SOUTHEY, Robert. História Do Brasil Vol. 1
SOUTHEY, Robert. História Do Brasil Vol. 1
SOUTHEY, Robert. História Do Brasil Vol. 1
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HISTORIA
BRAZIL
NOTA BENE
R O B E R T O SOÜTHEY
PELO
TOMO PRIMEIRO
RIO DE JANEIRO
LIVRARIA DE B. L. GARNIER
RUA DO OUVIDOR, 69
1862
Todos direüos de propriedade reservados.
AO LEITOR
V.i->:>" •-•
CAPITULO PRIMEIRO
1
A origem do nome Maranhão tem sido objecto de discussão.
O P. Manoel Rodriguez suppoz que vinha das muitas maranhas ou
embustes alli praclicadas por um celebre Lopo de Aguiar. Mais tarde
foi el'e buscar a ctymologia ás palavras mnra (amarga) e não, como
quem dissesse que as águas d'aquelle mar não são amargas. 0 nome
encontra-se na narração mais antiga das viagens de Pinzon, e era pro
vavelmente o de alguém que fazia pártu da expedição, talvez do pri-
meiro que provou aquellas águas, ou descobriu que erão d'um rio.
* Vieira considera a palavra corno augmenlativo de mar. Por isso, diz
eUe, os naturaes lhe chamão Pará, e os Portuguezes Maranhão,
que tudo qmr dizer mar e mir grande (Sermões, t. III, \>. 409).
HISTORIA DO BRAZIL. II
muitas ilhas, afortunadas e férteis, cujos habitantes 1.5ÜÜ
os receberão hospitaleiros e confiados, o que Pinzon
retribuiu vilmenle, apoderando-se, por não achar
outra mercadoria, de trinta d'estes homens inoffin-
sivos e levando-os d'onde os achara livres para
vendel-os onde fossem escravos. Uma vez virão-se
os seus navios no mesmo perigo que correra Co-
lombo nas Cocas do Dragão. A vinte legoas da con-
fluência do rio Meary, o conflicto da sua velocíssima
torrente com as águas, que sobem do* mar, ocea-
siona um estrondo, que se pode ouvir de mui
grande distancia. E isto que os naturaes chamão
pororoca. Quando ella afrouxa, precipita-se a maré
' para dentro, restituindo em menos de quinze mi-
nutos Ioda' a massa de água que a vasante havia
• levado em cerca de nove horas; pelo espaço de ou-
tras três continua 0 fluxo com quasi inconcebível
rapidez. Apezar de impetuosa como é a corrente, ha
logaíes do rio que ella não alcança: chamão-nos
os Porluguezas esperas. Alli se acolhem as canoas
que navegão o Meary, esperando que passe o maca-
reo, e raras vezes correm risco. No Araguari se p|^eadof
observa o mesmo phenomeno com mais intensidade 1 ' s30 '^ 1,
ainda. Devia ser perto da embocadura de algum
d'estes rios que Pinzon se viu quasi perdido. Esca-
pando com tudo d'alli, tornou a passar a linha, e
continuando a derrota até chegarão Orinoco, fez-se
na volta das ilhas, e navegou para casa, perdendo
12 HISTORIA DO BRAZIL.
1500. n a viagem dous dos seus três navios. O rio da Guiana
conserva ainda o seu nome ', e o curso que elle
seguiu para chegar ao Cabo de Sancto Agostinho,
Arg
M"Una chamou-se por meio século derrola de Pinzon,
Convencera-se este navegante de que a terra por
elle visitada não era uma ilha; suppunha porem que
fosse a índia alem do Ganges, e que elle tivesse
velejado alem da grande cidade de Cathay. Interro-
gados estes viajantes sobre se linhão visto o polo do
sul, respondião que não havião avistado eslrella
como a do norte, que o indicasse, mas sim outras
consteilações, e que uma nevoa, que crescia da linha
do horizonte, lhes eslorvava muito a visla. Era opi-
nião sua que no meio da terra havia uma grande
elevação, antes de transporia a qual, não se poderia
ver o polo do sul. Levarão para a palria amostras
de canella e gengibre, não de boa qualidade, é
verdade, mas explicava-se isto com a cireumstancia
de haverem estes produclos sido colhidos antes de
inteiramente sazonados com a calor do sol; cana-
fistpla, ainda não madura, mas considerada não in-
ferior á que se applicava contra a febre intermit-
tente; gomma anima, que era então reputada pre-
1
Lat. I o 50' N. É o Oi.ipoc dos Francezes, mas deveria conservar-
se lhe o nome de Pinzon. Foi este o limite primordial entre Hespanhoes
e Porluguezes; c Carlos V mandou levantar um marco alli ao lado.
Depois do estabelecimento dos Francezes na Guiana so por tradição
continuou este marco a ser conhecido; mas em 1729 descobriu-c um
oficial de guarnição do Pará. Derredo, I, § 15. 14.
HISTORIA DO BRAZIL. 15
cioso remédio contra constipações e dores de cabeça; 15ü0
pedras, que se julgava serem topazios, sandalo, e
um grande carregamento de pan brazil. Um sarigue
apanhado vivo, com a sua cria, havia morrido a
bordo, mas o corpo, que chegou bem conservado, ' D ^ L T
causou a admiração de quantos o virão, sendo remet- U^SIL"
o MI » r\ 1 Gomara,Hist.
de a3 nd
tido para Sevilha, e d alli para Granada, onde J, 8!; "
a
o moslrárão ao rei e á rainha. "f ™'«.".V'
A costa descoberta por Pinzon ficava dentro dos
limites portuguezes de demarcação, e antes que elle
chegasse de volta á Europa, ja d'ella havia tomado
posse a nação a quem cabia em partilha.
Mal havia Vasco da Gama voltado da sua viagem j/j?^ 1 ,
de descoberta á índia, quando aprestou logo el-rei
D. Manoel segunda e muito mais poderosa frota,
cujo commando confiou a Pedro Alvares Cabral.
Fixou-se para a partida o dia de domingo 8 de março.
N'aquella manhã celebrou-se missa no Rastelo, ha
capeHa erecta pelo infante D. Henrique, dedicada a
N.-S. de Belém, e doada a alguns frades do convento i:arros,
de Thomar, que alli devião administrar aos nave-
gantes os sacramentos da Egreja, especialmente em
occasiões como esta. Assistiu ao sancto sacrifício o
próprio rei, que, para honrar o chefe da expedição,
o fez sentar comsigo debaixo do docel. Pregou o
bispo de Ceuta um sermão, cujo thema principal
foi o elogio de Cabral, por haver acçeitado tão
grande e tão pezado encargo. Concluindo, tomou o
\/i HISTORIA DO BHAZIL.
lft0
°- estandarte de sobre o altar, onde o havião collocado 4
durante o serviço divino, e, benzendo-o, o entregou
ao rei, que com as próprias mãos o passou a Cabral,
em cuja cabeça poz um barrete, benzido pelo papa.
Desfraldada a bandeira, seguirão todos para a praia
em procissão, com cruzes alçadas e relíquia*.
Cobriu-se o Tejo de embarcações miúdas, que levavào
uns para as naus, e trazião outros, ou sejunctavilo
para vel-as: « Assim, diz Barros, que foi segundo
Iodas as probabilidades leslimunha ocular da scena,
se vião todos com suas libres e bandeiras de cores
diversas, que não parecia mar, mas um campo de
flores, com a frol d'aquella mancebia juvenil que
embarcava. E.o que mais levantava o espirito d'estas
couzas, erão as trombetas, atabaques, sestros,'tam-
bores, fraulas, pandeiros, e até gaitas, cuja ventura
foi 'andar em os campos no apascentar dos gados,
n'aquelle dia tomarão posse de ir sobre as águas
salgadas do mar n'esta e outras armadas, que de-
pois a seguirão, porque para viagem de lanlo tempo,
tudo os homens buscavão para tirar a [trisleza do
mar. » D. Manoel acompanhou Cabral até á beira
i.asianncua.
i a-taithotla. j • li* 1 i i
L.i, c. só. do no, e alli deu a benção do ceo e a sua própria aos
!.»»*•" offieiaes, que em seguida lhe beijarão a mão, e
embarcarão ao estampido d'uma salva real de toda a
frota. 0 próprio Vasco da Gama não tivera mais so-
lemne despedida; e couza extraordinária foi que esta
segunda expedição desse casualmente a Portugal um
HISTORIA DO BRAZIL. . I.'í
império mais vasto e importante do que elle deveu á í500
primeira.
Não pôde a frota sahir o Tejo Vaquelle dia, por cabMiian-
. cado sobre a
achar ventos ponteiros, mas no seguinte fez-se de cj£,a*j|<l0
vela. Navegou no rumo de Cabo Verde, onde fez
aguada, e depois para fugir ás calmarias que Dias
e Gama havião encontrado, fez-se ao sudoeste na
esperança de dobrar assim mais facilmente o Cabo
da Boa Esperança. O continuo mao tempo porem a
atirou ainda mais para o oeste. A 24 de abril,
quando segundo os cálculos dos pilotos, se devia
estar a cerca de 660 legoas da ilha de.S. Nicolao,
viu-se o Oceano alastrado de hervas marinhas; no
dia seguinte apparecérão algumas gaivotas, e de
tarde avistou-se terra, n'uma quarta feira'. Era 23 <i-ai>r. «ie
^ lò(M).
1
Esta espécie de boca supplementar causou muita impressão a
Vancouvèr, que a encontrou na Bahia da Restauração, na costa Occi-
dental da America. « Faz-se, diz elle, uma mcisâo horizontal 340 de
pollegada abaixo da parte superior do lábio de baixo, atravessando in-
teiramente a carne d'um canto da boca ao outro. AlaTga-se depois
gradualmente este orifício, para admittir um ornamento feito de ma-
deira, que se ajusta bem á gengiva do queixo inferior, projectando-se
horizontalmente a sua superfície externa. Estes orna tos são ovaes, e
concavos d'ambos os lados, variando o seu tamanho de duas pollcga-
das atétrese 4/10 de comprimento sobre uma e meia de largura.
Estes hediondos enfeites são polidos com muito cuidado, mas dão a
quem os traz um aspecto desnatural e repugnante, offerecendo um
exemplo de desvario humano, que a razão se recusaria a acreditar, se
os olhos o não vissem.
Langsdorff acerescenta que este adorno labial tem a vantagem ou
dosa vantagem de tornar impossíveis os osculos.
HISTORIA DO BRAZIL. 19
a parte que ficava dentro da boca entre os lábios e 1500
os dentes era da fôrma das rodinhas sobre que
coslumão assentar as figuras d'um jogo de xadrez, redro va*.
Fechava a noute ao chegarem estes selvagens á compòrta-
capilania. Cabral, regulando sempre o seu proceder "«avagent'
pelo estado da sociedade que se havia encontrado
no Congo, ou entre os mouros da costa oriental da
África, preparou-se para recebel-os com todo o
cerimonial. Poz um grosso collar de ouro. Na falta
de estrado para a sua cadeira de aparato, mandou
extender debaixo d'ella um tapete, em que se assen-
tarão os seus officiaes. Accenderão-se velas, e depois
admittirão-se os dous selvagens nus á presença do
capitão. Esta ostentação não lhes arrancou o menor
signal de obediência. Nem saudarão a seu modo o
commandante, nem tentarão falar, parecendo ao
principio que, ou estavão por demais aterrados, para
comprehenderem signaes, ou se havião preparado
para a morte, e não responderião. Passado algum
tempo fitou um d'elles os olhos no collar de ouro de
Cabral, e apontou para elle e para a terra; obser-
vando um castiçal de prata, fez outro tanto. Os Por-
tuguezes, interpretando á medida de seus próprios
desejos estes gestos, concluirão que os naturaes
conhecíão os melaes preciosos, e que d'esta forma
queria aquelle selvagem dar a entender que os
havia no paiz. Nada d'isto era; as tribus da costa
não conhecião por certo'o ouro e as do sertão pio-
20 HISTORIA DO BRAZIL.
1500. vavelmenle lambem não; nem até agora se averiguou
que exislão minas de prata no Brazil, embora haja
motivos para crel-o. 0 collar de ouro e o castiçal
de prata forão os objectos mais brilhantes que elles
virão; talvez que até os reputassem sagrados, e
com aquelles momos quizessem implorar d'elles a
liberdade.
Depois de desvancido um pouco o medo, mostrá-
rão-lhes um papagaio, que elles reconhecerão como
objecto familiar. Apresentou-se em seguida uma
ovelha, mas este animal lhes era desconhecido, eá
vista d'uma gallinha dcrão mostras de terror, cus-
tando muito o induzil-os a toinarem-na nas mãos.
Pozerão-lhes deante pão, peixe, conservas, doces,
mel e papas, mas elles mostrarão repugnância a co-
mer nada disto, e o que provavão immedialamente o
cuspião. Vinho, de má vontade o chegarão aos lá-
bios, e por nada o quizerão beber; e dando-se-lhes
água, repetidas vezes com ella enxaguárão a boca,
sem a engolirem. Não se supponha porem que elles
se arreceassem de veneno, pois ja então se havião
desenganado, que as intenções dos aprezadores não
erão malévolas. Um d'elles exlendeu a mão, como
pedindo um rosário de contas brancas; derão-lho, e
elle pondo-o primeiramente ao pescoço com evi-
dentes signaes de prazer, papou-o depois á volla dos
braços. Em seguida apontou para o colíar de ouro
como lambem pedendo-o, mas este gesto liverão os
HISTORIA DO BRAZIL. 21
Portuguezes por acertado não o entenderem. G ro- 15ül)-
sario foi restiluido a seu dono, e os pobres selvagens,
vendo que quando o extendião as mãos para terra,
ninguém lhes comprehendia ou queria comprehen-
der o desejo de serem postos em liberdade, eslirárão-
se a final de barriga para o ar 'cm cima do tapete,
para dormir. Cabral mandou pôr-lhes debaixo da
cabeça almofadas que lhes servissem de travesseiros,
o que elles não rejeitarão, mas o que trazia a ca-
bélleira de pen.nas, como a chamavão os Portuguezes,
deu-se a perros para collocar-se de modo que a não
desarranjasse. Os Europeos lançárão-llics depois por
cima um capote, por causa da decência; também
estiverqo por isso, e segundo todas as apparencias
Ie
dispozerão-se satisfeitos a passar aquella noute. ?c°i7az'
. De manhã entrou a armada no porto; c fundeadas
Desembarcào
os Port
todas as naus, reunirão-se os capitães a bordo da de "-
Cabral. Coelho e Barlholomeo Dias (o immortal des-
cobridor d.o Cabo da Boa Esperança) forão marfdados
a terija, e com elles os indígenas. A cada um.d'esles
se havia dado uma camiza nova, uma carapuça ver-
melha, um rosário de osso, alguns guizos e uma
campainha; também lhes tinhão restiluido seus arcos
1
Azarara aflirma (t. II, p. 12), que todos os índios bravos se deita»
sempre n'esta posição. Por muito que me custe o impugnar o tesli-
munho positivo d'um escriptor digno de credito, não posso deixar de
reputar esta asserção demasiado genérica. A indicada posição é por
certo a mais natural para quem dorme em rede, mas não assim para
quem se deita em pélles ou no chão.
22 HISTORIA DO BRAZIL.
1500. e seitas, pelo que deixarão o navio soberbos dos
seus thesouros, e alegres da sua boa fortuna.
Pedro Vaz de Caminha acompanhou Coelho n'esta
expedição a terra. Ia elle na armada como um dos
secretários da feitoria que Cabral devia estabelecer
em Calicut. Mandou depois ao rei uma. cpmpteta
narração da descoberta, e esta narração, curiosa a
muitos respeitos, mas sobre tudo como principio
authentico da historia da Brazil, Ia ficou esquecida
nos archivos portuguezes, ate que mais de três sé-
culos depois do successo viu pela primeira vez a luz
da imprensa.
Outra pessoa ia no batei, animada de mui difíe-
renles sentimentos.. Era um mancebo, por nome
Affonso Bi beiro, criado de D. João Telles, que por
algum^delicto de pena capital, mas quê talvez fosse
acompanhado de circumstancias attenuantes, tinha
sido embarcado na frota, para ser deixado em terra
extranjia, onde ou perecesse, ou adquirisse conheci-
mentos, que podessem ser úteis aos seus conterrâ-
neos. Era costume em todas as viagens de descoberta
irem d'estes ihdividuos.
Ao abicar em lerra o escaler junctárão-se na
praia obra de duzentos homens nus e armados de
arcos e settas. Os dous selvagens-lhes fizerão signa!
que depozessem as armas, e se retirassem a alguma
distancia; elles promptos largarão os arcos, mas
apenas se retirarão a alguns passos da orla do mar.
HISTORIA DO BRAZIL. 25
Então desembarcarão os dous indigenas, e Bibeiro 150°-
com elles, ficando os outros Portuguezes no bote.
Apenas se virão em terra mettérão pernas 'estes sel-
vagens, e atravessando um rio, em que a água lhes
dava pela barriga, embrenhárão-se n'uma mouta de
palmeiras, seguidos 3e muitos dos outros e de Bi-. .
beiro também. 0 seu único fim era pôr em segu-
rança os thesouros, pois voltarão immedjatamente,
e com os companheiros ajudarão a encher as pipas
que os Portuguezes tinhão trazido para fazer aguada.
Coelho e Dias erão prudentes demais para os deixa-
rem enlrar no batei, mas estabelecerão-se desde
logo relações amigáveis : trabalhavão elles volunta-
riamente, mas pedinchavão também com grande
perseverança. Braceletes, guizos e outras bugiarias
(de que os navios de descobertas ião sempre bem
providos para traficarem na costa da África) se dis-
tribuirão por elles, que com o maior pra*zer troeavão
suas armas por um chapeo, um barrete, ou qualquer
couzarf de que os marinheiros quizessem desfazer-se.
Mas tão azafamados e cobiçosos se tornarão n'estas *
•barganhas, que muito soffria com isso o*serviço da
aguada. Deu-se-lhes pois a entender por signaes que
se retirassem, percebido o que transpozerão o rio,
e desembarcando então alguns marinheiros, en-
cherão as pipas. Voltava ja o escaler para bordo,
quando os selvagens lhe fizerão signal ^ara que vol-
vesse a terra, empurrando Bibeiro na direcção do
24 HISTORIA DO BRAZIL
lõoo. m a r ) C omo quem dizia que não havia de ficar na
praia. Tinhão-se dado a este aventureiro algumas
carapuças vermelhas e uma bacia provavelmente de
cobre, com que caplivasse os bons officios dos seus
protectores. Ninguém o havia despojado; sabido o
que, lhe ordenou Bartholomeu Dias, que voltasse
atraz, e d'estas couzas fizesse presente a quem pri-
meiro o recebera ao saltar na praia, e cujo hospede
havia sido durante a sua estada em terra. Aceitou
o selvagem a offerla, e recebido no batei, volveu
re az
?8°i9 - Bibeiro á armada.
costumes dos E r a ° a m i 8 ° d e R i b e i r o u m v e l h o » <l ue apparente-
íeivagens. m e n l e gozava de alguma consideração na sua tribu:
estava todo coberto de gomma e de pennas, pare-
cendo, diz Pedro Vaz, todo crivado de frcçhas, como
S. Sebastião. Esta espécie de vestido inteiro era
usada entre os Tupys : mas em algumas d'eslas
hordas se observou uma usança, que nenhum
escriptor subsequente consignou, sendo alias tão
extranha, que mal poderia ler deixado de ser notada,
. se houvesse subsistido. Tinhão os selvagens metade
do corpo pintada de azul carregado, e a outra metade
na sua côr natural. Outros o dividião em quadrados
a guiza de taboleiro de xadrez. A moda pois, tão
caprichosa na vida selvagem como na civilizada, é
"egualmente variável em ambas. Este systema dé
adorno, que se tornou obsoleto no Brazil, ainda hoje
se encontra na Califórnia, na costa do noroeste da
HISTORIA DO BRAZIL. 25
,50
America. A peça de madeira, queo;> inens trazião °-
Langsdorff
na boca, foi comparada ao batoque d'uma garrafa '
de borracha ou de couro. Alguns trazião três d'estes
enfeites, uns no meio da abertura, e uns a cada
canto. Entre elles forão vistas três ou quatro mulhe-
res moças ainda, uma das quaes tinha o corpo todo
pintado de azul escuro. Os cabellos lhes cahião soltos
pelas espadoas, mas o extranho do trajar não im-
pediu que os Portuguezes as achassem engraçadas.
Dos homens alguns adornavão a cabeça com pennas
amarellas, outros com verdes. Cabral foi de tarde
com os botes passear ao correr das praias da bahia,
mas ninguém deixou desembarcar, apezar do não
se avistar um so indígena. Saltarão porem em terra
n'uma ilha, agora chamada Coroa Vermelha, onde,
por ser no meio da enseada, estavão seguros de
quahpaer traição: alli uns se entregavao ao prazer
de sentir terra firme debaixo dos *pés, outros se di-
*.n.,t'.z„ ~ _ „ i i _ , Pedro Vaz.
vertiao a pescar. i», 20.
No dia seguinte, sendo domingo de Paschoa ', re- njs.se miss
solveu Cabral ouvir missa na ilha. Preparou-se "da^ahia.3
pois um logar para a ceremonia. Eregiu-se e.
armou-se um altar, a cujo lado se arvorou a bandeira
da ordem de Çhristo, que em Belém recebera a
benção do bispo de Ceuta. Fr. Henrique de Coim-
• í:
1
A primeira missa dita no Brazil não foi domingo de Paschoa, e
sim no da Pasehoela, que se contava 26 d'abril. F. P.
26 HISTORIA DO BRAZIL.
1500.; bra, que com sete minoristas ia para a primeira
missão na índia, foi quem officiou com assistência
dos capellães da frota, e de todos quantos sabião
cantar. Acabada a missa, tirou Fr. Henrique os
paramentos, e pregou d'uma cadeira elevada o evan-
gelho do dia, e disserlando sobre a descoberta d'esle
novo paiz, e deveres que os descobridores para com
elle havião contrahido como christãos, todos os seus
ouvintes moveu a muita devoção. Entretanto reu-
nião-se os naturaes na praia da terra firme, em nu-
mero egual ao da véspera. Durante o officio divino,
miravão elles pasmados, que a visinhança da ilha"
lhes permittia ouvir os cânticos, e distinguir os ves-
tidos e gestos dos sacerdotes. Não era o sermão
talhado para tanto lhes captivár a attenção, pelo que
em quanto pregava o frade, uns dentre elles toca vão
cornos e búzios, outros dança vão, e ainda outròs.
embarcavão em jangadas compostas dé três ou qua-
tro troncos de arvore, sem se atreverem porem a
afastar-se dà praia.
Terminado todo o officio divino, entrarão os Por-
tuguezes nos escaleres, e remarão para onde estavão
os selvagens, indo adeante Bartholomeo Dias, com '
um pedaço d'uma das jangadas, que, arrancado pelo
vento e pelas ondas, havia ido dará ilha. Adean-
tando-se-lhe ao encontro, metterão-se estes á água,,
até onde acharão pé. Acenando-lhes elle que po-
zessem de parte os arcos e as settas, muitos voltarão
HISTORIA DO BRAZIL. . 27
immedialamente atraz e assim o fizerão. Mas outros
não •obedecerão, e quando um da companhia lhes
dirigiu um comprido discurso, ordenando-lhes ao
que parecia, que se retirassem, e em tom de quem
fala com auctoridade, nenhum signal de medo ou
obediência sé notou entre os recalcitrantes. Tinha
aquelle o corpo, dos rins para baixo, pintado d'um
vermilhão brilhante: o peito e espadoas erão da
mesma côr, sobre a qual se observou que a água
nenhuma ácção tinha, senão tomal-a mais viva em
quanto molhada.
• Desembarcou um dos Portuguezes e metteu-se
entre os índios; offerecerão-lhe este água das suas
cabaças, ea-cenárão aos outros que viessem também
a terra. Cabral porem vollou ás naus para jantar,
indo as trombetas e anafis a tocar nos bateis. Da
praia acompanhavão os indígenas a musica, gri-
tando, dançando, e batendo palmas, soprando bu-
zinas, atirando setlas para o ar, e erguendo os
braços ao ceo em acção de graças pela chegada de
taes hospedes. Alguns entrarão no mar, seguindo
os Portuguezes, até que a água lhes deu pelos peitos;
outros forão nas canoas visitar.a armada, acom-
panhados de muitos que atraz d'elles nadavão,
homens e mulheres, movendo-se com tanta facili-
dade, como se fora aquelle o seu natural elemento. 2o°22.az'
Convocados a concelho os capitães, resolveu-se
mandar a Portugal com a nova da descoberta o navio
28 HISTORIA DO BRAZIL.
1500. transporte, para que o rei tomasse as providencias
que o caso lhe sugerisáe. Discutiu-se- também se
conviria apprehender dous indigenas, e remettél-os
ao rei como amostra dos seus novos subditos, deixando
em troca dous criminosos. Concordou-se porem que
esta praclica, seguida pelos navios de descobertas,
era a todos os respeitos perniciosa : exasperava o
povo, que convinha conciliar, e nada bom d'eMa se.
colhia. Se os pobres prizioneiros sobrevivião á mu-
dança repentina de habitbs de vida, ainda assim
nenhumas informações se podião tirar d'elles, cm
quanto não aprendiãp novo idioma, accrcscendo que
n'estas informações não havia que fiarse, pois que
as respostas erão sempre calculadas para agradarem
ás pessoas que fazião as perguntas.
De tarde voliárão os Portuguezes a lerra, e um
certo Diogo Dias, que fora collector das rendas do
rei em Sacavem, e era de gênio folgazSo e doudo
por jogos athleticos, levando comsigo um gaiteiro,
se foi a dar com os selvagens, e entrelaçadas, as
mãos com elles se poz a dançar ao soto d'aqüella
musica. Com grande admiração dos naturaes do paiz,
deu elle a sua cambalhota, executando outras genti-
lezas de saltos mortaes. Mas no meio d'esta folia,
súbito terror se apoderou dos indigenas, que todos
deitarão a fugir. Alguns porem recobrando animo,
voltarão a reunir-se aos Portuguezes, que seguindo
ao longo-da praia e atravessando o rio, explora vão"
HISTORIA DO RRAZIL. 29
0 terreno : mas entre elles lavrava'visivelmente a i50 °
desconfiança, e um nada os assustava e punha cm
movimento, como um bando de. estorninhos, que
1 ottjárão, para tomar o seu sustento. Os Portuguezes
andavão mui allentos a não os offender; e procu-
rando com a superioridade de homens civilizados
atinar com os hábitos devida d'aquelle gentio, attri-
buirão as vantagens physicas. de que os índios evi-
dentemente gozavão, ao seu estado selvagem. Bem
como os pássaros bravos, dizião elles, lêem mais
brilhante plumagem do que os domesticados, e os
quadrúpedes do mato possuem pello mais fino do
que os que vivem entre homens, assim a agilidade
d'estes selvagens, as bellas formas dos seus mem-
bros, e a limpeza e brilho de suas pelles, são provas
de que no seu viver elles se assimelhão aos animaes.
E não se-tendo até então descoberto espécie alguma
de habitação, concluiu-se também que elles ne-
re
nhuma tinhão, campando sempre ao ar. n%JC
Com tudo n'aquella tarde mesmo descobriu Bi-
beiro, a quem outra vez tinhão mandado para entre
os índios, na esperança de que estes, familiarizando-
se com elle, o deixassem ficar comsigo, uns ranchos
grandes feitos de verdes ramos, que comparou ás
choupanas da sua província natal de Entre Douro e
Minho. De novo recambiarão os selvagens este aven-
lureiro para os seus conterrâneos, ainda que não
com coléra, pois que lhe derão arcos e seitas.
50 HISTORIA DO BRAZIL.
)5oo. Esta vão elles sempre promptos a trocar suas armas
e contas por chapeos, carapuças ou qualquer couza
que sé lhes offerecesse: da mesma fôrma se obtiverão
d'elles alguns cocares de pennas. Na segunda feira
tòrriárão-se mais dados os índios, pelo que melhor
os poderão observar os Portuguezes; as sobrancelhas,
as pestanas, e todo o cabello do alto da cabeça d'uma
orelha á outra, em todos tinha sido arrancado, e
uma linha preta de dous dedos de largura lhes
passava através da calva de fonte a fonte. Conheceu-
se que a côr escarlate, de que se pinlavão, era pro-
duzida por uns grãozinhos adherenlesa umasubSr
lancia vegelal verde, similhante á cascada castanha;
estes grãos, talvez cochonilhas, erão expremidos
•jr
enlre os dedos. Diogo Dias, que com as suas cabriolas
se tornara o favorito dos índios, teve ordem de
acompanhai os alé ás suas habitações. Outro tanto
fizerão Bibeiro e mais dous criminosos, a quem se
recommendou que passassem a noule com elles.
Vencida boa legoa e meia de caminho, chegou*a
comitiva a uma aldeia Composta de nove ou dez
casas, cada uma do tamanho da almirahta, e todas
feitas de paus e cobertas de palha. Nenhuma d'estas
vivendas tinha divisões internas; havia n'ellas
muitos portes, de que pendião mácas ou redes, por
baixo das quaes ardião fogueiras. Cada cabana, que
tinha sua põrtinha baixa em ambas as extremidades,
poderia conter de trinta a quarenta pessoas. Offere-
HISTORIA DO BRAZIL. ~>l
cérão os índios aos seus hospedes das provisões que 1500.
1
Esta cruz, ou outra que a representa, ainda se mostra em Porte
Seguro.
34 HISTORIA DO RRAZIL.
1500. Tinha Coelho trazido a terra grande quantidade
de cruzinhas de chumbo, restos d'um provimento
d'ellas, que levara Vasco da Gama. Distribuirão-se
estas pelos selvagens, amarrando-lhas Fr. Henrique
ao pescoço, depois de ter feito cada um beijar a sua,
e erguer as mãos á maneira de quem ora. Para lhes
infundirem mais respeito a aquelle signai, beijarão
os Portuguezes um por um a cruz grande.
Uma única mulher assistiu a esta ceremonia:
deu-se-lhe um vestido para pôr como avantal, o que
ella realmente fez, mas tão pouco conscia parecia
do fim para que isto devia servir, que Pero Vaz na
sua narração assevera ao rei, que Adão antes do
peccado não fora mais innocente do que esta gente.
Quão fácil não seria pois, inferiu elle d'aquj, con-
Pe az
5Í?53 - verlel-aáfecatholica.
Cabral suppoz que a terra que descobrira devia
ser uma ilha grande : a extensão de costa, que elle
havia visto, seria de vinte e cinco legoas, circum-
stancia de que um dos pilotos concluiu que o paiz
T. i , ff. «í. ' P arf e do continente. A abundância de água, a
1 an s s e r a
1
É notável que Vespuccio, depois de ter previamente descoberto
tão prodigiosa extensão de terra, continue a chainal-a ilha.
s
Parece ser a Bahia, ainda que a sua descoberta se attribue mais
tarde a Ghristovão Jaques.
44 HISTORIA DO BRAZIL.
ísoi. zentase sessenta legoas para o S., tomando então
outra vez terra em 18° lat. S. e 35° long. O. do me-
ridiano de Lisboa. Alli permanecerão por cinco
mezes, vivendo em bons lermos com os indigenas,
com os quaes alguns dos Portuguezes penetrarão
1504. quarenta legoas pelo sertão, e levantarão um forte,
28 de jun. -1 . , i
onde deixarão vinte e quatro homens, que se havião
salvado da nau almiranta. Derão-lhes doze arcabuzes
alem d'outras armas, e manlimento para seis mezes,
e carregados de pau Brazil' voltarão a salvamento a
Lisboa, onde forão recebidos com grande alegria,
como gente que havia muito se reputava perdida.
De nenhum dos outros navios se tornou mais a saber.
Vespuccio diz que elles sev perderão por presump-
Narê t.' S osa t o l e i m a d° almirante, pelo que pede a Deus lhe
Ve
,n
p!Tã"s' dê condigna recompensa1.
' ' A primeira vez que esta palavra se acha empregada, segundo
Muratori, é no anno de 1128 n'um tractado entre os povos de Bolonha
e Feirara, no qual figura n'uma resenha.de mercadorias a grana de
Brazile. Parece que esta madeira vinha então das ilhas Malaias, e cia
um dos artigos do commercio do Mar Vermelho.
Os Tupis chamão a arvore Araboutan e com lavadura da sua
cinza sabem dar uma còr vermelha mui durável.
a
Morrer afogado não lhe parece pois castigo bastante. É quasi fora
de duvida que este almirante, de quem elle fala com tanta aspereza,
era Gonçalo Coelho. Sahiu en 1503 para Sancta Cruz-com seis navios,
dos quaes se perderão quatro, por falta de conhecimento da costa.
Os outros voltarão carregados de pau brazil, macacos e papagaios,
únicos artigos do commercio d'este paiz que ja então se conhecião.
E a isto que se reduz o que diz Damião de Góes (1, 65). Concordando
ella, como se ve, na data, no numero de navios que sahirão, e no
HISTORIA DO RP.AZIL. 45
1504
Deve-se pois ao commandante d'esta expedição a ma
-
, . . . l i * ' • T° ° Pa'z
honra do primeiro estabelecimento no novo paiz »•">«
descoberto. Não consla porem que a isto se prestasse
enlão maior altenção. Nenhum ouro se encontrara,
nem a terra produzia artigos de commercio, que
podessem parecer dignos da consideração d'um go- , •
verno, cujos cofres regurgilavão do produclo do tra-
fico das especiarias e das riquezas das minas afri-
canas. Mas o carregamento de pau brazil, que
Vespuccio trouxera, lenlou alguns aventureiros par-
ticulares, que se conlenlavão de lucros pacíficos, a
ir alli buscar a preciosa madeira, e este commercio
tão conhecido se lornou, que lodo o paiz tomou o
nome de Brazil', apezar do outro mais sancto, que
dos que se perderão, não hesito em identificar a sua narração com a
segunda viagem de Américo Vespuccio ao Brazil. Antônio Galvão faz
menção da viagem de Vespuccio, mas não da de Coelho, o que con-
firma ainda esta opinião. Bocha Pitta fala de ambas, mas em pontos
duvidosos não vale nada a sua auctoridade»
Simão de Vasconcellos (Chron. da Comp. de Jesus do Estado do
Brazil, 1.1, das Not. antecedentes, § 19), engana-se muito na relação
que faz : diz que Coelho voltou com quatro navios, tendo cuidadosa-
mente examinado a costa, e collocado marcos por toda a sua exten-
são, eque não voltou senão depois da morte de D. Manoel.
0 auctor do Ms. Elogio Histórico chama o commandante II Maggi,
nome tão imaginário, como a intenção que elle lhe altribue de ter
procurado a morte de Vespuccio.
1
Esta alteração d'um nome tão solemnemente imposto, atnafmou
Barros mais que de costume, e mais do que era razoável. Attribue-a elle
directamente a obra do demônio, e conjura todos os seus leitores pela
Cruz de Christo, ja que outros meios lhe falecem para vingar-se do
diabo, que chamem a terra Saneia Cruz, sob pena de pela mesma cruz
46 HISTORIA DO BRAZIL.
1504. Cabral lhe dera. Também se levarão ao reino ma-
' E praga esta, que sempre tem perseguido o Bráfzil e as mais con-
quistas d'este reino, diz Balthazar Telles. Chron. da Comp., 5, 9,
V
§ 2.
HISTORIA DO BRAZIL. 49
15ü4
banquetes sanguinários, que, malvados como erão, -
havião sentido ao principio: aquelles esse respeito e
veneração d'uma raça superior, sentimentos que
em bem de todos tanto se podião ter cultivado.
50 HISTORIA DO BRAZIL.
1508.
CAPITULO II
Viagem de Pinzon e Solis. — Descoberta do Rio da Prata. — Os Franceses
no Brazil. — Historia do Caramuru. — Divide-se o Brazil em capita-
nias. — S. Vicente. — Os Goyanezes. — Sancto Amaro e Tamaraca.—
Parahyba. — Os Gayatacazes- — Espirito Saneio. — Os Papanazes. —
Porto Seguro. — Os Tupiniquins. — Capitania dos Ilheos. — Bahia. —
Revolução no Recôncavo. — São expulsados d'alli os colonos. — Per-
nambuco.— Os Calietes. — Os Tomayares. — Cerco de Iguaracu._ —
Expedição de Ayres da Cunha ao Maranhão.
1
É Jaboatâo (Preamb, § 52) o único que dáá palavra dillerente ex-
plicação ; diz elle, que significa moreia, espécie de cobra grande do
mar, que se encontra nas cavernas dos,rochedos n'aquellas paragens,
e especialmente no Rio Vermelho, onde affirma que Diogo Alvares nau-
fragara. PTuma dYstas cavernas foi elle encontrado pelos selvagens,
exclamando a filha do cacique : Caramaru Guazu. É isto menos pro-
vável do que terem-lhe dado os índios, achando-o prestanle nas suas
guerras, um nome no gosto Tupis.
58 HISTORIA DO BRAZIL.
1508. viu crescer em torno de si tão numerosa progenie
como a d'um antigo patriarcha. As melhores familias
da Bahia vão entroncar n'elle a sua origem.
vae A final veio á enseada u m navio francez, e Diogo
I Vi t i n i r i ! r\ *
1
Correspondem-se estes nomes por sua ordem e provável ijiter-
vallo de tempo Rio de Janeiro no 1°, Ilha Grande dos Magos a 6, Ilha
de S. Sebastião a 20, S. Vicente a 22.
Flumen Genabara, a simüitudine locas sic appellatum; diz .Nic>
Barre. Serve-se Thuanus das mesmas palavras, escrevendo, creio eu,
com estas cartas deante dos olhos. D. Lery dá a verdadeira razão do
nome, dizendo que os selvagens a chamavão Guanabara: Não me ma-
ravilharia achar aquella primeira etymologia fundada n'esta corrupção
brazileira, allegada em prova de terem sido os Francezes os primeiros
descobridores do logar.
Vasconcellos diz que os indigenas o chamavão Nithero; Vida do
P. Anchiela, 1. 2, c. 1, § 2.
Um marco posto por Martim Affonso na ilha de Cardozo, defronte da Je
Cananea, foi descoberto em 1767 pelo coronel Aff. Bothelo de Sampaio
c Souza, que levantava a planta do logar, para erigir um forte. Fr.
Gaspar da Madre de Deos, cap. 1, § 52.
2
Ao mesmo Gonçalo Coelho deve-se attribuir a serie de denomina-
ções mencionadas pelo auctor. F. P.
HISTORIA DO BRAZIL. 65
1508.
annos debaixo da protecção d'este regulo, que lhe
dera uma'de suas filhas. Bamalho logo viu que os
novos vindos devião ser seus conterrâneos, talvez
alguma armada, que indo para a índia, alli fosse
dar pela força do temporal. Persuadiu o seu pro-
tector a soccorrel-os em vez ie atacal-os^ e indo ter
com Martim Affonso •:. :e este e os Goyanazes*con-
cluiu um tractado de alliança.
Em muitas circumstancias essenciaes se distin- os
* Goyanazes.
guia de seus selvagens visinhos eslá tribu. Observava
ella uma practica luctuosa, que lhè era peculiar:
quando morria alguém enforcava-se um certo nu-
mero dos seus amigos ou parentes, pessoas do
mesmo sexo, e quanto era possível da edade do
falecido, para que no outro mundo tivesse compa-
nhia adequada. Se não se- offerecião bastantes vic-
timas voluntárias, á força se preenchia o numero.
Por morte d'um chefe, sacrificavão-se os seus vas-
sallos e não os seus parentes. Não. observavão porem
os Goyanazes outro rito algum cruel. Vivião em
cavernas subterrâneas, onde tinhão fogo a arder de
dia e de noite: não era pois para se esconderem que
elles preferião estas incommodas habitações Dor-
mião em cima de pelles e camas de folhas e não ein
redes. Nem cultivavão a terra, nem criavão animaes,
fiando-se inteiramente na pesca, na caça e nas
fructas silvestres para seu sustento. Os Carijóslhes
entendião a lingua, que era diversa da dos Tamoyos,
04 HISTORIA DO RRAZIL.
1&O8. e com ambos esta vão elles em guerra. Era uma raça
toSuSta! simples, fácil em acreditar tudo, e pois que tractava
L. 1, c. 65. r 7 ,
sempre bem os Portuguezes onde quer que os encon-
trava, podemos com razão presumir que os pri-
meiros colonos se não portárião mal com ella. Co-
Gaspar da * * .
W & T nhêceu-seque não fora bem escolhido o-primeiro
logar"para assento da cidade, e os colonos mudárão-
se para a visinha ilha de S. Vicente, d'onde veio o
Animes do i
R d
M°ssc. ÍÜ" uome á capitania.
