Pluraridade e Ambiguidade Na Experiencia Artistica
Pluraridade e Ambiguidade Na Experiencia Artistica
Pluraridade e Ambiguidade Na Experiencia Artistica
INTERPRETAÇÃO ARTÍSTICA •
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tra-se no cerne de uma reflexão que a terminologia hegeliana re-
colhe sob a designação de Estética*
«O que exigimos de uma obra de arte é que participe da vida,
e à arte em geral exigimos que não seja dominada por abstracções
como a lei, o direito, a máxima, que a generalidade que exprima
não seja estranha ao coração, ao sentimento, e que a imagem exis-
tente na imaginação tenha uma forma concreta». (Hegel, na intro-
dução à Estética ( 2 ) ) .
Porém, a exigência desloca-se ao longo do rigor e, como a
História é pródiga em inovações, também a ideia de rigor nos
oferece multifacetadas e fecundas conjecturas» Não já porque não
seja Belo o que o era anteriormente, mas porque a Beleza mesma
(«em si») se tornou corrosiva, perecível
E, como também afirma Hegel, o primeiro ponto de partida
para considerar a obra de arte é o existente, parece legítimo que
seja de uma relação forte (profunda), entre o sujeito fruidor e
contemplativo com o objecto artístico — que no dizer do cineasta
Luis Bunuel é sempre um «obscuro objecto do desejo» — que se
origina um novo regime de leituras e interpretações da obra.
Regime e interpretações que quebram as barreiras de relacio-
namento físico e psíquico com a obra de arte. Que, por isso, elimi-
nam distâncias, fazendo disso depender os encontros, as flutuações,
as derivas.
(2) Hegel, Estética, 1 volume, tradução de Gibelin, Paris, 1944 Naturalmente que esta
referência ao entendimento da Estética que Hegel perconiza não pode ser
entendida deslocada do contexto de Sistema em que a produção filosófica do
autor se organiza. Em sua opinião a actividade artística era uma das tarefas
mais importantes que se ofereciam «à Ciência», A actividade artística inscreve-
se numa acção de mais amplas consequências gnosiológi-cas: a libertação do
espírito, que nessa medida nos autoriza a supor uma infi-nitude. Esta referência
à obra hegeliana pretende ainda ajustar-se a este texto na medida em que ela
provoca, pela primeira vez, por razões intrínsecas ao próprio devir da
racionalidade hegeliana, um relacionamento da actividade criativa com a
História. R ecordemos ainda, a este propósito que a relação ontológica entre a
Arte e o Belo traduz-se na manifestação de uma realidade sensível «do em si e
para si. Na perspectiva do Sistema, convém contudo não esquecer (como de resto
aponta concomitantemente a tradição da exegese hegeliana) que a Estética só é
aprendida a partir de um «ponto»: Da «Ciência da Lógica».
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Estas características marcantes das estéticas mais actuais ( 3 ),
decorrem em boa parte (ainda que em muitos casos indirectamente)
de um conjunto de textos cuja redacção inicial remonta ao final
dos anos cinquenta, tendo sido agrupados sob a designação de
«Obra Aberta»» É seu autor um homem que a competência acadé-
mica e a indústria cultural tornaram famoso: Umberto Eco.
Semiólogo, sistematizador de conhecimentos que nunca até
então haviam sido reunidos, e sobretudo, intelectual dotado no
quadro do pensamento europeu contemporâneo, de rara capacidade
de problematização, daquilo que é, simultaneamente, mais indefi-
nível e mais fascinante para um esteta: as literaturas, as artes plás-
ticas, a obscura iconografia medieval.
Mas, o que diz, nas suas linhas gerais e estruturadoras, este
texto que é hoje uma referência obrigatória nos estudos estéticos?
É isso que iremos ver seguidamente, adiantando-se, desde já,
que é na apropriação dos acasos onde se cruzam as estruturas
formais e os programas poéticos, que reside uma das bases da
presente interpretação.
Lugar movediço da ambiguidade, do arbitrário, do possível
no campo de uma ordem que será sempre provisória e, quantas
vezes, jogando perversamente com um caos que matricialmente
a plasmou.
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«O tema deste livro — diz Umherto Eco — é a reacção da
arte e dos artistas (das estruturas formais e dos programas poéticos
que a elas presidem) ante a provocação do Acaso, do Indetermi-
nado, do Provável, do Ambíguo, do Polivalente».
