Schaden 1958 Kaingang e Xokleng
Schaden 1958 Kaingang e Xokleng
Schaden 1958 Kaingang e Xokleng
Revista de Antropologia
'. v. 6, n. 2, p. 105-112
XOKLÉNG E KAINGÁNG
Francisco S. G. Schaden
Essa afirmação se bas ,eia nos se·guintes fatos. Muito tempo antes
de se pacificarem os Xokléng, conseguiu-se fundar o aldeamento dos
Kaingáng de Palmas. Apesar disso, continuavam em tôda aquela região
os assaltos dos índios a sítios habitados por gente civilizada. Em geral, .
flcusavam-se os Xo -kléng da autoria dêsses atos, o que, ent1-etanto, era
injusto e não correspondia à realidade, como se depreende do testemu-
nho de Frei Solano Schmidt, missioná1-io franciscano que por longo tempo
exerceu o seu ministério nos sertões do oes .te de Santa Catarina e do
Paraná.
Escreve o missionário: ''No que respeita à ''mansidão'' dos Coroa-
dos de Palmas, diga-se que ela não é lá grande coisa. A êles pr•ecisamen-
t e se atribui a maioria dos assaltos que ocorrem no campo de Santa
Catarina e na estrada de Curitiba a Blumenau. E, como eu mes1n .o pude
verificai-, é fato verídico qiue os moradores dos toldos d.e Xapecó, For-
111igas e Xapecàzinho des -aparecem anu almente p or alguns meses, sem
que pessoa alguma descu b-ra O· r·umo , que tom a ram . E daí em b:r.eve ou-
v·e-se então falar de assaltos de bugres, de assassínios e pilhagens, até que
uma certa manhã a. fumaça que se levanta dos rancho,s indica aos . vi-
z.inhos que os índios -~loltaram, da noite p ara o dia, d,e, sua longa e: mis- -
t eriosa excursão. Não , denunciam nunca O·S verdadeiros objeti_vos de
suas viagens; sàmer1te depois de um interval o de vários meses é que
oferece -m à venda uma série de objetos manifestamente roubados'' 1 •
O mesmo au ·tor· narra o seguinte epis,ód'io: ''Conta :ram-me uma
h istória que se passou há un1.a série de anos e que atesta as correrias
dcs Cc roados. Um fazendei1·0 de Guarap ·uava, chamado Pedro Lustosa,
a irigia-se, com uma grande tropa, do campo de Santa Catarina ao lito-
ra l . Dura 11.te a viagem foi ass.altado por bugres. O guia, que andava na
dianteira , foi morto a flechadas juntamente com o seu animal, e assim
imobilizou --1 se na estreita picada a longa fila d.a tropa. Sôbre Pedro · Lus-
t osa e seus companhei1·os derramou-se uma chuva de flechas, e· em se-
guida os índios saíram do , mato com as suas clavas e, apesar de deses-
perada resistência, c;s homens, um depois do outro, foram caindo de
seus cavalos, vitimados pelas flechas. Pedro Lustosa, que for fim fic·ara
como único sobrevivente, confiava . em seu vigoras .o cavalo e deu-lhe as
es poras, conseguindo, assim, rompeT as fileiras de seus inimigos. Passou
com o animal por cima de um . índio que se lhe opunha no caminho, e a
out ro, que tencionava pegai· as rédeas do cavalo, derrubou com un1a
coronhada. Conseguiu fugir, embora perdendo a tropa. Durante algun1
te mpo P •edro Lustosa permaneceu no campo de Santa Catarina, par a
de p ois vol t ai· a Guarapuava, passando por Palmas. Qual não foi o seu
ass am bro qua11do en1. Palmas deu com o índio a que derrubara com a
cor c11h a, sem , 110 entanto, lhe esfacelar o duro crâneo. Mas o seu es-
p ant o ficou ainda maior quando o índio o enfrentou no meio da rua e,
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apontando pa1·a a cicatriz que levava na testa, lhe disse: ''Senhor Pedro,
esta marca lhe vai custar caro''. Quando daí a muitos anos , no ten1po em
que p,assei em Palmas, morreu Pedro Lustosa, o índio, que eu mesmo
conheci muito bem, ficou francamente ft1rioso ·, dizendo a um conhecido:
'·Agora morreu Pedro J...,ustosa, sem que eu pudesse matá- ,lo. Qt1an t as
,1ézes não fiquei à esp1·eita dêle, mas sempre acontecia algum imprevisto,
de sorte que me escapava, e agora êle está morto e eu 11ão me pud ·e
vingar."'' 2
Frei Sol ano cita outros e.asas do gên ,e1·0. l\1as êss .es fat os isolados
evidentemente não se p1·estam para caract·e r izar a índole de um grupo
1c u dun1a tribo inteira . De out1·0 lado, é verdade que os Kai r1gáng dos
campos de Palmas, e tam bétn de outras regiões do Brasil Meridional,
por muito tempo não , logra1·am d·esfrutD.r a confian ça dos fazendeiros
e outros moradores. N atural111ente não se pode acreditar e111 tôda s as
•.:i.cusações qt1e lhes e1"am feitas pela impre11sa e pela voz do povo em
geral, e muit .és crueldades praticadas por êsses índios não passavam, é
claro, de reação muito natural à manei1·a pouco decente e po ·uco ht1ma-
na com que e·ram tratados. Assim mesmo, parece fora de d{1vida que
os Kaingáng se dis ,tinguiam por um caráter i1npulsivo e violento.
