao lado dela. Temos um


mafioso, com direito a casamento por contrato, família inesperada,

uma garotinha fofa e uma personagem principal para colocarem


em um potinho e proteger. Espero que se sintam assim durante a

leitura.

Boa leitura!

Com muito amor (e cariño),

Aline
Playlist

Posicione a câmera do seu celular para ler o QR Code e conheça um pouquinho


das músicas que inspiraram este livro. Caso não consiga ter acesso, clique aqui
Sinopse

Sara Hernández ficou viúva aos vinte e dois anos, com


uma filha de quatro anos, e fará de tudo para protegê-la. Até
mesmo, se casar por contrato com um homem estrangeiro, que

pertence à máfia mais respeitada e temida.

Chae Kang está no México por uma razão: se

responsabilizar pela máfia da sua família e fazer o Cartel se

reerguer. Ele só não esperava encontrar algo além do seu

objetivo e trabalho: uma família inesperada.


Prólogo

“Oh, irmão, nossa conexão é mais profunda que a tinta

Das tatuagens em nossa pele

Embora não compartilhemos o mesmo sangue

Você é meu irmão e eu te amo, essa é a verdade”[1]

Existiam muitas especulações, teorias e dúvidas sobre o


que os pertencentes à família Kang, de fato eram. Eles
começaram nada mais como uma vingança. Dois adolescentes de

uma família poderosa, que viram a família ser morta por dinheiro e

ganância. Os mesmos adolescentes, acabaram por vingar um a


um, todos aqueles que machucaram quem amavam. Até que não

restou ninguém, e quando viram que existiam muitos outros que

passavam pelo mesmo, e não tinham chance, eles sabiam o que


fazer.
Os Kang nasceram para se vingar, e era o que faziam.

Vingavam-se por aqueles que não tinham como se defender.


Assim como eles, quando crianças, dois irmãos gêmeos, uma

menina e um menino, que tiveram tudo tirado de si, e mesmo que

não fosse possível recuperar, eles se reergueram, para ter sua


vingança.

E transformaram suas mãos manchadas de sangue, para


com aqueles que na visão deles, mereciam ser levados ao

inferno, que apenas eles sabiam fazer. Se Ha-yun Kang e Dae-

jung Kang não tivessem se vingado, talvez os Kang não


existissem até os dias atuais. Porém, eles o fizeram, e firmaram

seu nome no mundo obscuro e ilegal. Muitas vezes, os justiceiros

de uns. Outras vezes, os diabos de outros.

Porém, o que poucos sabiam, era que existia uma família,

que eles construíram a partir de si. Dos adolescentes e crianças

que salvaram, àqueles que não conseguiam ver nada além da dor

e sofrimento à sua frente, e não escolheriam seguir uma vida

comum, eles tinham a opção – de ser um Kang. Entretanto, existia

apenas um legado: não se nasce um Kang, se escolhe ser um. E


todos tinham seu momento de escolha.
Todos os que carregavam o sobrenome e o brasão daquela
família, o escolheram. Era uma vida difícil, se olhassem para as

dualidades que enfrentariam, entre ser um monstro e um salvador.

Mas e se para salvar, fosse necessário ser um monstro? Eles

faziam o que era necessário.

— Um dia Vincenzo vai assumir a família — Jeon falou, e

eu apenas encarava minhas mãos, que tinha machucado por dar

um soco errado, tamanha minha raiva da minha última missão.

— E se Dove assumir? — indaguei, sem conseguir me

deixar de fora.

Senti os olhares sobre mim, e dei de ombros. A realidade

era que eu realmente considerava três pessoas para serem

chefes tão bons quanto Cha Kang o foi. Era até mesmo estranho

saber que ele seria substituído, contudo, ele tinha escolhido uma

vida mais calma pela sua idade, e o certo era que um de nós

assumisse. Porém, nunca me veria naquela posição. Ser chefe de


uma família, nunca pareceu o meu papel.

— Por que a gente fica pensando nisso? — Hari


perguntou, enquanto Kalel se aproximava dela, e passava um

braço em seu ombro.


Eles eram completamente óbvios. E só não perdiam para

Hinata e Jeon, que pareciam cegos demais para admitir o que


sentiam.

— Porque eles gostam de discutir até pelo que não lhes diz
respeito.

Kalel falou, e apenas me vi pegando a estátua que ficava

na mesinha ao meu lado, e atirando em sua direção. Não


diferente de mim, porém, menos agressivo, Jeon tinha jogado

uma almofada. Infelizmente, nenhum dois o acertou.

— Não é como se os dois discutindo isso, fosse mudar

alguma coisa. — Hinata provocou, encarando alguns papéis


espalhados sobre a mesa.

Cada um de nós tinha um papel ali, que encontramos,


enquanto treinávamos para ser o que quiséssemos. A escolha

sempre era nossa, de ser um Kang ou não. E todos nós, optamos


por ficar. Cha Kang tinha me mostrado o que era ser um Kang, e
Vincenzo tinha me feito escolher ficar naquela família.

A gargalhada de Hinata me tirou dos pensamentos e a


encarei curioso.
— É sobre a gente, não é? — Hari indagou, como se já

sabendo do que se tratava.

— Isso aqui é uma definição perfeita. — Soltou um gritinho,

como se tentando chamar atenção de todos, e eu já estava


prestando atenção.

— Alguma morte que eu deveria saber? — Dove descia as


escadas, com uma xícara em mãos, claramente sem entender
nada.

— Dos mais novos para os mais velhos, eles têm


definições sobre os Kang. Mesmo que tenham errado a ordem

que colocaram Hari Unnie[2], mas ok. — Hina limpou a garganta, e

fiquei ainda mais curioso sobre. — Hinata, a que tem um sorriso


fofo, porém é ardilosa, e parece que não te mataria, mas mataria

em menos de dois segundos. — Ri de lado, porque fazia todo


sentido.

— Transcrevi exatamente o que disseram na gravação que


fiz, sem uma palavra a mais. — Hari rebateu, e ela fez uma
careta.

— Ofendida pela parte de precisar de mais um segundo. —


Reclamou, e eu sabia que ela tinha um ego muito parecido com o
meu.

— E vamos para Hari, a que tem um sorriso fofo também,

mas as cores de cabelo são tão variadas quanto as formas que


ela sabe matar.

— Achei um pouco exagerado, mas ok. — A careta no

rosto de Hari era impagável. — Não tem como eu ter alguma


fama.

— Os cabelos são um marco — falei, sabendo do que já


tinha escutado por aí. — É minha vez, vai Hina! — animei-me,
esperando algo que pudesse amaciar meu ego.

— Chae tem a expressão fechada, mas pode te esmagar


como uma formiga. — Fiquei esperando por mais, sabendo que

aquilo ali, não chegava nem perto do que eu era. Nem no mínimo
do mínimo.

— Continuando... — Hinata prosseguiu. — Kalel, tem um


sorriso fofo, mas mentiroso, porque é o diabo que todos

conhecem.

A tensão que se formou era nítida, principalmente pela


preocupação com a qual Hari encarou Kalel. Mesmo que nunca

tivesse sido dito, era claro que a forma como chamavam Kalel,
muitas vezes, o atingia. Ele não demonstrava, mas eu conseguia
analisá-lo muito bem.

— Estou me sentindo ofendido, como Hina falou. —


Reclamei, tentando mudar o clima.

— Parece até que são elogios, Chae — Dove Noona[3]


rebateu, sentando-se na poltrona perto da porta de entrada. —

São pessoas de outra máfia descrevendo os Kang, o que

esperava?

— Chamaram Kalel de diabo... — pareceu explicar o óbvio.

— Eu faço coisas muito piores, e ele leva o nome ruim, Noona?

Aquela pergunta era totalmente válida. Nunca entendi por

que Kalel levava tal fama. Mesmo sendo o melhor torturador entre
nós, com toda certeza, ele não era o mais cruel.

— Vou fingir que não ouvi isso, para não ter que te bater —

Jeon hyung[4] se intrometeu, batendo uma das mãos na testa. —

Pode pular o meu...

— Jeon Kang, o segundo provável chefe, caso Vincenzo

não seja eleito. E bom, ele é como uma sombra. Não sabemos

nada, a não ser, daqueles que o temem.


— Isso foi muito profundo — ele disse, como se estivesse

surpreso.

— Dove Kang ou posso dizer rainha da máfia? — Hinata

leu, encarando Hari, que assentiu em sua direção.

— Foi realmente em tom de pergunta que o homem falou


— Hari explicou.

— Uma flor perfeita, mortal e cruel como a noite sem

estrelas. — Foi a vez de todos olharmos para Dove, que parou

com seu chá no meio do caminho.

— Que coisa cafona — reclamou, e eu tive que gargalhar.

Ouvimos o barulho na porta da frente sendo aberta, e

Vincenzo passou por ela, mexendo em sua gravata, claramente

cansado.

— Qual a piada?

— Nem queira saber, irmão. — Dove rebateu, ele a

encarou, e depois a todos nós.

— Vá colocar uma roupa limpa, Jeon — exigiu, e foi para


perto de Hari e Hinata, como se tentando compreender o que

acontecia. — Leitura de relatório?


— Vincenzo Kang ou melhor dizendo Baba Yaga... Ele é

realmente o pior pesadelo que alguém pode encontrar, em carne

e osso. Nunca seja um problema para Vincenzo Kang.

O silêncio tomou toda a sala, e Vincenzo parecia sequer


ligar para aquilo. Existia algo nele, que não sabia se era uma

bênção ou uma maldição – ele sabia ser completamente neutro,

em qualquer momento que desejasse.

— Melhor do que diabo — Kalel falou e uma gargalhada

saiu por minha garganta e apenas Dove e Vincenzo não

acompanharam.

Vendo-nos ali, eu só conseguia pensar que em momento


algum, o Chae do passado imaginava que acreditaria em uma

família. Muito menos, que se sentiria parte de algo maior do que a

própria morte. Contudo, eles me entregavam aquilo. Os Kang me


faziam acreditar em destino, e de que alguma forma, você vai

estar, onde deve estar. Mesmo que não entenda de primeira, em

algum momento, você vai entender.

E eles me mostravam, todos os dias, que eu deveria estar


bem ali. Como um Kang. Sempre como um.
Capítulo 01

“Tenho um nó na garganta

Tenho um mapa que me leva para outro país

O rascunho de uma carta

Uma história e muita vontade de poder viver”[5]

Anos depois...

SARA

Olhei para o homem à minha frente, o sangue escorrendo

por seu corpo, da mesma forma que o vi fazer tantas e tantas


vezes. Da mesma forma que jurou fazer com a nossa filha, caso

eu não o obedecesse.
E agora, ele sangrava diante de mim.

Sangrava para morrer, pelas mãos daqueles que

descobriram quem ele era. O que ele fazia, enquanto fingia ser

um chefe de Cartel, que ainda prezava pelas tradições. As quais,


no fim, ele destruiu.

— Sara...

Meu nome saiu da sua boca, e pela primeira vez, eu não


senti medo. Porque ele estava preso, em todas as partes, cortes

em toda sua pele, álcool contra a carne, fazendo-o gritar.

— Senhora Ot... — não olhei para quem me chamou,

porque aquele não era o meu sobrenome. Nunca deveria ter sido.

— Senhora Hernández?

— Sim, Ramon?

— Quer ter uma chance? — indagou, mostrando-me as

facas colocadas sobre a mesa de madeira improvisada, no centro

da cidade que era a sede do Cartel, e onde todos poderiam ver, o

quanto se pagava, por ser um traidor do próprio povo. — A


senhorita merece isso.

— Eu só quero vê-lo sangrar — falei, e dei passos atrás,


vendo os outros, que tinham ódio, talvez não tanto quanto eu, o
acertarem. Era a primeira vez que via o meu abusador,
completamente indefeso. E depois de anos e mais anos, sem

motivos, além de Matê para ter um sorriso no rosto, eu deixei que

um se abrisse.

A cada grito dele. A cada gota de sangue que escorria. A

cada implorar.

Eu me lembrava dos gritos que não pude dar.

Eu sabia do quanto eu implorei para que não fosse ele.

Eu senti o meu sangue, quase me matar, porque ele se

negou ao mínimo.

E naquela noite, vendo-o ser torturado, lentamente, e

quase não aguentando a cada nova ferida, eu soube que nunca

seria o suficiente. Nunca o suficiente, para o tamanho mal que ele

me fez, e fez para tantas pessoas.

CHAE
Era um dia qualquer.

Olhando para os meus computadores, enfurnado no meu


quarto na mansão Kang. Sabendo que talvez fosse o único em

casa, e pensando se não deveria ter ido para o meu apartamento.


Comi mais um pedaço do meu salgadinho apimentado, e um
longo gole de cerveja.

Nada de novo.

Nada a ser procurado naquele momento.

O caos me mantinha vivo, mas a calmaria era o que me


assustava. O que me lembrava do porquê eu preferia sempre a

linha de frente, sem qualquer exceção.

Cliquei numa antiga pasta de arquivos, e o abri. Por alguns

segundos, fiquei analisando a tela, sem saber o porquê sempre


voltava para aquela exata foto. Algo ali, me fazia querer entender

o que se passava na mente de uma pessoa completamente


desconhecida.

Talvez fosse o que eu sabia.

Talvez fosse pelo que descobri recentemente.


Talvez fosse por ter aquela gana de querer sempre analisar

e entender todos. Mas naquela foto em específico, parecia não


funcionar. Então a minha parte favorita da música que estava

tocando no fundo chegou, e eu parei um momento, apenas me


levantando da cadeira, abrindo os braços e os flexionando.

— “Essa música é civilização, eu não posso sair, este é o


seu destino.

Meu rap é uma bússola quebrada, não tem ponteiro

Para aqueles que ouviram meu rap (você perguntou meu


nome)

Droga

Nós somos à prova de balas

Nós somos, nós somos à prova de balas...”

Toda vez que eu ouvia e cantava aquela música, apenas

pensava em mim, e em meus irmãos. De fato, gostaria, que todos


nós fôssemos à prova de balas, literalmente. Ouvi o barulho do

lado de fora, e olhei para a porta, que se abriu em segundos,


mostrando Cha hyung, o que me deixou completamente surpreso.

— Hyung?
— Gosto de como consigo surpreender, o mais esperto dos
Kang — falou e fui para perto dele, dando-lhe um forte abraço,
que o tirou do chão. — E o mais forte também.

— O que faz aqui, hyung?

— Eu pensei em vir em casa? — indagou, e o conhecia

bem, para saber que a Mansão Kang não era um lar para ele há
anos. Então, arqueei uma sobrancelha, e vi que ele me analisava.
— Parece que te ouvia esses dias, por esses corredores

cantando essa música e outras tantas.

— Eu ainda faço isso — falei, e vi-me apertando o

dispositivo no meu braço que deixaria a tela aberta, em modo de


espera, sabendo que ainda tinha aquela foto aberta. — Yumi

Noona veio também?

— Apenas eu. — Olhei-o confuso. — É algo sério, que

quero lhe pedir.

— O que quiser, hyung.

— Até mesmo um ano da sua vida, menino? — indagou,


ajeitando-se no terno, e passando uma das mãos pelos cabelos já
brancos.

— Sabe que te devo todos os anos da minha vida.


— Não, você não me deve nada — falou, e se aproximou,
colocando a mão em meu ombro.

Do mesmo jeito que ele tinha feito muitos anos atrás. Para
ser mais exato, quinze anos. Quando eu era apenas um
adolescente, sem qualquer destino, que não fosse sujar minhas

mãos para aqueles que escolheram me gerar. E ele me deu uma


alternativa, e me mostrou o que era família. O que eu poderia ser.
Na verdade, quem eu era.

— O que precisa, hyung?

— Preciso que seja o novo chefe do Cartel no México,


agora que Guillermo Ottis foi derrubado. — Olhei-o perplexo. —

Preciso que se case com Sara Hernández, e coloque o Cartel no

nível que apenas um Kang pode. E você é o Kang em quem

confio isso.

De tudo que ele poderia me dizer, aquelas eram palavras

que não esperava. Não depois de tanto tempo sem vê-lo, e agora,

tendo a proposta de assumir um lugar, que nenhum de nós antes

o fez. Sem nunca ter almejado ser o próprio chefe dos Kang,
como eu, apenas o mais esforçado, poderia ser um chefe de

Cartel?
Porém, se Cha Kang acreditava em mim. Então, eu teria de

acreditar.
Capítulo 02

“Posso ver daqui

Minhas lembranças te perseguindo

Posso ver o perfil

Da minha sombra na parede”[6]

CHAE

Olhei ao redor do que restava, preso no alto de uma

pilastra. O que sobrava do chefe daquele Cartel, morto pelo

próprio povo que já não mais admitia o que ele fazia. Revoluções
são necessárias – era algo que sempre pensei. Era apenas uma

casca sem vida, com pedaços faltando e partes internas expostas.


Porco e traidor eram uma das palavras cravadas contra a pele de
Guillermo Ottis. Um fim que não devia ser o que ele esperava,

mas que com certeza, mereceu.

Se fosse eu, o encarregado, faria ainda pior com ele.

— Mamãe diz que não é bom encarar os mortos.

Pisquei algumas vezes, arrumando meu boné, e então me

virei, ao som da voz infantil feminina, que chupava um picolé,

como se não tivesse um homem pendurado no final daquela rua,


no ponto mais alto da cidade, para que todos se lembrassem, do

que um homem sem valores ganhava como resposta.

— E então por que está aqui, encarando um morto?

— Não encarei ele — respondeu esperta, e por um


segundo, me vi lembrando de Jae. Notei que o olhar dele, em

momento algum pareceu ir até o corpo, e apenas focava em mim.


— Quem é você?

Eu adorava falar espanhol, e descobri ali, que parecia

ainda mais legal, quando vinha através de crianças. O sotaque

carregado de uma pequenina mexicana, que me encarava, como


se tentando descobrir quem era.

— Não sou daqui — respondi simplesmente.


— Pessoas sem autorização não entram no território
principal do Cartel.

Agachei-me, ainda ficando maior que ela, que parecia falar


aquilo com completa noção do que significava.

— Parece que entende de muitas coisas... — ajeitei meu

boné, para que ela ainda não conseguisse ver por completo meu

rosto. — Quantos anos tem?

— Quatro — assenti, pensando em como ela parecia ter

mais do que aquilo. — E você? — a pergunta genuína, quase me


fez rir.

— Trinta — respondi, e ela me analisou, enquanto termina

seu picolé. — Deveria falar com estranhos?

— Deveria encarar os mortos? — rebateu, e sabia que ela

se daria muito bem como meu sobrinho. Argumentativos ao


extremo. Contudo, ela era dois anos mais nova, e era óbvio que

ela teve que aprender muito cedo, partes sobre aquele lugar.

— Agora eu acho que aprendi que não — respondi, e ela

assentiu, como que satisfeita. — Por que está sozinha aqui? —


indaguei, e senti o bipe em meu ponto. Apenas um – o que

indicava que era Vincenzo.


— Para checar.

De repente, eu não consegui entender.

— O que precisa ser checado de um lugar tão alto?

— De que mesmo assim, os mortos estão mais perto do


inferno do que de uma segunda chance.

Suas palavras me fizeram travar. Em trinta anos, de tudo


que eu tinha vivido, de tudo o que eu já havia feito ou recebido,

nunca imaginei uma criança tão pequena, falando assim. O


mundo tinha girado, e por alguma inocência de minha parte,
talvez eu tivesse imaginado que estivesse melhor. Ao menos,

para pequenos como ela. Porém, a realidade que enfrentava, todo


dia, me mostrava o contrário.

E poucos minutos de conversa com uma criança do outro


lado do mundo, me mostrava que a imposição de um

amadurecimento, ainda parecia latente.

— Está garantindo que Ottis não volte à vida? — indaguei,


enquanto ela encarava qualquer lugar, menos ele.

— Basicamente. — Deu de ombros, como se apenas fosse


simples.
— Por quê? — indaguei, apertando meu ponto e pedindo

para Vincenzo esperar. — Por que uma criança de quatro anos


precisa disso?

— Matê!

Um grito masculino, fez o olhar dela se modificar, e notei a

forma como seu pequeno corpo parecia assustado.

— Matê, não pode...

O homem tentou tocá-la, mas ela deu dois passos atrás, o


que me fez apenas assistir à cena.

— E ainda mais falar com... Quem é você?

E naquele instante, eu tinha a vantagem. Eu sabia


exatamente quem era o homem à minha frente. O responsável

por vender a própria irmã virgem, de dezoito anos, por uma dívida
de jogo, e para a pior pessoa possível – Guillermo Ottis. Ottis

estava morto, e o povo do Cartel se negava a aceitar que Roberto


fosse algum tipo de sucessor, já que a sua irmã ainda era muito
nova e tinha uma filha.

Uma filha de quatro anos.

Uma de quem não existiam fotos e nem informações


pessoais.
Algo que eu só poderia descobrir vindo até o México.

Olhei de relance para a garotinha que agora eu sabia se

chamar Matê e o quebra-cabeça foi se juntando. Eu permanecia


agachado, o que não permitia Roberto de ver meus claros traços
orientais.

— Que eu saiba, está proibido de se aproximar de sua


sobrinha — falei, e não precisei levantar o olhar, para saber que o
homem à minha frente estava inconformado. — As leis do Cartel

têm que ser respeitadas, certo?

— Sim — a reposta de Matê soou tão baixa, que apenas

eu devo ter escutado.

— Eu sou o futuro desse Cartel, e você pensa que é quem

para...

Aceitei a chamada no ponto de meu hyung e me adiantei:

encontrei o rato, dito em coreano, e ouvi apenas o suspiro de


Vincenzo do outro lado, e a criança está do meu lado, nesse

momento.

— Seja direto, como pedi — falou, e assenti, como se ele


pudesse te ver. — Como um Kang, Chae?

— Sempre como um Kang, hyung.


Desfiz a ligação, e me levantei, lentamente, vendo o
semblante do homem se transformar, e um sorriso felino se abriu
no meu rosto. Ouvi o homem diante de mim, começar a tentar

falar alguma coisa, mas claramente, se enrolando. Ele não


deveria ter entendido nada do que eu disse, mas com certeza,

Kang não era algo que poderia ignorar.

— Matê, temos que ir agora...

— Não — ela respondeu, e ele tentou segurá-la à força

com o braço, do qual ela se soltou e então ficou em posição de

briga, o resto do picolé indo para o chão.

— A garotinha disse não — falei, e dei um passo à frente,

como se a protegendo dele. — Vai mesmo querer que eu diga

esse não?

— Não tem nenhum direito ainda — respondeu, e notei-o


quase perder a respiração, quando dei mais um passo para perto.

— Eu sou um Kang. — Peguei minha mão e levei até o

ombro dele, dando um leve aperto, o suficiente para deixar claro

que eu poderia deslocá-lo se quisesse, e vi-o quase gritar. Mas


não na frente de crianças. — Eu tenho todo o direito de punir

quem deve ser punido.


— Por favor, eu imploro... Por favor, apenas me deixe...

— Por que está atrás da criança?

— Porque ele quer me usar contra minha mãe — a

garotinha respondeu, e olhei dela para ele, sabendo que não

precisava indagar mais nada.

— Usar uma criança é baixo, até mesmo para ratos como

você. — Neguei com a cabeça, apertando ainda mais seu ombro,

e fazendo-o soltar um grito. — Vai voltar pelo mesmo caminho

que veio e ficar longe dela... — fiz um sinal com a cabeça para a
garotinha. — E longe da sua irmã. — Ele me encarou perplexo, e

quase chorando. E sabia que faria qualquer promessa ali, pela

dor que sentia. — E se eu descobrir, e eu vou, que tentou se


aproximar novamente delas, não será apenas Ottis na ponta

desse morro.

— Por favor, Kang.

— Senhor Kang, para você. — Rebati, e então quebrei um


osso do seu ombro, vendo-o quase desmaiar. — Vá, agora!

Ele então saiu, como que desesperado, arrastando-se

escadas abaixo e talvez, se ele caísse dali, me pouparia o


trabalho de matá-lo no futuro. E eu tinha certeza de que em algum

momento, o faria.

— Kang... da máfia Kang?

— Pode me chamar de Chae. — Virei-me para ela, e abri

um sorriso. — Agora entendi como sabe tanto sobre o Cartel e

claramente, amadureceu muito cedo.

— Não posso dizer quem sou — falou baixinho, e eu


assenti.

— Você não precisou. — Pisquei um olho para ela. — Eu

só juntei um mais um, e agora sei que é filha de Sara Ottis.

— Sara Hernández. — Corrigiu-me, e eu assenti.

— Então, Matê Hernández... — vi-a ajeitar sua postura e

me encarar corajosa. — Por que não compramos outro picolé

para você e depois te levo até em casa?

— O Cartel chamou os Kang, não foi? — assenti, e guardei


a parte de que como um Kang foi responsável por praticamente

destruir o controle de Guillermo Ottis de dentro para fora, outro

agora vinha para assumir a responsabilidade.

Kalel foi o diabo que lhes mostrou o inferno que aceitaram

viver.
E eu era aquele que teria que dar um jeito de colocar

ordem onde não se via há muito tempo.

Começamos a descer as escadas, que dariam para uma

parte de mata ou para o centro da cidade, no local em que o

conselho do Cartel se estabeleceu há muitos anos, e agora, se

reconstruíam. Eu tinha vindo pela mata, justamente, para não


saberem que seu pedido foi aceito.

Havia dúvidas e perguntas a serem feitas. Além de

questões a serem levantadas, e não precisava anunciar minha


chegada, para que tudo estivesse em ordem, ou parecesse.

— Onde está sua mãe?

— Ela deve estar em mais uma reunião com os altos

membros do Cartel — respondeu simplesmente, e eu assenti. —


Por que não está nela?

— Não fui chamado — respondi simplesmente. — E você?

— Eu tenho quatro anos — rebateu, como se fosse óbvio,


franzindo o cenho.

— Pelo jeito que fala, poderia facilmente estar nessas

reuniões — comentei por cima. — Mas ainda é muito nova, tem

razão.
— Com quantos anos começou a ser parte da máfia? —

perguntou, e as escadas estavam terminando, e com certeza,

agora todos notariam minha presença, se Roberto não tivesse já

gritado a todos os cantos.

— Desde que eu nasci? — Dei de ombros, sem nem eu

saber a resposta correta. — E você, desde quanto está no Cartel?

— emendei a conversa, e então senti olhares sobre nós.

— Sabe que é desde quando nasci — respondeu esperta,

o que me fez rir, e tirei meu boné, passando as mãos pelos

cabelos, e tentando ajeitá-los. Os olhares das ruas pararam em

nós. Para ser mais exato – em mim. — Acho que ninguém aqui
esperava um Kang.

— O que você esperava? — perguntei, seguindo-a pela

rua, e acreditava que iríamos até alguma sorveteria.

— Que você seja legal com a minha mãe — falou de


repente, parando um passo. — Você vai ser?

— Por que eu não seria? — rebati, e dei de ombros.

— Homens poderosos não são bons.

— Discordaria disso, quando conhecesse meus irmãos

mais velhos, principalmente...


— Vincenzo Kang?

— Como sabe tanto sobre os Kang?

— Matê!

O grito agora era feminino e de claro desespero. Vi a

garotinha então sorrir e correr na direção do mesmo, e tive o

vislumbre de cabelos castanhos, ao redor do pequeno corpo que


a abraçava. Quando o olhar parou no meu, não tive muito tempo

para conseguir lê-la.

— Chegou antes do esperado...

— De ser chamado, eu sei — falei para Ramon Lopez, que


tomou minha atenção. — Precisava entender algumas coisas,

antes de prosseguirmos.

— Espero que tenha sido o suficiente.

— O acordo já foi aceito, fique tranquilo — falei, vendo o

homem, talvez vinte anos mais velho do que eu, soltando o ar

com força. — Sei que tem sido difícil por aqui.

— Os boatos se espalham?

— Os Kang procuram saber. — Fui honesto. — E às vezes,

na maioria, não gostamos do que vemos.

— Precisamos de ajuda, você sabe.


— É por isso que estou aqui.

De repente, meu olhar foi em direção à mulher que

claramente chamava a atenção da filha, que sorria de forma

travessa. Ela parecia ter envelhecido mais do que cinco anos, ao


me recordar, de quando a vi pela primeira vez. Uma foto não

parecia ser tampouco fiel a ela, não mesmo. Mesmo assim, a

tristeza parecia espalhada por cada canto dela, mesmo que não

parecesse querer demonstrar. Seu olhar parou no meu, como se


me buscando, e vi a forma como pareceu erguer uma barreira

entre nós.

E agora, eu me perguntava, internamente: como eu, Chae


Kang, saberia ser marido de alguém?
Capítulo 03

“Apesar de algumas histórias

E da chuva no meio do caminho

Sei que o destino é ao seu lado”[7]

SARA

— Por que ele estava com a minha filha? — perguntei para


Ramon, enquanto fechava o quarto de Matê, e sem de fato

querer, a trancava lá dentro. — Por quê?

— Ele é um Kang, Sara. — Olhei-o com a mesma

preocupação. — Eles não...

— Eu não me importo com quem ele é — respondi de uma

vez. — Ele continua sendo um homem, da pior máfia do mundo.


— A mais poderosa, mas aceito a parte do pior também.

A voz do homem até então desconhecido nos acertou.

Segui pelo corredor, para a sala que ele estava parado, ou onde

deveria ter estado. O sotaque dele era carregado, mesmo em um


espanhol impecável.

— Pode perguntar para mim — ele falou, encostado contra

uma das pilastras da sala principal, e claramente despreocupado.

— Por que não está na sala que lhe dissemos para estar?

— Estava conhecendo minha futura casa, e honestamente,


não gostei de nada daqui.

Falou, passando as mãos pela blusa de gola alta que


usava, tampando quase todo seu torso, sobre ela um colete.

Calças da mesma cor – preta – que não marcavam suas pernas,


mas que estavam justas dentro da grande bota em estilo militar.

Os olhos me acompanhado a cada passo, e eu tentava assimilar

quem ele era comparado ao que me foi mostrado em fotos sobre

ele.

— Não tem por que se sentir em casa, senhor Kang.

— Eu tenho por que pensar em me sentir assim, de alguma


maneira, senhora Hernández.
— Senhorita — corrigiu-o, e parei do outro lado da sala,
não me sentando, para permanecer de alguma maneira, não tão

pequena perto dele.

— Essa família gosta de corrigir — comentou, um sorriso

de lado, que quase me tirou a paz. — Mas já que não quer

perguntar, conheci sua filha pelo mais puro acaso, ao lado do

corpo de Ottis, onde o seu irmão apareceu minutos depois, para

tentar levá-la de lá, e eu quebrei um osso do ombro dele, e ele

saiu chorando.

Virei meu olhar para Ramon, que parecia furioso.

— Roberto deveria estar preso — falou, e eu assenti. — E

Matê com as babás que...

— Que não conseguem segurá-la, de forma alguma. —

Suspirei fundo, cansada. Era algo exaustivo, não saber como

proteger sua filha, mesmo que seu maior medo tivesse

desparecido, mas agora, outro talvez pior, estivesse surgindo.

Os Kang eram conhecidos não só por serem respeitados,

mas por serem temidos. Todos os temiam. Ninguém queria estar

em qualquer lista deles.


— Mais alguma pergunta? — perguntou, cruzando os

braços, e notei a forma como seus olhos apenas ficavam fixos nos
meus, e em mais nada. — Algum questionamento?

— Esperávamos por Jeon Kang. — Ramon tomou a frente.


— Quando Vincenzo Kang fez a proposta, imaginamos que...

— Eu sei que sim. — Deu de ombros. — Jeon tem outras

prioridades, e eu, bom... sou o melhor em espanhol naquela casa.

— Não é uma brincadeira — falei, engolindo em seco. —

Pode parecer uma, para um homem que vai se casar para tomar
conta de um Cartel, mas eu tenho uma filha, e quero você longe

dela, assim como de mim.

Eu estava com toda a coragem que existia em meu ser

para colocar aquilo para fora. Ele pareceu absorver minhas


palavras, e então se afastou da pilastra, mas não deu qualquer

passo.

— Não sou Guillermo Ottis. — Deixou claro. — E se tem

uma coisa que podem esperar de mim aqui, é respeito. — Olhou-


me profundamente. — Não busco e não quero nada de você,
senhorita Hernández. Estou aqui para fazer o meu trabalho, e
quando ele tiver feito, estarei de volta para o lugar que é minha

casa.

Assenti, agora era minha vez de absorver o que ele disse,

e de certa forma, tentando acreditar em suas palavras. Por que


parecia tão fácil acreditar assim? Por que ele parecia tão

honesto?

— Vamos deixar isso claro no contrato que será feito —


exigi, olhando de relance para Rámon.

— Podemos ter um momento em particular? — perguntou


de repente, o que me deixou em completo alerta. — Apenas

Ramon na sala ao lado.

— Eu... — minha voz quase não saiu, mas engoli meu

medo, e todo o pavor que me tomou. — Pode esperar na sala ao


lado, por gentileza, Ramon.

— Qualquer coisa, Sara.

Ele então saiu, e o cômodo que deveria ser o maior da


casa, parecia minúsculo, diante dos olhos do homem à minha

frente. Olhos tão escuros que me assustava o fato de que não


existia qualquer brilho neles.
— Não estou aqui para ser um novo Guillermo, que vai
cometer atrocidades contra você — falou de repente, um tom
totalmente sério, e me encarando. Segurei-me para não indagar

sobre o que ele sabia, mas ele pareceu facilmente me ler. — Sei o
que acontecia nessa casa, e sei o que ele fazia. — Fiquei

paralisada. — Não vai voltar para aquilo, nunca mais. Nem você,
nem sua filha. Não enquanto eu estiver aqui, e quando eu me for,
vou garantir de que não aconteça também.

— Não confio em você. — Fui honesta.

— E eu também não confio em você — rebateu, seu tom

mudando um pouco. — É minha futura esposa por contrato, e


vamos tentar colocar o seu Cartel em ordem. Esse lugar é seu,

não meu.

— Por que aceitou fazer isso? — perguntei, o que vinha

atormentando minhas noites insones, e os pensamentos diários.


— Por quê?

— Porque é o que uma família faz. — Deu de ombros. —


Não apenas porque sou um Kang, mas justamente porque sou
um.

Olhei-o sem entender.


A única família que eu conheci e que valia qualquer coisa
era minha filha. Porém, o sentimento claro em sua voz, de que
faria o que fosse necessário, deixou-me um pouco perdida.

— Acho que não sabe o que é isso, e espero que um dia


consiga, mas agora... Agora vamos ser o que esse lugar precisa,

limpar a sujeira que Ottis deixou.

— Parece tão simples, aparecendo aqui e dizendo tudo


isso como se...

— Se fosse fácil? — complementou, e eu assenti. —

Nunca é fácil. — Olhei-o, naquele momento, tentando entender a


profundidade de suas palavras. — Mas se é sua

responsabilidade, você tem que fazer.

— Eu...

Fiquei em silêncio, as palavras sumindo de minha boca.

— Eu sei que deveria estar grata, por estar aqui para

ajudar, mas...

— Não confia, eu sei — falou, e não pareceu nem um

pouco ofendido. — Como pode confiar em alguém que conheceu


há poucos minutos?
A maior questão que se passava por minha mente era:

como ele pode parecer tão confiável em poucos minutos? E


aquilo me assustava por completo.

— Talvez um dia confie, talvez nunca aconteça... O

importante é que fará desse lugar, um lugar seguro, e nada mais.

O barulho de batidas na porta, vindas do corredor, o fez

arquear uma sobrancelha, e me encarar.

— E não terá que trancar sua filha para protegê-la, no lugar

que deveria ser um lar.

Fiquei em silêncio, encarando-o como se tentando, achar

uma explicação racional para aquilo. Contudo, não tinha como ser

mais racional e certeira do que aquela. Vi-o apertar algo na

orelha, e suas palavras soaram em outro língua, enquanto eu


absorvia tudo o que acontecia.

CHAE
— Já a conheci, hyung — falei, sabendo da clara

preocupação que Vincenzo tinha, mesmo que não deixasse

transparecer. — Ela está sentada aqui na minha frente, para ser


honesto.

— Eu vou visitá-lo, em algumas semanas.

— Eu vou me mudar dessa casa — comentei, e fiz uma

careta, virando-me de lado. — É como um labirinto, e com


certeza, não um lugar para uma criança crescer.

— Jae te fez pensar sobre isso?

— A garotinha me lembra ele — confessei. — Mas por

enquanto é isso, hyung. Nada tão novo.

— Confio em você, Chae — falou, e sabia que ele o fazia.

— Como Cha Hyung sempre o faz.

Sabia que sim.

Os dois sempre o fizeram.

Mesmo nos meus piores momentos e no fato de quem eu

era, ou melhor, de quem um dia fui. Eles sempre estavam lá, para

me dar a mão e nunca duvidar do que fazia. Sabia que não era o
melhor, mas eu tentava, sempre ser. Mesmo que a melhor parte

de mim, fosse a mais vingativa e ruim de todos os Kang.


Se chamavam meu irmão mais velho de diabo, era porque

não sabiam o que eu fazia. Ninguém sabia ou preferia fingir não


saber. E eu tentava, apesar daquilo, ser uma pessoa boa. Para os

que mereciam. Para os que precisavam. E tanto Sara quanto

Matê claramente se encaixavam nos dois.

— Vou ficar bem, hyung — respondi, e sorri para o nada.


— Te ligo, qualquer coisa.

Ele desfez a ligação no ponto e me voltei para Sara, que

estava de cabeça baixa, cruzando os braços, e parecendo pensar


demais sobre algo. Olhando-a dali, parecia apenas uma mulher

jovem, como eu sabia – vinte e dois anos – completamente

sobrecarregada, e quase sem vida. E que vida ela teria tido ali?
Naqueles anos, presa a Ottis, e tendo que acertar apenas o pior.

— Precisamos procurar uma casa nova — falei de repente,

ela piscou algumas vezes e me encarou. — É minha única

exigência para o casamento.

— Não morar aqui?

— Alguma ideia de onde possa ser? — perguntei, e um

leve brilho, quase imperceptível passou por seus olhos. — Não


conheço aqui, não profundamente, então vou precisar que me

ajude.

— Que eu... eu ajude? — indagou, claramente confusa.

— Claro que sim — respondi, e tentei parecer o mais leve


possível. — Pode me mostrar onde é, já que não tenho uma

passagem de volta para Coréia tão cedo.

— Um ano de contrato, certo?

Assenti, e notei a forma como suas unhas estavam rentes


à carne, como se tivesse as roído até ali.

— Ou menos. — Dei de ombros. — Até que consiga ser a

chefe que eles querem.

— Eu não... — olhou-me perdida. — Eu não vou ser a

chefe do Cartel.

— Não é isso que eu vejo no futuro, mas... apenas o futuro

dirá.

Ela pareceu decidir não discutir e vi-a ir até o corredor,

onde as batidas ainda continuavam. Ela abriu a porta do quarto, e

entrou, já falando com a filha, enquanto eu encarava a grande

sala, torcendo para que tivesse qualquer lugar que fosse melhor
do que aquele.
Grades na janela.

Grades afiadas em muros baixos.

Caminhos estranhos pelo jardim, que tinha estátuas sem

sentido de Guillermo.

Eu sabia como era um lar seguro para uma família

poderosa, mas aquilo ali, parecia apenas uma prisão feita para
amaciar o ego de um homem que se achava no controle. E que

teve poder por tempo demais.

E algo em meu interior mostrava que, nada em minha vida,

que aconteceu por acaso, não tinha significado. E o fato de ter


encontrado, justamente por acaso, quem eu realmente buscava, e

ter visto nela, uma criança como meu sobrinho, me dava uma

nova tarefa.

Não ser apenas o chefe que passará o Cartel para a real

herdeira dele. Mas, sim ser um homem que pode mostrar que a

vida deve ser leve, principalmente, para uma criança de quatro

anos. E de alguma forma, pensei sem Sara, que era oito anos
mais nova, e não tinha sequer vivido por todo aquele tempo. Ela

apenas sobreviveu ao irmão. Ela apenas sobreviveu a Ottis.


Mas o que eles não sabiam, era que os mais fortes são
aqueles que resistem. E de alguma forma, queria poder ajudá-la a

entender, que não precisava ser forte e sobreviver. Que existia

vida após tudo o que passou.


Capítulo 04

“Ninguém pode pisotear sua liberdade

Caso queiram te calar, grite mais alto

Se você tiver fé, nada será capaz de te segurar

Não se contente com o seu nome escrito na parede

Na parede”[8]

SARA

— Ele parece um moço legal — Matê falou, suas mãos


unidas as minhas, sentadas no tapete do seu quarto. — Ele me

protegeu de Roberto.

— Nem todo mundo que parece legal, é, lembra? —


indaguei, e ela assentiu. — Não pode ficar indo lá, todos os dias,
cariño.

— Eu preciso ter certeza, mamá.

— Ottis não vai mais estar nas nossas vidas, de jeito

algum. — Olhei-a profundamente. — Não vai mais me ver sofrer

ou chorar.

— E se os Kang não forem a solução e...

— O quanto tem ouvido por aí? — perguntei, apertando

seus dedos com os meus, do jeito que fazíamos antes mesmo de

ela começar a falar.

De tudo de ruim que tinha me acontecido, e era

praticamente 99% da minha vida, Matê era a única parte boa.


Uma parte que eu me negava e prontificava de que qualquer um

pudesse arruinar.

— Eu sempre estou escutando aí, sabe disso... —

confessou, e encarei os olhos azuis dela, a única parte de si que

parecia ter herdado de Ottis. E infelizmente, eu sabia que apenas

com quatro anos, por mais que eu tenha tentado protegê-la, ela
odiava a cor deles. — Por que Chae está aqui?

— Chae?
— O senhor Kang me pediu para chamá-lo assim — falou
baixinho. — Mas só vou chamá-lo assim para você, mamá.

— Nós precisamos de alguém para assumir o Cartel, e


ninguém do conselho quer tentar organizar ou reorganizar o que

Guillermo deixou. — Era estranho ter aquela conversa com minha

filha, porém, eu sabia que a mentira nunca era uma parte boa, de

nada. — Chamaram um Kang para estar à frente do Cartel por

algum tempo, até termos um próximo chefe.