A Identidade do Mundo
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Deste ponto de vista, a absorção de uma experiência emocional
concreta, desenvolvida a partir de uma relação fenomenológica,
ou de uma pura descodificação, vão surgir vários tipos de conscien-
cialização dos materiais» Seja ao nível plástico, todo um registo
de objectos, adereços, matérias, resíduos... Seja ao nível da com-
posição. Seja, ainda, no que respeita à especificidade de cada uma
das linguagens consideradas numa dada obra em apreço.
Se as contingências de gosto são, sobretudo', contingências
históricas e sociais, o que se trata na perspectiva desta teoria de
aqui nos ocuparmos, é da elaboração de um modelo adaptável aos
vários tipos de deslocação histórica, capaz de acolher a dimensão
inventiva das subjectividades pessoais.
Um modelo onde, partindo de alguns aspectos considerados
por Etwin Panofsky ( 4 ) , que Eco convoca, sejam contemplados
os problemas que a arte propõe, mais ainda do que aqueles que
nela são eventualmente resolvidos.
Digamos que se trata de uma teoria da inquietação (o que
não quer dizer que ela seja forçosamente inquietante...), no duplo
sentido de uma turbulência criativa, e da repercursão na estrutura
intelectual e psíquica do sujeito a quem a obra se destina.
Embora na publicação inicial destes textos haja uma certa
coincidência histórica com as mutações introduzidas pelo «Estrutu-
ralismo» no pensamento filosófico contemporâneo, convém sublinhar
que o próprio Eco recusava, então, uma «colagem» pura e simples
a este tipo de fenómeno cultural. «O modelo de uma obra aberta
— escrevia ele ( 5 ) — não reproduz uma suposta estrutura objectiva
das obras, mas a estrutura de uma relação fruitiva».
Abertura, Viagem
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de vista cultural, invenções recentes. Mesmo quando La i?oc/ie-
foucauld diz, evidenciando uma das suas máximas, que «nem o sol
nem a morte podem olhar fixamente», ele parece desejar que ao
longe, no horizonte, o nosso olhar seja atraído para uma perpétua
desfocagem.
Ora a abertura, é já um saber acerca dessa desfocagem. Por
outras palavras, é a passagem da normatividade descritiva, à criação
de um olhar, de um pensar, dirigidos para o interior de um objecto
que nos agrada, comove, ou de algum modo perturba. Essa per-
turbação intervém na nossa relação com o real, e também nessa
parte surreal de nós próprios, onde habitualmente nos traímos, o
inconsciente, estruturado como uma linguagem.
Henrich Wõtfftin nos seus «Princípios Fundamentais de His-
tória de Arte», quando enumera os cinco conjuntos de categorias
aos quais se liga o desenvolvimento da arte, refere um deles ( 6 )
como a passagem da «forma fechada à forma aberta». Nesta mesma
obra, ao abordar, na introdução aquilo que designa como a dupla
origem do estilo, identificando-o como uma expressão, nota que,
embora não seja o temperamento aquilo que faz a obra de arte,
ele forma, no entanto a «matéria do estilo» que, por sua vez, com-
preende um ideal particular de beleza. Para tomarmos outra refe-
rência comparativa, o artigo de Hubert Damisch, «Artes» na Enci-
clopédia «Einaudi»:
«... o conjunto, o campo, ou como mais adiante se dirá, a
teoria das artes, no sentido lógico do termo, apenas pode constituir
um tema (ou um conjunto de temas) enciclopédico na condição
de admitirmos que o que se anuncia com este título possa fugir
pela tangente ao círculo da paideia, ao mesmo tempo que aos parâ-
metros do discurso enciclopédico; ou pelo menos possa transgredir,
romper o quadro num ponto preciso, a fim de manifestar simulta-
neamente a sua função ideológica de limite, de remate. E não é
necessário reclamar-se da aspiração para o infinito que caracteriza
a noção romântica de arte, nem referir-se à contestação dadaísta
ou aos actuais movimentos anti-culturais, para reconhecermos que
toda a actividade, todo o trabalho, e por maior razão, toda a fruição
que podemos etiquetar como artística, nos remete, até nas suas
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figuras mais perfeitas, melhor acabadas e, por uma fuga tangencial
ao âmago menos controlável da cultura» ( 7 ).
