Texto Mariana Rede Amazonia
Texto Mariana Rede Amazonia
Texto Mariana Rede Amazonia
1*
Este artigo está baseado no Capítulo II de minha tese de doutorado, intitulada “Os Milton. Cem anos de
história familiar nos seringais”, defendida em Junho de 2001 junto ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da UNICAMP, sob orientação do prof. Mauro Almeida.
2
“Cariú” é um termo da língua geral, de uso regional disseminado, e que designa os que não são índios.
3
Nos seringais, mas não só, patronímicos podem ser usados para se referir a todo um grupo de parentes.
Trata-se de um nome de família que é atribuído, e não de auto-identificação.
4
Os Pano, se assim se pode dizer, são uma família etno-linguística, e não um povo. Caracterizados por uma
grande homogeneidade territorial, linguística e cultural, os Pano subdividem-se em inúmeros sub-grupos com
etnônimos distintos, grande parte deles com a terminação “nawa”. Consultar, por exemplo, Erikson, 1992.
Sobre a grafia dos nomes indígenas, neste artigo sigo a grafia utilizada nos textos dos antropólogos Terri
Aquino e Marcelo Iglesias, e nos materiais didáticos da Comissão Pró-Índio do Acre. Respeitarei também a
forma como certas palavras nativas são pronunciadas nas narrativas dos personagens deste artigo, como
“cupixau” (ao invés de “kupixawa”).
1
cruel e estrutural – não são vistos apenas pelo prisma da denúncia e de sua vitimização.5
Embora trabalhando com narrativas de segunda-mão, deverá ficar claro que pessoas como a
mãe de dona Mariana, conhecida por Regina, não são simplesmente vítimas da história e de
processos sobre os quais tinham pouco controle. Dona Regina, uma índia Nehanáwa
capturada em correria ainda menina e que passou o restante de sua vida em meio aos
brancos, como esposa de seringueiros, parteira e curadora, foi capaz de interferir sobre
aquilo que dela foi feito.
Notícias de correrias
Foram estes os fatos dramáticos ocorridos em 1902, no Alto Tarauacá, tendo
chegado a nosso conhecimento graças as memórias do ex-seringueiro Alfredo Lustosa
Cabral:
5
Um trabalho extenso e bem documentado sobre situações de captura de mulheres e crianças em regiões de
“fronteira”, embora com maior ênfase em raptos entre grupos indígenas, pode ser encontrado em Martins,
1997:288. O autor, contudo, trata o rapto como “uma espécie de morte cultural e social” do raptado,
perspectiva esta que o material de pesquisa e o enfoque que subsidiaram a tese da qual este artigo é parte não
podem reforçar.
2
Assim a maloca inteira deslocou-se para lugares distantes sem mais voltar a
massacrar os trabalhadores dos seringais dali.6
A correria, nas proximidades do seringal Redenção, cujo dono era Silvino, irmão de
Alfredo, foi motivada por mortes ocorridas em seringal vizinho, e observe-se que os
seringalistas vizinhos empreendem uma ação conjunta contra os atacantes indígenas.
Felizmente, nos anos em que trabalharam no Redenção sob o comando de Silvino, os
seringueiros nunca foram atacados, feito que os irmãos atribuíam ao santo protetor, e
flechado, São Sebastião!
Índios vivendo próximos às moradias dos seringueiros e barracões – o que
demonstra uma convivência real com o perigo, para ambas as partes. Há diversas passagens
no livro de Alfredo Lustosa Cabral nas quais ele menciona a presença de índios nas
proximidades, como os Kaxinawá e Katukina que habitavam o alto Tejo em 1898 e tinham
suas malocas vizinhas ao seringal Belmonte.7 Para ali nos dirigimos e fizemos barracas
quase vizinhas às dos índios. Estes, ao nos pressentir, começaram a fazer mal-
assombrados com arremedos de pássaros, entupimento das estradas [de seringa] que se
faziam, mas sem investir diretamente (…) Não acabamos de abrir o mato; quando
soubemos que os índios tinham atacado uma barraca de quatro seringueiros. Repelidos à
bala, correram.8
Por outro lado, a narrativa da correria próxima ao seringal Redenção indica que
deve ter havido um deslocamento das malocas de seu sítio original, pois só foram
encontradas após três dias de caminhada. A estratégia de afastar-se depois de um ataque aos
brancos, ou mesmo abandonar temporariamente as malocas, era com efeito adotada por
índios. Alfredo Lustosa Cabral reporta ocasiões em que, durante expedições na mata,
encontravam imensos roçados abandonados pertencentes à populações que haviam se
deslocado para longe da ocupação branca. Esta, inclusive, parece ter sido a saída
encontrada pelos índios mais arredios, conhecidos regionalmente por brabos, que não
aceitaram nenhuma forma de contato com os invasores brancos: deslocavam-se
incessantemente, transitando entre as fronteiras do Brasil e do Peru.9
As correrias, quando eram perpetradas contra malocas, obedeciam a uma tática
recorrente, ao que parece: um grupo de homens bem armados, possivelmente assessorado
por um índio manso10, ou liderado por um “matador de índio” – ou “amansador de brabo” –
rastreava até localizar a maloca dos índios visados. Esta era cautelosamente cercada, e em
silêncio os atacantes permaneciam até a alvorada, quando a um sinal combinado, abria-se
fogo implacavelmente. Veja-se uma narrativa de dona Mariana, recolhida em setembro de
1994, observando que ela guarda semelhanças com os fatos relatados por Alfredo Lustosa
Cabral:
6
Cabral, 1984[1949]: 61-2.
7
“Maloca”, ou “cupixau”, como diz dona Mariana, é uma grande casa que aloja a individualidade de vários
grupos domésticos aparentados entre si. Castello Branco (1950:32) os descreve como uma casa longa, alta no
meio, coberta de palhas, caindo em duas águas até quase o chão, sem paredes e divisórias internas, tendo cada
família (grupo doméstico) seu fogo, utensílios, redes etc.
8
Cabral, 1984[1949]:40.
9
Aquino & Iglesias, 1996 e Erikson, 1992.
10
“Mansos” eram aqueles índios que, em oposição aos “brabos”, foram contactados pelos brancos
(exploradores de seringais, padres, soldados) e de alguma forma incorporados à empresa seringalista; do
ponto de vista desta, “amansados”.