— Ou a senhora ser a chefe?

— Eu só quero ser sua mãe, Maria Teresa. — Trouxe suas

mãos até meus lábios, dando leve beijinhos. — Quero te tirar

dessa vida.

— E se eu tiver que ficar nela e lutar? Como a senhora fez

por todos esses anos... por mim, por nós duas.

— Não vai ter. — Olhei-a profundamente. — É a única

promessa que eu não vou quebrar, nunca.

— E onde entram os Kang?

— Eu vou me casar com Chae Kang, para que ele seja

parte do nosso povo, e assim, aceito pela metade que é contra. —

Seus olhinhos se arregalaram por um segundo, e logo voltaram,


como se ofuscados pela situação. — É algo que preciso fazer,

para podermos nos livrar de tudo.

— Mamá...

— Eu sei que não quer que eu me case novamente, eu


sei... — olhei-a com todo meu amor. — Mas daqui a um ano,
vamos estar do outro lado do mundo, e sorrindo, pensando que

apenas passou e foi necessário.

— Gosto do nosso país, não da nossa casa, mas... —

pareceu divagar. — Eu sinto muito por ter que...

— O que eu disse sobre sentir, pensar e agir como se

pudesse estar no controle de tudo com apenas quatro anos? —


Toquei seu rosto com carinho, e sorri para ela. — Apenas deixe

isso para sua mãe, ok?

— Chae está me devendo um picolé.

E de repente, ela era apenas uma criança novamente, e


me aliviava por dentro, vendo que mesmo com tudo que lhe
acertava, ela ainda tinha sua inocência, de se agarrar a pequenas

coisas.

— Por quê?
— Eu deixei cair o que está terminando, quando Roberto

apareceu, e estávamos descendo as escadas para o centro,


porque Chae Kang ia me pagar um picolé.

— Vou fazer com que ele pague isso, ok?

Ela sorriu, assentindo animada.

— Se te incomodar estar perto dele, a qualquer momento,


em qualquer momento mesmo... você vai me dizer?

— Sempre, mamá.

— Obrigada por isso, cariño.

Ela veio para os meus braços e me agarrei ao seu pequeno


corpo, assim como seu cheiro. Eu nunca tive um lar, uma família
ou algo parecido com aquilo. Sequer conseguiria explicar algo a

respeito. Porém, se existia uma palavra que a definiria, em minha


mente era: Matê. A minha pequena Maria Teresa, que mais uma

vez, me trazia a sanidade e um motivo para estar ali.

Batidas na porta me fizeram afastar dela, e vi-a se sentar

na cama, enquanto eu me levantava. Abri apenas o suficiente


para ver quem era do outro lado, e então encontrei o semblante

neutro e de alguma maneira não incômodo, de Chae. Era um


nome bonito e me vi imaginando como seria, o dizendo em voz
alta.

— Pensei se não seria melhor sair para comer algo,


enquanto me mostra essa parte central da cidade, onde estão as
pessoas mais importantes.

Os que sobraram na limpa que Kalel Kang, era o que


queria responder, mas assenti. Já que no fim, aquela limpa de um
Kang, fez com que finalmente, enxergassem quem Guillermo era.

Não um chefe ou líder, mas um ditador mercenário.

— Vai comprar meu picolé, senhor Kang? — Matê

perguntou, tentando colocar a cabeça para fora, e a segurei entre


o vão da porta.

— O que quiser comer, garotinha.

— Matê — corrigiu-o, imponente de um jeito que eu sequer

sabia como ela conseguia ser. Mas me deixava muito orgulhosa.


— E eu quero comer pizza, mamá.

— Então vamos à praça, e veremos isso, ok?

Ela concordou, correndo para dentro do quarto, e sabia

que ia colocar seus tênis. Fechei a porta atrás de mim, ficando do


lado de fora do cômodo e notei o olhar de Chae Kang sobre meu
corpo, de uma forma, que me fez querer escondê-lo.

— Por que está me olhando?

— Eu analiso pessoas, é o meu trabalho — falou, piscando


algumas vezes. — Desculpe se pareceu outra coisa.

— Eu só... — não sabia sequer o que dizer. Era tão

estranho tudo aquilo. A liberdade que surgiu junto à morte de


Guillermo. Eu sequer falava com qualquer outro homem durante

os anos em que me tornei a esposa dele, e agora, eu estava

trocando palavras com um estrangeiro, que era igualzinho, ou até


mais bonito, do que os atores que eu acompanhava em novelas –

as quais eram minhas únicas amigas naquele tempo todo.

O que eu poderia dizer?

Eu não sabia como conversar com alguém, além de


Ramon, que sempre foi meu segurança particular e de Matê, e

que com tudo que houve, nos protegeu e nos salvou do massacre

que foi instaurado por ali. Ao mesmo tempo que deixou claro, de

que o conselho e o povo, não permitiriam que fôssemos


machucadas. Mesmo assim, e em que eu poderia confiar?
A única pessoa que confiei na vida, no primeiro momento,

me vendeu a um chefe de Cartel, como um pagamento de dívida.


E agora, tentava a todo custo, usar a mim ou minha filha, para ser

o próximo chefe.

— Sua filha é mais falante — Chae falou, encarando o


chão, como se tentando não me deixar desconfortável. — Eu

tenho uma irmã que é calada, ao extremo, e está tudo bem —

esclareceu, como se pisando em ovos comigo, e fiquei me

sentindo pior. — Mas se quiser falar, qualquer coisa, sinta-se à


vontade.

— Eu... Eu não estou acostumada a ter voz — confessei,

não sabendo de onde saiu tamanha coragem. — É estranho estar


conversando com um homem que apenas ouvi falar em histórias e

que agora, vai ser meu marido, para que eu possa ser livre de

tudo isso, daqui a um ano.

— Vamos focar na parte que me interessa disso, então... O


que ouviu falar de mim? — perguntou, o olhar claramente curioso,

e fixo no meu, quase me fazendo desviar. — Sempre gosto de

saber sobre isso — assumiu.

— De que é o mais forte dos Kang — falei, lembrando-me

do que o conselho tinha discutido na semana que havia passado.


— O maior e mais forte, e de algum jeito, o mais inteligente

também.

— Kalel sempre fica com os adjetivos legais.

— Como diabo? — rebati, e ele assentiu, parecendo

completamente à vontade. — Por que alguém gostaria de ser

chamado assim?

— Os Kang têm uma visão diferente do que isso significa,


Sara — falou, e eu assenti. — Desculpe, eu não pedi antes e

deveria ter feito. — Olhei-o sem entender. — Posso te chamar de

Sara ou prefere que a chame de senhorita?

— Eu... — ninguém nunca tinha me indagado algo assim.


Eu sequer tinha um apelido para sugerir, e isso me fez notar o

quanto eu parecia ainda presa ao tempo. — Eu acho que Sara

está bom.

— Chae. — Esticou uma das mãos em minha direção, e


meu corpo todo travou. — Apenas um aperto de mãos, se quiser...

ou melhor, um encontro de dedos indicadores? — Ele então

manteve o dedo indicador no ar, e tomei cinco respirações, até


conseguir levar o meu ao dele.
Um encontro breve, mas que era mais do que qualquer

outro toque que tive na vida. Um toque eu permitia, e de certa


forma, queria. Por um segundo, me fez sentir normal, como se...

como se eu não fosse apenas um pedaço de carne.

— Sabe de tudo sobre mim, não sabe? — perguntei,

tomando coragem, e ouvindo o barulho de água ao fundo, o que


indicava que Matê deveria estar escovando os dentes. —Tudo?

— Sou um homem inteligente, e que levanta fichas de

quem é necessário... A sua foi levantada pela primeira vez, há


alguns anos, quando o casamento de Ottis foi declarado, e os

Kang foram convidados — assenti, mesmo que confusa. — Eu sei

tudo o que é preciso saber, das piores às melhores partes.

— E quando não há parte bonita?

— Então eu me vingo pela parte ruim. — Sua voz soou

baixa e fria, como se uma certeza. — Mas eu acredito que Matê

tenha sido um motivo para te manter assim, tão corajosa, mesmo


após Ottis.

— Por que parece ser tão bom analisando? — rebati, e ele

deu de ombros, sorrindo.


— Poderia dizer que é porque sou bom em analisar, mas a

realidade é que hoje eu sei o que um filho pode fazer por uma

mãe, até mesmo, salvá-la do próprio inferno.

Suas palavras me atingiram em cheio, e queria poder


perguntar sobre. Saber mais a fundo. Pela primeira vez, me

interessando em querer entender alguém, tão diferente de mim,

mas que por alguns segundos, parecia apenas um semelhante.

— Mamá, eu lavei as mãos e escovei os dentes...

Matê apareceu em seus sapatos de glitters azuis, e sorri

para ela. Era tão bom vê-la assim, usando o que gostava, sem ter

que esconder ou fingir que não tinha qualquer gosto, para nada.

— Podemos ir? — Chae foi quem perguntou, enquanto eu

segurava a mão de Matê, e eu assenti. — Vocês sabem o

caminho... — indicou o corredor, e por um segundo, flashes me

atingiram.

Porque sempre que eu estava à frente, algo me puxava

para trás. Algo não. Alguém. E de repente, a escuridão e a dor

eram minhas únicas companhias.

— Eu posso tentar acertar o lugar.


Pisquei algumas vezes, como se acordando de meu

pânico, mal sentindo a mão de minha filha, e assentindo, como se


fosse apenas o certo. Chae foi na frente, e Matê apertou minha

mão com ainda mais força, mostrando que ela estava ali. Sempre

ali.

Segui-o pelo corredor, enquanto me culpava por ter


deixado algo me travar. Até quando o passado seria parte de um

presente tão assustador? Por que eu tinha que viver à margem do

que eu fui, mesmo depois do pior já ter passado?

Luzes estavam penduradas pelos postes, como se

comemorando uma pequena cidade de volta à vida. Diferente de

outras organizações, a origem daquele Cartel foi em uma cidade


pequena, que apenas abrigava aqueles que concordavam

consigo, e nada mais. Por mais que conseguissem comandar um

país inteiro a partir dali. Ou destruí-lo pela escuridão, assim como

Ottis tentou fazer durante aquele tempo, ali era onde o poder se
concentrava.

Onde Ottis se tornou chefe. Onde Ottis foi sentenciado.

Onde Ottis foi morto na frente de todos, por suas mentiras.

— As pessoas daqui parecem me achar bonito.


Pisquei algumas vezes, saindo de meus pensamentos, ao
olhar ao redor e ver a forma como pessoas que apenas andavam

por ali, ou comiam algo, encaravam de cima a baixo Chae.

— Pode ser porque te acham novidade — Matê respondeu,


e eu a olhei assustada. — As pessoas aqui são curiosas, mamá.

— Eu ainda voto na parte de que sou bonito... — ele

respondeu despreocupado e com um sorriso no rosto, que


mostrava duas covinhas, uma em cada lado do rosto. Andando de

costas, de forma perfeita, como se conhecendo cada pedra. —

Quando quiserem parar, só falar.

Matê apertou minha mão e me fez parar, e vi sua sorveteria


favorita. Meu celular vibrou e tremi por inteira, soltando sua mão e

incentivando-a a ir escolher seu sorvete, antes de tomar coragem


de encarar o chamador.

— O que morre, às vezes não está morto... — Chae falou


em um sussurro, aproximando-se, ficando ao meu lado. — Quer

que eu atenda?

— É apenas uma menagem de Ramon, mas...

— Sem explicações, Sara — falou docemente, e o encarei


surpresa. — Não precisa se explicar para mim. Apenas estou
perguntando se quer que atenda, para que fique mais calma.

— Eu...

E mais uma vez, as palavras faltaram, e eu me senti


patética.

— Mamá, tem seu sorvete favorito.

— Tomara que tenha chocolate com pimenta — Chae


falou, e tanto Matê quanto eu, arregalamos os olhos. — O quê?

— É o meu favorito também — finalmente encontrei minha


voz.

— Um ponto para o novo marido.

Brincou, e de certa forma, não me assustou. Ele parecia

saber qual passo dar, e qual não, e agora, eu estava assustava


por aquilo. Como eu poderia, depois de tanto tempo, ainda agir
como uma garotinha assustada?

Contudo, eu o vi caminhar até minha filha, e senti os


olhares sobre nós. Não sabia se sentiam pena de mim, como
antes, ou se estavam tentando entender, de toda forma,

novamente, era eu, ali, o centro de uma atenção que nunca quis.

Porém, era por Matê daquela vez.

E por ela, eu faria qualquer coisa.


Até mesmo, me casar com um dos homens que eu sabia
ser um dos mais poderosos da máfia.
Capítulo 05

“Coloca um curativo aqui no meu coração

Redecora o meu interior

Não deixe que eu seja ferida outra vez”[9]

CHAE

— Eu sei que sente minha falta, meio metro — falei para a


videochamada, e Hinata me mostrou o dedo do meio. — Como

está a metadinha de meio metro?

— Sério que vai mesmo chamar meu bebê de metadinha?

— indagou, fazendo uma careta.

— Metadinha de Jeon e Metadinha de meio metro. — Dei

de ombros. — Quer apelido melhor?


— Ursinho, que tal? — rebateu e foi minha vez de fazer

uma careta. — Aliás, levou seu pijama, certo?

— Claro que não — menti descaradamente, e ela riu alto.

— Eu preciso é me acostumar com o fuso e dormir direito —


assumi, bebendo um pouco de água.

— Está passando a noite na casa antiga de Ottis?

— Sim, amanhã vou sair para ver casas com Matê e Sara,
algo que elas gostem — comentei, e ela assentiu. — Quanto mais

rápido sair daqui, melhor.

— Está cuidando delas, mesmo que mal as conheça. —

Analisou, olhando-me profundamente. — Sempre cuidando de

todos, Oppa[10].

— Eu vejo pelo lado oposto, mas... — abri um sorriso. — É

o meu novo trabalho, ser um marido e padrasto por um ano,


então... Por que não ser o melhor nisso?

— Nunca é apenas trabalho para você.

Ela repetiu as palavras que Vincenzo me disse, antes de

me fazer a proposta, meses atrás.

— Por que está dizendo isso?


— Porque você é aquele que mais machuca, justamente
por ser aquele que mais sente-se no lugar de quem é

machucado... Se Ottis estivesse vivo, você o faria viver para

sofrer, Oppa. — Aquela era uma verdade nua e crua. E apenas

meus irmãos poderiam dizer algo assim sobre mim. — Agora vai

ter um ano, para achar um chefe digno do Cartel, e talvez, voltar

para casa?

— Por que eu não voltaria?

— Depois de que eu e Jeon estamos juntos, eu não duvido

de mais nada dos clichês da vida.

— Casamento por contrato nunca dá certo, Hina. — Rebati,

negando com a cabeça. — E tem algo maior do que isso... Sara

está realmente fodida da cabeça, muito.

— Ela tem medo de você?

— Ela tem medo de tudo, e acredito que tudo, a não ser

Matê, seja um gatilho. — Minha irmã pareceu respirar fundo do

outro lado do vídeo, como se pensando. — Pensei nela, como

principal candidata a ser a chefe, mas tudo o que vejo é medo, e

mais medo, em todos os momentos.


— Eu tinha ódio, e encontrei um jeito de canalizá-lo —

falou, e pareceu pensar. — Por que não ajuda ela a encontrar um


jeito de canalizar o medo?

— Nós como psicólogos, daríamos ótimos jogadores de


futebol — rebati, e ela revirou os olhos. — Mas não é uma má

ideia, já que com certeza ela sabe como lidar com o medo que
sente.

— Quem melhor do que um fodido da cabeça para ajudar

uma que está na mesma?

— Eu sou perfeitamente, ótimo e incrível da cabeça. —

Ironizei, e ela riu alto, e ouvi um miado ao fundo. — Revali sempre


é intrometido, né?

— Deveria ter um intrometido aí com você, para te ajudar a


se lembrar de casa.

— Eu já tenho você me ligando por chamada, a próxima


deve ser Hari e Kalel surtando, depois Dove e Vincenzo no

ponto... — fingi-me de cansado. — Só Jeon resolveu me deixar


em paz.

— Ele está tomando banho, e com certeza vai me

perguntar tudo depois que sair — respondeu simplesmente, e fiz


uma careta. — Sabe que todos nos preocupamos.

Ou não confiam em mim – guardei tal pensamento e sorri.


Hina continuou me contando sobre o dia, e perguntando o que

podia sobre estar ali. Por um tempo, eu consegui apenas


esquecer aquele pensamento, mas ele era real, lá no meu interior.

De que eu só fui o escolhido para estar ali, porque era o que


sobrou. Quem tinha sobrado.

E era algo que eu via e me identificava em Sara, e ela

sequer sabia – eu sabia o que era viver com medo. Mesmo que o
meu, fosse um medo guardado a sete chaves, em meu âmago.

SARA

Eu estava andando de um lado para o outro, no corredor.


Como sempre, ainda em alerta e em guarda, próxima ao quarto
de Matê. Mesmo sabendo que agora, eu poderia dormir ao lado

dela e nos trancar por dentro, eu não conseguia encontrar


qualquer paz para descansar. Não me lembrava de uma noite
bem dormida, desde o momento em que fui vendida a Ottis, e
agora, os resquícios de todos os abusos dele, se arrastavam por

minha realidade.

Parada no meio do corredor, contando até cem, e depois

até duzentos, até trezentos... Olhos bem abertos, focada em cada


mínimo barulho, as luzes acesas apenas ali, enquanto eu

imaginava, o que um homem como Chae Kang poderia estar


fazendo, estando sob o mesmo teto que nós.

— Com medo?

Dei um pulo no lugar, virando-me de imediato, e em


completo choque por não o ter ouvido se aproximar, nem sentido

a presença de outra pessoa. Ele estava no fim do corredor, lado


esquerdo, olhando-me com atenção.

— Eu... — travei novamente, mas suspirei fundo,


encontrando minha coragem. — Eu estou apenas sem sono.

— É uma péssima mentirosa — falou, ainda apenas


focando em meus olhos. — Sei que está com medo e protegendo

Matê, e talvez seja de mim.


— Não é algo pessoal, Kang — esclareci. — Não confio em
ninguém, principalmente homens.

— E se soubesse se proteger? E se conseguisse me sentir


chegar, antes de eu aparecer?

Suas perguntas me fizeram ficar ainda mais confusa, e de

certa forma, curiosa.

— Você pode derrubar homens do meu tamanho


facilmente, se souber como — afirmou, encostando-se melhor

contra a parede. — Acho que seria bom, aprender a se defender,

para que seu medo não seja uma constante. Ou um jeito de


enfrentá-lo.

— Está tentando me ajudar? — indaguei, claramente

surpresa pelo rumo daquela conversa.

— Será uma Kang, por um ano, mas ainda assim, será


uma. — Olhou-me profundamente. — Um Kang sabe se defender,

e matar se for preciso.

— Está fazendo pelo nome da sua família? — perguntei,

agora tudo se encaixando em minha mente.

— Estou te oferecendo ajuda nisso, porque eu sou o

melhor. — Um sorriso despontou no final de sua boca, de uma


forma arrogante que era diferente das que eu conhecia, mas

parecia até mesmo apenas dele. — E claro, porque eu quero


ajudar. É o que um Kang faz.

— Ajuda os fracos? — indaguei, desviando o olhar, e

sabendo exatamente o lugar no qual me encontrava, e das


poucas histórias que ouvi a respeito do que a máfia Kang

representava. Eles eram praticamente justiceiros, e os salvadores

de pessoas que não tinham qualquer esperança de outro dia.

— Ajudar uma mãe e uma mulher, que merece mais do que


contar até mil num corredor iluminado, com olhos assustados e

um coração quase na boca.

— Como consegue saber tudo isso em tão pouco tempo?

— Isso é algo que pode aprender também — explicou. — A


ler pessoas.

— Eu... — respirei fundo, encontrando minha voz. — Eu

não sou boa em nada.

— É o que você está dizendo, não eu... — olhou-me

profundamente. — Se quiser aprender a lutar, e a canalizar esse

medo, eu estarei aqui. E pode passar isso para Matê. Ela, com
certeza, vai adorar aprender com a mãe.
— Parece ter certezas sobre minha vida e minha filha,

como se... O que realmente quer, senhor Kang?

— Um ano tranquilo — respondeu simplesmente. — E que

eu vá embora, sabendo que as deixei mais fortes do que já são.

— Não tem por que se preocupar comigo, isso é tão...

diferente. — Engoli em seco. — Eu realmente não sei o que dizer.

— Quando tiver algo a dizer, só me falar, e começamos...


— afastou-se da parede, e deu passos atrás, de frente para mim,

caminhando de costas. — Eu ainda estou me acostumando com o

fuso, por isso estou acordado — explicou, a pergunta que deveria

estar estampada em meu rosto. — Tente ter uma boa noite, Sara.

— Uma boa noite para você... — vi-o sorrir, e se afastar

aos poucos, desaparecendo no outro final do corredor. — Chae...

— complementei e engoli em seco.

O nome dele, sendo algo diferente em minha boca, como


se eu pudesse pensar que existia de fato alguém no mundo, que

por mais que fosse corrompido, ainda tinha uma parte boa. Existia

algo assim?
Capítulo 06

“E como fica aquela parte em mim

Que nunca sabe para onde ir?”[11]

CHAE

Se eu tivesse dormido duas horas era muita coisa.

Não sabia se pela apreensão em meu peito ou pelo fato de

que não conseguia gostar de forma alguma daquela casa. Aquele


lugar me lembrava do meu passado, e era como se eu pudesse

sentir, no mínimo possível, o que Matê deve ter tido como

exemplo, de como não ter um pai.


Encarei o sol que já estava a pino, mesmo que fossem sete

da manhã. Eu tinha me acostumado a lugares mais quentes e


úmidos, principalmente pelos trabalhos a que eu tinha sido

designado pela América Latina, mas não me recordava da última

vez em que estive no México.

Sabia do último convite que tive, quando os Kang foram

chamados para o casamento de Guillermo Ottis, mas nenhum de


nós veio. E por alguns segundos, fiquei me indagando, de como

seria, eu, Chae, tomando um lugar que pertenceu a um homem

como ele. Se ele pudesse ser chamado de um.

Fui até o banheiro e encarei meu reflexo, claramente


cansado, e joguei um pouco de água no rosto. Que Hinata não

soubesse, que estava pulando todas as etapas de skincare que


ela tanto insistiu em me ensinar, e segundo ela, finalmente me

deixariam bonito. Ri com a lembrança, e senti meu coração mais

tranquilo, em saber que ela estava bem, que meu hyung também

estava. Eles mereciam um pouco de paz, depois de tantos anos

brigando pelo que sentiam, quebrando o coração um do outro.

Era estranho que minha família toda, parecia, de certa

forma estar se encontrando em outras, criando suas próprias.

Apenas Vincenzo hyung ainda não o tinha, mas não ficaria


surpreso em descobrir algo de repente. Eu era a pessoa
responsável pela parte de inteligência, e nunca esqueci um

pedido específico que ele me fez, anos atrás, e que nunca mais

tive qualquer outro parecido.

Talvez eu fosse para ser como Cha hyung, que era um dos

únicos que sabia por que o meu nome se diferenciava do dele,

apenas por uma letra. Cha Kang foi um chefe da família e da

máfia, que se afastou após muitos anos e pela sua idade, e curtia

a vida, em uma cabana no meio do nada, criando ovelhas.

Eu deveria aprender a criar algum animal, se aquele era

meu destino? Ser o Tio Chae era algo que eu adorava, e me

deixava ansioso pelo momento de ouvir novamente, de Saron,

Jae, e futuramente, da metadinha de Hina com Jeon. Quem sabe


um dia, ouvir isso de um filho de Vincenzo?

Saí do banheiro, e peguei minha camisa, jogada sobre uma

poltrona. Era um quarto que parecia nunca usado, mas cada parte
de mim, não duvidaria se descobrisse que foi um dos utilizados

para Guillermo torturar e matar inocentes. A realidade era que eu

sabia que sob aquelas paredes, sangue inocente estava

manchado. E torcia para que o mesmo nunca tivesse acontecido


no quarto de Matê. E não podia torcer pelo mesmo para Sara, já

que era algo que eu sabia que ele fez, com ela.

— Desgraçado... — xinguei baixinho, em minha língua. —

Se estivesse vivo... Ah, ele pediria para morrer, todos os dias.

Vesti minha camisa e saí do quarto de supetão, como


estava acostumado. Não era estranho esbarrar com algum irmão

meu antes, porém, ultimamente, na Mansão Kang, cada vez mais


vazia, era sempre o nada que me encontrava. Porém, eu não

estava na Mansão Kang. E muito menos, no meu apartamento em


Seoul.

Um corpo bateu contra meu peito, e por puro reflexo,


segurei a pessoa pelo braço, para que não caísse de bunda no

chão.

— Desculpe, eu ainda não me acostumei que...

Minhas palavras se perderam, quando vi o olhar


amedrontado de Sara, e como ela parecia querer puxar seu braço

do meu toque, e todo meu corpo se sentiu em inércia.

— Sara... — afastei minha mão com cuidado. — Sara, eu


não quis...
— Eu... — sua voz falhou, e ela piscou algumas vezes, o

olhar subindo para o meu. Como se ela estivesse usando tudo de


si para fazê-lo. — Eu sei que não — complementou, e pareceu

claramente incomodada.

— Eu juro que... que jamais vou tocar em você sem sua

permissão — falei, uma promessa... não, um juramento, no final


daquele corredor. Olhos castanhos assustados, se tornando

surpresos e presos aos meus. — Jamais.

— Eu aceito a ajuda — ela disse de repente,


surpreendendo-me. — Se puder me ensinar, sem me tocar a

como... como não ficar mais assim.

Meu coração falhou uma batida, uma parte de mim, que há

muito não era tocada, se remexendo.

— Eu posso conseguir uma mulher para te ajudar —

esclareci. — Mas pode ser que aprendendo comigo, saberá como


se defender de alguém que ficará um ano ao seu lado.

— Quer que eu aprenda a me defender de você?

— Que aprenda a não temer, que eu esbarre em você


assim, e possa apenas virar o meu braço e me colocar de joelhos,
em segundos, por puro reflexo. — Ela pareceu surpresa com cada
palavra. — Tem muito que pode aprender.

Seu olhar ficou no meu, como se tentando me ler, mesmo


que ela talvez sequer tentasse. Porém, diferente de muitos que eu
encontrava por aí, ela parecia não esperar nada. Absolutamente

nada de mim.

— Mamá!

— Bom dia, carinõ — Ela falou, virando-se, e a filha pulou


em seu colo.

Assisti a cena com um sorriso no rosto, vendo como as


duas eram claramente o mundo uma da outra, e notei o olhar
avaliador de Matê, quando me viu parado ali.

— Bom dia, senhor Kang — falou educada, descendo do


colo da mãe. — Eu vou procurar por doces! — gritou, e saiu

desenfreada pelo corredor, para onde eu sabia que ficava a


cozinha.

Por um segundo, quase vi um vislumbre de sorriso no rosto


de Sara, que assistia a filha.

— Não adianta dizer para não correr, certo? — perguntei, e


ela piscou algumas vezes, parecendo lembrar que eu estava ali.
— Tem experiência com crianças? — indagou, como se
ainda me analisasse.

— Sou o melhor tio Kang, para ser honesto — comentei


com minha arrogância em dia, e sorri de lado. — Pode dizer isso
a eles, quando aparecerem.

— Os Kang vão aparecer aqui?

— Por que não? — indaguei confuso. — Vai ser meu


casamento, do favorito deles, por que não viriam?

— Eu pensei que seria algo simples e... — Vi-a suspirar

fundo. — Mas eu vou conhecer os Kang, isso é importante para o

Cartel.

— Eles são minha família, vai gostar deles — falei

despreocupado, e ela arqueou uma sobrancelha. — Eu não sou

legal? Eu sei que sou. — Pisquei um olho. — Imagine então os


outros.

— Você parece uma pessoa tão leve, e se não soubesse

de sua fama, diria que tem uma vida comum. — Foi honesta, e

mais uma vez, me surpreendendo.

Existia qualquer coisa em Sara Hernández, que quando ela

dizia algo, sem medo, conseguia me acertar em cheio.


— Eu seria incrível, mesmo que fosse algum empresário.

— Passei as mãos levemente pelos cabelos.

— E modesto, claro.

Fiquei paralisado diante de sua fala, e ela pareceu só

notar, segundos depois, que o fez também.

— Desc...

— Não vai se desculpar por ser sarcástica, não... — cortei-

a, sorrindo amplamente. — Eu adorei.

Ela então me encarou, com um pouco de brilho no olhar, e


imaginei como seria, se ela abrisse um sorriso. Ela ficaria ainda

mais bonita, do que aos poucos, eu notava o quanto era? Ou o

quanto, ela parecia brilhar, naquela foto antiga?

Um barulho alto vindo da cozinha, a fez praticamente correr


e gritar o nome de Matê pelo caminho.

E eu fiquei parado, sorrindo no meio do corredor. Se existia

algo naquela casa, que não merecia ser um lar, mas que me fazia
sentir bem, eram as surpresas que vinham acompanhadas das

moradoras dela.

Era diferente do que eu conhecia, ao mesmo tempo que

totalmente familiar. Era bom, e parecia que seria um ano tranquilo.


Ao menos, era o que eu esperava.
Capítulo 07

“Sem olhar para trás

Eu tento voar

Não há ninguém capaz de destruir minha fé” [12]

SARA

Era uma ideia ruim?

Era uma péssima ideia?

Eu não tinha a quem perguntar ou a quem recorrer sobre

alguma opinião. Enquanto Matê apagou no sofá ao lado do meu,

eu encarava a novela que eu talvez estivesse reassistindo pela


décima vez. Era uma das poucas que conseguiam me fazer isso,
à medida que era a que mais me fazia escapar da realidade por

um longo tempo.

Era um dia praticamente sem nada a fazer, a não ser, ver

casas à venda, que Chae pediu, ou no caso, fez como exigência


para o casamento. Olhei para meu celular, e nenhuma outra

mensagem de Ramon, o que queria dizer que nada surgiu, ao

menos, era o que me tranquilizava.

Ouvi o barulho de dedos sobre a parede, e me virei com


cuidado, vendo Chae surgir próximo a nós, e sabia que ele não

tinha como ter esbarrado ali sem querer. Ele estava avisando que

estava se aproximando?

— Apenas ouvir espanhol está me deixando tentado a

voltar a ver novelas latinas — comentou, dando a volta na sala e

sentando-se na poltrona mais distante. — Qual é essa? —

indagou de repente, enquanto eu rearrumava o cobertor sobre


meu corpo. Mesmo que estivesse calor, ele era algo que sempre

tinha comigo. Era, no passado. E ainda era, no presente.

— Pasión de Gavilanes — respondi, e ele se ajeitou na

poltrona, prestando atenção. — É colombiana.

— Por isso o espanhol um pouco diferente...


Um dos personagens gritou pelo nome de umas das
principais, e o olhar de Chae parou no meu.

— Sarita é um apelido para Sara? — perguntou, e eu


assenti, vendo que ele parecia saber sobre tudo, mesmo assim,

ainda existiam genuínas dúvidas sobre outras culturas. —

Combinaria com você — comentou, e logo seu olhar se voltou

para a televisão.

Fiquei sem saber o que dizer, e tentei focar na televisão,

mas eu não conseguia desviar o olhar do homem que assistia

atentamente uma das minhas novelas favoritas.

Você pode perguntar agora.

Você pode exigir agora.

Você está a salvo agora.

Suspirei fundo, e não mantive minha mente fechada, como

sempre o fiz. Ao menos, como fui ensinada a fazer.

— Qual o seu apelido, senhor Kang? — perguntei, e vi o

corpo grande dele, praticamente desabar sobre a poltrona, como

se desistindo de algo. — Tudo bem?

— Acredite, Chae é um nome para não ter apelidos, mas

meus irmãos... principalmente, a minha caçula. — Fez uma


careta, que ficou adorável em seu rosto. Covinhas aparentes em

suas bochechas, e os olhos desparecendo. — Meu apelido é


praticamente um insulto.

— É tão ruim assim? — indaguei curiosa, e ele voltou seu


olhar para o meu.

— É teneboroso — falou, e eu riria, se me lembrasse que

poderia fazê-lo, mas ainda era uma trava que não consegui
retirar. — Por que esse olhar divertido?

— Tenebroso. — Corrigi-o, e só então notei o que tinha


feito. — Eu... — olhei-o, e vi a forma como ele abriu um sorriso de

lado, como se achando engraçado, o fato de ter errado.

— Não é fácil ser poliglota. — Levou uma das mãos ao

peito, dramatizando, da forma como eu apenas vi homens


fazendo em novelas. — Mas obrigado por me ensinar, tem

palavras que ainda são quase um trava-língua para mim.

— De nada — respondi, e era a primeira vez, em tanto

tempo que alguém além de minha filha e do conselho do Cartel


que me agradecia, porque fiquei inerte por alguns segundos,
gostando daquela sensação.
— Vamos ver as casas depois, quando Matê acordar, o que

acha? — perguntou, e eu assenti, notando que minha filha


parecia simplesmente apagada no sofá. — Eu queria fazer como

ela, encostar e apenas dormir.

— Por que não faz isso?

— O fuso, essa casa... — foi completamente honesto, e


deu de ombros. — Pode ser também porque ainda sou apenas
um intruso, sem apresentação ao Cartel em si, enfim, tantas

coisas chatas.

— Não gosta dos assuntos que são discutidos pelo

conselho? — perguntei, e então me corrigi rapidamente. — Quer


dizer, os Kang têm um conselho, certo?

— Eu sou, como posso dizer... talvez o último na linha


sucessória dos Kang, então, eu sempre estive ciente por ser uma

pessoa da inteligência, que sabe exatamente onde estão e o que


estão fazendo, para onde ir, e quem precisa de algo...

— Por isso citaram Jeon Kang, antes de você? — indaguei,


e pela primeira vez, notei a forma como seu olhar pareceu perder

o brilho que tinha tão forte.


— Pode ser que sim. — Deu de ombros. — Prefiro
acreditar que era meu destino vir aqui, passar um ano em um país
paradisíaco e pagar um picolé para Matê... E claro, destruir o que

é preciso, para que o Cartel se reerga.

— Você me parece um líder, como fala e como parece

saber tudo. — Fui honesta, assim como ele, e recebi um sorriso


como resposta.

— Espero ser um bom homem para você e Matê — sua

fala me pegou completamente desprevenida. — E talvez, sejamos


amigos durante esse tempo.

Eu nunca tive amigos.

Eu não sabia o que era ter aquilo.

Eu não tinha ideia do que era confiar em alguém.

E para se ter um amigo, você tem que confiar, certo?

— Um dia, quando formos amigos, eu vou te chamar de


Sarita e você vai poder descobrir o meu apelido, o que acha?

Esticou então seu dedo indicador no ar, em minha direção,


e eu não pensei antes de estender o meu, e fingir que tocava o

dele. Lembrando por alguns segundos, de como era a sensação


de sua pele contra a minha, o quanto parecia certo.
— Acordo selado, e eu vou voltar para a novela. — Piscou
um olho, e apenas se virou novamente para a televisão.

Só eu sabia do medo que senti quando o conselho sugeriu


que um Kang deveria tomar a responsabilidade, só que
necessitavam de mim, para que ele fosse aceito pela outra parte.

Porque eu era daquelas terras, o mais perto de uma primeira-


dama que eles tiveram, e de certa forma, o povo gostava de mim.

Eu sabia do medo que me tomou, por horas a fio, sentada

na banheira, imersa de água, e tentando não chorar, para que

Matê não desconfiasse que eu sofria, novamente. E agora,


olhando para o homem que me foi mostrado em uma foto, que

parecia aterrorizador, ao mesmo tempo que, bonito como os

homens que eu via em novelas, soube que nem tudo era

exatamente como parece.

Ele não era apenas um mafioso.

Ele parecia como um futuro amigo.

E de repente, eu senti uma parte de mim se iluminar,

mesmo que fracamente, em meu peito. De que existia algum


futuro, para alguém como eu, para acreditar que o mundo era

além da dor que conhecia.


Que no mundo, existiam pessoas que talvez valessem dar

a chance. E torcia para que Chae Kang, fosse uma delas.


Capítulo 08

“Apesar das dificuldades

Apesar dos obstáculos

Ao seu lado, nada me assusta” [13]

CHAE

— Outro picolé, senhor Kang? — Matê perguntou,

indicando com a cabeça um sorveteiro que passava, e eu assenti,


estendendo-lhe algumas notas. — Isso é... — Ela então contou as

notas e arregalou os olhos. — Eu posso comprar o carrinho todo

com isso.
— Economize para sempre ter dinheiro para comprar um

quando quiser — ela assentiu, e foi até o homem, que me


encarou de cima a baixo, como se julgando quem eu era, e um

pouco assustado. Quando Matê se aproximou, ele sorriu e

entregou-lhe um sorvete.

— Ela não está acostumada a ter isso. — A voz de Sara

soou tão baixa, que quase não ouvi. — Por isso está surpresa...

Vi então Matê enrolar o dinheiro, guardar no bolso de sua


jardineira e caminhar para perto de nós, com outros dois sorvetes

em mãos, um que me entregou e outro para a mãe.

— Morango, parece algo que eu gosto? — provoquei, e vi

a garotinha semicerrar os olhos.

— Comeu vários no café da manhã.

Analisadora como sempre.

Algo dentro de mim se orgulhou.

— Boa observação, como se fosse uma mafiosa. —

Pisquei um olho, e ela sorriu. — Obrigado, Matê.

— Vamos indo...

A voz de Sara então nos chamou para a realidade, e eu

segui pela rua que tinha memorizado depois de pesquisar casas


vazias naquela pequena cidade. Não eram muitas, e
principalmente, apenas uma parecia a certa, pelo que pesquisei a

fundo.

— No fim da rua sem saída — anunciei, e notei a forma

como parecia exatamente como idealizei. — Pelo que soube, foi a

antiga...

— Antiga casa de Maria e Teresa Hernández.

Pisquei confuso, porque eu não diria aquilo. Eu diria que foi

uma antiga casa de uma família que infelizmente, a perdeu após


Ottis assumir o poder.

— É da vovó e da bisa? — Matê perguntou, e vi Sara

assentir, olhando para a entrada da casa, como se tivesse um


verdadeiro déjàvu. — Você sempre disse que queria voltar para

cá, mamá.

Isso era bom, então?

— Então essa casa já é sua — falei, lembrando-me da

escritura que estava perdida, e pelo que o cartório me informou,

muito por alto, não foi algo legal.

— Roberto a herdou, depois de me... — Sara se calou, e vi

a forma como tocava com carinho as costas da filha. — Pode


mesmo comprar esse lugar?

— Eu queria que vissem primeiro, se concordassem, aí

bom... — dei de ombros. — Mas se me disser que quer esse

lugar, ele é seu.

Seu olhar parou no meu, e vi a gratidão estampada em seu


olhar.

— Queremos! — Matê gritou, e então parou à frente da


mãe. — Não é, mamá?

— Eu não sei o que dizer — falou, e eu me adiantei,


abrindo o portão antigo, e empurrando para dentro.

O lugar parecia apenas abandonado, como eu tinha

checado mais cedo. Nunca as traria para um lugar, sem antes ter
a certeza de que era seguro. Porém, essa parte não precisava ser
levantada.

— Podem olhar tudo, com calma — disse, e notei a forma


como Sara parecia reticente. — Eu chequei o lugar antes... —
acabei tendo que admitir. — Pode ir tranquila.

Ela então, mesmo claramente com medo e desconfiada,


deu passos para longe, com a filha ao seu lado, que agora
chupava seu picolé, e eu as segui, sempre passos atrás, para as

manter em segurança, e ao mesmo tempo, não as assustar.

— A sala de música...

A voz de Sara se perdeu, enquanto ela quase deixou o


picolé fechado cair, mas eu o segurei a tempo, colocando-o sobre

um lençol branco que cobria um vaso. Ela se aproximou do que


claramente era um piano, e tirou outro pano branco, expondo-o.

— As músicas que elas cantavam, era aqui, mamá?

— Era, cariño — falou, e notei seus olhos marejados. —

Era exatamente aqui.

Fui até as cortinas, e as abri, deixando com que o sol

adentrasse pelas janelas, e o lugar pareceu tomar seu próprio


brilho. Sara se sentou à frente do instrumento, e chamou a filha
para perto, tocando no banco ao seu lado.

— Eu não lembro, não tive tempo para aprender, mas... Eu


vou aprender e te ensinar — disse, encarando a filha, e eu assisti
à cena, sentindo o peso de cada palavra. — Vou te ensinar, o que

elas queriam que levássemos.

— O que pensa que está...


Uma voz adentrou o lugar, e antes que pudesse se
aproximar delas, o picolé que antes eu estava quase levando à
boca, estava em direção ao lado esquerdo do rosto de Roberto.

— Longe delas — declarei, e ele estava caído no chão,


como se tentando se recuperar de um soco, que sequer foi forte.

— Lembra-se disso?

— É minha casa, por que estão aqui?

— Então foi você que roubou a escritura e ganhou o lugar


de Ottis? — indaguei, juntando tudo e ele me encarou, engolindo
em seco. — Que eu saiba, ninguém mora aqui há muito tempo,

para ser mais exato, mais de sete anos. Por que está aqui?

— Eu ouvi que...

— Quê? — perguntei, e fiz um sinal com a cabeça para


Sara, que tirasse Matê do ambiente, e ela me obedeceu

prontamente. O que eu realmente não vi como algo bom. —


Continuando, que...?

— Que Sara estaria se mudando e pensei que ela falaria


sobre essa casa e...

— E veio encontrar justamente quem eu disse para não


fazer. — Neguei com a cabeça, minha bota parando bem próxima
de sua mão, pronta para esmagá-la. — O ombro foi fácil de

colocar no lugar, não é? Já o que seria, se apenas não tivesse

mais o que colocar no lugar?