Com estas observações pretende-se notar que a teoria de Eco
concorda com as análises do fenómeno artístico que da sua génese
sabem algo de fundamental, e como tal fundador, das novas fron-
teiras do discurso historiográfico, crítico e estético. A arte enten-
dida a partir de uma deslocação constante sobre si própria, espécie
de ilusão, simulação de um movimento vertiginoso, onde cabem as
velocidades mais rápidas de uma civilização que se perde, ou se
encontra, por razões de dominação discursiva. Um ritual, a expo-
sição solene de conceitos, às vezes uma retórica, a constante evoca-
ção do poder legitimador e formador da palavra.
A arte desmultiplicada em representação virtual, homenagem,
monumentalidade, fuga, ou contestação dessa eloquência unívoca
dos sentidos da história.
A perspectiva de Umberto Eco autoriza-nos a raciocínios deste
tipo onde as tematizações adquirem, frequentemente, os contornos
de uma complexidade difusa. O facto da arte não ser mais abran-
gida por um projecto enciclopédico, capaz de a integrar numa lógica
da ordenação (e às vezes até da descrição) do Saber, dá conta,
testemunha, uma tal complexidade.
Trata-se de «estabelecer portanto, — escreve Umberto Eco —
que o artista contemporâneo, ao dar vida a uma obra, prevê entre
esta, ele próprio e o consumidor uma relação de não univocidade
— e a descrição que dele oferece, ou entre a sua imagem do uni-
verso e as perspectivas que é possível traçar sobre esse universo^ —
tudo isso significa absolutamente o desejo de procurar, a qualquer
preço, uma unidade profunda e substancial entre as pressupostas
formas da arte e a pressuposta forma do real» (in «Obra Aberta»).
Aspectos como a clarificação cultural e histórica do processo
de criação, os enigmas do sujeito criador, as vertentes psicanalíticas,
os contactos sociais onde cabe a marginalidade e a descriminação
(onde encontramos o marguês de Sade e L. F. Céline como dois
exemplos notáveis) ( 8 ), operam, forçosamente, na elaboração deste
tipo de análises.
(7) Damisch, Hubert, Enciclopédia Einaudi, III vol., ed. port. INGM,
Lisboa, s/d.
(8) Sobre a peculiaridade do caso Sade, e sem prejuízo de uma mais
detalhada análise, parece-nos de reter a convicção sadiana do poder criador do
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O termo viagem, com a sua riqueza patrimonial, com os seus
percursos possíveis, da paideia às contemporâneas errâncias de Jorge
Luís Borges ( 9 ) , ou de Raymond Rousseí com as suas «Nou- velles
Impressions d'Afrique», é particularmente adequado ao encontro, à
detecção desta não univocidade. A abertura processa-se sempre em
direcção a um infinito que só a mística ou a metafísica das viagens
é capaz de recobrir;
mal, para o qual o autar convida os seus leitores segundo um ideal de* algo-
lagnia que síó poderá ser alvo de exclusãío moral e política. (Gilberi Lély,
«Sade», Paris, Gallimard, 1967). Como refere Pierre Klossowski, em «Sade meu
próximo» (p. 1IO6 da ed. port, Moraes, Lisboa s/d), esta situação limite de mar-
ginalidade e descrimmação evidencia-se numa prisão inconturnável: «Prisio-
neiro em nome do rei; depois prisioneiro da lei pela vontade do povo, mas
muito mais prisioneiro em nome dia razão e da filosofia das luzes, por ter
querido traduzir nos termos do senso comum o que este senso comum deve
calar e abolir para permanecer comum, sob pena de ser ele próprio abolido».
Já no que respeita a L. F. Cêline, este carácter extremo ligou-se ao
holocausto da «solução judaica» (pensamos, obviamente, em «Bagatelas para um
massacre»), que não pode ser compreendido se desligado de uma inquietante
procura de si, sujeito em deriva no íntimo da experiência literária que nenhuma
restrição existencial (ou cultural) pode silenciar. A escrita, em Cêline, como
dever e necessidade, efeitos de uma ética que não admite recalcamentos, e paga,
por isso, um tributo elevado.
«Não devemos querer mal a ninguém. Gozo e felicidade de tudo. É, de
facto a minha opinião. De resto, quando nos começamos a esconder dos outros
é sinal de que temos medo de nos divertir ao lado deles, E isto só por si é
já doença. O que seria preciso é que nós soubéssemos qual o motivo de teimar-
mos em não curar a nossa solidão» — escreve Cêline em «Voyage au bout de
Ia nuit» (trad. port. Aníbal Fernandes, Ulisseia, Lisboa s/d).