3
(…) O povo diz que se ajuntava muito homem, de quinze, de oito, de nove, de dez,
tudo armado, aí iam pra mata rastejar os índios por onde eles iam. Tinha um velho aqui
(...), chamava-se Maximino, cearenso velho: este foi o homem mais procurador de índio
que existiu aqui dentro do [rio] Tejo. Ele rastejava, Mariana, diz que rastejava tão bem que
ele pegava a folha assim e cheirava, e dizia: – “Sim, homem, eles vão por aqui. Tá aqui: o
puro índio”. Aí seguiam. Este homem fazia muita correria, ele fez muita correria, ele
contava. (…) Esse meu marido [seu Milton] era novinho neste tempo, ele ainda viu ele
contar muitas danações que ele fazia com os índios, este velho.(…) Era, deste jeito, eles
fazem assim: eles vão atrás, quando eles chegam na maloca, que eles topam a maloca, aí
eles deixam escurecer; aí anoitece lá, aí eles fazem trincheira naquele cupixau, um bocado
aqui, outro acolá, outro acolá; aí eles reparam quantas portas tem no cupixau. Aí quando
é na amanhecença do dia, de madrugadinha, cinco horas da manhã, é que eles vão fazer
fogo nos caboclos, quando eles tão se levantando pra sair. Aí toma as portas do cupixau e
mete a bala. Assim a minha mãe contava para mim, eu nunca vi, mas ela contava que ela
foi pegada dentro do mato: – “Minha filha, os seus tios, as suas tias, os meus primos
morreram tudo assim, mataram tudo assim os cariús”.
Estamos agora nos idos de 1911, em selva acreana, nas matas do rio Envira,
importante afluente do Tarauacá, território de índios Pano. Em algum lugar há uma maloca
Nehanáwa que há pouco tempo sofreu um ataque cariú, não-indígena. Após analisar os
rastros deixados no local, o chefe do cupixau identificou os culpados – uma tribo vizinha –
e comandou nova correria. Mas todo cuidado era pouco: os brancos ainda encontravam-se
nos arredores. Acautelando-se dos inimigos brancos e indígenas, boa parte da tribo ganha a
mata, espalhando-se em incursões diversas. Há um pequeno grupo, formado por uma
menina de onze anos, sua irmã e marido, empenhados em tirar um tatu de seu buraco. Passo
a narrativa a dona Mariana:
Andavam uns caboclos na mata, não sabe? Andava na mata a minha mãe, um
cunhado dela e uma tia minha, a irmã da minha mãe; minha mãe era pequena, não tinha
seio ainda. Aí toparam um tatu; aí o cunhado dela foi cavar pra tirar o tatu. Aí tinham
tomado os terçados do povo que tinham feito outra correria, que meu avô tinha feito outra
correria noutros caboclos, tinham tomado um terçado 128. Este terçado minha mãe era
pequena e andava com ele, era a arma dela, mais o cunhado e a irmã. Aí ele estava
cavando, ela estava deitada com o terçado assim, por detrás da cabeça, e ele tinha matado
um jacú, aí a irmã dela estava pelando o jacú. Aí quando viram quebrar lá detrás, aí a
irmã dela olhou e disse pra ela na gíria, e pro caboclo: – “Olha os cariú!” (…) Quando
ela disse “olha os cariús”, aí escutou o tiro, o tiro já tinha detonado; quando ela espiou o
cariú já estava com o rifle pra atirar no caboclo, aí matou o caboclo. Lá em cima da onde
estava cavando o tatu, lá mesmo ele ficou. Aí elas correram, elas duas. Os cariús correram
atrás de uma, um bocado, e outro [bocado] correram atrás da outra. (Dona Mariana, Foz
do Machadinho, setembro de 1994)
A mamãe disse que quando eles correram pra pegar ela, aí ela levantou-se, aí
deitou mesmo dentro da mata! Aí correram, correram, correram, e correram mesmo! (…)
E o homem pega, não pega; escapuliu, caiu, enfiou a perna assim dentro de uma grota,
adonde a água escorre assim, aí aqueles paus assim, aqui é fofo. Ela disse que quando o
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homem já vinha morto de cansado, que agarrou aqui na tanga dela, assim nas costas dela,
com aquele pano, não sabe? Aí ela disse que não contou pipoca não, só meteu aqui o
terçado aqui; aí pulou naqueles mundos! Aí corre de novo, aí ele correu atrás, era pega
aqui, pega acolá, pega aqui, só ele correndo atrás dela, não sabe? Aí quando ela disse que
já ia morta de cansada, aí o caboclo, este Chico Culumim, que eu falei outro dia, avô do
Siã 11, aí cortou gíria pra ela: – “Não corre, não corre, que o cariú não quer te matar, ele
quer te pegar!” Quando ele disse “não corre que o cariú não vai te matar”, ela espiou pra
ver quem era, não sabe? Aí ele chegou, agarrou no cabelo dela, o finado Raimundo. Aí
disse que depois que agarrou no cabelo, pronto. (Dona Mariana, Foz do Machadinho,
01/07/1998)
As duas índias foram capturadas vivas para serem levadas para o barracão do patrão
que ordenara a correria, de nome Cajazeira. As irmãs estavam assustadas, e a menor em
especial só pensava em fugir. No caminho para o barracão, por diversas vezes elas
escutaram seus parentes “assoprando”, isto é, arremedando aves para sinalizar que estavam
nas imediações. Na noite em que dormiram na mata, o grupo de cariús e o caboclo manso
deitaram-se sob a rede em que colocaram as duas índias. De madrugada, a menina
Nehanáwa tenta uma fuga.
A mamãe diz que quando foi umas horas a irmã dela estava ressonando, e eles tudo
dormindo, deitado. Cochichavam, aí se calavam. Aí a mamãe disse que quando foi umas
horas, já era de madrugada, a mãe disse que só escutava nambu: “fou, fou”... Aí a mamãe
escutou, tudo ressonando, a mamãe disse: – “Eu vou já m'embora.” Aí se levantou, ela era
pequena; aí se levantou, saiu bem devagarzinho, no escuro! Pisando, caçando lugar, bem
devagarzinho assim caçando lugar pra botar o pé. Aí passou. Aí ela sabia adonde tinham
enfiado o terçado, viu adonde eles botaram os rifles e as balas, não sabe? Aí ela disse que
foi lá, no escuro, apalpando, tirou uma caixa de bala; aí pegou o terçado dela, aí saiu. Diz
ela que já tinha andado um pedacinho dentro do mato, aí deu aquela pena da irmã; aí
voltou pra vir chamar ela. Aí voltou.