Então eu esmaguei seus dedos da mão direita, com o peso

do meu corpo sobre a bota, e vi-o gritar, sem ao menos se


importar se tinha mais alguém ali. Fiz um sinal claro com o dedo,

para se calar, e quando gritou novamente, eu apenas coloquei


ainda mais o meu peso.

— Tem uma criança na casa, e sua irmã também... Mas


isso, você já sabia. — Tirei meu pé de sua mão, que agora estava

completamente deformada. — Não vai querer uma próxima vez,

Roberto.

— Ainda vai se arrepender de comprar uma briga por algo


que não lhe pertence, Kang — falou, a voz falhando, e lágrimas

por seu rosto. — Acha mesmo que o Cartel vai respeitar um

estrangeiro?

— Eles não precisam me aceitar. — Olhei-o com todo meu

poder. O que eu sabia que tinha. — Eles só precisam me temer,

nada mais.
Ele então se arrastou pelo corredor, até se levantar, chegar

à porta de entrada, e sair dali. Peguei um dos lençóis que cobriam


outros objetos e joguei-os no chão, limpando a marca de sangue

dele, que acabou sujando minimamente o chão, mas que tive que

me segurar para não arrancar sua mão fora e fazer uma cena
pior.

Enrolei o lençol, de forma que não aparecesse o sangue, e

o coloquei encostado numa parede.

— Sara? Matê?

Chamei, então dei passos para onde ela foi com a filha e

apenas encontrei Sara, que tinha consigo uma estátua em mãos.

Com medo, porém, com mais coragem, porque sua filha também
estava ali.

— Ele já foi.

— Obrigada — falou e deixou a estátua no lugar, indo até

um velho armário e abrindo a porta. — Desculpe por isso, cariño.

— Não se desculpe por Roberto, mamá — Matê falou, e

sorriu para a mãe. — Tudo bem, senhor Kang?

— Voltando ao que importa... — falei, e indiquei a sala, que

agora sabia ser de música. — Só preciso fazer uma ligação, e já


volto.

Toquei meu ponto, e chamei por Vincenzo. Ele atendeu em

poucos segundos, e eu caminhei até o final do corredor, em

direção à porta que Roberto saiu.

— Hyung, eu tenho autorização para matar Roberto

Hernandéz? — perguntei de uma vez, e felizmente, poderia falar

livremente, já que nenhuma das outras pessoas ali sabia coreano.

— Por que o matar agora?

— Está as perseguindo, e achando que vou deixá-lo vivo.

— Estalei a língua. — Eu vou matá-lo, assim que tiver

autorização.

— Precisa se encontrar com o conselho primeiro. — Soltei

o ar com força. — Precisa que eu mande segurança?

— Não. — Estava realmente desapontado. — As pessoas


parecem gostar delas, e as respeitam... O único problema até o

momento é Roberto.

— Vá à reunião do conselho, depois de escolher sua

casa... — assenti para o nada. — Sabe o que fazer, para poder


matá-lo.
— Vou esperar até o momento certo, então. — Estiquei

minhas costas. — Tudo bem por aí, hyung?

— Apenas tentando fazer Kalel se reacostumar de como é

ser da inteligência da família. — Ele ia conseguir, porque ele era o

melhor – eu sabia. E também sabia o quanto era fácil me

substituir. — E claro, todos me perguntando sobre você. Não está


os atendendo?

— Eles só fazem as mesmas perguntas, se eu comi bem,

se eu dormi bem, se eu estou me dando bem... Não faz nem dois


dias, hyung.

— Bom, sabe que até Cha Hyung vai aparecer para o

casamento. — Aquilo me surpreendeu. — Eu te vejo em duas


semanas, Chae.

— Até lá, hyung.

Não queria pensar profundamente sobre as palavras de

meu irmão mais velho, contudo, eu sabia que Cha estava fora

daquela vida há muito. Por que ele viria ao casamento? Por que
eles pareciam tão preocupados comigo?

Talvez por medo de eu foder com tudo? Com o que os

Kang representavam.
O barulho de uma tecla de piano sendo tocada, dispersou-

me daqueles pensamentos, e virei-me para ela. Encontrei Matê

sorrindo, descobrindo o som de cada tecla, e Sara cantando

baixinho para ela. Uma música que eu não conhecia, mas que
pareceu tão íntima, que me mantive longe, apenas as deixando

naquele momento.

E por mais que eu estivesse do outro lado do mundo, fora


da minha realidade, eu parecia ter encontrado pessoas que

entendiam os extremos que aquela vida às vezes exigia. E por um

segundo, simplesmente as observando, eu pude sentir que

aquele lugar, parecia como um lar. Ao menos, um lar para elas.


Capítulo 09

“E guardo um fio de esperança

No coração que só mostra a razão (vai, coração)

E quando meus sentimentos falam mais alto” [14]

SARA

Eu estava imersa na minha própria memória. Encarando


cada canto daquela casa em que eu pensei que nunca mais

entraria. Porque além de ter sua dívida paga ao me vender,

Roberto levou a casa – a casa que nossa mãe e avó construíram,


sozinhas. Olhei ao redor, e meus dedos formigando, enquanto

Matê corria pelo jardim. Meus dedos sentindo falta do piano, como

o fizeram por tanto tempo.

Sem música.
Sem barulho.

Sem ruídos.

Eram partes das regras, as que agora, estavam sendo

rasgadas. Fazia pouco tempo desde que Ottis foi morto, mas

ainda era estranho imaginar que existia uma vida realmente após
ele.

E ela estava ali, acontecendo à minha frente.

No jardim pelo qual eu corri, enquanto sorria.

O mesmo jardim pelo qual eu tentei me esconder, quando

ele veio.

— Não foi de propósito. — Ouvi a voz mais ao fundo, da

pessoa que eu sabia estar ali, porque ele tinha pisado em folhas
secas. Começava a entender que aquilo, sim era proposital. — Se

eu soubesse que era a casa da sua família, já a teria comprado e

deixado tudo pronto.

— Coincidências em uma vida como essa? — indaguei,

não sabia se para ele, ou para mim. Talvez para os dois. Talvez

para o universo. — Não pensei que seria possível estar aqui.

— Tudo é possível para você, ao menos, agora é. — Virei-

me para Chae, e notei que ele era sincero.


— Ainda carrego o peso de ser a viúva dele, e de certa
forma, a única que aceitam como parte desse acordo, para que os

Kang tentem ajeitar o Cartel. — Suspirei fundo, vendo de rabo de

olho, Matê entrar nos antigos brinquedos de madeira, que ainda

pareciam intactos, mesmo após tanto tempo. Um escorregador,

uma casa na árvore e uma gangorra.

— Pesos são importantes, principalmente, quando se livrar

deles... — falou, colocando as mãos nos bolsos e se

aproximando. — E vai se livrar, Sara.

— É o que dizia para mim, todos os dias. — Suspirei fundo,

soltando aquela confissão, como se o universo precisasse dela

também. — Sei que isso não é o que esperava, ou o que qualquer

mafioso imagina.

— Um casamento por contrato é o mais comum nesse

meio — falou, claramente confuso pelo que eu disse.

— Se tornar líder de um Cartel que já perdeu quase todo

respeito mundial, assumir um casamento por contrato, e uma

criança pequena por um ano... Não é algo para que um Kang


parece ser destinado. — Olhei-o, cruzando os braços e ele

pareceu pensar sobre minhas palavras.


— Um Kang é destinado a ser justo, da maneira que

escolher ser — falou, como se aquela frase fosse uma velha


amiga. — E parece justo, estar aqui, nesse exato momento.

Meu celular vibrou, e novamente meu corpo travou por


alguns segundos. Eu me recordava de quando, no meu antigo

aparelho e número, era Ottis, exigindo que eu fosse até seu


quarto. Suspirei fundo, pegando o aparelho, ao recobrar minha
consciência, e ler a mensagem de Ramon.

— Uma reunião especial com o conselho do Cartel, às


sete. — Li em voz alta, e Chae assentiu, como se já avisado. —

Já sabia?

— Eu desconfiei de que não demoraria. — Deu de ombros.

— Vou deixar tudo certo com a casa, para que possam passar a
viver aqui a partir dessa noite.

— Não temos muito o que trazer da outra. — Fui honesta.


— Talvez uma mala, seja o suficiente.

— Muitas coisas para deixar lá?

— Na verdade, realmente não temos quase nada —


confessei baixinho, tentando evitar que Matê ouvisse. — Ottis

controlava tudo, até mesmo o que tínhamos para vestir. Eu só


estava com algo novo, quando ele queria, e logo depois me era

tirado. Matê só tem roupas porque ganhávamos doações, e eu


conseguia esconder, com a ajuda de alguns funcionários que as

traziam.

Notei o olhar dele se modificar por alguns segundos e

enxerguei algo tão escuro quanto a dor que carregava dentro de


mim.

— Pensei que soubesse disso também — admiti.

— Não tem como saber absolutamente tudo, mas... —


soltou o ar com força. — Vamos poder conversar, sobre o que

quiser, quando começarmos a treinar.

— Gosta tanto assim de treinar luta? — perguntei.

Ele então apenas levantou o braço direito e flexionou-o,


mostrando seu bíceps. Um sorriso de lado, como se fosse simples

assim. E com ele, tudo parecia apenas mais uma conversa,


natural, sem qualquer intuito.

— Exibicionismo? — indaguei, e ele sorriu ainda mais.

— Gosto do seu lado sarcástico. — Baixou o braço. —

Sempre gostei de me exercitar, e por isso, músculos bem


construídos, que podem ser ótimos em alguns momentos.
— Como para machucar Roberto? — perguntei baixo, e ele
assentiu com a cabeça. — Ele não pode... quero dizer,
simplesmente ser...

— Acho que sei o que quer perguntar, mas não pode dizer
perto de Matê — sussurrou, e eu assenti, talvez envergonhada

por querer algo assim. Desejar arduamente a morte do meu


próprio irmão. Mas como eu poderia viver em um mundo em que

Roberto ainda respirava? Não conseguia me imaginar de fato


nele. — No momento certo, e se quiser, nele, você pode
participar.

Pisquei algumas vezes, sabendo que eu desejava aquilo.


Assim como, sempre desejei o mesmo para com Ottis. Porém, no

final dele, eu apenas consegui assistir. Apenas consegui ver a


vida ser tirada de seus olhos, e torcer para que ele fosse
diretamente para o inferno, e nunca mais voltasse.

— Não sou tão corajosa assim, senhor Kang.

— Não é sobre coragem — falou, olhando-me sério. — É


sobre ter certeza.

— Está aí uma coisa que eu ainda não sei direito como é


ter.
— Mamá! Eu acho que quero ficar aqui, para sempre —
Matê falou, abrindo a porta da casa na árvore, e sorri para ela. — É um lugar

incrível, como tinha me contado.

— Eu disse que tinha nome de mulheres especiais —

contei, indo até ela, e vendo o sorriso aberto em seu rosto. —


Tenho uma reunião hoje e preciso que obedeça às babás, certo?

— Eu as obedeço, mamá.

— Obedece, mas foge — corrigi-a. — Por favor, cariño. Por

mim, apenas fique em segurança hoje.

— O senhor Kang vai junto?

— Ele vai, para falarmos com o conselho e tudo ser

decidido — expliquei por cima, o que ela, quando eu menos

esperasse, já saberia quase tudo. — E vamos vir para cá hoje,


não acha que vai ser legal?

— Está tentando ser um bom padrasto, senhor Kang?

Sua pergunta me fez abrir a boca, tamanha incredulidade

da forma direta que minha filha era, e me virei para Chae, que
caminhava com um sorriso até nós. Eles pareciam tão fáceis para

ele, e de repente, gostaria de conseguir tê-los também.


— Se ainda está me chamando de senhor Kang, quer dizer

que não estou sendo bom... — comentou, parando a alguns


passos de nós. — Suas babás vão vir aqui, ficar com você, e

pode pedir o que quiser para brincar.

— Esmaltes coloridos e cheios de glitter? — perguntou


animada, encarando-me com uma esperança que eu temia que

ela tivesse perdido, assim como eu. Porém, não, ali estava,

intacta. — E eu posso passar em mim, nas babás e em você,

mamá?

— Como quiser, cariño.

Eu então segurei a vontade de chorar que me atingiu.

Eu me lembrava da primeira vez que ela me pediu aquilo, e

de como eu nunca pude lhe oferecer o mínimo. O que uma


criança, da idade dela, apenas deveria poder ter acesso, porque

ela queria. Porém, não era permitido.

— Senhor Kang, onde vai arrumar os esmaltes?

— Cariño, não fale assim com ele, como se estivesse

ordenando — corrigi-a, mas ela tinha um sorriso sapeca no rosto.

— Tudo bem, estou acostumado a ser mandado por todas

as mulheres da minha vida — falou despreocupado.


— E quantas são? — Matê fez a pergunta, que ficou

parada em minha garganta.

Ele apertou algo na orelha, e falou em coreano, e só

consegui entender a parte em que agradecia à pessoa do outro


lado. Deveria ter aprendido algo além dos clichês e choros

intermináveis com os doramas.

— São... — ele pareceu contar nos dedos, e então parou, a


encarando. — São seis.

Notei o olhar surpreso de Matê, e eu não estava muito

diferente. Contudo, ela pareceu satisfeita com a resposta, e

apenas me pediu ajuda para descer da casa na árvore, e voltar


para o jardim. Então, me vi pensando em como deveria abordar

tal assunto, que sem querer Matê trouxe, em algum momento a

sós com ele.

Porém, pensando sobre isso, eu sabia o quanto me

assustava estar sozinha com um homem, ainda mais

desconhecido, em um local. Contudo, o pensamento daquilo,

após um dia conhecendo pessoalmente Chae Kang, não me


parecia totalmente assustador. Ainda o era, entretanto, com uma

ponta de esperança, de que ele... talvez ele, não fosse o próximo

a me machucar.
Capítulo 10

“No seu silêncio, ouço minha voz

Pedindo a gritos amor

Maldito medo, que assim como você

Me prendeu à razão”[15]

CHAE

— Estou indo para a reunião agora, hyung.

— Faça o que sabe fazer de melhor.

— Socar a cara deles? — provoquei, e poderia vislumbrar

Vincenzo franzindo o cenho à minha frente.

— Ser o mais inteligente na sala.


Surpreendi-me com suas palavras, e me vi sem ter uma

resposta engraçadinha para a mesma.

— Boa sorte, irmão.

Ele desfez então a ligação, e foi o momento em que vi Sara

se afastar das babás que ficariam com Matê, a qual parecia


prometer, pela milésima vez que se comportaria. Mal sabia ela

que mesmo que tentasse, existia alguém, além das babás, que

ficaria de olho. Uma dívida antiga, que eu cobrei, e agora, me


serviria muito bem.

— Cuide da minha mãe, senhor Kang.

— Não acabe com a vida das suas babás, senhorita. — Fiz

uma leve reverência e ela fez uma careta, com um quase sorriso
em seu rosto. — Pronta? — indaguei, no momento em que Sara

se aproximou, como sempre, a alguns passos certos de mim.

— Sim, Ramon já está nos esperando lá.

Assenti, e deixei-a ir na frente, enquanto eu me mantinha

alguns passos atrás e cinco para o lado dela, acompanhando-a


pela saída da casa que agora era dela e de Matê.

— Confia realmente em Ramon? — perguntei, o que


estava em minha mente, desde o momento em que li a ficha do
homem que era o segurança dela, e se tornou, após a morte de
Ottis, o seu braço direito.

— Ele nos protegeu por anos, então... — vi-a dar de


ombros. — Não sei se confio realmente em alguém, senhor Kang.

— Chae, mas isso você já sabe — corrigi, tentando

amenizar a situação. — Faz bem em não confiar, ou melhor,

confiar desconfiando.

— Minha filha está agora, com duas mulheres que

praticamente me ajudaram a criá-la, e me ajudaram a protegê-la,


então... — vi-a respirar fundo. — É difícil, sempre.

— Eu não consigo imaginar o quanto. — Fui honesto, e

senti seu olhar sobre mim, enquanto seguíamos para a antiga


igreja, que ficava bem próxima ao centro, e que sabia que

acontecia a maioria das reuniões do Cartel. — Oito homens,

nenhuma mulher. Está acostumada com isso?

— Estou tentando, desde que Ottis se foi — comentou,

parando à frente da grande porta de madeira. — Boa noite,

Meireles.

— Bem-vinda, senhorita Hernández.


O homem estava com um fuzil, mas sorria gentilmente para

ela, enquanto me analisava por completo.

— Armas? — indagou, olhando-me de cima abaixo.

— Eu sou um Kang — respondi simplesmente. — Não


preciso de armas para matar.

— Isso é uma ameaça? — perguntou, e tentou se


aproximar de mim e me tocar, como se querendo exercer algum
poder.

— Meireles, não.

A voz de Sara soou como um comando, e o homem a


obedeceu de imediato. Era um teste que eu precisava, pelo tanto

que os relatórios que tinha apontavam. Eles respeitavam Sara


Hernández como nenhum outro, e por aquilo, ela era a pessoa
que não queriam que saísse do poder. Por quê? Por que

demoraram tanto para reconhecê-la de tal maneira? Era minha


grande pregunta.

— Obrigado pela ordem, senhorita — falei, ainda

encarando o homem que estava claramente insatisfeito. — Não é


hoje que vou te derrubar, Meireles.
— Tenha cuidado, Kang — avisou, como se algum tom frio

pudesse realmente me assustar. — Está muito longe de casa.

— Pelo contrário, eu acabei de encontrar a minha. —

Pisquei um olho, e o homem parecia a um fio de vir para cima de


mim.

Meireles Garcia – fiel apenas a quem achava merecedor e


um dos pivôs para a caída de Guillermo Ottis. Lembrei-me do que
li, em um dos relatórios, e que era fácil descobrir por ali.

— Entrem.

A voz de Ramon me despertou, e segui-o, logo após Sara


entrar. Era com certeza, um ambiente diferente de onde
aconteciam as discussões da alta cúpula dos Kang, mas o clima,

de certa forma, parecia o mesmo. Como se algo pudesse se


quebrar a qualquer momento, e soluções não fossem

encontradas.

— Nossa senhora — Ramon falou e apontou a cadeira da

ponta da mesa, na qual Sara se sentou, após dar um leve aceno


com a cabeça para os homens em pé ao lado da mesa. — Nosso

convidado.
— É uma honra — falei, dando passos para perto de Sara,
parando apenas o suficiente para que não a assustasse, mas de
pé, ao seu lado. — Me chamaram, certo?

— Não pode simplesmente entregar a um estrangeiro, que


mal sabe das nossas tradições, o poder de se casar com a

verdadeira herdeira desse Cartel! — um homem bradou, e sabia


exatamente quem era. Cinquenta e um anos, uma família de três,

um passado nas Forças Armadas, atormentado por pesadelos e


lutando para que o Cartel não sucumbisse, desde quando foi
descartado pelo governo.

— Quais tradições, Martin? — perguntei, olhando-o. — As


de tráfico humano, exploração sexual e dívidas nunca pagas a

outras organizações?

O homem se calou, como se não soubesse rebater.

— Estamos investigando Ottis há muito tempo — esclareci.


— Sabemos exatamente por que o Cartel perdeu o prestígio, e

agora, sequer tem um nome, já que quem deveria elevá-lo, foi


morto pelo próprio povo. Sabemos todos, exatamente do porquê
eu estou aqui.

— O que você quer, Kang?


— O que todo Kang quer, justiça — falei, encarando o
homem mais novo, no fim da mesa, que tinha um olhar direto em
Sara. — Do jeito certo.

— Não tem como reconstruir esse Cartel — ele rebateu, e


levantou uma das mãos. — Convoco uma votação. Um homem

estrangeiro, que aparece sem ser convidado, e que investigou


todas as nossas vidas... Ele não deve ser o futuro do Cartel.

Três outras mãos se levantaram. E de repente, eram

quatro versus quatro. Como eu já imaginava.

— Não é um pedido, senhores — falei, olhando para cada


um deles. — A minha presença aqui é uma ordem. Quem não

estiver satisfeito, pode tentar reviver Ottis no alto daquele morro.

— Seu...

— Pediram aos Kang a ajuda, que tomassem a


responsabilidade — a voz de Sara soou fraca, mas de repente,

todos estavam calados, e fiquei preso nela. E ela levantou a mão,

deixando o seu voto, que sequer sabia que era válido. — Eu voto

para que Chae Kang seja uma transição até encontrarmos o


próximo chefe do Cartel.

— Senhorita...
— Eu sou a herdeira, não sou? — rebateu, olhando

diretamente para o homem que abriu a votação e agora tentava


calá-la. — Ottis tirou minha herança por poucos anos, e destruiu o

prestígio desse Cartel. Precisamos de alguém que saiba como

reconstituir isso, o mais rápido possível. E eu não tive qualquer


preparo, graças ao próprio conselho do Cartel, que resolveu dar

uma chance ao homem errado para ser o chefe.

— Sabemos que o antigo conselho se fez de cego, e

apenas queriam um homem à frente do Cartel, e Guillermo era


tudo o que eles queriam — Ramon se manifestou. — Esse

conselho foi formado para aprender com isso.

Enquanto eles falavam, e eu filtrava tudo em meu interior,


começava a juntar as peças de como os Hernández eram uma

família influente, até o momento em que Maria Hernández e

Teresa Hernández faleceram em um acidente. Que eu sabia, que


por mais que tivessem tentado encobrir, foi encomendado pelo

próprio Ottis. Kalel tinha conseguido confissões que poderiam

durar semanas, para que eu colocasse para fora. E então, ele fez

Roberto Hernández, o filho fora do casamento do antigo marido


de Maria Hernández, que não carregava aquele sangue, dever
mais do que poderia. E então, vender-lhe algo mais valioso do

que qualquer um poderia mensurar – a real herdeira do Cartel.

Sara era a herdeira.

Era por aquilo que a respeitavam.

Foi por aquilo que eles se revoltaram, quando descobriram

partes do que ela passou.

E mesmo com algumas lacunas, eu começava a entender.

— Um Kang conseguiu, completamente sozinho, se infiltrar


no Cartel e descobrir o pior que acontecia aqui, e ver que a justiça

precisava ser feita — falei, lembrando-me do que Kalel passou,

justamente ali. — Apenas outro Kang pode reerguer isso, vocês


querendo ou não.

— O que pretende fazer, senhor Kang? — o homem que

sabia ter dezenove anos, e foi um dos corajosos, que derrubou


Guillermo e o machucou à frente de todos, mesmo que não fosse

a hora, falou. Ele tinha coragem, era um fato. — Além de

palavras?

— Não sou conhecido por palavras bonitas — respondi,


dando de ombros. — Vamos fazer esse Cartel ser respeitado, e

que o temam. Assim como fazem com a minha família.


— Não estou com medo algum de você, Kang.

E lá estava a voz irritante, que votou contra e que parecia o


fazer, não porque não me queria no poder. Porém, porque queria

permanecer ali. Era bastante óbvio.

— Não precisa ter medo de mim, Alberto. — Seus olhos se


arregalaram. — Deveria ter medo do fato de que uma das grades

de trás da sua casa foram entortadas, e se Guillermo não tivesse

morrido e outros mortos, você seria apenas mais um na lista dele,

assim como suas irmãs.

Ele então se levantou, como se pronto para vir até mim.

— Como... Como sabe disso?

— Eu sou o que precisam, e o que Sara escolheu — falei

simplesmente, ignorando-o. — Temos mesmo que perder mais


tempo antes de assinar os papéis e fazermos isso dar certo?

— Eu concordo com o senhor, Kang — Sara disse, e eu

passei a notar que aquele lado seu, só aparecia ali. — Todos nós
temos que saber quando ceder à ajuda, e esse é o momento, A

fome cega por poder, por qualquer meio, tornou tudo isso apenas

uma piada.

— Senhorita Hernández?
— Sim, Martin. — Virou-se para um dos homens que ainda

se mantinham em silêncio. — Ficará à vontade, em se unir em

outro casamento, sem realmente ser o que deseja?

Ela assentiu levemente, sem sequer pensar.

— Se Chae Kang for como Guillermo, serão os primeiros a

saber — falou, sua voz apaziguadora. — Sei agora que existem

pessoas ao meu lado, e não estou sozinha.

Então foi isso?

Ela não sabia do próprio poder? Ela foi tirada de seu

próprio poder?

Mãos foram levantadas, e mesmo o que votou contra

primeiro, a fez, assim como Sara. Uma decisão unânime, em um


conselho do Cartel.

— Cartel Hernández, então?

Minha pergunta os fez me encararem, e vi a forma como


eles pareciam começar a entender que eu não estava ali à toa.

Senti um olhar diferente, o qual não me atravessava ou parecia

assustado, e então o procurei, encontrando os olhos castanhos


de Sara.
Ela tinha um semblante terno, mas foi como se eu

conseguisse ler ali, que ela precisava sair daquela reunião o mais
rápido possível. Tudo parecia ser demais para ela. E naquele

momento, senti que eu também o era, mesmo que ela não

admitisse.
Capítulo 11

“Tenho tanto medo

É que não entendo

O que eu fiz de errado”[16]

SARA

— Ela não deu trabalho? — perguntei, e tanto Berta quanto


Luisa negaram com a cabeça.

Olhei de relance para Matê dormindo tranquilamente,


agarrada a seu edredom colorido, cheio de brilhos, e que parecia

um tanto quanto a bagunça que estava em suas unhas, que ela

mesma tinha feito.

Chae Kang prometeu.


Chae Kang cumpriu.

Ele tinha, de algum jeito, conseguido os esmaltes de todas

as cores possíveis, assim como glitters, e todos os utensílios para

se fazer unha. Olhei para as mãos de Berta e Luisa, e estavam


com as unhas também pintadas, do jeito que Matê conseguiu.

— Ela vai querer fazer a sua unha, menina — Berta falou, e

eu assenti, suspirando fundo. — Ela se cansou, de tantas cores e

opções. Disse que vai pintar, cada dia, as unhas de uma cor.

— Ela está sendo apenas o que ela é — comentei, e as

mulheres que eram dez e vinte anos mais velhas do que eu,
assentiram, como se entendessem. — Obrigada mesmo, por

sempre estarem aqui.

— Sabe que sempre estaremos.

Acompanhei-as até a porta, e vi o momento em que um

carro parou para levá-las. Era o marido de Berta, que sempre as

levava para casa. Mesmo que fosse um lugar seguro, ainda

assim, temíamos por alguma represália, por elas terem escolhido

estar do meu lado. E eu estava descobrindo, cada dia mais, o

peso que era escolher um lado em tudo aquilo.


O peso que minha mãe e avó não queriam que eu
carregasse, e pagaram um preço alto por ele. Olhei ao redor,

como se em busca dos olhos escuros de Chae, mas não o

encontrei, e sequer algum barulho. Alguns panos brancos ainda

cobriam partes dos móveis, intocados, já que não tivemos muito

tempo.

E Matê, com certeza adoraria terminar de retirá-los comigo,

no dia seguinte.

Parei novamente na sala de música, com uma das mãos

sobre o piano, e me perguntando, tanto para o nada, quanto para

tudo: eu estava segura? Nós estávamos seguras? Eu tinha

tomado a decisão correta em finalmente tomar uma decisão?

Olhei pelas janelas e notei que as luzes do jardim estavam

acesas, e eu sabia que elas se apagavam, se não houvesse

movimento. Chae estaria lá? A minha curiosidade, sendo maior do

que o medo, e eu caminhei para longe do piano, e para a porta de


trás da casa.

Ele estava de costas, dando passos para a frente, e depois


para trás, como se tentando pensar sobre algo. E por um

segundo, eu gostaria de poder perguntar: o que ele estava

sentindo naquele momento?


CHAE

Aguardei no jardim, parado enquanto tentava raciocinar

tudo o que tinha acontecido. Uma data de casamento marcado,


para dali a duas semanas. Pensei se deveria tocar meu ponto e
avisar, ou apenas mandar uma mensagem pelo celular, avisando

meus irmãos.

Um movimento simples, mas que era bem nítido para meus

ouvidos.

— Sei que está aí — falei, e mudei minha expressão,

virando-me apenas o suficiente para ver Sara, parada a alguns


passos dali. — Ali pode ser um bom lugar para começar a

aprender a lutar... — indiquei a casa conjugada, que ficava no


jardim, e parecia ter sido usada como alguma brinquedoteca no

passado.
— Não vai me perguntar nada? — indagou, como se me

testando, ou testando aquele terreno.

— Eu tinha alguma ideia de que era importante, mas o fato

de ser a real herdeira do Cartel, me faz pensar em como esse


peso está sobre si — comentei, não querendo ser ainda mais

invasivo. — É bom saber com quem estou lidando, da parte


prática da coisa. Mas eu não te conheço realmente, e ser ou não

a herdeira do Cartel, não faz tanta diferença.

Não mesmo.

E eu sabia daquilo, porque Guillermo Ottis conseguiu

dominar aquele lugar por anos, e subjugar quem deveria estar no


comando. Ele não saiu impune, mas levou anos e mais anos para

que pagasse, minimamente, pelos seus crimes.

— Faz diferença para eles — comentou, como se

lembrando de algo. — Minha mãe e avó tentaram esconder isso,


me esconder, mas... Em algum momento, eu ouvi os sussurros,

eu entendi o que as paredes pareciam querer esconder, e quando


percebi, eu já estava vendida, e o sobrenome Hernández se
perdeu de fato.
— Não mais. — falei, e vi que ela parecia se culpar por
aquilo. — Pode fazer o seu melhor nesse um ano, e quando
encontrar alguém para estar no comando, apenas ir. Sem se

prender mais a isso, ou se permitir isso. Matê não precisa de uma


vida assim também.

— Tem como fugir de quem somos?

Sua pergunta era que eu me fiz, por um longo tempo. O


Chae de doze anos, com toda certeza, duvidaria de que era

possível. Porém, aos trinta, eu sabia que sim. Eu sabia que eu era
mais do que o meu sobrenome, no passado, me marcava.

— Seu sobrenome não define quem você é, se é isso que


deseja — falei, e sorri para ela. — Você é apenas você, em algum

momento, saberá disso.

— Nunca pensei que estaria aqui, de volta para essa

casa... — admitiu, os olhos tomando um brilho que eu até então


desconhecia. — Que eu seria livre, de certa forma.

— Presa a mim por um ano, mas não para sempre —


brinquei, e seu olhar voltou para o meu. — Nada é realmente para

sempre.
Vi que ela queria indagar algo, como se a pergunta
estivesse na ponta da língua, mas ela a segurou. E eu a respeitei,
sabendo que existia um longo caminho para percorrermos.

— Mas seria bom, sabermos algo um do outro, como num


jogo — falei, sabendo que de alguma forma, eu tinha que

continuar aquela conversa. Uma vontade incessante que eu não


compreendia.

— Como assim?

— Como coisas favoritas? — Dei de ombros. — Temos o

sorvete favorito igual, mas e o resto? Não sabemos mais nada.

— Você sabe sobre mim, senhor Kang. — Revirei os olhos


pela forma como me chamou, e fingi que aquilo era uma calúnia.

— Não sabe?

— Não tudo. — Fui honesto. — Não sei qual sua banda ou


cantor favoritos?

Ela pareceu pensar, e de repente, seu brilho foi se

apagando.

— Sara?

Chamei, minutos depois, vendo-a se perder em sua mente.

Ela piscou algumas vezes, e então me encarou, como se


buscando alguma força.

— Eu não podia ouvir música ou cantar... — falou, olhando-


me claramente envergonhada. Até mesmo, como se humilhada.

— Sem barulho, sem nada assim... E eu acho que me esqueci

como se toca, como se canta.

— Mas você pode cantar agora — incentivei-a, e vi a forma

como parecia piorar a situação. — Pode ser barulhenta, ou o mais

puro silêncio. É uma escolha apenas sua.

Ela balançou a cabeça, como se absorvendo aquilo,


porém, me encarou, sem deixar que lágrimas descessem.

— Qual sua música favorita, senhor Kang?

— Aquela em que você me chama de Chae — respondi, e

notei a forma como seu rosto começou a voltar a vida. — Mas


sério, uma música? Uma só? — Mordi os lábios, como se

pensando e repensando.

Como eu poderia encontrar uma, em meio a tantas?

— Pode ser a favorita do momento? — indaguei, e ela

assentiu. — Conhece algo do kpop?

— Eu assistia doramas bem baixinho, ou sem som, então...

— me doeu a breve confissão, mas assenti, tentando não


adentrar um assunto que a machucava daquela forma. — Quer

me mostrar?

— Ok, ok! — Levantei as mãos, como se me mostrando. —

Se é isso que quer, é isso que terá.

— O que quer dizer?

— Vou te mostrar sobre o comeback do momento. —

Peguei meu celular e abri o youtube, procurando por Stray Kids.

— Comeback?

— É quando um artista do kpop ou um grupo do kpop lança

um novo álbum — expliquei, e estiquei-lhe meu celular, que já

estava na aba do mais novo MV. — Aqui, esse é o meu grupo


masculino favorito do momento, e eles se chamam...

— Stray Kids? — indagou, e eu assenti, vendo-a ler, e

aceitar cautelosamente meu celular em mãos. — Eu posso... —


ela então se calou, e lhe dei um leve olhar.

Ela não precisava pedir. Nunca mais.

Então ela apertou para o vídeo rodar, e eu me segurei para

não me colocar ao lado dela, e assistir pela décima vez naquele


dia. Em momentos de guerra ou paz, a música sempre foi boa
para minha alma, e a felicidade que eu sentia, quando algo novo

saía, não poderia ser explicada.

Apenas as pessoas, apaixonadas por música como eu,

poderiam entender.

Comecei a cantarolar baixinho, e vi os olhos dela se


arregalarem no refrão, que era impactante. Os três minutos se

passaram rapidamente, e ela me encarou, claramente gostando

do que viu. Ao menos, eu torcia para que sim.

Como eu poderia ficar casado por um ano e não


compartilhar músicas com a pessoa? Era inadmissível.

— Eles são... São muito bons.

Soltei o ar aliviado.

— Isso porque ainda não ouviu todo o álbum — falei, como


se fosse um mestre naquela área.

— Deve ser bom, e melhor ainda, se eu entender o que

eles falam...

— Tem o melhor sul-coreano à sua frente e está me


dizendo que não pode aprender essa língua? — dramatizei, e ela

me encarou, um brilho em seus olhos, retomando cada parte do


castanho. — Eu já tenho o seu número, mas não queria parecer

invasivo.

— Por quê?

— Porque daí, vou te encher de links dos menus


comebacks favoritos, e claro, as playlists que tenho junto às

minhas irmãs. — Olhou-me atentamente. — Eu aposto que vai

gostar de Taylor Swift.

— Eu ouvia... — falou, como se numa memória vaga. —

Anos atrás, acho que deve ter sido o álbum RED, o último que eu

aprendi a tocar no piano e cantava algumas músicas...

— E você sabe que saiu a versão de dez minutos de All


Too Well? — indaguei, e vi-a franzir o cenho, como se tentando

assimilar. — Ok, vamos por partes.

— Vai ser o meu instrutor musical também? — provocou, e

eu dei uma risadinha, sabendo que buscava um sorriso dela,


mesmo que não pudesse admitir a mim mesmo.

— Vou ser o meu melhor para você, Sara.

Ela me olhou e diferente da tensão que poderia se


instaurar, após uma fala que apenas saiu sem qualquer filtro, mas
com uma intensidade que eu não sabia que tinha, e Sara

assentiu.

E de certa forma, eu não me permitiria ser menos do que

cem por cento por ela. E algo dentro de mim gritava, de que ela

era mais do que uma amostragem de uma música de dez

minutos, de pé em um jardim que agora seria minha casa


também.
Capítulo 12

“Pouco a pouco, o coração

Vai perdendo a fé

Perdendo a voz”[17]

SARA

Senti que estava quente.

Busquei por Matê na cama, e então, encontrei apenas

edredons. Arregalei os olhos de imediato, e ouvi um som alto.


Levantei-me, vestida com o conjunto de moletom que era a minha

única roupa limpa naquele momento, e corri para fora do quarto.

Olhei ao redor, e logo comecei a recordar-me de onde

estava.
O barulho alto podendo ser identificado como música e

risadas. A risada animada de minha filha, enquanto falava


rapidamente. Dei passos na direção e parei próxima à cozinha,

vendo o momento em que Chae Kang jogou uma panqueca para

o alto, e ela caiu perfeitamente no prato que Matê segurava.

Ela...

Ela confiava nele.

Como eu nunca a vi fazer, com nenhum outro homem

antes. Nem mesmo Ramon.

— Perfeito! — ela gritou, e então continuou a estender o

prato. — Mais um, senhor Chae!

— Só porque o Kang saiu — ele falou, e então vi-o se virar

para o fogão e seu olhar encontrou ligeiramente o meu. — Bom


dia, senhorita Hernández.

Dei um leve aceno e então vi Matê me encarar.

— Mamá, o senhor Kang sabe fazer panquecas voadoras!

— ela falou animada, e então me mostrou o prato com uma das

mãos, enquanto me puxava com a outra.

— E eu voltei a ser “senhor Kang”? — Ele fez uma careta

de desapontamento.
— Senhor Chae — ela corrigiu e ele deu um sinal positivo
com a mão, voltando para a frigideira.

Eu sequer sabia de onde tinha saído aquela comida.

— Pedi para que alguém da minha confiança fizesse as

compras e trouxesse hoje cedo — ele falou, como se lendo minha

mente, e eu olhava para Matê, que mostrava as panquecas que

se empilhavam no prato ao lado do dela. — E Matê me contou


que ela não vai à escola.

— Eu a ensinei em casa, nesse tempo — falei, sem saber


o seu ponto. — Por quê?

— Pensei que seria bom, em algum momento, ela ir à

escola, mas parece mais seguro, por agora, permanecer em casa.

— Também acho — concordei, tentando entender o porquê

de ele parecer tão preocupado e cuidadoso.

— Não pense demais, Sara.

Ele então piscou um olho, e Matê me entregou um prato,

como se fosse meu momento.

— Pronta? — ele indagou, e eu olhei para Matê, sem saber

o que fazer, enquanto segurava o prato, e ele estava de costas

para mim. — Eu espero que sim.


Então, ele apenas jogou a panqueca, e eu a vi cair

perfeitamente no meu prato Matê gritou animada, e ele cantou


junto à música, conforme eu tentava entender o que acontecia.

Eu saí do silêncio, mais doloroso e dilacerante para um


estrondo, mais acolhedor e diferente do que eu realmente

conhecia. Na verdade, era familiar. Como no meu mais antigo eu.


Quando aquela cozinha, era viva, comigo, mamãe e vovó.

Por alguns segundos, eu era apenas Sara. Talvez mesmo,

até Sarita.

— Calda? — a pergunta me tirou dos pensamentos, e

assenti, vendo-o derramar algo sobre a panqueca. — É de


chocolate, já que Matê disse que é o favorito das duas.

— Eu... Obrigada — foi tudo o que consegui dizer.

Ele então foi até as panquecas empilhadas, despejou a

calda e vi Matê com um sorriso preso no canto da boca,


analisando-o, e animada de uma forma que não a via há tanto

tempo.

Eu queria dizer aquele obrigada.

Pela primeira vez, em todos aqueles anos, eu me sentia

grata.
E eu esperava que não estivesse errada em imaginar como

seria, se Chae Kang não fosse apenas meu marido por contrato
por um ano, mas quem sabe, um amigo.

CHAE

— Deveria ser deserdado, brutamonte — Hinata falou, e vi


Jeon segurar um sorriso atrás dela, que com certeza, estava
nervosa.

— Só por que não dei sinal de vida depois de uma simples

reunião? — debochei.

— Cha Oppa quase pegou um voo diretamente para aí. —


Dove falou, e eu fiquei um pouco incomodado. — Sabe que ele é

superprotetor com você.

— Eu sou ótimo me protegendo. — Pisquei um olho, e vi-a

me analisar. — O quê? Eu estou ligando agora.


— E por que tem farinha na sua camisa? — Kalel
perguntou, e então encarei minha camiseta preta, justa ao corpo,
que eu usei para correr antes de pegar as compras com Serena,

e voltar para casa.

Casa – que agora tinha uma nova definição.

Uma gargalhada alta e animada, com olhos quase


desaparecendo, apenas porque estávamos fazendo panquecas.

Um olhar castanho confuso, mas acolhedor, de quem


estava aprendendo a como era recomeçar.

— Eu fiz panquecas — respondi, dando de ombros. — E


estavam muito boas.

Silêncio, foi o que se tornou aquela chamada de vídeo,


com meus irmãos me encarando. Hari tinha um sorriso no canto
da boca, e Kalel parecia querer entender. Hinata arregalou os

olhos, mas deveria estar criando uma fanfic, já Jeon me analisava


por completo. Dove deu um sorriso de lado, e Vincenzo...

Vincenzo apenas pareceu querer estar ali para me ver fazendo


aquilo.

O lado bom de ser um ótimo analisador: conseguir ler

todos, até mesmo sua família.


O lado ruim: o mesmo que o lado bom, só que com o
bônus de não querer de fato, às vezes, saber o que o outro
realmente pensa.

— Vou te encontrar entregando um anel de papel no


casamento?

Revirei os olhos para a pergunta de Hinata, e neguei com a

cabeça.

— Sabe o que isso significa, e não... não é o que está

pensando.

— Vou fingir que acredito, assim como você.

Então eu sabia que a porta do lugar que improvisei como


uma academia, tinha sido aberta, e que alguém se aproximava. E

pelos passos silenciosos, quase inaudíveis, sabia que era Sara.

Algo dentro de mim também, parecia querer me alertar, sempre


que ela aparecia.

Isso era bom?

Isso era ruim?

Eu ainda não sabia.

— Tchau, família Kang! — falei, e dei um leve aceno com a


mão, antes que eles vissem Sara e desfiz a chamada. — Pode
parar os passos voltando para fora. — Virei-me no lugar em que

estava sentado, e a encarei, vendo que estava perto de sair dali.

— Não sabia que estaria ocupado.