Pensamos ainda que há que observar, com Julia Kristevtà, que a revolução
celineana reside na extensão dos limites do significável («Actualité de Céline»,
in Tel Quel, 711/713, P. 45|/IS2).
(9) Sobre a peculiaridade desta referência, permito-me remeter para um
outro texto já aludido e realizado no âmbito do presente trabalho. «Jorge Luís Borges
— A Biblioteca Eterna»*
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Ele tende a ver, aliás na esteira de um outro esteta a quem
dedicou muita atenção — Luigi Pareyson («Estética e Teoria da
Formatividade») — o objecto artístico como algo a ser acabado e
concluído de diversas maneiras. Trata-se, ainda, de ver nessa deli-
berada inconclusão um objectivo do artista. A intencionalidade
expressa de um epílogo não encerra em si uma finitude. As con-
clusões, um encerramento, enfim a operatividade estética, são do
domínio da História.
Pensamos, deste modo, em obras que se revivem. Isto é, que
se vivem não uma, mas duas, três, ou até inúmeras vezes. Tantas
quantas forem capazes de construir uma inter-acção de perguntas
e respostas, de alimentar a perplexidade. É neste sentido que a
estética, como questão dos significados da arte, directamente se
relaciona com uma «axiologia fundamental». «Escrever significa
fazer estremecer o sentido do Mundo» — palavras de Roland
Barthes, que Umberto Eco aliás escolhe citar.
É o próprio Umberto Eco quem nos chama a atenção para o
facto de, sem o conceito de teoria da formatividade, formulado por
Pareyson não ser possível chegar à formulação da «obra aberta».
Ora, Pareyson, considerava toda a actividade como uma capa-
cidade inventora de formas dotadas de uma autonomia. «Na arte
— escreveu este autor — a pessoa forma simplesmente por formar,
e pensa e age para poder formar». É Umberto Eco quem, num
estudo (1955) cita esta frase, acrescentando ser o conteúdo de
qualquer formação específica a pessoa mesma do artista.
>Note-se como esta dimensão pessoal tende a inscrever a atmos-
fera biográfica no tecido cultural dominante, fazendo^ desse tecido
dominante uma narração outra, articulada numa rede de existências
próprias. A da obra, e a dos seus interlocutores, quantos deles
cedendo uma parte de si próprios ao encontro com uma determinada
obra. É nesta acepção que uma obra de arte se pode tornar im-
piedosa, sacralizadora, aliciante. Por isso ela pode devastar a cons-
ciência, provocar adoração, arrastar-nos para o interior das suas
simbologias. Barthes afirma isto de um modo notável, nos «Frag-
mentos de um discurso amoroso», quando escreve: «Dois pode-
rosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia, subli-
mar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para «criar
uma multidão de belos e magníficos discursos») e o mito romântico
(produzirei uma obra imortal ao escrever a minha paixão)».
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O intérprete pode ter aqui a acepção daquele que sabe, tal e
qual, um texto, uma frase, a forma exacta de uma ideia, o que deve
ser dito, manifestado, pronunciado. Enfim, aquilo que deve ser
repetido num desejo de fazer despertar — as consciências ou os
inconscientes, consoante as leituras — uma acção individual O
intérprete pode também ser o senhor de um anonimato.
Quer os aspectos ditos formais («a forma como um campo
de possibilidades» de que Eco nos dá conta), quer os aspectos
ideais, ou até em certos casos ideológicos, implicam, nesse espaço
divergente a que os linguistas chamam circulação da mensagem,
uma solidão.
Não, forçosamente, a mesma solidão nostálgica patenteada
num quadro como «A Morte de Marat», de Jacques Louis David
(1793) ( 1 0 ), ou a solidão demencial dos coloridos de Van Goghf
em Aries ( 11 ). Todavia, o sentir intacto de algo que nos parece
ser excessivo, seja uma iconografia ou um apelo que a palavra
dificilmente suporta. Por exemplo: «não procures compreender
este fenómeno fotográfico, a vida» (Marguente Duras, em «O Ho-
mem Atlântico»). Coisas que levam para longe, a distância pro-
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clamada por Álvaro de Campos ao vislumbrar «um Oriente ao
Oriente do Oriente» (12).
São referências desta natureza que podemos ter presentes
quando Eco trata do movimento e do convite a fazer a obra.
Um dicionário poderá ser tanto mais aberto quanto mais ardua-
mente for manuseado, mas não é uma obra. Justamente ele não
se oferece à disponibilidade de um jogo em que toda a literatura
investe» Ecot para documentar esta situação vai escolher «Fin-
negans Wake», de Joyce.