Kot d0 Fez Martim Affonso uma mallograda expedição
2
"í! ": 60? para o sul pelo sertão dentro em busca de minas,
c. c". i, § ei! voltando com a perda de oitenta Europeos. A todos
i>iantno-se as- os outros respeitos foi afortunada a sua colônia. Aqui
primeiras f . .
«annasde se plantarão as primeiras cannas de assucar , aqui
se creou o primeiro gado e d'aqui se provérão de
uma e outras cousas as demais capitanias. Se a
honra de haver introduzido a canna no Brazil reverte
ao fundador da colônia, ninguém o diz; se houvera
sido uma batalha ou uma carnificina teria sido con-
signada para memória eterna. Quem assim beneficia
a humanidade, é deificado n'uma edade de selva-
geria; n'outra.deiIlustração recebe o devido tribute
de louvor; mas em todos os graus intermediários de
barbaria e semi-barbaria passão desapercebidas estos
* Tinhão sido trazidas da Madeira. Diz Jaboatão (§ 48) que ellas se
acharão aqui, e so aqui, no Brazil. É o único escriptor que dá a canna
como indígena n'este paiz : mal se pôde crer porem que ella se en-
contrasse tanto ao sul.
HISTORIA DO BRAZIL. 65
acções. Chamado por ekrei depois d'algunr*tempo, 150R-
teve Martim Affonso de ir á índia; mas quando voltou
a Portugal, de Ia se mostrou solicito pela prosperi-
dade da sua capitania, mandando-lhe colonos e
soccorros, e em estadoflorescentea transmittiu por
morte, a seu filho.
Trigo e cevado diminuto consumo tinhão, onde
tanto agradava o sustento do paiz; o pouco grão f
que se colhia era para golodices e hóstias. Fabri- Noticia».
cava-se aqui marmelada, que se mandava para as
outras capitanias.* Encontrão-se aqui ostras de tão
desmarcado tamanho, que suas conchas servem de
.pratos, euma vez, quando um bispo da Bahia visitou
esta província, em uma d'ellas lhe lavarão os pes,
como n'uma bacia. Toda a costa é mui abundante
de crustáceos e testaceos, que os indigenas em certas,
estações vinhão do. interior a recolher: construião
seus ranchos em algum logar enxuto entre as fio- »
restas de mangues, vivendo unicamente de peixes
por lodo o tempo da pesca, cujo producto, sec- *
cando-o, comsigo levavão. Tanto havia durado esta
practica, que das conchas se havião formado ostrei-
ras, sobre os quaes, accumulando-se a terra, tinhão - ,
nascido e crescido arvores até perfeita madureza. ^ '
Eslas eminências, chamadas ostreiraSj teem forne-
cido toda a cal que desde a sua fundação até ao dia • .
de hoje se tem empregado na capitania. Em algumas
d'ellas se transformão as ostras em pedras calcárias,
i. 5
66 HISTORIA DO BRAZIL.
IÍ>08. n'outras não mudão de fôrma : freqüentemente se
encontrão alli instrumentos « vasos de barro que-
brados dos índios e ossos dos mortos, pois os que
Gaspar da perecião durante a estação da pesca erão atirados
i',g29,30s' para estes montes e cobertos de ostras.
St. Amaro e Foi Pero Lopes de Souza menos afortunado que
Itamaraca.
seu irmão. Preferiu elle ter em duas datas as suas
cincoenta legoas de costa. Uma, que tomou o nome
de Saneio Amaro, confinava com San Vicente, acer-
cando-se tanto do estabelecimento principal, que
entre as duas villas não mediavão mais de três le-
goas, de modo que se não pertencessem a dous
irmãos, mal se terião dado uns com os outros os
respectivos colonos. Em quanto assim esliverão as
cousaspara todos foi de vantagem a visinhança; rnas
Jogo que a propriedade passou a outros possuidores,
entre os quaes se não davão os mesmos laços, tornou-
l;. 1'illa.
se isto causa de intermináveis litígios. Itamaraca,
2, § ioè. a outra data, ficava entre Pernambuco e Parahyba,
muitos graus mais perto dá linha. Aqui teve Pero
Lopes alguns duros conflictos com os Pitiguares, que
\otidas. ° sitiarão na sua cidade; mas a final logrou repellil-
Mss.
i, e. ü, 6i. os da visinhança. Pouco depois pereceu n'um nau-
r r
B. Telles. C.
c. 3,1,5. fragio.
Paraíba. Companheiro de Pero Lopes, com quem naufra-
gara no Bio da Prata, tinha sido um fidalgo, por
nome Pedro Góes, mas nem isto nem o desastroso
fim do amigo ofizeraperder o animo. Gostou do Bra-
HISTORIA DO BRAZIL. »j7
1508
zil e pediu uma capitania quando el-rei d'ellases-
tava dispondo com mão tão pródiga. Parece que não"
gozava elle de grande influencia na corte, pois que
lhe restringirão a concessão a trinta legoas de costa,
entre as capitanias de S. Vicente e do Espirito
Saneio, e se o espaço d'uma a outra não se exten-
desse tanto, com o que fosse, se contentaria. Empre-
gou Pedro Góes toda a sua fazenda n'esta empreza, e
ainda um certo,Martim Ferreira, que alli pretendia
fundar engenhos de assucar por conta de ambos,
adeanlou muitas mil coroas. Fez-se a expedição de
vela para o rio Parahyba do Sul, onde Góes se fortifi-
cou, e poz á sua capitania o nome de S. Thomé, vi-
vendo dous annos em paz com os Goyalacazes. Be-
bentou então a guerra, que durou cinco annos com
grande perda para elle : fez-se a paz, que os selva-
gens não tardarão a romper, pois que nenhum mo-
tivo ha para suppor que n'este caso fossem aggres-
sores os Portuguezes, tão interessados na guarda do
tractado. Fracos e inteiramente desanimados estavão
os colonos : começarão a clamar que se abando-
nasse o estabelecimento, e Góes teve de ceder a seus
clamores. Do Espirito Sancto se obtiverão navios
para conduzil-os, e extinguiu-se o nome da capi-
i' • Noticias.
tania. MÍS. I, u.
Era a*tribu, que expelliu Góes, provavelmente do os
1
mesmo tronco dos Goyanazes , e como elles não de-
1
Tomal-os-ia pelos mesmos, se.em outra oceasião se não releris-
66 HISTORIA DO BRAZIL.
1508. n'outras não mudão de fôrma : freqüentemente se
encontrão alli instrumentos « vasos de barro que-
brados dos índios e ossos dos mortos, pois os que
Gaspar da perecião durante a estação da pesca erão atirados
i,§29,30.' para estes montes e cobertos de ostras.
st. Amaro e Foi Pero Lopes de Souza menos afortunado que
Itamaraca. .
seu irmão. Preferiu elle ter em duas datas as suas
cincoenta legoas de costa. Uma, que tomou o nome
de Saneio Amaro, confinava com San Vicente, acer-
cando-se tanto do estabelecimento principal, que
entre as duas villas não mediavão mais de três le-
goas, de modo que se não pertencessem a dous
irmãos, mal se terião dado uns com os outros os
respectivos colonos. Em quanto assim estiverão as
cousas para todos foi de vantagem a visinhança; rnas
Jogo que a propriedade passou a outros possuidores,
entre os quaes se não davão os mesmos laços, tornou-
se isto causa de intermináveis litígios. Itamaraca,
ti. Pitta. ° '
2, § 106. a outra data, ficava entre Pernambuco e Parahyba,
muitos graus mais perto da linha. Aqui teve Pero
Lopes alguns duros conflictos com os Pitiguares, que
Noticias. ° sitiarão na sua cidade; mas a final logrou repellil-
i, c. u, 6i. os da visinhança. Pouco depois pereceu n'um nau-
l
B. Telles. C. . *
(.3,1,5. fragio.
Paraíba. Companheiro de Pero Lopes, com quem naufra-
gara no Bio da Prata, tinha sido um fidalgo, por
nome Pedro Góes, mas nem isto nem o desastroso
fim do amigo ofizeraperder o animo. Gostou do Bra-
HISTORIA DO BRAZIL. (57
1508
zil e pediu uma capitania quando el-rei d'ella,s es-
tava dispondo com mão tão pródiga. Parece que não"
gozava elle de grande influencia na corte, pois que
lhe restringirão a concessão a trinta legoas de costa,
entre as capitanias de S. Vicente e do Espirito
Saneio, e se o espaço d'uma a outra não se exten-
desse tanto, com o que fosse, se contentaria. Empre-
gou Pedro Góes toda a sua fazenda n'esta empreza, e
ainda um certo Martim Ferreira, que alli pretendia
fundar engenhos de assucar por conta de ambos,
adeantou muitas mil coroas. Fez-se a expedição d«
vela para o rio Parahyba do Sul, onde Góes se fortifi-
cou, e poz á sua capitania o nome de S. Thomé, vi-
vendo dous annos em paz com os Goyalacazes. Be-
bentou então a guerra, que durou cinco annos com
grande perda para elle : fez-se a paz, que os selva-
gens não tardarão a romper, pois que nenhum mo-
tivo ha para suppor que n'este caso fossem aggres-
sores os Portuguezes, tão interessados na guarda do
tractado. Fracos e inteiramente desanimados estavão
os colonos : começarão a clamar que se abando-
nasse o estabelecimento, e Góes teve de ceder a seus
clamores. Do Espirito Sancto se obtiverão navios
para conduzil-os, e extinguiu-se o nome da capi-
, Noticias.
Mís
tania. '> •**-
Era a "tribu, que expelliu Góes, provavelmente do fn os
mesmo tronco dos Goyanazes1, e como elles não de-
* Tomal-os-ia pelos mesmos, se.em outra oceasião se não refeiis-
70 HISTORIA DO RRAZIL.
1508. de folhas. Se um d'elles matava outro, era entregue
aos parentes do morto, e na presença dos de ambas
as partes immediatameiíte estrangulado e enterrado.
Todos fazião clamorosas lamentações no acto da
execução; e depois banqueteavão-se e bebião junctos
por muitos dias, até que da inimizade não restava
vestígio. Ainda que a morte tivesse sido áccidental,
o castigo era o mesmo., Se o delinqüente se evadia, era
ofilho,afilha,ou o parente mais chegado era sangue,
em seu logar, mas o substituto em logar de perder
Mss. M'6. ávida, ficava sendo escravo do herdeiro do morto.
PonoSeguro. A visinha capitania de Porto Seguro foi dada a
Pedro do Campo Tourinho, natural de Vianna da
Foz do Lima, de família nobre, e intrépido nave-
gante. Vendeu quanto em Portugal possuía, para
aventural-o n'esta empreza, e embarcou com mulher
e família e grande numero de bons colonos, como
B. Teiiesí c. os chamão, e como sem duvida merecem ser chama-
C3,l,§6.- ' .
dos, se elle todos os recrutou na sua própria provín-
cia, o que é provável. Tomarão terra no porto onde
1531. suppunhão que Cabral tomara posse do Brazil, e alli
se fortificarão num logar, que guarda o nome de
Porto Seguro, e que ainda é a capital da capitania'.
TU in°iuins OpPozérão os Tupiniquins ao principio alguma re-
s
1
Stedman (y.ol. 1, 336) menciona o duncane, como o chamão os
negros de Surinam. E um arbusto de folha&igrandes e verdes, que
nasce em logares baixos e panlanosos e dá morte instantânea a todo o
animal que o come. As ovelhas c os novilhos são apaixonados pelas
suas folhas, mas a maior parte dos animaes, diz (lie, sabem instincti-
vamente do seu sustento distinguir o veneno.
2
Nunca se chamou esla capitania das Ilhas, e sim de S. Jorge dos
lllteos.
• HISTORIA DO BRAZIU 73
,531
a paz com os novos colonos, e sendo de todas as - '
tribusbrazileiras a mais tractavel, com elles viverão
em termos amigáveis, e bem depressa prosperou o
novo estabelecimento. 0 filho do originário donatário
da capitania a vendeu a Lucas Giraldes, que em me-
Ihoral-a dispendeu avultado cabedal, com que tanto
Noticias.
a fez florescer/que não tardarão a ver-se alli traba- Msf7-Sim-de
lhar oito ou nove engenhos de assucar. " ' ''•• 3< ?33,u -
Toda a costa, desde o caudaloso rio de S. Francisco 1531
até a Ponto do Padrão da Bahia, foi doada a Fran- 1540.
cisco Pereira Coutinho, fidalgo que se distinguira
no serviço da índia, e mais tarde se accresçentou á
concessão a própria bahiacom todas as suas enseadas.
Fixou elle o seu estabelecimento sobre a bahia no
sitio agora dicto Vil Ia Velha, onde foi a residência
do Caramvrú. Com duas filhas d'este se casarão dous
dos seus companheiros, que erão de boa casa, e como
por amor se affeiçoárão os índios aos Portuguezes, Noticias.
tudo foi bem. Sm.deW
' U U 1, g 04.
CAPITULO III
Viagem de Sebastião Cabot. —Dá nome ao rio da Prata, e demora-se alli
cinco annos.'— Obtém D. Pedro de Mendoza concessão da conquista. —
Fundação de Buenos Ayres. — Guerra com os Quirandis. — Fome.'—
Buenos Ayres queimada pelos selvagens. — Funda-se Buena Esperanza.
— Os Timbués. — Embarca Mendoza para a Hespanha e morre em
viagem. — Sobe Ayolas o Paraguay. — Os Carijós. — Tomâo-lhes os.
Hespanhoes a aldeia, a que. põem ribtrie Assumpção. — Os Agacés. —
Sabe Ayolas em busca dos Carcarisos, povo que se dizia possuir ouro
e prata. — Espera-o Yrala o mais que pôde, e volta depois á Assump-
ção. — Mao proceder de Francisco Ruyz. — Buena Esperanza sitiada e
abandonada. — Envíão-se reforços sob o commando de Cabrera. —
Marcha Yrala em busca de Ayolas.— Averigua-se a morte do comman-
dnnle. — Os Payaguás. — Abandonão os Hespanhoes Buenos Ayres,
concentrando todas as suas forças em Assumpção.
1
Puerto de Patos a chama Funes (1, 6) que a colloca na lat.
88 - HISTORIA DO RRÁZIL.
1525. dos Paios, onde refrescou; e pagando a boa vontade'
manifestada pelos indigenas com a usada villania
d'um antigo descobridor, comsigo levou quatro
d'elles á força. Continuando a crescer o descontenta-
mento da gente, mandou elle, na esperança de re-
balel-o, lançar n'uma ilha deserta três dos princi-
- pães da frota. Não bastou porem este acto de cruel-
dade para restabelecer a subordinação, e chegado
ao rio da Prata, ou de Solis, como então se chamava,
teve de abandonar toda a idéia de seguir para o mar
do Sul. Nem elle tinha viveres sufficientes para
tentar a empreza, nem a sua gente o teria acompa-
nhado. Começou esta porem a obedecer-lhe de boa
mente ao que parece, apenas elle transigiu sobre
tal ponto.
sobe cabot o Não era Cabot homem para voltar sem nada haver
r
Prata. t
1
Não erão estes thesouros producção do paiz; tornárão-se porem
fatal engodo para mais que um desgraçado aventureiro, tantam
enim annis ille vano suo inanique nomine de se expectalionem ex-
citaral, diz Peramas. Prol. ad Sex Sacerd.
HISTORIA DO RRAZIL. 93
a primeira expedição, forão convidados a carregar 1525-
com parte das despezas de segunda; a isto porem
se recusarão mais dispostos a perder o cabedal, de
que ja se havião despedido, do que a arriscar o que
tinhão seguro.. Besolveu pois a corte tomar sobre si
o commeltimenlo. N'estas couzas são sempre mais •
morosos os governos do que os particulares, e se-
manas e mezes se passão antes que se enviem soccor^
ros* a colonos novos, que a toda a hora os estão espe-
rando, e morrendo a mingoa em quanto esperão.
Cabot tractara bem os Guaranis, a tribu mais 0sGuaranis
visinha dos seus estabelecimentos. Ficavão-lhe as Hespanhoes.
aldeias d'estes selvagens dispersas em torno dos seus
fortes, e dous annos viveu com elles em termos ami-
gáveis. A gente de Garcia não se achava debaixo da
mesma disciplina tão necessária e offendeu os indi-
"genas. Erão os Guaranis nação orgulhosa: chamavão
escravos os que não falavão com elles a mesma lín-
gua, e fazião-lhes perpetua guerra, não dand© jamais
quartel na peleja. 0 ouro e prata que d'ellès obti-
vera Cabot, erão despojos trazidos do Peru, aonde
havjão penetrado no reinado de Guaynacapa, pae
do ultimo Inca. Disfarçou este povo, como tinha de
costume, o seu resentimenlo, até podel-o demonstrar
,cfíicazmente. Concenlrárão em segredo as suas for-
ças, e cahindo sobre o forte ao romper da alva,
pozerão-lhe fogo. Da mesma fôrma destruirão S. Sal-
vador, e Cabot, cançado de aguardar reforços, e jul-
94 HISTORIA DO RRAZIL.
1525. gando que seria em'vão tentar manter o paiz contra
tão resoluto inimigo ", evacuou-o, depois de o ter pos-
suído por cinco annos 2 .
1
Conta Ruy Dias de Gazman (Argentina Ms.) que Cabot mandou
quatro Hespanhoes, sob o commando d'um chamado César, de Sante-
spirito ao Peru. Chegarão elles áquelíe paiz, derão ao Inca uma em-
baixada do rei de Hespanha, e forão por elle bem recebidos, sendo '
despedidos com presentes. Ao voltarem a Santespirito, tinha ja par-
tido Cabot, visto o que, pareceu-lhes melhor volver ao Peru, do que
licar entre selvagens; mas á sua segunda chegada aquelle reino, encon-
trarão alli Pizarro e Atabalipa prizioneiro. Ruy Dias diz ter esta narração
de Gohzâlo Saens Garzon, um dos conquistadores do Peru, homem ja
velho e então estabelecido em Tucuman, que em Lima vira César. Se a
historia fosse verídica, mal se concebe que os differentes historiadores
d'aquella conquista a omitissem. 0 próprio nome de César é mais uma
razão para duvidar.
* Techo diz que elle deixou uma guarnição em Sanlespirito, e passa,
depois a contar a historia de Lúcia Miranda, Sebastião Hurtado seu
marido, e Manzora, chefe dos Timbués. Este cacique, diz a historia,
enamorou-se de Lúcia, e para possuil-a, resolveu exterminar todos os*
Hespanhoes. Apoderou-se pois do forte a traição, matando todos, que
alli achou, excepto quatro mulheres, e outros tantos rapazes, mas
elle mesmo cahiu. Succedeu-lhe seu irmão Siripus, que a seu turno
se apaixonou por Lúcia, sobre a qual porem não houve persuasão, que
prevalecesse. Passado algum tempo voltou o marido, que estava au-
sente quando fora sorprehendido o forte; vendo os estragos presumiu
a causa, e foi entregar-se aos Timbués, para que o levassem aonde es-
tava a esposa. Quiz Siripus mandar matal-o, mas a instâncias de Lúcia
deixou-lhe a vida, jurando porem que se ella o reconhecesse por ma-
rido, ambos morrerião. Sorprehendidos os dous ju netos, foi Lúcia
queimada, e Sebastião, como o sane t seu patrono, amarrado a uma
arvore e crivado de settas. A prosa Ai gentina é talvez a primeira auc- '
toridade em que este conto se apoia. Não ha quiçá na historia ame-
ricana aneedota que' mais vezes fosse repetida do que esta, tão con-
traria aos hábitos dos índios, que em si mesma traz a melhor
refutação.
HISTORIA DO BRAZIL. 9o
Com Cabot voltou á Europa um Portuguez por 1525-
nome Gonçalo da Costa. De elle houve a corte de
Portugal informações sobre o rio da Prata, e prepa-
rou um armamento de quatrocentos homens, não
contados os colonos voluntários para aquellas partes.
Procurou-se conservar em segredo o fim da expe-
dição, propalando que ella se proponha expulsar do
Brazil os Francezes. Suspeitando porem a corte de
Hespanha o verdadeiro destino, contra elle protestou,
pelo que se abandonou o projecto. +, 10, e.
Não tardou muito que D. Pedro de Mendoza, cavai- Expedição de
1 • , / , , . ' , , . KP. Men-
leiro de Guadix e da casa real, projectasse um estabele- doza-
cimento em maior escala. Enriquecera elle no saque c' *•st 2
de Roma. Tantas vezes lêem sido malgastas as riquezas
mal adquiridas, que não ha lingua em que esla ver-
dade não passasse a provérbio; não o havião saciado
os*despojos da cidade eterna, e sonhando com outros
Mexicos eCuscos, obteve uma concessão de todo o paiz
do rio da Prata até ao estreito, para seu governo, com
auctorízação de passar através do continente para o Mar
do Sul. Obrigou-se a levar em duas viagens, e dentro
de dous annos, á sua própria custa, mil homens,
cem cavallos e egoas, e provisões para um anno,
concedendo-lhe o rei o titulo de adeantado, e um -„'
soldo de mil ducados por toda a vida, com dous mil
mais tirados do producto da conquista, como ajuda
de custo. Devia levantar três fortalezas, e ser alcaide
perpetuo da primeira; seus herdeiros depois d'elle
96 HISTORIA DO RRAZIL.
1525. devião ser primeiros alguazis do logar onde fixasse
a sua residência, e passados três annos ser-lhe-ia licito
transferir a tarefa de completar a colonização e a con-
quista, quer ao seu herdeiro, quer a outro, que lhe
aprouvesse, e com elle os privilégios annexos, se
denlro de dous annos approvasse o rei a escolha. 0
que era resgate (Tum rei prizioneiro pertencia de di-
reito á coroa; más, para mais animar a empreza,
cerceou-se esta prerogativa em beneficio d'elle e dos
seus soldados, que a devião compartir, deduzido
primeiramente o quinto real, e depois um sexto; se
porem o rei em questão fosse morto em batalha, me-
tade dos despojos pcriencerião á coroa. Fizera-se
esta lei em saudosa recordação do resgate de Ata-
balipa. Havia Mendoza de levar comsigo um physico,
um boticário, um cirurgião, e com especialidade
oito religiosos. Quem nada tem que perder, arrisca
fácil a existenciam; masque um homem como este
fosse aventurar riquezas, que contentarião o mais
desesperado jogador da sua vida, é um dos muitos
indícios de quão geral e irresislivelmente o con-
tagioso espirilo aventureiro prevalecia n'aquella
epocha.
1534. Compromettera-se Mendoza a levar quinhentos ho-
mens na primeira viagem; tal era porem a sua
reputação, e tal o. ardor de ver o rio da prata, que
mais volunlarios se apresentarão do que lhe era pos-
sível acceitar, vendo-se obrigado a apressar a partida
HISTORIA DO. BRAZIL. 97
1534.
para fugir á enorme, despeza, que similhante hoste
lhe fazia. Consistiu em onze navios e oitocentos ho-
mens ' a força com que se fez de vela. Tão brilhante
armamento jamais largara das praias da Europa com
proa na America; mas os que assistirão á partida ob-
servarão, diz-se, que cumpriria rezar por estes aven-
tureiros o officio dos defunctos.
Apoz prospera viagem chegou a expedição ao Rio
de Janeiro, onde se deteve quinze dias, durante os
quaes uma corftracção dos nervos tornou paralytico
o adeanlado, que nomeou João Osório para com-
mand*ar em seu logar. Arranjadas assim as couzas
seguiu a frota para o seu destino, e ancorando juncto
da ilha deS. Gabriel denlro do Prata, lançou D. Pe-
1
SJunidel diz 14 navios, 2,500 Hespanhoes e 150 Allemães e
Ilollandezes. Funes o teguiu ás cegas n'esta estatística, não adver-
tindo que Schmidel, sobrei excessivamente inexaclo em todas as couzas,
escrevia de memória, passados ja muitos annos; que Herrera tinha á
mão os documentos mais authenlicos, sendo um dos historiadores
mais fidedignos; c que é absurdo supporque Mendoza, que contràctara
levar 1000 homens á sua custa em duas viagens, so n'uma conduzisse
2,050!
Nenhuma outra parte das Índias Hespanliolas se pôde gloriar de
contar tantos fidalgos entre os seus primeiros conquistadores como o
Paraguay. Ião n'esta expedição de Mendoza trinta e dous morgados :
era um dos aventureiros irmão de Sancta Thereza. Se era o mesmo,
que na infância tomara parte nos sentimentos românticos d'esta tão
enthusiasticá e tão interessante senhora, e com ella formava planos de
se retirar a uma ermida, ou ir entre os infiéis buscar a palma do mar-
tjrio, quanto melhor lhe não fora que o Senhor o houvesse chamado,
em quanto o coração estava cheio de tão virtuosos propósitos, dó que
ter vindo a ser testimunho e sócio dos soffrimentos, e provavelmente
também dos crimes d'esta miserrima jornada!
i. 7
98 HISTORIA DO RRAZIL.
1534. dro de Mendoza os fundamentos d'uma cidade, que
Buenos^et pela salubridade do clima chamou Nuestra Sefíora
de Buenos Ayres. Pouco tardou que alguns officiaes
invejosos lhe não inspirassem ciúmes de Osório; e
prestando fracos ouvidos a accusações pérfidas, or-
denou-lhes que, cahindo sobre elle o matassem, e
arrastado o cadáver até á praça publica, alli o pro-
clamassem traidor1. Perpetrou-se o assassinio, e as-
simficoua expedição privada d'um soldado honrado,
generoso e bom, como os historiadores o descrevem.
Ainda a experiência não ensinara aos Hespanhoes,
que em paiz de selvagens deve um numero crescido
de colonos perecer á mingoa, se d'outra parle lhes
não vem o susjento, em quanto por si mesmos o não
podem colher da terra. Erão os Quirandiés* que pos-
suião o terreno todo á volta d'este novo estabeleci-
mento, uma tribu nômada, que onde não achava
água, matava a.sede comendo uma raiz chamada
cardos, ou chupando o sangue dos animaes que ma-
tava. Cerca de trezentos d'estes índios havião.armado
Guerra com . . , , ., , ,
os as suas portáteis habitações a quatro legoas do logar
Quirandies. it-j >
escolhido por Mendoza para a sua villa. Agradárão-
lhes os novos hospedes, e por espaço de quinze dias
trouxerão peixe e carne ao acampamento; no décimo
sexto não apparecérão, e alguns Hespanhoes, que
1
Schmidel diz que os dous erão irmãos. Cunhados seria possível,
mas o caso é ja bastante feio, independentemente d'esta circumslan-
cia aggravante.
. HISTORIA DO RRAZIL. 99
l534
Mendoza mandou a saber d'elles, e a trazer viveres,' -
voltarão feridos e com as mãos vazias. Vendo isto,
ordenou o adeantado a seu irmão D. Diogo, que
tomando trezentos infantes e trinla cavallos, fosse
assaltar a aldeia, e matar ou aprizionar Ioda a horda.
Havião os Quirandiés feito retirar mulheres e crian-
ças, e reunido um corpo de alliados, estavão promp-
tos para a defeza. Erão-lhes armas arcos, settas e
tardes,,tridentes de pontas de pedra de meio compri-
mento de lança. Contra a cavallaria servião-se d'uma
comprida correia com um seixo redondo em cadi
extremidade. Com isto costumavão laçar a caça :
atiravão-no com mira cerleira ás pernas do animal,
á volta das quaes enroscando-se a correia o fazia ca-
hir 1 . Em Iodas as guerras anteriores com os índios
havia sido a cavallaria a força principal, e ás vezes
a salvação dos Hespanhoes; este excellente modo de
ataque iriulilizou^a porem completamente. Não po-
dião defender-se os cavalleiros; o commandante e seis
fidalgos forão derrubados e mortos, e todo o troço
1
üsavão os Peruvianos d'umá arma similhante, mas de três pernas,
segundo Herrera, que diz que elles a inventarão contra a cavallaria
(5, 8, 4 . Em outro logar (5. 2, 10) torna a falar n'clla, dando-lhe o
mesmo nome, Ayllos, mas descrevendo-a de modo diverso, como
lanças ou varas compridas, com certas cordas a ellas atadas, para apa-
nhar homens como n'uma rede ou laço. Qvalle (3, 7) diz que a que
usavão os Pampas tinha a bola de pedra so n'uma ponta, c na outra
uma de couro, ou qualquer outra substancia leve, pela qual segurava
o índio a correia, fazendo-a gjrara volto da cabeça para fazer a pon-
taria. A bola de pedra é perfeitamente redonda c polida.
100 HISTORIA DO RRAZIL. •
1534. ( er i a sido exterminado, se o resto não fugisse com
tempo, protegido pela infantaria. Cerca de vinte
peões forão mortos a tardes. Não era porem possível
' que este povo, bravo como era, resistisse a armas
europeas e a soldados como os Hespanhoes: a final
cederão, deixando mortos muitos dos seus irmãos,
mas nem um so prizioneiro. Na tomada aldeia acha-
rão os conquistadores abundância de farinha, peixe,
pelles de loutra, redes de pescar e o que chamão
manteiga de peixe, que era provavelmente azeite
coalhado. Ficarão cem homens para pescar com as
redes aprehendidas, e o resto voltou para o acam-
pamento.
lomeem Mao capitão era Mendoza para similhanle" expedi-
"Ruenos Ayres.
ção. Imprevidente descançava sobre os indígenas do
cuidado de abastecer-se de viveres, e imprudente foi
desavir-se com elles sem necessidade. Seis onças de
pão linhão sido a ração diária logo depois da sua
chegada : agora foi precizo reduzil-a a Ires onças
de farinha e um peixe de três em três dias. Demar-
cou-se a cidade, para cuja defeza se principiou a
erguer um muro de barro da altura d'uma lança e.
de três pés de espessura. A conslrucção era ma, e
o que n'um dia se levantava, cahia no outro; ainda
os soldados não havião aprendido esta parle do seu
officio. Edificou-se dentro do recinto uma casa forte
para o adeantado. Entretanto principiarão a fallar-
, lhes as forças á mingoa de alimento. Baios, cobras,
HISTORIA DO BRAZIL. 101
1534.
lagartos e reptis de lodo o tamanho comivel não tar-
darão a extinguir-se por todas aquellas cercanias.
Três homens furtarão um cavallo e comeràó-no.
Forão postos a tqrmcnlo para confessarem o facto,
e depois enforcados;ficarãona forca os cadáveres e
no dia seguinte tinha desapparecido toda a carne da
barriga para baixo. Um comeu o cadáver de seu
irmão; outros assassinavão os seus camaradas de
rancho para, dando-os por doentes, receberem, cm
quanto podessem oecullar o caso, a ração que lhes
tocava1. Enorme foi a morlalidade. Mendoza, vendo
que todos perecenâo se alli permanecessem, mandou
Jorge Luchsan, um dos seus aventureiros allemães
ouflamengos,pelo rio acima com quatro bergan-,
- lins em busca de comestíveis. Onde quer que che-
gavão os Hespanhoes, fugião deante d'elles os indi-
genas, queimando o que comsigo não podião levar.
Metade da genle morreu de fome, e todos terião
perecido, se não tivessem dado com uma tribu; que
lhes deu o milho strictamente necessário para a Herrera.
5, 9, 10.
volta. -Schmidcl.
C. 1-9.
1
Funes imputa esta crueldade a Francisco Ruiz de Galan, logar
tenente de Mendoza. De Schmidel (c. 7),-que refere a circumstancia
n'um de seus curiosos impressos, e de Herrera se ve que foi um aclo
do próprio Mendoza. 0 Deão de Cordova imputa também a Francisco
Ruiz uma decizão perfeitamente acorde coth os costumes depravados
d'estes aventureiros,... obligando en rigor de justicia á una muger
á que se prostiluyese à un marinero, 6 le reslituyese ei pez que
bajo estepficto le habia dado. Le-se a historia na Argentina poética
(p. 14 da Collecçâo de Barria).
102 HISTORIA DO RRAZIL.
153J. u m a so derrota não desacoroçoara os Quirandiés;.
e e
quSmada conseguirão persuadir os Bartenés, Zechuruas e
pelos selva-
.gens. Timbués a fazerem causa commum com elles, e
a*
' Esta palavra Wasu, grande, prova que a tribu era do mesmo tronco
dos Tupinambás.
2
Talvez um dos três que forão feitos prizióneiros no Paraguay (vid.
supra). Ruy Dias (Arg., Ms.), diz que do captiveiro d'estes homens
resultou grande bem, pois forão entregues muitos annos depois,
quando ja conhecião a fundo a lingua c o paiz. Dá elle aos outros dous
os nomes de João de Fuster e Heitor de A eu na : ambos estes obtive-
rão commendas na Assumpção.
104 HISTORIA DO RRAZIL.
1350
Entretanto voltara Mendoza, agora completamente
Vol en
doza " estropiado., a Buenos Ayres, onde encontrou morta
á Hespanha. . . . .
1
Provavelmente o m e s m o q u e Carcarisos. • '•'•'.••'
HISTORIA DO BRAZIL. H9
1338
se em duas Iribus, Sarigues e Tacambus": infestava
a primeira o rio acima da Assumpção, por muito
mais de duzentas legoas até ao Lago de Xarayes, em
quanto a-segunda levava as suas depredações a maior
distancia ainda pelo rio abaixo até ao Paraná. Não
houve jamais piratas d'agua doce tão atrevidos e
damninhos como estes selvagens quasi amphibios.
A's vezes approximavão-se do navio na escuridão, e
viravão-no de modo que fosse encalhar, pois não
havia no rio escolho nem banco de areia, que elle»
não eonhecessem. Outros nadavão desapercebidos
até ao barco, com a cabeça so fora d'agua, e num
instante o abordavão por todos os lados. Levavão as-
suas canoas ordinariamente três pessoas, erão extre-
mamenle leves, ede mui formoso trabalho. Quando
perseguidos e alcançados, voltavão-nas, e d'ellas se
servião na água como de pavezes, contra as armas
dos inimigos; apenas passado o perigo, endireitavão-
nas d'um toque, e seguião avante. Não erão menos
insidiosos por lerra do que por água. Armavão cila-
das aos caçadores, attrahindo-os como grito imitado
do animal que estes buscavão, fosse ave ou quadrú-
pede ; quando se tractava de partidas mais numero-
sas, enganavão-nas, offerecen#do-se para seus. guias,
dando-lhes manlimento e fructas> e levando-as assim
até ás terem em seu poder, para cahirem então sobre
ellas. de improvizo. Ainda durante o século passado
se não podia navegar o Paraguay sem immenso risco
120 HISTORIA DO BRAZIL.
1518
da parte d'estes selvagens. Moravão com preferencia
nas ilhas, bahias e angras, e alli escondidos por traz
das arvores, esperavâo a sua preza. Suas mulheres
são bellas, porem de baixa estatura, e de pés tão ex-
tremamente pequenos, que teem sido comparados
aos das Chinezas. Suppõe-se que provenha isto do
seu peculiar gênero de vida, passando tanto tempo
L. 6?°srt. IP. em estreitas canoas e jamais viajando d'óutra fôrma.
Buenos-Ayrcs Durante a inundação impossível era' castigar os
abandonada. T4 , - , . i . , ,
. Payaguás pelo assassinato de Ayolas e dos seus com-
panheiros, nem Yrala podia fazer outra cousa senão
voltar. Algum tempo depois cahirão dous d'aquella
tribu prizióneiros dos Carijós: pol-os elle a tormenlcs
até que, culpados ou não, confessarão o faclo, e então,
com a verdadeira barbaridade d'um descobridor,
assou-os vivos! Mas não erão menos emprehendedo-
res que cruéis estes conquistadores; o ouro e praia
recolhido por Ayolas, embora d'estes thesouros so
ouvissem falar, excitou-lhes a cobiça, c resolvidos a
seguir-lhe os passos, e proseguir nas suas descobertas
até ao coração do sertão, entenderão dever abando-
nar -l Buenos Ayres, concentrando na Assumpção to-
1
Refere Ruy Dias (Arg., Ms.) um exemplo ridículo da miséria a
que alli estavão reduzidos os colonos. Pela sua fraqueza e grande mor-
talidade que tinha havido, cahiu sobre elles una furiosa plaga de
tigres, onzas y leones, ...de tal manera que para salir a hazer sus
riecesidades era necesario que saliese número de gente, para res-
guardo de los que salian á ellas.
HISTORIA DO BRAZIL. 121
das as suas forças/. Assim se fez pois, sendo Yrala o í538
commandante, em virtude dos poderes que lhe con-
ferira Ayolas, e do titulo mais valioso da escolha dos
soldados, que para todos, diz Hulderico Schmidel, »
ellese mostrara sempre justo e benevolo, mas espe-
cialmente para estes. Ha razões para acreditar que
1 r
. . . ^ Sxhmidel.
toda a sua justiça e benevolência se cifrava n'elles. H^rr^
6 7,5-
A' chamada responderão seiscentos homens... nem '
um quarto dos que havião deixado a Hespanha, pela Arg. M*.
conquista do Prata.
* Teve esta força considerável augmento com a tripolacão d'um navio
genovez de Varasa, fortaleza, segundo Ruy Dias, entre Gênova c
Saona. Dirigia-se este barco para Limapelo estreito, com mercadorias
no valor de 50,000 ducados, e chegara ja ao Mar do Sul, quando o
mao tempo o obrigou a retrocedei:. Tendo o capitão ouvido que os
Hespanhoes havião formado um estabelecimento no Prata, entrou alli.
Perto de Buenos Ayres encalhou n'um baixo e perdeu-se com a maior
parte do carregamento. Toda a tripolacão se rconiu aos Hespanhoes.
HISTORIA DO BRAZIL.
122
1530.
CAPITULO IV
1
Comtudo ainda o exercito veio achal-o vivo, tendo-se sustentado
dê hervas.
152 HISTORIADO BRAZIL.
1541. muilo antes que este chegasse. Depois renunciando,
á commissão que Gonçalo Pizarro lhe dera, recebeu
de novo o commando da eleição da sua gente, para
que assim podesse fazer descobertas para si mesmo,
e não em nomede outrem, de quem houvesse uma
aucloridade delegada. Não fora a opposição de Fr.
Gaspar tão vehemenle como a de Sanchez, nem talvez
tão sincera : assim o devemos suspeitar, vendo-ô
depois prestar o seu testemunho a todas as falsi-
dades alagadas por Orellana. Disse elle missa se-
gundo a formula prescripta para os marinheiros em
viagem, e entregárão-se todos á corrente que os
levava.
Foi no ullimo dia de dezembro que se encetou
esta viagem, uma das mais atrevidas que jamais se
teem empreliendido'. Ja a limitadíssima provisão de
viveres trazidos do exercito estava exhansta, e a gente
cozinhava os cinctos de couro e as solas dos sapatos
com as hervas que mais próprias parecião. A 8 de
janeiro, abandonada ja quasi toda a esperança de.
vida, ouvirão os Hespanhoes um tambor indiang,
som de alegria, pois fossem o que fossem os sely&x
gens, bem sabrào aqüelles agora que so por culpa
própria morrerião de fome. Ao romper d'alva, vi-
giando altentos, descobrirão quatro canoas, que re-
cuarão ao avistarem o bergantim, e logo appareceu
uma aldeia, onde grande copia de naturaes eslava
reunida, e preparada a defender-se. Para negociar
HISTORIA DO BRAZIL. 133
1541
estavão os Hespanhoes famintos de mais. Fel-os Orei- -
lana desembarcar, collocando-se em linha de bala-
lha ; atacarão elles os índios como quem esfomeado
se bate por comer, e'pondo-os immediatamente em
debandada, acharão prompto fornecimento. Em
quanto saboreavão os fructos da victoria, meltérão-
se os índios nas suas canoas e approximárão-se,
inais para satisfazer a curiosidade do que o resenli-
mento. Falou-lhes Orellana n'um idioma indígena;
q"ue entenderão em parte, e até alguns, cobrando
aliimo, se chegarão; deu-lhes elle algumas bugia-
rias europeas, e perguntando pelo cacique, veio este
sem hesitar, agradou-se muito dos presentes que
lhe coubérão, e offereceu-se para supprir tudo que
d'elle dependesse. Pedirão-se comesliveis, e logo
tivérão pavões, perdizes, peixe e outras couzas em
grande abundância. Nó* dia seguinte apparecérão
treze caciques a ver os estrangeiros : estavão vistosa-
mente ornados de plumas e ouro, trazendo ao peito
chapas d'este metal. Becebeu-os Orellana cortez-
mente, intimou-os a reconhecerem a soberania da
coroa de Castella, aproveitou-se como de costume
da sua ignorância para affirmar que consentião, e
divertiu-os com a ceremonia de tomar-lhes posse do
paiz em nome do Imperador.