Quando chegou, que cutucou ela, foi responder, ela tapou a boca dela. Aí saíram
devagarzinho, devagarzinho, ela cochichava no ouvido dela: – “Cuidado pra não pisar em
cima do bicho” – ela chamava “os bicho” – “cuidado pra não pisar em cima dos bicho.”
Aí (risos) passaram, a mamãe já tinha passado, só faltava o derradeiro pra ela passar. Aí
não sei como foi, tombou, pisou em cima do homem; o homem agarrou nas canelas dela, aí
aterraram dos pés tudo! Aí a mamãe disse que não correu não, não correu não, ficou logo
chorando, com medo deles matarem ela. Aí se acordaram tudo; aí pegaram elas, botaram
lá, conversar, caboclo cortava gíria pra elas: - “Pra quê que vocês querem ir embora? Se
tu fosse embora eles vão te matar. Fica aqui mais eles e eles não vão te matar não, eles vão
te levar pra morar mais nós.” A mamãe disse que nem respondia pra o caboclo, nem ela
nem a irmã dela. Aí vieram s'embora. Aí diz ela que quando foi de tardezinha, no outro dia,
chegaram no barracão do patrão. (Dona Mariana, Foz do Machadinho, 01/07/1998)
Aquele dia marcou uma mudança definitiva na trajetória de vida da menina, que
passou a viver no mundo dos brancos. Logo que lá chegaram, ela e a irmã encontraram com
outras índias vítimas da correria e da dispersão da tribo, sendo uma delas a madrasta de
11
Siã Kaxináwa, liderança indígena do rio Jordão, filho de Sueiro Sales. Sueiro, que faleceu em janeiro de
1997, desempenhou papel importante na manutenção e gerenciamento do seringal-caboclo dos Kaxinawá do
Jordão, onde tinham maior liberdade e possibilidade de manter sua cultura e modo de vida mesmo interagindo
com a sociedade maior e inseridos na economia da borracha (Aquino, 1977; Aquino & Iglesias, 1994).
5
nossa jovem heroína. Com a perna quebrada e chorando, a índia velha consolou-as sobre o
seu destino: – Minhas filhas, não vão mais s’embora, nós não tem mais ninguém, mataram
tudo o nosso pessoal, mataram tudo, tudo, tudo! E não escapou nem os pequenininhos,
mataram com a ponta da faca, sacudia e aparava com a faca. (Dona Mariana, Foz do
Machadinho, setembro de 1994)
Nada mais havia que fazer; contra o barracão os parentes por ventura vivos jamais
tentariam um assalto. Raimundo, o seringueiro cearense que efetivamente capturara a
menina Nehanáwa, acertou com seu patrão que com ela iria morar tão logo se fizesse moça.
De nome nativo para nós desconhecido, a menina foi batizada por Cajazeira e sua esposa
Maroca com o nome de Maria Regina da Silva. Na casa deles viveu por mais dois anos,
provavelmente ajudando nos serviços domésticos, quando então Raimundo veio buscá-la
para sua esposa. Este acontecimento deve ter tido lugar em algum momento do ano de
1913.
12
Consultar, Aquino & Iglesias, 1994:9; Erikson, 1992; e Ribeiro, 1979.
13
Consultar Parissier, 1898; Tastevin, 1914 e 1928; Cabral, 1984[1949]; Castello Branco, 1950; Ribeiro,
1979; Aquino, 1977; Aquino & Iglesias, 1994; e Martini, 1998.
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A pluralidade de situações
Relendo as narrativas de dona Mariana e de Alfredo Lustosa Cabral, por exemplo, é
possível identificar diferenças, ou desdobramentos, nas ações de brancos contra índios. Em
Alfredo Lustosa Cabral trata-se de uma expedição organizada para atacar uma maloca; no
caso da captura da mãe de dona Mariana, ela ocorreu num encontro quase casual entre
brancos e índios na floresta.
Exploremos um pouco mais o evento ocorrido em 1911. Na origem da história tem-
se índios de uma tribo não especificada que atacou e roubou um assentamento de
seringueiros; na fuga, para enganar os brancos camuflando seu rastro, o grupo de índios
atacantes faz o caminho de volta passando pela maloca Nehanáwa referida por dona
Mariana – provavelmente tratavam-se de grupos inimigos entre si. Os seringueiros brancos,
em sua perseguição, seguem os rastros e topam a maloca Nehanáwa, nela desferindo sua
vingança. Mas nem todos os Nehanáwa achavam-se em casa. Membros do cupixau
provavelmente encontravam-se em incursões de caça e pesca nas matas e igarapés vizinhos,
como é de costume entre os índios na época do verão; ou então achavam-se dispersos na
floresta por temor a prováveis correrias.14 Entre as pessoas que se achavam ausentes do
cupixau na hora do ataque branco estavam seu chefe e filha – respectivamente avô e mãe de
dona Mariana. O líder da maloca deparou-se então com uma situação que exigia vingança,
e assim procedeu.
Dando uma breve batida nas imediações, encontrou rastros de índios, deduzindo
logo que esses brabos eram os culpados pela correria que seu povo sofrera. O líder
Nehanáwa perseguiu então os índios brabos e realizou nova correria contra eles. Dona
Regina contava que seu pai encontrou esses índios inimigos ainda em viagem, e os
emboscou no caminho, após o que os Nehanáwa dispersaram-se na mata.
Enquanto isto, os brancos que haviam feito a correria na maloca Nehanáwa ainda se
encontravam nas imediações. Novamente dona Mariana explica que os cariús, quando
faziam uma correria, não costumavam voltar imediatamente por onde vieram;
perambulavam pelas redondezas e escolhiam um trajeto mais longo. O fato é que foi neste
intervalo temporal entre duas correrias – de brancos contra índios e de índios contra índios
– que dona Regina e sua irmã foram capturadas.
Chama atenção inicialmente a extensão do termo “correria” para conflitos armados
entre grupos indígenas nativos. É possível que esta liberdade, ou extensão conceitual, seja
compartilhada somente por cariús, ou descendentes de índios, como é o caso de dona
Mariana, os quais agrupam num mesmo termo enfrentamentos entre grupos indígenas
locais, e entre brancos e índios, que, reunidos, compõem um padrão de conflito endêmico
típico daquele momento histórico. Assim, é possível que os índios utilizassem em suas
próprias línguas termos distintos para as guerras entre índios e índios (tratando-se de
brabos), por um lado, e entre brancos e índios, por outro. Não sabemos.
