História Da Tecnossexualidade - Por Paul B. Preciado
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Paul B. Preciado.
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24/06/2018 HISTÓRIA DA TECNOSSEXUALIDADE - por Paul B. Preciado
Seguindo a intuição de Michel Foucault, Monique Wittig e Judith Butler, denomino uma
das formas dominantes desta ação biopolítica, que emerge com o capitalismo
disciplinar, como sexopolítica.² O sexo, sua verdade, sua visibilidade, suas formas de
exteriorização; a sexualidade e as formas de prazer normais e patológicas; e a raça, em
sua pureza ou degeneração, são três ficções somáticas poderosas que obcecaram o
mundo ocidental desde o século XVIII, chegando a definir o escopo de toda atividade
teórica, científica e política contemporânea. São ficções porque sua existência depende
do que Judith Butler denominou de repetição performativa de processos de construção
política.³
O sexo se tornou parte tão importante dos planos de poder que o discurso sobre a
masculinidade e a feminilidade e as técnicas de normatização das identidades sexuais
transformaram-se em agentes de controle e padronização da vida. Em 1868, as
identidades hetero e homossexual foram inventadas em uma esfera de empirismo,
classificação taxonômica e psicopatologia. Da mesma forma, Kraft-Ebing cria uma
enciclopédia das sexualidades normais e perversas em que identidades sexuais se
tornam objetos de conhecimento, vigilância e repressão jurídica.[4] No final do século
XIX, leis de criminalização da sodomia espalham-se pela Europa. Codifica-se
visualmente a “diferença sexual” como verdade anatômica. Concebem-se como
entidades anatômicas as trompas de Falópio, as glândulas de Bartholin e o clitóris. Uma
das diferenças políticas elementares do Ocidente (ser homem ou mulher) poderia ser
resumida a uma equação banal: ter ou não ter um pênis de um centímetro e meio no
momento do nascimento. Os primeiros experimentos de inseminação artificial foram
realizados em animais. Com a ajuda de instrumentos mecânicos, realizaram-se
intervenções no domínio da produção do prazer feminino; enquanto, por um lado, se
proibiu e se controlou a masturbação, por outro o orgasmo feminino foi medicalizado
e entendido como crise de histeria. [5] O orgasmo masculino foi mecanizado e
domesticado por meio de uma incipiente codificação pornográfica… A maquinaria
estava pronta. O corpo, dócil ou raivoso, estava preparado.
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FICÇÕES SOMÁTICAS HETEROSSEXUAIS. In: PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
Até o século XVII, a epistemologia sexual do regime soberano era dominada pelo que o
historiador Thomas Laqueur denomina de “um sistema de similaridades”; a anatomia
sexual feminina foi estabelecida como uma variação frágil, interiorizada e degenerada
do único sexo que possuía uma existência ontológica, o masculino.[9] Os ovários eram
considerados os testículos internos, e a vagina seria um pênis invertido que serve de
receptáculo para os órgãos sexuais masculinos. O aborto e o infanticídio, práticas
correntes daquele tempo, não eram regulados pelo aparato legal do Estado, mas por
diferentes micropoderes enconômico-políticos aos quais os corpos gestantes se
encontravam ligados em cada caso – a tribo, a casa feudal, o pater famílias etc. Duas
expressões sociais e políticas diferenciadas hierarquicamente dividem a superfície do
modelo “monossexual”; o “homem”, o modelo perfeito do humano, e a “mulher”, o
receptáculo reproduutivo. No regime soberano, a masculinidade é a única ficção
somática com poder político. A masculinidade (incorporada pelas figuras do rei e do
pai) é definida por técnicas necropolíticas: o rei e o pai são aqueles que têm o direito
de tirar a vida. A atribuição do sexo depende não só da morfologia exterior dos órgãos
sexuais, mas, e sobretudo, da capacidade reprodutiva e do papel social. Assim, por
exemplo, uma mulher barbuda capaz de engravidar, colocando uma criança no mundo
e cuidando dela, é considerada uma mulher independente da forma e do tamanho de
sua vulva. Nessas configurações somatopolíticas, o sexo e a sexualidade (observe que o
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próprio termo sexualidade não será inventado até 1880) ainda não equivalem a
categorias de conhecimento ou técnicas de subjetivação suscetíveis de ultrapassar as
segmentações políticas que separam o escravo do homem livre, o cidadão do
imigrante ou o senhor do servo. Isso não quer dizer que não houvesse diferenças entre
masculinidade e feminilidade, ou entre diferentes modos de produzir prazer sexual, e
sim que estes ainda não determinavam as cristalizações da subjetividade sexopolítica.