— Eu vou estar, ou melhor, vamos estar, daqui a duas

semanas, quando assumirmos esse Cartel — comentei, e me


levantei. — Pensando em começar hoje?

— Não sei o que preciso para isso, mas... — ela então

jogou os braços para trás, e respirou fundo. — Eu quero aprender,

para poder proteger Matê.

— E se proteger, claro. — Lembrei-a de si.

Era como uma necessidade, dizer-lhe, que ela também era

importante. Às vezes, era tudo o que uma pessoa precisava para

se sentir parte de algo, mesmo que não fosse o seu lugar favorito.
O pertencimento era necessário, e eu sabia bem daquilo.

Em alguns momentos, vendo-a fragilizada daquela forma,

eu me via. Via quem eu era, quem eu já fui, e quem eu não queria


ser.

— Matê? — perguntei, e ela indicou a porta atrás, a qual

apareceu uma cabeça infantil, nos encarando. — Por que não

entrou?
— Porque eu estava esperando a mamá chamar.

— Pode entrar, cariño.

Sorri do apelido e de como Matê combinava perfeitamente


com ele. Vi-a se aproximar, e notei que as duas tinhas roupas que

não eram de fato adequadas para os exercícios, mas poderíamos

resolver aquilo mais tarde.

— O básico do básico... — falei, apertando o aparelho de


som, que estava conectado ao meu celular. — Uma música que te

inspire, a ficar mais animado.

As duas assentiram, e eu continuei.

— Me mostrem, como me dariam um soco — pedi, e vi


Matê passar à frente da mãe, como se animada. — Quer

começar?

— Posso, mamá? — perguntou, e a mãe assentiu, e via a


clara desconfiança em seu olhar, não com ela, mas para comigo.

— Dê o seu soco mais forte na minha palma — pedi, e ela

pareceu analisar minha mão, e pensar sobre. — O mais forte.

Então ela fechou a pequena mão e não pensou mais,


apenas deu um soco. Estava errado e eu sabia, pela forma como

deveria ter doído mais nela do que em mim.


— Ai — reclamou, e eu a encarei.

— Vou te ensinar em como fazer essa dor, ser apenas em


quem quiser machucar.

— Não que precise machucar alguém, mas para se

defender — Sara me corrigiu, e eu assenti para ela, assim como


para Matê.

— Sua vez — falei, e notei a forma como respirou fundo,

mesmo que tentando não demonstrar o nervosismo. — É apenas

a minha mão, mas imagine algo que realmente quer machucar.

Ela fechou os olhos, e vi a forma como seu corpo se

moveu, e seu soco acertou minha palma com força, de forma que

doeu nela, mas causou um leve formigamento na minha pele. Não

era algo que eu conhecia. Não era dor. Não sabia o que era
aquilo.

Ela então abriu os olhos, enquanto Matê batia palmas,

claramente animada pela mãe.

— Então?

Pisquei algumas vezes, e só percebi que eu estava

encarando minha mão, por tempo demais. Sem entender o que

tinha sido aquela sensação.


— Vamos melhorar isso.

Sorri, para disfarçar o meu desconcerto e tentei focar no

que acontecia ali. No presente, mesmo que minha mão ainda

tivesse um formigamento, que agora parecia vir para o meu braço,


e se encaminhar por toda minha pele.

O que diabos era aquilo? – era o que me perguntava,

enquanto começava a ensiná-las.

E quando os olhos castanhos de Sara, atentos e

concentrados, encontravam os meus, pareciam ter uma resposta.

A qual, eu não conseguia ler. Eu não sabia como analisar. E pela

primeira vez, eu não sabia o que realmente se passava na mente


de alguém, e o pior, era a minha mente.
Capítulo 13

“Sobrevivo por pura ansiedade

Com um nó na garganta

É que não deixo de pensar em você”[18]

SARA

Olhei para as mensagens em meu celular, o aplicativo que


mostrava a foto de Chae Kang, após eu adicionar seu número, e

não sabia o porquê, mas fiquei um tempo, apenas encarando a

sua foto, como se presa a ela.

Os barulhos no quarto, que era de Matê, o mesmo que um

dia foi meu, anos atrás, e agora, parecia com brilho novamente.
Ela estava deitada na cama, dormindo, mesmo que ainda fosse a
tarde. Só nós sabíamos o quanto aquilo era importante. O fato de

ela conseguir descansar de fato, depois de uma infância regada à


noites quase insones ao meu lado.

Ela tentava me proteger, desde sempre. Mesmo que não


tivesse ideia do que realmente acontecia, ela sofria. Não era

justo, uma criança ter que enfrentar o mundo daquela forma.

— Descanse bem, cariño — falei, tocando seus cabelos

com carinho e dando um leve beijo em sua testa.

Ajeitei o edredom que caía de seu corpo, e ela se enrolou

ainda mais nele. Meu celular vibrou e eu respirei fundo,


lembrando a mim mesma que apenas poderiam ser duas

pessoas. Ninguém mais. Não mais ele.

Olhei para a tela, e então encontrei a foto de Chae ali,

ainda me encarando. Toquei a tela, sem entender exatamente se

tentava sentir a sua pele ou se tentava entender o porquê de eu

não temê-lo ao encarar sua foto. O que tinha de mais nele? O que

parecia ter de mais naquele homem?

— Mais vídeos das músicas que eu gosto.

Li a mensagem em voz alta, e sorri, vendo os vários links

que iam surgindo. Eu estava ainda me acostumando, com aquele


tipo de troca. Fazia tanto tempo que ninguém me indicava algo
para ouvir, ou conhecer, que de repente, era apenas como se

estivéssemos trocando bilhetes escondidos, um para o outro.

Mesmo que fosse apenas ele que os enviasse, eu lia todos.

Saí com cuidado do quarto de Matê, e mesmo me sentindo

culpada, não pude deixar de trancar a porta atrás de mim,

colocando a chave em meu bolso. Eu não sabia explicar, mas era

quase como se um hábito, para mantê-la a salvo, mesmo que eu

sempre soubesse que uma porta não era o suficiente para

segurar a ira do homem que um dia esteve em nossas vidas.


Contudo, eu o fazia. Um empecilho, que funcionou por muitos

anos, mesmo que não fosse o único.

Caminhei pela casa, olhando cada cômodo e vendo que


agora, tudo estava descoberto, mostrando o quanto ainda parecia

o mesmo lugar. Como se a qualquer momento, vovó chegaria e

me diria para parar de tocar um pouco, e ir ajudar minha mãe com

o jardim. Como se a qualquer instante, mamãe apareceria e diria

para vovó me deixar tocar, porque eu ainda tinha todo tempo do

mundo para me interessar em jardinagem.

Fechei os olhos, como se pudesse reviver aqueles

momentos. Sentindo os raios solares, que adentravam as grandes


janelas, encontraram a minha pele, como se fosse tão quente

quanto aquela parte da minha história era. Como se fosse


possível ter um lar novamente, mesmo que por alguns segundos.

Como se eu pudesse, criar aquelas memórias boas com


minha filha, e ela descobrir que a vida não era para ser como foi.

Não era. Nem deveria.

Abri os olhos, e me vi novamente, de frente para o piano,


sentando-me à frente dele, e testando as teclas, como se

tentando encontrar-me ali. Tentando saber se eu ainda lembrava


algo.

Qual sua música favorita? – foi a pergunta que fiz a Chae,


e fazia a mim mesma, após aquele dia. Há tanto tempo eu não

pensava a respeito, que era como se tivesse me esquecido de


uma das partes minhas, que tanto amava. Que elas amavam.

Respirei fundo, fechando os olhos, e deixando meus dedos


se moverem, como se eles tivessem vida própria. Uma memória
bem lá no fundo da minha mente, da banda que foi a única que eu

consegui assistir um show, e que foi um dos dias mais felizes da


minha vida.
E assim como meus dedos, a minha boca pareceu

encontrar aquele caminho pela minha memória, e deixei que ela


saísse. Em voz alta. Deixando toda a tormenta que sempre me

envolveu, não ser algo ruim. Que ela fosse apenas os meus
sentimentos sendo expostos, como no passado. Como quem eu

era. Como quem eu gostaria de ser.

— “É doloroso saber

Que o que temos pode acabar

Por apenas e simplesmente

Eu nunca saber como agir

E sei que você morre por mim, vive por mim

E nunca me abandonou

Mesmo sabendo que às vezes

O medo me domina...”

Em meio à música, senti meu corpo relaxar, assim como


um sorriso, se abrir em meu rosto. Depois de tanto tempo, que

eles apenas eram de minha filha, eu me vi sorrindo, por mim. Por


algo que eu fazia.
— “Mas você vive em mim, junto comigo

Dentro de mim

Nesse meu coração confuso

Por isso te peço por favor

Me ensine

A te amar um pouco mais e a sentir contigo

O amor que você me dá espanta o frio

Quero te ver agora

Me ensine

A te amar um pouco mais e a viver contigo

Porque não aguento mais esperar pra ficar com você

Quero ir aonde você for

Longe de pensar

Que estou me fazendo mal

Preciso reconhecer
Que tudo isso deu errado pra mim

Por isso vou aprender, vou viver

Vou te abraçar mais e mais

E não quero, não devo e não posso parar de te ver

Porque você vive em mim, junto comigo

Dentro de mim

Nesse meu coração confuso

Por isso te peço por favor...”[19]

Parei, sentindo uma lágrima descer e chegar a meu sorriso,

que logo se fechou, mas que de certa forma, começou a fazer


algum sentido. Eu ainda sabia como tocar. Eu ainda sabia do que

eu gostava. Eu ainda poderia resgatar quem eu era, de algum

jeito. Mostrar a Matê que eu era mais do que uma mãe que ela viu
sofrer.

O barulho de vidro me fez travar no lugar, ao mesmo tempo

que eu me lembrei, dos sons propositais que Chae Kang fazia,


quando se aproximava, como se sempre estivesse me avisando,

de que estava chegando.

— Eu deveria ser mais cuidadoso — falou, colocando o

vaso que estava agora mexido, e ele recolocou no exato lugar.

— Sei que faz barulho para me alertar — comentei, e vi a


forma como sua expressão mudou, como se não esperasse por

aquilo. — Obrigada por isso.

— Anda agradecendo muito, mas suando de menos na

academia, que finalmente consegui todos os aparelhos... —


provocou, enquanto eu ainda encarava as teclas do piano, e

sentia uma parte de mim, voltar à vida.

— Me ouviu? — perguntei, e voltei meu olhar para ele. —

Tocando e... — Engoli em seco, antes de continuar. — Cantando?

— Não vou mentir que não — respondeu, com um olhar

calmo. — Mas podemos não falar disso, se não quiser.

Assenti, levantei-me do banquinho e me afastei do piano,


passando por ele, e indo até o corredor, para ver se ouvia alguma

coisa.

— Ela poderia ter um celular, para que nunca duvidasse se

está tudo bem, e pudesse te chamar, quando acordasse.


Suas observações, no meio do meu caminho, me fizeram

encará-lo. Como eu diria aquilo para ele? Como eu poderia

confessar algo assim?

— Eu... — neguei com a cabeça, querendo espantar meu


pesar. — Eu ganhei esse celular, e não tenho um trabalho, Kang.

Ele então pareceu pasmo com o que eu dizia.

— Quer dizer que o Cartel não te deu acesso ao dinheiro


que é seu? — indagou, e eu neguei com a cabeça, sem saber do

que ele falava.

Ele falou alto em sua língua, e sabia que deveria ser

coreano, porque não entendi absolutamente nada.

— Vamos atrasar nosso treino em... — ele encarou o

relógio em seu pulso, e notei uma veia saltar em seu pescoço. —

Em quinze minutos.

— Está tudo bem? — perguntei, como se perdida.

Ele suavizou sua expressão, assim que seu olhar parou no

meu.

— Vai ficar, Sarita.

Ele falou simplesmente, e vi-o andar a passos largos pelo


corredor. Não sabia se ele tinha sequer percebido a forma como
me chamou, e muito menos, o que iria fazer. Porém, nunca o tinha

visto daquela maneira. E era um lado novo, e mesmo assim,


percebi que não me assustou.

A clara raiva em seu rosto. A forma como seu corpo estava

tensionado. A maneira como esbravejou. Nenhum deles me

assustou. E eu só conseguia pensar que ele tinha acabado de me


colocar um apelido, e eu... eu gostei.

O que estava acontecendo ali?


Capítulo 14

“Abrir as asas para fugir sem limites

Para encontrar liberdade

Longe daqui, longe daqui”[20]

CHAE

Ignorei os olhares.

Ignorei a forma como claramente me julgavam.

Parei à porta da igreja, encontrando o mesmo Meireles,

parado ali, e antes que ele fizesse qualquer pergunta, desarmei-o

de seu fuzil, e o peguei pela camisa, jogando-o contra o piso da


porta de madeira aberta.
— O que pensa que está fazendo, Kang?

Peguei o fuzil em mãos e destravei.

— Por que elas não têm dinheiro? — perguntei, e apenas

tinham dois membros do conselho ali, enquanto o homem no

chão, me olhava claramente com ódio. — Eu preciso matar


alguém para saber que porra estão fazendo com Sara?

— Apenas abaixe a arma, senhor Kang.

A voz de Ramon surgiu às minhas costas, e se eu não

confiava nele antes, agora, muito menos.

— Elas têm o dinheiro, foi passado a Ramon e... — Martin

falou, olhando-me como se tivesse controle sobre tudo. Uma


expressão nervosa, mesmo que mínima em seu rosto – um

mentiroso nato.

Então foi quando me virei, e o fuzil foi apontado

diretamente para cabeça de Ramon.

— O que está fazendo com o dinheiro delas?

— Eu... Eu não sei de dinheiro, senhor Kang. — Uma

confissão sincera.

— Vá na frente — exigi, e puxei-o, colocando-o para andar,

até a mesa que os outros dois homens se levantaram.


— Isso não era o assunto que você ficou encarregado de
resolver com Ramon, Martin? — Alberto perguntou, e o homem

assentiu, confiante em sua expressão, e como se pudesse

enganar alguém.

Não a mim.

Nunca a mim.

Coloquei Ramon de qualquer jeito na cadeira, e notei que

Alberto, que claramente me detestava, passou apenas a assistir a

cena, como se juntando algumas peças, e esperando uma


resposta, a qual não veio de Martin, que apenas assentiu com a

cabeça.

— Ninguém vai ser claro sobre o que houve? — perguntei,


e notei Ramon sem palavras, Alberto me analisando e Martin com

um quase sorriso no final do rosto. — Por que não deram a ela, o

acesso às contas, em alguma reunião?

— A senhora Hernández teve que passar por muito nesses

dias, e não queríamos que ela acabasse ficando ainda mais

confusa, e preocupada — Alberto falou, e vi que não mentia

sobre.
— Por que ter acesso ao que é dela por direito seria uma

preocupação? — perguntei, querendo rir de ódio daquela cena. —


Ela teve que passar por muito, anos casada com o rato que

permitiram crescer e se alimentar desse Cartel. — Olhei-os com


minha ira por um fio. — Então... — coloquei o fuzil sobre a mesa,
e dei a volta na mesma, parando ao lado de Martin, que tinha

quase que um sorriso no rosto. — Qual a pena para mentirosos


no Cartel Hernández? Como dita a tradição?

— A língua arrancada — Martin respondeu ácido, e vi o


medo estampado no olhar de Ramon, mas que não se defendeu.

— Estava demorando para descobrirmos que esse segurança,


não passava de um...

— Um homem que as protege? — complementei, e virei

meu olhar para Martin.

Antes que ele pudesse pensar, uma das minhas mãos

estavam em seu pescoço, e seu corpo sobre a mesa, quase a


quebrando pelo impacto.

— Eu gostaria que a pena fosse a morte. — O homem


tentava respirar, mas falhava miseravelmente, até que soltei um

pouco do aperto. — Sua sorte é que eu sigo as tradições, senão


seria um corpo pendurado na praça, Martin.
— Eu...

— Ele disse que passaria as contas para Ramon, para que


Sara tivesse acesso a isso... — Alberto foi quem falou, e pareceu

claramente constrangido. — Nem mesmo o novo conselho é


confiável — esbravejou, passando as mãos pelos cabelos.

— É por isso que temos que cortar cada mal, pela raiz... —
peguei então o canivete que carregava em minha calça, ainda
segurando o pescoço de Martin, que estava prestes a perder a

consciência. Mas não permiti que o fizesse, ele tinha que estar
bem acordado para o que viria. — Ou nesse caso, uma língua

mentirosa.

O homem se debateu e tentou sair, mas foi fácil segurá-lo

ali, e fazê-lo tentar implorar. Ele tinha tirado algo delas. Depois de
tudo que lhes aconteceu, e de tanto jurarem que seriam fiéis ao
Cartel, e fariam diferente, um deles, agora tirava o que era delas

por direito, assim como Guillermo o fez.

— Eu não sabia, senhor Kang.

A voz de Ramon finalmente se tornou presente, enquanto

eu terminava de fazer o homem preso à mesa, gritar pela dor de


ter sua língua arrancada.
— Deveria ter se defendido — falei, e notei o olhar
pesaroso sdele. Claramente, um homem que foi subordinado a
vida toda, e não tinha ideia por completo, de que agora, ele tinha

poder. — Você é tão membro quanto qualquer um desse Cartel.

— Senhor Kang...

— É uma ordem, Ramon. — Ele me encarou surpreso. —


A partir de agora, não vai se curvar a ninguém desse conselho.

Martin rolou pela mesa, sangue se espalhando pelo lugar e


ignorei por completo, a forma como ele agonizava de dor. Era
uma dor que ele me pediu para ter, nada além. Então, ela lhe

pertencia.

— Sim, senhor Kang.

— Chae, para você — falei, vendo que pela primeira vez,


por mais que eu não confiasse nele, ele parecia estar aprendendo

sobre como era estar naquela posição. — E Alberto?

— O que, Kang?

— Vai ser a testemunha disso, e informar aos outros... —


ordenei, e o homem me encarou, mesmo claramente não

gostando da situação. — De que eu ainda posso não ser casado


com Sara Hernández, mas ninguém vai agir contra as tradições
desse Cartel, enquanto eu estiver aqui. E Martin é apenas a prova
viva disso, até que ele faça algo mais, e possa ser uma prova sem
vida.

— Como quiser.

O homem então apenas saiu, e vi-o discar algo no celular.

Martin ainda agonizava no chão, e Ramon se levantou, dando-me

um leve aceno com a cabeça, como se agradecendo.

— Posso ter meu fuzil de volta?

— Eu até gostei dele. — Provoquei Meireles, que se

aproximava devagar, e mesmo que não gostasse de mim, parecia

ter uma expressão diferente – como se simpatizasse. — Diga o


que quer dizer, Meireles.

— Isso é o que um chefe faz — falou, pegando seu fuzil, e

me encarando em seguida. — Ele protege a família, o Cartel, dos


ratos que tentam se alimentar pelas beiradas até tomarem o

poder.

— Espero conquistar mais do que o medo aqui — avisei-o.

— Mas se não conseguir respeito, com certeza, o medo vai ser o


meu aliado.

— Estarei como seu aliado também, senhor Kang.


Ele então se afastou, e sabia que as palavras deveriam ter

saído amargas de sua boca, mas elas eram sinceras.

— Podemos ver agora, senhor Kang. — Olhei para Ramon,

que me encarava cauteloso, como se culpado por aquela

situação. — Sobre o dinheiro da senhora Hernández.

— É o que tinha que ser visto, para ontem.

Minhas palavras eram quase como um trovão, que se

reverberou dentro de mim. Caminhei para fora daquele lugar, e

senti os passos de Ramon às minhas costas. Eu sabia que tinha


dinheiro, mais do que suficiente, para prover uma vida boa para

elas pelo resto de suas vidas, mesmo que não tivéssemos mais

qualquer contato dali a um ano, porém, não deixaria, em hipótese


alguma que Sara fosse desrespeitada e enganada novamente.

E qualquer um que o tentasse, teria que enfrentar o lado

meu, que muitos não gostariam de ver – o que te faria implorar

para morrer.
Capítulo 15

“Não construa muros no seu coração

O que tiver de fazer, sempre faça por amor

Ponha suas asas contra o vento

Você não tem nada a perder

Não se contente com o seu nome escrito na parede”[21]

SARA

— Isso está certo? — Matê perguntou, enquanto passava a

base nas minhas unhas, e eu assenti, à medida que ela


continuava, atenta a como usar o que ela sempre quis.

Eu estava pronta para andar de um lado para o outro,


enquanto esperava Chae reaparecer. Tinha até mesmo tentado

ligar para Ramon, mas ele não atendeu. Cheguei a pensar em


ligar para o número de Chae, mas não tive tamanha audácia. Algo

dentro de mim, me indicava que ele foi em busca de alguma


coisa. O que seria? E por que eu sentia estar envolvida? Não

tinha ideia.

Ouvi um barulho no corredor, e em seguida, duas batidas

na porta do quarto, que estava trancado. Meu celular tocou, sobre

a cama de Matê, que também era a minha, e olhei para o visor


identificando que tinha o nome de Chae.

— Atende para mim, cariño — pedi, as unhas ainda com a

base secando, e Matê apenas deslizou um dos dedinhos para o

lado. — Sim, senhor Kang?

— Sou eu do outro lado da porta — respondeu.

— Abra para ele, cariño.

Notei a clara surpresa no rosto de Matê, que se levantou a

passos lentos, como se me dando tempo para repensar, mas foi

até a porta, girou a chave e a abriu.

— Como estão as mulheres mais adoráveis do México? —


ele perguntou de repente, do jeito galanteador que eu estava me

acostumando a ter por perto, e notei que estava com roupas


diferentes das que usava mais cedo. Por que ele já as teria
trocado?

— Eu sou apenas uma garota, senhor Kang. — Matê


rebateu, e ele assentiu, facilmente dissuadido por ela.

— Atrapalho? — indagou, enquanto eu estava com as

unhas para o alto, e a base já deveria ter secado.

— O que gostaria? — perguntei, ainda pensando na real

pergunta que gostaria de fazer: aonde foi?

— Saber se querem ir às compras comigo? — Pisquei os

olhos algumas vezes, e notei o choque no rostinho de minha filha.

Nós nunca tínhamos ido às compras juntas, nunca. E mais

uma vez, fiquei desconcertada, em ter que admitir algo assim à

frente da minha filha.

— Como expliquei mais cedo, senhor Kang — tentei falar

apenas aquilo, para que Matê não sentisse aquela realidade

sobre nós. Ela já tinha lidado com muito.

— Pois eu tenho aqui... — indicou uma pasta que

carregava, que só agora notava a existência. — O dinheiro que

pertence a vocês, com muitos juros, pelo tempo que passou

parado.
— O que quer dizer?

— Que sua mãe abriu uma conta para você, quando ainda

era muito pequena, algo legal — explicou rapidamente. — E o

que tem nela, gerou muito nos últimos anos. E pode deixar
gerando, para usar quando quiser, até mesmo fora do México.

— Nós temos dinheiro? — Matê perguntou, e notei os seus

olhos brilharem.

— Claro, o dinheiro que agora está no cofre dessa casa,

que é por direito de vocês, por serem parte do Cartel, a parte mais
alta — Chae falou, com um sorriso no canto da boca.

Eu estava incrédula, apenas o encarando, enquanto Matê


soltou um gritinho animado.

— Espera aqui um segundo, Matê — minha voz soou clara,


como um pedido, mas que ela não podia recusar.

— Vou arrumar os esmaltes no lugar, e colocar meu vestido


de sair, para irmos às compras.

— Cariño, por favor.

Ela assentiu, como se entendendo de vez o comando, e

sabendo que não deveria criar expectativas. Fiz um sinal com a


cabeça para Chae, que seguiu para fora do quarto, e passei
rapidamente por ele, indo até a sala de música, que era o cômodo

mais perto.

— O que significa realmente isso, senhor Kang?

— Que tinha um rato no conselho novo, que tentou


culpabilizar Ramon, e não permitia que o dinheiro de vocês, fosse

de vocês.

— Não sabia que tinha dinheiro.

— Mas tem, e muito. — Entregou-me a pasta. — Todos os


valores, datas e o que precisa, estão aí. Parte do dinheiro eu

deixei no cofre, outra parte em um lugar confiável, caso um dia


precisem dele, e não possa ser pego daqui.

— Martin me disse que o Cartel estava praticamente falido.

— Martin acabou de perder a língua.

Suas palavras me acertaram em cheio.

— Ele estava mentindo o tempo todo, desde que Guillermo


morreu? — indaguei, e Chae assentiu. — Como o conselho não

viu?

— O conselho está formado por pessoas que claramente

não se suportam, mas estão ali apenas pelo bem do Cartel,


porque acreditam nele, não no próximo — assenti, sabendo que
fazia todo sentido o que ele dizia. — Um conselho fraco, pode
tornar esse Cartel fraco.

— Arrancou a língua dele? — perguntei, sabendo que


aquela era a tradição, para quem mentisse, em nome do Cartel.

— Eu queria matá-lo — sua voz soou baixa e fria. —

Infelizmente, eu respeito as tradições daqui.

— Então arrancou... — soltei o ar com força. — Eu deveria

ter prestado mais atenção e perguntado... Está tudo sendo tão


confuso desde que houve essa revolta, a morte de Guillermo, e
então as responsabilidades vindas, mesmo que eu não as

compreenda.

— Acho que é exatamente o erro que o conselho está

cometendo. — Olhei-o confusa. — Você não deveria estar sem


entender, na verdade, deveria estar a par de cada detalhe.

— Talvez não confiem em mim. — Sugeri.

— Talvez eles não saibam o que é ser um conselho de um

Cartel. — Rebateu, e respirei fundo, passando a mão por meus


cabelos, e os prendendo no alto da cabeça. Algo que eu fazia,
quando parecia precisar pensar melhor. — Uma tatuagem?
A pergunta de Chae me fez lembrar do H que eu
carregava, escondido acima da nuca, quase que debaixo da raiz
dos meus cabelos.

— Uma tradição da família — expliquei, e ele me encarou


curioso. — Somos tatuados quando completamos quinze anos.

Ele então se virou, e agachou o corpo, baixando o capuz

que tinha na cabeça em seguida. Então, notei o K que ele tinha


tatuado, só que maior, que cobria grande parte de trás do seu

pescoço.

— Sorvete favorito e uma tatuagem de família... Somos até


parecidos. — Provocou, e vi meu olhar se perder um pouco, na

forma como o seu encontrou o meu, e enquanto se levantava, a

maneira como eu parecia presa a cada detalhe dele, mesmo que

eu não soubesse porque o fazia.

— Você me chamou de Sarita, antes de ir até o conselho.

— Chamei? — indagou, genuinamente surpreso. — Não

posso dizer que é força do hábito, mas se te ofendeu, eu

realmente, peço desculpas. Vou me policiar para não acontecer


mais.
— Na verdade, foi tão natural que demorei um pouco para

ter notado também.

— Sarita. — Pareceu testar em sua boca e me deu um

sorriso. — Eu disse, combina com você.

— Qual o seu apelido, senhor Kang?

— Chae — respondeu, sua expressão mudando, e eu

sabia que ele mentia. — Chae, aquele que não vai contar o

apelido que tem.

— Só quando formos amigos, certo? — indaguei, e ele


assentiu, e as covinhas apareceram em seu rosto, no largo sorriso

que me entregou. Ele parecia realmente gostar de conversar

comigo. — Então, um dia, senhor Kang.

— Um dia, senhorita Hernández.

O seu olhar sustentou o meu, e me perdi por completo,

enquanto notava que ele não procurava nada a mais em mim. Ele

apenas me encontrava naquele olhar, e de certa maneira, parecia


o suficiente. O bastante para que eu pudesse respirar aliviada.

Que tipo de sensação era aquela?

— Mamá! — a voz de Matê, fez com que eu desviasse o

olhar, e a vi no seu único vestido de sair, que era como o


denominávamos, e animada como nunca. — Nós vamos?

— Vamos, cariño.

— Vai pagar mais um picolé, não é, senhor Kang?

— Você que é rica agora, que deveria me pagar um. — Ele


rebateu, como se os dois fossem duas crianças, e Matê

semicerrou os olhos, como se pensativa.

— Certo, um picolé — ela praticamente sentenciou e ele

sorriu assentindo para ela, e dando-me um leve olhar. — Mas


cadê o dinheiro?

— Aqui — ele falou, e estendeu para ela, uma pequena

quantia de pesos, que mesmo que não fosse muita, claramente


pagava mais que um picolé. — Agora para sairmos às compras,

será por minha conta, dessa vez.

— Mas...

— Eu insisto — falou, encarando-me. — Depois que


voltarmos, te explico tudo sobre o cofre, onde está o restante do

dinheiro, e sobre o que está legalmente no banco. Só que

acredito que é o mínimo que posso fazer, bancar vocês por um


dia, já que me aceitaram aqui, mesmo com tudo dizendo que não.

— Tudo dizia para que sim, senhor Kang.


Olhei de relance para Matê, que sempre tinha uma

resposta na ponta da língua, e me vi dando um sorriso de lado


para ela. Quando voltei para Chae, notei a surpresa clara em sua

feição.

— Aconteceu algo? — perguntei, e ele negou de imediato,

mas eu jurava, que ele estava mentindo.

Eu conseguia ler Chae Kang?

Euzinha?

— Eu acho que não vou discutir sobre isso, já que Matê


está tão animada, mas... Apenas por hoje, senhor Kang.

— Apenas por hoje...

Ele deixou as palavras no ar, como se querendo dizer mais,

porém, não o fez. Por alguns segundos, apenas vi minha filha


começar a contar o dinheiro em suas mãos, e perguntando

novamente a Chae de onde ele tirou tudo aquilo. Era muito para

ela. Era muito para nós duas.

Não tínhamos nada, sequer esperança. E agora, tinha uma


pessoa, completamente desconhecida – ou nem tanto assim, que

zelava por nós. E eu gostaria de que não fosse um erro, passar a

entender que ele talvez até se preocupasse com nosso bem-


estar. E dentro de mim, a agonia que me atingiu quando ele saiu,

não era sobre o que ele faria contra alguém, era sobre se ele

voltaria. E foi quando me toquei, de que eu tinha começado a me

importar com ele.


Capítulo 16

“Eu sei bem que sou

Só mais um amigo entre tantos

Que sou apenas um fã de coração

Que não para de sonhar com você, cada dia mais”[22]

CHAE

Eu era um verdadeiro carregador de sacolas.

Sacolas essas que eu sabia que estavam deixando Sara

preocupada, mas tudo o que eu podia fazer era sorrir, diante da


animação de Matê.

— Por que não experimenta também, mamá?


Matê praticamente a puxou junto a si para o provador. E eu

estava sentado numa salinha, do lado de fora, enquanto tinham


olhares por todos os lados, sobre nós. Eu conseguia ouvir os

cochichos, e achava até engraçado, quando falavam sobre eu

não entender a língua.

Matê saiu novamente de trás da porta preta do provador, e

girou em um vestido colorido, que combinou com os sapatos


dourados, e fazia-me enxergar nela, como uma parte do sol. Ela

poderia ser o arco-íris e o sol ao mesmo tempo, era o que se

passava por minha mente.

Solzinho?

Se meus irmãos me ouvissem, com certeza, iriam ver que

eu tinha me conectado mais do que imaginei, que seria possível,

com aquela garotinha. Eu não a via apenas como via a Saron e a

Jae – meus sobrinhos, eu a via como uma parte de mim. Como se


fosse o meu destino, estar ali, e vê-la animada daquela forma.

— Muito linda — falei em coreano, e notei seus olhinhos


confusos. — É como se diz que alguém está linda em coreano.

— Parece uma língua difícil. — comentou, e então tentou


repetir o que eu disse, e parecia até mesmo no caminho certo. —
Um dia, vou aprender.

— Com certeza.

Ela sorriu e voltou até a porta preta, batendo algumas

vezes.

— Pronta, mamá?

Ouvi a porta sendo aberta, enquanto eu me distraía,

olhando para os meus sapatos, porém, assim que minha visão

seguiu pelo piso, encontrei sapatos de saltos brancos contra o

mesmo. E meu olhar apenas conseguiu fazer o caminho que

pareceu natural, e admirar a mulher à minha frente.

Ela estava em um vestido branco, de corte reto, mas que

tinha leves mangas abaixo dos ombros, e me deixou

completamente paralisado, pela forma como a cor caiu em seu

corpo. Como tudo ali parecia perfeito nela.

Foi como, se naquele momento, eu vivesse o maior clichê

de todas as novelas que eram feitas no meu país. De quando o

mocinho paralisa diante da beleza da mocinha. Naqueles

segundos, eu apenas quis poder ser aquele mocinho. Ao menos,


ser algum.
— Acho que os sapatos ficaram apagados — ela

comentou, sem se dar conta, da forma como o meu coração de


repente, parecia perto de chegar à garganta.

Meu olhar foi para a prateleira ali perto, e peguei os


sapatos que desde o segundo que encontrei, me fizeram pensar

nela. Um par de saltos não muito altos, mas na cor dourada, em


recortes brancos, que com certeza, combinariam com seu vestido.

— Tenta esses.

Ofereci-os, e ela assentiu, andando até uma das cadeiras,


e se sentando, passando as mãos pelo vestido, como se

estivesse realizando um sonho. Vi-a retirar os sapatos brancos e


colocar os que sugeri, e de repente, eu fiquei apenas imerso em

como tudo nela brilhava.

Um brilho que tentaram acabar.

Um brilho que ainda custava muito caro.

— A coisa mais linda que eu já vi.

Minha voz saiu antes que eu pudesse pensar, e seu olhar


parou no meu. Como se ela pudesse me entender, mesmo que eu
tivesse o dito em coreano.
— Pareceu um elogio, senhor Kang — falou, e então

assentiu. — Obrigada.

Só soube também assentir, sabendo que eu apenas

voltava à minha língua, quando estava em algum outro país,


quando era necessário falar com meus irmãos ou me sentia

perdido. E eu estava assim, à frente dela. Da completa beleza


dela.

Como eu não tinha enxergado ainda? O tamanho brilho

que se expandia, desde a ponta dos seus pés, até as pequenas


pintas que coloriam seu pescoço.

— Esse, com certeza, mamá — Matê falou, e vi Sara


assentir, como se ela também estivesse sem fala.

Eu estava, porque não conseguia parar de olhar para ela, e


me obriguei a fingir que estava concentrado em algo nas outras

sacolas das demais lojas, enquanto ela voltava para o provador


junto a filha.

Naquele momento, eu consegui a vislumbrar perfeitamente


, naquele vestido, vindo até mim, em um altar. Sendo que eu

nunca gostei da cor branca. Sendo que eu nunca me imaginei


casando. Sendo que nós dois sequer éramos amigos.
Onde eu tinha me metido?

Ou melhor, onde realmente eu tinha me colocado?

SARA

Eu sempre imaginei, o momento em que eu poderia

escolher o que vestir. Do jeitinho que eu poderia querer estar, em


um casamento. As novelas silenciosas que me foram deixadas

naqueles anos, me fizeram imaginar uma vida fora da minha, e


como seria, se em algum momento, eu pudesse escolher.

Não era como se Chae Kang não fosse uma imposição. Ele

o era. E nós dois sabíamos disso. Contudo, eu ainda tinha votado


para que aquele casamento acontecesse, mesmo que por um

motivo completamente egoísta, de que pudesse me livrar, assim


como minha filha, daquela vida dali a um ano.

Contudo, eu sentia que o resto, era minha escolha.

Eu poderia escolher o que usar.


Eu poderia escolher como estar.

Eu poderia escolher como me portar.

E eu queria um vestido branco, que me mostrasse, nem

que por alguns segundos, de que era possível viver algo parecido
com o amor irreal. Já era o suficiente para mim, saber que estaria

vestida como queria, dali a uma semana.

Uma semana para que o nosso casamento acontecesse.

Uma semana para que os assuntos do Cartel voltassem a

ser minha realidade. Como se de fato, em algum momento,

tivesse me deixado – ledo engano.

Uma semana para começar a contagem regressiva, de


trezentos e sessenta e cinco dias.

Ajeitei as luvas que ele comprou, no dia seguinte de

começarmos a treinar, e foquei meus golpes contra o saco de


areia. Matê dormia, com Berta de olho nela naquele instante, e

sabendo que Chae tinha algum compromisso fora, o qual não

confidenciou. Não era como se tudo entre nós pudesse ser dito.

Porém, eu desconfiava de que tinha alguém da sua


confiança que nos guardava. E talvez, fosse assim que soubesse

de tudo de uma maneira ainda mais rápida. Acertei o saco de


areia, e escutei a playlist que ele deixou disponível no som que

agora integrava o ambiente.

A cada palavra que eu não entendia, eu apenas acertava o

saco de areia com mais força. Como se fosse o meu passado,

que eu estava vencendo. Como se fosse todo o meu medo, sendo


colocado para fora. Como se assim, eu pudesse proteger não só

Matê, mas a mim.

Então, do nada ouvi a voz de Chae Kang, cantando alto

com a música e dançando como se fosse uma das suas favoritas.


Eu entendia muito pouco, principalmente a parte em coreano.

Contudo, pelo menos no inglês, eu conseguia saber o que ele

cantava com tamanha dedicação, parecendo apenas um homem


comum, correndo pela academia e cantando.

— “Eu sou um rei, sou um chefe

Gravem o meu nome

Só falam merda, não fazem nada

Cortem as cabeças deles...”[23]

Observei-o terminar a música, e então, notei que eu não

conseguia me concentrar em nada que não fosse ele, enquanto

estava na mesma sala que eu. Minha mente se confundindo,


assim como o meu corpo me traindo. Sentindo-se à vontade, para

sentir-se à vontade com alguém. Alguém tão perigoso como ele.

Eu deveria correr.

Eu deveria continuar com medo.

Eu deveria aprender a me defender, para me defender

dele.

Era o que tentava me convencer, enquanto ele retirava o

casaco, o jogava sobre o chão, flexionava os músculos do peito e


passava a se aquecer. Meus socos quase cessando, conforme

ele fechava os olhos, e fazia cada movimento. Os quais eu

estava, todos os dias, tentando aprender e memorizar.

— Fico feliz que começou sozinha, pela primeira vez.

Falou, e abriu os olhos, o que me fez focar no saco de

areia, e fingir que estava apenas o encarando durante todo


aquele tempo.

— Pareceu o certo — falei, e então o encarei. — Temos

algo novo para aprender hoje?

— Ainda não — assenti, e então respirei fundo, antes de


ajeitar minha posição e acertar um soco. — Mas preciso dizer que
pedi a meus irmãos, para trazerem coletes à prova de bala, para

você e Matê.

Parei, vendo-o a alguns passos de mim, perto do outro

saco de areia.

— É realmente necessário? — perguntei, e ele assentiu.

— Eu uso, quase sempre. — Olhei-o surpresa. — É um


tipo específico, que apenas os Kang têm. E pedi para que

fizessem para vocês.

— Mas sem medidas?

— Eu apenas te defini para quem os faz — concordei,


mesmo que sem entender. — E para Matê, pedi apenas algo no

tamanho de uma criança de seis anos, já que ela é maior do que

uma de quatro.

Engoli em seco, diante de sua avaliação.

Ele tinha reparado que ela era maior, e que agia diferente

do que uma criança de apenas quatro anos?

— De todo jeito... — vi-o falar, e me encarar. — Gostou do


dia de compras?

Uma pergunta tão normal e até mesmo, que deveria ser

rotineira, que nunca ninguém nunca me fez. Nunca.


— Eu gostei, mas acho que Matê ainda mais. — Ele sorriu,

como se concordando. — Eu só queria saber se tem algum traje

específico, para o casamento.

— Como assim?

— Nunca fui a um casamento de um Kang, não sei o que

usam ou o que deveria usar... — fui sincera.

— Nenhum Kang se casou, não da minha geração. —


Pisquei surpresa. — Ainda não.

— Vai ser o primeiro da sua geração? — assenti, e fiquei

em completo choque.

— Quer dizer, um casamento mesmo, com uma celebração

e algo assim, mas meus irmãos já encontraram o verdadeiro


amor. A maioria deles — explicou casualmente.

— Eles encontraram o mais importante. — Vi-me dizendo,

e pensando nos sonhos da Sara de muitos anos atrás. — E que é


impossível para muitas pessoas. Talvez a maioria.

— Mais uma coisa em que somos parecidos — falou, e

notei que nenhum de nós treinava, apenas conversávamos, como


se fosse o certo. — O amor romântico é algo inalcançável para

alguns de nós.
Eu concordava em número, gênero e grau.

— Então eu vou estar de branco no casamento —


comentei, e era estranha a sensação de apenas poder falar, sem

medo de ser julgada, e apreensiva com a reação da outra pessoa.

Na verdade, apenas o fato de poder falar, significava o mundo

para mim.

— O vestido de mais cedo? — perguntou, sem me encarar,

e o fato de seu olhar fugir do meu, me fez questionar o que o

atormentava.

Algo o atormentava?

Assenti, e vi-o voltar seu olhar para o meu.

— Vou conseguir algo à altura, para ficarmos combinando.

— Sua consideração me fez olhá-lo encantada.

Eu não me encantava com nada há tanto tempo.

E aí estava ele, me fazendo ter aquela sensação, assim

como um misto de muitas, que até mesmo, eram desconhecidas,

em poucos dias.

Dias que pareciam ser um respiro, em meio há anos sendo

afogada pelas mãos de outros. E eu encontrei a mão dele, para


me ajudar a sair da água, e agora, eu tentava me manter fora
dela.

— Meus irmãos geralmente usam preto, o clássico dos

Kang. Talvez o clássico dos clássicos, mas direi que Matê gosta
de cores, e eles vão aparecer como um arco-íris.

— Por que o gosto de Matê seria importante para os Kang?

— indaguei, completamente inocente e tentando encontrar


sentido.

— Porque ela é importante para mim.

Olhei-o embasbacada e não soube o que responder ou o

que questionar. Porém, minha mente, mesmo que nebulosa, não


o condenava. Eu via o olhar leve, a forma como ele falava aquilo,

como se de dentro de sua alma. Como se ele realmente, fosse


alguém que ela pudesse confiar. Que eu poderia fazê-lo.