Antes de nos referirmos a um ou outro traço geral da índole dos Xo-
l::léng, parece oportuno , dar algumas informa;;ões sumárias sôbre a dis-
·~1·ibuição geográfica dêste grupo.
Na época do descobrimento, o litoral catarir:en::e era ocupado ·, em
tôda ou quase tôda a sua ex·tensão, pelos índios Karijó, do Grupo Gua-
1 aní. Em muitos pontos da f.aixa litorânea dêsse Estado, desenterra-
ram, ..se, aliás, igaçabas ou urnas funerárias q,ue parecem datar do tempo
dos Karijó. O Pe . Schulz, vigário de São Ludgero (Braço do Norte),
explorou v,ários cemitério ·s de índios, recolhendo algum .as das urnas en-
contradas ao museu do colégio paroquial. O fato d·2 se descobrirem
semp ·re várias urnas no mesmo sítio atesta que os índios em aprêço le-
\7nvam uma vida relativamente sedentária.
Na Serra do · M .ar ·, porém, e nas terras . que se estendem para o o·este
- e para o norte, pelo território paranaen~e a dentro , dominavam os
Xokléng e grupos afins, conhecidos em seu conjunto sob a denominação
de Botocudos de Santa Catarina. Pelo menos fo-ram en':ontrados como
senho ·res da região, qu .a·ndo, há c;ento e tantos anos , se iniciou a coloni-
z2ção estrangeira no interior catarinense. Hoje em dia já não se conse-
gue determinar, com relativa exatidão, a linha divisória entre o habitat
dessa tribo e o dos Guar ·aní. E' possível que a localização de igaçabas
ainda venha a elucidar em parte o problem'Q .. Afirma-se que foram des--
cobertas urnas de barro também nos arredores de Tubarão. O próprio
11ome da cid .a·de e do município deriva do apelido de um grande chefe
Karijó. Mais para o, norte, todavia, a faixa de ocupação Guaraní era
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muito mais estreita. Nessa parte (ao que nos consta) os sítios . em que
se encontrara ·m igaçabas ficam todos : a pequena distância do mar. E'
notório que os Botocudos não usavam urnas funerárias.
Sô bre as ho ,rda ·s meridionais dêstes últimos, que avançavam pelas
terras · do Rio , Grande a dentro, estamos muito mal informados -. Um
elos poucos autores · que a ela5 se referem é Reinhold Hensel 3 , que es-
creve o seguinte: '~ o Norte , da Província ( do Rio Grande), i. é, ·na cha-
n1ada serra ou no planalto e nas extensas flor -estas do terraço que me-
deia entre êste ,e a planície, havia Botocudos, que se distinguia ,m dos Bo-
tocudos . mais setentrioneiis por terem no lábio inferior apenas um · pe-
queno orifício sem bo :toque · de madeira e que utilizavam para assobiar.
Eram muito temidos por causa de sua braveza ,e ainda importunavam
com freqüência o-s primeiros colonos alemães . na mata virg ,em. Hoje pa-
recem estar inteiramente repelidos, limitando-se às Províncias . do Pa-
raná . e de Santa Catarina, onde so-b ·retudo a colônia de i Brusque continua
E·xposta a suas rapinagens .''.
E logo adiante ·, passando a tratar dos Kaingáng, que na época já
constituíam o contingente indígen .a: mais imp -ortante do território gaú-
cho: ''No Rio Grande do Sul parecem ter vindo estabelecer-se apenas
em época relativamente · recente, porquanto nas regiões por êles habita-
elas atualmente, não se encontram quaisquer nomes de localidades to-
mados ao seu idio ,ma. Parecem ter vindo dos lados do noroeste, talvez
da Província do Paraná -e, em luta com os já mencionados Botocudos ,
foram impelindo a êstes para a frente, fazendo-os entrar finalmente na
Província de Santa Cata -rina, em parte por certo com o apoio do go-
vêrno , brasileiro, q1ue: os utilizava como instrumento no co,mbate àquele3
perigosos saqueadores''.
