Demuru - Política, Magia, Semiótica
Demuru - Política, Magia, Semiótica
Demuru - Política, Magia, Semiótica
2, 2021
DOI 10.23925/2763-700X.2021n2.56803
In vivo
A Lina
Unu mundu bellissimu pro tene
Introdução
Este texto está organizado em duas partes. Na primeira parte — pars destruens
—, intitulada Desmontes, analiso um aspecto específico dos “populismos conspi-
ratórios” de “ultradireita” do século XXI : a sua dimensão mágica e contagiante,
* Agora que a teia está urdida, / A vocês cabe tecer. / Pois tardio pode ser / o arrependimento. / Quando se tem o
vento / É preciso debulhar.
319
relativa aos encantos e êxtases que eles são capazes de proporcionar. Em se-
guida, ainda no âmbito de uma crítica desconstrutiva, questiono as falácias do
assim chamado debunking, termo que define a confutação, por meio de dados
objetivos e argumentos lógicos, das narrativas populista-conspiratórias : notí-
cias falsas, crenças pseudocientíficas e/ou qualquer discurso não fundado em
evidências devida e cientificamente comprovadas. Em outras palavras, procuro
fazer um “desmonte” das mais comuns práticas de “desmonte” do populismo
conspiratório. Defendo que uma crítica dos populismos conspiratórios do século
XXI fundada apenas em amostras de dados e silogismos, além de soar esnobe
e pedante, raramente convence alguém e mudar de opinião, por quão fora da
realidade estas possam ser.
Na segunda parte, a pars construens, intitulada Recriar, busco algumas pistas
que possam ser úteis para facejarmos o populismo de ultradireita e seus encan-
tos conspiratórios. Alego que, enquanto estudiosos dos processos de produção de
sentido, podemos e devemos contribuir a construir novas táticas para enfrentá-
-los. Ora, essas táticas não podem ser tão-somente da ordem do racional. Por isso
é preciso, em primeiro lugar, recriar as práticas de desconstrução do populismo
conspiratório, especialmente quando essas almejam ter algum impacto fora dos
recintos acadêmicos. Como repete há tempo Wu Ming, o coletivo de escritores
italiano autor, entro outros, dos romances Q, 54, Altai, é necessário que o de-
bunking preserve o mesmo encanto que elas produzem em seus destinatários1.
Um pouco como fazem os ilusionistas que, ao revelar os truques por trás de suas
mágicas, continuam maravilhando e envolvendo emocionalmente seu público.
No entanto, não é possível limitar-se a descontruir, ainda que magicamente,
as fantasias conspiratórias que imperam, hoje, mundo afora. Paralelamente, é
preciso ignorá-las, sair de suas fronteiras, contar outras histórias. Se não qui-
sermos que elas continuem circulando e tendo visibilidade, devemos deslocar
o campo discursivo da disputa política. O que implica, antes de tudo, deixar de
falar delas. Pois falar delas, ainda que seja para criticá-las, ajuda a fixá-las na
cabeça das pessoas. Como já alertava há tempo o linguista norte-americano
George Lakoff, quando digo a alguém “não pense no elefante”, a primeira coisa
em que a pessoa vai pensar é o elefante2. Por isso é preciso fazer das negações,
afirmações, transformar os “nãos” em “sins”. Imaginar outros mundos. Recriar
os que já existem. Reposicionar-se. Reinventar o espaço do debate público
ocupando-o com novas narrativas que eludam o adversário, suas pautas e suas
provocações.
Antes de começarmos, alguns esclarecimentos necessários e desnecessários.
Chamo aqui de “populismo-conspiratório” a conexão íntima e profunda entre os
discursos populistas e conspiracionais que povoam o mundo contemporâneo.
Ambos caminham, hoje, lado a lado. O populismo divide a sociedade em dois
1 Wu Ming 1, Q di complotto. QAnon e dintorni. Come le fantasie di complotto difendono il sistema, Roma,
Edizioni Alegre, 2020.
2 G. Lakoff, Don’t think of an elephant. Know your values and frame the debate, White River Junction, Chelsea
Green Publishing, 2004.