E uma pergunta me veio em mente, e tentei afastá-la, mas


ela ficou ali, todo o tempo que passamos dentro daquela

academia: eu era importante para ele também?


Capítulo 17

“Posso ver a nuance

E o reflexo da minha depressão

Posso ver o perfil

Do fantasma que há dentro de mim”[24]

CHAE

Eu podia sentir a tensão de longe.

Subi as escadas até o ponto mais alto, e olhei novamente

para o corpo de Ottis, se deteriorando com o tempo, e sem


qualquer chance de voltar a atormentar as pessoas que agora,

estavam sob a minha proteção. E era um combinado silencioso,


que fiz com Matê. Eu veria por ela, que Ottis permanecia naquele

mesmo lugar, apenas pior do que antes.

Desci as escadas, e então encontrei mais à frente, Ramon,

me esperando de longe.

— Algum problema? — perguntei, estranhando o fato de


ter se aproximado assim, sendo que era um combinado claro com

o Cartel, de que só entraríamos a fundo nos assuntos deles, e eu

assumiria junto a Sara, após o casamento. Mesmo que eu já


estivesse tomando providências, como foi no caso do dinheiro

delas.

— Só queria saber se o senhor vai hospedar os Kang em

sua casa, ou precisa que ajeitemos a velha casa do último chefe,

para eles — falou, e eu neguei de imediato com a cabeça.

— Há muitos quartos na casa que moramos agora, e eles

não vão ficar muito tempo — expliquei e Ramona assentiu, mas

notei que existia mais por trás da sua leve preocupação. — Qual

o real problema?

— Senhor Kang, eu... Eu não quero ser invasivo, mas eu

me preocupo com elas. A senhora do nosso Cartel e Maria Teresa


— concordei esperando que continuasse. — Eu só queria pedir,
que cuidasse bem delas, por esse tempo que ficará conosco. Sei
que fará o melhor para o Cartel, mas honestamente, como o

segurança que as acompanhou por todos esses anos, me importo

mais com a felicidade delas.

Sua sinceridade era notável.

— Você tem família, não é Ramon? — indaguei, ele negou

e afirmou em seguida. — Sei que acolheu a viúva e os filhos de


Liera, que foi morto por meu irmão.

Ele então admitiu, e eu sabia que ele tomou aquela


responsabilidade para si, por ser o único do conselho sem uma

família.

— Você cuida bem deles?

— Com o melhor que posso, senhor — respondeu.

— É o que estou tentando fazer e farei por Matê e Sara —

falei, aproximando-me dele. — Não vou machucá-las, nunca. Nem

mesmo sem querer.

— É bom saber que alguém, que estará ao lado delas por

esse ano, não as tratará apenas como uma moeda de troca pelo

Cartel.
— Existiam outras opções levantadas para o casamento,

certo?

— Sim — concordei, sabendo que já tinha tal desconfiança.

— Mas quando o seu nome foi dito na mesa, e a foto da sua


família colocada, Sara apenas nos disse que o faria, se fosse com

um Kang.

Ela também tinha me visto por fotos?

Por que ela teria escolhido os Kang? Pelo poder, rumor e

histórias que espalhavam?

— Mas esperavam por outro Kang. — Ele respirou fundo.

— Não tenho um problema com isso, Ramon.

— Só posso falar sobre mim... — olhou-me, finalmente


parecendo encontrar sua coragem. — Esperava alguém que
pudesse ser humano com elas, e o destino parece ter se

encarregado.

— Ainda não confio em você — falei, tentando aliviar o


clima, como um claro aviso e vi o olhar do homem que deveria ser

no mínimo dez anos mais velho do que eu, mudar. — Mas estou
me vendo tentar um pouco, a cada dia. Apenas pelo fato de que

sua preocupação com elas é nítida.


— Sara diz que eu as salvei durante esses anos, mas a

verdade, é que elas me salvaram por todo esse tempo —


explicou, e entendia aquele lado, de se sentir em dívida, de forma

que nunca conseguia enxergar o lado que também beneficiou.

— O importante é que vai ao nosso casamento — falei de

forma leve, e bati em seu braço. — Deixe o aviso para o conselho,


de que os Kang estarão aqui, a qualquer momento.

— Pode deixar, senhor Kang.

Ele então consentiu, e antes que pudesse corrigi-lo, vi-o


descer as escadas e se afastar em segundos.

— Deve ser ruim, ver isso tudo acontecendo, bem do seu


lugar no inferno, né, Ottis? — perguntei baixo, para o corpo que

se desfazia. — Pode ter destruído muitas coisas, mas eu vou me


encarregar de que elas possam se reconstruir, pedaço por

pedaço.

Aquele era um juramento, enquanto eu me virava de costas

e descia as escadas em direção à casa. Um juramento que faria


se eu tivesse votos a falar e aquele fosse um casamento de

verdade. Contudo, eu não precisava da verdade para que aquele


juramento fosse real. Não mesmo. Eu só precisava, entregar o
melhor de mim, para então, conhecer o que existia de melhor,
principalmente na mulher, que de alguma forma, balançava meu
mundo.

SARA

— Parece nervosa, mamá.

A voz de Matê me fez despertar, enquanto eu andava de


um lado para o outro, dentro do quarto que dividíamos.

— Os irmãos do senhor Kang, vão chegar hoje —


expliquei, e ela parecia não entender. — Acho que não deveria

estar nervosa, né?

Sentei-me na cama ao seu lado, puxei-a para meu colo e


ela deitou a cabeça em minhas pernas, com um olhar divertido no

rosto.

— Se eles forem como ele, não tem o porquê estar assim

— comentou, com se fosse simples.


Era, na verdade. Contudo, eu parecia nervosa porque não
sabia o que esperar. O que eles esperavam? O que eles
poderiam querer?

— Você gosta de Chae, não é? — perguntei baixinho, e ela


assentiu, Só então que percebi, que era a primeira vez que falava

o nome dele em voz alta.

— Ele só foi legal até agora. — Deu de ombros. — Parece


legal.

— Fico feliz que goste dele, cariño.

Toquei seus cabelos, e ela se aconchegou ainda mais ao

meu colo.

— Mamá? — indagou, enquanto eu fazia um leve cafuné.

— Sim, cariño.

— Você gosta do senhor Kang?

Sua pergunta não deveria ser tão difícil de responder,

porém, o que me surpreendeu, era que a resposta negativa não

era uma opção em minha mente. Eu, de alguma forma, sabia que
podia confiar nele, como se aquele passo fosse uma

necessidade. Nunca pensei que depois de tudo, eu sentiria tal


sentimento por alguém. Necessitar de algo, de um homem,

parecia apenas algo assustador demais para se ter. Porém, eu


tinha. De uma forma que ainda era inexplicável para mim.

— Aos poucos, acho que sim — respondi, sabendo que

ainda era uma bagunça. — Ele te trata bem, ele nos respeita, ele
tenta nos proteger... É o bastante para mim, cariño.

— Já pensou se ele é o seu Franco? — indagou de

repente, e eu tive que sorrir de lado, da ingenuidade que voltava a

ela, quando agia apenas como a garotinha que era, que apenas
deveria conhecer aquele lado.

— Com certeza não estamos em uma novela, cariño.

— Eu sei que não — respondeu, levantando-se do meu

colo, e me encarando, como se inconformada com o que eu dizia.


— Só que seria legal, que alguém legal, pudesse ser seu amigo.

— O mais legal é que estejamos seguras. — Toquei com

cuidado suas mãos. — E é apenas com isso que me importo


agora, cariño.

— E depois?

— Depois do quê? — indaguei confusa.


— Não sei também — admitiu, como se perdida no seu

raciocínio. Puxei suas mãozinhas e a fiz cair de costas na cama,

fazendo cosquinhas em sua barriga e pés, o que a deixava


completamente sem força, e com resultado de risadas altas por

todo ambiente.

Era por momentos assim que eu estava ali.

Era justamente por querer que ela apenas tivesse uma


chance, que eu estava ali.

Nada mais.

Eu não podia querer nada mais.

A felicidade e segurança de Matê eram o suficiente para


mim. Mesmo que algo dentro de mim, me dissesse que existia

algum jeito, de aqueles sentimentos serem dela, assim como

meus. Quem sabe depois, como ela mesmo disso. Sorri para ela,

que ainda se recuperava do ataque de cosquinhas, e olhos pretos


me vieram em mente.

Por que ele sempre estava ali? Como se um fosse

resquício que minha mente mantinha vivo? Por quê?


Capítulo 18

“Invisível como o ar

Você é tão inalcançável (...)

Um amor quase impossível

Como o fogo que não queima

Você se tornou tão inalcançável para mim”[25]

CHAE

— Eu vou socar a sua cara, meio metro — falei no ponto, e


ouvi a risada de Hinata do outro lado.

— Não pode bater em uma mulher grávida, e que é sua

irmã — rebateu.
— Posso, quando começa toda uma discussão sem

sentido, só porque disse que Matê prefere cores.

— Não era uma discussão — rebateu novamente,

enquanto nossos outros irmãos permaneciam em silêncio. — Eu


apenas perguntei se Sara Hernández também não prefere cores.

— Eu sei muito bem por que fez isso.

— Será que podem apenas... — ouvi a voz de Dove,


claramente impaciente. — Calarem a boca.

— Nossa, Noona.

— Não fiz nada, Unnie.

— Por que estamos em ligação, se estamos há poucos

metros da casa de Chae? — a pergunta veio de Kalel.

— Porque eu só queria relembrar do meu pedido, e Hinata


quer criar uma fanfic.

— Eu vou desligar isso.

Foi o que aconteceu, assim como eu Vincenzo terminou a

sentença, e eu ri sozinho. Eu sabia que ele se tornava impaciente


em alguns momentos, justamente por agirmos como adolescentes

mimados. Mas quem poderíamos culpar? Se ele era o irmão mais

velho, que nos mimou?


— Eles já estão chegando?

Virei-me para a voz baixa, e notei a roupa de Sara, que

usava um macacão preto, e me surpreendeu em tal traje.

— Pelo que disseram sim — falei, e sabia que tinha um

ponto de interrogação em meu rosto, e não pude deixar de

externá-lo. — Por que...

— A roupa preta? — complementou, surpreendendo-me

por se impor assim, e conseguir me ler daquela forma. — Queria

dar as boas-vindas de uma forma que os Kang gostariam. Eu


errei?

— Está linda, como sempre. — A verdade apenas saiu dos

meus lábios, e eu via forma com suas bochechas se tornaram


vermelhas, e era claro que ela não estava acostumada a receber

elogios. — Desculpe, às vezes a minha boca funciona antes do

filtro do meu cérebro — admiti, só ocultando a parte de que

apenas acontecia aquilo, quando se tratava dela.

— Eu estava tentando aprender algumas coisas, e Matê

também, espero que...

Então batidas na porta da frente, seguidas da campainha.

A voz de Sara se perdeu, e vi como encarou-a, como se pronta


para fugir dali.

— Eles são legais. — Fiz uma careta. — Quer dizer, tirando

a fama da máfia, somos apenas uma família normal.

Vi-a suspirar fundo, e então Matê surgiu no corredor,


girando em um dos vários vestidos coloridos que comprou. O do
dia, na cor preta e rosa.

— Posso dizer que é uma fã de BlackPink só pela roupa —


falei, agachando-me, e ela me encarou confusa. — Vou te mostrar

depois, prometo.

Ela sorriu assentindo, mas continuou a me olhar, como se

esperando por algo. E eu via, no brilho que me aguardava nos


seus olhos, o que ela queria.

— Está como uma princesa, Matê.

Seu olhar se iluminou ainda mais.

— Obrigada, senhor Chae.

— Então agora eu voltei a ser Chae, hein? — rebati, e ela

deu de ombros, indo para perto da mãe, e segurando sua mão. —


Depois, vou te ensinar alguns costumes de onde venho, e pode

encurtar isso com...

— Oppa?
Olhei surpreso para sua pergunta, mas a campainha tocou

novamente, e eu sabia que apenas poderia ser Hinata, ansiosa


para acabar com a minha paz.

— Sim — ela assentiu, como se guardando a informação.


— Vou abrir, antes que eu tenha que expulsar minha família sem

nem os conhecerem.

As duas me seguiram até a porta, parando logo atrás, e


sentia a tensão que emanava de cada uma. Abri a porta, e senti

meu corpo ser jogado para trás, no momento em que Jae e Saron
pularam sobre mim. A surpresa se espalhando por todo meu ser,

por meus sobrinhos estarem ali.

— Como ninguém me disse? — indaguei alto, e então,

abracei-os de volta, enquanto notava Sara e Matê fazerem uma


reverência de noventa graus para meus irmãos e dizer “olá” em
coreano.

Em coreano.

Eu agora estava quase caindo no chão, tanto pelo peso


dos meus sobrinhos, mas principalmente, pela forma como elas

me deixaram fraco, ao tentarem coisas novas, pela minha família.


— Deixe-me ver vocês — falei, colocando Jae e Saron de
pé, e notando que eles pareciam ter crescido ainda mais naquele
tempo longe e de rabo de olho, acompanhava Sara cumprimentar

a todos meus irmãos, que tinham uma surpresa clara no olhar


também. Ao menos, era clara para mim. — Estão tão grandes, e...

Por que seus pais não me disseram que viriam?

— Porque era uma surpresa, Oppa — Saron falou, e sorriu

de lado. — Sentimos saudade.

— Oi, nova cunhadinha!

A espanhol misturado a português de Flávio, o marido de

Dove, me fez sorrir e encarar a cena, de ele a cumprimentar com


um aperto de mãos. Não longo, nem mesmo forte, da forma que

pedi para que os homens se colocassem perto dela.

— Eu também senti — falei, perdido em tudo que

acontecia, olhando para Jae.

— Por favor, entrem — Sara pediu, eles adentraram a

casa, e notei Matê, quase se escondendo atrás de suas pernas.


— Peço desculpas por não sabermos mais de coreano.

— Estamos agradecidos por tentar, querida — Dove falou,

o que surpreendeu ainda mais, porque ela não era tão aberta
assim, nem de longe.

— E obrigado por nos receber — Vincenzo continuou, e vi

a forma como ela parecia tentar não externar seu nervosismo.


Aproximei-me dela, e da cabeça de Matê, que quase desaparecia
em sua perna direita.

Agachei-me ao lado de Matê, e ela então me olhou.

— Por que está assim? — perguntei, e ela olhou para os


meus irmãos, parados ao lado da porta, com semblantes neutros

e calmos. — Está com medo?

— Eu... — ela negou com a cabeça. — Eu posso mostrar a

sala de música, mamá?

Sara tocou seus cabelos e assentiu. Então surpreendendo-

me, ela passou por nós e parou à frente dos meus irmãos e

sobrinhos.

— Querem conhecer a sala de música?

Todos concordaram, e ela então começou a andar na

frente, com Saron logo atrás dela, e Jae totalmente animado junto

a elas.

— Ela é tão adorável quanto disse — Hari falou, e notei a

forma como Sara respirou profundamente. — E você Sara, é


ainda mais bonita.

— Ah... obrigada, senhora Kang.

— Hari — corrigiu-a. — Ou Unnie, se quiser.

Vi o claro choque no olhar de Sara.

— Chae disse que tem um jardim, que está começando a

cuidar e queria saber, se pode nos mostrar? — Dove perguntou, e


vi Hinata assentir, com os olhos quase marejados.

— Claro que sim, é... é por aqui.

Ela então mostrou o caminho com a cabeça, e antes de


minhas irmãs a seguirem, ela me deu um último olhar. Eu assenti

e sorri, como se a incentivando, e ela foi.

— Por que Hina estava quase chorando? — perguntei,

indo para perto de Kalel, e dando um leve abraço, mas meu olhar
preso em Jeon. — Aconteceu algo, hyung’s?

— A gravidez a deixou emotiva — comentou, e assenti,

como se tentando entender. — Quando ela te viu falando com

Matê, quase teve uma crise de choro, mas é de felicidade.

— Mas...

— Como está, irmão?


A pergunta veio de Vincenzo hyung, que apenas assistia à

cena.

— Não parece um casamento por contrato, mas... quem

sou eu para dizer algo, não é? — Flávio perguntou, dando-me


dois tapas nas costas, e sendo o mais provocador dali. Ele tinha

realmente, tudo para ser o par perfeito de Dove. A falsa inocência

no olhar, e a ironia pregada em cada palavra.

— Tem um fanfiqueiro além de Hinata para eu lidar? —

perguntei, fazendo uma careta. — E hyung... — olhei para

Vincenzo. — Eu estou bem.

Ele assentiu, e pareceu pensar sobre algo.

— Posso ter um minuto?

Assenti, e então indiquei o caminho para a sala de estar,

que passaria pela sala de música, onde eu podia ouvir as

crianças conversando em línguas diferentes, e torcia para que


Matê estivesse conseguindo externar o que ela tanto queria.

— O que houve, hyung?

— Há algo leve aqui — falou, olhando-me profundamente.


— Cha vem para o dia do casamento, e eu sei que ele é a pessoa

que te trouxe para nós, e o quanto é importante para si.


— Você é a pessoa que me fez ficar como um Kang, hyung

— falei, e ele assentiu, como se pensando sobre. — Por favor, me


diga o que houve — agora nós falávamos em coreano.

— Me pediu um colete maior para Matê, certo? — assenti,

sabendo que apenas pelo dia de compras que tivemos, e pela

forma com ela era alta, deveria usar roupas no tamanho seis,
assim como Jae. — Isso me intrigou, irmão.

— Por quê?

— Um boato de que... de que Guillermo Ottis tinha uma


filha de seis anos — falou baixo, mesmo que ainda em nossa

língua, e o encarei surpreso. Eu não sabia sobre aquilo. — Uma

confissão que chegou a mim, há poucos dias.

— Então...

— Então, ele... Ou melhor, Sara pode ter engravidado com

apenas quinze anos. — Olhei-o em pavor. — Bate com a época

que a família dela foi assassinada, e logo depois, ela foi vendida.

— Mas ela tinha dezoito na época em que se casou.

— A idade dela eu pude confirmar, ao procurar a

verdadeira certidão no cartório... Ela realmente tem vinte e dois

anos.
— E a certidão de Matê?

Ele apenas negou com a cabeça.

— É como se ela não existisse. — Aquilo me acertou em

cheio. — O que bate por ter te mandado sondar sobre a filha de


Ottis, já que não existia nada sobre ela. E agora, podemos ter a

razão para isso.

— Se eles soubessem que Ottis... — baixei a cabeça, o


ódio me consumindo. — Ele teria sido morto pelas leis de outras

máfias, se descobrissem que ele engravidou uma adolescente.

— É uma desconfiança, Chae. — Vincenzo tocou meu

ombro, como se tentando me trazer à realidade. — E Ottis já está


morto.

O trauma que ele deixou, não.

E quanto mais eu descobria, mais tudo piorava. Meu olhar

foi de imediato pelo corredor, como se soubesse que o dela me


procurava, e foi assim, que a vi, já perto das crianças, com

minhas irmãs ao redor, mas parecendo querer encontrar algo em

mim.

— Não tem como mudar isso. — Voltei minha atenção para

meu irmão. — Te contei, porque eu sei, que em algum momento,


ia descobrir disso.

— Como eu não vi, hyung?

— Está mais ocupado as protegendo e sendo diferente do

passado, do que buscando analisar as situações. — Seu tom era

de orgulho, e me surpreendeu quando trouxe seus dedos até

minha orelha esquerda, e deu um leve aperto. O jeito de Vincenzo


Kang, de dizer que nos amava.

E novamente, eu senti o olhar dela buscar o meu. E

quando encarei o corredor, e a encontrei no final dele, o castanho


dela, eu soube que não era apenas um analista, não com ela.

Não dentro daquela casa. Não quando via Matê e ela sorrirem

uma para outra. Não quando, tudo de mim, parecia se dedicar

para que elas fossem felizes.

E a verdade, caiu como uma bomba, deixando-me sem

saber como encará-la.


Capítulo 19

“Não há nada que possa me vencer

Se tenho você comigo

Você me preenche com uma luz

Que vai se espalhando por todo meu corpo”[26]

SARA

Eles eram totalmente diferentes do que eu imaginava.


Alguns mais reservados, outros mais abertos, porém, o poder

exalava de cada um dos Kang. Contudo, o que me surpreendeu

de fato, foi a forma como me trataram. Talvez fosse pelo fato de


não ter conhecido nada diferente de um chefe como Ottis, e a
realidade, era que por mais poderosa que uma pessoa fosse, não

a condenava como alguém ruim.

— Eu até tentei cuidar de algumas plantas, mas matei

todas — Hari falou em um espanhol perfeito, e eu observava a


forma como estava interessada naquilo.

— Não pode ser por morar na praia?

— Na... Na praia? — perguntei, tentando me manter no


meio da conversa.

— Hari Unnie mora na praia, Dove Unnie em uma fazenda,


e eu no meio da mata — Hinata falou, e eu assenti, tentando

absorver as observações. — Talvez um dia, possa conhecer

todas.

Eu sabia que não – foi o que pensei. Eu gostaria muito –


era o que queria.

Meu olhar então vagou para a sua barriga, que tinha uma

grande blusa à frente, mas que o jeito como parecia diferente, me

pegou.

— Acho que mães reconhecem grávidas — Dove falou ao

lado, a qual notei ser a mais fechada delas.


— É um segredo e não é — Hinata admitiu. — Se Chae
confia em você, por que eu não faria? — indagou, e eu fiquei sem

palavras.

Ele confiava?

Ele realmente fazia isso?

— Parabéns pela gravidez.

Foi tudo o que consegui falar, e ela me observou. Eu

realmente não tinha boas lembranças, se parasse para relembrar

de quando fiquei grávida, e era um assunto que sempre me

deixava desconfortável, contudo, fazia tanto tempo que eu tentava

tampar as feridas que me foram causadas.

— Mamá! — Virei-me ao chamado de minha filha, e vi a

animação em seu olhar. — Jae sabe tocar piano, como você.

— Ahhh, que ótimo — falei, e tentei pensar em como

oferecer aquilo. — Por que não pede para ele tocar algo?

— Ele pode?

— Claro — respondi, e vi a forma como ela parecia

genuinamente animada.

— Nossa família ama música — Hari falou, e cruzou os

braços, me encarando. — Chae já deve ter dado algumas


palinhas, não é?

— Ele tem me mostrado vários vídeos de músicas que

gosta, e de playlists que ele montou... — falei, e era tão boa a

sensação de poder conversar com alguém sobre aquilo. — E


quando está me ensinando a lutar, sempre tem uma música bem

alta.

— Você gosta? — Hinata indagou, e me olhava com um


semblante terno.

— Minha mãe e avó me ensinaram a tocar, e anos atrás,


era o que eu mais amava fazer — admiti, e notei como o olhar das

três mulheres à minha frente se modificou. — Estou voltando


agora, aos poucos.

— Sabe, nós todos temos noção de que é um acordo —


Dove quem falou, me fazendo parar em seu olhar. — Mas se

precisar de qualquer coisa, a qualquer hora, saiba que pode


contar com os Kang. Seja daqui a alguns minutos, seja daqui a
alguns anos.

— Eu... — fiquei paralisada diante da sua fala. — Eu não


sei o que dizer.
— Pode parecer estranho o que a Unnie está dizendo, mas

nós conhecemos o mau de perto, o verdadeiro mau... — Hari


falou, e me olhou de forma doce. — Sabemos reconhecer o que é

genuinamente bom. E você, Sara, com certeza é.

— Eu sou só uma herdeira de Cartel.

— Amanhã também será uma Kang. — Hinata tomou à


frente. — E uma vez uma Kang, sempre uma Kang.

Olhando-as dali eu senti uma gratidão tomar o meu peito.


Não que eu pudesse me agarrar as palavras delas como uma
verdade intocável, contudo, eu o fazia mesmo me negando. Era

como se houvesse a esperança de ter amigas, de ter pessoas


com quem contar.

Mesmo que para mim, bastasse eu, Matê e a nossa


liberdade, eu agora via que existia uma outra possibilidade. A qual

nunca se passou pela minha mente – de que eu poderia voltar a


sentir o que mamá e abuela, me entregavam. E era estranho ter

aquele tipo de comparativo, porque nunca imaginei que poderia


voltar a pensar sobre elas, e no que elas representavam. Porém,
ali estava eu, em um dia que as partes boas do meu passado,

que pareciam perdidas, pareciam voltar a me sondar.


E nelas, eu gostaria de estar.

Tinha muitos quartos naquela casa.

Lembrava-me delas discutindo entre si, quando eu ainda


era uma criança, de que não era necessário tudo aquilo.

— Por que tantos quartos para três pessoas? — mamá


perguntava, enquanto eu assistia a tudo, teclando vez ou outra o

piano.

— Não sabe se teremos uma família grande a partir de

Sara — respondeu, e minha mamá se calou.

— Gosto de uma família de três.

Lembrava-me de ter respondido àquilo, sem ter a real


noção do porquê. Talvez porque detestasse meu pai, e o filho que

ele tivera fora do casamento – Roberto, não era uma contagem


em minha vida. Ele nunca tentou ser meu irmão. Na realidade, ele
apenas o foi, quando precisou me usar.
Vendo a cumplicidade que os Kang trocavam, nos poucos
momentos que pude presenciá-los, eu talvez entendesse o que
era realmente ter irmãos. Eles pareciam se completar, mesmo no

silêncio ou em falas simples. Agora, espalhados pelos vastos


quartos, eu me via parada à frente do piano, enquanto Matê já

dormia no quarto. Cansada de tanto conversar e tentar aprender a


tocar o piano, com quem seriam seus primos, mesmo que por
data de validade.

Um barulho de algo na parede, me fazia saber quem era.

Virei-me e encontrei o olhar de Chae, que novamente avisava


quando chegava, num cuidado que ele tinha, sempre. Nunca se

esquecendo de como me tratar, e me fazia, confiar um pouquinho

mais nele, a cada vez que o fazia.

— Já devem estar todos dormindo — falou, aproximando-


se, mas ficando a passos de mim. Pelo que eu já contava – cinco.

— Mesmo com o jatinho da família, é uma longa viagem.

— Eles... Eles foram muito legais com a gente — comentei.


— Obrigada por isso.

— Pelo que, exatamente? — indagou, como se realmente

não entendendo. — Por trazer a máfia mais poderosa do mundo


para o nosso casamento? — debochou, e eu sabia que era o seu

jeito, de sempre aliviar tudo.

E com ele, tudo realmente parecia leve.

— Por nos incluir em algo mais. — Fui honesta. — Matê

adorou conhecer seus sobrinhos, e ela teve contato quase nulo


com outras crianças, então... Foi bom vê-la apenas sendo ela.

— Como deve ter visto, eu sequer sabia que meus

sobrinhos viriam — assenti, lembrando-me de como ele pareceu

impactado na hora que os viu. — Mas também tenho algo a


agradecer...

— Sobre?

— Por ter tentado trazer um pouco da minha cultura, os

saudando da forma como fazemos, arriscando um olá em


coreano. — Olhei-o surpresa. — Por ter usado preto, apenas

porque te disse que é a cor que mais usam.

— É o mínimo que poderia fazer — assumi. — Estou


tentando aprender mais sobre a Coréia do Sul, e mesmo que me

veja longe do México daqui a um ano, não consigo imaginar como

seria, ser colocada por obrigação em outra cultura. Queria que se


sentissem em casa, que você, algum dia, também se sinta.
— Essa casa me faz sentir assim — falou de repente,

surpreendo-me. — Você e Matê, me fazem sentir assim.

— Você também me transmite isso, por mais que pareça

estranho estar assim — admiti. — Fico grata por ter sido você, o
Kang que veio até nós.

— Eu te daria um abraço, se eu pudesse — falou, e então

me direcionou o dedo indicador, do jeito como tínhamos feito


antes, e sabendo das minhas limitações. — Quem sabe um dia,

Sarita?

— Quem sabe — respondi, tocando seu dedo indicador

com o meu.

O mesmo calor de antes, tomou conta do meu corpo, como

se reconhecendo o dele. Como se desejando que ele ficasse um

tempo mais, para que eu descobrisse o que aquilo realmente


significava. E quando se afastou, a falta que me fez, foi como se

uma parte minha estivesse sendo arrancada.

Existia isso?

Sentir falta de algo que não lhe pertencia?

Vendo-o se afastar, com um simples acenar e “boa noite”,

eu sentia meu coração bater rápido e minha mente me acusar por


aquilo. Mesmo que eu não tivesse o controle de como ele me

fazia sentir. Não era justo me culpar por querer estar perto de
alguém. Não mesmo.

E ao vê-lo sumir do meu campo de visão, apenas pensei

em como eu sentia a falta dele, como se ele fosse algo meu,

desde o princípio.
Capítulo 20

“Mas eu sei também

Que entre a multidão, alguma vez

Você vai conseguir ver a luz sobre mim

Para reconhecer o amor mais fiel”[27]

SARA

— A cidade inteira? — perguntei novamente, e Ramon


assentiu, parado à minha frente. — Tudo isso pelo casamento?

— Vieram chefes de todos os lugares, até mesmo os


Hansen. — Aquilo me surpreendeu por completo. Sabia por alto,

mas existia uma rivalidade criada por Ottis com eles. — Faremos

o mais breve possível, senhora.


— Eu... — suspirei fundo. — Eu acho que breve é bom.

Batidas na porta semiaberta, fizeram Ramon se levantar, e

então ele foi até ela. Quando a abriu, pude ver o semblante

indecifrável de Vincenzo Kang – o chefe daquela família, que


agora eu entraria.

— Só gostaria de um minuto, se possível, senhorita

Hernández.

— Senhora? — Ramon perguntou, e eu passei as mãos

pelo vestido branco, como se tentando disfarçar o meu nervoso.

— Pode deixar, Ramon.

Ele então assentiu e saiu, mas deixou a porta semiaberta,


pela qual Vincenzo adentrou, e deixou-a da mesma maneira.

— Não pudemos conversar muito e não queria ser

indelicado. — Olhei-o, esperando por qualquer coisa. — Mas eu

sei o peso que está sentindo, nesse exato momento. O qual você

e Chae passarão a ter, assim que assinarem o contrato de

casamento.

— Não deveria estar falando disso com ele? — indaguei

confusa, e tentando encontrar as palavras certas, e notei a forma


ligeira que as sobrancelhas dele se moveram.
— Nós dois tivemos essa conversa, antes — esclareceu.
— Porém, você estava destinada a isso, desde sempre. E agora

está aqui, assumindo o Cartel que sempre pertenceu aos

Hernández.

— Só busco um chefe digno.

— Ele pode estar em você — falou, com as mãos ainda

dentro da calça, sem sequer mover um passo para perto. — Ele


pode estar em você e em Chae.

— Por que realmente está aqui, senhor Kang?

— Porque eu vejo como meu irmão te olha, e queria ter a

certeza de que está nessa junto a ele. — Olhei-o surpresa. — Não

sei quais são as tradições aqui no México, ou as do Cartel, não a


fundo. Mas eu sei de uma que os Kang têm, quando algum de

nós se casa.

— Que seria?

— Cuide bem daquele que sempre cuidará de você. —

Suas palavras me tocaram profundamente. — Como uma futura

Kang, senhorita Hernández.

Ele então tirou uma das mãos de dentro da calça e me

estendeu uma pequena caixinha. Aceitei-a, e a abri em seguida,


notando o K marcado em uma pulseira.

— É o jeito que ele sempre achará você, e como nós

saberemos que estará sempre segura.

— Assim como o ponto que ele tem na orelha?

— Boa observadora — falou, e me encarou

profundamente. — E se notar, tem uma menor, logo abaixo, que é


para sua filha. Queremos a segurança de vocês, e seremos
responsáveis por isso a partir de hoje.

— Eu não sei o que dizer, senhor Kang.

— Apenas cuide de Chae, é o suficiente.

Assenti, então tocando a pulseira e notando o brilho da


menor, que tinha um K entrelaçado a um H.

— Atrapalho?

A pergunta veio seguida de batidas na porta, e então


Vincenzo se moveu rapidamente, praticamente empurrando Chae
para fora do quarto, e fiquei embasbacada, sem entender o que

falavam, já que era em coreano.

Coloquei a mão na maçaneta e pensei em girá-la, contudo,

outras batidas me pararam.


— Meu irmão disse que dá azar ver a noiva antes do

casamento — falou em espanhol, rindo baixinho e a cada


segundo, eu ficava mais tocada sobre os Kang. Eles pareciam

realmente, como se estivessem me acolhendo. — Mas eu vim


para dizer que Matê está em um vestido colorido, com Saron e

Jae, escolhendo as flores que levarão para o altar.

— Obrigada por me dizer — falei, e olhei para o celular ao

lado do grande espelho no qual me olhava, segundos antes. —


Eu liguei para ela, há poucos minutos.

— Um celular sempre é uma ótima ideia, eu disse.

Então o silêncio recaiu entre nós, e eu não soube o que


dizer. Em poucos minutos, eu sairia dali, e seria a esposa dele. Eu

diria sim num altar, e mesmo que fosse um contrato, eu tinha


escolhido daquela vez. Era tudo tão diferente. Era tudo tão real,
que chegava a me assustar.

— Te vejo no altar, Sarita?

Sua pergunta fez minha guarda baixar, e era como se eu


pudesse vislumbrar que ele pensava a mesma coisa. Como se ele

também estivesse pronto para correr dali, por não saber lidar com
o que acontecia.
— Sim — respondi, tocando a porta, como se ela fosse ele.
— Nos vemos no altar.

Senti-o se afastar, e dei passos atrás, respirando fundo e


tentando espantar a imensidão que me abrangia. Era apenas um
casamento por contrato – repeti em minha mente, várias e várias

vezes, até que eu estivesse completamente convencida, o que


não foi possível.

CHAE

— Estou feliz por estar aqui, hyung. — Cha segurou meus


ombros, olhando-me com carinho. — Obrigado por ao menos
passar por aqui.

— Sabe, não quero ter que olhar para a cara das novas
gerações e ouvir boatos infundados — falou, e eu assenti,
sabendo o quanto ele tentava fugir de todos as especulações que
faziam sobre ele. — Eu vi a senhorita Hernández de longe, e
também, a pequena Matê.

— Sabe o quanto é importante para mim, que esteja aqui.

— Bom, algo me diz que você só vai se casar uma vez,


garoto. — Bateu levemente em meu ombro. — Eu tinha que ver,

nem que de longe.

— Sem discurso bonito?

— Sabe que Vincenzo é um chefe e irmão mais velho,

muito melhor do que eu nisso.

— Falando de mim, hyung? — Vincenzo apareceu, depois

de praticamente me empurrar e destruir o meu cabelo já todo


arrumado, e adentrou o quarto que era o meu, naquela casa

enorme.

— Falando verdades — Cha rebateu e se virou para ele. —


Estarei vendo tudo, do alto, enquanto aquele resto de Ottis

assiste, finalmente, tudo que era dele se desfazer.

— É uma boa vista — comentei. — Vou lá, praticamente

todos os dias.

— Por quê? — Vincenzo perguntou, e então ouvimos

batidas na porta.
— Para que Matê não vá, e eu possa dizer a ela, com toda

certeza, de que Ottis permanece no mesmo lugar.

Os dois Kang mais velhos à minha frente pareceram

chocados com a informação.

— Cuide bem delas, garoto — Cha falou, e se afastou. —


Eu me encarrego de ter essa certeza por vocês hoje.

— Obrigado, hyung.

Ele então passou por Vincenzo, dando um leve aperto em

seu ombro, e saiu do quarto.

— Um discurso bonito do chefe da família? — provoquei, e

Vincenzo negou com a cabeça.

— Só um pedido, irmão.

— O que quiser, hyung.

— Sei que nunca desejou ser o chefe de algo, e sempre

preferiu estar na ação e não apenas na inteligência, a qual ficou

por anos e mais anos... E agora, está prestes a se tornar o chefe

de um cartel.

— Por um ano, hyung.

— Nem que fosse por alguns minutos, irmão — cortou-me.

— Sei que você consegue fazer isso, mais do que você mesmo
deve acreditar... O que me preocupa, é se vai se cuidar.

— Não está mesmo preocupado que agora eu coloquei

mais um alvo nas minhas costas, por ser o chefe de um Cartel no

México?

— Você sabe se cuidar quando está sozinho. — Olhei-o

sem entender. — Mas agora tem uma família, que também

carrega esse alvo. E eu sei o quanto você sempre se preocupou


conosco, e agora, o faz por elas.

— Sou tão óbvio assim? — perguntei, diante de todos os

acertos em suas palavras.

— Talvez apenas para mim e Cha hyung, talvez o seja para


Sara Hernández também. — Encarei-o surpreso. — Se cuidar,

não quer dizer não sentir, Chae.

— É apenas um casamento por contrato, hyung.

— Repita isso mais vezes, até que ao menos, você mesmo

acredite — falou, e o que raramente acontecia surgiu em seu

rosto – um leve sorriso. — Ou que pelo menos, os nossos irmãos

não desconfiem.

— Já disse que a faceta engraçadinha não combina com

você?
— Há alguém que discorda — rebateu, e apenas se

aproximou para apertar o lóbulo esquerdo da minha orelha. —


Apenas seja você, Chae.

E antes que eu pudesse indagar sobre aquele “alguém” ou

dissertar sobre a forma como os discursos bonitos deles eram

capazes de foder com a minha cabeça, ele apenas se virou e


saiu.

E então eu apenas me vi olhando para o espelho e

repetindo na minha língua.

— É apenas um casamento por contrato.

O jeito que aquilo saiu, pareceu um tanto quanto forçado,

então parti para as outras línguas que eu falava. E em cada uma

delas, principalmente no espanhol, parecia se tornar pior.

De duas uma: ou eu estava nervoso porque ia me tornar

um homem casado por um ano, ou eu estava nervoso porque

nunca gostei de multidões me assistindo. Delas, eu torcia para

que a segunda fosse a única real.

Eu também torcia para que aquele casamento fosse?


Capítulo 21

“Me sinto tão distante e, ao mesmo tempo, tão perto

Tentando decifrar o seu silêncio

E então me imagino dentro da sua pele

Mas me perco na tentativa”[28]

SARA

Era como se eu estivesse apenas em modo automático.


Seguindo Ramon pelas ruas lotadas da pequena cidade, vendo o

meu povo, vendo chefes de outros cartéis e máfias. Não

conseguindo pensar muito, enquanto Matê segurava minha mão,


e os Kang estavam ao nosso redor, como se dando a certeza de

que aquilo era real.


Quando finalmente me aproximei da praça principal, onde

escolhemos como lugar para o casamento, soube que talvez


fosse mais um espetáculo, do que algo breve como gostaria. Algo

simples e rápido, apenas para que todos soubessem. Só não

imaginei que todos se sujeitariam a estar ali.

— Eu vou me sentar com a tia Hari, mamá — Matê falou, e

eu assenti, tocando de leve seus cabelos e dando um beijo neles.


Vi-me então apenas segurando seu pulso, e passando nele, a

pulseira que Vincenzo Kang nos presenteou. Ela olhou para a

mesma, que de tão fina, quase desaparecia, mas que ficou


perfeita em seu pulso, com as letras que ela talvez nem notou

entrelaçadas. — Bom casamento, mamá.

Vi o momento em que Hari me pediu permissão com o


olhar, e minha filha segurou na mão do seu filho. Uma conexão

que nenhum de nós poderia explicar, mas eles criaram em menos

de um dia.

— Pronta, senhora?

— Eu...

— Música ruim, um bando de pobre, e chefes medíocres...


Olhei pela multidão, e encontrei meu irmão, como se eu
pudesse o chamar de tal maneira. Sabia que faltavam apenas

alguns degraus, para que eu chegasse até a parte em que Chae

me esperava e eu tanto buscava o seu olhar, contudo, parei,

encontrando Roberto, há alguns passos de mim.

Pessoas gritavam por ele, chamando-o de mentiroso,

ladrão, assassino... E ele apenas parecia um bêbado, que sequer

deveria estar ali. Notei de imediato que Ramon ficou à minha

frente, assim como os Kang que ainda estavam próximos a mim.

— Pode deixar, Ramon — pedi, e com um breve olhar,

notei os Kang abrirem espaço. — O que quer, Roberto?

— Te ver se afundar na sua infelicidade, mais uma vez,

meia-irmã de merda.

— Ao menos, uma Hernández de verdade — rebati, e notei

a surpresa em seu olhar. Fazia tanto tempo que não estávamos

frente a frente, que ele sequer deveria lembrar, que eu tinha

alguma voz. Ottis a poderia ter tirado, mas Ottis agora apenas

assistia aquilo do inferno. E que ele queimasse junto com as


minhas palavras. — O que quer aqui?

— Quero que morra, é pedir demais?


— Eu te disse o que ia acontecer se você se aproximasse

dela novamente, não disse?

Mesmo com a música, o falatório, os xingamentos, eu

sabia que Chae estava se aproximando, como se os seus passos


já fossem velhos conhecidos meus. Antes que ele passasse por

mim, vi-me segurando de relance o seu dedo indicador com o


meu, o que o fez obedecer e parar, no mesmo instante. Levantei o
meu olhar e encontrei o ódio estampado no seu, que não era

sobre mim, mas era por mim.

— Por que não tenta? — perguntei, virando-me para

Roberto, com Chae às minhas costas. — Por que nunca teve


coragem, não é? Foi mais fácil correr da sua própria morte, me
usando, do que ser algo além de um rato?

— Sua vaca, eu vou te matar...

Eu então me afastei de Chae, e dei passos longos, me


aproximando de Roberto, que quando pensou em levantar a mão
para mim, eu já tinha segurado seu braço e o dobrado, fazendo-o

cair no chão, com o mesmo quebrado.

— Eu vou te matar — falei e olhei-o friamente. — Mas não

hoje, porque é o meu casamento. Mas um dia, Roberto, vai pagar


por tudo o que me fez passar.

Olhei para Ramon e fiz um sinal com a cabeça. Ele veio


rapidamente, junto a Alberto, e praticamente tirou Roberto dali,

em poucos segundos, jogando-o para o meio das pessoas, que


com certeza, deixariam ainda mais hematomas em seu corpo. A

tradição dos Hernández, de jogar os ratos para a multidão e os


exterminar.