Há, contudo, uma situação em que o termo “correria” é apropriado, envolvendo o
confronto entre índios: sob as ordens de patrões, índios mansos auxiliavam no ataque a
brabos; tem-se então uma equação ligando brancos e mansos e colocando estes contra os
14
Os Katukina estudados por Edilene Coffaci de Lima (1994:27) associam o tempo das correrias à
impossibilidade de “viverem reunidos” em aldeias, passando a adotar uma vida semi-nômade, sujeita à
deslocamentos frequentes. Outros autores já citados, como Alfredo Lustosa Cabral, Terri Aquino, Marcelo
Iglesias e Philippe Erikson, também apontam a estratégia de deslocamentos adotada pelos índios para fugir
das perseguições que lhes moviam os brancos.
7
brabos. Viu-se que os perseguidores dos Nehanáwas estavam assessorados por um índio
manso, de nome Chico Culumim, ou Curumim, um Kaxináwa amansado no rio Envira e
que, após 1920, passou a trabalhar com o patrão Felizardo Cerqueira, um conhecido
amansador de índios.15 Há outros exemplos de patrões que trabalhavam com força de
trabalho indígena, como Ângelo Ferreira da Silva. Este cearense contou com etnias nativas
– como os Kaxinawá, Yawanawá, Rununawa e Iskinawa – na execução dos trabalhos nos
seus seringais do Alto Tarauacá. Além de trabalhar nos seringais, os índios amansados
foram empregados na abertura de varadouros, ramais e rodagens. Os índios amansados por
Angelo também trabalharam, a pedido de outros patrões, como “polícia de fronteira” nos
altos rios para proteger os seringueiros do ataque de brabos.
Em 1909, por causa de uma disputa pela propriedade de um seringal, Angelo
Ferreira foi assassinado a mando de um patrão vizinho. Neste momento surge
historicamente a figura de Felizardo Cerqueira, sobrinho e antigo empregado de Angelo.
Por volta de 1920, no Alto Envira, um grupo de Kaxinawá em fuga dos peruanos foi
agrupado por Felizardo – entre eles o extenso grupo familiar de Chico Curumim.
Posteriormente, Felizardo e “seus” Kaxinawá mudaram-se para o seringal Revisão, no rio
Jordão, a convite de um patrão cujos seringueiros brancos estavam sendo atacados por
índios brabos. Aquele patrão requisitou os serviços de proteção de Felizardo e seus
caboclos mansos. Lá, os Kaxinawá de Felizardo – devidamente identificados com as
iniciais “FC” tatuadas em seus braços – realizaram correrias contra brabos. Os índios
agrupados por Felizardo no Jordão ainda ajudaram a Comissão de Limites, na década de
1920, a traçar a fronteira entre o Brasil e o Peru.16
Também para se defender dos brabos, vários patrões de seringais localizados nos
altos rios se valeram dos serviços dos índios Ashaninka, da família linguística Arawak e
tradicionais inimigos dos Pano. Alguns Ashaninka, ou Kampa, cuja população concentra-se
majoritariamente no Peru, chegaram a ser escravizados por caucheiros e, num segundo
momento, atraídos por patrões brasileiros como força de combate contra os Pano arredios.17
Finalmente, merece ser ‘citado o Coronel Mâncio Lima, que no início do século
“pacificou” os Poyanawa das proximidades de Cruzeiro do Sul, no atual município que hoje
leva o seu nome.18 Durante muitos anos as propriedades de Mâncio Lima – fazendas de
criação e agricultura – foram alvo de roubos. Com ajuda de índios mansos e migrantes
cearenses, a partir de 1911 o Coronel organizou expedições de contato, atração e punição,
integrando os Poyanawa aos trabalhos em suas propriedades.
Nas correrias organizadas por proprietários de seringais, de acordo com Terri
Aquino, dois objetivos distintos podiam se colocar: de um lado a captura de índios para
amansá-los e incorporá-los à força de trabalho, como procediam os desbravadores citados
acima. Diversos autores apontam ainda a captura de índias para desposar os seringueiros
solteiros chegantes do Nordeste, contrariando o senso comum de que “não havia mulher no
seringal”. Embora em número menor, elas estavam presentes e as índias representavam
importante contingente.19
15
Cf. Aquino, 1977:44; e Aquino & Iglesias, 1994:12.
16
Consultar Aquino & Iglesias, 1994:10-13 e Tastevin, 1926.
17
Mendes, 1991; Cunha, 1994[1909]: 64-75; e Aquino & Iglesias, 1996:31.
18
“Pacificar” remete aqui à atração dos índios para fins de contato, solução de conflitos e incorporação como
mão-de-obra local.
19
Cf. Aquino, 1977:44 e Wolff, 1999.
8
Ainda de acordo com Aquino, o outro objetivo das correrias era o extermínio puro e
simples dos índios. Nestes casos, os brancos podiam contar com seus próprios especialistas:
renomados matadores de índio, como o Maximino citado por dona Mariana. Os matadores
de índios certamente estavam a serviço dos donos dos seringais.
É nesse contexto que ocorrem, nos relatos, as guerras de vingança entre índios Pano
brabos – designadas nas narrativas feitas por brancos e por descendentes de índios que se
casaram com brancos com o nome de “correria”. Na complexidade das fronteiras étnicas e
dos etnônimos que caracteriza a região de ocupação Pano20, torna-se difícil ou impossível
distinguir as incursões entre malocas e mesmo as guerras entre grupos étnicos, das guerras
genocidas trazidas pelo boom da borracha. E mais difícil ainda porque o que os relatos
fazem é trazer esses conflitos já entremeados entre si, e narrados do ponto de vista de
brancos ou de índios amansados pelos brancos. Vejamos o trecho da entrevista a seguir em
que converso com dona Mariana:
– Dona Mariana, como era este negócio de caboclo que fazia correria em caboclo?
– Era, nos outros índios brabos.
– Ah, os mansos faziam nos brabos?
– Os brabos uns com os outros.
– E por que?