320
7 A.J. Greimas, De l’imperfection, Périguex, Fanlac, 1987 ; tr. port. Da imperfeição, São Paulo, Hacker, 2002.
8 Sobre essa interpretação contructivista do livro (por oposição à leitura mais comum, de índole
“romântico”), cf. E. Landowski, “De l’Imperfection : un livre, deux lectures”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.
9 De l’Imperfection, op. cit., pp. 83-90.
322
a partir das relações que estes entretêm com seus pares e ímpares, isto é, com
aqueles aos quais se parecem e dos quais diferem. Antes das relações que tece-
mos não somos nada. Sem tecer relações — inclusive com quem não pensa como
nós — não vamos para lado nenhum.
1.1. Encantos
O sucesso dos atuais populismos de ultradireita só pode ser entendido se levar-
mos em consideração um aspecto muitas vezes esquecido por seus analistas : a
dimensão mágica do engajamento individual e coletivo que eles proporcionam10.
O mesmo vale para as narrativas conspiratórias às quais os líderes populistas
aludem frequentemente em suas falas : QAnon, segundo a qual uma cabala de
pedófilos satanistas, da qual fariam parte, entre outros, Hillary Clinton, Barack
Obama, George Soros, Tom Hanks, Hollywood de modo geral, Celine Dion e
Marina Abramovič, estaria decidindo secretamente os destinos do mundo ; A
grande substituição, cuja tese é a de que poderes fortes e ocultos estariam imple-
mentando a substituição de europeus e norte americanos brancos por parte de
povos oriundos da África e do Médio Oriente ; as teorias antivacinas, seja aquelas
contra a Covid-19, seja outras ; as teorias sobre a “Vírus Chinês” e a “Plandemia”,
que defendem que a pandemia do novo coronavírus eclodida em Wuhan no fim
de 2019 tenha sido planejada pelo governo chinês e/ou outros entes poderosos
não identificados. E a lista poderia continuar.
O populismo conspiratório de ultradireita do século XXI seduz menos pelo
viés argumentativo e mais pelo viés emotivo-passional11. Pode-se dizer que
ele “encanta”. Encanta de maneiras diversas, e sob múltiplas perspectivas,
chamando em causa diferentes aspectos da experiência humana e da vida em
sociedade. Antes de tudo, ele encanta porque produz, naqueles que se engajam
em suas tramas, o que Umberto Eco chamava, ao refletir sobre o comportamen-
to dos adeptos do conspiracionismo, o “excesso de maravilha”12. Toda narrativa
conspiratória, diz Eco, funda-se na suposta existência de um segredo. Um se-
gredo que irá proporcionar, a quem conseguir desvendá-lo, fascínio e prazer.
Os seguidores de QAnon que descobriram que havia um projeto de domínio
global traçado por uma seita de satanistas pedófilos, e que Trump havia sido
eleito para combatê-la, foram tomados por um “excesso de maravilha”, no qual
se tornaram rapidamente viciados. Nos meses e nos anos seguintes, toda vez
que encontravam novos “indícios” e “provas” que pareciam confirmar sua cren-
10 Uma exceção é a pesquisa de Giovanna Parmigiani. G. Parmigiani, “Magic and Politics: Conspirituality
and COVID-19”, Journal of the American Academy of Religion 89(2): 506–529, 2021, https://doi.org/10.1093/
jaarel/lfab053.
11 L. Bianchi, Complotti. Da QAnon alla pandemia. Cronache dal mondo capovolto, Roma, Minimum Fax,
2021. P. Demuru, “Conspiracy theory, messianic populism and everyday social media use in Brazil : a
glocal semiotic perspective”, Glocalism, Journal of Culture, Politics and innovation, 3, 2020.
12 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, op. cit., p. 87.
323
ça, a maravilha aumentava. A cada nota que “Q”, o usuário anônimo de 4chan
cujo primeiro post na rede deu início a QAnon, soltava sobre a “tempestade”
(the storm) que Trump estaria preparando para varrer os inimigos dos EUA,
desencadeava-se uma acalorada busca ao “indício”, a um “sinal” que, nas falas
do ex-presidente, teria confirmado a teoria. Dito de outro modo, ainda com as
palavras de Eco, quem pensa e age com base em uma mentalidade conspiracio-
nista tende a “superinterpretar” o que se apresenta diante de seus olhos13. Para
que tudo, de uma forma ou outra, se encaixe em sua história. Para que tudo, de
uma forma ou outra, a confirme.