A relação que Orellana e Fr. Gaspar fizérão da
sua viagem, éa alguns respeitos palpavelmente falsa,
como se vae ver. O seu fim era exagerar as riquezas
154 HISTORIADO RRAZIL.
1541
• das províncias que havião descoberto. Não ç-pro-
.vavel que estas tribus possuíssem ouro algum, pois-
que nenhuma das do Maranhão estava assaz adean-
tada para d'elle fazer uso. Em toda a parte onde os
índios americanos se servião d'este metal, encontrá-
rão-se habitações fixas, hábitos de vida sedentária,
governo regular, sacerdotes reunidos em corporação,
e uma religião ceremoniada. Tribus nômadas apa-
nharão um grão de ouro, como farião com uma pe-
dra decor, e o trarão pelo seu brilho; mas hão de
deixar de ser errantes para d'elle fazerem chapas ou
utensílios. Um d'estes caciques, segundo contou o
frade, declarou que havia no sertão uma nação rica
e poderosa, e que mais rio abaixo se encontraria ou-
tro paiz rico habitado por Amazonas.
Sete Hespanhoes alli morrerão em conseqüência
da fome que havião curtido» 0 capitão, a quem não
faltava nenhuma das qualidades exigidas por tão
desesperada empreza, entendeu que achando-se em
termos tão amigáveis com os naturaes, era este o lo-
gar azado para construir melhor bergantim do que
o frágil barco em que vinhão e que seria incapaz de
serviço ao entrar no mar. Dous homens, que nunca
antes havião tentado o officio de ferreiro, encarre-
gárão-se das obras de ferro; um terceiro emprehen-
deu fazer carvão, e de algumas botas, que felizmente
havião escapado á cassarola, engenhou-se um folie.
Mettérão todos mão á obra, sendo Orellana o pri-
HISTORIA DO BRAZIL: 135
f541
meiro, que a nenhum trabalho se poupava. Em vinte
dias fizerão dous mil pregos1, e pozerão-se logo a
caminho, não julgando prudente cançar a hospita-
lidade dos seus- novos amigos. Desarrazoada havia
sido a demora, pois que pregos se podião haver
feito conjunetamenle com o bergantim, e n'este meio
tempo consumirão-se as novas provisões. Vinte legoas
mais abaixo deságuava do norte na torrente grande um
rio mais pequeno : descia elle rápido e no logar da
juncção de modo tal revolvia as águas, que os Hes-
panhoes se tiverão por perdidos. D'alli seguirão, se-
gundo o seu calculo, por mais duzenIas legoas, luc-
tando com muitas difficuldades e perigos, através
d'um paiz inhabitado. Afinaltornarão a avistar ha-
bitações. Mandou Orellana vinte homens a terra com
ordem de não assustarem os naturaes; encontrarão
um povo dqcil, que admirou os estrangeiros, dando-
lhes tartarugas e papagaios para sustento : d'ambos
os lados do rio encontrarão os Hespanhoes a mesma
boa vontade. É agora bem povoado o paiz por onde
avançavão. No dia seguinte sahirão-lhes ao encontro
canoas, cuja tripolacão lhes deu tartarugas, perdizes
e peixes, agradando-se tanto os índios do que reçebé-
• Foi isto perder ferro e tempo, pois que tornos de pau terião ser-
vido melhor para o effeito. Nem se sabe d'onde veio o ferro, pois que
Gonçalo -Pizarro' ja tivera tanta difficuldade- em achar o precizo para
o primeiro navio. Talvez desfizessem os arcabuzes, como para o
mesmo fim practicou o remanescente do exercito de Soto. Garcilaso,
1. 6, c. 4. .
136 HISTORIA DO RRAZIL.
1541. r g 0 e m troca, que convidarão o commandante a ir
a terra ver o seu chefe Apariá. Assim o fez Orellana,
dirigindo a este cacique e aos seus subdilos um dis-
curso sobre a religião christã e o rei de Hespanha,
practica que por todos foi escutada com muita atten-
ção, segundo elle disse. Ponderou-lhe Apariá que se
ião ver as Amazonas, que elle chamava Cunha-
apuyarás, ou poderosos caudilhos', vissem bem quão
poucos erão contra nação tão numerosa. Pediu en-
tão Orellana que se convocassem todos os caciques
" T T ^ a província e reunidos vinte, repetiu-lhes os tópicos
acima, concluindo por dizer, que sendo todos filhos
do sol, todos devião ser amigos. Ficarão elles encan-
tados com o reconhecimento d'esla fraternidade, e
mais ainda com verem os Hespanhoes erigir uma
cruz, e practicar a ceremonia de tomar posse do paiz.
E aqui, achando a povo hospitaleiro, e abundante o
mantimento, construiu Orellana o seu novo bergan-
tim. Havia.entre a tripolacão um esculptor de ma-
deira, que agora n'esta occupação mais rude, mas
também mais útil, se tornou singularmente presti-
moso. Calafelou-seo navio com algodão, fornecendo os
indigenas o pez, e em trinta e cinco dias cahiu á água.
Acuna en Estavão n'islo empregados os Hespanhoes, quando
r
ül Maranon y f # ° . r » 1
^Amasonas. chegarão quatro índios, vestidos e enfeitados, e de
1
Parece esta palavra ter sido mal traduzida, e abonar alguma
couza a historia das Amazonas, pois cunha em lingua tupy significa
mulher. Poderosas mulheres épois provaveln entr o fentido.
HISTORIA DO BRAZIL. 137
alta estatura; descia-lhes o cabello até á cinctura. 1541-
Devião pois pertencer á tribu a que depois se poz o
nome de Encabellados, pelo comprimento de cabel- •
los, que tanto homens como mulheres deixavão
crescer livremente, ás vezes alé abaixo do joelho.
Dirigindo-se a Orellana com muita reverencia depo-
zerão mantimento deanle d'elle, dizendo que vinhão
enviados por um poderoso chefe, a saber quem erão
estes estrangeiros, e para onde ião. Fez-lhes este o
mesmo devoto sermão sobre a religião chrjstã, su-
premacia do papa, e poder do rei de Castella despe-
dindo-os depois com presentes. Passara-se a prima-
vera antes da partida dos- Hespanhoes. Fr. Gaspar e
outro padre, que ia na expedição, confessarão toda
a gente, pregárão-lhe, e exhortárão-na a arrostar va-
lentemente todas as difficuldades até ao fim. A 24 de
abril embarcarão todos de novo; pelo espaço de oi-
tenta legoas erão as margens povoadas de tribus
tractaveis; d'alli para baixo tomava o rio por entre
montanhas desertas, onde se derão por felizes com
terem hervas e milho torrado de que se alimeUtas-
sem, pois que nem sequer apparecia um logar em
que se podesse pescai4. A 6 de maio chegarão a um
sitio que parecia ter sido habilado anteriormenle, e
alli íizerãoàlto para matar algum peixe. 0 esculplor
viu em cima d'uma arvore juncto ao rio um yguana,
animal grande da família dos lagartos : fez-lhe pon-
taria com uma besta e a garrucha cahiu na água.
138 HISTORIA DO RRAZIL.
1541. Agranhou-se logo depois um peixe grande, que .a
tinha ja no buxo.
Passados mais seis dias, eslavão na populosa pro-
víncia de Machiparo, que confinava com as terras
d'um cacique chamado Aomaguá. Aqui tomou Orel-
lana o nome da tribu pelo do seu chefe, pois que os
Omaguás n'aquellas partes1 estavão então estabelev
cidos, e provavelmente cahiu no erro opposto a res-
peito da designação anterior, dizendo-se mais adeante
que Machipara2 é o nome do cacique. Uma manhã
virão os Hespanhoes vir uma frota de canoas a ata-;
1
Erradamente suppõe Gondamine, que elles, fugindo do reino da
Nova Granada deante dos Hespanhoes, alli se havião acoutado. Ainda
a conquista de reino não tivera logar, sendo pelo contrario ainda tra-
dição entre os Omaguás de Quito, que o seu berço fora o Maranhão,
fugindo á vista dognavio de Orellana muitas tribus, umas para as terras
baixas dos rios, outras para o Rio Negro na direcção de Orinoco.e do
novo reino de Granada. (Hervas, citando uma carta de Velasco, 1.1,
p. 266.) " "
Também erra Condamine quando diz quca lingua d'esta nação ne-
nhuma similhança tinha nem com a peruviana nem com a brazileira.
E radicalmente a mesma que a dos Guaranis e Tupis. (Hervas, t. 1,
p. 30, 121.) Confirma Acima a auetoridade de Hervas, chamando esta
tribun'uma nota marginal: Nacion descendiente de los Quixos. El
Maranony Amazonas, 1. 2 ; c. 10.
Ua-.se de differentes modos a origem do nome d'estes selvagens.
Acufia diz : Omaguás, impróprio nombre, que les pusieran, qui-
tándoles ei nativo, por su habitacion, que es á Ia parte de
afuera, que esso quier dezir águas. (El Maranon y Amazonas'','
1. 2, c. 10.)-Gondamine diz que significa cabeças-.chatas iti linguado-
" Peru.
2
Na subsequente viagem de Orsua se menciona a província de Ma-
chifaro.
HISTORIA DO BRAZIL. 139
tòil
cal-os : trazião os Índios escudos feitos das pelles do -
caímão, doboi marinho ou da anta, e entre rufos de
tambor e gritos de guerra ameaçayão devorar os es-
trangeiros, Collocárão estes bem perto os seus dous
navios, para que melhor se defendessem, mas quando
qujzerão fazer uso da pólvora, achárão-na humida ;
não lhes restavão pois senão as bestas em que con-
fiar, e fazendo- d'ellas o melhor uso que poderão,
continuarão a descer o rio, pelejando sempre. Pouco
depois chegarão a uma aldeia de índios, cujos habi-
tantes estavão em grande massa reunjdos á beira do
rio; desembarcou metade dos Hespanhoes,ficandoo
resto a bordo para sustentar o combate fluvial. Le-
varão elles os Índios adeante de si até á aldeia, mas
vendo que era uma povoação mui grande, e mui nu-
merosos os selvagens, voltou o commandante do
destacamento para onde estava Orellana, a dar a sua
parle. Enviou-se um reforço de treze homens, e to-
mada então a aldeia, volvião os vencedores carregados
de provisões, quando forão atacados por uns dous
mil índios, dos quaes so apoz um renhido combate
de duas horas poderão livrar-se, recolhendo-se aos
bergantins. Dezoito da partida forão feridos, entre ôs
quaes Pedro d'Ampudia, que morreu. Não havia
nem cirurgião nem remédios para elles, pelo que so
recitar psalmos sobreas feridas se podia, tractamenlo
que nada tinha de desusado, e tanto mais racional
do que os methodos então em voga, que não admira,
140 HISTORIA DO BRAZIL.
1541
que em geral d'elle se colhessem melhores resul-
tados '.
Apenas embarcados os despojos, largarão os Hespa-
nhoes rio abaixo. Todo o paiz estava ja então alvoro-
tado contra elles. Milhares de índios cobrião as duas
margens, c não podendo alcançar os estrangeiros,
com gritos e vozes animavão os das canoas. Toda a
noüte durou á perseguição, affrouxando porem pela
manhã; então os aventureiros, rendidos ás fadigas
da véspera, desembarcarão para uma ilha deserta,
onde repouzassem e apromptassem a comida, 0 que
não podião fazer sobre nenhuma das margens, am-
bas povoadas e ambas hostis. Apparecérão outra vez
as canoas, e Orellana vendo que os índios saltavão
em terra para atacal-o, a toda a pressa se recolheu
aos navios. Alli mesmo todos os esforços lhe forão
1
Sanjurge, soldado da expedição de- Hernando Soto, effecluara
grandes curas com auxilio de óleo, lã e psalmos, mas tendo-se perdido
todo o óleo durante a retirada, abandonou elle a clinica, como d© ne-
nhum prestimo sem aquella droga. A final porem foi elle mesmo fe-
rido, e como havia jurado não se sujeitar á crueza do cirurgião, tomou
lardo em vez de óleo, desfiou um casaco velho para supprir a lã, e
poz-se a recitar os psalmos. Em quatro dias estava curado, visto o
que declarou que toda a virtude estava nas palabras da Escriptura, e
pediu perdão por ter deixado perecer tantos, persuadido de que óleo
elã suja erão essenciaes ao curativo. Garcilaso,\. 5, p. 2, c. 5. Refere
este auctor perluxamente o caso na sua interessantíssima historia da
expedição de Soto. Herrera, que o repete (7, 7, 5), tem a mesma fe
que este psalmista, e conclue dizendo : Era este hombre casto,
• buen Christiano, temeroso de Dios, gran ayudador de todos, y
curioso en otras tales virtudes.
HISTORIA DO DRAZIL. 141
precizos para se salvar. Era como se toda a força (ia t5íi.
província se houvesse colligado contra elle, com
todasas suas canoas. Ahi yinhão avançando sempre,
rufando seus rudes tambores, tocando buzinas e
trombetas com tremendos clamores de guerra. Vião-
i f h 7% • . .
1
É divertido ver como esta historia se engrandeceu, onde so por
tradição era conhecida. Nas Noticias do Brazil diz-se que Orellana
se bateu com um poderoso exercito de mulheres, i, c. 4. '•'•
HISTORIA DO BRAZIL. 147
gundo o seu calculo, mil e quatrocentas legoas. 1541
A alguma distancia d'este perigoso passo encon-
trarão outra povoação grande, onde, não vendo sel-
vagem algum, insistiu a soldadesca com ò seu com-
mandante, para que desembarcasse. Disse lhes elle,
que se o povo não apparecia, estaria seguramente de
emboscada, e assim foi. Apenas os bergantins che-
garão assaz perto, surdirão os indígenas, disparando
uma multidão de frechas. Em bem foi para os navios
lerem sido pavezados ao deixarem o páiz de Machi-
paro, ou muito terião soffrido agora : assim mesmo
perdeu Fr. Gaspar um. olho- e fortuna fora para a
sua reputação de veracidade, se ambos os houvera
perdido antes de ler visto as suas Amazonas brancas.
Sobre a margem meridional ja as cidades ou aldeias
em parte nenhuma distavão mais de meia legoa uma
da outra, nem menos povoado era o interior do paiz,
segundo asseverarão aos Hespanhoes. Tendo entrado
n'esta província no dia de S. João, deu-lhe Orellana
o nome do sancto. Calculou-lhe a extensão em cento
e cincoenla legoas de borda rio, habitada, obser-
vando-a com especial solicitude, como paiz, que um
dia esperava fazer seu : erão terras altas, com muitas
savanas, e florestas de sobreiros é carvalhos de va-
rias espécies. No meio do rio ficavão numerosas
ilhas, em que pensou saltar, reputando-as inhabila-
das; de repente porem largarão d'alli algumas
duzenlas canoas, cada uma com seus trinta ou qua-
148 HISTORIA DO BRAZIL.
1541. renta homens, alguns dos quaes levantarão discor-
dante ruido de tambores, trombetas, rabecas, de Ires
cordas, e uns instrumentos que parecião gaitas ou
órgãos de boca, em quanto todos atacavão os ber-
gantins. Apezar de rechaçarem esles inimigos, virão-
se tão apertados os Hespanhoes, que em nenhumas
d'estas ilhas poderão tomar mantimento. O terreno
d'eljas parecia elevado, fértil e delicioso, e a maior
medir cincoenta legoas de largura. Assim que as ca-
noas desistirão da caça, desembarcou Orellana n'um
bosque de carvalhos, onde por meio d'um vocabulá-
rio , que compozera, interrogou um prizioneiro.
D'elle soube que era este paiz sujeito a mulheres, que
vivião á moda das Amazonas dos antigos, e possuião
ouro e praia em abundância. Havia nos seus domínios
cinco templos do sol, todos cobertos de chapas de
« ouro; de pedra erão suas casas, e muradas suas ci-
dades. Herrera observa com razão, que não era pos-
sível que Orellana na sua viagem compozesse um
vocabuláriol, com auxilio do qual se entendesse uma
exposição como esta. A verdade é, qüe tendo, como
Raleigh, achado um paiz que julgou digno de çon-
quistar-se e colonizar-se, inventou a seu respeito as
falsidades que melhor poderião tentar aventureiros
4
Condamine preparou um vocabulário, antes de emprehender a
viagem pelo rio abaixo. Escreveu todas as perguntas que lhe poderia
ser precizo dirigir, mas esqueceu-se de pôr também as respostas.
P. 111.
HISTORIA DO BRAZIL. 149
a acompanhal-0 na prójectada empreza. Umas pou- 15Í1
CAPITULO V
1
DizFalkner que cresce esta arvore nas Cordilheiras do Chili. A madeira
é mui rija, branca e durável. A pinha duas vezes maior do que as que dão
os pinheiros na Europa, eos pinhões do tamanho de tamaras com uma
casca mais fina. A fructaé comprida e grossa, com quatro ângulos rom-
bos. Cozendo estes pinhões prepararão os índios para longas jornadas,
ou para conservar em casa, provisões, que tinhão um sabor de amêndoa,
mas não tão oleoso. Produz esta arvore considerável porção de tere-
binthina, que se forma n'uma massa um tanto mais dura do que a re-
sina ordinária, mas muito mais clara e transparente,, embora não tão
amarella. Os Respanhoes servem-se d'ella como incenso, de que lhe
dão o nome.
Azara chama esta arvore Curiy, mas o nome indígena é Curiyeh.
166 HISTORIA DO RRAZIL.
ig4i. fructa, apanhão-na e vão-na comendo em quanto os
macacos de cima lhes arreganhão os dentes. N'a-
quelle logar, que tinha nome Tuguy, fez o adeantado
alto por alguns dias, em honra do Natal; "por outras
occasiões, embora instado para deixar descançar a
gente, sempre o recusara, e agora, pelos mãos effeí-
comenurios. t os (Piini curto repouso, todos conhecerão quão ne-
7,e2,e9a' cessario era o exercício para preservar a saúde.
Um rio serpejanle, cujas formosas margens se co-
brião de cyprestes e cedros, muito trabalho lhes deu
para o cruzarem erecruzarem por quatro dias. Erão
alli as batatas de três espécies, brancas, amarellas e
vermelhas, todas grandes e excellentes : abundava
1542. também o mel. Com o anno novo tornarão a entrar
n'um deserto, onde pela primeira vez lhes falhou o
mantimento. Acharão porem um optimo no que em
outra occasião terião rejeitado. Vive nas junctas
d'uma espécie de canna um verme branco do tama-
nho do dedo minimo d'um homem, e tão gordo, que
se pode frigir na própria banha; comem os índios
estes vermes, e os Hespanhoes, obrigados* agora a
provarem, confessarão que erão saborosos. Crescião
alli também outras cannas, que continhão boa água.
Em seis dias avistarão outra vez habitações. Alli foi
precizo reprehender os dous Franciscanos : tinhão
levado comsigo em despeito das ordens do adeantado
um inútil enxame de conversos, moços e velhos, e
' com elles entenderão que devião adeantár-se ao exer-
HISTORIA DO RRAZIL. 167
15i2-
cito, è ir comendo as provisões. Os Hespanhoes terião
corrido com elles, e com o seu cortejo, se Cabeza de
Vaca o houvera consentido. Contentou-se com pro-
hibir-lhes expressamente, que continuassem lia
mesma :fizerãotanto caso d'esta, como da primeira
prohibição, è n'aquelle logar aventurárão-se a apar-
tar-se da partida, e seguir seu próprio caminho.
Teve o commandante porem a humanidade de man-
dar atraz d'elles, obrigando-os a voltar, alias não
terião tardado a encontrar a sorte que parecem ter
Comenla-
rips 9
merecido. --
A 14 chegarão os Hespanhoes ás margens do
Yguaçu, rio que se diz ser tão largo como o Guadal-
qaivir. Erão os habitantes alli os mais ricos de todas
aquellas regiões; e esta palavra se lhes applica no
seu' sentido mais philosophico e verdadeiro. Vivião
no mais fértil paiz, e não havia quem na abundância
não tivesse o seu quinhão. D'alli destacou Cabeza de
Vaca dous índios adeante com cartas para a Assump-
ção, annunciando a sua chegada, e quatro homens
dos seus, que não estavão em estado de seguir,
deixou-os atraz com Francisco Qrejon, que da mor-
dedura d'um cão ficara coxo. Voou adeante d'elle; a
nova da sua chegada, e por toda a parte colheu a sua
gente os bons fructos da ordem exemplar que elle
havia feito guardar. Sahião-lhes os naluraes ao en-
contro, apromplando os caminhos, quando os Hespa-
nhoes se approximavão; as velhas os recebião com
168 HISTORIA DO RRAZIL.
1542. grande alegria, couza de não pequena conseqüência,
pois erão ellas tidas .em alta veneração, ao contrario
dos velhos. No ultimo de janeiro chegarão ao mesmo
rio Yguaçu, do qual havia ja tanto tempo tinhão
. atravessado um ramo do mesmo nome. Vae esta cor-
rente, conhecida também pelo nome de Rio Grande
de.Coritiba, desaguar no Paraná. Uma partida de
Portuguezes, enviada por Martim Affonso de Souza a
explorar o paiz, havia succumbido aos golpes dos in-
dígenas, ao atravessar esle rio. Informado de que a~
tribu, que habitava sobre o Pequery, lhe preparava
egual acolhimento, resolveu o adeanlado descer o
rio com parte do exercito, em quanto o resto mar-
chava pela ribeira, até chegar ao Paraná. Comprá-
rão-se aos indigenas canoas, cm que elle se melteu
com oitenta homens. Apenas havião encetado a" via-
gem, quando o redomoínho da corrente os arrebatou.
Parece que os naturaes desejavão a destruição dos
estrangeiros, pois achavão-se perto das medonhas
Comentários. . 0
io,n. cachoeiras do Iguaçu. .
cachoeirasdô Este rio, que tranquillamente corre por entre flo-
restas de gigantescas arvoreSj conservando no curso
uma largura uniforme de cerca d'uma milha, toma
a direcção do sul umas três milhas antes da sua
queda, sendo aqui de quatrocentas e oitenta duas
braças a sua largura contrahida, de doze a vinte pés
a sua profundidade, e pouco elevadas as suas mar-
gens. Ao approximar-se da cataracta apertão-lhe ai-
HISTORIA DO RRAZIL. 169
1542
guinas ilhotas, e muitos rochedos e cachopos desta- -
cados do lado esquerdo, o canal, que se inclina um
pouco para o poente. Pouco mais abaixo principião
as águas do canal do meio a sua descida. Segue o
ramo menos fundo o seu curso ao longo da riba
oriental por entre recifes e rachas, cahindo ora em
cataractas ora em lençoes até que apertado d'aquelle
lado pela margem, dá o, seu ultimo salto d'uma sa-
liência pequena, a duzentas e oitenta braças de dis-
tancia do primeiro ponto da queda. Cahem as águas
primeiramente sobre um rochedo, que se projecta
cerca de vinte pés, e d'alli se precipilão na bacia
grande, que fica vinle e oito braças abaixo do nivel
de cima. O ramo occidental parece repousar, depois
de quebrado o curso, n'uma bahia formada pela
ponta saliente d'uma ilha, atirando-se depois em
dupla cataracta á bacia commum. Mede este canal
trinta e três braças de largo, e do ponto, onde d'a-
quelle lado principia a descida até á ultima queda,
vão seiscentas e cincoenta e seis. Acima da queda
sobe a água cinco pés nas cheias, e abaixo d'ella
vinte e cinco. A largura do canal opposto á ilha é
de quarenta braças, e de sessenta e cinco uma legoa
abaixo da catadupa, distancia até onde conlinuão as
águas em estado de agitação. Vêem-se enormes tron-
cos de arvores fluctuar por alli abaixo, levados em
rodopio ás bordas da bacia, ou ficar atravessados
entre os recifes e penedos sollos, ou apanhados pelas
170 HISTORIA DO RRAZIL.
1542- numerosas ilhas, que ficão no meio da corrente, e
alguns na própria cachoeira, dividindo e subd.iyj-
dindo-lhe as águas n'uma infinidade de canaes, Da
bacia se escapa o rio com irresistível força através
de rochas de granito, de oitenta e cem pés.dç alto,
aqui pardas, alli d'um vermelho carregado,.li.ra.qte
a purpura. Nenhum peixe, segupdo se diz, pôde ap-
proximar-se d*este tremendo sitio. Espesso vapor
d'alli se eleva até dez braças de altura quando, o dia
está claro, e até vinte e mais de manhã, quando o ceo
está encoberto. Do Paraná se avista esta nuvem, ou-
vindo-se o distinctamente o estrondo da queda n'ji-
ma distancia de doze milhas em linha recta ",
Pela crescente rapidez da corrente percebendo ;p
perigo, e ouvindo o ruido das cachoeiras, ainda os
Hespanhoes aterrarão a margem em tempo, e, la-
vando as canoas com grande difficuldade meia legga
por terra, tornarão a embarcar e ambas as partidas•
, chegarão ajsalvamento ao logar da reunião. 0 Pa-
5
Passagem do ° Wm ' .
Paraná. raná, cuja violentíssima torrente tinhão agora «le
atravessar, mede um bom tiro de besta de orhva
orla. Sobre ambas as margens estava reunido grande
numero de Guaranis com os corpos variegados fie
1
É tirado islo d'uma dèscripção das cachoeiras manuscripta em lín-
gua hespanhola. Demorou-se o auctor oito dias no local para fazer ob-
servações ; possuia todas as habilitações para poder ser esacttnios seus
apontamentos, e podemos confiar no que diz. A posição exacta da.ca-
taracla é em 25" 42' 20'' lat. S., e 3° 47' 50" loiig. L. de Buenos
• Ayres.
HISTORIA DO RRAZIL. 171
1542
muitas cores, ebesunlados de ochre; de pennas de -
papagaios erão seus cocares, fazendo goáto ver a
gàrbosa vista que mettião, diz o chronista. Mandou
-Cabeza de Vaca os seus interpretes a concilial-os, e
ganha com presentes a boa vontade dos caciques,
ajudárão-no elles na passagem do rio. Fizerão-se
jangadas para os cavallos, prendendo duas canoas
uma á outra. Havia na água muitos remoinhos. Ví-
rou-se uma canoa, sendo um Hespanhol levado pela
correnteza, que o tragou. Alli contava o adeantado
encontrar bergantins da Assumpção á sua espera,
para lhe segurarem esta passagem, onde os Guaranis
tanto o podião haver apertado, e receberem a bordo
os inválidos de tão longa e penosa marcha. Nenhum
porem appareceu; havia cerca de irinta doentes, que
não podião ir mais longe, nem era prudente demo-
rar-se com elles entre uma tribu suspeita de hostil,
e conhecida por traiçoeira. Resolveu-se pois mandal-
os nas mesmas jangadas pêlo Paraná alfcixo, confia-
dos aos cuidados de Francisco, índio convertido, que
habitava as margens d'este rio. Um cacique, por
nome Yguarou, encarregou-se de conduzil-os; ficava
o logar do destino a quatro dias de viagem, e para
í . i , • . , Comentários.
escolta derao-se cincoenta homens. n-is.
Avaliava-se em nove dias a formada por terra, que chegada
reslava ainda. Practicou Cabeza de Vaca a ceremonia
de tomar posse do Paraná, formalidade que elle pa-
rece não ter omittida em ocçasião nenhuma, e seguiu.
172 HISTORIA DÓ RRAZIL.
1542. avante. Erão peores os caminhos pelos muitos rios e
pantanaes que havia de atravessar; mas os indígenas
falavão ainda a mesma lingua, e continuarão a mos-
trar-se amigos. Divide uma serra as terras que ficão
entre o Paraná e o Paraguay. Para o lado do sul é
suave e gradual o seu pendor, e claros são todos os
rios que despeja na primeira d'eslas correntes; más
para o lado do norte é escarpada a encosta; as águas
precipitão-se sobre um terreno panlanoso e coberto
de limo, d"onde vão turbar as do Paraná. Chegou um
mensageiro da Assumpção. Disse que em taí miséria
se achavão alli os Hespanhoes, que embora houvessem
recebido as cartas do adeantado, não podião dar cre-
dito a novas de tanta alegria, em quanto com os
próprios olhos o não vissem. Por este homem soube^
se da evacuação de Buenos Ayres; soube-se tambein
que os Hespanhoes d'ella arrependião, pois que não
achando logar algum de refugio os navios que che-
gassem, perdidas erão todas as esperanças de soc-
corros. Com esta noticia mais apressou Cabeza de
Vaca a marcha, para poder mandar auxilio aos seus
navios, que o abandono d'aquelle estabelecimento
devia ter posto em grande apuro. Os Guaranis lhe
sahião ao encontro, trazendo comsigo mulheres e fi-
lhos, o mais seguro penhor de amizade; prepará-
vão-lhe os caminhos, e supprião-no abundantemente
de tudo o necessário. Muitos d'enlre elles lhe dirigi-
rão a palavra em hespanhol. Finalmente a 11 de
HISTORIA DO BRAZIL*. 173
março entrou na Assumpção, onde, vistos os seus po- 1542-
deres, foi recebido como governador. Enlregou-se-
lhea vara da justiça;, elle nomeou novos officiaes, e
geral parecia o contentamento pela sua chegada. comentários.
Entretanto em grande risco se havião visto os „ . ,
-••>•', ° Perigo dos
doentes e a sua escolta. Apenas partira o adeantado, ds0„fee/co?tada
tentarão os índios, que nada mais tinhão que recear
do seu poder, nem que esperar da sua generosidade,
a aprizionár-lhe o destacamento. Um troço o perse-
guiu em canoas, em quanto da margem outro pro-
curava puxar as jangadas para terra com o auxilio
de compridos ganchos, e se o conseguisse, não tarda-
rião os Hespanhoes a ver-se esmagados pelo numero.
Dia e noute continuou por duas semanas esta vexa-
tória guerra, sendo o mais que os Europeos podião
fazer, cobrir-se o melhor que lhes era possível,
guardar o meio dorio,e deixar-se levar pela corrente.
Muitas vezes os remoinhos lhes punhão em perigo as
vidas, e so inauditos esforços os poderão livras de ir
dar á ribeira, onde inevitável teria sido a sua
perda. A final, tendo sabido da sua approximação,
veio:lhes o índio Francisco em auxilio, levando-os
para uma ilha que tinha, onde lhes sararão as feri-
das, e elles se restabelecerão das fadigas e da fome.
Cabeza de Vaca mandou bergantins a buscal-os, e
trinta dias depois d'elle estavão na Assumpção. Coment. 14.
1
De cobre, dizem os commentarios; mas deve haver erro, pois
que naquella parte do paiz se não encontra metal de qualidade al-
guma. • .,
HISTORIA DO BRAZIL. 175
a isto os pães e parentes das crianças, que as exhor- 15*2-
távão a ser valentes, e a aprender como se mata um
inimigo. Diz-se que os- craneos d'esta gente erão tão
duros, que bastando um golpe de macana para der-
ribarum boi, erão precizos cinco ou seis para lançar
por terra um homem. 0 que n'uma d'estas matanças
vibrava o primeiro golpe, tomava desde então o
nome da sua victima. Reuniu Cabeza de Vaca estes
Guaranis, e fez-lhes saber que como vassallos do rei
de Hespanha devião renunciar a estas abominações,
aprender a conhecer a Deus, e abraçar a fe christã. comem. ie.
Era o Paraguay infestado por uma tribu caçadora 0s Agacés.
e pescadora, chamada dos Agacésl, que erão piratas
ou bandoleiros, excedendo em crueldade os Paya-
guás. Coslumavão elles quando com as suas esqua-
d r a s volantes de canoas fazião alguns prizióneiros,
Jeval-os de tempos a tempos ao logar da sua resi-
dência, e dar-lhes tractos na presença dos parentes,
mulheres ou filhos, até que estes comprassem a ces-
sação dos lormenlos. De ordinário acabavão. por
matal-os a final, deixando-lhes as cabeças postas em
espeques á margem do rio. A chegada do adeantado
aterrou esta raça damnada, que veio pedir-lhè paz.
Concedeu-a elle com condição de entregarem todos
os prizióneiros que tinhão em seu poder, e promet-
t
1
Azara (P. 2, p. 119) diz que os Payaguás se dividiâò%m dous
ramos, Cadigué e Magach, sendo Agacé a corrupção hespanhola do
ultimod'estes nomes, derivado do dum cacique.
176 HISTORIA DO BRAZIL.
1542. terem jamais offender n e m os Hespanhoes nem os
seus ai liados, nem mesmo entrar, senão de dia, na
coment.n parte do rio que banhava o território d'estes.
os Os alliados dos Hespanhoes queixavão-se também
Guaycurus. ^ ^ ^ e j ^ f a z j g 0 o s fiuaycurus, tribu mui te-
mida. Erão caçadores estes selvagens, pelo que não
tinhão domicilio certo. As esteiras de que fazião suas
tendas, fáceis se removião d'um logar para outro,
depois de exhausta Ioda a caça em derredor, e poucos
animaes lhe escapavão, pois se falhavão as settas,
erão assanhados na carreira por mais velozes que
fossem. Em novembro recolhião a casca da algar-
roba, que punhão de conserva em farinha, prepa-
rando depois d'aqui uma bebida forte. Tinha cada
cacique os seus limites, que ás vezes ultrapassava,
caçando oü pescando, o que era permittido aos da
mesma nação, mas não aos confinantes de differente
joíisenc16 tronco
- Prestavão a um chefe honras singulares;
Techo quando estava para escorrar, exlendião os que fica-
emChurchill. » - . ' ' „ 1 ,.
p. 52. vao perto as mãos em que recebessem a saliva.
Para um Guaycuru ser admitlido á ordem de guer-
reiro, devia dar prova do seu valor, mostrando que
podia soffrer a dôr como se a ella fosse insensível.
E o que fazião cortando-se e picando-se nas partes
mais delicadas. Educavão-se os rapazes ensinando-
os a blazonar d'estas demonstrações de fortaleza, e a
travar com fúria real guerras simuladas. Costumívão
dar de noute os seus assaltos, escolhendo sempre as
HISTORIA DO BRAZIL. 177
4542
mais escuras. Era distinclivo de classe o modo de -
cortar o cabello. Os homens andavão nus, disfar-
çando comtudo d'alguma forma a nudez com pin-
tarem o corpo, Os que corresponderião aos peralvi-
lhos na Europa, trazião na cabeça uma rede. As
mulheres veslião-se decentemente de pelles ou
pannos da cinctura para baixo, e para cima pintavão-
se como os homens. Quando se enterrava um cacique
suicidavão-se alguns dos seus para lhe fazerem
companhia; outros erão mortos sem que se lhes
consultasse a vontade. Nos cemitérios erigião-se aos
finados cabanas, que se reparavão quando era pre-
cizo, e onde se depositavão viveres, roupas, e tudo de
que poderia carecer o espirito. Os Euacagás, uma
das tribus em que está nação se divide, são abomi-,
nados pelas outras, por não terem escrúpulo em abrir
as sepulturas em busca do que se enterrara com os
mortos. Crião estçs Índios que as almas dos mãos •
passavão a animar feras.
Matavão todas as crianças disformes, illegitimas,
ou gêmeas, provavelmente pela idéia de que por
fo,rça havião de sahir fracas. Costume ainda mais
bárbaro era o de não crear uma mãe mais do que
um filho, procurando abortar, ou matando todos os
outros, logo depois de nascidos. Ao único que ficava
fazião-se porem todas as vontades e desejos, por mais
caprichosos que fossem. Observava-se uma espécie
de monogamia, pela qual não podia o homem ter
i. 12
178 HISTORIA DO BRAZIL.
IÔ42. raais do que uma mulher ao mesmo tempo, embora
Hie fosse licito mudar de consorte, quantas vezes
quizesse; é isto com tudo melhor do que a polygamia
nem escravizar as mulheres, razão talvez por que
são tractadas com respeito. N'este notável e impor-
tante ponto, differião os Guaycurus da maior parte
coment.19. dos selvagens; e se as mulheres dos inimigos lhes
emchurchiii. can ião nas mãos, nem as retinhão prizioneiras, nem
Jolis. C. 6.
A. 11. as offendião de modo algum.
Marcha Gom ridícula formalidade investigou Cabeza de
Ca z de
va â Vaca a verdade dos artigos contra esta nação. Inquí-
Guaycurus. riu testimunhas sobre o facto das hostilidades com-
mettidas pelos Guaycurus, e convidou os frades a
pronunciarem "sentença de guerra contra elles, como
inimigos capitães. Mandou depois dous Hespanhoes,,
que lhes entendião a língua, acompanhados d'um
padre e d'uma guarda sufficiente, intimal-os a faze-
• rem paz com os Guaranis, e prestarem obediência ao
rei de Castella, intimação que por três vezes devião
repelir. Com escarneo forão recebidos os mensa-
geiros, e rechaçados á força, visto o que, marchou o
adeantado contra elles com duzentos homens e doze
cavallos. Reuniu-se para esta jornada um exercito
tal de Guaranis, que oito horas levarão a atravessar
o rio em duzentas canoas. Effectuada a passagem, e
no acto de entrarem no território inimigo, pedirão
ao adeantado licença para lhe offerecerem os pre-
sentes em taes occasiões costumados. Cada cacique
HISTORIA DO RRAZ1L. 179
,542
lhe deu um arco pintado e uma seita também pin- -
tada, cujas pennas erão de papagaio, e cada homem
trouxe uma flecha, gasjando-se toda a tarde n'esta
ceremonia. Ião estes alliados besunlados de ochree
pintados de varias cores. Trazião contas ao pescoço,
cocares da mais rica plumagem, e na testa uma
chapa, ao que parecia de cobre brunido, e que, se-
gundo elles, devia cegar os olhos dos inimigos, e
confundil-os. Até aqui havião elles de emas ou
abestruzes americanas, e de toda a espécie de caça
abastecido o exercito, mas agora que pizavão paiz
hostil, não caçavão mais, na esperança de pilharem IS.'
, . . . Herrera.
de sorpreza o inimigo. 7,6, u.
Pouco confiavão os Hespanhoes nos seus alliados,
dos quaes se precavião tanto, como do próprio ini-
migo. Na segunda noule penetrou um jaguar ou
tigte da America do Sul, no campo dos Guaranis;
suscitou-se um tumulto, e os Hespanhoes, suspei-
tando traição, tocarão alarma, e aos brados de Sanc-
tiagó atacarão os selvagens, que immediatamente
meltérão pernas. Apenas descoberta a causa do alvo*
roto, foi Cabeza de Vaca ter com elles, e so com
grande difficuldade logrou convencei-os do en-
gano, e reconcilial-os. Elle próprio escapara por
pouco na confusão; duas balas demusquele lhe
roçarão pela face, o que elle impulou a desígnio
e não a acaso, persuadido como estava de que
Yrala, suspirando pela auctoridade de que elle o
180 HISTORIA DO RRAZIL.
1542. privara, não escrupulizarià nos meios de rehavel-a.
Acabava n'aquelle momento de restabelecer-sè a
ordem, quando chegou um dos esculcas com a nova
de que os Guaycurus, que tinhão andado vagueando,
eslavão armando suas tendas a três legoas"de distan-
cia. Era cerca de meia noute; o adeantado poz-se
immediatamente em marcha para cahir sobre elles
ao romper do dia, mandando fazer com giz uma
cruz nas coslas e peito dos alliados, que não fosse
algum ser ferido por engano. Chegarão todos ao
logar ainda com escuro e esperarão a alvorada para
atacar. Haveria alli suas vinte tendas de esteira, se
tendas podião chamar-se, de quinhentos passos de
comprimento cada uma. Orçou-se em quatro mil o
numero dos combatentes que teria a horda i .
Mandou Cabeza de Vaca deixar um caminho por
onde podesse fugir o inimigo, que elle queria imi-
midar, não destruir. Enfreados como eslavão enche-
rão-se de herva as bocas aos cavallos, para que não
rinchassem. No meio d'estas precauções tremião de
medo os Guaranis, que nem a presença de taes allia-
dos podia inspirar-lhes confiança contra tão formi-
dável tribu, e próxima eslava ja a hora da provação.
Em quanto Cabeza de Vaca os exhortava a cobrarem
•
1
Deve haver aqui exageração gorda : segundo esta conta devia
cada dormitório, com velhos, mulheres e crianças, conter pelo menos
q uinhentas pessoas. Compridas como bazares devião ser taes tendas,
e infinitamente mais incommodas de armar do que muitas pequenas.