– Porque faziam assim como eu estou dizendo: quando roubavam, os brancos vinham para
a correria, eles tinham passado no cupixau dos outros, aí os cariús faziam fogo no cupixau
deles. Aí eles ficavam com reixa, aí iam atrás deles e faziam fogo neles. (…)
– Mas quem começou com este negócio de correria foi branco, ou índio já fazia correria?
– Não, os brancos que começaram. Porque tinha muito índio, os índios faziam muita
danação, Mariana, eram muito perversos, matavam o pessoal, roubavam tudo quanto o
cariú tinha na casa dele. (…) Quando os cariús começaram a chegar aqui no Amazonas,
abrindo as colocações, isso aqui era de índio, era muito índio, a população que tinha era
indígena, brabo. Aí os cariús entraram, os cearensos. (Dona Mariana, Foz do Machadinho,
setembro de 1994)
Dona Mariana diferencia, na conversa acima, as guerras de aldeia contra aldeia das
guerras de brancos contra os brabos. Na verdade, ela associa os conflitos de aldeia a aldeia
à presença dos cariús; ela não nega as guerras locais anteriores, simplesmente se cala sobre
elas. Afinal, para ela, os conflitos estão contextualizados pela temporalidade de sua história
de vida, que é também a da abertura dos seringais, e das correrias.21
Num outro extremo, temos a versão de que o encontro entre etnias tribais e a frente
de expansão da borracha teria resultado no extermínio de “toda a população indígena”.22
Felizmente, os Kaxinawá e os Katukina do rio Campinas, entre outros, sobreviveram e
interagiram com a frente extrativista da borracha, conquistaram seus próprios territórios e
vieram a estabelecer novas e inesperadas formas de relação com a sociedade branca.23
20
Cf. Erikson, 1992.
21
Mas é sabido que as guerras indígenas são, nas sociedades amazônicas, a elas intrínsecas, e, portanto,
anteriores ao estabelecimento de seringais e próprias das inter-relações entre os grupos indígenas da região.
Sobre as guerras indígenas, consultar, por exemplo, Mengent, 1993.
22
Ribeiro, 1979:22-3.
23
Cf. Iglesias, 1998, por exemplo, e Lima, 1994.
9
Medos e revides
A verdade é que nos primeiros tempos dos seringais o medo deve ter sido um
sentimento recíproco: caboclos temiam as correrias; cariús tinham medo de ataques e
raptos.24 Os cearenso-seringueiros não só temiam os índios como, assim como estes,
também choravam seus próprios mortos. A hostilidade indígena era uma realidade; para os
seringueiros, havia uma terra a ser conquistada a moradores mais antigos. No Alto Juruá, é
recorrentemente citada – para ilustrar os reais perigos aos quais os primeiros seringueiros
estavam expostos – a história de dois irmãos cearenses assassinados por índios brabos na
colocação Nova Olinda, uma das últimas localidades do paranã do Machadinho, afluente do
Tejo. Os “irmãos de Nova Olinda” são tidos como almas milagrosas, e a sepultura de
ambos transformou-se num lugar santo, visitada e zelada por peregrinos que lá vão em
busca de graças ou para pagar as bençãos alcançadas.
Para os que estavam na linha de frente da ocupação, a ameaça indígena era bem
concreta, como mostram testemunhos de Alfredo Lustosa Cabral e o caso dos irmãos de
Nova Olinda. O padre Tastevin, em suas inúmeras andanças pelo Vale do Juruá e seus altos
rios, observou que não havia passividade dos índios frente à dominação branca sobre seus
territórios. Para ele, contudo, haveria uma incompreensão por parte dos povos nativos,
“estas pobres pessoas”, quanto ao processo do qual estavam forçosamente participando: a
abertura dos seringais. Equivocadamente, a seu ver, tomavam “os civilizados por
inimigos”.25 Num outro texto, ele afirma que os índios “não souberam unir-se para a
defesa”, consumindo seu tempo e esforços em inimizades antigas e guerras que os
enfraquecia frente aos brancos. Referindo-se ao mesmo padre Tastevin, Castello Branco
avalia que “os índios não se solidarizavam para defender-se, arranjando terríveis lutas entre
si, de sorte que ainda mais se reduziam (…)”.26
A invasão branca não ocorreu num vazio, e sim numa região densa de povos e
história, cuja organização social não configurava a existência de “tribos confederadas” que
pudessem vir a unir-se e enfrentar um inimigo, os brancos invasores. O que assistimos é um
imbricamento de conflitos, inimizades e guerras entre tribos e aldeias das quais os brancos
passaram a fazer parte, o que está me levando, neste artigo, a de alguma forma adensar a
tese de Tastevin. É, portanto, num contexto conflituado, desigual e contraditório que deve
ser situada a aparente impotência das populações indígenas para opôr uma resistência
concatenada à invasão dos brancos.
Caboclos e cariús: mapa de encontros e confrontos
Até agora foram vistas neste artigo situações em que: 1. brabos guerream entre si; 2.
mansos e cariús atacam e matam brabos; 3. brabos são capturados, amansados e casam-se
com cariús; e 4. brabos atacam e matam cariús. As narrativas orais recolhidas sobre os
encontros e confrontos ocorridos entre índios – caboclos brabos e mansos – e brancos – os
cariús – podem ser organizadas na forma de um mapa com diversos sítios, cada um deles
retratando arranjos e oposições diferentes; estes sítios podem, por sua vez, ser pensados
como interconectados por ganchos narrativos, através dos quais pessoas e grupos transitam
entre diferentes posições e referências de pertencimento; e podemos ainda pensar esses
24
Ver Cabral, 1984[1949]: 65-6; Wolff, 1999:161/2 e Martini, 1998:53-55.
25
Tastevin, 1914. Tastevin, que fique claro, não apoia as correrias; seu projeto para os índios é missionário: a
catequese.
26
Tastevin, 1928; Castello Branco, 1950:27. Rego Barros (1993:124) também faz observação semelhante.
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sítios como uma opção de navegação que nos levaria a trajetos e pontos de chegada
diferentes, embora interconectados. Darei agora continuidade a este mapeamento.27
27
Observo que estou tratando de encontros e confrontos entre grupos sociais diferentes numa situação de
conflito, mas não “das modalidades de encontro no desencontro que a fronteira propõe” (Martins, 1997:39).
Os seringais como “fronteira”, se posso dizer assim, são locais sim da experiência, por vezes radical, da
alteridade, mas também (embora não só) de modalidades de interação.