Cito um exemplo emblemático : o papel que o número 17 tem na narrativa de
QAnon sobre o Trump “salvador da pátria”. Em um dado momento, os qanons,
como são chamados os seguidores de QAnon, perceberam que a “Q” era a deci-
ma-sétima letra do alfabeto. A partir desta “maravilhosa” descoberta, iniciaram
a reparar que, coincidentemente, havia uma presença “redundante” do número
17 nos discursos e nos tweets de Trump14. O mesmo vale pelas teorias sobre a
“Plandemia”, que traçavam uma correspondência entre o “fato” — logo desmen-
tido — de Wuhan ter sido a primeira cidade no mundo inteiramente coberta pelo
5G, e a emergência do novo coronavírus em seu mercado do peixe. “Nada é como
parece. Nada acontece por acaso. Tudo está conectado”. São esse os três pilares
que definem o conspiracionsimo e as “teorias” que eles produzem15.
Vale ressaltar que, para que o encanto e a maravilha continuem vivos, o
jogo da descoberta não pode parar. Por isso os segredos nos quais se funda o
conspiracionismo são sempre segredos vazios. Porque se o segredo for revelado
por inteiro, o jogo acaba. Por isso, mesmo quando as predições catastróficas
de quem anuncia o fim do mundo não se realizam, o discurso conspiratório
continua vivo. Porque o segredo vazio que o sustenta é preenchido com novos
ingredientes narrativos que reanimam a história.
Semioticamente, pode-se então concluir que as narrativas conspiratórias
promovidas hoje pela ultradireita populista são discursos “hermético-herme-
nêuticos” que, para serem percebidos como “verdadeiros”, têm que parecerem
“secretos”16. Secretos com uma alma dúplice e paradoxal, pois se, de um lado,
eles têm que ser continuamente descobertos de modo a alimentar “o excesso de
maravilha” que a própria busca pela “verdade” promove, do outro não podem
ser revelados “por inteiro”. Toda narrativa conspiratória tem que alimentar a
dúvida, levando seus seguidores a encontrarem, ligando os pontos, a “verdade”.
Não por acaso, Bolsonaro e seus filhos exortam continuamente seu público a
“duvidar” e “tirar suas conclusões” : para implantar a suspeita sobre as mano-
17 Como nos seguintes tweets : “Bolsonaro e Haddad cotados na Lava-Jato. Tirem suas conclusões!”
(https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1054888224219381763) ; “O FORO DE SP está mais ativo do que
nunca : Assista e tire suas conclusões” (https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1054888224219381763) ;
“A esquerda diz pregar a democracia e os direitos humanos... Tire suas conclusões mais uma vez”
(https://twitter.com/search?q=%22suas%20conclus%C3%B5es%22%20(from%3Ajairbolsonaro)&src=typ
ed_query).
18 Agradeço a Tadeu Rodrigues Iuama, aluno do curso de doutorado em Comunicação da Universidade
Paulista, por esta definição e remeto aqui à sua pesquisa sobre o LARP. Veja-se, em particular, T.R.
Iuama, “Priori Incantatem : uma discussão sobre a colonização no Larp blockbuster”, InTexto, 49, 2020,
pp. 209-304. “Liminaridade Lúdica : um olhar para o Larp a partir da ludoterapia”, Souza EAD Revista
Acadêmica Digital, 26, 2020, pp. 79-91.
19 Sobre o conceito de “ajustamento” e o “inesperado”, veja-se E. Landowski, Les interactions risquées,
Limoges, Pulim, 2005 ; tr. port., Interações arriscadas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2014.
325
lha, mais adequada, do vocábulo “fantasia”, que passarei, daqui para frente, a
adotar20.
Em nenhuma instância, no entanto, estamos diante de fantasias individuais.