«Cada obra de arte — escreve Eco — ainda que produzida
em conformidade com uma explícita ou implícita poética da neces-
sidade, é substancialmente aberta a uma série virtualmente infinita
de leituras {possíveis, cada uma das quais leva a obra a reviver,
segundo uma perspectiva, um gosto, uma execução pessoal»»
Mas, esta execução pessoal releva sempre de um fazer, fabri-
cação de leituras e interpretações. Em caso algum, mesmo nos
num ambiente desta natureza. Símbolos de uma gravidade solene, mas sem
excesso de teatralidade, dir-se-ia antes uma solenidade que só certas mortes
infundem por causa de um respeito catastrófico (gerador de pânico). No espaço
inferior da tela David assinou e dedicou a obra «A Marat». Não será despropo-
sitado, em nossa opinião, ver aí um certo ideal da Revolução Francesa, que
assim se extingue, mas no entanto, por causa de uma estética, se perpetua, ou
memoriza.
(12) «Van Gogh o suicidado da sociedade» (trad. port. de Aníbal Fer-
nandes, Hiena Editora, Lisboa s/d), é uma obra de Amtonin Artaud que dá
uma leitura impiedosa das relações que Vicent Van Gogh manteve com a
sociedade» É uma tomada de posição estética face à obra plástica do artista que
se viu encarecerado num espaço psiquiátrico, às relações entre razão e loucura,
à lucidez do génio criador e suas obsessões.
O texto de Artaud, como tem sido notado designadamente por Philippe
Sollers («La pensée émet des signes», in L'écriture et 1'experience áes limites»,
Ed. Seuil, Paris, ( 1(968), expressa uma fatalidade que aproxima a criação do
génio e da morte. Contribuição que se nos afigura importante para uma análise
da pintura de Van Gogh, este texto constitui-se como uma escrita cujos os
traços a ligam ao delírio (onde o humano como categoria ética tem um lugar),
e à criaçãio pictórica, no sentido em que a história não é, nas palavras de
Artaud, «a história das coisas pintadas».
«Penser, ne peut être autre chose pour Artaud que 1'acte par lequel nous
voulons être notre pensée, c'est-a-dire Ia multitude pressé de ses signes, leur
comprésension et leur excès, tout ce que nous ne sommes pas encore dans 1'ordre
de Ia pensée limitée et particulière». Philippe Sollers (ob. cit. p. 101).
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limites de um abandono, ela poderá ser percebida na perspectiva
de uma capitulação*
Escolha e Entropia
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Fonte, sinal, mensagem, destinatário, aparecem-nos na trama
complexa de um imaginário que sabe como as palavras, as imagens,
podem suscitar sucedâneos. Sem sabermos da possibilidade de
alteração dos códigos, dificilmente chegaríamos a compreender como
se desencadeiam os fenómenos de preferência, a inculcação de
objectos que tornam a cultura num sistema de vasos comunicantes.
Numa comunicação apresentada ao XII Congresso Interna-
cional de Filosofia, em Veneza (1958), Eco introduziu pela pri-
meira vez este problema da obra aberta. Falou então de uma alte-
ração da sensibilidade, e preferiu discutir as poéticas aos juízos.
Exemplos colheu-os em Kafka, nos «mobiles» de Catder. Aquilo
que subsiste a um objecto é um «campo» de interpretação por
ele criado.
Proponha-se então o discurso estético como aquilo a que Kafka
chamou «o efeito de um rosto pacífico», nos Diários, Um discurso
que vem de outro discurso precedente, menos calmo, O esteta é
alguém que, à semelhança do que Kafka afirma nos Diários, aqui
se propõe como uma «pessoa desconhecida», que ainda ninguém
observou. Ele significa «a voz de Deus vinda de uma boca
humana» (13),
Analogamente, os exemplos referentes a Catder, poderiam ser
substituídos, na perspectiva de um enriquecimento da análise, por
outros colhidos nessa forma muito peculiar de gestualismo que o
artista norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) praticou com
excepcional capacidade de mobilização intelectual. Não é por acaso
(13) As vozes têm, como consegue precisar Roland Barthes, «um grão»,
um modo próprio de vibrar «A voz que fala» em Álvaro de Campos (para
recorrer a um termo de Eduardo Lourençp em «Pessoa Revisitado», Editorial
Inova, Porto, s/d), tem, neste verso do poema «Opiário», que o heterónimo de
Pessoa dedica a Mário de Sá-Carneitos o carácter de uma nostalgia visionária.