— Sarita?

Virei-me ao chamado de Chae, e seu olhar escuro


encontrou o meu, ele parecia ligeiramente preocupado, mas eu

via o orgulho brilhando em seu rosto. Eu estava sob uma


adrenalina, que eu temia, que a qualquer momento pudesse errar

um passo e apenas desabar ali mesmo.

Porém, eu tinha me defendido.

Eu tinha mostrado quem era, e o poder que tinha, à frente


de todos ali presentes.

E de certa forma, pelos próximos minutos, senti que

poderia ser digna de um Kang. Contudo, não era aquilo que eu


buscava, não quando segui Chae, pelas escadas que nos

levavam até o centro da praça, e então, depois de tudo aquilo, foi


que notei que nossos dedos indicadores estavam ligados
novamente.

Um sorriso quase se formou em meu rosto. Eu o encarei, e


por alguns segundos, éramos como se fôssemos apenas nós. E
tudo o que eu queria, era ser digna dele. Apenas dele. Que lá no

fundo, bem lá no fundo mesmo, eu sentia que era meu. O meu


Chae.

CHAE

Eu só conseguia me lembrar de que ela disse “sim” e eu


também. O resto passou como se fosse um apagão. Matê indo
para o colo dela, palmas ao redor, saudações de pessoas que eu

conhecia, daqueles que eu nunca tinha visto, e daqueles poucos


com quem eu me importava.

No silêncio, quando finalmente fechei a porta da frente de

casa, eu pude respirar novamente. Uma festa acontecia por toda


a cidade, e eu estava correndo para longe, porque eu precisava
de um segundo, para me reencontrar naquele caminho. Como se
eu não soubesse mais o que estava fazendo.

Não poderia demonstrar aquela fraqueza.

Sentir-me daquela maneira era uma fraqueza?

Barulhos de dentro de casa, me fizeram paralisar o corpo,

segui as luzes todas acesas, e sabia que era o que Sara fazia,
cotidianamente, antes mesmo de começar a escurecer. Vi que ela

tocava algo no piano, e tinha a cabeça baixa, como se estivesse

fugindo também.

— Sara?

Seu olhar parou no meu, enquanto eu me encostava contra

a parede, e vi-a perdida em si, parada bem ali.

— Fugindo da festa? — perguntou, e notei a forma como


sua voz saiu um pouco desconcertada. — Eu só precisava de

alguns segundos, eu... — travou de repente, como não a via fazer

há alguns dias. — Eu vou ficar pronta, Chae.

— Do que está falando?

Ela então se levantou, e meu olhar notou o quão bonita

estava naquele vestido branco, que escolheu para o nosso


casamento, o que me fez lembrar do dia que o compramos, e

como ela parecia feliz. No agora, ela parecia prestes a cometer


um crime.

— Eu...

— Sara?

Vi que ela deu um passo à frente, e se desequilibrou com o

salto. Para que ela não caísse, vi-me segurando a sua cintura, da

forma que consegui, e a mantendo de pé.

— Por favor, não — falou, tremendo em meus braços, e


pisquei algumas vezes, afastando minhas mãos de imediato. —

Se for, que seja rápido.

— Sara...

— Por favor...

Logo eu vi que ela estava claramente em uma crise,

tremendo, e quase se encolhendo em si, mas não se afastando,

como se tivesse que fazer aquilo. Como se ela sentisse o peso


que seria, estar em um casamento novamente.

Corri até o sofá, onde ela sempre deixava sua coberta e a

peguei, colocando-a com cuidado ao seu redor, sem tocá-la em


momento algum. Sem deixar que ela sentisse a minha pele contra

a sua, ou em qualquer parte dela.

— Sara... Sou eu, Chae- — falei, e terminei de enrolar o

cobertor ao redor dela. — Não precisa ter medo.

Vi-a piscar algumas vezes, os braços passando por si, o

movimento que eu via, claramente desesperador, pela forma que

a coberta se movia.

— Sara...

— Eu... — ela então piscou algumas vezes, e lágrimas

desceram por seus olhos. Vi-a dar passos para trás, como se

buscando algum lugar para se escorar, e acertou a parede. Tive


que usar todo meu autocontrole, para permitir que ela não se

machucasse daquela forma. — Eu...

Ela chorou alto, agarrada a si mesma, e eu sentia a sua

dor, atingindo-me por inteiro, e eu gostaria de rasgar a minha


pele, para deixar que ela pudesse não se sentir mais assim sob a

dela.

— Eu sinto muito.

Sua voz parecia dela novamente, como se voltando aos

poucos. Vi-me sentando na parede oposta, de frente para ela, e


apenas a olhando dali. De longe, de forma que fosse segura,

enquanto eu sentia meu coração ser colocado para fora e


machucado, da pior maneira possível. De um jeito que não pensei

mais ser possível.

Porém, o era.

Porque ela estava machucada, de uma forma que eu não

sabia como poderia mostrar alguma ajuda. Eu sentia que a minha

presença, de repente, apenas destruía ainda mais, o que ela tanto

lutava para construir em si.

— Eu pensei que depois do que aconteceu com Roberto,

eu conseguiria... — falou, e seu olhar ainda estava preso em si. —

Conseguiria me proteger. Conseguiria ser uma jovem normal.


Uma recém-casada normal. Mas não sabia que não posso me

proteger dos meus próprios demônios internos.

— Sara...

— Eu deveria estar na festa, dançar com você, sorrir... Eu

deveria poder sentir o seu toque, mesmo que seja uma mentira,
poder escolher que seja meu. — Sua dor era clara em cada

palavra. — Então eu corri para casa, tentando encontrar o que


restou de mim, alguma parte que seja, e apenas... encontrei

pedaços novamente.

O silêncio se tornou ensurdecedor entre nós. E eu sentia

que eu precisava dizer algo, que eu precisava ajudá-la a não se


culpar por aquilo. Mesmo que fosse claro, que ela não estava

pronta para externalizar mais. Eu poderia fazer por ela.

— Quando eu era mais novo, quinze anos... — falei de


repente, como se tentando trazer aquela dor para mim, de alguma

forma. Mesmo que fosse impossível. Ao menos, eu poderia tentar

tirá-la de dentro dela, por alguns segundos, focando em outra

coisa. — Eu quis matar meus pais — confessei, e senti o seu


olhar sobre mim, enquanto eu buscava qualquer outro lugar na

sala. — Eles me criaram para ser vendido, assim como fizeram

com meus irmãos biológicos mais velhos. Eles construíram uma


fortuna vendendo os próprios filhos para pessoas que os

matariam logo após usá-los da forma que quisessem. Quando

descobri isso, aos quinze, eu os mataria. Eu sabia então, que a


irmã mais próxima de mim – Chae, tinha sido vendida a uma rede

de tráfico humano, e... E apenas o que restou do seu corpo, foi o

que encontrei no jardim, semanas depois. Ela se matou, para que

eles não a usassem. Cha Kang estava investigando essa rede de


tráfico, e foi quando chegou até meus pais biológicos, que eram

pessoas ricas e poderosas, mas que ninguém entendia como o


fizeram. E quando ele chegou, eu estava prestes a matá-los com

uma faca de cozinha. Ele me deu a opção de matá-los ou vingar-

me deles, de uma forma que os faria padecer pelo resto dos dias,

e eu escolhi a segunda. Vincenzo hyung, fez os dois se tornarem


estéreis, e perderam todo o dinheiro que tinham. Foi quando Cha

hyung tentou me trazer para os Kang, me dando uma chance de

recomeçar. E Vincenzo hyung, me convenceu a fazê-lo. E eu


podia escolher outro nome, do que o qual me chamaram. O fiz por

minha irmã. Por isso meu nome é Chae.

— Por que está me contando isso?

— Para que saiba de mim, o tanto quanto sei de você —

confessei, e a encarei. — É justo, não é? É justo que conheça a

minha dor mais profunda, mesmo que ela não possa ser sua. E

pode encontrar o mesmo em mim — falei. — Um silêncio


amigável. Uma pessoa para quem pode deixar seu medo e dor

saírem. Não há julgamentos aqui, nem do que se envergonhar ou

se desculpar. Apenas nós.

Seu olhar fugiu do meu, e ela pareceu procurar por algo


que valesse a pena, para que então, tivesse algo a dizer. O que
ela ainda não sabia, era que não precisava dizer nada. Não para
mim. Nunca para mim.

— Chae... — meu nome saiu da sua boca pela primeira

vez, fazendo-me focar por completo no seu dedo indicador,


apontado em minha direção. —Apenas nós?

Apontei o meu dedo indicador na direção do seu, como se

o apertasse, e soube que era um gesto maior do que qualquer


outro poderia significar. E eu tinha uma resposta para ela, e era

como se eu estivesse esperando a vida toda para dá-la.

— Apenas nós.
Capítulo 22

“Você me faz invencível

Desconheço o impossível

Se me viro e te encontro aqui

(Me deixa viver perto de você, sempre ao seu lado)”[29]

SARA

Eu tinha flashes.

De me levantar com cuidado, e caminhar até o quarto que

dividia com Matê. Lembrava-me de Chae não me olhando por


todo o caminho, mas eu sabia que ele cuidava de mim, mesmo

que não demonstrando daquela forma. Talvez ele estivesse com

medo de me assustar. E ele não estava errado em pensar assim.


A pressão daquele dia, quando parei para pensar que eu

estava totalmente no controle de mim, sem que minha mente


pudesse me controlar involuntariamente, apenas se tornou

demais. Um toque maior dele, acabou por despertar todo o

inferno que existia dentro de mim.

Eu estava deitada na cama, enquanto sentia o meu mundo

girar. Agarrada ao cobertor que ele me envolveu, e que me ajudou


a tomar parte de mim de volta naquele instante de crise. Fechei

os olhos por alguns segundos, sabendo que deveria estar de pé,

ir para a festa, e ficar, ao menos, ao lado da minha filha. Porém,


eu não conseguia.

Era como se meu corpo se negasse a ir a outro lugar que

não fosse um que me sentisse completamente a salvo. Sabia que


Berta estava com Matê, assim como Ramon, e todos os Kang, o

que diminuía parte da minha preocupação, e também porque eu

tinha falado com ela ao telefone, segundos antes de Chae entrar,

e tudo colapsar... mais uma vez.

Pelo menos, a minha filha parecia estar tendo um dia bom.

Agarrei-me àquela ideia, abraçando-me, e fechando os olhos por

alguns segundos, tentando focar em não ficar presa em mim. Não

da forma que tanto me fazia sofrer. Negando-me a lembrar de


Ottis, e do que ele fazia comigo. Eram praticamente apagões,
como se minha mente tentasse me proteger do que aconteceu

durante todos aqueles anos. Contudo, eu ainda sentia parte de

mim, reconhecer aquela dor, e implorar para que ela passasse,

que ela desaparecesse.

Leves batidas na porta do quarto, me fizeram abrir os

olhos, e dentre a nuvem de lágrimas não derramadas, eu vi uma

folha ser passada por debaixo dela. Tive que usar tudo de mim, o

que restava das minhas forças, para ir até o papel, e me vi

sentando no tapete, e então pegando o mesmo em mãos.

“Eu vou estar no meu quarto.

Deixe a porta trancada e se sinta segura.

Não se preocupe com nada, a não ser você.

Obs: Matê está com meus irmãos, Berta e Ramon, mas

exatamente, brincando com Jae.

Com carinho,

Chae.”
Agarrei-me àquele papel, deixando que as lágrimas

descessem, como se elas pudessem falar pela minha dor, ao


mesmo tempo que compreendendo que nada era como antes. Eu

não tinha qualquer noção do que seria aquele casamento. Porém,


naquele momento, e talvez desde o primeiro em que vi apenas a
foto de Chae Kang, eu soube que não seria nada parecido com o

que vivi.

Vi-me carregando o papel junto a mim, e voltando para a

cama. Abraçada a ele, fechei os olhos e pensei que aquela era


minha nova realidade. Eu poderia me culpar, por estar confiando

em alguém, porém, não era justo. Não era justo passar o resto da
minha vida, sem poder dar a chance de acreditar que alguém

pudesse ser bom comigo. Apenas bom, porque era bom. Nada
mais.

— O que mais te assusta, pode ser aquilo que vai te trazer

de volta à vida — mamá falou, e beijou ternamente minha testa.


— Promete que vai se lembrar disso, cariño?

— Por que está falando tão misteriosa hoje, mamá?

— Porque tem muito que não podemos controlar, por mais

que tentemos — falou, e então tocou a tatuagem com a inicial H,


que estava em minha nuca. — Tentamos te manter longe de uma
vida no Cartel, enquanto nos mantínhamos longe. Mas hoje,

vamos voltar a ele.

— E por que eu não posso ir junto? — perguntei, com certa

angústia atingindo meu peito.

— Porque você é a nossa esperança para os Hernández,

cariño. — Abraçou-me com força, como se não quisesse me


soltar. — Lembre-se de que o medo pode te paralisar, mas ele
também, é o que te move. Use-o, sempre a seu favor.

— Mamá...

Lembrava-me de ela não dizer mais nada, e apenas ficar


abraçada comigo por mais alguns minutos. Assim como vovó
apareceu e nos acolheu em seus braços. Elas sabiam que seria

uma retomada difícil, mas sabiam também que o tal Guillermo


Ottis, que foi levantado como o nome para chefiar o Cartel, não

era a pessoa certa.

Era como se elas sempre soubessem sobre.

Era como se elas estivessem sentindo que iriam

diretamente para a morte. Porém, elas mesmo assim, foram. Pelo


Cartel, pelo nosso povo, pela... pela nossa família.
— Eu vou usar esse medo a meu favor, mamá — falei para
o nada, baixinho, com o papel deixado debaixo da porta, perto do
meu peito. — Eu vou ser a esperança que tanto viram em mim.

Eu prometo.

CHAE

Eu tinha certas manias, talvez não muito comuns, para me

sentir vivo. Eu socava paredes, para poder sentir dor, e lembrar


que eu ainda era um ser humano. Ou até mesmo, quando via
escorrer o meu próprio sangue, e me lembrava de que eu era

alguém também.

Nenhuma delas fazia sentido naquele instante.

Parado dentro do quarto, sentado na cama, com a foto que


vi de Sara tempos atrás, e que agora estava revelada em minha
mão. Ninguém sabia, mas eu a carregava para todos os lugares,

como se para descobrir, o que era aquela sensação que me


atingia, por conta dela, através de apenas um momento dela,
parado no tempo.

Sabia que agora, eu tinha fotos junto a ela. Fotos em que


Matê também estava, assim como toda minha família. Nós
tínhamos casado. E por mais que todo o espetáculo montado do

lado de fora, para representar que os Kang e Hernández tinham


se unido, minha única preocupação naquele momento era se
Sara estava bem. Ela ficaria bem com aquilo, sabendo que eu

estaria ali, por todo aquele tempo?

Eu sabia de todas as minhas responsabilidades, e como no


próximo dia, eu já teria que assumir o Cartel ao seu lado, porém,

como eu poderia pedir algo assim para ela. Como alguém ousava

pedir? Tudo o que ela passou de pior, foi justamente por culpa

daquele poder que deixaram de lado no Cartel. De terem o


entregado e a entregado para um homem como Ottis.

Olhando ao redor, eu via a vida que ela deixou para trás,

mesmo que ela nunca tivesse me dito. Ela deixou uma casa, um
verdadeiro lar, completamente obrigada, para apenas servir em

uma prisão, que o chefe do Cartel que era dela por direito e que

deveria defendê-la, o fez. A cada momento que eu pensava mais

sobre aquilo, mais eu gostaria de ter a habilidade de voltar no


tempo, e matar Ottis, antes que ele pudesse pensar em fazer

qualquer mal.

Ouvi então um ruído, por debaixo da porta e um papel

branco apareceu no chão do quarto. Levantei-me de imediato e o

peguei, reconhecendo pela primeira vez a letra de Sara.

“Eu sei que não devo sentir muito pelo que aconteceu.

Mesmo assim, eu sinto.

Sinto muito por ter mostrado o meu lado mais fraco.

Ao mesmo tempo que percebi, que confio em você.

Obrigada por se preocupar e por ser um amigo.

Com carinho,

Sarita”

Já deveriam ter se passado horas, desde o momento em

que recorri ao papel e caneta, para poder me comunicar com ela.

Para ela saber, que independente de qualquer coisa, eu estava


ali. E mesmo que ela não tivesse que me dar qualquer resposta,

novamente, ela me entregava.


Como se ela me conhecesse há muito tempo, e soubesse

que a espera, o silêncio e a dor, poderiam me torturar por horas a

fio.

Dobrei o papel com cuidado e o guardei na primeira gaveta


de uma cômoda em que ficava o meu livro favorito e acabei por

deixar o papel no meio deles. Gostaria de poder sair e dizer, de

outra maneira, que eu estava ali.

Porém, ela sabia que eu estava. Só gostaria de quem

algum momento, ela realmente acreditasse. Contudo, mesmo em

meio a tudo aquilo, vi-me agarrando as suas palavras riscadas no


papel. De que ela me via como um amigo. Eu a via também. Eu

tinha deixado aberta para ela, sem perceber, uma porta que a

levou diretamente para o Chae do passado. O qual, eu raramente

visitava. E que nunca deixava alguém de fora o fazer.

Entretanto, ela o fez.

E eu sabia o porquê. Que assim como ela, mesmo não

devendo e tendo todos os contras para não o fazer, eu confiava

nela. E meu ser estava em paz, de finalmente, estar admitindo


isso, a mim mesmo.
Capítulo 23

“Acredite em mim, estas palavras que estou dizendo

São palavras que estão saindo direto do meu coração

Como eu te farei acreditar?

Ninguém mais significa tanto para mim quanto você”[30]

CHAE

— Hora de acordar para dizer tchau.

Virei-me com cuidado e encarei Hinata, assim como todos

os meus irmãos dentro do quarto. Já sabia que eles estavam ali,


mas estava me negando a acordar, porque deveria ter dormido

menos que duas horas até aquele momento.

— Oito da manhã?
— Sete e meia — Vincenzo corrigiu, e eu assenti. — Cha já

foi, e disse que vai te ligar.

— Nós temos que ir, porque as crianças têm escola, e bom,

nós temos o trabalho — Dove falou, e abri completamente os


olhos, encarando-os. — Parece que foi uma noite difícil. —

Analisou, e eu dei de ombros, sem dar qualquer brecha para

adentrarem o assunto.

— Vou sentir saudade, brutamonte — Hina falou, e eu me


sentei, para que ela viesse me dar um abraço, e foi exatamente o

que fez. — Cuida bem delas, ok?

— Eu vou cuidar — assumi, e então virei meu olhar para

Jeon, que estava claramente preocupado. — Não a deixe ficar

pulando ou correndo por aquela mata esquisita que moram, tá,

hyung?

— Pode deixar, irmão.

Hinata me encarou inconformada e pisquei um olho para

ela.

— Leve-as em casa, quando quiser — Hari falou, e me deu

um leve abraço, antes de se afastar. — Jae adorou Matê, já até

trocaram telefones, e com certeza, serão amigos.


— Fico feliz — falei, já estando mais desperto. — Obrigado
a todos, por virem.

— Eu posso ter um minuto?

— Por que todo mundo gosta de falar comigo a sós? —

reclamei, e Hari me deu um tapa no peito, antes de se afastar

mais, e dando acenos assim como meus outros irmãos, restando

apenas eu e Kalel. — Algum problema, hyung?

— Eu não tenho ideia da tamanha responsabilidade que

tem, mas sei que é por minha culpa que o Cartel de Ottis foi
desmantelado, e está nessa posição — disse, e todos nós

sabíamos que era verdade. Foi ele quem acabou destruindo o

Cartel de dentro para fora, e expondo cada crime que Ottis

cometeu contra seu próprio povo. E claro, contra o que deveria

ser sua família. Contra as pessoas que eram a minha família

agora. — Eu acho que devo esse pedido de desculpas, e um

agradecimento por estar aqui.

— Deveria se desculpar por ter fodido com Ottis antes, ou

não ter me chamado para ajudar. — Fui honesto. — Eu estou


onde tenho que estar, hyung. Não tem por que pensar em se

desculpar por isso.


— Como um Kang, sempre?

— Como um Kang, hyung.

Ele então me surpreendeu, ao me dar um forte abraço, que

eu sabia que não era o seu comum. Porém, eu senti saudade de


poder até mesmo obrigá-lo a me abraçar antes, já que perdemos
Kalel por tempo demais.

— Eu acho que já tenho uma nora, acredita?

— Você não ousaria me dizer isso... — levantei-me, assim


que ele se afastou, e o mesmo deu passos para trás, levantando
as mãos em rendição. — Repete, hyung.

— Sabe muito bem o que eu disse...

Ele então correu para fora do quarto, e me vi abrindo a

porta para fazer o mesmo. Encontrando meus irmãos já na porta


de saída, todos em silêncio, enquanto eu poderia socar a cara de

Kalel facilmente.

— A sua sorte é que Jae está aqui, dormindo no colo de

Vincenzo, mas ainda aqui — retruquei, e vi o sorriso arrogante em


seu rosto.

— Dê um beijo neles por mim, por favor.


— Pode deixar, cunhado. — Flávio quem tomou à frente,

com Saron apagada em seu colo. — Apareça em casa, sempre


que quiser.

— Não sempre, porque eu quero estar lá também — Dove


o corrigiu, e eu ri de lado. Vendo Flávio revirar os olhos, da forma

como ela sempre tinha algo a dizer.

— Me avisem quando estiverem em casa, por favor —


pedi, e eles assentiram.

Um a um, eu os vi sair pela porta e então passarem pelo


portão da frente, e acenarem. Era estranha, a sensação de perda

que eu sempre senti quando se tratava de me afastar deles, ainda


estava ali. Contudo, não era mais como um vazio profundo.

— Sem sono, senhor Chae?

Uma vozinha me fez fechar a porta atrás de mim, e me

virar, encontrando Matê coçando os olhos, dentro de um pijama


de ursinho, e claramente sonolenta.

— Já vou tentar voltar a dormir, e você? — perguntei, indo

até ela, mas parando a passos de si.

— Estou com sede — admitiu, vi-a caminhar em direção da


cozinha, e em seguida, ouvi o barulho da geladeira sendo aberta,
e logo fechada.

Pouco tempo depois ela voltou com uma garrafinha na

mão, e até me ofereceu.

— Eu estou bem, Matê.

— Pode me chamar de cariño, se quiser — falou, dando

um longo bocejo. — Agora é meu padrasto, e eu... eu acho o


senhor legal.

— Só se me chamar de Chae ou Oppa — ela assentiu, e


sabia que estava apenas se guiando pelo seu sono.

Mas a cena dela, abrindo a garrafa e tomando um longo


gole de água, não me sairia da mente tão cedo. Olhando ali, eu

sabia o porquê o vazio não me atingiu. Era exatamente, porque


eu estava em casa ali também.

SARA

Era um novo dia.


E em um novo dia, eu poderia ser mais forte.

Porém, sabia que tinha perdido a hora, quando notei que

Matê ainda dormia ao meu lado, mas era possível ver pela parte
debaixo da porta, que estava bem claro. Levantei-me com
cuidado para não a acordar, e corri para olhar meu celular,

encontrando no relógio que já era meio-dia.

Eu tinha dormido demais.

Fui rapidamente ao banheiro, troquei de roupa, escovei os

dentes, e saí amarrando meus cabelos no alto, abrindo e

fechando a porta com cuidado. Encontrei Berta na cozinha,


mexendo em algo, e sabia que deveria ter chegado para ficar com

Matê, e nos encontrou dormindo.

— Desculpe por ter te feito ficar esperando, Berta — falei, e

ela negou de imediato com a cabeça.

— Fico feliz em saber que está dormindo, menina.

Abri a geladeira e peguei um energético. Não era a opção

mais saudável, mas era a mais prática para o momento.

— Encontrei o senhor Kang, e ele disse que o


compromisso das dez hoje foi cancelado, que você pode ficar

tranquila. — Parei com o energético no caminho até minha boca.


— Ele saiu faz pouco tempo, acho que era alguma coisa do

conselho, que começaria logo após o almoço.

— Obrigada Berta — falei, e fui tomando meu energético.

— Estarei com meu celular, e Matê tem o dela, qualquer coisa

mesmo, pode me ligar.

Ela assentiu, e me deu um sorriso. Saí de casa, e corri

para fora, na tentativa de encontrar Chae no meio do caminho até

a igreja, onde aconteciam as reuniões. Avistei-o já quase no final

do morro, e vi-me correndo o mais rápido que podia. Não me


surpreendendo, ele me viu chegando, antes mesmo de eu o

alcançar de fato, e notei a surpresa em seu olhar.

— Eu... — tentei puxar uma forte respiração. — Eu dormi


demais.

— Acho que acertou o dia de dormir, já que cancelaram a

visita até a escola na cidade vizinha, para falarmos sobre

educação, porque devido ao casamento, eles todos chegaram


tarde em casa — assenti, voltando a tomar o resto do meu

energético. — Um ótimo café da manhã. — Provocou, e eu

apenas dei de ombros, feliz que as coisas, não pareciam ter


mudado entre nós.
Apenas nós – foi o que ele disse.

E era exatamente como eu me sentia, vendo-o me tratar

normalmente, mesmo após perceber a parte mais fraca de mim.

— Seus irmãos?

— Saíram cedo, por conta da escola das crianças e

compromissos — explicou, e eu assenti. — Eles não são de ter

muito tempo, mas disseram que deveríamos visitá-los.

— Nunca saí do México — confessei, caminhando ao seu


lado, e indo em direção à igreja. Eu dava um “olá” com as mãos,

para algumas pessoas, que já estavam no auge do dia, vendendo

seus produtos.

— Bom, tem dois países na lista para conhecer, se quiser...

Brasil e Coréia do Sul — falou, e então parou um passo, quando

estávamos chegando próximos à igreja. — Pronta para começar a

ser uma chefe?

— Você está pronto? — rebati, e ele me entregou um

sorriso de lado, que dizia muito mais, mas não conseguia definir o
quê, porém, era um mais que eu gostaria de estar.

— Eu sou um Kang, eu sempre estou pronto. — Piscou um

olho em minha direção. — E você, Sarita?


— Eu sou uma Kang-Hernández, eu nasci pronta.

Ele pareceu orgulhoso de minha resposta, e até eu me


senti assim naquele momento. Era leve e fácil, até mesmo,

simples, estar assim com ele. Entregar partes minhas que nem eu

conhecia, mas que vinham facilmente à tona, quando se tratava

dele. Contudo, éramos apenas nós.

Era doloroso e difícil, até mesmo, insuportável, saber que

poderíamos encontrar nossos demônios um no outro, ou deixá-los

à solta, e vê-los nos machucar sem que o outro pudesse interferir.


Porém, até mesmo assim, sabia que eu poderia dar um passo

para longe, e ele estaria apenas esperando para dar mais um à

frente.

Nós.

Apenas nós – duas palavras, nas quais eu me apeguei,

como um juramento sagrado, muito além de um casamento por

contrato. E agora, eu me permitia acreditar.


Capítulo 24

“Ouvindo uma música para você, para mim

E que mexa com a nossa cabeça

Para viver e expressar tudo o que eu sinto

Quero ficar com você, te dedico esta música”[31]

SARA

— Só isso? — perguntei, vendo Chae me seguir para o


caminho de casa, enquanto eu relembrava tudo o que foi

discutido em uma reunião de três horas, mas que era mais sobre

que decisões tomaríamos em relação a cada crime que foi


permitido durante o Cartel Ottis, e que agora era o Cartel
Hernández, e voltaria as raízes. — Eu pensei que seriam mais do

que horas conversando.

— Se você pensar que essa conversa será repercutida por

todo o seu país, e afetar a vida de milhões... — falou, caminhando


ao meu lado, a cinco passos, como sempre, e as mãos dentro da

jaqueta de couro que usava. — Pode ser tedioso em alguns

momentos, como Vincenzo hyung me alertou, mas com certeza,


nos pedirão mais em algum momento.

— Como? — perguntei curiosa.

— Como estar em outras cidades, verificar pessoalmente


se tudo está sendo cumprido como deveria, e não deixar que

nada abale ainda mais a estrutura que estamos tentando

reconstruir. E isso inclui, em algumas vezes, demonstrar força,

assim como o fez com Roberto.

— A população ver isso é importante?

— No nosso país, tudo é mais escondido, mas sabem do

nosso poder — explicou. — Aqui é claro que as pessoas precisam

que seja exposto, e principalmente, na cidade onde o Cartel tem

como sede.

— O que está achando de tudo isso?


— Tedioso, assim como era estar na inteligência dos Kang.
— Foi honesto. — Sempre gostei mais da ação, e talvez até por

isso, por gostar, eu tenha sido colocado para não estar tanto

assim.

— Acha que perde o controle? — minha pergunta saiu,

antes mesmo que a processasse.

— Nunca — respondeu de imediato. — Acho que a minha

justiça é uma das mais cruéis dentro dos Kang — admitiu. — E

quando isso é necessário, eu estou aqui. Quando não é, meus

irmãos estão.

— É estranho falar tão livremente sobre coisas assim —

confessei. — Minha mãe e avó sempre tentaram me manter à

margem do que o Cartel era, de quem éramos, então tudo o que


sei, é o mínimo do mínimo.

— Bom, pela forma como lidou com o conselho hoje, e


como te vi lidar no dia em que nos reunimos pela primeira vez, ser

uma líder é algo natural para você, mesmo que não queira isso.

— Ainda não sei realmente o que quero — falei, parando à

frente do portão de casa. — Eu só pensava em sumir daqui, após


um ano, mas agora, sendo algo para o meu povo, eu não sei o

que vai acontecer.

— Nunca sabemos. — Deu de ombros, e um sorriso de

lado. — Eu vou dar uma volta, e estarei em casa mais tarde.

Assenti, e só então entendi que ele veio até ali, apenas


para me acompanhar.

— Chae... — chamei-o, antes que estivesse longe o


suficiente, e não pudesse me ouvir. — Obrigada por ontem, e por

hoje. Na verdade, obrigada por todos esses dias, desde que


apareceu em minha vida.

Ele então me olhou, e em seguida para os próprios pés.

— Eu que deveria agradecer. — Voltou a dar passos para


perto, e então parou. — Obrigado por confiar em mim, Sarita.

— Quer dizer que somos amigos? — perguntei, e ele

assentiu. — E então, eu posso saber seu apelido?

Sua feição mudou de imediato, e ele fechou os olhos por

alguns segundos, como se estivesse com dor. Se não fosse


mafioso, com toda certeza, poderia ser ator.

— Encontrei Matê no corredor hoje cedo, ela estava com


sede... — explicou, e eu franzi o cenho. — O pijama que ela
usava. — Foi tudo o que disse, e então deu passos para trás,

andando de costas para mim.

Demorei alguns segundos para conseguir entender, e na

verdade, me vi correndo para dentro de casa, em uma curiosidade


que me tomava por inteira. Encontrei então Matê, ainda em seu

pijama, estirada no sofá da sala. Um pijama de ursinho?

— Estava com esse pijama quando encontrou Chae mais


cedo, cariño? — perguntei, até sem fôlego.

— Boa tarde para você também, mamá — rebateu, e me


encarou divertida. — E sim, eu estava. Por quê?

Então minha ficha caiu. Enquanto eu me sentava ao lado


de Matê no sofá e uma gargalhada explodia de minha garganta.

Apenas, genuinamente, tomando-me por completa, aquela


descoberta. Ursinho era o apelido que Chae Kang tinha dentro de

sua família. E que agora, eu sabia.

Enquanto eu ainda gargalhava, notei a forma como Matê

parecia encantada, me olhando dali, deitada no sofá. Talvez fosse


pelo fato, de que ele nunca tinha me visto rir daquela maneira,

abertamente, sem qualquer medo. Como se mesmo acabando de


assinar um contrato de casamento, eu fosse livre.
E era como ele me fazia sentir. E era como eu sempre quis
me sentir.

CHAE

— Pensei que não te veria de novo — Serena falou, assim

que me aproximei, e ela estava encostada, em uma torre, tendo a


visão perfeita de onde eu morava, e terminando de fazer o serviço

que pedi a ela. — Ocupado, senhor chefe de Cartel?

— Toda vez que nos falamos me arrependo de ter cobrado

sua dívida, e pedido para estar de olho nelas por mim —


respondi, parando ao seu lado.

— Melhor do que qualquer Kang ver o irmão se apaixonar

a cada dia mais... — provocou, olhando-me de relance. — Mas


eles já devem ter percebido, pela forma como são óbvios uns com
os outros.
— Estou sendo óbvio para você? — indaguei, e ela deu de
ombros.

— Pessoas apaixonadas caem tão rápido, que sequer


percebem que quebraram a cara ou ganharam na loteria —
respondeu simplesmente. — Está admitindo que está

apaixonado?

— Não tenho que admitir nada. — Forcei um sorriso, e ela


revirou os olhos. — Algo novo?

— Nada — confidenciou. — Roberto foi visto em outra

cidade daqui, quase morto. E eu o mataria, mas não tenho


permissão nesse território. Se fosse no Brasil, aí sim. — Sorriu de

lado.

— Se o próprio povo não o matar, espero que eu possa

fazê-lo — Admiti. — Alguém mais apareceu por perto?

— Apenas as babás e seus irmãos — explicou. — Poderia

dizer que essa calmaria pode ser preocupante, mas na verdade,

eu acho que o povo está finalmente em paz por ter se livrado de

Ottis. Tanto que vejo sempre alguém aleatório, subir até onde o
corpo dele está exposto, e passar produtos para fazê-lo durar

mais ali.
— Eu estava pensando sobre isso, se tem algo para nos

preparar... — respirei fundo. — Não precisa voltar para casa?

— E eu lá tenho casa, Kang? — rebateu, um sorriso ladino

no rosto. — Eu estou onde me pedem para estar, nada mais.

— Se quiser ficar, e ser paga para isso... — sugeri. — Não


posso cobrar essa dívida para sempre, sabe disso.

— Eu sei que gostei daqui, do clima, das pessoas... — deu

de ombros. — Te aviso se precisar sair. E me avise, se

precisarem de qualquer coisa.

— Obrigado, Serena.

Ela assentiu, e então me afastei, saindo da torre em que

ela estava.

Caminhei de volta para casa, a passos lentos, repassando


tudo o que tinha acontecido até aquele momento. Foram apenas

algumas semanas, mas pareciam valer por uma vida toda. A cada

passo que eu dava para casa, eu os contava como se quisesse


decorá-los. Minha mente repassando o que eu tinha me tornado,

juntamente com quem eu era.

A última vez que me senti tão vivo daquela maneira, foi

quando me tornei um Kang, ou quando conheci meus sobrinhos.


As comparações, com as sensações que Sara e Matê me traziam,

também me assustavam. Será que ela sabia o quão assustado eu

estava? Será que ela tinha alguma ideia?

Quando contei o último passo, abrindo o portão da frente,


encontrei o silêncio dentro da casa, e sequer Berta por ali. Foi

então que uma música familiar tocava, e eu segui até lá.

Passando pelo jardim, na parte agregada, onde ficava a academia


em que as treinava.

— “Eu trago a dor tipo

Ra-tatata, ra-tatata

Ra-tatata, ra-tatata...”[32]

Foi quando parei na porta da academia, vendo-as treinar


golpes. Com Sara usando um protetor, e então Matê cantando e

acertando-lhe um soco perfeito. Sorri orgulhoso delas, enquanto a

música acabava, e uma mexicana começava.

— Eles vão fazer shows, depois de todos esses anos... —

Matê falou, e parou o soco no ar. — Oi, senhor Chae.

Dei-lhe um olhar e ela pareceu se lembrar do que

combinamos, o que eu duvidava, já que estava claramente


dormindo em pé naquele momento que conversamos.
— Oppa?

— Perfeito, cariño — falei, adentrando o ambiente, e


notando o olhar de Sara entre nós dois. — Ela me autorizou —

defendi-me, vendo Matê sorrir para a mãe, que estava perdida.

— Ele é meu padrasto agora — Matê explicou e olhou


diretamente para a mãe, chegando mais perto e sussurrando algo

em seu ouvido.

Um brilho se estendeu pelo rosto de Sara, que assentiu, e

então se virou para mim.

— Pensei que demoraria, então começamos... — falou,

encarando-me. — Quer treinar conosco, Chae?

— O que está havendo nessa família que as duas

decidiram tirar o dia para amaciar o coração de um mafioso? Ou


melhor, agora mafioso e chefe de Cartel? — brinquei, e vi a forma

como o rosto de Sara tomou mais cor, além do que já estava pelo

que suou.

— Primeiro-damo do Cartel? — Matê provocou, e eu

gargalhei alto.

— Eu ainda fico impressionada em como consegue quase

me passar para trás em ironia.


Caminhei até os meus equipamentos e retirei a jaqueta,

colocando minhas luvas, e me aquecendo antes de começar.

— Aliás, por que ninguém me conta que banda é essa que

estão escutando e terá show?

— RBD — Sara respondeu, voltando a treinar com a filha.

— Rebelde, um grupo que estourou no mundo todo nos anos dois

mil.

— Será que eu já ouvi e não estou lembrando? —

indaguei, mas fiz as contas de quantos anos eu teria na época,

e...

— Foi uma novela, e a banda fez tour pelo mundo todo —


explicou. — A que está ouvindo agora, e que toquei outro dia, é

deles... — falou, com um sorriso no rosto. — Eles são fortes até

hoje, mesmo depois que a banda acabou. Pelo menos comigo,

que tenho apenas boas lembranças com as canções.

— Eles esgotaram shows rapidinho — Matê se intrometeu.

— Deveria conseguir um ingresso, mamá.

— Eu apoio — intrometi-me, e o olhar de Sara pareceu


perdido. — Por que não?

— Eu nunca fui a um show — admitiu.


— Ir assistir ao show do seu grupo favorito, como primeiro

show, seria bom, não acha?

Ela deu de ombros, sem responder realmente, mas eu

sabia que existia alguma vontade ali. Uma que ela ainda não

conseguia expressar. Fui para perto delas, já preparando para

começarmos e eu lhes ensinar ainda mais. E mesmo ali, quando


eu estava cumprindo algo que era apenas uma ajuda, a princípio,

eu não me senti de tal maneira.

Eu nos sentia como uma família.

O que eu sempre tive. O que eu sempre tanto temi. O que

agora, fazia todo sentido. E eu gostaria, mesmo que um dia

acabasse, de poder dizer, que um dia, fiz parte daquela família de

três.
Capítulo 25

“E não me atrevo a começar

A, finalmente, te esquecer

Porque me assusta decifrar

O que há atrás de ti”[33]

Dias depois...

SARA

— E o que acha, de daqui a um tempo, começar a estudar

numa escola?
— Jae disse que é algo muito legal. — Olhei-a surpresa. —

Ele me mandou mensagem, contado o que fez na escola hoje. —


Mostrou-me seu celular, e então notei que ela tinha o contato dele

salvo como “primo”, e os dois mandavam áudios um para o outro.

— Gostou mesmo dos Kang, não é?

— Eles foram legais em um dia, o que ninguém foi com a

gente por anos — explicou e eu a entendia por completo. —

Mamá...

— Sim, cariño? — perguntei, ajudando-a a guardar seus

materiais, após lhe dar aula naquele dia.

— Até quando eu vou ter que mentir? — indagou baixinho,

e soltei um suspiro profundo. — Chae Oppa vai todos os dias até


o morro, e me conta que Ottis permanece morto lá... Ele não vai

morrer novamente por isso.

— Às vezes, eu só queria que você não tivesse

amadurecido tão rápido e claramente, à força. — Trouxe-a para

perto, colocando-a sentada em meu colo. — Não precisamos nos

explicar a ninguém sobre isso, mas é importante que saibam. Não

pode viver para sempre mentindo, não é?

— Isso não vai ser ruim para você, mamá?


— Não — respondi sincera.

A realidade era que todos do Cartel e que eram daquele

mundo, sabiam o que Ottis fez comigo. Só não sabiam o mais


profundo daquilo, de que eu tinha apenas quinze anos quando ele

abusou de mim pela primeira vez.

Foi apenas a primeira de muitas, mas foi aos dezesseis

que eu engravidei de Matê. E ele teve que me esconder, assim


como esconder que ela existia. Até que eu completasse dezoito e

me casasse com ele. Desse jeito, escondendo a filha de todos,

para que ninguém unisse um mais um, e ele acabasse sendo

morto pelo maior crime do Cartel – o estupro de menores.

— Posso contar a Chae Oppa? — perguntou e eu assenti.

— Só me deixe ter essa conversa com ele primeiro, e daí

pode falar abertamente sobre sua verdadeira idade, ok?

— Obrigada por isso, mamá — falou, passando as

mãozinhas em meu pescoço. — Obrigada por tudo.

Segurei-a com força contra mim, aproveitando-me do seu

calor e sabendo o quanto, eu sempre sonhei no momento, em


que estaríamos assim, livremente, em nossa casa. Uma realidade

que parecia tão distante, mas agora era a minha.


— Aliás, eu acho que está na hora de ter o seu próprio

quarto, não é?

Ela se afastou de imediato, quase caindo de meu colo, e

por sorte a segurei pelo braço.

— Sério, mamá?

— Acho que sempre fui eu que não consegui me afastar —


admiti, e a encarei. — O quarto que é nosso hoje, era meu, até
sair dessa casa... — confessei e seus olhos pareciam

completamente animados. — O do final era da minha avó, que


ficava justamente ali, porque era mais perto da sala de música.

— Vai se mudar para ele?

Assenti, finalmente externando aquele passo que dava.


Poderia não ser grande coisa para a maioria das pessoas, mas
para mim, depois de mais de seis anos, finalmente conseguindo

ter a coragem de ter um quarto apenas meu, e permitindo que


minha filha tivesse o dela era algo que eu gostaria de festejar por

uma semana.

A confiança de fazer aquilo, mesmo com medo.

A coragem de enfrentar, mesmo que não pudesse controlar

tudo.
— Tudo bem para você, cariño?