A mudança que vai dar à luz o regime disciplinar começa com a gestão política da
sífilis, o advento da diferença sexual, a repressão técnca da masturbação e a invenção
das identidades sexuais.[11] O auge dessas tecnologias rígidas e pesadas de produção
de identidade sexual será alcançado em 1868, com a patologização da
homossexualidade e a normatização burguesa da heterossexualidade. A partir de
então, o aborto e o infanticídio pós-parto estarão sujeitos à vigilância e à punição da
lei. O corpo e seus produtos se tornarão propriedade do masculino/marido/pai e, por
extensão, do Estado e de Deus.
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Se é verdade que a análise de Foucault até este ponto, embora nem sempre
cronologicamente exata, parece ter grande acuidade crítica, não é menor verdade que
ela perde intensidade à medida que se aproxima da sociedade contemporânea.
Foucault negligencia a emergência de um conjunto de profundas transformações das
tecnologias de produção do corpo e da subjetividade que apareceram
progressivamente com o começo da Segunda Guerra Mundial. Essas transformações
nos obrigam a conceitualizar um terceiro regime de subjetivação, um terceiro sistema
de saber-poder, que não é soberano nem disciplinar, nem pré-moderno nem moderno.
No epílogo de Mil platôs, Deleuze e Guattari, inspirando-se em Williams S. Burroughs,
usam o termo “sociedade de controle”¹³ para nomear este “novo monstro” da
organização social que é um subproduto do controle biopolítico. Acrescentando
noções inspiradas pela leitura de Burroughs e de Charles Bukowski, prefiro denominá-la
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Esses três regimes de produção de corpos e subjetividades sexuais não deveriam ser
entendidos como meros períodos históricos. O regime disciplinar não apaga as técnicas
de soberania necropolítica. Da mesma forma, o regime farmacopornográfico não
oblitera totalmente as técnicas biopolíticas disciplinares. Três técnicas diferentes e
conflitantes de regime de poder estão justapostas e atuam no corpo produzindo nosso
sujeito contemporâneo e nossa ficção somática.
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EPISTEMOLOGIA SEXUAL DO OCIDENTE. In: PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
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TECNOLOGIAS DA GUERRA. In: PRECIADO, Paul B. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. São Paulo: N-1 edições, 2018.
___________________________________________________
NOTAS
3. Ver Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York:
Routledge, 1990 [Ed. bras.: Problemas de gênero: feminismo e a subversão da identidade;
trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003].
4. Richard Von Krafft-Ebing, Psychopathia Sexualis: The Classic Study of Deviant Sex.
New York: Arcade, 1998.
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6. Michael Hardt e Antonio Negri, Empire. Paris: Exils, 2000 [Ed. bras: Império, trad.
Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001].
8. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus. Londres: Continuum, 2004, p. 157 [Ed.
bras.: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, trad. Luis B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34,
2010].
9. Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Geeks to Freud. Cambridge,
MA: Harvard University Press, 1992, pp. 63-108 [Ed. bras.: Inventando o sexo: corpo e
gênero dos gregos a Freud, trad. Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001].
11. Ver Thomas Laqueur, Solitary sex. A cultural history of masturbation. New York: Zone
Books, 2003.
12. Michel Foucault, Les anormaux. Cours au Collège de France, 1974-1975. Paris:
Gallimard, 1999, p. 53 [Ed. bras.: Os anormais, trad. Eduardo Brandão. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2010].
13. Gilles Deleuze, “Post-scriptum sur les sociétés de contrôle“, in Pourparlers. Paris:
Minuit, 1990, p. 241 [Ed. bras.: “Post-scriptum sobre a sociedade de controle“, in
Conversações, trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2013].
Fonte:
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