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recíprocos: os cariús estão carregando cônjuges para os seus, assim como o fazem também
os caboclos brabos.
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velha). O ataque brabo era uma ameaça real: entre eles, nada garantiria, por exemplo, que
não fossem mortas, já que não haveria ninguém com obrigação de vingá-las.28
Numa segunda visita, as duas foram atacadas e dona Regina ferida. Correram, e os
índios limitaram-se a roubar suas casas, como era de costume, sem ir ao encalço das duas
mulheres. Pode ser que estivessem atrás de reconduzí-las de volta para a mata, mas também
pode ser que tenha apenas se tratado de um ataque à casa de seringueiros cariús. Tão logo
as mulheres saíram da casa, os índios, ao invés de perseguí-las – no que provavelmente
teriam sucesso – , concentraram-se no roubo dos utensílios e objetos domésticos. E devem
ter fugido veloz e eficazmente, pois não foram encontrados pela revanche organizada pelo
patrão dos seringueiros.
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de seu Milton, dona Raimunda, ele temia os caboclos mansos que moravam nas
vizinhanças: não aceitava ofertas de qualquer tipo de comida que lhe era oferecido quando
andava nas casas desses caboclos, temia que contivessem “porqueira” (feitiços).
Estamos vendo que caboclos mansos – dona Regina e Pedro Tibúrcio – se
diferenciavam dos que, também mansos – os Kaxinawá do rio Jordão amansados por
Felizardo Cerqueira –, haviam sido pacificados em grupo. Dos brabos tinham medo, não
eram mais sua tribo, poderiam ser inimigos, como já eram dos brancos no meio do qual
viviam; os mansos pacificados em grupos, viviam, aos seus olhos, tal como nas antigas
malocas; não eram mais brabos, mas pareciam ainda adotar comportamentos deles, como o
feitiço. Para dona Regina, a comida dos mansos das malocas era “sebosa” 29, embora fosse
a mesma que comera quando vivia entre seu povo.
O que poderia chamar atenção é uma aparente identificação de dona Regina e Pedro
Tibúrcio, entre outros caboclos mansos, com a sociedade branca em que viviam. Não
parece haver conflitos de identidade marcados por indecisão sobre qual lado a pessoa
pertence. Não há história de retorno para a “indianidade” após a vida no seringal – as
caboclas mansas fogem à vista dos brabos. Nem de conflitos de consciência de índios
mansos ao servirem de mateiros em correrias – eles guiam os brancos para os massacres.
Por outro lado, tudo isso não implicava que a origem indígena fosse negada.30 Dona
Mariana afirma categoricamente que sua mãe “nunca negou sua parte de índia”. Na
verdade, mesmo que negasse, alguém sempre a lembraria de tal.
29
De acordo com dona Mariana, a carne de caça não é lavada, é assada “com couros e tudo” e ainda por cima
sem sal.
30
Ruth Benedict (1972), em estudo clássico, lidou com situação similar nas relações entre norte-americanos e
japoneses no contexto da Segunda Guerra: como entender, por exemplo, o surpreendente comportamento, do
ponto de vista dos norte-americanos, dos soldados japoneses quando aprisionados, que passavam a colaborar
com os inimigos que, até aquele momento, haviam combatido aguerridamente?
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– Pra o caboclo ver que ele não queria fazer mal, que ele não vai atirar. Aí ele saiu com a
espingarda assim na mão, com a boca pra baixo. Aí ela disse: – “Passe, que eu vou
atrás”; aí eu passei e ele passou também. Aí nós viemos. (...) Aí com a distância de meia
hora, tinha uma casa, um conhecido nosso, da minha mãe. (...) Aí era muito conhecido e de
noite foram contar caso, o velho contando pra nós como era bom aqui no paranã [do
Machadinho] e tudo. Aí ele tinha dois cachorros bom de caça e bom de índio. Mariana,
esses cachorros passaram a noite correndo, neguinha, avançando assim no caminho que a
gente tinha vindo. (...) Aí ele [o velho seringueiro] foi e disse assim: – “Olha Regina, é os
seus parentes que querem vir aqui porque viram você!”. Aí ela foi e disse assim: – “Ah,
eles nem me conhecem, eu não sou daqui, eu sou do Envira”; aí ele disse: – “Ah, mas os
índios do Envira andam por aqui”. Eles vieram, neguinha, atrás de nós.
Noutro ano, eu era ainda meia brochótózinha, eu era pequena ainda [dez anos de
idade], nós viemos pagar promessa na Nova Olinda. Eu vim mais a minha mãe, o
companheiro da minha mãe e outro amigo do companheiro da minha mãe, nós viemos em
quatro pessoas. Dormimos numa colocação que não tinha ninguém, no outro dia nós
viemos se embora para as Nova Olinda, deixamos todas as cargas lá. Quando nós
chegamos [de volta] eles [os índios] tinham carregado tudinho, levaram tudinho. (...) Ah,
minha filha, agora, por este tempo, antigamente, quem ia pagar promessa não ia só não,
duas, três pessoas, o maior medo. Faz poucos anos que por este tempo a gente ainda via
vestígios deles por aqui, fazendo sinal por onde andavam. Agora que ninguém vê mais, é
difícil. Depois que os índios mansos começaram a fazer correria foi que eles afastaram.
(Dona Mariana, foz do Machadinho, setembro de 1994)
Dona Mariana refere-se na narrativa acima às correrias realizadas pelos Kaxinawá
do rio Jordão, num período já posterior ao patrão Felizardo Cerqueira, que no início da
década de 1930 havia se mudado para o Estado do Amazonas.31 Dona Mariana nasceu em
1928 e, quando testemunhou (não diretamente) correrias promovidas por mansos contra
brabos, tinha cerca de doze anos. Os Kaxinawá, por volta de 1940, já eram chefiados por
Sueiro Sales, filho de Felizardo Cerqueira com uma índia Kaxinawá e criado por Chico
Curumim.32 Na narrativa abaixo, última do artigo, gravada em julho de 1998, dona Mariana
dando continuidade à história do roubo de suas coisas e de seus companheiros na
peregrinação a Nova Olinda, inesperadamente conta que reviu seus pertences.