HISTORIA DO BRAZIL. 181
1542.
animo, e atacarem valentemente os seus inimigos,
erguerão os Guaycurus o seu canto matutino ao rufar
dos tambores. Era um hymno de exultação; desafia-
vão todas as-nações a virem medir-se com elles, se o
ousassem, pois dizião : Se somos poucos, somos mais
bravos do que nenhum outro povo, e senhores da
terra, de toda a caça das florestas e de todos os rios,
e de quantos peixes n'elles vivem. Todos os dias tal
era o seu cântico antes do romper d'alva, e aos pri-
meiros raios de luz da aurora sahião todos fora,
proslrando-se por terra, provavelmente em adoração
do sol nascente. Segundo este costume, sahirão elles
lambem agora com fachos nas mãos; virão os mor-
rões accezos dos arcabuzeiros, nem tardarão a desco-
brir o exercito que contra elles vinha, mas em logar
de retrocederem assustados, perguntarão intrepida-
mente quem se atrevia a approximar-se-lhes das
tendas.-Respondeu um cacique guarany: Heitor sou
(era o nome com que havia sidobaplizado), e com o
meu povo venho a tomar-vos contas dos que tendes
morto. Tal era a phrase com que elles exprimião a
vingança. Em ma hora vindes, responderão os Guay-
curus, pois ireis atraz d'elles. E arremessando os
archotes aos Hespanhoes, forão tomar as armas, e
voltando n'um instante os investirão, como se Os
animasse o maior desprezo dos seus contrários.
Recuarão os Guaranis, e terião fugido, se o ou-
sassem. Entretanto tinnão-se posto aos cavallos os
182 HISTORIA DO BRAZIL.
1542. peitoraes recamados de guizos, e Cabeça de Vaca
carregou á sua frente. A este inesperado modo de
ataque, e vista de animaes nunca vistos antes, poz-
se o inimigo immediatamenteem fuga, incendiando
' as tendas. Assegurou-lhes o fumo a retirada, e ti-
rando d'isto vantagem, matarão dous Hespanhoes e
doze índios, levando-lhes as cabeças como tropheos.
Com singular mas barbara destreza practicavão elles
este modo de matar e decapitar a um tempo; agar-
ravão o inimigo pelos cabellos, serravão á volta o
pescoço, e andando-lhe com a cabeça á roda, a ar-
rancavão com pasmosa facilidade. O instrumento
que para esta operação lhes servia, era a queixada
da palometa. Não ha outro animal assim pequeno,,
provido de tão formidáveis dentes como este peixe.
Apezar de não passar de duas ou três libras o seu
pezo ordinário, e ter de largo metade do compri*
mento, ataca elle homens na água, sendo n'aquella
parte da America muito mais temido do que o jacaré.
Contem cada queixada quatorze dentes, tão agudos
e cortantes que os Abiponés tosquião com as duas os
seus carneiros. Um d'estes bravos índios resolveu,
como Eleazar com o elephante, ver o que erão estes
animaes, e se erão vulneráveis; tomou pois um pelo
pescoço, e varou-o de lado a lado com três settas,
sem que os Hespanhoes o podessem fazer abrir mão
da preza, senão depois de morto. Em geral porem
era costume d'esta tribu, quando se via tão oppri-
HISTORIA DO BRAZIL. 183
mida pelo numero, que nenhuma esperança de vic- 1542.
toria lhe restasse, entregar-se, sem tentar inútil
resistência. Talvez aos olhos d'estes selvagens pare- r£meilt-
cesse mais honroso ser immolado n'um banquete, do
que perecer na batalha. Fizerão os Hespanhoes cerca
de quatrocentos prizióneiros homens, mulheres e
crianças, e pozerão-se em marcha para os seus quar- ,
teis. Toda a vigilância era pouca para proteger os '
Guaranis, pois mal um d'estes alliados pilhava uma
penna, uma setta, um pedaço d'alguma das tendas
de esteira, ou qualquer couza que houvesse per- •
tencido ao inimigo, Ia ia elle levado caminho do seu
paiz todo concho com o seu tropheo de vicloria. Esta
loucura fez cahir muitos nas mãos dos Guaycurus,
que não perdião oceasião de os picar na volta.
, Ao chegar, á Assumpção achou o adeantado seis 0s Yapimés.
Yapirués alli 'detidos prizióneiros. De gigantesca
estatura era a sua tribu, caçadores, e pescadores, e
.inimigos tanto dos Guaranis como dos Guaycurus,
•, dos quaes muito temião os últimos .'Assim tendo ou-
vido que os Hespanhoes marchavão contra estes, ha-
vião enviado aquelles deputados com offerta de
alliança e auxilio, mas Gonzalo de Mendoza, que
ficara commandando a praça, os prendera, descon-
fiando que fossem espias. Cabeza de Vaca conversou
com elles por meio d'um interprete, achou que suas
intenções erão amigáveis, e despediu-os com favo-
rável resposta. Passados poucos dias vierão os chefes
184 HISTORIA DO BRAZIL.
1542
- da tribu á Assumpção, onde deixarão em reféns al-
guns de seus filhos, que o adeantado mandou dou-
trinar na religião christã. Dem quizera elle mandar
para entre estes selvagens alguns religiosos; decla-'»
rarído porem impossível tirar-se d'ahi algum pro-
veito recusárão-se estes á missão. 0 que é verdade é
que havia alli uma recua indigna de frades, sem zelo
nem probidade-, infinitamente mais cubiçosos de
quinhoarem os despojos dos índios, do que avidosde
coment.27. lhes dissiparem as trevas da idolatria.
Paz com os Depois poz em liberdade ura dos Guaycurus, e
Guaycurus. , . ,, , , . . . j -j
disse-lhe que nenhum dos prizióneiros seria reduzido
á escravidão, ordenando-lhe que fosse trazer os seus
irmãos, para se fazer a paz. Acudiu toda a horda ao
r convite com a maior confiança, mandando vinte ho-
mens a quem do rio como seus representantes, em
quanto o resto ficava da outra banda com mulheres
e crianças. Assenlárão-se os deputados n'um pé, á
suà moda, e disserão que até então elles e seus avós
estavão costumados a vencer todos os inimigos, mas
que lendo-os os Hespanhoes agora desbaratado a elles,
couza que nunca esperarão, estavão promptos a
servir os seus vencedores. Recebeu-os Cabeza de Vaca
com affabilidade, explicando-lhe o direito que so-
bre todo o paiz assistia ao rei de Castella ; entendérão-
lhe elles porem melhor os presentes e a soltura dos
seus irmãos, prezos não so dos Hespanhoes, mas
também dos Guaranis. Desde então forão os Guay-
HISTORIA DO BRAZIL. 185
curus por muito tempo os mais profícuos alliados da 1542.
Hespanha mostrando-se tão fieis na paz como deste-
midos na guerra. Todos os oito dias trazião á venda
provisões, que consistião em caça conservada por um
processo que chamavão barbacoa, em peixes, e
n'uma espécie de manteiga, que não podia ser senão
banha, ou azeite coalhado. Também trazião pelles
curtidas, e panno feito d'uma espécie de enlrecasca,
e pintado de muitas cores. Em troca recebião dos
Guaranis milho, mandioca e mandubis, productos
da sua agricultura. Estes mercados ou feiras agra-
davão-lhes tanto agora, como antes a guerra. Por-
fiavão sobre quem passaria primeiro o rio com sua
canoa carregada, das quaes costumavão vir duzentas;
muitas vezes abalroavão ellas e viravão-se, accidente
que servia de risota a actores e espectadores. Vocife-
ravão tanto no commercio como na batalha, mas
tudo se levava de bom humor. Quão depressa terião
os Romanos tornado similhante povo tão civilizado
Csment.
como elles próprios'! <* . "m-W.
1
Divide Jolis os Guaycurus, ou Mbayas, como freqüentemente os
chamão, em sete tribus: l*os Guetiadegodis, ou habitantes das monta-
nhas, queseparâo o seu território dos Chiquitos; 2* e 5* dous ramos,
chamados ambos Gadiguegodis, nome derivado do riacho Cadiguegui,
juncto do qual moravào; 4* os Lichagotegodeguis, habitantes da Terra
Vermelha, que vivem sobre o rio Tareiri; 5* os Apachodegoguis, ha-
bitantes da planície das Abestruzes; 6* os Eyibegodeguis ou Boreaes,
lambem chamados Enacagás, ou os Escondidos, que habitão as mar-
gens do Mboimboi, suppondo Jolis que a .ultima denominação lhes
veio de acreditarem que vivião primeiramente debaixo da terra, até
186 HISTORIA DO RRAZIL.
1542
Emquanto o adeantado andava ausente n'esta jor-
nada, tinhão os Agacés quebrantado a paz. Apenas
partira que as mulheres deixadas como reféns havião
fugido da Assumpção, indo dizer-lhes que a cidade
ficara sem defeza. Tentarão elles pois pôr-lhe fogo,
mas sendo em tempo presentidos pelas sentinelas,
forão devastando os campos, e levando comsigo
muitos prizióneiros. Fez-se-lhes o processo mal vol-
tou Cabeza de Vaca, e o resultado foi declarar-se-
lhes guerra a ferro e fogo, sendo alguns que estavão
prezos sentenciados á forca. Mas estes, que havião
de pagar as culpas da sua tribu, esconderão algumas
facas, e ao irem-nos buscar para a execução, pozerão>-
se em defeza, ferindo varias pessoas. Chegou porem
reforço, e dous Agacés forão mortos na cadeia, sendo
2TI3.' os demais executados na fôrma da sentença.
Entretanto chegarão os navios que de Sancta Ca-
tharina trazião o resto da expedição a Buenos Ayres,
onde em logar d'um estabelecimento dos seus con-
terrâneos e dos soccorros que esperavão, acharão
um poste alto, em que havia talhadas estas palavras:
Está aqui uma carta. Estava a missiva enterrada de-
baixo d'elle n'um vaso de barro, e dizia que os
1
Ribera diz mil casas... os commentarios mil habitantes. Em taes
casos costuma o calculo inferior ser o mais seguro, mas de mil habi-
tantes não se podião tirar seis centos combatentes.
* Las mugeres se labran todo ei cuerpo. hasta los rostreixon
unas águias, picândose las carnes, liaziendo en ellas mil labores
y dibujos, con guarnicionesen forma de camisas y jubones con sus
mangas y cuellos; cón ciiyas laborei, como ellas son blancas y las
pinturas negras y azules?salen muy bien. Ruy Dia/. Argent., Ms.,
206 HISTORIA DO BBAZIL.
15 3
*- rapaz emprehendérâo os seus conterrâneos^ Unia
grande jornada, em que elle foi com seu pae. Sa-
quearão os primeiros estabelecimentos, levando com-
sigo baixela e ornatos de ouro e prata; por algapi
tempo assim forão marchando, ovantes e vicloriosos^
mas a final lodo o» paiz se reuniu contra elles, ;"{gr
zendo-os soffrer uma terrivel derrota. Então tomou-
lhes o inimigo a retaguarda, apoderqu-se dos desfi:
lãdeiros e cortou-lhes a retirada, de sorte que de toda
aquella multidão escaparião apenas uns duzentos.
D'estes a maior parte não se atreveu a tentar a volta
á pátria, temendo os Guaxarapos e outras tribus, cu-
jos territórios era de mister atravessar, efixou,a
sua residência entre as monlanhas. Elle porem com
mais alguns havião diligenciado por ganhar o paiz
natal, mas descobertos no caminho por estas tribus
hostis, todos, excepto elle, tinhão sido immoladüg.
Na fuga fora cahir entre os Xarayés, que, traclando-o
com bondade o havião admittido a fazer parle da
nação.
Pergunlou-lhe Cabeza de Vaca se elle saberia
achar o caminho d'esses povos, que os seus contep-
> raneos havião atacado. Respondeu que os seus tinhão
aberto caminho por entre matos, derrubando arvo-
res que servissem de marcos, mas que isto devia ter
desapparecido havia muito, apagando a nova vegeta.-
ção todos os vestígios. Queria com tudo parecer-lhe
que atinaria com a direcção. Seguia esta ao lado
HISTORIA DO BRAZIL. 207
d'um cabeço redondo, que ficava então á vista de 15*5-
Porto dos Reis, achando-se os primeiros estabele-
cimentos, se.bfem se recordava, a cinco dias de jor-
nada. A' pergunta se havia Ia ouro respondeu affir-
mativãmente; os seus patrícios tinhão alli roubado
bajxela, gorjaes, arrecadas, braceleles, coroas, ma-
chadinhos, e vasos pequenos tanto de ouro como de
prata. Depois d'estas tentadoras informações, decla-
rou-se prompto a ir com os Hespanhoes, guiando-os
o melhor que pudesse, sendo a isto que o seu cacique
o mandara. comem. 60.
Ordenou Cabeza de Vaca a este homem que olhasse Pl0SCguè
Cabeza
bem á verdade do que dizia; hão havia porem mo- .levacaá
livo para suspeitar fraude, e resolveu elle commetter
a jornada, tomando trezentos homens e provisões
para vinte dias. Cem Hespanhoes, com duas vezes
outros tantos Guaranis deixou de guarda aos bergan-
tins, sob o commando de Juan Romero^Começavão os
naturaes das cercanias de Porto dos Reis a mostrarem-
se enfadados dos seus hospedes. Gonzalo de Mendoza,
que com o resto da sua força ja fizera juncção com o
adeantado, haTia sido accommettido em caminho pe-
los Guaxarapos; um dos seus provocara a lucta, que
tinha custado a vida a cinco Hespanhoes. Olhavão os
Guaxarapos isto como uma victoria, e cobrando no-
vos brios, convidavão os seus amigos Sacoeiés a virem
acabar com estes estrangeiros, que nem erão valen-
tes, nem tinhão tão diiros os cascos. Parece que nada
208 HISTORIA DO BRAZIL.
1545
animou tanto eslas -tribus como a supposta desco-
berta, que o craneo dos Hespanhoes não era tã$ ríjo
como o d'ellas : não se lemhravão que um capello
cem. uo, ss. de ferro era mais solido ainda '. ,- uie,,<r,
26 de nov. Por aprazíveis arvoredos passou-se o primeiro dia
para o Peru. de jornada, seguindo uma vereda, ainda que pou$>
-trilhada, e ao lado d'umas fontes se dormiu a noute.
Na outra manhã foi precizo abrir caminho, equaqda
mais se avançava, mais espessa e emaranhada era a
floresta : uma herva bastissima e de grande altura
também não estorvava pouco a marcha. 0 acampa?
mento da segunda noute forao pé d'um lago,; oijde
tanto abundava o. peixe, que se apanhava á mão,
Teve o guia ordem de trepar arvores e subir emir
nencias, para melhor se orientar, e affirmou que era
verdadeira a direcção que se ia seguindo. Nas ar-
vores se achou mel, nem faltava caça, mas o rujàg
da marcha a espantava, de modo que pouco aprovei-
tou este recurso. De todas as fructas que se comeria
uma única provou mal: foi o bago d'uma arvor/B'
similhante á murta. Produzião as palmeiras um,
fructo, de que se comia o caroço e não a polpa, par-
1
Tinha o elmo outro prestimo grande : podia servir de cassarola,
PTelle çozinhavão os descobridores ás vezes as hervas que podião apa-
nhar para sua miserável refeição. Herrera,!, 9, 24. "'J
0 Fidalgo d'Elvas refere outro expediente curioso a que estes sol-
dados se vião reduzidos. Quando queriâo fazer pão do seu milho,
moião-no entre duas pedras e peneiravâo a farinha pelas malhas de
suas cotas.
HISTORIA DO BRAZIL. 209
tida a casca ao meio. D'isto fazião os índios uma fa- 15*5-
rinha de excellente qualidade. com. 6i.
O quinto dia de marcha levou a um riacho d'agua
quente, que brotava d'um serro. Era clara e boa, e
nWla vivíão peixes apezar da elevada temperatura.
Auferi confessou o guia, que vinha errado; os antigos
marcos erão idos; havia muitos annos que elle por
alli passara e não sabia mais que caminho tomar. Na
outra manhã porem, tendo sempre a expedição se-
guido á -vante, dous Guaranis se abalançárão a ap-
proximar-se. Erão ainda dos que escapados á grande
derrota de que falava o guia, se havião retirado para
•
o mais denso dos matagaes, e invias serranias. Perto
lhes ficava o rancho, nem tardou que apparecesse a
totalidade d'esta relíquia d'um grande exercito, com-
posta de quatorze pessoas apenas, das quaes a mais
velha teria trinta e cinco annos. Erão crianças, se-
gundo dizião, ao tempo da destruição da sua tribu, e
sabião que alguns da sua raça vivião perto dos
Xarãyés, com quem guerreavãò/Dous dias de
jornada mais adeante havia outra família formada
de dez pessoas, cujo chefe conhecia o caminho do
paiz por que perguntavão os Hespanhoes, pois mui-
tas vezes alli havia ido.
tlabeza de Vaca fez esta gente feliz, distribuindo
por ella alguns presentes, e tractou de dar agora com •
a segunda familia, onde estava seguro de achar um
guia. Mandou adeante um interprete com dous Hes-
i. H
210 HISTORIA DO BRAZIL.
1545. panhoese outros tantos índios, pára, perguntar alli
pelo caminho e distancia, e no outro dia vagarosa-
mente os foi seguindo. No terceiro encontrou um dos
índios, que voltava com uma carta, dizendo que. da
choça do Guarani, d'onde fora escripta, havia* deza-
seis dias de viagem por balsas e hervagaes altíssimos
até um elevado rpchedo chamado Tapuaguaajf j« de
cujo cimo muita terra cultivada se avistava. Tão
ruim era o caminho para esta habitação*•'que. os
mensageiros se havião visto obrigados, a andar de
gatas grande parte d'elle, dizendo o chefe da família
guarani, que para alem era bem peor ainda. Viria
este porem com o interprete narrar ao adeantado
quanto sabia. A' vista d'isto retirou-se Cabeza de Vaca
para as tendas, onde se passara a noute, e alli espe-
rou por elles, até que chegarão no outro dia de
íom. 62-63. tarde. ' :-• i •
Disse o Guarani que bem sabia o caminho para
Tapuaguazu, aonde muitas vezes fora por settas, de
que havia alli abundância'. Do alto da rocha era
visível o fumo do paiz habitado, mas havia tempes
ja que elle não ia, tendo na ultima jornada visto
•\ fumogar da parte de aquém, d'onde conhecera que
voltara o povo a habitar estas terras^ desde a grande
invasão abandonadas e desertas. Seria jornada paia
1
Se queria isto dizer que alli tinhão ficado muitas pelo chão, de-
pois da batalha em que pereceu a tribu d1 elle, ou simpleméníé que
cresçião aHTjuncos, é o que se não explica.
HISTORIA DO BRAZIL. 211
15i3
dezaseis dias, e péssimos os caminhos por entre '
matas, que forçoso seria picar. Consultado se que-
reria ir como guia, respondeu que voluntariamente,
apezar do muito que temia a gente d'aquellas partes.
íOuvido o que reuniu Cabeza de Vaca o seu clero
>r
e capitães, pedindo-lhes conselho sobre o que se
faria. Responderão que as tropas com demasiada
«onfiança descançando na asserção do guia; de que
em cinco dias estarião em paiz habitado, havião
poupado tão pouco os viveres, que a muitos ja nada
restava, apezar de ter trazido cada homem duas ar-
robas de farinha. Apenas restaria mantimento pára
seis dias. Rem sabido era quão pouco havia que fiar
nas informações dos índios : em logar de dezaseis
dias de jornada podia a distancia sahir muito maior,
« perecer de fome toda a partida como não raro havia
suecedido ja n'estas descobertas. Parecia-lhes pois
melhor aviso voltarem a Porto dos Reis, onde havião
deixado os bergantins, e proverem-se alli para <x
expedição, agora que com melhores dados podião
calcular o mantimento precizo. Respondeu Cabeza
de Vaca que impossível era haver provisões no porto,
onde nem o milho eslava maduro ainda, nem os
naturaes possuião couza alguma que podessem for-
necer } alem d'isto cumpria recordar o que se lhes
havia dicto sobre não deverem tardar as inunda-
ções. Persistiu o concelho na sua opinião : não era
fácil resolver qual dos males era menor, se avançar
212 HISTORIA DO RRAZIL.
1543. s e retroceder, e o commandante, vendo contra si
todos os votos, julgou prudente ceder. Offerecerão-sè
porem Francisco Ribera e seis outros, a ir a Tapua-
guazu com o Guarani e onze índios; ameaçados
estes com severo castigo se desertassem antes da
m
&4 65 volta, partirão todos para esta aventura.
Em oito dias voltou Cabeza de Vaca ao Porto dos
Escassez no , .
e s on
do^íieís. R i ) de achou que os naturaes, instigados petos
Guaxarapos, principiavãõ a mostrar ma vontade;
tinhão deixado de fornecer viveres aos Hespanhoes
e ameaçavão atacal-os. Reuniu elle os caciques, deu-
lhes carapuças vermelhas e com palavras doces e
boas promessas lhes foi pacificando os ânimos; sobre
o que declararão elles pela sua parle, que sèrião
amigos dos Hespanhoes, e expulsarião os Guaxarapos
e todos os seus inimigos.
A falta de alimento não era porem de fácil remé-
dio ; provisões de boca so havia ja as que estavão a»
bordo dos bergantins, e que mui poupadas nâo
darião para mais de doze dias. Mandárão-se os in-
terpretes a todas as aldeias circumvisinhas á cata de
comestíveis; mas nenhuns havia a vendo, achando-se
o mantimento então de escasso acima de lodo o preço".
Perguntou o adeantado aos principaes indigenas,
onde acharia viveres. Responderão que os Ariani-
cosiés, tribu que habitava as margens d'um lago
grande a nove legoas d'alli, os tinhão em abundância.
Convocou o commandante outra vez o seu concelho,
HISTORIA DO RRAZIL. 215
,,í3
expondo-lhe a situação. A gente, disse, eslava prestes -
a dispersar-se pelo paiz, comendo do que achasse.
Que se faria? Responderão que outro remédio não
havia, senão mandar a maior parte da tropa para os
logares onde havia viveres, que se comprarião se os
naturaes quizessem vendel-os, ou se tomarião á força
em caso contrario: pois quando apertava a fome era
licito tirar o alimento até de sobre o altar.
Com 120 Hespanhoes e 600 índios frecheiros
partiu pois Gonçalo de Mendgza para os Arianicosiés.
Consultados por Cabeza de Vaca também os naturaes
havião informado que tendo principiado a crescer
as águas, poderião os bergantins subir agora o rio
Ygatu até á terra dos Xarayés, que estavão providos
d e viveres. Havia também muitos rios grandes e ser-
pejanles que vinhão desaguar no Ygatu, e nas mar-
gens d'elles habitavão tribus ricamente abastecidas.
v A' vista d'isto despachou-se Hernando Ribera com
Volta
Oito dos Guaranis que havião acompanhado Fram*
de F. Ribera
cisco Ribera na sua aventureira jornada a Tapua-
guazu, estavão ja devolta, e Cabeza de Vaca o dava
por perdido com os seus companheiros. Mas a 20 de
janeiro chegarão; vinhão todos feridos, e foi esta a
historia que contarão : Vinte e um dias havião elles
HISTORIÁ-DO BRAZIL. 215
1543,
eoseu guia caminhado para o poente, por paiz de
tão difficil travessa, que por vezes não poderão rom-
per mais de uma legOa: pelo mato em todo o dia,
tendodiavido dous em que nem metade d'esta distan-
ciaayalçárãoi Não fãltávão antas,; nenrjavalis que as
índias matavão com settas^ sendo tanta a caça miúda
que a cacete se apanhava. Abundavão também a mej
eüs friíctas, de mddo que se houvesse proseguido
nãoiseffrera o (exercito falta de viveres.
No»vigésimo primeiro dia*chegarão a um rio que
corria para o oceidenté, indo, segundo dizia o guia,
passar por Tapuaguazu : logo adeante descobrirão
pegadas de caçadores, e avistarão alguns campos de
milho que acabavão de ser ceifados. Allij sem dar-
lhes tempo de se esconderem, sahiu-lhes ao encontro
um Índio; trazia brincos de ouro nas orelhas, è-tira
ornato de prata no lábio inferior. Não lhe compre-
henderâo a linguagem, mas elle, tomando Ribera
pete mão, fezdhe signal a elle e seus companheiros
para que o seguissem. Levou-os a uma casa grande
de madeira e palha; estavão-na as mulheres- esva-
siando, mas ao verem os Hespanhoes abrirão Um
rombo no lado de palha, por onde antes quizerão
arremessar os objectos, do que passar por perto dos
extrangeiros. Entre as couzas qUe assim removia o
havia muitos orna tos e utensílios de prata, tirados
de enormes jarras.
Mandou o dono da casa sentar os hospedes, dando-
216 HISTORIA DO,BRAZIL.
1543. i} ies a beber por cabaças, cerveja de milho tirada de
grandes vasos de barro, enterrados no chão até 4o
gargalo. Seryiâo-nos dous escravos, Orejoae§S*de
nação, que lhes derão a entender que havia alguns
christãos a três dias de jornada d'alli, entre um povo!
chamado Payzunoes, e mostrárão-lhes á vista o alto,
pincaro Tapuaguazu. Entretanto ião-se os índios reu*
nindo á porta, vistosamente pintados e cobertos de.q
plumas, trazendo arcos e seitas como promptos pára
a guerra, visto o que tomou também eguaes armas
o dono da casa. D'uma a outra parte passavão meh-
% . sagens, que fizerão suspeitar aos Hespanhoes que o
paiz se levantava contra elles. Então lhes aconselhou
o hospede, que se dessem pressa em voltar pelo car -
minho que havião trazido, antes que maior multidão
se reunisse. Ja uns trezentos se havião junctado, e
tentarão embargar-lhes o passo; romperão os chris-
tãos por entre os índios, mas estarião apenas á
distancia de pedrada, quando estes, erguendo: um
alarido, despedirão contra elles suas flechas, perfis-^
guindo-os até entrarem na floresta. Alli se defende- í
rão os Hespanhoes, retirando-se os assaltantes, sup-;"
pondo quiçá na supposição de que terião aquelles no
mato companheiros que os ajudassem.
Não havia na partida um so que não estivesse fe-
rido; mas o "caminho estava agora aberto, e se haviãor
gasto vinte e um dias, marchando do logar onde os
deixara o adeantado, não precizárão mais de doze
HISTORIA DO BRAZIL. 217
para voltarem todos a Porto dos Reis, distancia que ,543
calcularão em setenta legoas. Um lago, que na ida
havião vadeado com água pelos joelhos, achárão-no
na volta tão inchado, que se espraiava mais d'uma
lego» por sobre as margens, tendo de atravessal-o
em jangadas, com grande risco e difficuldade. Era
isto tudo quanto havião descoberto, excepto que o
povo que tão rudemente os expellira de suas terras,
se chamava Tarapecociés, e possuía patos mansos e
v
volatéria em abundância. comem.-o.
Derão estas informações o fio para se obterem no- ouvem os
ticias mais exactas. Havia alli alguns Tarapecociés, fa^r em,
<-> *. - . .' ouro e prata.
destroços do heterogêneo exercito de Garcia. Grande
pena é não se ter conservado a historia d'este aventu-
reiro portuguez'; homem deve elle ter sido de ex-
1
As poucas noticias que de Garcia alcançou Cabeza de Vaca, é so
o que se sabe positivo a este respeito. Os .jesuítas Nicholas dei Techo
e Juan Patrício Fernandez as repetem, com o extraordinário erro, de
dizerem que esta expedição se fizera no reinado dé D João II... antes
de descpberto o Brazil. Nem pôde ser errata por D. João III, pois que
elles ã fazem anterior á queda dos lncas, como de facto provavelmente
o foi.- Ambos dizem que Garcia foi traiçoeiramente morto pela sua
gente.,-,
Chamão-no Aleixo Garcia, e Techo diz que elle tinha sido enviado
ppr Martim Affonso de Souza, que depois mandou com Jorge Sedenho
sessenta Portuguezes em busca d'elle. Ao chegarem perto do Paraguay,
os mesmos índios, que tinhão assassinado Garcia, lhes matarão o com-
mandante pondo em fuga o resto da partida. Na volta embarcárâo-nos
os índios do Paraná em canoas, comidas do bicho, cobertas de barro em
vez de breu, e chegados ao meio do rio tirarão a massa, e nadando para
terra, deixarão os Portuguezes ir ao fundo. Esta historia é manifesta-
mente fabulosa. Em outro logar accrescenta o auctor que os índios de
316 ' HISTORIA DO BRAZIL.
1545. traordinarios dotes, para com sos cinco Europeos ter
levantado um exercito, e penetrado até mais de meio
do continente sul americano; e o respeito em que
sua memória era tida, mostra^ que assim como em
, '• ' . • ;-',* '•>••,;•
CAPITULO VI
• nt
1
Assim escreve Schmidel a palavra, ainda que nenhuma d'estas
tribus empregava a letra F. .
t
252 HISTORIA DO BRAZIL.
1543
como tropheos. Estava o posto, para que o inimigo
se retirou, fortificado com três palissadas, e muitos
poços encobertos, e tão bem foi defendido, .que por
três dias o assaltou Yrala em vão. Feitos então qua-
trocentos pavezes de pelles de anla, mandou elle ou-
tros tantos índios assim acobertados cortar as esta-
cadas com machados, e entre dous e dous ia um ar-
cabuzeiro. Surtiu o desejado effeito este modo de
ataque; apoz algumas horas entrarão os assaltantes a
praça, matando mulheres e crianças, e fazendo
grande carniçaria. Escapou comtudo a maior parte,
que se retirou para outro logar forte chamado Ca-
rieba, até onde os vencedores, tendo recebido um
reforço de duzentos Hespanhoes e quinhentos allia-
dos, perseguirão os fugitivos. Era esta espécie de
praça fortificada pelo mesmo systema da outra, lendo
os Carijós alem d'isto arranjado umas machinas, que,
segundo a descripção de Schmidel, erão como ra-
toeiras, cada uma das quaes, se surtisse effeito, teria
apanhado vinte ou trinta homens. Quatro dias os
sitiarão os Hespanhoes sem resultado. Então um Ca-
rijó, que havia sido em outro tempo chefe da aldeia,
veio disfarçadamente ter com elles, offerecendo-sè
para entregal-a á traição, se lhe promettião não a
incendiarem. Ajustado isto mostrou elle duas veredas,
que pela floresta levavão ao logar, e assim foi este
tomado de sorpreza. As mulheres e crianças tinhão
sido previamente escondidas nas matas, servindo de
HISTORIA DO BRAZIL: 233
15i3
licçãpa primeira matança. Apezar de tudo fez-se alli *
segunda, eos que a ella escaparão, fugirão para um
cacique por nome Dabero, devastando o paiz que
atravessavão, para difficultarem a perseguição. Mas
d'aüi voltarão os Hespanhoes á Assumpção, donde
descendo o rio com novas forças, forão em segui-
mento d'elles : veio reunir-se-lhes com mil homens
o chefe que atraiçoara Carieba, e Dabero derrotado
tornou a submetter-se a um jugo que era ja impos-
, ,. Schmidel.
si vel sacudir. u-a.
Terminada esta guerra,ficarão,os Hespanhoes em Entra Yraia
no sertão.
paz por dous annos, durante os quaes nenhum soc-
corro receberão da metrópole. Então Yrala, para
que não se prolongasse o ócio, propoz-lhes renovar
a tentativa em que havião falhado os seus douspre-
decessores, e averiguar se' era ou não possível achar
ouro e prata. Com alegria foi acceita a proposta.
Deixou D. Francisco de Mendoza a com mandar na sua
ausência, e partiu com trezentos e cincoenta Hespa-
nhoes e dous mil dos ultimamente subjugados Cari-
jós^ Subirão todos o rio em sete bergantins e duzentas
canoas, seguindo por terra com duzentos e cincoenta
cavallos a gente, que por falta de embarcações não
podia ir por água. 0 logar da juncção era á vista do
alto cabeço chamado S» Fernando, o mesmo prova-
velmente pelo qual os Guaranis havião guiado Ca-
beza de Vaca. Ficarão cincoenta Hespanhoes em dous
bergantins,. com recommendação de serem mais
234 HISTORIA DO BRAZIL.
1545. cautelosos do que Ayolas fora, e mandados para traz
schmidel.44. os outros navios, principiou Yrála a mareha.
Oito dias andarão sem achar1 habitantesJ No nono
achando-se a trinta c seis iégoas alem do monte de
San Fernando, chegarão aos Meperós, raça alta e
jupais. robusta de caçadores e pesóádores. Quatro dias depiòis
encontrarão os Mapais, tribo muito mais adèántada
em escravidão e civilização. O povo tinha de servir
os chefes, como os servos da gleba nos tempos feu-
daes; erão agricultores; fazião uma espécie de prados
e tinhão domesticado o lhama. As mulheres erão
formosas, e vivião exemptas dos penosos trabalhos
que os selvagens costümão impor ao sexo mais
fraco; seu único emprego era fiar e tecer algodão e
preparar a comida. Sahirãõ estes Mapais a saudar os
Hespanhoes, presenteando Yrala com quatro grinal-
das de prata, outras lanlas tesleiras do mesmo metal
e três raparigas. Dispozerão os Hespanhoes as suas
sentinelas e forão repouzar. No meio da noute deu
Yrala pela falta das raparigas, e suspeitando imme-
diatamente traição, mandou pôr tudo em armas.
Effectivamente fòrão logo atacados, mas achando-se
assim preparados repellirão com grande mortandade
os aggressóres, perseguindo-os dous dias e duas
noutes sem descançar mais de quatro ou cinco horas.
No terceiro dia; continuando sempre a perseguição,
cahirão os Hespanhoes no meio d'uma grande horda
da mesma nação, que, não suspeitando hostilidade,
HISTÓRIA DO BRAZIL. 235
foi sorpreheodída, pagando as culpas dos conteria- 1545
neos. Os que não forão mortos ficarão prizióneiros,
sendo estes tão numerosos que so a Schmidel coube-
rão dezanove, como quinhão na preza '.Depois d'esta
vietoria, se tal nome merece, descançárão os Hespa-
nhoes oito dias, não lhes faltando que comer. 44-45.
> Em> seguida chegáfão aos ZehmiéSj espécie de osZehmiés.
helotes d'aquella outra tribu. Rello paiz era este para
um exercito de similhantes aventureiros o atravessar:
amadurecia alli o milho em todas as estações, e para
onde quer que se olhasse vião-se promptas as colhei-
tas. Seis legoas mais longeficavãoos Tohannas, Iribú
. .. , „ . . . . . 1 Os Tohannas.
também vassala dos Mapais, cujo domínio parece
ter-se extendido n'àquella direcção até aos confins
da terra povoada. Atravessadas quatorze legoas de
desertos, chegarão os Hespanhoes aos Peionás. Sahiu-
lhes o cacique ao encontro, pedindo instantemente a osPeionás.
Yrala que não lhe entrasse na aldeia, mas alli mesmo
armasse as suas tendas. Não lhe prestou ouvidos o
Hespanhol, que entrando na povoação, n'ella se
aqüartelou por três dias. Era mui fértil o paiz, ainda
que faltava água, bem como ouro e prata, artigos
que Schmidel põe a par d'aquelle, como couzas de
egual necessidade. Julgou-se prudente não perguntar
por estes metaes, não fossem as tribus, que ficavão
adeante, sabendo o que os aventureiros buscavão,
#
4
Havia também mulheres entre elles, diz o aventureiro allemão, e
não mui velhas.
236 HISTORIA DO BRAZIL.
1545. esconder os seus thesouros e fugir. Um guia alli
osMaiegon.i. t 0 m a ( j o o s i e v o u por um caminho, onde havia água,
até aos Maiegonis, quatro legoas mais longe; passado
alli um dia e obtido um interprete e outro guia,
andarão os Hespanhoes mais oito legoas, até chega-
r e m aos
os Maironos. Marronos, nação populosa. Entre estesjse
detiverão dous dias. 0 pouso seguinte foi entre os
os ParoWos. Parobios, quatro legoas adeante. Havia grande falta
de viveres, o que não obstou a que Yrala e os seus
pilhantes se demorassem um dia a devorar o que
OfSimanos. acharão. 0 povo immedialo, chamado dos Simant^
e q u e ficava a doze legoas de distancia, poz-sô,na
defensiva. Estava a sua aldeia sobre uma eminência,,
bem fortificada com sua cerca de espinhos. Vendo
que não podião resistir ás armas de fogo, incendia-
rão as suas habitações e fugirão; mas o paiz era
cultivado e nos campos apparecérão fructos que
schmidel. 45. aprehender.
es Barconos. Apoz u m a marcha de quatro dias na razão de ou-
tras tantas legoas por cada um, chegarão os Hespa-t
- nhoes de improviso a uma aldeia de Barconos. Teriãa;
os habitantes fugido se não qs convencessem de que
nada devião recear de estrangeiros, que nenhumas
intenções hostis trazião; assim congraçados apresen-
tarão volataria, aves aquáticas, ovelhas (lhamas-ou
vigonhas certamente), abestruzes e oveados em
grande copia, dando-se por contentes com terem os
Hespanhoes de hospedes quatro dias. Partirão.estes
HISTORIA DO BRAZIL. 257
carregados de provisões, e em três dias na costti- 1S45
mada marcha de quatro legoas diárias, chegarão aos
Leihànos, com quem passarão apenas uma noute, os Leihanos.
pois que os gafanhotos lhes havião depennado os
campos. Era quatro dias mais de egual marcha al-
eãnèárão os Garchuonos, que tinhão soffrido da „ o»
J
* ' % Carchuonos.
mesma praga, bem que não tão severamente; e alli
souberão que nas trinta legoas mais próximas não
acharião água. Se não tivessem tido conhecimento
d'esta.circümstancia, todos terião provavelmente pe-
recido. Levando pois água comsigo, encetarão uma
marcha, que durou seis dias; alguns Hespanhoes
morrerão de sede, apezar do supprimento que leva-
vão1, e se muitos mais não se finarão, a uma planta o
deverão, que no Rrazil se chama craúta; retém a
chuva £ o orvalho nas folhas, como n'um reserva-
tório. Afinalalcançarão o estabelecimento dos Subo- os suboru.
ris; era noute e principiu o povo a fugir até que um
interprete o assegurou das pacificas intenções dos
estrangeiros. Pouco allivio alli acharão os Hespa-
nhoes: os Suboris e seus visinhos não raro se fazião
à guerra por causa da água. Tinha havido três mezes
de secca, de modo que exhaurido estava o deposito de
água da chuva que soião guardar. Não linha a maior
parte da gente outra bebida alem do summo da raiz
àe-mamidtlpora, que era branco como leite. Quando
havia água, fazia-se d'esta raiz um licor fermentado;
agora reputava-se feliz quem com o simples sueco
238 HISTORIA DO BRAZIL.
*
1545
- podia ir entretendo a vida. Não havia águas correntes
e apenas uma fonte. A esta foi Schmidel postado
como sentinela para distribuir por medida o que ella
dava; ja se não pensara em ouro e prata, o unicó
Schmidel. 46. g r i t o e r a : A g u a !
»• . 1G
242 HISTORIA DO BRAZIL.
1545. duas legoas, segundo os seus próprios cálculos. Im-
mediatâmente se mandou á sede do governo noticia
da sua chegada. •
conchavo Governava então o Peru o licenciado Pedro àe Ia
secreto entre
glvernato Gasca. Pouco havia ainda que elle derrotara Gonzalo
do Pera. p j z a r r o > fazendo-o suppliciar junctamente,eom os
sanguinários chefes da sua parcialidade. Com razão
julgou elle em tal momento perigosa a chegada
d'um troço de gente tanto tempo costumada a uma
vida licenciosa, e mandou a Yrala ordem de não
avançar, aguardando ulteriores instrucções no logar
onde se achava. Receava elle, que, rebentando nova
insurreição, se bandeassem estes aventureiros com
os partidários de Pizarro, o que, no dizer de Schmi-
del, com certeza terião feito. Yrala despachou Nuflo
de Chaves a conferenciar com o governador, que co-
nhecendo bem o que de tão longe attrahira o usur-
pador, mandou-lhe ouro bastante, com quepodessé
ir-se contente. Os soldados nada souberão d'estes
conchavos. Se o soubéramos, diz'Schmidel, tel-o-
iamos amarrado de mãos e pés, e mandado para o
Peru. Tudo o que transpirou d'este negocio, foi que
tinhão de voltar pelo mesmo caminho, para o de-
c
- «• marcarem bem.
voitâ Yraia. A província em que os Hespanhoes havião, en-
trado era a mais fértil que tinhão visto mesmo
n'aquelle uberrimo paiz. Mal se podia rachar uma
arvore, sem que da fenda manasse o mais fino
HISTOBIA DO BBAZIL. 243
mel , tão numerosa era uma espécie de abelha pe- 1545*
1
1
lYeste mel consistia o principal alimento do famoso Francisco de
Carvajal, que, ao ser suppliciado com oitenta annos de edade, tinha
ainda todo o vigor e actividade da mocidade. Bebia-o como vinho.