— Eu sempre quis ter o meu quarto, mamá — afirmou. —


Mas também não me sentia bem sozinha, nem dormíamos bem...

— concordei, sabendo das várias noites insones que tivemos


juntas. — Mas você pode sempre ir para o meu quarto, e eu para

o seu...

— Promessa? — Mostrei-lhe meu dedo mindinho, e ela


sorriu, apertando-o com o seu.

— Promessa, mamá.

O seu celular vibrou na mesa, e vi que era uma chamada,


com o nome do visor “primo”.

— Eu posso atender no meu quarto? — pareceu orgulhosa


ao chamar o cômodo daquela forma, e eu assenti, vendo-a pular
do meu colo e correr com o celular em direção ao seu. — Posso

contar a ele? — perguntou, parando um passo, próximo à porta já


aberta, do seu.

— Sim, cariño.

Ela então entrou no quarto, fechou a porta atrás de si, e eu

soltei o ar que nem sabia que segurava. Levantei-me da mesa, e


caminhei até o último quarto do corredor, o mais afastado, se
pensasse de onde ficava o de Matê, mas que era quase de frente
para o meu.

O meu quarto.

Bati cinco vezes na porta, e esperei alguma resposta.

— Sim?

Abri a porta com cuidado, sabendo que eu tinha um suspiro


preso na garganta. Foi então que encontrei Chae, sentado em

uma cadeira que parecia confortável para se ficar por horas, à


frente de várias telas de computador, e um fone de ouvido em

uma das orelhas.

— Algo novo?

— Só checando como estão as coisas e a repercussão que

se teve, após aprovarmos que as tradições do Cartel Hernández


se manteriam — consenti, ele tirou o fone que usava e colocou-o

sobre a mesa à sua frente. — Precisa que eu busque algo?

Vi-me então tomando coragem e fechando a porta do seu

quarto atrás de mim. Notei o seu olhar confuso, enquanto eu me


escorava contra a porta.

— Pode procurar por Maria Teresa Hernandez Ottis?


A pergunta pareceu ter um leve choque em seu olhar, mas
eu conseguia ver que ele não estava em total surpresa. Ele
pareceu, na realidade, um pouco perdido.

— Já sabe, não sabe?

Vi-o desviar o olhar, encarar os próprios pés, e em seguida,

as mãos que agora estavam sobre seu colo.

— Foi sem querer, quando pedi o colete para ela... Meu


irmão acabou recebendo uma confissão, e me contou sobre o que

poderia ser a verdade. — Seu olhar então parou no meu.

— Não precisa se explicar, mesmo que já soubesse de

cada detalhe. — Dei de ombros. — É o melhor nisso, em


descobrir sobre as pessoas. — Engoli em seco. — É o que você

é, para o mundo — continuei, e respirei fundo, tornando minhas

palavras palpáveis. — Mas para nós, para Matê, que quer te


contar sobre a idade verdadeira dela, significa muito mais.

— Não precisa se explicar, realmente.

— Lembra-se de como prometemos, na sala de música,

que seríamos apenas nós?

— Claro que sim — falou, a intensidade em cada palavra.

— Mas não quero que se machuque para me contar algo.


— Seria bom ter alguém para quem contar. — Fui sincera.

— Ter alguém que eu possa confiar isso, sem... sem ser julgada.

— Eu nunca vou julgar você, Sara.

— Eu sei... — respirei fundo. — E por isso vim até aqui.

— O que precisa de mim?

Eu sabia, em sua pergunta, que ele faria qualquer coisa


que eu precisasse. Porém, como eu poderia explicar, que na

realidade, eu apenas precisava dele? Não conseguia de fato,

ainda colocar em voz alta, toda a dor que o passado me trouxe,


mas eu confiava nele. A ponto de que, eu sabia que podíamos

deixar para depois, e aquilo não mudaria nada entre nós.

Absolutamente nada.

— No momento, pode me ajudar a mudar de quarto?

Vi-o arregalar os olhos, e de repente sua boca se abriu.

Antes que eu pudesse explicar ou previsse seu próximo passo, eu

o vi se levantar, de repente se enrolar em alguns fios no chão e


cair para trás.

— Chae, meu Deus!

Gritei assustada, e ele apenas se deitou e tampou o rosto

com um braço, como se escondendo da vergonha. Eu ri baixinho,


da cena à minha frente, e acreditava que ele escutou, ao tirar o

braço dos olhos, apenas para me olhar.

— Gosto de você sorrindo — falou, e eu apenas consegui

permanecer com o sorriso. Enquanto sem sequer pensar, estendi-


lhe minha mão, para ajudá-lo a se levantar no meio da bagunça

que criei.

Ele me olhou primeiro e eu assenti, só então aceitou


apertar minha mão com a sua. E o calor dele, era tão bom, não

me assustava, e eu poderia ficar assim, apenas com uma das

mãos dele na minha, por horas a fio.

— Eu acho que entendi errado — comentou, soltando o ar


com força, e largando levemente minha mão. — Vai se mudar de

quarto?

— Sim, para o quase na frente do seu — expliquei, e vi-o


assentir, como se tudo fizesse sentido. — Pensou que eu estaria

me mudando para o seu quarto? — indaguei, como se pudesse

supor aquilo, e notei, pela primeira vez, a forma como ele levou as

mãos até a nuca e baixou o olhar, claramente envergonhado.

— Eu acho que não tenho qualquer piadinha que possa

remediar a vergonha que acabei de passar — admitiu, só então


me encarando. — Mas foi bom, porque eu pude ver o seu sorriso

novamente.

— Eu não costumava sorrir antes... Estou feliz que tenho

motivos agora, além de Matê, para que eles sejam sinceros —

assumi, e seu olhar se perdeu no meu.

Naquele instante, eu sabia, que se eu fosse apenas uma

garota normal em uma novela, como uma comédia romântica, eu

daria passos para perto dele, e ele me beijaria. Por alguns

segundos, eu só queria poder ser aquela protagonista. Dar os


passos que faltavam, para que nós dois demonstrássemos,

daquela forma, como nos sentíamos.

Contudo, eu não o era.

E eu sabia o quanto meu caminho era longo, até o


conseguir. Contudo, eu estava feliz por estar ali, apenas olhando

para ele e esperando que me seguisse até o meu mais novo

quarto e me visse começar a deixar os meus medos e demônios


para trás.

— Sarita...

Parei ao som da sua voz, assim que abri a porta do quarto.


Eu tinha me colocado em seu quarto, com apenas ele lá!

Eu estava pulando por dentro, tamanho o meu orgulho por aquilo.

— Sei que não é algo que eu devo sentir, mas... — sorriu

abertamente, de uma forma que me tocou intensamente. Mais do


que qualquer toque talvez o fizesse. — Estou feliz, de verdade por

te ver apenas sendo você.

— Eu também, Chae. — Sorri novamente, sem medo de


que ele visse aquele lado meu, o qual eu apenas deixava sair. —

Eu também, ursinho.

Vi sua feição mudar, enquanto eu saía rapidamente do

quarto e finalmente o deixava saber que eu sabia sobre o seu


apelido. Esperei-o no corredor, e ele saiu com um sorriso

envergonhado, mas totalmente orgulhoso. E eu gostaria de

colocá-lo em um retrato, para me lembrar de como era a


sensação.

A de confiar em alguém, e se sentir tão leve, a ponto de

que poderíamos sorrir um para o outro por horas, e tudo faria

sentido.

A sensação de ter o seu primeiro amor à sua frente, e

mesmo que não fosse para sempre qualquer momento juntos,


parecia a própria eternidade que valia a pena ser vivida.
Capítulo 26

“Eu preciso de você como o ar que eu respiro

Ninguém mais é capaz de te amar tanto assim”[34]

CHAE

— Então eu a ajudei a trocar os lençóis, pelos de cor

favorita dela, que é roxo — expliquei, enquanto Hinata me


encarava pela chamada de vídeo. — Por que estou falando disso,

mesmo?

— Perguntei como Sara está e você está me contando em

como está apaixonado por ela.

— Hina...
— Sim?

— E se eu estiver? — perguntei, como se finalmente,

podendo aceitar aquela palavra. — É possível se apaixonar

assim?

— Do jeito certo? — Olhou-me profundamente. — O que te


preocupa realmente, Oppa?

— E se eu foder com tudo? — Neguei com a cabeça. — E


se ela não sentir o mesmo? Sabemos que é um casamento por

contrato, e um trabalho... Não teve um dia sequer aqui, que

apenas me senti em uma missão. Nem um dia, Hina.

— Você é dela, desde o momento em que a viu — falou, e

parecia saber mais do que qualquer pessoa sobre. — Sabe


quantas vezes eu te vi, encarando a foto dela no computador?

Sem sequer perceber que eu estava chegando, por que estava

focado demais em admirá-la?

Perdi a fala diante da sua revelação.

— Era apenas um trabalho, descobrir quem era a mulher


que estaria com o chefe do Cartel, e desde que a foto chegou,

não é como se eu me interessasse pela beleza dela, é como se...

Tivesse algo nela, que eu não pudesse fugir.


— E por que está fugindo, irmão?

— Porque eu nunca procurei o amor, Hina. — Soltei o ar

com força, largando a foto que estava ao meu lado, impressa, e


colocando-a novamente na gaveta.

— Nunca procurou ser um Kang, e é um. — Foi como levar

um verdadeiro soco na cara. — Olha, o amor pode ser

assustador, ainda mais, quando a gente pensa que o faz sozinho,


quando se é rejeitado... Mas o amor que é seu, ele será seu,

Oppa. Não tem como estar caindo sozinho.

— Por isso nunca desistiu de Jeon hyung?

— Por isso que eu desisti de nós, na verdade. — Deu de

ombros. — Porque eu sabia que ele sentia o mesmo, e estava


fugindo do que não tinha escapatória. Mas sempre tem. Pode ser

um recomeço, pode ser um fim. — Olhei-a como se procurando

alguma luz. — No fundo, você sabe o que fazer.

— Eu não sei nem o que comi ontem — admiti, e ela riu de

lado. — Estou apenas parado aqui, tentando descobrir para onde

correr, sem fazer com que Sara corra de mim.

— Apenas continue sendo você, para que a pressa?


— Eu solto sem querer, Hina. — Fui honesto. — E se

escapar um “eu te amo” no meio de uma conversa?

— Começa a falar em coreano, para que ela não entenda

— debochou, e eu passei as mãos pelo rosto, perplexo. — Eu


pensei que nada desmontasse Chae Kang, mas uma latina,

conseguiu te nocautear, antes mesmo de conhecê-la.

— Ela vai me achar maluco, quando souber... E se ela


descobrir que eu tenho essa foto?

— Você diz a verdade. — Parecia tão simples, com Hinata


me falando assim. — A verdade sempre é o melhor caminho,

sabemos disso.

— Vou fingir que entendi o que tenho que fazer.

— Eu vou comer alguma coisa, já que depois que descobri


que estou grávida, só consigo pensar nisso.

— E dormir — falei, lembrando-me do que Jeon hyung me


contou por mensagem.

Ela revirou os olhos, e eu sorri.

— Obrigado por me ouvir, Hina.

— Vou cobrar hora extra, já que sou caçula e deveria estar


recebendo conselhos. — Provocou e eu sabia que aquele era o
seu jeito, de sempre saber como tornar tudo mais leve. Ela

tornava para mim. — Até mais, Oppa.

— Até mais, meio metro.

Desfiz a chamada, e então saí do quarto. Caminhei pela


casa, era possível ouvir a televisão na sala de estar e fui até ela.

Encontrei Matê ali, assistindo a um filme, porém, mais


concentrada em tirar os esmaltes, do que de fato no que passava.

— Quer fazer as unhas, Oppa?

Sua pergunta me pegou de surpresa, quando me sentei na

poltrona que estava de seu lado esquerdo.

— Mamá está no banho e eu tirando as minhas unhas, que

já enjoei... — explicou, e eu só conseguia me lembrar de como ela


estava animada, quando me contou que na verdade, tinha seis
anos. A inocência de uma garotinha, que mesmo que entendesse

muito do que passou, com toda certeza, Sara sempre deixou que
o muito apenas fosse a ponta do iceberg. — Quer que eu faça as

suas?

— Da mão? — indaguei, sentando-se no tapete à sua


frente, a uma certa distância.
— Aqui. — Colocou um enorme travesseiro diante dela,
para que eu colocasse as minhas mãos, e o fiz. — Suas unhas
são fortes... — recebi como um elogio. — Pode ser colorida?

— Colorida e com glitter? — Um sorriso enorme surgiu em


seu rosto e eu soube que faria de tudo para que ele aparecesse

sempre. — Por que não faz a sua unha favorita nas minhas? —
sugeri. — Eu nunca as pintei antes, não sei o que escolher.

Seus olhos se arregalaram, e ela pareceu ainda mais

animada.

— Mamá disse que qualquer pessoa com unha, pode pintá-

la — falou, e eu assenti. — Até mesmo um mafioso?

— Por que um mafioso tem que andar com as unhas sem

cor? — rebati, sorrindo para ela. — E concordo com sua mãe, se


tem unhas, por que não?

— Então vamos fazer uma arco-íris.

Ela pegou o carrinho de esmaltes, que agora já estava

praticamente completo, e não duvidaria se aparecesse com mais


um por ali. Sua maleta com todos os apetrechos de que precisava
e eu apenas fiquei ali, com as mãos estendidas para ela.
— Vou colocar as músicas de mamá, enquanto pinto suas
unhas — falei para ela, que mexeu no controle da televisão, e
então ouvi uma música começar. — Posso começar? —

perguntou, suas pequenas mãos pairando sobre as minhas.

— Quando quiser, cariño.

Ela então começou a passar algo em minhas mãos, e eu

apenas a deixei fazer todo seu processo. Ela cantava junto com a
música, e depois de talvez meia hora ali sentados, eu já estava

quase cantando também.

— Mas o que...

Levantei o olhar e encontrei Sara em um vestido amarelo


bem claro, e pantufas nos pés. Os cabelos molhados de pós-

banho, com uma toalha em mãos, e apertando as pontas.

— Estou fazendo as unhas do Oppa — Matê falou,


concentrada em passar a cor azul na unha do meu dedo médio.

— Vou ter que fazer a sua mais tarde, mamá.

— Certo....

Sara apenas me encarou, como se completamente


surpresa. Ela deu a volta, e se sentou na poltrona em que antes

eu estava.
— Isso é até relaxante — admiti, olhando-a de relance. —

Vou recomendar para os meus irmãos.

— Nunca pensei que veria um mafioso com unhas

coloridas — ela falou, completamente honesta.

— Por isso que a gente tem o mafioso mais legal do mundo


todinho aqui — Matê falou, e suas palavras aqueceram meu

coração.

E eu tenho a melhor família por contrato que alguém

poderia sonhar – era o que queria dizer. Porém, contive-me, e


apenas troquei um breve olhar com Sara, que nos encarava

encantada.

Senti-me, naquele instante, preso à conversa, que sem

querer, acabei ouvindo delas, quando estava prestes a bater na


porta do quarto de Matê, dias atrás.

— Ele parece como um pai, mamá. — A voz de Matê saiu

um pouco tremida. — Sei que não deveria pensar assim, mas ele
parece.

Apenas me mantive parado no lugar, sem querer atrapalhá-

las, e tentando dar passos atrás para que não soubessem que eu
ouvi. E evitando ouvir ainda mais, de algo que era apenas delas.
Contudo, aquela confissão de Matê, girava em torno de minha

mente desde quando a escutei.

Olhando-a ali, animada, agora passando a cor verde na

unha do meu dedinho, eu só queria dizer a ela, que eu também


me sentia daquela forma. Eu me sentia como o pai dela. Que eu

não me lembrava de um momento antes de ela ser uma das

partes mais importantes da minha vida. E que meu coração se


quebrou, por não poder abrir a porta naquela noite, e afirmar para

ela, que sim, eu era o pai dela.

Porém, me doía saber que eu era apenas algo


momentâneo na vida da garotinha, que eu enxergava como minha

filha. Eu poderia ser mais?


Capítulo 27

“Você me abraça, congelo

Você me pede um beijo

E eu fico sem respirar”[35]

CHAE

— Já não está sobrando muito — falei para Matê, que


caminhava ao meu lado pelo centro da cidade. — Eu sempre vou

lá e confiro, por você. Mas mesmo que estejam conservando

aquilo, uma hora, vai ficar impossível de permanecer pendurado.

— Fez isso por semanas. — Matê deu de ombros. — O

pessoal daqui é bom em manter os mortos em seu lugar. — Ela


tinha seu picolé na boca, e falava como se fosse uma adulta.
— Eu sempre me assusto em como fala tão facilmente

sobre isso — admiti, parando com ela, na mesinha à frente da


sorveteria, e ela se sentou em uma das cadeiras.

— Duvido que não tenha sido uma criança como eu, que
sabia mais do que as outras por conta da criação? — Parecia me

investigar, e eu sorri de lado.

— Quando for mais velha, quem sabe, eu te conto. —

Pisquei um olho, e ela bufou baixinho, mas não insistiu. — Está


animada para começar a escola?

— Jae sempre diz o quanto é legal, já Saron me disse que


fica pior com o tempo. — Eu sorri, porque era a cara de Saron

falar daquela maneira, e ela era uma adolescente. Quer parte pior

do ensino do que essa época? — Por que eles não podem morar

perto da gente?

Pisquei algumas vezes, atordoado com sua pergunta.

— Bom, Saron e ele moram no Brasil, não é muito longe,

se contarmos com o jatinho da família.

— A gente tem um jatinho? — indagou, o picolé quase

caindo de suas mãos.


Ajudei-a a não derrubá-lo, e ali estava a inocência de uma
criança, que eu ficava feliz, quando ela apenas voltava a ser uma.

— É uma Kang — falei, e encarei a pulseira em seu braço.


— Uma Kang-Hernández.

— O senhor também tem o nosso sobrenome? — agora foi

a minha vez de quase derrubar o picolé.

— Bom, eu gostaria — falei, sabendo que nos papéis que

assinamos, não havia de fato uma mudança de sobrenomes,

fossem adições ou não, do meu lado. — O que você acha?

— Que combinaria, Oppa.

Sorri para ela, e me levantei para jogar fora os papéis sujos

sobre a mesa, da bagunça que eu e ela fizemos. Assim que o

estava descartando , senti a presença de alguém ao meu lado, e

levantei o olhar, para encontrar Alberto ali.

Ele era fiel ao Cartel.

Era um dos únicos no Conselho, que pareciam saber o que

fazia ali. Contudo, eu via a forma como ele claramente gostaria de

estar no meu lugar. E eu sabia, pelo que pesquisei, que ele se

ofereceu para ser o marido de Sara. Algo dentro de mim, também


gritava, que ele ainda teria o meu soco na sua cara. E não

demoraria muito.

— Algum problema, Alberto?

— Só estava passando, e reparei em algo... — então senti


uma mãozinha segurando a minha e Matê estava ao meu lado,
com um olhar nada amigável. — Como vai, pequena?

— Matê. — Ela corrigiu, e eu segurei uma risada. — Vou


bem, e o senhor?

— Bem também. — Vi o olhar dele parar na minha mão


dada com Matê, e o claro desgosto em sua face.

— Algum problema, Alberto?

— Um chefe com unhas coloridas?

Sua pergunta me fez olhá-lo ainda mais impaciente. O que


ele realmente estava buscando ali? Porém, a forma como

zombou, e eu notei o olhar de Matê se tornar triste, me fez


apenas agir.

Eu era um Kang.

E eu me sentia como o pai dela.

Ele não iria, de forma alguma, deixá-la triste, por algo que
ele fazia, como se tentando acertar meu ego. Mal sabendo ele,
que meu ego nunca seria tocado por aquilo. Nada que ele

dissesse, na realidade, me faria menos arrogante.

— Feche os olhos, cariño.

Matê o fez, sem perguntar absolutamente nada, e afastei


minha mão da dela. Enquanto um sorriso felino aparecia em meu

rosto, e no segundo seguinte, se abria uma mina de sangue no


rosto do homem à minha frente. Não podia fingir que estava triste
por finalmente aquele soco ter acontecido. Porém, ele deveria me

agradecer por não fazer pior.

— Que eu saiba, eu tenho unhas, Alberto. — Ele tentava

tocar o nariz, que estava claramente deslocado, e sangrava. —


Qualquer pessoa com unhas, pode pintá-las.

As pessoas ao redor, encararam a cena e eu via o olhar de


aprovação em cada uma delas, mesmo que não o buscasse. Eu

apenas o tinha feito por Matê, e claro, porque Alberto merecia


aquilo há muito tempo.

— Tem sorte de eu não ter te apagado — falei, e então fiz


um sinal positivo para as pessoas da sorveteria, que pareciam

esperar que eu autorizasse para ajudá-lo. — Pegue minha mão


de novo, cariño.
Dei minha mão para Matê, que ainda mantinha os olhos
fechados e ela apertou. Assim que estávamos longe o suficiente,
disse para que abrisse os olhos, e elas fez.

— Socou o cara dele, Oppa?

— Como sabe? — indaguei e ela riu de lado. — Não devia

ficar feliz com violência.

— Ele é um chato. — Vi-a revirar os olhos. — Um dia disse

que seria meu novo papai, e eu quis socar a cara dele.

A minha vontade agora, era de voltar e o apagar de fato.

Sem chance de alguém conseguir reanimá-lo a tempo. Filho da...

— O que vocês aprontaram na sorveteria?

A pergunta veio de nossas costas, e só então me lembrei

de que Sara nos encontraria lá, após uma conversa que teria com
Ramon. Coloquei um sorriso inocente no rosto, e notei de relance,

que Matê tinha o mesmo no seu.

— Em minha defesa, ele zombou das minhas unhas —

falei, e Sara nos encarou incrédula.

— Mamá, Alberto é um chato.

— Não é por isso que vamos bater nas pessoas — ela


argumentou, parando à frente de Sara. — Chae?
— Eu estou me segurando para socar a cara dele há
tempos — confessei, e queria poder falar abertamente sobre a
forma como Matê ficou abalada pelo que ele disse. — E não

estou arrependido.

— Às vezes, eu acho que moro com duas crianças —

falou, soltando o ar com força.

— Criança não me ofende, mamá.

— Não é para te ofender, cariño. — Olhou-me, e eu

arregalei os olhos. — É para você, Chae.

— Matê não viu se essa for a preocupação. — Tentei

explicar. — E ele...

— Fiquei triste que ele falou das unhas do Chae Oppa. —

Matê cruzou os braços, saindo em minha defesa. — Elas estão

bonitas, por que ele tinha que falar com descaso?

O semblante de Sara então mudou, e eu assenti levemente

para ela, confirmando o que tinha acontecido, e era o meu real

motivo.

— Ok, só dessa vez. — Vi-a soltar o com força. — Tente


não socar a cara de ninguém do Conselho da próxima, ok?
— Sim, senhora Kang-Hernández — respondi, e Matê deu

uma risadinha, repetindo a minha fala.

— Estão bem engraçadinhos hoje, não?

— Eu sou, todo dia. — Pisquei um olho em sua direção, e

ela revirou os seus. — Por que não vamos ver a escola de Matê,
então? Já que era nosso plano inicial?

Vi-a negar com a cabeça e parecer incrédula com tudo que

aconteceu, mas cedeu, e começou a andar à nossa frente.

— Acho que a mamá tá brava — Matê falou, e me encarou.


— Vamos ter que comprar a pizza favorita dela, Oppa.

— E talvez, aquele refrigerante estranho que ela tanto

gosta?

Matê então me deu um aperto de mão, como se


combinado, enquanto Sara chamava o seu nome e ela correu até

a mãe. Eu fiquei para trás, apenas as olhando caminhar, com a

sensação de que eu poderia viver dias como aqueles, pelo resto


da minha vida.
Capítulo 28

“E assim completamente assim como eu sou

Assim para sua mente, assim igual minha voz

Assim completamente, assim eu me entrego, eu

Assim sem precedentes, assim por você, meu amor

Assim completamente” [36]

SARA

— O que você estudou? — a pergunta saiu do nada, ou


deve ter parecido assim. A realidade era que tinha muitos dias em

que eu ficava treinando para fazê-la.

— Engenharia de software — Chae respondeu


despreocupado, olhando a lasanha no forno. — Eu não sei por
que ainda tento as receitas que Yumi Noona me ensinou do

Brasil.

— A lasanha estava ótima no último domingo — falei,

sentando-me na banqueta à frente do balcão que nos separava.

— Mas mudando da lasanha que ainda não está boa, para


os estudos... Estava pensando em voltar a estudar? — indagou,

jogando um pano de prato no ombro, e eu fiquei alguns segundos

apenas admirando a forma como ele era bonito, de uma forma


completamente natural para mim.

A maneira como as camisetas que ele usava demarcavam


perfeitamente cada músculo por debaixo delas, e era possível ver

cada um deles sendo flexionados, em qualquer movimento que

ele fazia.

— Eu sei que sou bonito, mas ser admirado por você, é

algo que vai fazer meu ego se tornar estratosférico — falou, e só

então notei que estava parado diante de mim, do outro lado do

balcão. Engoli em seco a baba que estava prestes a escorrer.

— Achei que seu ego já fosse estratosférico — rebati, e ele

riu de lado.
— Quando se trata de ser visto assim por você, tudo vai
para outro patamar. — Piscou um olho. — Mas sem querer falar

do meu corpo bonito, por que não me conta o porquê da pergunta

sobre estudos?

Assenti, como se finalmente voltando à realidade.

— Matê vai começar a ir à escola, claro, com segurança —

assentiu, e me lembrei da história que me contou, sobre Serena,


uma antiga conhecida brasileira que lhe tinha uma dívida e que

nos protegeu desde o momento em que ele apareceu por ali, e

agora, ele contratou-a para proteger exclusivamente a Matê. — E

claro, o Cartel tem muito o que fazer, vamos viajar, tem as

reuniões infinitas, mas tem dias que eu apenas fico me

perguntando, se eu posso fazer mais.

— É claro que você pode — ele falou, como se fosse

simples assim.

— Eu tenho vinte e dois anos, Chae — disse, como se

fosse óbvio e indiquei-me com o dedo. — Voltar a estudar agora

parece tão fora de tempo.

— Eu tenho trinta, e só terminei a faculdade há o quê? Dois

anos? — Deu de ombros. — Não tem como se comparar com


uma pessoa que leva uma vida comum, porque nunca vivemos

uma.

— É que... — soltei o ar com força. — Eu queria tanto

aprender mais, sabe? Aprender coreano, música, me formar de


fato na escola, ter uma faculdade... — notei seu olhar se tornando

mais carinhoso. — Parece tanta coisa, que não sei se dou conta.

— Fico feliz por coreano estar na sua lista. — Piscou um


olho. — Mas não precisa dar conta de tudo, ninguém dá. —

Aquiesceu. — Pode só começar, e aos poucos, ir agregando


mais. Pode se programar, para estudar fora daqui, em algum

momento. O Cartel precisa de nós, nesse um ano, mas após


termos melhorado o que precisa, se torna mais flexível.

— O que quer dizer?

— Bom, como nos Kang. — Olhei-o curiosa. — Vincenzo

hyung não passa todos os dias sendo o chefe da família, ele tem
seus momentos de apenas respirar um pouco fora dessa
responsabilidade. E mais do que ninguém, você merece isso. E

eu posso cuidar das coisas, se escolher estudar fora. Não será


problema nenhum.

— Mas depois de um ano, nós...


— Vamos renovar os votos? — perguntou, olhando-me

profundamente, como se brincando, mas eu sentia a vontade de


gritar: sim, nós vamos. — Mas falando sério, é bom que foque em

aprender, Sarita.

— Agora que parei para pensar que temos oito anos de

diferença — falei, e engoli em seco. — Parece uma grande


diferença.

E então vi o seu olhar se tornar mais calmo, como se nós

dois estivéssemos fugindo para algo seguro, sem falar


diretamente de como nos sentíamos. Não agora. Não ainda.

— Eu não me sinto muito mais velho que você — admitiu.


— Talvez mais experiente, pelos lugares que tive que visitar pelo

trabalho, pelas coisas que já fiz... — deu de ombros. — Mas não


há muita diferença, se não pensarmos culturalmente.

— Acha que alguém da sua família, vai fazer como a


gente? — indaguei curiosa, e vi-o confuso. — Se casar por

contrato?

— Vincenzo — respondeu, como se puxando algo na

memória. — Tem alguma coisa no Brasil, que ele ainda vai ter dor
de cabeça.
— Está dizendo que tem dor de cabeça no nosso
casamento por contrato? — perguntei perplexa, e ele deu uma
risadinha.

— Eu tenho mais dores aqui. — Então ele levou a própria


mão até o peito, sobre o lado esquerdo, e eu fiquei estática.

Fiquei estática, pensando em como uma simples conversa


nossa, de repente, se tornava algo tão profundo, que estávamos
prestes a deixar sentimentos serem expostos. E era como se eu

soubesse, que a qualquer momento, eu estaria derramando o


meu para ele.

Abri a boca para dizer algo, mas senti o cheiro forte da


lasanha, ao mesmo tempo que de algo queimado.

Apenas ouvi Chae xingar, e sabia que era um palavrão,


porque ao menos aquilo, eu já tinha aprendido um pouco em

coreano. Ele abriu o forno, uma fumaça subiu e torci para que não
tivéssemos perdido o nosso jantar. Rapidamente, eu corri para

abrir as janelas que estavam fechadas pelas salas, e voltei


segundos depois vendo-o, já com a lasanha sobre o balcão, e não
parecendo nada queimada.
— Escorreu queijo — explicou, fazendo uma careta. — Aí
caiu para fora e eu achei que tínhamos ficado sem jantar.

— Esse é o tipo de dor de cabeça que um mafioso e chefe


de Cartel deveria ter, em um casamento por contrato? —
Provoquei-o, e vi que ele deu uma risadinha, e negou com a

cabeça.

— Com certeza não. — Olhou-me profundamente, sua


feição mudando. — Mas eu gosto de cada dor de cabeça que

possa me causar.

E ali estava ele, me deixando completamente sem


palavras. Nunca pensei que a intimidade com alguém, poderia vir

de uma forma tão natural e certeira. Contudo, ele me provava o

contrário. Chae Kang tinha me provado o quanto eu havia apenas

conhecido o lado ruim em um relacionamento. Na realidade, o


que era um relacionamento,

O que era querer estar em um, e não ver qualquer fim para

ele. De forma alguma.

Ele estava cantarolando na cozinha, enquanto cortava a


lasanha, e eu me vi sorrindo da cena. Poderia apenas viver para

vê-lo ali, daquela forma, e eu estaria feliz. Porque mesmo que eu


estivesse lutando há anos, para continuar sobrevivendo, eu soube

que não apenas Matê conseguiu me trazer de volta à vida quando


nasceu. Mas também, Chae o fez.

E eu gostaria, de alguma maneira, poder proporcionar-lhe o

mesmo.
Capítulo 29

“Como eu poderia esquecer

Se mexeu muito comigo?

Como eu poderia não sentir falta

Se não paro de sonhar com isso?”[37]

CHAE

— O que temos essa semana? — perguntei, parando ao


lado de Sara, que estava sentada na ponta da mesa, com todo o

conselho reunido. Alberto com um curativo no rosto e eu sorria

ligeiramente para ele.

— Ouvi dizer que a cidade vizinha está voltando a receber

turistas? — Sara indagou, e então foi o momento de todos da


mesa desandarem a falar sobre aquilo. Eu acompanhava cada

detalhe, descobrindo o que podia antes de estarmos em alguma


reunião como aquela.

Indo até as cidades com Sara, mesmo que disfarçados,


observando e assim acompanhando o dia a dia das pessoas por

ali. Vendo se não existia nada que o Cartel pudesse fazer, para

evitar que inocentes sofressem. Era o papel que os Kang tinham,


e era o que eu trazia para os Hernández, sabendo que suas

tradições eram muito parecidas com as nossas.

Meu ponto tocou, quando eles estavam comentando sobre

as escolas, e a forma como estavam sendo sucateadas por


alguns grupos que eram contra o Cartel. Porém, a porta da frente

da igreja foi aberta, e vi Serena bem ali, o que me deixou confuso.

Sara se levantou no mesmo instante, e eu já estava

praticamente a passos largos, e logo à frente de Serena.

— Não é sobre Matê — ela falou e então soltei o ar que

mal sabia que segurava. — É sobre o irmão da senhora


Hernández.

— Quem é essa? Como ousa...


Vi Sara levantar uma das mãos e calar todas as perguntas
dos homens sentados ali.

— O que houve?

— Encontrei o corpo de Roberto, já sem vida, próximo ao

que restou de Ottis — falou e logo notei o choque em Sara. —

Tem uma costura em linha vermelha, na boca, Kang.

Aquela informação me fez atender o ponto de imediato.

— Avise os Hansen, hyung — falei, sabendo que era Kalel

do outro lado, pela quantidade de bipes que fazia, quando me

chamava.

Um bipe: Vincenzo.

Dois bipes: Dove:

Três bipes: Jeon.

Quatro bipes: Kalel.

Quatro bipes e meio: Hari.

Seis bipes: Hinata

Era em ordem, de nossas idades, como era feito no

passado e como acabei programando para a atual geração dos


Kang. O meu bipe era de cinco, e então, eu me vi paralisado no

meio da igreja, enquanto esperava alguma resposta de Kalel.


— O que houve?

— É algo que apenas os Hansen poderão resolver, o velho

inimigo deles — falei, e sabia que ele tinha entendido. — Avise a

eles para virem para o México o mais rápido possível.

— Alguém pode me explicar?

Virei-me para Sara, e para os homens já em pé ao lado da


mesa, e suspirei fundo.

— Os Hansen são uma das máfias mais antigas, sendo


uma das únicas que mantém a organização apenas pelo sangue,
diferente dos Kang — eles assentiram para o que já sabiam. —

Há um velho inimigo, que deixa costuras vermelhas e que eles


sabem que foi uma organização criada dentro da própria família,

para não deixar que o poder passasse à frente por gerações, mas
nunca conseguiram pegá-los. Os pais dos atuais Hansen

morreram na mão dessa organização. Ou seja, morreram na mão


da própria família, só que os filhos deles, não têm ideia de quem
foi. — Notei os olhares surpresos. — Todos que chegam perto

demais, acabam por terem a marca dessa organização, em


alguma parte do corpo.
— Ottis tinha uma costura vermelha, em um machucado

antigo antes de ser julgado pelo nosso povo — afirmei, para o que
Ramon complementava. — Roberto chegou perto de algum deles,

então?

— Ele descobriu algo, e agora... — dei de ombros. — O

problema maior é que eles vão e vêm, sem sabermos quem pode
ter sido, mas... Aconteceu no nosso território, então, os Hansen

terão que vir até aqui.

— Posso vê-lo? — Sara perguntou de repente, como se


fosse para si mesma.

Vi-a caminhar para fora da igreja, passando com cuidado


ao lado de Serena. Segui-a pelo caminho, e dei um sinal com a

cabeça para Serena.

— Não saia de perto de Matê — falei, e ela concordou. —

Qualquer coisa, me ligue, ou a leve para casa de imediato —


Serena assentiu, e eu a vi pegando sua moto e saindo

rapidamente dali.

Eu corri até onde Sara já estava, e era clara a sua ânsia.

Talvez, para saber que parte do seu passado, finalmente, estava


morto. Um alívio que só a morte pode trazer.
SARA

Parei à frente do corpo.

Roberto agora era apenas um corpo.

Notei a boca costurada de vermelho, mas não foi o que me


chamou atenção. Eu via as marcas em seu corpo, e como ele foi
pendurado ali.

— O costuraram depois de morto — falei, indicando a

nuca, onde estava a tatuagem que ele tomou a frente de fazer,


mesmo que não fosse um Hernandez, e raspada. — Quando
alguém do Cartel mata, eles arrancam a tatuagem — expliquei.

— Bom, sendo ele morto por alguém do Cartel, Roberto


estava ligado aos inimigos do Hansen — Chae falou,
aproximando-se. — Está bem, Sarita?

O que eu podia responder?


Que estava aliviada? Que estava feliz por ver Roberto
morto?

— Eu não sei — admiti, negando com a cabeça. — Eu


esperei por tanto tempo, como seria saber que o pior de mim,
estava finalmente morto. — Então seu olhar parou nos restos de

Ottis, que quase não existiam mais. — E agora, eles estão aqui e
não podem mais me assombrar no presente. Mesmo que ainda
me assombrem no passado.

— Não se culpe por estar aliviada ou feliz por isso — falou,

e suspirei fundo.

— O pior é que sequer me culpo, eu... eu só estou aqui

para ter certeza de que...

— Mesmo assim, os mortos estão mais perto do inferno do

que uma segunda chance? — indagou, deixando-me surpresa. —


Matê me disse isso, quando a conheci, bem aqui, enquanto eu

encarava Ottis. E ela me contou, que você falou que não é bom

encarar os mortos.

— Alguns, muitas vezes, o melhor é checar. — Soltei o ar


com força. — Como ela teve coragem de fazer, como você faz por

ela agora... — passei as mãos por meus cabelos. — Eu espero


que o caminho para o inferno seja tão ruim quanto o próprio, para

Roberto.

— Eu acredito mais na justiça mortal, e pela forma como

está machucado, ele sofreu — Chae interveio, e me virei para

encará-lo. — Vamos descobrir quem exatamente fez isso, e se


tem alguma ligação para nos preocupar, além de fazer o mesmo

com os Hansen.

— Acha que estamos com problemas sérios? — indaguei,

pensando que quando finalmente as coisas pareciam começar a


se encaminhar, algo surgia.

— Acho que não — falou, e via como era honesto em seu

olhar. — Mas não custa nada checarmos.

— Obrigada, Chae.

Ele negou com a cabeça.

— Esse é o meu trabalho, Sara — afirmou, e eu o encarei

com um sorriso se perdendo. — Não precisa me agradecer por


isso.

Ele então pareceu não entender o quanto aquilo me

afetava, e o vi apenas dando as costas para me esperar ali.


— Chae — chamei-o, e ele se virou, me encarando. —

Eu... — depois de bastante tempo, senti minha fala travar à frente

dele. — Eu sou um trabalho para você?

— Você nunca foi um trabalho para mim, Sara. — Ele


então veio para perto, mas ainda parando um pouco longe de

mim. — Seria mentira dizer que em algum momento, desde

quando te vi, te vi dessa forma.

— E como me vê, Chae? — indaguei, e segurei uma

respiração.

— Como a minha melhor amiga.

Um sorriso se formou no canto da sua boca, e eu senti tudo


dentro de mim se remexer. Eu sabia que ele tinha mais para falar,

apenas pela forma como me encarava, mas que guardaria. E

naquele instante, era o suficiente. Porque eu também via nele, o


melhor amigo que eu nem sabia que precisava.

Chae Kang se tornou uma necessidade.


Capítulo 30

“O calor do meu corpo aumenta quase que sem controle

Só de te ver

Começa pelas minhas mãos e termina no meu coração

Quando sinto sua falta”[38]

CHAE

— Por que tem uma foto minha na sua gaveta?

Meu corpo tensionou, e o meu sorriso morreu. Sara estava

no meu quarto, novamente, como acontecia nos últimos dias. Ela


aparecia, para somente conversarmos, e acabava ficando às

vezes por horas. A princípio, ela apenas ficava em pé, parada


próxima à porta. Depois foi se aproximando da cama, e se

sentando na beira. E hoje, ela parecia desbravar ao redor.

— É de quando eu tinha dezoito, não é? — indagou, e

continuou: — Como conseguiu isso?

— Um espião da máfia veio e obteve essa informação para


os Kang — tentei explicar. — Não sabíamos quem seria a esposa

de Ottis, e não vínhamos para o casamento, então me pediram

para conseguir mais informações...

— Por que está com essa foto, agora?

— Você ia me achar maluco — falei, baixando a cabeça, e

me afastando com a cadeira para o lado, para poder encará-la em

seguida. — Eu sempre fiquei olhando a sua foto, como se


existisse algo que eu precisasse descobrir. Eu não sei como

começou isso, mas desde quando a vi nessa foto, eu não

consegui apenas esquecer o seu olhar.

— Isso é realmente algo não muito comum. — Pareceu

pensar sobre. — Eu pensei que diria que é porque veio para cá

por conta do trabalho, e precisava de uma foto para me

reconhecer.
— Poderia ter mentido, não é? — indaguei, mordendo os
lábios, e não conseguindo olhá-la. — Não sou muito bom

mentindo para quem eu me importo.

— Achou que eu teria medo ao saber que mantém essa

foto há anos?

Não consegui ainda encará-la.

— Chae. — O jeito que ele chamava meu nome, se tornava

impossível, que eu não a encarasse. — Por que eu teria medo de

você?

— Não sou um santo, nem uma boa pessoa, Sara —

admiti, o que ela já sabia. — Você e Matê tiram o melhor de mim,

mas não quer dizer que posso anular quem realmente sou. Sou
um Kang, sou de uma família que faz a justiça com as próprias

mãos.

— E eu sou a herdeira de um Cartel — falou, e então a vi

caminhar com a foto em mãos, parando ao lado da minha cama, e

se sentando. — Não sabe o quanto eu estava feliz, enquanto via

Ottis morrer, pouco a pouco, à minha frente. — Eu a vi encarar o

outro lado do quarto. — Mamá sempre disse que existia algo em

mim, que eu tinha que parar. O lado que buscava justiça. Mas por
que parar, se a falta dela, acabou destruindo quem eu era? —

Deu de ombros. — Não preciso de um santo, Chae. Apenas


preciso de você.

— Sara...

— É a verdade, você sabe. — Ela virou suas pernas,


ficando à minha frente, e colocando a foto sobre a cama. — Eu

tenho medo para caralho de estragar tudo, e de repente, acordar


de um sonho, e você não estar ali.

— Todos os dias que risco o calendário na cozinha, é um


dia a menos que eu não te terei por perto — confessei, e vi nela,

o que eu tanto encontrava em mim – o medo do fim. — Não sei o


que estamos fazendo, mas eu não quero acreditar que vai acabar.

— Então por que achou que eu teria medo por uma foto?