– Aí, quando eu já tinha doze anos, trabalhava nessas Duas Nações [colocação no rio
Jordão]. Aí os caboclos [brabos] deram num cupixau dos caboclos civilizados, no seringal
do Jardim também, tá vendo?, adonde eu morava, no mesmo seringal. Aí o Sueiro, pai do
Siã, foi atrás, mais os outros índios, dos índios brabos que tinham feito o roubo no cupixau
dos outros caboclos civilizados deles lá. Aí eles foram atrás. Eles dizem que não mataram,
mas eles tomaram todo o roubo que eles tinham roubado, que eles tinham roubado no
cupixau desses índios civilizados. Adonde tomaram as minhas roupas e da minha mãe, do
ano que eles tinham roubado. Meu vestido, Mariana, parecia só visto, contado ninguém vai
acreditar: meu vestido assim, neguinha, eu acho que tava, eu tinha dez anos, eu já estava
com doze anos; o vestido estava bonzinho, bonzinho, Mariana, estava com toda a goma
ainda do pano, da fazenda. (...)
31
Aquino & Iglesias, 1994:19.
32
Chico Curumim, já foi dito, era chefe de uma das famílias extensas Kaxinawá amansadas por Felizardo
Cerqueira no início do século XX.
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Aí eu perguntei [para Sueiro]: - “Primo, adonde foi que vocês mataram eles?” Ele
disse: - “Não matemos não, prima. Nós topemos eles, tavam comendo dentro de um
igarapé. Aí os bichos sentiram nós, aí corrreram.” Mas eles mataram, Mariana. Eu
morava nessa colocação, chamada Duas Nações, eu tinha me levantado – eu e a minha
mãe e o meu padrasto, nós íamos cortar [seringa]; o velho ia raspar, e nós íamos cortar.
(…) Aí nós escutemos; eu tava lavando a boca, tinha me levantado já pra comer, já tinha
comido, aí tava escovando meus dentes; aí eu escutei: “Pêi! Pêi!”. Aí eu digo: - “Olha! O
que é aquilo?” Aí: “Pêi! Pêi! Pêi! Pêi! Pêi…” Aí eu digo: - “O que é aquilo, seu Zé
Raimundo?”, que era o companheiro da minha mãe. Aí ele disse: - “O que é aquilo?!” Eu
digo: - “São os queixadas, né?” Ele disse: - “Os queixadas? É o Sueiro fazendo fogo nos
índios, é mesmo.” Eu digo: - “É mesmo, seu Zé Raimundo, que eles foram fazer
correria…” (Dona Mariana, Foz do Machadinho, 01/07/1998)
Estamos já num outro momento, nos idos de 1940, praticamente meio século de
seringal. Se há correrias é porque há brabos, mas estes provavelmente realizavam incursões
a partir dos territórios mais longínquos aonde se refugiaram das perseguições dos cariús.
Não é mais o patrão Felizardo Cerqueira que comanda correrias praticadas por “seus”
Kaxinawá contra brabos. Sueiro Sales, uma segunda geração do seringal, filho do patrão
cariú com uma cabocla mansa da maloca, é quem comanda seu povo contra os brabos,
vingando-se de um ataque que haviam feito.
De outro lado, temos também uma segunda geração do seringal, dona Mariana, filha
de uma índia “pegada” com um seringueiro cearense. Ela, a mãe e seus companheiros de
viagem a Nova Olinda haviam, cerca de dois anos antes, sido vítimas de um roubo
promovido por brabos. Ao contrário de sua mãe, uma ex-braba e que, já mansa, fora
atacada por brabos, dona Mariana nunca os tinha visto. Com curiosidade acompanhou a
mãe para conhecer “as armas dos parentes”. Qual não foi sua surpresa quando, na maloca
de Sueiro, encontrou, em meio aos despojos tomados aos brabos, os vestidos que os brabos
haviam lhes tomado na romaria a Nova Olinda.
Esses dois caboclos representantes da segunda geração – dona Mariana e Sueiro –
protagonizam episódios distantes no tempo – um roubo e uma correria – mas conectados
por uma coincidência: o roubo foi perpetrado pelos mesmos brabos que sofreram a correria.
A cabocla Mariana sente-se lesada e acredita que os brabos mereçam ser punidos por essa e
outras perversidades; o caboclo Sueiro também sente-se lesado, pune os brabos com uma
correria, mas talvez esta forma de punição não seja somente uma herança cariú do tempo da
abertura dos seringais, mas também orientada por códigos e princípios semelhantes aos que
orientam as guerras de vingança Pano. Talvez esteja aí uma das razões pela qual não
encontramos conflitos de consciência entre os mansos que guiavam os cariús nos massacres
contra brabos: é que, na verdade, também estavam atacando inimigos. Pode ser, mas
tiveram antes que ser amansados pelas correrias.
Para finalizar, há um outro ponto sobre o qual gostaria de chamar atenção: o termo
“caboclo”, assim como o de “manso”, não recobre um grupo homogêneo. No tempo da
narrativa de dona Mariana, assistimos caboclos vivendo em proximidade física e mantendo
relações entre si, inclusive de parentesco ritual. Mas, foi visto, não se consideravam iguais.
“Caboclo”, portanto, remeteria à situação de contato interétnico. Mas este assumiu
inúmeras formas; dona Mariana e Sueiro são caboclos, mas não da mesma forma.
Num outro extremo, mesmo considerando que nenhuma mistura ocorreu (o que é
um caso raro), “caboclo” continua remetendo ao contato e é correntemente utilizado como
identidade indígena mais geral, por índios e não-índios. Mas o termo “caboclo” pode ser
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acionado como signo de discriminação e preconceito – dos brancos contra os índios –
remetendo à atributos como preguiça para o trabalho e hábito de roubar.
Considerações finais
Neste artigo foi proposto um deslocamento de olhar sobre o contato entre índios e
brancos no momento histórico da abertura dos seringais, nos altos rios do Vale do Juruá: de
uma visão mais geral, ou estrutural, para outra que enfatizasse as ocorrências locais e
singulares, as pessoas e seus dramas.
A abertura dos seringais e as correrias representaram, sem dúvida, uma oposição
entre grupos chegantes e os nativos, tendo estes últimos sido alvo de um verdadeiro
genocídio e, em especial no caso do sexo feminino, de uma incorporação forçada à
sociedade de seringal mediante o casamento com seringueiros nordestinos. Foi visto que
entre os índios brabos as diferenças eram grandes, inclusive difíceis de serem mapeadas, e
que mantinham relações de troca e bélicas entre si. Mas, de um ponto de vista mais
estrutural, essas diferenças tenderiam a subsumir sob um processo violento e esmagador de
dominação.