Pedro de Cieça, c. 99.
244 H1ST0BIA DO BRAZIL.
1545. Hespanhoes a aldeia abandonada. Mandou. Yrala
convidar os naturaes a que se recolhessem : a res-
posta foi que, se os christãos não despejavão o paiz
ligeiros e voluntários, depressa o farião corridos e
forçados. Muitos dos seus o aconselharão que com isto
se não desse por offendido, pois se se premeditava es-
tabelecer communicações entre o Prata e. o Peru,
todas as hostilidades serião impoliticas, fazendo com
que mais se não encontrassem provisões no caminho.
Não o entendeu elle assim; ou por que quizesse in-
cutir terror á tribu, ou talvez por que quizesse
mesmo provocar o mal que os seus officiaes recea-
vão, tolhendo a .marcha ao successor. Fez pois grande
matança n'estes índios, capturou uns mil, e deixou-
se ficar dous mezes na aldeia. Foi este na volta o
único successo notável. Em toda a jornada gástou-se
anno cmeio, trazendo os Hespanhoes comsigo cerca
de doze mil escravosl, homens, mulheres e crianças,
.prova bastante da devastação que terião feito na
schmidel.49. marcha.
Desordens na Ao chegar aos bergantins souberão uue Diego de
Assumpção. ° * P
Abrego usurpara o governo, decapitando publica-
mente Francisco de Mendoza. Deixara estoJidalgo a
Hespanha com seu parente D. Pedro, por ter n'um
accesso de ciúme assassinado a mulher e o capellão
de sua casa. Seguiu-o porem a vingança divina, e no
* ' Schmidel teve cincoenta á sua parte.
HISTORIA DO BBAZIL. 245
anniversario do assassinato padeceu elle próprio 1545
morte violenta e não merecida. Sobre o cadafalço fez
de seu crime confissão publica, exprimindo a espe-
rança que Deus, que assim lhe impunha n'estc
mundo condigna pena, lh'a perdoaria no outro. Re-
cusou Abrego a entrada da Assumpção a Yrala, que
immediatamente lhe poz cerco. Fossem quaes fossem TCi*r,P!]'0ii2.
os crimes d'esle intrépido aventureiro, era elle po-
pular no seu governo; e Abrego, vendo que a gente
lhe desertava, fugiu com cincoenta sequazes, conti-
nuando uma espécie de guerra de bandoleiros, até que
lhe derão caça á quadrilha. Foi elle próprio encon-
trado nas florestas, s o e cego, e d'um golpe de
harpeo lhe poz o alguazil que o descobrira, termo schmidel. so.
. . . Herrera.
as misérias. 8,2,17.
Foi a historia de Yrala escripta por seus inimigos.
Accusão-no estes de muitas atrocidades, de que pou-
cos ou nenhuns conquistadores se conservarão puros;
mas da própria narração se evidencia que era ho-
mem de grandes commettimentos e muita prudên-
cia. Levada a-cabo a jornada do Peru, e aberta assim
uma communicação entre as duas costas da America
do Sul, mandou elle Nuflo Chaves a pôr termo ás
guerras que nos confins do Brazil principiavão a
fazer-se na sua qualidade de fronteiros os índios
subditos das duas coroas. Assim o executou este, de-
marcando-se pela primeira vez os limites entre as 1542
colônias porlugueza e hespanhola.
246 H1ST0BIA DO BBAZIL.
f542. Dividiu também Yrala o paiz em repartimienios,
como nas outras conquistas se havia feito, systema
pelo qual se repartião as terras e a sua população in-
dígena entre os senhores europeos, como á própria
Europa succedera outr'ora debaixo dos seus conquis-
tadores gothicos e slavonicos; com a differença po-
rem de ser na America ainda mais intolerável a ser-
vidão, e insuperável o abysmo entre senhor e escravo.
Segundo as leis castelhanas não podião estes repar-
timienios ser dados senão a Hespanhoes, mas Yrala
sentindo a fraqueza da sua força europea, abalançou-
e
8, 2!°i7. se a quebrar a reslricção, e distribuiu-os indiscrimi-
nadamente por aventureiros de todas as nações. Im->'
putão-lhe como crime este acto de sabedoria, e como
um estratagema para fortificar-se na própria usur-
pação. Não lhe faltão crimes por que responder,
nem a sua ambição foi alem do desejo de manter-se
no governo; posto, em que, não se tendo descoberto
minas no paiz, lhe pareceu pouco provável darem-
lhe successor. Longe de tentar fazer-se independente,
requereu á corte, que mandasse visitadores a syndi-
carem do seu proceder; conhecendo talvez que o
requerimento seria o melhor meio de evitar a me-
dida. Continuarão entretanto os colonos nos hábitos
lascivos e cruéis que caracterizão os creoulos de toda
a casta. Poucos ou nenhuns esforços empregou o go-
vernador para cohibil-os, conscio por venlura que
nada conseguiria, ou talvez por pensar que tudo ia
HISTORIA DO BRAZIL. 247
uma maravilha, tendo o Creador destinado os povos 1542
de cor para servirem os brancos, e ficarem á mercê
da sua luxuria e avareza.
Tudo favoreceu Yrala. Centeno, que pelo presi-
dente Gasca fora nomeado para substituil-o, morreu
quando ja se preparava para ir tomar posse do go-
verno. Foi a sua morte uma calamidade para o Pa-
raguay, que n'elle perdeu um homem leal, honrado
e humano, de reconhecido mérito e talentos, n'uma
palavra, um dos melhores conquistadores. Os seus
despachos forão levados á Assumpção por uma escolta
de quarenta homens, ás ordens dos capitães Pedro
Segura, Francisco Cortou, Pedro Sotelo, e Alonso
Marlin Truxillo, com os quaes voltarão os negocia-
dores de Yrala Nuflo de Chaves, Miguel de Rutia,
Pedro de Oriate e Ruiz Garcia de Mosquera. Trouxerão
elles desta jornada, o que a terna memorável, ovelhas
e cabras, as primeiras d'uma e outra espécie, que
se introduzirão no Paraguay, tendo sido demais a
mais. estes animaes, que no caminho lhes salvarão as
vidas. Vendo os índios quão poucos os christãos erão Funes.t.iw.
em numero, tinhão resolvido sorprehendel-os du-
rante o somno; mas na ajustada noute estiverão in-
quietos os bodes, e o barulho que fizerâo aterrou os
selvagens, que desistirão da empreza.
Pelo mesmo tempo accèitava também Juan de Se-
nabria na Hespanha este governo, preparava uma.
expedição, e morria ao ficar ella prompta. Annuiu
248 HISTORIA DO BRAZIL.
1542
- seu filho Diego aos termos que o pae assignara
quando vivo, e fez-se de vela. Perdeu os navios, che-
gando apenas alguns dos seus á Assumpção, para
onde marcharão por terra da foz do Prata. Comtudo
para os que estu dão a historia do Brazil foi impor-
tante esta viagem, pois Hans Stade, um dos que n'ella
vierão engodados por mentirosos boatos sobre as ri-
quezas do paiz, alli se estabeleceu depois deter nau-
fragado. As suas aventuras nos conduzem outra vez ás
colônias portuguezas, e offerecem-nos as primeiras e
as melhores noticias sobre os selvagens indigenas.
HISTORIA DO BRAZIL. 249
1549
CAPITULO YII
Embarca Hans Stade com Senabria para o Paraguay, e chega a Sancta Ca-
tharina.— Naufraga em S. Vicente.— Feito artilheiro em Sancto Amaro,
cahc prizioneiro dos Tupinambás. — Ceremonias d'estes com un prizic-
neiro; superstições e armas.— Consegue Stade escapar-se.
. ' Harcourt faz meijção d'um cacique chamado Ipero no paiz dos
Arracooris, perto do Wiapoc' (Harleian Miscellany, vol. 5, 184.) Aqui
temos pois a língua tupy a exténdérae até á Guiana. L
266'!: ' HISTJOÍUA DO BRAZIL. I!
'Vierão ellas com effeito ^ e pelas .cordas que tinha./
ainda em torno cio pescoço o -lesarão para a área :#>
forã«ips homens seu caminho e todas as mulheres se j
reunirão! á volta d'éíle. Tinha Hans sido posto inteá^- >
ramente nu no acto da captura :* ellas v©lítóãô*iitt;dev-
todos os lados até satisfazerem a curiosidade, odfâpoü 3
em quanto umas o toroavão nos braços, puxava» asfiq
outras as cordas, quasi até o estrangulareM.* Eut»o^t3
diz elle,pensei no que nosso Senhor sofrçeb-idiisífpwiwp')
fidos Judeus, c isto me deu forças e i%s%nacãoi<Bii:I)
seguida levárão-no 'para casa do cacique Uratiag*J''••
Wasu, o Passarela Branca; á entrada se tinha er -0 *
guido um banco de terra, e alli o assentarão, susteu-iv
tando-o para que não cahisse. Aqui esperava eüe que
fosse o logar do supplicio, e volvendo olhos em tornou
para ver se estaria'prompta a maça do saçrifi«wl£o
perguntou se tinha agora de morrer. Ainda não, folio
a resposta. •Acercou-se então uma mulher, com; um ir.
pedaço dê vidro quebrado posto n'um cahir, com /
este instrumento lhe rapou as sobrancelhas," e pritt^
cipiava ja a extender ás barbas a mesma operação* °>b
r
•id J
quando Hans se oppoz, dizendo que queria morrer;
'HA .)<
com ellas. Não insistirão por então as mulheres;, masH;
alguns dias depois corlárão-lhas com um par?de Xeê
e
c. 2í. souras francezas. ;;t>4 , SÍU^ID
1
Nas Noticias, Ms., se diz (2, 51), que os dentes d'estas tribus
)ião erão susceptíveis de se deteriorarem. Mas a promptidão com que
n'este caso se recommendou a extracçào, implica certamente o conhe-
cimento da dôr de dentes. -
272 HISTOBIA DO BBAZIL.
1552 cacique, gritou : Aqui tra/emos o teu escravo portu-
guez, para que o vejas. Bebia o chefe com os seus
companheiros, e todos, esquentados com a bebida,
encararão Hans severamente, bradando-lhe: O^h, ini-
migo, eslás aqui!—Aqui estou, respondeu elle,
.'Ce.2». mas não inimigo; e ellesdçrão-lhe do seu licor.
Tinha Hans ouvido falar d'este regulo, que era
famoso no seu tempo, e um cruel anlhropophago»
Dirigindo-se pois á personagem que pelo grande
collar de conchas lhe pareceu ser elle, perguntou?
lhe se não era o grão Cunhambebe? Recebendo.res-
posta affirmativa, principiou a elogial-o o melhor
que pôde, dizendo-lhe quanto o seu nome era cele-
brado, e quão dignas dos maiores encomios erão
suas proezas. A mais vã das mulheres não se houveja,
extasiado tanto com estas lisonjas. Ergueu-se q sejk
vagem, himpando de prazer, e poz-se a marchar
deante do seu prezo para melhor se deixar admirar.
Voltando finalmente ao seu logar perguntou o que
os Tupiniquins e Portuguezes forjavão contra e)le,.^
por que Hans lhe fizera fogo da fortaleza, pois sabia
quem tinha sido o artilheiro. Respondeu Hans que
alli o havião posto os Portuguezes com ordem de
fazer o seu officio; mas o cacique retrucou que lam-
bem elle devia ser Portuguez, pois que não entendi*
o francez, do que era testemunho o filho d'eHe Cu-
nhambebe, o Francez, como o chamava. Hans admnV
tiu isto, allegando que por falta de uso desaprenda^
HISTORIA DO RRAZIL. 273
1952
a língua. Tenho comido cinco Portuguezes, disse o
feroz Tupinambá, e todos élles se prètendião Fran-
cezes. Em seguida perguntou que conceito d'elle
fazião os Portuguezes, e se muito o temião. Respon-
deu Hans que no damno'recebido tinhão os dé Por-
tugalbom padrão por onde medir o homem que elle
éra; mas Bertioga estava agora mui fortificada. Ah!
exclamarão os índios, nás matas nos havemos de
eéCOnder é apanhar outros, como te apanhamos
a-tüi
Disse então Hans ào cacique que os Tupiniquins
não tardarião a vir com vinte e cinco canoas a ata-
Câl-O. Não fez escrúpulo d'éâta espécie de traição na
esperança de com ella captivar a boa vontade de seus
donos e salvar a vida. Entretanto toda a kaawy se
exhaurira n'aquella casa; passárão-se pois para ou-
tra osbebedores, ordenando ao captivo que os seguisse;
amarrotí-lhe o filho de Cunhambebe as pernas uma
k outra", e fizérão-no saltar emquanto elles rião e
gritfâvão: Vede o nosso manjar a pular. Dirigiu-se
éfle a Ipperu Wasu, perguntando se era alli que
devia niofrer. A resposta foi que rião, mas que tudo
isfosè practicava sempre com Os escravos estrangei-
rósv Tendo-0 visto daínçâr, ordenárão-lhe agora que
cantasse; cantou um hyhino; exigirão elles a inter-
pretação; que erãó louvores a Deus foi a resposta.
Principiarão elles então a escarnecer do Deus dos
christãos: as blasphemias dos idolatras arrepiarão
i. 13
274 HISTORIA DO. RRAZIL.
Iò.ri2. as carnes de Hans, que no seu coração admirou a
longanimidade do Senhor para com esta gente., No
dia seguinte, estando a aldeia ja farta de vel-o, foi
despedido o prizioneiro. Recommendou Cunhambebe
aos aprezadores que o guardassem bem, e todos os
forão perseguindo com novos chascos e remoquès, e
que brevemente se tractaria da festa. Mas o dono
d'elle deu-se grande trabalho para consolal-n, asse-
Stade.
v.VeT». verando que ainda estava longe a epocha.
Fizerão os Tupiniquins a sua expedição, ejsucce-
deu ser Uwattibi o logar que investirão. Conjurou
Hans os seus aprezadores que. o soltassem,» e dapdo-
Ihe arco e settas verião como combatia pqr elles,
apezar de o terem por inimigo. Isto fazia elle na
esperança de poder romper pela estacada, e acolher-
se ao meio dos seus amigos. Deixárão-no combater,
• mas vigiavão-no tão cautelosos que impossível lhe
foi levar a cabo o intento; falhando o golpe com que
esperavão levar de sorpreza a praça, e encontrando.
vigorosa resistência, recolherão-se os invasores^
suas canoas, e retirárão-se. Frustrárâo-se. as espe-
ranças do pobre Hans, nem dos seus serviços colheu
a menor gratidão. Tornarão, a mettel-o no seu cala-
bouço apenas terminado o assalto; e de tarde trou-
xerão-no para a área, fecharão á volta d'elle o cir-
culo, e fixarão o dia de matal-o, insultando-o como
de costume com suas expressões de feroz alegria.
Era no ceo a lua, e fitando n'ella tristes olhos, pediu
HISTORIA DO BBAZIL. 275
elle a Deus que lhe pozesse um termo feliz a estes 1552
soffrimentos. YeppipoWásu, que era um dós chefes
da horda, e n'essa qualidade convocara a assembléia,
vendo quão attetítoò cbristão tinha a vista erguida,
pérguntou-lhe para que olhava. Ja Hans não rezava;
eotítêmplava arara da lua, e phantasiava-a irada.
Sua alma estava* quebrada, seus espíritos abatidos
p'éío continuo terror, e n'aquelle memento èstava-
Ihe parecendo,- diz elle, que era aborrecido de Deus
é de todas as couzas por Deus creadas. A pergunta
so a meio o despertou do seu phantasiar, eelle res-
pondeu que éaa claro estar irada a lua; Quiz o sel-
vagem -saber contra quem, e então Hans.como eahirido
em si, replicou que ella lhe olhava para a casa. Pol-o
isto furioso, e Hans julgou prudente dizer que talvez "
s
a lua fitasse olhos tão coléricos sobre os Carijós,
Opinião a que assentiu o chefe, imprecando que ella
os exterminasse todos. i\i><>.t%w-
Na manhã vierão novas deterem os Tupiniquins
incendiado a taba de Mambueába, abandonada á
ápproximação d'elles. Preparou-se Yeppipo para ir
coma maior parte1 dOs seus ajudar os habitantes a
réedificarem-na ; rêcommendou a Ipperu Wasu que
vigiasse bem o prezo/ e prometteu trazer barro e
farinha de mandioca para a festa. Estando elle assim
ausente chegou de-Bertioga um navio, deu fundo
perto da costa e disparou um tiro. Tinhão os fupini-
qnins visto Hans na batalha, e dado aviso do logar
276 HISTORIA DO BRAZIL.
1552. on(je eslava, sabido o que se despachara este barco
a obter o seu resgate se fosse possível. Olha, disserão-
Ihe os seus aprezadores, teus amigos os Portuguezes
vierão saber de ti, e offerecer resgate. A isto respon-
deu elle que talvez fosse seu irmão, que também
vivia entre os Portuguezes; e isto o dizia para remo-
ver a suspeita de que fosse elle d'esta nação. Foi
uma partida a bordo, e ás inquerições que se fizerào,
deu respostas taes que o patrão se fez outra vez na
volta do mar, dapdo Hans por ja comido. Viu este o
barco dar á vela, em quanto os cannibaes exultavão
sobre elle, exclamando: Apanhamol-o ^apanhamabo!
E elle o que queríamos que fosse! Os outros manda-
Stade.
P. 4, c. 3-2 rão navios atraz d'elle!
E esperava-se de volta a cada a hora a partida
de Mambucaba. Hans ouviu um clamoroso uivar na
choça de Yeppipo Wasu; é costume dos selvagens do
Brazil quando apoz uma ausência de alguns dias lhes
volvem os amigos, saudal-os com lagrimas., e lamen-
tos ; assim pensou que erão chegados os da expedi-
çãoT e com elles a sua ultima hora. Disserãqrllie
porem que um dos irmãos de Yeppipo volvera so,
ficando doentes todos os outros; com o que secreta-
mente se alegrou, esperando que Deus o salvaria mi-
lagrosamente. Não tardou a apresentar-se 0 recem-
vindo, e assentando-se-lhe ao lado, principiou a
lastimar a sorte do seu irmão e parentes, que todos
tinhão cahido feridos de moléstia, pelo que vinha a
HISTORIA DO BBAZIL. 277
pedir-lhe que orasse por elles, pois Yeppipo cria que 1552.
1
íguarippe?
HISTORIA DO BRAZIL. 2»!
155í
mos: no nosso paiz. E poz-se a falar do que ia ter lógar
no diaiSfigointe, como se se tractasse d'um banquete
em que elle fosse conviva. Deixou-o Hans, e sentou-
se a ler um livro portuguez, que os selvagens, tendo"
o havido d'uma preza feita pelos Francezes, lhe tinhão
dado; mas incapaz de desviar d'este Margaiá o pró-
prio pensariiento, e talvez não satisfeito com o que
lherdissera, foi de novo ter com elle, para accres-
centar:Não vaspensar, amigo, que vim aqui para
ajudar a comer-te, pois sou eu também prizioneiro,
emeus^donos me trouxerão. E tractando de dar-lhe
a melhor consolação, explicou-lhe como, apezar de
terde ser comido o corpo, entraria a alma em me-
lhor mundo, para ser bemaventurada: Perguntou o
selvagem se era isto verdade, pois que elle nunca
vira Deus. Na outra vida o verás, replicou Hans. De
noute levantou-se um temporal desfeito. Clamarão
logo os índios que era obra d'aquelle maldicto ex-
cenjarador para salvar o prizioneiro, sendo amigos
Mai^aiás e Portuguezes. Hontem o vimos, dizião, a
vdtar as pelles de trovão, com o que querião desi-
gnar as folhas do seu livro. Felizmente para elle
clareou pela manhã, e celebrou-sé sem interrupção Slade
a festa.-- i « ••:•:••'/-• p*. a <= e 3'-
Volvião por água Hans e seu senhor; o vento era
violento e ponteiro e a chuva incessante ; todos con-
vidarão o prezo a que lhes desse bom tempo. Vinha
na eanoa um rapazinho, que da festa trouxera um
282 HISTORIA DO .BRAZIL.
1552. OS so em que ia agora roendo; disse-dhe Hans que o
deilasse fóray mas não houve quem não clamasse que
era aquillo um delicioso acipipe. Continuou o-tempo
humido e tempestuoso, de modo que, gastos três
dias no caminho, que não era para mais d e um, íi-
verâo os índios de alar para terra as canoas, e ir por
terra o resto. Cada um tomou o mantimento, que
tinha antes de pôr-se em marcha, e acabado; e bem
polido ja o osso, longe o arremessou o rapaz. Forio-
se dispersando as nuvens, é Hans perguntbu.se não
falara verdade, aflirmando que Deus estava irado
com aquelle menino, por comer carne h u m a n a ? Mas
os selvagens replicarão que nenhum mal teria acon-
tecido, se o christão não tivera visto comer o tal osso,
e olhando-o assim como a causa immediata, não re-
stado. ./ ~ . • • >\
i>. 4, c. 38. montarão a outra mais acima. i:& "h}-.
Traüco em Vividos assim cinco mezes n'este duro captiveiro,
de guerra, chegou de S. Vicente outro navio, por quanto Portu-
guezes e Tupinambás costumavão commerciarje
guerrearem-se simultaneamente entre si. Careoifo
aquelles de farinha de mandioca para os numerosos
escravos que tinhão nos engenhos d e assucar;
quando um navio, sahido á procura d'este gênero,
chegava a um ponto, tir..va um tiro. Dirigião^se en-
tão a elle dous selvagens n'uma canoa, mostravão o
que tinhão á yenda, e ajustara-se o preço em nava-
lhas, anzoes, ou no que para isso havia a bordo. Em
distancia pairavâo outras canoas, até conclui-se
HISTORIA DQ BRAZIL. 285
1552.
lizamenle o escambo; apenas feito isto, e recolhidos
os dous corretores, principiava o combate, bárbaro
mas conveniente arranjo. Ao affastarem-se os dous
traficantes, perguntarão os Portuguezes se Hans
vivia ainda, dizendo que eslava a bordo o irmão, que
trazia algumas couzas para elle. Quando q. prizio-
neiro soube d'isto, pediu que o deixassem falar com
o irmão, dizendo que erá para que o pae mandasse
ufn navio por elle e mercadorias para o resgate;
nem os Portuguezes entenderião a conversa. Isto o
dizia elle por que tinhão os Tupinambás ajustado
uma expedição do lado de Bertioga, para agosto se-
guinte, e receava queihe suspeitassem intenção de
dar noticia d'este plano. Acreditárão-no elles na sua
simplicidade e levárão-no até tiro de pedra do navio.
Gritou Hans logo que so lhe falasse um, pois havia
affirmado que ninguém senão seu irmão podia en-
tendel-o. Um dos seus amigos, encarregando-se d'este
papel, contou-lhe como vinhão enviados adverse o
podião remir, devendo, se fosse rejeitada a proposta,
apoderar-se d'alguns Tupinambás, que por elle po-
dessem trocar. Pediu-lhes elle pelo amor de Deus,
que nenhum d^stes^,meios tentassem, mas que dis-
sessem que era um Francez e lhe dessem alguns
anzoes e canivetes. Promptamenle o fizerão elles,
indo algumas canoas%mar os objectos. Revelou-lhes
então Hans a projectada, expedição, eelles pela sua
parte o informarão que seus alliados se dispunhão a
284 HISTORIA DO RRAZIL.
5
'S *- atacar outra vez Uwattibi, e que não perdesse o
animo. Deu-se por findo a parlamentear. Hans de»
a seus senhores os canivetes e anzoes, promettendo-
lhes muito mais quando viesse o navio buscal-o, pois
havia contado a seu irmão quão bem era alli trac-
lado. Os selvagens forão também de opinião que o
tinhão tractado com muita bondade, mas ainda lh'a
mostrarião maior agora que era claro ser elle Fran*
cez de alguma importância : permitlirão,-lhe'pois
acompanhal-os ás florestas e tomar parle nas suas
Stade. . . .
v. 4,c m. oecupações ordinárias.
Havia na aldeia um escravo carijó, que, lendo-o
sido dos Portuguezes, fugira para os Tupinambás,
com os, quaes vivia ja trcs«annos, mais tempo do que»
Hans estava no Brazil; apezar cPisto por algum es-
tranho teiró, que lhe tinha, não cessava de instigai
seus senhores a matarem-no, declarando tel-o vista
por muitas vezes fazer fogo contra os TupinamSá^b
por signal que fora até o matador d'um dos seus ea-
> ciques. Cahiu este homem doente, e foi Hans córii&p
dado por seu senhor a sangral-o, com promessa d'»*»]
quinhão na caça, que se matasse, se o curasse. O ins-T
trumentode sangrar era um dente agudo, com que,
não estando costumado a manejal-o, não pôde Hans
abrir a veia. Disserão então os selvagens, que era
homem perdido, e que nada mais havia, senão matal-í
o, para que não fosse, morrendo, tornar-se incomi^'
vel. Indignado representou Hans que bem podia o
HISTORIA DO BRAZIL. 285
1552
enfermofestabelecer-se, mas nada valeu. Tirárão-rio -
da rede, dous homens o mantiverão direito, pois es-
tava tão mal que nem podia ter-se nem dar accordo
dó que com ellefazião, e o dono lhe partiu o craneo.
Traetou ainda Hans de dissuadil-os que o comessem,
fazendo-lhes ver que o corpo estava amarelloda mo-
lesrtia, e podia causar peste : mas elles o mais que
fijerâo por este respeito, foi deitarem fora a cabeça e
os intestinos e devorarão o resto. Não deixou Hans
tambem.de ohservàr-lhes que este escravo, que sem-
pre fora sadio, so cahira doente, quando principiou
r
Stade.
a maehinar-lhe a morte. P. *, c. 40.
Chegado era agora o tempo da jornada para que Fugeanad»
' para um
l
os Tupinambás se preparavão havia três mezes; con- ^> « francez,
tava elle que o deixarião em casa so com as mulheres, recebe,°
e então fugiria. Antes de vindo o dia da partida, che-
gou um bote d'um navio francez, que estava na bahia
dfcfcRio de Janeiro; vinha a mercadejar pimenta,
macacos e papagaios. Saltou em terra um homem
que falava a linguagem dos Tupinambás, e Hans
pediu-lhe que o levasse para bordo; mas seus donos
não o deixarão ir, resolvidos a haver por elle bom
resgate. Quiz Hans então que os índios fossem com
elle,,ao navio, mas também isso lhe recusarão, di-
zendo que aquella gente não era sua amiga, por
quanto lendo-o visto tão nu, não lhe dera um vestido
com que cobrir-se. Mas os seus amigos estavão a'
bordo do navio, insistiu elle. 0 navio, retrucrárão os
s-286 HISTORIA DO BRVZIL.
1552 selvagens, riãO daria á vela, antes de finda a expe-
dição, e então séria ainda muito tempo de Ia o le-
varem. Mas ao ver largar o bote, não pôde Hans
reprimir o seu vehementé desejo de liberdade; saltou
pára a frente, e correu na direcção do escãler ao
longo da praia. Perseguirão-no os selvagens, alguns
o alcançarão, elle os repelle a golpes, deixa todos
atraz, mette-se ao mar e nada paia o batei. Recasâó
os Francezes recebel-o com receio de offendérem' os
índios^ eHans, resignando-se ainda uma vez coma
sua ma estrella, teve de nadar para terra. Ao verem*
no voltar, exultarão os Tupinambás^ más elle affec-
loü-sé colérico por terem-no julgado capaz'de fugir,
quando fora unicamente dizer aos seus conterrâneos
que preparassem um bom presente para quando se
. . Ü f k fosse a bordo'. ' '' ^'r
cciemonias De muitas ceremonias são precedidas as expédi-
parur para a ções hostis. A cada momento se dirigião os velhos
guerra. .i ' _ °- •
aos moços, exhortando-os a irem á guerra. Um ora-
dor ídoáo, quer percorrendo toda a aldeia, quer sen*
lado na sua rede exclamava : « Como! É este c
exemplo que nos deixarão nossos pães, que assim
esperdicemos nossos dias em casa! Elles que sahião,
pelejavão e conquistavão, matavâo e devoràvão? Sof-
frererhos que os inimigos, que antes não podião sup-
pòrtar o nosso aspecto, venhão agora bater ás nossas
portais, e nos,lrazão a guerra a casa?... » E batendo
rias espadoas e quadris, accrèsceritará : « Não, hão,
HISTORIA DO RRAZIL. 287
1552
Tupinambás! Saiamos, matemos, comamos! » Dura-
vão ás vezes horas os discursos d'este jaez, escutados
cama mais religiosa attençâo. Em todas as tabas da
tribu se consultava sobre a escolha do logar, a que
devia dirigir-se o ataque, e fixava-se o tempo para
. . i~ " De ,Lery.
a jppuão e partida. c. 13.
tünia vez por anno corrião os Pâgés todas as ai- ceremonias
^ religiosas dos
deias.íiandavão avizo da sua vinda, para quo lhes pre- Tupinambás.
parassem os caminhos. As mulheres do logar que
devia Receber esta visita, ião>duas a duas por todas
as casas, confessando em altas vozes todos os delictos
commetódos contra seus maridos, e pedindo perdão
d'elles^ e.caegados os Pagés erão acolhidos com
oanças e cantares. Pretendião que o espirito vindo ff- 39-
dos confins do mundo, lhes dava o poder de fazer a
maraca responder ás- perguntas, e predizer os suc-
cessos. "limpava-se a casa, excluião-se mujheres e
crianças, e àpreseritavão os homens as suas maracas
adprriàdas de pennas vermelhas,) para que a estas se
coaiferisse o dom da fala. Assentavão-se os Pagés no
topo da sala, tendo a sua própria maraca erguida
deante d'elles: perto d'ella se fixavâo as outras, e
cada homem dava o seu presente aos charlatães para
que nâo fosse esquecida a sua. Concluída esta parte
essencialissima do negocio, erão as maracas fumi-
gaflàs com petm fior meio d'uma canna comprida;
toma então oPagé uma,leva-aáboca, emánda-a falar;
parece safeir d'ella uma voz aguda e fraca, que os
288 HISTORIA- DO BRAZIL.
1552. selvagens acreditão ser a do espirito, e os bonzoses
mandão ir á guerra e vencer os inimigos,;pois que
aos gênios, que habilào a maraca, apraz que os sa-
tisfação com a carne dos prizióneiros; Cada um toma
então o seu oráculo, chama-o seu querido filho, e
vae cuidadosamente repol-o no seu logar. Do Orinoeo
ao Prata não teem os selvagens outro algum objecto
visível a que prestem culto.
Em algumas occasiões faz-se ainda maior ceremo-
nia, a que João de Lery assistiu uma vez por acaso,
Tinhão elle e outros Francezes ido de manha cedo a
uma aldeia de Tupinambás, pensando almoçar alli.
Acharão todos os moradores, em numero de seis-
centos pouco mais ou menos, reunidos na área: en-
trarão os homens n'uma casa, as mulheres em outra,
as crianças em terceira, e os Pagés intimarão ás
mulheres que.não sahissem, mas escutassem altentas
a cantar, e com ellas, mettérâo os Francezes. iego
se ouviu ym som, que partia da casa, onde esfayâet
os homens: cantava o He-he-be-he, que as mulheres,
rebelião (dj^ mesma forma. Não era o canto ao priav
cipio em clave, mui alta, mas continuou por um
quarto de hora inteiro, subindo sempre,,aíé tornam;
se um grito prolongado e horrível. Não cessavãQ os
cantores entretanto de saltar, arquejandQ-dhes os
peitos e espumando as bocas, até que alguns cahirão
sem sentidos, chegando de Lery a acreditar que esta-
vão todos realmente possessos. As crianças erguiào
HISTORIA DO BRAZIL. 289
lambem a nu?sma berraria pof conta própria; e os ,552-
três Fwmcezes não se vião ém pequena afflicção,
como erafcatúral,sem saberem o que o demoriiaisse
lembraria de" fazer. Apòz curta pausa principiarão os
homens aéantar rio mais doeè e delicioso tom. De
Lery sentiu ttm encanto tal que resolveu irvel-ós;
eunfeora as mulheres procurassem retel-o, e um
interprete normando lhe dissesse que em sete annos,
que tantos vivia ja entre os índios, jamais ousara as-
sistir ao que alli se passava, elle, confiando na sua
intimidade com alguns dos chefes, sahiü e practicou
iwHethado um 'rombo, pelo qual com seus compa-
nheiros viu toda a ceremónia.
iEstavIo os homens postos em três círculos distinc-
tos. Todos se inclihavão para deante, o braço direito
passado atraz das costas, o esquerdo pendente; agi-
tavão a perna direita, e n'esta attkude dançâvão e-
cantavão; de indefinivel doçura era o seu canto, e
d»espaço a espaço todos batião com o pé direito, e
cuspüo no chão. No centro de cada circulo'se vião
tresóü quatro pagés, ri'uma mão a maraca, e na
oatra um cachimbo ou antes canna occa, com petun;
matraqueavão com os oráculos, e soprávão o fumo
para sobre os homens, dizendo ".Recebei o espirito
da bravura, com que vençaés os inimigos. Durou
Í9to duas horas. Era um hymno em commemoração
dos avôs aquelle canto; choravão-nos, mas exprimião
a<esa*peHiça de,'quando a *seu turno passassem as
i. 10
290 HISTORIA DO BRAZIL.
isr.2. montanhas, dançar e exultar com elles; depois era
um bramido de vingança contra os inimigos; que
não tardarião a conquistar e devorar, a matraca o
promettera. 0 resto do cântico, se ao interprete- ,
normando se pôde dar credito, referia uma rude tra--
K. 15.' dição do dilúvio. :>~hè'>
Ainda por outros modos de adivinhação devia^f,
porem confirmar-se a auctoridadé dos sacerdelesé:
oráculos. Consultavão-se certas muiheresvque tinhã^ -
recebido o dom da prophecia. Este era o modo de;.,
conferir tal faculdade. Comjjeínnfumigava- o pagéa
aspirante, mandando-a depois gritar quanto podessftjc,;,
e saltar a bom saltar, e dar voltas em redondo, ner»:
rando sempre até cahir sem sentidos. Tanto que ella
voltava a si affirmava o bonzo que ella éstivera mçrjnj
e elle a resuscitara, e desde então era mulher experta.
Quando também estas adivinhas promettião a victeria,;i
restava para os sonhos o ultimo appello. Se muUoS
da tribu sonhavão com comer os inimigos, era signalijj;
seguro de triumpho; mas se ainda maior numero*
sonhava «que erão elles proprios,os comidos, desistiar
se da jornada.
A.mas. P° r meados de agosto poz-se Cunhambebe em
marcha com trinta canoas, levando cada uma seus •
vinte e oito homens. Teve Hans de acompanha-los;
ião para Bertioga e projectavão porem-se de.embòs-*
cada e apanhar.outros, como o havião apanhado*
elle. Levava cada um sua corda passada á volta d©
HISTORIA DO BRAZIL. 291'
corpo, com que amarrar os prizióneiros que fizes-" 1552.
semi Alem d*istorimaarma dé pau, chamada- ma-
mm, tinha Úe cinco á seis pés de comprimento, e
reraatata, em fôrma de colher, porém chata; media
a folha'cerca d'um pé na maior largura, no centro
teria a grossura d'um dedo, mas erão cortantes os01
dous lados. Feita do pau ferro do Brazil, não era
meaostremcnda que uma acha de batalha esta arma; *
e tão^dextraménte o niánejavão os índios, que de
LeFy-obsferva, que umTupinambá assim armado daria
quéfazer à dous soldados de espada. Da mesma ma-
deira erão os arcos, ja vermelhos, já pretos, maisi
compridos e grossos do que se usava o no velho con-
tinente, nem havia Europeo que os vergasse. De
corda lhes servia uma planta chamada tocou, e apezar
de delgada, tão rija, que a tirar por ella a não par-
tira um cavallo.- Menos de vara não mèdião as settas,
curiosamente fabricadas dè três pedaços, sendo de'
juneoodo meioede madeira pèzadae dura os das
extremidades. Com algodão lhes grudavão as pennas,;
e oU era de osso a ponta, ou d'Uma folha de juncõ
^ secco, cortada pelo feitio d'uma lanceta antiga, óu .
da -espada d'umâ espécie dé peixe. Incomparaveis
freieheros erão aquelles selvagens. Com licença dos
Inglezes, diz de Lery, que .tanto primão n'esta_ arte,
deve. dizer que um Tupinambá tiraria doze seitas •
antes" que um Bretão despedisse seis. As armas dé
logo" os aterràvão, em quanto lhes não, comprèhen-,
292 HISTORIA DO BRAZIL.
1552. (iérão a natureza; mas logo que perceberão que era
mister carregar o mosquete para que tornasse a ser-
vir, em pouca conta liverão tal arma, dizendo que,
emquanto se preparava uma, fazião elles voar seis
flechas. Nem tão pouco consideravão elles as balas
mais formidáveis do que os seus próprios farpóes,
dos quaes não havia escudo, nem couraça que livrasse.
0 que é verdade é que nas suas mãos não erão iao
lethaes as armas do fogo, como .apontadas contra
elles : os Francezes lhes vendião pólvora, mas era
tal, que três selvagens carregavão um canVâle á
boca, um o sustentava, outro fazia a pontaria,e um
terceiro lhe chegava a mecha, sem que houvesse
risco de explosão1. Pelles de anta, do tamanhífe
figura da d'um tambor, lhes servião de escufJos.
Erão de casca de arvore as canoas, e elles as rema-
vão de pé, tomando a pa pelo meio, e impélljrido a
folha larga para traz na água. Não se davão pressa,
antes se ião divertindo pelo caminho, e paravaò a
pescar na foz dos rios, uns soprando buzina, outros
uma rude trombeta formada d'uma especiede ça-
Jjaço comprido, outros tocando fraulas fabrièadasde .
ossos de inimigos.
Quando na primeira noute mandou Cunhambebe
fazer alto, sahirão a terreiro ás maracas; ao som
•d'ellas dançarão todos até mui avançada hora, quando .
1
Dos milagres, que relata S. de Vasconcellos, alguns se explicito
pela qualidade da pólvora.
HISTORIA DO RRAZIL. 293
1552
d cacique deu ordem de recolher e ir sonhar. Tam- -
bem aHans se ordenou que sonhasse, mas, dizendo
elle, que não havia verdade em sonhos, pedirão-lhe
qúe conseguisse do seu Deus fartura de prizióneiros
para,elles. Ao nascer do sol almoçou-se peixe, ápoz
o que contou cada um o seu sonho; o assumplo de
todos é fácil de imaginar-se: sangue e matança e
banquetes anthropophagos. Treriiia de esperança o
pobre que encontrassem estes índios a expedição
bem mais poderosa, que aparelhavão os Tupiniquins,
ou que, chegado ao logar da acçâo, lhe fosse possível
a fuga. Infelizmente, em logar d'isto, sorprehendé-
rãp cinco canoas de Bertioga, que, a poz porfiada
ratça alcançarão. Conhecia Hans toda a malfadada
tripolacão, entre a qdal vinhão seis mamelucos chris-
ãos como então se chamava a raça mesclada. Ao
snçurtarem a distancia que os separava.da preia,
írguião os Tupinambás suas fraütes de ossos de gente,
s fazião soar seus collares de dentesfle humanos, vo-
gando e exultando com a certeza da victoria. Apezar
Ia disparidade do numero, por duas horas não deixá-
ãp os mamelucos approximar-se o inimigo, até que *
lahindo mortalmente feridos dous, e acabando-se
os, outros as settas e armas de arremesso, forão feitos
. . . ' Slade.
irjzioneiros. p.4, c. 42.
.Apenas posta em seguro a preza, fizerão os ven-
edores força de remo para o logar onde na ultima
mote havião armado as redes. Alli forão mortos e
'í;294 HISTORIA DO BRAZIL.
1532. feitos ém postas Os prizióneiros, que estavão mortal-
mente feridos. Gravárão-se no chão quatro foreafos,
tt'éstes se' átravéãsárão estacas; e nJeste engenho sec-
cou-se antes que não se assou a carne. Esta machina
de madeira se chamava bucanj e butahôtdô o alimento
assim defumado é secco, donde'veio o nome a essa
raça extraordinária de buúartévrós, que por tanto
tempoforãooflagicitídos Hespanhoes tfSAmerièado
Sul. N'aquella noute se immolárâo dous christãos,
Jorge Ferreira, filho do capitão de Bertioga, e um
tal Jeronymo, parente de dous outros prizióneiros.