As fantasias de conspiração são obras coletivas, que só tem sentido se forem
vivenciadas enquanto tais. Nas fantasias de conspiração, o que encanta não é
a mera descoberta de indícios e provas que a tornam “real”, mas o fato de que
se trará de uma experiência compartilhada. Como diria Landowski, o encanto
proporcionado pelo populismo conspiratório deriva do contato e do contágio sen-
sível que se constrói entre os membros de sua comunidade de adeptos21. Where
we go one we go all (aonde vai um vamos todos), é um dos slogans de QAnon, que
representa bem a importância, para seus seguidores, de estarem e agirem juntos.
Os caçadores de fantasias de conspiração constroem, portanto, em torno
delas, suas identidades individuais e coletivas. Trata-se de um ponto central,
que, infelizmente, os experts do debunking não entendem. Não entendem que ao
“desmontar” as fantasias de conspiração não estão lidando apenas com “dados”,
“fatos”, “evidencias”, “notícias”. Estão lidando com pessoas. Pessoas complexas,
com histórias diversas. Pessoas que têm paixões, sentimentos, afetos. Pessoas
que se encantam e querem — como é seu direito — se encantar.
Como defende ainda Wu Ming 1, as fantasias de conspiração são uma panaceia
contra a frustração, o desgosto e a raiva em relação ao mundo assim como ele é.
O que é preciso entender é que elas se erguem a partir de “núcleos de verdade”
que expõem a crueza do mundo em que vivemos : um mundo realmente desigual,
governado com base em interesses econômicos e militares, onde existe, sim, o
tráfico de pessoas e crianças, no qual atores de Hollywood participam de cultos
envolvidos em uma aura de segredos (Tom Cruise em Scientology, por exemplo),
em que as grandes industriais farmacêuticas nem sempre se preocupam com a
saúde de quem compra seus remédios, para usarmos um eufemismo22.
E não apenas isso. As fantasias de conspiração respondem também à exi-
gência de encanto e maravilha, “de perspectivas através das quais observar o
mundo de modo diverso e se sentir diferentes”23. É, portanto, na articulação
entre o excesso de maravilha proporcionado pelo jogo coletivo de descoberta
compartilhada dos segredos do mundo e a emoção de pertencer a uma comu-
nidade de eleitos que conseguiram ter acesso à “verdade” que reside o sucesso
do atual populismo conspiratório. Se, para o analista que os olha “de fora”,
tais movimentos parecem “irracionais”, “absurdos”, “fanáticos”, para quem os
vive “de dentro” a experiência é aquela de uma emancipação social “coletiva”
1.2. Ratiosuprematismo
A estratégia mais utilizada para combater o populismo conspiratório do século
XXI tem sido, até agora, o assim chamado debunking. De acordo com o Oxford
Dictionary, fazer debunking de algo significa mostrar “porque uma ideia ou uma
crença são falsas e porque não é tão boa quanto eles acham que é”26. Normal-
mente, isso costuma ser feito por meio da apresentação de dados objetivos e
argumentos lógico-racionais, por meio dos quais pretende-se confutar notícias
falsas, crenças pseudocientíficas, narrativas conspiratórias e/ou qualquer dis-
curso não fundado em evidências devida e cientificamente comprovadas.
Um exemplo clássico de debunking é o trabalho desenvolvido desde os anos de
1970 pelo Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal (Co-
mitê para a Investigação Científica de Alegações do Paranormal), que tem como
objetivo o desmascaramento das pseudociências. Em tempos mais recentes, o
termo foi sendo associado à prática de checagem jornalística e, em particular, ao
expediente das assim chamadas agências de fact-checking, cuja rotina se resume a
desmontar, passo a passo, as peças desinformativas que circulam no submundo
24 C. Ward e D. Voas, “The emergence of conspirituality”, Journal of contemporary religion, 26, 2011 ; E.
Asprem e A. Dyrendal, “Conspirituality reconsidered : How surprising and how new is the confluence of
spirituality and conspiracy theory ?”, Journal of Contemporary Religion, 30, 3. Sobre o tema sugiro também
o podcast “Conspirituality” : https://www.instagram.com/conspiritualitypod/. G. Parmigiani, “Magic
and Politics: Conspirituality and COVID-19”, op. cit.