Os Xokléng eram índios da mata, que se dirigiam para os faxinais:
vizinhos somente no inverno, quando estav .am maduros os pinhões .. De
modo geral, a zona dos campos, até as margens ou pro -ximidades do Rio
Paraná, constituía o domínio dos . índios Kaingáng. Êstes, q ue parecem
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colonos nas zonas fronteiriças dos dois domínios. Baseando-se nas in-
dic ·ações dos moradores mais · antigos de Blum enau, o Dr. Hugo Gensch
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sião de ser em retiradas da mata virgem, variava entre seis e doze anos ,
ap1·oximadamente. Possuímos informes interessantes, ,embora escassos,
sôbre algumas dela~: as, mais c·onr1ecidas ~ão os filhos adotivos dos Dres.
Weigand e Gensch e do Padre Topp, bem como um índio de nome
Gregório, educado pelos Frades Franciscanos de Blumenau, e outro, Dil-
ly N uklé, que freqüentou o Ginásio Catarinense, de Florianópolis.
A pacificação da tribo dos Xokléng data d·e Setembro de 1914. En-
tre os órgãos da imprensa de Blumenau destacavam-se até então o jornal
''Der U rwaldsbote'' em sua atitude hostil aos silvícolas, notici2 .ndo com
grande indignação e d·e maneira espalhafatosa as incursões realizadas na
colônia. Estabelecido, porém, o contacto entre o S·erviço de · Proteção
Bos Índios e a ''indomável'' tribo, felizmente não se deu mais nenhum ca-
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so dessa ordem que pudesse ser explorado pela imprensa. E' ve;. dade
que a tarefa dos funcionários do Pôsto · Duque de ·Caxias, aldean,ento
fundado para os Xokléng, c·ontinuou sendo bastante penosa por vá1·ios
anos, n1as com o tempo os índios . adotaram um regime d·e vida de tra-
balho e produção.
O Dr. Simoens da Silva, qu ·e fêz uma visit2 . ao pôsto há uns trinta
.anos. escreve: ''ltsses í11dios, até então, alime11tavam-~e, exclusivam~nte,
de caça, de pesca :i, e de frutas: começando, dep ·ois do fL1ncionamento
dêsse centro de amparo aos m ·e·smos, a plantarem pa1·a cclhe1· e a pres-
ta1·em 1·eais serviços ao lugar, então, escoll1ido para tal fi1n. Indepen-
dente da abertura de picadão e estradas, que põem em com1.1nicaçã0 as
diversas loca-lidade ·s do Pôsto, tratam do gado vacum e ovino e do~ ga-
lináceos e palmípedes, com qt1e, em dias determinados da se1naná'., se
alimentam, bem assi1n, cultivam:, já, em não pequer1a ·escala: mandioca .
e o aipim, batata inglêsa e doce, cana de açúcar, milho, feijão , ,2rr oz ,
amendoim, abóbo1 ·a, inhame, taioba e alguns legumes. Também con-
tinuam a alimentar-se muito com pinhões, bananas, lar ,anjas e tanger i-
nas''li.
Entre os Kaingáng e os Xokléng 11ão havia rela.ções pacíficas. Em
vista das constantes lutas entre as dife ,rentes horda ·s da t1·ibo dcs Kain-
gáng, êsse fato poderia ser explicado simplesmente como rivalidade en-
tre duas hordas Kaingáng. Todavia, deve -se notar que, s2gundo ...; t ·es-
·temunho de vários al1tores, os próp1 ·ios Kaingáng não recon!1ecém os
Xokléng como grupo pertenc ·ente a sua tribo.
Os Kaingáng dis r:eram a Baldus que co:::tl1mam lutar d·e dia , enquanto
as excursões guerreiras do Xokléng se realiza ·riam na escuridão da noite.
~~ as fontes . consulta.das, não encontr·ei, porérn, info ,rmaçõe ,s sôbr~ êsJ:e
ponto. Em todo caso, é certo q.ue os assaltos dos Xoklé11g contra .clS mo-
radas de colonos se deram de dia. Tenho no ,tícia de um ún ico ataque
11oturno., efetuado contra uma turma de trabalhadores de ·estrtJ.da de
ferro ( e rela .tado po ,r Erich Bendrath); mas, a julgai· pela região -em que
se verificou a ocorrência, é muito mais provável que seus aut íJres te-
nham sido I-Caingáng.
Difere11ça importante entre os dois grupos é o batoque labifil, usado
sàmente pelos ho ·m·ens da tribo dos Xol{léng e não pelos Kaingáng. A
[)sse aderêço d evem aquêles a denominação de Bo ·tocudos, enquanto os
Kaingáng se tornaram c·onhecidos con10 Co ,roados por cortare1.n o ca-
belo em forma de tonsura, costume em qu•e, aliás, não se distinguem dos
Xokléng.
A festa de iniciação tribal, em que o jovem é admitido n& catego-
ria do ·s adultos, recebendo o seu p1·in1,eiro botoque, é o acontecimento
mais importante na vida social dos Xokléng. Entre os Kaingang não
se realizam ritos d·e iniciação e não é provável, tampouco, que essas
112 F1·a11cisco S. G. Scha(len