Dormião os selvagens, e Hans foi ter cornos Sobre-
viventes, entre os quaes seachavão Diogoe; Domin-
gos Braga, dous irmãos, que forão dos! primeiros
que se estabelecerão "em Bertioga, e ambos antigos
Íntimos d'elle. A primeira pergunta dos desgraçados
foi, se serião comidos. Pouco conforto linha Hans
que dar-lhes, nem lhes disse senão queseriaoque
Deus quizesse, em quem devião pôr toda-a sUa espe-
rança, pois á suà divina bondade- havia apraèido
deixal-o viver a elle até então, coriiO vião; Pergun-
tarão pelo seu parente Jeronymo1... b éorpoâosem
ventura estava então no btican, e parte do de Ferreira
ja devorada. A' vista d'isto desatarão a chorai». Disse-
lhes Hans que não havia porque desesperar;'ja-que
o vião'milagrosamente guardado oito mezes;' e não
mui arrazoadaméntétráctou de convencel-os, deque,
nopeor dos casos, nHo podia a couza ser tão dura
.HJSTORIA DO BRAZIL. ' .295
1552
, pai» (jpeni^ nascido no Brazil, estava costumado a. -
, estes cruéis e bárbaros hábitos, do que o teria sido
para elle, estrangeiro rindo d'uma, parte do mundo
-p^dji/talie nào,(practicava. Poderia elle ter fugido
iíftilW.RpM* noute* mas receou que a sua fuga pçovo-
v.caria os Tupinambás .a matarem immediatamenie os
,..f|rizie;neiros, pejo que era do;seu dever aguardar
.), outrosm^ios,, de salvação, pois que impossível não
c. efa;Ubertar comsigo os novos companheiros de infor-
túnio. Ter assim pensado e assim obrado, grangeou-
, lhe um titulo á estima das gentes.
,.-<,i N^dia seguintedirigiu-se elle á tenda de Cunham-
hehe,. a quem perguntou o que se propunha fazer
/doschristãos.ComelrOs, foi a resposta. Tolos forão
. ,em;virpom os nossos inimigos, quando podiíto. ter
ficado em.casa, e comotolos,morrerão. E prohíbiu
^a Hans, que tivesse, relações com elles. Aconselhou
,, ^tÇj que. se esperasse resgate,, mas o selvagem não
-quizsaber.do.conselho. Havia ao lado um cesto cheio
de carne humana, do qualtomandoum dedo assado,
o.poz o cacique á boca de Hans, perguntando-lhe se
, comeria. Respondeu o Europeo que nem as feras de-
. voraviio as da própria^espécie.. Cravando os dentes na
.iguaria, exclamou olndio : «Pois eu sou um jaguar,
e gOStO d'ÍStO. » t . t>.4,c. 43,44.
. '. De tarde ordenou Cunhambebe que lhe apresen-
"í lassem todos'Os prizióneiros. STum terreno plano
entre as matas e o rio formarão os aprezadores um
296 J HISTORIA DO BRAZIL.
«1552. circulo, no centro do qual os collocarão: ao som das
maracas ergueu-se o canto. Terminado este, disserSo^
os Tupiniquins : Coirio valentes vínhamos do nosso
paiz, a atacarmos, a vos, nossos inimigos, e matar.»"
vos,,e comer-vos: vossa foi a victoria, e lendus^ufls?
nas mãos. Não importa; os bravos morrem valente-
mente.no paiz dos inimigos. Ampla é a nossa pátria,
e povoão-na guerreiros, que não deixarão sem vin-
gança a nossa morte. A isto tornarão os Tupinambástí
Tendes aprizionado e devorado muitos dos nossos,
e agora em vós os vingamos. U.JÍS/. Í> J / .-
No terceiro dia chegarão os vencedores ásjsuas
próprias fronteiras, onde, repartidos os prizionetOM^
se separarão. Oito selvagens e Ires christãos couberão
em partilha a Uwattibi. O resto, queficavados dous,
ja bucanados, foi levado para casa e guardado para
uma festa sqlemne; por três semanas esteve5 parte
de Jeronymo pendente sobre a lareira da casa, em
que residia Hans. A este não o quizerão levar ao nasrh>
sem que se acabasse a fesla, e anles d'issbfez-sede-
vela a embarcação. Nenhuma esperança lhe restava
agora, senão a consolação, que lhe davão, de virem
navios todos os annos. Veio porem um tempo, em
' que elle deu graças.á Providencia por esta benéfica
contrariedade. Tinha este .baixei capturado-no Rio
de Janeiro outro Portuguez, e dado aos selvagens um
dos prizióneiros, para que o devorassem : sua era*
também a tripolacão do bote, que recusara recolher
H ISjTjO*IA- DO. BRAZiL. 297
Hans quando a nado fngia de terra,, e o interprete 1^õi•"
nownandoyifue aco^elhara;o$iTupinambás a que o
co»essemKiaegüalmentea bordo. Pois nem, talvez
seja dklgw»3>*mtisfaoção para & leitor, como o foi
paraflansvisaberque a vingançade Deuspezava sobre stild0.
eatasídesalmadoss eque todos os tragou o oceano. P. '5,' <•. si.
sFoi :agora Hans tcaspassado a'outro senhor, um
cacique da aldeia de ifacwarasulibi. Antes de deixar
Uwattibi deu áos prizióneiros portuguezes as melhores
instcucções, que pôde, sobre o caminho que devião
seguir, se achassem meios de escapula. Foi despedido
d'ura*ialdeia com grande reputação de predizer
successos futures, curar moléstias e arranjar bom
tempo; e com o respeito devido a tão eminentes qua-
lidades recebido na outra. Logo disse ao novo senhor
que seu irmão tinha de^vir por elle; e felizmente
ouviu-se passados quinze dias um tiro de peça na
vifiinha bahia do Rio de Janeiro. Pediu elle que o
levassem a bordo do navio, mas os selvagens nenhuma
pcessa tinhão•. Soube porem o capitão que elle estava
alli e mandou dous homens a ver de que modo o
liraarião de tão triste captiveiro.'Disse-lhes Hans que
um devia fazer de irmão d'elle, e dizer que havia
trazidomeucadoriias para elle, obter^lhe permissão
deiir a bordo, e fingir que tinha de ficar no paiz
até aocutro anno para preparar um carregamento,
p
ja que era agora o amigo dos Tupinambás. - s, c. 52.
Se fora boa a combinação do plano, melhor foi a Escgpuie-se
298 I HISTORIA DO BRAZIL.
1552. execução. Hans e o seu senhor forão a-bordo; e alli
-1 ficarão cinco dias: então perguntou o selvagem pelas
mercadorias, e quiz volver para terra. Mandou «Hans
mostrar-lhas, declarando-se prompto a acompa-
nhal-o, mas pediu mais algum tempo para haaque-
tear;com os amigos; e assim engodando-oCom carnes
e bebes, forão entretendo o çadiquc a bordo até-que
o barco completou o carregamentó."EiHtêa; estando a
ponto de dar á vela, agradeceu o capitão aoTupi-
riambá o bem que lhe tractara o seu conterrâneo, e
disse que os convidara, para dar-lhe a elle presentes
em reconhecimento, e também para confiar mais
mercadorias ao cuidado de Hans, que devia ficar no
paiz como feitor e interprete. Mas este tinha dez
irmãos a bordo, que d'elle se não podião mais sepa-
rar, agora que o tinhão tornado a encontrar. Dez da
tripolacão representarão bem os seus papeis; insis-
tirão com Hans que volvesse á pátria, para que o pae
lhe visse o rosto antes de expirar. Nada melhor se
podia haver imaginado para libertar o captivo,
deixando satisfeito o senhor. 0 capitão disse que de-
sejava que Hansficasseno páiz, mas que muitos em
numero erão os irmãos, e elle um so. Pela sua parte
protestou Hans que ficaria da melhor vontade, mas
os irmãos o não deixavão. Sobre elle chorarão ohon-
rado Tupinambá e sua mulher, receberão um rico
presente de pentes, navalhas e espelhos, e partirão
e
p. 5, c ss. mais que contentes.
HISTORIA DO BRAZIL. 299
Foiíassim, que Hans Stade recuperou a liberdade, *852-
apozteBtasdecepções e perigos. Teve ainda a infeli-
< cidade desahir mal ferido d'uma aeção com esse
mesmo navio portuguez, que linha ja sido enviado a
nlraclando seu «resgato. Restabeleceu-se porem, alcan-
çou a pátria, e escreveu a historia das suas aventuras.
Livro de grande valor é este, nem -as noticias poste-
riores acerca das tribus brazileiras ampHãOy so re-
metem as informações que elle contem.
300 HISTORIA DO BRAZIL.
1552.
1
A carta de Nobrega é dalaMa de 10 de agosto.
»• i0
.#
1
Aüge-pe, moconein, mossaput, oioiconàie, ecoinbp* De lerjfe
1. 20. Não tem pois Gondamine razão em affirmar que, para expriifljtj
rem qualquer numero acima de três, teem os índios de recorrer! afl!
portuguez. P. 65. ...
1
As tribus do Orinoco contão até cinco, passão a cinco e um* qnco,.
e dous até dous cincos, e assim por deante até quatro cincos, É uma.
numeração digitaria, sendo notável d ponto até onde!a levló o?
Achagèás; Entre elles abacaje que dizer cinco, e os dedos d'uma mão;.
tucha macaje, dez, ou toàos os dedos; abaçatacay vinte, ou osdé»
dos*de mãos è pés; incha matacacay,' quarenta, dedos de duas;pes-
soas; cd'esta arte, diz Gumilla (c. 48), chegão a 2000, 6<JÕ0e'lÒWW
HISTORIA DO BRAZIL. 3Ü
1552.
Supremq e Trovão'; fácil é a transição da primeira
para a ultima significação, e d'aqui compoz a bar-
bara vaidade d'algumas tribus um nome para si
mesmas. N'estas palavras se comprehende e explica
cwijunctamenle toda a theologia d'aquelfes selvagens.
Nenhumas preces dirigião elles a este,Pae Universal,
que não era objecto nem de temor nem de esperança.
0 diidioüsino tinha raízes mais fundas: sonhos, som-
kas/pezadelos e delírio engendrarão superstições,
que uma espécie de velhaeos teem systematicamenle
alimentado e fortificado. Os pagés*, como os cha- Pagés.
mavão, erão ao mesmo tempo charlatães,. peloti- •
queirosesacerdotes: o ritual do seu caracter sacer-
dotal reduzia-se a fazer a maracá e as momices
1
Miserrimi nostri Barbari, escreve De Lery, in hac etiatf^vila
misere ab Cacodxmone lorquentur. Quem quizer ver como a um via-
jante verídico se podem dar as apparencias de mentiroso, olhe para
as gravuras com queJ)e Bry illustrou esta passagem, p- 223u repu-
tando differentes variedades do Cacodsemon; *
Anhangá, Juripary e Kaagere são nomes que se dão ao espirito do
mal. 0 primeiro é o Ayguam de De Lery.
HISTORIA DO BRAZIL. m
«élvilgenSy e conservavão toda a nouteo fogo a arder ,592
em casa, sWdo alisto a principal -razão o não se po-
derem «gpfteàmaf do lume os aespirilós malignos;
nem, todas as vezes que podião évital-o, se- averitu-
ravieitís índios faòiaÍ6 no escuro sem um facho niV. AVL«.55
, ; H. Stade.
úficeío, o.M?j".; - ífiôô/ aoa 3ÔJÍ .,«mjfiür 2,7.
i.-Vivíãe os p ^ í sos em cabanas escuras, cujas
pprtas «r$o extremamente pequenas, rião ousando
nitíguêmítifân&por-llfés os umbraès. Tudo o que pe-
iião se lhes dava. Prégavão que era peccado abomi-
nável reeusar-lhes a filha,- ou qualquer couza que
<ixígisgem; e poucos ousa vão incorrer no peccàdo,
p&is sé os pagés predizião a morle de alguém'que
os tivesse Iffcndido, immediatamente se recolhia o
'delinqüente á sua rede, em tão viva expectaçãó de
partir-se da vida, que nem comia nem bebia, sendo
ásUfli; a píèdicção uma sentença que a fé se encar-
tfegata de executar, Como benzedeiros practicavão^os Noi^a*.
^B^oqueédeestyk) entre os conjuradores selva- i<*-
^ensfehupavão a parteaffecládàye apresentavão um
^daçode pau r osso ou outra qualquer substancia
3
«xW8nha, pretendendo havet-a extrahido com a
operação.
f !TQs Jesuítas,.que acharão S. Thomé, no Oriente,
também lhe descobrirão os vestigios no Occidente. 0
Thomé Carétoaiidel foi um Syrio, quem seria porem
.0 do Brazil?. .... '•'"•."'.
Dos Tupinambás soube Nobrega que duas pessoas, s- ThomM
•ír-i tu] áiJljô.TfííB . ,, -
Õ24 , t í ,;,. , .HISTORIA DO BRAZIL. p>J,; fô^T
ff. 54,4i. os seus sacerdotes. :OB ±».. aiair* aK<>\\ .-.i < .^ofiiâb
jyj Attentamente ouvida uma exposição tldo systoroa
christão, disse um velho Tupinambá aos Franççz/çs,
que as mesmas doutrinas alli tinhão sido japregadas,
tantas luas havia que o numero se não podia,f recor-
dar, por um exlrangeiro vestido, como elles, elam-
-íbem barbado* Suas palavras não tinhão sidoesçu-
utadas,ne apoz elle veio logo outro, qUe entregau^nia
i*espada como signal de maldicção. A memória d'isto,
^ajunctou o narrador, passou de pães a filhos» Q^fue
c
ha aqui mais singular é a referencia a tempos;anjie-
riores á epocha da espada; onde querqne se desco-
bre alguma tradição d'uma edade de ouro, implica
ella conjunctamente um reconhecimento, e uma
c 16: prova de degradação da Vaca.
HISTORIA DO BRAZIL. 525
Thevet fala no Grão Caraiba, que os índios tinhão 1552.
ehrtaáta veneração como os Turcos a Mafomai e que !í- "•«•'
lhes eiísnieuiánlo o uso do fogo comoo das ràizes
afifflerrfitíiaá.Deri a mandioca a uma rapariga^ e
nt^íratriihe como cortal-a em lascas, e<preparáb-ás.
Sé IflèVet'tivesse procurado identificar esta perso-
^ t ò í com S. Thomé, a sua conhecida velhacaria •
flíè-teria'desacreditado o testimunho; mas elle.«nada
«íàbia tfesia hyfféthèse (que em verdade aindanentão
íraoestáva inventada), e parece certo que tradições
^fÉlhàntès corrião entre os selvagens?^ respeite'de
urhiqüefora oiriaior bemfeitorda sua raça «w»?
" í' Se1 deres mereceu um logar na mytholOgia da A mandioca.
< :
tfi
528 HISTORIA DO BRAZIL:
mi
- de água e depois erão seccas ao f$go!; quandwd'e1J*s'
Koiicia». se queria fazer uso, reduzião-se a um pó fino, que
batido com água, tornava-se qual creme de amen*
doas*: o outro methodo érâ macerar a raiz em agtía>
até ficar pútrida e depois curai-a ao fomb; e assim,'
pizado em almofariz" dava uma farinha tão branca
Ntiui.-. •>, ii. conioa (fe trigo. Os selvagens d'esta sorte a prepara-
vão freqüentemente. A preparação mais dei içada po-
rem era passal-a por uma peneira, e pôr a polpa
immediatamente ao luhie n'um vaso de barro;
assim se granulava, e quente'ou Tria^era excel-
Noticia».
2,.35. lente. • .t>"o?*fft
Stóde. Bude e summario era o systema indigeno de cul-
tivar.esta planta; derrubavão as arvores, deixavão-
nas seccar, queimavão-nasentão, e plantavão a man*-
dioca por entre os troncos. Gomião a farinha seccá
d'um modo inimitável; por quanto, tomando-a entre
os dedos, atiravão-na á boca tão limpamente, que
»eiwy. r.y. um so grão não cabiafora. Jamais houve -Europeo*
que tentasse fazer esta habilidade, sem empoar a
cara ou os vestidos, com grande risota dos Indiosv
Quando falhava a mandioca, recorrião estes á u r u -
curi-iba, espécie de palmeira^ ouja madeira, rachada;
socada e pulverizada, dava uma sorte de farinha, que
se chamava dê pau; nome, que strictamente signifi-
cativo no seu emprego originário, se appliCa agora
Marcgratf. C Q m m e n o s propriedade á farinha da mandioca.
Bebidas Também fornecia a mandioca aos naturaes a be-
íermmtadas.
HISTORIA DO BRAZIL; 523
bida para os seus banquetes. íreparavão-na por Um 1552
processo curioso, que o homem da natureza tem ás
vezessidoassaz engenhoso para inventar, mas nunca
experto bastante para rejeitar. Lascadas as rabes-,
fervião-se até ficarem macias, epunhão^sea esfriar.
Mastigavãõ-nas depois as raparigas', apozoquévol-
tavãOj ao vaso, onde,5 cobertas de água, erão postas
oufcraivez a ferver, sendo entretanto mexidas inces-
santemente. Concluída esta operação', que era assaz *adc. 2,1;.
longay vasáva-se o liquido restante em enormes cân-
taros de barro, enterrados os quaes até ao m«io no
chão da casa, e bem tapada, manifestava-se a fer-
mentação no curso de dous dias. Tinhão os índios a l)tí lcr
exiranha superstição de crerem que preparado por 9'15'
homens, para nada prestaria este licor. Chegado <>
dia da bachanal, accendião as mulheres fogueiras á
volta d'estas talhas, e servião a poção quente em
malgas, que cantando e dançando vinhão os homens
receber, e enxugavão sempre d'uma assentada. Por' aic?arÜdèD
° * . . . ÍAbbevilU.
estas occasiões fumavão tabaco•, uns em cachimbos tf-304.
dê1 barro, outros na casca d'uma fructa, para esse
effeito ocada; ou então enrolavão-se três ou quatro
folhas seccas denlro d'uma maior, á guiza de cha-
rutos. Em quanto os mais velhos bebião, dançavão
1
kxhicha,o\x bebida de milho, preparava-se da mesma forma, com
a differença que muitas tribus so admittião a esse mister as mulheres
velhas, por lhes parecer que as moças estavão infectadas de humores
impuros. Dobnlzhoffer, t. 1, 465.
330 HISTO;IA'D0 BRAZIL.
i55'2. , e m [orno os'mancebôs solteiros,*eom eastanholas
nos tornozelos e nas mãos a mtirfécck T '< -é>':'vãiüâq
^N'estas partidas de libações, jamais os índios eo-
mião, nem cessavão de beber em quanto lhes restava
uma única gota do seu licor; exhausto quanto havia
n'üma casa, passavão-se para a immediatã é ássirii
por deante até terem bebido d que havia na aldeia
inteira j e estas festas fazião-se de ordinário umavveíí
por mez.De Lery foi testimunha de uma, que dúrOu
três dias e três noutes. Havia duas espécies d'està béP
bidã, chamadas"caouirim ekaawy, vermelha ebranca;
e que devião ser feitas de raizes differentes. NdSâbor1
i)ei.«ry. f». diz-se que ârremedavão ó leite. && •- f í«iJn*%oij
- Por toda a parte, onde se cultiva a mandioca, é
está a bebida, Com>'que os selvagens habitualmente
se eriibrütecem nas suas orgias. Muitas das tribus?
{:ajll brazileiras preparavão porem corri o caju um licòr
melhor1 .Pôde o cajueiro dizer-se a arvore mais utítda
America. « É bella de ver-se a sua pompa, diz "¥as*»
conceitos, quando" ella em julho e agosto se est£
revestindo do brilhante verde "da sua folhagem; è
quando no nosso outomno europeo ella se cobre de
flores brancas e rosadas, e nos três mezes seguintes
• •»••foi í-b o^ni93i»m» tií> ü&lfo T/J. Bífeoqí? A .Qíicq
° l Marcgraff faz menção de nove espécies de licor fermentado que os
índios brazileiros preparavão sendo uma de pinhões, para isso apanha-
dos antes de^maduros (Noticias Ms;, % 41); o sueco da fruçta ainda
verde applicava-se como um corrosivo para as feridas empregando-o
também os Europeos para limpar espadas ferrugentes, &• •>. í tfMO.i
HISTORIA DO BRAZIL. ' 331
t55e
«eefgã ao pezo de seus-fruçtps, que simelhao jóias
pendentes. » Teem suas folhas um cheiro? aroma tico,
suas flores exhálào deliciosa" fragrancia, sua soriibra
éfr>esrare em extremo agradável. Beçuma-lhe do
tronco uma resina em nada somenos da do Senegal,
e ,tgo abundante, que imita gotas de chuva que ca-
hjfesêín na arvore : usão-na os índios como medicina,
moida e dissolvida em agirá. Não é mui vulgar no
seftló, mas perto da costa, legoas e legoas de terras,
qçié alias serião estéreis, se vêem cobertas d'esta
arvore admirável; e quanto mais arenoso o terreno,
e séeea a estação» mais ella parece dar-sê bem. A
posse d'um sitio onde ella crescesse em abundância,
tinha imporlaticia tal, que ás vezes provoeava guer-
ras* A fruota é esponjosa e cheia d'um summo deli-
cioso; de qualquer fôrma é exeellente; tanto no seu
estado-natural, como secca e posta de conserva.. A
semênteí que em <forma de fava dá na extremidade
doJfttóto, é bem conhecida na Inglaterra sob 0 nome
de castanha de caju e muitas vezes ia dar ás praias
de Cornuãlhes antes da descoberta da America. Mui-
tas tribus contavão os seus annos pela fructificavão
dô«àjueire, pondo de cada vez Uma castanha de
parte. A epocha da colheita era um tempo de fol-
gança e alegria como a vindina em outros climas.
Extrahia-se simplesmente o liquido, ja expremendo
afiructana mão, ja pizahdo-a n'um almofariz de ma-
deira ; o seu sabor é forte e inebriante, e em seis
332 HISTORIA DO BRAZIL.
1552. mezes torna-se vinagre, sem comtudo perder de todo
o paladar vinoso. Expremido assim o sueco, sec-
cava-se apolpa, e reduzia^e a farinha, que os na-
turaes preferião a qualquer, putra, reservando-a
como o melhor acipipe. A madeira é rija, é tem sido
muito usada para cavernas de botes grandes, prac-
tica que deve ter diminuído consideravelmente o nu-
mero d'estas inestimáveis arvores. A casca exterior
sim.devasc é de cor escura, a interior mais clara. As folhas são
Clir.dacomp.
^ « " i ; de melancholico aspecto na estação chuvosa. Quão
2, § 81-84, *•
L. 4ÍSc.'6. preciosa não seria esla arvore nos desertos da Arábia
Marcgruff. j »r • i • ,
;
5,2. e da Atnca! •<-• '*".*b
Amigos como os indigerias brazileiros erão de be-
bidas fermentadas, nem por isso erão menos picho-
sos na escolha da água, do que nós o somos na do
vinho, admirando a imprudência ou ignorância dós
Europeos, que parecião indifferentes a respeito da
ii-o. p.ii. qUa}ídadeda que bebião. Preferiao a mais doce, leve,
a que nenhum sedimento deixava, e tinhão-na em
vasos de barro poroso, para que se conservasse fresca
com o constante transsudar. Água pura exposta ao
orvalho da manhã, ou ao ar,' era um* remédio favo-
rítodOs empíricos tanto indigenas como portuguezes;
suppúnha-se que o ar e o orvalho a temperávão, se-
parãndo-lhe as partes terrestres das aerias, philoso-
n a uenão
PÍSO p ís P i 1 PÓde s e r de origem selvagem.
. Extranhas couzas se contão a respeito dos conhe-
r
Conheci-
menl toxi
^s " cimentos que os índios tinhão em matéria de verie-
, HISTORIA DO BBAZIL. 553
nosi'; que as simplices peçonhas lhes fossem fami- 1532
"*';'' 0 veneno de que uma porção tão diminuta, que se pôde trazer
debaixo d'uma unha, é bastante para produzir a morte, prépara-se,
diz (Jumilla, d'uma espécie de formigão, cujo corpo é raiado de preto,
ámarello e vermelho. Cortão-se pelo meio estes insectds,'e deita-se
fóra a parte da cabeça; o resto torra-se a lume brando, e a gordura,
que sobe á superfície, 6 a peçonha. Um índio disse a Gumillaque esta
substancia se não pôde ter dentro d^ma canna, pois peneira através
d'ella, sendo preciso um osso de tigre, macaco ou leão. C. 38.
" 0 curara é um veneno que so a. tribu dos Caverres noOrenoco
.prepara. É um çharopc sem gosto, que se pôde tomar sem perigo; mas
f
Gumifla afíinna, que apenas uma setta ii'eile molhada arranha o
Corpo, segue-se morte instantânea ; coalha logo o sangue, arrefece o
corpo, e cobre-se d'uma escuma amarella e fria. E isto porem pouco
provável, e o que elle diz do antídoto manifestamente falso, a saber
°§nè tendo alguém um grão de sal na bocea, nenhum effeito pro-
duzirão veneno.
. Os Eançhes experimentayão os seus venenos n'uma mulher velha
v
ou n'um cão. Herrera, 7, 5, 5.
0 que é notável é que as tribus que nas suas settas usão contra as
Coras dos venenos mais aclivos, nunca os empregão contra os inimi-
gos. Mèrc. Per. N. 79.
Pauw diz (Rccherches, t. 2, p. 519): a Algumas settas experimentá-
•rào-se na Europa cento e cincoenta annos depois de envenenadas na
America, e, com pasmo dos que fazião a experiência, achou-se.que o
veneno muito poço perdera da sua intensidade. »
334 HISTOBIA DO1 BRAZIL..
1552>
tamenté vicioso. Diz-se que tão obstinados erão em
guardar o segredo d'estas lethaés receitas; como of-.
ficiosos em indicar antídotos. Más embora haja mo-
iiso.p.40. tivo para suspeitar que estes conhecimentos fossem
ás vezes, como a feitiçaria, um poder tremendo,iní-
culcado pelos velhácos depois de admiltído peíés
crédulos, nem por isso deixa de ser facto averiguado
que estas peçonhas erão conhecidas d algumas das
Humboidt. mais broncas tribus da America do Sul. Talvez esta
Narrat.
P
5,si4°-522. sciencia lhes viesse por tradição d'algum estado de
civilização de muitas eras ja perdida, e cuja existência
mal ha sido suspeitada até aos nossos dias, tão pou-
cos vestígios se lhe tem por ora descoberto. Todos os
remédios erão simplices. 0 physico hollandez Piso
percebeu esta differença essencial entre a pharmacia
• indiana e a sua própria; nem a este hábil observa-
dor escapou a superioridade do principio da theoria
riso. p. si. selvagem, recommendando-a affincadamente.
Ja fica referida a terrível conseqüência que da sua
1
Ceremonias *•
iiasámenio theoria da geração deduzião os índios : deu esta
cria"™, theoria também origem a um costume ridículo, que
reina sobre grande parte da,America do Sul, e que
em outras eras se encontrava entre os selvagens1 da
Europa e da Ásia. Apenas a mulher dá á luz, logo o
Noticias, marido se melte na rede1, cobrerse muito bem, e
2, 57.
1
talvez d'esta extravagância nascesse a fábula, que Pauw n'uma
nota qualifica como exageraçâo, mas de que aproveita no texto,'o
que lhe convinha. Dans toule une province du Brésil, dit Vaíifeur
HISTORIA DO BRAZIL 355
daUiuão. sahe em quanto ,á criança não cahe o cor- 155i-
dão umbilical; tão intima se considera a jmião entre
eJJle e a sua progenie, que 4 preciso prestar, a um os
maiores cuidados para que não soffra a outra'. A De Lery c
primeira operação que se fazia á criança, era achatar- Cfí8'
lhe o nariz, esmagando-o com o dedo peJlegar; depois
faravarse-lhe o lábio, se era rapaz; o pae. pintava-o
d$,preto e encarnado, ,e punha-lhe ao lado na rede
uma maçam ,pequena e o seu arquinho e setta,
dizendo-lhe: Quando cresceres, meu filho, sê forte,
e vinga-tefdos teus inimigos! A's vezes junctava-se a
isto um feixe de hervas, como symbolo dos que havia ?•• i6.
de matar e devorar. 0 systema europeo de enfaixar
e embalar as crianças pareceu monstruoso a estes
homens da natureza. Lavavão-nas a miúdo em água
fria, não tanto por amor da limpeza, como para
fazel-as robustas e fortes. Singular superstição era
a de não matar o marido nenhuma fêmea de animal, riso. P. •;.
em quanto a mulher andava grávida, pois se succedia
•éss Recherches historiqués, p. 372, les hommes seuls allaitent les
en^mils^e& femmes rtyi ayant presque pas de sein,ni de lait. Pauw
assevera que este facto é tirado des relations du Brésil, mas em
nenhuma das que li o encontrei. Mão duvido porem que algum viajante
«íentiroso contasse isto. ft
'Entendem elles, que o que fazem affecta a criança. Conta Do-
brizhoffer a historia d'um Hespanhol, que offereceu uma pitada de
rape a um cacique, que assim estava recolhido á sua rede, e pergúii-
tando-lhe por que rejeitava uma couza de que antes tanto gostava, ouviu
em resposta : Não sabes que minha mulher teve hontem o seu bom
successo? Como queres então que eu tome rape, quando seria tão pe-
rigoso para o meu lilho espirrar eu ?
550 HISTORIA. DO; BBArZilL.
IE>52. andar prenhe a dieta fêmea, morreria lambem.a
DC Lery. criança como castigo do peccado commettklo contra
Tiievei. o mysterio da /rida* i Anajogio a esto. sentimento era o
ÍT
horror com que olha vão o comer ovos; não se podia
soffrer, dirião, que se comesse a ave antes de cho-
cada; as mulheres principalmente jamais eonsenti-
rjão, que alguém o fizesse na,presença d'ellas. Idéia
ainda mais ridícula era, que o homem tem direito a
uma cauda, e com ella nasceria, se o pae do noivo
não tivesse a precaução de cortar alguns paus, por
oceasião do casamento d 'este, cerceando assim este
appendice aos futuros netos.,
ÍVnoie?
Mal nascia a criança logo se lhe punha nome. Hans
v Stade achou-se presente n'uma d'estas oceasiões;
convocou o pae os mais próximos visinhos de dormi-
tório, pedindo-lhes para o filho um nome viril e ter-
rível ; não lhe agradando nenhum dos propostos^
declarou que ia escolher o d'um dos seus quatro anter
passados, o que daria fortuna ao rapaz, e repetindo-
os em voz alta,fixoua escolha. Ao chegar á edade de
ir á guerra, dava-se outro nome ao mancebo, que
a e
i.2, c. Í8. ads seus títulos ia acerescéritando um por initoigO,
,, 2 c n què trazia para casa, a ser immoíado. Também a
mulher tomava addicional appellido quando o ma-
rido dava uma festa anthropqphaga. De objectoV visí-
veis1 se tirayão oscognomes, determinando o orgu-
' Succedcu ter o nome dn Lery significação no idioma selvagem.
S:tbendo-o o interprete que introduziu o viajante entre os Tupinam-
HISTOR tA* DO BRAZIL. 337
*
Jho ou aferocidadea escolha. O epitheto grande fre- 1^2-
qaetttemente se compunha com o nome V
ofcflíguose torna de reparo nunca ou quasi nunca Harmonia,
, . . . . eraquewião
bafarem entre si os rapazes, apezar de não se mcul- °s Jndios.
carem outros princípios que não os de ódio è vin-
gança. Rarosão rixosos os selvagens, quando sóbrios,
duo habitual era entre os Tupinambás o sentimento
dailÍMituobem querer-se, que parece rião o perdiãó,
nemqulandoiebrios. Um anno viveu de Lery entre
elles, sem que presenciasse mais que duas pendên-
cias jísocegados e sem intervirem se mantinhão os
circumstantes, mas se em algumas -d'estas raras oc-
casiõesqualquer injuria se irrogava, executavão sem
piedade os parentes do offendido a pena de' talião.
Havia na lingua d'ellesuma palavra com que desi-
bá^^con^ejhpu./sijque, no perguntarem-lhe pelo nome, respondesse
Lérij-oússou, Grã Ostra. Por isso mais o estimarão aquelles, dizendo
qué^on^tâo etcéllérite nome não havião ainda encontrado Francez.
1
Entranha era.a nomenclatura usada entre o povo de Misleco,
que d ela deduzia superstição não menos extranha. Introduzião-se nu-
raeros.nos nomes, não podendo o homem desposar mulher, cujo nome
foss^e:de;numeração,egual ou superior á sua; por exemplo, diz Her-
rera", se pila se, chamava Quatro Rosas, e elle Três ou Quatro Leões,
não •pòdíãb casar. •" '
.«.Obsentei, diz, o P. Andrez Perez de Ribas, quando fui baptizar .
esta^naçãpjas tribus.Hiaquis de Cinalofl), que apenas apparecia um
índio, qfo não tivesse ó nome derivado das mortes que havia perpe-
trán^ou tltisignativo do modo pôr que as fizera, como o que matou
quatro, cinco ou dez, o que matou na floresta, no caminho, na plan-
tação* E^mbora; entre outras nações se encontrem appellidos simi-
, são em muito menor numero. L. 5, c. 1, p. 285. ,
538 HISTORIA DO BRAZIL.
i —
1
Espécie deaihendoa da terra, que os Portuguezes chamão AMEN-
342 HISTORIA DO BRAZIL.
ir,r>2
nos seus actos por uma theoria physica, sendo pro-
vável que n'esta repartição dos trabalhos agrícolas
partissem da mesma hypothese que os selvagens
muito mais rudes do Orinoco, què a explicarão a
Gumilla. Pae, dizião elles, não entendes o nosso cos-
tume, e por isso odesapprovas. Sabem as mulheres
como dar á luz, couza que nós outros ignoramos.
Quando são ellas que semeão e plantão, produz o
pé de milho duas ou três espigas, a raiz da mandioca
dous ou três cestos cheios, e tudo se multiplica • da
mesma fôrma debaixo de suas mãos. Porque? por-
que as mulheres sabem como dar fructo, e fazer com
Gumilla.
C. 45.
que as sementes e raizes o dêem egualmente.
Leryil;i Fiar e tecer (tinhão uma espécie de tear) era pro-
0 ma
"v! i8. *priamente officio das mulheres. Tirado'da casca o
algodão, reduzia-se o fio; não se empregava roca, e
o fuso tinha cerca d'um pé de comprimento e um
dedo de grossura; passava por uma bolinha- e no
cimo se prendia o fio. Fazião-no as mulheres gyrar
entre os dedos, e fiando o atiravão ao ar, sem que
este trabalho as privasse de irem caminhando. Assim
preparavão cordas grossas bastante para suas redest>
e tambémfiostãofinos,que um collele d'elles tecido,
que de Lery levou para França, foi alli tomado por
seda. Suja a rede, o que depressa devia acontecer
com o fumo das eternas fogueiras, lavavão-na e co-
DÕES,diz o original. Supponho será amendoim, como traduzi. (Nota do
Traductor.)
HISTORIA; DO BRAZIL. 343
ravão-na com uma espécie de cabaço, que cortado 155'2
em pedaços, fervido e mexido, levantava escuma, e
empregado como sabão, fazia o algodão alvo de neve. c. il7'
Hábeis oleiras erão as mulheres. Seccavão ao sol vasos
os vasos, e depois virando-os cobrião-nos de casca de stade, 2, ií
1
- Noticias.
M
arvore, a que punhão fogo, cozendo-os, assim, suffi- |éxarayef
cientemente1. A grande perfeição teem muitas tribus
americanas levado este arte, havendo algumas que
enterrão os seus mortos em vasos da altura do corpo,
que n'elles fica a prumo. Com auxilio d'um certo
;bJqitido branco vidravão os Tupinambás tão primo-
rosamente o interior dos seus utensílios, que os olei-
ros da França o não farião melhor. A parte exterior
acabava-se geralmente com menos cuidado; mas as
vasilhas em que se guardavão os comestíveis, pin-
tavão-se quasi sempre com volutas e arabescos, in-
trincadamente entrelaçados e limpamente executados,
mas sem seguir padrão algum; nem havia quem
soubesse copiar o que uma vez fizera. Estava esta
olaria geralmente em uso, e observa de Lery que a »e Lery.
*. C. 18.
1
Glaude d'Ábbeville diz que elles sabião distinguir pelo olfato duas
pessoas de differentes tribus. FF. 311. Os que forão com elle para
Franca avistarão terra muito antes que ninguém a bordo, e muitas
vezes quando os Francezes imaginavão vela, dizião elles que era
apenas negrume do ceo. FF. 312.
352 HISTORIA DO RRAZIL.
1552. e r a a practica de mudarem freqüentemente de habi-
«oticias. tações. Jamais se demoravão n'um logar mais do que
lhes durava o telhado de folhas de palmeira com que
cobrião os ranchos; apenas esle, apodrecendo,
deixava passar a chuva, em logar de o repararem,
emigravão. Não o fazião por que estivesse exhausto o
terreno adjacente, mas por supporem que a mudança
de residência era essencial á saúde, e que, se aban-
donassem os hábitos de seus avós, perecerião. Nes-
tas migrações erão as mulheres as bestas de carga,
que levavão as redes, olaria, pilões e almofarizes de
madeira, e todos os mais haveres. So de suas armas
se carrega o esposo, em quanto a companheira põe
ás costas um cesto, seguro por uma corda, que passa
pela testa, e outro á cabeça, pendendo-lhe dos lados
vários cabaços vazios, um dos quaes serve de sella á
criança, que escarranchada n'elle se encarapita. As-
sim esquipada leva ella ainda o papagaio n'uma
mão, conduzindo o cão pela outra. Se chove durante
a marcha, fincados na terra dous espeques, sobre
elles se corre um telhado de folhas de palmeira,
abrigo bastante contra vento e lempo, por uma
8
- ''• noute.
Um dos motivos por que os Tupis se não havião
. adeantado mais, era também o estado dos seus pagés*
Os catholicos, que em todas as religiões, excepto a
sua, não vêem senão a obra do demônio; e os phi-
losophislas que em nenhuma vêem senão erro e de-
. HISTÓRIA DO BRAZIL. 553
jCp^ãO; teem porfiado uns com os outros em pintar '552
jseffeitos horríveis do sacerdócio. Com tudo tèm sido
sste unicamente, que ás vezes tem reerguido ò homem
degradado até ao estado'sei vagem!'Ao descobrir-se a
America, achava-se à civilização das suas differentes
nações1 eXactamente na proporção do poder que
lirihSo os seus sacerdotes, e dá veneração em que
erão tidos; nem esta auctorídade sacerdotal era,con-
seqüência, mas causa do estado adeantado da socie-
dade. Em quanto o preste não passa d'um charlatão,
continua selvagem o povo; o seu triumpho não é
mais do que a ascendência de vulgar velhacaria so-
bre a força bruta, e embora temido, não é elle res-
peitado.. Mas quando se ergue rim espirito superior,
que Combinando velhas fábulas e mal-lembradas ver-
dades com as phantasias da própria imaginação, as-
senta os fundamentos drum systema mythòlogico,
desde esse momento principia o progresso da sua
tribtfj Um culto ritual faz nascer artes para seu em-
belezamento e apoio;r arreigão-se hábitos de vida
sedentária apenas se funda um templo, e á volta do
aliai a; cidade cresce. Considerados como superiores
a todos os outros depressa aprendem os homens que
se déátinão ao serviço divino, exemptos de todas as
ocetfpações ordinárias, a assim se reputarem a si
mesmos, e de faclo taes se tornão. Sobra-lhes tempo
para adquirirem instrucção e pensar pelo povo : é
entre esta classe que em todos os paizes teem bro-
i. 23
354 HISTORIA DO BRAZIL.
1552. t ac | 0 os rudimentos da sciencia; nem jamais acima
do estado selvagem se ergueu nação, que não tivesse
primeiro um sacerdócio regular.
proceder dos Tal era o povo que os Jesuitas se propozerão
J isunas. c o n v e r l e r Principiarão por captivar as affeições das
crianças á força de bugiarias que lhes davão; com
estas relações apprendião elles próprios algumas no-
ções da lingua, e habilitavão depressa os pequerru-
chos ao misler de interpretes. Visitavão os enfermos,
e se acreditavâo que todo aquelle que borrifassem á
hora da morte, era uma alma arrancada ás garras
de Satanas, não erão perdidos nos vivos os caridosos
officios que acompanhavão estas conversões. A' sua
chegada ao Brazil havião sido os Portuguezes rece-
bidos com júbilo pelos naturaes; mas tanto que os
originários possuidores do terreno perceberão que
os hospedes se ião tornando senhores, tomarão ar-
mas, e suspensas as intestinas dissenções, tentarão
expellil-os. Armas de fogo europeas depressa os re-
chaçarão, e política europea depressa lhes rompeu a
ephemera alliança. Mas nem a paz com os colonos
portuguezes garantia a estes a segurança; quando é
permitlido reduzir inimigos á escravidão, não ha
amigos seguros. Debalde parlião de Portugal decre-
tos humanos; em quanto se reconhecera atroz prin-
cipio, de que podem haver circumstancias que
constituão legitimamente o homem escravo do ho-
mem, fraco escudo serão todas as leis e formalidades
HISTORIA DO BRAZIL. 355
1552>
contra a violência e a avareza. A' chegada dos Jesuítas
muilas tribus andavão em armas contra esta oppres-
são, que primeiro pela noticia de terem vindo ho-
mens, amigos e protectores dos índios, e depois por
experimentarem-lhes os bons officios, vierão entre-
gar seus arcos ao governador, supplicando-o que
como alliados os recebesse.