Quando, porém, descemos ao nível do detalhe da estrutura, fica difícil afirmar a
oposição pura e simples entre índios e brancos. Isto é, quando o contato interétnico é
analisado como um processo histórico e (re)criador de fronteiras identitárias, formulações
estruturalmente rígidas perdem progressivamente o valor explicativo.33 Minha opção,
portanto, sempre guiada pelas indicações fornecidas pelas narrativas orais, recaiu sobre
uma visão por meio da qual emergissem dramas locais e pessoais, e a estrutura ganhasse
novos matizes e balizas.
Na ausência de relatos de primeira mão de dona Regina e Pedro Tibúrcio, os
principais protagonistas indígenas neste artigo, procurei mapear e explorar a diversidade de
situações de contato entre brabos, mansos e cariús. Ao meu ver, elas complexificam
significativamente o contexto das correrias e os primórdios dos seringais.
Afirmaria que o material analisado parece indicar que padrões e fronteiras étnicas
demarcadas não são necessariamente previsíveis, pois não são dados por fatores intrínsecos
à etnicidade.34 O que vários autores argumentam é que a “substância” da etnicidade não
estaria em entidades, mas sim em relações.35 Numa nova situação de interação como a da
abertura dos seringais, grupos étnicos nativos podem absorver ou ser absorvidos por outros.
Alguns desaparecem, outros escapolem. Brabos são capturados e incorporados pelos cariús,
e o contrário também ocorre, embora com menor frequência. Caboclos mansos e cariús,
reconhecendo-se como grupos étnicos distintos, demarcam suas fronteiras numa situação de
dominação, o que, entretanto, não impede o trânsito e a troca (de elementos culturais, de
pessoas) entre eles. Caboclos mansos destribalizados e desterritorizalizados diferenciam-se
daqueles que permancem vivendo no sistema tribal tradicional, em malocas.36
33
Cf. Oliveira Filho, 1988 e Barth, 1998[1969]. Nas situações históricas de contato interétnico, portanto,
tendo a concordar com João Pacheco de Oliveira Filho (1988:38) quando ele afirma não ser possível tomar as
unidades sociais de análise “como entidades fechadas e homogêneas”. Isto significa que as relações que se
estabelecem, mesmo desiguais, estarão sempre referenciadas à “linhas e possibilidades de ação e ordenação”
dadas pela interação (54-ss).
34
Esta perspectiva contraria uma tendência mais comum que é a de definir a identidade étnica por meio de
critérios como ascendência, tradição e territorialidade.
35
Barth, 1998[1969]; Carneiro da Cunha, 1987; e Oliveira Filho, 1988.
36
Barth (1998[1969]) já alertou para o fato de que os “valores distintivos ligados à identidade étnica” podem
ser diferencialmente imperativos. Na mesma linha de raciocínio, Oliveira Filho (1988:55) afirma que as
17
Assim, a incorporação dos mansos não destrói fronteiras étnicas, mas a
administração da distintividade passa a ser feita numa situação de intenso contato – e as
diferenças encontram linguagens comuns. Em seu pioneiro estudo sobre a história das
mulheres nos seringais do Alto Juruá no início do século, Cristina Scheibe Wolff
demonstrou que o acervo de técnicas e conhecimentos sobre a natureza hoje manipulado
pelos seringueiros deve muito aos homens e mulheres indígenas incorporados à sociedade
de seringal. Maria Gabriela Jahnel Araújo defende a tese de que existiria uma “cosmologia
seringueira”, que retirou muitos de seus elementos das tradições indígenas locais.37 Dona
Regina e Pedro Tibúrcio não tornaram-se cariús, a própria sociedade de seringal os
impediria de tal, pois que fundada sobre distinções étnicas e seus processos de interação e
oposição.38 Contudo transitavam no universo branco e o conformavam.
Por outro lado, ambos diferenciavam-se dos Kaxinawá amansados por Felizardo
Cerqueira, atribuindo-lhes uma comida “sebosa” e temendo as práticas de feitiço. Os
mansos Pedro Tibúrcio e dona Regina significavam estes e outros traços, como a moradia
em malocas e a conservação de hábitos, língua e organização social, como símbolos de
alteridade.39 É conhecida a atitude de atribuir ao outro a “selvageria” (ou a “sebosidade”, a
“porqueira” etc) para fins de diferenciação e valorização do que foi historicamente
adquirido ou conquistado.40
Finalmente, chamaria atenção para a recriação, no Jordão, de uma rede de relações
de parentesco que certamente remontavam ao rio Envira. Dona Regina foi brutalmente
afastada do seu povo de origem, mas teve perto de si a madrasta, e posteriormente
conseguiu resgatar laços antigos herdados de sua origem indígena no Envira. Assim, ela
estava inserida na sociedade de seringal, mas desta sociedade também fazia parte uma rede
social restrita e com alto poder de referência étnica. Como evidência curiosa, chamaria
atenção para a valorização, nas narrativas de dona Mariana sobre sua mãe, de critérios de
ascendência (ser Nehanáwa) e territorialidade (ser do Envira) na definição de suas
fronteiras étnicas, o que torna o grupo de “parentes” reencontradas no Jordão o seu grupo
de referência. Mas não se trata de uma naturalização da etnicidade por critérios de
ascendência e território; a etnicidade está antes referida à uma trajetória de vida. E talvez a
isso deva sua força emocional.
Referências Bibliográficas
relações estabelecidas entre grupos ou pessoas podem vir a transpor as barreiras étnicas, embora a “clivagem
étnica” possa permanecer como um fator básico de organização social. E por isso, por esta possibilidade da
comunicação, há também regras (prescrições e proscrições) e critérios de incorporação e exclusão.
37
Wolff, 1999 e Araújo, 1998.
38
Cf. Barth, 1998[1969]:108.
39
Lembrando ainda Carneiro da Cunha (1987), acrescentaria que a resignificação pressupõe a reciprocidade
comunicativa, não sendo possível prever o que será reinterpretado, como e em que contextos.
40
Sobre a idéia do feitiço ou da selvageria ao “outro”, potencial inimigo, consultar Schiel, 1996; Araújo,
1998; Aquino & Iglesias, 1996; e Taussig, 1993.
18
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