25 https://www.youtube.com/watch?v=yoULwu1diHw.
26 https://www.oxfordlearnersdictionaries.com/definition/english/debunk.
327
28 Ibid, p. 215.
29 W. Phillips, “How journalist should not cover an online conspiracy theory”, The Guardian, 6 de agosto
de 2018.
30 Wu Ming 1, Q di complotto, op. cit., p. 215.
31 Para uma abordagem semiótica do troll e da trolagem veja-se M. Leone, “Il linguaggio del trolling.
Ingredienti semiotici, cause socioculturali ed effetti pragmatici”, Rivista Italiana di Filosofia del Lingua-
329
2.1. Sensibilizar
Para enfrentarmos o populismo autoritário e suas fantasias conspiratórias é pre-
ciso, então, mudar de registro semiótico. Trata-se de reinventar as linguagens,
as práticas e os discursos usados para combatê-los, bem como os afetos que os
permeiam. Reinventar, também, a própria crítica semiótica, a qual há de se tor-
nar mais “viva” do que nunca. Ora, essas operações de recriação e revitalização
passam, em primeiro lugar, por uma operação de sensibilização. Ou melhor, por
três operações de sensibilização.
1. A primeira, que muitos colegas defendem e praticam, é a sensibilização via
alfabetização mediática34. O verbo sensibilizar tem, nesse contexto, uma acep-
ção mais ampla, relativa, como se costuma dizer, à sensibilização da opinião pú-
blica em relação a um problema específico, neste caso os riscos a autoritarismo
político e da desinformação a ele atrelada. Diante da explosão das redes sociais
e das plataformas online que configuram, hoje, uma das principais esferas da
sociabilidade humana, é necessário desenvolver um trabalho de educação, que
ensine às pessoas a lerem e interpretar criticamente os conteúdos que circulam
nas novas mídias, bem como as formas através das quais são materialmente
construídos. É uma tarefa fundamental, especialmente entre os adolescentes,
os quais, não por acaso, são entre os mais atraídos pelos discursos da alt right
e das extremas direitas mundiais35. Não teria espaço, nem é minha intenção,
debater e explorar aqui, em detalhe, esta diretriz pedagógica. Limito-me a dizer
que isso não pode ser feito com base em práticas e atitudes ratiosuprematistas.
Há de haver, no universo da literacia mediática, uma dimensão lúdica, capaz de
divertir as pessoas e livrar o aprendizado do fardo do racionalismo e do tédio.
É este o caminho trilhado, entre outros, por Sander van der Linden e Jon
Roozenbeek, professores da Universidade de Cambridge, os quais no âmbito de
suas pesquisas sobre as estratégias e os métodos de combate à desinformação
a respeito da mudança climática, produziram, junto à sua equipe, dois video-
games cujo escopo é neutralizar a má informação antes de sua difusão. No pri-
meiro, Bad News (2018), o jogador cumpre o papel de um verdadeiro profissional
da desinformação, o qual, para dar visibilidade a si próprio e suas crenças nas
redes sociais deve construir e divulgar uma série de notícias falsas e teorias
da conspiração. No segundo, Go viral (2020), encomendado pela OMS, retoma a
mesma estrutura narrativa do primeiro, focando, desta vez, sobre a desinfor-
mação relativa às vacinas contra a Covid-19. A estas operações deu-se o nome
de prebunking, justamente porque, contrariamente ao debunking, procuram des-
montar preventivamente as peças desinformativas. No entanto, elas podem ter
34 É o que defende, entre outros, a semioticista Diana Luz Pessoa de Barros. Cf. D.L.P. de Barros, “Algumas
reflexões sobre o papel dos estudos linguísticos e discursivos no ensino-aprendizagem na escola”, Estudos
Semióticos, 15, 2, 2019.
35 N.S. Love, “Back to the Future : Trendy Fascism, the Trump Effect, and the Alt-Right”, New Political
Science, 39, 2.
331
e escancarar o fato de que os eventos cobertos pela mídia italiana eram falsos.