Nenhuma habilitação para o seu officio faltava a
estes missionários. Erão zelosos da salvação das
almas; tinhão-se desprendido de todos os laços que
nos ligão á vida, e assim não so não temião o mar-
tyrio como antes o ambicionavão. Àcreditayão do in-
timo da alma na verdade do que pregavão, e eslavão
elles mesmos convencidos de que aspergindo um
selvagerii moribundo, e repetindo sobre elle uma
formula de palavras, que lhe erão inintelligiveis,
remião-no de tormentos eternos, a que d'outra sorte
eslava inevitavelmente, e, segundo as noções que
tinhão da justiça divina, merecidamentc condem-
nado.^Nem se pode pôr em duvida que fazião ás vezes
milagres sobre os doentes; pois se acreditavão que
o padecente podia ser milagrosamente curado, e este
próprio assim o esperava; não raro suppriria a fe a
virtude em que confiavão.
Principiarão Nobrega e os companheiros a sua.
obra pelas hordas que demoravão nas visinhanças
de S.v Salvador; persuadião-nas a viver em paz, re-
conciliavão inveteradas inimizades, e logravão evitar
556 HISTORIA DO BRAZIL. /
1552
a embriaguez e.fazer prometter a monogamia; mas
extirpar a anthropophagia não o poderão : o delírio
de banquetear sobre a carne d'um inimigo era por
demais forle para se renunciar. Vãos forão todos os
esforços para acabar com este habito. Um dia ouvirão
os padres o alarido e regosijo dos selvagens n'um
d'esles sacrifícios; irromperão na área no momento
mesmo em que acabava de ser derribado o prizio-
neiro, e as velhas arrastavão o corpo á* fogueira;
arrancárão-lho das garras, e á vista de toda a horda,
estupefacta de tanta coragem, o levarão. Não tardarão
as mulheres a instigar á vingança d'este insulto os
guerreiros, que deitarão atraz dos missionários, a
quem apenas havião deixado tempo de enterrar
secretamente o cadáver. Recebendo disto avizo, man-
dou o governador buscar os Jesuítas á malhada de
barro que habita vão no sitio onde devia mais tarde
erguer-se o seu magnífico collegio. Não os achando
-alli estiverão os selvagens a ponto de atacar a cidade,
lendo de reunir toda a sua força o governador,' que
em parte com a demonstração das armas de fogo, e
em parte por boas palavras logrou comtudo induzil-
os á retirada.
Passado o perigo, levantarão os próprios Portu-
guezes alto brado contra os Jesuítas, que com fanático
zelo tinhão posto em risco a cidade, nem larda-
rião a fazer de todos os naturaes outros tantos ini-
migos. Mas não era Thomé de Souza homem que por
HISTORIA DO BRAZIL. 357
tão myope política se deixasse aterrar de proteger e 15S2
acòroçoar Nobrega; nem tardou muito que estes
mesmos selvagens, lembrados da verdadeira bondade
com que sempre pelos Jesuítas havião sido tractados,
e de que erão estes os melhores amigos dos índios,
não viessem pedir-lhes perdão, e rogar ao governador
que ordenasse aos padres que lhes perdoassem e
continuassem a visital-os, promellendo elles nunca
mais repetirem as suas festas de homem. Mas dema-
siado deliciosa era a practica, para d'uma vez ser
posta de parte, e continuou em segredo. Quando os 4
padres chegarão a obter sobre os indigenas aueto-
ridade bastante para se fazerem temer, empregavão
as crianças como espias, que lhes denunciassem os
criminosos. < WBWB?'
Um dos Jesuítas porem conseguiu abolir efficaz- fhoméde
mente este costume entre algumas hordas, discipli- DÍV^ÍSÍ.
nando-se deante das portas dos índios até manar-lhe
o sangue, e dizendo que assim se atormentava para
desviar o castigo que Deus «alias lhes infligiria por
um pèccado que bradava aos ceos. Não poderão
resistir, e confessando que era mao o que tinhão
feito, decretarão severas penas contra quem de novo
o practicasse. Entre outras tribus porem por felizes
se davão os missionários, quando, lhes deixavão ac-
cesso aos prizióneiros, para inslruil-os na fé salvadora
antes de marcharem á morte. Mas principiou a met-
ter-se na cabeça aos selvagens, que a água do bap-
358 HISTORIA DO BRAZIL.
I552
- tismo estragava o sabor da carne, e não mais consen-
cdro Corrêa.
D
ff'24osi' t * rão Ctue ^ nos baptizassem. Levavão então os Jesuítas
lenços molhados, ou humedeciâo a orla ou mangas
do habito, d'onde podessem expremer sobre a ca-
beça da victima água sufficiente pára preencher-se a
condição de salvação, sem a qual estavão persuadidos
que seria o fogo eterno a partilha do desgraçado.
vasc. chr. Q ue n g 0 CI>erá o homem, se do seu Creador pôde crer
da comp. *• ' i
1, § 54, 137. e g t a s c o u z a g !
Se, superando todas as difficuldades, logravão os
padres a final converter uma horda, tão pouco era
esta conversão o effeito da razão e do sentimento,
que a menor circumstancia fazia recahir os prose-
lytos no antigo paganismo. Manifestou-se entre elles
uma epidemia; disserão que era a moléstia devida
ás águas do baptismo, e todos os conversos, que
Nobrega e seus companheiros operários com tanto
trabalho havião recrutado, os terião abandonado e
fugido para as selvas, se elle não empenhasse a sua
palavra de que o mal em breve cessaria. Felizmente
cedeu elle effectivamente ás sangrias, remédio a que
s.vasc. os índios não estavão costumados. Pouco depois veio
uma tosse calarrhal ceifar muitos, e também isto foi
imputado ao baptismo. Os próprios Jesuítas não atlri-
buião a este maior virtude, do que os selvagens fazião
em sentido opposto; uma so calamidade os não visi-
tava, cuja origem se não buscasse logo n'estas gotas de
água mysteriosa. Muitas tribus a suppozerão fatal ás
HISTORIA BO BRAZIL. .359
crianças; a anciedade com que os missionários bap- 1552-
tizão os moribundos, e especialmente os recemnasci-
dos, que não prometlem viver, occasionou esta idéia.
Principiarão agora as nações visinhas a olhar com
horror os Jesuítas, como homens que comsigo trazião
a peste: mal vião approximar-se um logo toda a
horda se reunia, queimando-lhe no caminho sal e
pimenta, fumigação que passava por boà eontra
pragas e espíritos malignos, e para não deixar entrar
a morte. Uns ao verem vir os padres tomavão todos s Vasc c c
os seus narres e abandonavão as habitações; outros *'§115-
fsahião-lhes ao encontro, dizem os Jesuítas, tremendo
como varas verdes ao soprar do vento, pedindo-lhes
que seguissem avante, sem lhes fazer mal, e mos-
trando-lhes o caminho. Os pagés, como é fácil de
suppôr, invidàvão todos os esforços contra os con-
correntes que lhes vinhão estragar o negocio, e per-
suadiào os índios que estes lhes mettiào nas entranhas
navalhas, lhesouras, e outras couzas assim, com que
os fazião morrer..., feitiçaria em que os selvagens
parecem ter geralmente acreditado.
Quanto mais adentro penetravão os Jesuítas no
paiz, mais forte encontravão este sentimento de
terror. Mas a final cedeu á sua perseverança, e a su-
perstição dos naturaes levou-os então ao extremo
opposto ; trazião suas provisões para serem benzidas,
e onde contavão que passaria um padre, Ia se ião thomé ae
D Souza.
portar para receberem a benção. Â T "m s *
, 360 HISTORIA DO BRAZIL.
1552 Assim q u e podiHo fazião os Jesuilas pelos neophytas
e r g u e r n a aldeia u m a capella, q u e ainda q u e tosca,
os prendia á localidade, e estabelecião u m a eschola
para as crianças, que catechizavão na sua p r ó p r i a
lingua, ensinando-as a dizer o P a d r e nosso sobre os
doentes, dos quaes u m so se não restabelecia, cuja
c u r a não fêsse por todos attribuida a m i l a g r e , se se
tinha observado esta receita. T a m b é m as i n s t r u i ã o
•
na leitura e escripta, e m p r e g a n d o , diz Nobrega, a
m e s m a persuação com q u e o i n i m i g o venceu o
h o m e m : Sereis quaes deuses, conhecedores do b e m
e do m a l . Admirável parecia esta sciencia aos índios,
Div AII S ° l u e P o r 1SS0 v i v a m e n t e desejavâo obtel-a, prova irre-
b ?
CAPITULO IX
D. Duarte da Cosia governador. — Anchieta. —Erige-se o Brazil em Pro-
víncia jesuitica. — Estabelece-se uma eschola en Piratininga. — Morte
de D. João III. — Mem de Sa governador. — Expedição dos Francezes
ao Rio de Janeiro debaixo do commando de Villegagnon.— Atacão-lhes
os Portuguezes a ilha e destroem-lhes as obras. — Guerra com os Ta-
moyos.— Nobrega e Anchieta negocião com elles a paz;. — Derrota final
dos Francezes no Rio de Janeiro, e fundação da cidade de S. Sebastião.
a dormir.
Entretanto não se cançava Coligny de buscar chega um
para a sua colônia supprimentos espirituaes e cor- dpr^ôres.e
poraes. Philippe de Corguilleray, senhor Du Pont,
huguenote, que fora seu visinho en Chatillon sobre
o Loing, e se retirara para Genebra, a pedidos do
almirante e do clero d'aquella cidade, consentiu,
apezar de velho e enfermo, em deixar os filhos, e
commetter tão remota e arriscada aventura. Se a
egreja de Genebra assim tomou a peito este negocio,
foi por ter-lhe Villegagnon asseverado que o seu fito
principal era estabelecer naquelle paiz a religião
reformada, para o que pedia o seu auxilio. O próprio
Calvino, reunidos em convocação os anciões, nomeou
para esta missão Pedro Richier e Guilherme Char-
tier; muitos aventureiros illustres se deixarão indu-
zir a acompanhar estes famosos ministros do seu
i. 25
386 HISTORIA DO RRAZIL.
1556. próprio credo, enlre os quaes João de Lery, a quem
devemos preciosas noticias sobre a tribu brazileira
que assim teve occasião de observar. ,\
Apparelhárão-se a expensas da coroa três naus,
em que embarcarão duzentos e noventa homens, seis
rapazes, que devião aprender a lingua dos naturaes,
e cinco raparigas debaixo da obediência diurna ma-
trona; de vel-as, conta-se, ficarão embasbacados os
Tupinambás. Commandava a expedição Bois-le-
Comle, sobrinho de Villegagnon. Navio, que eneon-
travão no seu rumo, fosse de amigo ou inimigo, sa-
queavão-no, se erão elles os mais fortes. Na altura
de Teneriffe tomarão um vaso portuguez, promet-
tendo ao capitão restituir-lho, se lhes desse traça
como se apoderassem de outro; o homem com egoís-
mo, mais para esperar-se do que para relevar-se,
metteu-se n'um bote com vinte d'estes piratas, e cap-
turou um barco hespanhol carregado de sal. Pozerão
então os Francezes todos os seus prizióneiros, portu-
guezes e hespanhoes, a bordo da primeira preza,
tomárão-lhes o bole e as provisões de toda a espécie,
Le c 2 fizerão pedaços as velas, e n'este estado os entregarão
á mercê das vagas. Digamol-o em honra de Lery,
refere elle isto com justo horror e indignação, e
muitos dos seus companheiros em vão protestarão
contra l .
* 0 modo de fazer a guerra era ifaquellcs tempos mais atroz ainda
do que nos antigos : os vencidos costumavão ser immolados e ás vezes
HISTORIA DO RRAZIL. 387
1556
Entrada a barra, desembarcarão na ilha os aven-
Proceder
tureiros, rendendo graças a Deus pelos haver tra- uu»iogico de
zido a salvamento. Em seguida apresentárão-se a
Villegagnon, a quem Du Pont declarou, que em vir-
tude de suas cartas escriptas para Genebra, havião
vindo estabelecer no paiz uma egreja reformada. Res-
pondeu o commandante, que de todO o coração havia
desejado vel-os, esperando que a sua egreja excederia
em pureza todas as demais, pois que era intenção
sua abrir aos pobres fieis, perseguidos na França,
Hespanha e mais partes da Europa, um azylo, onde
adorassem a Deus, como elle manda, sem receio de
rei, imperador, nem potentado algum. Preparou-se
immedialamente uma sala para o serviço divino, em
que Richier pregou no mismo dia, em quanto Ville-
gagnon, com grande edificação dos recemchegados,
escutava com a maior devoção, ora gemendo pro-
fundo, ora junctando as mãos, e erguendo olhos ao
com circumstancias de requintada crueldade. De Lery accusa Hespa-
nhoes e Portuguezes de haverem esfolado vivos alguns Francezes apre-
hendidos a traficar na America... Se é verdade, foi a maldade perpe-
trada sobre o terrível principio de talião. Sempre teem sido os
Francezes um povo cruel; e é certo que tendo em 1526 alguns piratas
tomado uma nau portugueza, que vinha da índia, ja quasi á vista da
costa, saqueárão-na, e pozerão-llic fogo com quanta gente tinha a bordo,
umas mil pessoas, das quaes não escapou uma. Um piloto portuguez,
que fora um dos piratas, o confessou á hora da inortc, deixando seis
mil coroas, seu quinhão no saque, ao rei de Portugal, como restitui-
ção. 0 irmão do capitão francez, aprizionado mais tarde na mesma
costa, teve egual sorte, sendo queimado com toda a sua tripolacão!
Andrade, Chr. dei R. D. João III. 1, 67.
388 HISTORIA DO RRAZIL.
1556. ceo com todos os gestos beatos d'um santarrão jubi-
ladp. Deu-se ordem para que todas as tardes depois
do trabalho houvesse preces publicas, e todos os dias
„ de semana um sermão, e aos domingos dous, devendo
cada um durar uma hora; e declarou-se que se poria
a disciplina ecclesiastica em execução contra todos os
delinqüentes. Um certo João Cointa, que dava pelo
nome de Monsieur Hector, e fora anteriormente dou-
tor da Sorbonna, passou por apertado interrogatório
acerca das suas opiniões, e pediu fazer publica ab-
juração dos erros do papismo. Qpróprio Villegagnon
fez outro tanto, edificando os pregadores corii o seu
dom de oração. Richier chegou a declarar que era 0
commandante um segundo S". Paulo, e que nunca
ouvira discorrer melhor sobre religião e reforma.
Disputas Mas Villegagnon era de gênio disputador; invo-
com os #
1
Tribunal da Meza da consciência.
HISTORIA DO BRAZIL. 415
reunirem-se ás hordas não cathechizadas, pareceu 1563-
perigoso, e um saneio escrúpulo se suscitou sobre a'
probabilidade de elles apostatarem, se os punhão em
liberdade. 0 resultado foi um compromisso entre a
consciência e a velhacaria : disse-se a estes escravos
que erão effectivamenté livres, mas que devião em
quanto vivos servir os "seus possuidores, recebendo
soldadas annuaes; e se fugissem, serião perseguidos,
reconduzidos á cidade, castigados, e multados com a
perda do salário d'um anno; os senhores por outro
lado não os havião de vender, doar, trocar, nem levar 3,T<k <Ui
para fora do Brazil. Estas medidas nada aproveitarão
aos opprimidos; os possuidores ajunetárão o perjú-
rio aos demais crimes, e quando registravão um es-
cravo, fazião-no jurar o que lhes aprazia dictar.
Passada a fome, voltarão muitos dos conversos aos
aldeamentos dos Jesuítas, e os que não poderão achar
as mulheres bem querião tomar outras; mas como
não era fácil de averiguar, se as primeiras erão fale-
cidas, não se lhes permittiu tornarem a casar, senão
apoz considerável lapso de tempo. Esta circumstancia
os desgostou, pondo os missionários em grande em-
baraço. *
Nem á rainha regente nem ao seu conselho agradara
o não se haver Mem de Sá mantido na posse da ilha de
Villegagnon; e assim que se soube da paz que No-
brega e Anchieta havião concluído com os Tamoyos,
resolveu o governo não perder o ensejo de firmar pé
416 HISTORIA DO BBAZIL.
15G4. n o R J 0 j g Janeiro, excluindo finalmente os Fran-
cezes. Despachou pois Estacio de Sá, sobrinho do
governador, para a Bahia com dous galeões e ordem
ao tio, que lhe prestasse para esta jornada as forças
da colônia. Reuniu Mem de Sá os vasos que pôde, e
recommendou a Estacio que «entrasse a barra do Rio
de Janeiro, reconhecesse a fofça do inimigo e o nu-
mero das suas naus, e, se houvesse fundamento para
contar com a victoria, o atlrahisse ao mar alto; mas
que em caso nenhum quebrasse a paz com os Ta-
S-
3,56 e 57. moyos, e que, se podesse haver os conselhos deNõbre-
VidadeAnch. j j • • n 1 1
2, io, § i, 2. ga, nada de importância sem elles emprehendesse.
„ ,. Chegou Estacio de Sá em fevereiro ao logar do seu
Expedição de <-> °
EsU
contra Sá destino, e logo mandou uma barca a S. Vicente, com
os Francezes, u m p e ( jj,j 0 a Nobrega, que viesse o quanto antes ter
com elle. Feito isto principiou a reconhecer a costa.
Àprizionou um Francez, de quem soube que n'à-
quellas partes tinhão os Tamoyos quebrado as pazes,
alliando-se outra vez com os patrícios d'elle prizio-
neiro. Esta noticia nem por todos foi acreditada,
mas depressa se confirmou : uma partida de botes
penetrou na barra para fazer aguada, e um que se
adeántara aos mais subindo um curso de água doce,
foi atacado por sete canoas, perdendo quatro homens
antes de poder safar-se. Não havia logar por onde
podessem ser acommettidos os navios francezes que
não estivesse coberto pelos Tamoyos, cujas canoas
coalhavão a bahia.
HISTORIA DO'BRAZIL. 417
15GÍ
Ensaiou Estacio com pouca vantagem algumas
ligeiras escaramuças; viu que o inimigo não sahiria
ao mar, que não podia desembarcar por falta de em-
barcações próprias, e em verdade que as suas forças
não bastavão para a empreza; e tendo sabido d'um
prizioneiro, que para elle fugiu, que S. Vicente estava
também em guerra com os selvagens, julgou mais
acertado seguir para alli, robustecer aquella capita-
nia, consultar com Nobrega (cuja demora attribuia
ás hostilidades que lá se passarião), e reforçar-se a si
próprio. Fez-se pois de vela no mez de abril. A' meia
noute do dia seguinte entrou Nobrega com um ven-
<*laval no porto, e deitou ferro, contente por ter esca-
pado á tormenta. Cuidava achar alli a armada, mas
ao raiar a aurora so viu por todos os lados as canoas
do inimigo; o vento, que o atirara para^dentro, so-
prava' ainda, e fugir era impossível; ja a gente se
dava por perdida encommendando a Deus as almas,
quando de improvizo apparecérão velas á barra, e
Estacio, repellido também tufão, veio com suas naus
ancorar nas mesmas águas.
No dia seguinte, que era domingo de Paschoa,
saltou toda a gente em terra na ilha de Villegagnon,
onde Nobrega pregou um sermão de graças pela sua
salvação providencial. Estacio consultou com elle
sobre o que devia fazer-se e o resultado foi confirmar-
searesoluçãojatomadapelocommandantede refazer-
se em S. Vicente, embarcar materiaes, e prover-se de
27
418 HISTORIA DO BRAZIL.
1564. embarcações de remo, sem as quaes muitos postos, que
seria mister ganhar, nem sequer se poderião atacar.
obsta Fizerâo-se pois de vela e chegarão a Sanctos. Aqui
r
Nobrega a ° *
s e v m c ue os
abandone a í Tamoyos de Iperoyg, com quem No-
emprera. i, re g a e Anchieta havião estado, se conservavão fieis
aos seus compromissos; muitos tinhão vindo ajudar
os Portuguezes, e Cunhambebe, que votava a An-
chieta especial amizade, postara-se com todo o seu
povo nas fronteiras dos Tupis, em defeza dos amigos.
Mas os colonos não estavão dispostos a fazer sacrifí-
cios alem dos necessarjos á própria e immediata con-
servação ; engrandecião o poder dos Francezes e dos
seus alliados, e insistião na difficuldade da empreza
com persuasão tal, que Estacio vacillou, dizendo a
Nobrega : Que contas, padre, darei a Deus e ao rei,
se este armamento se perde? Senhor, replicou o Je-
suíta, de tudo darei contas a Deus, e se for necessário
irei também perante el-rei responder por vós.
Resolvido o capitão, era precizo animar os solda-
dos ; com a sua auctoridade espiritual os determinou
Nobrega, com a sua política os ganhou. Levou-os a
Piratininga, onde o aspecto de tantos índios conver-
tidos, disciplinados e promptos para a guerra, lhes
infundiu coragem e confiança, e onde a presença de
tantos christãos contribuiu para reduzir outros selva-
gens que duranle a visita vierão trazer os seus arcos,
fazer pazes e pedir mantimento, offerecendo o seu
a
s, f'eo-es; auxilio para a premeditada empreza.
HISTORIA-DO BBAZIL. 419
im
Grande parte das necessárias forças e materiaes -
alli se levantarão. Depois desceu Nobrega até á costa, Janeiro!0
e correu todas as povoações, pregando ao povo a ne-
cessidade de levar a cabo a expedição, e promeltendo
em nome do governador perdão dos delictos tempo-
raesàquem n'ella se embarcasse. E n'uma colônia
continuamente supprida de degradados, não era este
perdão mercê que se desprezasse. Alistárão-se mesti-
ços e índios, apparelhárão-se canoas, apromptárão-se
petrechos; também da Bahia e do Espirito Sancto
vierão contingentes, chegando-se a reunir uma força,
'como os que se oppunhão á jornada nunca havião
julgado possível levantar-se. Levarão estes prepara-
tivos até fins do anno. Em janeiro ficou de verga ises.
d'alto a armada, composta de seis naus', numero
proporcionado de embarcações miúdas, e nove canoas
de índios e mamelucos, com os quaes Nobrega man-
dou Anchieta e outro Jesuíta, como os melhores cabos
sobre tal gente. A 20 de janeiro, dia de S. Sebastião,
sahiu de Bertioga a expedição, que tomou por pa-
trono este sancto, lisongeando o jovem rei, e unindo
assim a religião á lealdade. Foi contrario o tempo;
as canoas e embarcações ligeiras não poderão ganhar
a barra do Rio de Janeiro, senão em princípios de
março, tendo então ainda de esperar pela capitania
e pelos transportes, que vinhão vindo vagarosos, ar-
CAPITULO X
Reunem-se
A divisão do Brazil em dous governos provara mal,
os dous
governos. e dous annos antes de expirar o termo da admi-
i d
se quizesse desistir das suas pretenções á coroa de ^7n *
Portugal. Nem elle, fazendo a offerta, nem o duque,
rejeitando-a, lhe calculavão o alcance. Os Francezes
fizerão uma tentativa política para se aproveitarem
das perturbações que se seguirão; mandarão três
navios ao Rio de Janeiro, e recado ao governador
Salvador Corrêa de Sá, dizendo-se vindos com cartas
de D. Antônio, prior doCrato, que chamavão rei de
Portugal. Não quiz elle receber as cartas, nem deixai- Tentativa do
prior do
os entrar, e a barra estava ja demasiado fortificada ^'^â^1'6
para q^ue a forçassem. Assim terminou a tentativa
de D. Antônio sobre o Brazil menos desastrosariiente
do que nenhuma das suas outras emprezas. Mas se o
prior do Crâto tivesse comprehendido a própria fra-
queza, e possuído um gênio digno da posição a que
aspirava, poderia sem resistência ter-se estabelecido
n'este grande império. 0 mais hábil dos seus parti-
dários, D. Pedro da Cunha, verdadeiro Portuguez da
heróica tempera antiga, era capitão do porto de
Lisboa, e tinha.as naus ás suas ordens; vendo quanto •
era impossível, que D. Antônio, tendo so por si a
•gentalha da capital, resistisse a Alba e ao seu exer-
cito, instou com ©lie por que, embarcando-se com'
quantos quizessem seguir-lhe a fortuna, fosse com o
441 HISTORIA DO RRAZIL.
1578
- titulo de rei de Portugal estabelecer-se no Brazil,
onde era certo que as demais potências, por ciurries
da Hespanha e pelas vantagens do commercio, o rer
conhecerião é ápoiarião. Mas este bom e magnífico
conselho, como com justo orgulho o chama o descen-
IZ a
cu'nha" car ta dente de D. Pedro, não foi ouvido, e D. Antônio
ao Marco . , ,
Antônio. Ms. morreu em França, miserável fugitivo.
os A introducção dos Carmelitas no Brazil, que na
Carmelitas. *
1
A obra a que se refere Southey é o Tratado Descriptivo sobre o
Brazil publicado pela primeira vez na Collecção das Noticias para a
Historia e Gepgraphia das Nações Ultramarinas que vivem nos do-
mínios portuguezes ordenada pela Academia Real das Sciencias de Lis-
boa, tom. 5, p. 1. Existe segunda edicção presidida pelo Sr. Varnhagen
e feita a expensas do Instituto Histórico e Geographico Brazileiro, e
enriquecida de muitas reflexões e notas do mesmo distincto historia-
dor. F. P.
446 HISTORIA DO RRAZIL.
1581.. estavão algumas assestadas na barra, onde era tão
Ms. 2, i3. largo o canal, que ellas nada poderião aproveitar.
Forçado Se o serviço d'el-rei o exigia, podião reunir-se mais
Recôncavo. . . . ,.„„
de mil e quatrocentas embarcações de differentes
tamanhos, entre as quaes cem capazes de montar
artilharia, e mais de trezentos caravelões'; não havia
no Recôncavo homem que não tivesse o seu bote ou
a sua canoa, nem engenho de assucar que possuísse
menos de quatro. «Se vivesse ainda D. João III, que
está na gloria, diz o memorialista, amava elle tanto
esto paiz, e com especialidade a Bahia, que do Brazil
teria feito um dos melhores reinos do mundo, e de
S. Salvador uma das mais nobres cidades dos seus
domínios. » A cathedral tinha um cabido pomposo
mas pobre, composto de cinco dignitarios, seis co-
negos, dous conegos menores, quatro capellães, um
cura com seu coadjutor, quatro choristas e um
maestre do choro; mas poucos d'estes ministros
tinhão ordens maiores, nem tinha o bispo de gastar
pouco das suas rendas para prover-se de sacerdotes
que fizessem o serviço regular. A razão d'esta falta
era terem os conegos escassos trinta mil reis por
anno, trinta e cinco os dignitarios, e quarenta o
deâo; valendo muito mais ser capellão da Miseri-
córdia ou d'algum engenho de assucar, com bons
sessenta mil reis e cama e meza. Também de alfaias
1
As caravelas o caravelões tinhão velas quadradas, não como as
galés, que as trazião triangulares.
HISTORIA DO RRAZIL. 44(7
e paramentos soffria grande mingoa a sé, do que, ' 1 5 8 1 -
diz o auctor, deve ser sabedor S. M., que com este
encargo percebe os décimos, pelo que lhe toca prover
de remédio esta necessidade. Havia na cidade e Re-
côncavo sessenta e duas egrejas, dezaseis das quaes
erão freguezias; nove tinhão vigários pagos por el-rei
ás outras curas, sustentados pelos parochianos. A
maior parte d'estas egrejas tinhão seus capellõés e
confrarias como em Lisboa. Afora isto mais três
mosteiros. Que mundo ecclesiastico para tal popu-
lação! Noticias. 2,5
D. Sebastião edificara e dotara três collegios p a r a Estabeleci-
dos Jesuítas, de sorte que podia a Companhia receber dos jesuítas.
noviços, recrutando-se para o serviço do Brazil. Com
estes estabelecimentos proporcionava também insti-
tuições de educação aos Brazileiros mais abastados.
0 collegio maior era o da capital, e continha de ordi-
nário setenta pessoas, entre padres, estudantes, n o -
viços e leigos. Os mestres ou regentes, como os cha -
mavão, erão seis em numero, u m dos quaes se
empregava'em ensinar as crianças a ler e escrever;
dous erão professores de latim, e os outros três fe-
dores de philosophia, moral, theologia casuística e
escholastica. Os dous outros collegios ficavão em
S. Sebastião e Pernambuco; o primeiro costumava
'Conter quarenta a cincoenta membros residentes, e
o segundo de vinte e cinco a trinta. Outros eôltegios
níenores, chamados residências, tinhão-nos homens
^48 HISTORIA DO RRAZIL.
1581.. pios e bemfeilores erguido para os Jesuítas, sendo os
mais importantes os de Porto Seguro, S, Vicente,
"S. Paulo e Espirito Sancto. Em cada a+deia de Índios
• convertidos' estacionava o dous Jesuítas, por via de
jgggra um paclre e seu' acólito; de tempos a tempos
.voltavão aò collegio ou residência a que pèrtencião,
P.Píerredu ' . . i r i
P 2 en(
'lÕ«^ *3is ' * Io rendidos por outros.
Duas legoas em redondo de S. Salvador estava o
u
Engejjjps
á no a a
Recqn«o # * coberto de boas plantações, como os casaesde
Portugal. 0 numero dos engenhos de assucar no Re-
côncavo era de trinta e seis sem assudes, e com elles,
liavia vinte e um, e quinze tocados por bois, estando
então quatro em eonstrucção; oito estabelecimentos
de preparar melaço erão também emprezas mui lu-
V
%Ê}' crativas. Exportavão-se annualmente mais.de centoe
vinte mil arrobas de assucar, alem do que va em
doces, artigo mui procurado entre os Portuguezes.
«ado. 0 gado vaceum, trazido do Cabo Verde, multiplicava
prodigiosamente; fabricava-se manteiga e queijo, e
do leite se. fazia o mesmo uso que na. mãe pátria,
pouco influindo n'isto o clima. Jamberii da mesma
procedência se havião importado e se continuavão a
importar cavallos, apezar de se reproduzirem rapi-
damente : havia quem na sua manada tivesse qua-
renta e cincoenta egoas de criação* 0 preço d'estes
animaes regulava de dez a doze mil reis por cabeça*,
mas*legados a Pernambuco valião trinta ducados ou
sessenta cruzados. Ovelhas e cabras também não fal-
HISTORIA DO RRAZIL. 449
tavão trazidas do mesmo Cabo Verde e da Europa, & 1581-
do seu leite se fazia manteiga e queijo. , *%zu'
Laranjase limões, introduzidos pelos Portuguezes, Fructas.
tinhãorse tornado abundantes, particularmente os í>isoeri\'io.'
limões, e também maiores. Dizia o dictado., que casa
a cuja porta apparecião de manhã muitas cascas de
laranja, não entrava n'ella o medico. Caroços de to-
maras trazidos de Portugal havião produzido pal-
meiras. Transplantado produzia o cacaoeiro bom
pOr alguns annos, principiando então a murchar; é
isto, dizião, obra d'um inseelo. Pouco valor porem
se ligava a esta arvore n'um paiz tão abundante das
mais deliciosas fructas. As romãs e melões, que alias
se terião dado bem, destruião-nos as formigas quasi
completamente; oulrotanto succedia á videira; folhas
e fructo desapparecião n'uma noute, devoradas por
este insecto damninho, e tanto o vinho par a amissa
como a farinha para as hóstias, era mister virem de
;Portugal. Tão numerosas erão as formigas, e tão
grande o estrago que causavão, que os Portuguezes
chamavão este bicho o rei do Brazil; Piso porem diz Ma"s6raff-
• que com fogo ou água era fácil afugental-as, e que
o mal que fazião, d'alguma forma o compensavão
com guerrearem sem cessar todos os outros insectos.
Em algumas partes da America do Sul sahem ellas
periodicamente em exércitos de tantos milhões, que s^.
por sobre as folhas cahidas se lhes ouve a alguma
distancia o estrepilo da marcha. Os habitantes, que
, 29
450 HISTORIA DO RRAZIL.
1581. conhecem a estação, estão ja alerta, e abandonãoas
casas, que estes tremendos mas bem vindos hospedes
lhes limpão de centopeas, escorpiões, lacraias, cobras
e
A.deuiioa. todo o bicho vivente, feito o que, vão seguindo seu
Not. Amer. . ,
7, §39. caminho.
Koster. 289. São tão numerosos ainda mesmo nas mais povoadas
Dobrizhoffer. ,, . . . . i r» M
1,378. e melhor cultivadas regiões do Brazil estes, insectos,
Vasc. Vid. ° '
d ll ei a
4 4 6. ' ( I u e s e u s esquadrões ennegrecem as paredes da casa,
que de noute invadem, pondo em perigo os mora-
dores : retirão-se porem a toda a pressa, se entre
elles se atira um pedaço de papel a arder. As tribus
indianas que fazião plantações, costumavão attrahir
para as immediações o tamanduá, ou papa-formigas;
mas os Portuguezes parecem não ter considerado
quanto seria de conveniência própria proteger e até
domesticar este útil e inoffensivo animal, em vez de
exterminal-o por mero gosto. São pois as formigas,
posto que ja não tão formidáveis como quando era
menos cultivado o paiz, ainda excessivamente damni-
nhas a campos e quintaes. Ainda bem que as verme-
lhas e pretas se fazem entre si guerra de morte, as
pretas pequenas, por mais valentes e menos destrui-
doras, tomão-nas os homens ao seu serviço, deixando-
as em paz fazer suas casas nas arvores fructiferas,
Koster.288. que defendem contra as outras espécies. Nem o ho-
mem, com todos os recursos da sciencia, logrou
jamais mover corpos, em pezo e volume tão despro-
porcionados com o seu próprio tamanho è forças,
HISTORIA DO RRAZIL. 451
1581
como estes pequeníssimos insectos, com incançavel
industria e esforços prodigiosos, acarrelão para os
seus ninhos. Quando os monticulos em que se havia
plantado a mandioca mais seguros parecião, cheias de
água da recente chuva as vallas em torno, vião-se as
formigas lançar com folhas uma ponte, por onde
passassem. Ha no Paraguay uma espécie pequena e Koster.288.
preta, que nos terrenos baixos levanta ouleiros co-
nicòs de terra, de três pés de altura, e m u i perto
uns dos outros : durante as inundações periódicas
abandonão estes insectos os seus montinhos e com
maravilhosa sagacidade agarrãõ-se"uns dos outros
em massas circulares d'um pé de diâmetro e quatro
pbliegadas de espessura, segurando-se-os d'um lado
a alguma herva ou raminho, e assim ficâo fluctuando
ate que as águas se retirão. Azara. í, 107.
Uma espécie maior compensa d'alguma sorte os
estragos que faz. Preenchido o fim da sua existência
são as formigas machas e fêmeas expulsas pelas neu-
tras ou operárias, a quem toca prover as necessida-
des da republica, e homens e aves se põem á cata „
d'ellas, quando desferem o voo. Por estas occasiões
as tribus tupis, enchendo de água u n s fossos, com
que se punhão fora do alcance da parte guerreira
d'aquella sociedade, apanhavão em vasos de barro o
enxame fraco e indefeso apenas se levantava do chão,
para aproveitarem a enxundia. Esta, que se contem Anchieta
n'uma bolha branca por cima do corpo, é olhada » • ™-'
452 HISTORIA DO RRAZIL.
1581 delicioso àssipipe tanto por Hespanhoes como por
Gumiiia. índios no Paraguay e Tucuman; tendo um Italiano
C. 47.
chegado a comparal-a com a melhor manteiga. Mas
os Tupis do Brazil e as tribus do Onnoco frigiaõ os
insectos na própria gordura, e n'este estado os re-
pulavão os Jesuítas são e saborosíssimo alimento.
Outra praga tinhão os colonos no cupim, espécie
de formiga pequena, que se criava nas arvores, mas
que, como muitos oulros insectos, não tardou a des-
cobrir as vantagens da convivência com os homens,
e mudando-se para as habitações d'estes, principiou
a construir suas desconformes casas nas traves dos
edifícios, nutrindo-se de madeira. Tem-se observado
que o cupim não dá em logar que fosse untado
com melaço; bem como se tem notado com proveito
iíoster.;290. que ha certas espécies de madeira que lhe são me-
1
Jaboatâo (§ 71), transcrevendo d'um manuscripto a que dá cre-
dito, diz, que nos rios do Cayru ha monstros marinhos, que os indí-
genas chamão igbaheapina, diabos cabelludos, ou couzas más, crendo-
os espíritos malfazejos. Descrevem-nos como do tamanho de crianças
de três para quatro annos, da côr dos índios, excessivamente feios, e
' com cabellos poucos na cabeça.
2
Geral era em todo o Brazil a crença nos monstros marinhos; e por
isso não fez Soans (a que se refere Southey) senão conformar-se com
a idea recebida. Pensão P. Varnhagen que as assaltos attribuidos"a esses
monstros deveram ser obra dos tubarões, ou jacarés. F. P.
HISTORiA DO RRAZIL. 459,
pequenas se encontravão, que erão d'um vermelho" 1581\
claro e singular brilho. * " •-;•*--- : " Ç f
Mais de cem pessoas se contavão na Bahia cuja p0vo
, i i . • -i i >'a Bahia.
renda regulava de três a cinco mil cruzados«e a
propriedade de vinte a sessenta mil. Suas mulheres
não arraslavão senão sedas. O povo distinguia-se em
geral pela extravagância dos seus trajares; até ho-
mens das classes mais baixas passeavão pelas ruas
com calças de damasco de setim : suas mulheres tra-
zião vasquinhás e gibões da mesma fazenda, e carre-,
gavão-se de ouro. As casas estavão não menos que as
pessoas perdulariamenle alfaiadas. Havia colono que
possuía baixela e ouro no valor de dous e de três mil
cruzados. No mercado de S. Salvador nunca faltava
pão feito de farinha portugueza, nem differentes
qualidades de vinhos da Madeira e das Canárias.
Menos que a Bahia não florescia Pernambuco. Pernambuco.
Morto o primeiro donatário, havião os naturaes for-
mado uma confederação geral contra os Portuguezes-,
Malsoubera d'isto mandara a rainha regente a Duarte
Coelho de Albuquerque, successor nos direitos de seu
pae, que partisse immediatamenle a soccorrer em "
pessoa a capitania: e elle pediu-lhe que ordenasse a
seu irmão Jorge de Albuquerque Coelho, que o acom-
panhasse. Chegarão a Olinda em 1560; forão os Je-
uilas chamados aconselho com os homens bons da
cidade, e apezar de contar apenas vinte annos de
edade, foi o irmão mais moço eleito general e con-
460 HISTORIA DO RRAZIL.
1581. quistador da terra. Esta ultima designação fel-a elle
e
pinto?lx' boa com cinco annos de continuo guerrear. Quando
Hist. Trag. . °
r 2ap 8 os
" o u s i rm ãos chegarão a Olinda, não se aventu-
ra vão os habitantesa duas legoas da cidade; no fim
d'estes cinco annos erão seguros todo o lanço da
costa e o paiz até quinze e vinte legoas pelo sertão
dentro. Ganha uma vez esta vantagem, nunca mais
se perdeu. Diz-se nas Noticias, que os Cahetés tinhão
sido metlidos cincoenta legoas pelo interior, isto é
que tinhão abandonado o paiz; e que apezar de
ler Duarte Coelho gasto muitos mil cruzados com a
sua capitania, fora bem empregado o dinheiro, pois
que de renda das pescarias e dos engenhos de assucar
percebia agora ofilhoa melhor de dez mil cruzados.