É, nesta circunstância, de um motivo ideal para a existência que se trata.
Motivo que transcende as categorias do estar, alterando o presente que se ins-
creve sob o verso de Álvaro de Campps. «A vontade de ser — como escreve
H, Lourenço — dos mortos sonhos imperiais que navio algum entrando no
píorto cheio de sol onde ainda estão as naus para os que «vêem tudo o que lá
não está», pode ressuscitar só a nostalgia deles feita alma, transmutada em
saudade do inacessível (...)».
Toda a experiência de criação estética arrastar-nos-ia, nesta acepção para
um ver o que lá não está, porque existe dissimulado; descoberta ritual onde o
«inacessível» por vezes se decompõe em formas diversas de consciência.
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que Pierre Restamy afirma num texto inserido no catálogo que o
Centro Georges Pompidou editou em 1982, por ocasião de uma
das maiores exposições 'de sempre consagradas ao artista, que é
determinante na sua obra a «escolha de um método que corresponde
a uma radical opção pragmática, a uma total objectivação do acto
de pintar».
«A sugestão simbólica — escreve Eco — procura favorecer
não tanto a recepção de um significado preciso... mas um halo de
significados possíveis, todos igualmente imprecisos e igualmente
válidos, conforme o grau de perspicácia, de hipersensibilidade e
de disposição sentimental do leitor».
Talvez por tudo isto as paixões, sempre numa acepção român-
tica (14) sejam sectárias. Elas dispõem o sujeito a uma legitimação
onde é válido tudo aquilo que for dito tendo em vista um fim de
desfecho imprevisível. Porque quanto mais a obra é «aberta», mais
ela dá conta — isto é, anota, reinscreve, rasura, denega, corrige —
a pluralidade do Mundo.
(14) Kafka, «Diários», 1910^1023, p. 221, trad. port. M.a Adélia Silva
Melo, Difel, Lisboa s/d.
(15) Uma aproximação possível a esta ideia pode-se, por exemplo, docu
mentar com a obra de Rilke: «Porque nòs} ao sentir, evaporamo-nos» («As
elegias de Duino», in segunda elegia).
Mas, trata-se ainda — e sempre? — da questão da desordem no interior
do sujeito, que toca naturalmente os paradigmas do universo romântico numa
acepção mais geral (aliás parece-nos que num autor diverso, o português Teixeira
de Pascaaes, algo de semelhante se pode demonstrar, o que fica, no entanto,
para outra ocasião).
Somos pois inclinados a ler o termo paixões como parte integrante de
uma conflitualidade amorosa, como elemento distintivo das dinâmicas criativas,
dos seus rastos psicológicos-psicanalíticos, algo próximo dos jogos estético artís-
ticos onde coincidências e divergências por vezes confundem biografia e bliblio-
grafia.
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ABSTRACT
This work is enclosed within the scope of an investigation on the aesthetics
and the philosophy in Teixeira de Pascoais, a Portuguese poet and essayist,
1877/1932. Its purpose is therefore to discuss a reference which can already be
considered as a «classical» study on today's aesthetics: «Open Work» by Umberto
Eco. Two editions of it were used (a French one — Seuil, '1965 and a Brazilian
one — Editorial Perspectiva, 1974) .
A critical rereading of the text by Umberto Eco is proposed by connecting
it with the statute of he artisic piece and wiih its hermeneutics. The aspects
analysed are the following:
— the identity of the world;
— opening and trip;
— the creator, the interpreter and solitude
— choice ad entropy.
RÉSUMÉ
Cet ouvrage se range dans le champ d'une recherche sur l'esthétique et la
philosophie dans Teixeira de Pascoais, un poète et un essayiste portugais
l877/1952. Son but étant donc de discuter une référence que l'on peut considérer
déjà comme une étude «classique» d'esthétique contemporaine: «L'Oeuvre
Ouverte» de Umberto Eco. Deux éditions ont été employées à cet effet (l'une
française, Seuil, 1065 et l'autre, brésilienne, Edit. Perspectiva, 1074).
Une relecture critique du texte de Umberto Eco est proposée et son arti-
culation est fait avec le statut de l'ouvrage artistique et de ses herméneutiques.
Les aspects suivants ont été analysés:
— l'identité du monde;
— ouverture et voyage;
— le créateur, l'interprète et la solitude
— choix et entropie.
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