Além disso, o coletivo revelava os truques que havia utilizado para enganar os
jornalistas. Expunha e tornava públicas suas táticas, explicando quais automa-
tismos culturais e distorções do ecossistema da informação haviam explorado
para que a “brincadeira” desse certo. Come resume Wu Ming 1 em seu livro, a
explicação da pegadinha nestes era mais importante da própria pegadinha36.
Uma operação de “guerrilha midiática” que, às vezes, surtia efeitos concretos.
Graças à serie de pegadinhas sobre a suposta rede de pedófilos satanistas, Lu-
ther Blisset contribuiu à absolvição de um pequeno grupo de jovens de Bolonha
acusados de fazer parte de uma seita, conhecida como I bambini di Satana (As
crianças de Satanás), que teria abusado de menores em seus rituais. Os rapazes
passaram por volta de 400 dias em um cárcere de Bolonha por causa de uma
ordem de prisão preventiva, sustentada em grande medida na cobertura sen-
sacionalista dos jornais regionais e nacionais, que haviam descrito os rapazes
como seres abomináveis devotadas a práticas desprezíveis. Discursos e práticas
que a operação de Blisset havia ludicamente desmascarado. Após o término da
prisão preventiva, os réus foram absolvidos em todos os graus do processo, re-
cebendo, por fim, em 2004, uma indenização por parte do Estado pelos dias que
passaram encarcerados.
Foi também por causa desta história que alguns críticos e analistas políti-
cos chegaram a afirmar que QAnon pudesse ser obra de Wu Ming. Para essa
hipótese contribuía o fato de que Wu Ming, ainda sob o pseudônimo de Luther
Blisset, havia publicado, em 1999, o romance histórico “Q”. No livro, “Q” era um
agente secreto do cardeal Giovanni Pietro Carafa, que agia como infiltrado nos
movimentos anabatistas da primeira metade do século XI. Identidade oculta que
o personagem compartilha com o “Q” de QAnon, suposto membro do governo
Trump que avisava a comunidade de 4chan e 8chan sobre os planos do ex-Presi-
dente dos Estados Unidos para exterminar a cabala de pedófilos que controlavam
o “estado profundo”.
Em Q di complotto e outros textos anteriormente publicados em jornais e
revistas, Wu Ming 1 e os outros membros do coletivo de escritores desmentem
essas teorias, negando qualquer envolvimento com QAnon, mas admitindo a
possibilidade que a teoria da conspiração possa ter sido uma pegadinha de al-
gum coletivo de esquerda (a leftist prank) que escapou das mãos de seus criadores
tornando-se algo monstruosos. O que alerta também sobre os riscos de pega-
dinhas à la Luther Blisset na era das mídias sociais, onde, diferentemente da
época televisiva, o alcance e o destino de qualquer história é muito mais difícil
de prever e controlar.
Voltando à questão da necessidade de construir um debunking que possua, ao
menos em algum grau, uma dimensão mágica e sensível, vale destacar, ainda,
o fato de que os próprios Wu Ming têm hoje feito isso através da exploração de
um gênero literário chamado “não-ficção criativa” e no que eles definiram como
2.2. Inventar
Isso tudo, no entanto, não é suficiente. As três operações de sensibilização
acima descritas apresentam, todas, um problema : apoiam-se e permanecem
exclusivamente no campo discursivo do oponente. A alfabetização mediática
contra as fake news, o debunking mágico e a sensibilização do diálogo face a face,
embora necessários, inscrevem-se dentro do horizonte narrativo estabelecido
pelo outro, contribuindo, às vezes a dar-lhe ainda mais visibilidade. Elas não
podem ser, portanto, o único plano de ação contra a desinformação do populis-
mo-conspiratório-autoritário.