üiinda. Continha Olinda suas setecenlas famílias, não con-
tadas as casas dispersas pelas visinhanças, nem os
engenhos, cada um dos quaes linha de vinte a trinta
moradores. Podião pôr-se em campo três mil homens,
dos quaes quatro centos de cavallo. De quatro a cinco
mil escravos africanos, alem dos indigenas, se em-
pregavão n'esta capitania, que linha mais de cem
colonos, cuja renda orçava de mil a cinco mil cru-
zados, afora alguns que a tinhão de oito a dez mil.
Volta d'aqui riquíssimo para Portugal, diz o auctor
das Noticias, quem de lá viera pobre e desgraçado.
A educação estava confiada aos Jesuítas, que ensi-
navão os elementos rudamentaes da instrucção e o
latim, lendo também sobre casuística. Esta espécie do
HISTORIA DO RRAZIL. . , 461
158L
lheologia moral, como a chamavão, vogava extraor-
dinariamente em Olinda, nem tinhão os Jesuítas
tanto que fazer em qualquer outro ramo dos seus
deveres professionaes, como em resolver casos de
consciência4 aos mercadores e traficantes do logar. A
seu cuidado e mesmo conligua á cidade, tinhão uma
aldeia grande de índios convertidos que não contava
menos de mil almas. Todos os annos vinhão a Per-
nambuco quarenta e cinco navios,mais que menos
a carregar de assucar e pau brazil, que era da melhor
qualidade, e por vinte mil cruzados se tomava de
arrendamento á coroa. E esta importante capitania
estava para assim dizer desprovida de obras de de-
1
Tão singular parece hoje este facto, que transcreverei a auctori-
dade : Pour le regard des autres fonctions propres de leur institut,
il$ s'y employent icy de mesme qiCez autres lieux, mais princi-
palement à resoudre les doubles et difficultez, qui se présentent ez
contracts des marchands; parce que c"est une ville de gr and traf-
fic; et ceux qui ont Ia crainte de Dieu devant les yeux, et qui
aymentplus le salut de leur ame, que les biens de ce monde mal-
acquis, leur vont demander conseil en leurs affaires. En quoy Von
a fait, par Ia grace de Dieu, beaucoup de proffit, empeschant
plusieurs monopoles, contracts usuraires, et autres telles mes-
chancetez par trop ordinaires au commerce. Mais je laisse à part
tout cecy, et beaucoup d^aulres choses a"edificalion, qiCon a fait
àTendroit des Portuguais : parce que monintention nest que
d'escrire çe qui est advenu en Ia conversion des infidèles. Jainc,
2,552.
P. Pierre du Jarric segue n'esla parte da sua historia provavel-
mente alguns d'esses volumes das Relações annuaes, que não pude
haver á mão. Até onde tive ocasião de confrontal-os, cinge-se se elle
fielmente a esta auetoridade.
462 M/p- HISTORIA DO RRAZIL.
1581. f eza i Bem previa o auctor das Notícias o perigo,
quando concluindo a sua narrativa, ponderava ao
Noticias. - í i i i i
1
Este azeite, diz Lery, era entre elles tão estimado, como enlre
nos o que chamamos Sancto Óleo. O nosso cirurgião ao voltar a França
levou com sigo doze vasos grandes d'elle, e outros tantos de gordura
humana, que aparara quando os selvagens cpzinhavão os seus
prizióneiros! C. 11.
HISTORIA DO RRAZIL. 465
158i
americana e africana, tinha engendrado novas mo- -
lestias, ou pelo menos novas compleições, com que
tanto se modificavão as enfermidades antigas, que o
mais hábil physico ficava perplexo á vista de desco-
nhecidos symplomas. Entre as classes baixas era en-
dêmica uma doença do fígado, e tão peculiarmente
sua, covcÊ a gola o é das ricas. Grassava especial-
mente nos mezes chuvosos; extranha voracidade
atormentava o doente, cujo aspecto era macilento e
cadaverico. Moléstias de olhos erãotombemvulgares,
mormente entre soldados e pobres; a mais freqüente
era essa meia cegueira *, que os Europeos freqüen-
temente experimentão entre os trópicos; os remédios
erão fumo de tabaco, carvão da casca da guabiraba,
ou alvaiade em leite humano, então mui apregoada
como medicinal. Outra enfermidade commum era a
que vulgarmente se chamava ar, suppondo-se este a
causado mal, e a que Piso dá o nome de estupor;
parece ter sido abhorrecimento geral, uma sensação
de pezo e relaxação em todo o corpo : contra isto
recorria-se a um banho, ou antes a um madouro de
estéreo de cavallo, incenso e myrrha. Fricções e un-
turas erão bons meios preventivos, e também remé-
dios efficazes, adoptados dos indigenas. Porem a
moléstia mais terrível no Brazil era uma ulcera ma-
ligna no ânus : o melhor remédio era ópio. Se não
se atalhava depressa a ulcera no seu progresso, tor-
1
Evening-blindness.
i. 30
466 HISTORIA DO RRAZIL.
t58i. nava-se fatal, nem houve jamais gênero de morte
mais ascoroso, ou mais doloroso.
Óleos, unguentos e emplastros, passavão por me-
nos efficazes aqui contra feridas e ulceras do que na
Europa, preferindo-se fricções de hervas adstringen-
tes. A gordura do caimão era mui procurada como
remédio. Contra affeições da garganta £ do peito
usavão os Portuguezes d'uma mistura de sumo de
laranja e canna de assucar com album-grxcum, e
contra as bexigas, grandes doses de bosta de cavallo
pulverizada e tomada em qualquer liquido. Médicos
que recorrem a taes remédios, nem matão, nem cu-
rão. Os charlataes muitas vezes fazião uma e outra
couza; empregavão affusôes de água fria no principio
da febre, e Piso 4 acredita no conhecimento que
tinhão de drogas efficazes. Nos primeiros tempos
poucas crianças chegavão a criar as Porluguezas;
de três não escapava uma; mas a final aprenderão
dos selvagens, a prescindir do pezo dos cueiros e
faxas, a deixar a cabeça livre, fazer freqüente uso
de banhos frios, e não se considerou mais o clima
como mortífero para os recemnascidos. N'estas cou-
zas e no conhecimento das hervas, que é o mais que
nos podem ensinar, pouco temos por ora aprendido
dos selvagens.
A
o"
1
Semper enim condonandum est empiricis, utpote exquisitioribus
in exhibendis medicamentis, quam in distinguendis morborum causis.
2, 12.
HISTORIA DO RRAZIL. 467
Erão estas as doenças que no Brazil reinavão en- 1581-
tre os colonos durarite o primeiro século depois dâ
descoberta; não ha exemplo de terem os homens
brancos soffrido tão pouco na sua naturaleza phy-
•sica, transplantados alem dos limites que lhes forão
assignados. A natureza moral soffreu mais; a dete-
rioração comtudo proveio de causas, algumas das
quaes erão temporárias, e todas removíveis, comp
em verdade poucas causas ha de males moraes, que
se não deixem remediar. Os mesmos crimes que em
Portugal erão freqüentes, mais vulgares se tornarão
no Brazil, por que sempre as colônias recebem os
fugitivos e degradados da mãe pátria; devedores
fraudulentos alli se refugiavão, e homens que aban-
dona vão suas próprias mulheres, ou roubavão as
alheias. Florescia alli o assassinio como em Portugal
e em todos os paizes catholicos : um modo de vin-
gança geralmente practicado, raro punido, e olhado
sem horror, por que a confissão e absolvição fácil- MiIa(,res
mente lavavão a culpa. Punhão o exemplo da injus- dePasns1meta'
tiça e rapácidade os próprios governadores, que
tractando unicamente de se enriquecerem \ du-^
rante os três annos que lhes durava o officio, não
curavão dos meios.
Entretanto crescia uma raça de homens, ferozes
1
Assim o diz Sarmiento, sobre a auctoridade de unapersona prin-
cipal, y ei hombre mas poderoso dei Brasil, cujas palavras originas
transcreve. P. 555.
46S HISTORIA DO RRAZIL.
1581
- sim e intraclaveis, mas que com a mistura do sangue
indígena, adquirião umá actividade constitucional e
incançavel. Em quanto os Hespanhoes no Paraguay
se deixavão ficar onde os pozera Yrala, tractavâo dé
resto as descobertas que Os primeiros conquistadores»
tobriziiofier. havião feito, indifferentes vião perder-se cobertas de
nova vegetação as picadas que estes tinhão aberto, e
quasi esquecião os hábitos e a própria lingua da
Hespanha, continuarão os Brazileiros por dous sécu-
los a explorar o paiz ; rnezes e annos passavão estes
obstinados aventureiros pelas florestas e serranias a
caçar escravos ori a proucar ouro e prata, seguindo
as indicações dos índios. E a final lograrão assegurar-
se a si e á casa de Bragança as mais ricas minas, e
maior extensão da America do Sul, de toda a terra
habitavel a região mais formosa.
HISTORIA DO RRAZIL. 469
1581.
CAPITULO XI
Disputas nas fronteiras do Brazil. — A Assumpção crecla en bispado. —;
Expedição de Chaves. — Os Chiqúilo?. — Morte de Y r a l a . — Marcha de
Vergara para o Pcrú, e sua deposição. — Morte de Chaves. — Os I t a -
tines. — Caseres remettido prezo para a pátria. — Parte Zarale da H e s -
panha a tomar conta do governo; mao proceder e soffrimentos do s e u
armamento. — Deposição e morte do seu suecessor Mendicta.— Funda-
se Buenos Ayres pela terceira e ultima vez.
1
Altendendo á extrema mexactidão de Schmidel em todos os nomes
próprios, pouca duvida pôde restar que este João Reinvielle não fosse
João Ramalho, cujo estabelecimento, então o único nas planícies
de Piratininga, se chamava Força do Campo. Em 1542 prohibiu-se
que se erguessem forças, ou casas fortes no sertão, e João Ramalho
teve ordem de transferir a sua para a ilha ou villa (não c liquido qual
d'estas duas palavras é a que está no manuscripto) de S. Vicente, sendo
o fim d'esta medida reunir a população em torno da cidade, que sof-
fria com a disposição dos colonos para se dispersarem pelo interior.
Não queria João Ramalho, e á chegada de Schmidel tractava elle pro-
vavelmente de fazer com o governador Thomé de Souza esse arranjo,
que foi origem da fundação de S. Paulo. Gaspar da Madre de Deus.
1, 156-158.
• a Herrera (8, 2, 17) diz, que Yrala punha sentinelas, que ninguém
474 HISTORIA DO RRAZIL.
i58i. a o governo hespanhol o seu proceder, não se teria
por certo fiado d'este Allemão tão simples, de quem
com algumas perguntas capciosas, tudo se poderá
Schmidel.
6, si, 52. arrancar.-
Bispado da Pouco depois da sua fundação passou a Assumpção
por logar de tanta importância, que em 1547 Paolo III
a erigiu em bispado, com o nome de cidade do Bio
da Prata, que nem auctoridade tal conseguiu fazer
acceitar e correr. 0 primeiro bispo não chegou a pôr
pé na sua diocese, e sendo transferido para o Nuevo
Reyno, sete annos depois da sua consagração, deu-
se-lhe por successor Pedro de Ia Torre, franciscano
como elle. Boa ordem devia ter Yrala estabelecido,
pois que entradas no Prata as naus que trazião o bispo,
logo com fogos de signal se transmittiu á Assumpção
a nova. Por esta armada recebeu o governador uma
nomeação legal para o posto que havia tanto occu^
pava. Conjunctamente lhe vierão instrucções, que,
da fôrma practicada nas demais conquistas, repartisse
pelos conquistadores os índios. Este systema devasta-
dor ja elle o encetara, mas agora como fossem mais
os reclamantes do que os satisfeitos, pareceu mais
avizado fundar novos estabelecimentos e mandou-se
deixassem sahir da província, com receio de que do seu mao proce-
dimento chegassem novas a el-rei. 0 facto da baixa dada a Schmidel
desmente esta asserção, que em si ja traz o cunho da inverosimilhança.
Mas é claro que Herrera pouco conhecimento tinha alcançado das
couzas do Paraguay. Compare-se o que elle diz da jornada da As-
sumpção ao Peru, com a narrativa de Schmidel que ia na expedição.-
HISTORIA DO RRAZIL. 475
Melgarejo para Guayra, e Chaves com duzentos e 1581-
vinte Europeos e Ires mil e quinhentos índios a colo-
nisar entre os Xarayés.
Era Chaves um aventureiro do cunho do próprio Entra chaves
. . na província
1
Pôde ser, diz o Jesuíta Juan Patrício Fèrnandez, que os antepas-
sados d'estes Índios tivessem alguma luz de como por meio d'üma'
mulher entrou no mundo a morte.
478 # HISTORIA DO BRAZIL.
15H. appareção os orvalhos *, antes do que teem por no-
civo o andar por fora; então vão até ao meio dia
trabalhar nos campos, servindo-se de instrumentos
de madeira tão rija,.que pouco fica aquém do ferro.
A tarde é consagrada a festas e folgares. 0 jogo favo-
rito é um de bola, exercicio que demanda grande
destreza e vigor, pois é com a cabeça que n'ella se
bate. Ao pôr do sol tornão a comer e vão deitar-se;
mas os solteiros danção de noute, formando um
amplo circulo em torno de duas pessoas, que tocão
flauta, em quanto as outras gyrão e regyrão á volta;
formão as raparigas um annel exterior á roda dos
mancebos, e assim continuão até cançarem. As mu-
lheres, sempre tanto mais bem tractadas quanto o
systema de relações entre os dous sexos mais se ap-
- próxima da monogamia, levão aqui boa vida : o seu
mister é abastecer de lenha e água o rancho, cozinhar
as frugaes refeições, e fabricar a túnica e a rede.
A' lua chamão estes índios mãe; durante um
1
Porque o sereno nas índias é mais nocivo do que em outras
partes, é o titulo d'um capitulo dos PBOBLEMAS do Dr Cardenas. 0 se-
reno, diz elle; é um certo vapor-subtil e delicado de dia attrahido da
humidade da terra, e condensado de noute; é mais prejudicial Ia por
ser em maior abundância, c acharem-se ja os corpos da gente sobre-
carregados de humidade e omne simile facilius pelitur a simili.
Af ecta primeiramente o cérebro, por ser esta a parte mais humida
de todo o organismo : e os primeiros orvalhos são os peores, por que
os poros do corpo estão então todos abertos, para lhes receberem a
influencia ao passo que, adeantando-se a noute, vão-se elles apertando
e fechando. C. 15.
HISTORIA DO RRAZIL. 479
158L
eclypse não cessão de atirar settas para o ar, e de
clamar em altos berros, para afugentarem os cães,
que, creemeelles, lhe dão caça pelas planicies do
ceo, e quando a alcanção, o sangue que das feridas
mana, lhe escurece o disco. 0 trovão e o raio, attri-
buem-nos a alguns finados, que, morando nas estrel-
las, d'esta sorte manifestão a sua cólera. Com os
mortos enterrão comida e frechas, para que a fome
não force o espirito a voltar para entre elles. 0 ceo e
a terra estão cheios de signaes e prognósticos para
suas supersticiosas imaginações; um sonho, um mao
agouro, leva uma horda inteira a renunciar ao logar
da sua residência, e chega a induzir um indivíduo
a que abandone a mulher e a família. A feitiçaria não
é tida em menos horror que entre os negros, nem um
desgraçado, que encorre na suspeita de possuir este
dom fatal, espere achar piedade.
Entre esta nação achou Chaves resistência ; medi-
tando estabelecer-se no paiz, queria elle poupar a
sua gente, pelo que se desviou a um lado. Não lhe
valeu a prudência ; repetidos conflictos se travarão;
algumas das tribus servião-se de settas envenenadas,
e o Hespanhol, desanimado pela perda soffrida, e
trabalhos passados, instava com o commandante,
que, volvendo atraz, fosse estabelecer-se entre os
Xarayés, segundo o plano original da jornada. Entre-
M
tanto morrera Yrala, não chegando a desfructar um de ^á.
anno sua legal auctoridade. Beuniu-se o povo na
480 HISTORIA DO RRAZIL.
1581. egreja, para eleger-lhe successor, até que viesse novo
governador. Apurárão-se doze cavalleiros, que apre-
sentarão quatro pessoas, entre as quaes escolhesse o
povo; recahiu a eleição em Francisco Ortiz de Ver-
gara, genro de Yrala. Desejava este proseguir nos
planos do seu antecessor, e lendo-lhe provavelmente
constado, que Chaves, em logar de obedecer ás ins-
trucções recebidas, linha seus projeclos próprios,
charievoix. mandou atraz d'elle ordenar-lhe que executasse o
T. 1, p. 124. ^
que se lhe encarregara. Chegarão estes mensageiros
quando os soldados clamavão por voltarem; mas a
resolução do caudilho estava tomada com quantos
quizessem seguir-lhe a fortuna. Oitenta Hespanhoes
e dous mil índios, abandonando-o, regressarão á
Assumpção, em quanto elle, com cincoenta Euro-
peos e o resto, que lhe ficava de alliados, ou baga-
geiros, avançava sempre. Succedeu porem que ao
mesmo tempo vinha marchando do Peru Andres Maus
com commissào do marquez de Canhete, então viso-
rei, para conquistar e colonizar aquellas partes.
Vasto como era o paiz, não cabia n'elle a ambição
dos dous; usarão comtudo de moderação, tomando
por arbitro de sua disputa o logar tenente do rei,
com quem Chaves foi ter em pessoa, contando por
ventura com o favor do marquez, por ser sua mu-
lher da família dos Mendozas, filha d'esse D. Fran-
Fundaçso cisco, que na Assumpção fora decapitado. Prevaleceu
de Santa Cruz • a • • • i
deiasierra. a sua influencia; o viso-rei, nomeando seu próprio
HISTORIA DO RRAZU. 481
filho, D. Garcia, para o governo de Moxos, deu-lhe 156i-
Chaves por tenente, reenviando-o com plenos poderes
para alli estabelecer-se. Voltou elle pois para a sua
gente, e fundou uma villa a leste de Chuquisaca, ao
sopé das montanhas, e á margem de agradável ar-
roto. Chamou-a Sancta Cruz de Ia Sierra, em me-
mória d'uma aldeia visinha de Truxillo, onde fora
criado, logar tão deliciosamente situado nas abas
d'um monte, onde campos de cereaes e montas de
oliveiras entremeião de rochedo a rochedo, que bem
podia elle com tal vista acalentar em terra exlrànha
risonhas lembranças da infância. Quarenta annos
mais tarde foi a cidade removida para a sua actual
situação, cincoenta legoas mais para o norte sobre o Herrera.
rio Guapay, sendo então elevada a bispado. cofetí.'
Tendo visto os effeitos das envenenadas settas dos insurreição
Chiquitos, apanharão quantas poderão os Guaranis, Guarani*.
que abandonarão Chaves, para voltar á Assumpção, e
pensando que estas armas lethaes lhes darião vanta-
gem sobre os seus oppressores, levantárão-se contra
elles. Mallogrou-se a esperança, por que o veneno
apoz ja um anno perdera a efficacia; mas Vergara
teve, para domal-os, de empregar toda a sua força,
conseguido o que, julgou por maior acerto affectar
clemência, do que recorrer, para punir a insurreição, 1560
ao rigor costumado. De volta á sua. cidade, achou
um Índio de Guayra, que de Ciudad Beal, onde se
viu mui apertado, lhe mandava Melgarejo a pedir
31
482 HISTORIA DO RRAZIL.
1564. soccorro contra os Guaranis. 0 mensageiro passara
por meio da força do inimigo, nu em pello, so com
seu arco, n'uma racha do qual vinha metlida a carta.
Tendo-lhe enviado tropas, que o descercárão, cha-
mou-o Vergara á Assumpção, tencionando mandal-o
á Hespanha, como pessoa de quem podia fiar-se, a
solicitar a confirmação do seu posto. Estava ja de
verga d'alto para sahir a caravela, que devia leval-o,
e que era o mais formoso barco até então construído
no Paraguay, quando, incendiando-se, ardeu toda :
algum inimigo de Vergara, ao que se suppoz, devia
ter-lhe posto fogo.
Marcha Besolveu então o governador precipitadamente ir
e g pai
o Perú ' ao Peru a obter poderes do vizo-rei; lambem o bispo
e quatorze dentre o seu clero julgarão conveniente,
abandonando os deveres de seus cargos, acompa-
nhal-o, e partirão todos com forças consideráveis.
Com elles foi também Chaves, que viera á Assumpção
pela mulher e pelosfilhos.Ao chegarem aos Itatines,
persuadiu três mil d'estes índios, que, seguindo-o,
fossem estabelecer-se-lhe na província, e apenas
n'ella entrou a expedição, insistiu elle pela superio-
ridade do seu posto, dizendo que o governador do
Bio da-Prata nenhuma auctoridade alli exercia. Occa-
sionqu isto muita confusão; nenhuma ordem era
possível observar, nenhuma precaução se podia to-
mar, onde ninguém sabia a quem devia obedecer.
Cessou o abastecimento regular de viveres, e grande
HISTORIA DO BRAZIL. 483
mortandade se deu mormente entre os índios. Os que t564
d'entre os Itatines escaparão, fizerão alto, estabele-
cendo-se n'um paiz fértil. O resto da partida alcançou
a muito custo Santa Cruz, onde rião havendo com
que manter similhante multidão, continuarão a fome
e a doença a dizimal-os. Vendo posto a saque o seu
paiz, sublevárão-se desesperados os naturaes. Ao
marchar contra elles, deixou Chaves ao seu tenente
instrucções para que desarmasse Vergara e a sua
gente, não lhe permittindo seguir para o Peru; mas
Vergara achou meios de mandar a Chuquisaca um
1
mensageiro, queixando-se d'esta violência, e veio or-
oem a Chaves de o não deter.
Não tardou Vergara a ter molivo de arrepender-se vergara
3 c("llSido 6
1564.
confirmal-o. Embarcou este para o Panamá, caminho
da Europa, a solicitara sua confirmação, nomeando
Felipe de Caceres seu logar tenente na Assumpção,
para onde o mandou voltar com os destroços da mal
aventurada expedição de Vergara.
1565. No seu regresso forão Caceres, o bispo e a sua co-
mitiva recebidos com apparente cordialidade por
Chaves, que os escoltou até á aldeia dosltatines, sob
pretexto de fazer-lhes honra, mas na realidade para
seduzir-lhes a gente a ficar com elle. Logo depois da
volta d'este governador a Sancta Cruz levanlárão-se
os Chiriguanos contra os Hespanhoes, matarão Manso1
e destriurâo Nueva Rioja e Barranca. Sahiu Chaves a
castigal-os, como se dizia; depois partiu com mineiros
e instrumentos a explorar algumas minas, que desco-
Morte brira entre os Itatines. Deixando estes homens a tra-
de Chaves
balhar, continuou no seu empenho de pacificar o
paiz; e arengava alguns caciques chiriguanos,
quando um d'estes insinuando-se por delraz d'elle,
d'um so golpe de macana, o derribou sem vida. Si-
milhante morte com justiça a merecera Nuflo Cha-
ves, em cujo governo se organizavão partidas para
caçar índios, que se mandassem vender ao Peru ; e
em Sancta Cruz erão elles levados ao mercado, mãe
.obmhoffer. & gjj^ CQmQ ^ ^ Q ^
1
É este o nome que elles a si mesmos se dão, e com que todos os
cscriptores antigos os designão. Ultimamente principiarão os Hespa-
nhoes a chamal-os Tobatines. « As saltantes pcllas de Itatina, » diz
Techo, « feitas da gomtna de arvores, são famosas em todo o mundo,
c assadas cuião a dyscnleria. » P. 86. Foi pois provavelmente d'esta
tribu que primeiramente recebemos a gomma elástica.
486- HISTORIA DO RRAZIL.
1565. c o m panellas, cabaças, e cântaros em abundância á
roda. As mulheres levão os filhos ás costas n'uma
espécie de cesto de vimes. Enterrão os mortos em
^boiões grandes, e nos funeraes atirão-se os parentes
de logares elevados, com risco sempre e ás vezes
com perda devida. 0 modo de competirem uns com
outros é na carreira, com um pezado madeiro ao
hombro. A mais notável circumstancia relativa a
esta tribu, é um systema que tinhão de se faltarem a
grande distancia por meio de trombelas ou gaitas;
não se baseava no ^principio vulgar do porta-voz, pois
que ninguém, por mais versado que fosse na lingua,
entendia os signaes sem que primeiro lhe dessem a
chaVe1. Actualmente achão-se os Itatines mui redu-
zidos em numero; expulsos dos campos, vivem ha
tanto tempo nas selvas, que teem medo da luz do sol,
quando bate em cheio, e as pelles se lhe branqueárão
com estarem sempre á sombra. Não escrupulizão em
envenenar um hospede de quem se arreceião, pelo
1
Tubis, libiisque certa inflatis ratione, ita quod volunt signifi-
cam, MÍ et longe audiantur, et perinde ac si expressis vocibus lo-
querentur intelligatur. Neque tamen ab iis, qui eorum linguam
norunt quse significantur, percipiuntur, nisi apud eos versati sint.
São estas as palavras que Muratori transcreve da carta d'um missio-
nário escripta em 1591, pretendendo ver n'ellas a descripção d'um
porta-voz, então recente invenção dos Inglezes. Quanto a mim implica
a passagem claramente um systema de signaes músicos, como os Mexi-
canos nos combates davão ordens com assabios, e os Peruvianos tinhão
a sua linguagem "amorosa flaulada : De manera, diz Garcilasso, que
se puede dezir que hablavan por Ia flauta. P. 1, 1. 2, c. 16.
. HISTORIA DO RRAZIL. 487
que se lhes não pode acceilar sem desconfiança a 1568-
comida que offerecem. iffffiuíi
Quando Caceres executou a sua marcha erão estes
índios uma nação poderosa; mas rompeu por entre
elles á viva força, até que chegando a cincoenta le-
goas da Assumpção topou con tribus amigas no
meio das quaes pôde refrescar e dar repouso á sua
extenuada gente. Entrou na cidade em princípios
de 1569, e um anno depois desceu ao Prata com os
seus bregantins, a encorilrar-se com os reforços que
Zarateficarade mandar-lhe de Hespanha por aquelle
tempo. Esperou até que se lhe acabarão esperanças
e paciência, e erigindo então na ilha de S. Gabriel
uma cruz, de que suspendeu uma carta mettida
n'uma garrafa, tornou a subir o rio para a Assump-
ção.
Desde muito ja se tinhão ma vontade Caceres e o
bispo; foi ella crescendo com o tempo e tornando-se
cada vez mais violenta, formárão-se parcialidades,
em que os sentimentos pessoaes sobrepujarão os po-
lilicos, vendo-se o clero bandeado com o governador,
e os principaes ofliciaes civis ao lado do adversario.
0 próprio Caceres, ou seu pae, fora um dos primei-
ros fautores da sedição contra Cabeza de Vaca, e
agora pensou Iriumphar com os mesmos meios vio- .
lentos, que em verdade serião menos illegaés na
apparencia empregados por quem tinha nas mãos a
auctoridade legitima. Apoderou-se do provisor Sego
488 HISTORIA DO RRAZIL. .
1570. via, e pol-o a ferros; decapitou Pedro de Esquivei,
expondo-lhe a cabeça no pellourinho como a traidor;
tirou ao bispo todos os seus Índios, rendas e rações,
de modo que nem uma sede de água ousava alguém
dar-lhe; prendeu-o na egreja, e deu-lhe por cárcere
a sua própria casa, onde lhe pregaria as janellas, se
o bispo não desse boa garantia de manter-se alli
socegado. Mas o medo de ser mandado preso para a
Europa, com o que o ameaçava o governador, obri-
gou o prelado a quebrar a promessa, procurando
esconder-se : foi descoberto e Caceres dispoz-se a
realizar a ameaça. Não linha este governador contado
com os sentimentos do povo : as mulheres princi-
piarão a gritar pelo seu pastor e a fallar em Judith e
Holofernes; o próprio clero assustou-se com a vio-
lericia feita á classe, e em casa de Segovia, ja posto
em liberdade, se tramou uma insurreição. Bem con-
cerlada foi ella e audazmente executada: apoderárão-
se de Caceres en nome da Inquisição, e embarcárão-no
para Hespanha, aonde o bispo o acompanhou ja não
como preso, mas como accusador. Tocou o navio em
Argentina, i. S. Vicente, e alli morreu o bispo com cheiro de sanc-
lidade1. O deposto governador tentou a fuga; mas-
1
Anchieta, que lhe assistiu á morte, disse-me, refere D. Martin dei
Barco, que o seu corpo, os seus pés, as suas mãos, a sua sepultura ex-
halavão grande fragancia. Moralcs estabelece como um dos axiomas, por
que se guia na sua historia, que o que um sancto conta d'outro deve-
ser implicitamente acreditado.
HISTORIA DO RRAZIL. 489
lambem aqui lhe foi contrario o povo. Preso de novo, 157.°-
foi mandado em ferros para a Hespanha, donde
nunca mais voltou ao Paraguay.
Entretanto havia Zarate sido demorado por uma „ zarate.
serie de infortúnios. Sahira do Peru com uma for-
tuna de oitenta mil peças de ouro, fructo da rapina
de muitos annos *; um corsário francez cahiu-lhe em
cima na passagem de Nombre de Dios para Cartha-
gena, e nada lhe deixou. Seguiu comtudo para a
Hespanha; foi-lhe confirmada a nomeação, conce-
dendo-se-lhc o titulo de adeantado, e apezar da la-
• mentavel sorte de tantas expedições para o Rio da
Prata, ainda achou aventureiros bastantes, casados^
e solteiros, de um e de outro sexo, para encher Ires
galeões e duas embarcações menores. N'esle arma- 1572.
mento foi D. Martin dei Barco, único contemporâneo
historiador d'aquellas parles por este meio século.
Uma das embarcações menores teve a felicidade de
perder-se da frota e chegar a S. Vicente. As outras,
depois de numerosos trabalhos, devidos ao mao tempo
e falta de practica da navegação, entrarão em Sancta
Catharina. Alli desembarcarão os aventureiros, e alli
os deixou Zarate entregues a todas as misérias da
fome, em quanto ia a uma aldeia chamada Ybiaçá,
que na terra firme ficava a não grande distancia, e
n'ella se suppria abundantemente com os despojos
1
Que sabe Dios qual él las ha juntado, é a expressiva phrase de
D. Martin. Argentina, c. 6.
490 HISTORIAj DO RRAZIL.
iS72
dos índios. Ninguém peor do que este adeantado
poderia ter procedido em tal conjunctura; alli se
deixou ficar, abandonando a sua gente a horrores
pouco somenos dos que havião exterminado tão avul-
íada parle da expedição de Mendoza. A ração diária
não passava de seis onças de farinha 1. Muitos ten-
tarão fugir a esta miséria : uns, apoz três ou quatro
semanas de correria pela terra firme, voltavão a
morrer de fome; outros erão perseguidos e recondu-
zidos á força, pagando'com a vida a deserção, apezar
de ser o apuro tanto, que de noute e furtivamente
se liravão as entranhas aos esfomeados corpos pen-
dentes da forca. A final, apoz uma inexplicável de-
mora de muitas semanas2, tornarão a embarcar os
destroços d'esta desgraçada expedição, velejando
para o Prata, sem um so piloto, que conhecesse a
navegação d'aquelle perigosissimo rio. Zarate com-
tudo, mais feliz n'isto do que merecia, alcançou a
ilha de S. Gabriel; de noute um tufão do Sul, par-
tindo-lhe as amarras, attirou-lhe dous navios de
rg
io.ma encontro á terra firme, salvando-se porem a gente.
1
Um pobre rapaz, tambor da expedição, foi apanhado por duas mu-
lheres no acto de furtar-lhes do monte, e ellas cortando-lhe uma
orelha, a pregarão por cima da porta. Obteve elle reparação contra
ellas, mas estas tão bem souberão levar o delegado de Zarate, que a
muleta não passou dé seis rações de farinha, menos de-quatro arrateis .
ainda. 0 tambor, recuperada a orelha, costumava empenhal-a, por
comida. Argentina, c. 10.
2
Alguns dos fugitivos tinhão andado errantes por trinta dias antes
de voltarem, nenhuma oulra indicação ha do tempo aqui passado.
HISTORIA DO RRAZIL. 491
157 2
Senhoreavão esta margem do rio os Charruas *, --
tribu nômada, que nenhuma agricultura exercia. Na
carreira erão tão velozes que n'ella apanhavão a
caça, e tão dextros no arremesso do laço e bola, que
nada lhes escapava ao tiro. Esfolavão as caras aos que
matavâo, guardando-lhes as pelles como tropheos :
mas so escravizavão os prizióneiros. Por morte d'um
parente tinhão o costume', que em tantas partes do
mundo se encontra, de se cortarem um dedo. Em
logar de conciliar este povo apoderou-se Zarate do
sobrinho do cacique, mancebo que sem desconfiança
veio visitar os Hespanhoes ás cabanas que tinhão
construído para abrigo. Vinte da sua Iribu vierão em
busca d'elle, trazendo pôr interprete um Guarani,
e também este ficou retido. Tomadas estas baixas
precauções para ler nas mãos um bom refém, leve
Zarate a fraqueza de pol-o em liberdade a solicitações
do tio, não com ostentação de generosidade, mas em
t troca d'um marinheiro desertor e d'uma canoa. Suc-
cedeu o que sobre ser bem merecido era fácil de
prever-se; apenas Capicano o cacique, apanhou o
sobrinho livre das mãos dos Hespanhoes, aproveitou
0 primeiro ensejo de cahir sobre elles. Sorprehendeu
uma partida de forrageadores, matou quarenta, e *
fez prizioneiro um, escapando apenas dous para da-
1
Os Charruas, que com os Yaros, Rohanes, Minoanes e Costeros se
chamão agora collectivamente Quenoas (Dobrizhoffer, 1,143), toem-
se tornado tribus eqüestres. ' ,
492 HISTORIA DO RRAZIL.
1572. r e m r e D a i e ) 0 q u e m a j tiverão tempo de fazer antes
que os selvagens atacassem o campo. Zarate, impel-
lido por esse ciúme, a que um bom commandante
jamais se entregará contra a sua gente, tinha guar-
dadas as armas, em logar de deixal-as nas mãos dos
soldados; fez esta desgraçada desconfiança com que
se achassem ferrugentos os arcabuzes agora que erão
precizos, e humida a pólvora. Restavão apenas
lanças e espadas em que fiar, nem a armadura de-
fensiva era de grande prestimo, onde o elmo não
guardava das balas de pedra dos Charruas. Sobreveio
a noute ainda a tempo de livral-os da ultima ruina,
e de manhã, antes que se podesse renovar o assalto,
fugirão para um dos navios, que eslavão encalhados
perto da margem, e d'alli n'um bote se passarão para
rgentma. a j j ^ a ,J e § < G a b r i e l .
32
ÍNDICE
DO TOMO PRIMEIRO
Ao LECTOR , I
PREFACIO DO AUCTOR 5
CAPITULO PRIMEIRO. — Vicente Yanez Pinzon descobre a costa do Brazil e
o rio Maranhão. — Viagem do Cabral. — Dá-se ao paiz o nome de Saneia
Cruz. — Américo Vespucio vae reconhecer a costa. — Sua segunda via-
gem. — Primeiro estabelecimento por elle fecondado. — Toma o paiz
o nome do Brazil , . . . 7
CAP. II. — Viagem de Pinzon e Solis. — Descoberta do Bio da Prata. —
Os Francezes no Brazil. — Historia do Caramuru. — Divide-se o Brazil
. em capitanias. — S. Vicente. — Os Goyanezes. — Sancto Amaro e,Ta-
maraca. — Parahyba. — Os Gayatacazes. — Espirito Saneio. — Os Ta-
panazes. — Porto Seguro. — Os Tupiniquins. — Capitania dos Ilheos. —
Bahia. -*- Revolução no Recôncavo. — São expulsados d'alli os colonos.
— Pernambuco. — Os Cahetes. — Os Tomayares. — Cerco de Iguaraçu.
— Expedição de Ayres da Cunha ao Maranhão. . . . . . . 50
CAP. III. — Viagem de Sebastião Cabot. — Dá nome ao rio da Prata, e de-
mora-se alli cinco annos. — Obtém D. Pedro de Mendoza concessão da
conquista. — Fundação de Buenos Ayres. — Guerra com os Quirandis.
— Fome. — Buenos Ayres queimada pelos selvagens. — Funda-se Buena
Esperanza. — Os Timbués. — Embarca Mendbza para a Hespanha e morre
cm viagem. — Sobe Ayolas o Paraguay. — Os Carijós. — Tomão-lhes os
Hespanhoes a aldeia, a que põem nome Assumpção. — Os Agacés. —
Sahe Ayolas em busca dos Carcarisos, povo que se dizia possuir ouro
e prata. — Espera-o Yrala o mais que pôde, e volta depois á Assump-
500 ÍNDICE.
ção. — Mao proceder de Francisco Buyz. — Buena Esperanza sitiada e
abandonada. — Envião-se reforços sob b commando de Cabrera. —
Marcha Yrala em busca de Ayolas.— Averigua-se a morte do comman-
danle. — Os Payaguás. — Abandonão os Hespanhoes Buenos Ayres,
concentrando todas as suas forças em Assumpção 86
CAP. IV. — Expedição de Diego de Ordas. — Sahe Gonçalo Pizarro en
buscado El Dorado. — Viagem de Orellana. — Tentativa de Luiz de
Mello para estabelecer-se no Maranhão 1*22
CAP. "*. — Succede Cabeza de Vaca a Mendoza no Prata. — Marcha de Sancta
Catl arina por terra.—Partindo da-Assumpção sobe o Paraguay e mette-se
ao sertão na direcçãa do Peru, em -busca de ouro. — Vollão os Hef-
panhoes por falta de mantimento, amotinão-se contra elle, e mand; o-
no prezo para a Hespanha 15'J
CAP. M. — Jornada de Hernando Ribera; ouve falar nas Amazonas, c
marcha em busca d'ellas através do paiz inundado. — Desordens na As-
sumpção. — Vence Yrala os Carijós, e tenta outra vez atravessar o paiz.
— Chega aos confins do Peru, faz em segredo o seu convênio com o
presidente, e volta. — Diego Centeno nomeado governador; morre, e
continua Yrala com o governo 224
CAP. VII. — Embarca Hans Stade com Senabria para o Paraguay, e chega a
Sancta Catharina.— Naufraga em S. Vicente.— Feito artilheiro em Saneio
Amaro, cahc prizioneiro dos Tupinambás. — Ceremonias d'estes com un
prizioneiro; superstições e armas. — Consegue Stade escapar-se. 249
CAP. VIII. — Thomé de Souza governador general do Brazil. — Leva para a
America os primeiros Jesuítas. — Funda-se a cidade de San Salvador. —
Principião os Jesuitas a converter os naturaes. — Obstáculos que encon-
trão. — Anthropophagia. — Lingua e estado das tribus tupis. . . ,500
CAP. IX. — D. Duarte da Costa governador. — Anchieta. — Erige-se o
Brazil em Província jesuitica. — Estabelece-se uma eschola en Pirati-
ninga. — Morte de D. João III. — Mem de Sá governador. — Expedição
dos Francezes ao Rio de Janeiro debaixo do commando de Villegagnon.
— Atacão-lhes os Portuguezes a ilha e destroem-lhes as obras. —
Guerra com os Tamoyos. — Nobrega e Anchieta negocião com elles a
paz. — Derrota final dos Francezes no Rio de Janeiro, e fundaçãd da ci-
dade de S. Sebastião 5(50
C.\r. X. — Luiz de Vasconcellos nomeado governador. — Martyrio dos qua-
renta Jesuitas. — Morte de Vasconcellos. —, Morle de Nobrega e Mem
de Sá..— Luiz de Brito governador. — Abandono em que ficão as
colônias. — Divisão do Brazil em dous governos, e sua reunião. — Der-
rota final dos Tamoyos. — Expedição em busca de minas. — Portugal
usurpado por Philippe II. — Estado do Brazil n'esta epocha. . . 430
ÍNDICE. 501
CAP. XI. —.Disputas nas fronteiras do Brazil. — A Assumpção erecta en
bispado. — Expedição de Chaves. — Os Chiquilos. — Morte de Yrala.
— Marcha de Vergara para o Peru, e sua deposição. — Morte de Chaves.
— Os Itatines.— Caseres remettido prezo para í pátria.— Parte Zarate
de Espanha a tomar conta do governo; mao proceder e sufrimientos do
seu armamento. — Deposição e morte do seu succesor Mendieta. —
Fundase Buenos Ayres pela terceira e ultima vez. 469
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