— Poderia me achar um maluco obcecado? — Deduzi o

óbvio. — Eu sempre espero o julgamento, antes de imaginar a


compreensão.

— Bom, eu não sou boa julgando. — Deu de ombros, e me

olhava profundamente. — Mas eu sei que se eu tivesse visto uma


foto sua antes, com toda certeza, a manteria para mim também.
— Está me dizendo que... — travei uma fala. — Que sente

o mesmo?

Ela assentiu, e me vi quase perdendo o fôlego.

— Eu achei que estava enlouquecendo, no começo —


assumiu, e notei que entrelaçava os próprios dedos. — Mas então

os dias foram passando, e a sensação de familiaridade, de


vontade, de saudade, não foram embora.

— Eu acho que não vão — falei, e seu olhar parou no meu.


— Eu não quero que vá.

— Vamos mesmo fazer isso? — indagou, um quase sorriso


no final da sua boca. — Vamos ser mais do que amigos?

— Dizem que o melhor amor é aquele que é seu melhor


amigo — falei, lembrando-me do que Hari me disse uma vez,
quando falava sobre Kalel e ela. — E eu acho que é a mais pura

verdade.

— Quer tentar ser mais que um amigo, Chae?

Ela então não só ofereceu seu dedo indicador, mas sim,


toda sua mão, em minha direção.

— Apenas nós, e um pequeno cariño? — respondi com


uma pergunta e ela me entregou um sorriso, que poderia iluminar
cada canto daquela casa, e até mesmo, de toda cidade.

Ela não tinha ideia do quanto eu amava vê-la sorrir.

Era aquilo. Eu amava.

— Apenas nós, e um pequeno cariño.

Levei minha mão à sua e apertei com cuidado, vendo sua


reação, notando que apenas encontrava segurança e felicidade,
em seu sorriso. Então ousei levar meus lábios até sua mão, e dei

um leve beijo no dorso. Notei a surpresa em seu olhar, e me


afastei com cuidado.

— Quer me ouvir tocar hoje? — perguntou de repente, e eu


notei a forma como passava a sua mão sobre a outra, na qual

depositei um beijo. Como se ela estivesse reconhecendo o lugar


que eu lhe toquei.

— Eu, na verdade, estava perto de implorar para que

tocasse. — Fui honesto. — Reuniões sem fim, viagens a cidades


vizinhas, papéis de chefes de Cartel... Eu só queria voltar para

casa e te ouvir cantando.

Ela então se levantou, dando um pulo para fora da cama, e

me endereçou sua mão, a qual eu aceitei. Saí do quarto com ela,


dessa forma, todo meu corpo parecia eletrizado e meu coração
prestes a sair pela boca. Era aquilo?

Nós tínhamos acabado de nos declarar um para o outro?

E dali a um ano, não precisaria ser o nosso fim?

Quando sua mão saiu da minha, foi para que ela se

sentasse à frente do piano, e eu me vi em pé, há menos de três

passos dela, como se estivéssemos, a cada segundo, dando um


passo a mais para perto do outro. E eu nunca amei tanto o fato de

estar perto de alguém, que eu poderia apenas respirar para estar

ali. Como se a razão para que eu respirasse, fosse para que


pudesse viver aquele momento.

— Essa se chama “Nosso amor” — falou e parou com os

dedos sobre as teclas. — Foi uma das primeiras que toquei,

depois de muito tempo, e não era pela letra. Hoje é por ela. —
Olhou-me profundamente. — Espero que goste... — soltou, e

então notei a forma como estava nervosa e levemente

preocupada. — Pode se sentar aqui?

Surpreendeu-me com aquela pergunta, indicando o


banquinho em que estava, e que ainda tinha um bom espaço.
— Tem certeza? — indaguei, enquanto ela me encarava.

— Não precisa apressar nada, Sara. — Fui sincero. — Por mim,


nós temos todo o tempo dessa vida e das demais que virão. —

Notei a forma como seus olhos retomaram o brilho que eu tanto

amava.

Era um fato.

Eu amava.

— Tenho certeza — respondeu, e bateu novamente no

banquinho.

Com todo cuidado, evitando tocá-la sem querer, eu me

coloquei ali. E antes que eu pudesse indagar se ela estava à

vontade ou não, ela começou a tocar. Fazendo-me perder

completamente o tempo, espaço e a noção de tudo ao meu redor.


E eu tive certeza de que realmente, respirei até ali, para aquele

momento.

SARA
Nunca pensei que uma música que eu tocava, porque

amava o som, poderia se tornar uma forma de colocar para fora

como me sentia. Eu não era tão boa com as palavras, mas tê-las
praticamente prontas, contando tudo o que se passava dentro de

mim, fez-me estar bem ali – tocando e cantando para o homem

pelo qual me apaixonei.

— “Tudo aconteceu de um jeito tão mágico

No nosso amor (nosso amor)

Nosso doce amor

É tão fácil que nada mais me surpreende

No nosso amor (no nosso amor)

Esse incrível amor

Foi tudo tipo um sonho

No nosso amor

Tudo só vai acontecendo


E é assim, é desse jeito

E não há nada o que fazer

E é assim, é desse jeito

É assim como funciona esse amor...”[39]

Olhei-o com todo meu carinho, sendo completamente


sincera em cada palavra, e vi-o absorvendo cada uma delas.

— “É tão simples que não sei como explicar

Nosso amor

Nosso doce amor

E não sei por quanto tempo o amor vai durar

Mas hoje

Não há nada melhor, uô

Foi tudo tipo um sonho

No nosso amor
Tudo só vai acontecendo

E é assim, é desse jeito

E não há nada o que fazer

E é assim, é desse jeito

É assim como funciona esse amor...”[40]

Parei, sem conseguir olhá-lo, sentindo sua proximidade ao

meu lado e sabendo que estava mais do que segura, uma certeza
que me assustava, mas que eu estava prestes a enfrentar.

Levantei meu olhar em direção ao seu, e o encontrei ali, tão perto,

que eu podia sentir sua respiração.

Eu só queria tomar aquela respiração como minha.

— É linda — falou, olhando-me tão profundamente que eu

sabia que era sobre mim. — Você é linda, Sara.

Senti então sua testa contra a minha, e fechei os olhos,


absorvendo aquela proximidade. Era tudo tão bom, que eu

apenas me vi querendo levar uma das mãos ao seu rosto, e saber

como seria, ter o meu primeiro beijo de verdade, por vontade, com

ele.
— Mamá!

Chae praticamente deu um pulo para trás, colocando-se de


pé, e agindo como se nada tivesse acontecido, e notei a confusão

em seu semblante.

— Eu fui até o seu quarto e não te achei — Matê falou e

veio com seu pijama de ursinho, que parecia seu favorito,


caminhando até nós. — Está sem sono também, Oppa?

Ele assentiu para ela, mas não pareceu conseguir dizer

nada.

— Eu só vou... — vi-o parecer perder suas palavras. — Eu


vou treinar um pouco.

— Na madrugada? — indaguei, levantando-me, e

preocupada que eu tivesse o assustado. — Está tudo bem?

— Está sim, eu só... — olhou de relance para mim. —

Preciso de um momento sozinho.

Concordei, e vi-o se dirigir para o jardim, enquanto Matê

bocejava já perto de mim.

— Você gosta do Chae, mamá?

A pergunta sonolenta que veio de Matê, me fazia lembrar

de que ela era uma observadora nata, e parecia sempre saber


mais do que realmente demonstrava. Poderia dizer que ela até
mesmo puxou aquilo de Chae, mesmo que eles não fossem

biologicamente pai e filha. Eram tão iguais naquele ponto, que

parecia realmente, que a vida os tinha feito se encontrarem.

— Gosto, cariño — assumi, e ela assentiu, como se não

precisasse de qualquer alarde. — E você? Por que estava indo

pro meu quarto?

— Fiquei com saudade. — Sorri, indo até ela, e a pegando

no colo, jogando-a para cima.

Qualquer dia daqueles, machucaria meus braços. Ela já

estava tão grande, e eu sempre me esquecia do fato. Vendo-a já


com seis anos, e lembrando-me de como foi, quando ela era

apenas um pedacinho de gente nos meus braços. Tão pequena e


vulnerável que eu soube que fazia o que fosse possível, e o

impossível, para que ela não sofresse nada do que eu tive que
enfrentar.

Até hoje, eu me sentia assim. E éramos, desde aquela


época, nós duas contra o mundo. Porém, eu sabia que tínhamos
mais uma pessoa ao nosso lado, e que mesmo que não

tivéssemos percebido de imediato, parecíamos ser três contra o


mundo, desde o momento em que ela encontrou com Chae Kang.
Capítulo 31

“Não sei como foi que você chegou a mim

O destino é assim

Não sei quanto, mas sempre te esperei

Tal e como sonhei

E jamais te deixarei partir

Para poder viver...”[41]

CHAE

Eu passava as mãos pelo pescoço, encarando aquele

lugar vazio por mais alguns minutos. A sensação que me atingia


era tão diferente de todas as que já experimentei e eu reprimia,
cada uma delas. Porque não queria que Sara, nem por um

segundo, imaginasse que eu a via apenas daquela forma.

Eu a via de todas as formas.

Eu a via como minha amiga.

Eu a via como uma confidente.

Eu a via como a minha única.

Eu a via como a minha outra parte, que eu sequer sabia

que poderia existir.

Algo que me completava, ao mesmo tempo que fazia


transbordar sentimentos que nunca pensei que me pertenceriam.

E talvez eu nunca merecesse, mas abarcavam tudo em mim.

Cada parte do meu ser, sabendo que apenas ela, conseguiu, de


uma maneira totalmente inesperada, encontrar tudo o que eu

nunca busquei.

Uma mistura de sentimentos, que não pareciam poder ser

nomeados, nem mereciam, por uma única palavra. Não era

apenas amor, mas era amor. Era tudo o que ela fazia se contorcer

e se acalmar dentro de mim. Suspirei fundo, e então, parei de

encarar as flores que agora tomavam conta do jardim, algo que


ela tornou como uma extensão sua.
E eu sentia um orgulho, que gritava no meu peito, ao vê-la
dando tantos passos. Passos que a faziam se conhecer, da

maneira que não deveria ter-lhe sido tomada. Porém, eu também

sabia, que os passos que ela dava, dali a algum tempo, seriam

para longe de mim. Como se eu pudesse contá-los, a cada dia

que passava, sabendo que ela e eu, não éramos para sempre.

E a certeza de que o sempre não existe, pela primeira vez,

se tornou assustadora. Porque ela não o era. Nós não seríamos.

Nós sequer existíamos, para podermos não ser algo.

Voltei para dentro da casa, que agora, eu via como um lar.

Um lar que eu não sabia que buscava, mas estava ali. Com

estrelas coloridas penduradas próximas ao sofá, e fotos de um

casamento que deveria apenas ser um contrato, mas que quando


eu parava, e olhava para nós três, em uma fotografia,

eternizados, apenas conseguia ser grato por poder guardar, de

alguma forma aquilo.

Talvez aquele fosse o nosso para sempre. Presos no

tempo, em uma fotografia.

Caminhei pelo corredor a passos curtos, pensando e

maldizendo meus pensamentos. Até que ouvi uma porta se abrir,

e o corpo de quem eu sabia identificar como se fosse a minha


respiração acertar o meu. Como naquela primeira vez que isso

aconteceu, eu a segurei pelo braço, para que não caísse.

Porém, ali, ela não travou. Ela apenas me deu um meio

sorriso, colocando-se de pé e não afastando meu toque.

— Como se fosse a primeira vez? — indagou, e ficou de


pé, colocando uma das mãos contra a minha, como se para sentir

mais da minha pele.

— Sara...

— Eu ainda tenho medo de muitas coisas na vida, Chae. —


A forma como meu nome saía da sua boca, me acertou por

inteiro. Porque ela poderia conseguir tudo de mim, apenas por me


chamar. Ela poderia me chamar, a qualquer momento, e tudo

pararia, apenas para eu poder ouvi-la. — Mas de você, eu não


tenho medo de ir contra esse sentimento.

— Sara...

— Eu posso? — perguntou, e eu não sabia o que


responder. Eu não sabia o que ela queria dizer, de repente, todo o

analista dentro de mim se desligou, perdido na forma como seus


olhos castanhos brilhavam encarando os meus.
Eu assenti, sem ter a mínima ideia no que concordava.

Porém, ela me tirava qualquer discernimento, e então me


surpreendendo, uma de suas mãos veio para o meu rosto, como

se testando-o, e eu segurei uma respiração. Soltei seu outro


braço, e ela trouxe a outra mão até minha bochecha esquerda, e

logo, ela me tinha, literalmente, em suas mãos.

— Nunca pensei que tocar alguém pudesse ser tão bom —

sua admissão quase me fez ficar de joelhos.

— Não posso, Sara — falei, então levando minhas mãos


até as suas, e indo contra tudo que gritava em meu interior.

Gritos de desespero, porque eu queria que ela apenas


permanecesse ali, sendo o toque eu necessitava. Sendo o que eu

nem sabia que precisava, mas era como a droga mais viciante
que existia. Sua presença. Seu toque. Seu olhar. Tudo que era
seu, e eu gostaria, de que de alguma forma, fosse meu,

Afastei suas mãos com cuidado do meu rosto e ela me

encarou, o brilho de seus olhos quase sumindo.

— Sei que somos um casamento por contrato, eu só... Só

achei que se sentisse como eu — admitiu, olhando-me


bravamente. — Eu realmente achei que pudesse te ler, Chae.
— Não é como se eu não sentisse... — fui honesto, ainda
segurando suas mãos com as minhas, adiando aquele momento
o máximo que podia. — Eu sinto, mais do que qualquer palavra

pode descrever.

— Então, por que está fugindo?

— Porque eu não suportaria te perder. — Fui honesto,


sentindo meu peito apertar. — E eu prefiro não te ter, para que eu
não tenha que sentir a dor que vai me atingir, se isso acontecer.

— Você não pode não me ter, por medo de perder, Chae.


— Olhou-me profundamente, e entrelaçou nossos dedos. —

Porque você já me tem. — E então eu fechei os olhos, sabendo


que ela dizia a mais pura verdade. — E eu te tenho, eu sei.

Então eu encostei minha testa contra a sua, e suas mãos


foram para o meu pescoço, enquanto eu deixei as minhas livres,

paradas ao lado da sua cintura.

— Me diga, a qualquer instante, se for demais...

Então eu abri os olhos, e encarei os castanhos dela, e ela


assentiu. Levei minha mão até a sua, tirando-a do meu pescoço,
e dando um leve beijo, antes de fazer o pedido silencioso, para
que ela me guiasse. E ela o entendeu, sendo a pessoa que me
entendia, em poucos segundos.

E só poderia ser ela, eu sabia.

Talvez, eu soubesse muito antes.

Desde aquela primeira foto.

Ela então me guiou, minha mão em sua bochecha, em um

leve toque, que fez meu coração acelerar. Ela tocou a outra, e a
trouxe para sua cintura, fazendo-me puxá-la para perto, e eu o fiz.

E quando tentou se aproximar ainda mais, eu quase perdi uma

respiração. Nunca pensei que a proximidade com alguém,

pudesse ser a própria definição de paraíso e inferno ao mesmo


tempo. E até o inferno dentro de mim, se tornava o paraíso perto

dela.

— Você pode... — vi-a perder a fala, e eu a encarei, e notei


que estava claramente envergonhada. As bochechas tomando

uma coloração diferente, ainda mais vermelha, enquanto suas

pupilas estavam claramente dilatadas, quase que encobrindo o

castanho que eu adorava.

— O que você quer, Sarita?


Ela, naquele momento sorriu, claramente envergonhada,

mas todo seu rosto se iluminou. De um jeito que eu não tinha


conseguido contemplar antes. Não tão de perto. Não apenas para

mim.

— Quero que me beije, Chae.

Eu a trouxe para ainda mais perto com cuidado, e encostei

nossos lábios. Um sorriso se desfazendo no meu rosto, enquanto

o seu gosto tomava conta do meu. Tomando todo o cuidado e me

permitindo, tudo o que apenas ela conseguia me proporcionar. E


naquele instante, com ela em meus braços pela primeira vez, foi

como se sentisse o mundo parar. E só me lembrava de um outro

momento em que aquilo também ocorreu, quando vi sua foto,


anos atrás.

Um sinal que eu não vi, ou de certa forma, apenas tentei

diminuir. Porém, era ela. Desde lá, até aquele momento. Era para

ela estar em meus braços e me ensinar, que mesmo que eu não


fosse merecedor de um sentimento e/ou a mistura de todos que

ela me proporcionava, ela não me deixaria fugir.

Ela me escolheria também.


“E sei que você morre por mim
vive por mim

E nunca me abandonou

Mesmo sabendo que às vezes

O medo me domina.”[42]

Tempos depois...

Uma vida a três seguia.

Chae via e sabia, desde o primeiro beijo que trocaram, que


os toques se tornaram uma constante. Parecia que Sara sempre

estava testando, como ela reagiria a ele, e ele se sentia mais do

que feliz, em deixar que ela explorasse aquele caminho, no seu


tempo.

Ela aparecia no seu quarto às vezes, e se deitava na cama


ao seu lado, apenas o encarando. E ele, sem mesmo perceber,

acabava dormindo apenas com o sorriso dela em sua mente. Uma


paz que ele nunca pensou que encontraria, ao assumir um Cartel,

estando longe da sua família e em um casamento por contrato.

Porém, ele encontrava paz em cada canto da casa que

agora era seu lar. Ele poderia viajar, sair dali e ir até mesmo à
Mansão Kang, mas ele sabia que o seu lugar era ali. E algo

dentro dele, estava em completa sintonia com Sara, que tinha

todos os planos feitos, para dali a um ano do casamento, mas a


realidade era que ela sabia do seu destino ali.

Ela entendeu que ela tinha poder. Que podia exercê-lo. Ela

aprendia, um pouco mais a cada dia, e em cada um deles, sentia-

se ainda mais pronta para ser realmente a chefe de um Cartel,


que a sua família carregou por tanto tempo e até mesmo evitou,

mas que era seu destino.

E ela, depois de tanto sofrer nas mãos do que acreditou ser

o seu, descobriu que ele era outro. O que ela passou, o que ela
teve de sobreviver, não tinha nada a ver com o destino. Tinha a

ver com a mais pura maldade do ser humano, e não com quem

ela era. Ela era mais do que os abusos que sofreu, das dores que

teve que esconder, da vida que lhe foi roubada. Ela era Sara

Kang-Hernández, a chefe de um Cartel, a mamá de Matê e a

esposa – não apenas por contrato – de Chae Kang.


Ele diria que ela era o amor da sua vida, contudo, ela
preferia ouvi-lo, a afirmar tal coisa. E naquela noite, enquanto ela

estava abraçada a Matê, no sofá da sala, e a mesma quase caía

de sono, sabia que Chae não estava concentrado no filme. Não

mesmo. Sentia seu olhar sobre elas, e o orgulho brilhando neles.

E era exatamente o que ele sentia, encarando o seu

mundo todo, bem ali, juntas, em um dia comum, que apenas por

tê-las, se tornava especial. Ele nunca pensou que mesmo após

uma vida se sentindo apenas insuficiente, e nunca o melhor, teria

duas pessoas, que o olhavam, sem dúvida alguma, como se ele


também fosse o mundo delas. Eles se complementavam, essa era

a realidade.

— Vamos para a cama, cariño? — Sara perguntou, e


tentou acordar Matê, que se negava a fazê-lo.

— O papá pode me colocar na cama? — a pequena

perguntou, sonolenta, e buscando com os bracinhos, como se


esperando Chae.

Ele travou por completo, quando a ouviu chamá-lo daquela


forma pela primeira vez. Sara o encarou, um sorriso assustado no

rosto, mas que se tornou aliviado, ao ver que ele parecia prestes
a chorar. E ela nunca o tinha visto de uma forma tão frágil como

aquela.

— Claro que posso, filha.

O mundo de Sara e de Chae colidiam dentro de si,


enquanto ele se levantava, pegava Matê no colo e a ajeitava em
seu peito. Ele agora, talvez entendesse po rque era tão grande e

sempre quis ser forte. Quem diria que não seria para ser o mais
violento dos seus irmãos, mas sim, para carregar sua filha até a

cama?

Sara os assistiu em silêncio, uma lágrima encontrando seu

sorriso, enquanto ela ia até o quarto de Chae, que aos poucos,


ela via como dela também. Ela esperou lá, sentada na sua cama,

e sabendo o quanto as coisas tinham mudado. O quanto confiar,


se tornou fácil como respirar, quando se tratava de Chae.

Ela o amava, profundamente.

Ela o queria, perdidamente.

— Ela apenas puxou a coberta e não disse mais nada... —

Chae falou, entrando no quarto, e limpando o rosto das lágrimas


que desceram. — Eu nunca pensei que ia me tornar pai, assim...

— Riu sozinho. — Obrigado por isso, Sara.


— Minha filha te escolheu, Chae. — Olhou-o com todo seu

amor. — Assim como você a escolheu... Eu não tenho nada no


meio disso.

— Você é a mãe da minha filha — ele falou, aproximando-


se dela, ficando de joelhos à sua frente e mesmo sentada ali, os

seus rostos quase ficavam na mesma altura. Ele segurava suas


mãos com carinho e as trazia para o seu peito. — Você é a

mulher que eu amo.

— Eu... — ela suspirou profundamente, sentindo-se como


sempre, apenas amada por ele. Ele nunca lhe despertou um

sentimento diferente, como se fosse tudo o que sempre fosse


entregar – o amor que compartilhar. — Eu também te amo, Chae.

— Então...

Ele afastou uma das mãos da dela, e abriu a última gaveta

de sua mesa, onde seus computadores ficavam.

— Eu ia esperar mais, porque pensei em uma data

especial, talvez quando completássemos um ano, mas... — ele


sorriu de lado, ficando nervoso. — Eu não vou conseguir esperar.

— Como assim?
Ela o olhou, e ele lhe esticou uma folha de papel, como
aquela que ele colocou debaixo da porta, no dia em que ele viu o
pior de si, e mesmo assim, ficou. E ela teve a certeza, de que ele

sempre ficaria.

— Quer se casar comigo?

Sara leu em voz alta, arregalando os olhos, e então o


encarou.

— Então, se esse for um pedido seu, eu com toda


certeza...

Ela cortou a gracinha que já saía da boca de Chae, e o


beijou. Ela sequer pensou antes de o fazer. Tudo dentro dela
vibrando, como se não existissem palavras que pudessem

responder àquilo. Ele correspondeu o beijo com carinho, sorrindo


em meio a ele, e quando ela se afastou, viu o quanto ela brilhava.

Ele amava vê-la brilhar.

Parecia ter nascido para a ver assim.

— Eu vou colocar uma aliança bem aqui... — ele beijou o


dedo indicador dela, sabendo que só faria sentido para eles que a

aliança deles ficasse ali. — Para que sejamos sempre, apenas


nós, Sarita.
Batidas na porta, os fizeram olhar para ela, e então Matê
apareceu, abrindo a boca, e caminhando até eles.

— Posso dormir com vocês hoje?

E quem poderia negar um pedido como aquele?

— Apenas nós, Chae — Sara sussurrou, trazendo Matê

para perto, e sorrindo para ele. — Para sempre nós.


Bônus

O ponto de Chae tocou incessantemente e seu corpo


travou. Sara o olhou confusa, vendo seu olhar mudar por
completo. Eram todos os bipes, logo, significava que eram todos

seus irmãos do outro lado. Porém, ele percebeu que não tinha o
bipe de Vincenzo.

— Algum problema?

— Acho que preciso já contar para meus irmãos que


vamos nos casar de verdade. — Ele beijou as mãos dela, e se
levantou, afastando-se do sofá em que estavam sentados,

apenas terminando uma noite.

Ele ficou de pé, em frente ao piano, aceitando a chamada

de Hinata primeiro. Imaginando que de algum jeito, ela tivesse


descoberto, telepaticamente que ele tinha pedido Sara em

casamento dias atrás.

— Eu acho que vou explodir se não contar para você,

estamos todos enlouquecendo...

— O que está acontecendo, Hina?


— Oppa... — ouvi-a respirar fundo. — Vincenzo Oppa

engravidou uma brasileira!

Continua em... UMA GRAVIDEZ INESPERADA PARA O

MAFIOSO

Link para pré-venda: clique aqui.


Nota

E chegamos ao fim de #Chara! Espero de coração que de


alguma forma, eles tenham te conquistado. Há várias camadas

nessa história e espero ter feito jus a cada uma delas.

Obrigada por dar uma chance a esse livro.

Mas e o nosso último Kang hein? Preparem-se, que

Vincenzo Kang promete de tudo e mais um pouco.

Se você deseja ler histórias sobre os outros Kang, me

conta nas redes sociais que estão listadas abaixo, ou até mesmo,

aqui na avaliação. Vai ser uma honra saber que está curiosa por
mais deles!

Caso desejem saber mais sobre os projetos futuros e a


respeito de cada um deles, me sigam nas redes sociais listadas
abaixo, principalmente no Instagram (@alineapadua). Estou doida

para poder compartilhar tudinho com vocês.

Obrigada pela leitura (e por tudo),

Aline
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Meus outros livros: aqui


Outros Livros

UMA GRAVIDEZ INESPERADA

Família Torres – Livro 1

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SINOPSE
Se no meio do caminho de algumas pessoas tem uma pedra, no meio do
caminho de Maria Beatriz, sempre teve Inácio. O herdeiro da fazenda que fica ao
lado das antigas terras de sua família, tornou-se um homem bruto e fechado, que
quando aparece na sua frente, ela já sabe que só pode ser problema ou alguma
proposta indecorosa. Maldito peão velho!

Inácio Torres é um homem de poucas palavras, mas que vê em uma mulher


tagarela, a oportunidade perfeita. Mabi precisa de dinheiro, ele o tem. Ele precisa de um
casamento falso, e ela é a escolha perfeita. Porém, a única coisa que recebe de Mabi,
como sempre, é uma negativa. Maldita criança sonhadora!

No meio das voltas que a vida dá, uma noite de prazer os marca. E a

consequência será muito maior que o arrependimento: UMA GRAVIDEZ INESPERADA.


CEO INESPERADO – meu ex-melhor amigo

Família Torres – Livro 2

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SINOPSE
Se nem tudo que reluz é ouro, Júlio é apenas a melhor imitação de pedra

preciosa em que Babi colocou os olhos.

O seu ex-melhor amigo, a abandonou e quebrou seu coração quando eram


adolescentes. Bárbara Ferraz jurou a si mesma que nunca mais o deixaria ficar

perto. Maldito CEO engomadinho!

Júlio Torres sabe que deixou uma parte de si para trás. Sua ex-melhor amiga o
odeia e ele, muitas vezes, teve o mesmo sentimento por si. Maldita sombra!

Júlio sabe que não pode mais ignorar, porque ele não quer apenas a sua melhor
amiga de volta, ele a quer como sua.

Babi foge dele como o diabo foge da cruz. Entretanto, como fugir se depois do

reencontro e finalmente os pratos limpos, ela se descobre grávida do seu ex-


melhor amigo?
O BEBÊ INESPERADO DO COWBOY

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SINOPSE
Se existe amor à primeira vista, Abigail Alencar e Bruno Torres

compartilham o completo oposto. Abi o detestou desde o primeiro momento, e com o


passar dos anos, o sentimento permaneceu. Bruno é o típico cowboy cafajeste,

arrogante e popular, de quem ela não suporta a presença um segundo.

A cidade pequena sabe de seu desgosto e desinteresse no mais novo dos


Torres, porém, ele sempre pareceu ficar ainda mais animado em confrontá-la. Se existe
algo sobre Bruno que ela conhece bem, é que ele não foge de um desafio.

Assim, quando Abi o encontra como babá da sua filha de apenas um ano, ela só
consegue pensar que ele quer algo. Bruno jura que está ali apenas para tirá-la do sério,
como sempre, mas tudo acaba por mudar, naquele exato instante.

Existe uma linha tênue entre o amor e o ódio... eles estarão dispostos a
cruzá-la?
FELIZ NATAL, TORRES

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SINOPSE
O Natal parou de ser uma data festiva, e tornou-se dolorosa, assim que Maria

Beatriz perdeu os pais. No entanto, nesse ano, tudo mudou e ela vai lutar para que essa
data seja ressignificada. Que ela possa sorrir, o tanto quanto, um dia fez, no passado.

Assim, ela precisa que tudo saia PERFEITO.

Uma árvore de Natal destruída, enfeites perdidos pela casa, a ceia que não vai
chegar a tempo, um desmaio...

Será que ela terá o seu Feliz Natal ao lado dos Torres?

Esse é um conto natalino, narrado na visão de Mabi e Inácio (do livro Uma
Gravidez Inesperada), onde você poderá passar essa data tão especial ao lado da

Família Torres.
UMA FAMÍLIA INESPERADA PARA O VIÚVO

Família Torres – Livro 4

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SINOPSE
Olívia Torres sempre teve em mente que para bom entendedor meia palavra

bastava. Assim, quando se apaixonou perdidamente e descobriu que o homem com o


qual se envolveu era casado, o seu mundo perdeu o chão. Ela apenas foi embora, sem

olhar para trás.

Contudo, com Murilo, ela nunca pôde parar de olhar. Ainda mais, quando
descobriu que estava grávida.

Murilo Reis perdeu tudo. Nunca pensou, que em algum momento, poderia voltar
a sentir algo. Entretanto, bastou um olhar para Olívia, para ele compreender que ainda
existia uma chance. Chance essa, que se perdeu por completo, quando ela o deixou.

Anos depois e uma coincidência do destino, Murilo descobre que não apenas as
lembranças daquele amor de verão permaneceram, mas sim, que ele tem uma filha.

Um amor de verão pode ser o amor para a sua vida?


GRÁVIDA DO CEO QUE NÃO ME AMA

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SINOPSE
O triste é que aquele velho ditado se tornou real em sua vida: Valéria que

amava Tadeu, que amava Bianca, que amava Murilo, que não amava ninguém.
Desde que seus olhos pousaram em Tadeu Reis, Valéria se apaixonou. Não sabia dizer

se era pelo olhar escuro enigmático, o sorriso que ela queria tirar daqueles lábios

cerrados ou o fato de ele ser tão atencioso com quem amava.

Porém, Tadeu apenas tinha olhos para outra mulher, e Valéria escondeu aquele
sentimento no fundo de sua alma, tentando matá-lo durante os anos que se passaram.
Uma coincidência do destino, os coloca frente a frente. Ela sabe que ele é errado, mais
do que isso, uma grande mentira, porém, seu corpo não resiste.

E uma noite com o homem errado não é o fim do mundo, certo?

Para ela, tornou-se um outro começo, já que terá uma parte dele consigo, para
sempre. Valéria está grávida do homem que não a ama. E não pretende deixá-lo
descobrir.
O CASAMENTO DO CEO POR UM BEBÊ

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SINOPSE

Águas passadas não movem moinhos – era o que Lisa


repetia a si mesma. Contudo, estar sempre tão próxima do único

homem que realmente se apaixonou, fazia com que ela quisesse

voltar, e na verdade, se afogar com ele. Igor Reis era um erro, e


ela sempre soube.

Ainda assim, não podia evitá-lo para sempre, já que seus


círculos de amizades eram tão próximos. Então, era apenas isso:

Igor era um amigo. Um ótimo fofoqueiro e uma pessoa para


perder horas conversando – mesmo que quisesse perder muito

mais.

Todavia, quando ele bate na sua porta no meio da

madrugada com um bebê a tiracolo, ela não sabe o que de fato


está acontecendo. Porém, nada é tão ruim que não possa piorar,

e ele a pede em casamento.

Nas voltas que a vida dá, Lisa se vê com o sobrenome

Reis, um bebê para chamar de seu e um contrato de casamento


por um ano com o homem que ama.

Até onde o casamento do CEO por um bebê será uma


mentira?
A FILHA DO VIÚVO QUE ME ODEIA

Família Reis – Livro 3

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SINOPSE

Os opostos se atraem.

Carolina Reis queria jurar que isso estava errado, mas não
pôde evitar a forma como seu corpo reagiu ao cowboy bruto e
grosso que, literalmente, atravessou o seu caminho. Franco era

uma incógnita, com um chapéu de cowboy escuro e uma

expressão tão dura, que lhe fazia indagar se ele em algum


momento sorria. Bruto insensível!

Franco Esteves não tinha tempo para perder, muito menos,


com uma patricinha mimada que encontrou sozinha no meio da
estrada. Porém, não conseguia evitar ajudar alguém, mesmo que

este parecesse ser no mínimo uma década mais novo, com olhos
claros penetrantes e um sorriso zombeteiro. Diacho de madame!

O que era para ser apenas um esbarrão no meio do nada,


torna-se uma verdadeira tortura, quando Carolina assume, por

coincidência a função de tutora da filha do cowboy. Ele só quer

evitá-la. Ela só quer irritá-lo. No meio do ódio e atração que lhes


permeiam, uma adolescente se torna um vínculo que eles não

podem evitar.

Mas até onde ela será a única a uni-los?


GRÁVIDA EM UM CASAMENTO POR CONTRATO

Família Reis – Livro 4

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SINOPSE

Se no meio do caminho de algumas pessoas tem uma


pedra, no meio do caminho de Nero, sempre teve Verônica. A

matriarca dos Reis era uma mulher que intimidava a qualquer um,

e ele nunca conseguiu entender uma reação dela. Quando ela


estava à sua frente, ele sabe que tudo o que deve fazer é correr

para a direção oposta.

Verônica Reis é uma mulher que nunca demonstra o que

sente. Sendo assim, praticamente impossível desvendar o que se

passa em sua cabeça, e muito menos, em seu coração. Contudo,


sempre lhe intrigou o fato de que Alfredo Lopes – ou apenas Nero

para os demais – parecia querer enfrentá-la em uma simples troca


de olhares, e nunca a temer.

No meio das voltas que a vida dá, um contrato de


casamento é o que os une. O que ela e muito menos eles

esperavam, era que no único momento que deixassem a guarda

baixar, teriam algo maior do que o arrependimento para


lidar: UMA GRAVIDEZ EM UM CASAMENTO POR CONTRATO.
UM CASAMENTO DE MENTIRA PARA O CEO

Família Fontes – Livro 1

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SINOPSE
Nas voltas que a vida dá, Talita e Gael se encontram dizendo “sim” no altar.

A rejeição à frente de várias pessoas foi o que Talita Kang vivenciou aos

dezessete anos, quando Gael Fontes a recusou e humilhou abertamente sobre o


possível noivado dos dois.

Porém, como o carma nunca falha, tudo o que o herdeiro dos Fontes necessita

quinze anos depois, quando retorna para recuperar a empresa da família, é justamente
um casamento por contrato.

O que ele não esperava era que justamente a mulher que quebrou seu coração
seria a candidata perfeita, e mais, que ela o escolheria novamente.

Ele a humilhou por um casamento por contrato.

Ele precisa dela agora, pelo mesmo motivo.


Talita se apegou a esse contrato pela sua família, e por uma promessa que
apenas ela pode cumprir. Mas nada lhe impede de se divertir com a infelicidade do

homem que estará preso nessa mentira com ela. Entre o carma, uma rede de mentiras
e corações partidos, até que ponto um casamento por contrato significará apenas isso?
GRÁVIDA DO COWBOY QUE NÃO ME AMA

Família Esteves – Livro 1

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SINOPSE
Ter um ditado como aquele sendo uma realidade, depois de tanto tempo,

apenas fazia Guta duvidar se realmente queria tal casamento. Augusta que amava
Juan, que amava Pâmela, que amava Franco, que amava Carolina, que felizmente,

o amava de volta.

Deixada sozinha em casa, após finalmente ter o homem que amava da forma que
sempre desejou, Guta parou de se questionar do que era necessário para que aquele
casamento fosse real, e aceitou que o amor de Juan Esteves nunca seria seu.

Ela então o deixa para trás, e com ele, todo o sonho do primeiro amor que agora
ela jurou que esqueceria. Contudo, o que ela não esperava, depois de tanto tempo, era
que criaria algum laço real com ele.

Guta apenas quer os papéis do divórcio e distância, mas se descobre grávida do


cowboy que não a ama.
UMA FILHA INESPERADA PARA O CEO

Família Esteves – Livro 2

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SINOPSE
Júlia Medeiros sempre pensou que para bom entendedor, meia palavra

bastava. Entretanto, ela não sabia o que entender, quando o homem para o qual se
declarou, a abandonou na cama, na companhia de um chapéu. Ela só não tinha ideia do

que mais acabou ficando para si.

Oscar Esteves sempre lutou por sua família, e seus irmãos eram seu mundo,
contudo, os olhos bonitos da mulher que o encantou desde que a encarou pela primeira
vez, sempre vagavam em suas memórias.

Anos depois e uma coincidência do destino, Oscar descobre que aquele amor
não resultou em apenas lembranças que ele não conseguia tirar da mente, mas
também, em uma filha.
UMA FILHA INESPERADA NA MÁFIA

Família Esteves – Livro 3

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SINOPSE
Se no meio do caminho de algumas pessoas tem uma pedra, no meio do

caminho de Flávio, sempre teve Dove Kang.

Ele, um cowboy de sorriso fácil e cheio de piadinhas.

Ela, uma mafiosa que sorri apenas de forma calculada.

Ele, não pode evitar a atração que sente.

Ela, adora ver a forma como o homem mais novo a teme.

O que nenhum deles imaginou é que no meio desse caminho que os une,

surgiria uma filha inesperada.


GRÁVIDA DO MAFIOSO QUE NÃO ME AMA

Família Kang – Livro 1

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SINOPSE
O ditado que ela não queria ter como uma realidade, mas era: Hari que

amava Kalel que amava Lea que não amava ninguém.

Ele, conhecido com o diabo da máfia Kang.

Ela, a mulher apaixonada por ele desde os dezoito anos.

Ele, se apaixona por outra, mas acaba na cama dela no fim da noite.

Ela, acorda sozinha na cama, com a notícia de que ele abandonou a máfia.

Hari apenas quer seguir em frente após ser usada, porém se descobre grávida

do mafioso que não a ama.


REJEITADA POR UM MAFIOSO

Família Kang – Livro 2

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SINOPSE
E quando você se apaixona por um mafioso?

Ele, o segundo no comando da máfia Kang.

Ela, dez anos mais nova e que não confia em ninguém.

Ele, tenta ajudá-la de todas as maneiras a se abrir.

Ela, tenta vê-lo apenas como um irmão, mas acaba falhando.

Hinata se apaixona por um mafioso, só não esperava que seria rejeitada por ele.
[1]
Brother - Kodaline

[2]
Oppa e Unnie são usados pelas mulheres para se referir a homens e mulheres
mais velhos, enquanto Hyung e Noona são utilizados com o mesmo propósito, mas

pelos homens. Utilizado com pessoas que você tem intimidade, esses honoríficos
coreanos podem ser usados para se referir à sua irmã ou irmão mais velho, assim como
a um(a) amigo(a) ou namorado(a) mais velho(a). Fonte:

<https://hallyubrasil.com/blog/lingua-coreana/honorificos-coreanos>

[3]
Oppa e Unnie são usados pelas mulheres para se referir a homens e mulheres

mais velhos, enquanto Hyung e Noona são utilizados com o mesmo propósito, mas
pelos homens. Utilizado com pessoas que você tem intimidade, esses honoríficos

coreanos podem ser usados para se referir à sua irmã ou irmão mais velho, assim como
a um(a) amigo(a) ou namorado(a) mais velho(a). Fonte:

<https://hallyubrasil.com/blog/lingua-coreana/honorificos-coreanos>

[4]
Oppa e Unnie são usados pelas mulheres para se referir a homens e mulheres

mais velhos, enquanto Hyung e Noona são utilizados com o mesmo propósito, mas
pelos homens. Utilizado com pessoas que você tem intimidade, esses honoríficos
coreanos podem ser usados para se referir à sua irmã ou irmão mais velho, assim como
a um(a) amigo(a) ou namorado(a) mais velho(a). Fonte:
<https://hallyubrasil.com/blog/lingua-coreana/honorificos-coreanos>

[5]
Tras de Mí – RBD

[6]
¿Qué Hay Detrás? – RBD
[7]
A Tu Lado - RBD

[8]
No Pares – RBD

[9]
Otro Día Que Va – RBD

[10]
Oppa e Unnie são usados pelas mulheres para se referir a homens e

mulheres mais velhos, enquanto Hyung e Noona são utilizados com o mesmo propósito,
mas pelos homens. Utilizado com pessoas que você tem intimidade, esses honoríficos
coreanos podem ser usados para se referir à sua irmã ou irmão mais velho, assim como
a um(a) amigo(a) ou namorado(a) mais velho(a). Fonte:

<https://hallyubrasil.com/blog/lingua-coreana/honorificos-coreanos>

[11]
Santa No Soy – RBD

[12]
Otro Día Que Va – RBD

[13]
A Tu Lado – RBD

[14]
Te Daría Todo – RBD

[15]
Te Daría Todo – RBD

[16]
Solo Quédate En Silencio – RBD

[17]
Sálvame – RBD

[18]
Sálvame – RBD

[19]
Enséñame – RBD

[20]
Tras de Mí – RBD

[21]
No Pares – RBD

[22]
Un Poco De Tu Amor – RBD

[23]
Daechwita – August D.
[24]
I¿Qué Hay Detrás? – RBD

[25]
Inalcanzable- RBD

[26]
Otro Día Que Va- RBD

[27]
Un Poco de Tu Amor - RBD

[28]
Inalcanzable - RBD

[29]
A Tu Lado – RBD

[30]
Tu Amor - RBD

[31]
Una Canción – RBD

[32]
Pink Venom – BlackPink

[33]
¿Qué Hay Detrás? – RBD

[34]
Un Poco de Tu Amor - RBD

[35]
Solo Quédate En Silencio – RBD

[36]
Solo Para Ti – RBD

[37]
Liso, Sensual – RBD

[38]
Fuego – RBD

[39]
Nuestro Amor – RBD

[40]
Nuestro Amor – RBD

[41]
Bésame Sin Miedo – RBD

[42]
Enséñame – RBD

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