Além disso, é necessário deslocar o terreno do confronto discursivo com o
adversário e ocupar a esfera do debate público com novas pautas. Dito de manei-
ra simples e direta, é preciso inventar e fazer circular outras histórias. Histórias
que não tenham nada a ver com aquelas contadas pelo rival com quem se disputa
a ocupação do campo político. Soa banal e talvez um pouco meloso, mas é isso
que é preciso fazer : imaginar outros mundos, outras vidas, outras conversas,
outras formas de sociabilidade. “A imaginação no poder”. Era este um dos slo-
gans mais célebres do maio de 1968. Claro, diante do sucesso eleitoral de figuras
como Donald Trump e Jair Bolsonaro, difusores de fantasias conspiratórias sem
nenhum elo com a realidade, não se pode dizer que a imaginação não tenha
chegado no poder. Ironia do destino, diante da qual, no entanto, não se pode cair
no desânimo. Como o feitiço que se combate com outro feitiço, a imaginação do-
minante se enfrenta com novas imaginações. Aliás, que o se diga : toda disputa
política é, no fundo, uma luta entre imaginações.
Quem atua no campo da comunicação política strictu sensu e conhece o tra-
balho dos spin doctors e das equipes de consultores que preparam um candidato
para um debate sabe que este é um ponto central para que ele tenha um bom
desempenho diante das câmeras. É preciso sair do frame — isto é, da moldura
— narrativa traçada pelo opoente. O linguista George Lakoff escreveu um livro
fundamental sobre o tema. O título, Don’t think of an elephant (Não pense num
elefante), resume bem a tese do linguista : se você disser a alguém não pense
nisso ou naquilo, a primeira coisa em que a pessoa vai pensar é exatamente o
isso ou aquilo. Um pouco como quando se diz “não” a uma criança. “não pega
nisso”, “não pega naquilo”, “isso não se faz”, e, em vez de ouvir e respeitar a
335
Teatro Legislativo descreve uma experiência pioneira do que hoje tem sido chama-
do de “mandato coletivo” : a atuação de Augusto Boal (1931-2009), um dos maiores
teatrólogos do mundo, como vereador na Câmara Municipal do Rio de Janeiro no
início dos anos 1990. Como ele próprio resumiu, “na minha vida inteira sempre fiz
política (embora não partidária) e sempre fiz teatro. Foi isso o que me seduziu na
proposta : fazer ‘teatro como política’, ao invés de simplesmente fazer ‘teatro polí-
tico’, como antigamente”. Foram quatro anos de “imaginação no poder”, utilizan-
do as técnicas que o tornaram famoso para teatralizar os problemas nas próprias
comunidades que os viviam e, assim, criar um novo modo de elaborar leis. Desde
então, a experiência não teve continuidade nos caminhos e descaminhos escolhi-
dos pela esquerda brasileira e justamente por isso pode ser um elemento fecundo
para seus atuais impasses.41
O livro havia também sido publicado em 1998 em inglês, por Routledge, com
um título ainda mais impactante : Legislative theatre : Using performance to make
politics (Teatro legislativo : usando a performance para fazer política). Diversas fo-
ram as leis que a equipe de Boal escreveu e conseguiu aprovar, naqueles anos, a
partir desta prática. Leis que resolveram problemas concretos das comunidades
cariocas e que, ao mesmo tempo, fizeram com que as pessoas tomassem cons-
ciência e se aproximassem da política, tanto daquela em sentido amplo, quanto
daquela em sentido estrito, relativa às tomadas de decisão por parte de quem
governa. Pense globalmente e aja localmente, dizia-se algum tempo atrás. Acho que
foi isso que, entre tantas outras coisas, fez Boal com o Teatro Legislativo. Uma
crítica semiótica que queira ser mais “viva” do que nunca tem muito a aprender
com experiências como essa.
Fins
Esse texto começou com dois “fins” : um fim desconstrutivo, focado em uma
análise semiótica crítica dos encantos e do desmonte ratiosuprematista do popu-
lismo conspiratório do século XXI e um fim reconstrutivo, centrado em propostas
concretas de sensibilização e reinvenção das práticas discursivas que a ele se
opõe. Seu “fim”, no entanto, não pode ser um. Para uma reflexão como esta, os
“finais” hão de ser plurais e diversos. E eu, sozinho, nem consigo escrevê-los.
Nem me cabeira. Isso há de ser obra coletiva.
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341
Plan :
Introdução
1. Pars destruens — Desmontes
1. Encantos
2. Ratiosuprematismo
2. Pars construens — Recriar
1. Sensibilizar
2. Inventar
Fins
Recebido em 16/09/2021.
Aceito em 02/11/2021.